UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de...

132
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Adriana Santoleri Villa Barbeiro UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979) MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2014

Transcript of UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de...

Page 1: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Adriana Santoleri Villa Barbeiro

UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES

URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO

2014

Page 2: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Adriana Santoleri Villa Barbeiro

UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES

URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em História Social sob orientação do Prof.

Dr. Amailton Magno Azevedo.

SÃO PAULO

2014

Page 3: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

2

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

___________________________________

Page 4: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

3

Agradecimentos

Por mais solitária que tenha sido minha caminhada durante o processo de

obtenção do título de mestre, os percursos que me fizeram chegar até aqui teriam sido

infinitamente mais tortuosos, nebulosos, quase intransponíveis, se não tivesse contado

com a presença de uma série de pessoas que souberam sem cobranças e, com uma

paciência do tamanho do mundo, ajudar na construção dos pilares que me permitiram

chegar até aqui. Por isso, esses grandes seres de luz recebem agora o meu sincero

“muito obrigada”, muito embora, devam saber de antemão, que nem nos mais longos

agradecimentos possíveis chegaria, realmente, a agradecê-los pelo que representam na

minha vida.

À minha mãe, Aurea, por me mostrar, há mais de 25 anos, o quão difícil é viver

e sobreviver num mundo de loucos. Obrigada por ser aquela que luta, diariamente,

contra moinhos e dragões.

Ao meu pai, Alexandre, por ser o maior exemplo de trabalho e perseverança que

tenho na vida. Você é um vitorioso e eu espero que tenha consciência disso.

Ao meu irmão e melhor amigo André, por me mostrar, a cada dia, que a

construção do conhecimento deve ser algo constante baseado, sempre, no trabalho árduo

e no amor por aquilo que se faz. Só você mesmo para me fazer entender aquela frase de

Pitágoras: “A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”.

A Eduardo Boletti, por sua companhia, suas palavras de apoio, seu olhar

cúmplice e seu abraço, que mais do que abraço, transfigura-se, cada dia mais, em

abrigo.

A Kaká Truppa, por sua amizade sempre alegre e sincera. Obrigada pela ajuda

em relação à vida e ao Abstract.

Ao meu amigo, de longa data, André Luis Soares Valdez (Big Carlton) por ser

essa minha alma gêmea no mundo das ideias. A sua Filosofia, a minha História, enfim,

as nossas discussões sobre “qualquer coisa e sobre tudo” me fazem, sem sombra de

dúvidas, um ser humano maior e melhor. Evoé!

Carlinhos Sanmartin, pelos olhos azuis, coração gigante e ouvidos sempre

atentos, sempre dispostos a me ajudar. Amicuscertus in re incerta cernitur.

Aos meus queridos e queridas do coral jovem do Colégio Jardim São Paulo, ao

qual tenho a honra de pertencer: Vera Novack, Carol Mello, André Valdez, Amanda

Page 5: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

4

Souza, Bru Marinho, Carol Sato, GiMayumi, Gi Valentim, Gui Gonzaga, Hanny e

Henry (mestre) Setton, Igor Ramos, Bel Villas Bôas, JúBettim, Karol Ferrasa, Borô,

Bradrie, Mari Guilhem, Mayara Santos, Maysa Berbel, Nicole Ranieri, Tami Soares,

Leo Soares, Vivi Amaral, Yumi Nagatsu.

Ao professor Luis Perez e aos colegas do curso de percussão corporal da Escola

de Música do Estado de São Paulo (EMESP).

Aos responsáveis pelos arquivos do MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de

São Paulo) e do MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) pelo pronto

apoio no que diz respeito às pesquisas que precisei realizar nessas locais.

Aos responsáveis pelo arquivo da Biblioteca Oneyda Alvarenga do Centro

Cultural São Paulo.

Ao meu orientador, Amailton Magno Azevedo por suas aulas, indicações de

leitura e nossas conversas que ajudaram de maneira indubitável no resultado final da

dissertação.

Às coordenadoras do Colégio Nove de Julho, Raquel Lopes da Silva e Cecília

Holzapfel Lessa que, há praticamente dois anos têm sido infinitamente compreensivas

em relação à loucura da vida de uma estudante de mestrado. Gratidão!

À Lêdda Pena, supervisora do EAD da Universidade de Santo Amaro (UNISA)

o meu agradecimento eterno por compreender e apoiar minha luta na elaboração final

deste trabalho.

À professora Estefânia Knotz Cangucu Fraga por seu apoio sincero no que diz

respeito ao texto parcial de minha pesquisa. Obrigada pelos elogios e, principalmente,

por todas as críticas construtivas.

Ao colega e grande exemplo profissional Professor Doutor Rafael Lopes por sua

rica leitura em relação ao segundo capítulo da dissertação, suas colocações ajudaram-me

sobremaneira.

Aos “mestres” Maria Izilda Santos de Matos e Salloma Salomão Jovino da Silva

pelos apontamentos feitos na ocasião da qualificação da dissertação que agora

apresento. Obrigada por todas as indicações bibliográficas e sugestões, principalmente

as que diziam respeito à redação final do trabalho. Obrigada, também, pelo exemplo de

vida acadêmica tão brilhante e fundamental para os estudos de História e Música.

Ao Capes que financiou parte dessa pesquisa.

E, por fim, aos meus amados alunos: Sem cada um de vocês eu poderia ser muita

coisa, menos eu. Obrigada por transformarem os meus dias em algo tão divertido, tão

Page 6: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

5

cheio de vida e de novos aprendizados. Se eu continuo acreditando num mundo melhor

isso se deve única e exclusivamente a vocês.

Page 7: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

6

DEDICATÓRIA

Ao samba que “ainda vai nascer”

Ao samba que “ainda não chegou”

O samba que não vai morrer

Veja o dia ainda não raiou

Ao samba que é “o pai do prazer”

Ao samba que “é o filho da dor”

O grande poder transformador

(Caetano Veloso, Desde que o samba é samba)

Page 8: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

7

RESUMO

Este texto insere-se na perspectiva da História Cultural, em particular, à abordagem

relacionada ao processo de urbanização das cidades brasileiras e à construção de

identidades ligada a uma abordagem crioula da mesma. O objetivo central encontra-se

em estudar como se deu o processo de intensificação da favelização da cidade do Rio de

Janeiro, entre as décadas de 1950 e 1980, e as respostas e reflexos desse movimento

caracterizados na construção de identidades e na produção musical carioca do período,

analisada através das composições do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti.

Buscamos compreender, por meio das composições e da própria biografia de Zé Kéti,

aquilo que Édouard Glissant denominou como “irrué”, a mistura de irrupção e ímpeto,

realidade e irrealidade, características, que acreditamos estar presentes, não apenas nas

produções que serão aqui analisadas, mas, também, no próprio samba (assim como nos

demais gêneros musicais formados nas fronteiras do Atlântico Negro) e mesmo, na

identidade da favela carioca e do “povo” brasileiro que aqui buscaremos elucidar.

Desse modo, buscaremos observar como as transformações econômicas e políticas,

levadas a cabo no período em questão, refletiram-se, não apenas na transformação

desordenada do espaço público, mas também, na forma de se pensar e sentir as situações

que se assumiam cada vez mais presentes na vida de grande parte da população menos

favorecida.

Assim, partindo de uma realidade particular, almeja-se representar mais uma

contribuição entre os recentes, e cada vez mais relevantes trabalhos sobre os processos

de construção de identidades em torno do Atlântico Negro e das transformações das

cidades brasileiras, além de possibilitar um olhar menos pragmático e deformador com

o qual se percebem essas mesmas situações ao longo de toda uma História.

Palavras-chave: cidades, Rio de Janeiro, favelas, música, samba carioca, identidades.

Page 9: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

8

ABSTRACT

This study is part of the Cultural History perspective, particularly, the approach related

to the urbanization process of Brazilian cities and the identities construction linked to its

crioulo approach. The main aim of this research is to study how the slums

intensification process in Rio de Janeiro city came about, between the decades of 1950

and 1980, and also the answers and reflexions of this action characterized in building

identities and the carioca musical production of that period, analyzed per the work of

the Samba composer, José Flores de Jesus, the Zé Kéti.

We seek to understand, through compositions and also biography of Zé Kéti, what

Édouard Glissant called "arrué", the mix of irruption and impulse, reality and unreality,

characteristics, which we believe been present, not only in the productions that are

analyzed in this writing, but also, in Samba itself (as well as in other musical genres

created in the "Atlântico Negro" border), and even, in the carioca slum identity and the

Brazilian "people" that we will try to elucidate.

Thus, we will try to observe how the economic and politic transformations, carried out

in studied period, were reflected not only in the transformation of public space

disordered, but also, in the way we think and feel the situations that were assumed

increasingly more present in the lives of many of the less favored population

So, starting from a particular reality, it is desired to represent another contribution

among the recent, and increasingly relevant, work about the processes of identities

construction around the "Atlântico Negro" and the transformations of Brazilian cities ,

beyond enable a less pragmatic and deforming look with which realize this same

situation along an entire History.

Key-Words: cities, Rio de Janeiro, slums, music, samba, carioca, identities.

Page 10: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………….....10

Sobre História e Cidades...................………………………………………......……....16

Sobre História e Música……………………………………………..........………........21

Sobre História e Identidades…......……………………..................................................28

Estrutura e Objetivos……………………………...…………….......…….………........32

CAPÍTULO 1: TRANSFORMAÇÕES URBANAS E

RELAÇÕES DE GÊNERO EM KÉTI………………………………………….…...38

1.1 Kéti e a múltipla Rio de Janeiro ...................................... ........................................40

1.2 Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de uma Rio de

Janeiro mutante................................................................................................................51

1.3 A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti..............................................,,....56

CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA DO ESPAÇO EM KÉTI……………………………66

2.1. Desconstruindo a cidade-partida: favela sujeito versus favela objeto.....….…........67

2.2 A desconstrução da favela-objeto em Kéti................................................................75

2.3 A desconstrução dos sujeitos-objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show

Opinião………………………………………………....................................................87

2.3.1 A cidade, o cinema e Kéti....................................................................................89

2.3.2 A cidade, o teatro e Kéti......................................................................................97

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA

CIDADE DO RIO DE JANEIRO E DA CONSTRUÇÃO DE UMA

IDENTIDADE POS COLONIAL..................................................................……...111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................126

Page 11: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

10

INTRODUÇÃO

A proposta deste trabalho, desenvolvido no Programa de Estudos pós-graduados

em História, em nível de Mestrado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUCSP), é dupla, quiçá, tripla.

Apresento, no decorrer de todo o texto, uma discussão acerca da constituição da

favela carioca entre as décadas de 1950 e 1980– procurando compreender os motivos

políticos, econômicos, sociais e culturais que resultaram em sua organização – ao

mesmo tempo em que remonto, partindo de preocupações baseadas na cultura e na

sociedade da cidade do Rio de Janeiro do mesmo período,uma estrutura geral da época,

objetivando, por fim, observá-la a partir de preceitos ligados aos estudos de

identidades,baseados na questão da diáspora negra, como forma de sugerir: “que o

compartilhamento das formas culturais negras pós-escravidão seja abordado por meio

de questões relacionadas que convergem na análise da música negra e das relações

sociais que a sustentam”1.

Pretendi, em outras palavras, analisar, como uma estrutura vista desde o seu

nascimento como lócus de exclusão e depósito de desajustados aos novos rumos que a

cidade tomava, pôde criar arcabouços culturais, superando toda a sorte de preconceitos,

criando para si maneiras de ser e de existir próprias que, nesta oportunidade, foram

analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como

uma das formas de sociabilidade do negro na cidade do Rio de Janeiro que possui, ao

mesmo tempo, a função de transmissor de memórias, bem como a de canal que torna

possível a construção de um “ser” autônomo baseado nos saberes de sua cultura.

Todas essas questões, apresentarei, tendo na esteira dos acontecimentos e como

sujeito e objeto da pesquisa, a vida e a obra do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti.

Sua trajetória de vida e, principalmente, suas composições musicais (que cantam o

morro, a malandragem, as relações de gênero etc.) foram aqui observadas como

documentos propícios para a análise do cotidiano social, cultural, político e econômico e

dos ideais acerca de identidade que permearão a dissertação.

Talvez seja conveniente, no entanto, iniciar os resultados da pesquisa afirmando

o seguinte: não pretendo, de maneira alguma, pautá-lo em quaisquer tipos de colocações

que faltem com a realidade dos fatos, assumindo, porém, as dificuldades encontradas

1 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora

34/Universidade Cândido Mendes, 2002, p. 161.

Page 12: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

11

dia após dia para que as ideias, agora sistematizadas, tomassem formato digno de uma

dissertação de mestrado. Para que este “desabafo” ganhe algum significado, é mais do

que justo iniciar as explanações esclarecendo que: até o momento em que comecei a

escrever, simplesmente desconhecia a existência desse compositor chamado Zé Kéti.

Suas músicas? Estas, sim, antigas conhecidas. Quantas e quantas vezes não me

flagrei cantarolando “Opinião”, “Máscara Negra” ou “Diz que fui por aí”, sem, no

entanto, questionar quem as havia composto ou mesmo em quais situações pessoais ou

momentos políticos do país elas teriam sido pensadas, produzidas e apreciadas. Nada

tão absurdo assim, mesmo para uma historiadora, contudo, conforme meu interesse em

relação ao referido sambista cresceu, cresceu também a descoberta de que, por algum

motivo, o seu nome e suas contribuições para a música brasileira estavam cercados por

grandes lacunas.

Mesmo que seja visto como “um dos titulares do primeiro time da música

brasileira”, ao lado de Noel Rosa e Tom Jobim, um “sambista genial”, ou ainda como

um dos “autênticos” do samba2, ao lado de Cartola e Nelson Cavaquinho, o que ocorreu

ao procurar produções historiográficas que dessem conta de sua trajetória foi a

incômoda descoberta de um grande vazio bibliográfico.

“Mas”, deve perguntar-se o leitor curioso, “se existe realmente tamanha lacuna

em relação ao nome de Zé Kéti, como teria sido, esta que agora escreve apresentada a

ele e porque tamanho interesse em estudar vida e obra do compositor?”.

À primeira pergunta, respondo: Fui “apresentada” a Zé Kéti, ainda durante o

período de especialização no curso de História, Sociedade e Cultura da PUC-SP, no

momento da elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, um projeto de mestrado

que possuía como problemática principal as interpretações de Nara Leão e suas

contribuições performáticas para o estudo do período da Ditadura Civil-Militar

brasileira.

Achei e, de fato, ainda acho realmente impressionante e corajosa a maneira pela

qual Nara negaria a posição de “musa da bossa nova” para se tornar a “intérprete da

resistência”. Através da escolha dos compositores que abraçaria – ligados ao chamado

“samba de morro” –sua postura e posicionamentos políticos acabariam culminando no

LP “Opinião de Nara”, de 1964, e depois no inovador “Show Opinião”, de 1965,

2 Tais citações podem ser encontradas em BARROS, Julio Cesar. A voz do morro: Zé Renato resgata a

obra de Zé Kéti. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/passarela/critica/a-voz-do-morro>. Acesso

em: 10 mai. 2011; e Memorial da Fama: Zé Kéti. Disponível em <http://www.memorialdafama.com

/biografiasRZ/ZeKeti.html.>Acesso em: 10 mai. 2011.

Page 13: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

12

produções que encerrariam o período por mim elencado para a discussão acerca de tal

intérprete.

Figura 1 Nara Leão e Zé Kéti.3

O que aconteceu, no entanto, é que, através das leituras feitas para esse projeto,

o nome de Zé Kéti, mesmo que de maneira bastante rasa, apareceria. E, a partir daquele

momento, decidi que precisava saber mais acerca da trajetória de vida e da produção

musical envolvendo aquele que havia participado do “Show Opinião” e elaborado

composições como “Diz que fui por aí” e “Acender as velas”.

--

Feita a escolha do tema, entretanto, algumas adversidades, surgiriam. Em

primeiro lugar, o já citado vazio bibliográfico em relação a Kéti, tornaria muito mais

árdua a proposta inicial de utilizá-lo enquanto sujeito-objeto da pesquisa. Mas, através

das pistas levantadas por Nei Lopes, na única bibliografia existente sobre o compositor,

foram encontradas as informações necessárias para aprofundar as questões próprias ao

trabalho. A partir daí, fez-se necessário um levantamento dos arquivos que poderiam

possuir materiais relevantes à minha pesquisa. Os principais foram: O Museu da

Imagem e do Som de São Paulo (MIS SP), o Museu da Imagem e do Som do Rio de

Janeiro (MIS RJ) e o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, que está no Centro

Cultural São Paulo.

3 Disponível em: http://www.pinterest.com/pin/570479477768365780/

Page 14: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

13

Dessa forma, os “pontapés iniciais” para o trabalho, foram, sem dúvida, por um

lado, a curiosidade – uma vez que, como indica a historiadora Mary Del Priore, “o

documento sozinho, isolado, não existe se não houver intervenção da curiosidade do

historiador”4 –,e, por outro, indagações e incômodos ligados ao momento presente pelo

qual a história do Brasil e das cidades brasileiras vem passando,visto que as questões

sociais, políticas, econômicas e sobretudo culturais que envolvem o morro carioca e

sempre me foram bastante caras retornaram, nos últimos anos, aos meios acadêmicos5e

acabaram por me fazer tentar encontrar no passado motivos que elucidassem e

clarificassem melhor as antíteses que acredito existir nesse “universo do morro”, desde

sempre visto de maneira tão oposta ao “universo do asfalto”.

É possível afirmar, portanto, que,no decorrer da pesquisa, alguns assuntos do

tempo presente foram inegavelmente e mesmo, propositalmente, tangenciados,com o

objetivo claro de “colocar em xeque”relevantes aspectos das atuais realidades das

cidades brasileiras, como, por exemplo,a crescente militarização da vida cotidiana que,

de maneira imperativa tem se intensificado – desde nosso processo de redemocratização

política, na década de 1980 –produzindo a chamada “arquitetura do medo”, geradora de

lugares comuns e preconceitos múltiplos em relação ao outro que, no caso do Rio de

Janeiro, atua como elemento intensificador do processo de segregação econômica,

social e cultural pelo qual a cidade vem passando desde, pelo menos, o início do século

XX.

Conforme sugere o antropólogo Antônio Risério, a “arquitetura do medo” seria

causada pela sensação de insegurança provocada pelas atuais situações socioeconômicas

das grandes cidades brasileiras, o que acaba produzindo uma segregação espacial

baseada no medo e na desconfiança que gerariam, dentre outras questões, uma

organização urbana caracterizada pela dissociação: Teríamos, de um lado, os bairros

desassistidos, carentes de infraestrutura urbana e serviços públicos elementares e,de

4 DEL PRIORE, Mary. Fazer História, interrogar documentos e fundar a memória: a importância dos

arquivos no cotidiano do historiador. Revista Territórios e Fronteiras [PPGHistória/UFMT], v.3, n.1, p.

15, 2002. 5 Para maiores informações, consultar VALLADARES, Lícia do Prado (org.). Repensando a habitação

no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 199p.

Page 15: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

14

outro, os condomínios fechados, os shoppings centers e os grandes conjuntos de

escritório.6

A socióloga Teresa Pires do Rio Caldeira7 que também possui trabalhos

referentes às problemáticas dessa “arquitetura”, corrobora com o pensamento de

Risério, afirmando que a violência e o medo de nossa atual sociedade têm gerado novas

formas de segregação espacial e discriminação social, observadas no discurso do

combate ao crime violento que acaba incorporando, preocupações raciais e étnicas,

preconceitos de classe e referências negativas ao pobre e aos marginalizados.

Caldeira também desenvolve categorizações genéricas do crime e dos

criminosos possibilitadas por essa diferenciação do espaço urbano:

O crime e os criminosos são associados aos espaços que supostamente lhes

dão origem, isto é, as favelas e os cortiços, vistos como os principais espaços

do crime. Ambos são espaços liminares: são habitações, mas não o que as

pessoas consideram apropriada [...]. Como residências um tanto anômalas, ou

seja, que não se encaixam totalmente na classificação de casas apropriadas,

favelas e cortiços acabam classificados como sujos e poluidores [...]

Excluídos do universo do que é adequado, eles são simbolicamente

constituídos como espaço do crime, espaços de características impróprias,

poluidoras e perigosas.8

Richard Sennet, sociólogo e historiador norte-americano, também se debruça

sobre a questão das cidades contemporâneas e como essas estão relacionadas ao viver e

ao conviver em sociedade. De acordo com o autor, “o individualismo moderno

sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o

ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a

conversações [...], centelhas de vida não merecem mais que um lampejo de atenção”.9

Corroborando com a questão da cidade enquanto espaço de individualismos, o

autor observa como as diferentes “regiões” que as cidades modernas possuem,

potencializam esse individualismo e influenciam na maneira como os cidadãos tratam-

se mutuamente, estabelecendo laços de amizade e convívio ou de medo e exclusão;

Sennet comenta, ainda, sobre aquilo que denomina como “repertório de imagens”, que

seria o conjunto de noções acerca do “outro” que o sujeito constrói imageticamente

durante a sua vida.

6 RISÉRIO, Antônio. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 303

7CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania. São Paulo: Editora

34, 2003, p. 9. 8Ibidem, p. 79-80.

9SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record,

2001, p. 289.

Page 16: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

15

Em relação a esse “repertório” Sennet, cita aquilo que chama de cenários

complexos ou não familiares, onde, de acordo com ele, o indivíduo tenderia a classificar

o que vê de acordo com categorias simples e genéricas, baseadas em estereótipos

sociais. Em outras palavras: um branco que se depara com um negro, um índio, um

árabe ou um judeu registra a ameaça, desvia os olhos e, quase que automaticamente,

procura o afastamento instantâneo em relação ao “corpo estranho”. De acordo com os

seus estudos, portanto, o repertório de imagens que possuímos– e que só pode ser

incrementado a partir do contato com o múltiplo, o diferente, o alternativo– pode nos

levar ao convívio com o mundo ou ao completo fechamento em relação a ele. O ser

humano, nesse sentido, passa a ser visto, muitas vezes, como aquele que sinaliza

“perigo” e, mais uma vez, observamos a ideia de uma “arquitetura do medo” que

pretende que iguais convivam sempre com iguais e temam o diferente.

Dessa forma, tanto Risério quanto Caldeira, e mesmo Sennet, tratam sobre

alguns dos estigmas relativos ao espaço da favela carioca, de seus moradores e

frequentadores, bem como, do cotidiano desses, que desde o início do século XX fazem

parte do arcabouço de pré-concepções relativas ao “morro”. Em outras palavras, alguns

assuntos atuais serão abordados no sentido de fazer uma crítica direta às rupturas,

permanências e intensificações de questões relacionadas ao universo da favela.

Em outras palavras, pretendeu-se, através dos entraves urbanos observados na

cidade do Rio de Janeiro– e que infelizmente não são exclusivos dessa cidade, mas

representam os problemas criados e não resolvidos no que diz respeito ao espaço urbano

em geral –, perceber, em primeiro lugar, a construção de uma identidade acerca do

outro, construída pelo discurso do medo, baseada na relação dos espaços da cidade do

Rio e que acabou, através de mais de um século de discursos, abraçando os seus

moradores. Acredita-se que essa preocupação seja legítima, uma vez que ajuda a

vislumbrar quais os lugares e sujeitos dos quais Zé Kéti fala e, de certa forma,

representa. Vale mencionar que, pretende-se, também, questionar até que ponto a

militarização e a criação de áreas excludentes na cidade não passam de uma estratégia

deliberada de manutenção das relações de poder já existentes para a solução de

problemas seculares desde sempre ignorados pelos governos municipal, estadual e

federal e que, com o passar das décadas adquiriram intensidade e profundidade

complexas, tornando-se mais graves e correndo o risco de se tornarem ainda mais sérias

e profundas, uma vez que inexistem formulações de políticas públicas eficientes, claras

Page 17: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

16

e objetivas que procurem solucionar, de fato, o que se tem apresentado como

adversidade. Como escreve Risério, hoje, no Brasil, não há:

Políticas públicas pensadas globalmente para o momento concreto e presente

da realidade urbana brasileira, com problemas que vão do crime organizado

ao saneamento básico, passando pelo imbróglio fundiário, o crescimento das

favelas, a poluição (sonora, visual, aquática e atmosférica), o estado crítico

da saúde pública, o aumento da legião de pedintes nas ruas, o grande déficit

habitacional.10

Assim, também é importante afirmar que os motivos que levaram à produção

deste trabalho encontram-se, sobretudo, no tempo presente, pois, como afirmaria o

historiador francês Antoine Prost: “A explicação do passado baseia-se nas analogias

com o presente, mas, por sua vez, ela alimenta a explicação do presente”11

.

Não apenas Prost, mas outro historiador francês do século XX, Marc Bloch –

reconhecido internacionalmente não apenas por suas produções envolvendo o período

medieval, mas também por ter fundado nos idos de 1929, ao lado de Lucien Frebvre

(outro importante historiador francês), a Escola dos Annales –, estará presente nas

páginas que seguem, uma vez que sua maneira de fazer história através do que chamou

de método regressivo– que consiste, em linhas gerais, em perceber que, apenas através

do presente, podemos delimitar o retorno, possível que desejamos fazer ao passado12

será a maneira pela qual se percebe aqui a construção da história.

Portanto, para que as intenções supracitadas sejam satisfeitas, o trabalho

percorre, três grandes temas: História e Cidades, História e Música e História e

Identidades.

Sobre História e Cidades

Nas últimas décadas, principalmente nos últimos 50 anos, as produções

historiográficas vêm passando por uma série de transformações que inegavelmente

possibilitaram uma revisitação à História, seus fatos e personagens.Tais transformações

podem em muito ser explicadas a partir do nascimento da chamada Escola dos Annales,

que, de maneira especial, após 1979, tornar-se-ia reconhecida e prestigiada

internacionalmente e, através de suas propostas, abriria espaço para o estudo de “novas

10

RISÉRIO, op. cit., p. 308. 11

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 1996, p. 146. 12

BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.

7.

Page 18: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

17

histórias”, que contribuíram para o desempenho da História Social e Cultural, uma vez

que propunha a inclusão de temas e sujeitos até então silenciados historicamente.

Os herdeiros desse novo modo de contar a história das coisas percebem,

portanto, nos mais variados sujeitos, a possibilidade de discutir os fatos históricos que,

em boa medida, deixam de ser a preocupação primordial dos historiadores. Centro e

periferia também perdem o status de grandes reguladores do fazer histórico, abrindo

espaço para que o estudo do caminhar do homem pudesse partir de todos os lugares, a

todo o tempo, movido por toda a sorte de ser humano: do mais rico ao mais pobre, do

homem à mulher, do deputado ao engraxate, do prefeito ao sambista, todos seriam

vistos como personagens de uma história que acontece todos os dias, nos gabinetes

políticos, no interior das casas, na cidade, na favela e nas festas.

Dentro dessa perspectiva, podemos elencar a História das Cidades como algo

que tem passado por significativas mudanças; afinal, observada no decorrer da história

como mero elemento de delimitação geográfica e espacial, a cidade passa a representar

em si uma questão, um “problema”.

No presente trabalho, embora a principal preocupação tenha sido pensar a favela

carioca durante as décadas de 1950 a 1970, acredita-se que, em certa medida, observar a

história da cidade do Rio de Janeiro ainda durante o século XIX seja algo não apenas

interessante, mas também necessário, uma vez que o surgimento da própria favela,

todos os preconceitos que ela tem sofrido, assim como os novos movimentos de

organização espacial que a cidade vem passando, baseadas em muito na chamada

“arquitetura do medo”, só podem ser compreendidos a partir das modificações nela

empreendidas durante esse período.

Assim, retornando ao início do século XIX, com a chegada da Família Real

portuguesa ao Brasil, percebe-se as intenções do príncipe regente D. João VI, em

transformar o centro da cidade do Rio de Janeiro, agora sede da coroa portuguesa, em

um pedaço da Europa. Para tanto, não pouparia recursos ou esforços gerando, inclusive,

um descontentamento claro de populações como a de Recife, que, em 6 de março de

1817, fará eclodir a Revolução Pernambucana, movimento republicano, direta e

fortemente influenciado pelos ideais iluministas, e que tinha entre seus impulsos a

discordância e a insatisfação da população em relação à coroa portuguesa quando, por

exemplo, passa a cobrar impostos cada vez maiores, a fim de reverter mais capital em

Page 19: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

18

melhorias para a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, para a sua região central.13

Dessa

forma, muito embora os empreendimentos de D. João VI não tivessem sido bem aceitos

por certos segmentos da população brasileira do período, várias foram as modificações

por ele implementadas na cidade.

Outra atitude que, dentro de um século, se tornaria mais comum e que,

poderíamos afirmar, se configuraria como uma das principais geradoras do elevado grau

de desigualdade na cidade, já pode ser observada durante esse período.

Uma importante intervenção no embelezamento do espaço urbano foi a

publicação de um edital em 1816. O documento escrito por [Paulo] Viana

sugeria que propriedades antigas ou mal construídas fossem demolidas dentro

de um prazo fixado (VIANA, 1816), já que poderiam ruir e em mais de uma

oportunidade tinha ameaçado a vida de criados do Paço. Evidentemente, não

seria de bom tom que a realeza desterrada viesse a presenciar algum

desabamento.14

Fora as transformações urbanas levadas a cabo durante o Período Joanino, a

chegada da família real ao Brasil irá representar de maneira muito intensa uma

modificação cultural profunda do que até então se tinha nas ruas e vielas do Rio de

Janeiro. Sabemos que D. João não chega ao Brasil sozinho, mas sim acompanhado por

um número bastante razoável de representantes da corte real portuguesa (que gira em

torno de 10.000 a 15.000) que trazem na mala, além do medo da invasão Napoleônica

empreendida em Portugal, suas práticas e costumes.

Essa aglutinação cultural, no entanto, não seria viabilizada apenas por esse novo

contingente populacional, mas pelo próprio D. João VI, ao assinar, já em 1808, na

cidade de Salvador, a Abertura dos Portos às Nações Amigas. Isso facilitaria não apenas

a entrada de produtos importados no Brasil, mas também a entrada de um grande

número de comerciantes de diversas nacionalidades – tornando o porto do Rio de

Janeiro mais movimentado do que o de Boston15

–, o que representará para a cultura

carioca mais um variado número de costumes e práticas que, dentro em pouco, seriam

deglutidos e recolocados na cultura da cidade.

Ocorre ainda, após a morte de Napoleão Bonaparte, em 1814, uma nova onda de

transformações culturais em terra brasilis que, tal qual um tsunami de cores, cheiros e

13

ANDRADE, Manuel Correia de. A Revolução Pernambucana de 1817. Coleção Guerras e Revoluções

Brasileiras. São Paulo: Ática, 1995. 14

OLIVEIRA, Anelise. D. João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário. Revista História em

Reflexão, v.2, n.4, UFGD – Dourados, jul./dez.2008, p. 6. 15

LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,

p. 50.

Page 20: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

19

sabores, se espalha pelo Rio de Janeiro. A reaproximação entre França e Portugal traz

ao Brasil não apenas a Academia de Belas Artes, mas uma série de hábitos no vestir,

comer, construir, consumir e decorar que acarretam um afrancesamento intenso do

cotidiano da cidade, acessível, evidentemente, apenas aos que fizessem parte da parcela

letrada da população.16

Durante o período Imperial, principalmente no que se refere ao Segundo

Reinado, encontra-se, também, uma Rio de Janeiro com cores e sabores europeus. A

partir da segunda metade do século XIX, o país ingressaria numa nova fase,

intermediária, entre um Brasil escravagista e um Brasil proto-capitalista. Como capital,

a cidade recebia todas as grandes novidades emanadas do velho continente como, por

exemplo, gás e água encanada; nessa época também começaram a aparecer,

primeiramente na região do Botafogo e da Tijuca, os primeiros bondes de tração animal

que, em pouco tempo, se transformariam em bondes elétricos.

De acordo com Humberto Fernandes Machado, no entanto, “duas cidades já

conviviam naquela época: uma civilizada, branca, voltada para a Europa; outra, negra,

verdadeira cidade aquilombada caracterizada pelos cortiços e epidemias que dizimavam

os seus habitantes”.17

Mas, apesar das discrepâncias sociais que produzia, os ideais de

embelezamento e de enquadramento às tendências europeias seriam recolocadas na

ordem do dia, com intensidade e intenções renovadas, ainda na virada do século XIX

para o XX, mais especificamente após a Proclamação da República, quando as elites

brasileiras, desejosas por modernizar não apenas os seus preceitos políticos e

econômicos, mas também a estética de seu principal centro político, empreenderão uma

série de modificações que irão, de maneira bastante direta, flagelar uma vez mais os

mais pobres e carentes da cidade.

Esse período será aquele em que as elites do Rio de Janeiro voltam suas

preocupações primeiramente para os cortiços e, em seguida, para as favelas, buscando a

construção de uma “cidade prometida” que, como veremos já no primeiro capítulo da

dissertação, fracassará.

Pensar a favela carioca – e todo e qualquer espaço de convivência social,

cultural, política e econômica –, sem levar em consideração seus fluxos e

movimentações,desde seu surgimento até a própria dinâmica característica da relação

16

Ibidem, p. 53. 17

NEVES, Lucia Maria Bastos; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1999, p. 296.

Page 21: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

20

morro-asfalto, geradora de preconceitos duradouros e cunhados de maneira tão eficiente

no decorrer da história, seria contribuir tão-somente para mais uma pesquisa cheia de

pré-concepções, tabus e lugares-comuns que em nada colaborariam para realmente

modificar o modo de enxergar tais sujeitos e espaços.

Dessa forma, observa-se a favela carioca não a partir de sua representação global

fundadora de ideias genéricas no que diz respeito ao seu cotidiano18

em relação à sua

realidade, mas sim das memórias construídas por aqueles que dela fizeram parte; em

outras palavras, como diria Maria Izilda Santos de Matos:

Em seu processo de transformação, a cidade tanto pode ser registro como

agente histórico. Nesse sentido, destaca-se a noção de territorialidade,

identificando o espaço em conformidade com experiências individuais e

coletivas, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos

de lembranças, experiências e memórias. Lugares que, além de sua

experiência material, são codificados num sistema de representação que deve

ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os

múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e

reterritorialização.19

No que diz respeito, portanto, ao estudo das cidades como um documento em si,

Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, através de sua obra Espaço urbano: conflitos e

subjetividade, cujo foco de análise é a “interface urbano-subjetividade [...] onde a

produção e a apropriação do espaço urbano pelos atores analisados não só refletem as

desigualdades e as contradições sociais, como também afirmam sujeitos que as

reproduzem e modificam”,20

e Lícia do Prado Valladares, em A invenção da favela: do

mito de origem a favela.com,21

além de propiciarem uma riquíssima análise acerca da

História das Favelas, indicam caminhos profícuos para fugir de ideias dogmáticas, já

cristalizadas, em relação ao espaço da favela, sua cultura, sua gente.

18

Já no início do século XX, começaram a ser publicadas as primeiras crônicas em relação ao espaço da

favela: Olavo Bilac, João do Rio, Benjamin Constellat e Orestes Barbosa são bons exemplos de

observadores que, tomados pelo espírito de modernidade e remodelação pelas quais passava a cidade do

Rio de Janeiro, projetariam visões um tanto quanto rasas acerca da favela e do cotidiano dos que ali

viviam. Para uma leitura mais específica: VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito

de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 19

MATOS, Maria Izilda Santos. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007, p. 26. 20

MAIOLINO, Ana Lúcia Gonçalves. Espaço urbano: conflitos e subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad,

2010, p. 12. 21

VALLADARES, op. cit.

Page 22: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

21

Sobre História e Música

Dentro da perspectiva das “novas histórias” propiciadas pela quebra dos

paradigmas tradicionais no campo da história já trabalhados anteriormente, podemos

falar acerca da música enquanto possibilidade documental de análise.

Como afirma Matos,22

a produção musical é um documento bastante interessante

por propiciar a possibilidade de dar voz a certos setores que, durante muito tempo,

estiveram renegados ao silêncio, sendo, portanto, uma porta de entrada possível para a

revelação do cotidiano, das sensibilidades, das paixões e, no caso do trabalho aqui

apresentado, das dificuldades e formas de luta, resistência e identidade de grupos

sociais.

É importante enfatizar que a música, assim como outros documentos que vêm

sendo cada vez mais utilizados para a escrita da história, como, por exemplo, a

literatura, não significa e nem deve ser observada como “reflexo” de quaisquer

questões. Tais produções devem ser vistas como representações possíveis de períodos e

situações específicas.

Nesse sentido, deve ter-se a preocupação de perceber o produtor de tal

documento como um ser que, ao viver situações próprias de sua contemporaneidade,

produz, através de sua subjetividade, formas de significar aquilo que vê e sente. Dessa

forma, não podemos descartar a importância de discutir de maneira aprofundada quem

foi Zé Kéti, qual a sua formação, bem como quais são os seus circuitos sociais, culturais

e mesmo profissionais, questões que serão profundamente trabalhadas no 3º capítulo.

As obras de Nicolau Sevcenko,23

José Geraldo Vinci de Moraes,24

Antônio

Pedro Tota,25

Maria Izilda Santos de Matos26

e Amailton Magno Azevedo27

serviram de

base metodológica no sentido de como trabalhar a canção como fonte documental para a

22

MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru:

Edusc, 2007. p. 38. 23

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira

República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 24

MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular na São

Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 25

TOTA, Antonio Pedro. Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva. São

Paulo, v.15, n.3, 2001. 26

MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002.

_________________________. Âncora de emoções: corpos subjetividades e sensibilidades. Bauru:

Edusc, 2005.

_________________________. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007. 27

AZEVEDO, Amailton Magno de. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas

em São Paulo. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.

Page 23: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

22

pesquisa histórica representarão nossas bases teóricas em relação à música brasileira no

decorrer da história.

A obra Literatura como Missão, de Nicolau Sevcenko, proporciona a

oportunidade de observar um bom exemplo de como é absolutamente possível contar e

problematizar a história de determinado período, região e grupos políticos e sociais

utilizando como fonte documental informações outras que não as indicadas por uma

história tradicional. Sevcenko problematiza a história da Primeira República brasileira,

recorrendo, para tanto, às produções e discussões estabelecidas durante esse período

pela literatura e, de forma especial, pelos textos de Euclides da Cunha e Lima Barreto.

Tais autores não possuíam vínculos outros que não aqueles que dissessem respeito à luta

contra o Império brasileiro, ou seja, a única relação de proximidade que existiu entre um

e outro foi aquela relacionada com a luta por uma mudança no sistema político nacional,

que acabou ocorrendo, como sabemos, no dia 15 de novembro de 1889.

Essa mudança, no entanto, não teve exatamente as características esperadas por

esses dois estranhos, que, como afirmaria o próprio historiador: “Apesar de viverem na

mesma cidade e circularem nos seus poucos núcleos literários, esses intelectuais eram

estranhos entre si: provavelmente nunca se defrontaram, certamente jamais trocaram

uma palavra”.28

Dessa forma, as obras desses dois grandes nomes da produção da

literatura nacional estarão, em muito, ligadas ao descontentamento referente aos novos

rumos da política e economia brasileiras e como essas refletiam na sociedade de então.

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram

mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que

foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se

transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no

campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir,

compreender [...]. Por outro lado, os valores éticos e sociais mudaram tanto

no nível das instituições e dos comportamentos como no plano das peças

literárias. Os textos artísticos se tornaram, aliás, termômetros admiráveis

dessa mudança de mentalidade e sensibilidade.29

Em linhas gerais, como citado no prefácio do livro, a obra de Sevcenko,

“questiona o papel decisivo que cabem à imaginação artística e às energias intelectuais

em momentos críticos de mudança histórica”.30

Retrata, através dessas questões, o

momento de tensão e transformações múltiplas pelas quais a cidade do Rio de Janeiro

passava.

28

SEVCENKO, op. cit., p. 141. 29

Ibidem, p. 286-7. 30

Ibidem, p. 22.

Page 24: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

23

De forma bastante análoga à que Sevcenko problematiza a história do Rio de

Janeiro na virada do século XIX para o XX, José Geraldo Vinci de Moraes e sua obra

Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular na São Paulo dos anos

30(2000) irão propor uma análise da música brasileira sobre um período em que a

cidade passava por um processo conturbado de transformação, uma intensa urbanização,

momento em que também surgiu o rádio e o microfone, ferramentas que tornariam cada

vez mais a música em profissão.

No precário circuito de consumo cultural que se formava na metrópole

paulistana, o livro mostra como a própria instabilidade profissional gerou

esse curioso hibridismo no meio artístico, fazendo com que tais músicos

mesclassem o cotidiano diurno do trabalho, com a boemia noturna dos bares

e cafés, convivendo muito mais de perto com o difícil dia-a-dia da cidade.31

Embora se trate de uma obra cuja característica fundamental é estudar a cidade

de São Paulo através da música produzida durante a década de 1930, alguns pontos da

pesquisa construída por Moraes são bastante caros a este trabalho, como, por exemplo,

perceber que, em meio às múltiplas transformações pelas quais passava a cidade,

múltiplas também seriam as formas de se fazer música. A ideia mesma de Metrópole em

Sinfonia sugere que São Paulo, num momento de crescimento e mistura vertiginosa,

onde a realidade das imigrações se juntava à instabilidade da vida na cidade, só poderia

produzir músicas de caráter igualmente diverso: amores frustrados, destinos mórbidos e

o sentimento de saudade, nostalgia, próprio de quem passa por mudanças.Esse cenário

paulistano enseja o desenvolvimento de produções únicas, como as gravações de

Capitão Furtado e as crônicas de Juó Bananere, que criam estéticas de influência caipira

e italiana,gerando “outra coisa” especificamente paulistana e que só pode ser entendida

dentro desse âmbito.

Uma questão bastante interessante levantada por Moraes diz respeito às

temáticas recorrentes no fazer das “modinhas paulistanas”. Como forma de representar a

violência, a miséria e a morte que começariam a distinguir, de certa forma essa “nova

metrópole”, a subjetividade dos compositores levou a um grande número de canções

que terão esses assuntos como preocupação principal:

Os assuntos encontrados nessas modinhas são variados, mas giram em torno

de alguns pontos convergentes. Em primeiro lugar, baseiam-se em alguns

fatos diários e reais que ocorriam na cidade. Em geral, causam forte impacto

a população local, independentemente de sua origem social, cultural ou

étnica. Nas canções paulistanas, ganham certo tom exagerado, com o claro

objetivo de destacá-los. Finalmente, esses fatos impactantes preenchem as

colunas policiais dos jornais diários, vorazes por eles, comovendo muito a

31

MORAES, op. cit., p. 13.

Page 25: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

24

população mais humilde. Nas 27 modinhas recolhidas por Alcântara

Machado é possível observar essas narrativas, que envolvem inúmeros temas,

formando verdadeira(s) história(s) com começo, meio e fim, que, na

realidade, contam parte do cotidiano da cidade que começava a se consolidar,

com as contraditórias características de uma metrópole.32

Outra obra que teve como preocupação a cidade de São Paulo, mas que em

muito auxiliou na construção das ideias principais deste trabalho foi A cidade, a noite e

o cronista, de Maria Izilda Santos de Matos (2007), livro dividido em três partes

principais que se subdividem em capítulos bastante elucidativos: no primeiro momento,

o princípio norteador é explanar acerca das “outras histórias”: quais são elas, onde

aparecem ou podem aparecer. A intenção é aguçar o olhar do historiador para novas

abordagens, novos documentos históricos; em um segundo momento, as atenções

passam a convergir para a cidade de São Paulo: como essas novas abordagens e

documentos históricos podem ser utilizados para compreender as nuances na história da

“Pauliceia desvairada”,bem como em outras diversas situações; e, por fim, mas longe de

esgotar todas as possibilidades de análise, a autora debruça-se menos sobre a vida de

Adoniran Barbosa do que sobre os reflexos dela frente às crescentes modificações que

ocorreram na São Paulo das décadas de 1930 a 1960.

Dessa forma, observando personagens, cenários e documentos ainda hoje pouco

trabalhados no campo da história, como a música, o boêmio e a noite, Matos propõe,

fugindo de concepções clássicas embasadas pelo senso comum acerca de pelo menos

dois desses temas– o boêmio e a noite –, compreender as características dos anos de

inchaço urbano da cidade de São Paulo.

Debruçando-se sobre o cotidiano de personagens e agentes históricos que

pertenceram a uma ou mais “São Paulos”: a bonita, embelezada dos anos 1920; a

moderna dos anos 1930; a transbordante e cada vez mais conturbada e sufocante dos

anos 1940 em diante, a autora deseja compreender, para além dos discursos oficiais, o

que significava viver na dita capital do trabalho e do progresso caracterizada pelas

comemorações do IV centenário da cidade, ou na cidade da diversidade, já no século

XXI. A música, dessa forma, como documento que não se esgota em si, mas que

metodologicamente permite análises diversas – não somente no que diz respeito à sua

difusão na sociedade: seu consumo e recepção; também sobre o artista que a compõe:

sua formação, profissão, os círculos sociais pelos quais transita e todas as subjetividades

32

Ibidem, p. 168.

Page 26: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

25

que podem estar imbricadas nesse processo –, aparece como o documento principal; a

noite, a cidade e o boêmio como locais e personagens principais.

Tratando-se das duas últimas questões supracitadas, Matos foge das

interpretações clássicas: não trata a noite como um local de pecado e perigo, mas de

complementaridade com a correria do dia a dia; não observa o boêmio simplesmente

como o templo de encarnação do não trabalho, não família, não moral, mas como um

personagem cheio de possibilidades de revelações outras sobre as coisas que o

cercavam. Não se pode esquecer, por exemplo, que muito da boemia paulistana das

décadas de 1920 a 1950 era composta não somente por populares mal encaixados no

mercado de trabalho, com postos de trabalho cada vez mais escassos na cidade, mas

também e principalmente por médicos, advogados e outros membros da high-society. O

que empurra a noite paulistana para a periferia da cidade e a transforma em “local da

imoralidade” está diretamente relacionado coma expansão urbana paulistana, um

movimento estudado pela autora.

Quanto a Adoniran Barbosa, se arrisca dizer que seu papel no livro é representar

um grande exemplo de todas as ideias que se desejavam elucidar: um paulista que

nasceu em 1910 e que, na década de 1930, se tornou também paulistano. Um cidadão

que vivenciou os anos fundamentais da urbanização de São Paulo, um boêmio por

natureza, que aprendeu a contar a história das coisas que via, ouvia e sentia através de

suas rimas, sua poesia. Um cronista, ou melhor, um historiador da cidade de São Paulo

– da Praça da Bandeira, da Praça da Sé, do Viaduto Santa Efigênia, do metrô etc. – e de

seus sentimentos – o amor, o esforço, a saudade, a raiva, a tristeza.

Em outras palavras, o livro A cidade, a noite e o cronista cumpre uma dupla

função: servir de referência indispensável para os historiadores que já estão ou

pretendem adentrar no mundo das “novas possibilidades”, dos “novos pontos de vista”,

“novos documentos”, ou, como Matos prefere nomear, das “novas histórias”, uma vez

que traça o panorama geral da nova situação do fazer histórico, nos deixando muito

mais à vontade para pensar além do tradicional, sendo essa a maior contribuição da

obra; ou servir de presente para os paulistanos mais apaixonados e mais críticos sobre a

história de sua cidade, a nossa grande maloca.

Mais uma obra de referência, que, assim como Matos trabalhou com o samba na

cidade de São Paulo, é a tese de doutorado de Amailton Magno Azevedo intitulada A

Page 27: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

26

memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas em São Paulo.33

De

maneira geral, o autor pretendeu, através da reconstrução da memória musical do

sambista Geraldo Filme, entrar em contato com aquilo que denominou como micro-

áfricas existentes na cidade e que estariam representadas por formas possíveis de luta e

resistência de grupos negros que, no caso de sua pesquisa, ocorriam em locais

específicos de São Paulo.

Rebatendo a afirmação de Vinícius de Moraes de que São Paulo seria o “túmulo

do samba”34

, Azevedo traça uma cartografia musical desse ritmo, mostrando não apenas

a existência dele, mas também a força e a influência que teria no cotidiano de algumas

áreas mais específicas da cidade.Tal reconstrução foi feita a partir da análise da relação

de Geraldo com sua família e amigos, e de sua convivência no momento de trabalho e

diversão.

Azevedo mostra como a análise dessas micro-áfricas pode elucidar a criação de

uma cultura mista, heterogênea, que, para além da sociedade paulistana burguesa e

branca, representou o múltiplo, resultado de diálogos, conflitos e misturas de culturas e

formas de viver e conviver que criam aquilo que Antony Appiah35

denomina de “tela

multifacetada” própria de culturas formadas a partir do Atlântico Negro. Como

especifica:

No entanto, mesmo com a verticalização guiada por um conceito de

monumentalidade da cidade, não se conseguem calar projetos dissonantes

que se faziam na experiência social concreta. Geraldo viveu suas experiências

no entre-lugar invisível da cidade dos fotógrafos, urbanistas, arquitetos e

prefeitos. Por entre essa metrópole tentacular as culturas negras e mestiças

irão, em alguns aspectos modificar, e em outros manter seus sentidos de

existência. Diante de um espaço urbano que tenderia a alisar e padronizar as

experiências, houve a penetração em fissuras não controladas pelo projeto

hegemônico de cidade para se viver as musicalidades.36

Nos cinco capítulos em que sua obra está dividida, procura trabalhar os materiais

que coleta em relação a Geraldo Filme: uma entrevista dele a um programa musical, um

filme-documentário, letras de música e jornais, e desenvolve como isso pode, de alguma

33

AZEVEDO, op. cit. 34

De acordo com os jornalistas Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli: Numa noite em que seu amigo

Johnny Alf se apresentava numa boate paulistana, o poeta e letrista Vinicius de Moraes teria se envolvido

num bate-boca com um grupo de pessoas por causa do barulho que faziam e proferido uma frase que

ficaria célebre: “São Paulo é o túmulo do samba”. RIBEIRO, Eduardo; BARONCELLI, Wilson. Que

túmulo que nada. Jornalistas e Cia. Ano II – nº16 – 5/7/2013 35

APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997, p. 11. 36

AZEVEDO, op. cit., p. 184.

Page 28: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

27

maneira, ajudar a reconstruir memórias e histórias não contadas pela historiografia

tradicional sobre São Paulo e mesmo sobre o samba.

O que se pretendeu esclarecer aqui, portanto, é que para estudar a cidade e as

transformações pelas quais ela passa no decorrer dos séculos, “dar ouvidos” a

personagens que, como verdadeiros flaneurs, desvendaram a cidade e suas entranhas, ao

caminhar, observar, vivenciar e, por fim, contar pode ser, não apenas válido, mas

bastante enriquecedor. Antônio Pedro Tota, em seu artigo Cultura, política e

modernidade em Noel Rosa,37

estudando a cidade do Rio de Janeiro, apresenta um bom

exemplo de como seguir esse caminho: problematizando a figura de “crítico a sociedade

burguesa”,38

atribuída a Noel Rosa, Tota analisa os percursos criados através de suas

composições e percebe que se tratavam de criações de um artista preocupado em contar

aquilo que absorvia de seu meio. Em muitas de suas canções, emerge, então, uma crítica

à sociedade brasileira, em particular, à carioca, das primeiras décadas do século XX; aos

olhos de Noel, mesmo sendo cada vez mais moderna e economicamente mais submissa

ao capital estrangeiro, podia fazer tremer de tensão e saudade os olhos e ouvidos dos

mais atentos. Qual outro meio mais intenso poderia existir para explicitar certos

acontecimentos, certas transformações, certas angústias trazidas pelo novo, do que a

música de Noel? De que outra maneira mais direta seríamos levados a sentir saudade de

um tempo que se foi, absorvendo e reelaborando informações, se não através de uma

canção que diz “Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa”.

Dessa forma, com a utilização dos alicerces teórico-metodológicos supracitados,

pretende-se uma nova contribuição ao que se tem pensado acerca da música popular

brasileira fugindo sempre do que Paul Gilroy chamaria de “nacionalismo cultural

silencioso”39

, que acredita-se aqui estar bastante presente nos escritos acerca do samba.

Apesar de as obras de Moraes, Matos e Azevedo terem uma outra cidade como

objeto de análise, ou seja, São Paulo, seus métodos e abordagens são exemplares do que

se busca construir e da postura a ser adotada neste trabalho, de historiadores

preocupados em contar, através da música, a história de lugares e pessoas até então

subjugados pela historiografia tradicional.

37

TOTA, op. cit., p. 46. 38

A ideia de dar mais ouvidos aos personagens comuns do dia a dia também pode ser pensada nas

questões trabalhadas por Walter Benjamin, em O narrador. Dissecando a própria questão da arte do

narrar, Benjamin, através do estudo da vida e das obras do literato Nikolai Leskov indica como conhecer

um legitimo narrador, aquele sujeito cada vez mais raro no mundo, que teria como função primordial

sugerir, sempre, uma “moral da história” naquilo que conta. 39

GILROY, op. cit., p. 37.

Page 29: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

28

Sobre História e Identidade

Outras prerrogativas que foram abertas com a mudança dos paradigmas da

História dizem respeito aos chamados “estudos pós-coloniais”, que possuem como um

de seus preceitos principais o “multiculturalismo”, que, principalmente após as décadas

de 1980 e 1990, ganharão fôlego intenso e serão desenvolvidos em pesquisas que

perpassam a teoria literária, a psicanálise, a filosofia, a antropologia, a política e a

história.

Tais estudos possuem como uma de suas características, além da proposta de

transversalidade, a busca por um diálogo que possibilite perceber os processos de

colonização a partir de pontos de vista não mais pautados no discurso eurocêntrico das

ex-metrópoles. Trata-se, como pontua Stuart Hall, de uma proposta que “relê a

colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e

transcultural e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, ou global das grandes

narrativas imperiais do passado centradas na nação”40

.

Importante ressaltar, que o termo pós-colonial não pretende estabelecer meras

periodizações baseadas em estágios, mas, para além disso, perceber as possíveis

resultantes do processo de colonização como um período de influências múltiplas que

continuam presentes nas histórias dos povos dominados e dominantes e que, se

corretamente problematizados, podem ajudar na observação da história a partir de novos

paradigmas.

Ainda de acordo com Hall,41

muito embora as sociedades multiculturais não

sejam algo novo, afinal, os impérios grego, romano, islâmico otomano e europeu podem

ser considerados multiétnicos e multiculturais, o final do velho sistema imperial

europeu e das lutas pela descolonização e independência nacional e depois, o final da

Guerra Fria, possibilitaram um novo impulso para os estudos que intentam novos meios

de dizer o que já foi dito e ainda permitem que se fale acerca de tudo o que se calou

durante boa parte da história.

Dessa forma, junto e em conjunto com as questões trabalhadas acerca do samba

e das favelas cariocas, pretendeu-se, sobretudo, representar – tendo como alicerces as

ideias levantadas por pensadores como o sociólogo português Boaventura de Sousa

40

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011,

p. 102. 41

Ibidem, p. 52-5.

Page 30: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

29

Santos,42

o semiótico argentino Walter Mignolo,43

o poeta e etnólogo martiniquense

Édouard Glissant,44

o literato cubano Antonio Benitez Rojo,45

o sociólogo inglês Paul

Gilroy46

e o acima mencionado teórico cultural jamaicano Stuart Hall–uma contribuição

efetiva no que diz respeito à produção de uma História que proponha diferenças

horizontais, sem a existência de grupos ou características próprias de uma análise

baseada em pensamentos de ordem capitalista, colonial e patriarcal. Pretendeu, portanto,

fugir-se da lógica do samba enquanto produto de uma cultura nacional brasileira única e

homogênea.

Em outras palavras, procurou construir-se um lugar sob luzes pós-eurocêntricas

onde a cultura brasileira possa ser observada e discutida a partir daquilo que Glissant

chama de “culturas compósitas”, indicando que apenas através da abertura ao múltiplo e

aos personagens vistos até então como excluídos e desclassificados – personagens que,

de maneira recorrente, estão presentes nas letras de Kéti –, uma história possível, justa e

necessária pode ser construída.

Teremos, ainda, como um dos nortes de nossas explanações a noção trabalhada

por Salomão Jovino da Silva47

, quando discute as polifonias existentes nos protestos de

grupos negros engajados de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, durante os anos de

1970 e 1980. De acordo com o autor, tais grupos buscavam um ponto de convergência

entre as culturas residuais de origem africana e práticas culturais e artísticas

contemporâneas, visando reconhecimento artístico, visibilidade social e legitimidade

política. Dessa forma, a partir da manipulação de símbolos, imagens, alegorias,

representações, ressignificações do passado grafadas nas letras, arranjos e

instrumentações, teriam reinventado uma África sedenta por um espaço que, pelo menos

desde o século XVI, vinha sendo aqui na América, negado. Através dessas

musicalidades urbanas, repletas da noção de “culturas compósitas” a pouco citada, seria

42

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Contexto

Internacional, n.23, v.1, 2001, p. 7-34.

__________________________. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.

Revista Crítica de Ciências Sociais, n.63, 2002, p. 237-80.

__________________________. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo:

Cortez, 2006. 43

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em

política. In: Cadernos de Letras da UFF–Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008. 44

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2005. 45

BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998. 46

GILROY, op. cit 47

SILVA. Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e musicalidades

negras urbanas nos anos 70-80 em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado) –

Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.

Page 31: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

30

possível, portanto, identificar o contexto em que essas letras teriam sido criadas, num

eterno construir-descontruir-reconstruir de identidades. Identidades, no plural, uma vez

que tais práticas teriam sobrevivido na esteira dos séculos tendo como máxima a

pluralidade de suas atuações e discursos nos quais, ainda de acordo com Salomão, a

univocidade seria algo difícil, se não impossível, de ser localizado.48

Dessa forma, passamos por um momento, onde ocorrerá um embate/negação à

hegemonia cultural de tendência majoritariamente branca, cristã, ocidental que em

conjunto com a negação e a busca de caminhos possíveis frente ao contexto político

instaurado no Brasil do pós-golpe civil-militar, encontrará um terreno fértil para

germinar novos sujeitos ou mesmo, dar voz, a velhos sujeitos tão pouco considerados no

decorrer de nossas História.

“Ela pensa que minha vida é uma beleza

Eu dou duro no baralho

Pra poder comer

A minha vida não é mole, não

Entro em cana toda hora sem apelação

Eu já ando assustado, sem paradeiro

Sou um marginal brasileiro”

(Nega Dina, 1957)

Na letra de Nega Dina, tenta compreender-se o que significa a expressão

“marginal brasileiro” dentro da lógica levantada por Kéti, já que, através de tal

categorização da qualidade de marginal, abre-se espaço para pensar numa série de

referências socioeconômicas que o compositor pretende indicar. Da mesma forma,

tomaremos “Malvadeza Durão” como exemplo:

“Mais um malandro fechou o paletó

Eu tive dó, eu tive dó

Quatro velas acesas em cima de uma mesa”

(Malvadeza Durão, 1964)

48

Ibidem, p. 51

Page 32: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

31

Assim, pretende-se aqui a observação da História a partir de ideias como as

teorizadas por Boaventura de Sousa Santos,49

que defende a necessidade da construção

de uma nova história baseada na horizontalidade e na justiça social que indiquem, de

forma real e não apenas superficial, os meios pelos quais uma mudança de mundo pode

ser conquistada.

Ele também indica que a ciência deve possuir, se pretende realmente transformar

o mundo, preocupações que tanjam o que ele denominou a) Sociologia das Ausências,

b) Sociologia das Emergências e c) Ecologia dos Saberes. Tais questões poderiam ser

resumidas da seguinte maneira: aceitar mais conhecimentos e meios de viver e ver um

mundo que possibilite um verdadeiro “conversar” sobre a humanidade.

Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o

saber em causa tenha legitimidade para participar de debates epistemológicos

com outros saberes, nomeadamente, com o saber científico. A ideia central da

sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem

saber em geral. [...] Deste princípio de incompletude de todos os saberes

decorre a possibilidade de diálogo e disputa epistemológica entre os

diferentes saberes.50

Assim, ele defende a ideia de que “outros saberes” possam ser observados e

nomeados como “saber científico”, uma vez que, apenas dessa maneira, poderiam

representar pistas ou documentos do que se pretende analisar.

Em conformidade com as ideias desse autor, Glissant irá propor, em seus

estudos sobre identidades culturais, que o estudo dos povos, independentemente de

quais forem, sejam feitos a partir dos próprios povos e não dos pressupostos metafísicos

que durante séculos têm operado o sistema de racionalidade burguesa. Dessa forma, ele

critica, entre outras características dessa ciência burguesa e eurocêntrica: o racionalismo

burguês, a transparência do real, a objetividade do conhecimento e os resultados “unos”

que tais formas de pensar o mundo e o homem podem sugerir. Para o autor, “O Uno não

prevalece, nem tampouco o único, nem a unidade. A realidade os tritura e os realiza”.51

Ou seja, ao se propor o estudo do homem e das culturas e identidades que podem ser

produzidas por esta teoria, deve-se partir do pressuposto de multiplicidade latente criada

a partir da troca forçada ou não, característica de culturas que, como a cultura brasileira,

sofreram com a escravidão dos nativos e, posteriormente, com a escravidão dos negros

africanos.

49

SANTOS, op. cit. 50

SANTOS, 2006, p. 16. 51

GLISSANT, op. cit. p. 155.

Page 33: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

32

Dessa forma, o autor estabelece que uma maneira eficiente de se empreender a

busca por um conhecimento diferente desse modo mais limitado, herança do

pensamento iluminista, seria a elaboração do pensamento poético, mais aberto e menos

interessado em impor modelos de análise, entrelaçando fios de seu lugar cultural com a

Totalidade-terra.

Em Rojo,52

autor também utilizado no sentido de auxiliar na construção do que

se entende aqui como cultura brasileira, observamos a sua impressão de que a

identidade caribenha – na qual a cultura brasileira está contida – seria difícil de

classificar. Ele afirma que a aventura intelectual dedicada ao investigar o caribenho está

destinada a ser uma busca contínua, uma vez que são culturas múltiplas e que, de certa

forma, estarão sempre em processo de formação e transformação.

O trabalho aqui desenvolvido não pretende, de maneira alguma, estabelecer

características únicas e fixas para o que seria a cultura brasileira e, dentro dela, o que

representaria o samba. A intenção é, na verdade, corroborar com todos os autores

anteriormente citados, numa intenção de reafirmar aquilo que disse Stuart Hall acerca

dos pesquisadores que pretendessem estudar as identidades nacionais: o que se procura

aqui é “costurar as diferenças numa única identidade”,53

o que será sempre algo

múltiplo, tal qual uma colcha de retalhos que só pode ser costurada partindo de vários e

diferentes pedaços e, por isso, será sempre única, mesmo se comparada a outras como

ela.

Estrutura e Objetivos

Visando, portanto, a elucidar cada uma das temáticas supracitadas, este trabalho

está dividido em dois capítulos principais, cada um com três “subtemas” que, embora

possuam particularidades e especificidades, complementam-se em relação à

problemática central desta monografia, que é, como já explicitado, observar a existência

de uma identidade multifacetada– criada a partir da herança do Atlântico Negro e da

convivência desta com as demais diversidades existentes na “colcha de retalhos” que era

a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX – por meio da produção musical e da

vida de Zé Kéti.

52

ROJO, op. cit. 53

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 65.

Page 34: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

33

No Capítulo 1, intitulado “Transformações urbanas e questões de gênero em

Kéti”, buscamos reescrever os primeiros anos da vida do compositor, observando,

paralelamente, por quais grandes transformações urbanas, culturais e sociais a cidade do

Rio de Janeiro estaria passando.

O capítulo em questão foi subdividido nos seguintes temas: “Kéti e a múltipla

Rio de Janeiro”, no qual procuramos reconstruir uma Rio de Janeiro dos inícios do

século XX que, embora cada vez mais urbana, possuía, ainda, características rurais

observadas nas culturas dos bairros em que Zé Kéti residiu, fato que acreditamos ter

influenciado na maneira pela qual esse sujeito-personagem notou a questão da cidade. É

durante esse subcapítulo que as explanações acerca da cidade prometida e da cidade

fracassada começam a ser levantadas. Tal discussão pretendeu levantar o paradoxo

existente entre os “planos” urbanísticos de saneamento e embelezamento para a cidade

do Rio de Janeiro, há muito desejados, e os resultados destes que em muitos momentos

podem ser vistos como fracassados não apenas no sentindo de não sustentar o grande

contingente populacional que a cada momento crescia naquele lugar, mas, também, à

medida em que destruía polos de sobrevivência e propagação de saberes e fazeres

seculares.

Quanto, por exemplo, não teria sido destruído para que a Avenida Presidente

Vargas fosse construída?54

Figura 2 Planta Geral da Avenida Presidente Vargas.55

Em “Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de

uma Rio de Janeiro mutante” procuramos, a partir do levantamento de outros sambistas

e cronistas do mesmo período, analisar por quais questões mais urgentes passava a

54

Memória da destruição: Rio – uma história que se perdeu (1889-1965). Rio de Janeiro: Prefeitura da

Cidade do Rio de Janeiro/ Secretaria das Culturas/ Arquivo da Cidade, 2002. Disponível em:

<http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204430/4101439/memoria_da_destruicao.pdf>. Acesso em jan.

2014.

55 Ibidem, p. 39.

Page 35: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

34

cidade do Rio de Janeiro, percebendo, assim, em qual meio nosso compositor atuava.

Por fim, em “A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti” procuramos estabelecer

uma discussão que permitisse a análise da história por meio da apreciação de ambientes,

práticas culturais e sujeitos, vistos até há pouco tempo como “a-históricas”. Analisando

esses “outros sujeitos” narradores e participantes ativos de uma nova forma de contar

história, procuramos encontrar meios que nos permitissem adentrar a trama histórica

dos primeiros cinquenta anos do século XX.

Outras questões trabalhadas nesse capítulo, dizem respeito à chamada Era de

ouro da música brasileira: Quais as novidades do período? Quem são as grandes

cantoras e os grandes cantores relativos a essa geração? Quais as novas tecnologias

relacionadas ao mundo da indústria cultural e qual o impacto e reflexo destas na

sociedade brasileira? Quem são os compositores e cronistas que cantam a cidade e,

afinal, como ela é retratada?

No Capítulo 2, intitulado “A estética do espaço em Kéti”, procuramos trabalhar,

de maneira central, o período da história de José Flores de Jesus por um ponto de vista

essencialmente político que investigou, de maneira especial, a vida dessa personalidade

durante os anos de 1960 e 1970, período em que ocorreu no Brasil, dentre outras

questões, a chamada ditadura civil-militar brasileira. O capítulo está subdividido nas

seguintes temáticas: “Desconstruindo a cidade-partida: Favela sujeito versus favela

objeto”; “A desconstrução da favela-objeto em Kéti”; e “A desconstrução dos sujeitos-

objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show Opinião”. Nesses textos, discutiremos, de

maneira pontual, a respeito do Show Opinião, do Cinema Novo e do crescimento dos

movimentos revolucionários culturais e musicais negro-urbanos durante o período.

Aqui, nosso intuito é perceber a luta de determinadas camadas da sociedade brasileira

em derrubar certos estereótipos em relação à favela e seus moradores – e grande parte

negros.

No decorrer dos dois capítulos, tomarão espaço não apenas as letras de Kéti, mas

também as entrevistas concedidas por ele ao MIS-RJ e ao MIS-SP, um documentário

realizado para comemorar seus noventa anos de nascimento, reportagens e entrevistas

de jornais e revistas encontradas na Discoteca Oneyda Alvarenga, do Centro Cultural

São Paulo, bem como o próprio livro de Ney Lopes, intitulado Zé Kéti: O samba sem

senhor.56

Todos os documentos citados, nos forneceram várias informações acerca das

56

LOPES, Nei. Zé Kéti: o samba sem senhor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

Page 36: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

35

posturas e dos posicionamentos políticos que Kéti teria levado a cabo durante os anos

em que mais produziu musicalmente.

As entrevistas de Kéti concedidas aos MIS-SP e MIS-RJ foram fundamentais,

uma vez que possibilitaram observar aspectos da memória não apenas daquilo que Kéti

viveu, mas também daquilo que o grupo no qual estava inserido produziu enquanto

verdade. Kéti, como todos nós, reproduz o que julga importante, tendo como parâmetro

o seu espaço e tempo próprios.

Em razão de as entrevistas terem sido realizadas em momentos bastante

diferentes de sua vida e carreira (respectivamente, 1967 e na década de 1980), foram

notadas diferentes posturas, engajamentos e modos de observar situações que, para além

de representarem incongruências ou contradições, se ligam aos saberes e às emoções

relacionadas com períodos específicos da história do Brasil, da cidade do Rio de Janeiro

e da vida de Kéti.

O documentário intitulado 90 anos de nascimento de Zé Kéti57

foi interessante

no sentido de mostrar o Kéti construído imageticamente na cultura do samba brasileiro.

Como se trata de um documentário feito após a morte do compositor, percebe-se uma

clara tentativa de enaltecer sua figura.

Em nossa conclusão, ou, ainda, em nossas considerações finais, uma vez que

acreditamos que tal tema não possua nem esteja perto de possuir conclusões,

procuramos estabelecer “Uma reflexão acerca da cidade do Rio de Janeiro e de suas

identidades pós-coloniais” por meio do aporte teórico do poeta e etnólogo

martiniquense Édouard Glissant, do literato cubano Antonio Benitez Rojo, do sociólogo

inglês Paul Gilroy e do teórico cultural jamaicano Stuart Hall. Foi intento definir um

projeto de identidade para o samba e para a favela carioca afastado de noções quase

canonizadas da favela enquanto lugar de ausências e carências e do samba como

produto da cultura nacional brasileira. Em outras palavras, procuramos analisar ambos –

samba e favela – a partir daquilo que Édouard Glissant denominou como irrué,58

que

representa a mistura de irrupção e o ímpeto, de realidade e irrealidade, características

que se acredita estarem presentes não apenas nas produções que foram aqui analisadas,

mas também no próprio samba (assim como nos demais gêneros musicais formados no

57

TV BRASIL. De lá para cá, 7 ago. 2011. Disponível em:

<www.youtube.com/watch?v=gww6GgE4jdM>. Acesso em: 10 nov.2013. 58

GLISSANT, op. cit., p. 15 – 16.

Page 37: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

36

espaço do Atlântico Negro) e mesmo na identidade da favela carioca e do povo

brasileiro. Como indica Muniz Sodré:

Deve-se admitir a heterogeneidade dos espaços, acolher o movimento de

diferenciação, o paradoxo em relação ao real. Na territorialização,

apreendem-se os efeitos de algo que ocorre, que se desenvolve, sem a

redução intelectualista dos signos.59

Esse último capítulo, portanto, não se interessou em ser mais uma contribuição

frente aos trabalhos que pretendem destacar o espaço da favela como lócus próprio de

carências e ausências, mas, sim, observá-lo como um lugar organizado à “maneira como

os habitantes ordenaram as suas relações com a terra, o céu, a água e os outros homens”,

e que, por isso, merece um estudo histórico não pautado em pré-conceitos, uma vez que

a “História dá-se num território, que é o espaço exclusivo ordenado das trocas que a

comunidade realiza na direção de uma identidade grupal”60

e mais, uma vez que o

“território é, assim, o lugar marcado de um jogo, que se entende em sentido amplo

como protoforma de toda e qualquer cultura: sistema de regras de movimentação

humana de um grupo, horizonte de relacionamento com o real”;61

em outras palavras, o

estudo das favelas necessita de propostas de análises menos oclusas, que possibilitem

uma análise real de suas movimentações e construções socioeconômicas.

Por fim, estabelecemos, em nossas considerações finais, o que conseguimos

apreender do conjunto analisado: De que maneira a realidade urbana do Rio de Janeiro

pode ser interligada com questões de cunho cultural e de que maneira essa cultura

produzida pode ser compreendida pela noção de uma identidade polirrítmica e

policêntrica entre Brasil e África, entre morro e asfalto, entre, afinal, as diferenças e os

diferentes existentes no Rio de Janeiro e, de fato, no Brasil? Pretendemos, por fim,

demonstrar como para além da “invenção do brasileiro”, da “invenção do carioca” e da

“invenção da favelado” existe a possibilidade da criação de uma cultura outra, mista,

não fixada, uma “interidentidade” que não admita fronteiras e que, exatamente por isso

seja capaz de enxergar um novo mundo onde não exista espaços para o medo relativo ao

“outro”, ao “diferente”; um mundo onde os Direitos Humanos sejam realmente

possíveis uma vez que deem conta de uma “constelação identitária complexa, em que se

59

CABRAL, Muniz Sodré de Araújo. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 13. 60

Ibidem, p. 22. 61

Ibidem, p. 23.

Page 38: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

37

combinam traços de colonizador com os do colonizado”62

e onde todos, afinal, sejam

humanos.

62

Santos, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e

interidentidade, Luso-Brazilian Review, 39, 2, 2002, 9-43. p. 9.

Page 39: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

38

CAPÍTULO 1: TRANSFORMAÇÕES URBANAS E RELAÇÕES DE

GÊNERO EM KÉTI

Quantas experiências podem estar contidas nos primeiros anos de vida de

alguém? Quanto de nossas primeiras relações pessoais, redes de amizade e convívio

podem ser responsáveis por construir uma parcela de quem seremos quando adultos?

No capítulo que agora iniciamos pretendemos tratar da maneira pela qual os

primeiros anos de vida de nosso sujeito-personagem serão importantes para o seu futuro

enquanto compositor.

De acordo com pesquisa feita pela PhD em música Beatriz Ilari da Universidade

Federal de Paraná:63

Descobertas recentes da neurociência, psicobiologia, psicologia do

desenvolvimento, educação e psicologia da música vêm fomentando um

interesse crescente acerca do desenvolvimento cognitivo-musical do ser

humano [...] Durante a infância, o cérebro humano é mais maleável e os

efeitos da aprendizagem são maiores que em qualquer outra fase da vida

(Flohr, Miller & Deebus, 2000). Isso também parece ser o caso do

desenvolvimento auditivo. Como exemplo, sabe-se hoje que é no período

entre o nascimento e o décimo aniversário que as distinções entre alturas,

timbres e intensidades se desenvolvem e se tornam mais refinadas (Werner &

Vandenbos, 1993). É também nesta época que as crianças desenvolvem suas

preferências e memórias musicais (veja Ilari & Polka, no prelo; Trainor,

1996; Trehub & Schellenberg, 1995). O desenvolvimento cognitivo-musical

nesta época ocorre através de processos como impregnação e imitação (Ilari

& Majlis, 2002), e está normalmente associado a diversas funções

psicossociais como a comunicação, inclusive de emoção, entre crianças e

adultos, o endosso de normas culturais e étnicas, e o entretenimento

(Gregory, 1998; Huron, 1999; Ilari, no prelo; Trainor, 1996; Trehub &

Schellenberg, 1995; Trevarthen, 2001)

Dessa forma, levando em consideração que os anos iniciais da vida de uma

criança sejam importantes do ponto de vista da aprendizagem e da percepção acerca de

suas primeiras concepções em relação ao mundo que a circunda e ao universo mais

particular que a contém, acreditamos que resgatar algumas das relações que Kéti

vivenciou enquanto criança é muito importante para compreender não apenas uma gama

de questões vinculadas ao seu universo musical enquanto sambista, mas também em as

temáticas presentes em seu repertório.

Assim trabalharemos dois temas que nos pareceram os mais problemáticos na

infância de Kéti, quais sejam: as relações que começa a estabelecer com “as cidades” do

Rio de Janeiro – subúrbios, morros e asfaltos – e as relações de gênero, mais

63

ILARI, Beatriz. A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos.

Revista eletrônica de musicologia. Universidade Federal do Paraná, vol. 9, out. 2005.

Page 40: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

39

especificamente, os embates do masculino e do feminino que são travados nessa cidade

múltipla e em transformação que era a Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX.

José Flores de Jesus, o Zé Kéti, nasceu em 16 de setembro de 1921. Ainda nos

primeiros anos de infância, que ocorreram aos pés da chamada “época de ouro” da

música popular brasileira, iniciou sua formação musical, profundamente marcada pelos

timbres de seu cotidiano de menino, embalado pelas festas e arrasta-pés organizados por

seu avô, João Dionísio de Santana, o “João Folião”, e pelos bailes e sambas noturnos,

principalmente o “Prazer das Morenas”, aos quais era levado por sua mãe, dona Leonor

Inácia de Jesus.

Kéti ainda era muito menino para perceber – e de fato, talvez esse tenha sido um

detalhe ao qual nunca se tenha atentado – mas os primeiros sete anos de sua vida

acompanhariam, num paralelo distante, as influências ligadas ao mundo musical

brasileiro, principalmente do Rio de Janeiro, que cedo ou tarde influenciariam o seu dia

a dia. Esse período vivia os reflexos causados por duas ocasiões: o lançamento do

samba-maxixe “Pelo Telefone”, de José Barbosa da Silva, o Sinhô, em 1917, e o final

da Primeira Grande Guerra, em 1918.

O lançamento do samba-maxixe “Pelo Telefone” embora estivesse fadado a

carregar uma série de discussões acerca de sua real natureza rítmica e conceitual,64

seria, de fato, um marco divisor em relação às produções musicais que ocorriam no Rio

de Janeiro. O sucesso dessa composição teria, em certa medida, despertado a atenção de

compositores para dois novos estilos: o próprio samba65

e as marchinhas de carnaval. Já

o término da Primeira Guerra Mundial marcaria o início de uma influência mais

intermitente da cultura dos Estados Unidos em terras brasilis: Não apenas estilos como

o shimmy, o Charleston, o black-bottom e, principalmente, o fox-trot passam a estar

64

Carlos Sandroni, em sua importante obra Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro

1917-1933, comenta acerca das discussões geradas sobre o samba em questão que, para muitos, como,

por exemplo, Máximo e Didier, seria um samba-amaxixado e para outros, como por exemplo, Mario de

Andrade, seria simplesmente um maxixe. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do

samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 132-135. 65

Não pretendemos com isso, afirmar que o samba surgirá apenas depois do lançamento de “Pelo

Telefone”, afinal de contas, muito samba já era cantado nas festas que ocorriam, por exemplo, nas casas

das Tias. O que defendemos é que o lançamento do samba em questão, abrirá espaço para que esse estilo

seja, cada dia mais aceito pelo grande público, aumentando os seus espaços de circulação. Como

comentaria Caldeira em sua dissertação de mestrado: "(...) não é apenas a criação de uma forma musical,

mas também um fenômeno social que envolve, ao mesmo tempo, a individualização da figura do autor, a

circulação da obra criada, num meio social amplo, por meios mecânicos". CALDEIRA, Jorge. A voz:

samba como padrão de música popular brasileira (1917 / 1939). Dissertação (Mestrado) – faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 17

Page 41: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

40

cada vez mais presentes em nosso dia a dia,66

mas também, a própria tecnologia

importada da terra do Tio Sam.

É nesse período que chega ao Brasil o sistema eletromagnético de gravação do

som, um dos grandes inventos do pós-guerra. Tal novidade na forma de gravar músicas

tem grande importância, principalmente por possibilitar que as canções pudessem ser

registradas sem que para isso o cantor ou a cantora precisasse gritar, inaugurando,

assim, no Brasil a fase de culto à voz, que atingiria o seu auge na década de 1930 e que

teria como nomes de destaque Francisco Alves, Vicente Celestino e Araci Cortes.

Outras importantes tecnologias que chegaram ao Brasil ainda nesse período

foram o rádio e o cinema, que, em pouco tempo, ajudariam a divulgar a nova “cara” que

se pretendia dar à cultura musical brasileira e marcariam muito a já supracitada “fase de

ouro” da música popular brasileira.

1.1 Kéti e a múltipla Rio de Janeiro

Filho de uma empregada doméstica, a já citada Dona Leonor, e de um pai

marinheiro, cavaquinhista e metido a conquistador, Kéti nasceu em Inhaúma, Zona

Norte do Rio de Janeiro, bairro que já em meados do século XVII se destacava como

área de pequenos portos e denso comércio e que, desde o final do século XIX, vinha

observando os reflexos da abertura da Avenida Automóvel Clube e da implantação da

Estrada de Ferro Rio D´Ouro, que mais tarde, em 12 de março de 1983, se transformaria

na Linha Auxiliar do metrô.

Depois que o pai morreu de uma “xícara de café”, assunto que trataremos em

breve, Kéti mudou-se com a mãe para a casa do avô, em Bangu. Embora ainda fosse

passar em um curto período pelos bairros de Dona Clara, Piedade e, finalmente, Bento

Ribeiro, onde moraria de 1935 até meados da década de 1970, quando se mudaria, por

pouco tempo, para a cidade de São Paulo, foi ali, em Bangu, com o avô, tocador de

flauta e piano e amigo de Pixinguinha e Cândido das Neves, que Kéti desenvolveria

curiosidade e apreço pela música; e foi ali também que, sempre atento ao que faziam

nas festas organizadas por seu avô e observando quietinho a maneira pela qual as notas

66

Mais informações acerca do período disponíveis em SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A

canção no Tempo: 85 anos de músicas brasileiras (1901-1957). vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1997.

Page 42: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

41

eram geradas, fora apelidado de Zé Quieto ou Zequéti, que mais tarde, com a voga dos

nome com “K” como Kennedy, Khrushchev e JK, se transformaria em Kéti, o Zé Kéti.

De fato, o próprio Zé explicaria no palco do Show Opinião a origem do apelido:

Esse negócio de apelido: você sabe porque é que me chamo Zé Kéti... É o

seguinte: quando minha mãe ficou sozinha pra (sic) me sustentar, ela foi ser

empregada doméstica. Quando minha mãe voltava diziam pra ela: “o Dona

Leonor, o Zé ficou quieto. O Zé ficou quietinho. Zé quietinho, Zé quietinho.

E acabou Zé Kéti. Aí então comecei a escrever meu apelido com “K”. “K”

tava dando sorte, tava por cima: Kennedy, Khrushchev, Kubitschek.67

O caso é que, morando em Bangu com o avô, Kéti pôde aproveitar os resquícios

de um ambiente ainda bastante rural, dotado de um cotidiano marcado por festas de

igreja à moda antiga, onde as ruas eram decoradas com bandeirinhas coloridas, tomadas

por barracas de prendas e comidas caseiras, cheirosas e saborosas que deveriam

dominar o olfato dos que por ali passassem e o paladar daqueles que ao cheiro não

conseguissem resistir. Fora isso, a audição seria estimulada pela bandinha da região e,

claro, pelas procissões. Por fim, um foguetório daria mais cor à festança da região que,

nos dias “normais”, teria um cotidiano marcado pela vaca leiteira, o quitandeiro, o

vassoureiro, o saboeiro, por resquícios, enfim, de uma vida carregada de hábitos que

dentro em pouco se esvairiam da região, uma vez que, desde 1882, assim como em

Inhaúma, ali também já havia chegado o trem, e junto dele variadas transformações.

Signo de um período de profundas mudanças políticas, econômicas, sociais e

culturais não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do próprio Brasil, a ampliação

das linhas de trem na cidade podem ajudar a compreender de que maneira os primeiros

anos de vida de Kéti estariam geográfica e historicamente localizados, influenciando o

cotidiano desse sujeito-personagem.

Em artigo que relaciona o samba e o crescimento das linhas de trem no Rio de

Janeiro da virada do século XIX para o século XX, o historiador Carlos Eduardo Dias

Souza comenta:

Foi no mesmo período em que se iniciaram as intervenções urbanas que as

estradas de ferro Dom Pedro II e Leopoldina aumentavam o número de

composições para os subúrbios da cidade, que viam seu crescimento acelerar

na mesma velocidade das locomotivas. Tal processo possibilitava a uma

população mais pobre deslocar-se no espaço urbano em busca de moradias

mais em conta. Como opções, havia os morros: a Providência já era habitada

há anos, e viu sua população crescer ainda em meados do XIX, quando o

Morro da Favela começaria a adensar. Ademais, o Rio oitocentista contava

67

KETTI, Zé; LEÃO, Nara; VALE, João do. Show Opinião. Rio de Janeiro: Polygram/Philips, 1965. LP.

Disponível em: <www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00370>

Acesso em: 10 jun. 2013.

Page 43: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

42

com outros morros bem no centro da cidade. Lembremos que os Morros do

Senado, de Santo Antônio e do Castelo faziam parte da paisagem carioca até

relativamente pouco tempo. Os três últimos, destruídos, lançavam no espaço

urbano uma população sem destino: quanto mais longe do centro civilizado,

melhor. E é aí que o trem entra em nossa história.68

Mas a quais intervenções urbanas Souza faz referência?

Pode-se dizer que, desde a chegada da Família real ao Brasil, em 1808, um ideal

remodelador urbano europeu tornou-se comum nas discussões arquitetônicas do país e,

principalmente, da cidade então sede da coroa, e que apesar das discrepâncias sociais

que produziam tais ideias de embelezamento e enquadramento essas tendências

europeias seriam recolocadas na ordem do dia, com intensidade e intenções renovadas,

na virada do século XIX para o século XX. Mais especificamente foi no Pós-

Proclamação da República que as elites brasileiras, desejosas por “modernizar” não

apenas os seus preceitos políticos e econômicos, mas também a estética de seu principal

centro político, empreenderiam uma série de novas modificações que, de maneira

bastante direta, flagelariam, uma vez mais, as classes mais pobres e carentes da cidade.

Esse período seria, então, aquele em que as elites do Rio de Janeiro voltariam

suas preocupações primeiramente para os cortiços e, em seguida, para as favelas.

Algo diferente, porém, marcou essas novas intervenções urbanísticas,

caracterizando uma informação bastante relevante para que se possa compreender até

que ponto essas já antigas preocupações chegaram no período da República Velha:

trata-se do tipo social representativo do novo regime. Nas palavras de Nicolau

Sevcenko:

Se os conflitos políticos tendiam a decantar os agentes cuja qualidade maior

fosse a moderação no anseio das reformas, as agitações econômicas, por seu

lado, apuravam os elementos predispostos à “fome do ouro, à sede da

riqueza, à sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do

triunfo.69

De acordo com o autor, não se fala mais de uma Rio de Janeiro dividida entre os

membros de uma corte real e os excluídos dela, mas, sim, de uma Rio de Janeiro

dividida entre os membros pertencentes a uma certa burguesia e os excluídos dela.

Todo o poder e toda a cobiça, anteriormente possíveis apenas a uma minoria

ligada à casa real, espalhavam-se agora pelas casas, cafés e escritórios de uma sociedade

ainda perdida na novidade de sua posição política. Sevcenko, para quem a reconstrução

68

SOUZA, Carlos Eduardo Dias. E o samba pegou o trem: cultura e sociabilidade popular no subúrbio

carioca na primeira república. XIV Encontro Nacional da ANPUH – RIO, Rio de Janeiro, 2010. 69

SEVCENKO, op. cit. p. 37

Page 44: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

43

desse “quadro social” também se fazia mister, cita um autor contemporâneo ao período

da República Velha que relata que aquela sociedade se tornava “desabalado torvelinho

de interesses ferozes, onde a caça ao ouro constitui a preocupação de toda a gente”.70

Pensado o quadro social representativo daquela que se configuraria como a

capital da República brasileira faz-se necessário compreender as demais situações

políticas e econômicas correntes nesse espaço e, nesse ponto, não falamos “apenas” da

capital do Brasil, o que já faria dela uma peça fundamental nas decisões políticas

brasileiras, mas, também, de uma Rio de Janeiro que economicamente se sobrepunha ao

resto do território nacional: Núcleo da maior rede ferroviária do Brasil, mantinha um

contato direto com o Vale do Paraíba, os estados do Sul e do Espírito Santo, Minas

Gerais, Mato Grosso e, por meio do comércio de cabotagem, com cidades do Nordeste e

do Norte.

Frente a essas características sociais, políticas e econômicas tão urgentes, exibia-

se, envergonhada, uma cidade anacrônica, que insistia em lembrar a burguesia, a

política e a economia daquele Brasil tão dono de si, o seu passado colonial, atrasado e

nada moderno.

A passagem a seguir, embora longa, torna-se extremamente valiosa para

compreendermos como essa cidade antiga começaria a incomodar os novos anseios da

República brasileira:

O antigo cais não permitia que atracassem os navios de maior calado que

predominavam então, obrigando a um sistema lento e dispendioso de

transbordo. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, típicas de uma cidade

colonial, dificultavam a conexão entre o terminal portuário, os troncos

ferroviários e a rede de armazéns e estabelecimentos do comércio de atacado

e varejo da cidade [...] Era preciso, pois, findar com a imagem da cidade

insalubre e insegura, com uma enorme população de gente rude plantada bem

no âmago, vivendo no maior desconforto, imundice e promiscuidade, pronta

para armar em barricada as vielas estreitas do Centro ao som do primeiro

grito de motim.71

Vale apontar que, além das intenções mencionadas, uma nova “preocupação”

configuraria as novas intervenções que serão realizadas na cidade, trata-se da ideia

sanitarista ou, ainda, higienista que estará na “ordem do dia” durante o período relatado.

Tratar-se-á, portanto, de um momento em que os saberes médico e arquitetônico estarão

unidos em prol da construção de uma nova Rio de Janeiro, mais republicana, mais

europeia e mais limpa. Nas palavras de Risério:

70

Ibidem, p. 37. 71

Ibidem, p. 41.

Page 45: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

44

O Regime Republicano deve se traduzir em intervenções visíveis na

materialidade do espaço urbano e, nessa tarefa, engajaram-se médicos,

arquitetos, engenheiros, urbanistas, homens que faziam discurso racionalista

e se sentiam imbuídos da missão da transformação nacional.72

Embora desde o último quartel do século XIX a cidade já fosse objeto de planos

de saneamento e infraestrutura, é a partir de 1904, com a entrada de Pereira Passos na

prefeitura do Rio de Janeiro, que projetos de alinhamento, remodelação, extensão e

embelezamento serão levadas a cabo de maneira sistemática.

Figura 3 Jornal do Brasil. Especial "Jornal do Século", 1903.73

Durante as primeiras décadas do século XX, portanto, as intervenções de Passos

seriam bastante intensas: em torno de 2.700 prédios foram destruídos, alguns para dar

lugar a novas praças e passeios, outros para dar lugar a abertura de novas avenidas ou

mesmo tendo como fundamento a reconstrução de moradias dentro das noções de

higiene apropriadas. O fato que não podemos deixar de sublinhar, no entanto, é que não

se derrubam prédios sem antes retirar seus moradores de dentro deles; e mais: sem que

uma intensa mudança de hábitos sociais e culturais ocorram.

Durante o ano de 1922, quando Carlos Sampaio era o prefeito da cidade,

teríamos o famoso desmonte do morro do Castelo, um local que, para as elites do

período, não possuía mais espaço ou motivos para “ser” uma vez que representaria um

forte resquício de cidade colonial e popular o que, evidentemente, deveria ser apagado

da memória patrimonial da cidade. Não nos esqueçamos, que a data de 1922

representaria, em meio a esse turbilhão de intenções médicas, sanitaristas e

72

RISÉRIO, op. cit. p. 194. 73

Disponível em: <http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=6588> Acesso em 13 de jul.

2013.

Page 46: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

45

embelezadoras, o centenário da proclamação da Independência do Brasil. Era mais do

que urgente, portanto, apagar os ares coloniais que pudessem ainda reinar na cidade do

Rio de Janeiro.

Como diria Vera F. Rezende, é como se colocassem nas mudanças físicas, nas

remodelações e no embelezamento da cidade a possibilidade de se atingir mudanças

sociais.74

Como dito anteriormente, essas reformas provocariam, na verdade, uma

divisão social geográfica cada vez maior que, desde os tempos de D. João VI, eram

efetivadas sem que parecessem, no entanto, percebidas.

A expansão da malha ferroviária carioca representou, portanto, ao mesmo

tempo, uma forma de o governo escoar produtos para o comércio e afastar do centro da

cidade as massas populacionais que, por sua origem, cor ou costumes, não eram bem-

vindas e agora, por conta dos desmontes de morros e regiões, precisavam de um meio

de transporte capaz de trazê-las, em horário comercial, para o centro.

No entanto, de maneira bastante interessante, ao mesmo tempo em que os trens

representavam um meio para afastar certos grupos do centro da cidade, em sua maioria

negros, descendentes de ex-escravos, estes acabaram “reutilizando” esse espaço como

um locus de propagação e resistência de expressões culturais ligadas a esse grupo,

principalmente, o samba.

Os trens viraram, dessa forma, ambiente de convívio e troca social e cultural, ao

mesmo tempo em que representavam um espaço de resistência:

O Jornalista Claudio Vieira declara que o samba ganha rumo na direção ao

subúrbio sobre os trilhos nas décadas de 30 e 40. As composições atrasavam

muito na saída da Central do Brasil, fato que irritava os passageiros, exceto

os passageiros do trem das 18h04min, horário de encontros de sambistas.

Esses passageiros ao saírem do trabalho, diariamente tinham um encontro

com o samba no vagão, logo, não se incomodavam com a demora da saída

das composições, pois era uma oportunidade de encontrarem os compositores

das Escolas de Samba do Subúrbio, situadas ao longo da malha ferroviária.

Os passageiros do trem das 18h04 iniciavam seu percurso com uma batucada

na Praça da Bandeira e só terminavam na Pavuna. As marmitas dos sambistas

eram usadas para tamborilar e os bancos dos trens eram surdos de marcação.

(VIEIRA, 2008, apud, SILVA, 2013, p. 102).75

De maneira parecida, alguns polos da cidade possuiriam um caráter de

preservação e propagação de questões caras à população negra. Um dos mais clássicos

74

REZENDE, Vera. Planejamento e ideologia: quatro planos para a Cidade do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 37 75

SILVA, Cristina da Conceição. O samba do Rio de Janeiro: elementos socializadores dos grupos

étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Grande Rio

“Professor José de Souza Herdy”, Duque de Caxias, 2013.

Page 47: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

46

exemplos disso fica por conta da famosa Tia Ciata, sua casa e a igualmente icônica

“Praça Onze”.

De acordo com Moura:

Na sua casa, capital do pequeno continente de africanos e baianos, se podiam

reforçar os valores do grupo, afirmar o seu passado cultural e sua vitalidade

criadora recusados pela sociedade. Lá começam a ser elaboradas novas

possibilidades para esse grupo excluído das grandes decisões e das propostas

modernizadoras da cidade, gente que progressivamente se integraria, a partir

do processo de proletarização que se acentua no fim da República Velha e da

redefinição de sua vida cultural, com a solidificação das novas instituições

populares, legitimadas e submetidas pela legislação de Vargas. Da Pequena

África no Rio de Janeiro surgiriam alternativas concretas de vizinhança, de

vida religiosa, de arte, trabalho, solidariedade e consciência, onde

predominaria a cultura do negro vindo da experiência da escravatura, no seu

encontro com o migrante nordestino de raízes indígenas e ibéricas e com o

proletário ou o pária europeu, com quem o negro partilha os azares de uma

vida de sambista e trabalhador.76

Vale lembrar que a casa da Tia Ciata não era a única que possuía tal caráter

integralizador, uma vez que as famosas “tias” se espalhavam, principalmente em torno

da extinta Praça Onze e de regiões próximas a esta, como a zona do cais do porto e a

Cidade Nova, pontos que, de acordo com Heitor dos Prazeres, podiam ser reconhecidos

como a “Pequena África” ou, ainda, de acordo com Azevedo, locais onde poderiam ser

percebidas as “micro-Áfricas”, lugares que diante da metropolização e verticalização

inseridas no processo de urbanização das elites hegemônicas da cidade, configuravam-

se como um contraponto dissonante às formas culturais dominantes para operar outras

cidades e outras vivências.77

A Praça Onze, no entanto, como tantos outros pontos hoje extintos da cidade do

Rio de Janeiro, foi “abaixo” para que a moderna cidade republicana pudesse continuar a

ser construída. A demolição, que teve início no ano de 1942 para ceder espaço à parte

da famosa Avenida Presidente Vargas, não apagou, no entanto, a memória do que

significou aquele lugar.

Praça 11, Berço do Samba

(1973)

Favela

Do Camisa preta

76

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro;

Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. p. 152

– 153. 77

AZEVEDO, op. cit. p. 9.

Page 48: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

47

Do Sete coroas

Pra ver o teu samba

Favela

Era criança na praça onze

Eu corria pra te ver desfilar

Favela

Queremos teu samba

Teu samba era quente

Fazia meu povo vibrar

Até a lua a lua cheia

Sorria, sorria

Milhões de estrelas brilhavam por um lugar melhor

Queriam ver a Portela

Mangueira, Estácio de Sá

E a favela com as suas baianas tradicionais

Brilhavam mais do que a luz do antigo lampião a gás

Fragmentos de brilhantes

Como fogos de artifícios

Desprendiam lá do céu

E caiam como flores na cabeça das pastoras

E do samba de Noel

Correrias e empurrões

Gritarias e aplausos

E o sino da capela não parava de bater

Os malandros vinham ver

Se o samba estava certo, se

Enquanto as cabrochas

Gingavam no seu rebolado

No ritmo da batucada

De olho cumprido

Que nem bobinho

Eu terminava dormindo na calçada

De olho cumprido

Page 49: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

48

Que nem bobinho

Eu acabava dormindo na calçada

Kéti, assim como Herivelto Martins e Grande Otelo,78

eternizou, em um samba,

o que a Praça Onze havia significado imagética e sonoramente e o que com ela teria

sido de certa forma “deixado pra trás”. Além disso, o autor mistura uma série de

referências quase mitológicas em relação ao samba e ao próprio locus do morro da

Favela que, de maneira direta, representariam, para ele, o que o samba feito na Praça

significaria.

A letra inicia fazendo referência a dois famosos “desviantes”79

ou malandros –

Camisa Preta e Sete Coroas –, que habitavam a chamada Favela, hoje, Morro da

Providência, famoso principalmente por ter como ponto importante de sua história a

marca de ter sido a primeira “favela carioca”. Kéti também cita, sem fazer juízos de

valor, as três grandes escolas – Portela, Mangueira e Estácio de Sá –, que tiveram os

seus primeiros anos como “escola”, ainda nas ruas de tal Praça que, para além de um

lugar de competição, é apresentada como um local de festa e felicidade, onde Noel

Rosa, as cabrochas, os malandros e a própria igreja teriam espaço.

A Praça Onze, enfim, seria esse local de “Correrias e empurrões, Gritarias e

aplausos” assistido pela lua e pelas “milhões de estrelas que brilhavam por um só

lugar”; esse lugar que fazia com que o pequeno José Flores de Jesus adormecesse, ali

mesmo, sorrindo.

Em outras oportunidades podemos observar como as transformações urbanas da

cidade do Rio de Janeiro influenciaram, diretamente, a vida de Kéti. Vê-se mais um

exemplo disso na ocasião que levou o autor a compor o famoso samba “Jaqueira da

Portela”:

Derrubaram a Jaqueira pra fazer a sede nova. Aí, eu fiquei penalizado. Me

deram até um carrinho de mão pra mim puxar areia, terra, barro, pra limpar,

porque a Portela nessa época, foi em 1940 e pouco, a Portela estava

78

O samba em questão, campeão do carnaval de 1942 e intitulado como “Praça XI” dizia: “Vão acabar

com a Praça Onze/ Não vai haver mais Escola de Samba, não vai/ Chora o tamborim/ Chora o morro

inteiro/ Favela, Salgueiro/ Mangueira, Estação Primeira/ Guardai os vossos pandeiros, guardai/ Porque a

Escola de Samba não sai/ Adeus, minha Praça Onze, adeus/ Já sabemos que vais desaparecer/ Leva

contigo a nossa recordação/ Mas ficarás eternamente em nosso coração/ E algum dia nova praça nós

teremos/ E o teu passado cantaremos” 79

Termo dado a Sete Coroas pela grande imprensa do Rio de Janeiro. Para uma análise mais detalhada

dos sujeitos supracitados, consultar: MATTOS, Romulo Costa. A construção da memória sobre Sete

Coroas, o “criminoso” mais famoso da Primeira República. Anais do XV – Encontro Regional de

História da ANPUH-RJ, Rio de Janeiro, 2012.

Page 50: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

49

inaugurando a sede nova, por que a sede da Portela era no meio do terreiro,

na rua Estrada do Portela 448 e tinha no fundo, assim... no meio do terreiro

lá, uma casinha velha que não dava nem pra entrar direito ali então o pessoal

ensaiava do lado de fora; quando chovia a rapaziada corria pro botequim pra

tomar umas e outras até acabar a hora do ensaio. Se parava a chuva o pessoal

voltava pra cantar, pra sambar em volta da sede velha, na casinha lá, né? Aí,

o filho do Luiz Americano, aquele clarinetista o filho do Luiz Americano que

eu esqueci o nome dele agora, ele conseguiu a estrutura do museu de cera,

gratuitamente e levou pra estrada do portela, pra portela o museu de cera, nas

carretas, naqueles caminhão grande, e lá chegaram, tiraram o museu lá, legal,

e armaram aquele madeiramento, aquelas coisas todas, armaram no lugar

daquela sede velha, sebe? E todo o pessoal, os compositores, artistas da

Portela o pessoal todo, cada um colaborou um pouquinho e a mim me deram

um carrinho de mão, pra mim tirar terra, barro pra ajudar também na

reconstrução da sede nova que tinham derrubado a sede velha e tiveram que

derrubar a jaqueira, a jaqueira da Portela que tinha uma jaqueira grande, e

todo ano, todo natal o pessoal enfeitava a jaqueira com lâmpadas em cores…

então eu fiz aquele samba (sic).80

Da situação, surgiu, no ano de 1963, com gravação original da própria GRES

Portela e selo Albatroz, o samba em questão:

Jaqueira da Portela

(1963)

Quem é que não se lembra

Da jaqueira

Da jaqueira da Portela

Velha jaqueira

Amiga e companheira

Eu sinto saudades dela

Guardei algumas folhas para recordação

Ninguém fez, mas eu fiz a minha oração

Na hora do seu sacrifício eu penei

Ninguém me viu chorar

Mas juro que chorei

Acompanhou as nossas glórias

Nossas vitórias

Em idos carnavais

Eu quero morrer sambando

Assim que nem ela

80

Kéti em entrevista concedida ao MIS-RJ em 9 de fevereiro de 1967. Entrevistadores: Ricardo Cravo

Albin e Hermínio Belo de Carvalho.

Page 51: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

50

Minha fiel jaqueira

Saudosa companheira

Que caiu pra defender nossas cores

Hoje nossa estrada só tem flores.

Sartre81

faria um interessante estudo acerca da “teoria das emoções”, procurando

desenvolver uma análise fenomenológica para aquilo que se entende como tristeza,

alegria, terror, medo etc., buscando compreendê-las como leituras que o consciente faria

do mundo por meio da eterna relação “bipolar” entre os mesmos. Nesse sentido, diria o

autor, “O sujeito emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese

indissolúvel. A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo”82

e mais adiante

“Agora podemos conceber o que é uma emoção. É uma transformação do mundo”.83

Por esse viés, podemos estabelecer uma análise em relação à canção supracitada – e, na

verdade, a muitas das canções de Kéti – como uma tentativa de responder a um mundo

que, de certa forma, deixou de fazer sentido.

Ao destruir a Jaqueira, objeto símbolo de todo o passado da amada escola de

samba, o mundo, tal qual era concebido por Kéti, perde algum sentido, assim como

cores e sabores, e, numa tentativa de transformar esse mundo, temporariamente sem

sentido, certa “magia” é utilizada. Tal magia consistiria em transformar o mundo, para

que dele pudéssemos possuir aquilo que desejamos ou fugir daquilo que tememos. E

nesse sentido, a canção teria sido utilizada.

Nas palavras da doutora em psicologia social Kátia Maheirie:

Acontece que o impacto causado pela música não é sentido somente na

singularidade psicofísica do sujeito. Justamente por criar e despertar a

afetividade, a música parece alterar a forma como o sujeito significa o mundo

que o cerca. Quando se está “tomado” pela emoção de uma música, os

objetos à nossa volta ganham sentido e, o que parecia ser indiferente, passa a

ser vivido como “necessário”. Isto é, os objetos, entendidos enquanto

materialidade”, realidade física, passam a ficar repletos de sentido e

marcados pela subjetividade humana. Neste instante, tudo ao redor parece

dançar ao mesmo compasso da música, e esta organização sonora passa a dar

musicalidade ao mundo como um todo.84

81

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2008. 82

Ibidem, p. 57. 83

Ibidem, p. 69. 84

MAHEIRIE. Kátia. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir

dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 147-153, 2003.

Page 52: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

51

Podemos notar, portanto que as transformações urbanas ocorridas na cidade do

Rio de Janeiro durante praticamente todas as primeiras décadas do século XX e, de

maneira especial, nos anos de 1950 e 1960, influenciaram de maneira direta e indireta,

desde a infância, a vida de Zé Kéti, que inspirado pelas mudanças de hábitos, lugares,

amigos, ligações amorosas e afetivas – mesmo quando o afeto dizia respeito a uma

Jaqueira, uma vez que, na verdade ela representava muito mais do que um simples pé de

jaca – escreveu letras como “Praça Onze, berço do samba” e “Jaqueira da Portela”,

canções que não criticam a modernidade, mas cantam os velhos tempos, bonitos, que

foram embora, ou ainda, passaram por uma transformação, para abrir espaço ao novo

que, de maneira notável, esboça uma sutil representação do que seria a Favela, para

além das projeções que, já naquela primeira década do século XX limitavam esses

espaços a um local de ausências de histórias, sentimentos e memórias, questões que

serão tratadas com maior cuidado em nosso segundo capítulo.

Kéti, no entanto, não seria o único a utilizar o seu samba como forma de

expressar, comentar e, mesmo, criticar questões de seu cotidiano, uma vez que muitos

assim como ele sentiam as transformações múltiplas pelas quais a cidade e as relações

nela estabelecidas passavam.

1.2 Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de

uma Rio de Janeiro mutante

Nos anos em que Zé Kéti morou na região de Dona Clara, que se estenderam de

1928 a 1937 algumas importantes mudanças, citadas anteriormente, já se faziam

bastante presentes na realidade urbana e musical do Rio de Janeiro.

Em 1929, por exemplo, teríamos o marco inicial daquilo que se convencionou

denominar “Época de Ouro”. De acordo com Severiano e Mello: “A Época de Ouro

originou-se da conjunção de três fatores: a renovação musical iniciada no período

anterior com a criação do samba, da marchinha e de outros gêneros; a chegada ao Brasil

do rádio da gravação eletromagnética do som e do cinema falado.”

Nessa época, surgem nomes como os dos compositores: Ari Barroso, Noel Rosa,

Lamartine Babo, Ismael Silva, Mário Reis e Sílvio Caldas, Almirante, Carmen e Aurora

Miranda. Do período anterior, ainda continuaram produzindo sujeitos como Vicente

Celestino, Cândido das Neves e Pixinguinha.

Page 53: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

52

Os anos 1930 foram marcados, também, por um processo de criação de um

samba cada vez mais “carioca” e popular. É entre os anos de 1930 e 1940 que o gênero

se torna o mais gravado do Brasil, ocupando 32,45% do repertório registrado em disco,

o que corresponderia a aproximadamente 2.176 sambas. Tal cenário também será o das

marchinhas carnavalescas que, mesmo não chegando a tal montante, atinge o não menos

importante número de 1.225.

É nesse período que um dos grandes exemplos seguidos por Kéti irá escrever seu

nome junto à história da música brasileira: Noel Rosa, que em apenas sete anos de

atividade produziria mais de 250 composições

Em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em

9 de fevereiro de 1967 quando questionado acerca da influência desse compositor em

sua vida, Kéti responde: “Foi um repórter musical e eu particularmente me considero

um repórter musical por que eu procuro sempre fazer música falando de alguma coisa

importante, uma coisa que tenha um sentido, uma história, entende? Um enredo”

Famoso por suas crônicas acerca das transformações urbanas vividas na Rio de

Janeiro dos anos 1930, Noel Rosa nos fornece importantes informações dessa cidade em

metamorfose. Podemos, por meio de suas composições, sempre bastante bem

humoradas, entrar em contato com uma “cidade do trabalho”, cada vez mais ligada ao

sistema capitalista, que submete o proletariado, ao patrão, e que em “Três apitos”

evidencia, inclusive, a presença da mulher no ambiente fabril.

Três Apitos

(Noel Rosa, 1933)

Você que atende ao apito de uma chaminé de barro

Porque não atende ao grito

Tão aflito

Da buzina do meu carro

[...]

Mas você é mesmo artigo que não se imita

Quando a fábrica apita

Faz reclame de você

Nos meus olhos você lê

Que eu sofro cruelmente

Com ciúmes do gerente

Page 54: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

53

Impertinente

Que dá ordens a você

Já em “A dama do cabaré”, Noel nos convida a observar através da Lapa, uma

cidade que, embora, durante o dia se baseasse no mundo do trabalho, possui também,

aspectos noturnos, boêmios. É nesse ponto da cidade, também, que entramos em contato

com o meretrício e com as relações de gênero nele estabelecidas. Observamos na rápida

passagem que segue, um homem, frequentador de um bordel, que de maneira desastrada

se apaixona pela “Dama do Cabaré” e que, triste por perceber que seu carinho e amor

não seriam correspondidos fora do limite da “diplomacia” do submundo do meretrício,

chega a chorar, ou quase.

Dama do Cabaré

(Noel Rosa, 1934)

Foi num cabaré na Lapa

Que eu conheci você

Fumando cigarro,

Entornando champanhe no seu soirée

[...]

Em frente à porta um bom carro nos esperava

Mas você se despediu e foi pra casa a pé

No outro dia lá nos Arcos eu andava

À procura da Dama do Cabaré

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia

A carta que recebi, não me lembro de quem

Você nela me dizia que quem é da boemia

Usa e abusa da diplomacia

Mas não gosta de ninguém

E, por fim, entramos em contato com uma cidade do samba, da malandragem e

do morro que convive, furtivamente, com a cidade.

Mulato Bamba

(Noel Rosa, 1931)

Page 55: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

54

Esse mulato forte é do Salgueiro.

Passear no tintureiro é o seu esporte,

Já nasceu com sorte e desde pirralho

Vive às custas do baralho,

Nunca viu trabalho.

E quando tira um samba é novidade,

Quer no morro ou na cidade,

Ele sempre foi o bamba.

As morenas do lugar vivem a se lamentar

Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher

No entanto, Noel Rosa e Zé Kéti não seriam os únicos a relatar, durante os

primeiros cinquenta anos do século XX, as transformações políticas e econômicas

possibilitadas pelo ainda recente advento da república brasileira e da busca constante

pela “modernidade” que atingia o cotidiano da sociedade.

Em 1928, por exemplo, Artur Faria lançava a sua famosa marchinha “Eu quero

nota”, onde dizia: “Eu quero ter dinheiro/ que fosse em grande porção/ eu comprava

um automóvel e ia morar no Leblon/ Eu como sou operário e não posso ser barão/ vou

morar na Mangueira/ num modesto barracão”.

Artur Faria, em sua breve marcha carnavalesca, expõe a ainda recente

diferenciação territorial da cidade que, cada vez mais influenciada pela especulação

imobiliária, criaria, em poucos anos, a famosa divisão da cidade entre o “Norte”, pobre

e perigoso, e o “Sul”, culto, elitista, exemplo a ser seguido.

Seria também durante o final dos anos de 1920 e início dos anos de 1930 que

uma importante mudança no caráter estrutural do samba ocorreria e pode ser

compreendido como reflexo das mudanças pelas quais passava, naquele momento, a

cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do período intitulado por Carlos Sandroni85

como o

do “ciclo curto” das transformações do samba, que teriam originado o moderno, urbano

e comercial samba carioca.

Tal mudança, advinda da “turma do Estácio”, representada principalmente por

Ismael Silva, e Alcebíades Barcelos, o Bidê, diria respeito à mudança na rítmica

tradicional do samba que deixaria de ser representada pelo “tantantantantanatan” para

85

SANDRONI, op. cit. p. 219.

Page 56: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

55

se transformar no “bum bumpaticumbumprugurundum”. Tais onomatopeias diriam

respeito, na verdade, ao novo modo de tocar proposto pelos sambistas há pouco citados.

Mas de que maneira tal mudança poderia representar um reflexo ou uma

resposta às transformações que ocorriam na cidade? A resposta é fornecida pelo próprio

Ismael que comenta que a estrutura mais tradicional do samba, herdeira dos ritmos

amaxixados, funcionaria muito bem para a dança entre um casal, mas tornava-se um

empecilho para os desfiles de rua por não possuir a fluidez necessária para esse fim.

Tal período relaciona-se, também, com um momento em que o próprio samba

começa a sofrer certa organização, mesmo que interna, ou seja, motivada pelos próprios

praticantes.

De acordo com Tinhorão:86

Durante o Carnaval, essa gente do bairro do Estácio ia engrossar a grande

concentração de foliões da Praça Onze (onde desde a segunda década do

século XX se concentrava a massa dos mais pobres, depois que a elite dos

trabalhadores levou seus ranchos a desfilarem para o público de classe média

na Avenida Rio Branco). E como essa massa de aspecto algo assustador (...)

vivia em permanente choque com a polícia, reproduziu-se em fins de 1928,

em um botequim do Estácio – o Bar Apolo –, o mesmo tipo de encontro que

quase meio século antes fizera surgir no Café Paraíso, entre os baianos da

zona da Saúde, a ideia da criação dos ranchos: de uma conversa entre um

grupo de bambas do local resultou a formação deum bloco destinado a sair no

Carnaval pacificamente ao som de sambas, como os ranchos saiam ao som de

marchas.

Advinda, portanto, de uma relação de estranhamento e embate sociocultural

entre a polícia e as populações mais pobres das regiões da cidade Nova, da Praça Onze e

do Morro do Estácio, teria se formado a primeira escola de samba do Rio que para os

seus desfiles perceberam ser necessário o advento de uma rítmica própria para esse fim.

Em 1941, temos Artur Vilarinho, Estanislau Silva e Paquito lançando o famoso

samba “O trem atrasou” que dizia: “Patrão o trem atrasou/ por isso estou chegando

agora/ trago aqui o memorando da central/ o trem atrasou meia hora/ o senhor não tem

razão de me mandar embora/ o senhor tenha paciência/ É preciso compreender/

sempre fui obediente/ reconheço o meu dever/ um atraso é muito justo/ quando há

explicação/ sou um chefe de família/ preciso ganhar pão.”

Já no samba supracitado, podemos entrar em contato com um problema ainda

hoje bastante conhecido pelos moradores das grandes cidades brasileiras: Trata-se da

deficiência do sistema de transporte público direcionado aos setores mais carentes da

população. O sujeito da canção, um trabalhador, que mora longe de seu trabalho,

86

TINHORÃO, op. cit. p. 292.

Page 57: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

56

queixa-se ao chefe que pretende despedi-lo por conta do atraso de meia hora. O sujeito,

cheio das boas intenções, procura explicar a seu patrão o motivo de não ter sido naquele

dia pontual: “O atraso do trem” seria o culpado. Infelizmente, por mais que o rapaz,

“chefe de família” tente convencer o seu chefe de que nada podia fazer, trazendo,

inclusive um “memorando da central”, parece não ter boas perspectivas de futuro.

Outra boa maneira de lançarmos um olhar atento ao cotidiano do Rio de Janeiro

do período em questão é observando os seus cronistas. Rubem Braga, por exemplo,

capixaba, jornalista formado em direito, escreveu uma obra extensa, com mais de 15 mil

crônicas acerca de muitas partes do Brasil que nos ajudam a perceber alguns detalhes do

cotidiano, em “Mistura”, de 1935:

José Cândido não tinha nem a cor nem o título convenientes à sua filha. Mas

ele raptou Alice, e as mocinhas não são raptadas facilmente como um

deputado paraense. As mocinhas, quando não querem ser raptadas,

esperneiam e fazem um berreiro medonho. Alice foi porque quis. Uniu seu

braço alvo ao braço preto de José e partiu. As mocinhas partem assim, e não

há remédio, não há. Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País das

Maravilhas. E se aquele país, pelo qual todas as mocinhas suspiram, é

gostoso e bom, que importa a cor do cicerone? Neste país, dona Rosa, muitos

brancos amaram muitas pretas. Se a senhora não acredita, eu lhe mostrarei as

provas. As provas andam aí por toda parte, são dengosas e excelentes e se

chamam, na linguagem corrente, mulatas. Calma, dona Rosa, calma, dona

Rosa. Alice está no País das Maravilhas. E quem sabe se ela não voltará de lá

um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma criancinha mulata de olhos

verdes? E a senhora não acha lindas, dona Rosa, as mulatinhas de olhos

verdes?87

Assim como Rubem Braga, em suas linhas, falaria sobre um Brasil multicor, um

verdadeiro País das Maravilhas, ao qual a pequena Alice estaria inserida e, junto dela, a

tradicionalista Dona Rosa, Kéti, em suas letras e mesmo, em muitas de suas entrevistas,

procurou contar a historia de Alices, Donas Rosas, Dinas, Malvadezas Durões, gente do

morro e do asfalto.

Para além do aspecto saudosista relatado anteriormente, Kéti possuiu uma

grande produção que o poderia colocar como o mais político dos malandros.

1.3 A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti

Sobre o pai de Kéti, Josué Vale de Jesus, embora pouco se saiba além das três

características já mencionadas (marinheiro, cavaquinhista e metido a conquistador), é

87

BRAGA, Rubem. Crônica Mistura, Rio de Janeiro, 1935

Page 58: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

57

interessante comentar o seguinte: morreu aos 33 anos de “uma xícara de café” como

contaria Zé Kéti em uma de suas composições.

Explicando o ocorrido, Kéti diria:

Meu pai tocava cavaquinho, era marinheiro e morreu no Hospital da Praia

Vermelha, depois de tomar um cafezinho na casa de uma ex-noiva. Já saiu de

lá falando sozinho. Minha mãe conta que era metido a conquistador. Até que

na minha opinião ele não estava errado. Morreu como homem, depois de

fundir a cuca. Eu fiz um samba pra ele, assim:88

Meu pai morreu

(Zé Kéti)89

Meu pai morreu de uma xícara de café

E nesta história existe um nome de mulher.

O velho bobeou, entrou numa gelada

Falou sozinho, muita gente deu risada.

Mulher comigo toma sopa de jornal

E banho frio matinal

Almoço no seu Chang-Lai

Tomo café no botequim

Pra mulher má, eu também sou ruim

O samba em questão, e mesmo o depoimento dado por Kéti, abre uma

interessante brecha no que diz respeito não apenas à produção de gênero desenvolvida

pelo compositor, mas, também, acerca das relações de gênero vivenciadas em seu

cotidiano, pois, quando questionado acerca da morte do pai, responde que este teria

“morrido como homem”.

Na letra supracitada, portanto, é possível observar, por um lado, certo rancor

direcionado, primeiramente, à mulher “causadora” da morte do pai que, em seguida,

acaba se estendendo a todas as mulheres (“mulher comigo toma sopa matinal”)

voltando, posteriormente, apenas à determinada “classe” de mulher, a classe das

mulheres “más”.

88

O GLOBO, 13.01.74: Zé Kéti da Portela, artista de opinião. In LOPES, Nei. Zé Kéti. Rio de Janeiro:

Dumara, 2000. 89

Ibidem.

Page 59: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

58

A partir da prerrogativa aberta por essa composição, pode-se observar a maneira

pela qual as relações de gênero seriam tratadas nas primeiras cinco décadas do século

XX e que teriam influenciado a formação de Kéti.

Embora essas não sejam posturas comumente encontradas em suas composições,

posto que na grande maioria a mulher é tratada de maneira bastante romântica, pode-se

observar, vez ou outra, um amante contrariado, quando abandonado ou traído, que

remete, em muito, ao menino triste e cheio de raiva que perdeu o pai para a xícara de

café de uma mulher vingativa.

Tais canções, no entanto, se observadas para além dos problemas rapidamente

associados ao discurso do autor, podem ser encaradas como meios possíveis para a

elaboração de variadas questões-reflexões acerca da própria sociedade à qual Kéti

estava inserido.

Essa questão possui uma importância que consideramos fundamental para os

cada vez mais relevantes trabalhos acerca dos “novos sujeitos” surgidos, de certa forma,

após a quebra dos paradigmas tradicionais do campo da história anteriormente

comentada. No conjunto desses novos sujeitos, que se tornaram, mais do que nunca,

detentores de uma história, as mulheres apareceram de maneira bastante relevante. No

entanto, como nos apontam Faria e Matos,90

grande parte dos trabalhos que procuraram

observar a mulher privilegiou o enfoque das experiências femininas em detrimento de

seu universo de relações com o masculino, universo cheio de movimentos dinâmicos de

resistência-lutas, integração-diferenciação, permanência-ruptura, e que só podem ser

compreendidos a partir de uma visão histórica que compreenda as transformações

culturais pelas quais as relações sociais passam no decorrer dos tempos.

Observando essas relações não como algo estático, e, sim, como questões que

possuem historicidade, podemos compreender as dinâmicas relacionais existentes, por

exemplo, em uma cidade que se transforma e que junto dela – de seus muros, ruas e

avenidas – transforma as relações entre homens e homens, entre mulheres e mulheres e

entre os homens e as mulheres.

Nesse sentido, pelas letras das canções, podemos perceber, por exemplo,

questões como a chamada “questão-crise do masculino”, que denuncia os fardos e

conflitos da masculinidade servindo de base para os recentes estudos acerca do

90

FARIA, Fernando Antonio; MATOS, Maria Izilda Santos de. Melodia e sintonia em Lupicinio

Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 28

Page 60: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

59

masculino. Tais estudos objetivam, dentre outros problemas, negar as condições que

secularmente vem sendo produzidas sobre a legitimação de um “ser homem” e que são

postas como naturais e a-históricas, e acabam gerando, como num negativo fotográfico,

um “ser mulher”.

Dessa forma, observando as letras a seguir, podemos procurar desnaturalizar

esse “ser” social e culturalmente produzido no decorrer dos séculos, repleto de atributos

que o distinguiriam positivamente dos demais sujeitos históricos, como forma de

problematizar “a noção de sujeito universal, unitário, isolável”, fazendo emergir “a

centralidade nos processos de diferenciação, na possibilidade de construção singular da

existência, nas configurações assumidas pelas apreensões que os sujeitos fazem de si e

do mundo”.91

Madrugada

(1967)92

A mulher só vive a reclamar

Que eu não tenho hora pra chegar

Sou bohemio, tenho que beber

Nunca estou em casa pra jantar

Ela diz que qualquer dia vou morrer

Sou da noite, a noite é toda minha

Tenho um compromisso com a lua

Minha vida é andar na rua

A cantar para os amigos meus

Na esquina ou no botequim

Até Deus nosso Senhor lembrar de mim

Madrugada é a minha companheira

amanhece eu estou na brincadeira

Vou pra casa, vou dormir, vou descansar

A noite chega, me pede pra voltar

91

IZILDA, 2005, p. 27. 92

Gravadora/ Selo: Odeon com interpretação original de Isaurinha Garcia.

Page 61: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

60

Em tempo

(1973)93

A vida para mim só tem amargor

Porque eu não vivo bem sem o meu amor

Ao perder seu afeto, sua amizade

Nasceu dentro em mim

Nasceu em mim como nasce a flor no jardim

A saudade

Mas se a saudade me faz recordar

O tempo em que eu vivia só de amar

O tempo foi o culpado

Porque o tempo tão sem tempo, tempo para eu perder

O próprio tempo que foi pra mim um prazer

Ai, ai

A vida só me faz sofrer.

“Madrugada”, composta em 1967 por Zé Kéti e Élton Medeiros é um bom

exemplo do personagem masculinamente construído no decorrer dos séculos que, dentro

de tal idealização, se encontra acima de situações em que possa sofrer a contestação de

uma mulher. É o homem que está naturalmente certo, que não deve explicações e que

não aceita nenhum tipo de atitude que o torne submisso.

O homem de tal canção não admite questionamentos acerca do horário em que

chega em casa, caracterizando a mulher que o faz como aquela que “vive a reclamar”.

Tal homem chega mesmo a afirmar, em tom romântico, ter “um compromisso com a

Lua”, muito embora com sua mulher não se comprometa nem mesmo a estar “em casa

para o jantar” e, sem medir palavras, tal sujeito vai além assumindo ter como verdadeira

companheira, não a sua mulher, mas, sim, a noite, a boemia, os amigos e a cantoria.

Já na canção “Em tempo”, gravada em 1973 por Zé Kéti e H. Nogueira, notamos

um homem triste e amargurado que, por algum motivo não claramente especificado,

perdeu o afeto e a amizade da mulher amada. Aqui, o sujeito-homem da composição

vive de saudade e recordação. Enigmática seria a passagem que relata: “O tempo foi o

culpado [...] o próprio tempo que foi pra mim um prazer, ai, ai, a vida só me faz sofrer.”

93

Gravadora/ Selo: CID com interpretação original do próprio Zé Kéti.

Page 62: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

61

Seria o homem de “Madrugada” que estaria lamentando o momento em que finalmente

sua mulher, aquela que só reclamava, cansou-se de ser ignorada e foi embora?

Outra comparação que podemos estabelecer entre a primeira e a segunda canção

seria o “detalhe” de que, enquanto em “Madrugada”, Kéti optou por utilizar um coro,

que canta alegre, nos momentos que antecedem a primeira estrofe e que ressurgem no

refrão, em “Em tempo”, a música é executada apenas com o acompanhamento de um

violão e de um pandeiro, onde a voz e a maneira como ela é aplicada demonstram toda a

tristeza que o compositor pretenderia retratar.

Leviana

(1954)94

O azar é seu

Em vir me procurar

Me abandona, me deixa

Não quero mais ver

A luz do seu olhar

Você manchou o lar que era feliz

E agora quer voltar

Leviana

Sinto muito, mas vai tratar da sua vida

Leviana

Precisando eu te posso dar uma guarida

Mas o meu lar

Sente vergonha como eu

O nosso amor morreu

Você não está com nada

(1979)95

Não seja assim tão má

Não me faça assim tão infeliz

Só lhe dei carinho, me deixe viver

94

Gravadora/ Selo: Continental, com interpretação original de Jamelão e parceria de Amado Régis. 95

Gravadora/ Selo: Continental, com interpretação original do próprio Zé Kéti e parceria de David Raw.

Page 63: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

62

Que mal lhe fiz, que mal que eu lhe fiz?

Você não está com nada

Está jogando conversa fora

Vem, eu vou-me embora

E com razão

Meu coração não é de plástico

E nem de papelão

Agora eu me sinto muito só, tenha dó

Quase abandonado por aí

Como um cão sem dono, sem ter ninguém

Enquanto você sorri

Seu desejo é maltratar-me

Vendo-me tão desprezado assim

Meu bem eu preciso sumir

Meu bem eu preciso partir

“Leviana”, composição de 1954 bastante conhecida na interpretação de Jamelão,

e “Você não está com nada”, de 1979, também trabalham com a questão da relação de

gênero e nos ajudam a pensar em outras características que dizem respeito à música e à

vida de Kéti.

Em ambas as canções, observamos um sujeito infeliz no amor que, embora em

cada uma delas responda a esse sentimento de maneira diferente – enquanto o primeiro

procura ignorar a mulher causadora de seu sofrimento (O azar é seu/ Em vir me

procurar/ Me abandona, me deixa/ Não quero mais ver/ A luz do seu olhar), o segundo,

bastante amargurado, parece não superar a dor da separação, lamentando que o destino

de sua outrora companheira já esteja sendo diferente (Meu coração não é de plástico/ E

nem de papelão/ Agora eu me sinto muito só, tenha dó/ Quase abandonado por aí/

Como um cão sem dono, sem ter ninguém/ Enquanto você sorri) – demonstra,

sobretudo, a desilusão no amor.

Nas duas canções em questão, podemos perceber a insatisfação de Kéti frente à

ausência de uma característica em relação a sua mulher. A ideia de “abandono” presente

nas duas canções poderia estar relacionado à insatisfação diante de uma mulher que se

nega a seguir os padrões de esposa-mãe e que, desprezando as comodidades da vida

Page 64: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

63

doméstica, opta por um mundo de prazeres onde outros homens e experiências fazem

parte de sua intenção enquanto mulher.

Por mais que em todas as pesquisas feitas para essa dissertação o cotidiano do

compositor e sambista aparecesse de forma bastante intensa ligada à periferia e às

favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, características próprias de um estilo nascido

na Zona Sul da cidade, mais especificamente em Copacabana, aparecem em

praticamente todas as quatro canções há pouco citadas. Trata-se do chamado samba

“dor-de-cotovelo” ou, ainda, “samba-canção”.

Tal “gênero musical” teria surgido por volta dos anos de 1940/1950, em boates

do bairro de Copacabana, como Vogue, Copa, Beguine, Little Club, Baccarat,

Casablanca, Acapulco, Montecarlo, Bambu, Siroco e Mocambo. Esses centros de

convivência poderiam reunir toda a sorte de pessoas que ali quisesse estar, mas a classe

que de fato era a que frequentava com maior assiduidade tais locais pertencia

indubitavelmente às classes mais ricas da cidade. Por certo, nosso Zé não praticou o

hábito de andar pelas bandas de “Copa”, preferindo os ares, as cores, os sabores, os

odores e os ritmos das escolas de samba da Zona Norte do Rio de Janeiro.

O fato que desejamos elucidar, no entanto, diz respeito às múltiplas inspirações

que Kéti deveria receber daquelas “bandas”. Não podemos esquecer, por exemplo, que

as décadas de 1940 e 1950 marcam a expansão da influência do rádio e do cinema no

Brasil.

Nas palavras de Matos: “As marcas da paixão na poesia e no samba-canção eram

ditas ou cantadas em sussurros, tendo em frente um copo de uísque, celebrando a culpa,

o fracasso, os amores impossíveis e a solidão.”96

Dessa forma, podemos perceber não apenas a marca das múltiplas influências às

quais Kéti estaria sujeito – não devemos esquecer que o chamado “samba-canção” era,

durante as décadas em questão, um dos gêneros mais tocados no principal meio de

comunicação de massas da época, o rádio – mas também as múltiplas formas de lidar e

de perceber os relacionamentos amorosos.

No entanto, por mais que questões diretamente direcionadas ao “feminino”

sejam comuns nas letras de Kéti, acreditamos ser importante observar que a própria

ideia do masculino também aparece em sua produção.

96

MATOS, Maria Izilda. Paisagens sonoras: Copacabana – a praia e a noite. ANPUH – XXV

SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009, p. 9.

Page 65: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

64

Mesmo que em letras como “Madrugada”, “Em tempo”, “Leviana” e “Você não

está com nada” possamos entrar em contato com as dores/rancores trazidos pelo amor

não correspondido ou ainda, baseado no olhar da construção cultural acerca do

feminino/masculino ao qual Kéti está inserido, em “Nega Dina” entramos em contato

com um homem que, embora provedor, não consegue arranjar meios lícitos que

garantam o sustento da família. Aqui, notamos a mistura entre o “malandro” e o

“provedor”, certo “gênero” possibilitado pelas faltas múltiplas encontradas nos morros

daquele período e mesmo fora dele. Uma vez que na busca do dinheiro para garantir a

comida para os próximos dias o sujeito da canção não encontra os meios legais para

tanto, acaba “dando um duro no baralho pra poder comer”, ou seja, acaba utilizando das

apostas e jogos de azar para garantir o seu pão de cada dia. Misturando uma crítica à

insistência da mulher em importuná-lo – estaria o seu orgulho de macho provedor sendo

testado, colocado em “xeque” frente aos colegas de vários morros? – e à falta de meios

lícitos para trabalho, Kéti fala sobre o “marginal brasileiro”.

Nega Dina

A Dina subiu o morro do Pinto

Pra me procurar

Não me encontrando, foi ao morro da Favela

Com a filha da Estela

Pra me perturbar

Mas eu estava lá no morro de São Carlos

Quando ela chegou

Fazendo um escândalo, fazendo quizumba

Dizendo que levou

Meu nome pra macumba

Só porque faz uma semana

Que não deixo uma grana

Pra nossa despesa

Ela pensa que minha vida é uma beleza

Eu dou duro no baralho

Pra poder comer

Page 66: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

65

A minha vida não é mole, não

Entro em cana toda hora sem apelação

Eu já ando assustado, sem paradeiro

Sou um marginal brasileiro

Page 67: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

66

CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA DO ESPAÇO EM KÉTI

De este modo, a pesar de que por razones obvias esproblable que no

encontremos uma definición que satisfaga a todo el mundo, podemos

sostener que el rasgo essencial que caracteriza el arte es que este es um

instrumento de comunicación social que utiliza la armonia y la dissonância

de la forma y el sonido para comunicar emociones a los sentidos. Tambem

puede decirse que el arte es uma meditación sobre la vida o, mejordicho, uma

meditación que surge de la vida, que procede directa o indirectamente de las

experiências vitales.97

Mas, afinal, quais seriam as chances de um menino negro, filho de uma

empregada doméstica e de um marinheiro, nascido e criado na periferia da Zona Norte

do Rio de Janeiro, conseguir galgar não apenas um espaço dentro dessa

cidade/sociedade, mas, também, representar uma voz dissonante à omissão e aos

preconceitos de toda a sorte cometidos tanto pelo governo quanto por boa parte da

sociedade carioca do asfalto quando o assunto era a vida nos morros?

Veremos neste capítulo que, mesmo que Kéti não tenha ido longe quando o

assunto são os estudos formais, a arte que construiu será o seu principal instrumento de

comunicação e, em muitos momentos, de protesto. Seus ritmos, sua imagem, suas

colocações, suas experiências de vida, enfim, serão vistas como uma forma de expressar

as harmonias e dissonâncias por que passava no período em questão, as quais estariam

ligadas, de fato, às harmonias e dissonâncias que vivia a própria sociedade brasileira.

Dessa forma, lançaremos, em primeiro lugar, um olhar em relação à noção de

uma “cidade partida” representada pela dualidade constituída em relação às duas Rios

de Janeiro, uma representada pela “Cidade Maravilhosa”, outra, pelas favelas. Em

seguida, faremos uma rápida análise de conceitos ligados à chamada arquitetura do

espaço urbano, observando mais especificamente o espaço da favela e a maneira pela

qual este se organiza, tentando observar possíveis influências estéticas desse espaço nas

obras de Kéti.

Por fim, vamos debater, a partir das premissas lançadas pela própria ideia da

estética do espaço, de que maneira a visão rasa da “favela objeto” não serve para

explicar a arte que dela advém, mostrando como a lógica de uma “favela sujeito” – que

para além de uma memória forjada, para além de um não lugar e de um espaço de

ausências – faz-se muito mais necessária para compreender as estratégias sociais,

políticas, econômicas e, em nosso caso específico, culturais que são ali levadas a cabo.

97

BALOGUN, Ola. 1982. Forma y expresión en las artes africanas. In Introducción a la cultura africana.

Paris: Editorial Serbal/Unesco. BESTER, Rory. 1999. p. 34.

Page 68: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

67

2.1 Desconstruindo a cidade-partida: favela sujeito versus favela objeto

Embora não possamos afirmar de onde teria surgido a expressão “Cidade

Maravilhosa” é fato que tal idealização acerca da cidade do Rio de Janeiro – ou mesmo,

de parte dela – já exista desde, pelo menos, os anos iniciais do século XX.

Em livro publicado no ano de 1913, por exemplo, a poetisa francesa Jeanne

Catulle-Mendès que dois anos antes havia passeado por alguns espaços da cidade, já

utilizara, no título de sua obra, o termo em questão. Coelho Neto, escritor maranhense,

também o faria em duas situações distintas, uma no ano de 1908, em artigo que

escreveu para o jornal A Notícia, e outra, no ano de 1928 quando da ocasião do

lançamento de seu livro, que também possuía como título a tal expressão que, de tão

importante, estaria contida também, após o ano de 1960, no título da marcha oficial da

cidade.98

No entanto, por mais que a cidade possuísse “encantos mil” e fosse considerada

“o coração” do Brasil, algumas questões de problemática múltipla emergiriam,

principalmente entre os anos de 1908 e 1923,99

opondo bem e mal, saúde e doença e

certo e errado na cidade. Trata-se da ideia de uma “cidade partida” que contemplaria,

principalmente, a noção de que, em um mesmo espaço geográfico, conviveriam duas

realidades: a da cidade-favela e a da cidade não favela, opostas desde o seu nascimento.

De acordo com a passagem a seguir, já podemos notar como essas “duas

cidades” serão sempre representadas como opostas em finalidade e valores, a primeira,

aparecendo sempre como uma não cidade, espaço de desordem e medo.

Vinha-me, então, ao espírito, a crônica terrível do morro sinistro, o morro do

crime. Encravada no Rio de Janeiro, a Favela é uma cidade dentro da cidade.

Perfeitamente diversa e absolutamente autônoma. Não atingida pelos

regulamentos da prefeitura e longe das vistas da Polícia. Na Favela, ninguém

paga impostos e não se vê um guarda civil. Na Favela, a lei é a do mais forte

e a do mais valente. A navalha liquida os casos. E a coragem dirime todas as

contendas.100

No entanto, não apenas nas palavras do jornalista Constallat tal visão dualista

envolvendo a cidade do Rio de Janeiro foi colocada. O parnasiano Olavo Bilac, por

98

DE ALMEIDA, Aline Gama; NAJAR, Alberto Lopes. Cidade Maravilhosa e Cidade Partida: notas

sobre a manipulação de uma cidade deteriorada. RUA [online]. n. 18. v.1, 2012. Disponível em:

<http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/lerArtigo.rua?id=127> Acesso em: 7 de jul. De 2014 99

ZALUAR, Alba; ALVITO Marcos (orgs.). Integração Perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de

Janeiro: Editora FGV. 2004. p. 12 100

COSTALLAT, Benjamim. A favela que eu vi. In: COSTALLAT, B. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro:

H. Antunes. 1931. p. 33-9.

Page 69: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

68

exemplo, fez referência à favela em sua crônica “Fora da vida”, como sendo “uma

cidade à parte” onde havia “muita gente que nada sabe do que se passa cá em baixo, e

cujo espírito só tem como horizonte vital o espaço limitado por duas ou três ladeiras

tortuosas ou sujas”.101

O sambista e cronista Orestes Barbosa afirmaria:

O morro da Favela é como Hamburgo. Cidade livre... Ninguém até aqui quis

conversa com aquela jurisdição do 8º Distrito Policial. [...] Ali vive um povo,

com as suas autoridades, o seu comércio, as suas leis. É uma pobreza

organizada e original. Mas quem passa nos trens, rumo dos subúrbios e das

cidades do interior, vê o aspecto deprimente do bairro miserável. A princípio

formou-se naturalmente a vida social da Favela. Depois surgiram os

“leaders” legisladores. E o morro passou a ter uma consciência nacional. –

Sou da Favela! Há quem diga assim, orgulhosamente, nas horas de “dança de

rato” em outras zonas, como quem diz o nome da pátria.102

Outros intelectuais, como Lima Barreto e Euclides da Cunha que faziam

parte do chamado grupo dos “escritores-cidadãos”, utilizaram seu ofício para

construir uma crítica mais profunda aos caminhos que a então recém proclamada

República estaria tomando.103

Em artigo que trata sobre as favelas na obra de Lima Barreto, lemos:104

Em O Moleque, Lima Barreto enfocou as favelas do subúrbio de Inhaúma,

que preservara o seu nome tupi numa época em que a febre modernizadora

levava os logradouros da cidade a serem rebatizados com “nomes banais de

figurões ainda mais banais”. Se em sua obra os subúrbios guardariam valores

éticos universais pouco praticados no centro e na zona sul por conta da busca

pela “civilização”, o que dizer de um lugar que, além de suburbano,

resguardara a sua denominação indígena? No mínimo, que ele portaria uma

dimensão cultural altamente resistente, em oposição ao artificialismo reinante

naquelas áreas privilegiadas pelos poderes públicos.

Aqui, podemos notar uma inversão das representações da favela comumente

encontradas não apenas no período em questão, mas até os dias atuais, quando da

quebra de alguns dos estereótipos referentes aos moradores da favela que aparecem em

Lima Barreto, como possuidores de “uma dignidade superior e universal”105

Todavia, fosse a dualidade proposta por Constallat, Bilac e Orestes Barbosa que,

de certa forma denegriam tanto o espaço quanto os moradores da favela, ou a de Lima

Barreto, que procurava observar as qualidades desse local e de seus habitantes, dividir a

cidade do Rio de Janeiro foi uma característica comum desses primeiros e conturbados

101

BILAC apud. MATTOS, Romulo Costa. As favelas na obra de Lima Barreto. URBANA – Revista

Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Unicamp, v.2, n.2, 2007. p. 11. 102

BARBOSA, Orestes. Coisas da Cidade: A estilização da Favela. A Manhã, 29 de dezembro de 1926, p.

25 103

SEVCENKO op. cit. p. 30. 104

MATTOS, op. cit. 105

SEVCENKO, op. cit., p. 200.

Page 70: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

69

anos da República das Oligarquias.

Não podemos, no entanto, deixar de apontar as raízes dessa espécie de

pensamento que divide o Rio de Janeiro em polos positivos e negativos. Estas podem

ser encontradas nas visões e nos debates acerca dos “Brasis” apresentados pelos

viajantes do século XIX que, de acordo com a historiadora Silvia Cristina Martins de

Souza,106

já dividiam os temas mais abordados entre: a exuberância de nossa natureza e

a estranheza causada pelo grande número de africanos aqui encontrados.

Tais temas abriam espaço para duas matrizes de registro: uma relacionada à

natureza pródiga e impactante do Brasil; e outra, sua contrapartida incômoda,

relacionada ao escravo. De acordo com a autora, tais visões, traduzidas através do pincel

teriam contribuído para a cristalização de uma série de preconceitos – de fato

incômodos – em relação ao africano e suas experiências culturais, dentre elas suas

músicas e danças, seu batuque.

Ou seja, dividir o Rio de Janeiro em partes mais ou menos promissoras, ou

ainda, mais ou menos agradáveis, é uma prática antiga que ajudou na cristalização de

uma série de preconceitos e conceitos que perduram ainda hoje, sendo um deles o mito

da marginalidade existente no morro.

Em interessante obra intitulada O mito da marginalidade: favelas e política no

Rio de Janeiro, Janice E. Perlman107

trabalha com tal pensamento dualista que, com o

passar dos séculos acabou gerando o nascimento e a evolução do chamado “mito da

marginalidade”. Em suas discussões, a autora procura “desvendar” tal criação.

Tal discussão, extremamente importante para o que esse trabalho pretende

abordar, inicia-se com uma análise interessante que propõe o seguinte: Primeiramente,

duas fotos são disponibilizadas para análise. Na primeira imagem observa-se, a

princípio, uma favela; já na segunda imagem, dois favelados aparecem em frente a uma

construção que leva o nome de Juventus AC, um clube.

106

SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Danças licenciosas, voluptuosas, sensuais... mas atraentes:

Representações do batuque em relatos de viajantes (Brasil século XIX). Revista Brasileira de História das

Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11, Setembro 2011. 107

PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Paz e Terra: Rio

de Janeiro, 1977.

Page 71: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

70

A B

Figura 4 A. Uma favela. B. Dois favelados em frente à construção do Juventus

AC.

A autora propõe a seguinte abordagem em relação aos documentos: Enquanto a

primeira foto poderia ser facilmente observada como exemplo de um ambiente caótico,

precário e superlotado, a segunda poderia mostrar “dois vagabundos à toa, na rua,

quando deveriam estar trabalhando”. No entanto, Perlman propõe uma análise mais

atenta:

Debaixo de uma miséria aparente existe uma comunidade que se caracteriza

pelo cuidadoso planejamento do espaço para fins de moradia, e pelas técnicas

criativas de construção em encostas [...] Aqui e ali se veem casas sólidas, de

tijolos que representam a poupança das famílias que as construíram aos

pouquinhos, tijolo por tijolo.108

Ou seja, em vez de observarmos o espaço e as construções existentes na favela

apenas pelo viés da aglomeração, da sujeira e da falta de planejamento, poderíamos

também – na verdade, poderíamos, sobretudo – lançar um olhar que observa a luta e a

criatividade daqueles moradores que, baseados na carência de recursos de toda a sorte,

utilizariam de seus próprios meios arquitetônicos para construir, com o que pudessem,

mais do que uma simples moradia ou abrigo, um lar.

Por outro lado, a segunda imagem, em vez de dois vagabundos, poderíamos

observar dois homens, que, “decentemente vestidos de acordo com padrões da classe

108

Idem, p. 28

Page 72: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

71

média aceitáveis em qualquer parte do mundo [...] calçando sapatos de couro” e usando

“relógio de pulso”,109

estariam descansando da semana ou do dia de trabalho ou mesmo

esperando pelo seu turno, ou seja, para além de parasitas e sanguessugas da

infraestrutura da cidade, poderíamos observar o favelado como um trabalhador.

Na letra de “Tamborim”, de Zé Kéti com parceria de Mourão Filho, gravada em

1979 pela Continental, podemos continuar tal discussão:

Tamborim

(1979)

Cavei muito buraco na avenida

Pra ajudar no progresso do metrô

Fui feirante vendi muito bagulho

Muitas vezes o rapa me apanhou

Estudei, me formei em camelô

Na escola da vida eu sou doutor

Meu dinheiro jamais deu pra viver

Da polícia já tive que correr

E quem sabe um dia eu possa ser

Na política um governador

E com meu tamborim eu vou cantar

Para o povo a minha grande dor.

Eu já disse que fui e o que não sou

Vou morrer na favela por amor

Tamborim, meu velho amigo tamborim!

Como tu és de ninguém

Ai, meu Deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim...

109

Ibidem.

Page 73: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

72

Tamborim, meu velho amigo tamborim!

A batida do meu coração está chegando ao fim

Já não aguento bater mais no meu tamborim

Na letra em questão, Kéti utiliza o tamborim como símbolo que representa o seu

coração que, já cansado de bater, parece vislumbrar o fim de uma vida de trabalho e

luta. Dessa forma, encontramos nessa letra a quebra do personagem-padrão que assume

o favelado. Aqui, em vez de um vagabundo, “malandro” no sentido popular da palavra,

encontramos um trabalhador que de tudo já teria feito, desde trabalhar para o governo,

ajudando na construção do progresso da cidade, até em trabalhos que eram combatidos

por esse mesmo governo, como, por exemplo, o trabalho de camelô.

Ampliando o debate introduzido por Perlman, a análise da construção e

organização do espaço da favela por pontos de vista que ultrapassem a ideia de

desorganização e caos também se faz necessária.

De acordo com a pesquisadora Paola Berenstein Jacques:

Além de fazerem parte de nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas vão

se formando mediante um processo arquitetônico e urbanístico, vernáculo

singular que não apenas difere do dispositivo projetual tradicional da

arquitetura – seria mesmo o seu oposto – mas também se investe de uma

estética própria, com características peculiares, completamente diferente da

estética da cidade dita formal.110

Em linhas gerais, a autora propõe uma discussão acerca das tentativas de

reforma urbana das favelas cariocas, tão comuns nos primeiros anos do século XX que,

com os prefeitos Pereira Passos e Carlos Sampaio, como já discutido anteriormente,

chegaram a seu ápice. Jacques estabelece uma interessante reflexão acerca da

necessidade e funcionalidade dessas reformas de modo que o leitor deve se perguntar:

“Mas as favelas não fazem parte da cidade há mais de um século? Será necessária essa

integração formal? Não seria a imposição autoritária de uma estética formalista visando

à uniformização do tecido urbano?”

Propondo um outro olhar em relação à “arquitetura” produzida nas favelas, a

autora pretende explicar aquilo que chama de “estética das favelas”, por meio de figuras

conceituais como o Fragmento, o Labirinto e o Rizoma, pois “os barracos das favelas

são compostos por fragmentos; a aglomeração de barracos forma labirintos; estes, por

110

JACQUES, Paola Berenstein. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Casa da

Palavra: Rio de Janeiro, 2001. p. 17.

Page 74: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

73

sua vez, se desenvolvem pela cidade como rizomas”.111

No entanto, e aqui encontramos um importante aliado para as discussões que

levamos a cabo neste capítulo, a autora utiliza alguns trabalhos de Hélio Oiticica como

aportes que permitem ver além dessas constatações simples e formais.

Observando o favelado como possuidor de uma excelente qualidade, a de

bricoleurs, analisa suas construções, sua arquitetura, não pelo viés do feio ou do

caótico, mas, sim, pelo ponto de visto do diferente, do alternativo. Para ela, o arquiteto-

favelado apoia-se na questão do incidental, do microevento e do inacabado, que constrói

sua residência, seu lar, com o que, a princípio, seria encontrado pelo caminho, na maior

parte das vezes, na própria cidade formal, como pedaços de madeira, papelão, tijolos,

telhas, que se encaixam e complementam conforme o tempo que o arquiteto possui para

dispender com esse evento, e mesmo, conforme as condições do clima na região:

Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, ziguezaguear, contornar. O Bricoleur,

ao contrário do homem de artes (no caso, o arquiteto), jamais vai diretamente

a um objeto ou em direção à totalidade: ele age segundo uma prática

fragmentária, dando voltas e contornos, numa atividade não planificada e

empírica. A construção com pedaços de todas as proveniências, a bricolagem,

será, portanto, uma arquitetura do acaso, do lance de dados, uma arquitetura

sem projeto.112

Após essa discussão preliminar acerca da importância em se observar a favela e

o favelado como possuidores de atributos próprios e bastante positivos em relação ao

ato de construir, a autora inicia suas discussões em relação à obra de Hélio Oiticica que,

como ela tentará indicar, teve muita influência do morro – principalmente do Morro da

Mangueira.

De acordo com a arquiteta, a “descoberta” do morro da Mangueira feita em 1964

transformaria sua arte para sempre. Não apenas o espaço físico da Mangueira mas

mesmo o samba que nela existe serão influência marcante na vida do artista plástico. A

descoberta do samba teria significado a descoberta de novos ritmos e corpos, a

descoberta de um outro tipo de sociedade, menos atrelada ao cotidiano burguês, talvez

mais comunitária, menos egoísta, que era, no entanto, marginalizada. Por fim, a

descoberta de uma nova arquitetura, de uma nova estética de construção feita a partir de

materiais outros, mais precários, instáveis e efêmeros.

Essas descobertas são vistas como a base para uma das primeiras obras de

Oiticica: os Parangolés.

111

Idem, p. 19. 112

Idem, p. 28.

Page 75: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

74

Os parangolés são capas, tendas e estandartes, mas sobretudo capas, que vão

incorporar literalmente as três influências da favela que Oiticica acabava de

descobrir: a influência do samba, uma vez que os Parangolés eram para ser

vestidos, usados e, de preferência, o participante deveria dançar com eles; a

influência da ideia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da

Mangueira [...] A ideia de incorporar a dança à obra veio da influência da

experiência de Oiticica com o samba; a dança está presente na constituição

dos parangolés, na própria estrutura da obra.113

A partir de outra obra de Oiticica, lançada no ano de 1967 e intitulada

Tropicália, a autora nos leva a conhecer e discutir a noção da construção de um

processo labiríntico do espaço urbano próprio da favela, oposto ao espaço urbano

planificado e planejado da cidade como algo possível.

Diferentemente do labirinto de Dédalo, a favela representaria o labirinto

construído “ao acaso”, sem autores definidos ou mapas acabados, como já citado,

surgindo como um espaço que está sempre em processo de construção/reconstrução,

tanto dele próprio como das pessoas que o constituem e que, durante os anos que se

passaram, fixaram ali moradia e, sem as estruturas próprias do universo do asfalto,

aprenderam a significar um lugar onde faltam nomes, número e placas que facilitem ali

a movimentação. É como se seus barracos, becos e ruelas só fizessem sentido aos que

ali vivem, ou seja, de maneira mais uma vez oposta ao mito do labirinto de Cnossos,

enquanto Dédalo não consegue se achar dentro de sua própria criação, os favelados

nunca se perderiam dentro da favela.

A autora continua estabelecendo algumas comparações entre o mito de Teseu e a

realidade da favela: no momento em que Teseu já se vê liberto – tanto do Minotauro

quanto de Ariadne – dança junto de seus amigos, uma dança que imitaria em seus

movimentos, a sinuosidade do labirinto de Cnossos. De forma análoga, diz a autora, o

samba pareceria possuir, também, movimentações que lembrariam em muito os

movimentos dos corpos subindo e descendo os labirintos da favela-labirinto. “O samba

dançado seria, portanto, uma representação do percurso das favelas, a expressão da

experiência espacial labiríntica que contagia os movimentos do corpo.”114

Oiticica, após “descobrir” o Morro da Mangueira, teria sentido que o seu

interesse pela dança, pelo ritmo e, no seu caso particular, pelo samba, viria de “uma

necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de

uma livre expressão [...] seria o passo definitivo para a procura do mito e uma nova

113

Idem, p. 33. 114

Idem, p. 71.

Page 76: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

75

fundação dela na minha arte”.115

Oiticica descobriria que o seu mito estaria no próprio

labirinto e que a dança lhe servira de representação possível.

Mário Pedrosa, amigo de Oiticica e crítico de arte, teria dito acerca de sua

“iniciação” nesse novo caminho que parecia com tanto afinco e necessidade procurar:

Se comportamento subitamente mudou: um dia, deixa sua torre de marfim,

seu estúdio, e integra-se na Estação Primeira, onde faz sua iniciação popular,

dolorosa e grave, aos pés do Morro da Mangueira, mito carioca. Ao entregar-

se, então, a um verdadeiro rito de iniciação, carregou, entretanto, consigo

para o samba da Mangueira e adjacências onde a “barra” é constantemente

“pesada”, seu impenitente inconformismo estético. [...] foi durante a iniciação

ao samba que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma

experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que

o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como

fonte total da sensorialidade.78

Dessa forma, a favela passa a ser a representação de um polo de libertação para

Oiticica, antes naturalmente embebedado pelos preceitos burgueses de uma vida de

asfalto, planejamento e balé.

Da mesma maneira, pretendemos observar as obras produzidas por Kéti como

possuidoras de uma série de influências absorvidas do morro e do cotidiano ali vivido,

uma vez que, de acordo com as palavras do próprio compositor em entrevista sobre sua

música Malvadeza Durão:

É uma história fictícia né? De tanto eu viver e conhecer bem o cotidiano do

morro eu fiz o Malvadeza Durão, arranjando um personagem, né, Seu

Malvadeza Durão que se assemelha às coisas que acontecem no morro, aos

caras assim, importante no morro e você sabe que eu... assim entre outras

coisas, adoro fazer músicas falando de morro, né? Gosto mesmo, viu? Eu

tenho muitas músicas... não sei, mas um grande número de músicas

explorando o tema do morro, haja visto Malvadeza Durão, Ascender as velas,

que fez sucesso, Opinião e tantas outras...

Dessa forma, exploraremos, a seguir, as maneiras pelas quais, por meio da

música de Kéti a favela mostrou-se, para além de um local tenebroso e de ausências, um

lugar com muito mais vida, mais cor e mais ritmo.

2.2 A desconstrução da favela-objeto em Kéti

Uma característica que definitivamente não fez parte da vida de Kéti foi o

convívio com o estudo regular. Em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som

do Rio de Janeiro (MIS-RJ), quando questionado acerca de seus estudos formais,

embora lembrasse com certo carinho do nome da primeira professora, Dona Irene, Kéti

115

Idem, p. 76

Page 77: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

76

desconversa. Talvez não possuísse muitas lembranças a esse respeito, afinal estudou

apenas até o 5º ano116

. Entretanto, entre outras coisas, a flauta de flandres que ganhou da

mãe ainda aos seis anos de idade, parece ter um espaço muito maior em suas

lembranças.

Muito provavelmente essa “lacuna intelectual” na vida de Kéti possa ser

observada como reflexo de um problema já antigo da cidade do Rio de Janeiro – e mais

ainda de seus subúrbios e periferias: a evasão escolar causada pela falta de estrutura no

setor da educação e pela necessidade dos jovens de famílias pobres em adentrar, ainda

cedo, o mundo do trabalho.

Kéti, no entanto, parece não ter interesse em discutir tais questões, limitando-se

apenas a concluir: “Apesar dos esforços do meu padrasto para que eu estudasse

odontologia... eu enveredei mesmo pelo caminho musical”.

Cedo, portanto, Kéti entrou no universo do trabalho. Seu primeiro emprego

ocorrera no ano de 1935, aos catorze anos de idade, em uma loja de calçados chamada

FOX, à qual chegava de Maria Fumaça e onde ganhava dois cruzeiros e cinquenta

centavos por dia, dinheiro que dava à mãe.

De seus dezoito anos comenta pouca coisa, lembrando-se do período como

sendo o de “uma vida muito enrolada, muito atribulada”, pois, nessa época, quando

trabalhava na gráfica Mauá, decidira sair da casa em que morava com a mãe e com o

padrasto:

O meu pessoal não me mandou embora de casa, mas como tinha muita

pressão, (por)que eles queriam que eu estudasse e não queriam que eu

seguisse essa carreira musical. O meu velho, meu padrasto, dizia “ah esse

negócio de música, isso é pra vagabundo”, pela criação dele, entende? Ele

dizia “isso é pra vagabundo, quem não quer nada, jogador de futebol; o

negócio é que você tem que estudar pra ter um futuro melhor”. Dava

conselho pra mim, eu achava que o meu negócio era a música e acabei que eu

fui-me embora de casa, fugi de casa mesmo... ficava lá pelo Nice o dia todo e

muitas vezes eu pedia assim a alguém que pagasse um sanduíche pra mim e

era o clássico cafezinho o dia todo (sic).117

Dentro do Nice, o legendário Café ao qual foi levado em 1939 pelo compositor e

instrumentista Luís Soberano, Kéti conheceu Geraldo Cunha, compositor da Mangueira,

que decidiu leva-lo até a escola em questão. Lá, o quase adulto Zé Quieto observou

muita coisa que depois levou como experiência para suas composições. Foi, no entanto,

116

De acordo com a biografia de Nei Lopes, consta que Kéti teria estudado até o 1º ano do colegial. No

entanto, preferimos, aqui, levar em consideração o mencionado pelo próprio Kéti em ocasião da entrevista

supracitada. 117

Entrevista concedida ao MIS- RJ (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) em 9 de fevereiro

de 1967, como parte do projeto Vozes do Brasil encabeçado nos anos de 2008 e 2009.

Page 78: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

77

em outra escola, com cores bem distintas da rosa e verde, que Kéti fixaria uma morada e

uma paixão eternas. Trata-se da azul e branca Portela, que já no ano de 1945 o

introduzira na “ala” – ainda não formalmente organizada dessa forma – de seus

compositores.

Figura 5 Zé Kéti, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela, 1972. 118

Portela Feliz

(1963)

Teus cavaquinhos, teus pandeiros

E as tuas cuícas

Teus tamborins, chocalhos e surdos

São uma tentação

Quem é que vem lá?

É o povo que diz

É a Portela, Portela feliz

Com a Velha Guarda, é uma tradição

Sua juventude bem vibrante a cantar

Um samba natural de Osvaldo Cruz

118 Disponível em: http://compositoresdaportela.blogspot.com.br/2012/09/portelenses-momentos.html

Page 79: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

78

Que sem vaidade

Sempre deixa uma saudade

Portela do Paulo e do Claudionor

E de outros saudosos sambistas

Que Deus do Céu já levou

(Portela querida)

Não se humilha a ninguém

A todos que muito bem

Seu negócio é sambar

Eu falo assim porque sou

Um dos poetas de lá.

Nessa verdadeira “Ode à Portela”, Kéti procurou representar um pouco do amor

que desenvolveu pela escola de samba observada como um lugar de tradição sem, no

entanto, deixar de representar um atrativo à juventude que nela cantava de maneira

vibrante. O compositor faz menção, ainda, a personalidades imortais da escola, como

Claudionor e Paulo. No entanto, uma das passagens mais interessantes do samba em

questão é aquela que diz: “Não se humilha a ninguém/ A todos quer muito bem/ Seu

negócio é sambar/ Eu falo assim porque sou/ Um dos poetas de lá.”

Tal passagem torna-se relevante não apenas para compreender o universo

musical ao qual Kéti estaria ligado, mas, também, para compreender uma crítica sutil ao

novo rumo que o universo das composições vinha tomando desde, pelo menos, o início

dos anos 1950.

Como comentado há pouco, o Café Nice tornou-se um lugar legendário por um

grande motivo: Funcionava – assim como outros locais como o Vermelhinho, Simpatia

e o Gaúcho – como um ponto de encontro de artistas e intelectuais da cidade do Rio de

Janeiro. No entanto, por mais que tais espaços ainda reunissem um grande número de

verdadeiros compositores, tratava-se também de lugares repletos de oportunistas e

aproveitadores que, muitas vezes, fazendo-se passar por profissionais reais da música,

dissimulavam suas intenções e acabavam comprando os direitos autorais de muitas

canções que, exatamente por isso, nunca foram consideradas obras de seus verdadeiros

autores.

Page 80: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

79

Esse espírito de “música é comércio” que, de acordo com Hollanda apud Lopes,

era “a frase que mais se ouvia no velho Café Nice”,119

começava a adentrar, cada vez

mais, o universo musical de maneira geral, chegando até mesmo ao mundo das escolas

de samba. Na verdade, esse universo das escolas de samba já estaria passando por um

outro processo que o modificava de forma cada vez mais intensa e que, claramente,

desagradava em muito o então compositor da escola, Zé Kéti: Tratava-se do processo de

Capitalização das Escolas de Samba.

Pela internet pudemos entrar em contato com um rico material, feito em 1978

pelo jornal Correio Braziliense,120

que nos ajudou a compreender a problemática em

questão e o papel de Kéti no meio desse “enredo”.

Tal material, uma conversa entre o Mestre Candeia, Paulinho da Viola e Carlos

Elias, esclarece alguns dos motivos que teriam levado parte dos tradicionais

compositores de escolas como a Portela, a serem excluídos ou sofrerem um processo de

marginalização, como foi o caso de nosso portelense apaixonado, o Kéti.

No ano em questão, qual seja, 1978, as discussões habituais que antecediam o

carnaval teriam sido precipitadas por um “fator-extra” motivado, de acordo com a

reportagem na:

escolha do samba-enredo da dupla Jair Amorim/Evaldo Gouveia para

representar a Portela. Compositores de ligação recente e discutível com o

universo das escolas de samba (Evaldo Gouveia, por exemplo, declarou não

gostar de carnaval e aproveitar os feriados para descansar em um afastado

sítio) tiveram seu samba-enredo indicado pela direção da escola, apesar dos

protestos gerais, dos mais expressivos compositores da escola. Mas a reação

não foi menos violenta: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Candeia e Monarco,

nomes dos mais conhecidos da agremiação de Oswaldo Cruz, são apenas

alguns dos que não se conformam com o fato e, a protesto, não desfilarão este

ano.

De acordo com o bate-papo gravado pelo jornal, Candeia teria comentado:

Em resumo: o que significa a posição desses compositores em relação à

Portela? Houve uma crise na escola com a escolha do samba-enredo sobre

Pixinguinha, do Jair Amorim e Evaldo Gouveia, que culminou com a

marginalização do Zé Kéti dentro da escola. Agora, o negócio está se

voltando contra mim e o Paulinho. Aos poucos, me parece que há um

processo quase sistemático de afastar as pessoas com uma certa posição de

destaque dentro do samba, e, sei lá, parece que para deixar o campo aberto,

119 HOLANDA, Nestor de. Memórias do Café Nice: subterrâneos da música popular e da vida boêmia do

Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1969. p. 37

120 Suplemento especial Correio Braziliense. Domingo, 22 de janeiro de 1978. Disponível em: <

http://www.portelaweb.com.br/flexivel2.php?codigo=20> Acesso em: 1 de dez. 2013.

Page 81: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

80

uma ala de tradicionalistas, de conservadores, o rótulo que eles quiserem dar,

de “sambista autêntico”, sei lá, e poderem penetrar na escola livremente.

Então, seria este o melhor sistema. Poxa, afastaram o Zé Kéti, agora essa

campanha, essa deturpação contra nós que realmente não tem sentido.

Levando em consideração, portanto, a letra da música há pouco mencionada,

podemos imaginar o que a entrada da Portela nesse universo de Capitalização do samba

teria significado para o compositor, que, observando sua escola, não mais tão autêntica,

acaba, mais uma vez, se afastamento, retornando apenas na década de 1980.

Tal episódio, no entanto, nos é interessante para pensar a maneira como as

discussões e, de certa forma, o próprio Carnaval acabaram “descendo” do morro para

discutir questões diretamente relacionadas com os seus valores históricos e a maneira

como estes estariam sofrendo mutações negativas, as quais, na verdade, o estariam

afastando do terreiro, ou seja, do local que representava, tradicionalmente sua

concepção.

Toda a representatividade primeira dessa “festa” popular – sobretudo, negra –

iniciava, através desses primeiros anos de Capitalização, a homogeneização do carnaval

que atingiria hoje os seus níveis mais altos, quando as relações sociais e simbólicas

anteriormente relacionadas à sua construção e preparação são diminuídas – senão

apagadas – frente às necessidades relacionadas ao turismo e ao interesse de mercado

que o “evento” gera de maneira cada vez mais avassaladora.

Cabe aqui ressaltar que não se tratava de uma discussão entre o “samba antigo” e

o “samba moderno”, mas, sim, dos caminhos que esse samba estaria tomando. Talvez

Kéti soubesse da ideia que Muniz Sodré121

apontaria: “O samba, como o mito negro,

nos conta sempre uma história. E a exemplo do mito, o modo como se conta tem

primazia, rege os conteúdos narrado”.

Assim, o exemplo da problemática envolvendo o Carnaval, que ainda naquele

momento se ligava, de forma intensa, ao morro e seus frequentadores, demonstra como

a favela pode ser vista de um jeito muito mais vivo do que se tende a representar,

entrando em discussões com o “universo do asfalto”, demonstrando suas posições e

sentimentos frente ao mundo que pretendeu, desde sempre, afastá-la de significados

próprios.

Seguindo por essa via de observação, voltemos a Kéti e ao universo do Café

Nice.

121

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 61

Page 82: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

81

De acordo com suas próprias palavras em 1946, Kéti gravaria sua primeira

composição. Tratava-se de “Juro que sou feliz com meu amor”, fruto de uma parceria

com Felisberto Martins, depois gravada com Ciro Monteiro. No entanto, de acordo com

sua biografia, assinada por Nei Lopes, já em 1945 o então jovem rapaz faria parte do

grupo de compositores da Portela. Como indica o autor:

Nesses primeiros anos, Zé Kéti chegou a conseguir alguns sucessos no

terreiro, compondo e interpretando sambas que agradavam aos portelenses e

visitantes. Era um tempo em que, nos ensaios, o frequentador chegava,

ocupava uma mesa, pedia uma cerveja, um traçado, um pratinho com tira-

gostos (em geral salaminho, tremoços ou azeitonas) e solicitava ao

compositor que estava no palanque o samba (“aquele pagode”) de sua

especial predileção. Mas é com Leviana que ele, embora compositor já

gravado, consegue transpor os limites do terreiro da escola e emplacar, na

voz de Jamelão, seu primeiro grande sucesso comercial.122

Em relação aos comentários feitos por Nei Lopes, algumas questões merecem

importante atenção. Em primeiro lugar, Leviana foi, realmente, uma composição de alto

alcance comercial, agradando, certamente, um grande número de pessoas. Em entrevista

concedida ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, e ao “De lá pra cá”, da TV Brasil,

o jornalista, compositor, escritor e grande pesquisador de samba, Sérgio Cabral revelou:

Quando eu era adolescente, uma coisa que era "banca" mesmo, "banca” de

você chegar na esquina com os amigos e "botar banca", era chegar com um

samba da Portela que ninguém conhecia. Eu me lembro quando eu cheguei

na esquina cantando Leviana, do Zé Kéti, em 1952, mais ou menos.

No entanto, junto de tamanho sucesso – vale lembrar que a música em questão

também fez parte do filme de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 graus – veio também a

primeira grande decepção de Kéti junto da Escola de Samba em questão, além de uma

problemática que o perseguiria durante boa parte da vida: a acusação de plágio.

Depois do desagradável e, com certeza, dramático acontecimento envolvendo

um de seus maiores sucessos, Leviana, Kéti rompe – temporariamente – com a Portela,

refugiando-se na pequena União de Vaz Lobo. Nessa escola de samba, localizada entre

Madureira, Irajá e Vicente Carvalho, Zé lançou aquela que seria a mais famosa de suas

composições: A voz do morro. Gravada, a princípio pelo conjunto Vocalistas Tropicais,

o samba foi incluído no filme supracitado, Rio, 40 graus, vindo, ainda, a ser utilizado

como prefixo de um programa de televisão do período denominado Noite de Gala.

O interessante, no entanto, é notar o entorno político e cultural com o qual A voz

do morro irá contar.

122

LOPES, op. cit. p 33-4.

Page 83: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

82

O samba é gravado no ano de 1955 e, em uma rápida pesquisa em relação aos

outros títulos lançados no período, chegamos a Assim é o Morro, de 1956, O Samba não

morreu, de 1957, e Malvadeza Durão, de 1959.

A Voz do morro

(1955)

Eu sou o samba

A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor!

Quero mostrar ao mundo que tenho valor

Eu sou o rei do terreiro

Eu sou o samba

Sou natural daqui do Rio de Janeiro

Sou eu quem levo a alegria

Para milhões de corações brasileiros

Salve o samba, queremos samba

Quem está pedindo é a voz do povo de um país

Salve o samba, queremos samba

Essa melodia de um Brasil feliz

Assim é o Morro

(1956)

No morro é assim,

A tristeza lá não mora

A viola muitas vezes é quem chora

Quando cantamos, alegremente.

O morro é assim,

É tudo diferente

Amanhece a batucar

Anoitece a cantar um samba comovente,

que mexe com a gente

E lá se vê

Nossa cidade iluminada

Page 84: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

83

Aqui embaixo ouvimos muita batucada

De onde nasce o samba, onde mora o samba é lá,

Lá tem estrelas, lá tem luar, vamos pro morro, vamos sambar!

Em A voz do morro, gravada pela Continental e, como já relatado anteriormente,

com interpretação original da banda Vocalistas Tropicais, Kéti lança sua primeira

composição diretamente ligada ao processo de afirmação do morro, e de seus

moradores, como os legítimos interlocutores do samba – ritmo já considerado de caráter

nacional, representativo da cultura brasileira dentro e fora do país – com todas as classes

sociais do Brasil.

Kéti aparece como o porta-voz desse espaço, (“a voz do morro sou eu mesmo,

sim, senhor!”) que, embora tratado com a falta de cuidados e atenções das autoridades –

fossem elas de quaisquer naturezas: médica, legal, urbanística etc. – e excluído de

melhorias e modernizações urbanísticas pensadas para a cidade do Rio, e muitas vezes,

ao mínimo necessário para a sobrevivência digna de seus moradores, era também, e,

sobretudo, um espaço importante (“sou eu quem levo a alegria para milhões de corações

brasileiros”) e que desejava ser reconhecido como tal (“Quero mostrar ao mundo que

tenho valor”).

Quando Kéti escreve a música em primeira pessoa, coloca o povo do morro e, de

certa forma, o próprio morro, oculto no Eu de sua canção: Sou eu, o morador do morro,

o excluído, quem leva a alegria dessa melodia, do samba, internacionalmente apreciada,

para milhões de corações brasileiros. E eu, o morador do morro, quero, dentro das

minhas possibilidades, do meu universo e dos meus costumes, mostrar ao mundo que

existo e que tenho valor. Eu, o próprio morro, quero demonstrar como, através do meu

“povo”, tenho valor.

Trata-se de uma canção que possui importância dupla, relevante tanto do ponto

de vista social quanto nacional: Além de representar um “hino” de orgulho não só

daquele que mora na favela, acaba tocando num assunto que ainda naquele momento era

visto com muitas ressalvas, trata-se da palavra “terreiro” que, para além de representar

apenas uma localização geográfica, possui uma importância e relevância chaves para as

religiões afrodescendentes, principalmente para o Candomblé.

O terreiro, de acordo com Muniz Sodré, é:

Page 85: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

84

o lugar de reterritorialização de uma cultura fragmentada, de uma cultura de

exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai tentar refazer a sua família, e o

seu clã, que tal como na África, são formados independentemente de laços

sanguíneos. No espaço do terreiro, o indivíduo buscará o sentido de

pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente, vai reencontrar a sua

nação.123

Ainda, de acordo com Marco Antônio Chagas Guimarães:

(...) Foram e ainda são quilombos as comunidades de terreiro que ao longo da

história do negro no Brasil mostraram ter sido o lócus de engendramento por

suas características especiais de útero mítico, que possibilitou a reaglutinação

dos elementos fundamentais para a manutenção do negro enquanto grupo e

cultura.124

Dessa forma, quando Kéti cita o termo “terreiro” inclui no seu “Eu sou” o

morro, seus moradores e, de certa forma, uma cultura própria dali.

Outro detalhe interessante em relação ao samba em questão é que, no seu

período de lançamento, se lançava também o filme Rock around the clock com a música

tema de mesmo nome. Mesmo com toda a política de internacionalização do consumo

do brasileiro A voz do morro aparece, em 1956, em 3º lugar, enquanto Rock around the

clock, em 4º.125

De maneira bastante parecida com a que trabalhou no samba supracitado, em

Assim é o morro, gravada pela Mocambo e tendo como intérprete original Hélio

Chaves, Kéti cantará novamente um morro alegre e feliz que agora é reconhecido tanto

por seus moradores quanto pelos “habitantes” do asfalto.

Na canção, que parece desejar desenhar, tal como numa tela em branco, a

imagem do que seria a favela, observamos um local onde a tristeza não tem espaço, uma

vez que com o batucar e o cantar de sua gente o samba, que ali nasceu e ali reside, não

fornece espaço para que nenhum tipo de sentimento ou pensamento ruim possa chegar

até lá.

A partir de uma imagem bastante romantizada do que seria o morro, um local

que, mesmo tendo vistas para a “cidade iluminada”, é na verdade iluminado pelas

próprias estrelas e pelo luar, parece chamar a gente da cidade que diz “vamos pro

morro/ vamos sambar”.

123

SODRÉ, op. cit. p. 50 124

GUIMARAES, Marcos Antônio. É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo

de construção de identidade em comunidade de Terreiro. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade

Católica, Rio de Janeiro, 1990, p. 24 125

Informação disponível em <www.avitrinedoradio.com.br/de-1950-a-1959.html?start=6> Acesso em 27

de jul. 2011.

Page 86: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

85

Quatrocentos anos de favela, gravado pela RGE e tendo como intérpretes

originais o grupo Os sambistas, busca uma proximidade bastante clara com o ano em

que o Brasil teria sido descoberto (1500), ou ainda, com o ano em que o processo de

colonização teria iniciado de forma efetiva (1530).

A letra indica, por meio de um caso de amor não correspondido, a dualidade

existente, mais do que isso, vivenciada, no quesito cidade/ favela. “A moça que arranjou

um moço da cidade”, hoje “tem vida melhor” e aquele que continua na favela, “sem

água, com mágoa”, continua, agora mais desiludido, “levando a pior”.

No entanto, o título da canção faz uma crítica, talvez singela, da situação da

favela. Quando Kéti fala de uma favela que existe há 400 anos, na verdade, rememora o

período em que o Brasil havia sido descoberto. Dessa forma, ele coloca a favela como

um espaço natural da formação do Brasil o que, por si só, já pode ser observado como

uma crítica ao “não espaço” reservado a ela naquele momento. De acordo com a canção,

entramos em contato, portanto, com uma imagem de favela cheia de sentimentos, que

ama e que sofre; que é abandonada, mas que continua a existir.

Quatrocentos anos de favela

(1966)

Quatrocentos anos de favela

Sem água, com mágoa

Quatrocentos anos de favela

Sonhando com ela

Arranjou um moço da cidade

Hoje ela tem vida melhor

Quatrocentos anos de favela

E eu só levando a pior

Ai, favela! Ai, favela!

Barracão de zinco perfurado,

quando chove durmo no molhado

De sofrer eu já estou cansado

Vivo tão sozinho, abandonado

O meu barracão é tão triste

É só saudade

Saudade, saudade

Page 87: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

86

Quatrocentos anos de favela

Sem água, com mágoa

Quatrocentos anos de favela

Sonhando com ela

Arranjou um moço da cidade

Hoje ela tem vida melhor

Quatrocentos anos de favela

E eu só levando a pior

Em Onde o Rio é mais carioca, feita em parceria com Elton Medeiros, gravada

pela Odeon, tendo como intérprete Dalva de Oliveira, percebe-se que o sujeito que fala

fala, por um lado, do Rio de Janeiro já, há tempos, convertido em cartão postal

brasileiro (Botafogo, Pão de Açúcar, Carnaval, Corcovado, Ipanema); mas por outro, de

um Rio de Janeiro que, embora não resplandecente no tocante à popularidade, possuía

sua beleza sem igual e suas particularidades que poderiam fazer dessa parte do Rio a

parte do verdadeiro Rio. Nesse momento, temos um Zé apaixonado pelo morro e, dentre

os morros, pelo da Mangueira; temos um Zé fã de Paquetá, Cinelândia e da Barra, e por

fim, do Aterro, terra abençoada. Podemos notar nessa canção, não uma crítica direta a

algum problema político ou social, tampouco, encontrar nessas palavras inclinações

para um ponto ou outro da cidade; o que se nota é a paixão de um carioca por sua

cidade, mas, mais do que isso, a paixão de um original do morro pelo morro, pelos

locais que possuíam sua gente, seu sangue, sua dança, seu samba, sua Escola de Samba.

Anos mais tarde, Caetano Veloso, utilizaria como título de sua canção Onde o

Rio é mais baiano.

Onde o Rio é mais carioca

(1970)

Na praia de Botafogo

Os turistas vão ao Pão de Açúcar

Numa passarela sem igual fotografando

E esperando a maior festa do Brasil

Que é o Carnaval

Page 88: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

87

Meu samba vai correndo, vai dizer

Onde o Rio é mais carioca

E tudo de belo que ele tem

Vai dizer que a Vista Chinesa

É um relicário de beleza

Que a natureza nos presenteou

Diz que o Corcovado é um esplendor

Que São Conrado tem um mar

E Ipanema tem ciúme do Joá

Mas onde o Rio é mais carioca é

Lá no morro de Mangueira

Onde o soçaite samba pra se acabar

É na Estação Primeira

O Rio é sempre o Rio com luar em Paquetá

Ninguém pode duvidar

O Rio é mais carioca lá na Lapa

Na Cinelândia e na Barra da Tijuca

O Rio tem Copacabana, Ilha do Governador

Santa Tereza é um céu de amor

E o Aterro Deus abençoou

Mas onde o Rio é mais carioca é...

2.3 A desconstrução dos sujeitos-objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show

Opinião

Seria errado negar, mais ainda, seria quase impossível omitir a “cara” e o

“espírito” das artes no Brasil dos anos 1940. De certo, se entrevistássemos uma pessoa

com mais de setenta anos, questionando-a acerca do que marcara a sua infância, seria

quase impossível não escutar relatos de memórias ligados à Rádio Nacional e suas

“rainhas”, como Ângela Maria, Marlene e Emilinha Borba, ou mesmo, comentários

acerca das produções cinematográficas que apresentavam personagens, hoje quase

mitológicos, como Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves e Mazzaropi.

Page 89: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

88

Isso por que os anos de 1940, de acordo com o que explica o historiador Marcos

Napolitano,126

foram marcados pela massificação dos meios de comunicação,

principalmente do rádio e do cinema e pelo início de uma ainda tímida indústria cultural

brasileira. No entanto, em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial e a emersão do

Partido Comunista Brasileiro junto à intelectualidade do país, a “cara” da cultura

nacional tenderia a profundas mudanças, principalmente no pós 1953, quando o PCB

saiu da ilegalidade – à qual tinha sido sentenciada em 1947 por Eurico Gaspar Dutra – e

ligou-se ao Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas, encontrando, finalmente,

espaço, força e apoio para que suas influências políticas vinculadas, de maneira

marcante, a preceitos estéticos e culturais bem delimitados, tivessem força para aparecer

de maneira bastante evidente em nossos meios de expressão artística, dentre eles, os que

mais nos interessam: o cinema, o teatro e a música.

Dessa forma, muito do que aparece regendo as noções estéticas de arte mais

marcantes entre os anos de 1950 e 1960 esteve intimamente ligado aos preceitos

pensados por tal partido e que se baseavam, de maneira geral, no “realismo socialista”

do Partido Comunista da União Soviética e o “neorrealismo italiano”.127

De acordo com Napolitano, as intenções contidas na arte proposta pelo

“realismo socialista” seriam:

1. A arte deveria ser feita a partir de uma linguagem simples e direta, quase naturalista.

2. O conteúdo da arte deveria ser portador de alguma mensagem modelar para a luta

popular.

3. Heróis e protagonistas “do bem” deveriam ser figuras simples, positivas e otimistas

dispostas à luta e ao sacrifício em nome do coletivo.

4. Valores nacionais, populares e folclóricos deveriam ser fundidos com os ideais

humanistas e cosmopolitas.

Já de acordo com Mariarosaria Fabris, os prenúncios da arte e, principalmente,

do cinema “neorrealista italiano” teriam possibilitado: “a descoberta da paisagem e o

gosto pelos ambientes naturais; o emprego dos dialetos; o valor de documentário

126

NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto,

2006, p. 13.

Page 90: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

89

contido nos filmes; a utilização de atores não profissionais; o gosto pela crônica do dia a

dia e pelos sentimentos dos humildes.”128

Tendo em vista essas informações, estabeleceremos a seguir uma análise dos

anos em que Kéti teve o seu grande “desabrochar” artístico, observando que este

desabrochar estava contido em um determinado momento político-cultural do Brasil que

nos ajudará a perceber como o compositor – que agora se transforma um pouco em ator,

um pouco em cinegrafista – produzirá, por meio de suas escolhas, uma imagem de

homem, negro e favelado para além do que até então dizia o senso comum.

2.3.1 A cidade, o cinema e Kéti

Até meados dos anos de 1950, o cinema brasileiro, como visto anteriormente,

estava inserido numa lógica ligada, cada vez mais, à insipiente produção voltada para as

massas que, por meio de roteiros simples e divertidos, como os comumente encontrados

nas chanchadas, tinham como principal função o entretenimento da plateia. Nesse

sentido, o espaço da cidade bem como os conflitos nela existentes não eram retratados

ou problematizados. De acordo com o historiador Carlos Eduardo Pinto de Pinto, tanto

nas produções hollywoodianas quanto nas chamadas chanchadas, a cidade era filmada

como um território livre, onde criminosos saíam sempre impunes, o trabalho não existia

e o lazer, marcado por altas doses de sensualidade, nunca seria interrompido.129

No entanto, após a estreia do filme Rio, 40 graus do então jovem diretor Nelson

Pereira dos Santos – que havia trocado sua promissora carreira no Partido Comunista

Brasileiro pela de cineasta – no ano de 1956, muitas transformações ocorreriam no que

diz respeito ao cinema e ao papel que a cidade passa a “representar” dentro de seus

enredos. Podemos afirmar, inclusive, que as produções que tomaram forma após esse

momento, inauguraram uma nova vertente de representações imagéticas sobre a cidade,

seus personagens e conflitos, tratava-se do embrião que logo mostraria sua maior

criação por meio do chamado “Cinema Novo”, apelidado por Glauber Rocha – um de

128

FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neorrealista? São Paulo: EDUSP, 1996, p.

66. 129

PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Uma grande cidade a 40 graus: o Cinema Novo e a representação

crítica da modernidade urbana carioca (1955-1965). XVI encontro regional da ANPUH-RIO. Rio de

Janeiro, 2010. p. 2

Page 91: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

90

seus maiores expoentes – como um dos frutos do “realismo carioca” numa clara alusão

ao “realismo socialista” ou, ainda, ao “neorrealismo italiano”130

supracitado.

Dentro das práticas levadas a cabo por esse grupo crítico em relação às

premissas ideológicas e estéticas até então existentes no cinema brasileiro, alguns

aspectos mostravam-se presentes em todas as produções, como, por exemplo, a intenção

de retratar a realidade brasileira desenvolvendo artifícios de linguagem considerados

adequados às nossas condições de produção e construção de imagens.131

Em Rio, 40 graus, portanto, precursor desse novo momento, podemos observar,

dentre as suas novas propostas, uma visão de realidade brasileira onde a cidade

ultrapassa os limites de “cenário”, apresentando-se como protagonista da história,

característica que, na verdade, não será observada apenas na obra em questão mas na

grande maioria dos filmes cinemanovistas. Nesse sentido, a cidade do Rio de Janeiro

passa a abrigar o atributo de “microcosmos” da totalidade da nação brasileira. Nelson

Pereira dos Santos procurou, portanto, retratar, através da cidade do Rio de Janeiro não

apenas as bonanças possibilitadas pelos recentes impulsos de modernidade pelo qual

passava o Brasil, mas propor críticas diretas a esta modernidade, questionando até que

ponto ela estava sendo efetivamente benéfica para a maioria da população.

Para continuar as explanações desejadas, gostaríamos de pensar nas cenas de

abertura do filme, de acordo com Pinto:

A abertura de Rio, 40 graus está estruturada da seguinte maneira: o texto

Nelson Pereira dos Santos apresenta... A cidade de São Sebastião do Rio de

Janeiro em... Rio, 40 graus é sobreposto a um plano aéreo da cidade, com

imagens do Pão de Açúcar, de Copacabana e do Arpoador, seguido de uma

fusão com outro plano aéreo de quarteirões densamente povoados por

edifícios altos, provavelmente Copacabana. Em seguida, outro plano aéreo,

dessa vez do Centro, sendo possível reconhecer a Central do Brasil,

retornando-se em seguida para o Pão de Açúcar mostrado em outro ângulo,

seguido de fusão com o Maracanã e, finalmente, outro plano aéreo de um

quarteirão densamente povoado. Aparece o texto Agradecemos... População

do Rio de Janeiro. No som extradiegético, durante todo o plano, ouve-se A

voz do morro, de autoria de Zé Kéti, então um artista estreante. 132

130

De acordo com Fabri, Rio, 40 graus seria o único filme que poderia ser considerado, dentro da história

da dramaturgia brasileira, como sendo um neobrasileiro próximo dos moldes do neorrealismo italiano de

Vittório de Sica Cesari Zavattini. 131

MALAFAIA, Wolney Vianna. Imagens do Brasil: O Cinema Novo e as metamorfoses da identidade

nacional. Tese (Doutorado) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2012, p. 32 132

PINTO, op. cit. p. 4.

Page 92: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

91

Figura 6 Na abertura de Rio, 40 graus, a cidade do Rio de Janeiro aparece como a “artista”

principal.

De acordo com Pinto e com nossas observações, analisando, portanto, a abertura

do filme Rio, 40 graus, que possui aproximadamente três minutos, entramos em contato

com uma série de pequenas informações já passadas por Nelson Pereira dos Santos que

fariam com que, ao final do filme, pudesse ser percebida a já comentada inauguração de

uma nova representação imagética dada à cidade – e à não cidade, favela – e de seus

habitantes constituídos por: meninos favelados vendedores de amendoim; membros de

uma classe média arrogante; políticos corruptos e endinheirados; migrantes nordestinos;

jogadores de futebol; sambistas; empregadas domésticas; e turistas – todos, personagens

que se entrecruzam dentro da protagonista maior, a cidade do Rio de Janeiro. Aliás,

cabe aqui uma pequena ressalva: Se uma das propostas existentes dentro do Cinema

Novo era a produção de filmes independentes e com baixos custos, essa intenção foi

impulsionada pelas dificuldades que Nelson Pereira dos Santos enfrentou pois, de

acordo com Napolitano, os produtores recusavam o roteiro de Rio, 40 Graus pois não

queriam “produzir um filme com personagens negros em sua maioria”.133

De fato, os

problemas que a produção enfrentou com a censura confirmaram essa visão. Como

conta o próprio Kéti: “O chefe de polícia apreendeu a fita pois disse que ela era

subversiva pois mostrava as mazelas do Rio de Janeiro, a favela, que aquilo era uma

mentira, e que no Rio nunca fez quarenta graus.”

Não faz parte da alçada deste trabalho confirmar se, como disse o chefe de

polícia, no Rio de Janeiro já houvera dias em que o termômetro marcara quarenta graus.

No entanto, a atitude da censura e os motivos pelos quais ela teria agido em relação ao

filme demonstram como a intenção de Pereira dos Santos, no que tange à busca da

representação da realidade da cidade do Rio de Janeiro, por meio de uma nova

133

NAPOLITANO, M. Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música popular como

representação de um impasse cultural. Per Musi, Belo Horizonte, n.29, 2014, p. 75-85, 2014, p. 77

Page 93: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

92

construção imagética desta, incomodou aqueles que procuravam neutralizar os conflitos

ali existentes há pelo menos mais de um século.

Ironides Rodrigues134

escreveria ainda no ano de 1955:

Nunca o cinema brasileiro atingiu tão grande força de imagens como em Rio,

40 graus, do jovem realizador Nelson Pereira dos Santos. É a primeira vez

que a multidão das ruas, num filme nosso, participa ativamente da ação, onde

se encontram personagens da vida diária carioca. Todo o pivot desta

grandiosa obra do cinema moderno é toda a população (?) do Rio, que vive

esquecida da lei, dos políticos e outros governos pelos morros miseráveis da

cidade tentacular. Nunca num filme sul-americano vi os artistas tão bem

dirigidos por um diretor a ponto de nem darem a impressão de que estão

representando [...] que música gostosamente brasileira [...] nunca o elemento

negro foi posto com tanta simpatia humana entre nós. Vejam a cadência, o

soturno gemido do atabaque e da cuíca. [...] Problema social dos mais graves

da cidade são retratados no filme sem a resignação habitual de nossos outros

filmes conformistas

Essa busca por representar o Rio de Janeiro a partir de outros personagens e

problemas, no entanto, trouxera à tona toda uma questão iniciada pela Censura.

Em documento encontrado no site “Memória da Censura no cinema brasileiro:

1964-1988” em matéria sem fonte podemos observar a questão:

Rio, 40 graus é o título de um filme brasileiro recentemente rodado, mas com

sua exibição proibida pelo iancofilismo do coronel Geraldo de Menezes

Cortês. A película retrata com fidelidade o problema da delinquência de

menores e fixa aspectos de idêntico problema dos Estados Unidos. Por isso,

sobretudo por se tratar desse país, julgou-se o chefe de Polícia ser o filme

censurável para todas as idades. E procedeu assim mesmo, sem vê-lo. Apenas

por ouvir dizer. [...] Talvez que, se a carapuça se ajustasse bem a outra

cabeça, que não fosse a de Tio Sam, nenhuma objeção seria feita.135

No entanto, de acordo com o mesmo documento, as preocupações de cunho

ianque demonstradas por Cortês não fariam sentido, sendo vistas como ridículas pelo

próprio diretor do Bureau Federal de Investigação dos Estados Unidos, o Sr. J. Edgar

Hoover, que afirmaria que o próprio governo norte-americano impingiria, por meio de

“condenáveis filmes”, “não só os desvios morais do povo ianque”, mas trariam,

também, inspiração para o crime, para o vício e para a perversão.

A partir desse documento, portanto, podemos observar os motivos dúbios que

teriam levado à censura do filme. Embora não possamos afirmar quem o teria escrito,

fica evidente o “medo” que o filme poderia causar em determinadas camadas sociais se

visto como panfletário comunista que criticava os resultados do capitalismo no Brasil.

134

JORNAL A MARCHA. Edição de 7 de outubro de 1955. Disponível no site da Memória da censura

no cinema brasileiro (1964-1988) <www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0180108I002.pdf> Acesso

em: 5 fev. 2014. 135

Sem fonte e sem data. Disponível em <www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0180108I001.pdf>

Acesso em: 5 fev. 2014.

Page 94: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

93

Ou seja, o problema em relação ao filme não estaria tanto na imagem feita do

Rio/Brasil, como locais onde o crime e a prostituição teriam um grande espaço, afinal,

os próprios filmes norte-americanos explorariam essas questões – mas estariam,

sobretudo, numa possível propaganda contra o capitalismo, o que, naquele momento,

poderia ser visto como um enfretamento direto aos Estados Unidos, país que, desde pelo

menos o final da Segunda Guerra Mundial, financiava o desenvolvimento do Brasil.136

Mas, voltando à questão das representações existentes no filme: A presença de A voz do morro na abertura, ainda que em versão instrumental,

cria mais uma camada de significado. A letra, presente em diversos

momentos da narrativa, e com grande destaque no final, nos lembra que o

samba, onipresente na cidade – assim como os vendedores de amendoim –

era a “voz do morro”, representação por excelência da exclusão social urbana

já na década de 1950.137

Zé Kéti, que aparece nos créditos também como José Flores de Jesus – 2º

assistente de câmera – teve uma importância grande no que diz respeito à trilha sonora

do filme, assinada também pelo maestro e arranjador da Rádio Nacional, Radamés

Gnattali, que, por meio de composições e orquestração com arranjos que se

aproximavam, em muito, das canções populares vinculadas pelas rádios, manteve a

intenção proposta pelo filme de Nelson, que seria a de atrair os olhares atentos de todas

as camadas da população.

A voz do morro é elucidada em vários momentos, muito embora com

andamentos e estruturas diferenciadas, de acordo com o significado que se pretendia

transmitir a cada cena de suas notas iniciais (Mi, Fá, Sol), não será a única das

composições de Kéti que ajudará a dar significado para a construção imagética dos

ambientes e personagens.

136

Ainda na cerimônia de posse de Getúlio Vargas em 1951, quando de seu governo constitucional, o

presidente se reuniu com o emissário do governo estadunidense, Nelson Rockefeller, delineando o que se

nomeou Comissão Mista Brasil – Estados Unidos (CMBEU). A aproximação entre os dois países

processava-se desde a incorporação do Brasil no bloco aliado na Segunda Guerra, desdobrando-se nas

Missões Cooke, em 1943, e Abbink, em 1948. Tais comissões diplomáticas visavam a elaborar programas

e medidas de investimentos coordenados. Contudo, na América Latina, diferente da Europa, a intervenção

estatal se dava sem os propósitos de criar o Estado de bem-estar social nem romper a lógica da

superexploração da força de trabalho era uma medida tomada, em grande parte, para conter o comunismo.

Para mais informações acerca dos acordos econômicos entre Brasil e Estados Unidos ler: MELO,

Anderson Fábio. Roberto Campos e a lógica da subordinação aos Estados Unidos. Anais do XXI

Encontro Estadual de História –ANPUH-SP. Campinas, set. 2012. 137

PINTO, op. cit., p. 5.

Page 95: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

94

Marcelo Segreto,138

graduando em música pela ECA/USP possui um

interessante texto que faz referência a esta questão. Aqui, no entanto, utilizaremos

apenas dois de seus exemplos para elucidar a importância dessa canção. Diz Segreto

que: “Apesar de constituir outra melodia, observamos claramente a repetição das notas

iniciais do samba de Zé Kéti: notas Mi, Fá e Sol. E esta melodia torna-se, então, um

motivo relacionado à personagem da mãe doente (pois aparecerá novamente mais

adiante).”139

E mais adiante:

Na sequência do menino no zoológico, quando passeia encantado pelos

animais, ouvimos uma música orquestral (cordas, harpa e flauta) de caráter

fortemente lírico. Mas também notamos a presença do tema de A voz do

morro, sutilmente inserido nas notas iniciais da frase. A rítmica é outra, mas

as alturas se mantêm. Os planos finais desta sequência são muito

interessantes e a música contribui com o efeito das imagens. Os planos, em

campo/contracampo, vão mostrando os animais do zoológico e o olhar da

criança. E os dois últimos bichos apresentados são animais “perigosos”:

primeiramente o jacaré e depois a serpente (é na beirada do tanque das cobras

que o menino vem apoiar sua lata de amendoins). Em seguida, temos um

plano em que a mão do guarda vem surgindo como uma serpente a dar o bote

no garoto. Quando o funcionário o agarra, temos um corte seco na música. E

este silêncio repentino fortalece o susto do garoto que acorda de seu sonho.

De qualquer modo, na melodia lírica de seu passeio pelo zoológico, temos

novamente a presença das alturas iniciais da melodia de Zé Kéti (Mi-Fá-Sol).

Além disso, temos uma estrutura de frase que se aproxima da construção

musical de A voz do morro. Pois observamos, entre a primeira e a segunda

frase, uma repetição melódica a partir de um intervalo de 2ªM abaixo (em A

voz do morro também encontramos este tipo de construção e de relação

intervalar entre as frases):

Seguindo os passos de Rio, 40 graus, Rio, Zona Norte, igualmente dirigido por

Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1957.

De acordo com Marcos Napolitano:

138

SEGRETO, Marcelo. A música de Rio, 40 graus. Revista Laika-USP. São Paulo, v.1, n1, julho de

2012. 139

Ibidem.

Page 96: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

95

A polêmica e a boa recepção crítica de Rio, 40 Graus impulsionou o segundo

filme sobre a idealizada “trilogia carioca” de Nelson, estimulado pela

amizade com Zé Kéti e já encantado com o universo dos morros e do samba

carioca. A inspiração na vida deste compositor carioca, um ícone para a

esquerda dos anos 1950 e 1960, foi assumida como inspiração para o

argumento de Rio, Zona Norte.140

O próprio diretor, em entrevista concedida em 2011 para o programa De lá pra

cá – especial Zé Kéti, teria afirmado:

O filme Rio, Zona Norte é uma homenagem ao Zé Kéti. Tem o personagem

do sambista, interpretado pelo Grande Otelo, que seria o Zé Kéti... por que o

Zé Kéti me contava as coisas todas daquele tempo: como o sambista era

lesado, roubado, os direitos eram desviados, os parceiros eram de mentira.

Figura 7 Kéti (esquerda) nas filmagens de Rio, 40 graus.141

Dessa forma, o filme Rio, Zona Norte possuía como principais funções assim

como o seu antecessor a crítica de uma modernidade sem equidistâncias estabelecidas

para os moradores do asfalto e da favela visando a desnaturalizar as relações raciais e

sociais do Brasil.

140

PINTO, op. cit. p. 7 141

Disponível em: http://compositoresdaportela.blogspot.com.br/2014_04_01_archive.html

Page 97: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

96

Trata-se de uma história baseada em encontros e desencontros existente na vida

de indivíduos inseridos em uma cidade-sociedade específica que é da cidade do Rio de

Janeiro.

No entanto, de acordo com Napolitano, o filme não teria empolgado pois: [...] no lugar de dar continuidade ao olhar neorrealista trazido por Rio, 40

Graus, o diretor parecia voltar ao melodrama. Somente nos anos 1970, as

qualidades estéticas e a importância histórica do filme foi recuperada (sic)

por David Neves (NEVES, 1978). Mariarosaria Fabbris destaca ainda que a

crítica de época não compreendeu que em Rio, Zona Norte “o que deve ser

analisado é menos o neorrealismo como ponto de referência, do que a

retomada do diálogo com o cinema nacional, (na trilha aberta por Agulha no

Palheiro) e a discussão sobre cultura popular (FABBRIS, 2003, p. 81). É

nesta tradição que a música ganha um papel essencial como narrativa e como

representação.142

E, nesse sentido, Kéti tem sua contribuição e importância renovadas uma vez

que o filme pretendia discutir, por meio da história de Kéti e, de fato, de sua própria

música – Malvadeza Durão, Foi ela, Mexi com ela, Samba de ouro, Mágoa de sambista

e O samba não morreu, que escreve em parceria com Urgel de Castro – os efeitos que a

tal “modernidade” trazia para o povo e para a cultura brasileira.

Ao final do filme, o personagem de Grande Otelo, Espírito, morre por conta do

acidente de trem que sofrera ainda no início do filme. Na verdade o filme seria um

grande flashback que mostraria a vida de Espírito até o momento do acidente e de sua

morte. Em todo o decorrer do filme questões de cunho racista são colocados em pauta,

desmistificando, em muito, algumas teorias, como a trabalhada por Gilberto Freire em

Casa Grande e Senzala e depois utilizada por muitos estudiosos da cultural brasileira: a

teoria da mestiçagem brasileira sem a problematização dos conflitos existentes dentro

da própria sociedade.

A socióloga Ana Lígia Muniz Rodrigues143

indica, por exemplo, que a morte de

Espírito não representaria apenas mais uma fatalidade, mas, sobretudo, a morte de um

sujeito que tem negada a dignidade de ser reconhecido por seu talento e por não seguir

os padrões eurocêntricos de aceitação que a sociedade carioca do período possuía. Não

morreria ali, portanto, simplesmente o personagem, mas, sim, todos aqueles que estão

contidos naquilo que o personagem significa ou ressignifica: o pobre, o negro, o

morador da favela que mesmo repleto de talento é marginalizado por uma sociedade que

o explora ao mesmo tempo que o nega.

142

NAPOLITANO, op. cit. p. 78 143

RODRIGUES, Ana Ligia Muniz. Os tons da nação: uma análise sociológica do filme Rio, Zona Norte.

Universidade Federal da Paraíba, 2009-2010, p. 19

Page 98: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

97

Mais uma vez participando das filmagens como assistente de fotografia, no

filme, Kéti também é Alaor Costa, um cantor iniciante.

No ano seguinte, Roberto Santos lança O grande momento que também contará

com composições de Kéti, como a música Flor do Lodo.

Kéti ainda assinaria canções para outros filmes como O Boca de Ouro (1962), de

Nelson Pereira, no qual atua como ator coadjuvante. A Falecida (1965), de Leon

Hirszamn, e A Grande cidade (1966), de Cacá Diegues.

2.3.2 A cidade, o teatro e Kéti

O teatro seja autodenominado, político, engajado, revolucionário ou até

apolítico, é sempre político, independentemente da consciência que seus

autores e protagonistas tenham disso. O mundo da política é habitado por

todos nós, queiramos ou não, quanto mais não seja porque toda e qualquer

relação social implica, inescapavelmente, relações de poder, tenham essas o

sentido de dominação ou não.144

Como teria afirmado o professor Adalberto Paranhos, o teatro, mesmo que de

maneira despretensiosa e até inconsciente, teria, como uma de suas características

primordiais, a prática da política. Tal fato poderia ser explicado pelo viés aristotélico

que observa o homem como sendo naturalmente político e dotado de logos, ou seja,

dotado da capacidade racional de desenvolver discursos e raciocinar entre certo e errado

antes de agir.145

Todos nós, portanto, viveríamos cotidianamente imersos na política e

suas questões, o que, de fato, nos transformaria em animais distintos dos outros

existentes na natureza. Dessa forma, e mais uma vez, partindo das ideias das “novas

histórias” possibilitadas quando da quebra dos paradigmas tradicionais do mundo da

História já explorados neste trabalho, lançaremos um olhar para uma outra forma de

expressão artística e política que, assim como o cinema, foi importante não apenas por

ter marcado a História do Brasil contemporâneo, mas, também, por fazer parte dos

passos dados por Zé Kéti em sua trajetória de vida: o teatro.

Se fizermos uma rápida retrospectiva da história do teatro brasileiro,

perceberemos que, ao menos até o final dos anos de 1920, tal área não seria muito

trabalhada. De acordo com o crítico de teatro Gustavo Dória:

É que somente o povo, em suas camadas abaixo da média, frequentava as

nossas salas de espetáculo, que se resumia no teatro de revista, localizado a

144

ALMADA, Izaías. Resenha de PARANHOS, Kátia Rodrigues (org.). História, teatro e política. São

Paulo: Boitempo, 2012. 145

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Edições de

Ouro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1959.

Page 99: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

98

Praça Tiradentes, ou então no único teatro estável de comédia que era o

Trianon, situado na Avenida Rio Branco. O Trianon, com as suas

comediazinhas que se sucediam quase semanalmente no cartaz, era o lugar

onde se mantinha o fogo sagrado do nosso simplório teatro de dicção, através

de uma série de originais que embora assinados por nomes como Heitor

Modesto, Gastão Tojeiro, Paulo Magalhães, Oduvaldo Viana ou Armando

Gonzaga, cuidavam rotineiramente dos pequenos problemas sentimentais e

domésticos das famílias modestas, moradoras dos subúrbios. Era toda uma

ciranda cujos componentes eram a mocinha costureira ou caixeira da Sloper,

o chefe da família, funcionário público ou marido bilontra, o guarda-freios ou

chefe de estação da Central, o chauffer, o português, dono do armazém, a

empregadinha mulata e sestrosa, todos às voltas com pequenos problemas

sentimentais, leves infidelidades ou consequências oriundas de festejos de

carnaval.146

Dentro dessa perspectiva, ainda temos mais um ponto importante. Até a década

de 1940, o negro no teatro brasileiro, mesmo quando em personagens de maior

destaque, era quase sempre retratado de maneira caricatural e estereotipada o que

permitiu, em certa medida, que “personagens” como a “mulata sensual”, a “ama de

leite”, a “baiana macumbeira, a “preta velha” o “malandro” e o “pai João”,

caracterizados, na maior parte das vezes como seres submissos, bobos demais ou

violentos e truculentos em demasia (a exemplo do malandro) chegassem até os dias

atuais como representações existentes na imagética e no senso comum de uma parcela

significativa da população.

Ou seja, se, por um lado, o teatro nacional foi politicamente pouco eficaz

enquanto instrumento de transformações até o final dos anos 1920, mesmo depois disso,

demoraria a incluir em seus trabalhos o ator negro visto como um verdadeiro

profissional da área capaz de representar papéis que não o ridicularizassem ou

subjugassem.

Tal configuração permanecerá na história do teatro nacional até fins da década

de 1920, quando começa a surgir um teatro nacional de bases não apenas mais

organizadas e estruturadas mas, também, mais politizadas, como o Teatro de Brinquedo,

em 1927 e o Teatro de Arte, em 1932. No entanto, o maior salto político, social e

cultural que o teatro nacional daria viria após 1944, quando da formação do Teatro

Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias Nascimento.

Em treze de outubro de 1944, nasceria, portanto, uma das mais importes

expressões de luta do negro africano e do afro-brasileiro. Trata-se do Teatro

Experimental do Negro, o TEN. Idealizado pelo economista Abdias do Nascimento

pretendeu representar um movimento de construção de uma política de igualdade racial,

146

DORIA, Gustavo A. Moderno teatro brasileiro. Rio de Janeiro: SNT/MEC, 1975, p. 20-1.

Page 100: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

99

além de incentivar o processo de descolonização cultural e intelectual pelo qual esse

grupo, em especial, sempre foi alvo.

A intenção para a fundação de tal espaço, como conta o próprio Abdias, surgiu

de uma viagem feita, em 1941, a Lima, capital do Peru. Ele estava no Teatro Municipal

da cidade, assistindo à peça de Eugene O´Neill, O Imperador Jones, quando se deu

conta de como o negro, não apenas nas artes daquela cidade e daquele país latino-

americano, mas em seu próprio país, era excluído de maneira descarada e mesquinha e

que tal comportamento permitia a criação de um espaço de propagação de um vício

secular, o da discriminação e diferenciação racial.

Na passagem que segue, embora longa, podemos observar de que maneira a

atenção de Abdias teria sido chamada em tal ocasião, e como ela irá representar o passo

importante que ele tomaria em seu retorno ao Brasil.

Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete

dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte

milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta

milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel

principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. Não seria,

então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial? Minhas indagações

avançaram mais longe: na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido

exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a

presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos,

conforme acontecia, mas encarnando qualquer personagem – Hamlet ou

Antígona – desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o

inverso: até mesmo um Imperador Jones, se levado aos palcos brasileiros,

teria necessariamente o desempenho de um ator branco caiado de preto, a

exemplo do que sucedia desde sempre com as encenações de Otelo.

Mesmo em peças nativas, tipo O demônio familiar (1857), de José de

Alencar, ou Iaiá boneca (1939), de Ernani Fornari, em papéis destinados

especificamente a atores negros se teve como norma a exclusão do negro

autêntico em favor do negro caricatural. Brochava-se de negro um ator ou

atriz branca quando o papel contivesse certo destaque cênico ou alguma

qualificação dramática. Intérprete negro só se utilizava para imprimir certa

cor local ao cenário, em papéis ridículos, brejeiros e de conotações

pejorativas.147

Dessa forma, um projeto para além do universo das artes dramáticas abertas ao

talento do negro seria impulsionado: criaram-se congressos, conferências e escolas de

alfabetização junto ao TEN com a clara intenção de permitir, primeiramente ao próprio,

negro reconhecer o “valor civilizatório da herança africana e da personalidade afro-

147NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados. São

Paulo, n.50, v.18, jan./abr. 2004, p. 209.

Page 101: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

100

brasileira, exigindo que a diferença deixasse de se transformar em desigualdade”.148

Assim um movimento intenso e dinâmico do negro contra o estático e arcaico

racismo teriam um grande impulso a partir da fundação do TEN e de todas as suas

iniciativas.

Encontrando no seio do próprio racismo a força propulsora da criação cultural

como forma de responder ao mundo frio e feio da ignorância possibilitada pela doutrina

ideológica secular do racismo, importantes acontecimentos puderam ter espaço para

emergir.

Entre os anos de 1945 e 1946, por exemplo, ocorreu a Convenção Nacional do

Negro Brasileiro, onde o Manifesto à Nação Brasileira seria produzido; em 1950

ocorreria o I Congresso do Negro Brasileiro, também no Rio de Janeiro; em 1955, seria

a vez do concurso “Cristo Negro” que, assim como os concursos de beleza “Rainha das

mulatas” e “Boneca de Pixe”, tinha a clara e pedagógica intenção de descolonizar a

noção estética do belo numa tentativa de recolocar – ou colocar – no centro das

atenções, a beleza da mulher negra e afro-brasileira.

Finalmente, em 8 de maio de 1945, a primeira peça do grupo do Teatro

Experimental do Negro seria apresentada. Tendo como primeiro texto a própria O

Imperador Jones, fora encenada no teatro da União Nacional dos Estudantes, por

operários, domésticas e favelados sem profissão, e conquistou, embora apresentada uma

única vez, grande sucesso de público e crítica.

O Teatro teria uma bela e produtiva história de luta, resistindo até o fatídico ano

de 1968 quando, por imposição do regime civil-militar, foi fechado.

A história de Abdias, assim como a de seu teatro e de todas as iniciativas que

foram tomadas a partir dele, servem-nos, no entanto, para perceber a máxima de que na

arte, seja por meio da representação dramática ou da música, os limites da ação

meramente artísticas são muitas vezes extrapolados, uma vez que essas representações

artísticas estão diretamente relacionadas a uma concepção política do próprio mundo.

O que pretendemos é indicar como um roteiro, um personagem e mesmo a

atuação de um diretor ou um ator estão para além do momento em que a peça é

trabalhada; nosso intuito é discutir temas caros ao cotidiano de grupos e pessoas em

especial. Para além de uma expressão da arte, a arte pode e deve ser vista como bandeira

148

NASCIMENTO, Elisa Lankin; NASCIMENTO, Abdias do. Reflexões sobre o movimento negro no

Brasil. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: Ensaios sobre

racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 207.

Page 102: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

101

de luta.

Em seu livro Teatro do oprimido e outras poéticas políticas,149

Augusto Boal,

importante sujeito artístico que desenvolveu, principalmente entre as décadas de 1960 e

1990, o chamado Teatro do Oprimido, comenta a busca constante da “transformação da

sociedade no sentido de libertação dos oprimidos”, que será proposta em seus trabalhos,

não apenas como uma ação política em si, mas uma preparação para outras ações.

Assim, o Teatro do Oprimido previa e de fato incorporava como parte da ação

pretendida uma série de outras técnicas e teorias que, advindas de questões como a Ética

e a Política e da História e da Filosofia, encontrava nutrientes na seiva na qual a

“árvore” do Teatro do Oprimido poderia crescer e se desenvolver com profundas raízes,

tronco forte e frutos capazes de multiplicar as questões por ela proposta.

Um dos grandes exemplos desse teatro, crítico, instigador e altamente politizado,

foi aquele desenvolvido em São Paulo já na década de 1960 – o chamado Teatro de

Arena.

De acordo com Boal, o Teatro de Arena representaria um dos dois polos nos

quais os elencos nacionais de teatro estariam, de certa forma, divididos. Tratar-se-ia do

polo dos revolucionários que se “opunham” estética e politicamente aos “clássicos” que

pretenderiam manter uma posição dentre dos limites até então conhecidos no tocante à

prática teatral. Dentro desse grupo estariam contidos o TBC e o “teatro de caminhão”

dos vários CPCs.

O Teatro de Arena, por sua vez, elaborando uma tendência diferenciada,

procuraria, a partir da necessidade social e dos problemas diversos presentes no Brasil e,

de certa forma, no mundo, propor outra forma de praticar teatro, que em muito fugiria

da proposta dos supracitados “clássicos”.

Assim, através de uma ruptura interna do famoso Teatro Brasileiro de Comédia,

o Teatro de Arena se formaria, tendo como uma de suas principais premissas permitir

que a “realidade” fosse exposta e, uma vez exposta, criticada e reconstruída, não apenas

por seus “atores”, mas também pela plateia.

Em fevereiro de 1958, os trabalhos do Arena iniciaram com a peça de

Gianfrancesco Guarnieri Eles não usam black-tie que ficaria em cartaz durante todo o

ano. Até 1962 outras importantes obras seriam lançadas, como Chapetuba Futebol

Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, Gente como a gente, de Roberto Freire, e Revolução

149

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2011.

Page 103: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

102

na América do Sul, de Augusto Boal. Até 1962, de acordo com Boal, o Arena fecharia

suas portas à dramaturgia importada, abrindo-as, no entanto, aos que fizessem falar de

Brasil.150

Tratava-se do período da Bossa Nova, do Cinema Novo e de Brasília, a nova

“capital da esperança”.

O Arena teria ainda uma vasta produção de musicais: Arena conta Bahia, Arena

conta Zumbi e, claro, o Opinião.

O Show Opinião, peça escrita por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e

Paulo Pontes – dramaturgos ligados aos grupos Arena e Oficina e que participavam de

peças encenadas pelo CPC da UNE – e dirigido pelo já citado Augusto Boal, possuía

como formação original no palco os atores-cantores Zé Kéti, Nara Leão e João do Vale.

Figura 8 João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão em “Show Opinião”.151

Em tal peça, uma característica chama a atenção da plateia: os artistas

mencionados, mais do que simples atores, encenam, de certa forma, eles próprios. Era a

prática da ideia de Boal de que “a interpretação seria tão melhor na medida em que os

150

Ibidem, p. 247. 151 Disponível em: http://cifrantiga3.blogspot.com.br/2006/06/opinio.html

Page 104: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

103

atores fossem eles mesmos, e não atores”.152

Nesse contexto, observamos que os três atores em cena “eram também

personagens, pois a ideia dos autores era exatamente mostrar o que havia de comum

entre uma típica mocinha da zona sul, um personagem dos subúrbios cariocas e um

nordestino”. E esse “laço” estaria exatamente na música e mais, na música enquanto

arma de protesto. Estreando no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1964, poucos

meses após o golpe civil-militar, o espetáculo representou – e de fato ainda permanece

na imagética do teatro e da arte engajada do Brasil – uma bandeira de oposição frente

aos novos rumos políticos iniciados no período.

No livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso, assim é rememorado o

acontecimento:

Alguns meses depois da “revolução” – como era chamado oficialmente o

golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar –, o musical Opinião

reunia um compositor do morro (Zé Kéti), um compositor rural do Nordeste

(João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão)

num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos

shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de

participação política. O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de

alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação

entre a música moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada – o

movimento teve como precursor e incentivador o próprio Vinícius de

Moraes, o primeiro e principal letrista da bossa nova, e apresentou, por vezes,

excelentes resultados, tendo o Brasil, por causa disso, criado talvez a forma

mais graciosa de canção de protesto do mundo –, e inaugurava o show de

música teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e

mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se

como uma das formas de expressão mais influentes na subsequente história

da música popular brasileira.153

Dir-se-ia, inclusive, que essa “aproximação” entre a bossa nova despretensiosa,

feita nos apartamentos de Copacabana, com uma arte mais engajada, de cunho político,

teria sido incentivada por Zé Kéti. Tal aproximação teria sido iniciada no interior do

memorável Zicartola quando Zé Kéti e Carlos Lyra estabeleceram um “acordo” que

previa: Lyra levaria Kéti às reuniões no apartamento de Nara, enquanto Kéti introduzi-

lo-ia nas rodas de samba do morro. Importante pontuar que personagens como

Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Armando Costa, três importantes figuras do

CPC, teriam a ideia germinal do que desembocaria no espetáculo Opinião, ali mesmo

no Zicartola.

152

Ibidem, p. 245. 153

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 72

Page 105: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

104

Figura 9 Hermínio Bello, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti em apresentação no

Zicartola onde Kéti era “diretor musical”154

.

Figura 10 Cartola, Nara Leão, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.155

De acordo com o Veloso e Cabral, tal aproximação, que resultou no LP Opinião

de Nara, em 1964, teria lançado as primeiras sementes do que se tornaria o show.

Contando apenas com um tablado onde o cenário existia na própria ausência de

cenário, a peça poderia aparentar para além de uma peça teatral, uma reunião de amigos

154 Disponível em: http://limonadasambadub.blogspot.com.br/2010/12/bar-doce-lar-memorias-do-

zicartola.html. Para mais informações acerca da história do Zicartola, consultar:Castro, MAURÍCIO,

Barros de Zicartola:política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro, Dumará, 2004. 155

Disponível em: http://alexander-zimmer.blogspot.com.br/2011/10/brasilidade-cartola.html

Page 106: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

105

onde se discutiam alguns problemas do Brasil regados, claro, a boa música.

A peça teve boa receptividade, principalmente do público jovem, universitário e

de esquerda, chegando a contar ainda nas primeiras semanas de espetáculo com mais de

25 mil espectadores e, depois, mais de 100 mil em São Paulo e em Porto Alegre.

Na verdade, o público que frequentava e lotava as salas onde a peça fora

encenada pode ser compreendido a partir da análise da sociedade brasileira – mais

especificamente estudada a partir de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador – e, de fato, da

geração que assistiu ao golpe civil-militar e viu frustrados os planos de construção de

uma modernidade alternativa para o Brasil. Talvez um público caro à chamada

brasilidade revolucionária do pré-1964 que agora, vendo derrotadas suas esperanças de

construir um novo Brasil, tenha passado a encontrar na cultura um dos únicos espaços

de atuação, uma vez que politicamente havia sido derrotado.156

Em um dos diálogos da peça, Nara e Kéti conversam assim:

NARA LEÃO: Fica à vontade, meu trato, bem baseado (oferece o cigarro)

Toma. Dá uma puxada.

ZÉ KÉTI: Já peguei.

NARA LEÃO: Pegou de grota. Toma. Manda pra cuca (põe o cigarro na boca de

Kéti). Não to te cobrando nada ainda e fica de onde?

ZÉ KÉTI: Brigado, mas já peguei, camaradinha. Agora mesmo com o Praga de

Mãe e o Coisa Ruim. Tô doidão, tô doidão.

NARA LEÃO: Que nada, deixa eu ver o olho. (Olha o olho do Kéti) Nem ta

vermelho!

ZÉ KÉTI: Oh, meu camaradinha, não fica falando em vermelho, não, que

vermelho tá fora de moda. Fora de moda.

NARA LEÃO: Tá, tu não é de nada, papo careca. Tem que fumar a erva pra ir

carregando, meu trato. Só assim a gente não pensa em meter a mão (mete a mão no

bolso de Kéti) Falar em meter a mão, me adianta uma nota aí.

ZÉ KÉTI: Tô duro. Durão. Agora sou da linha dura!

Algumas questões podem aqui ser levantadas. Embora Kéti pudesse estar

representando ele próprio, Nara assume um outro personagem que não mais ela própria.

Quando Kéti a chama por “meu camaradinha” podemos perceber essa troca, em que

156

NAPOLITANO, op. cit., p. 49

Page 107: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

106

Nara sairia da posição de menina rica moradora de Copacabana para a de um

consumidor e traficante de droga ilícita. No entanto, é interessante pensar o motivo que

teria levado à montagem da cena dentro dessa configuração: Por que não inverteram

papeis? Afinal, dentro da imagética tradicional, um negro morador da favela teria de

maneira muito mais natural uma ligação com esse mundo das drogas.

Outra questão diz respeito às menções em relação à cor vermelha e ao sujeito

“camaradinha”, numa clara alusão ao partido comunista e, claro, de que maneira ele era

percebido naquele momento.

Ao final do diálogo, mais duas críticas são estabelecidas de maneira suave,

embora bastante direta. Além de comentar a situação de pobreza e fome que abatia boa

parte de população, há uma menção direta ao novo regime e aos militares ligados à

chamada “Linha Dura”.

Na peça, portanto, notamos a discussão de vários problemas sociais que

configuravam o Brasil dos nos 1960 eram expostos de maneira clara, embora, na grande

maioria das vezes, de forma leve e divertida. Na escolha das canções, dos trechos de

poesias e romances e nas falas e diálogos dos personagens, percebe-se a intenção maior

de questionar os problemas pelos quais passava o país. Não era só o golpe civil-militar

que estava em jogo, mas toda a situação em que boa parte da população se encontrava: a

seca do Nordeste, a migração, a situação de pobreza pela qual uma parte considerável da

população se via inserida, a maneira pela qual a favela e o favelado eram percebidos e,

de certa forma, como a saída para tais questões poderia estar, dentre outros lugares, no

próprio debate – debate este que deveria incluir todas as camadas daquilo que

compunha a sociedade carioca que, assim como em Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte,

constituía um microcosmos do resto do Brasil.

No Show Opinião, as seguintes canções de Kéti foram “encantadas” – ideia de

encenar e cantar: Samba, samba, samba, O favelado, Nega Dina, Opinião, Marcha do

Rio, Quarenta graus, Malvadeza Durão, Cicatriz (em parceria com Hermínio Bello de

Carvalho). Essas canções, junto do texto e da postura dos envolvidos no Opinião,

tinham como grande intenção transformar mentes e posturas frente ao novo momento

político e cultural do Brasil.

Em reportagem feita por Van Jafa ao jornal Correio da Manhã de 16 de

dezembro de 1964 podemos ler a respeito do artigo coletivo “As intenções de Opinião”,

escrito por Armando Costa, Boal, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho:

Page 108: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

107

A música de Zé Kéti tem uma nova riqueza de variação que representa o

novo sambista que anda por Copacabana, canta em faculdades, participa de

filmes, ouve rádio e disco. A riqueza da variação da música de Zé Kéti

representa uma capacidade mais rica de sentir a realidade. A música de Zé

Kéti também tem uma nova violência – menos ufanista e mais concreta.157

De acordo com as palavras de João das Neves, o diretor de Opinião por mais de

dezesseis anos:

O (...) trabalho era fundamentalmente político e, assim, pesquisar formas nos

interessava – e interessa – muito. (...) A busca em arte não apenas estética –

ela é estética e ética ao mesmo tempo. Eu coloco no que faço tudo o que eu

sou, tudo o que penso do mundo, tudo o que imagino da possibilidade de

transformar o mundo, de transformar as pessoas. Acredito na possibilidade da

arte para transformar.158

Dessa forma, podemos perceber a importância que a música de Kéti, vista para

além de um simples produto para o consumo, foi percebida como uma opinião acerca de

questões relacionadas à realidade brasileira do negro favelado que, a partir de sua

interpretação, teve a possibilidade de sair do universo de um personagem quase

folclórico para dar lugar a um sujeito que sofre e age sobre as circunstâncias que se

colocam frente à sua realidade.

A seguir, propomos a análise de duas músicas cantadas e encenadas por Kéti

como representativas da participação do mesmo na peça: Noticiário de Jornal e

Cicatriz. A partir delas buscaremos destruir o sujeito-objeto criado em relação à

imagética do favelado.

Noticiário de Jornal

Moro longe, lá na Zona Norte e trabalho no centro de nossa cidade

Leio todos os jornais, da manhã e da tarde

Para estar a par das novidades

Foi o jornal que disse que morrem 500 crianças por dia

Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer

Eu acho que a infância precisa viver, eu acho que a infância precisa viver.

Foi o jornal que disse que a vida subiu 400 por cento,

157

JAFA, Van. As intenções de “Opinião”. Correio da Manhã, 1964. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=58644&pesq=&esrc

=s&url=http://memoria.bn.br/docreader# Acesso em: 7 de jul 2014. 158

NEVES apud PARANHOS, Kátia Rodrigues. Dois e dois: quatro: Ferreira Gullar, o grupo Opinião e o

Bicho. Baleia na Rede: estudos em arte e sociedade. vol. 9 n. 1, 2012. Disponível em:

<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/view/2838/2216>

Page 109: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

108

Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer

Eu acho que o povo precisa comer, eu acho que o povo precisa comer.

Foi o jornal que disse que tem mil escolas pra lecionar

Eu digo o que leio, não digo o que vejo, porque o que vejo não posso dizer

Eu acho que o povo precisa estudar, eu acho que o povo precisa estudar

Foi o jornal que disse que 99, que 99, que 99 por cento do povo

não passa nem na porta da faculdade, que só 1 por cento pode ser doutor

Coitado do pobre, do trabalhador.

Em Noticiário de Jornal, entramos em contato com um sujeito, no caso,

representado por Kéti que, por sua vez, representa o pobre, negro e favelado, que,

embora demonstre ciência em relação aos rumos que o Brasil toma, não pode falar. Tal

postura poderia ser observada como a censura, fortemente aplicada no período no qual o

país acabara de entrar. No entanto, podemos fazer aqui outra suposição, será que Kéti

não estaria comentando acerca da falta de espaço que o pobre, negro e favelado sempre

sofreram? Será que não existiria aí uma tentativa de demonstrar como a censura sempre

existira para aquelas pessoas? Será que Kéti, não estaria representando aqueles que,

mesmo querendo dar a sua “opinião” sabem que não serão levados a sério tendo a

necessidade de utilizar um meio confiável – o jornal – para legitimar os seus pontos de

vista, muitas vezes cansados de “sentir na pele” tudo o que o jornal fala acerca de falta

de dinheiro, falta de educação, enfim, falta de recursos?

Cicatriz

Pobre não é um

Pobre é mais de dois

Muito mais de três

E vai por aí

E vejam só

Deus dando a paisagem

Metade do céu já é meu

Deus dando a paisagem

Metade do céu já é meu

Pobre nunca teve gosto

A tristeza é a sua cicatriz.

Page 110: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

109

Reparem bem que

Só de vez em quando

Pobre é feliz

Ai, quanto desgosto

Ai, quanto desgosto

Assim a vida vale a pena Não.

Mas é explicar a situação

Dizer pra ele que ...

Pobre não é um

Pobre é mais de cem,

Muito mais de mil,

Mais de um milhão

E vejam só:

Deus dando a paisagem

O resto é só ter coragem

Deus dando a paisagem

O resto é só ter coragem

Cicatriz, última canção antes do momento de catarse da peça, retrata, mais uma

vez, a situação socioeconômica pela qual o Brasil passava naquele momento. Iniciando

a canção com o verso “Pobre não é um, pobre é mais de dois, muito mais de três e vai

por aí”, e retomando a ideia quando afirma que “Pobre não é um pobre é mais de cem,

muito mais de mil, mais de um milhão”. É como se, ao fim de todas as opiniões, de

todos os quadros desenhados por aqueles três representantes de brasileiros, Kéti

recolocasse em números que aquela realidade cantada era, na verdade, uma realidade

presente para a maioria dos brasileiros.

O refrão que diz que “Deus dando a paisagem, o resto é ter coragem” pode ser

igualmente compreendido como mais do que uma opinião, uma indireta de que tendo

coragem, a paisagem das coisas, ou seja, essa realidade dura e triste, poderia ser

modificada.

Ao término da canção, é feita uma colagem das canções Sina de Caboclo,

Opinião, Cicatriz e Carcará, pontos altos do espetáculo que termina com aplausos,

gritos e assovios da plateia.

Sendo censurado em algumas ocasiões, o show perdurou, com algumas

Page 111: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

110

mudanças, até o ano de 1965.

Em 1990, Kéti estrearia em São Paulo a peça Estamos vivos: Uma questão de

Opinião, junto da atriz Deivy Rose e direção de Luiz Carlos Bahia. Em 1993, reviveu o

show Opinião por meio de Opinião Pública. Um ano depois, em 1994, Kéti receberia a

medalha Pedro Ernesto em comemoração pelos trinta anos do Show.

Page 112: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

111

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA CIDADE DO

RIO DE JANEIRO E DA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE POS

COLONIAL

“Dizer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar em que nos

identificamos”

Ortiz, 2006.

E com as palavras que Renato Ortiz utilizou para iniciar uma de suas mais

importantes obras, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, nós, de maneira singela,

procuraremos terminar a nossa contribuição para a história do samba, das cidades e da

questão das identidades que procuramos debater nesta dissertação.

Como comentado durante o Capítulo 2, imagens acerca do que seria o brasileiro

têm sido recorrentes desde que os viajantes, os “de fora” – europeus – procuram

explicar o que encontram aqui “dentro”. Se no século XIX esses pensamentos teriam se

revestido de certo caráter científico, desde o “descobrimento” dessas nossas terras, a

imagem da “outra raça” tem sido utilizada para nos diferenciar do universo eurocêntrico

dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Mesmo que algumas exceções, como as que encontramos no filósofo francês

Montaigne ou no viajante Jean de Lerys, que “passou a ver na América o alvorecer de

uma nova humanidade”159

procurem observar os nativos brasileiros da maneira menos

taxativa, a lógica do período será a de observar sua cultura e caráter de maneira

duvidosa. Homogeneizados sobre o estigma de canibais, sem crenças e sem alma,

podemos resumir, a partir da famosa frase de Gândavo o que seria um “lugar-comum”

para discutir a situação dos povos aqui existentes: “Sem fé, nem lei, nem rei”.

Em 1749, com os livros do conde de Buffon sendo lançados, ideias como a

noção de “debilidade” dos povos e animais americanos começaram a ganhar relativo

espaço junto à intelectualidade de então. De acordo com Buffon, tais “debilidades”

seriam explicadas levando em consideração questões como o clima, a qualidade da

terra, a qualidade das águas etc., eram aqueles os primeiros passos do pensamento do

determinismo geográfico.160

159

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade

brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 15. 160

Ibidem, p. 17.

Page 113: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

112

No que diz respeito aos trabalhos produzidos sobre o Brasil, no Brasil, por

brasileiros, que poderiam muito bem receber a alcunha de terem representado os

primeiros anos das Ciências Sociais no Brasil, entramos em contato com as precursoras

discussões acerca de qual seria a nossa identidade nacional. Deparamo-nos, também,

com explicações de cunho, sobretudo, racista. Afinal, pudera! Com todos os

pensamentos citados, não poderíamos supor que muita coisa diferente fosse produzida

por aqui uma vez que a maior parte de nossos “intelectuais” possuía fortes ligações com

o que se produzia na Europa. Éramos, sobretudo, brasileiros ainda mentalmente

colonizados.

Na introdução da obra da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, Nem Preto, nem

branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira, podemos entrar

em contato com essa “dura” realidade. Nela, Schwarcz faz referência a um livro de

contos infantis publicado no Brasil em 1912 sob o título de Contos para Crianças, que,

em 1937 também seria publicado na Inglaterra, sob o título The Black Princess and

other fairy tales from Brazil.161

Dentre os vários contos existentes no livro que, de maneira geral, tratariam da

mesma temática – como uma pessoa negra podia tornar-se branca – um chamaria a

atenção. Seria o conto da “Princesa negrinha”. O enredo iniciaria de maneira muito

parecida com a história da “Bela Adormecida”, onde um casal Real, embora nobre de

coração e feliz, não teria encontrado realização plena, uma vez que não haviam

conseguido gerar uma pequena vida. Como na história de Bela que furaria o seu dedo

numa roca de fiar, uma fada-madrinha apareceria para ajudar o incompleto casal de rei e

rainha. Teria dito a rainha: “Oh! Como eu gostaria de ter uma filha, mesmo que fosse

escura como a noite que reina lá fora.” E a fada, entendendo o pedido de maneira literal,

acaba fazendo a rainha dar a luz a uma garotinha “preta como o carvão”.

Vendo a comoção que a “situação adversa” da princesa teria gerado em todo o

reino, a fada-madrinha acaba resolvendo a história da seguinte maneira: Se os pais

mantivessem a princesa, durante os seus primeiros dezesseis anos, presa entre os muros

do castelo, ela seria transformada “na cor branca que seus pais tanto almejam”. No

entanto, numa passagem que poderia muito bem lembrar a Gêneses e a expulsão de

Adão e Eva do paraíso, a princesa, Rosa Negra, acaba sendo convencida por uma

serpente a ultrapassar os muros que a prendiam. Após esse incidente a princesa acaba

161

Ibidem, p. 10-1.

Page 114: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

113

entrando em um universo de horrores e dor, sendo obrigada a casar com o “animal mais

asqueroso que existia na terra”, o Urubucaru. Triste, não apenas por casar-se com

semelhante criatura, mas principalmente por que nunca seria branca, a princesa, como

em todos os contos de fada, acaba com um “final feliz” que vem a partir da benção de

sua madrinha encantada: o seu Urubucaru transforma-se num belo príncipe, e sua pele

em uma pele branca.

Tal conto, embora aparentemente revestido da pureza que alguns podem

observar nos contos infantis, tinha a clara intenção de discutir a questão do

“branqueamento” racial surgida, no Brasil, principalmente após a abolição da

escravatura e a intenção de modernizar o país não apenas de forma política e

econômica, mas também social e cultural.

O jurista, político e crítico literário, Sílvio Romero, por exemplo, utilizaria

teorias como a do positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de

Spencer para problematizar a realidade brasileira. Observando as origens de tais

pensamentos – europeus – e o que propunham de maneira geral – a evolução histórica

dos povos – podemos compreender a postura que Sílvio Romero adotará enquanto

pensador.

Romero, para quem a desigualdade entre as “raças” era também um “fato

primordial e irredutível”,162

possuía formulações que oscilavam entre a consolidação de

uma nova “raça” (mestiça) adaptada aos trópicos e a vitória da “raça branca”, o que

levaria a uma decorrente transformação da população que traria ao país os benefícios do

progresso.163

Outros pensadores, como Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, seguiram muitos

de tais preceitos. Nina Rodrigues, famoso por seus estudos acerca das culturas negras,

desenvolveu-os, sobretudo, por acreditar que tais culturas seriam inferiores às culturas

europeias. Como afirmaria Ortiz:

Se é verdade que procura compreender o sincretismo religioso, é porque o

considera como forma religiosa inferior. A absorção incompleta de elementos

católicos pelos cultos afro-brasileiro, demonstra, para o autor, uma

incapacidade de assimilação da população negra dos elementos vitais da

civilização europeia. O sincretismo atestaria os diferentes graus de evolução

moral e intelectual de duas raças desiguais colocadas em contacto.164

162

HOFBAUER, Andreas. O conceito de “raça” e o ideário de “branqueamento” no século XIX: bases

ideológicas do racismo brasileiro. Teoria e Pesquisa 42-43, UFSCar, jan.-jul. 2003. p. 87. 163

Ibidem, p. 63. 164

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 20.

Page 115: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

114

Dessa forma, os teóricos brasileiros do século XIX embebidos em muito pelo

darwinismo racial elaborada na Europa, fizeram dos “atributos externos e fenótipos

elementos essenciais, definidores de moralidade e do devir dos povos”165

que, de

maneira intensa e inegável, contribuíram para uma série de pré-formulações em relação

a determinados grupos sociais, como os negros que mesmo no pós-abolição

continuaram carregando uma série de estigmas de inferioridade e que, no início do

século XX, passaram a contar também com a ideia da marginalidade. Essa questão

reveste-se de nova roupagem quando do início da formação das primeiras favelas que,

como procuramos elucidar, terão uma forte ligação com os grupos negros.

Dessa forma, desde o início do século XX, o negro morador de favelas é visto

com uma dupla chancela de negatividades relacionada à sua imagem – o mito da

marginalidade e o mito do “não lugar” passam a fazer parte da realidade da favela e do

negro, do negro e da favela.

Tais noções, intensificadas no período chamado por Motta166

de

“Redescobrimento do Brasil” (1933-1937), a partir dos estudos de Caio Prado Junior,

Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, não apenas continuaram retirando da

cultura negra sua importância vital para a formação de uma cultura e identidades

nacionais mas, de certa forma, principalmente via Freyre (1933) e com sua até hoje

famosa fórmula baseada na retórica das três raças, como apagaram as lutas, os processos

de resistência e o histórico de abuso e humilhações que possuíam. O samba, a capoeira,

o candomblé, a feijoada e o futebol começam a sofrer um pesado processo de

ressignificação.

Mas uma vez citando Motta em seu importante trabalho Ideologia da Cultura

Brasileira (1933-1974) tal ideologia sobre a “democracia racial” existente no mito das

três raças teria, dentre outras questões, sustentado o sistema pedagógico-cultural e

político do período da ditadura civil-militar, e hoje, graças à ação compacta da cultura

do marketing e da sociedade do espetáculo, permaneceria praticamente inalterada, quase

imóvel, congelada, reconstruindo-se e realimentando-se a cada dia, aprofundando suas

raízes.167

Como discutimos na Introdução e também no primeiro capítulo de nosso

trabalho, as várias tentativas de reformas urbanas levadas a cabo durante boa parte do

165

SCHWARCZ, op. cit., p. 20. 166

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma

revisão histórica. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 69. 167

Ibidem, p. 09.

Page 116: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

115

século XX, que buscavam a construção de um novo Brasil e de um novo “povo

brasileiro” acabaram, através da ânsia por destruir o antigo e abrir espaço para o novo,

aniquilando, também, uma série de memórias e costumes que, há séculos, vinham

ajudando a construir o Rio de Janeiro, o Brasil. De fato, o que acreditamos, poderia ser

utilizado para pensar, de forma mais aberta, uma “Identidade Brasileira”.

A partir, portanto, de documentos como a vida e as canções de Kéti e a maneira

pela qual elas estariam relacionadas com um momento de busca por novas

transformações da cidade do Rio de Janeiro, onde, mais uma vez, a favela era vista

como erroneamente presente na cidade, procuramos revisitar certos ambientes,

personagens e disputas que acreditamos necessários primeiramente para a desconstrução

de certas imagens e representações pelas quais a favela e o favelado vem sofrendo há

séculos e, em segundo lugar, para a continuação dos debates acerca da existência de

uma verdadeira “Identidade Nacional Brasileira”.

Dessa forma:

A cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é

mais um campo de operações programadas e controladas. Sob os discursos

que a ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem

identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional –

impossível de gerir.168

Analisar a história através da cidade desafio, possibilitado de maneira mais

intensa pela quebra dos paradigmas tradicionais do campo da história – iniciado nos

idos de 1930 pelo que se convencionou chamar de Escola de Annales – nos possibilitou

observar esse locus, não como algo passivo, mero palco de acontecimentos, mas como

um documento em si, cheio de questões a serem decifradas: Pensar a cidade apenas

como um emaranhado homogêneo, frio e estático composto tão somente por vielas,

ruas, praças e avenidas deixou de fazer sentido para os pesquisadores mais ligados aos

chamados estudos culturais, afinal, pensar esses territórios significa, também – e por

que não, sobretudo – pensar na questão da territorialidade, ou seja, na forma como esses

espaços são subjetivamente, e através de múltiplas maneiras, apropriados pelos sujeitos

que os completam e que os transformam em algo muito maior do que um “campo de

operações programadas e controladas”.

Dessa forma e, mais uma vez, observando Certeau:

Na realidade, diante de uma produção racionalizada [...] posta-se uma

produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem

168

CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 174.

Page 117: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

116

como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as

ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em

suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos

próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que

lhe são impostos.169

O estudo da cidade e de suas múltiplas facetas (afinal, nela coexistem, ao mesmo

tempo, o trabalho e o ócio, o medo e a diversão, a falta e o excesso, a moral e a

promiscuidade) pode, junto e em conjunto com os sujeitos históricos que nela

coexistem, e através de suas “piratarias” e de seus “murmúrios incansáveis”, revisitar

muitas questões já estudadas, como as transformações urbanas nela ocorridas, porém,

com novos olhares e novas indagações – por exemplo como essas transformações foram

sentidas e vivenciadas pelas populações diretamente envolvidas? Transformações

urbanas interferem, também, na subjetividade dos grupos envolvidos? Esses tipos de

reforma geram, realmente, resultados positivos para os grupos mais ligados a elas? O

que o discurso oficioso tem a revelar que o oficial não disse?

Dessa maneira, pode-se afirmar que o estudo da cidade do Rio de Janeiro, como

o de qualquer outra cidade, pode ser empreendido por meio da análise dessas

“piratarias” que, produzidas por suas populações e condensadas de questões que

envolvem o seu cotidiano, podem responder ou mesmo mostrar outros lados de questões

teoricamente já respondidas que, no entanto, permanecem sem conclusões efetivas.

Nos últimos anos, com a criação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora

(UPPs) muitas dessas questões “retornaram” de maneira significativa ao rol de debates

políticos nacionais, mostrando a provável limitação das saídas encontradas pelos

governos municipal, estadual e federal no decorrer dos anos quando o assunto principal

eram as chamadas “favelas”.

Pretendeu-se, dessa forma, tendo como principal fonte documental as

composições musicais de Zé Kéti enquanto “murmúrios” possíveis, analisar períodos de

grandes transformações urbanísticas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro (1950-1979)

revisitando, assim, períodos de fundamental importância para a elucidação das antíteses

que se acredita terem sido construídas no tocante ao chamado “universo do morro”,

desde sempre observado de maneira tão oposta ao “universo do asfalto” e que,

exatamente por esse motivo, pode não ter sido assistido de maneira eficaz.

169

Ibidem, p. 94

Page 118: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

117

A escolha por problematizar a história através das canções, deu-se, em muito,

por questões de cunho pessoal, afinal, minha proximidade com o campo da música tem

sido algo constante há pelo menos dezesseis anos – anos que me fizeram perceber que a

construção da música, se observada de forma problematizada, pode demonstrar questões

muito mais amplas do que aquelas ligadas ao entretenimento. Nas palavras de Miriam

Hermeto:

Em termos específicos, pode-se definir a canção como uma narrativa que se

desenvolve num terreno temporal relativamente curto (em média, de dois a

quatro minutos) que constrói e veicula representações sociais, a partir da

combinação entre melodia e letra (...) Como um produto cultural do século

XX, apesar de tratar de diferentes temáticas e temporalidades, tem no

processo crescente de urbanização e industrialização uma grande referência

para a construção das representações sociais que produz, em termos globais,

sempre em diálogo com as referências individuais e/ ou locais dos sujeitos

que a compõe.170

Quando decidi enveredar pelos caminhos do estudo da História Social e, mais

tarde, escolher o samba de Zé Kéti como principal documento de pesquisa, não

imaginava que os percursos para compreender suas entrelinhas, na verdade, para

compreender quaisquer entrelinhas existentes em produções musicais, poderiam ser tão

“perigosos” e possuir raízes tão “longínquas e profundas”.

O que percebo aqui como um caminho “perigoso”: Aquele que me levava a

analisar composições musicais por um viés pautado, exclusivamente, na literatura, ou

seja, nas letras das canções, fato que acabava tornando minhas observações muito mais

rasas e superficiais e que, na realidade, não me permitia perceber as várias interlocuções

de tempos, espaços, saberes, prazeres e dores existentes, não apenas na música de Kéti,

mas em boa parte da produção musical existente no Brasil. Compreendi que estudar o

samba é um exercício intenso, que transborda o impulso primeiro de interpretar um

texto posto; notei que, para além desses limites, estudar o samba é uma eterna tentativa

de interpretação de entrelinhas, gentes, bagagens e heranças e que, por ser uma

manifestação contida num universo policêntrico e polirrítmico, conta com dificuldades

interpretativas próprias de seu lugar de origem, dificuldades estas que merecem atenção

e respeito.

Visando, portanto, a compreender esse universo de códigos densos e intensos, e

de que maneira ele possui ligações mais ou menos diretas com as produções culturais

que analisamos, problematizaremos, agora, algumas questões baseando-nos em quatro

170

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e Ensino de História: palavras, sons e tantos

sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Page 119: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

118

“portos seguros” teórico-metodológicos, quais seja: a ideia de crioulização e de caos-

mundo defendidas pelo poeta e etnólogo martiniquense Édouard Glissant; as tradições e

formas das matrizes culturais do Caribe pensadas pelo literato cubano Antonio Benitez

Rojo, a ideia de uma cultura formada no “Alântico Negro” do sociólogo inglês Paul

Gilroy e a própria ideia de Identidade defendida pelo teórico cultural jamaicano Stuart

Hall.171

De Glissant, tomaremos de empréstimo as ideias caracterizadas a partir do termo

“crioulização” no sentido de procurar estabelecer com este pontes possíveis para

compreendermos de que maneira a produção cultural denominada “samba” pode ser

percebida e examinada a um nível cultural intenso de significados.

O termo em questão, criado por Glissant como forma de indicar uma

problematização cultural a partir de uma visão muito próxima à do “hibridismo” de

Canclini,172

sugere a análise da cultura a partir de noções de mesclas interculturais não

redutíveis, apenas, a questões de raça (mestiçagem) ou de religião (sincretismo).

Em Introdução a uma poética da diversidade, Glissant inicia suas discussões

estabelecendo a coexistência de três Américas: A “Meso-América”, a Euro-América e a

Neo-América, esta última correspondendo à América da crioulização, que

compreenderia as regiões entre o Caribe e o nordeste do Brasil, Guianas e Curaçao, Sul

dos Estados Unidos, da Costa Caribenha da Venezuela e da Colômbia, além de uma

grande parte da América Central e do México.

Em relação à Neo-América, o autor fala de questões absolutamente interessantes

que, embora pareçam possuir um tom bastante simbólico, mostram suas faces práticas

quando pensamos na realidade que envolve, por exemplo, o Brasil. Em determinado

momento, Glissant comenta sobre a diferença existente entre o Mar Mediterrâneo e o

Mar do Caribe. Ele sugere que, se as religiões monoteístas nasceram em torno do

Mediterrâneo, isso se deveria, em muito, à sua predisposição a um pensamento de

unidade que teria uma ligação bastante próxima com sua característica geográfica.

De maneira oposta, o Mar do Caribe, aberto, seria visto, analogamente, como

lócus difratário, múltiplo e marcado por sua característica de imbricação e confusão de

171

BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998. GLISSANT, op. cit.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

___________. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro:

Editora34/Universidade Cândido Mendes, 2002. 172

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade.

Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. Culturas híbridas, poderes oblíquos. São Paulo:

Edusp, 1997. p. 283-350

Page 120: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

119

culturas que acabaram gerando tal qual a mistura de cores gera outra cor, uma outra

cultura, a cultura crioula.

Seria possível, observar a cultura do samba e a própria estrutura social da favela

carioca como algo contido dentro dessa “pluricultura” formada a partir da mescla, a

partir de outras formas de ser, pensar e sentir o mundo?

Longe de nos sentirmos “identitariamente” ameaçados, é possível observar,

nessa forma de enxergar a cultura, uma resposta possível para muitas questões que

envolvem não somente problemáticas próprias do Brasil, mas, também, e

principalmente, problemáticas que envolvem hoje, de maneira bastante marcante, o

resto do mundo.

[...] funcionamos sempre segundo o antigo modelo e, então repito a mim

mesmo que se eu for ao encontro do outro não serei mais eu mesmo, e, se eu

não for mais eu mesmo, perco-me de mim! Ora, no atual panorama do mundo

uma questão importante se apresenta: como ser si mesmo sem fechar-se ao

outro e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?173

Glissant baseia-se nas distinções existentes entre a noção de “raiz única” e a

noção de rizoma, levantadas primeiramente por Deleuze e Guattari, para explicar a

questão da identidade. Junto com essa noção, trabalha as suas ideias de sociedades

atávicas e compósitas.

Como a proposta do trabalho esteve, em boa parte, interessada em analisar

questões sociais a partir de uma questão cultural, acredita-se que a análise feita por essa

distinção seja necessária para que se fuja um pouco da noção de um samba enquanto

identidade de um grupo étnico único. Pensa-se na identidade de um samba que se forma

a partir da relação de multifacetadas dimensões e atores sociais, ou seja, como produto

resultante de uma cultura compósita.

Através de Paul Gilroy, podemos dar continuidade ao pensamento elucidado por

Glissant, principalmente no que diz respeito à formação, no Brasil, de uma cultural de

características crioulas que, exatamente por essa particularidade, possui formas

específicas de leituras que traduzem, em muito, posições de “estar no mundo”

demasiadamente negligenciadas pelos estudos culturais no e do Brasil, sempre, bastante

ligados a questões de formação e fortalecimento de um Estado-Nação, ou mesmo,

inseridos na lógica de um governo nacional.

Como seria justo apontar, a história do Brasil possui variados momentos em que

a construção de um projeto de uma ideologia nacional fez parte da lógica necessária à

173

GLISSANT, op. cit., p. 28.

Page 121: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

120

manutenção da ordem política pretendida. Pensando em todos os grandes períodos

políticos dessa história, desde a Independência, em 7 de setembro de 1822, nos

depararemos com uma busca infinda pela construção de um “ser brasileiro”, de marcos,

posturas e costumes que dessem conta de recontar e recolocar o brasileiro dentro do seu

próprio espaço.

Em diferentes épocas, e sob diferentes aspectos, a problemática da cultura

popular se vincula a da identidade nacional. Sílvio Romero, precursor dos

estudos sobre o caráter brasileiro, definiu o seu método de trabalho como

“popular e étnico” [...] Câmara Cascudo considerava Sílvio Romero como

um dos fundadores da tradição dos estudos folclóricos; ele, na verdade,

procura encontrar na cultura popular os elementos que, em princípio,

constituem o homem brasileiro.174

Na introdução de História Social da Música Popular Brasileira, de José Ramos

Tinhorão, muito embora o autor comece suas colocações estabelecendo algo de grande

valia para o pensamento que se pretende aqui defender quando pontua que “numa

sociedade diversificada, o que se chama de cultura é a reunião de várias culturas

correspondentes à realidade e ao grau de informação de cada camada em que a mesma

sociedade se divide”.175

Não se pode deixar de notar a maneira taxativa com a qual o

autor trata a questão do que chama de cultura dominante e cultura dominada:

Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não

pertence inteiramente aos detentores políticos do poder, como é o caso de

países de economia capitalista dependente – e entre eles o Brasil em estudo –

a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada.176

Essa característica acabou fornecendo aos estudos culturais do Brasil, ares de um

nacionalismo que aqui se pretendeu abandonar. Tal postura se mostra absolutamente

fundamental para o intento do trabalho uma vez que, como apontou Gilroy:

O conceito de espaço é em si mesmo transformado quando ele é encarado em

termos de um circuito comunicativo que capacitou as populações dispersas a

conversar e mais recentemente até a sincronizar significativos elementos de

suas vidas culturas e sociais.177

Para o presente trabalho, mais do que uma noção nacional de samba, teve-se em

mente que:

As culturas do Atlântico Negro criaram veículos de consolação através da

mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contraestéticas e

uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a

genealogia da geografia e o ato de lidar com o de pertencer [...] as

extraordinárias conquistas do Atlântico Negro exemplificam largamente este

174

ORTIZ, op. cit., p. 127. 175

TINHORÃO. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 7. 176

Ibidem, p. 8. 177

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel

Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 20-21.

Page 122: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

121

ponto. É com elas que a utopia do sublime escravo ganha um corpo

verdadeiro.178

Ou seja, mais importante do que continuar corroborando com uma ideia de

samba enquanto “expressão do nacional” desejou-se estabelecer com tal estilo musical,

uma relação de complementaridade com as culturas referentes ao Atlântico Negro,

partilhando, assim, do pensamento de Lívia Reis que, em seu artigo “O Caribe e o

Brasil: música e ensaio em diálogo”, afirma:

Com os distintos processos de transculturação e ao longo do processo

histórico, a música acabou por se converter em um dos principais vetores da

nova identidade mestiça e não raro essa mesma música, surgida nas senzalas

e nos campos de trabalho, se transformaram em projeto nacional. Na

modernidade, algumas dessas regiões continuam a ser exportadores de açúcar

e de álcool e, muitos deles, têm a música como um de seus principais itens na

pauta de exportação.179

A partir desse ponto de vista, o samba seria visto como uma expressão que

nasceu mediada pelo sofrimento e que possui as suas formas específicas de ritmo,

melodia e harmonia, caracterizadas, em muito, por essa memória genealógica.

De acordo com esse conceito, pode-se afirmar que o samba, bem como o samba

de Zé Kéti possui características estéticas próprias que vão além de aspectos meramente

nacionais e que poderiam ser compreendidas como herdeiras de um ser e estar no

mundo marcado por características próprias da Diáspora Negra.

Dessa maneira, convém afirmar: Não se pretendeu aqui analisar o samba como

símbolo natural de um grupo, muito menos de um local geograficamente dado. Até

porque, mesmo que assim se tentasse fazer, as características da própria produção

cultural existente no intervalo de tempo que se escolheu analisar representariam, por

certo, uma barreira.

Deve-se ressaltar que, durante as pesquisas feitas para a presente dissertação de

mestrado, a análise de Leonora Corsine, A potência da hibridação – Édouard Glissant e

a crioulização,180

mostrou-se especialmente enriquecedora. A autora percebe a ideia da

crioulização funcionando de forma análoga a de grande monstro uma vez que o ser

crioulo “resiste, desorganiza e faz romper os códigos de hierarquia do poder”.

178

Ibidem., p. 13. 179

REIS, Lívia. O Caribe e o Brasil: música e ensaio em diálogo. Revista Intercâmbio, Universidade de

Brasília, v. 12, 2009., p. 5. 180

CORSINE, Leonora. A potência da hibridação – Édouard Glissant e a crioulização. v. 25-26. Rio de

Janeiro: Sigma, 2008. p. 211-21.

Page 123: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

122

Para pensar em tal ideia, Corsine teve como base o termo “arrué”, criado por

Glissant para se referir a “mistura de irrupção e ímpeto, erupção, muita realidade e

muita irrealidade”, característica da geografia caribenha, bem como da própria cultura

crioula.

Assim, utilizando da mesma analogia que Glissant para falar da Plantation

enquanto lugar de sofrimento mas, também, de libertação, pensou-se a favela carioca

que, embora represente um lugar de abandono, também conseguiu, através do

sofrimento ligado ao descaso e à falta de interesses e comprometimento reais dos

governos para com essas populações, produzir uma fala de liberdade, de modo que:

“Aquilo que era uma prisão, um lugar de dominação, uma fraqueza estrutural,

transforma-se em vantagem. Porque, no final, acontece uma reversão e a prisão é

derrubada; o espaço era fechado, mas o mundo que derivou dele permanece aberto”.181

Tamborim

Cavei muito buraco na avenida

Pra ajudar no progresso do metrô

Fui feirante vendi muito bagulho

Muitas vezes o rapa me apanhou

Estudei me formei em camelô

Na escola da vida eu sou doutor Meu dinheiro jamais deu pra viver

Da polícia já tive que correr

E quem sabe um dia eu possa ser

Na política um governador

E com meu tamborim eu vou cantar

Para o povo a minha grande dor.

Eu já disse que fui e o que não sou

Vou morrer na favela por amor

Tamborim, meu velho amigo tamborim!

Como tu és de ninguém

Ai meu deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim... (bis)

Tamborim, meu velho amigo tamborim!

A batida do meu coração está chegando ao fim

Já não aguento bater mais no meu tamborim

181

Ibidem., p. 218.

Page 124: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

123

Retomando a letra de Tamborim, escrita por Zé Kéti e Mourão Filho em 1979,

podemos encontrar características bastante elucidativas da questão supracitada: nela, o

cotidiano de um morador da favela, embora vivido de maneira difícil (“Cavei muito

buraco na avenida/ fui feirante, vendi muito bagulho, muitas vezes o rapa me apanhou”)

por representar a luta daqueles que “são” apesar das dificuldades impostas por uma

“sociedade do asfalto” que os observa como “não sendo”, é encarado, no final das

contas, como algo que não se pretende deixar (“Vou morrer na favela por amor”).

Não se pode esquecer, que durante o ano em que a canção foi lançada, o Brasil

passava pela famosa fase da abertura política “lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel

que, em 1974, em plena Ditadura Civil-Militar, assumiria a presidência do Brasil

começando um lento processo de transição rumo à democracia.

Seu governo, no entanto, coincide com o fim do milagre econômico e com a

consequente insatisfação da população com as altas taxas de juros herdadas do período

anterior. A crise do petróleo e a recessão mundial interferem e corroboram para que as

dificuldades em voga na economia brasileira fossem ainda maiores.

Além dessas características, outras também devem ser levadas em consideração:

Em primeiro lugar, deve-se pensar no sujeito para o qual a música é direcionada. Nesse

caso, não se tem como receptor da canção um velho amigo ou uma mulher, antiga

paixão, mas sim, um instrumento musical. Um tamborim.

Analisando rapidamente a história desse instrumento, observaremos como o

mesmo representa um objeto que possui como característica, exatamente o seu poder de

mescla. Tendo como um de seus “parentes” próximos o adufe, é encontrado ainda no

Antigo Testamento da Bíblia. Em Salmos 150: 1-6 lê-se:

Louvai ao SENHOR. Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no

firmamento do seu poder.

Louvai-o pelos seus atos poderosos; louvai-o conforme a excelência da sua

grandeza.

Louvai-o com o som de trombeta; louvai-o com o saltério e a harpa.

Louvai-o com o tamborim e a dança, louvai-o com instrumentos de cordas e

com órgãos.

Louvai-o com os címbalos sonoros; louvai-o com címbalos altissonantes.

Tudo quanto tem fôlego louve ao Senhor. Louvai ao Senhor.

Com o passar do tempo, o “tamborim” é encontrado em várias culturas, como na

Mesopotâmica, árabe e, por fim, portuguesa, por onde, ao que tudo indica, teria entrado

no Brasil.

No entanto, o paradoxo em relação à sua utilização torna-se ainda maior se

pensarmos que, assim como pontua o dicionário de instrumentos musicais: “Instrumento

Page 125: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

124

de percussão. Tambor pequeno. No Brasil, é usado especialmente nas danças cantadas

de origem africana, como maracatus e cucumbis.”

Como indicaria Kéti, o tamborim, assim como a vida, não seria de ninguém.

“Como tu és de ninguém/ Ai meu deus do céu, a vida é mesmo assim tamborim.”

Ainda falando de Glissant, outra de suas teorias que aqui é tida como base para a

forma de enxergar o samba é a ideia de “caos mundo” que “prevê uma estética depurada

de qualquer valor a priori” e que, por isso, abrange todas as formas de expressão dessa

totalidade que existe em nós. A ação dessa totalidade reflete em movimentos que nos

permitem transformar o mundo. Dessa forma, podemos pensar em um samba baseado

na ideia de um sujeito que chora as suas mágoas em relação aos percalços e às

dificuldades enfrentadas pelo morador da favela como um dos instrumentos-chave do

samba, mas também, como um instrumento símbolo do múltiplo, do diverso e da

mistura, presente no ocidente e no oriente, no culto monoteísta antigo e no terreiro de

umbanda, desperto pelas mãos do branco e do negro. Tomando de “empréstimo” outra

ideia de Gilroy, a do “Atlântico Negro”, é possível subir a bordo do navio da Diáspora

Negra e pensar nas questões que, formadas nesse “entre lugar” chegaram ao Brasil e

desembocaram em formas de ser, pensar, agir e cantar que não podem ser deixadas de

lado.

Procuramos assim fugir do que o próprio autor chamou de “nacionalismo

cultural silencioso” e que acreditamos estar bastante presente nos escritos acerca do

samba. Acreditamos ser necessário chamar a atenção do leitor para a seguinte questão:

Embora tenha sido o samba forjado nos anos de 1930 por meio da chamada Era Vargas

como um estilo musical basicamente nacional, não pode ser pensado fora das dinâmicas

transversais que envolvem o seu desenvolvimento. Tal atitude seria minimamente

inaceitável tendo em vista a diversidade de povos que colorem o Brasil, afinal, como

pontua Hall,

Entre nós, a identidade é irrevogavelmente uma questão histórica. Nossas

sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não

são únicas, mas diversas.

Dessa forma, analisando a trajetória da vida e da carreira de Zé Kéti, uma série

de “outras questões” procuraram aqui ser problematizadas como por exemplo, a cidade

e suas transformações vistas à partir de noções ligadas à sensibilidade de um sujeito-

personagem pertencente a determinado período e espaço que, dançando entre diferentes

Page 126: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

125

grupos e ambientes produziu um montante de materiais que em parte procuramos nos

debruçar.

Através de seu samba, terreiros, praças, relações de sociabilidade e de

territorialidade nos foram apresentados possibilitando-nos um novo olhar sobre velhos

assuntos.

Procuramos assim, observar a favela e seu morador – ou mesmo frequentador –

por olhares diferentes dos disponibilizados pelo “mito da marginalidade” intentando,

para além disso analisar um espaço vivo composto por sujeitos múltiplos.

Figura 11 Zé Kéti em 1998, um ano antes de sua morte recebe o prêmio Shell

pelo conjunto de sua obra.182

“Eu pretendo também continuar, se Deus me der vida e saúde, fazendo músicas para o

povo, porque eu vivo para o povo, tudo que eu tenho na minha vida eu agradeço à MPB

que são meus amigos de maneira que o povo é que elege as nossas músicas porque a

voz do povo é a voz de Deus. Muito Obrigado”

Zé Kéti, 1967

182 http://www.blogdopilako.com.br/wp/2014/05/02/curiosidades-musicais-ze-keti-por-leo-dos-monges/

Page 127: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMADA, Izaías. Resenha de PARANHOS, Kátia Rodrigues (org.). História, teatro e

política. São Paulo: Boitempo, 2012.

ANDRADE, Manuel Correia de. A Revolução Pernambucana de 1817. Coleção

Guerras e Revoluções Brasileiras. São Paulo: Ática, 1995.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de

Janeiro: Contraponto, 1997.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. de Antônio Pinto de Carvalho.

Edições de Ouro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1959.

AZEVEDO, Amailton Magno de. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as

micro-áfricas em São Paulo. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica, São

Paulo. 2006.

BALOGUN, Ola. Forma y expresión en las artes africanas. In Introducción a la cultura

africana. Paris: Editorial Serbal/Unesco, BESTER, Rory. 1999

BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2011.

BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2002.

CABRAL, Muniz Sodré de Araújo. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1988.

CALDEIRA, Jorge. A voz: samba como padrão de música popular brasileira (1917 /

1939). Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 1989.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania. São

Paulo: Editora 34, 2003.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas – estratégias para entrar e sair da

modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo:

Edusp, 1997.

CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,

1994.

CORSINE, Leonora. A potência da hibridação – Édouard Glissant e a creolização. v.

25-26. Rio de Janeiro: Sigma, 2008. p. 211-21.

Page 128: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

127

COSTALLAT, Benjamim. A favela que eu vi. In: COSTALLAT, B. Mistérios do Rio.

Rio de Janeiro: H. Antunes, 1931.

DE ALMEIDA, Aline Gama; NAJAR, Alberto Lopes. Cidade Maravilhosa e Cidade

Partida: notas sobre a manipulação de uma cidade deteriorada. RUA [online]. 2012, n.

18, vol 1. Disponível em:

http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/capaArtigo.rua?id=127

DEL PRIORE, Mary. Fazer História, interrogar documentos e fundar a memória: a

importância dos arquivos no cotidiano do historiador. Revista Territórios e Fronteiras

PPG História/UFMT, v.3, n.1, p. 15, 2002.

FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? São Paulo:

Edusp, 1996.

FARIA, Fernando Antonio; MATOS, Maria Izilda Santos de. Melodia e sintonia em

Lupicinio Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1996.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid

Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF,

2005.

GUIMARÃES, Marcos Antônio. É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo

sobre o processo de construção de identidade em comunidade de Terreiro – Dissertação

(Mestrado). Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1990.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte.

UFMG, 2003.

_____________. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,

2006.

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e Ensino de História: palavras, sons e

tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

HOFBAUER, Andreas. O conceito de “raça” e o ideário de “branqueamento” no século

XIX: bases ideológicas do racismo brasileiro. Teoria e Pesquisa 42-43, UFSCar, jan.-

jul. 2003.

ILARI, Beatriz. A música e o desenvolvimento da mente no início da vida:

investigação, fatos e mitos. Revista eletrônica de musicologia, Universidade Federal do

Paraná. v. 9, out. 2005.

JACQUES, Paola Berenstein. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio

Page 129: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

128

Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.

KNAUSS. Paulo (coord.). Cidade Vaidosa: Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: 7Letras, 1999.

LOPES, Nei. Zé Kéti: o samba sem senhor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006.

MAHEIRIE, Kátia. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da

subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo,

Maringá, v. 8, n. 2. 2003, p. 147-53,

MAIOLINO, Ana Lúcia Gonçalves. Espaço urbano: conflitos e subjetividade. Rio de

Janeiro: Mauad, 2010.

MALAFAIA, Wolney Vianna. Imagens do Brasil: O Cinema Novo e as metamorfoses

da identidade nacional. Tese (Doutorado) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro,

2012.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho.

Bauru: Edusc, 2002.

_________________________. Âncora de emoções: corpos subjetividades e

sensibilidades. Bauru: Edusc, 2005.

_________________________. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran

Barbosa. Bauru: Edusc, 2007.

___________________________. Paisagens sonoras: Copacabana – a praia e a noite.

ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009.

MATTOS, Romulo Costa. As favelas na obra de Lima Barreto. URBANA – Revista

Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Unicamp, v.2 n.2,

2007.

______________________. A construção da memória sobre Sete Coroas, o

“criminoso” mais famoso da Primeira República. Anais do XV Encontro Regional de

História da ANPUH-RJ. Rio de Janeiro, 2012.

MELO, Anderson Fábio. Roberto Campos e a lógica da subordinação aos Estados

Unidos. Anais do XXI Encontro Estadual de História da ANPUH-SP. Campinas, 2012.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de

identidade em política. In: Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e

identidade. n.34, p. 287-324, 2008.

Page 130: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

129

MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música

popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de

partida para uma revisão histórica. São Paulo: Editora 34, 2008.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África na cidade do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de

Editoração, 1995.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São

Paulo: Contexto, 2006.

NAPOLITANO, M. Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música

popular como representação de um impasse cultural. Per Musi, Belo Horizonte, n.29,

p.75-85, 2014.

NEVES, Lucia Maria Bastos; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

OLIVEIRA, Anelise. D. João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário. Revista

História em Reflexão. UFGD – Dourados. v.2, n.4, jul./dez.2008.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense,

1994.

PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro.

Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1977.

PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Uma grande cidade a 40 graus: o Cinema Novo e a

representação crítica da modernidade urbana carioca (1955-1965). XVI Encontro

Regional da ANPUH-RIO. Rio de Janeiro, 2010.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 1996.

REIS, Lívia. O Caribe e o Brasil: música e ensaio em diálogo. Revista intercâmbio.

Universidade de Brasília, v.12, 2009.

REZENDE, Vera. Planejamento e ideologia: quatro planos para a Cidade do Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

RISÉRIO, Antônio. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012.

RODRIGUES, Ana Ligia Muniz. Os tons da nação: uma análise sociológica do filme

Rio, Zona Norte. Universidade Federal da Paraíba, 2009-2010.

SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro

(1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-

Page 131: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

130

colonialismo e interidentidade. Luso-Brazilian Review, v. 39, n. 2, 2002.

____________________________. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos

Humanos. Contexto Internacional, v.1, n.23, 2001.

__________________________. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia

das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.63, 2002.

__________________________. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura

política. São Paulo: Cortez, 2006.

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM,

2008.

SEGRETO, Marcelo. A música de Rio, 40 graus. Revista Laika-USP. São Paulo, v.1,

n.1, julho de 2012.

SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de

Janeiro: Record, 2001.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na

Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de

músicas brasileiras (vol.1, 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997-98.

SILVA, Cristina da Conceição. O samba do Rio de Janeiro: elementos socializadores

dos grupos étnicos nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz. Dissertação (Mestrado) –

Universidade do Grande Rio “Professor José de Souza Herdy”, Duque de Caxias, 2013.

SILVA. Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e

musicalidades negras urbanas nos anos 70-80 em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

SOUZA, Carlos Eduardo Dias. E o samba pegou o trem: cultura e sociabilidade popular

no subúrbio carioca na primeira república. XIV Encontro Nacional da ANPUH-RIO:

Rio de Janeiro, 2010.

SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Danças licenciosas, voluptuosas, sensuais... mas

atraentes: Representações do batuque em relatos de viajantes (Brasil século XIX).

Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11, set.2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça

na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

TINHORÃO. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34,

2010.

Page 132: UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E ......analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na

131

TOTA, Antonio Pedro. Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa. São Paulo em

Perspectiva. São Paulo, v.15, n.3, 2001.

VALLADARES, Lícia do Prado (org.). Repensando a habitação no Brasil. Rio de

Janeiro: Zahar, 1983.

________________________________. A invenção da favela: do mito de origem à

favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ZALUAR, Alba; ALVITO Marcos (orgs.). Integração Perversa: pobreza e tráfico de

drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004.