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UMA VENDEDORA DE RECURSOS Texto de Gastão Tojeiro

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UMA

VENDEDORA

DE

RECURSOS

Texto de Gastão Tojeiro

PERSONAGENS

Bernardina – Vendedora de linhos

Alcides – Advogado

Gilberta – Esposa de Alcides

CENÁRIO

Sala elegante num andar superior. Janela ao fundo, que

dá para a rua. Portas laterais. Pequena mesa, à direita,

tendo em cada lado uma cadeira e em cima um

aparelho telefônico. Conjunto de sofá e cadeiras, à

esquerda. Tapete, quadros, etc. A ação se passa pela

manhã.

CENA 1

ALCIDES (Em pijama, junto à porta. Fala para fora) – Sim,

encantadora Olga... Espera-me no meu escritório... Das onze às

doze. Iremos almoçar juntos... Adeus. (Atira-lhe um beijo. Fica

ainda um instante, como que esperando que a pessoa com

quem falou, acabe de descer a escada. Vem ao centro da cena,

radiante.) Que deliciosa aventura! E que bela tarde vou ter hoje!

(Vai à janela e faz sinais de despedida para fora. Pausa. Batem

palmas, do lado de fora. Voltando-se.) Quem será? (Vai ver

quem é. Falando para fora.) Tenha a bondade de subir, minha

senhora...

BERNARDINA (Sobraçando uma pasta de couro, aparece à

porta) – É aqui a residência do doutor Alcides Silvado?...

ALCIDES – Um seu criado... Que deseja?

BERNARDINA – Dá licença. (Entra e toma o centro da cena.).

ALCIDES (Constrangido) – Não repara eu estar neste estado... de

pijama.

BERNARDINA – Eu reparar? Ora essa! É tão natural hoje em dia

os homens usarem trajes femininos...

ALCIDES – Perdão, minha senhora! O pijama foi sempre de uso

masculino. As mulheres é que deram para usá-lo agora, imitando os

homens.

BERNARDINA – Já começa o senhor a censurar as mulheres.

Confesso que antipatizo com os homens que falam mal das

mulheres.

ALCIDES – Oh, minha senhora! Creia que sou incapaz...

BERNARDINA – É inútil desculpar-se. Visto não ter tido ainda a

delicadeza de mandar-me sentar, sento-me. (Senta-se na cadeira

à esquerda da mesa.).

ALCIDES – Ia já convidá-la a sentar-se... (À parte.) E essa, hein?

(Para ela.) Com sua licença... (Senta-se na cadeira à direita da

mesa.).

BERNARDINA – À vontade. (Reparando numa carteira de

mulher, que está em cima da mesa.) Que linda carteira! (Apanha-

a e examina-a.).

ALCIDES (Surpreso. À parte) – Oh, diabo! A Olga esqueceu a

carteira...

BERNARDINA – Sua senhora tem bom gosto. Que perfume é

esse?...

ALCIDES – Este perfume é... (Noutro tom, já contrariado.) Mas...

A que devo o prazer de sua visita?

BERNARDINA – Chamo-me Bernardina Isqueiro.

ALCIDES – Bernardina Isqueiro. É um nome... Como direi:

cintilante!

BERNARDINA – A família dos Isqueiros sempre foi cintilante.

ALCIDES – Acredito. Mas... O objetivo de sua visita.

BERNARDINA – Vim procurá-lo em sua casa por causa de um

negócio importante.

ALCIDES – Eu não costumo atender os meus clientes em casa,

pois para esse fim tenho um escritório, à Rua do Uruguaiana, 845,

onde sou, todos os dias, encontrado das 12 às 16 horas.

BERNARDINA – Já sei. Mas o negócio para que o procuro deve, de

preferência, ser tratado em sua residência.

ALCIDES – Não compreendo bem, minha senhora. Enfim, queira

explicar-se.

BERNARDIN (Com importância) – Sou representante da grande

casa importadora de linhos Frit’z, Rambles, Limitada.

ALCIDES (Com interesse) – Ah, sim... Já sei: trata-se de alguma

falência em que sua casa é credora e vem encarregar-me de agir.

Faz bem em procurar-me porque eu, como advogado, especializei-

me em falências...

BERNARDINA – Ih, como o senhor é imaginoso! Não é nada disso.

Minha casa só vende a dinheiro.

ALCIDES – Trata-se então de algum contrato...

BERNARDINA – Absolutamente! Eu é que sabendo ser o senhor

um homem de bom gosto e bem instalado na vida, resolvi vender-

lhe uma partida de linhos...

ALCIDES (Decepcionado) – Ora! Quer dizer que veio a esta hora

da manhã procurar-me em casa, para vender uma partida de

linhos...

BERNARDINA (Abrindo a pasta) – Perfeitamente. (Tirando de

dentro da pasta guardanapos, amostras de linhos, etc.) É puro

linho belga... O que há de mais fino. Examine a qualidade deste

artigo.

ALCIDES (Levantando-se) – Não me interessa ver.

BERNARDINA – Como não lhe interessa ver? O senhor, ao que

parece, é um cavalheiro de fino trato.

ALCIDES – Orgulho-me de o ser.

BERNARDINA – Pois então fique com uma partida deste linho.

Compõe-se de uma dúzia de guardanapos e toalha para mesa, uma

peça de cambraia, uma dúzia de lenços, uma peça de linho para

fronhas e lençóis... E aproveite, porque enquanto durar a guerra

não vem mais.

ALCIDES (Contrariado) – É inútil insistir, porque não me seduz a

compra.

BERNARDINA – Desse linho o senhor pode mandar fazer mais

saias, até cuecas...

ALCIDES – Não uso.

BERNARDINA (Admirada) – O senhor não usa cuecas?

ALCIDES – Não uso cuecas de linho. Para não perdermos mais

tempo, minha senhora: pode guardar as suas amostras, que não lhe

compro a partida de linho.

BERNARDINA – Custam-lhe apenas dois mil contos e quinhentos.

ALCIDES – Pior ainda. Onde vou arranjar essa importância, para

empregá-la na aquisição de artigos supérfluos?

BERNARDINA – Ora, meu amigo: não seja avarento! Estou

perfeitamente informada de que o senhor tem 26 mil contos no City

Bank, 30 mil contos no Banco do Brasil, 8 mil contos na Caixa...

ALCIDES (Interrompendo-a zangado) – Basta! Como é que a

senhora está tão bem informada da minha vida?

BERNARDINA – Antes de oferecer a mercadoria aos fregueses

costumo informar-me antes.

ALCIDES – Faz muito mal! Isso é um delito previsto no Código!

Com que direito a senhora investiga a minha vida particular?

BERNARDINA (Guardando as amostras na pasta) – Para saber

se o senhor estava em condições de dispor de dois mil contos e

quinhentos.

ALCIDES (Exaltado) – Fique sabendo que isso é um caso de

polícia!

BERNARDINA (Levantando-se) – Caso de polícia é o senhor

aferrolhar o dinheiro nos bancos, em vez de movimentá-lo.

ALCIDES – Não é da sua conta. Pago imposto de renda...

BERNARDINA – Isso é que eu não sei...

ALCIDES – Sabe de uma coisa? Retire-se antes que...

BERNARDINA – O senhor é positivamente um homem intratável.

Quero falar com sua esposa.

ALCIDES – Não está em casa, mas mesmo que estivesse não

adiantava nada.

BERNARDINA – Tenho a certeza de que se eu falar com sua

esposa, vendo-lhe a partida de linho.

ALCIDES – Engana-se. Na minha casa quem manda sou eu.

Favoreça-me com sua ausência, que tenho mais o que fazer.

BERNARDINA – O senhor é de uma grosseria...

ALCIDES – Como a senhora é irritante! Vamos, saia!

BERNARDINA – Voltarei depois para falar com sua mulher.

ALCIDES – Não volte que eu atiro-a pela escada abaixo!

BERNARDINA – Não adianta ameaçar. Resolvi vender-lhe uma

partida de linho por dois contos e quinhentos réis e hei de vender.

ALCIDES – Será mais fácil o Pão de Açúcar esfarelar-se.

BERNARDINA – Diz isso porque não me conhece. Fique sabendo

que sou uma vendedora de recursos.

ALCIDES – E eu sou advogado. (Impelindo-a.) Trate de dar o fora.

BERNARDINA – Não me empurre seu advogado de meia tigela.

ALCIDES (Fora de si) – Saia antes que eu...

BERNARDINA – Saio, mas volto. (Sai.).

CENA 2

ALCIDES – Vá para o diabo que a carregue! (Fechando a porta.)

Olha que sempre me acontece cada uma! Depois dos deliciosos

momentos em que passei conversando com Olga, surge essa bruxa

para me pôr de mau humor. (Reparando a carteira que tem na

mão.) É verdade: a carteira que a Olga esqueceu... Levo-lha logo.

Vou escondê-la para que a Gilberta não a veja... (Sai.).

GILBERTA (Que vem da rua, de chapéu, etc. entra trazendo um

pequeno embrulho) – Ninguém. (Pousa o embrulho em cima da

mesa.) Onde estará o Alcides?... (Vai à esquerda e à direita

procurando.) Não está... Onde se meteu ele? (Gritando para

fora.) Alcides! Alcides!

ALCIDES (Entra com um grande livro aberto, como se

estivesse estado a ler) – Que é meu amor?

GILBERTA (Voltando-se) – Estavas no escritório?

ALCIDES – Estava consultando este livro...

GILBERTA – Estudas muito... (Tirando o chapéu, que põe em

cima de um móvel.).

ALCIDES – É preciso, queridinha. (Beija-lhe.) Como está tua mãe?

GILBERTA – Está boa. Mandou-te lembranças. Olha: mandou-te

também esses biscoitos feitos por ela e dos quais tanto gostas.

(Indica o embrulho que está em cima da mesa.).

ALCIDES (Irônico) – Como é boa a tua mãezinha!

GILBERTA – E não digas isso em ar de troça, porque ela gosta

mesmo de você.

ALCIDES (Sentando-se no sofá.) - Então eu não sei...

GILBERTA (Sentando-se ao lado dele) – E eu? Cada dia que

passa mais te quero! (Abraça-o e beija-o.).

ALCIDES – Como voltaste terna do passeio à casa de tua mãe!

GILBERTA – É que li hoje num jornal sobre aquela mulher que se

suicidou por ter sido abandonada pelo marido. Que miserável!

Tinhas coragem de abandonar-me, Alcides?

ALCIDES – Mas que idéia estapafúrdia a estas horas da manhã,

Gilberta! Nem sequer em pensamento eu te abandono um só

segundo. Todo o meu mundo está circunscrito em ti!

GILBERTA – Olha só o fingido! (Noutro tom.) A criada ainda não

voltou das compras?

ALCIDES – Ora! Bem sabes que não. Tu deste-lhe ordens para

voltar só depois das dez horas...

GILBERTA – Não lhe dei tal ordem.

ALCIDES – Deste, sim. Saíste para visitar tua mãe e tiveste receio

de que a criada ficasse sozinha em casa, comigo...

GILBERTA – Oh, Alcides!

ALCIDES – Então não lhe conheço, ciumenta?

GILBERTO – Espertalhão! (Beija-o e levanta-se.) Ela não deve

demorar. (Apanhando o embrulho de cima da mesa.) Vou levar

estes biscoitos lá pra dentro. (Vai sair. Lembrando-se, retrocede.)

Veio alguém durante o tempo em que estive fora?...

ALCIDES – Isto é: esteve aqui uma... uma velha, e por sinal muito

atrevida, que quis vender-me à força uma partida de linho.

GILBERTA – Não compraste?

ALCIDES (Levantando-se) – Decerto que não. Sabes quanto

custava? Apenas dois mil contos e quinhentos.

GILBERTA – Que horror! E depois, para que comprar linho? Temos

tanta roupa branca. Vou levar os biscoitos...

ALCIDES – Vai.

GILBERTA (Dirige-se à saída. Voltando) – Ô Alcides: essa mulher

era mesmo velha?

ALCIDES – Velha e... atrevida!

GILBERTA – Ah! Vou levar os biscoitos.

ALCIDES – Vai.

GILBERTA (Voltando da porta) – Ô Alcides: és capaz de jurar que

era velha?

ALCIDES – Oh, Gilberta! Com efeito!... Duvidas da minha palavra?

GILBERTA – Não. É que podes estar dizendo que era uma velha

só com receio que eu fique com ciúmes...

ALCIDES – Mas se eu disse a verdade. A mulher é velha... super-

velha. Olha: talvez tenhas ocasião de vê-la. Ela disse que voltava

para te convencer a comprar a partida de linho...

GILBERTA – Não compro, não!

ALCIDES – Corre com ela?

GILBERTA – Corro... Vou levar os biscoitos.

ALCIDES – Leva minha filha, que os biscoitos devem estar

impacientes.

GILBERTA (Dirige-se à saída. Voltando) – Ela voltará mesmo?

ALCIDES (Alterando-se) – Oh, é demais! Se eu soubesse, tinha

dito para ela esperar por ti. Que falta de confiança!

GILBERTA – Não é preciso ficares zangado! Também não se pode

perguntar nada. (Sai.).

CENA 3

ALCIDES – Se o raio da mulher aparece aqui na minha ausência,

ela é capaz de comprar o linho...

BERNARDINA (Aparecendo nesse momento) – Pode atender-

me?

ALCIDES (Voltando-se e dando com ela, furioso) – Não é o que

eu digo? Falei no mau, prepararei o pau...

BERNARDINA – Preparar o pau para quem?

ALCIDES – Para a senhora mesma, se for preciso. Vamos a saber

para que voltou?

BERNARDINA – Informaram-me que sua esposa já se achava em

casa...

ALCIDES – Intimo-a que não se informe de mais nada que diga

respeito à minha casa!

BERNARDINA – Quando é que o senhor se resolve a ser delicado?

ALCIDES – Quando a senhora desaparecer.

BERNARDINA – Antes de vender a partida de linho, acho isso um

pouco difícil.

ALCIDES – Certamente não será difícil se eu chamar a polícia...

BERNARDINA – Estamos aqui a perder palavras inúteis. Chame

sua mulher e estou certa de que hei de entender-me com ela.

ALCIDES – Minha mulher não está em casa.

BERNARDINA – Mas para que há de ser mentiroso? (Indicando o

chapéu de Gilberta que está em cima do móvel.) De quem é

aquele chapéu?

ALCIDES – A senhora faz perder a paciência a um santo! Vá

embora antes que eu pratique um desatino!

BERNARDINA (Arrogante) – Ameaça-me? Atreva-se a tocar-me

com um dedo para ver o que lhe sucede: sabe com quem está

falando? Pertenço à família dos Isqueiros.

ALCIDES – Decididamente tenho que ir dar parte à polícia!

BERNARDINA – Compre-me a partida do linho e está tudo

acabado.

ALCIDES (Resoluto) – A senhora vai ou não vai embora?

BERNARDINA – Vou, mas volto para falar com sua mulher. Eu já

lhe disse e repito: sou uma vendedora de recursos.

ALCIDES – Pois com todos os seus recursos, nada conseguirá!

Saia por bem, se não quer sair por mal!

BERNARDINA – Saio, mas volto. (Sai.).

CENA 4

ALCIDES (Possesso) – Se essa mulher voltar mato-a! (Passeia

furioso.) Mato-a, naturalmente, prendem-me. Serei julgado, mas

saberei defender-me. (Como se estivesse perante o Tribunal,

com largos gestos.) Senhor Juiz, senhores jurados: se eu matei

essa mulher...

GILBERTA (Entrando nesse momento, assustada) – Que mulher

tu mataste?

ALCIDES – A velha dos linhos...

GILBERTA (Horrorizada) – Mataste a velha, desgraçado?

ALCIDES – Estás doida? Não matei ninguém.

GILBERTA – Como é que estás dizendo que a mataste?

ALCIDES – Estou ensaiando a minha defesa perante o Tribunal,

porque acabo matando-a.

GILBERTA – Não penses nisso! Deixa lá a pobre mulher...

ALCIDES – Mas se eu a proibi de voltar, e ela voltou.

GILBERTA – Ela voltou?

ALCIDES – Saiu neste momento...

GILBERTA – E por que não me chamaste que eu queria vê-la?

ALCIDES – Se ela te visse, vendia-te o linho.

GILBERTA – Eu não disse que não comprava?

ALCIDES – Não terias força para resistir-lhe. O raio da mulher é de

uma persistência diabólica.

GILBERTA – Eu queria vê-la... Para mim, essa mulher é moça e

bonita...

ALCIDES – Ainda mais essa! Pois bem, quando essa mulher voltar

eu escondo-me e tu te certificarás da verdade. Estás satisfeita?

GILBERTA – Estou.

ALCIDES – Mas não lhe compres a partida de linho. Depois de

veres à tua vontade, eu apareço e mato-a.

GILBERTA (Rindo) – Como estás feroz!

ALCIDES – Pudera, não! Ela é velha! Estás a desconfiar de mim?

GILBERTA – Bem, acalma-te que isso não tem importância. E a

criada sem vir e já é quase dez e meia.

ALCIDES – Oh, diabo! Dez e meia? Vou vestir-me que preciso sair

já.

GILBERTA – Sair já? Costumas a sair sempre as onze e meia,

depois do almoço...

ALCIDES – Mas hoje tenho necessidade de sair mais cedo.

GILBERTA – Aonde vais?

ALCIDES – Trabalhar.

GILBERTA – A criada ainda não voltou... Só às onze horas é que

pode o almoço estar pronto.

ALCIDES – Almoçarei num restaurante qualquer.

GILBERTA – Mas para que almoçar no restaurante, tendo almoço

em casa?

ALCIDES – Não posso esperar até as onze horas. Vou sair já.

GILBERTA – Tens assim tanta pressa em sair que não podes

esperar mais um pouco? Que vais fazer?

ALCIDES (Exaltando-se) – Isso também é demais! Não posso

estar dando satisfações de tudo que faço...

GILBERTA – Ah! Tu me ocultas o que faz? (Senta-se no sofá,

chorosa.) Com que desprezo me tratas...

ALCIDES (Furioso, mas contendo-se) – Ô Gilbertinha, para que

me desgostas?

GILBERTA – Não te mereço consideração alguma! É como se

fosse uma gatinha de estimação.

ALCIDES (Acariciando-a) – Não diga isso! O que vou fazer não te

interessa. São afazeres concernentes à minha profissão.

GILBERTA – E que mal faz que eu saiba?

ALCIDES – Nenhum. Tenho que ir à casa de um colega, para

convidá-lo a auxiliar-me na defesa de uma causa que me confiaram.

GILBERTA – É alguma questão de mulher?

ALCIDES – Em tudo que eu faço vês mulheres. Nessa questão não

há nem cheiro de mulher. É um sujeito que quer avançar nas terras

de outro, que me encarregou de defender os seus interesses. Os

instigantes são homens, eu sou homem, o meu colega com quem

vou falar é homem, o juiz é homem... Ah, vês?...

GILBERTA – Esse outro advogado é casado?

ALCIDES – É casado, mas mora longe... (Beija-a.) Já estás

convencida, ciumentazinha?

GILBERTA (Risonha) – Estou. Nem imaginas o desgosto que me

darias se me enganasses com outra!

ALCIDES – Imagino, sim.

GILBERTA – Eu matava-me!

ALCIDES – Cala essa boca, desconfiada. Por isso nunca te

matarás. Havemos de viver muito, envelhecendo juntos, até

ficarmos assim (imita, exageradamente, o andar trôpego de um

velho.).

GILBERTA (Rindo) – Assim também, não!

ALCIDES – E tu também tens que ficar assim (imita.).

GILBERTA – Cruzes!

ALCIDES – Bem, deixa-me ir vestir-me. (Sai apressado.).

GILBERTA (Levantando-se) – Quer que eu te ajude?

ALCIDES (Fora) – Não, meu amor.

GILBERTA (Falando para fora) – A camisa está aí, em cima da

cadeira. (Vindo para o centro da cena.) Como está demorando a

criada! (Vai à janela olhar a rua. Soa a campainha do telefone.)

Quem será? (Vem à mesa, e atende o fone.) Alô... (Deixando de

falar ao fone, aflita.) É voz de mulher... (Fala novamente ao fone,

engrossando a voz, para disfarçá-la.) Sim, é o Alcides que está

falando... (Pausa.) Quê? Fala mais alto... Hein? É a Olga que está

falando? Para guardar a carteira que você deixou quando esteve

hoje aqui?... (Não se contendo mais, com a voz natural.) Quem

está no aparelho é a mulher do Alcides, sua sem-vergonha! Ouviu?

Alô! Alô! (Desliga o telefone, furiosa.) Bandido! Eu bem que

desconfiava que tivesse estado alguém aqui durante a minha

ausência! O Alcides! Ah, miserável! (Sai.).

CENA 5

BERNARDINA (Entra cautelosamente) – Ninguém?

Provavelmente ele saiu e a mulher está... (Ouve-se, fora, forte

discussão entre Alcides e Gilberta.) Estão ali... (Aproximando-

se nas pontas dos pés, da porta, ficando a ouvir o que dizem.).

ALCIDES (Fora) – Mas que carteira é essa?

GILBERTA (Fora) – Ela disse pelo telefone que havia esquecido a

carteira quando esteve aqui. Que Olga é essa?

ALCIDES (Fora) – Não sei. (Continua a discussão, ouvindo-se

indistintamente.).

BERNARDINA (Radiante) – Ah!... Deve ser a tal carteira que

estava em cima da mesa. Agora mesmo é que lhe vendo a partida

de linho. (Atravessa a cena nas pontas dos pés e sai.).

CENA 6

GILBERTA (Entra chorosa) – Não fico nesta casa nem mais um

momento!

ALCIDES (Que entra em mangas de camisa acompanhando-a) –

Mas ouve, Gilberta...

GILBERTA – Não quero ouvir-te! És um traidor! E eu acreditando

nos teus juramentos!

ALCIDES – Asseguro-te que há um mal entendido.

GILBERTA – Não tentes inventar desculpas porque será tempo

perdido. Ouvi perfeitamente a tal Olga dizer que escondesse a

carteira que ela esqueceu quando esteve hoje aqui, contigo! Então,

seu cachorro, é aqui na nossa casa que marcas entreveses às tuas

conquistas?

ALCIDES – Provavelmente quem estava falando ao telefone

supunha que estivesse falando com outra pessoa...

GILBERTA – Não! Ela perguntou se era Alcides quem estava

falando.

ALCIDES – Deve ser ligação errada.

GILBERTA – Ligação errada foi a minha contigo! (Apanha o

chapéu e começa a ajeitá-lo na cabeça.).

ALCIDES – Que tencionas fazer?

GILBERTA – Ainda perguntas? Vou para casa de mamãe... Não

quero mais ver-te! És o último dos homens! Com certeza tens hoje

pressa em sair para ir encontrar com ela. Vai!

ALCIDES – Juro-te, Gilberta, que...

GILBERTA – Os teus juramentos valem tanto como... Como tu.

Trata já do nosso desquite.

ALCIDES – Não tomes resoluções precipitadas! Vamos primeiro

apurar esse engano.

GILBERTA – Sai daí! (Fazendo intenção de sair.) Vou

imediatamente para a casa de mamãe. Fica-te com tua Olga!

ALCIDES (Impedindo-lhe a passagem) – Daqui não sairás sem

que se prove a minha inocência!

GILBERTA – Deixa-me passar! Não suporto mais a tua presença!

ALCIDES (Simulando desespero e puxando os cabelos) – Isto é

para um homem enlouquecer!

GILBERTA – Não passas de um consumado farsante!

BERNARDINA (Aparecendo neste momento) – Pode-se entrar?

ALCIDES (Vendo-a) – Ainda por cima essa maldita mulher!

BERNARDINA – Mas que é isso? O senhor está maluco?

ALCIDES (Dirigindo-se a Bernardina) – Que vem fazer? Não a

proibi de voltar?

BERNARDINA – E certamente não voltaria se a senhora que me

atendeu ao telefone tivesse me respondido com delicadeza.

ALCIDES (Numa transição, atônito) – Hein? Será possível?

GILBERTA (Com interesse a Bernardina) – Foi a senhora quem

há pouco telefonou para aqui?

BERNARDINA – Fui. Telefonei para prevenir ao doutor que hoje,

quando estive aqui, esqueci a minha carteira...

ALCIDES (Compreendendo) – É... Efetivamente... Encontrei uma

carteira que guardei. Era sua?

BERNARDINA – Era...

GILBERTA (A Alcides) – Mas afinal, quem é esta senhora?

ALCIDES (A Gilberta) – A vendedora de linhos da qual te falei com

tanto interesse.

GILBERTA – A senhora é a Dona Olga?

BERNARDINA (Sem compreender) – Dona Olga? (Olha para o

outro lado para ver se há alguma outra mulher presente.).

GILBERTA – Então a senhora não se chama Olga?

ALCIDES (A Bernardina) – A senhora chama-se Olga, sim... Pelo

menos, quando a senhora aqui esteve hoje, disse-me que se

chamava Olga.

BERNARDINA (Compreendendo afinal) – Ah, sim... É isso

mesmo. Chamo-me Olga.

GILBERTA (Duvidosa) – A senhora deixou mesmo uma carteira

aqui?

BERNARDINA – Deixei. Duvida? É uma carteira... (Descreve as

características da carteira que viu, quando a achou pela

primeira vez.).

ALCIDES (Satisfeito) – Exatamente. Guardei-a no escritório.

GILBERTA (A Alcides) – E por que não me disseste isto?

ALCIDES – Por causa do teu mau gênio. Quando estás atacada da

tua crise de ciúmes não queres ouvir nada.

BERNARDINA – O ciúme é o cavaco do ofício dos casados. Sabe,

doutor Alcides, de acordo com as suas ordens mandei trazer a

partida de linho. O carregador que a traz não deve tardar.

ALCIDES – E faz muito bem. (À parte.) Mas que partida ela me

pregou!

GILBERTA – Hein?... (A Alcides.) Não me disseste que não

querias comprar o linho... e que até matarias uma certa senhora se

aqui voltasse?

BERNARDINA – Ele disse isso?

ALCIDES – Absolutamente! Juro...

GILBERTA – Tu disseste.

ALCIDES (Com um sorriso forçado) – É a tal coisa, não se pode

brincar. Não viste logo que era uma surpresa que eu queria fazer-

te?

GILBERTA – Mas eu dispenso a partida de linho. Para que essa

despesa inútil?

ALCIDES – Ora, filha! Para que essas economias de palitos?

Vamos agora privar-nos de roupas brancas de linho puro, belga...

por causa de uma ninharia de dois mil contos e quinhentos?

BERNARDINA – O senhor ouviu mal. São dois mil contos e

oitocentos.

ALCIDES – A senhora disse dois mil e quinhentos.

BERNARDINA – Dois mil e oitocentos, ora. Se está arrependido...

ALCIDES – Não senhora! O negócio está fechado... (À parte.)

Aproveitou a bandida!

GILBERTA – Para que empatar esse dinheiro, Alcides?

ALCIDES (A Gilberta) – Não insistas. É necessário.

BERNARDINA (Tentando abrir a pasta. Para Gilberta) – Quer ver

as amostras?

ALCIDES (A Bernardina) – Não é preciso... Para quê? Vou ter

mesmo que comprar... (A Gilberta.) Estás, enfim, convencida da

minha inocência?

GILBERTA – Quase.

ALCIDES – Também era engraçado que tivesses ciúmes de mim

com dona Bernardina.

GILBERTA (Estranhando) – Bernardina?...

ALCIDES – É... Dona Olga Bernardina... (A Bernardina.) Não é

esse o seu nome?

BERNARDINA – Mais ou menos. Acrescentando o Isqueiro. E a

minha carteira?

ALCIDES – Vou buscá-la. (Sai.).

CENA 7

GILBERTA (Depois de Alcides sair, a Bernardina, em tom

confidencial) – Diga-me: tudo isso é uma farsa que a senhora

combinou com ele, para inocentá-lo.

BERNARDINA – Realmente foi uma combinação que ele faz

comigo, para enganá-la.

GILBERTA (Exasperando-se) – Ah! Então ele tem mesmo uma

amante, não é?

BERNARDINA – Não. Ele é da opinião que para manter a

temperatura elevada do amor é necessário estimular o ciúme.

Então, combinou comigo, a troca da compra da partida de linhos, e

que eu, de vez em quando telefonasse para cá, dando um nome

aposto, convidando-o para passeios, encontros... Assim, desperta o

seu ciúme e cada vez a senhora tem mais paixão por ele.

GILBERTA – Ah!... A coisa é essa?

BERNARDINA – Veja lá agora se vai me comprometer!

GILBERTA – Fique descansada. Quer que eu me amofine de

ciúmes? Espera por isso.

ALCIDES (Entra trazendo a carteira) – Aqui a tem. (Dá a carteira

a Bernardina.).

GILBERTA – Que linda carteira!

BERNARDINA – Está ao seu dispor.

ALCIDES (A Bernardina) – Tenha a bondade de abrir a carteira e

verificar se falta alguma coisa.

BERNARDINA – Não é preciso.

ALCIDES (Com um sinal disfarçado) – Faça o favor de verificar.

(Conversa baixo com Gilberta.).

BERNARDINA (Que abre a carteira e tira de dentro um pedaço

de papel escrito, que Alcides aí pôs. Lendo baixo.) “Muito

obrigado. Exija-me já o pagamento do linho e leve essa carteira

para o meu escritório.” (Deixando de ler e metendo o papel

dentro da carteira.).

ALCIDES (A Bernardina) – Está conforme?

BERNARDINA – Perfeitamente. Doutor, não é que eu desconfie...

Mas, se pudesse passar-me já o cobre...

ALCIDES – Tem assim tanta pressa? Ainda não recebi o linho...

BERNARDINA – É que o senhor pode falir...

GILBERTA – Então o meu marido vai assim, falir, de repente?

BERNARDINA – E por que não? Não se está vendo isso todos os

dias?

ALCIDES – Só posso pagar-lhe no meu escritório. É lá que eu

tenho meu talão de cheques.

BERNARDINA – Pois irei lá receber. (Soa a campainha do

telefone.).

ALCIDES (Apavorado, à parte) – Deve ser outra vez a Olga...

Quem me salvará agora?

GILBERTA (Reprimindo o desejo de atender ao telefone. A

Alcides) – Quer que eu atenda...

ALCIDES (Precipitando-se para a mesa) – Não! Não é preciso...

(Apanha o telefone. Responde por monossílabos.) Sim... É...

Sou... Sei... Sei... Vou... Hein? (Pausa.).

GILBERTA (Dando a volta por trás, sem que Alcides a

pressinta, de um salto arrebata-lhe o fone da mão, empurrando-

o para afastá-lo. Engrossando a voz.) Pode falar...

ALCIDES – Não ouças, Gilberta!

GILBERTA (Mantendo Alcides à distância continua a falar ao

telefone.) – Hein? Para que vá, que está me esperando?...

ALCIDES (Afasta-se sucumbindo) – Estou frito! (Baixo a

Bernardina.) Preciso de um recurso para me salvar...

BERNARDINA (Baixo a ele) – Só se eu aumentar a importância da

fatura.

ALCIDES (Baixo a ela) – Aumente o que quiser, mas tire-me deste

poço sem fundo.

BERNARDINA (Baixo a ele) – Fique calmo. (Põe o dedo na testa

como estudando uma saída.).

GILBERTA (Não se contendo, altera-se falando ao telefone com

a voz natural.) Você tem a audácia de telefonar outra vez para meu

marido, sua descarada? (Deixa de falar ao telefone, mas sem

desligá-lo. A Alcides.) Que dizes a isto? Continuas ainda aqui?

ALCIDES (Embaraçado) – É que aí a dona Olga...

GILBERTA (Furiosa) – Que dona Olga! Não quero tapeações

comigo! Olga é a que acaba de falar pelo telefone e não essa que aí

está!

BERNARDINA (Como que inspirada, à parte) – Achei! (Alto.) Mas

que refinada estúpida é a minha ajudante! (Indo à mesa e tirando

o fone da mão de Gilberta.) Com licença. (Falando ao telefone.)

Você não compreendeu as instruções que lhe dei? Quem fala aqui

é ela mesmo. Ela, quem...? A vendedora... Não lhe disse que só

telefonasse para o doutor ao meio dia? Por que telefonou agora, as

onze e pouco? Ele vai já ao escritório pagar a conta do linho. Não

telefone mais aqui. (Desliga o telefone.).

ALCIDES (Fingindo-se de zangado, à Bernardina) – Mas afinal,

minha senhora, que é que está arranjando? Minha mulher está

supondo que eu...

BERNARDINA – Isso é apenas um truque comercial que

empregamos para apressar o pagamento.

GILBERTA – Essa sua ajudante também chama Olga?

BERNARDINA – Chama-se. Não são só Marias que há na Terra...

GILBERTA (Dando uma gargalhada) – Ah! Agora é que estou

compreendendo tudo! E não é que eu estava mesmo tomando a

coisa a sério? (A Alcides.) Pensas que me fazes ciúmes? Não caio

mais, meu maridinho. Sou de circo.

ALCIDES (Sem compreender, ainda receoso) – Não vais

acreditar nisso, não é Gilberta?

GILBERTA – Esta senhora contou-me tudo. Combinaste com ela

chamar-te de vez em quando pelo telefone, usando de nomes

supostos de mulheres, a fim de me provocar ciúmes. Vê se arranjas

outra, que esta já não pega mais.

BERNARDINA (À Gilberta, fingindo-se magoada) – A senhora

prometeu não lhe dizer nada...

ALCIDES (Radiante, à parte) – Que imaginação formidável tem

essa vendedora!

GILBERTA – Acabamos com essa comédia. A senhora não

telefone mais aqui para casa. (A Alcides.) Proibo-te de lançares

mão desses truques para despertar-me ciúmes.

ALCIDES – Sim, filha, eu confesso que...

GILBERTA (A Alcides) – Acabe de se vestir e vá já ao escritório

pagar essa senhora a conta do linho. (Abre a janela.).

BERNARDINA – Oh! Não tinha pressa...

ALCIDES (Baixo à Bernardina) – A senhora é um caso sério!

BERNARDINA – Eu não lhe dizia que era uma vendedora de

recursos?

FIM