Uma Rapariga Da Montanha

download Uma Rapariga Da Montanha

of 123

Transcript of Uma Rapariga Da Montanha

Ttulo: Uma Rapariga da Montanha

Ttulo: Uma Rapariga da Montanha.Autora: MAYSIE GREIG.Dados da Edio: Portuglia Editora, Lisboa.Coleco: "Biblioteca das Raparigas", VII.Ttulo Original: RAGAMUFFINGnero: Romance.Digitalizao e correco: Dores Cunha.Estado da Obra: corrigida.numerao de pgina: rodapEsta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

BIBLIOTECA DAS RAPARIGAS VIIUMA RAPARIGA DA MONTANHA

Maysie Greig, que a Portuglia Editora apresentou pela primeira vez em Portugal com o romance Uma Rapariga da Montanha, hoje uma das mais populares escritoras inglesas para o pblico feminino. Contam-se por algumas dezenas os seus encantadores romances, entre os quais se destacam os seguintes Rich Twin, Poor Tisin, Jstnine tnke care, Rich Man, Poor girl, Ann's a child, Girls withoHt credit, She taalktd into his parluur, Htart appeal, Satin straps, Parents art a problem e This way to Happiness, este ltimo tambm publicado na "Biblioteca das Raparigas" com o titulo Deus Escreve Direito...Em ingls esta obra intitula-se RAGAMUFFINMAYSIE GREIGUMA RAPARIGA DA MONTANHAROMANCETraduzido do inglspor lvaro Saraiva e S Viana Rebelo

LIVRO PRIMEIROFRANCAPTULO IFRAN para ali estava a meio caminho da encosta, apoiada no tronco duma rvore alta, delgada. Aguardava, de nervos tensos, sem flego. Da a pouco viria ele, como na manh da vspera. Afastaria a cobertura da tenda e apareceria, alto, elegante, como a rvore a que se encostava agora, respirando o ar puro da manh. Estenderia os braos e voltaria os olhos para onde o sol dispersava cores variadas na lona cinzenta: vermelho, escarlate, alaranjado. Veria o nevoeiro, que todas as noites se colava em volta dos picos da montanha, levantada diante, a mostrar os cumes cinzentos, como dedos apontando, enfiados pelo cu infinito. Tudo isto ele veria, avidamente, respeitosamente. E ela s o veria a ele.Para Fran ele era mais encantador do que a alvorada. Nunca imaginara que pudesse existir um homem assim, alto, belo, jovem, cabelos soltos brilhando ao sol, camisa branca aberta, mostrando um pescoo forte, musculoso. Vestia calas de coiro e calava botas altas, tambm de coiro, reluzentes.No lhe sabia o nome. Nunca lhe tinha falado, nem a tal se teria atrevido. Mas ele resumia para si tudo quanto, at ento, vagamente sonhara. Representava o mundo l em baixo, longe destas montanhas, onde existiam mulheres como ela e homens que no eram grosseiros, barbados, brutos ou vis, homens que no praguejavam, que sabiam ser amveis e ternos, em vez de desordeiros e bandidos.Minutos decorreram. O Sol j tinha lanado um sonolento olhar acima do horizonte. Mas ele no viera ainda e a impacincia de Fran ferveu. Teve medo. Teria ele sado j para a caa antes de ela chegar? Ou - e este pensamento fez-lhe sentir uma vertigem - teria ele tornado para o seu mundo, distante deste lugar solitrio, nas Montanhas Rochosas do Canad? Mas a tenda ainda ali estava como uma absurda traa branca, gentilmente pousada na vertente. Fran aproximou-se mais, trepando as rochas com a agilidade duma cabra dos montes. A ansiedade dava-lhe coragem. E agora ali estava diante da tenda, olhando-a com curiosidade. A lona era to branca e nova! Que diferente das tendas dos caadores de peles, normalmente sujas e velhas. Tocou-lhe com a mo, suavemente. A cobertura abanou levemente. E de repente uma voz de homem perguntou:- Est a algum?Fran ficou paralisada de medo. Os ps nus enterraram-se-lhe na terra acastanhada e as mos apertaram o vestido de pano grosseiro.Imediatamente a porta da tenda se afastoupara o lado. Uma cabea de homem surgiu eencarou nela, os olhos azuis, abertos de espanto.- Meu Deus, uma rapariga! - exclamou.Fran no podia dizer uma palavra. Enleada,deixou-se ficar, consentindo que Peter Kelwaycontinuasse a observ-la. "Bem, se isto no uma apario maravilhosa, pensou ele, quem diabo ser e como veio aqui ter? "Pouco mais era que uma criana, pensou. Num clculo aproximado, deu-lhe catorze anos. Os cabelos, dum castanho suave, cor de madeira recentemente cortada, estavam revoltos. Mas a face era imensamente meiga, oval, com grandes olhos cinzentos, onde brilhava a curiosidade. O vestido, esse era horrvel, e escondia a linha graciosa que ela talvez possusse.- Na realidade, um prazer inesperado- disse Peter com um trejeito levemente irnico nos lbios. - Estava-me a chamar? Posso convid-la para almoar?Fran estava to entretida a ouvir o som da sua voz que no apreendeu nada do que ele lhe disse. Houve uma pausa e Peter interrogou de novo.- Quem voc?- Fran - respondeu ela com simplicidade.- Fran?. Diminutivo de Frances, creio. Frances qu?- Steele - disse a rapariga. - Fran Steele. Sou eu.Peter estendeu-lhe a mo gravemente. Mas havia uma expresso decidida no olhar. -Como est, Miss Steele? D-me licena que me apresente? Chamo-me Peter. Peter Kelway.Fran apertou a mo que se lhe oferecia mas no disse palavra.Peter saiu da tenda e espreguiou-se.- Esta manh estou preguioso e dormi de mais-notou. - De outro modo teria perdido a sua agradvel visita. De costume, h muito tempo j que andaria por a!- Eu sei - disse Fran.- J me viu alguma vez?- Venho v-lo todas as manhs!- Meu Deus, porqu?- Porque voc maravilhoso! -disse ela com simplicidade.Isto era de mais para Peter. Soltou uma gargalhada e as montanhas ecoaram com o seu riso. Era um rudo agradvel. E inquiriu: -Que idade tem voc?- Dezoito - disse Fran. No percebia de que se riria ele, mas gostava de o ver rir.- Dezoito! - Peter estava espantado. - Dezoito e ainda pensa que um homem vulgar maravilhoso! Onde tem vivido?A rapariga apontou com a cabea: - L em baixo, junto ao rio.- E h quanto tempo?- Desde que me lembro.O riso morreu nos olhos de Peter. Havia qualquer coisa de pattico e tocante naquela simplicidade. - Desculpe ter-me rido-disse ele, rpido.- Porqu? Gosto que se ria. O pai nunca ri.- Ah! Vive ento com seu pai! A rapariga baixou a cabea num aceno.- Vocs devem ser ptimos camaradas...- sugeriu ele, noutra daquelas pausas que pareciam inevitveis.Fran abanou a cabea. - No. Ele no gosta muito de mim.- O qu? -exclamou Peter. Ela dissera aquilo num tom de voz to indiferente que ele ficou espantado. Na realidade era uma rapariga estranha, e para si achava que no passava duma criana, embora ela lhe tivesse dito que tinha dezoito anos j. Desenvolvida? Ridcula, em presena daquilo.- Oua -disse ele abruptamente. -Voc vai ficar e almoa comigo. P-lo-ei aqui fora.Tomou-lhe o silncio por consentimento e trouxe do interior da tenda um forno para camping, uma frigideira e vrios pedaos 12de toucinho. Tornou l dentro e voltou com um bule, dois pratos e dois talheres. Enquanto ele preparava o almoo, Fran no se moveu, a olh-lo, nem se ofereceu para o ajudar. Ele gostaria de saber se ela estava atenta ou simplesmente estupidificada. Decidiu-se pela primeira hiptese, porque havia qualquer coisa de intensamente vivo nos olhos cinzentos interrogadores e nas feies penetrantes, levemente coradas.- No se sente s - perguntou ele, quando se sentou no cho, pernas cruzadas, a comer.Fran pareceu pensar no caso. Fixou a pequena barreira que estavam fazendo os ps com a terra solta. - Nunca pensei nisso - replicou. - Mas, certo, gostaria de ver o mundo, - o outro mundo, quero dizer, onde vivem senhoras que encantam, como tenho lido, e homens amveis e maravilhosos como voc.A despeito do seu divertimento, Peter sentiu-se ruborizar levemente.- Oua, no deve dizer coisas dessas. Tornar -me-ia vaidoso. - E riu, embaraado.- Mas porque no hei-de dizer, se a verdade? - insistiu a rapariga.Peter no soube que replicar. - Gostaria que Dorothy Ashworth ouvisse o que voc disse respondeu depois, com um sorriso triste nos lbios. - Creio, em todo o caso, que no concordaria consigo.- Quem Dorothy Ashworth - inquiriu Fran, enquanto esmigalhava entre os dedos o po, sem o comer.- Uma das encantadoras senhoras desse tal mundo - respondeu Peter amargamente. - Gostei dela, a valer. E por sua causa que aqui estou.Fran mostrou-se intrigada. - Mas ela no est aqui, pois no?

- Oh, no! Deixei-a em Montreal. Deixei a de vez. Mas o desejo foi dela, no meu. E tudo,garota.Levantou a chvena de ch com um gesto irnico que lhe saiu forado. O jeito amargo ainda lhe vincava os lbios e reflectia-se nos olhos azuis endurecidos. Dorothy Ashworth, como a detestava, quela estranha e adorvel rapariga! Que fosse para o diabo o dia em que os seus olhos a tinham visto pela primeira vez. Fora no navio, quando partira para visitar uns parentes no Canad. Ela estava encostada amurada, adorvelmente loura, num vestido desportivo cor de mbar e a longa capa de Outono vermelha flutuando ao vento. Peter podia v-la to luminosa agora como a tinha visto naquela manh. Os olhos era castanhostambm. Os cabelos ruivos... Dizem que os contrastes atraem, mas neste caso no foi verdade. O romance deles foi o principal assuntodo navio.Manteve-se quatro semanas, em Montreal, enquanto andaram juntos. E ento - zs Dorothy decidiu que aquilo no tinha senso algum e que devia acabar.- Porque, querido Peter, isto um disparate- disse ela tristemente. -Eu no posso casar com um rapaz pobre, e tu s tens dvidas, no verdade?- certo - murmurou Peter. - Suponho no entanto que isso te deve ser indiferente.- Mas no, querido, isso no d estabilidade. Desculpa, Peter, se eu tivesse algum dinheiro meu, seria diferente; mas tu vs que eu no tenho um "penny", excepto o que me d o tio. E estou certa de que ele deixaria de me dar assim- que eu me casasse. No, isso no pode ser. melhor tu pensares numa herdeira rica. e casares.- Talvez que tu me possas ajudar, j que pareces interessar-te tanto pelo meu futuro - replicou-lhe, sarcstico.- Desejaria faz-lo, querido. Mas h tantas neste malfadado pas... S feliz, sim, amor.Peter partira imediatamente para Vancouver e dali para as Montanhas Rochosas; mas no a pde esquecer. A imensa solido que o rodeava intensificou ainda mais o seu desgosto de a ter perdido. Fran foi o primeiro ser humano que lhe falou durante semanas e ele sentiu-se grato pela sua companhia.- O que faz o seu pai - perguntou quando o silncio ameaava aumentar de novo entre eles.- L livros e anda caa de pedras - replicou ela; - fsseis lhes chama ele. Detesta o mundo. Julgo at que me detesta a mim. Diz que lhe recordo a minha me. Ela era muito m. A sua tambm era assim?Peter desta vez no sentiu vontade alguma de rir, e de repente sentiu-se encolerizado. Que fera devia ser aquele pai que assim se esforava por envenenar a alma daquela garota!- No deve acreditar nisso - disse ele bruscamente. - Estou certo de que nem a minha me nem a sua so ms.- Mas o pai diz que ela fugiu e me deixou quando eu era ainda uma menina pequenina contraps Fran.- Houve provavelmente alguma razo - murmurou Peter. E mudou de conversa.Depois interrogou Fran acerca da sua vida quotidiana. E ela contou-lha com toda a simplicidade. Cuidava da sua casa de madeira e cozinhava as refeies. Algumas vezes ia em excurses sozinha pelas montanhas... E quando Peter lhe perguntou se no tinha medo, ficou surpreendida... Uma vez tinha encontrado uns

ursitos pequenos aos quais tinham morto a me. Tivera-os na sua companhia at crescerem o suficiente e depois mandara-os embora. Mas muitas vezes encontrava alguns deles no seu caminho. Conheciam-na sempre, aproximavam-se e lambiam-lhe as mos.Falaram muito naquela manh, e j o sol ia alto quando Peter disse que, como ainda queria fazer algum exerccio, tinha de se pr a caminho, Fran ofereceu-se para lavar a loua do almoo. E como ele pensou que aquilo lhe daria prazer, deixou-a fazer a sua vontade e partiu pela montanha abaixo.Mas no tinha andado muito quando ouviu uma voz ardente cham-lo, atrs de si: - Posso voltar amanh?- Claro. Fico sua espera. - Voltou-se e disse-lhe adeus.Ela sorriu-lhe. um pouco de ventura bailava-lhe nos olhos e o corao batia-lhe apressado. Fran sentiu que comeava a viver.

CAPTULO IIAo quinto dia, Peter teve de lhe dizer que se ia embora naquela tarde para Vancouver. Fran no disse nada e sentou-se, calada. Como o silencio se prolongasse, ele comeou a ach-lo desagradvel. Sem saber bem porqu, sentiu que tinha sido bruto. Mas aquilo era absurdo. No poderia ficar ali eternamente, ainda que para agradar a esta estranha garota. Apesar de tudo, teria pena de a deixar. Tinham-se tornado ptimos companheiros nos ltimos dias, e ele encontrava qualquer coisa de reconfortante na sua ingenuidade. Estimava-a verdadeiramente, e a incontestvel devoo que ela manifestava comovia-o e ao mesmo tempo lisonjeava-o. Mas nunca lhe ocorrera que existisse ali alguma coisa mais do que a dedicao duma criana. - Oua, Fran, minha pequena. - Inclinou-se um pouco e tomou-lhe uma das mos morenas entre as suas: - Eu tenho muita pena de me ir embora. Gosto imenso das nossas conversas. Mas tem de ser!Ela voltou a cara para ele com um olhar triste nos grandes olhos cinzentos, mas com um ar resoluto. - Irei consigo - disse por fim. - No posso ficar aqui.

Peter franziu as sobrancelhas. - Diabo! - Mas logo a seguir sorriu-lhe com amizade. - Receio bem que no possa ir. Se minha me fosse viva, lev-la-ia para junto dela. Mas ela j morreu e qualquer das minhas tias veria isso com maus olhos, sem dvida nenhuma. - E, simples idia, riu-se.- Mas eu no queria ir para as suas tias- protestou Fran vigorosamente. - Eu quero ficar consigo... farei tudo o que me disser. Ser terrvel se ficar aqui agora. Muito pior do que antes. No poderei viver; morro com certeza. Falava desesperadamente, a face morena movimentando-se espasmdicamente e os lbios tremendo. Peter sentiu-se fraquejar. O problema desta garota perdida tinha-o perseguido naqueles dias.- Oua c, Fran - disse de repente. - Deixe-me ir l abaixo falar com o seu pai. Talvez que entre ns possamos arranjar alguma coisa pelo seu futuro. Voc deve ter parentes para onde possa ir.Fran pareceu considerar a hiptese. - Se ele consentisse, eu poderia ir v-lo, de vez em quando.- Evidentemente! - mentiu Peter, aborrecido, porque tinha ptimas tenes de dentro de uma semana estar a caminho-de Inglaterra. Mas Fran pareceu satisfeita. E juntos desceram para falarem ao pai.A casa ficava a umas trs milhas de distncia, mas durante o percurso falaram pouco. Os incertos caminhos da montanha prenderam-lhes a ateno. At que, por fim, chegaram vista dela, aninhada sob uma rocha gigantesca, junto a um, rio.- ali que vivemos - apontou Fran com o brao moreno. Peter acenou com a cabea e apressou-se. Sentiu imediatamente que era impossvel fazer melhor com magros recursos. Quando se apressaram, Fran ps uma mo no seu brao. - Escute - disse com nervos tensos.- O que aquilo?Peter parou um pouco. Ouviu tambm. Vinha. do interior da casota. Um gemer abafado. Aquele som f-lo voltar, numa recordao aflitiva, s trincheiras da Frana...- O que aquilo? -interrogou Fran de novo num murmrio.- Espere aqui-ordenou Peter. Puxou a rapariga suavemente para um lado e entrou s na cabana.O que viu f-lo parar abruptamente quase entrada. O suor perlou-lhe a testa. Estendida nocho estava a figura amarfanhada de um homem- homem idoso, cabelos grisalhos raros e feies afiladas, semelhante ao falco. Imediatamente Peter se ajoelhou ao seu lado, tentandolevantar-lhe a cabea.- J no serve de nada; estou liquidado. -A voz do homem era to fraca que Peter dificilmente a pde ouvir. - Estava a deitar abaixo uma rvore quando ela caiu sobre mim. - Fez uma pausa. Um espasmo de dor contraiu-lhe as feies. Ento os seus ferozes olhos cinzentos procuraram os de Peter. - Quem voc, rapaz? Como veio aqui ter?- Vim v-lo por causa de Fran - disse Peter rapidamente. - Mas agora no se trata disso. O que interessa voc...- muito tarde para fazer alguma coisa por mim - interrompeu o velho. - Dentro em poucoest tudo acabado. E no digo que tenha pena; a vida no me deu muito. Houve um tempo... Mas tudo passou. - Outra pausa. Peter sentiu-se sujeito a uma observao apertada. - Suponho que o rapaz por quem a minha rapariga se apaixonou - disse por fim Milton Steele.

Peter fez-se vermelho. - Nada disso - disse.- Ela ainda uma criana.A cabea do homem moveu-se negativamente.- Ela no uma criana. De maneira nenhuma. Ela conhece bem a sua prpria alma. Tenho-a ensinado a conhec-la. Falou-me a seu respeito, meu rapaz... Mas depressa, porque no tenho muito tempo. E no procure tentar mentir-me, porque conhec-lo-ei.Apesar das poucas foras, havia nele um ar de comando. E Peter viu-se forado a obedecer. Quando acabou, o velho acenou, como que satisfeito. - No tenho forma de verificar a sua histria, mas julgo que verdadeira. H qualquer coisa em si que me agrada, Kelway, e eu no gosto de muita gente. A questo esta: est pronto a casar com Fran?Peter ficou sem flego. Olhou, incrdulo, para o moribundo. Aquela idia nunca lhe tinha passado pela cabea. Ele casado com Fran! Tinha graa.- Nunca pensei nisso - gaguejou.Milton Steele levantou a mo spera para limpar o suor da face. -Ento voc tem-se divertido unicamente com a minha filha? - perguntou com voz rouca.- Eu no fiz nada disso - defendeu-se Peter calorosamente. - Simplesmente conversmos, nada mais. Ela uma criana, e como para casar com ela... A verdade esta: eu vim ver se se poderia fazer alguma coisa para a educar.- Ora! - murmurou o velho. - Ela no precisa de educao. Eu dei-lhe uma melhor da que a que a maior parte das raparigas tem. A si que ela quer.Peter achou aquilo espantoso. O que havia de fazer? Que podia dizer? Que estpida situao! Pde unicamente balbuciar de novo: -Nunca me passou isso pela cabea.

O moribundo gemeu. As feies entristeceram-se-lhe. - Ento, tenho pena de Fran. Naquilo como eu: s amar uma vez. Se voc no casa com ela, Deus sabe o que suceder!Mas Peter sentiu que aquele assunto no podia ser deixado assim. Alguma coisa se devia decidir acerca do futuro de Fran, e rapidamente.- Ela no tem parentes? - perguntou. -Talvez sua me... -No havia tempo, sentia-o para ser diplomata.- Sua me! - A despeito do enfraquecimento, o velho agitou-se. - Antes a quereria ver morta a v-la com aquela mulher. Quanto a parentes, no tem nenhuns... pelo menos do meu lado. Vivi aqui tanto tempo, que perdi o trato do mundo. Se voc no casar com Fran... Mas eu no lha posso impor... Ainda que lhe digo sinceramente que no faria mal nenhum se casasse com ela. Ter uma fortuna, a minha filha. A direco do advogado est ali numa gaveta. Pergunte-lhe, se no acreditar em mim... Uma fortuna, digo-lhe eu! Uma fortuna... - A voz elevara-se-lhe num grito rouco. Um olhar feroz espelhou-se-lhe na vista. Peter tremeu. O pobre diabo no estava bom da cabea! Toda esta conversa acerca de uma fortuna! Logo a seguir Milton Steele caiu no sobrado com um grande gemido. Estava morto.Era noite. Peter e Fran saram e olharam para cima, onde a Lua punha crculos de prata em torno dos picos das montanhas. Tinham lanado o pai ao rio.- Espero que o pai esteja mais feliz agora murmurou Fran docemente. - Nunca foi muitofeliz aqui, sabe?Peter no replicou. As ltimas palavras de Milton Steele soavam lhe aos ouvidos desde a tarde - Naquilo como eu: s amar uma vez.

Se voc no casa com ela, Deus sabe o que suceder!O que seria de Fran? Olhou-a. Era to mimosa, to pequena, no meio daquela escurido prateada. Os cabelos castanhos, revoltos num desalinho espantoso, chegavam aos ombros. O rosto pequeno de fada estava pensativo e o desgosto reflectia-se-lhe nos olhos. No tinha chorado, e Peter ficara. pasmado por isso. Mais tarde viria a saber que Fran nunca chorava, nem mesmo quando o desgosto era muito profundo! Era uma rapariga estranha, pensava ele tristemente.O que havia de fazer dela? O velho nada tinha deixado, a no ser alguns dlares e o endereo de um advogado de Vancouver. Peter tinha a certeza de que o bom do advogado devia ficar to perplexo quanto ao que se havia de fazer dela como ele prprio estava. Uma fortuna? Mentalmente, mandou ao diabo a informao. Que fortuna podia ter um homem que vivia to pobremente?- Agora, que o pai morreu, deixa-me ir consigo, no deixa, Peter?Ela olhava-o como que suplicando, e aquilo chocou-o. Qualquer, coisa lhe subiu garganta. Pobre garotita... No parecia ter ningum no mundo a no ser ele. Se ele fosse mais velho e ela mais nova, poderia adopt-la. Mas aos vinte e seis anos no podia adoptar raparigas de dezoito!. Casar com ela... O seu esprito afastou do pensamento a hiptese. Esquisito, absurdo. Mas o pensamento voltou. Era uma soluo, e muito do gosto dela. Evidentemente, ele no a amava como tinha amado Dorothy. Mas esta, perdida para ele, tinha sado definitivamente da sua vida. Vendo bem, fazia ele questo da pessoa com quem casasse? Apesar de tudo, era-lhe necessrio algum tempo para se habituar a esta

idia. Desposar uma criana como Fran - porque, no obstante as palavras de Milton Steele, ele no podia ver nela mais do que uma criana! - seria bom para ela e para ele? Que alternativa havia ainda? Peter no pensou mais.- Oua, Fran - disse repentinamente. - Se voc vem comigo, temos de ser casados. - Parou. Ela estava muito quieta ao seu lado, quase no parecendo respirar. Viu que j tinha dito muito e que era preciso acabar. - Quer casar comigo?Fran levantou os olhos para ele. Havia neles um brilho estranho. Por momentos no falou. Mas, subitamente, Peter sentiu um brao rode-lo e uma madeixa de cabelos revoltos encostar-se ao seu ombro- No casaria com mais ningum - disse ela com simplicidade.

CAPTULO iiiMR. e Mrs. Peter Kelway instalaram-se no Hotel Miraniack, de Vancouver. Tinham-se casado aquela manh numa pequena cidade mineira por onde haviam passado. Para a cerimnia, Peter tinha comprado a Fran um casaco e uma saia numa loja da cidade. No era um vestido brilhante, nem ficava grande coisa a Fran, mas ela entusiasmou-se com ele. Passeou um pouco pela lojeca - que era uma casa miservel de venda de quinquilharias baratas - como um pequeno pavo. Peter, encostado ao balco de madeira, estava um tanto divertido. - Espera que cheguemos a Vancouver, querida, que eu te comprarei vestidos que tu at vais sentir falta de ar!- Melhores do que este - perguntou Fran, admirada.Peter riu-se. - Sim, melhores do que esse- prometeu.Fran no queria acreditar que ele o fizesse, mas assim que chegaram a Vancouver ele provou-lhe que o podia fazer. Agora, no hotel, corria duma casa para outra, tirava este vestido, e aquele, e outro ainda, levantava-os sua frente diante do espelho, encantada. - Se eu, ao menos, os pudesse usar todos ao mesmo tempo!

exclamou para Peter, recostado no sof. -Assim, no sei qual vestir primeiro.- melhor decidires-te rapidamente-suplicou Peter. - Devemo-nos apressar, se quisermos ainda hoje falar com o advogado. Pessoalmente, no vejo grande vantagem nisso, mas desde que teu pai pediu...Para Fran o que Peter dizia era lei, e, assim, apressou-se a obedecer. Escolheu um vestido apertado, elegante, preto, de georgette. A transformao realizada foi profunda. Peter olhou-a, realmente surpreendido. A linha do vestido revelava uma figura deliciosa, pequena e cheia de graa. Notou pela primeira vez que ela tinha ancas bem feitas e ps pequenos, bonitos. E assobiou apreciativamente.- Nada mal, querida. Desde que arranjes o cabelo e o prendas em cima, ficars esplndida!Um leve rubor surgiu sob o moreno das faces de Fran. Nunca algum a tinha cumprimentado de semelhante forma. Foi uma sensao nova. E gostou. Num impulso rpido, correu para Peter e prendeu-lhe os braos em torno do pescoo.- Gostas de mim, no gostas, Peter? - murmurou. E logo a seguir, envergonhada, escondeu a cara no fato dele.O rapaz sorriu carinhosamente para ela e acariciou-lhe os cabelos. - Pequena tontinha disse ele suavemente. - Certamente... d-me um beijo...Levantando-lhe a cabea com os dedos sob o queixo, beijou-a nos lbios e ficou admirado do calor da resposta dela. At aqui tinha-a olhado como uma criana, mas aquele beijo mostrou-lhe que j o no era... Tremeram-lhe ligeiramente os pulsos, e pela primeira vez teve a sensao de que era afinal casado com aquela garota, que,

repentinamente, se lhe mostrava estranhamente meiga e atraente. Por um momento deixou de pensar nela como num objecto de piedade e achou-se a pensar nela como numa mulher.Os braos rodearam-na e ficou a beij-la com um fervor que o entonteceu... Apertou-a mais a si. Ento viu que os olhos dela estavam rasos de lgrimas. Receoso de que por qualquer forma a tivesse magoado, o seu abrao afrouxou. Mas nada a tinha magoado, porque precisamente nesse momento Fran murmurou: Agora sei que me amas, Peter. E pela primeira vez tenho medo...Extraordinrio, mas Peter achou-se tomado de um sbito embarao. - Querida - murmurou. A voz saiu-lhe rouca. E, como que meio envergonhado de si, apressou-se a abrir a porta.- Vamos - disse. - J estamos atrasados. O escritrio de Higgs, Gullan & Wilson estava situado a uma distncia razovel do hotel. Quando Peter mandou o seu carto, dizendo que o assunto dizia respeito a Milton Steele, Mr. Higgs recebeu-os imediatamente, O scio mais velho era um sujeito baixo, vivo e rotundo, orando pelos cinqenta.- um grande prazer para mim ver a filha do meu velho amigo Milton Steele. - Mr. Higgs apertou com evidente prazer a mo de Fran.- Tenho imensa pena de no ver o seu pai j h muitos anos. Como vai ele?Fran baixou os olhos e sentiu formar-se-lhe um n na garganta. - O pai morreu - disse ela.- Por isso estamos aqui. Ele disse-nos para vir ter consigo... Mr. Higgs durante uns segundos no falou. Tirou as lunetas e limpou-as cuidadosamente. Por duas vezes pigarreou. - Isso muito triste, minha querida - disse por fim. - No lhe posso

dizer quanto lamento, minha querida Miss Steele...- Fran minha esposa - interps Peter amvelmente. -Casmos esta manh.O advogado voltou a cabea para o lado de Peter. Pela primeira vez deu a impresso de sentir a presena do rapaz. Observou Peter com os olhos mopes. - Na verdade, surpreende-me... -disse ento. - Deve ter sido muito rpido! Peter sorriu. - E foi. Fran e eu conhecemo-nos h menos de uma semana. Mas se casmos foi por instncias de Mr. Steele. Foi o seu ltimo desejo, na realidade.A face de Mr. Higgs iluminou-se e olhou ento para o casal sua frente. - Nesse caso, cumpre-me felicit-los muito calorosamente, com certeza. Sabia que Miss Steele era muito nova, mas desde que foi um desejo de seu pai... Perdoem-me a minha hesitao de incio, mas, como devem saber, eu sou um dos depositrios da confiana e escravo do dever. Sua esposa uma senhora riqussima, Mr. Kilway. Calculo que j sabia.- No, no sabia - disse Peter. Olhou para o advogado como se este tivesse endoidecido.- O que diz? Uma senhora riqussima?- Mrs. Kelway herdeira de uma fortuna de aproximadamente meio milho de dlares disse Mr. Higgs batendo as palavras. - O dinheiro foi-lhe deixado em depsito por seu av, para lhe ser entregue quando perfizesse vinte e um anos ou quando se casasse.Durante alguns minutos Peter no falou. No o podia fazer, a cabea rodava-lhe em turbilho. Meio milho de dlares! Uma fortuna! Parecia absurdo. Na realidade, no podia acreditar naquilo. certo que o sogro lhe tinha dito qualquer coisa acerca duma fortuna, mas Peter tinha

tomado aquilo como delrio de um luntico. Afinal devia ser verdade, desde que este tipo advogado o dizia. Espantoso!...Teria casado com Fran se o tivesse sabido? Sentiu que no teria tido cara para lhe pedir semelhante coisa. Pensava que a desposava por caridade, e afinal ela saa-lhe uma herdeira rica...- No sabia de nada - murmurou, quando viu que tanto Fran como Mr. Higgs aguardavam que ele dissesse alguma coisa.O velhote riu-se. - Uma surpresa, ento, Mr. Kelway. Mas tenho a certeza de que no foi uma surpresa desagradvel.Peter riu sem vontade. Ainda estava a tentar apreender tudo o que se passava.- Evidentemente, ainda h certas questes de ordem tcnica a resolver - prosseguiu Mr. Higgs.- Talvez fosse melhor voltarem os dois aqui amanh. At ento tero tido tempo de se recobrar um pouco do choque. - Riu para ambos cortsmente j porta do escritrio.Fora, na rua, a noite cara. Um leve nevoeiro espalhara-se sobre a cidade como um brando manto acinzentado. Atravs da nvoa podia-se distinguir a mancha fraca das lmpadas da rua e as luzes mveis dos carros e dos txis.No caminho, de volta ao hotel, Fran olhou interrogativamente para Peter. A expresso dura que se lhe espelhava na face inquietou-a. - No ests zangado, pois no, Peter - murmurou, puxando-lhe ansiosamente o brao. - No fazes caso, pois no? Teria pena se fizesses, mas viste que eu no sabia de nada...- Uma fortuna dificilmente uma coisa que indisponha, no ? - Teve um sorriso frouxo. A verdade que ainda no se habituara idia.- Mas um bocado chocante pensar que tenho uma mulher que vale cem vezes mais do que eu.

Embora o teu pai me tenha dito realmente que ( tu tinhas uma fortuna... -acrescentou em voz baixa.Fran suspirou, aliviada. - Oh, ento, se tu sabias, est tudo perfeitamente... - Riu-se para ele, feliz, e enfiou o brao no dele, apertando-o contra si. A fortuna no a preocupava. No fazia grande idia do valor do dinheiro, e s lhe interessava saber se Peter estava satisfeito, porque ento estava-o tambm; mas se ele no estivesse, ela teria desprezado o dinheiro sem uma palavra.- Porque ests to carrancudo, Peter querido? - insistiu. - No deixes este horrvel dinheiro vir ensombrar a nossa lua-de-mel, no?

CAPTULO IVTUDO o que algum em Vancouver janta e dana no Hotel Miramack nas noites de sexta-feira. Fran e Peter, sentados a uma mesa lateral, viam a corrente infindvel de homens e mulheres que se comprimiam para alcanar as mesas, discretamente iluminadas, que rodeavam o recinto da dana. Fran, perante os vestidos das senhoras, estava num perptuo deslumbramento, e Peter imensamente divertido com as observaes que ela fazia. Mas neste divertimento havia j um definido sentimento de ternura, de afecto crescente. Comeava a pensar que neste casamento de acaso encontrara afinal uma jia nesta rapariga que era sua mulher.Os saxofones gemiam, os banjos arranhavam e os tambores marcavam o compasso. A certa altura Peter pediu a Fran para danar. F-lo instintivamente, sem pensar. A face da rapariga ruborizou-se e os lbios tremeram-lhe com o desapontamento. - No posso - murmurou. - Nunca vi fazer isto antes... Mas, Peter, se queres, dana com outra qualquer.Ele riu. - Tonta, por que razo o havia de fazer? Alm disso, no conheo ningum aqui.Mas, por uma coincidncia extraordinria, mal lhe tinham sado estas palavras dos lbios quando estremeceu e se ps muito plido. A pouca distncia, conversando com um grupo de pessoas, viu a rapariga a quem, havia apenas um ms, tinha amado perdidamente: Dorothy Ashworth!O reconhecimento foi mtuo. Imediatamente Dorothy veio ter com ele, os olhos, cor de mbar, brilhando intensamente e os lbios, vermelhos do bton, entreabertos num sorriso apaixonado. - O qu, Peter, querido, espantoso, no achas? O meu amor aqui!... Procurei-te por toda a parte desde Montreal, e afinal, aqui, a primeira noite que vim, encontro-te!Peter ficou sem fala. Que encantadora ela estava naquele vestido de brocado riqussimo debruado a ouro. Os cabelos iluminavam-lhe as faces com uma cor viva.-Dorothy!... -murmurou. Pegou-lhe nas mos e por momentos esqueceu Fran, sentada a seu lado na mesa.- No tens nada mais que me dizer, Peter - Dorothy sorriu, um pequeno sorriso irnico quelhe franziu o rosto. - Ento, direi eu! Procurei-te deliberadamente em toda a parte, e sem pejo, acredita, para te dizer que tinha feito um tremendo disparate quando te mandei embora... No sei por que o fiz, Peter: na realidade no queria dizer aquilo. E ento tu foste-te embora antes de eu ter tido possibilidade de te chamar...Peter dominou-se. Saiu do deslumbramento e sentiu que a devia fazer parar fosse de que maneira fosse. Tremendo, o que ela estava a dizer! Tremendo especialmente por tudo aquilo ser to ftil. Ele estava casado com Fran! - Dorothy, - interrompeu, cortando rpido (o

nico caminho possvel, sentia) - desejo-te apresentar minha esposa. - Voltou-se abruptamente para Fran, puxando-a da mesa. - Dorothy, esta Fran. Casmos esta manh.Durante alguns momentos o silncio foi penoso. As duas raparigas observaram-se, os olhos de Fran interrogadores, os de Dorothy endurecidos com a surpresa e o desapontamento. Apesar de tudo, ela foi quem falou primeiro. Estendeu-lhe a mo: - Como est Mrs. Kelway?Fran apertou-lhe a mo e disse lentamente:- J tinha ouvido falar de si.A memria fazia-a voltar atrs, quela primeira manh em que tinha encontrado Peter nas montanhas. Peter falara-lhe daquela rapariga. Tinha-a designado como uma das encantadoras senhoras daquele outro mundo que ela no conhecia ento. Na verdade, era encantadora e Fran teve uma sensao desagradvel. Ela era to bonita que sentiu receio. O que tinha sido ela, afinal, para Peter? O que era ainda?- J danou, Mrs. Kelway? - perguntou Dorothy, interrompendo um silncio que comeava a tornar-se desagradvel.Fran abanou a cabea. - No dano, mas tenho a certeza de que Peter gostaria imenso de danar consigo. - Disse isto naturalmente, mas Dorothy, que nunca na sua vida tinha tido um pensamento ou impulso natural, julgou perceber um sentido oculto. Riu de troa. - Muito obrigada, Mrs. Kelway. Vou ver se aproveito a sua generosidade, se Peter quiser. - E, agarrando no brao deste, murmurou: -Vamos, Peter.Peter hesitou, mas pareceu-lhe que nada havia ali a fazer seno segui-la para o recinto de dana. Estava de sobrolho franzido, vagamente ressentido pela atitude de Dorothy. Mas, como homem, no podia determinar o que o

chocava no procedimento dela. A msica tocava de novo, ele tomou-a nos braos e deslizaram, enlaados, danando. Esquisito, estar a... danar outra vez com Dorothy: h um ms era para ele tudo o que mais desejava, senti-la apertada nos braos. Ainda agora lhe batia ocorao desordenadamente. Mas, fosse comofosse, faltava-lhe uma certa emoo, que a princpio sentia, quando estava ao p dela.Teria ele mudado? Dificilmente isso lhe parecia provvel no curto espao de um ms. certo que estava agora casado com Fran, masnunca tinha pensado verdadeiramente que aamasse daquela maneira. Ainda agora no sentia to certo... Os seus pensamentos eram caticos. No se sentia capaz de raciocinar claramente.Os olhos cor de mbar de Dorothy riam, penetrando nos seus, escarnecedores e provocantes.- Encontraste ento a tua herdeira, afinal, querido?O rubor subiu s faces de Peter. Ela tinha-o tomado completamente de surpresa. - Como sabes que Fran uma herdeira - interrogou.O riso de Dorothy foi forado. - Por que razo ento a terias desposado? Eu orgulho-me de que um homem me no esquece to facilmente, a no ser que haja algum motivo ulterior - concluiu.Peter ficou aborrecido. Insinuava ela que ele tinha deliberadamente desposado Fran pelo seu dinheiro? Porqu, se ele nada tinha sabido antes?- Ouve, Dorothy - disse com dureza. - No deves julgar isso. A verdade que eu no sabia que Fran era uma herdeira at depois de me ter casado.

Os olhos dela mostraram francamente que no acreditava.- Vai dizer isso aos peixinhos - troou. Ele no viu nenhum ponto em que pudessecontradiz-la, e, assim, deixou morrer o assunto. Perguntou, em vez disso, onde estava, e descobriu que ela e Mrs, Hempton, uma jovem viva, estavam neste mesmo hotel. Aquilo impressionou-o como uma ironia. Ele passaria a primeira noite da sua lua-de-mel sob o mesmo tecto que Dorothy Ashworth.- Peter-murmurou ela quando a msica tocava os ltimos acordes. - Tenho estado a pensar que esta noite devia ter sido nossa... a nossa noite de npcias...Peter endureceu instantaneamente. - Mas no . E desejo que nunca mais te refiras ao passado, Dorothy. -A voz soou invulgarmente seca.Dorothy sorriu complacentemente, mas os olhos estavam negros e enfurecidos. Soube naquele momento que odiava essa mulher de Peter, essa rapariga que a tinha suplantado. Estava bem, vigiaria aquela pateta!Peter no tornou a danar com Dorothy, receoso do sorriso trocista dela toda a noite. Admirou-se de se ter demorado a danar. Porque no levava Fran para cima, para o quarto? Mas achou-se preso por uma estranha relutncia. Fran era to nova! Saberia ela o que significa casar? Olhou para aquela carita pequena sobre a mesa e pareceu-lhe subitamente estar a ver uma cora selvagem e tmida. Estava bem lev-la j, ou esperaria? A questo atormentava-o e no sabia que decidir.Por fim, quando a msica acabou e as luzes se comearam a apagar, no tinha mais desculpa para se demorar. - Vamos. tarde. Devemos ir para o nosso quarto, Fran. - Tentou falar-lhe indiferentemente, mas no conseguiu.

Tomou-lhe o brao e notou que a mo trigueira, delgada, tremia. Porqu? Teria ela medo dele? Aquilo f-lo pensar ao levantar-se e ao longo do corredor. porta do quarto pegou-lhe na mo. - Volto l abaixo para fumar um pouco" Mas no me demoro. - Contra o que pretendia, a voz saiu-lhe sem firmeza. Teria de a deixar, mas Fran continuava a agarrar-lhe a mo, como se tivesse receio de o deixar ir embora. E colou-se-lhe mais. Levantando-se nos bicos dos ps, olhou-o nos olhos.- Voltars para mim, Peter? - murmurou.- Certamente... minha mulherzinha.Por um momento a face dela apertou-se-lhe de encontro ao peito. - Eu sei que tu gostas de mim, Peter... - Havia na sua voz uma nota dominante acrianada.Em resposta, ele puxou-a a si com firmeza e beijou-a nos lbios.Ela suspirou. - Sou to feliz - e entrou no quarto. Peter ficou hesitante um momento, surpreendido pela intensidade da emoo que sentia, e ento voltou lentamente para baixo.Fran despiu-se ao luar. Estava acostumada escurido. Nunca a assustava. Depois dirigiu-se para duas portas envidraadas que davam para um terrao que corria ao lado do hotel. O nevoeiro tinha levantado e a noite estava clara e estrelada. A lua cheia inundava o jardim duma nvoa amarelada. Vestindo um lindo robe de cetim, Fran passeou pelo terrao. O vento da noite soprava fresco e refrescava-lhe as faces a arder... A sua noite de npcias! Sorriu, feliz. A beleza da noite parecia reflectir a satisfao da sua alma. A sua noite sua e de Peter. Ele amava-a tanto como ela o amava a ele... sem dvida, sem dvida... De outra maneira, nunca ele teria casado com ela. Convenceu-se apaixonadamente disso. Houvera

momentos na sala de baile, quando tinha sentido medo, quando o espectculo dele a danar com aquela estranha rapariga a magoara, quando o fraco temor penetrara no seu corao, em que sentira que talvez ele tivesse casado com ela por d. Mas no quisera insistir naquele ponto nem mais um momento. Tinha combatido aquilo, to monstruoso era. Para ela significava imenso a convico do amor de Peter. Significava tudo no mundo. Os lbios sensveis tremeram-lhe. Dentro em pouco ele tornaria para ela Muito breve j.Inconscientemente, andara bastante pelo terrao. E, de sbito, foi surpreendida por uma voz que, vinda de dentro de duas portas envidraadas, cerradas, exclamava: - E tu pensas realmente que Peter Kelwaycasou com ela unicamente pelo dinheiro?Fran parou, os nervos tensos, escutando, incapaz de se mover.- Evidentemente-falou outra voz, uma nota levemente grosseira nela. Fran - reconheceu-a imediatamente. Pertencia quela rapariga bonita: Dorothy Ashworth - Praticamente foi o que me deu a entender enquanto danvamos. Por que razo ento casaria ele com uma "coisinha" to insignificante como aquela? Ouvi que, quando pela primeira vez entrou no hotel, ela olhava tudo como uma trapalhona. O pobre Peter est to apoquentado com dvidas que se lhe no pode levar aquilo absolutamente a mal. O dinheiro dela foi uma verdadeira ddiva de Deus. No admira que ele tentasse a sorte. Principalmente quando estava to perdido de amor por mim e pensava que eu o tinha deixado de vez.Seguiu-se um silncio. Fran ficou ali, muda "e paralisada, as palavras horrveis vivendo

ainda nos seus ouvidos. Estava demasiadamente aflita para chorar. Andou um pouco e encostou-se s grades para no cair. Em poucos momentos tudo dentro dela tinha rudo - tudo. E nada l ficara a no ser a recordao vazia dum sonho. E era aquilo, de tudo, o mais terrvel, porque tudo aquilo tinha sido to bonito! Peter no a amava: amava esta rapariga que pertencia ao seu mundo, ao seu meio... Naqueles primeiros momentos Fran ficou como um animal mortalmente ferido. No sabia que caminho seguir, que fazer. Teve um impulso feroz de se lanar do terrao para o jardim, ao fundo... Ento ouviu um som que a gelou, que lhe fez sair a cor das faces. O som de Peter batendo leve, mas insistentemente, porta do quarto...Durante um instante no se pde mover, no pde falar. A garganta estava seca. Peter... o seu marido. Peter, que ela adorava com uma intensidade selvagem. Peter, a quem ela desejava, mas a quem se no podia nunca dar, depois do que ouvira quela rapariga. Todo o seu ser sentiu uma mortificao to intensa, que era agonia fsica. Peter via-a como Dorothy Ashworth tinha dito? Ordinria, mal educada, uma verdadeira trapalhona, que tinha desposado num momento de piedade cavalheiresca? Era ento aquele o nico sentimento que tinha por ela? E estava arrependido da sua precipitao, agora que a outra rapariga tinha de novo entrado na sua vida?Ou - e este pensamento torturava-a - tinha sido influenciado por ter o seu pai falado numa fortuna, porque, era evidente, ele estava endividado? Lembrava-se agora, quando tinham deixado o gabinete de Mr. Higgs, que Peter concordara que seu pai tinha falado em dinheiro.

- Garota, o que ests a fazer a fora no terrao? Podes-te constipar.Ela dominou-se para ir ao seu encontro, " mas sua vista, to grande, to querido, perdeu a respirao. Sentiu uma vertigem. Peter estava no terrao prximo dela, envolvido num mar de luz alaranjada que vinha das janelas abertas, to prximo que o podia tocar; no entanto, para Fran, ele parecia-lhe extraordinariamente longe. Nada podia desfazer o abismo, pensou lentamente. O tempo... resignao para o papel de mulher desprezada? Mas aquele pensamento alguma coisa de feroz e primitivo despertou em Fran. Ela era uma rapariga da montanha, as convenes sociais nada significavam para ela. Somente o amor de Peter podia nela viver. Mas o amor de Peter, assim parecia, j estava dado quela adorvel rapariga loura!A pausa parecia interminvel; na realidade, durou somente um minuto.- Vamos para dentro, querida. - Peter sorriu ternamente. - Estiveste a pedir Lua para nos fazer felizes esta noite?Quis tom-la nos braos e lev-la para dentro, mas Fran empurrou-o com o brao delgado, nu, marfinado pelo luar.- Esta noite, no, Peter... no poderia esta noite.A aflita intensidade da sua voz f-lo parar. O sorriso caiu-lhe. O que tinha sucedido a Fran to subitamente? H meia hora, quando a tinha deixado, quase podia jurar... Era responsvel? um certo receio acrianado Devia ser isso, decidiu ele: no podia pensar noutra razo para uma mudana to sbita.- Tontinha-prendeu-a gentilmente, trazendo-a para o quarto por uma das mos. - Tu ests procedendo como uma menina tmida.

Sorri, querida, sim. Ests plida. Na realidade, no h razo para que tenhas medo. Alm disso, - sorriu levemente, um daqueles sorrisos para dar confiana a uma criana, - centenas de pessoas se casam todos os dias durante o ano e sobrevivem a isso, bem sabes. Para mais tu amas-me...- Eu no tenho medo - disse ela em voz fraca. - No pelo menos no que tu queres dizer. que... No posso, Peter. No me peas, por favor.Escondeu a face nas mos. Ele viu-as tremer, e sentiu-se penetrar de piedade. Pobre garota, a novidade da sua nova vida cara subitamente sobre ela.- Ouve, querida - ajoelhou ao lado dela. Docemente tirou-lhe as mos da cara, tomou-as nas suas e estreitou-as com firmeza, a dar-lhe nimo. - Olha para mim, querida... H alguma coisa sria? Tu sabes que eu nunca foraria o teu amor... Mas, meu amor, s boa para mim. No me faas sentir completamente um estranho. L em cima nas montanhas tu confiavas-te a mim. No te confias j?Mas ela no poderia olhar para ele. Receava que ele pudesse ler nos seus olhos a sua alma. Isso dar-lhe-ia vantagem, e ela devia ser forte. Fraquejar seria um tremendo desprezo de tudo o que ela tinha de sagrado. Se ela cedesse ao amor dele, instintivamente sentia que o despertar seria amargo, tanto mais amargo quanto mais doce fosse o momento. Mas era duro ser forte, quando a sua voz baixa e rouca lhe suplicava, quando ela via desespero e desapontamento nos seus olhos.Tirou as mos das dele. Nervosamente atirou para trs uma desgarrada madeixa de cabelos.- Desculpa, Peter. - A voz saiu-lhe ciciada

mas decisiva. -Eu preferia que no ficasses aqui esta noite.Um leve rubor subiu-lhe cara. Desajeitadamente, ps-se em p. Ela tinha-o ferido no seu orgulho.- Est bem, se assim o queres, Fran. Irei para outro quarto, embora seja tarde.Foi em direco da porta, mas, com a mo no puxador, hesitou. Fran ainda estava onde a tinha deixado. No se movera. Havia qualquer coisa de pateticamente pueril na inclinao das costas dela. E dentro dele nasceu um como que sentimento de que estava actuando como um homem muito grosseiro. Pobre rapariga! Ele no tinha o direito de estar ressentido. A excitao do dia estava a actuar nela. Amanh, por certo, sentiria diferentemente.- No estejas triste, querida - disse ternamente. - Eu vou-me embora. Tenta repousar bem. Mas primeiro no poderias vir beijar-me e dar-me as boas noites?Estendeu os braos para ela. Mas ela no se moveu, somente abanou a cabea.- No me peas, Peter. -E subitamente, a voz elevada num grito desesperado - Deixa-me s, por favor.Peter hesitou ainda um momento. Estava envergonhado e ferido. Ento, sem olhar para trs, saiu do quarto.Nunca foraria o seu amor, nem os seus beijos" decidiu para si. Mas achava difcil de explicar aquela mudana de atitude. No era raro em raparigas da idade de Fran deixarem-se dominar pelo temperamento: mas Fran at aqui no tinha parecido influencivel por isso. At aqui tinha sido uma criana adorvel, cheia de confiana. Agora era uma mulher, e uma mulher que parecia conhecer a sua mentalidade. O que a teria mudado?

Dentro de si sentiu-se um tolo. Este sentimento cresceu quando pediu ao empregado da noite outro quarto. Pde imaginar o tipo a dizer depois para a mulher:- Qualquer coisa sucedeu esta noite. Um casal jovem, na lua-de-mel, e ela enxotou-o. Deve ter feito isto, porque ele veio pedir-me algum canto para dormir.Peter ficou satisfeitssimo quando o homem no manifestou surpresa alguma. Tratou do caso como duma ocorrncia vulgar. Muitas mulheres devem pr os maridos fora do quarto todos os dias durante a semana...No entanto, Peter sentiu-se muito aborrecido quando o seguiu pelas escadas acima. O nico quarto vago, explicou o empregado, era no mesmo piso ocupado pelo quarto de Fran.- E no o teramos tido, senhor, se o cavalheiro que o marcou no tivesse dito h meia hora que no poderia vir.Enquanto falava, a porta em frente abriu-se. Dorothy Ashworth saiu para o corredor, um cigarro meio fumado numa das mos. Tendo acabado de conversar com a sua amiga, Mrs. Hempton, voltava para o seu quarto. Mas ao ver Peter, parou. Olhou-o e ao empregado, ento no quarto vazio. Lentamente a surpresa nos seus olhos deu lugar a um claro de malicioso divertimento.- Que aborrecimento, querido - murmurou, os lbios num jeito levemente trocista. - Os teus galanteios espantaram a pobre herdeirinha e fizeram-lhe perder o juzo?E riu ligeiramente. A cara de Peter ficou vermelhssima. Como ela o fazia sentir pateta - e em frente do empregado, ainda que o tipo tivesse tido a decncia de se retirar para dentro do quarto. Mas, mesmo assim, devia ter ouvido. Que coincidncia levada da breca, esta de Dorothy surgir neste momento crtico. Ferozmente atribuiu-lhe a culpa do que tinha sucedido entre ele e Fran. Mas, apesar disso, enquanto para ali estava secretamente irado contra ela, no podia deixar de sentir uma certa vibrao admirativa pela sua beleza pura. Vestia ainda o vestido debruado a ouro que lhe vira na sala de baile. Mas tinha estado a pentear os cabelos; levantavam-se, desalinhados e elctricos, em torno do perfeito oval da face; e os olhos de mbar, quando troavam dele, estavam dourados naquela meia luz.Imediatamente seguiu pelo corredor fora e desapareceu na sua porta. Mas a lembrana das suas palavras, do seu riso leve, trocista, implicou toda a noite com Peter. Ela era a um tempo irritante e... divina. Embora a si prprio dissesse que a odiava, a lembrana da sua beleza fazia-o palpitar. Por que razo, tendo-o uma vez afastado do seu caminho, tinha voltado para o atormentar? No o podia deixar s, uma vez que ele estava casado com Fran.Fran... O seu comportamento esta noite ainda o feria, no obstante decidisse encar-lo como um despropsito de criana. Agitando-se desassossegadamente nos quentes lenis amarrotados, admirou-se de que os seus sentimentos fossem para ela. De manh, ao casar com ela, poderia jurar que tudo o que sentia por ela era uma certa piedade, misturada com desejo sincero de a proteger. A sua confiana simples tinha-o lisonjeado. Mas no tinha amor por ela, pelo menos aquele amor de homem para mulher. S aquela tarde, quando a tinha beijado e ela correspondera ardentemente com os lbios ao seu beijo, que teve vagamente a conscincia de que a sua atitude tinha mudado. Havia um encanto subtil em Fran. Estranha e artificiosa, era totalmente diferente a emoo que

Dorothy nele despertava. Esta era definida, dinmica mas um certo ardor impelia o seu corao para Fran.Naquela primeira manh em que almoaram juntos nas montanhas, no tinha ele tido, ento, uma leve conscincia disso? Alm disso, ter-se-ia desviado do seu caminho s para a ajudar? Teria ela permanecido to constantemente nos seus pensamentos?Suspirou, acendeu a luz e descobriu, admirado, que eram quatro horas. Devia procurar dormir. Era estpido no dormir. No dia seguinte Fran teria reconsiderado. Ele encontraria de novo a doce garotita meio selvagem que tinha encontrado uma manh no cimo da montanha,E, animado, adormeceu.CAPTULO VMAS na manh seguinte, quando ele veio, com alguma hesitao, ao seu quarto perguntar se ela estava pronta a descer para almoar, a sua aparncia chocou-o: a face plida, sob o moreno, e uma leve sombra purpurada rodeando-lhe os olhos. E no s aquilo. Tambm um certo desespero no todo.- Que tens, querida? - exclamou quando se inclinou para a beijar. - Ests como se no tivesses dormido.- No dormi - respondeu ela pausadamente. Os lbios, sob os dele, estavam frios.- O que tens? Tu no podes sair assim. No te sentes bem?Ela abanou a cabea. Uma madeixa revolta- a cor dos cabelos era acastanhada clara luz da manh que inundava o quarto - caiu-lhe sobre a testa. Atirou-a para trs, num gesto caracterstico. Mas no respondeu pergunta. Em vez disso, foi afectadamente que disse: - Necessito absolutamente de ver Mr. Higgs. Podes acompanhar-me ao escritrio assim que acabarmos de almoar?O inesperado do pedido surpreendeu-o.- Porqu essa pressa em ver Mr. Higgs?- Negcios- Sorriu sem vontade, estranhamente, pensou ele.- Negcios? O que sabes tu de negcios? Riu para ela, trocista, pegou-lhe numa das mos e tentou pux-la para si, mas ela resistiu com mais firmeza do que a ocasio justificava, meditou ele.- No muito - admitiu ela, em resposta pergunta. - Mas h alguma coisa que eu desejo que Mr. Higgs me faa. Qualquer coisa de importante.- E no me podes dizer? - O tom da voz saiu zombeteiro.- Agora, no.Havia uma tal deciso na sua voz que ele no insistiu. Mas ficou aborrecido. Ento notou, surpreendido, que ela tornara a vestir a saia e casaco atroz que tinham comprado no armazm da cidade mineira.- Porque vestiste essa velharia? -exclamou com um sbito sentimento de irritao. - Isso horrvel, Fran. Pareces precisamente... -Parou. Apesar de tudo, no havia razo para ferir a delicadeza dela.- Uma trapalhona - perguntou. Ele ficou de sobreaviso com o tom tenso e agreste da voz.- Uma trapalhona - riu. - Quem te meteu isso na cabea?Mais uma vez ela no replicou. E, contrariamente ao que esperava, ela no se ofereceu para mudar de vestido, o que era extraordinrio, como ele sentiu. Na vspera ele sabia que ela o teria feito imediatamente; t-lo-ia logo despido para lhe agradar. O seu mais leve desejo teria sido uma ordem. Mas hoje...- Vamos para o almoo - disse.Alguns minutos mais tarde, quando entraram na sala de jantar, Peter ficou satisfeito porque

Dorothy Ashworth no tinha descido ainda. O que ela lhe tinha dito na noite anterior ainda lhe soava nos ouvidos, e no podia esquecer o seu sorriso trocista. Alm disso, estava ressentido fortemente da suspeita que ela levantara de que ele tinha casado com Fran pelo dinheiro. Apesar de tudo, era forado a admitir que ela devia muito razoavelmente ter pensado assim. Principalmente se Fran insistisse em se apresentar to mal vestida e to sem atractivos como nesta manh.Mesmo parte a saia e o casaco - uma coisa que lhe irritava a sensibilidade-, ela tinha indubitavelmente descuidado a sua pessoa.O cabelo despenteado, a face sem p. Parecia... Bem, parecia, na realidade, uma desmazelada trapalhona. Mas fora ela que tinha metido aquilo na cabea.Durante a refeio ele tentou lev-la a dizer-lhe o que era que a conduzia to depressa ao escritrio de Mr. Higgs, mas ela no lhe disse nada. E ele, quando viu que ela no desejava p-lo ao facto do que pretendia, tambm, por sua vez, caiu em silncio aborrecido. Mas no pde deixar de notar que Fran comia tudo com dificuldade. O certo que, se fssemos a ver, ele tambm no tinha apetite.Ao sarem da sala de jantar, deram com Dorothy escrevendo o correio no vestbulo. Parecia deliciosamente fresca naquela quente manh de Vero. Um vestido de desporto, malva, acentuava-lhe o louro do seu todo; a cabea, primorosamente penteada, prendia o sol. "Fantstico: ela est espantosa, " pensou Peter. Era injusto, ele sabia, p-la em contraste com Fran. Fran nunca tinha tido oportunidade de aprender a vestir-se. Mas sentiu-se desgostoso que logo nessa manh ela parecesse, outra, pior.Envergonhou-se um pouco do que pensara e

tambm da sua tentativa de apressar Fran para no serem vistos por Dorothy. Mas Dorothy olhava por cima da carta que escrevia com um sorriso penetrante.- ptimo! como esto os nossos dois pombos esta manh? - A voz era alegre e amvel. Nenhuma transparncia da malcia que mostrara a noite anterior. - To enlevados um no outro que nem reparavam em mim!Peter murmurou alguma coisa polida, mas ininteligvel, e tentou arrastar Fran para fora. Mas, num sbito acesso de amizade, Dorothy colocou a mo na cintura de Fran.- E a jovem noiva? - riu. - Como sente a sua vida nesta manh de Vero?Fran libertou-se prontamente, a face quente de clera. Como se atrevia esta rapariga a pretender ser amvel depois do que ela lhe tinha ouvido a noite passada no terrao?- Nunca pensara que isso lhe interessasse muito - disse friamente. E voltando-lhe as costas, dirigiu-se para a sada.Tanto Peter como Dorothy a olharam surpreendidos. Peter carregou o sobrolho, desgostoso pelo que ele designava um destempero acrianado de Fran. Mas Dorothy ficou muito satisfeita. Ps uma mo no brao de Peter e murmurou: - No de estranhar, julgo que ela tem cimes de mim.Peter murmurou qualquer coisa que soou como "Disparate! ". De qualquer maneira estava visivelmente incomodado quando seguiu Fran para a sada.Andaram um grande pedao a caminho do escritrio do advogado antes de ele se referir ao incidente.- No devias ter dito aquilo a Dorothy disse, ressentido. - Ela pensar que tu s...

- Grosseira - interrompeu Fran. Outra vez aquela nota aguda na sua voz.- Pouco amvel, pelo menos - disse ele brandamente. - Tu sabes, perfeitamente, Fran, que se no gostas dela - e no percebo bem porque no gostas - no necessitas, todavia, de o mostrar to exuberantemente.Fran olhou-o zangada. - Porque no? - perguntou. - Ela no gosta de mim, eu sei. No melhor, portanto, ser franca? O pai sempre me disse que s os doidos no eram leais nos seus amores e dios. Dei-te a saber que gostava de ti... - Parou. Um leve rubor subiu-lhe ao rosto, como se as palavras lhe tivessem sado sem querer. Mas pouco depois continuou resolutamente - Porque no seria igualmente franca com esta rapariga, que detesto?Peter sorriu, cansado. - Suponho que tens toda a razo, teoricamente, mas na prtica no de aconselhar isso. Se todos fossem to francos como dizes, a sociedade cairia como um balo vazio. Cada um teria de procurar uma caverna privativa e a viver s, num esplndido isolamento.Entretanto tinham chegado ao edifcio onde se instalara a firma Higgs, Gullam & Wilson. Mr. Higgs recebeu-os calorosamente, mas o seu entusiasmo esmoreceu um tanto ao ver que o desgosto se espelhava nitidamente na face de Fran. O que teria feito aquele cavalheiro para a magoar assim? com a breca, se o jovem Kelway era o responsvel, devia pensar, e bem, que a rapariga lhe tinha levado uma fortuna. Depois de Mr. Higgs se ter certificado de que estavam confortvelmente instalados, Fran foi directamente ao assunto. -Julgo que me disse ontem, Mr. Higgs, que meu av me deixou uma elevada quantia.- Aproximadamente meio milho de dlares.

- A voz do homenzinho reflectia uma nota receosa.Fran assentiu e ficou um momento em silncio. Ento disse claramente: - Eu nada entendo de negcios, Mr. Higgs, mas pretendo que o senhor coloque metade dessa quantia em nome demeu marido. Desejo que essa metade seja absolutamente dele.Ficaram ambos pasmados. Peter mais ainda. Olhou para Fran como se no quisesse crer no que ouvira.- O que que ests a dizer, Fran - exclamou.Ela fez que o no ouvia e continuou para Mr. Higgs: - Pode fazer-me isso?Mr. Higgs segurou as suas lunetas e limpou-as cuidadosamente com um leno de seda que conservava sempre na manga, num seu gesto caracterstico quando se encontrava embaraado ou impossibilitado de formular imediatamente a resposta precisa. Sob as fartas sobrancelhas relanceou um olhar para Peter. Teria aquele tipo preparado a rapariga para aquilo?- Prezada Mrs. Kelway- disse ento. -Como ltimo amigo de seu pai, e depositrio da sua confiana, penso que devo diligenciar dissuadi-la de semelhante acto. Certamente que aprecio os seus elevados sentimentos. Muito nobres e generosos, evidentemente... Mas prudente deixar sair tanto dinheiro do seu directo domnio? A vida to incerta nos tempos que vo correndo... - Tossiu para encobrir um embarao crescente. - Sendo certo que sente agora que a sua felicidade e a do seu marido vivem intensamente nos dois... -Parou. Decididamente era difcil falar abertamente com o jovem Kelway sentado ali, na frente deles. Enrugou a

testa e aclarou a garganta com um pigarro, mas Fran interrompeu-o.- Sei o que hei-de fazer, Mr. Higgs. Se no quer fazer-me isto que lhe peo, recuso ento tocar seja no que for do meu dinheiro.- Disparate, Fran - exclamou Peter, aborrecido. - Certamente que o aceitas! Mas eu preferia que tu ficasses com todo ele. muito amvel da tua parte, mas eu no preciso do teu dinheiro.- Mas eu julgava que tu devias - Fran voltou para ele os olhos cinzentos inocentes.Peter corou. De facto era verdade, mas ficou admirado, sem saber como Fran o tinha descoberto. Na presena de Mr. Higgs, porm, tentou rir com o caso. - Um ingls desde a guerra que est sempre em dvida. Eu no pertenceria sociedade se o no estivesse. Passarei tudo isto ptimamente. J estive, antes, em circunstncias idnticas. - E ento, j srio: -Sinceramente, eu desejo que tu no insistas em que fique com o dinheiro.- Mas insisto-Ele ficou admirado coma firmeza que sentiu na voz de Fran. Ento ela voltou-se para Mr. Higgs: - Far tudo o que for necessrio, no assim?Havia ainda mais argumentos, mas, em presena da obstinao de Fran, Peter cedeu e Mr. Higgs teve de se considerar derrotado. De qualquer maneira, sentiu que tinha cumprido com o seu dever. O que ela queria fazer do seu dinheiro no era, absolutamente, da sua conta. E, alm disso, o rapaz era o marido dela."-Suponho-pensava Peter com um certo mau humor, enquanto Fran assinava um documento qualquer - que seria um pateta se no aceitasse o dinheiro. Evidentemente que vem em ptima altura e um tipo um idiota se se pe com atitudes hericas acerca de dinheiro. "Apesar de tudo, no se sentiu satisfeito, e desejou que o advogado no pensasse que tinha sido ele a meter na cabea de Fran aquela idia.Pouco antes de deixarem o escritrio, Mr. Higgs disse cautelosamente:- H um outro assunto acerca do qual necessito de lhe falar, Mrs. Kelway, Refere-se... um. a sua me.- A minha me? - Fran, que j estava meio levantada, sentou-se de novo, e Peter notou que ela tremia levemente. Aparentemente as palavras de Mr. Higgs tinham-na confundido. Mas logo a seguir disse em voz ligeiramente forada: - Ela ainda vive, Mr. Higgs? Nunca soube nada acerca dela.O advogado sorriu. - Se vive, minha prezada cliente. Na realidade, uma das mais populares actrizes de comdia ligeira que Londres hoje possui.- Uma actriz? - exclamou Peter admirado. - Sob que nome representa? T-la-ia eu j visto?- Sem dvida, se por acaso freqentador de teatro - continuou Mr. Higgs. - Representa com o nome de Susan Delaney. Mas na vida privada Lady Hozleton. Casou-se com Sir John alguns anos depois de se ter divorciado de seu pai.O nome de Susan Delaney nada dizia a Fran, mas espantou Peter. - Extraordinrio! -notou.- Porque Susan Delaney quase uma instituio nacional! Fantstico, no ?De facto era fantstico, pensou, muito extraordinrio, descobrir de repente que esta estranha garota com quem ele tinha casado numa pequena cidade mineira do Canad, de quem nada sabia, praticamente, surgisse inesperadamente filha de uma das mais clebres actrizes. inglesas. Susan Delaney j no era muito nova, pensou, no podia ser, desde que Fran era sua filha. Mas mantinha ainda a sua espantosa popularidade. Quando ia a Londres, freqentemente a ia ver representar. Era uma das poucas actrizes que conseguem combinar o bom gosto com um sentimento excelente de comediante.- Poders visit-la logo que chegues a Londres - observou para Fran, pouco depois, ao deixarem o escritrio de Mr. Higgs.- Posso - murmurou ela. - Mas h o pai, como sabes. Ainda que j esteja morto, tenho de o levar em considerao.Sua me... Esquisito, ouvir novas dela depois destes anos todos. Como que um misterioso chamamento atravs duma porta que ela julgava definitivamente cerrada. Sua me era uma actriz que vivia em Londres! Factos surpreendentes que vm vida depois de anos e anos de adormecimento. Susan Delaney, que Peter tinha h pouco tempo visto no palco, era a sua me. - Como... como te parece ela, Peter? - Havia como que uma falta de flego na sua voz.- Atractiva - disse Peter. - Cabelos louros, voz encantadora. No parece ter mais de vinte e sete ou vinte e oito anos, no palco, claro.Fran ficou-se a pensar ainda que se achava incapaz de reconciliar esta nova pintura de sua me com a que seu pai lhe tinha gravado na alma. Como criana, tinha representado a me como uma espcie de mulher estranhamente perversa que, com um simples aceno de mo, tinha voltado o mundo ao pai e a ela. No fora por causa dela, da sua aco, ao deix-los a ambos, quando Fran era ainda um beb, que Milton Steel tinha deixado o mundo e ido viver a sua vida de eremita nas montanhas? Leviana, cruel, egosta... eram os adjectivos que ele sempre usara para descrever a mulher. Agora, depois de tudo isto, Fran no podia deixar de admirar porque tinha ele continuado a am-la.

Porque, intuitivamente, sentia que ele sempre a tinha amado, naquela sua maneira dura, irascvel, ainda quando se enraivecia mais contra ela. Esquisito, aquilo...- Alm disso, - continuou Fran, o brilho ardente do olhar enfraquecido, - no creio que ela tenha interesse em me ver.- Certamente que ter - respondeu Peter, rpido.Mas Fran no se sentia muito certa disso. Se sua me tivesse realmente desejado v-la, no teria tentado comunicar com ela durante todos estes anos?Fran achou difcil compreender os seus sentimentos. No tinha amor a sua me. Como o podia ter, se a no conhecia? Mas, ento, como explicar o estranho sentimento que a dominara quando Mr. Higgs lhe falou dela? Um sentimento penetrante de excitao, que interferiu com a respirao E agora mesmo - quando Peter a descrevia - tinha sentido mais rpidas as suas pulsaes, o interesse agitado, como se alguma coisa h muito tempo presa de repente se soltasse. Antigamente, Fran pensara na me muitas vezes, quando errava pelas montanhas, l ao longe. A pouco e pouco tinha moldado a me dentro dum caracter imaginrio. Mas agora a descrio de Peter tinha afastado tudo. Que ficara?Vagamente, tambm, guardava uma certa amargura contra esta me desconhecida. E isto tinha-se intensificado na noite que correra. Bastante estranho; durante as longas horas que passara acordada, tinha pensado na sua me. Condenara-a. Porque, se sua me nunca a tivesse deixado, encontrar-se-ia ela numa situao to chocante? Ter-se-ia atrevido Dorothy Ashworth a descrev-la como invulgar, malcriada (ainda que isto no era verdade: Milton

Steele tinha sido bastante meticuloso na educao de Fran. Alm disso, ele tinha-lhe ensinado que o seu ntimo era bom)... uma desprezvel trapalhonaIsto trouxe Fran ao presente. A me entrara no ntimo dos seus pensamentos. Questes mais importantes pesavam sobre, si, tais como a das imediatas relaes entre Peter e ela.Pensou ento muito, com intermitncias, a maior parte do dia - depois do almoo e durante a excurso que se lhe seguiu e que Peter fez com ela pela cidade. Por uma vez ou duas se admirou como sua me podia ter achado uma soluo. Ela conhecia o mundo e Fran no. Sentia-se perdida, abandonada, em presena de alguma coisa que estava para alm dela. Peter tinha o direito de lhe pedir submisso s pelo facto de ela ser sua mulher? Ou tinha ela maiores direitos de conservar os seus ideais? Sentiu, com um estranho conhecimento inato, que dar-se-lhe agora seria banir toda a possibilidade de felicidade que porventura ainda pudesse vir a alcanar.Tenazmente abraou-se esperana de que alguma vez Peter a amaria como ela o amava. E ento dar-se-lhe-ia alegremente. Mas, at a, com aquele instinto feroz de alguns dos animais selvagens com que tinha vivido toda a sua vida, no queria que ele lhe tocasse sequer.Mas como poderia explicar tudo isto a Peter? Como comearia a proceder desta maneira? E ele, com a sua filosofia de civilizado, de citadino, compreenderia? No pensaria antes que ela estava a actuar como uma estpida garota, receosa em frente do seu dever de esposa?Estes pensamentos revolviam-se no seu esprito como cobras. E no tinha ainda conseguido encontrar uma soluo quando, naquela

mesma tarde, se sentaram para o ch no terrao do hotel.Havia serenidade e uma temperatura agradvel no recinto vazio que dominava os jardins do hotel. A maior parte dos hspedes j tinha tomado o seu ch e recolhido. Um lusco-fusco esbranquiado espalhava-se em torno. O sol tinha-se j escondido para dar lugar noite. Sombras, como grandes gatos pretos, insinuavam-se pelos recantos pardacentos.Como Fran no estava acostumada, foi Peter quem serviu o ch. Havia esforo visvel entre eles e ambos o sentiam perfeitamente; face a face no sabiam que fazer. Ento Peter, cauteloso, mexendo lentamente o ch, referiu-se ao assunto, que nenhum tinha abordado desde a sada do escritrio de Mr. Higgs.- Ouve, Fran, acerca do teu dinheiro... foi uma coisa muito bonita da tua parte, mas - e no me julgues mal por te dizer isto - eu gostava que no o tivesses feito.- Porqu? - Fran abria os olhos claros, puros, e olhava-o de frente.- bom - hesitou e esmigalhou o po entre os dedos. - Sabes, um homem como que se sente rebaixado de viver do dinheiro da sua mulher.Ela ouviu, e ento disse rapidamente, porque de alguma maneira sentiu que devia saber a verdade. - No foi por isso que casaste comigo, Peter? Porque sabias do dinheiro?Ele sentiu-se como que esbofeteado e ficou-se um momento a olh-la, como no querendo acreditar. Fran notou que ele corava at s fontes.- Tu pensaste isso - ficou-se ainda a olh-la, a voz enrouquecida subitamente. - Meu Deus! Que canalha me deves ter julgado!- Oh, no, Peter - disse ela, rpida, o medo a transparecer. Vira, sem que ele lho dissesse,

que o insultara mortalmente, e no o quisera fazer. S tinha querido saber, e por isso o perguntara to de chofre. -Tu sabes que eu no julgava isso -continuou. - Mas, se o tivesses feito, eu no te recriminava. Eu... eu vejo agora que o pai te forou a casar comigo. Talvez que o tivesse sabido h mais tempo, mas no o queria acreditar. E, assim, tu vs que eu no me posso zangar contigo, se tu somente desejaste o meu dinheiro. - Havia uma nota chocante na sua voz. No olhava para ele, mas para o poente, e sem nada ver.Durante algum tempo Peter no respondeu, com a mo ligeiramente trmula tirou um cigarro da cigarreira e acendeu-o.- Eu no casei contigo por causa do teu dinheiro, Fran -disse depois, na voz serena e calma que se usa para convencer as crianas.- Na realidade, eu no sabia mais acerca disso do que o que tu sabias at termos conhecimento do que Mr. Higgs nos revelou ontem. certo que o teu pai, naquela semi-inconscincia, falou de uma fortuna, mas pensei que o tivesse feito em delrio. Se eu tivesse sonhado que tu eras uma herdeira, garanto-te que no tinha casado contigo. No teria feito uma coisa dessas, conhecendo tu o mundo to pouco como conheces. Outro silncio. O criado veio, sem rudo, e levou o que estava sobre a mesa. - O senhor no deseja mais nada? Peter mandou-o embora.- Estou muito contente - murmurou Fran. quando o criado se afastou. E brilhou-lhe uma lgrima nas plpebras. - Eu... eu no queria acreditar naquilo, Peter.Ele disse lentamente: - No foi de ti, Fran, teres pensado uma coisa dessas.- Ouvi algum dizer... sim, que tinha sido essa a razo por que tinhas casado comigo.

Peter riu. -Ns teremos que nos acostumar a isso, Fran. No sei se por estarmos a viver numa civilizao grosseira, mas a verdade que as pessoas parecem divertir-se em pr o pior que h em tudo quanto se faz.Fran no replicou. Tinha estado a pensar em qualquer coisa mais importante do que o vil metal.Depois disse em voz baixa, como que sufocada: - Ento, se no foi por dinheiro, Peter... porque te casaste comigo? Gostaste de mim... ou foi somente piedade que sentiste? Diz-me a verdade, por favor.

CAPITULO VIEM presena da sua insistncia, Peter no lhe podia mentir. E no se sentia capaz de a iludir com uma resposta evasiva e diplomtica. Sentia que havia alguma coisa de essencialmente perfeito na honestidade de Fran. E viu ento que a admirava mais do que tinha admirado qualquer rapariga em toda a sua vida.- No fcil de explicar, Fran - disse. No olhou para ela enquanto falava. Olhava para baixo e para a ponta do cigarro, que ardia fracamente no crepsculo que os envolvia. - Num momento tive pena de ti. Parecias-me to abandonada e to s. E desejei olhar por ti, fazer-te feliz... Fui muito atrado para ti...- Mas gostas de mim - insistiu ela, com um travo de desespero na voz.De novo Peter ficou em silncio. Pensava, com um sentimento de angstia contra si prprio: "Que Deus me faa am-la. Que Deus o faa... ou ento que eu possa mentir convictamente. Pobre pequena... eu devo ser o pior diabo para ela. "Perante o silncio, foi ela quem respondeu:- Est bem, Peter. J vi que no gostas de mim.

A serenidade triste que lhe sentiu na expresso f-lo vibrar. E achou-se a balbuciar desculpas.- No admira, Fran, ns conhecemo-nos to pouco. Menos de uma semana. O amor no pode ser forado.- No - concordou ela. - O amor no pode ser forado. Ou existe ou... -no terminou.- Quando nos conhecermos melhor - insistiu ele -, no h razo nenhuma para que no nos venhamos a amar. Pelo menos tanto quanto a maior parte dos maridos e mulheres por esse mundo fora.Ela sorriu com tristeza. - Eu gosto de ti, Peter.Peter sentiu na garganta qualquer coisa que o impressionou. Uma sensao de picadas nos olhos, como areia. Inclinou-se sobre a mesa e pegou-lhe na mo morena que ela l deixara abandonada.- Magoei-te, querida... Sabes que me fazes sentir muitssimo bruto?Era quase noite no terrao. As luzes do hotel brilhavam fracamente atravs das frinchas das persianas cadas. Aqui e alm um feixe de luz alaranjado penetrava na escurido. O jardim, em baixo, estava silencioso e prateado.- Como as coisas esto, eu... preferia que ns continussemos como na ltima noite murmurou Fran; o silncio tinha-se tornado desagradvel. - Compreendes, Peter... eu no poderia estar na tua frente... Ainda no!A presso de Peter na sua mo fria aumentou. -Eu julgo que te compreendo, Fran. Camaradas, no ? Talvez esse seja o melhor parentesco...E outra vez caiu um silncio desagradvel.Fran ps-se em p. Tomou uma longa inspirao, como se aquele silncio a tivesse sufocado. - Vou para cima mudar de vestido, Peter.

- A voz era irresoluta. - Assim chegaremos tarde ao jantar.Ele ficou-se a v-la correr pelo terrao e desaparecer nas portas envidraadas. E tornou a sentar-se. Fumou um cigarro e depois outro. Sentia que necessitava disso para acalmar os nervos."Meu Deus! pensou. Que embrulhada... Pobre rapariga, to adorvel. Creio que tudo isto vem da minha tentativa de ser amvel, fazer coisas nobres... Teria sido melhor se eu a tivesse deixado nas montanhas. Pelo menos, ali, ela era feliz. Mas agora no possvel voltar atrs, e o certo que ela no pertence aqui. Foi o diabo... Pergunto a mim mesmo se isto ser melhor em Inglaterra... ou pior? "Um criado saiu e acendeu as luzes, como acto preparatrio para servir o caf e os licores no terrao. O jantar tinha comeado. A orquestra anunciava-o ao atacar um jazz, cujo som veio at Peter com uma insistncia trocista; lamentos de saxofone tambores soluantes tch-tch de pratos; e uma melodia petulante e chorada.Aquilo dava-lhe cabo dos nervos. E ps-se em p.- Bolas para este barulho!... - disse em voz alta, numa expanso rpida.Um riso calmo veio at ele.- Porque ests to irritado, meu querido?De forma nenhuma desejava falar agora a Dorothy com a disposio em que se encontrava, mas no havia possibilidade de fuga. Ela sentou-se-lhe em frente numa cadeira e debruou-se na sua direco. -Peter, preciso de falar contigo. Preciso de te justificar aquilo que te disse a noite passada, o que significava de mim. Desde ento tenho-me sentido um pouco feroz. Eu... Peter, foi para mim um choque vir encontrar-te casado. Vim todo o caminho desde Montrealpara to dizer... -parou. -Ento, quando te encontrei e me disseste, friamente, "desejo-te apresentar minha esposa", foi como se me tivesses batido. E disseste-o como se no fosse nada comigo. Eu parecia ter sido uma mera conquista. Peter, achas que foi amvel?A sua voz abafada e rouca batia-lhe nos tmpanos e propagava-se-lhe aos sentidos. E tinha sempre um estranho efeito hipntico aquela voz - a primeira coisa nela que lhe tinha ferido a ateno.Ela continuava debruada sobre a mesa na direco dele. E a escurido nos seus olhos fazia pensar em lgrimas suspensas." demasiadamente bonita, " pensou ele com um sentimento de receio. "Isto agora no beleza sua. "O vestido era preto, decotado nos ombros, apertado ao corpo, severo na linha. O preto brilhante dava-lhe aos cabelos muito bonitos um relevo esquisito; havia ainda uma qualidade austera no vestido, que a envolvia de pureza.- Admitirei que no sou santa-continuou ela com um sorriso fraco e triste. -Fiquei magoada, e, porque suponho que h qualquer coisa de felino em mim, desejei ferir pelas costas. Desejei feri-los aos dois, a ti e a ela. Desejei fazer sangue. Estava absolutamente enraivecida. Mas isso no me fazia feliz, Peter. Somente miservel. Queria que me perdoasses, se puderes.Ele estava admirado. Nunca na sua vida tinha conhecido Dorothy daquela maneira. E, no seu espanto, esqueceu o comportamento dela na noite anterior. Viu-a outra vez como a rapariga meiga e atractiva que ele tinha amado um ms antes. Amava-a ele ainda? No queria pr a questo. Mas o que ela agora lhe tinha dito despertara o seu sentimento de irritao contra si prprio.

Que complicao ele tinha feito em todas as suas vidas, pensou, aborrecido, com o seu acto impensado, quixotesco, de casar com Fran! Nenhum deles era feliz, nem Dorothy, nem Fran, nem ele prprio... E no conseguia ver uma sada no meio da infernal baralhada.- verdade, Dorothy - assentiu, rpidoCreio que se te tivesse encontrado casada com outra pessoa to rapidamente teria procedido da mesma maneira. Mas, nota, quando casei com Fran pensava que tinhas acabado definitivamente comigo. O pai dela tinha morrido e ela estava s. Aparentemente, nenhuns parentes. E ela uma rapariga adorvel. Meiga e generosa. Eu... eu tinha satisfao em que tu tentasses gostar dela. Ajud-la em certas coisas, se tu quisesses.Sentiu-se corar e meio aborrecido consigo por fazer este pedido. Mas seria ptimo para Fran ter uma rapariga amiga como Dorothy, que conhecesse o mundo e a pudesse aconselhar com cuidado. De cada vez que ele o tentava fazer sentia-se um burro tolo.Dorothy no respondeu imediatamente. Riu-se, mas no com satisfao. L dentro a orquestra tocava uma melodia negra sentimental; chorava e vibrava; esperanas perdidas; desejos frustrados; noites descendo sobre a velha plantao; estalos de chicotes cestos de algodo...- Tentarei - disse por fim; acentuara-se-lhe a nota rouca na voz. - Mas no tarefa fcil. Creio que uma rapariga culpa sempre a outra que se mete no meio e sente uma certa amargura quando na sua presena, o que justificvel. Mas tentarei ajud-la, Peter, visto que mo pedes. E mais tarde, de qualquer maneira, isso no ser to difcil. Quando ns estivermos de

volta para Inglaterra. Quando embarcas, Peter?- Sairemos daqui amanh. O navio parte de Montreal daqui a quatro dias. De alguma maneira, Dorothy, no tenho pena nenhuma de voltar.- Sim, eu compreendo-te. - O sorriso viera cheio de recordaes. - Tanto para um como para outro, isto, afinal, aqui, foi Cu... e Inferno ao mesmo tempo. Em Inglaterra podemos sentir o ar puro outra vez.Ele suspirou. - Espero que sim... -e ofereceu-lhe um cigarro. Ela aceitou-o e, quando ele lhe deu um fsforo, perguntou:- Voltas imediatamente para a tua herdade de Gloucester?Ele acenou com a cabea. - Devo ir. Tenho l um monto de coisas para fazer. Alm disso, parece-me que Fran estar mais satisfeita no campo, dada a analogia com a vida que tem levado aqui, no ?Dorothy sorriu estranhamente, um sorriso que a levou a franzir a pele no rosto. - H diferena entre campo e condado, meu velho. Tu pertences ao condado. Como se ir dar Mrs. Kelway com os teus amigos?Peter franziu a testa. - No vejo a razo por que eles a no devero receber bem. Em pouco tempo ela aprender as suas maneiras. Alm de que, se eles no se quiserem dar com ela... bom, podem muito bem ir para o diabo!Dorothy sorriu. Inclinando-se para trs, deixou sair o fumo em espirais para o tecto.- Nobres -sentimentos, Peter; contudo no assim to fcil afastares-te das pessoas com quem tens convivido toda a tua vida. Mas talvez que eu possa auxili-los a ambos a. Minha tia, Lady Coldston, conheces? vive perto da tua herdade. Eu j aceitei um convite para ir

passar o resto do Vero com ela quando voltar, julgo que posso ajudar Mrs. Kelway ento a habituar-se aos costumes de tudo aquilo.- Isso bonito da tua parte, Dorothy. - Peter olhou-a grato, na realidade. - Se pudesses, isso tiraria uma grande carga do meu esprito. Um homem no conhece muito os usos das relaes sociais, e Fran inexperiente. Obrigado por tudo... Agora, se me desculpas, vou-me arranjar. Fran deve estar espera.Ambos se levantaram ao mesmo tempo e seguiram varanda fora. Mas quando chegaram ao vestbulo, Fran j ali estava, olhando volta, admirada com o que teria acontecido a Peter.Logo que a lobrigou, Peter sentiu que nunca a tinha visto antes to bonita. Vinha com um vestido que tinham comprado juntos na vspera, de georgette avermelhado. A cor dava-lhe um colorido rico aos cabelos curtos, castanhos; o vestido moldava-a e destacava-lhe a elegncia e flexibilidade. Para a noite, assim parecia, tinha-se preocupado com o seu vestido. Evidentemente que o sentimento de rancor que, naquela manh, a tinha levado a pr o velho fato de saia e casaco, tinha passado.Peter dirigiu-se-lhe e deu-lhe o brao.- Desculpa estar atrasado, querida. Ainda me no arranjei. Mas vou l acima e estarei de volta num momento.- Porque no toma um cocktail comigo enquanto Peter vai l acima, Mrs. Kelway? - A voz de Dorothy estava muito amvel quando veio para junto deles, como se tivesse esquecido completamente as inequvocas palavras de Fran naquela manh.- Esplndido. - Peter simulou um entusiasmo que no sentia. - Mand-los-ei antes de ir para cima. O que h-de ser: Martini ou Manhattan?

- No sei - disse Fran - nunca provei isso.- Voc ptima! - disse Dorothy rindo.- No quer criar alentos? Penso que podias pedir... um Manhattan para mim e talvez um Bonx para Mrs. Kelway, j que a primeira vez que mergulha no Inferno!Peter foi dar ordem para servirem e apressou-se a subir as escadas. No tinha a menor idia de qual seria o resultado do convite de Dorothy. Mas tinha uma f masculina de que tomarem um cocktail juntas devia facilitar as coisas. De qualquer forma, esperava que Fran no fosse agreste. "Bonito da parte de Dorothy ter tomado a iniciativa de compor tudo, " pensava enquanto se barbeava.Em baixo Dorothy saboreava o seu Manhattan sem saber como comear. Ainda que para si dissesse que aquela garota no era adversria para ela, no se sentia vontade na frente de Fran.- No sei porque no havemos de ser amigas, Mrs. Kelway - tenteou, enquanto mexia o cocktail no copo com a pequenssima vareta pontiaguda. - Seria muito mais sensvel... e agradvel, pois no verdade?Fran voltou a cabea e olhou para Dorothy com olhos vagos e admirados.- Como podemos ns ser amigas - perguntou. - Eu sei que voc no gosta de mim.Dorothy esboou um sorriso. - Disparate, minha querida. Porque pensa isso?- Porque a ouvi falar ontem noite com a sua amiga - disse Fran com simplicidade.- Voc chamou-me esquisita e mal educada. Diria isso a algum de quem gostasse?Dorothy fez-se vermelha at s orelhas, escandalosamente. Pela primeira vez na sua vida no soube que replicar. Por fim resolveu-se:

- As mulheres falam de mais, Mrs. Kelway, e voc no deve acreditar em tudo o que elas dizem. Tenho pena de a ter magoado nos seus sentimentos. Mas ontem noite estava enganada. Fui de facto pouco amvel... mas no verdade. Eu estava irresponsvel pelo que dizia ou fazia. Voc compreende, confesso-lhe francamente o seu casamento com Peter desorientou-me. Eu gostei dele... imenso.- Calculava isso - disse Fran. - Sabia tambm que ele gostava de si.Dorothy olhou-a, surpreendida. - Como pde saber isso?- Disse-mo na primeira manh em que nos encontrmos nas montanhas.- Ah - murmurou Dorothy.A pausa que se seguiu foi incmoda. Dorothy inclinou a cabea para trs e deitou fora o seu cocktail. Fran bebeu lentamente o seu e ps o copo atrs de si, sobre a mesa. Desejava que Peter viesse. No via vantagem nisto e no estava satisfeita.- Seja como for, no pode esquecer tudo isso, Mrs. Kelway - interrogou Dorothy. - Voc casou com Peter e isso acabou com tudo. Mas eu sei que Peter gostava que ns fssemos amigas. Dizia-me isso precisamente h bocado, do terrao.- Ele disse isso? -perguntou Fran. Dorothy fez que sim com a cabea. - Esqueamos o passado e apertemos a mo, Mrs. Kelway! E estendeu-lhe a mo sobre a mesa, macia como a de uma criana e delicada. Uma mo que dispensava anis que a valorizassem...Fran ainda hesitou. Mas era Peter que o desejava... Fosse como fosse, o certo que no gostava de apertar a mo daquela rapariga. Mas j tinha visto que havia muitas coisas que as pessoas tinham de fazer neste estranho novo

mundo e outras que no deviam, mesmo que gostassem.A chegada de Peter nesse instante foi como que uma bno divina. Fran sentia que a situao se estava tornando intolervel e Dorothy, por seu lado, via que as coisas no tinham corrido como ela esperava. Antigamente orgulhava-se de se desenvencilhar de situaes como esta. Mas havia uma certa distncia entre ela e Fran que lhe parecia intransponvel.Peter, por sua vez, ficou satisfeito quando viu as duas raparigas a apertarem as mos. Alegrou-se por ver que Fran parecia mais razovel nessa noite.- Cena tocante, no , Peter? - Dorothy olhava-o com um sorriso embaraado. - Decidimos depor as armas, Mrs. Kelway e eu.- Isso ptimo- sorria. Ento, como o silncio ameaasse aumentar: - Perdoem-me bater uma nota mundana, mas estou cheio de fome. Se no nos apressarmos a jantar, no encontraremos para comer seno baquetas de tambor e nervos.Peter sentiu-se com um esprito razovel quando se sentou para jantar. Mandou que servissem champanhe. Quando tomava a primeira taa, voltou-se para o lado de Fran.- Vestste-te muito bem, querida. Ests linda com esse vestido castanho. E combina com os teus cabelos.Fran corou e tentou sorrir-Ainda bem. Eu desejo agradar-te, Peter.Ele segurou-lhe uma das mos sob a mesa.- E conseguiste, Fran. -Pouco depois continuou: - Fiquei satisfeito por teres feito aquilo com a Dorothy. No seria delicado se o notivesses feito. Ela vai de visita a sua tia, Lady Coldston, que mora prximo de mim... Sabes, Fran, ela falou h pouco de ti com muito respeito. E prometeu introduzir-te na sociedade de l, depois de nos termos instalado.Fran no comentou. Ouvia. Mas, quando olhou para a sala onde Dorothy conversava animadamente com Mrs. Hempton, pensou ferozmente:"Porque no nos deixa ss? Como podemos ns ser felizes, Peter e eu, se a sua presena sempre lhe faz lembrar que podia ter casado com ela se no tivesse sido para mim "

CAPTULO VIIA tarde estava invulgarmente quente para aestao, j to adiantada. O ltimo assalto feroz do Vero antes do Outono entrara com aquelas tardes, douradas e alaranjadas, com as folhas a estalar sob os ps, e enubladas. sombra de algumas rvores, Fran segurou a gua para a sofrear e apeou-se. Jim Marlowe,o jovem moo de estrebaria que andava a cavalo com ela, no chegou a tempo de a auxiliar.- Em Inglaterra no se pode pensar sequer que uma rapariga possa saltar de um cavalo sem que aparea logo uma dzia de homens para a ajudar.O rapaz sorriu. Um sorriso agradvel, como alis tudo em Jim Marlowe.- Na realidade, as raparigas aqui tm uma redoma. E porque a no teriam, se so felizes assim Apesar de tudo, a histria da sua fraqueza fsica a nica coisa que se conserva a sustentar o nosso orgulho masculino.Fran tirou o chapu de feltro castanho e atirou-se para o cho. Os cabelos estavam cortados curtos e deixavam ver os pequenos lobos arredondados das orelhas. Estava muitssimobem no seu vestido castanho de montar, com uma blusa branca de seda e botas altas de coiro.Entregou as rdeas da gua castanha a Jim.- Vou apanhar algumas destas folhas. So lindas, no so? Gosto mais delas do que das flores dentro de casa. As flores so muito convencionais, coisas bem educadas, enquanto que estas folhas me fazem lembrar a minha terra.Logo a seguir, com a agilidade de um garoto, comeou a trepar rvore.- No, Mrs. Kelway, deixe-me ir busc-las para si - protestou Jim.O rostozinho moreno espreitou l de cima para o rapaz de entre a ramaria.- Mas eu gosto de trepar. Somente em casa que me no atrevo. Fi-lo uma vez e a idosa Lady Coldston chegou para o ch quando eu estava empoleirada num dos ramos. Deixei-me cair quase em cima da cabea da senhora. Gostava que voc visse a careta que ela fez! Quase morri a rir, mas Peter ficou zangado. Disse que eu no era suficientemente digna para uma jovem matrona inglesa. Alm disso os jardneiros podiam ter-me visto. Que diferena me fazia se os jardineiros me tivessem visto? Eu tenho trepado s rvores toda a minha vida.Jim Marlowe riu. Mas havia simultaneamente admirao e respeito no seu riso. Era um rapaz bem parecido, cabelos castanhos claros, olhos de um azul profundo, espadado. Os comentrios nos aposentos da criadagem consistiam em perguntar por que razo um rapaz indubitavelmente bem educado teria tomado temporariamente o lugar de criado. Uma certa desconfiana marcava as relaes de todos os outros criados para com ele. No era por culpa de Jim. Ele tentava ser camarada, mas em

Helham Court no o aceitaram como um deles. Fran era a nica pessoa amiga que tinha.- Gostaria de ter visto a cara da velha Lady Coldston - disse com gosto.- E deu um grito - disse Fran enquanto deixava cair ramos de folhas verdes, douradas nas pontas, para ele agarrar. - Mas ela faz sempre caretas a tudo o que eu fao ou digo. Penso at que o seu nico divertimento. Seja como for, ela deve divertir-se com isso. De outra forma, por que razo torna ela c? Ultimamente tem c vindo muito. Ela e aquela rapariga... - No acabou a frase. Apesar de tudo, Dorothy e a tia eram amigas de Peter. De si para si pensava que, se ele gostava da companhia delas, ela no tinha nada com isso. Mas era a sua presena em Helham Court que a levava a sair naquelas compridas tardes em passeios a cavalo com o jovem moo Jim Marlowe.Havia j dois meses que Peter trouxera pela primeira vez Fran para a sua casa de Gloucester. Helham Court estava situada num alto, em Cotswolds. O panorama era surpreendente. Montes cobertos de bosques ondulantes estendiam-se at onde o Severn atravessa a plancie, como uma afiada espada rutilante. Fran tinha ficado encantada com tudo. E gostou tambm do velho casaro de pedra de Cotswolds, que se tinha conservado de p no obstante as intempries dos sculos.- Gosto da tua casa, Peter - tinha-lhe dito, timidamente, a primeira vez que ele a tinha levado a v-la. - uma maravilha.- A nossa casa!... - tinha ele corrigido amvelmente, inclinando-se para a beijar. Quero que sejas feliz aqui, querida.- Serei - prometeu ela. - Espera e vers.E podia t-lo sido se no fosse o condado e a crescente absoro de Peter nos negcios da

casa. O dinheiro de Fran tinha sido uma bno divina. Levou-o a instalar melhoramentos modernos de que a herdade estava necessitada: utenslios de lavoura, as mais recentes chocadeiras, incubadouras e coisas no gnero. Conquanto odiasse gastar o dinheiro que Fran tinha to generosamente posto em seu nome, no hesitava em o usar em melhoramentos da casa. Para si pensava que era justificado, desde que a velha herdade era agora dos dois. Mas todas estas ocupaes levavam tempo considervel.Tirando as refeies, raramente via Fran, e mesmo nessa altura quase