UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Adriana Santoleri Villa Barbeiro
UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES
URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Adriana Santoleri Villa Barbeiro
UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES
URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em História Social sob orientação do Prof.
Dr. Amailton Magno Azevedo.
SÃO PAULO
2014
2
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
3
Agradecimentos
Por mais solitária que tenha sido minha caminhada durante o processo de
obtenção do título de mestre, os percursos que me fizeram chegar até aqui teriam sido
infinitamente mais tortuosos, nebulosos, quase intransponíveis, se não tivesse contado
com a presença de uma série de pessoas que souberam sem cobranças e, com uma
paciência do tamanho do mundo, ajudar na construção dos pilares que me permitiram
chegar até aqui. Por isso, esses grandes seres de luz recebem agora o meu sincero
“muito obrigada”, muito embora, devam saber de antemão, que nem nos mais longos
agradecimentos possíveis chegaria, realmente, a agradecê-los pelo que representam na
minha vida.
À minha mãe, Aurea, por me mostrar, há mais de 25 anos, o quão difícil é viver
e sobreviver num mundo de loucos. Obrigada por ser aquela que luta, diariamente,
contra moinhos e dragões.
Ao meu pai, Alexandre, por ser o maior exemplo de trabalho e perseverança que
tenho na vida. Você é um vitorioso e eu espero que tenha consciência disso.
Ao meu irmão e melhor amigo André, por me mostrar, a cada dia, que a
construção do conhecimento deve ser algo constante baseado, sempre, no trabalho árduo
e no amor por aquilo que se faz. Só você mesmo para me fazer entender aquela frase de
Pitágoras: “A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”.
A Eduardo Boletti, por sua companhia, suas palavras de apoio, seu olhar
cúmplice e seu abraço, que mais do que abraço, transfigura-se, cada dia mais, em
abrigo.
A Kaká Truppa, por sua amizade sempre alegre e sincera. Obrigada pela ajuda
em relação à vida e ao Abstract.
Ao meu amigo, de longa data, André Luis Soares Valdez (Big Carlton) por ser
essa minha alma gêmea no mundo das ideias. A sua Filosofia, a minha História, enfim,
as nossas discussões sobre “qualquer coisa e sobre tudo” me fazem, sem sombra de
dúvidas, um ser humano maior e melhor. Evoé!
Carlinhos Sanmartin, pelos olhos azuis, coração gigante e ouvidos sempre
atentos, sempre dispostos a me ajudar. Amicuscertus in re incerta cernitur.
Aos meus queridos e queridas do coral jovem do Colégio Jardim São Paulo, ao
qual tenho a honra de pertencer: Vera Novack, Carol Mello, André Valdez, Amanda
4
Souza, Bru Marinho, Carol Sato, GiMayumi, Gi Valentim, Gui Gonzaga, Hanny e
Henry (mestre) Setton, Igor Ramos, Bel Villas Bôas, JúBettim, Karol Ferrasa, Borô,
Bradrie, Mari Guilhem, Mayara Santos, Maysa Berbel, Nicole Ranieri, Tami Soares,
Leo Soares, Vivi Amaral, Yumi Nagatsu.
Ao professor Luis Perez e aos colegas do curso de percussão corporal da Escola
de Música do Estado de São Paulo (EMESP).
Aos responsáveis pelos arquivos do MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de
São Paulo) e do MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) pelo pronto
apoio no que diz respeito às pesquisas que precisei realizar nessas locais.
Aos responsáveis pelo arquivo da Biblioteca Oneyda Alvarenga do Centro
Cultural São Paulo.
Ao meu orientador, Amailton Magno Azevedo por suas aulas, indicações de
leitura e nossas conversas que ajudaram de maneira indubitável no resultado final da
dissertação.
Às coordenadoras do Colégio Nove de Julho, Raquel Lopes da Silva e Cecília
Holzapfel Lessa que, há praticamente dois anos têm sido infinitamente compreensivas
em relação à loucura da vida de uma estudante de mestrado. Gratidão!
À Lêdda Pena, supervisora do EAD da Universidade de Santo Amaro (UNISA)
o meu agradecimento eterno por compreender e apoiar minha luta na elaboração final
deste trabalho.
À professora Estefânia Knotz Cangucu Fraga por seu apoio sincero no que diz
respeito ao texto parcial de minha pesquisa. Obrigada pelos elogios e, principalmente,
por todas as críticas construtivas.
Ao colega e grande exemplo profissional Professor Doutor Rafael Lopes por sua
rica leitura em relação ao segundo capítulo da dissertação, suas colocações ajudaram-me
sobremaneira.
Aos “mestres” Maria Izilda Santos de Matos e Salloma Salomão Jovino da Silva
pelos apontamentos feitos na ocasião da qualificação da dissertação que agora
apresento. Obrigada por todas as indicações bibliográficas e sugestões, principalmente
as que diziam respeito à redação final do trabalho. Obrigada, também, pelo exemplo de
vida acadêmica tão brilhante e fundamental para os estudos de História e Música.
Ao Capes que financiou parte dessa pesquisa.
E, por fim, aos meus amados alunos: Sem cada um de vocês eu poderia ser muita
coisa, menos eu. Obrigada por transformarem os meus dias em algo tão divertido, tão
5
cheio de vida e de novos aprendizados. Se eu continuo acreditando num mundo melhor
isso se deve única e exclusivamente a vocês.
6
DEDICATÓRIA
Ao samba que “ainda vai nascer”
Ao samba que “ainda não chegou”
O samba que não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
Ao samba que é “o pai do prazer”
Ao samba que “é o filho da dor”
O grande poder transformador
(Caetano Veloso, Desde que o samba é samba)
7
RESUMO
Este texto insere-se na perspectiva da História Cultural, em particular, à abordagem
relacionada ao processo de urbanização das cidades brasileiras e à construção de
identidades ligada a uma abordagem crioula da mesma. O objetivo central encontra-se
em estudar como se deu o processo de intensificação da favelização da cidade do Rio de
Janeiro, entre as décadas de 1950 e 1980, e as respostas e reflexos desse movimento
caracterizados na construção de identidades e na produção musical carioca do período,
analisada através das composições do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti.
Buscamos compreender, por meio das composições e da própria biografia de Zé Kéti,
aquilo que Édouard Glissant denominou como “irrué”, a mistura de irrupção e ímpeto,
realidade e irrealidade, características, que acreditamos estar presentes, não apenas nas
produções que serão aqui analisadas, mas, também, no próprio samba (assim como nos
demais gêneros musicais formados nas fronteiras do Atlântico Negro) e mesmo, na
identidade da favela carioca e do “povo” brasileiro que aqui buscaremos elucidar.
Desse modo, buscaremos observar como as transformações econômicas e políticas,
levadas a cabo no período em questão, refletiram-se, não apenas na transformação
desordenada do espaço público, mas também, na forma de se pensar e sentir as situações
que se assumiam cada vez mais presentes na vida de grande parte da população menos
favorecida.
Assim, partindo de uma realidade particular, almeja-se representar mais uma
contribuição entre os recentes, e cada vez mais relevantes trabalhos sobre os processos
de construção de identidades em torno do Atlântico Negro e das transformações das
cidades brasileiras, além de possibilitar um olhar menos pragmático e deformador com
o qual se percebem essas mesmas situações ao longo de toda uma História.
Palavras-chave: cidades, Rio de Janeiro, favelas, música, samba carioca, identidades.
8
ABSTRACT
This study is part of the Cultural History perspective, particularly, the approach related
to the urbanization process of Brazilian cities and the identities construction linked to its
crioulo approach. The main aim of this research is to study how the slums
intensification process in Rio de Janeiro city came about, between the decades of 1950
and 1980, and also the answers and reflexions of this action characterized in building
identities and the carioca musical production of that period, analyzed per the work of
the Samba composer, José Flores de Jesus, the Zé Kéti.
We seek to understand, through compositions and also biography of Zé Kéti, what
Édouard Glissant called "arrué", the mix of irruption and impulse, reality and unreality,
characteristics, which we believe been present, not only in the productions that are
analyzed in this writing, but also, in Samba itself (as well as in other musical genres
created in the "Atlântico Negro" border), and even, in the carioca slum identity and the
Brazilian "people" that we will try to elucidate.
Thus, we will try to observe how the economic and politic transformations, carried out
in studied period, were reflected not only in the transformation of public space
disordered, but also, in the way we think and feel the situations that were assumed
increasingly more present in the lives of many of the less favored population
So, starting from a particular reality, it is desired to represent another contribution
among the recent, and increasingly relevant, work about the processes of identities
construction around the "Atlântico Negro" and the transformations of Brazilian cities ,
beyond enable a less pragmatic and deforming look with which realize this same
situation along an entire History.
Key-Words: cities, Rio de Janeiro, slums, music, samba, carioca, identities.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………….....10
Sobre História e Cidades...................………………………………………......……....16
Sobre História e Música……………………………………………..........………........21
Sobre História e Identidades…......……………………..................................................28
Estrutura e Objetivos……………………………...…………….......…….………........32
CAPÍTULO 1: TRANSFORMAÇÕES URBANAS E
RELAÇÕES DE GÊNERO EM KÉTI………………………………………….…...38
1.1 Kéti e a múltipla Rio de Janeiro ...................................... ........................................40
1.2 Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de uma Rio de
Janeiro mutante................................................................................................................51
1.3 A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti..............................................,,....56
CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA DO ESPAÇO EM KÉTI……………………………66
2.1. Desconstruindo a cidade-partida: favela sujeito versus favela objeto.....….…........67
2.2 A desconstrução da favela-objeto em Kéti................................................................75
2.3 A desconstrução dos sujeitos-objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show
Opinião………………………………………………....................................................87
2.3.1 A cidade, o cinema e Kéti....................................................................................89
2.3.2 A cidade, o teatro e Kéti......................................................................................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO E DA CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE POS COLONIAL..................................................................……...111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................126
10
INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho, desenvolvido no Programa de Estudos pós-graduados
em História, em nível de Mestrado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP), é dupla, quiçá, tripla.
Apresento, no decorrer de todo o texto, uma discussão acerca da constituição da
favela carioca entre as décadas de 1950 e 1980– procurando compreender os motivos
políticos, econômicos, sociais e culturais que resultaram em sua organização – ao
mesmo tempo em que remonto, partindo de preocupações baseadas na cultura e na
sociedade da cidade do Rio de Janeiro do mesmo período,uma estrutura geral da época,
objetivando, por fim, observá-la a partir de preceitos ligados aos estudos de
identidades,baseados na questão da diáspora negra, como forma de sugerir: “que o
compartilhamento das formas culturais negras pós-escravidão seja abordado por meio
de questões relacionadas que convergem na análise da música negra e das relações
sociais que a sustentam”1.
Pretendi, em outras palavras, analisar, como uma estrutura vista desde o seu
nascimento como lócus de exclusão e depósito de desajustados aos novos rumos que a
cidade tomava, pôde criar arcabouços culturais, superando toda a sorte de preconceitos,
criando para si maneiras de ser e de existir próprias que, nesta oportunidade, foram
analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como
uma das formas de sociabilidade do negro na cidade do Rio de Janeiro que possui, ao
mesmo tempo, a função de transmissor de memórias, bem como a de canal que torna
possível a construção de um “ser” autônomo baseado nos saberes de sua cultura.
Todas essas questões, apresentarei, tendo na esteira dos acontecimentos e como
sujeito e objeto da pesquisa, a vida e a obra do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti.
Sua trajetória de vida e, principalmente, suas composições musicais (que cantam o
morro, a malandragem, as relações de gênero etc.) foram aqui observadas como
documentos propícios para a análise do cotidiano social, cultural, político e econômico e
dos ideais acerca de identidade que permearão a dissertação.
Talvez seja conveniente, no entanto, iniciar os resultados da pesquisa afirmando
o seguinte: não pretendo, de maneira alguma, pautá-lo em quaisquer tipos de colocações
que faltem com a realidade dos fatos, assumindo, porém, as dificuldades encontradas
1 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora
34/Universidade Cândido Mendes, 2002, p. 161.
11
dia após dia para que as ideias, agora sistematizadas, tomassem formato digno de uma
dissertação de mestrado. Para que este “desabafo” ganhe algum significado, é mais do
que justo iniciar as explanações esclarecendo que: até o momento em que comecei a
escrever, simplesmente desconhecia a existência desse compositor chamado Zé Kéti.
Suas músicas? Estas, sim, antigas conhecidas. Quantas e quantas vezes não me
flagrei cantarolando “Opinião”, “Máscara Negra” ou “Diz que fui por aí”, sem, no
entanto, questionar quem as havia composto ou mesmo em quais situações pessoais ou
momentos políticos do país elas teriam sido pensadas, produzidas e apreciadas. Nada
tão absurdo assim, mesmo para uma historiadora, contudo, conforme meu interesse em
relação ao referido sambista cresceu, cresceu também a descoberta de que, por algum
motivo, o seu nome e suas contribuições para a música brasileira estavam cercados por
grandes lacunas.
Mesmo que seja visto como “um dos titulares do primeiro time da música
brasileira”, ao lado de Noel Rosa e Tom Jobim, um “sambista genial”, ou ainda como
um dos “autênticos” do samba2, ao lado de Cartola e Nelson Cavaquinho, o que ocorreu
ao procurar produções historiográficas que dessem conta de sua trajetória foi a
incômoda descoberta de um grande vazio bibliográfico.
“Mas”, deve perguntar-se o leitor curioso, “se existe realmente tamanha lacuna
em relação ao nome de Zé Kéti, como teria sido, esta que agora escreve apresentada a
ele e porque tamanho interesse em estudar vida e obra do compositor?”.
À primeira pergunta, respondo: Fui “apresentada” a Zé Kéti, ainda durante o
período de especialização no curso de História, Sociedade e Cultura da PUC-SP, no
momento da elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, um projeto de mestrado
que possuía como problemática principal as interpretações de Nara Leão e suas
contribuições performáticas para o estudo do período da Ditadura Civil-Militar
brasileira.
Achei e, de fato, ainda acho realmente impressionante e corajosa a maneira pela
qual Nara negaria a posição de “musa da bossa nova” para se tornar a “intérprete da
resistência”. Através da escolha dos compositores que abraçaria – ligados ao chamado
“samba de morro” –sua postura e posicionamentos políticos acabariam culminando no
LP “Opinião de Nara”, de 1964, e depois no inovador “Show Opinião”, de 1965,
2 Tais citações podem ser encontradas em BARROS, Julio Cesar. A voz do morro: Zé Renato resgata a
obra de Zé Kéti. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/passarela/critica/a-voz-do-morro>. Acesso
em: 10 mai. 2011; e Memorial da Fama: Zé Kéti. Disponível em <http://www.memorialdafama.com
/biografiasRZ/ZeKeti.html.>Acesso em: 10 mai. 2011.
12
produções que encerrariam o período por mim elencado para a discussão acerca de tal
intérprete.
Figura 1 Nara Leão e Zé Kéti.3
O que aconteceu, no entanto, é que, através das leituras feitas para esse projeto,
o nome de Zé Kéti, mesmo que de maneira bastante rasa, apareceria. E, a partir daquele
momento, decidi que precisava saber mais acerca da trajetória de vida e da produção
musical envolvendo aquele que havia participado do “Show Opinião” e elaborado
composições como “Diz que fui por aí” e “Acender as velas”.
--
Feita a escolha do tema, entretanto, algumas adversidades, surgiriam. Em
primeiro lugar, o já citado vazio bibliográfico em relação a Kéti, tornaria muito mais
árdua a proposta inicial de utilizá-lo enquanto sujeito-objeto da pesquisa. Mas, através
das pistas levantadas por Nei Lopes, na única bibliografia existente sobre o compositor,
foram encontradas as informações necessárias para aprofundar as questões próprias ao
trabalho. A partir daí, fez-se necessário um levantamento dos arquivos que poderiam
possuir materiais relevantes à minha pesquisa. Os principais foram: O Museu da
Imagem e do Som de São Paulo (MIS SP), o Museu da Imagem e do Som do Rio de
Janeiro (MIS RJ) e o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, que está no Centro
Cultural São Paulo.
3 Disponível em: http://www.pinterest.com/pin/570479477768365780/
13
Dessa forma, os “pontapés iniciais” para o trabalho, foram, sem dúvida, por um
lado, a curiosidade – uma vez que, como indica a historiadora Mary Del Priore, “o
documento sozinho, isolado, não existe se não houver intervenção da curiosidade do
historiador”4 –,e, por outro, indagações e incômodos ligados ao momento presente pelo
qual a história do Brasil e das cidades brasileiras vem passando,visto que as questões
sociais, políticas, econômicas e sobretudo culturais que envolvem o morro carioca e
sempre me foram bastante caras retornaram, nos últimos anos, aos meios acadêmicos5e
acabaram por me fazer tentar encontrar no passado motivos que elucidassem e
clarificassem melhor as antíteses que acredito existir nesse “universo do morro”, desde
sempre visto de maneira tão oposta ao “universo do asfalto”.
É possível afirmar, portanto, que,no decorrer da pesquisa, alguns assuntos do
tempo presente foram inegavelmente e mesmo, propositalmente, tangenciados,com o
objetivo claro de “colocar em xeque”relevantes aspectos das atuais realidades das
cidades brasileiras, como, por exemplo,a crescente militarização da vida cotidiana que,
de maneira imperativa tem se intensificado – desde nosso processo de redemocratização
política, na década de 1980 –produzindo a chamada “arquitetura do medo”, geradora de
lugares comuns e preconceitos múltiplos em relação ao outro que, no caso do Rio de
Janeiro, atua como elemento intensificador do processo de segregação econômica,
social e cultural pelo qual a cidade vem passando desde, pelo menos, o início do século
XX.
Conforme sugere o antropólogo Antônio Risério, a “arquitetura do medo” seria
causada pela sensação de insegurança provocada pelas atuais situações socioeconômicas
das grandes cidades brasileiras, o que acaba produzindo uma segregação espacial
baseada no medo e na desconfiança que gerariam, dentre outras questões, uma
organização urbana caracterizada pela dissociação: Teríamos, de um lado, os bairros
desassistidos, carentes de infraestrutura urbana e serviços públicos elementares e,de
4 DEL PRIORE, Mary. Fazer História, interrogar documentos e fundar a memória: a importância dos
arquivos no cotidiano do historiador. Revista Territórios e Fronteiras [PPGHistória/UFMT], v.3, n.1, p.
15, 2002. 5 Para maiores informações, consultar VALLADARES, Lícia do Prado (org.). Repensando a habitação
no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 199p.
14
outro, os condomínios fechados, os shoppings centers e os grandes conjuntos de
escritório.6
A socióloga Teresa Pires do Rio Caldeira7 que também possui trabalhos
referentes às problemáticas dessa “arquitetura”, corrobora com o pensamento de
Risério, afirmando que a violência e o medo de nossa atual sociedade têm gerado novas
formas de segregação espacial e discriminação social, observadas no discurso do
combate ao crime violento que acaba incorporando, preocupações raciais e étnicas,
preconceitos de classe e referências negativas ao pobre e aos marginalizados.
Caldeira também desenvolve categorizações genéricas do crime e dos
criminosos possibilitadas por essa diferenciação do espaço urbano:
O crime e os criminosos são associados aos espaços que supostamente lhes
dão origem, isto é, as favelas e os cortiços, vistos como os principais espaços
do crime. Ambos são espaços liminares: são habitações, mas não o que as
pessoas consideram apropriada [...]. Como residências um tanto anômalas, ou
seja, que não se encaixam totalmente na classificação de casas apropriadas,
favelas e cortiços acabam classificados como sujos e poluidores [...]
Excluídos do universo do que é adequado, eles são simbolicamente
constituídos como espaço do crime, espaços de características impróprias,
poluidoras e perigosas.8
Richard Sennet, sociólogo e historiador norte-americano, também se debruça
sobre a questão das cidades contemporâneas e como essas estão relacionadas ao viver e
ao conviver em sociedade. De acordo com o autor, “o individualismo moderno
sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o
ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a
conversações [...], centelhas de vida não merecem mais que um lampejo de atenção”.9
Corroborando com a questão da cidade enquanto espaço de individualismos, o
autor observa como as diferentes “regiões” que as cidades modernas possuem,
potencializam esse individualismo e influenciam na maneira como os cidadãos tratam-
se mutuamente, estabelecendo laços de amizade e convívio ou de medo e exclusão;
Sennet comenta, ainda, sobre aquilo que denomina como “repertório de imagens”, que
seria o conjunto de noções acerca do “outro” que o sujeito constrói imageticamente
durante a sua vida.
6 RISÉRIO, Antônio. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 303
7CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania. São Paulo: Editora
34, 2003, p. 9. 8Ibidem, p. 79-80.
9SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record,
2001, p. 289.
15
Em relação a esse “repertório” Sennet, cita aquilo que chama de cenários
complexos ou não familiares, onde, de acordo com ele, o indivíduo tenderia a classificar
o que vê de acordo com categorias simples e genéricas, baseadas em estereótipos
sociais. Em outras palavras: um branco que se depara com um negro, um índio, um
árabe ou um judeu registra a ameaça, desvia os olhos e, quase que automaticamente,
procura o afastamento instantâneo em relação ao “corpo estranho”. De acordo com os
seus estudos, portanto, o repertório de imagens que possuímos– e que só pode ser
incrementado a partir do contato com o múltiplo, o diferente, o alternativo– pode nos
levar ao convívio com o mundo ou ao completo fechamento em relação a ele. O ser
humano, nesse sentido, passa a ser visto, muitas vezes, como aquele que sinaliza
“perigo” e, mais uma vez, observamos a ideia de uma “arquitetura do medo” que
pretende que iguais convivam sempre com iguais e temam o diferente.
Dessa forma, tanto Risério quanto Caldeira, e mesmo Sennet, tratam sobre
alguns dos estigmas relativos ao espaço da favela carioca, de seus moradores e
frequentadores, bem como, do cotidiano desses, que desde o início do século XX fazem
parte do arcabouço de pré-concepções relativas ao “morro”. Em outras palavras, alguns
assuntos atuais serão abordados no sentido de fazer uma crítica direta às rupturas,
permanências e intensificações de questões relacionadas ao universo da favela.
Em outras palavras, pretendeu-se, através dos entraves urbanos observados na
cidade do Rio de Janeiro– e que infelizmente não são exclusivos dessa cidade, mas
representam os problemas criados e não resolvidos no que diz respeito ao espaço urbano
em geral –, perceber, em primeiro lugar, a construção de uma identidade acerca do
outro, construída pelo discurso do medo, baseada na relação dos espaços da cidade do
Rio e que acabou, através de mais de um século de discursos, abraçando os seus
moradores. Acredita-se que essa preocupação seja legítima, uma vez que ajuda a
vislumbrar quais os lugares e sujeitos dos quais Zé Kéti fala e, de certa forma,
representa. Vale mencionar que, pretende-se, também, questionar até que ponto a
militarização e a criação de áreas excludentes na cidade não passam de uma estratégia
deliberada de manutenção das relações de poder já existentes para a solução de
problemas seculares desde sempre ignorados pelos governos municipal, estadual e
federal e que, com o passar das décadas adquiriram intensidade e profundidade
complexas, tornando-se mais graves e correndo o risco de se tornarem ainda mais sérias
e profundas, uma vez que inexistem formulações de políticas públicas eficientes, claras
16
e objetivas que procurem solucionar, de fato, o que se tem apresentado como
adversidade. Como escreve Risério, hoje, no Brasil, não há:
Políticas públicas pensadas globalmente para o momento concreto e presente
da realidade urbana brasileira, com problemas que vão do crime organizado
ao saneamento básico, passando pelo imbróglio fundiário, o crescimento das
favelas, a poluição (sonora, visual, aquática e atmosférica), o estado crítico
da saúde pública, o aumento da legião de pedintes nas ruas, o grande déficit
habitacional.10
Assim, também é importante afirmar que os motivos que levaram à produção
deste trabalho encontram-se, sobretudo, no tempo presente, pois, como afirmaria o
historiador francês Antoine Prost: “A explicação do passado baseia-se nas analogias
com o presente, mas, por sua vez, ela alimenta a explicação do presente”11
.
Não apenas Prost, mas outro historiador francês do século XX, Marc Bloch –
reconhecido internacionalmente não apenas por suas produções envolvendo o período
medieval, mas também por ter fundado nos idos de 1929, ao lado de Lucien Frebvre
(outro importante historiador francês), a Escola dos Annales –, estará presente nas
páginas que seguem, uma vez que sua maneira de fazer história através do que chamou
de método regressivo– que consiste, em linhas gerais, em perceber que, apenas através
do presente, podemos delimitar o retorno, possível que desejamos fazer ao passado12
–
será a maneira pela qual se percebe aqui a construção da história.
Portanto, para que as intenções supracitadas sejam satisfeitas, o trabalho
percorre, três grandes temas: História e Cidades, História e Música e História e
Identidades.
Sobre História e Cidades
Nas últimas décadas, principalmente nos últimos 50 anos, as produções
historiográficas vêm passando por uma série de transformações que inegavelmente
possibilitaram uma revisitação à História, seus fatos e personagens.Tais transformações
podem em muito ser explicadas a partir do nascimento da chamada Escola dos Annales,
que, de maneira especial, após 1979, tornar-se-ia reconhecida e prestigiada
internacionalmente e, através de suas propostas, abriria espaço para o estudo de “novas
10
RISÉRIO, op. cit., p. 308. 11
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 1996, p. 146. 12
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.
7.
17
histórias”, que contribuíram para o desempenho da História Social e Cultural, uma vez
que propunha a inclusão de temas e sujeitos até então silenciados historicamente.
Os herdeiros desse novo modo de contar a história das coisas percebem,
portanto, nos mais variados sujeitos, a possibilidade de discutir os fatos históricos que,
em boa medida, deixam de ser a preocupação primordial dos historiadores. Centro e
periferia também perdem o status de grandes reguladores do fazer histórico, abrindo
espaço para que o estudo do caminhar do homem pudesse partir de todos os lugares, a
todo o tempo, movido por toda a sorte de ser humano: do mais rico ao mais pobre, do
homem à mulher, do deputado ao engraxate, do prefeito ao sambista, todos seriam
vistos como personagens de uma história que acontece todos os dias, nos gabinetes
políticos, no interior das casas, na cidade, na favela e nas festas.
Dentro dessa perspectiva, podemos elencar a História das Cidades como algo
que tem passado por significativas mudanças; afinal, observada no decorrer da história
como mero elemento de delimitação geográfica e espacial, a cidade passa a representar
em si uma questão, um “problema”.
No presente trabalho, embora a principal preocupação tenha sido pensar a favela
carioca durante as décadas de 1950 a 1970, acredita-se que, em certa medida, observar a
história da cidade do Rio de Janeiro ainda durante o século XIX seja algo não apenas
interessante, mas também necessário, uma vez que o surgimento da própria favela,
todos os preconceitos que ela tem sofrido, assim como os novos movimentos de
organização espacial que a cidade vem passando, baseadas em muito na chamada
“arquitetura do medo”, só podem ser compreendidos a partir das modificações nela
empreendidas durante esse período.
Assim, retornando ao início do século XIX, com a chegada da Família Real
portuguesa ao Brasil, percebe-se as intenções do príncipe regente D. João VI, em
transformar o centro da cidade do Rio de Janeiro, agora sede da coroa portuguesa, em
um pedaço da Europa. Para tanto, não pouparia recursos ou esforços gerando, inclusive,
um descontentamento claro de populações como a de Recife, que, em 6 de março de
1817, fará eclodir a Revolução Pernambucana, movimento republicano, direta e
fortemente influenciado pelos ideais iluministas, e que tinha entre seus impulsos a
discordância e a insatisfação da população em relação à coroa portuguesa quando, por
exemplo, passa a cobrar impostos cada vez maiores, a fim de reverter mais capital em
18
melhorias para a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, para a sua região central.13
Dessa
forma, muito embora os empreendimentos de D. João VI não tivessem sido bem aceitos
por certos segmentos da população brasileira do período, várias foram as modificações
por ele implementadas na cidade.
Outra atitude que, dentro de um século, se tornaria mais comum e que,
poderíamos afirmar, se configuraria como uma das principais geradoras do elevado grau
de desigualdade na cidade, já pode ser observada durante esse período.
Uma importante intervenção no embelezamento do espaço urbano foi a
publicação de um edital em 1816. O documento escrito por [Paulo] Viana
sugeria que propriedades antigas ou mal construídas fossem demolidas dentro
de um prazo fixado (VIANA, 1816), já que poderiam ruir e em mais de uma
oportunidade tinha ameaçado a vida de criados do Paço. Evidentemente, não
seria de bom tom que a realeza desterrada viesse a presenciar algum
desabamento.14
Fora as transformações urbanas levadas a cabo durante o Período Joanino, a
chegada da família real ao Brasil irá representar de maneira muito intensa uma
modificação cultural profunda do que até então se tinha nas ruas e vielas do Rio de
Janeiro. Sabemos que D. João não chega ao Brasil sozinho, mas sim acompanhado por
um número bastante razoável de representantes da corte real portuguesa (que gira em
torno de 10.000 a 15.000) que trazem na mala, além do medo da invasão Napoleônica
empreendida em Portugal, suas práticas e costumes.
Essa aglutinação cultural, no entanto, não seria viabilizada apenas por esse novo
contingente populacional, mas pelo próprio D. João VI, ao assinar, já em 1808, na
cidade de Salvador, a Abertura dos Portos às Nações Amigas. Isso facilitaria não apenas
a entrada de produtos importados no Brasil, mas também a entrada de um grande
número de comerciantes de diversas nacionalidades – tornando o porto do Rio de
Janeiro mais movimentado do que o de Boston15
–, o que representará para a cultura
carioca mais um variado número de costumes e práticas que, dentro em pouco, seriam
deglutidos e recolocados na cultura da cidade.
Ocorre ainda, após a morte de Napoleão Bonaparte, em 1814, uma nova onda de
transformações culturais em terra brasilis que, tal qual um tsunami de cores, cheiros e
13
ANDRADE, Manuel Correia de. A Revolução Pernambucana de 1817. Coleção Guerras e Revoluções
Brasileiras. São Paulo: Ática, 1995. 14
OLIVEIRA, Anelise. D. João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário. Revista História em
Reflexão, v.2, n.4, UFGD – Dourados, jul./dez.2008, p. 6. 15
LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,
p. 50.
19
sabores, se espalha pelo Rio de Janeiro. A reaproximação entre França e Portugal traz
ao Brasil não apenas a Academia de Belas Artes, mas uma série de hábitos no vestir,
comer, construir, consumir e decorar que acarretam um afrancesamento intenso do
cotidiano da cidade, acessível, evidentemente, apenas aos que fizessem parte da parcela
letrada da população.16
Durante o período Imperial, principalmente no que se refere ao Segundo
Reinado, encontra-se, também, uma Rio de Janeiro com cores e sabores europeus. A
partir da segunda metade do século XIX, o país ingressaria numa nova fase,
intermediária, entre um Brasil escravagista e um Brasil proto-capitalista. Como capital,
a cidade recebia todas as grandes novidades emanadas do velho continente como, por
exemplo, gás e água encanada; nessa época também começaram a aparecer,
primeiramente na região do Botafogo e da Tijuca, os primeiros bondes de tração animal
que, em pouco tempo, se transformariam em bondes elétricos.
De acordo com Humberto Fernandes Machado, no entanto, “duas cidades já
conviviam naquela época: uma civilizada, branca, voltada para a Europa; outra, negra,
verdadeira cidade aquilombada caracterizada pelos cortiços e epidemias que dizimavam
os seus habitantes”.17
Mas, apesar das discrepâncias sociais que produzia, os ideais de
embelezamento e de enquadramento às tendências europeias seriam recolocadas na
ordem do dia, com intensidade e intenções renovadas, ainda na virada do século XIX
para o XX, mais especificamente após a Proclamação da República, quando as elites
brasileiras, desejosas por modernizar não apenas os seus preceitos políticos e
econômicos, mas também a estética de seu principal centro político, empreenderão uma
série de modificações que irão, de maneira bastante direta, flagelar uma vez mais os
mais pobres e carentes da cidade.
Esse período será aquele em que as elites do Rio de Janeiro voltam suas
preocupações primeiramente para os cortiços e, em seguida, para as favelas, buscando a
construção de uma “cidade prometida” que, como veremos já no primeiro capítulo da
dissertação, fracassará.
Pensar a favela carioca – e todo e qualquer espaço de convivência social,
cultural, política e econômica –, sem levar em consideração seus fluxos e
movimentações,desde seu surgimento até a própria dinâmica característica da relação
16
Ibidem, p. 53. 17
NEVES, Lucia Maria Bastos; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999, p. 296.
20
morro-asfalto, geradora de preconceitos duradouros e cunhados de maneira tão eficiente
no decorrer da história, seria contribuir tão-somente para mais uma pesquisa cheia de
pré-concepções, tabus e lugares-comuns que em nada colaborariam para realmente
modificar o modo de enxergar tais sujeitos e espaços.
Dessa forma, observa-se a favela carioca não a partir de sua representação global
fundadora de ideias genéricas no que diz respeito ao seu cotidiano18
em relação à sua
realidade, mas sim das memórias construídas por aqueles que dela fizeram parte; em
outras palavras, como diria Maria Izilda Santos de Matos:
Em seu processo de transformação, a cidade tanto pode ser registro como
agente histórico. Nesse sentido, destaca-se a noção de territorialidade,
identificando o espaço em conformidade com experiências individuais e
coletivas, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos
de lembranças, experiências e memórias. Lugares que, além de sua
experiência material, são codificados num sistema de representação que deve
ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os
múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização.19
No que diz respeito, portanto, ao estudo das cidades como um documento em si,
Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, através de sua obra Espaço urbano: conflitos e
subjetividade, cujo foco de análise é a “interface urbano-subjetividade [...] onde a
produção e a apropriação do espaço urbano pelos atores analisados não só refletem as
desigualdades e as contradições sociais, como também afirmam sujeitos que as
reproduzem e modificam”,20
e Lícia do Prado Valladares, em A invenção da favela: do
mito de origem a favela.com,21
além de propiciarem uma riquíssima análise acerca da
História das Favelas, indicam caminhos profícuos para fugir de ideias dogmáticas, já
cristalizadas, em relação ao espaço da favela, sua cultura, sua gente.
18
Já no início do século XX, começaram a ser publicadas as primeiras crônicas em relação ao espaço da
favela: Olavo Bilac, João do Rio, Benjamin Constellat e Orestes Barbosa são bons exemplos de
observadores que, tomados pelo espírito de modernidade e remodelação pelas quais passava a cidade do
Rio de Janeiro, projetariam visões um tanto quanto rasas acerca da favela e do cotidiano dos que ali
viviam. Para uma leitura mais específica: VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito
de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 19
MATOS, Maria Izilda Santos. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007, p. 26. 20
MAIOLINO, Ana Lúcia Gonçalves. Espaço urbano: conflitos e subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad,
2010, p. 12. 21
VALLADARES, op. cit.
21
Sobre História e Música
Dentro da perspectiva das “novas histórias” propiciadas pela quebra dos
paradigmas tradicionais no campo da história já trabalhados anteriormente, podemos
falar acerca da música enquanto possibilidade documental de análise.
Como afirma Matos,22
a produção musical é um documento bastante interessante
por propiciar a possibilidade de dar voz a certos setores que, durante muito tempo,
estiveram renegados ao silêncio, sendo, portanto, uma porta de entrada possível para a
revelação do cotidiano, das sensibilidades, das paixões e, no caso do trabalho aqui
apresentado, das dificuldades e formas de luta, resistência e identidade de grupos
sociais.
É importante enfatizar que a música, assim como outros documentos que vêm
sendo cada vez mais utilizados para a escrita da história, como, por exemplo, a
literatura, não significa e nem deve ser observada como “reflexo” de quaisquer
questões. Tais produções devem ser vistas como representações possíveis de períodos e
situações específicas.
Nesse sentido, deve ter-se a preocupação de perceber o produtor de tal
documento como um ser que, ao viver situações próprias de sua contemporaneidade,
produz, através de sua subjetividade, formas de significar aquilo que vê e sente. Dessa
forma, não podemos descartar a importância de discutir de maneira aprofundada quem
foi Zé Kéti, qual a sua formação, bem como quais são os seus circuitos sociais, culturais
e mesmo profissionais, questões que serão profundamente trabalhadas no 3º capítulo.
As obras de Nicolau Sevcenko,23
José Geraldo Vinci de Moraes,24
Antônio
Pedro Tota,25
Maria Izilda Santos de Matos26
e Amailton Magno Azevedo27
serviram de
base metodológica no sentido de como trabalhar a canção como fonte documental para a
22
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru:
Edusc, 2007. p. 38. 23
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 24
MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular na São
Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 25
TOTA, Antonio Pedro. Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva. São
Paulo, v.15, n.3, 2001. 26
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002.
_________________________. Âncora de emoções: corpos subjetividades e sensibilidades. Bauru:
Edusc, 2005.
_________________________. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007. 27
AZEVEDO, Amailton Magno de. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas
em São Paulo. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.
22
pesquisa histórica representarão nossas bases teóricas em relação à música brasileira no
decorrer da história.
A obra Literatura como Missão, de Nicolau Sevcenko, proporciona a
oportunidade de observar um bom exemplo de como é absolutamente possível contar e
problematizar a história de determinado período, região e grupos políticos e sociais
utilizando como fonte documental informações outras que não as indicadas por uma
história tradicional. Sevcenko problematiza a história da Primeira República brasileira,
recorrendo, para tanto, às produções e discussões estabelecidas durante esse período
pela literatura e, de forma especial, pelos textos de Euclides da Cunha e Lima Barreto.
Tais autores não possuíam vínculos outros que não aqueles que dissessem respeito à luta
contra o Império brasileiro, ou seja, a única relação de proximidade que existiu entre um
e outro foi aquela relacionada com a luta por uma mudança no sistema político nacional,
que acabou ocorrendo, como sabemos, no dia 15 de novembro de 1889.
Essa mudança, no entanto, não teve exatamente as características esperadas por
esses dois estranhos, que, como afirmaria o próprio historiador: “Apesar de viverem na
mesma cidade e circularem nos seus poucos núcleos literários, esses intelectuais eram
estranhos entre si: provavelmente nunca se defrontaram, certamente jamais trocaram
uma palavra”.28
Dessa forma, as obras desses dois grandes nomes da produção da
literatura nacional estarão, em muito, ligadas ao descontentamento referente aos novos
rumos da política e economia brasileiras e como essas refletiam na sociedade de então.
As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram
mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que
foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se
transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no
campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir,
compreender [...]. Por outro lado, os valores éticos e sociais mudaram tanto
no nível das instituições e dos comportamentos como no plano das peças
literárias. Os textos artísticos se tornaram, aliás, termômetros admiráveis
dessa mudança de mentalidade e sensibilidade.29
Em linhas gerais, como citado no prefácio do livro, a obra de Sevcenko,
“questiona o papel decisivo que cabem à imaginação artística e às energias intelectuais
em momentos críticos de mudança histórica”.30
Retrata, através dessas questões, o
momento de tensão e transformações múltiplas pelas quais a cidade do Rio de Janeiro
passava.
28
SEVCENKO, op. cit., p. 141. 29
Ibidem, p. 286-7. 30
Ibidem, p. 22.
23
De forma bastante análoga à que Sevcenko problematiza a história do Rio de
Janeiro na virada do século XIX para o XX, José Geraldo Vinci de Moraes e sua obra
Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular na São Paulo dos anos
30(2000) irão propor uma análise da música brasileira sobre um período em que a
cidade passava por um processo conturbado de transformação, uma intensa urbanização,
momento em que também surgiu o rádio e o microfone, ferramentas que tornariam cada
vez mais a música em profissão.
No precário circuito de consumo cultural que se formava na metrópole
paulistana, o livro mostra como a própria instabilidade profissional gerou
esse curioso hibridismo no meio artístico, fazendo com que tais músicos
mesclassem o cotidiano diurno do trabalho, com a boemia noturna dos bares
e cafés, convivendo muito mais de perto com o difícil dia-a-dia da cidade.31
Embora se trate de uma obra cuja característica fundamental é estudar a cidade
de São Paulo através da música produzida durante a década de 1930, alguns pontos da
pesquisa construída por Moraes são bastante caros a este trabalho, como, por exemplo,
perceber que, em meio às múltiplas transformações pelas quais passava a cidade,
múltiplas também seriam as formas de se fazer música. A ideia mesma de Metrópole em
Sinfonia sugere que São Paulo, num momento de crescimento e mistura vertiginosa,
onde a realidade das imigrações se juntava à instabilidade da vida na cidade, só poderia
produzir músicas de caráter igualmente diverso: amores frustrados, destinos mórbidos e
o sentimento de saudade, nostalgia, próprio de quem passa por mudanças.Esse cenário
paulistano enseja o desenvolvimento de produções únicas, como as gravações de
Capitão Furtado e as crônicas de Juó Bananere, que criam estéticas de influência caipira
e italiana,gerando “outra coisa” especificamente paulistana e que só pode ser entendida
dentro desse âmbito.
Uma questão bastante interessante levantada por Moraes diz respeito às
temáticas recorrentes no fazer das “modinhas paulistanas”. Como forma de representar a
violência, a miséria e a morte que começariam a distinguir, de certa forma essa “nova
metrópole”, a subjetividade dos compositores levou a um grande número de canções
que terão esses assuntos como preocupação principal:
Os assuntos encontrados nessas modinhas são variados, mas giram em torno
de alguns pontos convergentes. Em primeiro lugar, baseiam-se em alguns
fatos diários e reais que ocorriam na cidade. Em geral, causam forte impacto
a população local, independentemente de sua origem social, cultural ou
étnica. Nas canções paulistanas, ganham certo tom exagerado, com o claro
objetivo de destacá-los. Finalmente, esses fatos impactantes preenchem as
colunas policiais dos jornais diários, vorazes por eles, comovendo muito a
31
MORAES, op. cit., p. 13.
24
população mais humilde. Nas 27 modinhas recolhidas por Alcântara
Machado é possível observar essas narrativas, que envolvem inúmeros temas,
formando verdadeira(s) história(s) com começo, meio e fim, que, na
realidade, contam parte do cotidiano da cidade que começava a se consolidar,
com as contraditórias características de uma metrópole.32
Outra obra que teve como preocupação a cidade de São Paulo, mas que em
muito auxiliou na construção das ideias principais deste trabalho foi A cidade, a noite e
o cronista, de Maria Izilda Santos de Matos (2007), livro dividido em três partes
principais que se subdividem em capítulos bastante elucidativos: no primeiro momento,
o princípio norteador é explanar acerca das “outras histórias”: quais são elas, onde
aparecem ou podem aparecer. A intenção é aguçar o olhar do historiador para novas
abordagens, novos documentos históricos; em um segundo momento, as atenções
passam a convergir para a cidade de São Paulo: como essas novas abordagens e
documentos históricos podem ser utilizados para compreender as nuances na história da
“Pauliceia desvairada”,bem como em outras diversas situações; e, por fim, mas longe de
esgotar todas as possibilidades de análise, a autora debruça-se menos sobre a vida de
Adoniran Barbosa do que sobre os reflexos dela frente às crescentes modificações que
ocorreram na São Paulo das décadas de 1930 a 1960.
Dessa forma, observando personagens, cenários e documentos ainda hoje pouco
trabalhados no campo da história, como a música, o boêmio e a noite, Matos propõe,
fugindo de concepções clássicas embasadas pelo senso comum acerca de pelo menos
dois desses temas– o boêmio e a noite –, compreender as características dos anos de
inchaço urbano da cidade de São Paulo.
Debruçando-se sobre o cotidiano de personagens e agentes históricos que
pertenceram a uma ou mais “São Paulos”: a bonita, embelezada dos anos 1920; a
moderna dos anos 1930; a transbordante e cada vez mais conturbada e sufocante dos
anos 1940 em diante, a autora deseja compreender, para além dos discursos oficiais, o
que significava viver na dita capital do trabalho e do progresso caracterizada pelas
comemorações do IV centenário da cidade, ou na cidade da diversidade, já no século
XXI. A música, dessa forma, como documento que não se esgota em si, mas que
metodologicamente permite análises diversas – não somente no que diz respeito à sua
difusão na sociedade: seu consumo e recepção; também sobre o artista que a compõe:
sua formação, profissão, os círculos sociais pelos quais transita e todas as subjetividades
32
Ibidem, p. 168.
25
que podem estar imbricadas nesse processo –, aparece como o documento principal; a
noite, a cidade e o boêmio como locais e personagens principais.
Tratando-se das duas últimas questões supracitadas, Matos foge das
interpretações clássicas: não trata a noite como um local de pecado e perigo, mas de
complementaridade com a correria do dia a dia; não observa o boêmio simplesmente
como o templo de encarnação do não trabalho, não família, não moral, mas como um
personagem cheio de possibilidades de revelações outras sobre as coisas que o
cercavam. Não se pode esquecer, por exemplo, que muito da boemia paulistana das
décadas de 1920 a 1950 era composta não somente por populares mal encaixados no
mercado de trabalho, com postos de trabalho cada vez mais escassos na cidade, mas
também e principalmente por médicos, advogados e outros membros da high-society. O
que empurra a noite paulistana para a periferia da cidade e a transforma em “local da
imoralidade” está diretamente relacionado coma expansão urbana paulistana, um
movimento estudado pela autora.
Quanto a Adoniran Barbosa, se arrisca dizer que seu papel no livro é representar
um grande exemplo de todas as ideias que se desejavam elucidar: um paulista que
nasceu em 1910 e que, na década de 1930, se tornou também paulistano. Um cidadão
que vivenciou os anos fundamentais da urbanização de São Paulo, um boêmio por
natureza, que aprendeu a contar a história das coisas que via, ouvia e sentia através de
suas rimas, sua poesia. Um cronista, ou melhor, um historiador da cidade de São Paulo
– da Praça da Bandeira, da Praça da Sé, do Viaduto Santa Efigênia, do metrô etc. – e de
seus sentimentos – o amor, o esforço, a saudade, a raiva, a tristeza.
Em outras palavras, o livro A cidade, a noite e o cronista cumpre uma dupla
função: servir de referência indispensável para os historiadores que já estão ou
pretendem adentrar no mundo das “novas possibilidades”, dos “novos pontos de vista”,
“novos documentos”, ou, como Matos prefere nomear, das “novas histórias”, uma vez
que traça o panorama geral da nova situação do fazer histórico, nos deixando muito
mais à vontade para pensar além do tradicional, sendo essa a maior contribuição da
obra; ou servir de presente para os paulistanos mais apaixonados e mais críticos sobre a
história de sua cidade, a nossa grande maloca.
Mais uma obra de referência, que, assim como Matos trabalhou com o samba na
cidade de São Paulo, é a tese de doutorado de Amailton Magno Azevedo intitulada A
26
memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas em São Paulo.33
De
maneira geral, o autor pretendeu, através da reconstrução da memória musical do
sambista Geraldo Filme, entrar em contato com aquilo que denominou como micro-
áfricas existentes na cidade e que estariam representadas por formas possíveis de luta e
resistência de grupos negros que, no caso de sua pesquisa, ocorriam em locais
específicos de São Paulo.
Rebatendo a afirmação de Vinícius de Moraes de que São Paulo seria o “túmulo
do samba”34
, Azevedo traça uma cartografia musical desse ritmo, mostrando não apenas
a existência dele, mas também a força e a influência que teria no cotidiano de algumas
áreas mais específicas da cidade.Tal reconstrução foi feita a partir da análise da relação
de Geraldo com sua família e amigos, e de sua convivência no momento de trabalho e
diversão.
Azevedo mostra como a análise dessas micro-áfricas pode elucidar a criação de
uma cultura mista, heterogênea, que, para além da sociedade paulistana burguesa e
branca, representou o múltiplo, resultado de diálogos, conflitos e misturas de culturas e
formas de viver e conviver que criam aquilo que Antony Appiah35
denomina de “tela
multifacetada” própria de culturas formadas a partir do Atlântico Negro. Como
especifica:
No entanto, mesmo com a verticalização guiada por um conceito de
monumentalidade da cidade, não se conseguem calar projetos dissonantes
que se faziam na experiência social concreta. Geraldo viveu suas experiências
no entre-lugar invisível da cidade dos fotógrafos, urbanistas, arquitetos e
prefeitos. Por entre essa metrópole tentacular as culturas negras e mestiças
irão, em alguns aspectos modificar, e em outros manter seus sentidos de
existência. Diante de um espaço urbano que tenderia a alisar e padronizar as
experiências, houve a penetração em fissuras não controladas pelo projeto
hegemônico de cidade para se viver as musicalidades.36
Nos cinco capítulos em que sua obra está dividida, procura trabalhar os materiais
que coleta em relação a Geraldo Filme: uma entrevista dele a um programa musical, um
filme-documentário, letras de música e jornais, e desenvolve como isso pode, de alguma
33
AZEVEDO, op. cit. 34
De acordo com os jornalistas Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli: Numa noite em que seu amigo
Johnny Alf se apresentava numa boate paulistana, o poeta e letrista Vinicius de Moraes teria se envolvido
num bate-boca com um grupo de pessoas por causa do barulho que faziam e proferido uma frase que
ficaria célebre: “São Paulo é o túmulo do samba”. RIBEIRO, Eduardo; BARONCELLI, Wilson. Que
túmulo que nada. Jornalistas e Cia. Ano II – nº16 – 5/7/2013 35
APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 11. 36
AZEVEDO, op. cit., p. 184.
27
maneira, ajudar a reconstruir memórias e histórias não contadas pela historiografia
tradicional sobre São Paulo e mesmo sobre o samba.
O que se pretendeu esclarecer aqui, portanto, é que para estudar a cidade e as
transformações pelas quais ela passa no decorrer dos séculos, “dar ouvidos” a
personagens que, como verdadeiros flaneurs, desvendaram a cidade e suas entranhas, ao
caminhar, observar, vivenciar e, por fim, contar pode ser, não apenas válido, mas
bastante enriquecedor. Antônio Pedro Tota, em seu artigo Cultura, política e
modernidade em Noel Rosa,37
estudando a cidade do Rio de Janeiro, apresenta um bom
exemplo de como seguir esse caminho: problematizando a figura de “crítico a sociedade
burguesa”,38
atribuída a Noel Rosa, Tota analisa os percursos criados através de suas
composições e percebe que se tratavam de criações de um artista preocupado em contar
aquilo que absorvia de seu meio. Em muitas de suas canções, emerge, então, uma crítica
à sociedade brasileira, em particular, à carioca, das primeiras décadas do século XX; aos
olhos de Noel, mesmo sendo cada vez mais moderna e economicamente mais submissa
ao capital estrangeiro, podia fazer tremer de tensão e saudade os olhos e ouvidos dos
mais atentos. Qual outro meio mais intenso poderia existir para explicitar certos
acontecimentos, certas transformações, certas angústias trazidas pelo novo, do que a
música de Noel? De que outra maneira mais direta seríamos levados a sentir saudade de
um tempo que se foi, absorvendo e reelaborando informações, se não através de uma
canção que diz “Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa”.
Dessa forma, com a utilização dos alicerces teórico-metodológicos supracitados,
pretende-se uma nova contribuição ao que se tem pensado acerca da música popular
brasileira fugindo sempre do que Paul Gilroy chamaria de “nacionalismo cultural
silencioso”39
, que acredita-se aqui estar bastante presente nos escritos acerca do samba.
Apesar de as obras de Moraes, Matos e Azevedo terem uma outra cidade como
objeto de análise, ou seja, São Paulo, seus métodos e abordagens são exemplares do que
se busca construir e da postura a ser adotada neste trabalho, de historiadores
preocupados em contar, através da música, a história de lugares e pessoas até então
subjugados pela historiografia tradicional.
37
TOTA, op. cit., p. 46. 38
A ideia de dar mais ouvidos aos personagens comuns do dia a dia também pode ser pensada nas
questões trabalhadas por Walter Benjamin, em O narrador. Dissecando a própria questão da arte do
narrar, Benjamin, através do estudo da vida e das obras do literato Nikolai Leskov indica como conhecer
um legitimo narrador, aquele sujeito cada vez mais raro no mundo, que teria como função primordial
sugerir, sempre, uma “moral da história” naquilo que conta. 39
GILROY, op. cit., p. 37.
28
Sobre História e Identidade
Outras prerrogativas que foram abertas com a mudança dos paradigmas da
História dizem respeito aos chamados “estudos pós-coloniais”, que possuem como um
de seus preceitos principais o “multiculturalismo”, que, principalmente após as décadas
de 1980 e 1990, ganharão fôlego intenso e serão desenvolvidos em pesquisas que
perpassam a teoria literária, a psicanálise, a filosofia, a antropologia, a política e a
história.
Tais estudos possuem como uma de suas características, além da proposta de
transversalidade, a busca por um diálogo que possibilite perceber os processos de
colonização a partir de pontos de vista não mais pautados no discurso eurocêntrico das
ex-metrópoles. Trata-se, como pontua Stuart Hall, de uma proposta que “relê a
colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e
transcultural e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, ou global das grandes
narrativas imperiais do passado centradas na nação”40
.
Importante ressaltar, que o termo pós-colonial não pretende estabelecer meras
periodizações baseadas em estágios, mas, para além disso, perceber as possíveis
resultantes do processo de colonização como um período de influências múltiplas que
continuam presentes nas histórias dos povos dominados e dominantes e que, se
corretamente problematizados, podem ajudar na observação da história a partir de novos
paradigmas.
Ainda de acordo com Hall,41
muito embora as sociedades multiculturais não
sejam algo novo, afinal, os impérios grego, romano, islâmico otomano e europeu podem
ser considerados multiétnicos e multiculturais, o final do velho sistema imperial
europeu e das lutas pela descolonização e independência nacional e depois, o final da
Guerra Fria, possibilitaram um novo impulso para os estudos que intentam novos meios
de dizer o que já foi dito e ainda permitem que se fale acerca de tudo o que se calou
durante boa parte da história.
Dessa forma, junto e em conjunto com as questões trabalhadas acerca do samba
e das favelas cariocas, pretendeu-se, sobretudo, representar – tendo como alicerces as
ideias levantadas por pensadores como o sociólogo português Boaventura de Sousa
40
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011,
p. 102. 41
Ibidem, p. 52-5.
29
Santos,42
o semiótico argentino Walter Mignolo,43
o poeta e etnólogo martiniquense
Édouard Glissant,44
o literato cubano Antonio Benitez Rojo,45
o sociólogo inglês Paul
Gilroy46
e o acima mencionado teórico cultural jamaicano Stuart Hall–uma contribuição
efetiva no que diz respeito à produção de uma História que proponha diferenças
horizontais, sem a existência de grupos ou características próprias de uma análise
baseada em pensamentos de ordem capitalista, colonial e patriarcal. Pretendeu, portanto,
fugir-se da lógica do samba enquanto produto de uma cultura nacional brasileira única e
homogênea.
Em outras palavras, procurou construir-se um lugar sob luzes pós-eurocêntricas
onde a cultura brasileira possa ser observada e discutida a partir daquilo que Glissant
chama de “culturas compósitas”, indicando que apenas através da abertura ao múltiplo e
aos personagens vistos até então como excluídos e desclassificados – personagens que,
de maneira recorrente, estão presentes nas letras de Kéti –, uma história possível, justa e
necessária pode ser construída.
Teremos, ainda, como um dos nortes de nossas explanações a noção trabalhada
por Salomão Jovino da Silva47
, quando discute as polifonias existentes nos protestos de
grupos negros engajados de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, durante os anos de
1970 e 1980. De acordo com o autor, tais grupos buscavam um ponto de convergência
entre as culturas residuais de origem africana e práticas culturais e artísticas
contemporâneas, visando reconhecimento artístico, visibilidade social e legitimidade
política. Dessa forma, a partir da manipulação de símbolos, imagens, alegorias,
representações, ressignificações do passado grafadas nas letras, arranjos e
instrumentações, teriam reinventado uma África sedenta por um espaço que, pelo menos
desde o século XVI, vinha sendo aqui na América, negado. Através dessas
musicalidades urbanas, repletas da noção de “culturas compósitas” a pouco citada, seria
42
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Contexto
Internacional, n.23, v.1, 2001, p. 7-34.
__________________________. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
Revista Crítica de Ciências Sociais, n.63, 2002, p. 237-80.
__________________________. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo:
Cortez, 2006. 43
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política. In: Cadernos de Letras da UFF–Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008. 44
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2005. 45
BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998. 46
GILROY, op. cit 47
SILVA. Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e musicalidades
negras urbanas nos anos 70-80 em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.
30
possível, portanto, identificar o contexto em que essas letras teriam sido criadas, num
eterno construir-descontruir-reconstruir de identidades. Identidades, no plural, uma vez
que tais práticas teriam sobrevivido na esteira dos séculos tendo como máxima a
pluralidade de suas atuações e discursos nos quais, ainda de acordo com Salomão, a
univocidade seria algo difícil, se não impossível, de ser localizado.48
Dessa forma, passamos por um momento, onde ocorrerá um embate/negação à
hegemonia cultural de tendência majoritariamente branca, cristã, ocidental que em
conjunto com a negação e a busca de caminhos possíveis frente ao contexto político
instaurado no Brasil do pós-golpe civil-militar, encontrará um terreno fértil para
germinar novos sujeitos ou mesmo, dar voz, a velhos sujeitos tão pouco considerados no
decorrer de nossas História.
“Ela pensa que minha vida é uma beleza
Eu dou duro no baralho
Pra poder comer
A minha vida não é mole, não
Entro em cana toda hora sem apelação
Eu já ando assustado, sem paradeiro
Sou um marginal brasileiro”
(Nega Dina, 1957)
Na letra de Nega Dina, tenta compreender-se o que significa a expressão
“marginal brasileiro” dentro da lógica levantada por Kéti, já que, através de tal
categorização da qualidade de marginal, abre-se espaço para pensar numa série de
referências socioeconômicas que o compositor pretende indicar. Da mesma forma,
tomaremos “Malvadeza Durão” como exemplo:
“Mais um malandro fechou o paletó
Eu tive dó, eu tive dó
Quatro velas acesas em cima de uma mesa”
(Malvadeza Durão, 1964)
48
Ibidem, p. 51
31
Assim, pretende-se aqui a observação da História a partir de ideias como as
teorizadas por Boaventura de Sousa Santos,49
que defende a necessidade da construção
de uma nova história baseada na horizontalidade e na justiça social que indiquem, de
forma real e não apenas superficial, os meios pelos quais uma mudança de mundo pode
ser conquistada.
Ele também indica que a ciência deve possuir, se pretende realmente transformar
o mundo, preocupações que tanjam o que ele denominou a) Sociologia das Ausências,
b) Sociologia das Emergências e c) Ecologia dos Saberes. Tais questões poderiam ser
resumidas da seguinte maneira: aceitar mais conhecimentos e meios de viver e ver um
mundo que possibilite um verdadeiro “conversar” sobre a humanidade.
Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o
saber em causa tenha legitimidade para participar de debates epistemológicos
com outros saberes, nomeadamente, com o saber científico. A ideia central da
sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem
saber em geral. [...] Deste princípio de incompletude de todos os saberes
decorre a possibilidade de diálogo e disputa epistemológica entre os
diferentes saberes.50
Assim, ele defende a ideia de que “outros saberes” possam ser observados e
nomeados como “saber científico”, uma vez que, apenas dessa maneira, poderiam
representar pistas ou documentos do que se pretende analisar.
Em conformidade com as ideias desse autor, Glissant irá propor, em seus
estudos sobre identidades culturais, que o estudo dos povos, independentemente de
quais forem, sejam feitos a partir dos próprios povos e não dos pressupostos metafísicos
que durante séculos têm operado o sistema de racionalidade burguesa. Dessa forma, ele
critica, entre outras características dessa ciência burguesa e eurocêntrica: o racionalismo
burguês, a transparência do real, a objetividade do conhecimento e os resultados “unos”
que tais formas de pensar o mundo e o homem podem sugerir. Para o autor, “O Uno não
prevalece, nem tampouco o único, nem a unidade. A realidade os tritura e os realiza”.51
Ou seja, ao se propor o estudo do homem e das culturas e identidades que podem ser
produzidas por esta teoria, deve-se partir do pressuposto de multiplicidade latente criada
a partir da troca forçada ou não, característica de culturas que, como a cultura brasileira,
sofreram com a escravidão dos nativos e, posteriormente, com a escravidão dos negros
africanos.
49
SANTOS, op. cit. 50
SANTOS, 2006, p. 16. 51
GLISSANT, op. cit. p. 155.
32
Dessa forma, o autor estabelece que uma maneira eficiente de se empreender a
busca por um conhecimento diferente desse modo mais limitado, herança do
pensamento iluminista, seria a elaboração do pensamento poético, mais aberto e menos
interessado em impor modelos de análise, entrelaçando fios de seu lugar cultural com a
Totalidade-terra.
Em Rojo,52
autor também utilizado no sentido de auxiliar na construção do que
se entende aqui como cultura brasileira, observamos a sua impressão de que a
identidade caribenha – na qual a cultura brasileira está contida – seria difícil de
classificar. Ele afirma que a aventura intelectual dedicada ao investigar o caribenho está
destinada a ser uma busca contínua, uma vez que são culturas múltiplas e que, de certa
forma, estarão sempre em processo de formação e transformação.
O trabalho aqui desenvolvido não pretende, de maneira alguma, estabelecer
características únicas e fixas para o que seria a cultura brasileira e, dentro dela, o que
representaria o samba. A intenção é, na verdade, corroborar com todos os autores
anteriormente citados, numa intenção de reafirmar aquilo que disse Stuart Hall acerca
dos pesquisadores que pretendessem estudar as identidades nacionais: o que se procura
aqui é “costurar as diferenças numa única identidade”,53
o que será sempre algo
múltiplo, tal qual uma colcha de retalhos que só pode ser costurada partindo de vários e
diferentes pedaços e, por isso, será sempre única, mesmo se comparada a outras como
ela.
Estrutura e Objetivos
Visando, portanto, a elucidar cada uma das temáticas supracitadas, este trabalho
está dividido em dois capítulos principais, cada um com três “subtemas” que, embora
possuam particularidades e especificidades, complementam-se em relação à
problemática central desta monografia, que é, como já explicitado, observar a existência
de uma identidade multifacetada– criada a partir da herança do Atlântico Negro e da
convivência desta com as demais diversidades existentes na “colcha de retalhos” que era
a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX – por meio da produção musical e da
vida de Zé Kéti.
52
ROJO, op. cit. 53
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 65.
33
No Capítulo 1, intitulado “Transformações urbanas e questões de gênero em
Kéti”, buscamos reescrever os primeiros anos da vida do compositor, observando,
paralelamente, por quais grandes transformações urbanas, culturais e sociais a cidade do
Rio de Janeiro estaria passando.
O capítulo em questão foi subdividido nos seguintes temas: “Kéti e a múltipla
Rio de Janeiro”, no qual procuramos reconstruir uma Rio de Janeiro dos inícios do
século XX que, embora cada vez mais urbana, possuía, ainda, características rurais
observadas nas culturas dos bairros em que Zé Kéti residiu, fato que acreditamos ter
influenciado na maneira pela qual esse sujeito-personagem notou a questão da cidade. É
durante esse subcapítulo que as explanações acerca da cidade prometida e da cidade
fracassada começam a ser levantadas. Tal discussão pretendeu levantar o paradoxo
existente entre os “planos” urbanísticos de saneamento e embelezamento para a cidade
do Rio de Janeiro, há muito desejados, e os resultados destes que em muitos momentos
podem ser vistos como fracassados não apenas no sentindo de não sustentar o grande
contingente populacional que a cada momento crescia naquele lugar, mas, também, à
medida em que destruía polos de sobrevivência e propagação de saberes e fazeres
seculares.
Quanto, por exemplo, não teria sido destruído para que a Avenida Presidente
Vargas fosse construída?54
Figura 2 Planta Geral da Avenida Presidente Vargas.55
Em “Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de
uma Rio de Janeiro mutante” procuramos, a partir do levantamento de outros sambistas
e cronistas do mesmo período, analisar por quais questões mais urgentes passava a
54
Memória da destruição: Rio – uma história que se perdeu (1889-1965). Rio de Janeiro: Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro/ Secretaria das Culturas/ Arquivo da Cidade, 2002. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204430/4101439/memoria_da_destruicao.pdf>. Acesso em jan.
2014.
55 Ibidem, p. 39.
34
cidade do Rio de Janeiro, percebendo, assim, em qual meio nosso compositor atuava.
Por fim, em “A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti” procuramos estabelecer
uma discussão que permitisse a análise da história por meio da apreciação de ambientes,
práticas culturais e sujeitos, vistos até há pouco tempo como “a-históricas”. Analisando
esses “outros sujeitos” narradores e participantes ativos de uma nova forma de contar
história, procuramos encontrar meios que nos permitissem adentrar a trama histórica
dos primeiros cinquenta anos do século XX.
Outras questões trabalhadas nesse capítulo, dizem respeito à chamada Era de
ouro da música brasileira: Quais as novidades do período? Quem são as grandes
cantoras e os grandes cantores relativos a essa geração? Quais as novas tecnologias
relacionadas ao mundo da indústria cultural e qual o impacto e reflexo destas na
sociedade brasileira? Quem são os compositores e cronistas que cantam a cidade e,
afinal, como ela é retratada?
No Capítulo 2, intitulado “A estética do espaço em Kéti”, procuramos trabalhar,
de maneira central, o período da história de José Flores de Jesus por um ponto de vista
essencialmente político que investigou, de maneira especial, a vida dessa personalidade
durante os anos de 1960 e 1970, período em que ocorreu no Brasil, dentre outras
questões, a chamada ditadura civil-militar brasileira. O capítulo está subdividido nas
seguintes temáticas: “Desconstruindo a cidade-partida: Favela sujeito versus favela
objeto”; “A desconstrução da favela-objeto em Kéti”; e “A desconstrução dos sujeitos-
objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show Opinião”. Nesses textos, discutiremos, de
maneira pontual, a respeito do Show Opinião, do Cinema Novo e do crescimento dos
movimentos revolucionários culturais e musicais negro-urbanos durante o período.
Aqui, nosso intuito é perceber a luta de determinadas camadas da sociedade brasileira
em derrubar certos estereótipos em relação à favela e seus moradores – e grande parte
negros.
No decorrer dos dois capítulos, tomarão espaço não apenas as letras de Kéti, mas
também as entrevistas concedidas por ele ao MIS-RJ e ao MIS-SP, um documentário
realizado para comemorar seus noventa anos de nascimento, reportagens e entrevistas
de jornais e revistas encontradas na Discoteca Oneyda Alvarenga, do Centro Cultural
São Paulo, bem como o próprio livro de Ney Lopes, intitulado Zé Kéti: O samba sem
senhor.56
Todos os documentos citados, nos forneceram várias informações acerca das
56
LOPES, Nei. Zé Kéti: o samba sem senhor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
35
posturas e dos posicionamentos políticos que Kéti teria levado a cabo durante os anos
em que mais produziu musicalmente.
As entrevistas de Kéti concedidas aos MIS-SP e MIS-RJ foram fundamentais,
uma vez que possibilitaram observar aspectos da memória não apenas daquilo que Kéti
viveu, mas também daquilo que o grupo no qual estava inserido produziu enquanto
verdade. Kéti, como todos nós, reproduz o que julga importante, tendo como parâmetro
o seu espaço e tempo próprios.
Em razão de as entrevistas terem sido realizadas em momentos bastante
diferentes de sua vida e carreira (respectivamente, 1967 e na década de 1980), foram
notadas diferentes posturas, engajamentos e modos de observar situações que, para além
de representarem incongruências ou contradições, se ligam aos saberes e às emoções
relacionadas com períodos específicos da história do Brasil, da cidade do Rio de Janeiro
e da vida de Kéti.
O documentário intitulado 90 anos de nascimento de Zé Kéti57
foi interessante
no sentido de mostrar o Kéti construído imageticamente na cultura do samba brasileiro.
Como se trata de um documentário feito após a morte do compositor, percebe-se uma
clara tentativa de enaltecer sua figura.
Em nossa conclusão, ou, ainda, em nossas considerações finais, uma vez que
acreditamos que tal tema não possua nem esteja perto de possuir conclusões,
procuramos estabelecer “Uma reflexão acerca da cidade do Rio de Janeiro e de suas
identidades pós-coloniais” por meio do aporte teórico do poeta e etnólogo
martiniquense Édouard Glissant, do literato cubano Antonio Benitez Rojo, do sociólogo
inglês Paul Gilroy e do teórico cultural jamaicano Stuart Hall. Foi intento definir um
projeto de identidade para o samba e para a favela carioca afastado de noções quase
canonizadas da favela enquanto lugar de ausências e carências e do samba como
produto da cultura nacional brasileira. Em outras palavras, procuramos analisar ambos –
samba e favela – a partir daquilo que Édouard Glissant denominou como irrué,58
que
representa a mistura de irrupção e o ímpeto, de realidade e irrealidade, características
que se acredita estarem presentes não apenas nas produções que foram aqui analisadas,
mas também no próprio samba (assim como nos demais gêneros musicais formados no
57
TV BRASIL. De lá para cá, 7 ago. 2011. Disponível em:
<www.youtube.com/watch?v=gww6GgE4jdM>. Acesso em: 10 nov.2013. 58
GLISSANT, op. cit., p. 15 – 16.
36
espaço do Atlântico Negro) e mesmo na identidade da favela carioca e do povo
brasileiro. Como indica Muniz Sodré:
Deve-se admitir a heterogeneidade dos espaços, acolher o movimento de
diferenciação, o paradoxo em relação ao real. Na territorialização,
apreendem-se os efeitos de algo que ocorre, que se desenvolve, sem a
redução intelectualista dos signos.59
Esse último capítulo, portanto, não se interessou em ser mais uma contribuição
frente aos trabalhos que pretendem destacar o espaço da favela como lócus próprio de
carências e ausências, mas, sim, observá-lo como um lugar organizado à “maneira como
os habitantes ordenaram as suas relações com a terra, o céu, a água e os outros homens”,
e que, por isso, merece um estudo histórico não pautado em pré-conceitos, uma vez que
a “História dá-se num território, que é o espaço exclusivo ordenado das trocas que a
comunidade realiza na direção de uma identidade grupal”60
e mais, uma vez que o
“território é, assim, o lugar marcado de um jogo, que se entende em sentido amplo
como protoforma de toda e qualquer cultura: sistema de regras de movimentação
humana de um grupo, horizonte de relacionamento com o real”;61
em outras palavras, o
estudo das favelas necessita de propostas de análises menos oclusas, que possibilitem
uma análise real de suas movimentações e construções socioeconômicas.
Por fim, estabelecemos, em nossas considerações finais, o que conseguimos
apreender do conjunto analisado: De que maneira a realidade urbana do Rio de Janeiro
pode ser interligada com questões de cunho cultural e de que maneira essa cultura
produzida pode ser compreendida pela noção de uma identidade polirrítmica e
policêntrica entre Brasil e África, entre morro e asfalto, entre, afinal, as diferenças e os
diferentes existentes no Rio de Janeiro e, de fato, no Brasil? Pretendemos, por fim,
demonstrar como para além da “invenção do brasileiro”, da “invenção do carioca” e da
“invenção da favelado” existe a possibilidade da criação de uma cultura outra, mista,
não fixada, uma “interidentidade” que não admita fronteiras e que, exatamente por isso
seja capaz de enxergar um novo mundo onde não exista espaços para o medo relativo ao
“outro”, ao “diferente”; um mundo onde os Direitos Humanos sejam realmente
possíveis uma vez que deem conta de uma “constelação identitária complexa, em que se
59
CABRAL, Muniz Sodré de Araújo. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 13. 60
Ibidem, p. 22. 61
Ibidem, p. 23.
37
combinam traços de colonizador com os do colonizado”62
e onde todos, afinal, sejam
humanos.
62
Santos, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e
interidentidade, Luso-Brazilian Review, 39, 2, 2002, 9-43. p. 9.
38
CAPÍTULO 1: TRANSFORMAÇÕES URBANAS E RELAÇÕES DE
GÊNERO EM KÉTI
Quantas experiências podem estar contidas nos primeiros anos de vida de
alguém? Quanto de nossas primeiras relações pessoais, redes de amizade e convívio
podem ser responsáveis por construir uma parcela de quem seremos quando adultos?
No capítulo que agora iniciamos pretendemos tratar da maneira pela qual os
primeiros anos de vida de nosso sujeito-personagem serão importantes para o seu futuro
enquanto compositor.
De acordo com pesquisa feita pela PhD em música Beatriz Ilari da Universidade
Federal de Paraná:63
Descobertas recentes da neurociência, psicobiologia, psicologia do
desenvolvimento, educação e psicologia da música vêm fomentando um
interesse crescente acerca do desenvolvimento cognitivo-musical do ser
humano [...] Durante a infância, o cérebro humano é mais maleável e os
efeitos da aprendizagem são maiores que em qualquer outra fase da vida
(Flohr, Miller & Deebus, 2000). Isso também parece ser o caso do
desenvolvimento auditivo. Como exemplo, sabe-se hoje que é no período
entre o nascimento e o décimo aniversário que as distinções entre alturas,
timbres e intensidades se desenvolvem e se tornam mais refinadas (Werner &
Vandenbos, 1993). É também nesta época que as crianças desenvolvem suas
preferências e memórias musicais (veja Ilari & Polka, no prelo; Trainor,
1996; Trehub & Schellenberg, 1995). O desenvolvimento cognitivo-musical
nesta época ocorre através de processos como impregnação e imitação (Ilari
& Majlis, 2002), e está normalmente associado a diversas funções
psicossociais como a comunicação, inclusive de emoção, entre crianças e
adultos, o endosso de normas culturais e étnicas, e o entretenimento
(Gregory, 1998; Huron, 1999; Ilari, no prelo; Trainor, 1996; Trehub &
Schellenberg, 1995; Trevarthen, 2001)
Dessa forma, levando em consideração que os anos iniciais da vida de uma
criança sejam importantes do ponto de vista da aprendizagem e da percepção acerca de
suas primeiras concepções em relação ao mundo que a circunda e ao universo mais
particular que a contém, acreditamos que resgatar algumas das relações que Kéti
vivenciou enquanto criança é muito importante para compreender não apenas uma gama
de questões vinculadas ao seu universo musical enquanto sambista, mas também em as
temáticas presentes em seu repertório.
Assim trabalharemos dois temas que nos pareceram os mais problemáticos na
infância de Kéti, quais sejam: as relações que começa a estabelecer com “as cidades” do
Rio de Janeiro – subúrbios, morros e asfaltos – e as relações de gênero, mais
63
ILARI, Beatriz. A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos.
Revista eletrônica de musicologia. Universidade Federal do Paraná, vol. 9, out. 2005.
39
especificamente, os embates do masculino e do feminino que são travados nessa cidade
múltipla e em transformação que era a Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX.
José Flores de Jesus, o Zé Kéti, nasceu em 16 de setembro de 1921. Ainda nos
primeiros anos de infância, que ocorreram aos pés da chamada “época de ouro” da
música popular brasileira, iniciou sua formação musical, profundamente marcada pelos
timbres de seu cotidiano de menino, embalado pelas festas e arrasta-pés organizados por
seu avô, João Dionísio de Santana, o “João Folião”, e pelos bailes e sambas noturnos,
principalmente o “Prazer das Morenas”, aos quais era levado por sua mãe, dona Leonor
Inácia de Jesus.
Kéti ainda era muito menino para perceber – e de fato, talvez esse tenha sido um
detalhe ao qual nunca se tenha atentado – mas os primeiros sete anos de sua vida
acompanhariam, num paralelo distante, as influências ligadas ao mundo musical
brasileiro, principalmente do Rio de Janeiro, que cedo ou tarde influenciariam o seu dia
a dia. Esse período vivia os reflexos causados por duas ocasiões: o lançamento do
samba-maxixe “Pelo Telefone”, de José Barbosa da Silva, o Sinhô, em 1917, e o final
da Primeira Grande Guerra, em 1918.
O lançamento do samba-maxixe “Pelo Telefone” embora estivesse fadado a
carregar uma série de discussões acerca de sua real natureza rítmica e conceitual,64
seria, de fato, um marco divisor em relação às produções musicais que ocorriam no Rio
de Janeiro. O sucesso dessa composição teria, em certa medida, despertado a atenção de
compositores para dois novos estilos: o próprio samba65
e as marchinhas de carnaval. Já
o término da Primeira Guerra Mundial marcaria o início de uma influência mais
intermitente da cultura dos Estados Unidos em terras brasilis: Não apenas estilos como
o shimmy, o Charleston, o black-bottom e, principalmente, o fox-trot passam a estar
64
Carlos Sandroni, em sua importante obra Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro
1917-1933, comenta acerca das discussões geradas sobre o samba em questão que, para muitos, como,
por exemplo, Máximo e Didier, seria um samba-amaxixado e para outros, como por exemplo, Mario de
Andrade, seria simplesmente um maxixe. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do
samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 132-135. 65
Não pretendemos com isso, afirmar que o samba surgirá apenas depois do lançamento de “Pelo
Telefone”, afinal de contas, muito samba já era cantado nas festas que ocorriam, por exemplo, nas casas
das Tias. O que defendemos é que o lançamento do samba em questão, abrirá espaço para que esse estilo
seja, cada dia mais aceito pelo grande público, aumentando os seus espaços de circulação. Como
comentaria Caldeira em sua dissertação de mestrado: "(...) não é apenas a criação de uma forma musical,
mas também um fenômeno social que envolve, ao mesmo tempo, a individualização da figura do autor, a
circulação da obra criada, num meio social amplo, por meios mecânicos". CALDEIRA, Jorge. A voz:
samba como padrão de música popular brasileira (1917 / 1939). Dissertação (Mestrado) – faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 17
40
cada vez mais presentes em nosso dia a dia,66
mas também, a própria tecnologia
importada da terra do Tio Sam.
É nesse período que chega ao Brasil o sistema eletromagnético de gravação do
som, um dos grandes inventos do pós-guerra. Tal novidade na forma de gravar músicas
tem grande importância, principalmente por possibilitar que as canções pudessem ser
registradas sem que para isso o cantor ou a cantora precisasse gritar, inaugurando,
assim, no Brasil a fase de culto à voz, que atingiria o seu auge na década de 1930 e que
teria como nomes de destaque Francisco Alves, Vicente Celestino e Araci Cortes.
Outras importantes tecnologias que chegaram ao Brasil ainda nesse período
foram o rádio e o cinema, que, em pouco tempo, ajudariam a divulgar a nova “cara” que
se pretendia dar à cultura musical brasileira e marcariam muito a já supracitada “fase de
ouro” da música popular brasileira.
1.1 Kéti e a múltipla Rio de Janeiro
Filho de uma empregada doméstica, a já citada Dona Leonor, e de um pai
marinheiro, cavaquinhista e metido a conquistador, Kéti nasceu em Inhaúma, Zona
Norte do Rio de Janeiro, bairro que já em meados do século XVII se destacava como
área de pequenos portos e denso comércio e que, desde o final do século XIX, vinha
observando os reflexos da abertura da Avenida Automóvel Clube e da implantação da
Estrada de Ferro Rio D´Ouro, que mais tarde, em 12 de março de 1983, se transformaria
na Linha Auxiliar do metrô.
Depois que o pai morreu de uma “xícara de café”, assunto que trataremos em
breve, Kéti mudou-se com a mãe para a casa do avô, em Bangu. Embora ainda fosse
passar em um curto período pelos bairros de Dona Clara, Piedade e, finalmente, Bento
Ribeiro, onde moraria de 1935 até meados da década de 1970, quando se mudaria, por
pouco tempo, para a cidade de São Paulo, foi ali, em Bangu, com o avô, tocador de
flauta e piano e amigo de Pixinguinha e Cândido das Neves, que Kéti desenvolveria
curiosidade e apreço pela música; e foi ali também que, sempre atento ao que faziam
nas festas organizadas por seu avô e observando quietinho a maneira pela qual as notas
66
Mais informações acerca do período disponíveis em SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A
canção no Tempo: 85 anos de músicas brasileiras (1901-1957). vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1997.
41
eram geradas, fora apelidado de Zé Quieto ou Zequéti, que mais tarde, com a voga dos
nome com “K” como Kennedy, Khrushchev e JK, se transformaria em Kéti, o Zé Kéti.
De fato, o próprio Zé explicaria no palco do Show Opinião a origem do apelido:
Esse negócio de apelido: você sabe porque é que me chamo Zé Kéti... É o
seguinte: quando minha mãe ficou sozinha pra (sic) me sustentar, ela foi ser
empregada doméstica. Quando minha mãe voltava diziam pra ela: “o Dona
Leonor, o Zé ficou quieto. O Zé ficou quietinho. Zé quietinho, Zé quietinho.
E acabou Zé Kéti. Aí então comecei a escrever meu apelido com “K”. “K”
tava dando sorte, tava por cima: Kennedy, Khrushchev, Kubitschek.67
O caso é que, morando em Bangu com o avô, Kéti pôde aproveitar os resquícios
de um ambiente ainda bastante rural, dotado de um cotidiano marcado por festas de
igreja à moda antiga, onde as ruas eram decoradas com bandeirinhas coloridas, tomadas
por barracas de prendas e comidas caseiras, cheirosas e saborosas que deveriam
dominar o olfato dos que por ali passassem e o paladar daqueles que ao cheiro não
conseguissem resistir. Fora isso, a audição seria estimulada pela bandinha da região e,
claro, pelas procissões. Por fim, um foguetório daria mais cor à festança da região que,
nos dias “normais”, teria um cotidiano marcado pela vaca leiteira, o quitandeiro, o
vassoureiro, o saboeiro, por resquícios, enfim, de uma vida carregada de hábitos que
dentro em pouco se esvairiam da região, uma vez que, desde 1882, assim como em
Inhaúma, ali também já havia chegado o trem, e junto dele variadas transformações.
Signo de um período de profundas mudanças políticas, econômicas, sociais e
culturais não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do próprio Brasil, a ampliação
das linhas de trem na cidade podem ajudar a compreender de que maneira os primeiros
anos de vida de Kéti estariam geográfica e historicamente localizados, influenciando o
cotidiano desse sujeito-personagem.
Em artigo que relaciona o samba e o crescimento das linhas de trem no Rio de
Janeiro da virada do século XIX para o século XX, o historiador Carlos Eduardo Dias
Souza comenta:
Foi no mesmo período em que se iniciaram as intervenções urbanas que as
estradas de ferro Dom Pedro II e Leopoldina aumentavam o número de
composições para os subúrbios da cidade, que viam seu crescimento acelerar
na mesma velocidade das locomotivas. Tal processo possibilitava a uma
população mais pobre deslocar-se no espaço urbano em busca de moradias
mais em conta. Como opções, havia os morros: a Providência já era habitada
há anos, e viu sua população crescer ainda em meados do XIX, quando o
Morro da Favela começaria a adensar. Ademais, o Rio oitocentista contava
67
KETTI, Zé; LEÃO, Nara; VALE, João do. Show Opinião. Rio de Janeiro: Polygram/Philips, 1965. LP.
Disponível em: <www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00370>
Acesso em: 10 jun. 2013.
42
com outros morros bem no centro da cidade. Lembremos que os Morros do
Senado, de Santo Antônio e do Castelo faziam parte da paisagem carioca até
relativamente pouco tempo. Os três últimos, destruídos, lançavam no espaço
urbano uma população sem destino: quanto mais longe do centro civilizado,
melhor. E é aí que o trem entra em nossa história.68
Mas a quais intervenções urbanas Souza faz referência?
Pode-se dizer que, desde a chegada da Família real ao Brasil, em 1808, um ideal
remodelador urbano europeu tornou-se comum nas discussões arquitetônicas do país e,
principalmente, da cidade então sede da coroa, e que apesar das discrepâncias sociais
que produziam tais ideias de embelezamento e enquadramento essas tendências
europeias seriam recolocadas na ordem do dia, com intensidade e intenções renovadas,
na virada do século XIX para o século XX. Mais especificamente foi no Pós-
Proclamação da República que as elites brasileiras, desejosas por “modernizar” não
apenas os seus preceitos políticos e econômicos, mas também a estética de seu principal
centro político, empreenderiam uma série de novas modificações que, de maneira
bastante direta, flagelariam, uma vez mais, as classes mais pobres e carentes da cidade.
Esse período seria, então, aquele em que as elites do Rio de Janeiro voltariam
suas preocupações primeiramente para os cortiços e, em seguida, para as favelas.
Algo diferente, porém, marcou essas novas intervenções urbanísticas,
caracterizando uma informação bastante relevante para que se possa compreender até
que ponto essas já antigas preocupações chegaram no período da República Velha:
trata-se do tipo social representativo do novo regime. Nas palavras de Nicolau
Sevcenko:
Se os conflitos políticos tendiam a decantar os agentes cuja qualidade maior
fosse a moderação no anseio das reformas, as agitações econômicas, por seu
lado, apuravam os elementos predispostos à “fome do ouro, à sede da
riqueza, à sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do
triunfo.69
De acordo com o autor, não se fala mais de uma Rio de Janeiro dividida entre os
membros de uma corte real e os excluídos dela, mas, sim, de uma Rio de Janeiro
dividida entre os membros pertencentes a uma certa burguesia e os excluídos dela.
Todo o poder e toda a cobiça, anteriormente possíveis apenas a uma minoria
ligada à casa real, espalhavam-se agora pelas casas, cafés e escritórios de uma sociedade
ainda perdida na novidade de sua posição política. Sevcenko, para quem a reconstrução
68
SOUZA, Carlos Eduardo Dias. E o samba pegou o trem: cultura e sociabilidade popular no subúrbio
carioca na primeira república. XIV Encontro Nacional da ANPUH – RIO, Rio de Janeiro, 2010. 69
SEVCENKO, op. cit. p. 37
43
desse “quadro social” também se fazia mister, cita um autor contemporâneo ao período
da República Velha que relata que aquela sociedade se tornava “desabalado torvelinho
de interesses ferozes, onde a caça ao ouro constitui a preocupação de toda a gente”.70
Pensado o quadro social representativo daquela que se configuraria como a
capital da República brasileira faz-se necessário compreender as demais situações
políticas e econômicas correntes nesse espaço e, nesse ponto, não falamos “apenas” da
capital do Brasil, o que já faria dela uma peça fundamental nas decisões políticas
brasileiras, mas, também, de uma Rio de Janeiro que economicamente se sobrepunha ao
resto do território nacional: Núcleo da maior rede ferroviária do Brasil, mantinha um
contato direto com o Vale do Paraíba, os estados do Sul e do Espírito Santo, Minas
Gerais, Mato Grosso e, por meio do comércio de cabotagem, com cidades do Nordeste e
do Norte.
Frente a essas características sociais, políticas e econômicas tão urgentes, exibia-
se, envergonhada, uma cidade anacrônica, que insistia em lembrar a burguesia, a
política e a economia daquele Brasil tão dono de si, o seu passado colonial, atrasado e
nada moderno.
A passagem a seguir, embora longa, torna-se extremamente valiosa para
compreendermos como essa cidade antiga começaria a incomodar os novos anseios da
República brasileira:
O antigo cais não permitia que atracassem os navios de maior calado que
predominavam então, obrigando a um sistema lento e dispendioso de
transbordo. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, típicas de uma cidade
colonial, dificultavam a conexão entre o terminal portuário, os troncos
ferroviários e a rede de armazéns e estabelecimentos do comércio de atacado
e varejo da cidade [...] Era preciso, pois, findar com a imagem da cidade
insalubre e insegura, com uma enorme população de gente rude plantada bem
no âmago, vivendo no maior desconforto, imundice e promiscuidade, pronta
para armar em barricada as vielas estreitas do Centro ao som do primeiro
grito de motim.71
Vale apontar que, além das intenções mencionadas, uma nova “preocupação”
configuraria as novas intervenções que serão realizadas na cidade, trata-se da ideia
sanitarista ou, ainda, higienista que estará na “ordem do dia” durante o período relatado.
Tratar-se-á, portanto, de um momento em que os saberes médico e arquitetônico estarão
unidos em prol da construção de uma nova Rio de Janeiro, mais republicana, mais
europeia e mais limpa. Nas palavras de Risério:
70
Ibidem, p. 37. 71
Ibidem, p. 41.
44
O Regime Republicano deve se traduzir em intervenções visíveis na
materialidade do espaço urbano e, nessa tarefa, engajaram-se médicos,
arquitetos, engenheiros, urbanistas, homens que faziam discurso racionalista
e se sentiam imbuídos da missão da transformação nacional.72
Embora desde o último quartel do século XIX a cidade já fosse objeto de planos
de saneamento e infraestrutura, é a partir de 1904, com a entrada de Pereira Passos na
prefeitura do Rio de Janeiro, que projetos de alinhamento, remodelação, extensão e
embelezamento serão levadas a cabo de maneira sistemática.
Figura 3 Jornal do Brasil. Especial "Jornal do Século", 1903.73
Durante as primeiras décadas do século XX, portanto, as intervenções de Passos
seriam bastante intensas: em torno de 2.700 prédios foram destruídos, alguns para dar
lugar a novas praças e passeios, outros para dar lugar a abertura de novas avenidas ou
mesmo tendo como fundamento a reconstrução de moradias dentro das noções de
higiene apropriadas. O fato que não podemos deixar de sublinhar, no entanto, é que não
se derrubam prédios sem antes retirar seus moradores de dentro deles; e mais: sem que
uma intensa mudança de hábitos sociais e culturais ocorram.
Durante o ano de 1922, quando Carlos Sampaio era o prefeito da cidade,
teríamos o famoso desmonte do morro do Castelo, um local que, para as elites do
período, não possuía mais espaço ou motivos para “ser” uma vez que representaria um
forte resquício de cidade colonial e popular o que, evidentemente, deveria ser apagado
da memória patrimonial da cidade. Não nos esqueçamos, que a data de 1922
representaria, em meio a esse turbilhão de intenções médicas, sanitaristas e
72
RISÉRIO, op. cit. p. 194. 73
Disponível em: <http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=6588> Acesso em 13 de jul.
2013.
45
embelezadoras, o centenário da proclamação da Independência do Brasil. Era mais do
que urgente, portanto, apagar os ares coloniais que pudessem ainda reinar na cidade do
Rio de Janeiro.
Como diria Vera F. Rezende, é como se colocassem nas mudanças físicas, nas
remodelações e no embelezamento da cidade a possibilidade de se atingir mudanças
sociais.74
Como dito anteriormente, essas reformas provocariam, na verdade, uma
divisão social geográfica cada vez maior que, desde os tempos de D. João VI, eram
efetivadas sem que parecessem, no entanto, percebidas.
A expansão da malha ferroviária carioca representou, portanto, ao mesmo
tempo, uma forma de o governo escoar produtos para o comércio e afastar do centro da
cidade as massas populacionais que, por sua origem, cor ou costumes, não eram bem-
vindas e agora, por conta dos desmontes de morros e regiões, precisavam de um meio
de transporte capaz de trazê-las, em horário comercial, para o centro.
No entanto, de maneira bastante interessante, ao mesmo tempo em que os trens
representavam um meio para afastar certos grupos do centro da cidade, em sua maioria
negros, descendentes de ex-escravos, estes acabaram “reutilizando” esse espaço como
um locus de propagação e resistência de expressões culturais ligadas a esse grupo,
principalmente, o samba.
Os trens viraram, dessa forma, ambiente de convívio e troca social e cultural, ao
mesmo tempo em que representavam um espaço de resistência:
O Jornalista Claudio Vieira declara que o samba ganha rumo na direção ao
subúrbio sobre os trilhos nas décadas de 30 e 40. As composições atrasavam
muito na saída da Central do Brasil, fato que irritava os passageiros, exceto
os passageiros do trem das 18h04min, horário de encontros de sambistas.
Esses passageiros ao saírem do trabalho, diariamente tinham um encontro
com o samba no vagão, logo, não se incomodavam com a demora da saída
das composições, pois era uma oportunidade de encontrarem os compositores
das Escolas de Samba do Subúrbio, situadas ao longo da malha ferroviária.
Os passageiros do trem das 18h04 iniciavam seu percurso com uma batucada
na Praça da Bandeira e só terminavam na Pavuna. As marmitas dos sambistas
eram usadas para tamborilar e os bancos dos trens eram surdos de marcação.
(VIEIRA, 2008, apud, SILVA, 2013, p. 102).75
De maneira parecida, alguns polos da cidade possuiriam um caráter de
preservação e propagação de questões caras à população negra. Um dos mais clássicos
74
REZENDE, Vera. Planejamento e ideologia: quatro planos para a Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 37 75
SILVA, Cristina da Conceição. O samba do Rio de Janeiro: elementos socializadores dos grupos
étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Grande Rio
“Professor José de Souza Herdy”, Duque de Caxias, 2013.
46
exemplos disso fica por conta da famosa Tia Ciata, sua casa e a igualmente icônica
“Praça Onze”.
De acordo com Moura:
Na sua casa, capital do pequeno continente de africanos e baianos, se podiam
reforçar os valores do grupo, afirmar o seu passado cultural e sua vitalidade
criadora recusados pela sociedade. Lá começam a ser elaboradas novas
possibilidades para esse grupo excluído das grandes decisões e das propostas
modernizadoras da cidade, gente que progressivamente se integraria, a partir
do processo de proletarização que se acentua no fim da República Velha e da
redefinição de sua vida cultural, com a solidificação das novas instituições
populares, legitimadas e submetidas pela legislação de Vargas. Da Pequena
África no Rio de Janeiro surgiriam alternativas concretas de vizinhança, de
vida religiosa, de arte, trabalho, solidariedade e consciência, onde
predominaria a cultura do negro vindo da experiência da escravatura, no seu
encontro com o migrante nordestino de raízes indígenas e ibéricas e com o
proletário ou o pária europeu, com quem o negro partilha os azares de uma
vida de sambista e trabalhador.76
Vale lembrar que a casa da Tia Ciata não era a única que possuía tal caráter
integralizador, uma vez que as famosas “tias” se espalhavam, principalmente em torno
da extinta Praça Onze e de regiões próximas a esta, como a zona do cais do porto e a
Cidade Nova, pontos que, de acordo com Heitor dos Prazeres, podiam ser reconhecidos
como a “Pequena África” ou, ainda, de acordo com Azevedo, locais onde poderiam ser
percebidas as “micro-Áfricas”, lugares que diante da metropolização e verticalização
inseridas no processo de urbanização das elites hegemônicas da cidade, configuravam-
se como um contraponto dissonante às formas culturais dominantes para operar outras
cidades e outras vivências.77
A Praça Onze, no entanto, como tantos outros pontos hoje extintos da cidade do
Rio de Janeiro, foi “abaixo” para que a moderna cidade republicana pudesse continuar a
ser construída. A demolição, que teve início no ano de 1942 para ceder espaço à parte
da famosa Avenida Presidente Vargas, não apagou, no entanto, a memória do que
significou aquele lugar.
Praça 11, Berço do Samba
(1973)
Favela
Do Camisa preta
76
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro;
Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. p. 152
– 153. 77
AZEVEDO, op. cit. p. 9.
47
Do Sete coroas
Pra ver o teu samba
Favela
Era criança na praça onze
Eu corria pra te ver desfilar
Favela
Queremos teu samba
Teu samba era quente
Fazia meu povo vibrar
Até a lua a lua cheia
Sorria, sorria
Milhões de estrelas brilhavam por um lugar melhor
Queriam ver a Portela
Mangueira, Estácio de Sá
E a favela com as suas baianas tradicionais
Brilhavam mais do que a luz do antigo lampião a gás
Fragmentos de brilhantes
Como fogos de artifícios
Desprendiam lá do céu
E caiam como flores na cabeça das pastoras
E do samba de Noel
Correrias e empurrões
Gritarias e aplausos
E o sino da capela não parava de bater
Os malandros vinham ver
Se o samba estava certo, se
Enquanto as cabrochas
Gingavam no seu rebolado
No ritmo da batucada
De olho cumprido
Que nem bobinho
Eu terminava dormindo na calçada
De olho cumprido
48
Que nem bobinho
Eu acabava dormindo na calçada
Kéti, assim como Herivelto Martins e Grande Otelo,78
eternizou, em um samba,
o que a Praça Onze havia significado imagética e sonoramente e o que com ela teria
sido de certa forma “deixado pra trás”. Além disso, o autor mistura uma série de
referências quase mitológicas em relação ao samba e ao próprio locus do morro da
Favela que, de maneira direta, representariam, para ele, o que o samba feito na Praça
significaria.
A letra inicia fazendo referência a dois famosos “desviantes”79
ou malandros –
Camisa Preta e Sete Coroas –, que habitavam a chamada Favela, hoje, Morro da
Providência, famoso principalmente por ter como ponto importante de sua história a
marca de ter sido a primeira “favela carioca”. Kéti também cita, sem fazer juízos de
valor, as três grandes escolas – Portela, Mangueira e Estácio de Sá –, que tiveram os
seus primeiros anos como “escola”, ainda nas ruas de tal Praça que, para além de um
lugar de competição, é apresentada como um local de festa e felicidade, onde Noel
Rosa, as cabrochas, os malandros e a própria igreja teriam espaço.
A Praça Onze, enfim, seria esse local de “Correrias e empurrões, Gritarias e
aplausos” assistido pela lua e pelas “milhões de estrelas que brilhavam por um só
lugar”; esse lugar que fazia com que o pequeno José Flores de Jesus adormecesse, ali
mesmo, sorrindo.
Em outras oportunidades podemos observar como as transformações urbanas da
cidade do Rio de Janeiro influenciaram, diretamente, a vida de Kéti. Vê-se mais um
exemplo disso na ocasião que levou o autor a compor o famoso samba “Jaqueira da
Portela”:
Derrubaram a Jaqueira pra fazer a sede nova. Aí, eu fiquei penalizado. Me
deram até um carrinho de mão pra mim puxar areia, terra, barro, pra limpar,
porque a Portela nessa época, foi em 1940 e pouco, a Portela estava
78
O samba em questão, campeão do carnaval de 1942 e intitulado como “Praça XI” dizia: “Vão acabar
com a Praça Onze/ Não vai haver mais Escola de Samba, não vai/ Chora o tamborim/ Chora o morro
inteiro/ Favela, Salgueiro/ Mangueira, Estação Primeira/ Guardai os vossos pandeiros, guardai/ Porque a
Escola de Samba não sai/ Adeus, minha Praça Onze, adeus/ Já sabemos que vais desaparecer/ Leva
contigo a nossa recordação/ Mas ficarás eternamente em nosso coração/ E algum dia nova praça nós
teremos/ E o teu passado cantaremos” 79
Termo dado a Sete Coroas pela grande imprensa do Rio de Janeiro. Para uma análise mais detalhada
dos sujeitos supracitados, consultar: MATTOS, Romulo Costa. A construção da memória sobre Sete
Coroas, o “criminoso” mais famoso da Primeira República. Anais do XV – Encontro Regional de
História da ANPUH-RJ, Rio de Janeiro, 2012.
49
inaugurando a sede nova, por que a sede da Portela era no meio do terreiro,
na rua Estrada do Portela 448 e tinha no fundo, assim... no meio do terreiro
lá, uma casinha velha que não dava nem pra entrar direito ali então o pessoal
ensaiava do lado de fora; quando chovia a rapaziada corria pro botequim pra
tomar umas e outras até acabar a hora do ensaio. Se parava a chuva o pessoal
voltava pra cantar, pra sambar em volta da sede velha, na casinha lá, né? Aí,
o filho do Luiz Americano, aquele clarinetista o filho do Luiz Americano que
eu esqueci o nome dele agora, ele conseguiu a estrutura do museu de cera,
gratuitamente e levou pra estrada do portela, pra portela o museu de cera, nas
carretas, naqueles caminhão grande, e lá chegaram, tiraram o museu lá, legal,
e armaram aquele madeiramento, aquelas coisas todas, armaram no lugar
daquela sede velha, sebe? E todo o pessoal, os compositores, artistas da
Portela o pessoal todo, cada um colaborou um pouquinho e a mim me deram
um carrinho de mão, pra mim tirar terra, barro pra ajudar também na
reconstrução da sede nova que tinham derrubado a sede velha e tiveram que
derrubar a jaqueira, a jaqueira da Portela que tinha uma jaqueira grande, e
todo ano, todo natal o pessoal enfeitava a jaqueira com lâmpadas em cores…
então eu fiz aquele samba (sic).80
Da situação, surgiu, no ano de 1963, com gravação original da própria GRES
Portela e selo Albatroz, o samba em questão:
Jaqueira da Portela
(1963)
Quem é que não se lembra
Da jaqueira
Da jaqueira da Portela
Velha jaqueira
Amiga e companheira
Eu sinto saudades dela
Guardei algumas folhas para recordação
Ninguém fez, mas eu fiz a minha oração
Na hora do seu sacrifício eu penei
Ninguém me viu chorar
Mas juro que chorei
Acompanhou as nossas glórias
Nossas vitórias
Em idos carnavais
Eu quero morrer sambando
Assim que nem ela
80
Kéti em entrevista concedida ao MIS-RJ em 9 de fevereiro de 1967. Entrevistadores: Ricardo Cravo
Albin e Hermínio Belo de Carvalho.
50
Minha fiel jaqueira
Saudosa companheira
Que caiu pra defender nossas cores
Hoje nossa estrada só tem flores.
Sartre81
faria um interessante estudo acerca da “teoria das emoções”, procurando
desenvolver uma análise fenomenológica para aquilo que se entende como tristeza,
alegria, terror, medo etc., buscando compreendê-las como leituras que o consciente faria
do mundo por meio da eterna relação “bipolar” entre os mesmos. Nesse sentido, diria o
autor, “O sujeito emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese
indissolúvel. A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo”82
e mais adiante
“Agora podemos conceber o que é uma emoção. É uma transformação do mundo”.83
Por esse viés, podemos estabelecer uma análise em relação à canção supracitada – e, na
verdade, a muitas das canções de Kéti – como uma tentativa de responder a um mundo
que, de certa forma, deixou de fazer sentido.
Ao destruir a Jaqueira, objeto símbolo de todo o passado da amada escola de
samba, o mundo, tal qual era concebido por Kéti, perde algum sentido, assim como
cores e sabores, e, numa tentativa de transformar esse mundo, temporariamente sem
sentido, certa “magia” é utilizada. Tal magia consistiria em transformar o mundo, para
que dele pudéssemos possuir aquilo que desejamos ou fugir daquilo que tememos. E
nesse sentido, a canção teria sido utilizada.
Nas palavras da doutora em psicologia social Kátia Maheirie:
Acontece que o impacto causado pela música não é sentido somente na
singularidade psicofísica do sujeito. Justamente por criar e despertar a
afetividade, a música parece alterar a forma como o sujeito significa o mundo
que o cerca. Quando se está “tomado” pela emoção de uma música, os
objetos à nossa volta ganham sentido e, o que parecia ser indiferente, passa a
ser vivido como “necessário”. Isto é, os objetos, entendidos enquanto
materialidade”, realidade física, passam a ficar repletos de sentido e
marcados pela subjetividade humana. Neste instante, tudo ao redor parece
dançar ao mesmo compasso da música, e esta organização sonora passa a dar
musicalidade ao mundo como um todo.84
81
SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2008. 82
Ibidem, p. 57. 83
Ibidem, p. 69. 84
MAHEIRIE. Kátia. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir
dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 147-153, 2003.
51
Podemos notar, portanto que as transformações urbanas ocorridas na cidade do
Rio de Janeiro durante praticamente todas as primeiras décadas do século XX e, de
maneira especial, nos anos de 1950 e 1960, influenciaram de maneira direta e indireta,
desde a infância, a vida de Zé Kéti, que inspirado pelas mudanças de hábitos, lugares,
amigos, ligações amorosas e afetivas – mesmo quando o afeto dizia respeito a uma
Jaqueira, uma vez que, na verdade ela representava muito mais do que um simples pé de
jaca – escreveu letras como “Praça Onze, berço do samba” e “Jaqueira da Portela”,
canções que não criticam a modernidade, mas cantam os velhos tempos, bonitos, que
foram embora, ou ainda, passaram por uma transformação, para abrir espaço ao novo
que, de maneira notável, esboça uma sutil representação do que seria a Favela, para
além das projeções que, já naquela primeira década do século XX limitavam esses
espaços a um local de ausências de histórias, sentimentos e memórias, questões que
serão tratadas com maior cuidado em nosso segundo capítulo.
Kéti, no entanto, não seria o único a utilizar o seu samba como forma de
expressar, comentar e, mesmo, criticar questões de seu cotidiano, uma vez que muitos
assim como ele sentiam as transformações múltiplas pelas quais a cidade e as relações
nela estabelecidas passavam.
1.2 Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de
uma Rio de Janeiro mutante
Nos anos em que Zé Kéti morou na região de Dona Clara, que se estenderam de
1928 a 1937 algumas importantes mudanças, citadas anteriormente, já se faziam
bastante presentes na realidade urbana e musical do Rio de Janeiro.
Em 1929, por exemplo, teríamos o marco inicial daquilo que se convencionou
denominar “Época de Ouro”. De acordo com Severiano e Mello: “A Época de Ouro
originou-se da conjunção de três fatores: a renovação musical iniciada no período
anterior com a criação do samba, da marchinha e de outros gêneros; a chegada ao Brasil
do rádio da gravação eletromagnética do som e do cinema falado.”
Nessa época, surgem nomes como os dos compositores: Ari Barroso, Noel Rosa,
Lamartine Babo, Ismael Silva, Mário Reis e Sílvio Caldas, Almirante, Carmen e Aurora
Miranda. Do período anterior, ainda continuaram produzindo sujeitos como Vicente
Celestino, Cândido das Neves e Pixinguinha.
52
Os anos 1930 foram marcados, também, por um processo de criação de um
samba cada vez mais “carioca” e popular. É entre os anos de 1930 e 1940 que o gênero
se torna o mais gravado do Brasil, ocupando 32,45% do repertório registrado em disco,
o que corresponderia a aproximadamente 2.176 sambas. Tal cenário também será o das
marchinhas carnavalescas que, mesmo não chegando a tal montante, atinge o não menos
importante número de 1.225.
É nesse período que um dos grandes exemplos seguidos por Kéti irá escrever seu
nome junto à história da música brasileira: Noel Rosa, que em apenas sete anos de
atividade produziria mais de 250 composições
Em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em
9 de fevereiro de 1967 quando questionado acerca da influência desse compositor em
sua vida, Kéti responde: “Foi um repórter musical e eu particularmente me considero
um repórter musical por que eu procuro sempre fazer música falando de alguma coisa
importante, uma coisa que tenha um sentido, uma história, entende? Um enredo”
Famoso por suas crônicas acerca das transformações urbanas vividas na Rio de
Janeiro dos anos 1930, Noel Rosa nos fornece importantes informações dessa cidade em
metamorfose. Podemos, por meio de suas composições, sempre bastante bem
humoradas, entrar em contato com uma “cidade do trabalho”, cada vez mais ligada ao
sistema capitalista, que submete o proletariado, ao patrão, e que em “Três apitos”
evidencia, inclusive, a presença da mulher no ambiente fabril.
Três Apitos
(Noel Rosa, 1933)
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
[...]
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
53
Impertinente
Que dá ordens a você
Já em “A dama do cabaré”, Noel nos convida a observar através da Lapa, uma
cidade que, embora, durante o dia se baseasse no mundo do trabalho, possui também,
aspectos noturnos, boêmios. É nesse ponto da cidade, também, que entramos em contato
com o meretrício e com as relações de gênero nele estabelecidas. Observamos na rápida
passagem que segue, um homem, frequentador de um bordel, que de maneira desastrada
se apaixona pela “Dama do Cabaré” e que, triste por perceber que seu carinho e amor
não seriam correspondidos fora do limite da “diplomacia” do submundo do meretrício,
chega a chorar, ou quase.
Dama do Cabaré
(Noel Rosa, 1934)
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée
[...]
Em frente à porta um bom carro nos esperava
Mas você se despediu e foi pra casa a pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da Dama do Cabaré
Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que recebi, não me lembro de quem
Você nela me dizia que quem é da boemia
Usa e abusa da diplomacia
Mas não gosta de ninguém
E, por fim, entramos em contato com uma cidade do samba, da malandragem e
do morro que convive, furtivamente, com a cidade.
Mulato Bamba
(Noel Rosa, 1931)
54
Esse mulato forte é do Salgueiro.
Passear no tintureiro é o seu esporte,
Já nasceu com sorte e desde pirralho
Vive às custas do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira um samba é novidade,
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher
No entanto, Noel Rosa e Zé Kéti não seriam os únicos a relatar, durante os
primeiros cinquenta anos do século XX, as transformações políticas e econômicas
possibilitadas pelo ainda recente advento da república brasileira e da busca constante
pela “modernidade” que atingia o cotidiano da sociedade.
Em 1928, por exemplo, Artur Faria lançava a sua famosa marchinha “Eu quero
nota”, onde dizia: “Eu quero ter dinheiro/ que fosse em grande porção/ eu comprava
um automóvel e ia morar no Leblon/ Eu como sou operário e não posso ser barão/ vou
morar na Mangueira/ num modesto barracão”.
Artur Faria, em sua breve marcha carnavalesca, expõe a ainda recente
diferenciação territorial da cidade que, cada vez mais influenciada pela especulação
imobiliária, criaria, em poucos anos, a famosa divisão da cidade entre o “Norte”, pobre
e perigoso, e o “Sul”, culto, elitista, exemplo a ser seguido.
Seria também durante o final dos anos de 1920 e início dos anos de 1930 que
uma importante mudança no caráter estrutural do samba ocorreria e pode ser
compreendido como reflexo das mudanças pelas quais passava, naquele momento, a
cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do período intitulado por Carlos Sandroni85
como o
do “ciclo curto” das transformações do samba, que teriam originado o moderno, urbano
e comercial samba carioca.
Tal mudança, advinda da “turma do Estácio”, representada principalmente por
Ismael Silva, e Alcebíades Barcelos, o Bidê, diria respeito à mudança na rítmica
tradicional do samba que deixaria de ser representada pelo “tantantantantanatan” para
85
SANDRONI, op. cit. p. 219.
55
se transformar no “bum bumpaticumbumprugurundum”. Tais onomatopeias diriam
respeito, na verdade, ao novo modo de tocar proposto pelos sambistas há pouco citados.
Mas de que maneira tal mudança poderia representar um reflexo ou uma
resposta às transformações que ocorriam na cidade? A resposta é fornecida pelo próprio
Ismael que comenta que a estrutura mais tradicional do samba, herdeira dos ritmos
amaxixados, funcionaria muito bem para a dança entre um casal, mas tornava-se um
empecilho para os desfiles de rua por não possuir a fluidez necessária para esse fim.
Tal período relaciona-se, também, com um momento em que o próprio samba
começa a sofrer certa organização, mesmo que interna, ou seja, motivada pelos próprios
praticantes.
De acordo com Tinhorão:86
Durante o Carnaval, essa gente do bairro do Estácio ia engrossar a grande
concentração de foliões da Praça Onze (onde desde a segunda década do
século XX se concentrava a massa dos mais pobres, depois que a elite dos
trabalhadores levou seus ranchos a desfilarem para o público de classe média
na Avenida Rio Branco). E como essa massa de aspecto algo assustador (...)
vivia em permanente choque com a polícia, reproduziu-se em fins de 1928,
em um botequim do Estácio – o Bar Apolo –, o mesmo tipo de encontro que
quase meio século antes fizera surgir no Café Paraíso, entre os baianos da
zona da Saúde, a ideia da criação dos ranchos: de uma conversa entre um
grupo de bambas do local resultou a formação deum bloco destinado a sair no
Carnaval pacificamente ao som de sambas, como os ranchos saiam ao som de
marchas.
Advinda, portanto, de uma relação de estranhamento e embate sociocultural
entre a polícia e as populações mais pobres das regiões da cidade Nova, da Praça Onze e
do Morro do Estácio, teria se formado a primeira escola de samba do Rio que para os
seus desfiles perceberam ser necessário o advento de uma rítmica própria para esse fim.
Em 1941, temos Artur Vilarinho, Estanislau Silva e Paquito lançando o famoso
samba “O trem atrasou” que dizia: “Patrão o trem atrasou/ por isso estou chegando
agora/ trago aqui o memorando da central/ o trem atrasou meia hora/ o senhor não tem
razão de me mandar embora/ o senhor tenha paciência/ É preciso compreender/
sempre fui obediente/ reconheço o meu dever/ um atraso é muito justo/ quando há
explicação/ sou um chefe de família/ preciso ganhar pão.”
Já no samba supracitado, podemos entrar em contato com um problema ainda
hoje bastante conhecido pelos moradores das grandes cidades brasileiras: Trata-se da
deficiência do sistema de transporte público direcionado aos setores mais carentes da
população. O sujeito da canção, um trabalhador, que mora longe de seu trabalho,
86
TINHORÃO, op. cit. p. 292.
56
queixa-se ao chefe que pretende despedi-lo por conta do atraso de meia hora. O sujeito,
cheio das boas intenções, procura explicar a seu patrão o motivo de não ter sido naquele
dia pontual: “O atraso do trem” seria o culpado. Infelizmente, por mais que o rapaz,
“chefe de família” tente convencer o seu chefe de que nada podia fazer, trazendo,
inclusive um “memorando da central”, parece não ter boas perspectivas de futuro.
Outra boa maneira de lançarmos um olhar atento ao cotidiano do Rio de Janeiro
do período em questão é observando os seus cronistas. Rubem Braga, por exemplo,
capixaba, jornalista formado em direito, escreveu uma obra extensa, com mais de 15 mil
crônicas acerca de muitas partes do Brasil que nos ajudam a perceber alguns detalhes do
cotidiano, em “Mistura”, de 1935:
José Cândido não tinha nem a cor nem o título convenientes à sua filha. Mas
ele raptou Alice, e as mocinhas não são raptadas facilmente como um
deputado paraense. As mocinhas, quando não querem ser raptadas,
esperneiam e fazem um berreiro medonho. Alice foi porque quis. Uniu seu
braço alvo ao braço preto de José e partiu. As mocinhas partem assim, e não
há remédio, não há. Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País das
Maravilhas. E se aquele país, pelo qual todas as mocinhas suspiram, é
gostoso e bom, que importa a cor do cicerone? Neste país, dona Rosa, muitos
brancos amaram muitas pretas. Se a senhora não acredita, eu lhe mostrarei as
provas. As provas andam aí por toda parte, são dengosas e excelentes e se
chamam, na linguagem corrente, mulatas. Calma, dona Rosa, calma, dona
Rosa. Alice está no País das Maravilhas. E quem sabe se ela não voltará de lá
um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma criancinha mulata de olhos
verdes? E a senhora não acha lindas, dona Rosa, as mulatinhas de olhos
verdes?87
Assim como Rubem Braga, em suas linhas, falaria sobre um Brasil multicor, um
verdadeiro País das Maravilhas, ao qual a pequena Alice estaria inserida e, junto dela, a
tradicionalista Dona Rosa, Kéti, em suas letras e mesmo, em muitas de suas entrevistas,
procurou contar a historia de Alices, Donas Rosas, Dinas, Malvadezas Durões, gente do
morro e do asfalto.
Para além do aspecto saudosista relatado anteriormente, Kéti possuiu uma
grande produção que o poderia colocar como o mais político dos malandros.
1.3 A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti
Sobre o pai de Kéti, Josué Vale de Jesus, embora pouco se saiba além das três
características já mencionadas (marinheiro, cavaquinhista e metido a conquistador), é
87
BRAGA, Rubem. Crônica Mistura, Rio de Janeiro, 1935
57
interessante comentar o seguinte: morreu aos 33 anos de “uma xícara de café” como
contaria Zé Kéti em uma de suas composições.
Explicando o ocorrido, Kéti diria:
Meu pai tocava cavaquinho, era marinheiro e morreu no Hospital da Praia
Vermelha, depois de tomar um cafezinho na casa de uma ex-noiva. Já saiu de
lá falando sozinho. Minha mãe conta que era metido a conquistador. Até que
na minha opinião ele não estava errado. Morreu como homem, depois de
fundir a cuca. Eu fiz um samba pra ele, assim:88
Meu pai morreu
(Zé Kéti)89
Meu pai morreu de uma xícara de café
E nesta história existe um nome de mulher.
O velho bobeou, entrou numa gelada
Falou sozinho, muita gente deu risada.
Mulher comigo toma sopa de jornal
E banho frio matinal
Almoço no seu Chang-Lai
Tomo café no botequim
Pra mulher má, eu também sou ruim
O samba em questão, e mesmo o depoimento dado por Kéti, abre uma
interessante brecha no que diz respeito não apenas à produção de gênero desenvolvida
pelo compositor, mas, também, acerca das relações de gênero vivenciadas em seu
cotidiano, pois, quando questionado acerca da morte do pai, responde que este teria
“morrido como homem”.
Na letra supracitada, portanto, é possível observar, por um lado, certo rancor
direcionado, primeiramente, à mulher “causadora” da morte do pai que, em seguida,
acaba se estendendo a todas as mulheres (“mulher comigo toma sopa matinal”)
voltando, posteriormente, apenas à determinada “classe” de mulher, a classe das
mulheres “más”.
88
O GLOBO, 13.01.74: Zé Kéti da Portela, artista de opinião. In LOPES, Nei. Zé Kéti. Rio de Janeiro:
Dumara, 2000. 89
Ibidem.
58
A partir da prerrogativa aberta por essa composição, pode-se observar a maneira
pela qual as relações de gênero seriam tratadas nas primeiras cinco décadas do século
XX e que teriam influenciado a formação de Kéti.
Embora essas não sejam posturas comumente encontradas em suas composições,
posto que na grande maioria a mulher é tratada de maneira bastante romântica, pode-se
observar, vez ou outra, um amante contrariado, quando abandonado ou traído, que
remete, em muito, ao menino triste e cheio de raiva que perdeu o pai para a xícara de
café de uma mulher vingativa.
Tais canções, no entanto, se observadas para além dos problemas rapidamente
associados ao discurso do autor, podem ser encaradas como meios possíveis para a
elaboração de variadas questões-reflexões acerca da própria sociedade à qual Kéti
estava inserido.
Essa questão possui uma importância que consideramos fundamental para os
cada vez mais relevantes trabalhos acerca dos “novos sujeitos” surgidos, de certa forma,
após a quebra dos paradigmas tradicionais do campo da história anteriormente
comentada. No conjunto desses novos sujeitos, que se tornaram, mais do que nunca,
detentores de uma história, as mulheres apareceram de maneira bastante relevante. No
entanto, como nos apontam Faria e Matos,90
grande parte dos trabalhos que procuraram
observar a mulher privilegiou o enfoque das experiências femininas em detrimento de
seu universo de relações com o masculino, universo cheio de movimentos dinâmicos de
resistência-lutas, integração-diferenciação, permanência-ruptura, e que só podem ser
compreendidos a partir de uma visão histórica que compreenda as transformações
culturais pelas quais as relações sociais passam no decorrer dos tempos.
Observando essas relações não como algo estático, e, sim, como questões que
possuem historicidade, podemos compreender as dinâmicas relacionais existentes, por
exemplo, em uma cidade que se transforma e que junto dela – de seus muros, ruas e
avenidas – transforma as relações entre homens e homens, entre mulheres e mulheres e
entre os homens e as mulheres.
Nesse sentido, pelas letras das canções, podemos perceber, por exemplo,
questões como a chamada “questão-crise do masculino”, que denuncia os fardos e
conflitos da masculinidade servindo de base para os recentes estudos acerca do
90
FARIA, Fernando Antonio; MATOS, Maria Izilda Santos de. Melodia e sintonia em Lupicinio
Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 28
59
masculino. Tais estudos objetivam, dentre outros problemas, negar as condições que
secularmente vem sendo produzidas sobre a legitimação de um “ser homem” e que são
postas como naturais e a-históricas, e acabam gerando, como num negativo fotográfico,
um “ser mulher”.
Dessa forma, observando as letras a seguir, podemos procurar desnaturalizar
esse “ser” social e culturalmente produzido no decorrer dos séculos, repleto de atributos
que o distinguiriam positivamente dos demais sujeitos históricos, como forma de
problematizar “a noção de sujeito universal, unitário, isolável”, fazendo emergir “a
centralidade nos processos de diferenciação, na possibilidade de construção singular da
existência, nas configurações assumidas pelas apreensões que os sujeitos fazem de si e
do mundo”.91
Madrugada
(1967)92
A mulher só vive a reclamar
Que eu não tenho hora pra chegar
Sou bohemio, tenho que beber
Nunca estou em casa pra jantar
Ela diz que qualquer dia vou morrer
Sou da noite, a noite é toda minha
Tenho um compromisso com a lua
Minha vida é andar na rua
A cantar para os amigos meus
Na esquina ou no botequim
Até Deus nosso Senhor lembrar de mim
Madrugada é a minha companheira
amanhece eu estou na brincadeira
Vou pra casa, vou dormir, vou descansar
A noite chega, me pede pra voltar
91
IZILDA, 2005, p. 27. 92
Gravadora/ Selo: Odeon com interpretação original de Isaurinha Garcia.
60
Em tempo
(1973)93
A vida para mim só tem amargor
Porque eu não vivo bem sem o meu amor
Ao perder seu afeto, sua amizade
Nasceu dentro em mim
Nasceu em mim como nasce a flor no jardim
A saudade
Mas se a saudade me faz recordar
O tempo em que eu vivia só de amar
O tempo foi o culpado
Porque o tempo tão sem tempo, tempo para eu perder
O próprio tempo que foi pra mim um prazer
Ai, ai
A vida só me faz sofrer.
“Madrugada”, composta em 1967 por Zé Kéti e Élton Medeiros é um bom
exemplo do personagem masculinamente construído no decorrer dos séculos que, dentro
de tal idealização, se encontra acima de situações em que possa sofrer a contestação de
uma mulher. É o homem que está naturalmente certo, que não deve explicações e que
não aceita nenhum tipo de atitude que o torne submisso.
O homem de tal canção não admite questionamentos acerca do horário em que
chega em casa, caracterizando a mulher que o faz como aquela que “vive a reclamar”.
Tal homem chega mesmo a afirmar, em tom romântico, ter “um compromisso com a
Lua”, muito embora com sua mulher não se comprometa nem mesmo a estar “em casa
para o jantar” e, sem medir palavras, tal sujeito vai além assumindo ter como verdadeira
companheira, não a sua mulher, mas, sim, a noite, a boemia, os amigos e a cantoria.
Já na canção “Em tempo”, gravada em 1973 por Zé Kéti e H. Nogueira, notamos
um homem triste e amargurado que, por algum motivo não claramente especificado,
perdeu o afeto e a amizade da mulher amada. Aqui, o sujeito-homem da composição
vive de saudade e recordação. Enigmática seria a passagem que relata: “O tempo foi o
culpado [...] o próprio tempo que foi pra mim um prazer, ai, ai, a vida só me faz sofrer.”
93
Gravadora/ Selo: CID com interpretação original do próprio Zé Kéti.
61
Seria o homem de “Madrugada” que estaria lamentando o momento em que finalmente
sua mulher, aquela que só reclamava, cansou-se de ser ignorada e foi embora?
Outra comparação que podemos estabelecer entre a primeira e a segunda canção
seria o “detalhe” de que, enquanto em “Madrugada”, Kéti optou por utilizar um coro,
que canta alegre, nos momentos que antecedem a primeira estrofe e que ressurgem no
refrão, em “Em tempo”, a música é executada apenas com o acompanhamento de um
violão e de um pandeiro, onde a voz e a maneira como ela é aplicada demonstram toda a
tristeza que o compositor pretenderia retratar.
Leviana
(1954)94
O azar é seu
Em vir me procurar
Me abandona, me deixa
Não quero mais ver
A luz do seu olhar
Você manchou o lar que era feliz
E agora quer voltar
Leviana
Sinto muito, mas vai tratar da sua vida
Leviana
Precisando eu te posso dar uma guarida
Mas o meu lar
Sente vergonha como eu
O nosso amor morreu
Você não está com nada
(1979)95
Não seja assim tão má
Não me faça assim tão infeliz
Só lhe dei carinho, me deixe viver
94
Gravadora/ Selo: Continental, com interpretação original de Jamelão e parceria de Amado Régis. 95
Gravadora/ Selo: Continental, com interpretação original do próprio Zé Kéti e parceria de David Raw.
62
Que mal lhe fiz, que mal que eu lhe fiz?
Você não está com nada
Está jogando conversa fora
Vem, eu vou-me embora
E com razão
Meu coração não é de plástico
E nem de papelão
Agora eu me sinto muito só, tenha dó
Quase abandonado por aí
Como um cão sem dono, sem ter ninguém
Enquanto você sorri
Seu desejo é maltratar-me
Vendo-me tão desprezado assim
Meu bem eu preciso sumir
Meu bem eu preciso partir
“Leviana”, composição de 1954 bastante conhecida na interpretação de Jamelão,
e “Você não está com nada”, de 1979, também trabalham com a questão da relação de
gênero e nos ajudam a pensar em outras características que dizem respeito à música e à
vida de Kéti.
Em ambas as canções, observamos um sujeito infeliz no amor que, embora em
cada uma delas responda a esse sentimento de maneira diferente – enquanto o primeiro
procura ignorar a mulher causadora de seu sofrimento (O azar é seu/ Em vir me
procurar/ Me abandona, me deixa/ Não quero mais ver/ A luz do seu olhar), o segundo,
bastante amargurado, parece não superar a dor da separação, lamentando que o destino
de sua outrora companheira já esteja sendo diferente (Meu coração não é de plástico/ E
nem de papelão/ Agora eu me sinto muito só, tenha dó/ Quase abandonado por aí/
Como um cão sem dono, sem ter ninguém/ Enquanto você sorri) – demonstra,
sobretudo, a desilusão no amor.
Nas duas canções em questão, podemos perceber a insatisfação de Kéti frente à
ausência de uma característica em relação a sua mulher. A ideia de “abandono” presente
nas duas canções poderia estar relacionado à insatisfação diante de uma mulher que se
nega a seguir os padrões de esposa-mãe e que, desprezando as comodidades da vida
63
doméstica, opta por um mundo de prazeres onde outros homens e experiências fazem
parte de sua intenção enquanto mulher.
Por mais que em todas as pesquisas feitas para essa dissertação o cotidiano do
compositor e sambista aparecesse de forma bastante intensa ligada à periferia e às
favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, características próprias de um estilo nascido
na Zona Sul da cidade, mais especificamente em Copacabana, aparecem em
praticamente todas as quatro canções há pouco citadas. Trata-se do chamado samba
“dor-de-cotovelo” ou, ainda, “samba-canção”.
Tal “gênero musical” teria surgido por volta dos anos de 1940/1950, em boates
do bairro de Copacabana, como Vogue, Copa, Beguine, Little Club, Baccarat,
Casablanca, Acapulco, Montecarlo, Bambu, Siroco e Mocambo. Esses centros de
convivência poderiam reunir toda a sorte de pessoas que ali quisesse estar, mas a classe
que de fato era a que frequentava com maior assiduidade tais locais pertencia
indubitavelmente às classes mais ricas da cidade. Por certo, nosso Zé não praticou o
hábito de andar pelas bandas de “Copa”, preferindo os ares, as cores, os sabores, os
odores e os ritmos das escolas de samba da Zona Norte do Rio de Janeiro.
O fato que desejamos elucidar, no entanto, diz respeito às múltiplas inspirações
que Kéti deveria receber daquelas “bandas”. Não podemos esquecer, por exemplo, que
as décadas de 1940 e 1950 marcam a expansão da influência do rádio e do cinema no
Brasil.
Nas palavras de Matos: “As marcas da paixão na poesia e no samba-canção eram
ditas ou cantadas em sussurros, tendo em frente um copo de uísque, celebrando a culpa,
o fracasso, os amores impossíveis e a solidão.”96
Dessa forma, podemos perceber não apenas a marca das múltiplas influências às
quais Kéti estaria sujeito – não devemos esquecer que o chamado “samba-canção” era,
durante as décadas em questão, um dos gêneros mais tocados no principal meio de
comunicação de massas da época, o rádio – mas também as múltiplas formas de lidar e
de perceber os relacionamentos amorosos.
No entanto, por mais que questões diretamente direcionadas ao “feminino”
sejam comuns nas letras de Kéti, acreditamos ser importante observar que a própria
ideia do masculino também aparece em sua produção.
96
MATOS, Maria Izilda. Paisagens sonoras: Copacabana – a praia e a noite. ANPUH – XXV
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009, p. 9.
64
Mesmo que em letras como “Madrugada”, “Em tempo”, “Leviana” e “Você não
está com nada” possamos entrar em contato com as dores/rancores trazidos pelo amor
não correspondido ou ainda, baseado no olhar da construção cultural acerca do
feminino/masculino ao qual Kéti está inserido, em “Nega Dina” entramos em contato
com um homem que, embora provedor, não consegue arranjar meios lícitos que
garantam o sustento da família. Aqui, notamos a mistura entre o “malandro” e o
“provedor”, certo “gênero” possibilitado pelas faltas múltiplas encontradas nos morros
daquele período e mesmo fora dele. Uma vez que na busca do dinheiro para garantir a
comida para os próximos dias o sujeito da canção não encontra os meios legais para
tanto, acaba “dando um duro no baralho pra poder comer”, ou seja, acaba utilizando das
apostas e jogos de azar para garantir o seu pão de cada dia. Misturando uma crítica à
insistência da mulher em importuná-lo – estaria o seu orgulho de macho provedor sendo
testado, colocado em “xeque” frente aos colegas de vários morros? – e à falta de meios
lícitos para trabalho, Kéti fala sobre o “marginal brasileiro”.
Nega Dina
A Dina subiu o morro do Pinto
Pra me procurar
Não me encontrando, foi ao morro da Favela
Com a filha da Estela
Pra me perturbar
Mas eu estava lá no morro de São Carlos
Quando ela chegou
Fazendo um escândalo, fazendo quizumba
Dizendo que levou
Meu nome pra macumba
Só porque faz uma semana
Que não deixo uma grana
Pra nossa despesa
Ela pensa que minha vida é uma beleza
Eu dou duro no baralho
Pra poder comer
65
A minha vida não é mole, não
Entro em cana toda hora sem apelação
Eu já ando assustado, sem paradeiro
Sou um marginal brasileiro
66
CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA DO ESPAÇO EM KÉTI
De este modo, a pesar de que por razones obvias esproblable que no
encontremos uma definición que satisfaga a todo el mundo, podemos
sostener que el rasgo essencial que caracteriza el arte es que este es um
instrumento de comunicación social que utiliza la armonia y la dissonância
de la forma y el sonido para comunicar emociones a los sentidos. Tambem
puede decirse que el arte es uma meditación sobre la vida o, mejordicho, uma
meditación que surge de la vida, que procede directa o indirectamente de las
experiências vitales.97
Mas, afinal, quais seriam as chances de um menino negro, filho de uma
empregada doméstica e de um marinheiro, nascido e criado na periferia da Zona Norte
do Rio de Janeiro, conseguir galgar não apenas um espaço dentro dessa
cidade/sociedade, mas, também, representar uma voz dissonante à omissão e aos
preconceitos de toda a sorte cometidos tanto pelo governo quanto por boa parte da
sociedade carioca do asfalto quando o assunto era a vida nos morros?
Veremos neste capítulo que, mesmo que Kéti não tenha ido longe quando o
assunto são os estudos formais, a arte que construiu será o seu principal instrumento de
comunicação e, em muitos momentos, de protesto. Seus ritmos, sua imagem, suas
colocações, suas experiências de vida, enfim, serão vistas como uma forma de expressar
as harmonias e dissonâncias por que passava no período em questão, as quais estariam
ligadas, de fato, às harmonias e dissonâncias que vivia a própria sociedade brasileira.
Dessa forma, lançaremos, em primeiro lugar, um olhar em relação à noção de
uma “cidade partida” representada pela dualidade constituída em relação às duas Rios
de Janeiro, uma representada pela “Cidade Maravilhosa”, outra, pelas favelas. Em
seguida, faremos uma rápida análise de conceitos ligados à chamada arquitetura do
espaço urbano, observando mais especificamente o espaço da favela e a maneira pela
qual este se organiza, tentando observar possíveis influências estéticas desse espaço nas
obras de Kéti.
Por fim, vamos debater, a partir das premissas lançadas pela própria ideia da
estética do espaço, de que maneira a visão rasa da “favela objeto” não serve para
explicar a arte que dela advém, mostrando como a lógica de uma “favela sujeito” – que
para além de uma memória forjada, para além de um não lugar e de um espaço de
ausências – faz-se muito mais necessária para compreender as estratégias sociais,
políticas, econômicas e, em nosso caso específico, culturais que são ali levadas a cabo.
97
BALOGUN, Ola. 1982. Forma y expresión en las artes africanas. In Introducción a la cultura africana.
Paris: Editorial Serbal/Unesco. BESTER, Rory. 1999. p. 34.
67
2.1 Desconstruindo a cidade-partida: favela sujeito versus favela objeto
Embora não possamos afirmar de onde teria surgido a expressão “Cidade
Maravilhosa” é fato que tal idealização acerca da cidade do Rio de Janeiro – ou mesmo,
de parte dela – já exista desde, pelo menos, os anos iniciais do século XX.
Em livro publicado no ano de 1913, por exemplo, a poetisa francesa Jeanne
Catulle-Mendès que dois anos antes havia passeado por alguns espaços da cidade, já
utilizara, no título de sua obra, o termo em questão. Coelho Neto, escritor maranhense,
também o faria em duas situações distintas, uma no ano de 1908, em artigo que
escreveu para o jornal A Notícia, e outra, no ano de 1928 quando da ocasião do
lançamento de seu livro, que também possuía como título a tal expressão que, de tão
importante, estaria contida também, após o ano de 1960, no título da marcha oficial da
cidade.98
No entanto, por mais que a cidade possuísse “encantos mil” e fosse considerada
“o coração” do Brasil, algumas questões de problemática múltipla emergiriam,
principalmente entre os anos de 1908 e 1923,99
opondo bem e mal, saúde e doença e
certo e errado na cidade. Trata-se da ideia de uma “cidade partida” que contemplaria,
principalmente, a noção de que, em um mesmo espaço geográfico, conviveriam duas
realidades: a da cidade-favela e a da cidade não favela, opostas desde o seu nascimento.
De acordo com a passagem a seguir, já podemos notar como essas “duas
cidades” serão sempre representadas como opostas em finalidade e valores, a primeira,
aparecendo sempre como uma não cidade, espaço de desordem e medo.
Vinha-me, então, ao espírito, a crônica terrível do morro sinistro, o morro do
crime. Encravada no Rio de Janeiro, a Favela é uma cidade dentro da cidade.
Perfeitamente diversa e absolutamente autônoma. Não atingida pelos
regulamentos da prefeitura e longe das vistas da Polícia. Na Favela, ninguém
paga impostos e não se vê um guarda civil. Na Favela, a lei é a do mais forte
e a do mais valente. A navalha liquida os casos. E a coragem dirime todas as
contendas.100
No entanto, não apenas nas palavras do jornalista Constallat tal visão dualista
envolvendo a cidade do Rio de Janeiro foi colocada. O parnasiano Olavo Bilac, por
98
DE ALMEIDA, Aline Gama; NAJAR, Alberto Lopes. Cidade Maravilhosa e Cidade Partida: notas
sobre a manipulação de uma cidade deteriorada. RUA [online]. n. 18. v.1, 2012. Disponível em:
<http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/lerArtigo.rua?id=127> Acesso em: 7 de jul. De 2014 99
ZALUAR, Alba; ALVITO Marcos (orgs.). Integração Perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de
Janeiro: Editora FGV. 2004. p. 12 100
COSTALLAT, Benjamim. A favela que eu vi. In: COSTALLAT, B. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro:
H. Antunes. 1931. p. 33-9.
68
exemplo, fez referência à favela em sua crônica “Fora da vida”, como sendo “uma
cidade à parte” onde havia “muita gente que nada sabe do que se passa cá em baixo, e
cujo espírito só tem como horizonte vital o espaço limitado por duas ou três ladeiras
tortuosas ou sujas”.101
O sambista e cronista Orestes Barbosa afirmaria:
O morro da Favela é como Hamburgo. Cidade livre... Ninguém até aqui quis
conversa com aquela jurisdição do 8º Distrito Policial. [...] Ali vive um povo,
com as suas autoridades, o seu comércio, as suas leis. É uma pobreza
organizada e original. Mas quem passa nos trens, rumo dos subúrbios e das
cidades do interior, vê o aspecto deprimente do bairro miserável. A princípio
formou-se naturalmente a vida social da Favela. Depois surgiram os
“leaders” legisladores. E o morro passou a ter uma consciência nacional. –
Sou da Favela! Há quem diga assim, orgulhosamente, nas horas de “dança de
rato” em outras zonas, como quem diz o nome da pátria.102
Outros intelectuais, como Lima Barreto e Euclides da Cunha que faziam
parte do chamado grupo dos “escritores-cidadãos”, utilizaram seu ofício para
construir uma crítica mais profunda aos caminhos que a então recém proclamada
República estaria tomando.103
Em artigo que trata sobre as favelas na obra de Lima Barreto, lemos:104
Em O Moleque, Lima Barreto enfocou as favelas do subúrbio de Inhaúma,
que preservara o seu nome tupi numa época em que a febre modernizadora
levava os logradouros da cidade a serem rebatizados com “nomes banais de
figurões ainda mais banais”. Se em sua obra os subúrbios guardariam valores
éticos universais pouco praticados no centro e na zona sul por conta da busca
pela “civilização”, o que dizer de um lugar que, além de suburbano,
resguardara a sua denominação indígena? No mínimo, que ele portaria uma
dimensão cultural altamente resistente, em oposição ao artificialismo reinante
naquelas áreas privilegiadas pelos poderes públicos.
Aqui, podemos notar uma inversão das representações da favela comumente
encontradas não apenas no período em questão, mas até os dias atuais, quando da
quebra de alguns dos estereótipos referentes aos moradores da favela que aparecem em
Lima Barreto, como possuidores de “uma dignidade superior e universal”105
Todavia, fosse a dualidade proposta por Constallat, Bilac e Orestes Barbosa que,
de certa forma denegriam tanto o espaço quanto os moradores da favela, ou a de Lima
Barreto, que procurava observar as qualidades desse local e de seus habitantes, dividir a
cidade do Rio de Janeiro foi uma característica comum desses primeiros e conturbados
101
BILAC apud. MATTOS, Romulo Costa. As favelas na obra de Lima Barreto. URBANA – Revista
Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Unicamp, v.2, n.2, 2007. p. 11. 102
BARBOSA, Orestes. Coisas da Cidade: A estilização da Favela. A Manhã, 29 de dezembro de 1926, p.
25 103
SEVCENKO op. cit. p. 30. 104
MATTOS, op. cit. 105
SEVCENKO, op. cit., p. 200.
69
anos da República das Oligarquias.
Não podemos, no entanto, deixar de apontar as raízes dessa espécie de
pensamento que divide o Rio de Janeiro em polos positivos e negativos. Estas podem
ser encontradas nas visões e nos debates acerca dos “Brasis” apresentados pelos
viajantes do século XIX que, de acordo com a historiadora Silvia Cristina Martins de
Souza,106
já dividiam os temas mais abordados entre: a exuberância de nossa natureza e
a estranheza causada pelo grande número de africanos aqui encontrados.
Tais temas abriam espaço para duas matrizes de registro: uma relacionada à
natureza pródiga e impactante do Brasil; e outra, sua contrapartida incômoda,
relacionada ao escravo. De acordo com a autora, tais visões, traduzidas através do pincel
teriam contribuído para a cristalização de uma série de preconceitos – de fato
incômodos – em relação ao africano e suas experiências culturais, dentre elas suas
músicas e danças, seu batuque.
Ou seja, dividir o Rio de Janeiro em partes mais ou menos promissoras, ou
ainda, mais ou menos agradáveis, é uma prática antiga que ajudou na cristalização de
uma série de preconceitos e conceitos que perduram ainda hoje, sendo um deles o mito
da marginalidade existente no morro.
Em interessante obra intitulada O mito da marginalidade: favelas e política no
Rio de Janeiro, Janice E. Perlman107
trabalha com tal pensamento dualista que, com o
passar dos séculos acabou gerando o nascimento e a evolução do chamado “mito da
marginalidade”. Em suas discussões, a autora procura “desvendar” tal criação.
Tal discussão, extremamente importante para o que esse trabalho pretende
abordar, inicia-se com uma análise interessante que propõe o seguinte: Primeiramente,
duas fotos são disponibilizadas para análise. Na primeira imagem observa-se, a
princípio, uma favela; já na segunda imagem, dois favelados aparecem em frente a uma
construção que leva o nome de Juventus AC, um clube.
106
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Danças licenciosas, voluptuosas, sensuais... mas atraentes:
Representações do batuque em relatos de viajantes (Brasil século XIX). Revista Brasileira de História das
Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11, Setembro 2011. 107
PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Paz e Terra: Rio
de Janeiro, 1977.
70
A B
Figura 4 A. Uma favela. B. Dois favelados em frente à construção do Juventus
AC.
A autora propõe a seguinte abordagem em relação aos documentos: Enquanto a
primeira foto poderia ser facilmente observada como exemplo de um ambiente caótico,
precário e superlotado, a segunda poderia mostrar “dois vagabundos à toa, na rua,
quando deveriam estar trabalhando”. No entanto, Perlman propõe uma análise mais
atenta:
Debaixo de uma miséria aparente existe uma comunidade que se caracteriza
pelo cuidadoso planejamento do espaço para fins de moradia, e pelas técnicas
criativas de construção em encostas [...] Aqui e ali se veem casas sólidas, de
tijolos que representam a poupança das famílias que as construíram aos
pouquinhos, tijolo por tijolo.108
Ou seja, em vez de observarmos o espaço e as construções existentes na favela
apenas pelo viés da aglomeração, da sujeira e da falta de planejamento, poderíamos
também – na verdade, poderíamos, sobretudo – lançar um olhar que observa a luta e a
criatividade daqueles moradores que, baseados na carência de recursos de toda a sorte,
utilizariam de seus próprios meios arquitetônicos para construir, com o que pudessem,
mais do que uma simples moradia ou abrigo, um lar.
Por outro lado, a segunda imagem, em vez de dois vagabundos, poderíamos
observar dois homens, que, “decentemente vestidos de acordo com padrões da classe
108
Idem, p. 28
71
média aceitáveis em qualquer parte do mundo [...] calçando sapatos de couro” e usando
“relógio de pulso”,109
estariam descansando da semana ou do dia de trabalho ou mesmo
esperando pelo seu turno, ou seja, para além de parasitas e sanguessugas da
infraestrutura da cidade, poderíamos observar o favelado como um trabalhador.
Na letra de “Tamborim”, de Zé Kéti com parceria de Mourão Filho, gravada em
1979 pela Continental, podemos continuar tal discussão:
Tamborim
(1979)
Cavei muito buraco na avenida
Pra ajudar no progresso do metrô
Fui feirante vendi muito bagulho
Muitas vezes o rapa me apanhou
Estudei, me formei em camelô
Na escola da vida eu sou doutor
Meu dinheiro jamais deu pra viver
Da polícia já tive que correr
E quem sabe um dia eu possa ser
Na política um governador
E com meu tamborim eu vou cantar
Para o povo a minha grande dor.
Eu já disse que fui e o que não sou
Vou morrer na favela por amor
Tamborim, meu velho amigo tamborim!
Como tu és de ninguém
Ai, meu Deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim...
109
Ibidem.
72
Tamborim, meu velho amigo tamborim!
A batida do meu coração está chegando ao fim
Já não aguento bater mais no meu tamborim
Na letra em questão, Kéti utiliza o tamborim como símbolo que representa o seu
coração que, já cansado de bater, parece vislumbrar o fim de uma vida de trabalho e
luta. Dessa forma, encontramos nessa letra a quebra do personagem-padrão que assume
o favelado. Aqui, em vez de um vagabundo, “malandro” no sentido popular da palavra,
encontramos um trabalhador que de tudo já teria feito, desde trabalhar para o governo,
ajudando na construção do progresso da cidade, até em trabalhos que eram combatidos
por esse mesmo governo, como, por exemplo, o trabalho de camelô.
Ampliando o debate introduzido por Perlman, a análise da construção e
organização do espaço da favela por pontos de vista que ultrapassem a ideia de
desorganização e caos também se faz necessária.
De acordo com a pesquisadora Paola Berenstein Jacques:
Além de fazerem parte de nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas vão
se formando mediante um processo arquitetônico e urbanístico, vernáculo
singular que não apenas difere do dispositivo projetual tradicional da
arquitetura – seria mesmo o seu oposto – mas também se investe de uma
estética própria, com características peculiares, completamente diferente da
estética da cidade dita formal.110
Em linhas gerais, a autora propõe uma discussão acerca das tentativas de
reforma urbana das favelas cariocas, tão comuns nos primeiros anos do século XX que,
com os prefeitos Pereira Passos e Carlos Sampaio, como já discutido anteriormente,
chegaram a seu ápice. Jacques estabelece uma interessante reflexão acerca da
necessidade e funcionalidade dessas reformas de modo que o leitor deve se perguntar:
“Mas as favelas não fazem parte da cidade há mais de um século? Será necessária essa
integração formal? Não seria a imposição autoritária de uma estética formalista visando
à uniformização do tecido urbano?”
Propondo um outro olhar em relação à “arquitetura” produzida nas favelas, a
autora pretende explicar aquilo que chama de “estética das favelas”, por meio de figuras
conceituais como o Fragmento, o Labirinto e o Rizoma, pois “os barracos das favelas
são compostos por fragmentos; a aglomeração de barracos forma labirintos; estes, por
110
JACQUES, Paola Berenstein. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Casa da
Palavra: Rio de Janeiro, 2001. p. 17.
73
sua vez, se desenvolvem pela cidade como rizomas”.111
No entanto, e aqui encontramos um importante aliado para as discussões que
levamos a cabo neste capítulo, a autora utiliza alguns trabalhos de Hélio Oiticica como
aportes que permitem ver além dessas constatações simples e formais.
Observando o favelado como possuidor de uma excelente qualidade, a de
bricoleurs, analisa suas construções, sua arquitetura, não pelo viés do feio ou do
caótico, mas, sim, pelo ponto de visto do diferente, do alternativo. Para ela, o arquiteto-
favelado apoia-se na questão do incidental, do microevento e do inacabado, que constrói
sua residência, seu lar, com o que, a princípio, seria encontrado pelo caminho, na maior
parte das vezes, na própria cidade formal, como pedaços de madeira, papelão, tijolos,
telhas, que se encaixam e complementam conforme o tempo que o arquiteto possui para
dispender com esse evento, e mesmo, conforme as condições do clima na região:
Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, ziguezaguear, contornar. O Bricoleur,
ao contrário do homem de artes (no caso, o arquiteto), jamais vai diretamente
a um objeto ou em direção à totalidade: ele age segundo uma prática
fragmentária, dando voltas e contornos, numa atividade não planificada e
empírica. A construção com pedaços de todas as proveniências, a bricolagem,
será, portanto, uma arquitetura do acaso, do lance de dados, uma arquitetura
sem projeto.112
Após essa discussão preliminar acerca da importância em se observar a favela e
o favelado como possuidores de atributos próprios e bastante positivos em relação ao
ato de construir, a autora inicia suas discussões em relação à obra de Hélio Oiticica que,
como ela tentará indicar, teve muita influência do morro – principalmente do Morro da
Mangueira.
De acordo com a arquiteta, a “descoberta” do morro da Mangueira feita em 1964
transformaria sua arte para sempre. Não apenas o espaço físico da Mangueira mas
mesmo o samba que nela existe serão influência marcante na vida do artista plástico. A
descoberta do samba teria significado a descoberta de novos ritmos e corpos, a
descoberta de um outro tipo de sociedade, menos atrelada ao cotidiano burguês, talvez
mais comunitária, menos egoísta, que era, no entanto, marginalizada. Por fim, a
descoberta de uma nova arquitetura, de uma nova estética de construção feita a partir de
materiais outros, mais precários, instáveis e efêmeros.
Essas descobertas são vistas como a base para uma das primeiras obras de
Oiticica: os Parangolés.
111
Idem, p. 19. 112
Idem, p. 28.
74
Os parangolés são capas, tendas e estandartes, mas sobretudo capas, que vão
incorporar literalmente as três influências da favela que Oiticica acabava de
descobrir: a influência do samba, uma vez que os Parangolés eram para ser
vestidos, usados e, de preferência, o participante deveria dançar com eles; a
influência da ideia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da
Mangueira [...] A ideia de incorporar a dança à obra veio da influência da
experiência de Oiticica com o samba; a dança está presente na constituição
dos parangolés, na própria estrutura da obra.113
A partir de outra obra de Oiticica, lançada no ano de 1967 e intitulada
Tropicália, a autora nos leva a conhecer e discutir a noção da construção de um
processo labiríntico do espaço urbano próprio da favela, oposto ao espaço urbano
planificado e planejado da cidade como algo possível.
Diferentemente do labirinto de Dédalo, a favela representaria o labirinto
construído “ao acaso”, sem autores definidos ou mapas acabados, como já citado,
surgindo como um espaço que está sempre em processo de construção/reconstrução,
tanto dele próprio como das pessoas que o constituem e que, durante os anos que se
passaram, fixaram ali moradia e, sem as estruturas próprias do universo do asfalto,
aprenderam a significar um lugar onde faltam nomes, número e placas que facilitem ali
a movimentação. É como se seus barracos, becos e ruelas só fizessem sentido aos que
ali vivem, ou seja, de maneira mais uma vez oposta ao mito do labirinto de Cnossos,
enquanto Dédalo não consegue se achar dentro de sua própria criação, os favelados
nunca se perderiam dentro da favela.
A autora continua estabelecendo algumas comparações entre o mito de Teseu e a
realidade da favela: no momento em que Teseu já se vê liberto – tanto do Minotauro
quanto de Ariadne – dança junto de seus amigos, uma dança que imitaria em seus
movimentos, a sinuosidade do labirinto de Cnossos. De forma análoga, diz a autora, o
samba pareceria possuir, também, movimentações que lembrariam em muito os
movimentos dos corpos subindo e descendo os labirintos da favela-labirinto. “O samba
dançado seria, portanto, uma representação do percurso das favelas, a expressão da
experiência espacial labiríntica que contagia os movimentos do corpo.”114
Oiticica, após “descobrir” o Morro da Mangueira, teria sentido que o seu
interesse pela dança, pelo ritmo e, no seu caso particular, pelo samba, viria de “uma
necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de
uma livre expressão [...] seria o passo definitivo para a procura do mito e uma nova
113
Idem, p. 33. 114
Idem, p. 71.
75
fundação dela na minha arte”.115
Oiticica descobriria que o seu mito estaria no próprio
labirinto e que a dança lhe servira de representação possível.
Mário Pedrosa, amigo de Oiticica e crítico de arte, teria dito acerca de sua
“iniciação” nesse novo caminho que parecia com tanto afinco e necessidade procurar:
Se comportamento subitamente mudou: um dia, deixa sua torre de marfim,
seu estúdio, e integra-se na Estação Primeira, onde faz sua iniciação popular,
dolorosa e grave, aos pés do Morro da Mangueira, mito carioca. Ao entregar-
se, então, a um verdadeiro rito de iniciação, carregou, entretanto, consigo
para o samba da Mangueira e adjacências onde a “barra” é constantemente
“pesada”, seu impenitente inconformismo estético. [...] foi durante a iniciação
ao samba que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma
experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que
o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como
fonte total da sensorialidade.78
Dessa forma, a favela passa a ser a representação de um polo de libertação para
Oiticica, antes naturalmente embebedado pelos preceitos burgueses de uma vida de
asfalto, planejamento e balé.
Da mesma maneira, pretendemos observar as obras produzidas por Kéti como
possuidoras de uma série de influências absorvidas do morro e do cotidiano ali vivido,
uma vez que, de acordo com as palavras do próprio compositor em entrevista sobre sua
música Malvadeza Durão:
É uma história fictícia né? De tanto eu viver e conhecer bem o cotidiano do
morro eu fiz o Malvadeza Durão, arranjando um personagem, né, Seu
Malvadeza Durão que se assemelha às coisas que acontecem no morro, aos
caras assim, importante no morro e você sabe que eu... assim entre outras
coisas, adoro fazer músicas falando de morro, né? Gosto mesmo, viu? Eu
tenho muitas músicas... não sei, mas um grande número de músicas
explorando o tema do morro, haja visto Malvadeza Durão, Ascender as velas,
que fez sucesso, Opinião e tantas outras...
Dessa forma, exploraremos, a seguir, as maneiras pelas quais, por meio da
música de Kéti a favela mostrou-se, para além de um local tenebroso e de ausências, um
lugar com muito mais vida, mais cor e mais ritmo.
2.2 A desconstrução da favela-objeto em Kéti
Uma característica que definitivamente não fez parte da vida de Kéti foi o
convívio com o estudo regular. Em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som
do Rio de Janeiro (MIS-RJ), quando questionado acerca de seus estudos formais,
embora lembrasse com certo carinho do nome da primeira professora, Dona Irene, Kéti
115
Idem, p. 76
76
desconversa. Talvez não possuísse muitas lembranças a esse respeito, afinal estudou
apenas até o 5º ano116
. Entretanto, entre outras coisas, a flauta de flandres que ganhou da
mãe ainda aos seis anos de idade, parece ter um espaço muito maior em suas
lembranças.
Muito provavelmente essa “lacuna intelectual” na vida de Kéti possa ser
observada como reflexo de um problema já antigo da cidade do Rio de Janeiro – e mais
ainda de seus subúrbios e periferias: a evasão escolar causada pela falta de estrutura no
setor da educação e pela necessidade dos jovens de famílias pobres em adentrar, ainda
cedo, o mundo do trabalho.
Kéti, no entanto, parece não ter interesse em discutir tais questões, limitando-se
apenas a concluir: “Apesar dos esforços do meu padrasto para que eu estudasse
odontologia... eu enveredei mesmo pelo caminho musical”.
Cedo, portanto, Kéti entrou no universo do trabalho. Seu primeiro emprego
ocorrera no ano de 1935, aos catorze anos de idade, em uma loja de calçados chamada
FOX, à qual chegava de Maria Fumaça e onde ganhava dois cruzeiros e cinquenta
centavos por dia, dinheiro que dava à mãe.
De seus dezoito anos comenta pouca coisa, lembrando-se do período como
sendo o de “uma vida muito enrolada, muito atribulada”, pois, nessa época, quando
trabalhava na gráfica Mauá, decidira sair da casa em que morava com a mãe e com o
padrasto:
O meu pessoal não me mandou embora de casa, mas como tinha muita
pressão, (por)que eles queriam que eu estudasse e não queriam que eu
seguisse essa carreira musical. O meu velho, meu padrasto, dizia “ah esse
negócio de música, isso é pra vagabundo”, pela criação dele, entende? Ele
dizia “isso é pra vagabundo, quem não quer nada, jogador de futebol; o
negócio é que você tem que estudar pra ter um futuro melhor”. Dava
conselho pra mim, eu achava que o meu negócio era a música e acabei que eu
fui-me embora de casa, fugi de casa mesmo... ficava lá pelo Nice o dia todo e
muitas vezes eu pedia assim a alguém que pagasse um sanduíche pra mim e
era o clássico cafezinho o dia todo (sic).117
Dentro do Nice, o legendário Café ao qual foi levado em 1939 pelo compositor e
instrumentista Luís Soberano, Kéti conheceu Geraldo Cunha, compositor da Mangueira,
que decidiu leva-lo até a escola em questão. Lá, o quase adulto Zé Quieto observou
muita coisa que depois levou como experiência para suas composições. Foi, no entanto,
116
De acordo com a biografia de Nei Lopes, consta que Kéti teria estudado até o 1º ano do colegial. No
entanto, preferimos, aqui, levar em consideração o mencionado pelo próprio Kéti em ocasião da entrevista
supracitada. 117
Entrevista concedida ao MIS- RJ (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) em 9 de fevereiro
de 1967, como parte do projeto Vozes do Brasil encabeçado nos anos de 2008 e 2009.
77
em outra escola, com cores bem distintas da rosa e verde, que Kéti fixaria uma morada e
uma paixão eternas. Trata-se da azul e branca Portela, que já no ano de 1945 o
introduzira na “ala” – ainda não formalmente organizada dessa forma – de seus
compositores.
Figura 5 Zé Kéti, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela, 1972. 118
Portela Feliz
(1963)
Teus cavaquinhos, teus pandeiros
E as tuas cuícas
Teus tamborins, chocalhos e surdos
São uma tentação
Quem é que vem lá?
É o povo que diz
É a Portela, Portela feliz
Com a Velha Guarda, é uma tradição
Sua juventude bem vibrante a cantar
Um samba natural de Osvaldo Cruz
118 Disponível em: http://compositoresdaportela.blogspot.com.br/2012/09/portelenses-momentos.html
78
Que sem vaidade
Sempre deixa uma saudade
Portela do Paulo e do Claudionor
E de outros saudosos sambistas
Que Deus do Céu já levou
(Portela querida)
Não se humilha a ninguém
A todos que muito bem
Seu negócio é sambar
Eu falo assim porque sou
Um dos poetas de lá.
Nessa verdadeira “Ode à Portela”, Kéti procurou representar um pouco do amor
que desenvolveu pela escola de samba observada como um lugar de tradição sem, no
entanto, deixar de representar um atrativo à juventude que nela cantava de maneira
vibrante. O compositor faz menção, ainda, a personalidades imortais da escola, como
Claudionor e Paulo. No entanto, uma das passagens mais interessantes do samba em
questão é aquela que diz: “Não se humilha a ninguém/ A todos quer muito bem/ Seu
negócio é sambar/ Eu falo assim porque sou/ Um dos poetas de lá.”
Tal passagem torna-se relevante não apenas para compreender o universo
musical ao qual Kéti estaria ligado, mas, também, para compreender uma crítica sutil ao
novo rumo que o universo das composições vinha tomando desde, pelo menos, o início
dos anos 1950.
Como comentado há pouco, o Café Nice tornou-se um lugar legendário por um
grande motivo: Funcionava – assim como outros locais como o Vermelhinho, Simpatia
e o Gaúcho – como um ponto de encontro de artistas e intelectuais da cidade do Rio de
Janeiro. No entanto, por mais que tais espaços ainda reunissem um grande número de
verdadeiros compositores, tratava-se também de lugares repletos de oportunistas e
aproveitadores que, muitas vezes, fazendo-se passar por profissionais reais da música,
dissimulavam suas intenções e acabavam comprando os direitos autorais de muitas
canções que, exatamente por isso, nunca foram consideradas obras de seus verdadeiros
autores.
79
Esse espírito de “música é comércio” que, de acordo com Hollanda apud Lopes,
era “a frase que mais se ouvia no velho Café Nice”,119
começava a adentrar, cada vez
mais, o universo musical de maneira geral, chegando até mesmo ao mundo das escolas
de samba. Na verdade, esse universo das escolas de samba já estaria passando por um
outro processo que o modificava de forma cada vez mais intensa e que, claramente,
desagradava em muito o então compositor da escola, Zé Kéti: Tratava-se do processo de
Capitalização das Escolas de Samba.
Pela internet pudemos entrar em contato com um rico material, feito em 1978
pelo jornal Correio Braziliense,120
que nos ajudou a compreender a problemática em
questão e o papel de Kéti no meio desse “enredo”.
Tal material, uma conversa entre o Mestre Candeia, Paulinho da Viola e Carlos
Elias, esclarece alguns dos motivos que teriam levado parte dos tradicionais
compositores de escolas como a Portela, a serem excluídos ou sofrerem um processo de
marginalização, como foi o caso de nosso portelense apaixonado, o Kéti.
No ano em questão, qual seja, 1978, as discussões habituais que antecediam o
carnaval teriam sido precipitadas por um “fator-extra” motivado, de acordo com a
reportagem na:
escolha do samba-enredo da dupla Jair Amorim/Evaldo Gouveia para
representar a Portela. Compositores de ligação recente e discutível com o
universo das escolas de samba (Evaldo Gouveia, por exemplo, declarou não
gostar de carnaval e aproveitar os feriados para descansar em um afastado
sítio) tiveram seu samba-enredo indicado pela direção da escola, apesar dos
protestos gerais, dos mais expressivos compositores da escola. Mas a reação
não foi menos violenta: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Candeia e Monarco,
nomes dos mais conhecidos da agremiação de Oswaldo Cruz, são apenas
alguns dos que não se conformam com o fato e, a protesto, não desfilarão este
ano.
De acordo com o bate-papo gravado pelo jornal, Candeia teria comentado:
Em resumo: o que significa a posição desses compositores em relação à
Portela? Houve uma crise na escola com a escolha do samba-enredo sobre
Pixinguinha, do Jair Amorim e Evaldo Gouveia, que culminou com a
marginalização do Zé Kéti dentro da escola. Agora, o negócio está se
voltando contra mim e o Paulinho. Aos poucos, me parece que há um
processo quase sistemático de afastar as pessoas com uma certa posição de
destaque dentro do samba, e, sei lá, parece que para deixar o campo aberto,
119 HOLANDA, Nestor de. Memórias do Café Nice: subterrâneos da música popular e da vida boêmia do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1969. p. 37
120 Suplemento especial Correio Braziliense. Domingo, 22 de janeiro de 1978. Disponível em: <
http://www.portelaweb.com.br/flexivel2.php?codigo=20> Acesso em: 1 de dez. 2013.
80
uma ala de tradicionalistas, de conservadores, o rótulo que eles quiserem dar,
de “sambista autêntico”, sei lá, e poderem penetrar na escola livremente.
Então, seria este o melhor sistema. Poxa, afastaram o Zé Kéti, agora essa
campanha, essa deturpação contra nós que realmente não tem sentido.
Levando em consideração, portanto, a letra da música há pouco mencionada,
podemos imaginar o que a entrada da Portela nesse universo de Capitalização do samba
teria significado para o compositor, que, observando sua escola, não mais tão autêntica,
acaba, mais uma vez, se afastamento, retornando apenas na década de 1980.
Tal episódio, no entanto, nos é interessante para pensar a maneira como as
discussões e, de certa forma, o próprio Carnaval acabaram “descendo” do morro para
discutir questões diretamente relacionadas com os seus valores históricos e a maneira
como estes estariam sofrendo mutações negativas, as quais, na verdade, o estariam
afastando do terreiro, ou seja, do local que representava, tradicionalmente sua
concepção.
Toda a representatividade primeira dessa “festa” popular – sobretudo, negra –
iniciava, através desses primeiros anos de Capitalização, a homogeneização do carnaval
que atingiria hoje os seus níveis mais altos, quando as relações sociais e simbólicas
anteriormente relacionadas à sua construção e preparação são diminuídas – senão
apagadas – frente às necessidades relacionadas ao turismo e ao interesse de mercado
que o “evento” gera de maneira cada vez mais avassaladora.
Cabe aqui ressaltar que não se tratava de uma discussão entre o “samba antigo” e
o “samba moderno”, mas, sim, dos caminhos que esse samba estaria tomando. Talvez
Kéti soubesse da ideia que Muniz Sodré121
apontaria: “O samba, como o mito negro,
nos conta sempre uma história. E a exemplo do mito, o modo como se conta tem
primazia, rege os conteúdos narrado”.
Assim, o exemplo da problemática envolvendo o Carnaval, que ainda naquele
momento se ligava, de forma intensa, ao morro e seus frequentadores, demonstra como
a favela pode ser vista de um jeito muito mais vivo do que se tende a representar,
entrando em discussões com o “universo do asfalto”, demonstrando suas posições e
sentimentos frente ao mundo que pretendeu, desde sempre, afastá-la de significados
próprios.
Seguindo por essa via de observação, voltemos a Kéti e ao universo do Café
Nice.
121
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 61
81
De acordo com suas próprias palavras em 1946, Kéti gravaria sua primeira
composição. Tratava-se de “Juro que sou feliz com meu amor”, fruto de uma parceria
com Felisberto Martins, depois gravada com Ciro Monteiro. No entanto, de acordo com
sua biografia, assinada por Nei Lopes, já em 1945 o então jovem rapaz faria parte do
grupo de compositores da Portela. Como indica o autor:
Nesses primeiros anos, Zé Kéti chegou a conseguir alguns sucessos no
terreiro, compondo e interpretando sambas que agradavam aos portelenses e
visitantes. Era um tempo em que, nos ensaios, o frequentador chegava,
ocupava uma mesa, pedia uma cerveja, um traçado, um pratinho com tira-
gostos (em geral salaminho, tremoços ou azeitonas) e solicitava ao
compositor que estava no palanque o samba (“aquele pagode”) de sua
especial predileção. Mas é com Leviana que ele, embora compositor já
gravado, consegue transpor os limites do terreiro da escola e emplacar, na
voz de Jamelão, seu primeiro grande sucesso comercial.122
Em relação aos comentários feitos por Nei Lopes, algumas questões merecem
importante atenção. Em primeiro lugar, Leviana foi, realmente, uma composição de alto
alcance comercial, agradando, certamente, um grande número de pessoas. Em entrevista
concedida ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, e ao “De lá pra cá”, da TV Brasil,
o jornalista, compositor, escritor e grande pesquisador de samba, Sérgio Cabral revelou:
Quando eu era adolescente, uma coisa que era "banca" mesmo, "banca” de
você chegar na esquina com os amigos e "botar banca", era chegar com um
samba da Portela que ninguém conhecia. Eu me lembro quando eu cheguei
na esquina cantando Leviana, do Zé Kéti, em 1952, mais ou menos.
No entanto, junto de tamanho sucesso – vale lembrar que a música em questão
também fez parte do filme de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 graus – veio também a
primeira grande decepção de Kéti junto da Escola de Samba em questão, além de uma
problemática que o perseguiria durante boa parte da vida: a acusação de plágio.
Depois do desagradável e, com certeza, dramático acontecimento envolvendo
um de seus maiores sucessos, Leviana, Kéti rompe – temporariamente – com a Portela,
refugiando-se na pequena União de Vaz Lobo. Nessa escola de samba, localizada entre
Madureira, Irajá e Vicente Carvalho, Zé lançou aquela que seria a mais famosa de suas
composições: A voz do morro. Gravada, a princípio pelo conjunto Vocalistas Tropicais,
o samba foi incluído no filme supracitado, Rio, 40 graus, vindo, ainda, a ser utilizado
como prefixo de um programa de televisão do período denominado Noite de Gala.
O interessante, no entanto, é notar o entorno político e cultural com o qual A voz
do morro irá contar.
122
LOPES, op. cit. p 33-4.
82
O samba é gravado no ano de 1955 e, em uma rápida pesquisa em relação aos
outros títulos lançados no período, chegamos a Assim é o Morro, de 1956, O Samba não
morreu, de 1957, e Malvadeza Durão, de 1959.
A Voz do morro
(1955)
Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor!
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro
Eu sou o samba
Sou natural daqui do Rio de Janeiro
Sou eu quem levo a alegria
Para milhões de corações brasileiros
Salve o samba, queremos samba
Quem está pedindo é a voz do povo de um país
Salve o samba, queremos samba
Essa melodia de um Brasil feliz
Assim é o Morro
(1956)
No morro é assim,
A tristeza lá não mora
A viola muitas vezes é quem chora
Quando cantamos, alegremente.
O morro é assim,
É tudo diferente
Amanhece a batucar
Anoitece a cantar um samba comovente,
que mexe com a gente
E lá se vê
Nossa cidade iluminada
83
Aqui embaixo ouvimos muita batucada
De onde nasce o samba, onde mora o samba é lá,
Lá tem estrelas, lá tem luar, vamos pro morro, vamos sambar!
Em A voz do morro, gravada pela Continental e, como já relatado anteriormente,
com interpretação original da banda Vocalistas Tropicais, Kéti lança sua primeira
composição diretamente ligada ao processo de afirmação do morro, e de seus
moradores, como os legítimos interlocutores do samba – ritmo já considerado de caráter
nacional, representativo da cultura brasileira dentro e fora do país – com todas as classes
sociais do Brasil.
Kéti aparece como o porta-voz desse espaço, (“a voz do morro sou eu mesmo,
sim, senhor!”) que, embora tratado com a falta de cuidados e atenções das autoridades –
fossem elas de quaisquer naturezas: médica, legal, urbanística etc. – e excluído de
melhorias e modernizações urbanísticas pensadas para a cidade do Rio, e muitas vezes,
ao mínimo necessário para a sobrevivência digna de seus moradores, era também, e,
sobretudo, um espaço importante (“sou eu quem levo a alegria para milhões de corações
brasileiros”) e que desejava ser reconhecido como tal (“Quero mostrar ao mundo que
tenho valor”).
Quando Kéti escreve a música em primeira pessoa, coloca o povo do morro e, de
certa forma, o próprio morro, oculto no Eu de sua canção: Sou eu, o morador do morro,
o excluído, quem leva a alegria dessa melodia, do samba, internacionalmente apreciada,
para milhões de corações brasileiros. E eu, o morador do morro, quero, dentro das
minhas possibilidades, do meu universo e dos meus costumes, mostrar ao mundo que
existo e que tenho valor. Eu, o próprio morro, quero demonstrar como, através do meu
“povo”, tenho valor.
Trata-se de uma canção que possui importância dupla, relevante tanto do ponto
de vista social quanto nacional: Além de representar um “hino” de orgulho não só
daquele que mora na favela, acaba tocando num assunto que ainda naquele momento era
visto com muitas ressalvas, trata-se da palavra “terreiro” que, para além de representar
apenas uma localização geográfica, possui uma importância e relevância chaves para as
religiões afrodescendentes, principalmente para o Candomblé.
O terreiro, de acordo com Muniz Sodré, é:
84
o lugar de reterritorialização de uma cultura fragmentada, de uma cultura de
exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai tentar refazer a sua família, e o
seu clã, que tal como na África, são formados independentemente de laços
sanguíneos. No espaço do terreiro, o indivíduo buscará o sentido de
pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente, vai reencontrar a sua
nação.123
Ainda, de acordo com Marco Antônio Chagas Guimarães:
(...) Foram e ainda são quilombos as comunidades de terreiro que ao longo da
história do negro no Brasil mostraram ter sido o lócus de engendramento por
suas características especiais de útero mítico, que possibilitou a reaglutinação
dos elementos fundamentais para a manutenção do negro enquanto grupo e
cultura.124
Dessa forma, quando Kéti cita o termo “terreiro” inclui no seu “Eu sou” o
morro, seus moradores e, de certa forma, uma cultura própria dali.
Outro detalhe interessante em relação ao samba em questão é que, no seu
período de lançamento, se lançava também o filme Rock around the clock com a música
tema de mesmo nome. Mesmo com toda a política de internacionalização do consumo
do brasileiro A voz do morro aparece, em 1956, em 3º lugar, enquanto Rock around the
clock, em 4º.125
De maneira bastante parecida com a que trabalhou no samba supracitado, em
Assim é o morro, gravada pela Mocambo e tendo como intérprete original Hélio
Chaves, Kéti cantará novamente um morro alegre e feliz que agora é reconhecido tanto
por seus moradores quanto pelos “habitantes” do asfalto.
Na canção, que parece desejar desenhar, tal como numa tela em branco, a
imagem do que seria a favela, observamos um local onde a tristeza não tem espaço, uma
vez que com o batucar e o cantar de sua gente o samba, que ali nasceu e ali reside, não
fornece espaço para que nenhum tipo de sentimento ou pensamento ruim possa chegar
até lá.
A partir de uma imagem bastante romantizada do que seria o morro, um local
que, mesmo tendo vistas para a “cidade iluminada”, é na verdade iluminado pelas
próprias estrelas e pelo luar, parece chamar a gente da cidade que diz “vamos pro
morro/ vamos sambar”.
123
SODRÉ, op. cit. p. 50 124
GUIMARAES, Marcos Antônio. É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo
de construção de identidade em comunidade de Terreiro. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade
Católica, Rio de Janeiro, 1990, p. 24 125
Informação disponível em <www.avitrinedoradio.com.br/de-1950-a-1959.html?start=6> Acesso em 27
de jul. 2011.
85
Quatrocentos anos de favela, gravado pela RGE e tendo como intérpretes
originais o grupo Os sambistas, busca uma proximidade bastante clara com o ano em
que o Brasil teria sido descoberto (1500), ou ainda, com o ano em que o processo de
colonização teria iniciado de forma efetiva (1530).
A letra indica, por meio de um caso de amor não correspondido, a dualidade
existente, mais do que isso, vivenciada, no quesito cidade/ favela. “A moça que arranjou
um moço da cidade”, hoje “tem vida melhor” e aquele que continua na favela, “sem
água, com mágoa”, continua, agora mais desiludido, “levando a pior”.
No entanto, o título da canção faz uma crítica, talvez singela, da situação da
favela. Quando Kéti fala de uma favela que existe há 400 anos, na verdade, rememora o
período em que o Brasil havia sido descoberto. Dessa forma, ele coloca a favela como
um espaço natural da formação do Brasil o que, por si só, já pode ser observado como
uma crítica ao “não espaço” reservado a ela naquele momento. De acordo com a canção,
entramos em contato, portanto, com uma imagem de favela cheia de sentimentos, que
ama e que sofre; que é abandonada, mas que continua a existir.
Quatrocentos anos de favela
(1966)
Quatrocentos anos de favela
Sem água, com mágoa
Quatrocentos anos de favela
Sonhando com ela
Arranjou um moço da cidade
Hoje ela tem vida melhor
Quatrocentos anos de favela
E eu só levando a pior
Ai, favela! Ai, favela!
Barracão de zinco perfurado,
quando chove durmo no molhado
De sofrer eu já estou cansado
Vivo tão sozinho, abandonado
O meu barracão é tão triste
É só saudade
Saudade, saudade
86
Quatrocentos anos de favela
Sem água, com mágoa
Quatrocentos anos de favela
Sonhando com ela
Arranjou um moço da cidade
Hoje ela tem vida melhor
Quatrocentos anos de favela
E eu só levando a pior
Em Onde o Rio é mais carioca, feita em parceria com Elton Medeiros, gravada
pela Odeon, tendo como intérprete Dalva de Oliveira, percebe-se que o sujeito que fala
fala, por um lado, do Rio de Janeiro já, há tempos, convertido em cartão postal
brasileiro (Botafogo, Pão de Açúcar, Carnaval, Corcovado, Ipanema); mas por outro, de
um Rio de Janeiro que, embora não resplandecente no tocante à popularidade, possuía
sua beleza sem igual e suas particularidades que poderiam fazer dessa parte do Rio a
parte do verdadeiro Rio. Nesse momento, temos um Zé apaixonado pelo morro e, dentre
os morros, pelo da Mangueira; temos um Zé fã de Paquetá, Cinelândia e da Barra, e por
fim, do Aterro, terra abençoada. Podemos notar nessa canção, não uma crítica direta a
algum problema político ou social, tampouco, encontrar nessas palavras inclinações
para um ponto ou outro da cidade; o que se nota é a paixão de um carioca por sua
cidade, mas, mais do que isso, a paixão de um original do morro pelo morro, pelos
locais que possuíam sua gente, seu sangue, sua dança, seu samba, sua Escola de Samba.
Anos mais tarde, Caetano Veloso, utilizaria como título de sua canção Onde o
Rio é mais baiano.
Onde o Rio é mais carioca
(1970)
Na praia de Botafogo
Os turistas vão ao Pão de Açúcar
Numa passarela sem igual fotografando
E esperando a maior festa do Brasil
Que é o Carnaval
87
Meu samba vai correndo, vai dizer
Onde o Rio é mais carioca
E tudo de belo que ele tem
Vai dizer que a Vista Chinesa
É um relicário de beleza
Que a natureza nos presenteou
Diz que o Corcovado é um esplendor
Que São Conrado tem um mar
E Ipanema tem ciúme do Joá
Mas onde o Rio é mais carioca é
Lá no morro de Mangueira
Onde o soçaite samba pra se acabar
É na Estação Primeira
O Rio é sempre o Rio com luar em Paquetá
Ninguém pode duvidar
O Rio é mais carioca lá na Lapa
Na Cinelândia e na Barra da Tijuca
O Rio tem Copacabana, Ilha do Governador
Santa Tereza é um céu de amor
E o Aterro Deus abençoou
Mas onde o Rio é mais carioca é...
2.3 A desconstrução dos sujeitos-objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show
Opinião
Seria errado negar, mais ainda, seria quase impossível omitir a “cara” e o
“espírito” das artes no Brasil dos anos 1940. De certo, se entrevistássemos uma pessoa
com mais de setenta anos, questionando-a acerca do que marcara a sua infância, seria
quase impossível não escutar relatos de memórias ligados à Rádio Nacional e suas
“rainhas”, como Ângela Maria, Marlene e Emilinha Borba, ou mesmo, comentários
acerca das produções cinematográficas que apresentavam personagens, hoje quase
mitológicos, como Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves e Mazzaropi.
88
Isso por que os anos de 1940, de acordo com o que explica o historiador Marcos
Napolitano,126
foram marcados pela massificação dos meios de comunicação,
principalmente do rádio e do cinema e pelo início de uma ainda tímida indústria cultural
brasileira. No entanto, em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial e a emersão do
Partido Comunista Brasileiro junto à intelectualidade do país, a “cara” da cultura
nacional tenderia a profundas mudanças, principalmente no pós 1953, quando o PCB
saiu da ilegalidade – à qual tinha sido sentenciada em 1947 por Eurico Gaspar Dutra – e
ligou-se ao Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas, encontrando, finalmente,
espaço, força e apoio para que suas influências políticas vinculadas, de maneira
marcante, a preceitos estéticos e culturais bem delimitados, tivessem força para aparecer
de maneira bastante evidente em nossos meios de expressão artística, dentre eles, os que
mais nos interessam: o cinema, o teatro e a música.
Dessa forma, muito do que aparece regendo as noções estéticas de arte mais
marcantes entre os anos de 1950 e 1960 esteve intimamente ligado aos preceitos
pensados por tal partido e que se baseavam, de maneira geral, no “realismo socialista”
do Partido Comunista da União Soviética e o “neorrealismo italiano”.127
De acordo com Napolitano, as intenções contidas na arte proposta pelo
“realismo socialista” seriam:
1. A arte deveria ser feita a partir de uma linguagem simples e direta, quase naturalista.
2. O conteúdo da arte deveria ser portador de alguma mensagem modelar para a luta
popular.
3. Heróis e protagonistas “do bem” deveriam ser figuras simples, positivas e otimistas
dispostas à luta e ao sacrifício em nome do coletivo.
4. Valores nacionais, populares e folclóricos deveriam ser fundidos com os ideais
humanistas e cosmopolitas.
Já de acordo com Mariarosaria Fabris, os prenúncios da arte e, principalmente,
do cinema “neorrealista italiano” teriam possibilitado: “a descoberta da paisagem e o
gosto pelos ambientes naturais; o emprego dos dialetos; o valor de documentário
126
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto,
2006, p. 13.
89
contido nos filmes; a utilização de atores não profissionais; o gosto pela crônica do dia a
dia e pelos sentimentos dos humildes.”128
Tendo em vista essas informações, estabeleceremos a seguir uma análise dos
anos em que Kéti teve o seu grande “desabrochar” artístico, observando que este
desabrochar estava contido em um determinado momento político-cultural do Brasil que
nos ajudará a perceber como o compositor – que agora se transforma um pouco em ator,
um pouco em cinegrafista – produzirá, por meio de suas escolhas, uma imagem de
homem, negro e favelado para além do que até então dizia o senso comum.
2.3.1 A cidade, o cinema e Kéti
Até meados dos anos de 1950, o cinema brasileiro, como visto anteriormente,
estava inserido numa lógica ligada, cada vez mais, à insipiente produção voltada para as
massas que, por meio de roteiros simples e divertidos, como os comumente encontrados
nas chanchadas, tinham como principal função o entretenimento da plateia. Nesse
sentido, o espaço da cidade bem como os conflitos nela existentes não eram retratados
ou problematizados. De acordo com o historiador Carlos Eduardo Pinto de Pinto, tanto
nas produções hollywoodianas quanto nas chamadas chanchadas, a cidade era filmada
como um território livre, onde criminosos saíam sempre impunes, o trabalho não existia
e o lazer, marcado por altas doses de sensualidade, nunca seria interrompido.129
No entanto, após a estreia do filme Rio, 40 graus do então jovem diretor Nelson
Pereira dos Santos – que havia trocado sua promissora carreira no Partido Comunista
Brasileiro pela de cineasta – no ano de 1956, muitas transformações ocorreriam no que
diz respeito ao cinema e ao papel que a cidade passa a “representar” dentro de seus
enredos. Podemos afirmar, inclusive, que as produções que tomaram forma após esse
momento, inauguraram uma nova vertente de representações imagéticas sobre a cidade,
seus personagens e conflitos, tratava-se do embrião que logo mostraria sua maior
criação por meio do chamado “Cinema Novo”, apelidado por Glauber Rocha – um de
128
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neorrealista? São Paulo: EDUSP, 1996, p.
66. 129
PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Uma grande cidade a 40 graus: o Cinema Novo e a representação
crítica da modernidade urbana carioca (1955-1965). XVI encontro regional da ANPUH-RIO. Rio de
Janeiro, 2010. p. 2
90
seus maiores expoentes – como um dos frutos do “realismo carioca” numa clara alusão
ao “realismo socialista” ou, ainda, ao “neorrealismo italiano”130
supracitado.
Dentro das práticas levadas a cabo por esse grupo crítico em relação às
premissas ideológicas e estéticas até então existentes no cinema brasileiro, alguns
aspectos mostravam-se presentes em todas as produções, como, por exemplo, a intenção
de retratar a realidade brasileira desenvolvendo artifícios de linguagem considerados
adequados às nossas condições de produção e construção de imagens.131
Em Rio, 40 graus, portanto, precursor desse novo momento, podemos observar,
dentre as suas novas propostas, uma visão de realidade brasileira onde a cidade
ultrapassa os limites de “cenário”, apresentando-se como protagonista da história,
característica que, na verdade, não será observada apenas na obra em questão mas na
grande maioria dos filmes cinemanovistas. Nesse sentido, a cidade do Rio de Janeiro
passa a abrigar o atributo de “microcosmos” da totalidade da nação brasileira. Nelson
Pereira dos Santos procurou, portanto, retratar, através da cidade do Rio de Janeiro não
apenas as bonanças possibilitadas pelos recentes impulsos de modernidade pelo qual
passava o Brasil, mas propor críticas diretas a esta modernidade, questionando até que
ponto ela estava sendo efetivamente benéfica para a maioria da população.
Para continuar as explanações desejadas, gostaríamos de pensar nas cenas de
abertura do filme, de acordo com Pinto:
A abertura de Rio, 40 graus está estruturada da seguinte maneira: o texto
Nelson Pereira dos Santos apresenta... A cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro em... Rio, 40 graus é sobreposto a um plano aéreo da cidade, com
imagens do Pão de Açúcar, de Copacabana e do Arpoador, seguido de uma
fusão com outro plano aéreo de quarteirões densamente povoados por
edifícios altos, provavelmente Copacabana. Em seguida, outro plano aéreo,
dessa vez do Centro, sendo possível reconhecer a Central do Brasil,
retornando-se em seguida para o Pão de Açúcar mostrado em outro ângulo,
seguido de fusão com o Maracanã e, finalmente, outro plano aéreo de um
quarteirão densamente povoado. Aparece o texto Agradecemos... População
do Rio de Janeiro. No som extradiegético, durante todo o plano, ouve-se A
voz do morro, de autoria de Zé Kéti, então um artista estreante. 132
130
De acordo com Fabri, Rio, 40 graus seria o único filme que poderia ser considerado, dentro da história
da dramaturgia brasileira, como sendo um neobrasileiro próximo dos moldes do neorrealismo italiano de
Vittório de Sica Cesari Zavattini. 131
MALAFAIA, Wolney Vianna. Imagens do Brasil: O Cinema Novo e as metamorfoses da identidade
nacional. Tese (Doutorado) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2012, p. 32 132
PINTO, op. cit. p. 4.
91
Figura 6 Na abertura de Rio, 40 graus, a cidade do Rio de Janeiro aparece como a “artista”
principal.
De acordo com Pinto e com nossas observações, analisando, portanto, a abertura
do filme Rio, 40 graus, que possui aproximadamente três minutos, entramos em contato
com uma série de pequenas informações já passadas por Nelson Pereira dos Santos que
fariam com que, ao final do filme, pudesse ser percebida a já comentada inauguração de
uma nova representação imagética dada à cidade – e à não cidade, favela – e de seus
habitantes constituídos por: meninos favelados vendedores de amendoim; membros de
uma classe média arrogante; políticos corruptos e endinheirados; migrantes nordestinos;
jogadores de futebol; sambistas; empregadas domésticas; e turistas – todos, personagens
que se entrecruzam dentro da protagonista maior, a cidade do Rio de Janeiro. Aliás,
cabe aqui uma pequena ressalva: Se uma das propostas existentes dentro do Cinema
Novo era a produção de filmes independentes e com baixos custos, essa intenção foi
impulsionada pelas dificuldades que Nelson Pereira dos Santos enfrentou pois, de
acordo com Napolitano, os produtores recusavam o roteiro de Rio, 40 Graus pois não
queriam “produzir um filme com personagens negros em sua maioria”.133
De fato, os
problemas que a produção enfrentou com a censura confirmaram essa visão. Como
conta o próprio Kéti: “O chefe de polícia apreendeu a fita pois disse que ela era
subversiva pois mostrava as mazelas do Rio de Janeiro, a favela, que aquilo era uma
mentira, e que no Rio nunca fez quarenta graus.”
Não faz parte da alçada deste trabalho confirmar se, como disse o chefe de
polícia, no Rio de Janeiro já houvera dias em que o termômetro marcara quarenta graus.
No entanto, a atitude da censura e os motivos pelos quais ela teria agido em relação ao
filme demonstram como a intenção de Pereira dos Santos, no que tange à busca da
representação da realidade da cidade do Rio de Janeiro, por meio de uma nova
133
NAPOLITANO, M. Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música popular como
representação de um impasse cultural. Per Musi, Belo Horizonte, n.29, 2014, p. 75-85, 2014, p. 77
92
construção imagética desta, incomodou aqueles que procuravam neutralizar os conflitos
ali existentes há pelo menos mais de um século.
Ironides Rodrigues134
escreveria ainda no ano de 1955:
Nunca o cinema brasileiro atingiu tão grande força de imagens como em Rio,
40 graus, do jovem realizador Nelson Pereira dos Santos. É a primeira vez
que a multidão das ruas, num filme nosso, participa ativamente da ação, onde
se encontram personagens da vida diária carioca. Todo o pivot desta
grandiosa obra do cinema moderno é toda a população (?) do Rio, que vive
esquecida da lei, dos políticos e outros governos pelos morros miseráveis da
cidade tentacular. Nunca num filme sul-americano vi os artistas tão bem
dirigidos por um diretor a ponto de nem darem a impressão de que estão
representando [...] que música gostosamente brasileira [...] nunca o elemento
negro foi posto com tanta simpatia humana entre nós. Vejam a cadência, o
soturno gemido do atabaque e da cuíca. [...] Problema social dos mais graves
da cidade são retratados no filme sem a resignação habitual de nossos outros
filmes conformistas
Essa busca por representar o Rio de Janeiro a partir de outros personagens e
problemas, no entanto, trouxera à tona toda uma questão iniciada pela Censura.
Em documento encontrado no site “Memória da Censura no cinema brasileiro:
1964-1988” em matéria sem fonte podemos observar a questão:
Rio, 40 graus é o título de um filme brasileiro recentemente rodado, mas com
sua exibição proibida pelo iancofilismo do coronel Geraldo de Menezes
Cortês. A película retrata com fidelidade o problema da delinquência de
menores e fixa aspectos de idêntico problema dos Estados Unidos. Por isso,
sobretudo por se tratar desse país, julgou-se o chefe de Polícia ser o filme
censurável para todas as idades. E procedeu assim mesmo, sem vê-lo. Apenas
por ouvir dizer. [...] Talvez que, se a carapuça se ajustasse bem a outra
cabeça, que não fosse a de Tio Sam, nenhuma objeção seria feita.135
No entanto, de acordo com o mesmo documento, as preocupações de cunho
ianque demonstradas por Cortês não fariam sentido, sendo vistas como ridículas pelo
próprio diretor do Bureau Federal de Investigação dos Estados Unidos, o Sr. J. Edgar
Hoover, que afirmaria que o próprio governo norte-americano impingiria, por meio de
“condenáveis filmes”, “não só os desvios morais do povo ianque”, mas trariam,
também, inspiração para o crime, para o vício e para a perversão.
A partir desse documento, portanto, podemos observar os motivos dúbios que
teriam levado à censura do filme. Embora não possamos afirmar quem o teria escrito,
fica evidente o “medo” que o filme poderia causar em determinadas camadas sociais se
visto como panfletário comunista que criticava os resultados do capitalismo no Brasil.
134
JORNAL A MARCHA. Edição de 7 de outubro de 1955. Disponível no site da Memória da censura
no cinema brasileiro (1964-1988) <www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0180108I002.pdf> Acesso
em: 5 fev. 2014. 135
Sem fonte e sem data. Disponível em <www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0180108I001.pdf>
Acesso em: 5 fev. 2014.
93
Ou seja, o problema em relação ao filme não estaria tanto na imagem feita do
Rio/Brasil, como locais onde o crime e a prostituição teriam um grande espaço, afinal,
os próprios filmes norte-americanos explorariam essas questões – mas estariam,
sobretudo, numa possível propaganda contra o capitalismo, o que, naquele momento,
poderia ser visto como um enfretamento direto aos Estados Unidos, país que, desde pelo
menos o final da Segunda Guerra Mundial, financiava o desenvolvimento do Brasil.136
Mas, voltando à questão das representações existentes no filme: A presença de A voz do morro na abertura, ainda que em versão instrumental,
cria mais uma camada de significado. A letra, presente em diversos
momentos da narrativa, e com grande destaque no final, nos lembra que o
samba, onipresente na cidade – assim como os vendedores de amendoim –
era a “voz do morro”, representação por excelência da exclusão social urbana
já na década de 1950.137
Zé Kéti, que aparece nos créditos também como José Flores de Jesus – 2º
assistente de câmera – teve uma importância grande no que diz respeito à trilha sonora
do filme, assinada também pelo maestro e arranjador da Rádio Nacional, Radamés
Gnattali, que, por meio de composições e orquestração com arranjos que se
aproximavam, em muito, das canções populares vinculadas pelas rádios, manteve a
intenção proposta pelo filme de Nelson, que seria a de atrair os olhares atentos de todas
as camadas da população.
A voz do morro é elucidada em vários momentos, muito embora com
andamentos e estruturas diferenciadas, de acordo com o significado que se pretendia
transmitir a cada cena de suas notas iniciais (Mi, Fá, Sol), não será a única das
composições de Kéti que ajudará a dar significado para a construção imagética dos
ambientes e personagens.
136
Ainda na cerimônia de posse de Getúlio Vargas em 1951, quando de seu governo constitucional, o
presidente se reuniu com o emissário do governo estadunidense, Nelson Rockefeller, delineando o que se
nomeou Comissão Mista Brasil – Estados Unidos (CMBEU). A aproximação entre os dois países
processava-se desde a incorporação do Brasil no bloco aliado na Segunda Guerra, desdobrando-se nas
Missões Cooke, em 1943, e Abbink, em 1948. Tais comissões diplomáticas visavam a elaborar programas
e medidas de investimentos coordenados. Contudo, na América Latina, diferente da Europa, a intervenção
estatal se dava sem os propósitos de criar o Estado de bem-estar social nem romper a lógica da
superexploração da força de trabalho era uma medida tomada, em grande parte, para conter o comunismo.
Para mais informações acerca dos acordos econômicos entre Brasil e Estados Unidos ler: MELO,
Anderson Fábio. Roberto Campos e a lógica da subordinação aos Estados Unidos. Anais do XXI
Encontro Estadual de História –ANPUH-SP. Campinas, set. 2012. 137
PINTO, op. cit., p. 5.
94
Marcelo Segreto,138
graduando em música pela ECA/USP possui um
interessante texto que faz referência a esta questão. Aqui, no entanto, utilizaremos
apenas dois de seus exemplos para elucidar a importância dessa canção. Diz Segreto
que: “Apesar de constituir outra melodia, observamos claramente a repetição das notas
iniciais do samba de Zé Kéti: notas Mi, Fá e Sol. E esta melodia torna-se, então, um
motivo relacionado à personagem da mãe doente (pois aparecerá novamente mais
adiante).”139
E mais adiante:
Na sequência do menino no zoológico, quando passeia encantado pelos
animais, ouvimos uma música orquestral (cordas, harpa e flauta) de caráter
fortemente lírico. Mas também notamos a presença do tema de A voz do
morro, sutilmente inserido nas notas iniciais da frase. A rítmica é outra, mas
as alturas se mantêm. Os planos finais desta sequência são muito
interessantes e a música contribui com o efeito das imagens. Os planos, em
campo/contracampo, vão mostrando os animais do zoológico e o olhar da
criança. E os dois últimos bichos apresentados são animais “perigosos”:
primeiramente o jacaré e depois a serpente (é na beirada do tanque das cobras
que o menino vem apoiar sua lata de amendoins). Em seguida, temos um
plano em que a mão do guarda vem surgindo como uma serpente a dar o bote
no garoto. Quando o funcionário o agarra, temos um corte seco na música. E
este silêncio repentino fortalece o susto do garoto que acorda de seu sonho.
De qualquer modo, na melodia lírica de seu passeio pelo zoológico, temos
novamente a presença das alturas iniciais da melodia de Zé Kéti (Mi-Fá-Sol).
Além disso, temos uma estrutura de frase que se aproxima da construção
musical de A voz do morro. Pois observamos, entre a primeira e a segunda
frase, uma repetição melódica a partir de um intervalo de 2ªM abaixo (em A
voz do morro também encontramos este tipo de construção e de relação
intervalar entre as frases):
Seguindo os passos de Rio, 40 graus, Rio, Zona Norte, igualmente dirigido por
Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1957.
De acordo com Marcos Napolitano:
138
SEGRETO, Marcelo. A música de Rio, 40 graus. Revista Laika-USP. São Paulo, v.1, n1, julho de
2012. 139
Ibidem.
95
A polêmica e a boa recepção crítica de Rio, 40 Graus impulsionou o segundo
filme sobre a idealizada “trilogia carioca” de Nelson, estimulado pela
amizade com Zé Kéti e já encantado com o universo dos morros e do samba
carioca. A inspiração na vida deste compositor carioca, um ícone para a
esquerda dos anos 1950 e 1960, foi assumida como inspiração para o
argumento de Rio, Zona Norte.140
O próprio diretor, em entrevista concedida em 2011 para o programa De lá pra
cá – especial Zé Kéti, teria afirmado:
O filme Rio, Zona Norte é uma homenagem ao Zé Kéti. Tem o personagem
do sambista, interpretado pelo Grande Otelo, que seria o Zé Kéti... por que o
Zé Kéti me contava as coisas todas daquele tempo: como o sambista era
lesado, roubado, os direitos eram desviados, os parceiros eram de mentira.
Figura 7 Kéti (esquerda) nas filmagens de Rio, 40 graus.141
Dessa forma, o filme Rio, Zona Norte possuía como principais funções assim
como o seu antecessor a crítica de uma modernidade sem equidistâncias estabelecidas
para os moradores do asfalto e da favela visando a desnaturalizar as relações raciais e
sociais do Brasil.
140
PINTO, op. cit. p. 7 141
Disponível em: http://compositoresdaportela.blogspot.com.br/2014_04_01_archive.html
96
Trata-se de uma história baseada em encontros e desencontros existente na vida
de indivíduos inseridos em uma cidade-sociedade específica que é da cidade do Rio de
Janeiro.
No entanto, de acordo com Napolitano, o filme não teria empolgado pois: [...] no lugar de dar continuidade ao olhar neorrealista trazido por Rio, 40
Graus, o diretor parecia voltar ao melodrama. Somente nos anos 1970, as
qualidades estéticas e a importância histórica do filme foi recuperada (sic)
por David Neves (NEVES, 1978). Mariarosaria Fabbris destaca ainda que a
crítica de época não compreendeu que em Rio, Zona Norte “o que deve ser
analisado é menos o neorrealismo como ponto de referência, do que a
retomada do diálogo com o cinema nacional, (na trilha aberta por Agulha no
Palheiro) e a discussão sobre cultura popular (FABBRIS, 2003, p. 81). É
nesta tradição que a música ganha um papel essencial como narrativa e como
representação.142
E, nesse sentido, Kéti tem sua contribuição e importância renovadas uma vez
que o filme pretendia discutir, por meio da história de Kéti e, de fato, de sua própria
música – Malvadeza Durão, Foi ela, Mexi com ela, Samba de ouro, Mágoa de sambista
e O samba não morreu, que escreve em parceria com Urgel de Castro – os efeitos que a
tal “modernidade” trazia para o povo e para a cultura brasileira.
Ao final do filme, o personagem de Grande Otelo, Espírito, morre por conta do
acidente de trem que sofrera ainda no início do filme. Na verdade o filme seria um
grande flashback que mostraria a vida de Espírito até o momento do acidente e de sua
morte. Em todo o decorrer do filme questões de cunho racista são colocados em pauta,
desmistificando, em muito, algumas teorias, como a trabalhada por Gilberto Freire em
Casa Grande e Senzala e depois utilizada por muitos estudiosos da cultural brasileira: a
teoria da mestiçagem brasileira sem a problematização dos conflitos existentes dentro
da própria sociedade.
A socióloga Ana Lígia Muniz Rodrigues143
indica, por exemplo, que a morte de
Espírito não representaria apenas mais uma fatalidade, mas, sobretudo, a morte de um
sujeito que tem negada a dignidade de ser reconhecido por seu talento e por não seguir
os padrões eurocêntricos de aceitação que a sociedade carioca do período possuía. Não
morreria ali, portanto, simplesmente o personagem, mas, sim, todos aqueles que estão
contidos naquilo que o personagem significa ou ressignifica: o pobre, o negro, o
morador da favela que mesmo repleto de talento é marginalizado por uma sociedade que
o explora ao mesmo tempo que o nega.
142
NAPOLITANO, op. cit. p. 78 143
RODRIGUES, Ana Ligia Muniz. Os tons da nação: uma análise sociológica do filme Rio, Zona Norte.
Universidade Federal da Paraíba, 2009-2010, p. 19
97
Mais uma vez participando das filmagens como assistente de fotografia, no
filme, Kéti também é Alaor Costa, um cantor iniciante.
No ano seguinte, Roberto Santos lança O grande momento que também contará
com composições de Kéti, como a música Flor do Lodo.
Kéti ainda assinaria canções para outros filmes como O Boca de Ouro (1962), de
Nelson Pereira, no qual atua como ator coadjuvante. A Falecida (1965), de Leon
Hirszamn, e A Grande cidade (1966), de Cacá Diegues.
2.3.2 A cidade, o teatro e Kéti
O teatro seja autodenominado, político, engajado, revolucionário ou até
apolítico, é sempre político, independentemente da consciência que seus
autores e protagonistas tenham disso. O mundo da política é habitado por
todos nós, queiramos ou não, quanto mais não seja porque toda e qualquer
relação social implica, inescapavelmente, relações de poder, tenham essas o
sentido de dominação ou não.144
Como teria afirmado o professor Adalberto Paranhos, o teatro, mesmo que de
maneira despretensiosa e até inconsciente, teria, como uma de suas características
primordiais, a prática da política. Tal fato poderia ser explicado pelo viés aristotélico
que observa o homem como sendo naturalmente político e dotado de logos, ou seja,
dotado da capacidade racional de desenvolver discursos e raciocinar entre certo e errado
antes de agir.145
Todos nós, portanto, viveríamos cotidianamente imersos na política e
suas questões, o que, de fato, nos transformaria em animais distintos dos outros
existentes na natureza. Dessa forma, e mais uma vez, partindo das ideias das “novas
histórias” possibilitadas quando da quebra dos paradigmas tradicionais do mundo da
História já explorados neste trabalho, lançaremos um olhar para uma outra forma de
expressão artística e política que, assim como o cinema, foi importante não apenas por
ter marcado a História do Brasil contemporâneo, mas, também, por fazer parte dos
passos dados por Zé Kéti em sua trajetória de vida: o teatro.
Se fizermos uma rápida retrospectiva da história do teatro brasileiro,
perceberemos que, ao menos até o final dos anos de 1920, tal área não seria muito
trabalhada. De acordo com o crítico de teatro Gustavo Dória:
É que somente o povo, em suas camadas abaixo da média, frequentava as
nossas salas de espetáculo, que se resumia no teatro de revista, localizado a
144
ALMADA, Izaías. Resenha de PARANHOS, Kátia Rodrigues (org.). História, teatro e política. São
Paulo: Boitempo, 2012. 145
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Edições de
Ouro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1959.
98
Praça Tiradentes, ou então no único teatro estável de comédia que era o
Trianon, situado na Avenida Rio Branco. O Trianon, com as suas
comediazinhas que se sucediam quase semanalmente no cartaz, era o lugar
onde se mantinha o fogo sagrado do nosso simplório teatro de dicção, através
de uma série de originais que embora assinados por nomes como Heitor
Modesto, Gastão Tojeiro, Paulo Magalhães, Oduvaldo Viana ou Armando
Gonzaga, cuidavam rotineiramente dos pequenos problemas sentimentais e
domésticos das famílias modestas, moradoras dos subúrbios. Era toda uma
ciranda cujos componentes eram a mocinha costureira ou caixeira da Sloper,
o chefe da família, funcionário público ou marido bilontra, o guarda-freios ou
chefe de estação da Central, o chauffer, o português, dono do armazém, a
empregadinha mulata e sestrosa, todos às voltas com pequenos problemas
sentimentais, leves infidelidades ou consequências oriundas de festejos de
carnaval.146
Dentro dessa perspectiva, ainda temos mais um ponto importante. Até a década
de 1940, o negro no teatro brasileiro, mesmo quando em personagens de maior
destaque, era quase sempre retratado de maneira caricatural e estereotipada o que
permitiu, em certa medida, que “personagens” como a “mulata sensual”, a “ama de
leite”, a “baiana macumbeira, a “preta velha” o “malandro” e o “pai João”,
caracterizados, na maior parte das vezes como seres submissos, bobos demais ou
violentos e truculentos em demasia (a exemplo do malandro) chegassem até os dias
atuais como representações existentes na imagética e no senso comum de uma parcela
significativa da população.
Ou seja, se, por um lado, o teatro nacional foi politicamente pouco eficaz
enquanto instrumento de transformações até o final dos anos 1920, mesmo depois disso,
demoraria a incluir em seus trabalhos o ator negro visto como um verdadeiro
profissional da área capaz de representar papéis que não o ridicularizassem ou
subjugassem.
Tal configuração permanecerá na história do teatro nacional até fins da década
de 1920, quando começa a surgir um teatro nacional de bases não apenas mais
organizadas e estruturadas mas, também, mais politizadas, como o Teatro de Brinquedo,
em 1927 e o Teatro de Arte, em 1932. No entanto, o maior salto político, social e
cultural que o teatro nacional daria viria após 1944, quando da formação do Teatro
Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias Nascimento.
Em treze de outubro de 1944, nasceria, portanto, uma das mais importes
expressões de luta do negro africano e do afro-brasileiro. Trata-se do Teatro
Experimental do Negro, o TEN. Idealizado pelo economista Abdias do Nascimento
pretendeu representar um movimento de construção de uma política de igualdade racial,
146
DORIA, Gustavo A. Moderno teatro brasileiro. Rio de Janeiro: SNT/MEC, 1975, p. 20-1.
99
além de incentivar o processo de descolonização cultural e intelectual pelo qual esse
grupo, em especial, sempre foi alvo.
A intenção para a fundação de tal espaço, como conta o próprio Abdias, surgiu
de uma viagem feita, em 1941, a Lima, capital do Peru. Ele estava no Teatro Municipal
da cidade, assistindo à peça de Eugene O´Neill, O Imperador Jones, quando se deu
conta de como o negro, não apenas nas artes daquela cidade e daquele país latino-
americano, mas em seu próprio país, era excluído de maneira descarada e mesquinha e
que tal comportamento permitia a criação de um espaço de propagação de um vício
secular, o da discriminação e diferenciação racial.
Na passagem que segue, embora longa, podemos observar de que maneira a
atenção de Abdias teria sido chamada em tal ocasião, e como ela irá representar o passo
importante que ele tomaria em seu retorno ao Brasil.
Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete
dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte
milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta
milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel
principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. Não seria,
então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial? Minhas indagações
avançaram mais longe: na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido
exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a
presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos,
conforme acontecia, mas encarnando qualquer personagem – Hamlet ou
Antígona – desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o
inverso: até mesmo um Imperador Jones, se levado aos palcos brasileiros,
teria necessariamente o desempenho de um ator branco caiado de preto, a
exemplo do que sucedia desde sempre com as encenações de Otelo.
Mesmo em peças nativas, tipo O demônio familiar (1857), de José de
Alencar, ou Iaiá boneca (1939), de Ernani Fornari, em papéis destinados
especificamente a atores negros se teve como norma a exclusão do negro
autêntico em favor do negro caricatural. Brochava-se de negro um ator ou
atriz branca quando o papel contivesse certo destaque cênico ou alguma
qualificação dramática. Intérprete negro só se utilizava para imprimir certa
cor local ao cenário, em papéis ridículos, brejeiros e de conotações
pejorativas.147
Dessa forma, um projeto para além do universo das artes dramáticas abertas ao
talento do negro seria impulsionado: criaram-se congressos, conferências e escolas de
alfabetização junto ao TEN com a clara intenção de permitir, primeiramente ao próprio,
negro reconhecer o “valor civilizatório da herança africana e da personalidade afro-
147NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados. São
Paulo, n.50, v.18, jan./abr. 2004, p. 209.
100
brasileira, exigindo que a diferença deixasse de se transformar em desigualdade”.148
Assim um movimento intenso e dinâmico do negro contra o estático e arcaico
racismo teriam um grande impulso a partir da fundação do TEN e de todas as suas
iniciativas.
Encontrando no seio do próprio racismo a força propulsora da criação cultural
como forma de responder ao mundo frio e feio da ignorância possibilitada pela doutrina
ideológica secular do racismo, importantes acontecimentos puderam ter espaço para
emergir.
Entre os anos de 1945 e 1946, por exemplo, ocorreu a Convenção Nacional do
Negro Brasileiro, onde o Manifesto à Nação Brasileira seria produzido; em 1950
ocorreria o I Congresso do Negro Brasileiro, também no Rio de Janeiro; em 1955, seria
a vez do concurso “Cristo Negro” que, assim como os concursos de beleza “Rainha das
mulatas” e “Boneca de Pixe”, tinha a clara e pedagógica intenção de descolonizar a
noção estética do belo numa tentativa de recolocar – ou colocar – no centro das
atenções, a beleza da mulher negra e afro-brasileira.
Finalmente, em 8 de maio de 1945, a primeira peça do grupo do Teatro
Experimental do Negro seria apresentada. Tendo como primeiro texto a própria O
Imperador Jones, fora encenada no teatro da União Nacional dos Estudantes, por
operários, domésticas e favelados sem profissão, e conquistou, embora apresentada uma
única vez, grande sucesso de público e crítica.
O Teatro teria uma bela e produtiva história de luta, resistindo até o fatídico ano
de 1968 quando, por imposição do regime civil-militar, foi fechado.
A história de Abdias, assim como a de seu teatro e de todas as iniciativas que
foram tomadas a partir dele, servem-nos, no entanto, para perceber a máxima de que na
arte, seja por meio da representação dramática ou da música, os limites da ação
meramente artísticas são muitas vezes extrapolados, uma vez que essas representações
artísticas estão diretamente relacionadas a uma concepção política do próprio mundo.
O que pretendemos é indicar como um roteiro, um personagem e mesmo a
atuação de um diretor ou um ator estão para além do momento em que a peça é
trabalhada; nosso intuito é discutir temas caros ao cotidiano de grupos e pessoas em
especial. Para além de uma expressão da arte, a arte pode e deve ser vista como bandeira
148
NASCIMENTO, Elisa Lankin; NASCIMENTO, Abdias do. Reflexões sobre o movimento negro no
Brasil. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: Ensaios sobre
racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 207.
101
de luta.
Em seu livro Teatro do oprimido e outras poéticas políticas,149
Augusto Boal,
importante sujeito artístico que desenvolveu, principalmente entre as décadas de 1960 e
1990, o chamado Teatro do Oprimido, comenta a busca constante da “transformação da
sociedade no sentido de libertação dos oprimidos”, que será proposta em seus trabalhos,
não apenas como uma ação política em si, mas uma preparação para outras ações.
Assim, o Teatro do Oprimido previa e de fato incorporava como parte da ação
pretendida uma série de outras técnicas e teorias que, advindas de questões como a Ética
e a Política e da História e da Filosofia, encontrava nutrientes na seiva na qual a
“árvore” do Teatro do Oprimido poderia crescer e se desenvolver com profundas raízes,
tronco forte e frutos capazes de multiplicar as questões por ela proposta.
Um dos grandes exemplos desse teatro, crítico, instigador e altamente politizado,
foi aquele desenvolvido em São Paulo já na década de 1960 – o chamado Teatro de
Arena.
De acordo com Boal, o Teatro de Arena representaria um dos dois polos nos
quais os elencos nacionais de teatro estariam, de certa forma, divididos. Tratar-se-ia do
polo dos revolucionários que se “opunham” estética e politicamente aos “clássicos” que
pretenderiam manter uma posição dentre dos limites até então conhecidos no tocante à
prática teatral. Dentro desse grupo estariam contidos o TBC e o “teatro de caminhão”
dos vários CPCs.
O Teatro de Arena, por sua vez, elaborando uma tendência diferenciada,
procuraria, a partir da necessidade social e dos problemas diversos presentes no Brasil e,
de certa forma, no mundo, propor outra forma de praticar teatro, que em muito fugiria
da proposta dos supracitados “clássicos”.
Assim, através de uma ruptura interna do famoso Teatro Brasileiro de Comédia,
o Teatro de Arena se formaria, tendo como uma de suas principais premissas permitir
que a “realidade” fosse exposta e, uma vez exposta, criticada e reconstruída, não apenas
por seus “atores”, mas também pela plateia.
Em fevereiro de 1958, os trabalhos do Arena iniciaram com a peça de
Gianfrancesco Guarnieri Eles não usam black-tie que ficaria em cartaz durante todo o
ano. Até 1962 outras importantes obras seriam lançadas, como Chapetuba Futebol
Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, Gente como a gente, de Roberto Freire, e Revolução
149
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
102
na América do Sul, de Augusto Boal. Até 1962, de acordo com Boal, o Arena fecharia
suas portas à dramaturgia importada, abrindo-as, no entanto, aos que fizessem falar de
Brasil.150
Tratava-se do período da Bossa Nova, do Cinema Novo e de Brasília, a nova
“capital da esperança”.
O Arena teria ainda uma vasta produção de musicais: Arena conta Bahia, Arena
conta Zumbi e, claro, o Opinião.
O Show Opinião, peça escrita por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e
Paulo Pontes – dramaturgos ligados aos grupos Arena e Oficina e que participavam de
peças encenadas pelo CPC da UNE – e dirigido pelo já citado Augusto Boal, possuía
como formação original no palco os atores-cantores Zé Kéti, Nara Leão e João do Vale.
Figura 8 João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão em “Show Opinião”.151
Em tal peça, uma característica chama a atenção da plateia: os artistas
mencionados, mais do que simples atores, encenam, de certa forma, eles próprios. Era a
prática da ideia de Boal de que “a interpretação seria tão melhor na medida em que os
150
Ibidem, p. 247. 151 Disponível em: http://cifrantiga3.blogspot.com.br/2006/06/opinio.html
103
atores fossem eles mesmos, e não atores”.152
Nesse contexto, observamos que os três atores em cena “eram também
personagens, pois a ideia dos autores era exatamente mostrar o que havia de comum
entre uma típica mocinha da zona sul, um personagem dos subúrbios cariocas e um
nordestino”. E esse “laço” estaria exatamente na música e mais, na música enquanto
arma de protesto. Estreando no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1964, poucos
meses após o golpe civil-militar, o espetáculo representou – e de fato ainda permanece
na imagética do teatro e da arte engajada do Brasil – uma bandeira de oposição frente
aos novos rumos políticos iniciados no período.
No livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso, assim é rememorado o
acontecimento:
Alguns meses depois da “revolução” – como era chamado oficialmente o
golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar –, o musical Opinião
reunia um compositor do morro (Zé Kéti), um compositor rural do Nordeste
(João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão)
num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos
shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de
participação política. O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de
alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação
entre a música moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada – o
movimento teve como precursor e incentivador o próprio Vinícius de
Moraes, o primeiro e principal letrista da bossa nova, e apresentou, por vezes,
excelentes resultados, tendo o Brasil, por causa disso, criado talvez a forma
mais graciosa de canção de protesto do mundo –, e inaugurava o show de
música teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e
mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se
como uma das formas de expressão mais influentes na subsequente história
da música popular brasileira.153
Dir-se-ia, inclusive, que essa “aproximação” entre a bossa nova despretensiosa,
feita nos apartamentos de Copacabana, com uma arte mais engajada, de cunho político,
teria sido incentivada por Zé Kéti. Tal aproximação teria sido iniciada no interior do
memorável Zicartola quando Zé Kéti e Carlos Lyra estabeleceram um “acordo” que
previa: Lyra levaria Kéti às reuniões no apartamento de Nara, enquanto Kéti introduzi-
lo-ia nas rodas de samba do morro. Importante pontuar que personagens como
Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Armando Costa, três importantes figuras do
CPC, teriam a ideia germinal do que desembocaria no espetáculo Opinião, ali mesmo
no Zicartola.
152
Ibidem, p. 245. 153
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 72
104
Figura 9 Hermínio Bello, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti em apresentação no
Zicartola onde Kéti era “diretor musical”154
.
Figura 10 Cartola, Nara Leão, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.155
De acordo com o Veloso e Cabral, tal aproximação, que resultou no LP Opinião
de Nara, em 1964, teria lançado as primeiras sementes do que se tornaria o show.
Contando apenas com um tablado onde o cenário existia na própria ausência de
cenário, a peça poderia aparentar para além de uma peça teatral, uma reunião de amigos
154 Disponível em: http://limonadasambadub.blogspot.com.br/2010/12/bar-doce-lar-memorias-do-
zicartola.html. Para mais informações acerca da história do Zicartola, consultar:Castro, MAURÍCIO,
Barros de Zicartola:política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro, Dumará, 2004. 155
Disponível em: http://alexander-zimmer.blogspot.com.br/2011/10/brasilidade-cartola.html
105
onde se discutiam alguns problemas do Brasil regados, claro, a boa música.
A peça teve boa receptividade, principalmente do público jovem, universitário e
de esquerda, chegando a contar ainda nas primeiras semanas de espetáculo com mais de
25 mil espectadores e, depois, mais de 100 mil em São Paulo e em Porto Alegre.
Na verdade, o público que frequentava e lotava as salas onde a peça fora
encenada pode ser compreendido a partir da análise da sociedade brasileira – mais
especificamente estudada a partir de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador – e, de fato, da
geração que assistiu ao golpe civil-militar e viu frustrados os planos de construção de
uma modernidade alternativa para o Brasil. Talvez um público caro à chamada
brasilidade revolucionária do pré-1964 que agora, vendo derrotadas suas esperanças de
construir um novo Brasil, tenha passado a encontrar na cultura um dos únicos espaços
de atuação, uma vez que politicamente havia sido derrotado.156
Em um dos diálogos da peça, Nara e Kéti conversam assim:
NARA LEÃO: Fica à vontade, meu trato, bem baseado (oferece o cigarro)
Toma. Dá uma puxada.
ZÉ KÉTI: Já peguei.
NARA LEÃO: Pegou de grota. Toma. Manda pra cuca (põe o cigarro na boca de
Kéti). Não to te cobrando nada ainda e fica de onde?
ZÉ KÉTI: Brigado, mas já peguei, camaradinha. Agora mesmo com o Praga de
Mãe e o Coisa Ruim. Tô doidão, tô doidão.
NARA LEÃO: Que nada, deixa eu ver o olho. (Olha o olho do Kéti) Nem ta
vermelho!
ZÉ KÉTI: Oh, meu camaradinha, não fica falando em vermelho, não, que
vermelho tá fora de moda. Fora de moda.
NARA LEÃO: Tá, tu não é de nada, papo careca. Tem que fumar a erva pra ir
carregando, meu trato. Só assim a gente não pensa em meter a mão (mete a mão no
bolso de Kéti) Falar em meter a mão, me adianta uma nota aí.
ZÉ KÉTI: Tô duro. Durão. Agora sou da linha dura!
Algumas questões podem aqui ser levantadas. Embora Kéti pudesse estar
representando ele próprio, Nara assume um outro personagem que não mais ela própria.
Quando Kéti a chama por “meu camaradinha” podemos perceber essa troca, em que
156
NAPOLITANO, op. cit., p. 49
106
Nara sairia da posição de menina rica moradora de Copacabana para a de um
consumidor e traficante de droga ilícita. No entanto, é interessante pensar o motivo que
teria levado à montagem da cena dentro dessa configuração: Por que não inverteram
papeis? Afinal, dentro da imagética tradicional, um negro morador da favela teria de
maneira muito mais natural uma ligação com esse mundo das drogas.
Outra questão diz respeito às menções em relação à cor vermelha e ao sujeito
“camaradinha”, numa clara alusão ao partido comunista e, claro, de que maneira ele era
percebido naquele momento.
Ao final do diálogo, mais duas críticas são estabelecidas de maneira suave,
embora bastante direta. Além de comentar a situação de pobreza e fome que abatia boa
parte de população, há uma menção direta ao novo regime e aos militares ligados à
chamada “Linha Dura”.
Na peça, portanto, notamos a discussão de vários problemas sociais que
configuravam o Brasil dos nos 1960 eram expostos de maneira clara, embora, na grande
maioria das vezes, de forma leve e divertida. Na escolha das canções, dos trechos de
poesias e romances e nas falas e diálogos dos personagens, percebe-se a intenção maior
de questionar os problemas pelos quais passava o país. Não era só o golpe civil-militar
que estava em jogo, mas toda a situação em que boa parte da população se encontrava: a
seca do Nordeste, a migração, a situação de pobreza pela qual uma parte considerável da
população se via inserida, a maneira pela qual a favela e o favelado eram percebidos e,
de certa forma, como a saída para tais questões poderia estar, dentre outros lugares, no
próprio debate – debate este que deveria incluir todas as camadas daquilo que
compunha a sociedade carioca que, assim como em Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte,
constituía um microcosmos do resto do Brasil.
No Show Opinião, as seguintes canções de Kéti foram “encantadas” – ideia de
encenar e cantar: Samba, samba, samba, O favelado, Nega Dina, Opinião, Marcha do
Rio, Quarenta graus, Malvadeza Durão, Cicatriz (em parceria com Hermínio Bello de
Carvalho). Essas canções, junto do texto e da postura dos envolvidos no Opinião,
tinham como grande intenção transformar mentes e posturas frente ao novo momento
político e cultural do Brasil.
Em reportagem feita por Van Jafa ao jornal Correio da Manhã de 16 de
dezembro de 1964 podemos ler a respeito do artigo coletivo “As intenções de Opinião”,
escrito por Armando Costa, Boal, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho:
107
A música de Zé Kéti tem uma nova riqueza de variação que representa o
novo sambista que anda por Copacabana, canta em faculdades, participa de
filmes, ouve rádio e disco. A riqueza da variação da música de Zé Kéti
representa uma capacidade mais rica de sentir a realidade. A música de Zé
Kéti também tem uma nova violência – menos ufanista e mais concreta.157
De acordo com as palavras de João das Neves, o diretor de Opinião por mais de
dezesseis anos:
O (...) trabalho era fundamentalmente político e, assim, pesquisar formas nos
interessava – e interessa – muito. (...) A busca em arte não apenas estética –
ela é estética e ética ao mesmo tempo. Eu coloco no que faço tudo o que eu
sou, tudo o que penso do mundo, tudo o que imagino da possibilidade de
transformar o mundo, de transformar as pessoas. Acredito na possibilidade da
arte para transformar.158
Dessa forma, podemos perceber a importância que a música de Kéti, vista para
além de um simples produto para o consumo, foi percebida como uma opinião acerca de
questões relacionadas à realidade brasileira do negro favelado que, a partir de sua
interpretação, teve a possibilidade de sair do universo de um personagem quase
folclórico para dar lugar a um sujeito que sofre e age sobre as circunstâncias que se
colocam frente à sua realidade.
A seguir, propomos a análise de duas músicas cantadas e encenadas por Kéti
como representativas da participação do mesmo na peça: Noticiário de Jornal e
Cicatriz. A partir delas buscaremos destruir o sujeito-objeto criado em relação à
imagética do favelado.
Noticiário de Jornal
Moro longe, lá na Zona Norte e trabalho no centro de nossa cidade
Leio todos os jornais, da manhã e da tarde
Para estar a par das novidades
Foi o jornal que disse que morrem 500 crianças por dia
Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer
Eu acho que a infância precisa viver, eu acho que a infância precisa viver.
Foi o jornal que disse que a vida subiu 400 por cento,
157
JAFA, Van. As intenções de “Opinião”. Correio da Manhã, 1964. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=58644&pesq=&esrc
=s&url=http://memoria.bn.br/docreader# Acesso em: 7 de jul 2014. 158
NEVES apud PARANHOS, Kátia Rodrigues. Dois e dois: quatro: Ferreira Gullar, o grupo Opinião e o
Bicho. Baleia na Rede: estudos em arte e sociedade. vol. 9 n. 1, 2012. Disponível em:
<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/view/2838/2216>
108
Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer
Eu acho que o povo precisa comer, eu acho que o povo precisa comer.
Foi o jornal que disse que tem mil escolas pra lecionar
Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer
Eu acho que o povo precisa estudar, eu acho que o povo precisa estudar
Foi o jornal que disse que 99, que 99, que 99 por cento do povo
não passa nem na porta da faculdade, que só 1 por cento pode ser doutor
Coitado do pobre, do trabalhador.
Em Noticiário de Jornal, entramos em contato com um sujeito, no caso,
representado por Kéti que, por sua vez, representa o pobre, negro e favelado, que,
embora demonstre ciência em relação aos rumos que o Brasil toma, não pode falar. Tal
postura poderia ser observada como a censura, fortemente aplicada no período no qual o
país acabara de entrar. No entanto, podemos fazer aqui outra suposição, será que Kéti
não estaria comentando acerca da falta de espaço que o pobre, negro e favelado sempre
sofreram? Será que não existiria aí uma tentativa de demonstrar como a censura sempre
existira para aquelas pessoas? Será que Kéti, não estaria representando aqueles que,
mesmo querendo dar a sua “opinião” sabem que não serão levados a sério tendo a
necessidade de utilizar um meio confiável – o jornal – para legitimar os seus pontos de
vista, muitas vezes cansados de “sentir na pele” tudo o que o jornal fala acerca de falta
de dinheiro, falta de educação, enfim, falta de recursos?
Cicatriz
Pobre não é um
Pobre é mais de dois
Muito mais de três
E vai por aí
E vejam só
Deus dando a paisagem
Metade do céu já é meu
Deus dando a paisagem
Metade do céu já é meu
Pobre nunca teve gosto
A tristeza é a sua cicatriz.
109
Reparem bem que
Só de vez em quando
Pobre é feliz
Ai, quanto desgosto
Ai, quanto desgosto
Assim a vida vale a pena Não.
Mas é explicar a situação
Dizer pra ele que ...
Pobre não é um
Pobre é mais de cem,
Muito mais de mil,
Mais de um milhão
E vejam só:
Deus dando a paisagem
O resto é só ter coragem
Deus dando a paisagem
O resto é só ter coragem
Cicatriz, última canção antes do momento de catarse da peça, retrata, mais uma
vez, a situação socioeconômica pela qual o Brasil passava naquele momento. Iniciando
a canção com o verso “Pobre não é um, pobre é mais de dois, muito mais de três e vai
por aí”, e retomando a ideia quando afirma que “Pobre não é um pobre é mais de cem,
muito mais de mil, mais de um milhão”. É como se, ao fim de todas as opiniões, de
todos os quadros desenhados por aqueles três representantes de brasileiros, Kéti
recolocasse em números que aquela realidade cantada era, na verdade, uma realidade
presente para a maioria dos brasileiros.
O refrão que diz que “Deus dando a paisagem, o resto é ter coragem” pode ser
igualmente compreendido como mais do que uma opinião, uma indireta de que tendo
coragem, a paisagem das coisas, ou seja, essa realidade dura e triste, poderia ser
modificada.
Ao término da canção, é feita uma colagem das canções Sina de Caboclo,
Opinião, Cicatriz e Carcará, pontos altos do espetáculo que termina com aplausos,
gritos e assovios da plateia.
Sendo censurado em algumas ocasiões, o show perdurou, com algumas
110
mudanças, até o ano de 1965.
Em 1990, Kéti estrearia em São Paulo a peça Estamos vivos: Uma questão de
Opinião, junto da atriz Deivy Rose e direção de Luiz Carlos Bahia. Em 1993, reviveu o
show Opinião por meio de Opinião Pública. Um ano depois, em 1994, Kéti receberia a
medalha Pedro Ernesto em comemoração pelos trinta anos do Show.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA CIDADE DO
RIO DE JANEIRO E DA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE POS
COLONIAL
“Dizer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar em que nos
identificamos”
Ortiz, 2006.
E com as palavras que Renato Ortiz utilizou para iniciar uma de suas mais
importantes obras, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, nós, de maneira singela,
procuraremos terminar a nossa contribuição para a história do samba, das cidades e da
questão das identidades que procuramos debater nesta dissertação.
Como comentado durante o Capítulo 2, imagens acerca do que seria o brasileiro
têm sido recorrentes desde que os viajantes, os “de fora” – europeus – procuram
explicar o que encontram aqui “dentro”. Se no século XIX esses pensamentos teriam se
revestido de certo caráter científico, desde o “descobrimento” dessas nossas terras, a
imagem da “outra raça” tem sido utilizada para nos diferenciar do universo eurocêntrico
dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Mesmo que algumas exceções, como as que encontramos no filósofo francês
Montaigne ou no viajante Jean de Lerys, que “passou a ver na América o alvorecer de
uma nova humanidade”159
procurem observar os nativos brasileiros da maneira menos
taxativa, a lógica do período será a de observar sua cultura e caráter de maneira
duvidosa. Homogeneizados sobre o estigma de canibais, sem crenças e sem alma,
podemos resumir, a partir da famosa frase de Gândavo o que seria um “lugar-comum”
para discutir a situação dos povos aqui existentes: “Sem fé, nem lei, nem rei”.
Em 1749, com os livros do conde de Buffon sendo lançados, ideias como a
noção de “debilidade” dos povos e animais americanos começaram a ganhar relativo
espaço junto à intelectualidade de então. De acordo com Buffon, tais “debilidades”
seriam explicadas levando em consideração questões como o clima, a qualidade da
terra, a qualidade das águas etc., eram aqueles os primeiros passos do pensamento do
determinismo geográfico.160
159
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade
brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 15. 160
Ibidem, p. 17.
112
No que diz respeito aos trabalhos produzidos sobre o Brasil, no Brasil, por
brasileiros, que poderiam muito bem receber a alcunha de terem representado os
primeiros anos das Ciências Sociais no Brasil, entramos em contato com as precursoras
discussões acerca de qual seria a nossa identidade nacional. Deparamo-nos, também,
com explicações de cunho, sobretudo, racista. Afinal, pudera! Com todos os
pensamentos citados, não poderíamos supor que muita coisa diferente fosse produzida
por aqui uma vez que a maior parte de nossos “intelectuais” possuía fortes ligações com
o que se produzia na Europa. Éramos, sobretudo, brasileiros ainda mentalmente
colonizados.
Na introdução da obra da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, Nem Preto, nem
branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira, podemos entrar
em contato com essa “dura” realidade. Nela, Schwarcz faz referência a um livro de
contos infantis publicado no Brasil em 1912 sob o título de Contos para Crianças, que,
em 1937 também seria publicado na Inglaterra, sob o título The Black Princess and
other fairy tales from Brazil.161
Dentre os vários contos existentes no livro que, de maneira geral, tratariam da
mesma temática – como uma pessoa negra podia tornar-se branca – um chamaria a
atenção. Seria o conto da “Princesa negrinha”. O enredo iniciaria de maneira muito
parecida com a história da “Bela Adormecida”, onde um casal Real, embora nobre de
coração e feliz, não teria encontrado realização plena, uma vez que não haviam
conseguido gerar uma pequena vida. Como na história de Bela que furaria o seu dedo
numa roca de fiar, uma fada-madrinha apareceria para ajudar o incompleto casal de rei e
rainha. Teria dito a rainha: “Oh! Como eu gostaria de ter uma filha, mesmo que fosse
escura como a noite que reina lá fora.” E a fada, entendendo o pedido de maneira literal,
acaba fazendo a rainha dar a luz a uma garotinha “preta como o carvão”.
Vendo a comoção que a “situação adversa” da princesa teria gerado em todo o
reino, a fada-madrinha acaba resolvendo a história da seguinte maneira: Se os pais
mantivessem a princesa, durante os seus primeiros dezesseis anos, presa entre os muros
do castelo, ela seria transformada “na cor branca que seus pais tanto almejam”. No
entanto, numa passagem que poderia muito bem lembrar a Gêneses e a expulsão de
Adão e Eva do paraíso, a princesa, Rosa Negra, acaba sendo convencida por uma
serpente a ultrapassar os muros que a prendiam. Após esse incidente a princesa acaba
161
Ibidem, p. 10-1.
113
entrando em um universo de horrores e dor, sendo obrigada a casar com o “animal mais
asqueroso que existia na terra”, o Urubucaru. Triste, não apenas por casar-se com
semelhante criatura, mas principalmente por que nunca seria branca, a princesa, como
em todos os contos de fada, acaba com um “final feliz” que vem a partir da benção de
sua madrinha encantada: o seu Urubucaru transforma-se num belo príncipe, e sua pele
em uma pele branca.
Tal conto, embora aparentemente revestido da pureza que alguns podem
observar nos contos infantis, tinha a clara intenção de discutir a questão do
“branqueamento” racial surgida, no Brasil, principalmente após a abolição da
escravatura e a intenção de modernizar o país não apenas de forma política e
econômica, mas também social e cultural.
O jurista, político e crítico literário, Sílvio Romero, por exemplo, utilizaria
teorias como a do positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de
Spencer para problematizar a realidade brasileira. Observando as origens de tais
pensamentos – europeus – e o que propunham de maneira geral – a evolução histórica
dos povos – podemos compreender a postura que Sílvio Romero adotará enquanto
pensador.
Romero, para quem a desigualdade entre as “raças” era também um “fato
primordial e irredutível”,162
possuía formulações que oscilavam entre a consolidação de
uma nova “raça” (mestiça) adaptada aos trópicos e a vitória da “raça branca”, o que
levaria a uma decorrente transformação da população que traria ao país os benefícios do
progresso.163
Outros pensadores, como Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, seguiram muitos
de tais preceitos. Nina Rodrigues, famoso por seus estudos acerca das culturas negras,
desenvolveu-os, sobretudo, por acreditar que tais culturas seriam inferiores às culturas
europeias. Como afirmaria Ortiz:
Se é verdade que procura compreender o sincretismo religioso, é porque o
considera como forma religiosa inferior. A absorção incompleta de elementos
católicos pelos cultos afro-brasileiro, demonstra, para o autor, uma
incapacidade de assimilação da população negra dos elementos vitais da
civilização europeia. O sincretismo atestaria os diferentes graus de evolução
moral e intelectual de duas raças desiguais colocadas em contacto.164
162
HOFBAUER, Andreas. O conceito de “raça” e o ideário de “branqueamento” no século XIX: bases
ideológicas do racismo brasileiro. Teoria e Pesquisa 42-43, UFSCar, jan.-jul. 2003. p. 87. 163
Ibidem, p. 63. 164
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 20.
114
Dessa forma, os teóricos brasileiros do século XIX embebidos em muito pelo
darwinismo racial elaborada na Europa, fizeram dos “atributos externos e fenótipos
elementos essenciais, definidores de moralidade e do devir dos povos”165
que, de
maneira intensa e inegável, contribuíram para uma série de pré-formulações em relação
a determinados grupos sociais, como os negros que mesmo no pós-abolição
continuaram carregando uma série de estigmas de inferioridade e que, no início do
século XX, passaram a contar também com a ideia da marginalidade. Essa questão
reveste-se de nova roupagem quando do início da formação das primeiras favelas que,
como procuramos elucidar, terão uma forte ligação com os grupos negros.
Dessa forma, desde o início do século XX, o negro morador de favelas é visto
com uma dupla chancela de negatividades relacionada à sua imagem – o mito da
marginalidade e o mito do “não lugar” passam a fazer parte da realidade da favela e do
negro, do negro e da favela.
Tais noções, intensificadas no período chamado por Motta166
de
“Redescobrimento do Brasil” (1933-1937), a partir dos estudos de Caio Prado Junior,
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, não apenas continuaram retirando da
cultura negra sua importância vital para a formação de uma cultura e identidades
nacionais mas, de certa forma, principalmente via Freyre (1933) e com sua até hoje
famosa fórmula baseada na retórica das três raças, como apagaram as lutas, os processos
de resistência e o histórico de abuso e humilhações que possuíam. O samba, a capoeira,
o candomblé, a feijoada e o futebol começam a sofrer um pesado processo de
ressignificação.
Mas uma vez citando Motta em seu importante trabalho Ideologia da Cultura
Brasileira (1933-1974) tal ideologia sobre a “democracia racial” existente no mito das
três raças teria, dentre outras questões, sustentado o sistema pedagógico-cultural e
político do período da ditadura civil-militar, e hoje, graças à ação compacta da cultura
do marketing e da sociedade do espetáculo, permaneceria praticamente inalterada, quase
imóvel, congelada, reconstruindo-se e realimentando-se a cada dia, aprofundando suas
raízes.167
Como discutimos na Introdução e também no primeiro capítulo de nosso
trabalho, as várias tentativas de reformas urbanas levadas a cabo durante boa parte do
165
SCHWARCZ, op. cit., p. 20. 166
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma
revisão histórica. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 69. 167
Ibidem, p. 09.
115
século XX, que buscavam a construção de um novo Brasil e de um novo “povo
brasileiro” acabaram, através da ânsia por destruir o antigo e abrir espaço para o novo,
aniquilando, também, uma série de memórias e costumes que, há séculos, vinham
ajudando a construir o Rio de Janeiro, o Brasil. De fato, o que acreditamos, poderia ser
utilizado para pensar, de forma mais aberta, uma “Identidade Brasileira”.
A partir, portanto, de documentos como a vida e as canções de Kéti e a maneira
pela qual elas estariam relacionadas com um momento de busca por novas
transformações da cidade do Rio de Janeiro, onde, mais uma vez, a favela era vista
como erroneamente presente na cidade, procuramos revisitar certos ambientes,
personagens e disputas que acreditamos necessários primeiramente para a desconstrução
de certas imagens e representações pelas quais a favela e o favelado vem sofrendo há
séculos e, em segundo lugar, para a continuação dos debates acerca da existência de
uma verdadeira “Identidade Nacional Brasileira”.
Dessa forma:
A cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é
mais um campo de operações programadas e controladas. Sob os discursos
que a ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem
identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional –
impossível de gerir.168
Analisar a história através da cidade desafio, possibilitado de maneira mais
intensa pela quebra dos paradigmas tradicionais do campo da história – iniciado nos
idos de 1930 pelo que se convencionou chamar de Escola de Annales – nos possibilitou
observar esse locus, não como algo passivo, mero palco de acontecimentos, mas como
um documento em si, cheio de questões a serem decifradas: Pensar a cidade apenas
como um emaranhado homogêneo, frio e estático composto tão somente por vielas,
ruas, praças e avenidas deixou de fazer sentido para os pesquisadores mais ligados aos
chamados estudos culturais, afinal, pensar esses territórios significa, também – e por
que não, sobretudo – pensar na questão da territorialidade, ou seja, na forma como esses
espaços são subjetivamente, e através de múltiplas maneiras, apropriados pelos sujeitos
que os completam e que os transformam em algo muito maior do que um “campo de
operações programadas e controladas”.
Dessa forma e, mais uma vez, observando Certeau:
Na realidade, diante de uma produção racionalizada [...] posta-se uma
produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem
168
CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 174.
116
como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as
ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em
suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos
próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que
lhe são impostos.169
O estudo da cidade e de suas múltiplas facetas (afinal, nela coexistem, ao mesmo
tempo, o trabalho e o ócio, o medo e a diversão, a falta e o excesso, a moral e a
promiscuidade) pode, junto e em conjunto com os sujeitos históricos que nela
coexistem, e através de suas “piratarias” e de seus “murmúrios incansáveis”, revisitar
muitas questões já estudadas, como as transformações urbanas nela ocorridas, porém,
com novos olhares e novas indagações – por exemplo como essas transformações foram
sentidas e vivenciadas pelas populações diretamente envolvidas? Transformações
urbanas interferem, também, na subjetividade dos grupos envolvidos? Esses tipos de
reforma geram, realmente, resultados positivos para os grupos mais ligados a elas? O
que o discurso oficioso tem a revelar que o oficial não disse?
Dessa maneira, pode-se afirmar que o estudo da cidade do Rio de Janeiro, como
o de qualquer outra cidade, pode ser empreendido por meio da análise dessas
“piratarias” que, produzidas por suas populações e condensadas de questões que
envolvem o seu cotidiano, podem responder ou mesmo mostrar outros lados de questões
teoricamente já respondidas que, no entanto, permanecem sem conclusões efetivas.
Nos últimos anos, com a criação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) muitas dessas questões “retornaram” de maneira significativa ao rol de debates
políticos nacionais, mostrando a provável limitação das saídas encontradas pelos
governos municipal, estadual e federal no decorrer dos anos quando o assunto principal
eram as chamadas “favelas”.
Pretendeu-se, dessa forma, tendo como principal fonte documental as
composições musicais de Zé Kéti enquanto “murmúrios” possíveis, analisar períodos de
grandes transformações urbanísticas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro (1950-1979)
revisitando, assim, períodos de fundamental importância para a elucidação das antíteses
que se acredita terem sido construídas no tocante ao chamado “universo do morro”,
desde sempre observado de maneira tão oposta ao “universo do asfalto” e que,
exatamente por esse motivo, pode não ter sido assistido de maneira eficaz.
169
Ibidem, p. 94
117
A escolha por problematizar a história através das canções, deu-se, em muito,
por questões de cunho pessoal, afinal, minha proximidade com o campo da música tem
sido algo constante há pelo menos dezesseis anos – anos que me fizeram perceber que a
construção da música, se observada de forma problematizada, pode demonstrar questões
muito mais amplas do que aquelas ligadas ao entretenimento. Nas palavras de Miriam
Hermeto:
Em termos específicos, pode-se definir a canção como uma narrativa que se
desenvolve num terreno temporal relativamente curto (em média, de dois a
quatro minutos) que constrói e veicula representações sociais, a partir da
combinação entre melodia e letra (...) Como um produto cultural do século
XX, apesar de tratar de diferentes temáticas e temporalidades, tem no
processo crescente de urbanização e industrialização uma grande referência
para a construção das representações sociais que produz, em termos globais,
sempre em diálogo com as referências individuais e/ ou locais dos sujeitos
que a compõe.170
Quando decidi enveredar pelos caminhos do estudo da História Social e, mais
tarde, escolher o samba de Zé Kéti como principal documento de pesquisa, não
imaginava que os percursos para compreender suas entrelinhas, na verdade, para
compreender quaisquer entrelinhas existentes em produções musicais, poderiam ser tão
“perigosos” e possuir raízes tão “longínquas e profundas”.
O que percebo aqui como um caminho “perigoso”: Aquele que me levava a
analisar composições musicais por um viés pautado, exclusivamente, na literatura, ou
seja, nas letras das canções, fato que acabava tornando minhas observações muito mais
rasas e superficiais e que, na realidade, não me permitia perceber as várias interlocuções
de tempos, espaços, saberes, prazeres e dores existentes, não apenas na música de Kéti,
mas em boa parte da produção musical existente no Brasil. Compreendi que estudar o
samba é um exercício intenso, que transborda o impulso primeiro de interpretar um
texto posto; notei que, para além desses limites, estudar o samba é uma eterna tentativa
de interpretação de entrelinhas, gentes, bagagens e heranças e que, por ser uma
manifestação contida num universo policêntrico e polirrítmico, conta com dificuldades
interpretativas próprias de seu lugar de origem, dificuldades estas que merecem atenção
e respeito.
Visando, portanto, a compreender esse universo de códigos densos e intensos, e
de que maneira ele possui ligações mais ou menos diretas com as produções culturais
que analisamos, problematizaremos, agora, algumas questões baseando-nos em quatro
170
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e Ensino de História: palavras, sons e tantos
sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
118
“portos seguros” teórico-metodológicos, quais seja: a ideia de crioulização e de caos-
mundo defendidas pelo poeta e etnólogo martiniquense Édouard Glissant; as tradições e
formas das matrizes culturais do Caribe pensadas pelo literato cubano Antonio Benitez
Rojo, a ideia de uma cultura formada no “Alântico Negro” do sociólogo inglês Paul
Gilroy e a própria ideia de Identidade defendida pelo teórico cultural jamaicano Stuart
Hall.171
De Glissant, tomaremos de empréstimo as ideias caracterizadas a partir do termo
“crioulização” no sentido de procurar estabelecer com este pontes possíveis para
compreendermos de que maneira a produção cultural denominada “samba” pode ser
percebida e examinada a um nível cultural intenso de significados.
O termo em questão, criado por Glissant como forma de indicar uma
problematização cultural a partir de uma visão muito próxima à do “hibridismo” de
Canclini,172
sugere a análise da cultura a partir de noções de mesclas interculturais não
redutíveis, apenas, a questões de raça (mestiçagem) ou de religião (sincretismo).
Em Introdução a uma poética da diversidade, Glissant inicia suas discussões
estabelecendo a coexistência de três Américas: A “Meso-América”, a Euro-América e a
Neo-América, esta última correspondendo à América da crioulização, que
compreenderia as regiões entre o Caribe e o nordeste do Brasil, Guianas e Curaçao, Sul
dos Estados Unidos, da Costa Caribenha da Venezuela e da Colômbia, além de uma
grande parte da América Central e do México.
Em relação à Neo-América, o autor fala de questões absolutamente interessantes
que, embora pareçam possuir um tom bastante simbólico, mostram suas faces práticas
quando pensamos na realidade que envolve, por exemplo, o Brasil. Em determinado
momento, Glissant comenta sobre a diferença existente entre o Mar Mediterrâneo e o
Mar do Caribe. Ele sugere que, se as religiões monoteístas nasceram em torno do
Mediterrâneo, isso se deveria, em muito, à sua predisposição a um pensamento de
unidade que teria uma ligação bastante próxima com sua característica geográfica.
De maneira oposta, o Mar do Caribe, aberto, seria visto, analogamente, como
lócus difratário, múltiplo e marcado por sua característica de imbricação e confusão de
171
BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998. GLISSANT, op. cit.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
___________. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro:
Editora34/Universidade Cândido Mendes, 2002. 172
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. Culturas híbridas, poderes oblíquos. São Paulo:
Edusp, 1997. p. 283-350
119
culturas que acabaram gerando tal qual a mistura de cores gera outra cor, uma outra
cultura, a cultura crioula.
Seria possível, observar a cultura do samba e a própria estrutura social da favela
carioca como algo contido dentro dessa “pluricultura” formada a partir da mescla, a
partir de outras formas de ser, pensar e sentir o mundo?
Longe de nos sentirmos “identitariamente” ameaçados, é possível observar,
nessa forma de enxergar a cultura, uma resposta possível para muitas questões que
envolvem não somente problemáticas próprias do Brasil, mas, também, e
principalmente, problemáticas que envolvem hoje, de maneira bastante marcante, o
resto do mundo.
[...] funcionamos sempre segundo o antigo modelo e, então repito a mim
mesmo que se eu for ao encontro do outro não serei mais eu mesmo, e, se eu
não for mais eu mesmo, perco-me de mim! Ora, no atual panorama do mundo
uma questão importante se apresenta: como ser si mesmo sem fechar-se ao
outro e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?173
Glissant baseia-se nas distinções existentes entre a noção de “raiz única” e a
noção de rizoma, levantadas primeiramente por Deleuze e Guattari, para explicar a
questão da identidade. Junto com essa noção, trabalha as suas ideias de sociedades
atávicas e compósitas.
Como a proposta do trabalho esteve, em boa parte, interessada em analisar
questões sociais a partir de uma questão cultural, acredita-se que a análise feita por essa
distinção seja necessária para que se fuja um pouco da noção de um samba enquanto
identidade de um grupo étnico único. Pensa-se na identidade de um samba que se forma
a partir da relação de multifacetadas dimensões e atores sociais, ou seja, como produto
resultante de uma cultura compósita.
Através de Paul Gilroy, podemos dar continuidade ao pensamento elucidado por
Glissant, principalmente no que diz respeito à formação, no Brasil, de uma cultural de
características crioulas que, exatamente por essa particularidade, possui formas
específicas de leituras que traduzem, em muito, posições de “estar no mundo”
demasiadamente negligenciadas pelos estudos culturais no e do Brasil, sempre, bastante
ligados a questões de formação e fortalecimento de um Estado-Nação, ou mesmo,
inseridos na lógica de um governo nacional.
Como seria justo apontar, a história do Brasil possui variados momentos em que
a construção de um projeto de uma ideologia nacional fez parte da lógica necessária à
173
GLISSANT, op. cit., p. 28.
120
manutenção da ordem política pretendida. Pensando em todos os grandes períodos
políticos dessa história, desde a Independência, em 7 de setembro de 1822, nos
depararemos com uma busca infinda pela construção de um “ser brasileiro”, de marcos,
posturas e costumes que dessem conta de recontar e recolocar o brasileiro dentro do seu
próprio espaço.
Em diferentes épocas, e sob diferentes aspectos, a problemática da cultura
popular se vincula a da identidade nacional. Sílvio Romero, precursor dos
estudos sobre o caráter brasileiro, definiu o seu método de trabalho como
“popular e étnico” [...] Câmara Cascudo considerava Sílvio Romero como
um dos fundadores da tradição dos estudos folclóricos; ele, na verdade,
procura encontrar na cultura popular os elementos que, em princípio,
constituem o homem brasileiro.174
Na introdução de História Social da Música Popular Brasileira, de José Ramos
Tinhorão, muito embora o autor comece suas colocações estabelecendo algo de grande
valia para o pensamento que se pretende aqui defender quando pontua que “numa
sociedade diversificada, o que se chama de cultura é a reunião de várias culturas
correspondentes à realidade e ao grau de informação de cada camada em que a mesma
sociedade se divide”.175
Não se pode deixar de notar a maneira taxativa com a qual o
autor trata a questão do que chama de cultura dominante e cultura dominada:
Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não
pertence inteiramente aos detentores políticos do poder, como é o caso de
países de economia capitalista dependente – e entre eles o Brasil em estudo –
a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada.176
Essa característica acabou fornecendo aos estudos culturais do Brasil, ares de um
nacionalismo que aqui se pretendeu abandonar. Tal postura se mostra absolutamente
fundamental para o intento do trabalho uma vez que, como apontou Gilroy:
O conceito de espaço é em si mesmo transformado quando ele é encarado em
termos de um circuito comunicativo que capacitou as populações dispersas a
conversar e mais recentemente até a sincronizar significativos elementos de
suas vidas culturas e sociais.177
Para o presente trabalho, mais do que uma noção nacional de samba, teve-se em
mente que:
As culturas do Atlântico Negro criaram veículos de consolação através da
mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contraestéticas e
uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a
genealogia da geografia e o ato de lidar com o de pertencer [...] as
extraordinárias conquistas do Atlântico Negro exemplificam largamente este
174
ORTIZ, op. cit., p. 127. 175
TINHORÃO. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 7. 176
Ibidem, p. 8. 177
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 20-21.
121
ponto. É com elas que a utopia do sublime escravo ganha um corpo
verdadeiro.178
Ou seja, mais importante do que continuar corroborando com uma ideia de
samba enquanto “expressão do nacional” desejou-se estabelecer com tal estilo musical,
uma relação de complementaridade com as culturas referentes ao Atlântico Negro,
partilhando, assim, do pensamento de Lívia Reis que, em seu artigo “O Caribe e o
Brasil: música e ensaio em diálogo”, afirma:
Com os distintos processos de transculturação e ao longo do processo
histórico, a música acabou por se converter em um dos principais vetores da
nova identidade mestiça e não raro essa mesma música, surgida nas senzalas
e nos campos de trabalho, se transformaram em projeto nacional. Na
modernidade, algumas dessas regiões continuam a ser exportadores de açúcar
e de álcool e, muitos deles, têm a música como um de seus principais itens na
pauta de exportação.179
A partir desse ponto de vista, o samba seria visto como uma expressão que
nasceu mediada pelo sofrimento e que possui as suas formas específicas de ritmo,
melodia e harmonia, caracterizadas, em muito, por essa memória genealógica.
De acordo com esse conceito, pode-se afirmar que o samba, bem como o samba
de Zé Kéti possui características estéticas próprias que vão além de aspectos meramente
nacionais e que poderiam ser compreendidas como herdeiras de um ser e estar no
mundo marcado por características próprias da Diáspora Negra.
Dessa maneira, convém afirmar: Não se pretendeu aqui analisar o samba como
símbolo natural de um grupo, muito menos de um local geograficamente dado. Até
porque, mesmo que assim se tentasse fazer, as características da própria produção
cultural existente no intervalo de tempo que se escolheu analisar representariam, por
certo, uma barreira.
Deve-se ressaltar que, durante as pesquisas feitas para a presente dissertação de
mestrado, a análise de Leonora Corsine, A potência da hibridação – Édouard Glissant e
a crioulização,180
mostrou-se especialmente enriquecedora. A autora percebe a ideia da
crioulização funcionando de forma análoga a de grande monstro uma vez que o ser
crioulo “resiste, desorganiza e faz romper os códigos de hierarquia do poder”.
178
Ibidem., p. 13. 179
REIS, Lívia. O Caribe e o Brasil: música e ensaio em diálogo. Revista Intercâmbio, Universidade de
Brasília, v. 12, 2009., p. 5. 180
CORSINE, Leonora. A potência da hibridação – Édouard Glissant e a crioulização. v. 25-26. Rio de
Janeiro: Sigma, 2008. p. 211-21.
122
Para pensar em tal ideia, Corsine teve como base o termo “arrué”, criado por
Glissant para se referir a “mistura de irrupção e ímpeto, erupção, muita realidade e
muita irrealidade”, característica da geografia caribenha, bem como da própria cultura
crioula.
Assim, utilizando da mesma analogia que Glissant para falar da Plantation
enquanto lugar de sofrimento mas, também, de libertação, pensou-se a favela carioca
que, embora represente um lugar de abandono, também conseguiu, através do
sofrimento ligado ao descaso e à falta de interesses e comprometimento reais dos
governos para com essas populações, produzir uma fala de liberdade, de modo que:
“Aquilo que era uma prisão, um lugar de dominação, uma fraqueza estrutural,
transforma-se em vantagem. Porque, no final, acontece uma reversão e a prisão é
derrubada; o espaço era fechado, mas o mundo que derivou dele permanece aberto”.181
Tamborim
Cavei muito buraco na avenida
Pra ajudar no progresso do metrô
Fui feirante vendi muito bagulho
Muitas vezes o rapa me apanhou
Estudei me formei em camelô
Na escola da vida eu sou doutor Meu dinheiro jamais deu pra viver
Da polícia já tive que correr
E quem sabe um dia eu possa ser
Na política um governador
E com meu tamborim eu vou cantar
Para o povo a minha grande dor.
Eu já disse que fui e o que não sou
Vou morrer na favela por amor
Tamborim, meu velho amigo tamborim!
Como tu és de ninguém
Ai meu deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim... (bis)
Tamborim, meu velho amigo tamborim!
A batida do meu coração está chegando ao fim
Já não aguento bater mais no meu tamborim
181
Ibidem., p. 218.
123
Retomando a letra de Tamborim, escrita por Zé Kéti e Mourão Filho em 1979,
podemos encontrar características bastante elucidativas da questão supracitada: nela, o
cotidiano de um morador da favela, embora vivido de maneira difícil (“Cavei muito
buraco na avenida/ fui feirante, vendi muito bagulho, muitas vezes o rapa me apanhou”)
por representar a luta daqueles que “são” apesar das dificuldades impostas por uma
“sociedade do asfalto” que os observa como “não sendo”, é encarado, no final das
contas, como algo que não se pretende deixar (“Vou morrer na favela por amor”).
Não se pode esquecer, que durante o ano em que a canção foi lançada, o Brasil
passava pela famosa fase da abertura política “lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel
que, em 1974, em plena Ditadura Civil-Militar, assumiria a presidência do Brasil
começando um lento processo de transição rumo à democracia.
Seu governo, no entanto, coincide com o fim do milagre econômico e com a
consequente insatisfação da população com as altas taxas de juros herdadas do período
anterior. A crise do petróleo e a recessão mundial interferem e corroboram para que as
dificuldades em voga na economia brasileira fossem ainda maiores.
Além dessas características, outras também devem ser levadas em consideração:
Em primeiro lugar, deve-se pensar no sujeito para o qual a música é direcionada. Nesse
caso, não se tem como receptor da canção um velho amigo ou uma mulher, antiga
paixão, mas sim, um instrumento musical. Um tamborim.
Analisando rapidamente a história desse instrumento, observaremos como o
mesmo representa um objeto que possui como característica, exatamente o seu poder de
mescla. Tendo como um de seus “parentes” próximos o adufe, é encontrado ainda no
Antigo Testamento da Bíblia. Em Salmos 150: 1-6 lê-se:
Louvai ao SENHOR. Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no
firmamento do seu poder.
Louvai-o pelos seus atos poderosos; louvai-o conforme a excelência da sua
grandeza.
Louvai-o com o som de trombeta; louvai-o com o saltério e a harpa.
Louvai-o com o tamborim e a dança, louvai-o com instrumentos de cordas e
com órgãos.
Louvai-o com os címbalos sonoros; louvai-o com címbalos altissonantes.
Tudo quanto tem fôlego louve ao Senhor. Louvai ao Senhor.
Com o passar do tempo, o “tamborim” é encontrado em várias culturas, como na
Mesopotâmica, árabe e, por fim, portuguesa, por onde, ao que tudo indica, teria entrado
no Brasil.
No entanto, o paradoxo em relação à sua utilização torna-se ainda maior se
pensarmos que, assim como pontua o dicionário de instrumentos musicais: “Instrumento
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de percussão. Tambor pequeno. No Brasil, é usado especialmente nas danças cantadas
de origem africana, como maracatus e cucumbis.”
Como indicaria Kéti, o tamborim, assim como a vida, não seria de ninguém.
“Como tu és de ninguém/ Ai meu deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim.”
Ainda falando de Glissant, outra de suas teorias que aqui é tida como base para a
forma de enxergar o samba é a ideia de “caos mundo” que “prevê uma estética depurada
de qualquer valor a priori” e que, por isso, abrange todas as formas de expressão dessa
totalidade que existe em nós. A ação dessa totalidade reflete em movimentos que nos
permitem transformar o mundo. Dessa forma, podemos pensar em um samba baseado
na ideia de um sujeito que chora as suas mágoas em relação aos percalços e às
dificuldades enfrentadas pelo morador da favela como um dos instrumentos-chave do
samba, mas também, como um instrumento símbolo do múltiplo, do diverso e da
mistura, presente no ocidente e no oriente, no culto monoteísta antigo e no terreiro de
umbanda, desperto pelas mãos do branco e do negro. Tomando de “empréstimo” outra
ideia de Gilroy, a do “Atlântico Negro”, é possível subir a bordo do navio da Diáspora
Negra e pensar nas questões que, formadas nesse “entre lugar” chegaram ao Brasil e
desembocaram em formas de ser, pensar, agir e cantar que não podem ser deixadas de
lado.
Procuramos assim fugir do que o próprio autor chamou de “nacionalismo
cultural silencioso” e que acreditamos estar bastante presente nos escritos acerca do
samba. Acreditamos ser necessário chamar a atenção do leitor para a seguinte questão:
Embora tenha sido o samba forjado nos anos de 1930 por meio da chamada Era Vargas
como um estilo musical basicamente nacional, não pode ser pensado fora das dinâmicas
transversais que envolvem o seu desenvolvimento. Tal atitude seria minimamente
inaceitável tendo em vista a diversidade de povos que colorem o Brasil, afinal, como
pontua Hall,
Entre nós, a identidade é irrevogavelmente uma questão histórica. Nossas
sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não
são únicas, mas diversas.
Dessa forma, analisando a trajetória da vida e da carreira de Zé Kéti, uma série
de “outras questões” procuraram aqui ser problematizadas como por exemplo, a cidade
e suas transformações vistas à partir de noções ligadas à sensibilidade de um sujeito-
personagem pertencente a determinado período e espaço que, dançando entre diferentes
125
grupos e ambientes produziu um montante de materiais que em parte procuramos nos
debruçar.
Através de seu samba, terreiros, praças, relações de sociabilidade e de
territorialidade nos foram apresentados possibilitando-nos um novo olhar sobre velhos
assuntos.
Procuramos assim, observar a favela e seu morador – ou mesmo frequentador –
por olhares diferentes dos disponibilizados pelo “mito da marginalidade” intentando,
para além disso analisar um espaço vivo composto por sujeitos múltiplos.
Figura 11 Zé Kéti em 1998, um ano antes de sua morte recebe o prêmio Shell
pelo conjunto de sua obra.182
“Eu pretendo também continuar, se Deus me der vida e saúde, fazendo músicas para o
povo, porque eu vivo para o povo, tudo que eu tenho na minha vida eu agradeço à MPB
que são meus amigos de maneira que o povo é que elege as nossas músicas porque a
voz do povo é a voz de Deus. Muito Obrigado”
Zé Kéti, 1967
182 http://www.blogdopilako.com.br/wp/2014/05/02/curiosidades-musicais-ze-keti-por-leo-dos-monges/
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