Uma viagem através da poesia: vivências em sala de...

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GLÁUCIA REGINA RAPOSO DE SOUZA Uma viagem através da poesia: vivências em sala de aula Volume 1 Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura. Orientadora: Dr. Vera Teixeira de Aguiar Porto Alegre 2007

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GLÁUCIA REGINA RAPOSO DE SOUZA

Uma viagem através da poesia: vivências em sala de aula

Volume 1

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura.

Orientadora: Dr. Vera Teixeira de Aguiar

Porto Alegre 2007

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Para Zeny e Orlando, poemas primeiros. Para Lucas, Ana Letícia e Maria Clara, quadrinhas de hoje.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Vera Teixeira de Aguiar, por todos os anos em me fez compreender que é possível plantar a semente da leitura entre crianças de diferentes idades e classes sociais. Meu agradecimento, também, pela orientação atenciosa e tranqüila, bem como pelo incentivo e pela confiança que sempre depositou em mim e no meu trabalho. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pelos ensinamentos que vêm embasando minhas reflexões e minha prática docente, especialmente às Professoras Alice Therezinha Campos Moreira, Maria da Glória Bordini, Maria Eunice Moreira, Maria Luiza Ritzel Remédios e Regina Zilberman. Aos colegas do curso de Pós-Graduação em Letras, pelo convívio acadêmico, especialmente pela atenção amiga de Cristine Zancani, Diógenes Buenos Aires, Marília Fichtner, Viviane Gil e Zila Letícia Rego, em cujos projetos e teses, ou através de discussões, busquei vieses para o meu trabalho. Às funcionárias Isabel Lemos e Mara Rejane Nascimento, pela incansável atenção e orientação nas necessidades administrativas. Aos colegas do Centro de Literatura Interativa da Comunidade, pelos momentos de reflexão em grupo. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela oportunidade de desenvolver os meus estudos. À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por me conceder o afastamento que me possibilitou a conclusão desse estudo. À Direção do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que, nas pessoas dos professores Jorge Luís Day Barreto e Adalberto Breier, sempre esteve à disposição para o desenvolvimento dos meus estudos. À Chefia de Departamento de Comunicação do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que, através das professoras Maria da Graça Saraiva Marques e Juçara Benvenuti, muito colaborou em meu processo de afastamento de minhas funções docentes. Aos colegas professores do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com quem divido a esperança de construir uma escola pública de qualidade. Aos colegas funcionários do Colégio de Aplicação, pela orientação e atenção sempre que me foram necessárias.

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Aos professores Osvaldo Arthur Menezes Vieira e Paulo Ricardo Kralik Angelini, que me substituíram por ocasião do meu afastamento de minhas funções docentes. Aos professores e alunos do Projeto Amora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela acolhida a essa pesquisa, especialmente aos meninos e meninas que participaram da oficina Uma viagem através da poesia, com quem dividi momentos de criação e emoção. Ao menino Bruno Almeida, estrelinha que, de longe, brilhava nos momentos mais difíceis, através da memória de alegria e de descoberta feita ao escrever um poema. Aos amigos Luís Camargo e Ricardo Azevedo, que muito colaboraram com suas indicações bibliográficas, reflexões, leituras e com o envio de material para esse estudo. A todos os amigos pela presença e pela torcida nessa caminhada, especialmente Cristina Biazetto, Fábio Rivaldo.e os compadres Leila Mathias e Márcio Noronha. Ao Marcelo e ao meu pequeno Lucas, pelas horas de descanso, pela compreensão nas horas de cansaço, mas, principalmente, pelos laços que nos unem. À Dona Izaura e ao Seu Marcos, pelas vezes que fizeram as minhas vezes de mãe. Às minhas meninas Ana Beatriz, Ana Letícia e Maria Clara, pelas brincadeiras de palavra de ontem e de hoje. À minha avó Nini, pela memória, sempre. À Mi, pela tranqüilidade silenciosa de todas as tardes. E finalmente aos meus pais Zeny e Orlando, pelas vezes que buscaram livros, fizeram cópias, visitaram bibliotecas, mas, principalmente, por todos aprendimentos que fiz com eles.

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APRENDIMENTOS O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócratres fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele um caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das suas origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles – esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis lingüísticos que achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala. Sócrates falava que as expressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O que de mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca. Manoel de Barros, Memórias inventadas: a segunda infância.

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RESUMO

Uma viagem através da poesia: vivências em sala de aula consiste

num estudo que objetiva analisar de que forma o resgate da oralidade, da

corporalidade e da vocalidade do poema, bem como textos de folclore puro e

de inspiração folclórica podem promover a aproximação de pré-adolescentes

do Ensino Fundamental da leitura e da experimentação da escrita de textos

poéticos, inclusive autorais. Para tanto, este trabalho parte de uma revisão de

literatura relativa a aspectos das áreas de Teoria da Literatura, Teoria da

Literatura Infantil, História da Literatura Infantil no Brasil, Oralidade e Escrita,

História e Sociologia da Leitura e Estudos de Metodologia do Ensino da

Literatura, tais como conceituação e caminhos do poema para a infância ao

longo dos tempos, coexistência e aproximações entre o oral e o escrito,

processo de aquisição da leitura e da escrita ao longo da história e abordagens

do poema em sala de aula. A partir desse referencial teórico, procedeu-se a

identificação do que pré-adolescentes de dez a doze anos pensam ser o

poema, para, em seguida, a elaboração da oficina Uma viagem através da

poesia, cujos encontros seguiram as etapas de atividades denominadas

percepção, discussão e criação e partiram de um eu vinculado àquele que

escreve o poema rumo a um eu próximo à expressão de sensações e

necessidades humanas em geral. Tal oficina constituiu-se em uma pesquisa de

campo com um grupo de quatorze pré-adolescentes de nove a doze anos de

idade, com duração de dez encontros de uma hora e meia cada. Através dos

textos dos alunos, de seus registros escritos, de um questionário inicial e de um

final foram feitos comparações e cruzamentos de dados para verificar se houve

alterações no modo de ver o poema de cada pré-adolescente, o que se

confirmou na pesquisa quanto à percepção do eu que se expressa neles, bem

como a alguns procedimentos estilísticos.

Palavras-chave: leitura, escrita, oralidade, poesia, ensino.

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ABSTRACT

A trip through poetry: classroom experiences is a study aimed at

assessing how the renewed use of the orality, corporality and vocality of poems,

as well as that of purely folklore texts and texts of folkloric inspiration can make

pre-adolescent students from the Elementary School get closer to reading and

experiment reading of poetry, even writing their own poems. In order to do that,

this study starts with a review of the literature related to Literature Theory,

Children Literature Theory, History of Children Literature in Brazil, Orality and

Writing, History and Sociology of Reading and Studies on the Methodology of

Literature Teaching, such as concepts and pathways of poetry for children over

time, co-existence and contacts between oral and written, process of learning

how to read and write over the history and the use of poetry in the classroom.

Based on this theoretical framework, a survey was made to see what nine to

twelve-years-old adolescents thought about poetry so that the workshop A trip

through poetry could be designed, with its meetings following activities entitled

perception, discussion and creation, starting from a self linked to the

individual who wrote the poem going towards an self close to the expression of

human feelings and needs in general. This workshop was a field research with

a group of fourteen pre-adolescents aged ten to twelve, with a duration of ten

meetings with one and a half hour each. Through the texts written by students,

their written records and a starting and a closing questionnaire, comparisons

and data crossing were conducted to see if there had been any changes in the

way these pre-adolescents saw poetry, which as confirmed in the research

regarding the perception of the self expressed in the poems, as well as in some

stylistic procedures.

Key Words: reading, writing, orality, poetry, teaching

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11 1 ENTRE O TU E O EU: CAMINHOS DO POEMA AO LONGO 20 DOS TEMPOS 1.1 Da voz que toca o outro à voz que sai do papel 20 1.2 Da voz que soa ao outro à voz que ecoa o peito 29 1.3 Da palavra sem voz à palavra de dentro 32 1.4 Da voz metálica à voz que resiste 51 2 ENTRE A ESCOLA E A RUA: CAMINHOS DO POEMA 60 NA INFÂNCIA 2.1 De poetas-professoras a professoras-poetas 60 2.2 Do poema que não vai à escola à escola do poema 84 3 ENTRE O ORAL E O ESCRITO: O CONCEITO DE POEMA NA CONCEPÇÃO DE CRIANÇAS DE DEZ A DOZE ANOS DE IDADE 94 3.1 Poema: palavra que expressa emoção 97 3.2 Poema: dádiva partilhada 101 3.3 Poema: posse secreta, autoria de muitos 103

4 UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA: O POEMA NA SALA DE AULA 110 4.1 Início de viagem: que bússola norteia o rumo 110 4.2 Portos em que ancoramos 122 4.2.1 Poesia: porto de partida 122

4.2.2 Poesia: porto de mim mesmo 125

4.2.3 Poesia: porto de quem mais? 137

4.2.4 Poesia: portos em outros lugares 157

4.2.5 Poesia: uma viagem estrelada 177 4.2.6 Poesia: porto de chegada 193 4.2.7 Festival de oficinas 206

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 210

REFERÊNCIAS 219 APÊNDICES Apêndice A: Programação da oficina 227 Apêndice B: Atividades desenvolvidas passo a passo 229 Apêndice C: Questionário e produção iniciais 242 Apêndice D: Questionário e produção finais 246 Apêndice E: Imagens utilizadas no sétimo encontro 250 Apêndice F: Relação músicas utilizadas nos encontros 259 Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros 261 ANEXOS (Volume 2) Anexo 1: Primeiro encontro Anexo 2: Segundo encontro Anexo 3: Terceiro encontro Anexo 4: Quarto encontro Anexo 5: Quinto encontro Anexo 6: Sexto encontro Anexo 7: Sétimo encontro Anexo 8: Oitavo encontro Anexo 9: Nono encontro

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INTRODUÇÃO

Meu interesse por estudar as formas literárias que se apresentam em verso,

bem como suas implicações em sala de aula (recepção, compreensão e produção

por parte dos alunos), surgiu através de observações feitas ao longo de minha

experiência docente. Muitas vezes, senti necessidade de encontrar formas de

aproximar alunos do Ensino Fundamental de poemas escritos. Pela ocasião do

Mestrado em Educação que cursei de 1992 a 1995, vários foram os momentos em

que, ao longo das disciplinas do Programa de Pós-Graduação a que estava

vinculada, optei por fazer reflexões acerca desse tema, como forma de

estabelecer um diálogo entre o que vinha estudando e o que via nas salas de aula

por que passava.

Foi o caso da disciplina Psicologia da Educação, cujos autores estudados,

Jean Piaget e Lev Semenovich Vygotsky, serviram como referencial para a

monografia intitulada Poesia na Escola. Nessa monografia, pretendi abordar, à luz

de Vygotsky, uma estratégia de produção de poemas por alunos de sétimas

séries, a partir de textos que possuíssem alguma filiação ou proximidade com o

trabalho desenvolvido pelos poetas concretistas brasileiros. Pretendi, através

desse estudo, verificar se a leitura e a escrita de poemas, por causa de seu lado

lúdico e da proximidade com as formas visuais de expressão artística, poderiam

levar os alunos a romperem a barreira que os separava dos textos escritos, bem

como diminuir a impaciência dos estudantes com textos não-visuais.

Concluído o Mestrado, em minha prática docente, vários foram os

momentos através dos quais pude realizar atividades com poemas, para,

posteriormente, refletir acerca delas à luz de alguns textos teóricos. Foi assim com

a Oficina de Criação Poética, realizada com quinze alunos de uma escola

municipal de Eldorado do Sul, no II UFRGS Jovem, um evento que consistiu em

um espaço de pesquisa dos então denominados 1º e 2º graus, através de oficinas,

palestras, visitas guiadas e exposições, destinadas a professores e alunos das

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redes pública e particular, ministradas por professores da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. O relato dessa oficina, bem como a reflexão sobre a

importância da experimentação no trabalho com poemas em sala de aula,

encontra-se no texto Oficina de Criação Poética: experimentação e ludismo

através de Diário de Classe, Cadernos do Aplicação, v.8, nº 2. jul/dez de 1995.

Novamente em função de minha atividade docente, resolvi entrar para a

Especialização em Literatura Infantil da Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul. Durante o curso, pude elaborar alguns trabalhos que refletiram

sobre a leitura/produção de poemas em sala de aula. 1 Após o término do curso,

como membro do grupo de professores-pesquisadores do Projeto Amora desde

1996, tive a oportunidade de participar, em 1999, das reuniões da pesquisa Poesia

e cognição, coordenada pela professora Vera Teixeira de Aguiar, e,

posteriormente, da intitulada Literatura e cognição. Pude, assim, utilizar no

computador o módulo elaborado pelo grupo sobre o extrato das formações fônico-

lingüísticas, de Roman Ingarden, aplicado ao poema de Sérgio Capparelli “O velho

que trazia a noite”, junto aos que, na ocasião, cursavam o Amora I (série

equivalente à quinta do Ensino Fundamental).

A partir da utilização desse módulo, procurei me aprofundar no que

Ingarden diz sobre a obra de arte literária. Para Ingarden, a obra de arte literária é

constituída por estratos heterogêneos, que se distinguem entre si pelo material

característico de cada um deles, bem como pela função que desempenham em

relação aos outros demais e à estruturação de toda a obra. Dentre esses estratos,

o fônico-lingüístico caracteriza-se por um todo fonemático múltiplo, que abrange

não só a acumulação de sons da fala, mas, também, aspectos como ritmo e

andamento. Sobre o ritmo, diz Ingarden:

1 São eles O livro dos disparates: a leitura de Edward Lear na pré-adolescência e Poesia infantil: por uma dupla adjetivação, publicados respectivamente nos Cadernos do Aplicação, v. 10, nº 1 – 1997 e v. 10, nº 2 – 1997.

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(...) o ritmo consiste, como é sabido, na repetição de determinada seqüência de sons acentuados e não-acentuados. É relativamente independente quer da altura absoluta ou relativa dos sons, quer ainda da restante qualificação do material fónico. “O mesmo” ritmo pode ser produzido tanto pelo material fónico-lingüístico como ainda pelo tocar de timbales ou por outros ruídos. (INGARDEN, 1965, p. 66)

Desse trabalho junto às crianças, que teve como ponto de partida a camada

sonora do poema, surgiram algumas inquietações minhas em relação à leitura e à

experimentação da escrita de poemas entre crianças de dez a doze anos, idades

em que comumente cursam a quinta e a sexta séries do Ensino Fundamental.

Comecei a perceber que os meninos e as meninas que mais eram resistentes à

leitura e à escrita demonstravam compreensão de aspectos sonoros do poema,

tais como ritmo, através de seus próprios corpos (de palmas e de batidas de pés,

por exemplo), bem como da vocalização (leitura em voz alta) de poemas.

Ao longo dos anos em que trabalhei com crianças de dez a doze anos de

idade, fui confirmando essa resistência à leitura e à escrita, bem como uma

necessidade de que essas crianças lessem em voz alta os textos trabalhados em

sala, como atitude precedente a sua leitura silenciosa. Muitas vezes, essa leitura

oral preliminar transformava-se em pré-requisito para uma melhor compreensão

do texto. Como professora que trabalha não só com a literatura, mas também com

o ensino da língua materna em Ensino Fundamental, pude observar, nos textos

das mesmas crianças, marcas de oralidade, conforme o apontado por Maria

Eduarda Giering (1985), a saber:

a) exposição de fatos sem respeitar uma seqüência lógica narrativa;

b) introdução de informações novas, fora contexto ou repetição de dados já

apresentados sem observância da progressão temática;

c) utilização imprópria de articuladores textuais, resultando numa ligação

incongruente entre as partes do texto;

d) emprego falho do recurso da pronominalização;

e) utilização excessiva de seqüenciadores narrativos “aí”, “então”;

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f) repetição exagerada de lexemas idênticos, sem o recurso possibilidade de sua

substituição por outros co-referentes;

g) uso inadequado de tempos verbais.

Ilustram esses aspectos levantados por Giering os seguintes trechos,

escritos coletivamente por alunos da turma Amora I do ano de 2001, a partir do

livro Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões, de Ricardo Azevedo

(2001): Burrico era um burro e estava cansado de carregar carga. Um dia junto ao lago ele disse – queria ser um macaco! E uma luz forte apareceu. Era um ovo e saiu um pato. O pato lhe perguntou – Você quer se transformar em um macaco? – Sim e Burrico se transformou em um macaco, desse dia em diante Burrico era um animal muito feliz. Era uma vez em uma cidade muito legal, a cidade é legal porque lá tudo pode acontecer e lá na cidade vivia um moço chamado Zé Burraldo e ele era burro feito uma porta e ele depois de ter perdido seus pais ele seguiu viajando pelo mundo afora e fazendo suas façanhas muito engraçadas. Existia um rei muito poderoso que tinha um castelo. Esse rei tinha um pequeno amigo que era Ser Passarinho que era meio aparentado com um cisne que é tio do pato que é amigo de um porquinho que vive triste porque se acha feio, e que na verdade ele até que é bem feinho. Bom mas o pato estava triste por seu grande amigo, e foi aí que ele teve uma idéia, iria pagar uma cirurgia plástica, mas ele tinha pouco dinheiro, então pediu dinheiro para o cisne, mas ele não tinha muito dinheiro, daí o cisne pediu a Ser Passarinho mas ele só tinha um pouco então ele pediu para o rei.

Ao comparar as características que Giering apresenta como próprias da

produção textual de crianças de quinta série com os textos de meus alunos e com

o que Walter Ong (1998, p. 47) diz acerca das características do pensamento e da

expressão fundados na oralidade, pude perceber que a necessidade desses pré-

adolescentes de lerem em voz alta os textos escritos poderia ter alguma relação

com o universo oral em que estavam inseridos. Walter Ong, em seu livro

Oralidade e cultura escrita, destaca que muitas culturas modernas que

conheceram a escrita durante séculos, mas nunca a interiorizaram

completamente, ainda se apóiam no pensamento e na expressão formulares (Ong,

1998, p. 47).

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Essa desconfiança de que as crianças necessitavam do suporte do som em

sua compreensão leitora aumentou quando do trabalho desenvolvido com

histórias e poemas de inspiração popular. Durante o ano letivo de 2001, o grupo

de crianças do Amora I (que corresponde à quinta série do Ensino Fundamental)

trabalhou com as histórias de Ricardo Azevedo (2001), no livro Histórias de bobos,

bocós, burraldos e paspalhões e com os poemas narrativos de Pedro Bandeira

(2000), intitulados Malasaventuras. Quando solicitei que cada aluno relesse em

silêncio os contos de Azevedo (2001) em sala de aula, na medida em que já o

haviam lido em casa, todos foram unânimes em optar pela leitura em voz alta,

alternando vozes. Por esse motivo, ao começar o trabalho com os poemas

narrativos de Bandeira (2000), optei por não pedir que as crianças os lessem em

casa, mas o fizessem pela primeira vez em grupo, em voz alta, junto a todos da

turma. A proximidade dos versos de Bandeira com os poemas de folclore puro,

como os versos de cordel, proporcionou momentos de vivência corporal do texto

ouvido. Noções como métrica, ritmo, rima, estrofe e verso foram antes

experimentadas auditivamente, através de palmas, acompanhamento com uma

pequena “orquestra” de latinhas, como que em forma de “rito”, por todo o grupo.

A leitura “ritualizada” desses meninos e meninas leitores de Azevedo (2001)

e Bandeira (2000) fez-me ir ao encontro de um teórico, nascido em Genebra, em

1915, que viveu no Canadá, a partir de 1971: Paul Zumthor. As reflexões de

Zumthor sobre poesia oral, performance e oralidade fizeram-me pensar na

possibilidade de resgatar a corporalidade e a voz do poema em sala de aula para,

assim, aproximar pré-adolescentes de dez a doze anos de idade de poemas

escritos. Sobre o caráter ritual da poesia oral, diz Paul Zumthor:

No caso do ritual propriamente dito, incontestavelmente, um discurso se dirige, talvez, por intermédio dos participantes do rito, aos poderes sagrados que regem a vida; no caso da poesia, o discurso se dirige à comunidade humana: diferença de finalidade, diferença de destinatário, mas não diferença da própria natureza discursiva. (ZUMTHOR, 2000, p. 54)

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Desde então, venho procurando formas de se trabalhar com o poema na

sala de aula a partir do resgate do corpo e da voz. Nasceu, com esse objetivo, a

oficina Uma viagem através da poesia, realizada com quatorze pré-adolescentes

das turmas de Amora I e II (equivalentes à quinta e à sexta séries,

respectivamente). Como docente de Ensino Fundamental e Médio, busco uma

aproximação entre os pré-adolescentes estudados e a leitura e a produção de

poemas, quer sejam de folclore puro, quer de inspiração folclórica, quer de

autoria2. Procuro, também, demonstrar que a vivência corporal-oral dos poemas

de folclore puro e/ou de inspiração folclórica auxilia no processo de leitura e de

produção de poemas de autoria por parte de pré-adolescentes de dez a doze

anos, de quintas e sextas séries do Ensino Fundamental. Para tanto, busquei

primeiramente uma revisão de literatura especializada nas seguintes áreas:

• Teoria da Literatura, no que diz respeito à questão dos conceitos de poesia, de

poema e de suas partes constitutivas;

• Teoria da Literatura Infantil, em relação à conceituação de poemas para a

infância;

• História da Literatura Infantil no Brasil, quanto aos caminhos que tomou o

poema para a infância ao longo dos tempos;

• Oralidade e Escrita, no que tange às interferências de ambas as formas nos

indivíduos que se inserem numa sociedade que, cada vez mais, vive num

contexto em que coexistem o oral e o escrito;

2 Por poemas de folclore puro, entendo aqueles de tradição popular, como as cantigas de ninar e de roda, as parlendas e as adivinhas. Como poemas de inspiração folclórica, entendo aqueles que, mesmo tendo sido criados por um determinado autor, apresentam algumas características dos poemas de folclore puro, tais como refrões, versos isométricos e imagens construídas a partir de um repertório significativo para um determinado grupo. Por fim, denomino poemas de autoria como aqueles que não apresentam características semelhantes aos poemas de folclore puro.

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• História/Sociologia da Leitura, em relação ao processo de aquisição da leitura

e da escrita ao longo da História;

• Metodologia do Ensino da Literatura, acerca das abordagens feitas sobre

poesia em sala de aula.

Como fruto dessa revisão, escrevi os capítulos 1 e 2 dessa tese,

respectivamente intitulados Entre o tu e o eu: caminhos do poema ao longo dos tempos e entre a escola e a rua: caminhos do poema na infância. No

primeiro, tento fazer uma abordagem da transição da concepção de poema como

forma vinculada à relação eu-tu através da voz e vinculado à música e/ou à

oralidade, até a de poema como instância de relação de um eu para consigo

mesmo, através do suporte da escrita. Já o segundo trata de como a produção de

autores que escreveram poemas para a infância do final do século XIX e ao longo

do XX, no Brasil, esteve mais ou menos vinculada ao espaço da escola e ao texto

pedagógico. Refleti, também, nesse capítulo sobre as aproximações entre poema

escrito para a infância e folclore e sobre como a escola, através de estudos de

metodologias de ensino, vem procurando trazer a produção poética oral ou não

para o seu contexto.

Em seguida, senti necessidade de identificar os conceitos que os pré-

adolescentes de quintas e sextas séries do Ensino Fundamental estudados

possuíam acerca do poema e de suas partes constituintes. Essa reflexão foi feita à

luz do referencial teórico estudado e está no capítulo 3, intitulado Entre o oral e o escrito: o conceito de poema na concepção de crianças de dez a doze anos de idade. Esse capítulo serviu de suporte para a elaboração das atividades de

campo, no que diz respeito à caracterização de como a oralidade/corporalidade de

poemas de folclore puro e de inspiração folclórica atuam na recepção de poemas

por parte desses pré-adolescentes e à evidenciação de em que medida os

poemas de inspiração folclórica podem servir como intermediários no processo de

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leitura de poemas autorais e à identificação de que procedimentos metodológicos

poderiam ser utilizados como instrumento de pesquisa.

Desenvolvi, então, como processo de experimentação, uma oficina,

intitulada Uma viagem através da poesia, realizada junto a pré-adolescentes do

Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do Projeto

Amora. Como professora, partilho a visão de Paulo Freire, quando esse autor fala

sobre o vínculo existente entre ensino e pesquisa, bem como sobre o professor

enquanto pesquisador: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (...) Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador. (FREIRE, 1997, p. 32)

Tal oficina apresentou as seguintes etapas:

a) Questionário e produção iniciais;

b) Atividades desenvolvidas em oficina;

c) Questionário e produção finais.

Cada encontro apresentou três momentos: percepção, discussão e criação. Na percepção, procurei desenvolver atividades sensoriais e de vivência

prática, tais como leitura em voz alta, acompanhamento com palmas, atividades

corporais e de vinculação com aspectos ligados aos cinco sentidos. Na

discussão, pensei em atividades orais relativas à interpretação dos poemas

trabalhados. Finalmente, através da criação, foram desenvolvidas atividades de

produção de textos poéticos por parte dos alunos. Os pressupostos gerais da

oficina, bem como a análise dos dados coletados encontram-se no capítulo 4,

Uma viagem através da poesia: o poema na sala de aula. Nesse capítulo, faço

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as descrições de cada etapa de trabalho, bem como a análise da produção das

crianças.

Finalmente, nas Considerações finais, procuro apontar algumas

constatações acerca de como a oficina de certa forma trouxe mudanças nas

concepções de poema que os pré-adolescentes apresentaram nos encontros

inicial e final, de que forma essas concepções refletiram-se no modo como tais

alunos passaram a produzir seus poemas. Nas Considerações finais, busco,

enfim, respostas para as questões que nortearam essa investigação.

São elas: Pode o resgate da oralidade e da corporalidade do poema

aproximar pré-adolescentes de dez a doze anos de idade da leitura e da

experimentação de escrita de textos poéticos? De que modo os poemas de

folclore puro e de inspiração folclórica contribuem para uma aproximação desses

pré-adolescentes de poemas autorais? Tais questionamentos nortearam meus

caminhos de investigação.

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1 ENTRE O TU E O EU: CAMINHOS DO POEMA AO LONGO DOS TEMPOS Voz que verte ao vento, se eu te deixasse ao léu, decerto nunca voarias para o papel!3

1.1 Da voz que toca o outro à voz que sai do papel Johnson (1982, p.1-3), em seu livro The idea of lyric, analisa as mudanças

sofridas pela poesia, nos tempos modernos, através de três categorias, baseadas

em Eliot. A primeira delas diz respeito aos textos em que um cantor endereça (ou

pretende endereçar) o poema a um outro singular ou plural: são poemas aos quais

Johnson chama de eu-tu. Sobre essa categoria, diz T.S. Eliot, em seu texto “As

três vozes da poesia”, de 1953:

A segunda voz é, na realidade, a voz que com maior freqüência e maior clareza faz-se ouvir na poesia que não é teatro: em toda poesia desde logo, com um propósito social consciente – poesia destinada a recriar ou a instruir, poesia que conta algo, poesia que prega, ou moraliza, ou satiriza, que é uma forma de pregar (ELIOT, 1959, p. 97).

A uma segunda categoria pertenceriam os poemas em que o autor,

baseando-se em T.S.Eliot, classifica como meditativos:

Evidentemente, a lírica pertinente a minha primeira voz – à voz do poeta que fala consigo mesmo ou com ninguém - é a lírica no sentido do poema “que expressa diretamente os pensamentos e sentimentos próprios do poeta”. Nesse sentido o poeta alemão Gottfried Benn, numa conferência muito interessante intitulada “Probleme der Lyrik”, considera que a lírica é a poesia da primeira voz: e inclui, estou certo, poemas como as “Duineser Elegieh”, de Rilke e “La Jeune Parque”, de Valéry. Onde ele diz “poesia lírica”, então, eu preferiria dizer “versos meditativos” (ELIOT, 1959, p. 98-99).

Em tais poemas, o eu que se expressa fala consigo mesmo. Já um terceiro

grupo abordado por Johnson seria constituído por textos em forma de diálogo, em

que surgem várias vozes. Tais poemas por vezes são líricos, por outras não o são.

Eliot, apesar de apontar essas três vozes da poesia, afirma que, para ele, em todo

3 Os textos que iniciam cada capítulo foram feitos por mim especialmente para esse trabalho.

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poema desde a meditação solitária até a epopéia e o drama, faz-se ouvir mais de

uma voz (Eliot, 1958, p. 100-101).

Ao longo desse capítulo, pretendo traçar algumas considerações acerca da

concepção de poesia e de poema através dos tempos, sempre levando em

consideração, principalmente, as duas primeiras categorias utilizadas por

Johnson, a partir de T. S. Eliot.

Em relação aos poemas eu-tu, Johnson destaca que tal padrão pronominal

era provavelmente o modo usual da lírica grega e, certamente, o da latina. Em

ambas, havia o endereçamento do poema para alguém. Nesse sentido, tanto na

lírica grega quanto na latina, era essencial a presença do cantor e da audiência:

O costume usual na lírica grega (provavelmente) e na latina (certamente) era endereçar o poema (na Grécia, a canção) para uma ou mais pessoas. O que essa forma lírica típica destaca são as condições e os propósitos da canção: a presença do cantor ante uma platéia; sua recriação das emoções universais num contexto específico; uma história reduzida, estilizada (...) e, finalmente, a partilha, o intercâmbio entre cantor e platéia. (JOHNSON, 1982, p. 4 – tradução minha)

Na lírica grega, de acordo com Johnson, havia um forte vínculo entre

poema, música e performance. A música estava a serviço das palavras: melodia,

ritmo, voz, dança e instrumentos musicais enfatizavam as sílabas das palavras de

modo a lhes conferir inteligibilidade. Assim, o ritmo era ditado pela sucessão de

sílabas longas e breves (Johnson, 1982, p. 27).

Como a poesia grega tinha íntima relação com a performance, não havia

nela virtuosidades vocais e instrumentais, para que a platéia se sentisse

familiarizada com os poemas cantados. No dizer de Johnson, a música servia,

então, para intensificar as palavras partilhadas por poetas e platéias. Há dessa

forma, na lírica grega, não uma poesia musical, como no nosso sentido da

palavra, mas uma poesia com música.

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A primeira função da poesia coral grega foi religiosa, cerimonial e falava em

sua essência de deuses e heróis. Seu caráter oral agregava platéia e poeta e

trazia consigo a experiência da corporalidade, do sagrado, de uma cosmovisão

centrada no ser humano. Walter Ong ressalta o caráter unificador do som, em

contraposição a um possível isolamento causado pela visão:

A vista isola; o som incorpora. A vista situa o observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte. A visão disseca, como observou Merleau-Ponty. A visão chega a um ser humano de uma direção por vez: para olhar para um aposento ou uma paisagem, preciso girar meus olhos de um lado para o outro. Quando ouço, no entanto, reúno o som ao mesmo tempo em qualquer direção, imediatamente: estou no centro do meu mundo auditivo, que me envolve, estabelecendo-me em uma espécie de âmago da sensação da existência. (...) A ação centralizadora do som (o campo sonoro não está espalhado diante de mim, mas toda a minha volta) afeta o sentido humano do cosmos. Para as culturas orais, o cosmos é um evento contínuo, com o homem em seu centro. (ONG, 1998, p. 86-87).

Apesar de Ong tratar de culturas orais primárias, em que a palavra existe

apenas em seu estado sonoro, as quais são cada vez mais difíceis de serem

encontradas, destaco que alguns aspectos, tais como a corporalidade e o caráter

agregador em torno da figura de quem tem a palavra (cantador, leitor em voz alta

etc.), podem ser percebidos em culturas que Zumthor (1993, p. 18) classifica como

de oralidade mista (aquelas em que a influência do escrito permanece externa e

parcial). Também Ruth Finnegan ressalta que a poesia oral está presente nas

sociedades letradas e não letradas. Diz a autora:

A poesia oral não é um fenômeno singular ou aberrante na cultura humana, nem uma sobrevivente do passado, destinada a pôr distante a modernização crescente. De fato, ela ocorre comumente na sociedade humana, tanto letrada quanto não-letrada. Ela é encontrada por todo o mundo, passado e presente, desde a poesia pessoalmente meditativa dos esquimós modernos ou dos poetas maoris, até as baladas européias e chinesas, ou os épicos compostos oralmente pelos gregos pré-clássicos no primeiro milênio a.C. (FINNEGAN, 1977, p. 3 – tradução minha).

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As descobertas de Albert Lord e Milman Parry4 (Finnegan, 1977, p. 58-69)

acerca da natureza formulaica das composições épicas homéricas e sua possível

vinculação com a composição oral de poemas épicos de outros povos põem em

destaque prováveis procedimentos de feitura de poemas orais, bem como

questionam conceitos como o de autoria. De acordo com Parry-Lord, os poemas

homéricos foram feitos a partir de uma estrutura formulaica a ser manipulada pelo

executor da performance do poema oral, numa espécie de artesanato de palavras

que faz da peça declamada um combinado de frases prontas e arranjos pessoais

do responsável pela performance. Tais princípios de composição também

puderam ser verificados por Parry entre os cantores orais épicos iugoslavos.

Referindo-se a Eric Havelock, em Preface to Plato, publicado em 1963, Ong

destaca:

Os gregos homéricos valorizavam os clichês porque não apenas os poetas, mas o mundo noético oral ou o mundo do pensamento apoiava-se na constituição formular do pensamento. Na cultura oral, o conhecimento, uma vez adquirido, devia ser constantemente repetido ou se perderia: padrões de pensamento fixos, formulares, eram essenciais à sabedoria e à administração eficiente. Mas, por volta da época de Platão (427?-347 a.C.), uma mudança se iniciara: os gregos finalmente haviam interiorizado a escrita – algo que levou muitos séculos após o desenvolvimento do alfabeto grego, por volta de 720-700 a.C. (ONG, 1998, p. 33)

Ong (1998, p. 33) ressalta que, para Havelock, ao utilizarem o texto escrito,

e não a memória, como forma de armazenar seus poemas, os gregos libertaram

sua mente para pensamentos mais abstratos. No caso da lírica grega,

especificamente, a escrita representou um afastamento entre o eu-poeta oral e o

tu-platéia, existentes no momento da performance. Através da performance, o

ouvinte podia se identificar tanto com o eu quanto com o tu do poema

performatizado. O ouvinte, enquanto durasse a performance, era parte do discurso

lírico. (Johnson, 1982, p.72)

4 Data de 1930, 1932 o estudo feito por esses autores, intitulado Studies in the epic technique of oral verse-making. 1.Homer and Homeric style. 2. The Homeric language as the language of an oral poetry.

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Devido ao suporte que trazia o texto escrito e ao tipo de escrita que

possuía, o modo de ler e de escrever do homem grego antigo conservou seus

vínculos com a palavra falada. Segundo Svenbro (2002, p. 48-49), a scriptio

continua trouxe uma necessidade inevitável de vocalização da escrita para a sua

compreensão, e o texto, então, seria a própria trama vocal advinda da vocalização

da escrita, “a realização sonora do escrito, o qual não poderia ser distribuído ou

dito sem a voz do leitor”, de acordo com o autor.

Assim, conforme Svenbro, para os gregos antigos:

Ler é, pois, colocar sua própria voz à disposição do escrito (em última instância, do escritor). É ceder a voz pelo instante de uma leitura. Voz que o escrito logo torna sua, o que significa que a voz não pertence ao leitor durante a leitura. Esse último a cedeu. Sua voz submete-se ao escrito, une-se a ela. Ser lido é conseqüentemente exercer um poder sobre o corpo do leitor, até mesmo a grande distância no espaço e no tempo. O escritor que consegue fazer-se ler atua no aparelho vocal do outro, o qual se serve, mesmo após sua morte, como de um instrumentum vocale, isto é, como de alguém ou de alguma coisa a seu serviço, até mesmo de um escravo (SVENBRO, 2002, p. 49).

Ainda sobre a Antiguidade, Chartier (1999, p. 24) destaca que o leitor dos

livros em rolo transformava muitas vezes a leitura e a escrita em um ato realizado

em dupla, ou mesmo em comunidade. Por ter de segurar o rolo com as duas mãos

para desenrolá-lo, tal leitor via-se impedido de escrever suas reflexões ao mesmo

tempo em que lia. Dessa forma, ditava suas impressões ou tudo o que lhe

inspirasse a leitura a um escriba. Assim, também a escrita era mediada pela voz.

Contudo, apesar da presença da voz no processo de lecto-escrita dos

gregos antigos, de acordo com Svenbro, houve por essa época, mesmo com o

uso da scriptio continua, uma prática de leitura silenciosa, originada possivelmente

da necessidade de leitura quantitativa de textos. Segundo o autor, essa técnica

estava reservada a uma minoria, “mas uma minoria importante, na qual se

encontravam certamente os poetas dramáticos” (Svenbro, 2002, p. 56).

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A fundação do museu e da biblioteca de Alexandria foi um marco na história

da leitura, pois reuniu um grupo de críticos, dentre eles Aristófanes de Bizâncio.

Com Aristófanes, surgiu já uma teoria do gênero lírico voltada para um estudo de

suas propriedades formais, como metro e estratégias retóricas. Aristófanes teceu

seus estudos em um mundo não mais de poemas cantados, mas no de livros, que,

no dizer de Johnson (1982, p. 87), via a música muitas vezes separada da poesia,

bem como as circunstâncias de realização e as funções da lírica de uma forma

diferente.

No século IV a.C., a filosofia literária, a nova comédia, a história e a oratória

usurparam muitas das funções que tinha o lírico. Isócrates chamou a atenção para

as funções e as glórias da poesia, colocando como uma vantagem da criação

dessa o uso do metro, do ritmo, da música e do verso, empregados juntos.

Contudo, ele não disse que, por sua época, junto com a dissociação da música,

foram-se também as histórias, os mundos e os dramas internos e as intensidades

que a música exaltou e confirmou. (Johnson, 1982, p. 97)

No século III a.C., quando a lírica ressurgiu, o mundo que encontrou era

muito diferente daquele em que ela florescera um século antes: na Alexandria,

com a dissociação verso-música, os versos passaram a ser falados por leitores e

não mais por membros da comunidade. Imprimiu-se, assim, nos poemas dessa

época, uma marca da escrita. Um exemplo dessa poesia “letrada” é o poeta

Calímaco, que vivia segura e confortavelmente na Alexandria. Tal segurança, no

dizer de Johnson (1982, p. 99), gerou uma produção poética que se preocupava

mais com o como dizia do que com o que dizia. Calímaco tornou-se, de certa

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Indícios dessa forma de ler e de escrever são hoje cada vez mais

percebidos pelos historiadores na arte estatuária helenista. Destacam Cavallo e

Chartier:

A arte estatuária e os túmulos da época mostram cada vez com maior freqüência figuras de leitores, porém, ao contrário da época clássica, estamos quase sempre diante de leituras solitárias, como se tivesse sido estabelecida desde então uma relação mais íntima e particular com o livro. Da leitura como momento de vida associativa própria da polis, passara-se à leitura como um dobrar-se sobre si mesmo, como procura interior, refletindo bem as atitudes culturais e as correntes de

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romano, era solicitada uma emendata velocitas, ou seja, “um considerável grau de

rapidez sem incorrer em erros” (Cavallo, 2002, p.79). Cabia ao leitor romano,

dessa forma, realizar uma leitura em voz alta em que o olho precedia a voz, uma

leitura ao mesmo tempo visual e oral, o que explica uma forte interação entre

escrita literária e leitura entre os romanos. “Ler um texto literário era, em suma,

quase executar uma partitura musical” (Cavallo, 2002, p. 80). Isso explica que a

leitura expressiva condicionasse a escrita literária, que exigia traços próprios da

oralidade.

Nesse sentido, é significativa a produção de Horácio, poeta latino do século

II a.C, que tanto produziu poemas como refletiu sobre sua arte. Na Epistula ad

pisones, o autor destaca que uma das condições da poesia é provocar emoção no

ouvinte: “Não basta serem belos os poemas; têm de ser emocionantes, de

conduzir o sentimento do ouvinte aonde quiserem (...) se me queres ver chorar,

tens de sentir a dor primeiro tu” (Horácio, 1997, p. 28). Nesse trecho da Epistula,

Horácio fala da relação íntima entre poeta-sentimento-poema-ouvinte que ele

tanto procurou em seus poemas ao tentar criar uma atmosfera de oralidade na

escrita.

No que diz respeito à sua produção poética, Horácio buscou nos metros

gregos líricos inspiração e desafio para suas composições. Devido às diferenças

lingüísticas (e conseqüentemente de metro) existentes entre as línguas grega e

romana, ele tentou criar em suas composições a ilusão da música. Compôs

poemas em que se imaginava um cantor na presença de uma platéia. No papel,

Horácio tentou recuperar a essência da poesia grega performatizada. Contudo,

por ter apenas simulado uma situação de performance, o tu a quem ele se dirigia

não tinha a proximidade de uma platéia de um poeta oral: o tu a quem ele se

dirigiu, de acordo com Johnson, pode ser visto como uma metáfora do leitor que o

lê: (...) ele conseguiu sugerir um pouco da sensação da música e da performance

no papel. (...) Horácio é presente para nós porque ele nos assegura, através de

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suas metáforas, pronomes de segunda-pessoa, que nós estamos presentes para

ele (Johnson, 1982, p. 127 - tradução minha).

Já para Longino, a oralidade e a corporalidade do poema favoreciam o

arrebatamento do leitor. No seu Do sublime, aproximadamente no século I d.C.,

apesar de não se deter no estudo das formas líricas, o autor menciona como

sublime o modo através do qual Safo, em um de seus poemas, utiliza elementos

sensoriais para expressar suas emoções. Através de sua composição, ela provoca

no tu a quem ela se dirigiu experiências sensoriais:

Não te admira como a poetisa Safo busca juntamente a alma, o corpo, os ouvidos, a língua, os olhos, tudo como alheio e apartado dela e, contraditoriamente, ao mesmo tempo, gela, arde, desatina, atina (pois ou se apavora ou quase morre) para que apareça nela, não apenas uma emoção, mas todo um congresso de emoções? Todos os sintomas dessa natureza acontecem aos apaixonados, mas, como disse, a colheita dos mais agudos e a combinação deles num todo é que consuma o primor (LONGINO, 1997, p.82).

No caso dos gregos e dos romanos, se, por um lado, a escrita trouxe a

possibilidade de distanciamento entre o eu e o tu envolvidos na performance de

um poema, por outro, inicialmente, ela tentou simular a interação própria da

performance, assim como serviu de suporte para o oral. Ainda em relação à

escrita e seu suporte, entre os romanos, o aparecimento do códice (codex)5, livro-

caderno, com páginas, no lugar dos rolos (volumen), provocou uma mudança

significativa na maneira de ler. Com as mãos livres, o leitor do códice podia ler e

anotar, às margens dos textos, suas observações e percepções, enfim, suas notas

de leitura. O detentor do códice estava livre para suas subversões leitoras e podia

individualizar seu ato de ler:

(...)folhas inteiras ou partes dela em branco, papel da guarda, pastas internas de encadernação podem acolher as notas mais diversas e as mais “anárquicas”. Sempre era possível estratificar nas margens intervenções de várias mãos relativas à exegese de textos; ou era

5 Segundo Cavallo (2002, p. 91): “O códice literário é uma invenção romana. A partir do século II d.C., o livro em forma de rolo, vindo do mundo helenístico, começa a perder progressivamente terreno até o total domínio do códice”.

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possível transferir – de outros livros – comentários inteiros. O códice impunha permanentemente uma leitura simultânea e coordenada entre texto principal e textos anexos e voltada à interpretação: uma leitura, portanto, reservada a poucas pessoas (CAVALLO, 2002, p. 95).

Mesmo cada vez mais voltada para o silêncio e para o ato individual, a

leitura ainda esteve vinculada à voz na Idade Média. Zumthor (1993, p. 80)

destaca o papel da Igreja na fixação de textos através da escrita e observa que os

textos poéticos de língua românica anteriores a 1100, que foram conservados,

tinham por finalidade servir à liturgia. Dessa forma, através da voz, a religião

oferecia à maioria dos homens “o único sistema de explicação do mundo e de

ação simbólica sobre o real” (Zumthor, 1993, p. 80). Poesia e religião misturavam-

se e tinham com o ensino estreita relação: através da voz e do gesto ensinava-se

o saber eclesial. A escrita era, assim, suporte para o oral; e a leitura, intensiva: era

preciso saber in arca pectoris.

1.2 Da voz que soa ao outro à voz que ecoa o peito Ao falar das práticas monásticas na Alta Idade Média, Parkes destaca que

uma das mudanças em relação ao ato de ler da Antiguidade foi que, nessa, a

leitura enfatizava a declamação do texto e se preocupava em reproduzir o sentido

e o ritmo da escrita, enquanto, naquela, a leitura em voz alta sobreviveu apenas

nas liturgias. O ler em voz alta circunscreveu-se, no ambiente religioso, à “prática

utilizada durante a lectio monástica para desenvolver no leitor uma memória oral e

vigorosa das palavras, base para a sua meditatio” (Parkes, 2002, p. 105).

No que diz respeito ao ensino de crianças na Idade Média, assinala Parkes:

O hábito de fazer com que as crianças lessem, para seus professores, versos que tinham copiado dos salmos, sem necessariamente terem aprendido antes a ordem das letras do alfabeto (a prática antiga), também era muito significativa. O método não apenas as ajudava a identificar as funções de letras e palavras no texto, mas também tinha como objetivo auxiliar as crianças a fazerem a transição de uma cultura oral para o conhecimento das convenções gráficas da cultura escrita, à qual a tradição cristã devia a possibilidade de transmissão (PARKES, 2002, p. 106).

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Se a ênfase na leitura oral esteve presente na prática monástica e no

ensino de crianças, aos poucos, a partir do século VI, houve um crescente

interesse pela leitura silenciosa. Segundo Parkes (2002, p. 105), nas Regras de

São Bento, há referências à necessidade de ler para si mesmo para não

incomodar os outros. Tal leitura era supervisionada para que se evitassem a

preguiça e a distração.

Mesmo que contasse com o suporte da escrita, na Idade Média, a voz

permanecia ainda como legitimadora e instauradora de sentidos em um texto.

Zumthor assinala que:

(...) desde a alta Idade Média, as técnicas pedagógicas se constituíam sobre uma estreita base de escrita, por memorização: conforme um costume que remonta à Antiguidade, cantarolam-se a sós ou em um grupo as fórmulas que condensam os rudimentos de uma ciência, esses versus memoriales dos quais nos resta um vasto corpus, ainda mal inventariado. Mais ainda: possuímos alguns manuscritos que foram estabelecidos no meio escolar medieval e que fornecem extratos de Horácio e Virgílio com uma notação musical! Aprende-se de cor tal ou qual desses florilégios, numerosos desde o século X, destinados a conservar in arca pectoris (“no tabernáculo do coração”) os Ditos dos Antigos. O Memoriale de Alexandre de Villedieu, do fim do século XII, manual básico largamente usado, tão somente uma gramática versificada, portanto consagrada ao mesmo modo de utilização. Memorizada, ela funda, da parte do professor, a glosa oral, em equilíbrio instável nas fronteiras da escrita, pois a citação, que corrobora o dizer referindo-o à Autoridade, transita necessariamente pela voz – a voz do Autor, re-presentada por quem a pronuncia numa performance quase teatralizada. (ZUMTHOR, 1993, p. 83)

Não só no espaço religioso a palavra oral era valorizada. Até o século XII, a

palavra poética circulava na voz dos trovadores, dos jograis, dos menestréis, que

a traziam em estado de performance. Formada na boca dos nômades, a palavra

poética oral espalhou-se e se difundiu, com feições semelhantes, embora com

tons regionais. Destaco nesse ponto a importância dos poetas do Languedócio,

que, no curso do século XII, desenvolveram sua poética fundada no cantar

palaciano de amor.

Spina (1996, p.22) relata que, enquanto no norte da França, as canções de

gesta celebravam o espírito guerreiro da sociedade aristocrática, cujo tema era a

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luta, no sul, apareceram composições sentimentais que transformaram a mulher

em santuário de sua inspiração. O amor, tal como cantado por alguns trovadores,

era integral e pressupunha a junção corpo e mente, a sensorialidade:

Se por um lado a canção provençal é um hino ao amor puro, nobre, inatingível, por outro sentimos muitas vezes pulsar, sob forma subjacente, o amor carnal. Ao amor-elevação associa-se não raro o amor dos sentidos, a ponto de, numa mesma poesia (como é o caso de muitos trovadores), encontrarmos enlaçadas as duas formas. O amor para os trovadores era, como bem definiu Bernart de Ventadorn, o amor integral, o puro, o da carne; a alegria da razão (amor intelectual) e a alegria dos sentidos (a boca, os olhos e o coração) (SPINA, 1996, p. 26).

Sobre Bernart de Ventadorn, trovador provençal que viveu

aproximadamente de 1150 a 1180, Spina destaca o trecho que demonstra o amor

integral, em que a joy consiste na satisfação de todos os sentidos, inclusive da

inteligência. Corpo e cantar d’amor caminham juntos: Chantars no pot gaire valer,/ si d´ins dal cor no mou lo chans;/ ni chans no pot dal cor mover,/ si no es fin´amors coraus./ Per so es mos chantars cabaus/ qu´enjoi d´amor ai et enten/ la boch´e.ls olhs e.l cor e.l sens. (Para nada serve cantar se o canto não parte do fundo do coração; e, para que o canto venha do fundo do coração, é necessário que aí dentro exista um verdadeiro amor. E é por isso que minha poesia é perfeita, pois para o gozo pleno do amor emprego a boca, os olhos, o coração e a inteligência) (SPINA, 1996, p. 24).

A lírica occitânica fez surgir um tipo de produção veiculada pela voz, com

traços de poema autoral: ela requeria domínio de técnica, tanto do verso, quanto

da música, pressupunha a arte pela arte, a vassalagem amorosa e a consciência

de seus meios de realização artística, ao mesmo tempo em que utilizava temas de

inspiração nos cantos de primavera, de origem popular, irmanados ao canto e à

dança. No caso do lirismo galego-português, temas que apareciam também nas

cantigas d´amigo, em que quem se expressava era a mulher. Obra de um poeta-

masculino, a lírica galego-portuguesa das cantigas d´amigo expressavam as

vivências de um eu-feminino. A partir do século XIII, com intermédio da Igreja, os

novos trovadores viram-se envolvidos na temática do culto à Virgem Maria.

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Mesmo com a difusão da escrita, a produção poética medieval transitou

entre a zona da escritura e da oralidade, o que fez com que Zumthor falasse da

poesia dos séculos XII e XIII como escritura que funciona em oralidade:

De vários letrados do século XIII, como os teólogos de Citeaux ou Pedro, O Venerável, sabemos que compunham de memória suas obras e as ditavam a um secretário, o qual as anotava com um estilo sobre as tabuinhas; em seguida, o autor retomava e corrigia esse rascunho. Também ocorria fazer sozinho o primeiro trabalho e inscrever diretamente, pronunciando-o em voz alta, o texto sobre as tabuinhas. À mesmas época, é provável que os escritores de língua vulgar, como por exemplo nossos primeiros romancistas, tenham usado esses procedimentos. Uma pintura do chansonnier N (da Pierpont Library, em Nova York), executada em meados do século XIV, representa um trovador anotando (com evidente dificuldade) sua canção sobre uma longa folha solta (ZUMTHOR, 1993, p. 98).

A escrita, dessa forma, passava pelos ouvidos do copista, estava ainda

vinculada à oralidade, e escrever, conseqüentemente, era obra de tempo e

esforço físico. Era, portanto, recriação de quem ouvia e registrava o que ouvia: o

escriba assinava sua cópia. Pouco importava a diferenciação entre autor, escriba

e intérprete. Ao passar da voz e da memória do intérprete para o ouvido e a arca

pectoris do escriba, a poesia na Idade Média ainda permaneceu essencialmente

performática. Obra de um eu-trovador para um tu-platéia ou um tu-escriba.

1.3 Da palavra sem voz à palavra de dentro

Do século XVI ao XVIII, novas modalidades da relação com a escrita

construíram-se numa esfera de intimidade, ao mesmo tempo retiro e refúgio para

o indivíduo subtraído aos controles da comunidade. Ler, assim, passou a ser a

relação de intimidade entre livro e leitor. Tal forma de ler fundamentou-se, ainda

na Idade Média, como o modelo escolástico de leitura, época que, no dizer de

Hamesse, inaugurou o ato de ler com uma certa organização. A leitura escolástica

exigia um método determinado para a compreensão de um texto. Por isso,

surgiram publicações como os florilégios e resumos, que serviam para facilitar o

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trabalho ou por prazer eram atos que não desapareceram com a revolução da

leitura no silêncio e na intimidade”, conforme Chartier (1991, p. 113).

Para os humanistas, a tensão entre o oral e o escrito, o público e o privado

permaneciam. Havia, no decorrer dos séculos XV e XVI, a ênfase nas qualidades

auditivas dos textos no modo como os estudantes os apreciavam, através da

declamação. Era a sensualidade das palavras que despertava no leitor a

compreensão do texto escrito, conforme explicita Grafton: “O humanista abordava

o texto mais intimamente não quando ele interpretava as palavras escritas no

papel ou pergaminho, mas sim quando sensualmente pronunciava com os lábios

os sons dos textos” (Grafton, 2002, p. 24). Em contrapartida, a relação do

humanista com o livro e com o texto escrito era a de propriedade única de um

objeto ao mesmo tempo industrial e artesanal. Com o advento da imprensa, os

livros eram produzidos em mais larga escala. Porém, os humanistas tentavam dar

a eles aparência de exemplares únicos. Diz Grafton sobre a relação livros-leitores

humanistas:

O livro utilizado pelo humanista, manuscrito ou impresso, era algo ao mesmo tempo familiar e estranho para nós. De modo geral, o livro começava como objeto de produção em massa, mas a seguir passava por uma metamorfose e ganhava forma individual, na medida em que nele se fundiam as visões de seu proprietário e do empresário que o havia produzido. (...) O humanista abordava seu livro, num primeiro momento, como um adolescente da Califórnia dos anos 1950 lidava com um automóvel fabricado em Detroit. Adquiria um produto com aspecto específico e vívido, algo que os peritos haviam desenhado para ser atraente ao seu gosto e desejo. Mas ele redesenhava o produto na medida em que o utilizava, mudando o aspecto que antes apreciara, acrescentando decorações singulares, tornando pessoal o resultado da produção em massa. (GRAFTON, 2002, p. 23)

Na Renascença, assim como os livros, também o saber era “costumizado”,

para utilizar um neologismo surgido atualmente no âmbito da moda. Cabia a cada

aluno fazer suas leituras dos clássicos e dar a elas sua feição própria. Tal

concepção de saber proporcionou a procura dos clássicos através de antologias, o

que fez com que essas obras fossem muitas vezes conhecidas através de suas

apropriações por diferentes leitores. Um exemplo, citado por Grafton (2202, p. 31),

é o fato de, no século XVI, muitos jovens europeus conhecerem a história da caixa

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de Pandora pela versão de Erasmo, mais suave do que a de Píndaro. Em relação

à escrita, o ato de copiar tinha muita importância para a compreensão do texto

lido. Muitos estudiosos, inclusive, sabiam de memória textos que liam por os terem

copiado linha por linha (Grafton, 2002, 35).

Quanto à leitura das classes populares, da Renascença ao período

clássico, Chartier (2002, p. 118) destaca que os leitores populares possuíam livros

que não lhes eram especificamente destinados. O autor cita o depoimento de

Menocchio, moleiro friulano, estudado por Carlo Ginsburg, no livro O queijo e os

vermes.

Em O queijo e os vermes, Carlo Ginzburg (1987) faz o estudo do caso de

um moleiro friulano, chamado Domenico Scandella, conhecido por Menocchio,

julgado e queimado por ordem do Santo Ofício. Através da documentação de dois

processos, distantes quinze anos um do outro, em que Menocchio se viu arrolado,

Ginzburg pretende reconstruir um fragmento do que era a “cultura das classes

subalternas” ou “cultura popular” da época e da região em que viveu Domenico

Scandella. Para tanto, embasa-se no conceito bakhtiniano de circularidade. O

pensamento de Menocchio expressava muitas das crenças populares de então,

pois essas coexistiam com um conjunto de idéias que iam do radicalismo religioso

ao naturalismo científico e às aspirações utópicas de renovação social.

Segundo Ginzburg, dois grandes eventos possibilitaram o surgimento do

caso de Menocchio: a invenção da imprensa e a Reforma. A imprensa possibilitou

o acesso das classes populares à escrita, o que proporcionou certo confronto das

crenças de tradição oral com o que era lido. A Reforma, no caso do moleiro, deu-

lhe coragem de comunicar suas idéias frente à Igreja.

O autor destaca, também, a ênfase dada na forma de leitura feita pelo

moleiro. Consta, nos papéis do inquérito, uma coleção de onze livros: a Bíblia, Il

fioretto della Bibbia, Il lucidario della Madonna, Il lucendario de santi, Historia del

giudicio, Il cavalier zuanne de Mandavilla, Il sogno de Caravia (ao qual Menocchio

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denomina “um livro que se chama Zampollo”), Il supplimento delle cronache,

Lunario ao modo di Itália calculato composto nella città di Pesaro dal eccmº

dottore Marino Camilo de Leionardis, Decameron e, supostamente, o Alcorão.

O repertório de Menocchio, apesar de curto, serviu para que o moleiro,

através de uma leitura intensiva (ele lia e relia os livros várias vezes, ao longo de

anos) confirmasse suas idéias e convicções fundadas na tradição oral: Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral, da qual era depositário, que induziu Menocchio a formular – para si mesmo em primeiro lugar, depois aos seus concidadãos e, por fim, aos juízes – as “opiniões” [...] [que] saíram de sua própria cabeça (GINZBURG, 1987, p. 80).

Segundo Ginzburg (1987, p. 95), o moleiro “lera poucos livros, em geral por

acaso. Desses, mastigara, triturara cada palavra e frases fermentaram em sua

cabeça”. Assim, as leituras de Menocchio, parciais e arbitrárias, transformavam

muitas vezes os sentidos dos textos originais, na medida em que ele, originário de

uma cultura oral, baseava-se em sua memória. “O filtro da memória de Menocchio

transforma a narração de Varagine em seu contrário”, ressalta o autor (Ginzburg,

1987, p. 83).

Menocchio lia além da escrita, mas seu modo de ler de forma alguma

relegava o texto a uma função secundária. Há, em sua leitura, uma re-elaboração

original que lhe permite explicar sua cosmogonia e justificar suas crenças. Para

tanto, utiliza-se de relatos de matriz oral, como a lenda medieval dos três anéis e

excertos pinçados dos livros que lia e trazia de memória: “Não o livro em si, mas o

encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de

Menocchio, uma mistura explosiva” (Ginzburg, 1987, p. 103).

A forma como o moleiro propagava sua cosmogonia era também ela oral,

transmitida de boca em boca, transformada pela memória, o que fazia com que,

aparentemente, seu discurso houvesse sido simplificado ou distorcido:

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Povoledo estava relatando que um amigo lhe contara oito dias antes, “caminhando pela rua, indo para o mercado em Pordenone”, e o amigo, por sua vez, lhe tinha repetido o que ouvira de um outro amigo, que havia falado com Menocchio (GINZBURG, 1987, p. 105).

Ginsburg observa que, ao longo do processo, “Menocchio estava pronto

para variar este ou aquele elemento da sua cosmogonia, desde que mantivesse

intacto seu caráter essencial” (Ginzburg, 1987, p. 106), o que ressalta seu caráter

de narrador oral, que utiliza uma estrutura formulaica. Um outro índice de

oralidade nos depoimentos do moleiro é o uso de analogias ligadas ao cotidiano, o

que justificaria sua “recusa em atribuir à divindade a criação do mundo – e, ao

mesmo tempo, a obstinada reafirmação dos elementos aparentemente muito

bizarros: o queijo, os vermes-anjos nascidos do queijo” (Ginzburg, 1987, p. 110),

presentes em sua cosmogonia. De fato, as analogias de Menocchio apareciam em

mitos muito antigos, passados de geração em geração. Num mito indiano, “a

origem do cosmo é explicada pela coagulação das águas do mar primordial,

batidas pelos deuses criadores” (Ginzburg, 1987, p.111). O autor ressalta que, não

obstante essa semelhança entre o pensamento de Menocchio e o mito veda,

possivelmente, ao falar de queijo, o moleiro não estivesse se referindo ao um

queijo mítico, mas ao real.

A abstração é própria do universo letrado e Menocchio, que compreendia a

escritura como forma de se inserir em um grupo ao qual não pertencia, procurava

mesclar seu léxico humilde a outro sofisticado, adquirido por suas leituras. Por

isso tinha vontade de falar aos inquisidores: para exprimir, através de terminologia

cristã, neoplatônica e escolástica, um materialismo elementar e instintivo das

classes populares. Outro índice de oralidade nos depoimentos de Menocchio é a

imagem que faz do paraíso, próximo da Cocanha, imagem de paraíso, de mundo

novo, que surgiu em diferentes épocas, nas mais diversas culturas, com feições

distintas.

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Apesar de seu julgamento inquisitorial, o moleiro continuou com seu

prestígio junto aos seus conterrâneos e seguia tocando violão por festas, o que

denuncia mais ainda o abismo existente entre ele e seus inquisidores, não

obstante seu esforço de aproximação. Através do depoimento de Menocchio nos

autos da Inquisição, Ginsburg chama a atenção para o fato de que ele não era o

único em sua época. Apenas deixou rastros de seu depoimento oral nos registros

da Inquisição. O modo de ler de Menocchio pode ser generalizado para todo um

segmento popular de sua época.

No Antigo Regime, em relação à leitura e à escrita, se todos os que

assinavam o nome sabiam ler, o contrário nem sempre ocorria. Entre os que

sabiam assinar, nem todos escreviam. A era moderna, em toda a parte, conheceu

um crescimento das porcentagens de homens e mulheres capazes de assinar o

nome. Entre os séculos XVI e XVII, o acesso das sociedades ocidentais à escrita

não foi um progresso linear e contínuo. Circundava o aprendizado da escrita toda

uma prática corporal: “Escrever bem é saber manter o corpo a boa distância da

folha, posicionar os braços corretamente sobre a mesa, segurar de maneira

adequada a pena talhada de antemão”. (Chartier, 1991, p. 114)

Ainda nessa época, a porcentagem de assinaturas na Europa mostra uma

série de diferenças, tais como a de gênero: entre mulheres era menor a

porcentagem de assinaturas, pois não constava como parte da educação das

meninas o aprendizado da escrita, tida como inútil, e, principalmente, perigosa.

Outra diferença ocorria com os ofícios e as profissões: quanto mais qualificado o

ofício, maior o percentual de pessoas capazes de assinar seus nomes. Uma

terceira diferença diz respeito ao maior número de pessoas que assinavam seus

nomes estarem não no meio rural, mas nas cidades modernas.

Saber ler era condição obrigatória para o surgimento de novas práticas

constitutivas da intimidade individual. A relação pessoal com o texto lido ou escrito

começava a se liberar das antigas mediações e a se subtrair ao controle de

grupos, autorizando o recolhimento (Chartier, 1991, p. 119). Surgiu, assim, uma

nova relação do homem com a divindade, com os outros e com os poderes, uma

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maior emancipação com relação às formas tradicionais da existência que ligavam

estreitamente o indivíduo a sua comunidade. A difusão da capacidade de ler e

escrever e a multiplicação dos objetos impressos quebraram o quase monopólio

eclesial sobre a escrita e, conseqüentemente, trouxeram a produção e a discussão

do conhecimento.

A “privatização” da prática da leitura possibilitou a interiorização imediata do

que era lido por aquele que lia:

A princípio reservada aos copistas dos scriptoria monásticos, a partir de meados do século XII transforma os hábitos universitários e dois séculos depois conquista as aristocracias leigas. No século XV, a leitura silenciosa tornou-se, portanto, a maneira usual de ler (...) (CHARTIER, 1991, p. 126).

A quantidade de livros que constavam nos inventários, mesmo que isso não

fosse prova de que os exemplares inventariados tivessem efetivamente sido lidos

por seus donos, é uma das fontes que proporcionaram a afirmação de que a

leitura e a escrita vinham se constituindo em práticas de mais pessoas. Mas o fato

de, no século XVI, em várias cidades européias, o livro estar presente em muitos

inventários indicia que havia uma maior presença de livros como propriedade

pessoal, numa determinada classe social.

Ao ser lido em silêncio, o livro tornou-se companheiro de uma intimidade

até então não vista. Aos poucos, os livros foram transferidos de lugares de acesso

público da casa para lugares de mais intimidade, como o quarto do casal, o que

diz respeito ao ato de ler antes de dormir, quer solitariamente, quer a dois. A

biblioteca passou a ser lugar de retiro, estudo e meditação solitária. Contudo, isso

não significava reclusão ou recusa do mundo: “As horas passadas na biblioteca

asseguram, com efeito, o duplo afastamento com relação ao público, ao civil e aos

negócios que são os da cidade e do Estado; afastamento com relação à família, à

casa, às sociabilidades que são as da intimidade doméstica. Ali o indivíduo é dono

do seu tempo, do seu ócio, do seu estudo” (Chartier, 1991, p. 138).

A escuta à leitura era prática freqüente no século XVII. Ela fortalecia as

amizades e preenchia as horas de folga. As reuniões em torno do livro tanto eram

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em forma de “academias” ou de visitas casuais a amigos. Entretanto, mesmo a

leitura compartilhada, passava a pressupor a leitura solitária: “Ouvir, ler, ler a dois,

falar de livros, conversar no meio deles pressupõem leitores que com freqüência

lêem a sós, na intimidade, mas fazem um uso social do livro” (Chartier, 1991, p.

150). A leitura em voz alta reforçava, dessa forma, outro setor da vida privada: a

intimidade familiar.

Quanto à leitura popular, pode-se encontrar também, ainda segundo

Chartier, uma pluralidade de usos do impresso, que nem sempre são em forma de

livros: vão dos livres de pourtraicture aos cartazes afixados nos muros e aos

textos religiosos. Na Espanha do século XVI e XVII, formaram-se auditórios para

ouvir leitura de vários escritos em voz alta, principalmente novelas de cavalaria,

pliegos sueltos e pliegos de cordel. As imagens de confraria também constituíram

uma forma de leitura popular:

Pregados na parede ou guardados em local seguro, tais objetos em que a imagem sempre acompanha o texto, permitindo assim uma pluralidade de leituras, desempenham um papel fundamental como referenciais para a lembrança e para a auto-afirmação, portanto para a constituição de um privado ao mesmo tempo íntimo e exposto (CHARTIER, 1991, p.157).

Para algumas pessoas das classes populares, o domínio da escrita

traduziu-se através de coletâneas feitas à mão com histórias de vida. Esses

relatos revelavam uma familiaridade popular com a escrita que, “no final do século

XVIII, permitiu aos humildes modelarem pelas leituras feitas o relato de sua vida –

vivida em atos e em imaginação” (Chartier, 1991, p. 159).

Com o Romantismo, apesar da busca de formas próximas às orais,

reforçou-se a marca da universalidade e do idealismo hegeliano. Hegel, no início

do século XIX, em sua Estética, fala da poesia como o terceiro termo das artes

românticas (as outras duas são a música e a pintura). Para ele, a poesia

representa o espírito e é “simultaneamente sintética e analítica: sintética, na

medida em que é capaz de reunir num único feixe os elementos da interioridade

subjectiva; analítica, na medida em que é susceptível de desenvolver, justapondo-

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se umas às outras, as particularidades e singularidades do mundo exterior”

(Hegel, s.d., p.13).

Dessa forma, para ele, a poesia é capaz de representar um objeto em toda

a sua íntima profundidade, assim como em toda a extensão da sua explicitação

temporal. Hegel aponta, também, o fato de que a poesia tem em comum com a

música os materiais exteriores sobre as quais ambas atuam, a saber, os sons

(Hegel, s.d., p. 15). A diferença, contudo, está no fato de que, na poesia, “o

espírito afasta o seu conteúdo do elemento puramente sonoro e manifesta-se por

meio de palavras que, sem deixarem de ser sonoras, reduzem-se a uma série

simples de sinais exteriores destinados a transmitir o pensamento” (Hegel, s.d., p.

17). Na concepção do autor, ainda, o que torna poético qualquer conteúdo é a

fantasia artística e não a representação em si. Há assim, nas idéias de Hegel, uma

valorização da figura do artista/poeta, ou seja, do indivíduo criador do poema e

não da figura que a performatiza, como acontece em poemas de tradição oral.

Schiller, em 1800, no seu ensaio Sobre poesia ingênua e poesia

sentimental, lança as bases do movimento “Sturm und Drang” (através de

Schlegel e Goethe) e do Romantismo de toda a Europa (Lobo, 1987, p. 42-49).

Schiller diferencia poetas ingênuos de poetas sentimentais da seguinte forma:

Portanto, ou o poeta é a natureza ou a buscará; no primeiro caso resulta o poeta ingênuo, no segundo, o sentimental. (...) Enquanto o homem ainda está na natureza pura – claro que não bárbara – atua como unidade sensorial indivisa e como um todo harmônico. Os sentidos e a razão, a faculdade receptiva e a ativa ainda não começaram a se separar nas suas tarefas, e muito menos a se oporem entre si. Suas sensações não são joguetes (sem forma) do acaso, nem seus pensamentos são joguetes (sem conteúdo) da imaginação; aquelas procedem da lei da necessidade, estes da realidade. Quando o homem entrou na etapa da cultura, e a arte o tocou, aboliu-se a sua harmonia sensorial e só lhe restou expressar-se como unidade moral, isto é, como ser que se anula à unidade (LOBO, 1987, p. 47/48).

Observamos, também, nos textos dos românticos sobre o seu fazer literário,

a distinção que mantêm entre música e poesia. Acerca desse aspecto, diz

Stendhal, em Sobre a arte, texto de 1824: “O que torna a música o prazer que

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mais enleva a alma e que lhe dá uma superioridade evidente sobre a poesia é que

ela se mescla a um prazer físico extremamente vivo” (Lobo, 1987, p. 148). O

trecho de Stendhal traz a música associada ao corpo e separa a poesia do ato

performático. Poesia passa a ser, para os românticos, o ato abstrato que

prescinde da forma.

Surgiu, então, com o Romantismo, o conceito de poeser 2(m)9.2(m)9.2(m)9.2()-15.itume d-a. e

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Hugo Friedrich (1978, p. 141), ao estudar a lírica moderna, ressalta que o

estilo lírico presente até o final do século XX nasceu na França, em meados do

século XIX, e foi traçado a partir de Baudelaire. Segundo o autor, tal lírica

caracterizou-se pela tensão entre forças cerebrais, que viam o poema como

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sofre e a mente que cria; o mais perfeitamente a mente vai digerir e transmutar as paixões que são seu material (ELIOT, 1920, cap. II, disponível em http://www.bartleby.com/200/sw4.html, acesso em 29 de março de 2006).

A poesia, tal como propôs Eliot, não deveria ser feita a partir de uma única

emoção, a do próprio poeta, mas a partir de várias, das quais o poeta seria o

porta-voz. Vazia de si mesma, a mente do poeta passava a ser o receptáculo que

armazenava diferentes vivências, sensações, frases, imagens, partes que lá

permanecessem, até que fossem unidas no poema, para formar um novo todo.

Para Eliot, o poeta não tinha uma personalidade para expressar, mas uma

combinação de impressões e experiências importantes para os seres humanos em

geral. Por isso, a tarefa do poeta não era a busca de novas emoções, mas o

resgate das cotidianas, trabalhadas no interior do poema. A poesia, assim,

transformar-se-ia num escape à própria personalidade.

Mais do que inspirado, o poeta passou a ser o artífice que construía seu

texto e estava atento ao cotidiano, transformando o sujeito poético numa espécie

de sujeito coletivo, de um sujeito anônimo. Diz Apollinaire, em sua conferência,

pronunciada em 1917, intitulada “O espírito novo e os poetas”:

É que poesia e criação não são mais que uma mesma coisa; só devemos chamar de poeta àquele que inventa, àquele que cria, na medida em que o homem pode criar. O poeta é aquele que descobre novas alegrias, sejam elas difíceis de tolerar. (...) Podemos partir de um fato cotidiano: um lenço que cai pode ser para o poeta a alavanca com a qual ele levantará todo o universo. Sabemos o que a queda de uma maçã, vista por Newton, significou para este sábio, que podemos chamar de poeta. É por isso que o poeta de hoje não despreza nenhum movimento da natureza, o seu espírito persegue a descoberta, principalmente nas sínteses mais vastas e mais incompreensíveis: multidões nebulosas, oceanos, nações, como nos fatos aparentemente mais simples: uma mão que procura um bolso, um fósforo que se acende riscado por alguém, gritos de animais, o aroma dos jardins depois da chuva, uma chama que nasce numa lareira. Os poetas não são somente os homens do belo. Eles são ainda e sobretudo os homens da verdade, tanto quanto ela permita entrar no desconhecido, de modo que a surpresa, o inesperado é um dos principais mecanismos da poesia de hoje (APOLLINAIRE, 1983, p. 162-163).

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A busca do hermetismo traduziu-se em metáforas desconcertantes que,

aliadas à experimentação lingüística, requeriam do leitor de poesia moderna a

capacidade de perceber o poema, antes mesmo de entendê-lo. Acerca da

compreensão do poema moderno, Friedrich chama a atenção para o fato de que

esse, através das forças sensíveis da linguagem, do ritmo, do som, da tonalidade,

fez com que o leitor exercitasse antes sua percepção do que sua compreensão. A

tais significações que despertam a sensorialidade das palavras, Friedrich chama

de “tons semânticos”:

A lírica moderna, desde Rimbaud e Mallarmé, converteu-se cada vez mais em magia de linguagem. (...) A sugestão começa no momento em que a poesia, guiada pela inteligência, desencadeia forças anímicas mágicas e emite radiações às quais o leitor não pode escapar, mesmo que não “compreenda” nada. Tais radiações sugestivas derivam sobretudo das forças sensíveis da linguagem, de ritmo, som, tonalidade. Estas atuam de acordo com o que se poderia chamar de tons semânticos superiores, quer dizer, significações que só se encontram nas zonas limites de uma palavra ou se produzem por uma associação anormal de palavras. A poesia fundamentada na magia da linguagem e na sugestão confere à palavra o poder de ser o primeiro autor do ato poético, para esta poesia, real não é o mundo, mas apenas a palavra. Portanto, os líricos modernos insistem sempre em que a poesia não significa, mas é (FRIEDRICH, 1978, p. 182).

Dessa forma, mesmo que cerebral e longe de se preocupar em ser elo entre

um eu e um tu, a poesia moderna despertou a sensorialidade dos olhos leitores,

criou imagens e composições sonoras inusitadas. Através da escrita e da

linguagem trabalhada, procurou atingir “os olhos e os ouvidos internos”6 dos que a

liam, pois manejava a linguagem também como potência sonora.

Mudanças na forma de conceber o poema significaram concomitantes

mudanças na forma de entendê-lo e, conseqüentemente, de estudá-lo. Souza

(1987) ressalta que as três primeiras décadas do século XX foram importantes

para a formação do que hoje chamamos de Teoria da Literatura.7 De acordo com

6 A expressão “olhos e ouvidos internos” alude ao artigo de Allan Paivio, intitulado “The minds eye in arts and science” (“O olho da mente nas artes e nas ciências”), ao qual me refiro no item 4.1 do capítulo 4. 7 Segundo o autor, melhor seria chamarmos de Estudos Literários aos estudos desenvolvidos no século XX, pois cada um deles tem seus próprios conceitos e sua própria relação com o objeto estudado, a saber, a literatura.

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o autor, os vários estudos dessa época tinham posições idênticas no que dizia

respeito à recusa das orientações historicistas e positivistas, na persecução do

rigor metodológico que eliminasse o impressionismo como forma de estudo da

literatura e no empenho de especializar a investigação dessa, afastando-a do

ecletismo metodológico oitocentista, através do desenvolvimento de métodos e

técnicas de análise intrínsecos, que partiam do pressuposto que a literatura é

essencialmente texto e linguagem.

Embora tenham se interessado preferencialmente pelo estudo da narrativa,

os formalistas russos, por considerarem a literatura como convenção, artifício,

procedimento técnico-formal e não tradução de vivências, trouxeram para o estudo

da lírica moderna a noção de estranhamento. Para eles, no cotidiano, as palavras,

estão reduzidas a um uso pragmático. A literatura, e, como obra literária, também

a poesia, revitalizaria as palavras aos olhos leitores, através do estranhamento.

Não se trata, aqui, de banir o cotidiano da literatura, mas de reinventá-lo, através

da linguagem. Trata-se de uma valorização do plano da expressão. Nesse sentido,

são significativas as colocações de alguns formalistas russos em relação ao ritmo

do poema.

Em “Ritmo e sintaxe”, com data de 1920-1927, O. Brik destaca que o ritmo

pode ser apresentado somente no discurso poético e não no poema escrito. Diz o

autor: “O movimento rítmico é anterior ao verso. Não podemos compreender o

ritmo a partir da linha do verso; ao contrário, compreender-se-á o verso a partir do

movimento rítmico” (Brik, 1971, p. 132). Na declaração de Brik, está presente a

recusa dos formalistas em ver a versificação como única forma de estudar e de

buscar o ritmo no poema. O ritmo, para ele, é fator constitutivo do discurso

poético, não seu ornamento, e, como tal, é provido de significado. Destaca Brik:

Os estudiosos do ritmo poético perdiam-se no verso, dividindo-o em sílabas, medindo-o e tratando de encontrar as leis do ritmo nessa análise. De fato, todas essas medidas e sílabas existem não por si mesmas, mas como resultado de um certo movimento rítmico. Não podem dar senão indicações sobre esse movimento rítmico do qual resultam (BRIK, 1971, p. 132).

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Data de 1924 o livro de Tinianov, intitulado O problema da linguagem

poética. Nesse livro, Tinianov, assim como Brik, destaca como indispensável a

existência de um significado para a conservação da verbalidade da poesia. Sobre

esse pressuposto de Tinianov e Brik, ressalta Stempel, em seu texto “Sobre a

teoria formalista da linguagem poética”:

O significado é necessário, porque só ele em união com sua manifestação sonora, e não o som em si, assegura o específico do material verbal em confrontação com a outras artes. O significado oferece assim a condição pela qual a dialética da organização verbal e não-verbal, que constitui a essência do verso, se torna efetiva. Sem significado, e isso quer dizer também sem sintaxe, como os formalistas o perceberam, o ritmo e o metro tornam-se por assim dizer tautológicos, já que só se apresentam a si mesmos (STEMPEL, 1983, p. 405).

Em virtude da dualidade ritmo e sintaxe, Brik inicia seu estudo da

configuração rítmica e semântica do texto poético pelo verso, considerado por ele

como unidade rítmica e sintática primordial, pois é resultado da combinação das

palavras tanto rítmica quanto sintaticamente (Brik, 1971, p. 136). A excelência da

composição poética está, para ele, no equilíbrio dessa combinação. Brik considera

que, entre os poetas russos, Pushkin reúne o equilíbrio ideal entre ritmo e

semântica, isso explicaria a atração de pesquisadores do verso por esse autor

(Brik, 1971, p. 135).

Já Tinianov divide seu livro El problema de la lengua poética, de 1923, em

duas partes: a primeira tratando do ritmo enquanto fator constitutivo do verso e a

segunda, do sentido da palavra poética (Tinianov, 1972). Ele parte da

diferenciação entre poesia versificada e prosa. No plano semântico, Tinianov

destaca que a perspectiva do verso quebra a perspectiva do assunto. No poema,

entre o verbal (semântico-sintático) e o não-verbal (rítmico), aquele submete-se a

esse. Como O. Brik, Tinianov vê o ritmo como anterior ao verso. Em função do

não-verbal, do ritmo, muitas vezes o que é sem sentido assume aparente

significado, o que traz para o poema a ambivalência de significados.

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Muitas das idéias do grupo dos formalistas russos estenderam-se pelo

Círculo Lingüístico de Praga, em virtude de sua extinção em 1930. Roman

Jakobson foi um dos que, tendo-se iniciado como formalista russo, deu

continuidade aos seus estudos no Círculo Lingüístico de Praga. É de Jakobson o

estudo “Lingüística e poética”, texto escrito nos Estados Unidos bem

posteriormente, publicado pela primeira vez em 1960. Nesse estudo, Jakobson

aborda e desenvolve seus pressupostos acerca das funções da linguagem e de

que “o estudo lingüístico da função poética deve ultrapassar os limites da poesia

e, por outro lado, o escrutínio lingüístico da poesia não se pode limitar à função

poética” (Jakobson, s.d, p. 129).

Em relação ao desvio da norma e ao uso inusitado e elaborado da palavra,

esses não são privilégio de poemas que tragam marca de autoria, nem de poemas

produzidos a partir do que se chama modernidade, tampouco de poemas

“meditativos”, como propõe Eliot:

Em um poema nem didático, nem narrativo, nem animado de propósito social algum, pode interessar ao poeta somente expressar um verso, empregando todos os recursos das palavras, sua história, suas conotações, sua música, esse escuro impulso. Não sabe o que tem que dizer até que o tenha dito; e, em seu esforço para o dizer não lhe importa conseguir que outras pessoas compreendam ou não algo. Nessa etapa, os demais não o inquietam absolutamente: somente lhe interessa falar as palavras justas, ou, ao menos, as palavras menos desacertadas. Não lhe importa se alguém chegará ou não a ouvi-las, compreendê-las-á alguma vez (ELIOT, 1959, p. 98-99).

O hermetismo também pode estar presente em poemas orais, como

ressalta Finnegan. A autora, em seu estudo sobre poesia oral, destaca que muitos

grupos culturais compunham seus poemas orais em uma linguagem que se

desviava do senso comum: A linguagem literária deve ter implicações tanto políticas quanto prosódicas; pois poetas colocados à parte dos outros através de treinamento extremo e elaborado, como os primitivos poetas irlandeses da Corte ou os especialistas maori e Ruanda não hesitariam em se agarrarem em sua habilidade privilegiada para manipular uma linguagem poética especial, afastada daquela das pessoas comuns. (FINNEGAN, 1977, p. 111 – tradução minha)

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Sobre o uso de uma linguagem que foge à norma, Zumthor (1997 a, p. 143)

ressalta que tanto a poesia oral quanto a escrita utilizam uma linguagem idêntica

no que diz respeito às estruturas gramaticais, às regras sintáticas e ao vocabulário

de base, assim como figuras de retórica que se aproximam. Tanto na poesia oral

quanto na escrita, o vocabulário distingue-se do uso comum, inclusive, no caso da

poesia oral, através da utilização de linguagem arcaica, possível resquício de

linguagem sacralizada:

Qualquer que seja sua origem histórica, o vocabulário e a gramática da poesia oral são muitas vezes sentidas como arcaicas... A menos que eles simplesmente imitem o arcaísmo! Foi o que se constatou na Ásia e na África em relação à epopéia. Mas a tendência é mais geral, e a arte de nossos cantores contemporâneos mal se liberou dela. Nas sociedades de longa tradição, as formas arcaicas que o canto assim veicula são, às vezes, apenas vestígios de uma antiga língua sacralizada. É o que acontece entre os Dogon, entre os Manobo, para quem só a linguagem do Ulahingan permite comunicar com os deuses. O arcaísmo ritualizado dos panegíricos africanos torna-os, em algumas etnias, tão opaco, que exigem um intérprete. Efeito contrário entre os Aino, cujos yukar se cantam num antigo idioma ritual que continua ainda hoje acessível ao conjunto da etnia, ao passo que os dialetos locais evoluíram a ponto de, em certos casos, impedir a intercompreensão: último refúgio de uma unidade histórica (ZUMTHOR, 1997a, p. 145-146).

O estranhamento lingüístico tampouco é privilégio da lírica moderna. Muitos

dos poetas modernos buscaram em autores de outras épocas fonte para seus

escritos, suas traduções, seus estudos, em virtude do hermetismo dos poemas de

tais autores antigos. É significativo o fato de Ezra Pound, assim como outros

poetas seus contemporâneos, admirar e traduzir poemas do trovador provençal

Arnaut Daniel. Segundo Spina, Arnaut Daniel é representante da escola do trobar

ric. Dentre os trovadores provençais, Spina (1996, p. 52-72) destaca dois grupos

de trovadores, aos que chama de escolas simples e escolas herméticas. Às

escolas simples, o autor associa o trobar leu, conhecido também como leugier ou

plat, que se destacou pela versificação simples, pela ausência de rebuscamento

estilístico, pela poesia acessível e inteligível e do qual Bernard de Ventadorn é

representante.

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Já às escolas herméticas, Spina associa o trobar clus, escur ou cobert e o

trobar ric, car, ou sotil. O primeiro grupo (trobar clus) caracterizou-se por uma

versificação complicada, pela busca de palavras raras e de expressões que

visassem a obscuridade, pelo excesso de conceitos, pela agudeza de pensamento

e pela linguagem inacessível e enigmática. Marcabru foi um dos representantes

desse grupo. Já o trobar ric, representado por Arnaut Daniel, tinha caráter

aristocrático e era marcado pela predominância dos valores sensoriais, pela

construção poética através de imagens e sonoridades e pelo refinamento da

expressão.

Exemplos dessa sensorialidade podem ser observados na primeira estrofe

do poema “Lancan vei fueill'e flor e frug”, traduzido por Augusto de Campos:

Lancan vei fueill'e flor e frug parer dels albres eill ramel e aug lo chan que faun e.l brug ranas el riu, el bosc auzel, doncs mi fueill'e.m floris e.m fruch' Amors el cor tan gen qe la nueit me retsida quant autra gen dorm e pauz'e sojorna.

Se vejo folha e flor e fruto fazer das árvores dossel e o som agudo ou breve escuto de rãs no rio e aves ao léu, logo me enfolha e enflora e enfruta o Amor e a noite para mim é mais comprida enquanto aos outros dorme, pousa e amorna. (CAMPOS, 1987. p. 71)

Assim, o desvio lingüístico da norma, como o estranhamento por ele

causado, não é, a meu ver, um ponto de diferenciação entre poesia oral e escrita.

Penso que a questão a ser discutida é a do estranhamento que tal desvio causa.

Na poesia oral, em virtude da veiculação via voz, tal estranhamento tem que ser

minimizado (intérpretes são chamados para a compreensão dos panegíricos

africanos), enquanto que, na poesia escrita, esse estranhamento pode ser

pensado e repensado, em virtude de o poema ter reiterabilidade através do

suporte do papel. No caso de pré-adolescentes, em situação de oralidade mista,

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assim como os intérpretes dos panegíricos africanos, os professores estão em

posição de possíveis mediadores entre os diferentes poemas que cheguem a

esses jovens leitores.

1.4 Da voz metálica à voz que resiste

De acordo com Olson (1997a, 1997b), o ato de escrever é responsável pela

evolução de novas formas de discurso e de organização social. Assim, o

desenvolvimento da escrita exige que as instituições usuárias dos textos (família,

escola, igrejas...) sejam também responsáveis pela inserção dos aprendizes em

seu seio (Olson, 1997a, p. 270).

A escola, então, também é responsável não só por iniciar os aprendizes no

universo letrado, mas também por inseri-los nas demais instituições que utilizam a

escrita. Em virtude disso, muitas vezes, a escola faz da escrita um fim e não um

meio, quando ela é apenas um dos instrumentos de fixação da palavra falada. 8

Tal postura afasta, exclui e ignora o que há de oralidade nos discursos dos

aprendizes da escrita.

Segundo Zumthor (1997, p. 28-33), as máquinas de gravar, por volta de

1850, trouxeram de volta uma autoridade que a voz havia perdido. Segundo o

autor, essa oralidade mediatizada tem como traço comum o fato de não podermos

responder a ela. Tal oralidade pode ser reiterada, na medida em que é repetida

através da gravação, mas, em virtude justamente dessa reiterabilidade, torna-se

despersonalizada. Contudo, tal oralidade ainda traz consigo a marca da

8 Ao falar sobre a escrita como suporte para a fixação da palavra falada, Olson (1997a, p. 269) aborda outras formas de fixação do texto falado, tais como o processo de composição oral baseado em esquemas mnemônicos: “(...) os ‘textos’ também podem ser fixados através da forma oral. A tradição védica é uma das que fixaram textos através de esquemas mnemônicos elaborados, mantendo-os inalterados como na escrita. Na tradição poética oral dos autores estudados por Parry (1971), Lord (1960), Goody (1987) e Finnegan (1977), no entanto, a forma preservada não era uma forma literal, mas sim, uma que explorava o ritmo, a métrica e as expressões cristalizadas na composição oral, como wine red sea, em Homero. Desse modo, a configuração geral do poema era fixada, enquanto sua íntegra era um pouco variável. Todavia, esses dois tipos de tradição oral ‘fixam’ um texto e fazem dele um objeto de repetição e reflexão”.

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socialidade (termo usado na tradução do livro de Zumthor), que, em virtude da

circulação nas redes de comunicação, torna-se hiper-socialidade e tem, como

“platéia”, elementos separados e fragmentados de seus grupos. Diz Zumthor: A presença física do locutor se apaga; permanece o eco fixo da sua voz e, na televisão e no cinema, uma fotografia. O ouvinte, ao escutar a emissão, está inteiramente presente, mas, no momento da gravação, ele era apenas uma figura abstrata e estatística. (ZUMTHOR, 1997, p. 29)

Zumthor destaca, também, que a neo-vocalidade mediática traz consigo a

perda da tactibilidade, da corporeidade. Para ele, a escrita e os meios eletrônicos

auditivos e audiovisuais são comparáveis, pois:

• dispensam a presença de quem traz a voz;

• transmitem uma voz que é reiterável (saem do puro presente

cronológico);

• transformam, ou podem transformar, o espaço em que se desenrola

a voz mediatizada em um espaço artificialmente composto. (Zumthor,

2000, p.18)

Restam, na voz mediatizada, para Zumthor (1997, p. 30), “apenas os

sentidos envolvidos na percepção à distância – a audição – e, quanto ao cinema e

à televisão, a visão. Produz-se, assim, uma defasagem, um deslocamento do ato

comunicativo oral”. Entre o texto escrito e a voz mediatizada encontram-se os pré-

adolescentes que freqüentam as salas de aula. Zumthor (2000, p. 78), inclusive,

fala numa certa revanche da voz, através da resistência dos jovens leitores à

leitura, de certa forma, motivada pelo curso hegemônico da escrita.

Ao se verem em situação de leitura, muitos pré-adolescentes, e até jovens,

como observa Saenger (1997, p. 219), sentem necessidade do suporte do som,

através da leitura em voz alta ou do balbucio, para terem acesso à compreensão

do texto e à sua memorização. Fazem, portanto, uma leitura imbricada no oral, na

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medida em que é a voz que instaura o sentido do que é lido. Aproximam-se,

assim, dos antigos leitores da escrita sem separações.

Ao falar das escritas sem separações, tais como as da Grécia e Roma

antigas, Saenger chama a atenção para o fato de que: (...) a atividade oral, assim, ajudou o leitor a guardar na memória, para fins mais imediatos, aquela fração de palavras ou frase já decodificada foneticamente, enquanto se processavam as tarefas cognitivas de divisão silábica e de reconhecimento de palavras necessárias à compreensão do sentido do fragmento inicial, e se seguia a decodificação da porção subseqüente do texto. Desse modo, os antigos leitores da escrita sem separações, eram capazes de reter e entender uma porção de texto escrito de um modo algo comparável àquele pelo qual os leitores atuais retêm visualmente com a leitura de textos com separações. (SAENGER, 1997, p. 218)

Contudo, o mundo em que vivem os pré-adolescentes de hoje em dia é o

que valoriza a quantidade e não a qualidade da informação obtida. A leitura

silenciosa torna-se, então, uma necessidade, posto que é uma forma de obtenção

rápida de informações para esses aprendizes. Só que a leitura silenciosa

pressupõe atitudes muitas vezes não vivenciadas por esses mesmos pré-

adolescentes. Em seu texto “Leitura literária e escola”, Aguiar ressalta que “ler,

assim, quer dizer recuperar simbolicamente vivências arcaicas, sem perder o

sentido da realidade, ressignificando-as em nível individual para melhor se integrar

no social”. (Aguiar, 1999, p. 252).

Nesse sentido, ainda segundo a autora, a:

(...) ação de ler supõe o isolamento, contato direto com o texto, capacidade de gerir a solidão para chegar à internalização dos significados descobertos e posicionados diante deles. Para que isso aconteça, as atividades grupais podem colaborar, pois vão chamar a atenção para narrativas e poemas, no início transmitidos oralmente e depois identificados nos textos, facilitando a relação entre sentidos e sinais gráficos (AGUIAR, 1999, p. 253).

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Antes, entretanto, faz-se necessário resgatar as vivências arcaicas

individuais e coletivas desses pré-adolescentes, bem como as “marcas de

oralidade” em seu processo de leitura. Só assim se poderá proporcionar a eles a

inserção no mundo da leitura silenciosa, no mundo que há no papel, utilizando a

metáfora título do livro de Walter Ong. Atividades que despertem os sentidos

humanos podem resgatar tais vivências arcaicas individuais e coletivas.

Ong ressalta que a cultura oral primária praticamente não existe no seu

sentido restrito, “uma vez que todas as culturas têm conhecimento da escrita e

sofreram alguns de seus efeitos” (Ong, 1998, p. 19). Ele mesmo destaca a

conservação da estrutura mental da oralidade primária em certas culturas e

subculturas, ainda que em meios de alta tecnologia. O autor faz o que ele mesmo

chama de “generalizações sobre a psicodinâmica das culturas orais primárias”.

Para ele, numa cultura oral primária:

• as palavras são dotadas de grande poder (potencialidade mágica), ou seja,

os nomes são capazes de transmitir poder para outras coisas;

• o conhecimento precisa ser guardado através do ritmo e da fórmula (cita

Jausse, que demonstrou “a íntima ligação entre padrões rítmicos orais,

processos de respiração, gesticulação e simetria bilateral do corpo

humano” - p. 145);

• o ritmo é a substância do pensamento, pois, sem ele, a forma extensa é

impossível;

• o pensamento e a expressão tendem a ser mais aditivos do que

subordinativos, mais agregativos do que analíticos, mais redundantes,

conservadores, próximos ao cotidiano da vida humana, agonísticos,

homeostáticos (na medida em que as sociedades primitivas vivem num

presente que se mantém em equilíbrio, “descartando-se de memórias que

já não são relevantes para esse presente” - p. 58) e mais situacionais do

que abstratos.

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Considerando que os poemas de folclore puro trazem a marca original de

oralidade, penso que, talvez, uma forma de reconduzir o leitor pré-adolescente à

leitura e à escrita de textos poéticos deva ser o resgate da vocalidade do poema

(presente nos textos de folclore puro – como as cantigas de roda, por exemplo - e

nos de inspiração folclórica). Segundo Zumthor (2000, p. 28), “o corpo é o peso

sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo

que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo”.

O conceito que o autor traz de performance, assim, vai ao encontro do que

penso ser a forma de recondução de pré-adolescentes à apreciação, à leitura e à

escrita de textos poéticos: “Performance é reconhecimento: realiza, concretiza, faz

passar da virtualidade à atualidade”. (Zumthor, 2000, p.37) Re-conhecer, para,

então, compreender. Diz o autor:

O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então, é ele que vibra, de corpo e alma. (...) Ora, compreender-se, não será surpreender-se, na ação das próprias vísceras, dos ritmos sangüíneos, com o que em nós o contato poético coloca em balanço? Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se nenhuma percepção me impele, se não se forma em mim o desejo dessa (re)construção, é porque o texto não é poético; há um obstáculo que impede o contato das presenças. Esse obstáculo pode residir em mim ou provir de hábitos culturais (tal como chamamos o gosto) ou uma censura (ZUMTHOR, 2000, p. 63-64).

Dentre as várias reflexões que Lacoue-Labarthe nos propõe, uma

sobremaneira importante é a que gira em torno da experiência singular advinda da

escrita. Tal autor considera a experiência do poema como experiência da memória

e não apenas reconstituição e, por esse motivo, herda um quê de vertiginoso, a

atopia da existência, “o que ocupa um espaço, sem o ocupar” (Lacoue-Labarthe,

1999, p.21-22 – tradução minha).

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À reflexão de Labarthe, justaponho a de Zumthor. Ao invocar Freud e Jung

esse destaca a voz como experiência primeira do ser humano:

Não se duvida que a voz constitua no inconsciente humano uma forma arquetipal: imagem primordial e criadora, ao mesmo tempo, energia e configuração de traços que predeterminam, ativam, estruturam em cada um de nós as experiências primeiras, os sentimentos e pensamentos. (...) A imagem da voz mergulha suas raízes numa zona do vivido que escapa às fórmulas conceituais e que se pode apenas pressentir: a existência secreta, sexuada, com implicações de tal complexidade que ultrapassa todas as suas manifestações particulares, e sua evocação, segundo a palavra de Jung, ‘faz algo vibrar em nós, a nos dizer que realmente não estamos mais sozinhos’. (...) na voz a palavra se inicia como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial, na aurora de toda vida e cuja marca permanece em nós um tanto apagada, como a figura de uma promessa (ZUMTHOR, 1997, 12-13).

Essa experiência sensorial, própria da voz e do poema, está presente de

forma fundamental na primeira infância. Ao falar da criança do seu nascimento até

a aquisição da linguagem, Piaget destaca esse período como decisivo para o

curso da evolução psíquica, pois é ele que “representa a conquista, através da

percepção e dos movimentos, de todo o universo prático que cerca a criança”

(Piaget, 1991, p. 16). Já na primeira infância, tal autor destaca a transformação da

inteligência que, de sensório-motora, prolonga-se como pensamento propriamente

dito. Através do estudo de Piaget, podemos aproximar o pensamento pré-lógico da

criança na primeira infância do modo de composição de poemas: os jogos

simbólicos da criança, assim como o animismo infantil remetem-nos ao uso

figurado da linguagem dos poemas. A criança e o poema submetem-se à

percepção.

Piaget, em seu trabalho intitulado Particularidades da compreensão verbal

da criança de 9 a 11 anos, destaca o fato de que, nessa idade, a criança

apresenta o que ele chama de sincretismo verbal. Para Piaget, a percepção nessa

etapa de vida passa por esquemas que suplantam a percepção do detalhe e a

criança de 9 a 11 anos vai substituindo essa lógica sincrética por outra mais

analítica:

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De modo que entre os 7 anos e meio e os 11 a 12 anos, a criança poderá não apresentar nenhum resto de sincretismo na inteligência de percepção, isto é, no pensamento ligado a uma observação imediata – seja ou não acompanhada de linguagem – ou conservar traços evidentes de sincretismo na inteligência verbal, isto é, no pensamento desligado da observação imediata. (PIAGET, 1989, p. 28)

Em uma outra linha de estudo diferente da de Piaget, Howard Gardner

ressalta a proximidade da linguagem infantil com os procedimentos do poeta na

composição de seus versos9. Por terem potencial de símbolo, tanto o poema,

quanto as artes plásticas, a música e os diferentes objetos de arte

“independentemente de seu interesse e apelo intrínsecos, possuem o potencial de

referência ao mundo externo, ao mundo das experiências subjetivas e inclusive a

si mesmos” (Gardner, 1997, p. 64).

Segundo o autor, para as crianças até cinco anos, a poesia é inseparável

de outras criações lingüísticas. Dessa forma, falar de desenvolvimento artístico

não representa falar do desenvolvimento cognitivo no sentido do pensamento

lógico-cognitivo. Em relação ao desenvolvimento artístico, diz Gardner: Eu afirmo que na medida em que a criança se desenvolve, ela pode continuar a fazer, sentir e responder a objetos e experiências tanto de maneira direta e característica do período sensório-motor quanto no plano superposto da experiência simbólica. Fazer uma pintura envolve agir sobre objetos e realizar habilidades motoras e também lidar com um sistema simbólico de grande delicadeza; da mesma forma, ver uma pintura envolve a consideração de seu status como coisa no mundo, como um objeto atraente e como um comentário sobre aspectos do mundo transmitido num meio simbólico. O poder e a fascinação das artes estão precisamente no fato de os indivíduos se envolverem com elas tanto no plano sensório-motor quanto simbólico (GARDNER, 1997, p. 149).

Para Gardner, o sistema simbólico está relacionado com a cultura, de modo

que “a competência no sistema simbólico da cultura é um pré-requisito necessário

para a comunicação efetiva dentro daquele sistema simbólico para outros

9 Para Gardner, o poeta é o exemplo por excelência do uso da inteligência lingüística, na medida em que executa habilmente o domínio da tétrade lingüística (fonologia, sintaxe, semântica e pragmática) (Gardner, 1994, p. 57-77).

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membros daquela cultura. E a habilidade com o sistema simbólico é um

antecedente para os esforços criativos nas artes” (Gardner, 1997, p. 173).

Ainda em uma terceira linha de estudo, a sócio-interacionista, Vygotsky

(1991, p. 27-33) ressalta a importância da interação no curso do desenvolvimento

intelectual. Segundo o autor, o controle do ambiente através da fala precede o do

próprio comportamento. Esse fato tem como conseqüência a produção de novas

relações com o ambiente e uma nova organização do próprio comportamento. A

interação entre indivíduos humanos é fundamental para o aprendizado:

Quando analisado dinamicamente, esse amálgama de fala e ação tem uma função muito especificada na história do desenvolvimento da criança; demonstra, também, a lógica da sua própria gênese. Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social, sendo dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança. O caminho do objeto até a criança e dessa até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo histórico de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social (VYGOSTKY, 1991, p. 33).

Através da fala, na concepção de Vygostsky, a criança cria um campo

temporal que permite dirigir sua atenção para mudanças em “sua situação

imediata do ponto de vista de suas atividades passadas, e pode agir no presente

com a perspectiva do futuro” (Vygotsky, 1991, p. 40). A função poética da História

reside, assim, no modo de contar dentro de um tempo. Enquanto a memória narra

através de um eu, a História tece o seu tempo pelas mãos de um nós, um sujeito-

plural (Certeau, 2002).

Dessa forma, ao ouvirem e performatizarem poemas de folclore puro, pré-

adolescentes que estejam no espaço da escola não só acham formas presentes

em sua própria memória, mas na do grupo cultural a que pertencem. É através do

contato com poemas de folclore puro que se pode resgatar a vocalidade e a

corporalidade esvaecidas na nossa sociedade. Poemas que se construam sob a

relação eu-tu possibilitam esse resgate. É a reminiscência que funda a cadeia da

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tradição (Benjamin, 1985). Lembrar as próprias origens tanto é descobrir um eu tramado num nós como também um nós que se configura eu: eu lírico.

As formas poéticas populares, como ato realizado por um nós, estão

presentes no imaginário de qualquer grupo social. Assim, é comum entre as

crianças o brincar com ditos populares, adivinhas, parlendas e cantigas de roda ou

de ninar. Em função desse diálogo com o universo da infância, muitos são os

autores que atualmente buscam nesses tipos de composição poética inspiração

para escreverem novos poemas ou fazerem releituras dos existentes.

Marcadamente sonoros, os poemas de origem popular podem aproximar a criança

de aspectos também presentes em poemas de autoria.

Entretanto, essa valorização do poema oral não foi constante na produção

autoral de poemas para a infância. Ao longo dos anos, a poesia destinada à

infância veio transpondo os espaços da escola e da rua. Se, por um lado, por

muito tempo em nosso país, a poesia esteve vinculada ao ato pedagógico, por

outro, fora da escola, ela estava presente nas atividades da infância, como nas

brincadeiras feitas na rua, através de fórmulas passadas de geração em geração.

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2 ENTRE A ESCOLA E A RUA: CAMINHOS DO POEMA NA INFÂNCIA

Um caminho me persegue há tempos: aquele em que, infância, eu passeava por perto de mim... Rua solta, verdes vários e um cheiro... Ah, um cheiro de jasmim!

2.1 Alguns meninos e suas leituras

Inicio a reflexão acerca de como a poesia destinada à infância veio

transpondo os espaços da escola e da rua através da breve análise de quatro

poemas, de diferentes autores e épocas. Através desses quatro meninos e de

suas leituras, podemos perceber por que caminhos vem seguindo o poema para

crianças. São quatro meninos, quatro modos de aprender e de ver a escola, a

escrita e o poema.

O primeiro, menino e sua irmã, saiu do Segundo livro de leitura, de Tomás

Galhardo, publicado pela primeira vez em 1895: AMANHECE... Já no horizonte surge a manhã! É dia – Vamos, ó minha irmã. Vamos buscar outro arrebol, tão puro e belo como o do sol. É lá, na escola, que o sol reluz, em nós lançando ondas de luz! É lá que temos doce alegria, vendo raiar a luz do dia. Vê: - no horizonte surge a manhã! é dia – Vamos, ó minha irmã. Quando amanhece move-se tudo! Também corramos p’ra o nosso estudo.

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Dos palacetes té as ruínas, nas salas dos nobres, nas oficinas, Nas densas matas, nos altos mares, nos vastos campos, mesmo nos ares. Da luz em busca tudo se agita, tudo move, tudo palpita! Já na bigorna batendo, o malho entoa um hino para o trabalho. Vês? – No horizonte Surge a manhã! Vamos p’r’a escola, ó minha irmã! (GALHARDO, 1946, p. 61-62)

Nesse poema, a voz que se expressa é a de um menino. Ele, no clarear do

dia, chama sua irmã para ir à escola, que, já nas primeiras estrofes, é comparada

ao sol. Estão associadas à palavra escola as expressões “outro arrebol”, “ondas

de luz” e “doce alegria”. À palavra escola, justapõe-se, nas estrofes que se

seguem, o universo do trabalho. É a luz do sol que une o mundo do menino e de

sua irmã às lidas do trabalho, pois é da busca da luz do sol, do trabalho do dia que

“tudo se agita, tudo move, tudo palpita!”. A busca da luz do sol, imagem da luta

diária pela sobrevivência, aproxima estudo e trabalho. Assim, estudar é também

trabalhar.

Na voz do menino do poema de Galhardo, há a exortação da escola

enquanto parte do processo de manutenção da vida, tal como o trabalho adulto. O

ir para a escola é uma forma de ganhar a vida, como o trabalhador. Menino e sua

irmã, sem nomes próprios, guiados pelo sol que nasce para todos, “dos palacetes,

té as ruínas, nas salas dos nobres, nas oficinas”, seguem em seu ofício “de

bigorna”. Alegria e esforço físico misturam a escola ao trabalho, numa obrigação

exigida diariamente. Mesmo que, no poema, a voz que se expressa seja a de um

menino, o seu olhar é o do adulto que vê a escola como locus de sua própria

formação.

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O segundo menino, chamado Raul, está no poema de Zalina Rolim “A

primeira lição”, do Livro das crianças, publicado em 1897: A PRIMEIRA LIÇÃO RAUL não sabe ler; É um traquinas, que vive toda a hora Pela campina em fora A correr, a correr... Desde pela manhã, Salta do leito em fraldas de camisa, E por tudo desliza Numa alegria sã. Nada de livros, não; Para ele a campina, os passarinhos, Os assaltos aos ninhos, A pesca ao ribeirão E as corridas em pós Dos bezerros e cabras e novilhas,... Rasgando ásperas trilhas, Veloz, veloz, veloz! Mas, um dia, ele viu A irmãzita no livro debruçada, E o som de uma risada O ouvido lhe feriu. Que teria, meu Deus! Aquele grande livro tão pesado, Ali dentro guardado, Longe dos olhos seus? E aproximou-se mais. Ceci, toda entretida na leitura, Mostrava, rindo, a alvura Dos dentinhos iguais. E o pequenito a olhar, Mas debalde; no livro, aberto em frente, Letras, letras, somente... Raul pôs-se a chorar. Pois não estava ali Um livro injusto e mau, que até escondia A causa da alegria Da risonha Ceci?

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Mas a irmã, tal e qual Uma bondosa mãe ao filho amado, Fê-lo assentar-se ao lado E explicou-lhe o seu mal. E com tanta razão Que, abrindo atento o livro misterioso, Raul pediu, ansioso, A primeira lição. (ROLIM, 2005)

Segundo Camargo (2002, p. 158), os poemas do Livro das crianças foram

compostos a partir de suas ilustrações. Comecemos, então, a observar a

ilustração que acompanha o poema “A primeira lição”, de Zalina Rolim, na medida

em que esse foi escrito a partir daquela:

A imagem que precede o poema mostra um menino e uma menina um

pouco maior, sentados em uma espécie de caramanchão, abraçados, olhando

para um livro em que a palavra Raul traz ao lado a imagem de um boneco. As

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sombras alongadas das pernas dessas duas personagens sugerem que há pouca

luz no recinto e essa incide nas páginas abertas do livro, como a lhe destacar dos

demais elementos da cena. A menina exibe um ar comportado nas vestimentas e,

nos gestos, demonstra certo maternalismo através do abraço que dá no menino,

bem como do sorriso amoroso e do dedo que aponta a primeira letra do nome

Raul. Esse, por sua vez, está descalço, com as roupas desalinhadas, o que

contrasta, de certa forma, com o rosto concentrado, apoiado no cotovelo

esquerdo. Nas mãos do menino, há uma espécie de folha, como que a anunciar

que a brincadeira nos jardins acabou recentemente. O poema se inicia com a

capitular R, primeira letra mostrada pela menina ao menino, circulada por folhas

semelhantes à que ele segura na imagem, o que pode sugerir que as brincadeiras

nos campos continuam nas letras que o menino vai começar a aprender.

Vejamos, então, o poema que Zalina Rolim escreveu a partir das imagens

mostradas. Diferentemente do poema de Galhardo, o eu que se expressa no

poema de Zalina não é o menino, tampouco sua irmã: é um eu que observa as

crianças em sua liberdade “de passarinhos”, “de bezerros e cabras novilhas”, a

correr pela campina. Enquanto, no poema de Galhardo, a alegria é atribuída ao

sol, o menino Raul, do poema de Zalina, é ele próprio pleno de “uma alegria sã”.

É feliz, mesmo antes de se iniciar no mundo do conhecimento. Inclusive essa

iniciação ocorre fora do espaço da escola, que sequer é mencionada, por

intermédio de sua irmã Ceci. Prazerosamente, ela lê debruçada num livro que lhe

faz mostrar “rindo, a alvura/ Dos dentinhos iguais”. É o riso de Ceci que desperta a

curiosidade de Raul para o mundo da leitura. Zalina começa a cena de seu poema

antes daquela representada pela imagem, ou seja, com o menino ainda fora do

caramanchão. Ao compor seu texto, ela o cria a partir da imagem que representa

a primeira lição do menino Raul, mas nos apresenta uma ambiência anterior ao

ato de aprendizagem.

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Se o Livro das crianças inova no que diz respeito à relação texto-imagem,

através de seu poema “Primeira lição”, Zalina Rolim também antecipa,

literariamente, uma visão de aprendizagem posterior à sua época, contemporânea

à de Galhardo: é a curiosidade, e não o dever do trabalho, que seduz Raul para o

universo da leitura. Zalina, através das repetições de palavras “a correr, a

correr...”, “veloz, veloz, veloz!”, traz para seu poema um tom de brincadeira que se

repete dia-a-dia, quebrado apenas pelo desafio que o menino Raul encontra frente

ao livro, desafio esse também traduzido através da repetição de palavras: “Letras,

letras, somente...”. A leitura torna-se, assim, um mundo de desafios em que é

necessário saber as regras que permitem a decifração do livro, ou seja, o

conhecimento da leitura.

O terceiro menino, de Cecília Meireles, está no poema “O menino azul”, de

Ou isto ou aquilo, publicado em 1964: O MENINO AZUL O menino quer um burrinho para passear. Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar. O menino quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores, de tudo o que aparecer. O menino quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas com pessoas bichos e com barquinhos no mar. E os dois sairão pelo mundo que é como um jardim apenas mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim. (Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Rua das Casas, número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.) (MEIRELES, 1977, p. 27)

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O poema de Cecília10 apresenta um eu solidário com o universo por que

transita o Menino Azul: o da infância pré-letrada, em que o animismo se faz

presente através da busca da amizade com um burrinho. Em seu poema, Cecília

Meireles, em vez das relações humanas e de aprendizado entre irmãos, como nos

poemas de Galhardo e Rolim, apresenta um menino em sua busca pela fantasia.

O companheiro que pretende que se junte a ele em suas brincadeiras é um

burrinho. Um burro falante (“que saiba conversar”), douto em assuntos científicos

e geográficos (“que saiba dizer/o nome dos rios, das montanhas, das flores,de

tudo o que aparecer”), mas que, sobretudo, seja um grande contador de histórias

(“que saiba inventar/histórias bonitas/com pessoas bichos/e com barquinhos no

mar”).

Aprender, para o Menino Azul, é correr mundo com o amigo burro que ele

busca. É também se lançar numa aventura sem fim, através da observação de

tudo o que os rodeia: menino e burro, cavaleiros de um aprendizado-andança. Sua

escola é o mundo em que vive, um jardim, grande e sem fim. Nesse sentido, o

Menino Azul que não sabe ler nos remete ao homem pelos cinqüenta anos que,

de tanto ler, perdeu a razão e, junto com seu amigo Rocinante, nas páginas

publicadas em 1605, quis viver o tanto que lia:

Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum no mundo, e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para o aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria (...) (CERVANTES, 2003, p. 32).

10 Sobre o poema “O menino azul”, Camargo (2002, p. 158) chama atenção para o fato de Cecília ter feito o referido poema para seu neto Ricardo: ”Após a apresentação deste texto no Colóquio Brasileiro Cecília Meireles & Murilo Mendes, no dia 9 de novembro de 2001, Fernanda Correia Dias (neta de Cecília Meireles), em depoimento público, esclareceu algumas circunstâncias relativas à composição dos poemas de Ou Isto Ou Aquilo, entre elas, o fato de o poema O Menino Azul ter sido inspirado em seu primo Ricardo (neto de Cecília), que tem olhos azuis, caso único na família. Esse depoimento confirma e amplia a presença de traços autobiográficos na composição dos poemas, ao mesmo tempo em que sinaliza para a distância entre o factual (olhos azuis) e o literário (menino azul), cujo poder simbólico não é limitado por suas circunstâncias de produção”.

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O saber que busca o Menino Azul é o da fantasia, o das histórias vividas,

recontadas, por isso a inutilidade da carta de quem encontrar o burrinho para o

menino. Quem encontrar o burrinho para o menino, diz o eu de Cecília, deve lhe

escrever uma carta, mas com tom de menino que não sabe ler: a carta deverá ser

entregue na Rua das Casas, número das Portas, numa referência direta ao mundo

oral em que vive o menino11.

Finalmente o quarto menino, “O menino poeta”, sai correndo pelos versos

de Henriqueta Lisboa, do livro homônimo, publicado em 1943:

O MENINO POETA O menino poeta não sei onde está. Procuro daqui procuro de lá. Tem olhos azuis ou tem olhos negros? Parece Jesus ou índio guerreiro? Trá-lá-lá-lá-li trá-lá-lá-lá-lá Mas onde andará que ainda não o vi? Nas águas de Lambari, nos reinos do Canadá? Estará no berço brincando com anjos, na escola, travesso, o vizinho ali rabiscando bancos? disse que acolá existe um menino com dó dos peixinhos. Um dia pescou pescou por pescar – um peixinho de âmbar

11 Roche (2001, p. 194-195), ao discorrer sobre as práticas de escrita nas cidades francesas do

século XVIII, destaca que a escrita promoveu, dentre outras coisas, a fixação e a padronização dos nomes de ruas, antes conhecidas por atributos relativos à própria localidade. Diz Roche que a escrita figura nas placas de rua com um tom moralista católico que transformou as ruas conhecidas oralmente por apelidos como “rua merdosa”, “rua dos cagões”, “dos fedelhos”, em rua Tibourdin, rua Marie-Stuart etc.

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coberto de sal. Depois o soltou outra vez nas ondas. Ai! que esse menino será, não será?... Certo peregrino (passou por aqui) conta que um menino das bandas de lá furtou uma estrela. Trá-lá-lá-lá-lá A estrela num choro o menino rindo. Porém de repente (menino tão lindo!) subiu pelo morro, tornou a pregá-la com três pregos de ouro nas saias da lua. Ai! que esse menino será, não será?... Procuro daqui procuro de lá. O menino poeta quero ver de perto quero ver de perto para me ensinar as bonitas cousas do céu e do mar. (LISBOA, 1991, p. 5-6)

No poema de Henriqueta, o eu que se expressa busca um menino poeta

que ele não sabe quem é (se é Jesus ou índio guerreiro, se tem olhos azuis ou

negros...). A busca desse eu é cheia de dúvidas e incertezas, traduzidas pelas

constantes interrogações feitas a si mesmo a cada encontro com um possível

menino poeta: “Mas onde andará/que ainda não o vi?”, “Ai! que esse menino/será,

não será?...”.

Conforme se adianta em sua busca, o eu-lírico do poema vai tecendo toda

uma ambiência da infância (menino de berço, menino travesso, menino que brinca

com a natureza, menino que furta, menino que ri), através de recursos poéticos

sonoros que aproximam o texto de Henriqueta de canções e de brincadeiras

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infantis: repetem-se versos (“Procuro daqui/procuro de lá”), refrões cantados (“Trá-

lá-lá-lá-li/trá-lá-lá-lá-lá”). Os jogos sonoros feitos por Henriqueta conferem à busca

do eu-lírico uma leveza própria das brincadeiras de esconde-esconde: eu-lírico,

poema e menino parecem estar em um jogo de se achar e de se perder.

O menino poeta é descrito através dos gestos animistas da infância

transformados em metáforas: ele furta uma estrela para pregá-la com três pregos

nas saias da lua. Na infância do menino, assim como na linguagem de quem o

descreve, estrela chora, lua usa saias e se pode ir das águas de Lambari aos

reinos do Canadá. Animismo infantil e linguagem figurada aproximam-se na

infância, assim como menino e poeta. Se os meninos de Galhardo e Rolim

aprendem com a escola e o de Cecília com seu burrinho imaginário, o menino

poeta de Henriqueta Lisboa é ele próprio o professor do eu que se expressa. Em

sua vida menina, desperta no eu-lírico a linguagem poética, linguagem da infância.

É ele mesmo escola de poesia: “O menino poeta/quero ver de perto/ quero ver de

perto/para me ensinar/ as bonitas cousas/do céu e do mar”.

José Paulo Paes, em seu depoimento de criador de poemas para a

infância, destaca os diferentes modos pelos quais a prosa e a poesia atuam na

sensibilidade infantil. Diz o autor:

No meu modo de entender, a prosa e a poesia atuam de maneiras diferentes na sensibilidade infantil. As narrativas em prosa com personagens, peripécias e desfechos, estimulam os mecanismos de identificação imaginativa. Durante a leitura de uma história desse tipo, a criança se enfia na pele dos heróis e vive com eles, e por eles, as aventuras narradas. Com isso, o mundo da simulação literária se torna indistinguível, durante o tempo da leitura, do mundo da realidade cotidiana. Já a poesia tende a chamar a atenção da criança para as surpresas que podem estar escondidas na língua que ela fala todos os dias sem se dar conta delas (PAES, 1996, p. 24).

Os quatro meninos apresentados nos poemas de Tomás Galhardo, Zalina

Rolim, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa apontam-nos um pouco da trajetória

que o poema para a infância vem percorrendo ao longo da história: de uma

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preocupação pedagógica que cercava os que produziam poesia para crianças,

aos poucos, surgiu, entre os produtores desse gênero, tal como assinala Paes, um

resgate da oralidade e da ludicidade do poema. O autor destaca como objetivo

principal da poesia o fato de “mostrar a perene novidade da vida e do mundo;

atiçar o poder da imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina;

fazê-las sentir mais profundamente o significado dos seres e das coisas (...)”

(Paes, 1996, p. 27). Declara também ter aprendido, através dos versos de Manuel

Bandeira, a estratégia poética de ter a “(...) atenção voltada para as coisas

concretas do cotidiano mais do que para as grandes questões abstratas; olhos e

ouvidos bem abertos às eventuais surpresas que podiam estar escondidas nas

palavras do dia-a-dia (...)”.

Atualmente, na produção poética para a infância, há um resgate do

cotidiano, da oralidade, da corporalidade do poema. Contudo, ao longo dos

tempos, tal produção esteve bastante vinculada ao espaço da escola e à

preocupação com o ensino, como atesta o percurso histórico da produção de

poemas para a infância no Brasil.

2.2 De professoras-poetas a poetas-professoras

Por muito tempo, no Brasil, a produção poética para crianças esteve mais

estritamente vinculada a uma preocupação pedagogizante. Em se tratando de

poemas publicados para a infância, há que se observar que os primeiros

escritores brasileiros que começaram uma produção de autoria nesse gênero

estavam vinculados à estética parnasiana que, por si só, já resgatava um fazer

poético vinculado à obediência a regras poéticas. Mesmo em sua produção dita

adulta, esses poetas tiveram uma preocupação normatizante.

Frutos dessa preocupação foram os vários manuais sobre como fazer

versos que surgiram no final do século XIX e início do XX, tais como A arte de

fazer versos, de Osório Duque-Estrada, prefaciado por Alberto de Oliveira:

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Se, no que geralmente se considera sua gênese, a poesia para a infância

no Brasil nasceu sob a marca de gênero (muitos dos autores dos poemas

destinados à infância foram mulheres) e vinculada ao espaço-instituição Escola,

não é de se estranhar que essa produção nascesse com certa marca de

“menoridade”, no que diz respeito à sua aceitação enquanto arte no universo da

literatura dita adulta. É inclusive em nome do ensinar que alguns autores de

poemas escolares justificam a simplicidade de seus poemas e a inserção do que

consideram como “versos de maior fôlego e mais apuro literário” como forma de

minimizar tal simplicidade. É o que se lê no prefácio de Oscar Leme Brisolla para

seu livro Poesias escolares:

Este livrinho escrevi-o especialmente para as escolas do meu Paiz. Dahi a simplicidade excessiva de algumas poesias, a ausencia de mais altos vôos de imaginação em outras. Algumas ha que só servirão para crianças de seis a oito annos. Procurei, no entanto, sanar esta falta, incluindo poesias de maior folego e mais apuro literario (BRISOLLA, 1917, p. 9).13

Em seu livro, datado de 1917, o “Director do 1º Grupo Escolar de Jahu”

saúda a pátria e as figuras histórico-literárias, propõe questões de civismo, de

história e, inclusive, apresenta um soneto-definição para os três reinos, vegetal,

mineral e animal:

OS TRÊS REINOS DA NATUREZA (DO ITALIANO) O reino mineral, que não tem vida, vejo-o nas pedras, vejo-o nos crystaes, e no gesso, na cal e os metaes, do ouro ao iman, que attrae e que convida... O reino vegetal, na indefinida serie de plantas lindas, sem rivaes, nas flores roseas, brancas, aromaes, que a primavera fazem mais querida.

13 Quanto às convenções ortográficas, conservei a ortografia original da fonte por mim consultada. Somente não foram mantidas as convenções originais nos textos já atualizados antes da consulta.

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Vejo o reino animal nos seres vivos, que se movem por si no solo, altivos, nagua, ou no espaço voando com leveza... Muito acima,porém, á grande altura, do Senhor – predilecta creatura – o homem domina a vasta Natureza! (BRISOLLA, 1917, p.109)

Contudo, não obstante a real preocupação em ensinar dos primeiros

professores-autores que se dedicaram à escrita para a infância, é de se assinalar

que muitos foram os grandes nomes a produzirem poemas ditos infantis. Arroyo

(1969, p. 217) fala sobre aqueles que produziram poemas para crianças no

momento em que se costuma considerar como marco inicial deste gênero no

Brasil:

Em Zalina Rolim, Presciliana Duarte de Almeida, Francisca Júlia e Olavo Bilac, entre os precursores de nossa literatura infantil, encontramos as mais válidas vozes da poesia para crianças no Brasil. São quatro autores que nos deixaram uma obra clássica, classicamente poética, para a infância, mostrando assim os verdadeiros critérios de composição de uma lírica capaz de ser longamente amada pelas crianças. O Brasil inteiro, nas festas escolares, nas reuniões de família, pelos seus meninos e meninas, recitou versos de Zalina Rolim, Presciliana Duarte de Almeida, Francisca Júlia e Olavo Bilac (fonte: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2006, acesso em 2 de outubro de 2005).

Data de 1897 a publicação do Livro das crianças, de Zalina Rolim14, em

edição promovida pelo governo do Estado de São Paulo para distribuição nas

escolas públicas. Há, no Livro das crianças, uma preocupação pedagógica,

traduzida já no seu prefácio por Gabriel Prestes. Em relação ao vínculo poema-

performance, o prefacista destaca a importância dos poemas de Zalina para o que

chama de “leitura expressiva e exercícios de recitação”, essenciais “para a

educação estética e literária” dos estudantes:

14 Zalina Rolim (Maria Zalina Rolim Xavier de Toledo) nasceu em Botucatu, em 20 de julho de 1869. Atuou como colaboradora dos jornais A província de São Paulo, Correio Paulistano, O Itapetininga, A Cidade de Itu (de 1889 a 1893), bem como das revistas A mensageira (de 1897 a 1899) e Revista do Jardim da Infância (de 1896 a 1897), com produções suas, traduções e adaptações e Educação (em 1902-1903). Dedicou-se à educação infantil, sobretudo ao chamado Jardim de Infância.

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O livro de D. Zalina pode servir de texto a múltiplos exercícios de linguagem. Da observação direta das gravuras tirarão os alunos assuntos para pequenas descrições que facilitem a compreensão do texto. Nas descrições poéticas, que acompanham as ilustrações, terão modelos a seguir para os exercícios de transformação e imitação em prosa, exercícios que podem ser feitos livremente pelos alunos ou com a indicação prévia dos vocábulos a substituir, ou das frases e sentenças cuja ordem deva ser alterada. Além destes exercícios para os quais prestam-se, em geral, os textos que preencham as duas condições essenciais relativas à correção e à simplicidade, o livro de D. Zalina Rolim presta-se admiravelmente à leitura expressiva e aos exercícios de recitação. Sob este ponto de vista, o livro ora publicado é um magnífico elemento para a educação estética e literária (LAJOLO E ZILBERMAN, 1986, p.269-270).

Apesar de evidenciar uma preocupação didatizante, o prefácio do livro de

Zalina Rolim já esboçava, em seu ideário de poesia infantil, um cuidado em

proporcionar ao pequeno leitor momentos de alegria e de encantamento,

principalmente através do recurso das ilustrações, presentes apenas em livros

destinados à infância. No caso do Livro das crianças, de Zalina Rolim, é

significativo o fato de os poemas terem sido compostos a partir das ilustrações. O

escritor e ilustrador Luís Camargo ressalta que não há redundância entre as

ilustrações e os poemas da autora, mesmo que aquelas tenham função

pedagógica. O livro de Zalina, no dizer de Camargo, é uma inversão à ordem

predominante na produção de livros para a infância:

O Livro das crianças inverte a ordem predominante – ainda hoje – de produção de texto e ilustração: nele, todos os trinta poemas que o compõem foram escritos a partir de ilustrações. A ilustração tem função pedagógica: adiantar o assunto dos poemas, facilitando sua compreensão e auxiliando sua memorização. No prefácio ao Livro das crianças, Gabriel Prestes ressalta essa função pedagógica da ilustração, sugerindo que os alunos escrevam pequenas descrições a partir da observação das ilustrações. A relação entre poesia e ilustração não é redundante. O significado dos poemas se completa pela ilustração. Assim, por exemplo, em "Cuidados Maternais", a voz poética em primeira pessoa sugere uma mãe pensando em voz alta, preocupada em expor sua filha ao sol e ao vento, enquanto a ilustração que antecede o poema mostra uma menina brincando com uma boneca. O jogo entre poesia e ilustração revela uma compreensão sensível do faz-de-conta infantil, sem explicações desnecessárias (CAMARGO, 2002, p. 158).

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Um outro autor que também indicia uma preocupação literária em sua

produção poética para a infância, apesar da intenção pedagogizante, é Olavo

Bilac. Na advertência “Ao leitor”, bem como no prefácio à primeira edição de

Poesias infantis, de 1904, Bilac chama a atenção para o fato de que não se deve

descuidar dos aspectos formais dos poemas para a infância, o contrário do que diz

Brisolla no prefácio de seu livro. Fica evidente, também, no texto de Bilac, a

preocupação com o ”educar o ouvido” das crianças, em lhes promover uma

aproximação entre o poema e os seus aspectos sonoros:

Mas a dificuldade maior era realmente a da forma. Em certos livros de leitura que todos conhecemos, os autores, querendo evitar o apuro do estilo, fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação. Uma poesia infantil conheço eu, longa, que não tem um só verso certo! Não é irrisório que, querendo educar o ouvido da criança, e dar-lhe o amor da harmonia e da cadência, se lhe dêem justamente versos errados, que apenas são versos por que rimam, e rimam quase sempre erradamente? Quanto ao estilo do livro, que os competentes o julguem. Fiz o possível para não escrever de maneira que parecesse fútil demais aos artistas e complicada demais às crianças. (...) Se a tentativa falhar, restar-me-há o consolo de ter feito um esforço digno. Quis dar à literatura escolar do Brasil um livro que lhe faltava (BILAC, Olavo. “Ao leitor”. In: Poesias infantis, 1904, disponível no site do Projeto Memória de Leitura da UNICAMP – acesso em agosto de 2005). O autor deste livro destinado às escolas primárias do Brasil não quis fazer uma obra de arte: quis dar às crianças alguns versos simples e naturais, sem dificuldades de linguagem e métrica, mas, ao mesmo tempo, sem a exagerada futilidade com que costumam ser feitos os livros do mesmo gênero. O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o trabalho de um artista, mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças de seu país. Se, nas escolas, as crianças gostarem dos seus versos, o rimador das Poesias Infantis ficará satisfeito, e dará por otimamente empregados o seu tempo e o seu trabalho (BILAC, Olavo. “Prefácio à 1ª edição”. In: Poesias infantis, 1904, disponível no site do Projeto Memória de Leitura da UNICAMP – acesso em agosto de 2005).

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Bilac foi também, em 1905, tradutor de Juca e Chico, história de dois

meninos em sete travessuras (Max und Moritz), de Whilhelm Bush, narrativa em

versos que demonstram a maestria do poeta, a exemplo da estrofe retirada da

“Terceira travessura” do poema de Bush:

Havia um homem na aldeia, Alfaiate de mão-cheia. Jaquetas para serviço, Fraques de bolso postiço, Calças, roupas domingueiras, Coletes com algibeiras, Paletós-sacos de alpaca, Rabona ou sobrecasaca, Blusa, capa, sobretudo, Casaca de rabo, - tudo Sabia fazer com arte O alfaiate Brás Duarte. Roupas velhas consertava, Diminuía, alargava, Se aparecia um rasgão, Ou se caía um botão De diante ou de detrás, Vinha com agulha o Brás, Enfiava-a, dava um ponto, Dava uma laçada e ... pronto! De sua casa defronte, Havia um rio: uma ponte De tábuas o atravessava A água espumava... estrondava... (BUSH, Whilhelm. Max und Moritz. Disponível no site do Projeto Memória de Leitura da UNICAMP – acesso em agosto de 2005).

É de se destacar também que, concomitantemente à produção de autoria,

observava-se no trabalho dos pioneiros da produção poética destinada à infância

no Brasil uma preocupação com o registro e a adaptação de poemas de folclore

puro. Nesse sentido, é de se destacar o trabalho de Alexina de Magalhães Pinto.

Em seu livro Cantigas das crianças e do povo e danças populares, datado de

1916, a autora apresenta uma coleção de cantigas populares, com partitura e

referências sobre as fontes das cantigas coletadas:

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Juntamente com esta envio a V. Exª o nosso livro de versos didacticos, “Alma Infantil. É um livro feito à pressa, e em menos de um mez, para aproveitar uma opportunidade que se nos offerecia. Elle está vulgarisado em todas as escolas d’aqui. Poderia V. Exª, com o alto prestigio de seu Nome e com o auxilio dos seus amigos promover os meios de o fazer adoptar nas escolas d’ahi? É um grande obsequio que eu queria merecer a V. Exª. (SILVA, 1913).

Em seu volume, os irmãos poetas desempenham tanto o papel de “poetas

didáticos”, aqueles que escrevem poemas para o ensino, conforme definição do

próprio prefácio de Alma infantil, quanto o de que buscam uma aproximação com

o universo da tradição oral. Coube aos escritores dessa geração, que

marcadamente destinou seus textos à infância, a produção de poemas de autoria

de fundo didático-escolar, em contraste com as formas orais adaptadas por eles

da tradição popular.

A poesia publicada para a infância no Brasil esteve inicialmente atrelada ao

espaço da escola, como podemos observar através dos manuais escolares em

que civismo, regras de higiene e conteúdos escolares eram transformados em

poemas. Em contrapartida, justamente esse vínculo proporcionou mudanças na

forma como os textos destinados às crianças passaram a ser elaborados em

virtude das diferentes concepções de escola que surgiram. Foi o que aconteceu

com o advento do manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.

Entre as vinte e cinco autoridades que assinaram o Manifesto dos Pioneiros

da Educação Nova, em 1932, encontramos Cecília Meireles15. Esse manifesto

tinha, segundo Piletti, os seguintes pressupostos:

15 Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1901, onde morreu em 1964. Concluiu, em 1917, o Curso Normal, e passou a trabalhar como professora primária. Dois anos depois publicou Espectros, seu primeiro livro de poesia, de tendência parnasiana. A partir de então, publicou vários livros que a fizeram ser considerada uma das maiores poetas da literatura brasileira. Após 1938, Cecília conciliou sua produção poética com trabalhos de professora universitária, tradutora, conferencista, colaboradora em periódicos e pesquisadora do folclore brasileiro, bem como de preferências de leitura entre crianças em idade escolar.

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1- A educação é vista como instrumento essencial de reconstrução da democracia no Brasil, com a integração de todos os grupos sociais. 2- A educação deve ser essencialmente pública, obrigatória, gratuita, leiga e sem qualquer segregação de cor, sexo ou tipo de estudos, e desenvolver-se em estreita vinculação com as comunidades. 3- A educação deve ser ‘uma só’, com os vários graus articulados para atender às diversas fases do crescimento humano. Mas, unidade não quer dizer uniformidade. Daí, embora única sobre as bases e os princípios estabelecidos pelo Governo Federal, a escola deve adaptar-se às características regionais. 4- A educação deve ser funcional e ativa e os currículos devem adaptar-se aos interesses naturais dos alunos, que são o eixo da escola e o centro da gravidade do problema da educação. 5- Todos os professores, mesmo os do ensino primário, devem ter formação universitária (PILETTI, 1993, 208-209).

No que diz respeito especificamente à prática pedagógica, o manifesto é

claro em relação ao fato de que a prática docente deve considerar aluno como

sujeito de sua aprendizagem, assim como valorizar a literatura e as artes em

geral:

A escola, vista desse ângulo novo que nos dá o conceito funcional da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, "favorável ao intercâmbio de reações e experiências", em que ela, vivendo a sua vida própria, generosa e bela de criança, seja levada "ao trabalho e à ação por meios naturais que a vida suscita quando o trabalho e a ação convém aos seus interesses e às suas necessidades". Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de todos os seus trabalhos, é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo. Na verdadeira educação funcional deve estar, pois, sempre presente, como elemento essencial e inerente à sua própria natureza, o problema não só da correspondência entre os graus do ensino e as etapas da evolução intelectual fixadas sobre a base dos interesses, como também da adaptação da atividade educativa às necessidades psicobiológicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola nova, não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico do interesse, que é a primeira condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando (criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance, "graças à força de atração das necessidades profundamente sentidas". (...) A arte e a literatura tem efetivamente uma significação social, profunda e múltipla; a aproximação dos homens, a sua organização em uma coletividade unânime, a difusão de tais ou quais idéias sociais, de uma maneira "imaginada", e, portanto, eficaz, a extensão do raio visual do homem e o valor moral e educativo conferem certamente à arte uma enorme importância social. Mas, se, à medida que a riqueza do homem aumenta, o alimento ocupa um lugar cada vez mais fraco, os produtores intelectuais não passam para o primeiro plano senão quando as sociedades se organizam em sólidas

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bases econômicas (Manifesto dos pioneiros da educação nova, 1932, disponível no site http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm, acesso em 11 de março de 2005).

De acordo com Cecília Meireles, no seu livro Problemas da Literatura

Infantil (1984), pode ser chamada como literatura infantil aquela que a criança lê e

da qual gosta. Essa concepção da autora vem a considerar que um texto escrito

para um adulto pode ser classificado como infantil, desde que a criança goste

dele. Tal conceituação de literatura infantil vem a corroborar, também, com a idéia

de que não existe uma poesia infantil, mas uma poesia lida por crianças e, por

esse motivo, quem a escreve não deve negligenciar quanto à sua qualidade

poética. Amplia-se, assim, o conceito de poesia destinada à infância, não só

devido ao talento de Cecília, mas também a sua concepção de educação

enquanto parte do universo de todas as camadas sociais, tendo como centro o

aluno e o seu mundo. A concepção escolanovista considera o aluno como centro

do processo de aprendizagem, e isso também acontece na sua vertente brasileira.

Conforme o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a educação tem

“uma funcção complexa de acções e reacções em que o espirito cresce de ‘dentro

para fóra’, substitue o mecanismo pela vida (actividade funccional) e transfere

para a creança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro

de gravidade do problema da educação” (Ghiraldelli Jr., 1991, p. 66). A escola,

assim, passa a ter por objetivo despertar a curiosidade e a criatividade dos alunos,

sem cercear a espontaneidade, aproximando-se dessa forma do lúdico e, por

conseguinte, da literatura e da arte em suas diferentes modalidades, dentre elas

as de folclore puro. Cecília Meireles exerceu importante papel nesse sentido, na

medida em que foi estudiosa de assuntos do folclore, bem como fundadora da

primeira biblioteca destinada especificamente a crianças: de 1934 a 1937. No Rio

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de Janeiro, atuou como organizadora de biblioteca infantil, no antigo Pavilhão

Mourisco, em Botafogo16.

Já em 1937, cinco anos após o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,

a autora viu publicado, juntamente com o médico Josué de Castro, o livro A festa

das letras, texto que surgiu com o selo da Editora do Globo para ser o primeiro de

uma série cujo objetivo era transmitir às crianças os primeiros preceitos de higiene

alimentar, estimulando-as a se aproximarem de alimentos pouco valorizados pelo

brasileiro de então.

A intenção pedagógica desse livro aparece explícita já no prefácio escrito

pelos autores: “Ora, se os bons hábitos da alimentação devem ser formados na

infância, ninguém mais necessitado do que a criança brasileira, submetida

comumente a um regime precário e impróprio” (Castro e Meireles, 1998). Contudo,

graças à maestria de Cecília-poeta, o tom meramente pedagógico desses poemas

se diluiu. Como professora, Cecília defende o escolanovismo. Como poeta, quer

que essas mudanças libertem a produção poética para a infância do ranço do

pedagogismo. Sobre a relação mulher-literatura, na conferência “Expressão

Feminina da Poesia na América”, agora já em 1956, diz: “Como, em grande

número de casos, as poetisas ibero-americanas têm sido professoras, os assuntos

escolares, o interesse (ainda maternal) pelos alunos, e a nota patriótica não são

difíceis de encontrar em muitos de seus versos” (Meireles, s/d, p.104). Nas páginas sobre educação infantil, Cecília manifestou sua crença de que

há, nos educadores de sua época, “uma fibra essencial dos poetas” (Lamego,

1996, p. 128). Para ela, “o que constitui, propriamente, a formação interior dos

poetas é esse dom de viajar independente das realidades contingentes, buscando

um estado de beleza geral que sua intuição, mais aguda que a dos outros

homens, percebe, registra, apreende” (Lamego, 1996, p.128). Cecília, com seu

16 Sobre esse assunto, ver PIMENTA, Jussara. “Leitura e encantamento: a biblioteca infantil no Pavilhão Mourisco”. In: NEVES, M. de S., LOBO, Y.L., MIGNOT, A. C. V. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: EdPUC-Rio: Loyola, 2001. p. 105-119.

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ideal de poesia e sua crença educacional, dá-nos de presente a figura de poeta-

professora. De professoras-poetas a poetas-professoras, a poesia destinada à

infância percorreu um caminho que transitou entre o fazer literário e o caráter

pedagogizante.

Caminho igualmente pioneiro para a mudança definitiva do conceito de

poesia para a infância foi o de Henriqueta Lisboa.17 Tal como Cecília Meireles, sua

produção não se restringiu ao universo dos livros ditos para adultos. Publicado em

1943, O Menino poeta, junto com o bem posterior Ou isto ou aquilo, de Cecília

Meireles, de 1964, fazem parte de um conjunto de livros que já não mais

distinguem, em qualidade literária, poemas destinados à infância dos que circulam

no universo adulto.

Se Zalina Rolim e Olavo Bilac já demonstravam uma preocupação estético-

literária com os poemas que destinaram à infância, Henriqueta e Cecília abriram

caminho para que essa produção no Brasil se libertasse, enfim, do didatismo

presente nos primeiros poemas produzidos. Abriram caminho, também, para uma

produção que não necessariamente fosse feita por professores-autores. Depois de

Henriqueta e Cecília, seguiram-nas em seu caminho Sidónio Muralha (cujo livro A

televisão da bicharada – 1962 – foi inclusive publicado dois anos antes de Ou isto

ou aquilo) e Vinícius de Moraes (A arca de Noé – 1970).

As décadas de 80 e 90 viram não só o boom da literatura dita infantil em

geral, mas foram particularmente significativas no que tange à publicação de livros

de poemas para a infância, através de autores como Elias José, José Paulo Paes,

Maria Dinorah, Reinaldo Alves Valinho, Ricardo Azevedo, Roseana Murray, Sérgio

Capparelli, entre outros. Através de seu fazer poético-literário, esses autores

17 Henriqueta Lisboa nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 1901, e faleceu em 1985, em Belo Horizonte. Teve publicado Fogo fátuo, seu primeiro livro de poesia, em 1925, quando havia se formado há pouco tempo no Curso Normal, em Campanha (MG). Entre 1961 e 1968, Henriqueta foi

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abriram caminho para uma produção poética que não se preocupa apenas com o

ensino, mas com a qualidade estética dos poemas, independentemente da idade

para que foram destinados. Alguns exemplos são as antologias que buscam não

só poemas escritos para um leitor mirim, mas para todos aqueles que possam ser

fruídos por adultos e crianças, tais como o livro Poesia fora da estante 1 e 2,

organizados por Vera Teixeira de Aguiar, Simone Assumpção e Sissa Jacoby,

Editora Projeto, bem como livros originalmente direcionados ao público adulto,

mas redirecionados à infância, através de ilustrações e projeto gráficos

adequados. É o caso de Pedacinhos de Pessoa, poemas de Fernando Pessoa,

com ilustrações de Angela Lago, Editora RHJ; O fazedor de amanhecer, poemas

de Manoel de Barros, com ilustrações de Ziraldo (Salamandra); Poeminhas

pescados numa fala de João, poemas de Manoel de Barros, com ilustrações de

Ana Raquel, Editora Record, entre outros.

E o nosso século que apenas começa? No que diz respeito à produção de

poemas veiculados entre crianças, arrisco-me a dizer que, se o final do século XIX

e primeira metade do XX foi a época da poesia vinculada ao ensino, se a segunda

metade do século XX representou uma busca da literariedade, do prazer da leitura

e de raízes folclóricas, o século XXI será, então, o momento do diálogo, da

vinculação da poesia às demais artes (música, teatro, artes plásticas), como

podemos observar a partir dos vários lançamentos de livros-CDs destinados a um

publico infantil: momento de busca da voz perdida do poema. Nesse sentido, cito

os livros da série Poesia em Canto, das Edições Paulinas, intitulados Clave de lua,

de Leo Cunha e Garranchos, de Francisco Marques. Ambos foram ilustrados por

pinturas de Eliardo França e musicados por Renato Lemos. Um outro livro que

congrega a música e as artes cênicas é o livro de Gustavo Finkler e Jackson

Zambelli, A mulher gigante, ilustrado por Laura Castilhos, Editora Projeto. José

Paulo Paes teve alguns de seus poemas musicados por Paulo Bi, no CD José

Paulo de Paes para filhos, lançado em 2005 pela gravadora MCD.

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2.2 Do poema que não vai à escola à escola do poema

Se, no Brasil, a poesia publicada para a infância esteve por muitos anos

atrelada ao espaço da escola, ela sempre circulou de forma oral entre as crianças,

através de suas brincadeiras, em diferentes épocas e culturas. Ao falar dos

brinquedos da infância, Câmara Cascudo destaca que “o pião de madeira, com

ponta de prego sacudido zoando na beira da calçada, é neto de estrombos grego,

citado na Odisséia, de Homero, o turbo que os legionários romanos jogavam por

toda parte dos domínios” (Cascudo, 1978, p. 52). O mesmo observa o autor em

relação às rondas infantis. São registradas em diferentes épocas e em diferentes

culturas, como a cantiga “Lá na ponte da Aliança”. A ponte da Aliança, também em

suas variantes “ponte da Vinhaça”, “corda da Viola”, “do Gavião” e “ponte das

Agulhas”, remete-nos à ponte d’Avignon que, segundo o autor, é “famosa nas

festas da cidade papal do meio-dia francês, ponte destruída em 1669 e já citada

no Orlando furioso quando Rodamonte visita ‘a ponte magnífica de Avinhão’, velha

e célebre, mesmo nos primeiros anos do séc. XVI” (Cascudo, 1978, p. 53).

Muitas são as classificações dadas à produção em versos presente na

infância de forma oral. Por questões de organização, optei por utilizar a

classificação feita por Veríssimo de Melo, em seu livro Folclore infantil (1985).

Nesse livro, o autor reuniu cinco ensaios que falam sobre acalantos, parlendas,

adivinhas, jogos populares e cantigas de roda, com um rico acervo dessas

modalidades de textos em forma de poema do folclore infantil. Passo, então, a

diferenciar apenas as modalidades poéticas apresentadas pelo referido autor, de

acordo com sua classificação e sua conceituação:

1. Acalantos: são pequenos cantos entoados pelas mães ou amas pretas

para embalar ou consolar crianças. Dentre suas características, estão as

interjeições seculares estudadas por Câmara Cascudo (oô, ô, ôôô etc.), bichos e

pássaros horripilantes, espectros (fantasmas lendários, perseguidores dos

meninos que custam a dormir). A maioria das cantigas de berço veio de Portugal,

exceto a que fala do Cabeleira (um famoso criminoso, terror da zona

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pernambucana). Algumas cantigas de embalar meninos são fragmentos de

modinhas populares, parlendas adaptadas, cantos negros misturados com fados,

cantos de igreja. Muitas cantigas de ninar, segundo Melo, serviram de temas a

músicos e poetas conhecidos, como Villa Lobos e Manuel Bandeira.

2. Parlendas: são, muitas vezes, confundidas com jogos, brinquedos,

adivinhas, rondas, acalantos, contos populares. Contudo, distinguem-se desses

grupos por se constituírem em rimas, sem música, que servem para ensinar

alguma coisa, divertir a criança ou criticar outra. Classificam-se, para Veríssimo de

Melo, em três seções: os brincos, as mnemônias e as parlendas propriamente

ditas. Os brincos são os primeiros agrados ingênuos de pais e mães carinhosos.

São acompanhados de gestos, como quando se pega a mão do bebê, dedo por

dedo, e se diz “Dedo mindinho,/ Seu vizinho,/Maior de todos,/ Fura-bolos,/Cata-

piolhos...”. As mnemônias, citadas por Luís da Câmara Cascudo, são parlendas

que têm por fim ensinar alguma coisa, como nomes ou números. Um exemplo é:

“Um, dois, feijão com arroz,/Três quatro, feijão no prato,/Cinco, seis, feijão para

nós três,/sete, oito, feijão com biscoito,/Nove, dez, feijão com pastéis.” Já as

parlendas propriamente ditas circulam entre as crianças. Não há, por isso,

iniciativa de adulto. São exemplos de parlendas propriamente ditas os ditos e as

rimas infantis, os trava-línguas e os ex-libris.

3. Adivinhas: São, segundo Melo, quase sempre um conjunto de analogias

e de personificação. Já Pitré, segundo o autor, define adivinha como um conjunto

de palavras no qual está compreendido ou suposto algo que não se diz através de

qualidades e características gerais, que se podem atribuir a outras coisas que

tenham ou não semelhança com a analogia. O autor cita, também, Teófilo Braga,

que observa na adivinha a redução de qualquer objeto da natureza a uma

personificação (esboço de formação mítica) e o desenvolvimento do mito nas

analogias acidentais e imprevistas. Na Antigüidade, as adivinhas representavam a

manifestação das faculdades especulativas do homem. Nessa época, elas eram

expressão do culto e da magia religiosa e as decifrar rendia prêmios preciosos e

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reputação divina a quem o fizesse. Melo destaca que ainda hoje as adivinhas

guardam vestígios deste mundo fabuloso e distante em que a decifração de

enigmas constituía a mais alta prova de inteligência.

4. Cantigas de roda: São, para Melo, a junção da poesia, da música e da

dança nos brinquedos de rondas infantis. O autor ressalta que as cantigas de roda

têm muito pouco de brasileiras. Elas sofreram influências das culturas lusitana,

africana, ameríndia, espanhola e francesa. Utilizando-se de classificação de Luis

Hoyos Sáinz e Nieves de Hoyos Sancho, Melo divide as cantigas em cinco grupos:

cantigas amorosas (“Vestidinho branco”, “A margarida”, “Esta menina que está na

roda”, “O cravo brigou com a rosa”, “Teresinha de Jesus”), cantigas satíricas (“A

barca virou”, “Dona Chica”, “Pai Francisco”), cantigas imitativas (“Carneirinho

carneirão”, “Seu lobo”, “Escravos de Jô”), cantigas religiosas (“Capelinha de

melão”) e cantigas dramáticas (“O baú”, “A machadinha”).

Presente nas escolas e também nas ruas, o que chamamos de poesia

destinada à infância aproxima-se, por um lado, de textos cuja finalidade é o

ensino, mas, por outro, de peças circulantes na cultura popular. Tal constatação

levou-me ao questionamento acerca da existência ou não do que muitos chamam

de uma poesia cujo destinatário seja a criança e que, por conseguinte, pudesse

ser classificada como infantil. Bordini (1986) faz uma reflexão interessante sobre

esse assunto, em seu livro Poesia infantil.

No primeiro capítulo de seu livro, intitulado “Poesia é brinquedo de criança”

(Bordini, 1986, p. 5-16), a autora diz que não é possível questionar o estatuto e os

regimentos da poesia infantil sem os situar no mundo da infância, pois adultos e

crianças fazem parte de esferas diferenciadas. Segundo ela, a literatura infantil

mostra as cicatrizes do processo social de dominação da infância e a tentativa de

compensar essas cicatrizes pela fidelidade iluminista da arte. A diferenciação das

esferas adulto e infantil faz surgir a necessidade de adaptação de temas e

discursos. Essas adaptações muitas vezes investem a produção para crianças de

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um caráter pedagógico, como se a obra devesse substituir os manuais de ensino e

a ação educadora de pais e professores.

Isso, a seu ver, também acontece com a poesia, quando recebe a

adjetivação “infantil”. A poesia infantil segue, historicamente, três caminhos

divergentes, segundo Bordini (1986, p. 9):

1. a apropriação de criações folclóricas de origem camponesa circulante na

Idade Média;

2. a adaptação de poemas clássicos, como Os Lusíadas, de Camões, e “I-

Juca Pirama”, de Gonçalves Dias;

3. a rima infantil, espontânea entre os pequenos, que passa de geração em

geração, por meio das amas.

Apoiada em Roman Jakobson, a autora aponta como uma das

características da poeticidade a equivalência dos vários níveis do discurso

articulado. O arranjo de elementos sonoros encontra ressonância no das figuras

de linguagem e construções gramaticais, bem como na disposição do verso ou da

estrofe. Esses arranjos, aliados à sensação de estranheza, provocam no

consumidor infantil o prazer do jogo (interativo, gratuito, simulador). Assim, a

poesia infantil genuína não se distingue da poesia não-adjetivada, a não ser em

alguns temas, defende a autora (1986, p. 11-13).

Lígia Cadermatori Magalhães (1982), no seu texto “Jogo e iniciação

literária”, aproxima a poesia do jogo e destaca que esse é a atividade da infância

através da qual a criança explora o mundo sem obrigatoriedade, apenas pela

necessidade de se adaptar e de equilibrar tensões. Apóia-se, para suas

constatações, em Huizinga, no seu texto Homo ludens.

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Segundo Huizinga, toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do

culto, o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo

combativo da emulação, da troca e da invectiva, o jogo ligeiro do humor e da

prontidão. Para ele, criança e vate, jogo e sagrado relacionam-se entre si, pois

representam a primitiva e onírica essência da poesia:

Se a seriedade só pudesse ser concebida nos termos da vida real, a poesia jamais poderia elevar-se ao nível da seriedade. Ela está para além da seriedade, naquele plano mais primitivo e originário a que pertencem a criança, o animal, o selvagem, o visionário, na região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso (Huizinga, 1996, p. 133) A verdadeira designação do poeta arcaico é Vates, o possesso, inspirado por Deus, em transe. Estas qualificações implicam ao mesmo tempo que ele possui um conhecimento extraordinário. Ele é um sábio, sha´ir, como lhe chamavam os árabes (HUIZINGA, 1996, p. 135).

Conforme Huizinga, a poesia não tem apenas uma função estética. Ela

assemelha-se ao jogo em sua função primordial porque:

É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que ele se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância (HUIZINGA, 1996, p. 147)

No caso da criança, segundo Lígia Cadermatori Magalhães, a criança

explora seus sentimentos e suas emoções através do jogo, que não é simples

satisfação do seu desejo. Ao jogar, a criança atinge uma generalização do afeto.

Ao entrar na escola, contudo, a criança começa a se afastar do jogo, pois lhe é

transmitida a noção de que o estudo é uma “atividade séria”. O retraimento do

ludismo, sem que nada o substitua, instaura, assim, um desequilíbrio. Magalhães

(1982) chama atenção para o fato de que, ao chegar à escola, toda a experiência

de linguagem que a criança traz é através do som da palavra, por convivência com

formas poéticas transmitidas oralmente, como as cantigas de roda, as parlendas,

as adivinhas e os acalantos. E é justamente quando o jogo vai pouco a pouco

sendo cerceado na sala de aula, que cabe à poesia, instância primária lúdica,

resgatar esse espaço perdido da infância.

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Também Bordini (1986, p. 23-30) destaca que a poesia está presente na

vida através de brincos (poemas dirigidos ao bebê). O tecido melódico próprio da

poesia (aliterações, assonâncias, anáforas, rimas, estribilhos e acentos variados)

é o construtor de ritmos hipnóticos, o que faz com que o adulto utilize tais

composições poéticas para acalmar a criança. Importante é a associação corpo-

poesia, pois, na criança, o processo de apreensão do outro se inicia pelos órgãos

sensoriais do contato (olfato, audição e visão), e a poesia está ligada a este

aparato perceptivo.

As parlendas e as adivinhas são formas da poesia infantil em que se

destaca um procedimento imagístico. Segundo Bordini, o pequeno leitor

dificilmente consegue efetuar as transformações de representação de um poema

imagético, mas a criança mais velha, que foi introduzida nas brincadeiras das

parlendas, dos poemas de contra-senso e das adivinhas, pode fazê-lo, aos

poucos, através da coordenação de relações sensoriais possíveis e inesperadas.

Ao chegar à adolescência, o jovem da sociedade letrada pode contar com a

leitura de textos informativos como meio de chegar aos domínios da razão. A

poesia tende, então, a ser deixada de lado. Penso que, nessa fase, bem como na

que a precede (dos dez aos doze anos), textos de folclore puro podem ser

resgatados através da percepção sensorial, da voz e do corpo, como forma de

motivar a leitura e a produção de textos poéticos em geral, pois esses, como os

poemas escritos, atuam através dos sentidos, principalmente da voz. Sobre a

poesia em geral, Bordini ressalta:

A poesia, que nunca foi infensa a seu uso social, obteve êxito pragmático junto ao público sempre que pôs a arte acima da propaganda, o que significa trabalhar som e sentido, de modo que os valores propostos, brotando do âmago do texto, se tornassem fascinantes, encantatórios, conquistando os sentidos e as emoções antes de chegarem à razão (BORDINI, 2003, p. 70).

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Segundo Bordini (1986, p. 31-32), a poesia é a forma literária que mais

exige introspecção porque condensa múltiplos sentidos num espaço gráfico

mínimo e exige do seu leitor um olhar mais atento à página, uma ativa mobilização

do conteúdo intelectual e afetivo e um ajustamento contínuo de emoções e

desejos, juízos e avaliações.

Dessa forma, a poesia, enquanto produção cultural também destinada à

infância/adolescência, cumpre um papel importante, fundador da memória de um

grupo, resgate de identidade. Para Perrotti (1990), é impossível que, por melhor

que seja, qualquer produção cultural para a infância substitua os espaços de

interação e experimentação perdidos pelas crianças com o crescimento das

cidades. Segundo o autor, a produção cultural para a infância (e a poesia

enquanto produção cultural) não pode ser:

(...) um lenitivo para os males que a expansão do capitalismo criou. Ao contrário, nessa situação, necessita ser memória, resgate do lúdico, categoria incompatível com o sistema, e que, por ser irredutível, não se submete jamais à mercantilização total da vida, como pretendem as formas mais avançadas de capitalismo. E é enquanto resgate, que a produção cultural poderá viver em harmonia com a vida. Só assim ela se justifica. Enquanto re-fazer, enquanto re-nascer, enquanto tensão dialética, processo de superação nessas condições o simbólico será alargamento do real e vice-versa. Jamais substituição (PERROTTI, 1990, p. 26).

Com a perda gradativa dos espaços de socialização (praça, ruas, jardins

etc.), a escola começou, então, a resgatar a rua para dentro de si mesma, através

de uma maior preocupação com as formas orais trazidas pelos diferentes grupos

sociais, com a performance dessas formas, com o corpo e com a voz que sempre

escapam, mesmo que seu espaço lhes seja negado. Da rua para os recreios, dos

recreios para a sala de aula, surge o reconhecimento da importância do corpo e

da voz para a poesia. Poesia é, assim, porto de mim mesmo, porto de um grupo,

viagem que se inicia num eu e envolve um nós através da fala, para ancorar em

um outro: eu-ouvinte ou eu-leitor.

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poesia, nos 1º, 2º e 3º ciclos do Ensino Básico18 e na família. Repito que o título deste livro não é inocente. A poesia é uma escola, uma escola da linguagem. O que me conforta nesta idéia é que muitas crianças com deficiências, autistas, socialmente marginais ou abandonadas, vedetas talvez um pouco vistosas demais nesse lugar comum ultramediatizado que é o insucesso escolar, só se animam quando escutam uma cantilena, um poema, uma imagem que lhes diz, de outro modo, outra coisa diferente das exigidas pelas aprendizagens escolares (JEAN, 1989, p. 98).

A aprendizagem através da poesia pode incluir tanto a leitura quanto a

produção de texto, conforme destaca Jean, pois a produção de poemas une

criador e leitor. Não se trata aqui de incumbir a escola na formação de novas

gerações de poetas, mas de proporcionar às crianças e aos jovens instâncias de

leitura e de criação de poemas, na medida em que, ao ler poesia, eles já estariam

em processo de criação/recriação: “Pois deve-se repetir uma vez mais que a

poesia é assunto tanto do leitor quanto do poeta. O leitor cria o poema, recria-o

em si mesmo, para si, com seu corpo, seu sangue, sua respiração, sua vida, seu

prazer e sua dor” (Jean, 1990, p. 130).

Josette Jolibert, em Formar niños lectores y produtores de poemas, relata,

junto com o mesmo grupo de pesquisadores que produziram os livros Formar

ninõs lectores de textos e Formar ninõs productores de textos, uma pesquisa-

ação, desenvolvida a partir de referencial teórico de estudiosos como Georges

Jean e Gianni Rodari, entre outros. Um dos objetivos da investigação foi o de

elaborar atividades que proporcionassem o “viver em poesia” (Jolibert, 1995, p.

16). Como uma das metas de seu trabalho, o grupo pretende “(...) formar crianças

que durante e ao término de sua escolaridade sejam capazes, sozinhas (ou seja,

por sua própria iniciativa), de ler, dizer, produzir poemas. Simplesmente porque,

havendo vivido a experiência, terão o desejo e a possibilidade de o fazer” (Jolibert,

1995, p. 16 – tradução minha).

18 O que equivaleria, no Brasil, ao Ensino Fundamental.

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Através de momentos institucionalizados e momentos informais com o texto

poético, o grupo de pesquisa tentou regatar o “viver em poesia” no espaço da

escola, através da criação de um “lugar-poesia” estimulante. Por “lugar-poesia”, os

pesquisadores-professores entendem aquele em que as crianças possam

participar em diferentes atividades quer individuais, quer compartilhadas, quer

coletivas de leitura e de produção de poemas. A ação pedagógica desses

professores pretende se estender para fora dos muros da escola, através da

socialização dos textos produzidos pelos alunos, do contato com bibliotecas e

órgãos locais de cultura, de encontros com poetas e de recitais de poemas

abertos à comunidade (Jolibert, 1995, p. 45-53).

Na escola, em casa, na rua, da escola para a rua, da rua para a escola, ou,

como propôs Georges Jean, ao se transformar em escola, a poesia tenta estar

sempre presente na vida de crianças e adolescentes. Mas, afinal, o que pensam

eles ser poesia? Que formas poéticas reconhecem? Para que a escola seja um

lugar-poesia, faz-se necessário reconhecer o que pré-adolescentes de dez a doze

anos de idade pensam sobre poemas.

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3 ENTRE O ORAL E O ESCRITO: O POEMA NA CONCEPÇÃO DE CRIANÇAS DE DEZ A DOZE ANOS DE IDADE

O poema na escola: festa cívica, primavera, dia útil, nova era. O poema em casa: brincadeira diferente, fala truncada na boca, dança de sons, presente!

Através de minha prática docente, pude observar, em crianças de dez a

doze anos, certa resistência à leitura de poemas, sobretudo quando ingressavam

na quinta série do Ensino Fundamental. Muitas delas, inclusive, alegavam não

gostar de poemas. Contudo, observei também uma necessidade de que essas

crianças lessem em voz alta os textos trabalhados em sala, como atitude

precedente a sua leitura silenciosa. Muitas vezes, essa leitura oral preliminar

transformava-se em pré-requisito para uma melhor compreensão do texto.

Tal atitude se aproximava, de certa forma, da feita pelos leitores das

escritas sem separações, tais como as da Grécia e da Roma antigas. Ao se verem

em situação de leitura, muitos pré-adolescentes sentiam necessidade do suporte

do som, tal como observa Saenger (1997, p. 219), através da leitura em voz alta

ou do balbucio, para terem acesso à compreensão do texto. Faziam, portanto,

uma leitura imbricada no oral, na medida em que era a voz que instaurava o

sentido do que liam, em virtude de seu estágio de alfabetização.

Percebi também que, quando solicitadas a falarem ou a escreverem sobre

se conheciam algum poema, essas crianças traziam de memória quadras

populares, pequenos poemas escritos em agendas e em folhas de anotações

pessoais. Para mim, surgiu a suspeita de que havia um descompasso entre o que

a escola queria que as crianças considerassem como poema (a peça literária

autoral, escrita e discutível em sala de aula) e o que elas realmente tinham em

suas mãos como poema (versos, na maioria das vezes rimados, sem autoria

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determinada, guardados na memória ou partilhados em agendas). Por esse

motivo, tentei descobrir que concepções sobre o poema estavam presentes entre

crianças de um grupo de quinta e sexta séries do Ensino Fundamental, constituído

de quatorze pré-adolescentes de dez a doze anos de idade, que integraram a

oficina Uma viagem através da poesia, inserida nas opções oferecidas no primeiro

trimestre de 2005 do Projeto Amora, do Colégio de Aplicação da UFRGS.

Contudo, antes de discorrer sobre as concepções de poema correntes

entre as crianças estudadas, são necessárias algumas explicações acerca do

Projeto Amora, bem como das oficinas que lá ocorrem. O Projeto Amora iniciou

suas atividades em 1996, após inúmeras discussões e planejamentos de um

grupo de professores do Colégio de Aplicação da UFRGS19, com a finalidade de

empreender mudanças curriculares nas quintas e sextas séries do Ensino

Fundamental. É sabido que a quinta série do Ensino Fundamental constitui um

“ponto de estrangulamento” na trajetória escolar dos estudantes brasileiros, ou

seja, nessa série há um índice de reprovação e evasão escolares altos. A

transição da quarta para a quinta e a sexta séries do Ensino Fundamental

coincide, também, para crianças que não tenham sofrido reprovações, com o

momento de passagem da infância para a adolescência: é um momento de

mudanças hormonais, psicológicas e cognitivas.

Em virtude desse “ponto de estrangulamento”, o grupo de professores que

iniciou o Projeto Amora em 1996, grupo do qual fiz parte e no qual atuei até o ano

de 2001, elaborou, para as quintas e sextas séries, um projeto que inserisse as

novas tecnologias no cotidiano escolar, bem como buscasse a

interdisciplinaridade e rompesse com as barreiras da seriação. Algumas

mudanças no âmbito curricular foram empreendidas, dentre elas, a utilização do

modelo de aprendizagem através de projetos de investigação científica criados

19 É importante destacar que o ingresso no Colégio de Aplicação da UFRGS ocorre por sorteio. Por ser um colégio público, federal, cujo acesso não se dá por via de seleção, os alunos que lá ingressam são de condições sociais diferenciadas. Tal circunstância de heterogeneidade faz-nos crer que as concepções de poema apresentadas pelos participantes da oficina podem ser generalizáveis a alunos de diferentes escolas, tanto da rede pública quanto da privada.

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pelos alunos. Assim, na medida em que desenvolviam seus projetos de pesquisa,

os professores das diferentes áreas do conhecimento elaboravam atividades

interdisciplinares relacionadas aos vários conteúdos específicos de suas áreas.

No horário semanal de aulas do Projeto Amora, está incluído um momento

de aproximadamente duas horas para as oficinas. Durante esses momentos, os

alunos interagem em grupos de aproximadamente quinze crianças/pré-

adolescentes, de quaisquer turmas envolvidas no projeto. Assim, formam-se

grupos com crianças tanto do Amora I (equivalente à quinta série do Ensino

Fundamental), quanto do Amora II (correspondente à sexta série do Ensino

Fundamental). A distribuição dos alunos pelos diferentes grupos de oficinas

oferecidas ocorre por escolha pessoal. Há um momento anterior à escolha dos

alunos em que alguns professores fazem uma exposição do que vai ser tratado

nos seus encontros para que cada aluno possa fazer sua opção. Cada oficina tem

duração de aproximadamente dez sessões, com cerca de uma hora e meia cada.

Após o último encontro, os alunos preparam-se para apresentar para todos os

colegas do Projeto Amora o que vivenciaram, aprenderam e criaram num encontro

intitulado “Festival de Oficinas”.

Durante minha estada como professora-pesquisadora do Projeto Amora,

pude oferecer diversas oficinas aos alunos, tais como as de contação de histórias,

de contos de fadas, de produção textual, de produção de vídeo e de literatura e

folclore. Por perceber a importância que tais momentos tiveram para a interação e

o aprofundamento em suas aprendizagen20.8(para.2(s)-36-15.3(í)9)20.41

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participantes dos encontros pudessem expressar suas idéias, quer através do

desenvolvimento de texto explicativo, quer através da confecção/escrita de

poemas de autoria própria ou não. Tais questões e textos constam do Apêndice C: Questionário e Produção Iniciais. Destaquei, das respostas dos alunos,

alguns aspectos que julguei significativos, a saber, as concepções que eles

apresentaram do poema como aquilo que provoca/expressa emoção (3.1), como

forma de contato, de comunicação com o outro (3.2) e como produção coletiva

(3.3). Assim, não me preocupei em analisar as respostas às questões

pontualmente, mas de acordo com a relação que tivessem com cada um desses

três tópicos. Os questionários respondidos pelos alunos estão no Anexo 1:

Primeiro Encontro.

3.1 Poema: palavra que expressa emoção

Ao responderem sobre o que era poesia (pergunta 1), surgiu entre as

crianças o conceito “aquilo que expressa emoção”:

São formas de se expressar sentimentos através de palavras. (J., 12 anos) Poemas são expressados sentimentos, já em textos só são palavras, não expressam às vezes quase nada. (J., 12 anos) Para mim, um poema é uma coisa romântica. (L., 10 anos) Vejo que às vezes os textos são de suspense e as poesias são românticas. (T., 11 anos) Para mim, poesia é um tipo de texto que quando escrevemos expressamos os nossos sentimentos, como raiva, dor, alegria, tristeza etc. (K., 12 anos) Para mim poema é se declarar para uma pessoa. (F., 10 anos) São coisas bonitas e que às vezes rimam, a maioria é romântica e também tem o de tristeza. (I., 11 anos) Algo bonito. Na poesia nunca tem um xingamento, nem reclamação de nada, e sim sentimentos. (G., 12 anos)

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Para mim, poesia são formas que expressam alguma coisa sobre a pessoa para quem o escritor está escrevendo e a poesia para mim ela é rimada. (R., 11 anos) É um jeito de falar da vida, como é, como você espera que ela seja etc. (V., 12 anos)

Nas conceituações apresentadas, observei claramente duas linhas de

pensamento: uma que considera poesia como instância de expressão de emoção

do eu para consigo mesmo e outra que a vê como o transmitir dessa emoção de

um eu para um tu. Sobre as conceituações de poesia a que os alunos atribuem a

função de proporcionar interioridade e relação consigo mesmo, para posterior

externamento dessa interioridade, essas aproximam-se do que Hegel diz em

relação à poesia representar o espírito e ser simultaneamente sintética e analítica:

“sintética, na medida em que é capaz de reunir num único feixe os elementos da

interioridade subjectiva; analítica, na medida em que é susceptível de desenvolver,

justapondo-se umas às outras, as particularidades e singularidades do mundo

exterior”. (Hegel, s.d., p.13) Assim, a poesia é capaz de representar um objeto

tanto em toda a sua íntima profundidade, como em toda a extensão da sua

explicitação temporal.

Hegel aponta, também, o fato de que a poesia tem em comum com a

música os materiais exteriores sobre as quais ambas atuam, a saber, os sons (p.

15). A diferença, para ele, está no fato de que, na poesia, “o espírito afasta o seu

conteúdo do elemento puramente sonoro e manifesta-se por meio de palavras

que, sem deixarem de ser sonoras, se reduzem a uma série simples de sinais

exteriores destinados a transmitir o pensamento”. (Hegel, s.d., p. 17) Na

concepção do autor, ainda, o que torna poético qualquer conteúdo é a fantasia

artística e não a representação em si. Há alguns traços desse caráter idealista

hegeliano, que deu origem à concepção romântica de literatura, no conceito de

poesia dado por L, de 11 anos, em um encontro que tive com crianças de quinta

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série, no ano de 200420: “É o pensamento da pessoa numa forma melódica, ou

seja, com melodia”.

Assim, para os pré-adolescentes que consideram ser poesia a expressão

de um eu para consigo mesmo, a forma é apenas um complemento para o

expressar de sua própria emoção. A poesia transforma-se em instrumento de

evasão, tal como categoriza Mauger (1999). Para o autor, há três categorias de

práticas de leitura: a de divertimento (evasão), a didática (para aprendizagem) e a

de salvação (para se aperfeiçoar), irredutíveis à leitura estética (ler por ler). Ler

poesia, para as crianças que responderam ao questionário, serve como forma de

relação consigo mesmo e também como evasão, pois, solitária e silenciosa, a

leitura de evasão proporciona um desligamento necessário à desconexão mental

do mundo do leitor e à imersão no mundo do texto, segundo Mauger .

Mauger (1999) assinala também que a leitura de evasão mobiliza

essencialmente as experiências emocionais que representam sentimentos

universais (amor, ciúme, traição etc), esquemas de percepção dualista fundada

sobre a oposição de caracteres universais (o bom/ o mau, o forte/o fraco, o

corajoso/o covarde etc), esquemas narrativos emprestados do “romance familiar”,

roteiros do tipo das intrigas amorosas. Essa característica apontada pelo autor

justifica o fato de que muitas das crianças que disseram gostar de poesia

(perguntas 2,3 e 4 do Apêndice C), tenham justificado suas respostas, alegando a

associação desse tipo de leitura ao “sentir-se bem”, ao “poder manifestar suas

emoções”:

Porque em momentos tristes ou felizes um poema parece que consola o coração. (C. 11 anos)

20 No segundo semestre de 2004, estive com um grupo de dezoito crianças do Projeto Amora (turma de Amora I, 5ª série de Ensino Fundamental) para iniciar a preparação das oficinas do projeto de tese de Doutorado, intitulado “OFICINAS DE POESIA: em busca da leitura de poemas em sala de aula”, do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS.

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Essa relação eu-tu é significativa em se tratando de poemas que tragam

marca de oralidade, pois, ao redor do declamador, agrega-se a platéia que o ouve.

Isso talvez explique a necessidade que crianças de dez a doze anos de idade têm

de ler em voz alta, de ritualizar suas leituras, para que se aproximem, assim, da

oralidade. Entretanto, se sentem necessidade de oralizar os poemas que lêem, de

lhes restaurar a voz, as crianças que freqüentaram a oficina declaram pouco ou

nada ouvir de poemas no seu dia-a-dia, ao responderem à pergunta 4 do

Apêndice C, sobre se costumavam ou não ouvir poemas, onde e por quê :

Não, pois não conheço nenhum CD de poesia, e ninguém nunca me declamou uma (pelo que me lembro). (G., 12 anos) Não, porque ninguém em minha casa fala ou lê poemas. (C., 11 anos) Não, porque eu nem sabia que tinha. (V., 12 anos) Não, porque ninguém me fala. (L., 10 anos) Não, porque com as pessoas que eu ando não ficam falando poemas. (A., 12 anos) Não, porque eu não gosto que leiam para mim. Às vezes quando lêem para mim me dá sono. (K., 12 anos) Não, porque minha vizinhança não lê. (F., 10 anos) Não, porque ninguém fica recitando poema para eu ouvir. (I., 11 anos) Não, porque eu não sei onde dá para se ouvir poema. (K. 11 anos)

Mesmo que tenham relatado que não costumam ouvir poemas, os pré-

adolescentes que participaram da oficina, quando responderam como haviam lido

ou ouvido o poema que registraram no questionário (perguntas 6 e 7), referiram-se

a familiares próximos, a amigos, enfim, a pessoas com quem mantinham laços de

afeto. Tais pessoas atuavam como vocalizadores da palavra escrita, o que, de

certa forma, aproxima-se da prática de leitura em voz alta, freqüente no século

XVII (Chartier, 1991), que fortalecia a intimidade familiar e de pequenos grupos

sociais:

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Minha ex-profe falou para nós! Ela pegou e botou no quadro que cada dia botava um (poema) no quadro. (T., 11 anos) (Ouvi) do meu pai. Foi por acaso. (L., 10 anos) Minha mãe leu para mim, costumamos ler poemas em casa. (L., 11 anos) No cartão de aniversário que ganhei da minha colega. (G., 12 anos) Em um diário. Minha amiga me mostrou e eu nunca mais esqueci. (C., 11 anos) Eu li na aula, na 4ª série, a professora tinha colocado no quadro daí eu peguei e decorei o poema. (A ., 12 anos) Quando uma amiga assinou o meu caderno, ela escreveu isso! (K., 12 anos)

Chartier ressalta, também, que, mesmo a leitura compartilhada em

pequenos grupos supõe a leitura solitária: “Ouvir, ler, ler a dois, falar de livros,

conversar no meio deles pressupõem leitores que com freqüência lêem a sós, na

intimidade, mas fazem um uso social do livro” (Chartier, 1991, p. 150). O poema

surge, assim, em circunstâncias de intimidade pessoal ou de espaço privado para

vários pré-adolescentes que responderam ao questionário, mediado ou não pelo

afeto dos que lhes são próximos: “(Li) num livro de poesia que eu tinha no ano

passado. Eu estava triste então peguei o livro e comecei a ler, até que cheguei

numa página que estava o poema”, explica R., 12 anos, sobre como teve acesso

ao poema que registrou no questionário. Assim, o poema, para tais pré-

adolescentes, mesmo que fruto da autoria de muitos, representa também uma

posse secreta, uma conquista feita na intimidade, de forma mais próxima à

transmissão oral, ou seja, sem marca de autoria, com transmissão boca-a-boca,

ou “pena-a-pena”.

3.3 Poema: posse secreta, autoria de muitos

Fabre destaca, com base em pesquisa etnográfica de Hermínio Lafoz, que

qualquer pesquisa sobre magia, nas sociedades atuais dos Pirineus, esbarra no

livro e em seus poderes (Fabre, 2001, p. 207). O livro de magia, nesse contexto

social, assim como no final do século XIX, é uma forma de ingresso no mundo das

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metamorfoses, portanto, decifrar sua leitura é ter acesso ao universo do interdito,

do transcendente, que se opõe à leitura escolar:

O livro de magias proibido parece, portanto, estar situado nos antípodas do livro cujo uso a escola e os grandes leitores consagram. Mas a oposição resolve-se se considerarmos que as condições de acesso à leitura, tais como podemos reconstituí-las para os últimos anos do século XIX, interpõem-se entre o saber e o aprendizado distâncias que, às vezes, equivalem a um interdito. Com efeito, a escola jamais é acessível a todos. (FABRE, 2001, p. 210)

Fabre ressalta também que, nos anos finais do século XIX, nem todos os

que liam escreviam. Os leitores das vigílias, por exemplo, provavelmente

escrevessem sua correspondência comercial, mas os leitores de livros mágicos

talvez não o fizessem. O privilégio da escrita, entre os leitores de livros mágicos,

era também ele um ritual mítico. Aquele que possuísse a escrita mágica adquiria o

privilégio de possuir a própria magia. A escrita mágica se converte, assim, no dizer

do autor, em talismã, muitas vezes atado ao corpo, como as orações envoltas em

breves-amuletos. A escrita mágica converte-se em escrita guardada, proibida, mas

poderosa:

O privilégio que protege seu possuidor é, em princípio, manuscrito de próprio punho ou pelo “adivinho” que consulta, mas, nesse caso, não deve abrir o saquinho que o contém e, ainda menos, decifrar a oração. É por isso que as mulheres costuram “em segredo” esses talismãs escritos na dobras das roupas quando um homem ia “tirar a sorte”, partia em viagem ou ia para a guerra. O texto age porque foi copiado, mas a leitura furtiva corre o risco de fazê-lo voltar-se contra seu beneficiário, salvo se o recopiar por sua vez. Não se prestou atenção suficiente a essas regras, que, no entanto, somente elas, permitem compreender a presença, ao lado dos livros malditos de magia, dos “cadernos secretos” que recolhem receitas, invocações, conjurações em partes idênticas. Porém, escritos pela mão do “adivinho” ou do “curandeiro”, esses textos, longe de possuí-lo, tornam-se os instrumentos dóceis de sua magia. Portanto, é pela escrita que nos apossamos da força do escrito. “Domar” o livro é copiá-lo, esta prescrição é apenas a consagração de uma prática que, em determinada época, foi generalizada” (FABRE, 2001, p. 217).

Ainda segundo Fabre (2001), para inculcar a escrita, a escola utilizava a

técnica da cópia. Os que serviam o exército costumavam fazer “cadernos de

canções”. Se o recruta não dominasse bastante a escrita, apelava a um “escrivão”

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e depois assinava no final. A sintaxe desses cadernos era a oral. Diz o autor: “A

cópia, como vimos, neutraliza os riscos envolvidos pela leitura de certos livros,

assegurando, ao mesmo tempo, a incorporação totalmente dominada da coisa

escrita que, de agora em diante, qualifica seu copista” (Fabre, 2001, p. 220).

Para o grupo de pré-adolescentes estudado, copiar também representa

possuir e essa posse está circunscrita ao espaço “mágico” do privado, lugar dos

segredos, dos amores, das buscas e das transgressões da juventude, das

mudanças de pensamento. Nesse sentido, a concepção de autoria, tal como a

entendemos nos dias de hoje, pouco é evidenciada: o texto é copiado pelo que

representa do universo jovem, seja ele criado de próprio punho, por algum colega,

familiar, ou ouvido/lido por aquele que escreve, e ler significa a posse “mágica”

dos sentimentos contidos no texto. Sobre o ato de ler, Aguiar (2004) destaca que:

Quando lemos, o que há de concreto diante de nós é o texto escrito, a mensagem do poeta. Ao nos adentrarmos em suas palavras, nos apossamos do sentimento que elas contêm e o que era invisível e comum na vida cotidiana assume nova dimensão e nos provoca, isto é, passamos a ver o mundo com outros olhos e a compreendê-lo mais atentamente (AGUIAR, 2004, p. 19).

Dos quatorze alunos que responderam às questões, doze deles não sabiam

dizer a autoria dos poemas que registraram no questionário (pergunta 6 do Apêndice C), embora os tenham considerado textos importantes. Para eles, é o

registro escrito do texto que lhe confere a autoria e legitima a posse do que está

escrito. Ele passa a ser de quem o registra, ou seja, dos próprios pré-

adolescentes. Como os recrutas em seus cadernos de canções (Fabre, 1996),

esses pré-adolescentes registram “seus” poemas com uma escrita que se

aproxima do oral: “O rosa por que choras teu amor foi perdido o foi abandonadas.

O rosa porque chora” (J., 12 anos).

Dessa forma, um mesmo poema é de um indivíduo através da escrita,

depois de ser de muitos através da fala. Por transitarem entre a recepção

individual e a coletiva, não é de se estranhar que os poemas registrados, quer

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ouvidos, quer lidos, quer “criados” pelas crianças, sejam, em sua maioria, de

tradição popular (quadras, trava-línguas e ditos populares) que, de certa forma,

mesmo sem estarem associados diretamente a uma melodia (como o estão as

cantigas), aproximam-se do que Spina (1982) classifica como poesia primitiva.

O referido autor identifica como poesia primitiva não só a dos povos pré-

letrados, mas a que está ligada ao canto e que é indiferenciada, anônima e

coletiva. Essa caracterização que Spina fez de poesia primitiva nos é muito

interessante, pois permite aproximar a lírica medieval, matriz de várias cantigas

folclóricas conhecidas das crianças, a quaisquer textos de vinculação com o canto.

Para Spina, “a poesia primitiva é uma poesia de caráter coletivo, porque

representa os anseios da coletividade e está intimamente ligada ao modus vivendi

dessas comunidades(...)” (Spina, 1982, p.2). Ressaltamos que esse caráter

coletivo aparece também nos “poemas” (quadras, trava-línguas, ditos populares)

registrados pelas crianças. Algumas das quadras transcritas, inclusive por mais de

uma criança, foram:

Napoleão com sua espada Conquistou uma nação. Você com seu jeitinho Conquistou meu coração. (A ., 12 anos e C., 11 anos) Voa, voa, andorinha, Nesse mundo sem fim, Vá dizer a _________ Que não se esqueça de mim. (K., 12 anos) A rosa é linda, Você é mais ainda; A rosa é bela, Você é mais que ela. (T., 11 anos)

Spina (1982) faz ainda um levantamento dos traços próprios da poesia

primitiva, dos elementos formais que presidem ao nascimento inicial da poesia, no

dizer do autor. São eles: a repetição, o refrão, o paralelismo, a aliteração, a

assonância, a rima e a anacruse. Observamos esses elementos nas brincadeiras

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infantis em forma de poemas e em poemas de tradição popular, tais como os

registrados pelo grupo que respondeu ao questionário.

Por assumir um caráter oral, o conceito de poesia, para os pré-adolescentes

estudados, não passa graficamente pela disposição do poema em versos e

estrofes, como é visível nos trechos a seguir, duas versões da já citada quadra

popular “Napoleão com sua espada”:

(A.,12 anos)

(C., 11 anos)

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Ao definirem poesia (questão 1), os participantes da oficina destacam a rima

como condição essencial do texto poético. Ao escreverem poemas que lhes

vinham de memória (ou de autoria), na questão 6, muitos deles não dispuseram

seus textos em forma de verso. Ao registrarem a presença da rima em seus

textos, mas não os escreverem em versos e estrofes, os pré-adolescentes

estudados evidenciaram ter noção oral do que seja um verso, noção essa

traduzida pelo seu limite sonoro: a rima.

Os registros de poemas feitos por eles seguem as características de formas

poéticas populares, o que também evidencia uma noção oral de poema. Foram

escritos trava-línguas, em quadras populares (“Me chamaram de esquecida,/ Me

mandaram te esquecer,/ Mas como sou esquecida,/ Me esqueci de te esquecer” -

R., 12 anos) e provérbios (“Mais vale uma pomba na mão do que duas voando” –

F. e L., 10 anos; “Se o homem fosse dinheiro, o mundo estaria cheio de notas

falsas” – I., 11 anos: A nossa amizade nunca vai ter um ponto final e sim muitas

vírgulas” – G., 12 anos).

Poesia, para os pré-adolescentes estudados, é também o espaço mágico,

secreto, das vivências humanas, trazido por textos coletivos, como os de tradição

oral. É para eles, portanto, posse secreta, escritos de agendas, canções de

memória, código comum copiado de mão em mão. Conhecer as várias

concepções que os pré-adolescentes têm acerca do que é poesia e poema é

importante para que se desenvolvam atividades de mediação de leitura e

produção de textos poéticos. No caso do grupo que respondeu às questões,

poesia é um texto que representa sentimentos universais -por isso a grande

incidência de registros de formas de domínio coletivo- através de combinações

melódicas. Há freqüentemente nessa conceituação um caráter oral.

Por terem marca de oralidade, os poemas de folclore puro trazem uma

dupla vinculação com o corporal: através da voz (quer falada, quer cantada) e do

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corpo propriamente dito (em função de lhes estar implícita uma performance,

como no caso das cantigas de roda, por exemplo). Assim, atividades relacionadas

à voz e ao corpo apresentaram-se como um bom começo para a iniciação de

criança de dez a doze anos na leitura e na produção de poesia. Um caminho

inicial foi identificar que procedimentos metodológicos poderiam recuperar a voz

perdida dos poemas para mediação da leitura e da produção desses entre

crianças de dez a doze anos de idade.

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4 UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA: O POEMA NA SALA DE AULA

Meu poema é porto, perto de onde corre o vento... pedaço. Meu poema, pátria em partes, se despedaça em ilhas- -mares. Meu poema: vela desfiada aos pares!

4.1 Início de viagem: que bússola norteia o rumo

Minha escolha por realizar uma oficina de criação poética como

experimento de tese fundamentou-se no que diz Jolibert (1995, 57-63) acerca das

oficinas de trampolim afetivo e imaginário. Ao propor estratégias para formar

crianças leitoras e produtoras de poemas, a autora e seu grupo de pesquisa

destacam a necessidade de que os poemas estejam em todos os momentos da

vida escolar, inclusive em alguns a que o grupo intitula “Talleres de Trampolín

Afectivo e Imaginário” (oficinas de trampolim afetivo e imaginário). Tais oficinas,

conforme Jolibert (1995, p. 57), permitem que as crianças “ponham seu imaginário

a trabalhar, a partir de uma situação de desencadeamento, a que denominamos

situação trampolim, aproveitada ou provocada pelo professor; experimentem seu

poder de criação sobre a língua em produções originais de poemas”. As oficinas

de trampolim afetivo e imaginário funcionam a partir de uma situação de partida,

que ative o imaginário do grupo, que suscite emoções e que provoque imagens,

por isso, elas não têm compromisso preponderantemente cognitivos, mas sim

existenciais. Os T.A.I. (“Talleres de Trampolín Afectivo e Imaginário”) devem

ocorrer em um momento e em um espaço marcadamente diferenciado das demais

atividades de aula.

Com base em Jolibert, elaborei atividades em que o poema estivesse

sempre presente, quer através de canções, de declamações, de leituras em voz

alta e em silêncio. Não houve um momento específico para que um poema fosse

abordado, mas a tentativa de transformar a oficina Uma viagem através da poesia

em um lugar-poesia (Jolibert, 1995, p. 45-53). O texto poético, assim, pôde

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despertar sensações (na etapa da percepção), promover reflexões (na etapa da

discussão) e ser criado/recriado (na etapa da criação).

A partir dos estudos que fiz acerca da necessidade de resgatar o corpo e a

voz para resgatar também a poesia em sala de aula (capítulos primeiro, segundo e

terceiro desse trabalho), bem como do que propõe efetivamente Jolibert sobre a

formação de leitores e produtores de poemas, optei por elaborar e por executar a

oficina Uma viagem através da poesia com pré-adolescentes de dez a doze anos

(apenas um deles possuía treze anos, completados pouco antes da realização da

oficina), das diferentes turmas do Projeto Amora, do Colégio de Aplicação da

UFRGS. Cada um dos dez encontros, exceto o último, que se constituiu em

preparação para o que foi apresentado no Festival de Oficinas, estruturou-se em

três etapas: percepção, discussão e criação.

No momento da percepção, foram propostas atividades que despertassem

os alunos sensorialmente para a leitura/audição de poemas, em seus aspectos

fônicos, semânticas, sintáticos e pragmáticos. Inicialmente, as atividades de tal

momento circunscreveram-se ao corpo dos participantes: atividades de

representação mímica, de audição de músicas, de experimentação de

sonoridades de palavras e de instrumentos, de apreciação de imagens, até chegar

à audição e, finalmente, à leitura de poemas.

O despertar da percepção sensorial é essencial não só para a

internalização do poema, mas também para a sua criação/recriação. Georges

Jean, ao se referir ao livro de André Spire, Plaisir poétique et plaisir musculaire,

relata: Spire afirma também que o poeta “deve resignar-se a conhecer as leis da eufonia e da rítmica actuais. Tem de conhecer a sua prática, não apenas através da sua visão e a da sua audição, mas também no seu corpo e na sua boca. O escritor que compõe não é apenas alguém com uma caneta ou um ouvinte enganado pela sua voz, pois a que escuta dentro de si, mascarada por todas as espécies de ressonâncias, não é reconhecida pelos que a ouvirão, aqueles a quem deseja falar. Ele é que deve ser um alguém que fala, em voz alta e em voz baixa. Deve moer e remoer as suas palavras enquanto compõe e, ainda que pouco exercitado a prestar

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atenção ao jogo do ritmo normal e dos andamentos do ritmo emocional nos seus órgãos, sentirá os mais delicados batimentos no seu corpo e na sua boca (JEAN, 1989, p. 78).

Dessa forma, aquele que ouve/lê textos em versos torna-se autor através

de sua própria performance/leitura, ao sentir em seu próprio corpo o poema. Do

mesmo modo, aquele que cria reinterpreta percepções tanto suas como de outrem

ao “inventar” poeticamente. Diz-nos Fernando Pessoa em seu poema

“Autopsicografia”, do ano de 1931: “O poeta é um fingidor./ Finge tão

completamente/Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” (Pessoa,

1986, p. 98). E complementa em “Isto”: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo que

escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração”

(Pessoa, 1986, p. 99).

O sentir a emoção de um outro também é, de certa forma, a proposta de

Stanislavski ao falar da preparação que um ator faz de seu papel. Para o autor, há

três etapas na preparação de um papel: estudá-lo, estabelecer-lhe vida e dar-lhe

forma (Stanislavski, 1999, p. 21). Sobre o primeiro contato de um ator com seu

papel, o autor considera-o um momento de extrema importância. Ao proceder a

primeira leitura do texto que vai interpretar, o ator deve estar atento às suas

primeiras emoções e para isso estar preparado. Diz Stanislavski:

Para registrar essas primeiras impressões, é preciso que os atores estejam com uma disposição de espírito receptiva, com um estado interior adequado. Precisam ter a concentração emocional sem a qual nenhum processo criador é possível. O ator deve saber como preparar uma disposição de espírito que estimule seus sentimentos artísticos e abra sua alma. E, ainda mais, as circunstâncias externas para a primeira leitura de uma peça devem ser devidamente estabelecidas. Temos de escolher o lugar e a hora. A ocasião deve ser acompanhada de certa cerimônia; já que vamos convidar nossa alma para a euforia, devemos estar eufóricos espiritualmente e fisicamente (STANISLAVSKI, 1999, p.22).

Dessa forma, para o autor, “conhecer” é sinônimo de “sentir”, por isso o

ator, na primeira leitura de uma peça, deve dar rédeas soltas às suas emoções

criadoras (Stanislavski, 1999, p.23). Penso que o primeiro contato do ouvinte/leitor

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de poemas talvez possa ser também o da emoção, por esse motivo, organizei os

encontros da oficina nos momentos percepção, discussão e criação.

Ao escrever seus versos, o poeta não se esquece da emoção que o move,

assim, o ouvinte/leitor de poesia pode também ele perceber essa emoção a partir

das suas próprias, colocando-se frente ao poema e à emoção trazida pelo eu que

se expressa. Assim como “a imaginação do ator adorna o texto do autor com

fantasiosos desenhos e cores de sua própria paleta invisível” (Stanislavski, 1999,

p.23), o ouvinte/leitor de poemas deve preencher a emoção do eu que se

expressa com as suas próprias vivências, assim como o que produz um poema

deve saber transformar suas próprias emoções nas possíveis de serem de outrem.

Na oficina Uma viagem através da poesia, os momentos de percepção

buscaram despertar os vínculos entre poema e os sentidos humanos, assim como

um diálogo entre as artes verbais e não-verbais. Allan Paivio, em seu artigo “The

minds eye in arts and science” (“O olho da mente nas artes e nas ciências”-

tradução minha), ao falar sobre a organização da memória, aponta diferenças

entre o registro de informações armazenadas em imagens complexas e em

palavras. Diz o autor:

A informação em imagens complexas é organizada sincrônica e simultaneamente (...), assim, a estrutura de memória está disponível para uso mais ou menos ao mesmo tempo. Em contraposição, as palavras são organizadas seqüencial ou sucessivamente em estruturas maiores, como elos de uma cadeia (PAIVIO, 1983, p. 7 - tradução minha).

Partindo desse pressuposto, Paivio assume a posição de que a informação

armazenada na memória permanece sem uso se não puder ser recobrada. No

caso da reserva de memória metafórica, usamos como que “ganchos conceituais”

que servem de uma espécie de “chave-mnemônica” na recuperação desse tipo de

memória. Sobre os “ganchos conceituais”, Paivio diz que esses se referem a

palavras que funcionam como “chaves-de-recuperação” em situações de

aprendizagem associativa (Paivio, 1983, p. 10). A partir do conceito de situação

trampolim, de Jolibert (1995), e do de “ganchos conceituais”, de Paivio, optei por

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partir de produções artísticas não-verbais como modo de pôr a trabalhar o

imaginário dos participantes da oficina: audição de músicas, apreciação de

imagens, expressão de gestos etc. Gradativamente, essas situações-trampolim

foram-se encaminhando para motivações verbais, tais como a leitura de poemas.

Já no momento da discussão, não busquei exercícios de interpretação dos

poemas ouvidos/lidos, na medida em que tive como inspiração de modelo de

oficina os T.A.I. (Talleres de Trampolín Afectivo e Imaginário), descritos por

Jolibert e equipe (1995), cuja finalidade é o despertar do imaginário do grupo, o

suscitar de emoções e o provocar imagens. Em virtude disso, os momentos de

discussão não têm compromisso preponderantemente com um direcionamento

interpretativo, mas com a livre expressão acerca do que os poemas trabalhados

despertaram nos participantes. A reflexão acerca dos poemas ocorreu, então, de

forma oral, através da comparação entre os diferentes poemas registrados nas

antologias distribuídas para os participantes, feita em todos os aspectos

concernentes à tétrade lingüística (aspectos fônicos, semânticos, sintáticos e

pragmáticos). Foram momentos de conscientização do modo pelo qual foram

compostos os poemas trabalhados, sem a preocupação em aprofundar teorias da

versificação, bem como da retórica.

Procurei também, nos momentos de discussão com os alunos, despertar a

atenção desses para elementos da expressão presentes nos poemas que

tivessem implicações no conteúdo. Assim, observar a estrutura fonológica, as

repetições rítmicas, o isomorfismo e a musicalidade dos poemas foram

importantes na medida em que tais elementos assumem, como propõe Lotman

(1978), um caráter semântico.

Também Pound, em ABC da literatura, como Lotman, considera a

linguagem como meio de comunicação e os elementos da expressão relacionados

ao plano do significado. Portanto, para elaborar as atividades de oficina, baseei-

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me também nesse autor que destaca três meios de carregar a linguagem de

significação até o máximo grau possível. São eles:

1. Projetar o objeto (fixo ou em

movimento) na imaginação visual. 2. Produzir correlações emocionais

por intermédio do som e do ritmo da fala.

3. Produzir ambos os efeitos emocionais estimulando associações (intelectuais ou emocionais) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos de palavras efetivamente empregados.

(fanopéia, melopéia, logopéia) (POUND, s. d., p. 61)

Nos encontros da oficina Uma viagem através da poesia, procurei, então,

promover atividades que abordassem os três aspectos destacados por Pound: a

visualidade, a sonoridade/o ritmo e o significado (Camargo, 1996, p. 2).

Finalmente, a etapa intitulada criação constituiu-se de momentos em que

os alunos expressaram suas aprendizagens, através de produção própria, quase

sempre em versos. Também em virtude dos conceitos de situação trampolim, de

Jolibert (1995), e do de “ganchos conceituais”, de Paivio, proporcionei aos alunos,

concomitantemente a sua produção escrita, a audição de músicas instrumentais21,

escolhidas especialmente para cada encontro. As emoções são importantes na

leitura e na composição de poemas, enquanto a música instrumental é capaz de

um arrebatamento sem palavras. Retomo nesse ponto um trecho já citado por

mim, da Epistula ad pisones, de Horácio, sobre a condição da poesia de provocar

emoção no ouvinte: “Não basta serem belos os poemas; têm de ser

emocionantes, de conduzir o sentimento do ouvinte aonde quiserem (...) se me

21 Todas os títulos das canções, instrumentais ou não, utilizadas nos encontros, estão no

Apêndice F: Relação das músicas utilizadas nos encontros.

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queres ver chorar, tens de sentir a dor primeiro tu” (Horácio, 1997, p. 28). Ao

escreverem ao som de canções instrumentais, os pré-adolescentes participantes

da oficina puderam depreender delas sensações traduzíveis em seus próprios

poemas.

Diacronicamente, os encontros seguiram os seguintes tópicos:

1. Poesia: porto de partida

A finalidade desse tópico foi apresentar a oficina e os participantes dela,

bem como aplicar o questionário inicial e a proposta de produção de poema a

ser desenvolvida pelos participantes.

2. Poesia: porto de mim mesmo

Esse tópico teve como objetivo desenvolver atividades cuja temática

girasse em torno do próprio nome, bem como das vivências dos participantes.

3. Poesia: porto de quem mais?

O objetivo geral desse tópico consistiu em desenvolver atividades que

girassem em torno de objetos e de seres que estivessem à volta dos

participantes. 4. Poesia: portos em outros lugares

Nesse tópico, o objetivo geral foi proporcionar o contato, a percepção e a

reflexão acerca de manifestações culturais (música e poemas) de diferentes

épocas e regiões. 5. Poesia: uma viagem estrelada

A finalidade desse tópico foi desenvolver atividades de leitura de poemas

sobre terras e seres imaginários, a partir de motivação trazida por ilustrações

variadas e, posteriormente, de textos escritos.

6. Poesia: porto de chegada

Nesse tópico, o objetivo geral foi verificar a aprendizagem final dos

participantes, através da aplicação do questionário final (o mesmo aplicado no

primeiro encontro) e da proposta de produção de poema a ser desenvolvida

por todos.

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Tematicamente, a oficina partiu de um descentramento gradativo dos

participantes (“Poesia porto de mim mesmo”) para o mundo que os cerca (“Poesia:

porto de quem mais?” e “Poesia: portos em outros lugares”), até chegar ao

imaginário, através da busca da utopia (“Poesia: uma viagem estrelada”)

representativa dos sonhos, dos desejos, das ambições e das formas de ver o

mundo e o futuro por parte dos participantes. As escolhas do material utilizado nos

encontros (canções, poemas, imagens etc) foram feitas em função desse

pressuposto e os nomes utilizados, tanto na oficina como um todo, quanto nos

diferentes encontros, buscaram evocar o assunto “viagem”. Assim, através da

poesia, os participantes seriam também viajantes em busca de si mesmos, de

suas dúvidas, de sua própria criação.

Ao longo dos encontros, surgiu a necessidade de que alguns dos poemas

tocados, declamados, lidos (em voz alta e em silêncio) e escritos pelo grupo

fossem armazenados. Surgiram, então, as seis antologias presentes no Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros. Segundo Fraisse (1997), em

seu texto “A antologia literária, elementos de definição”, as antologias podem

constituir um foco de observação do fato literário, pois implicam seleção, extração,

colagem e agrupamento, todos feitos em alguma circunstância, quer histórica,

quer social. Assim, nas antologias, são importantes a presença, a ausência, a

emergência, o desaparecimento ou a recorrência de um extrato, de uma obra ou

de um autor. É o conjunto como tal que deve ser levado em consideração. Dessa

forma, em virtude de sua organização, de seu arranjo no conjunto, um texto

inserido numa antologia necessariamente torna-se outro, pois ao leitor é permitida

a comparação entre os poemas constantes no conjunto.

As antologias também têm como característica o levar em conta o público

leitor que pretendem atingir. Por trás de sua elaboração, há uma intenção de

preservar, de divulgar de resumir e/ou de aguçar a curiosidade de um patrimônio,

de acordo com os leitores que tenham em vista. No caso das antologias

distribuídas durante os encontros da oficina, cinco foram por mim elaboradas,

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enquanto a sexta foi organizada pelos alunos, tendo como universo de escolha

suas próprias produções ao longo dos encontros.

Vejamos uma síntese das cinco antologias por mim elaboradas, levando em

consideração os assuntos a serem abordados a partir delas e os poemas nelas

constantes:

Assunto Poemas

Primeira antologia

Poesia: porto de mim mesmo

Poemas cujo foco é um

indivíduo. Poemas que

se aproximam da

repetição sonora dos

trava-línguas (aliterações

e assonâncias).

“Graça”, de André Neves;

“O grão-duque”, de José Jorge Letria;

“Primavera”, de Bartolomeu Campos de Queirós;

“Cantiga de partida”, de Gláucia de Souza e Jorge Herrmann;

“A canoa virou”, do folclore.

Segunda antologia

Poesia: porto de quem mais?

Poemas cujo foco são

seres ou objetos

existentes ao redor dos

indivíduos (animais,

flores, sol, lua, mar e

objetos). Poemas que se

aproximam da repetição

sonora dos trava-línguas

(repetição de palavras).

“Flor de maravilha”, do folclore;

“Rosa amarela”, do folclore;

“Pintou uma rosa no pedaço”, de Sérgio Napp;

“Pombinha”, do folclore;

“Nem o sábio sabe”, de Fernando Paixão;

“Quero-quero”, de Lalau;

“Saudade”, de Leo Cunha;

“Eu vi o sol”, do folclore;

“O mendigo e a lua”, de Leo

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Cunha;

“Menina na janela”, de Sérgio Capparelli;

“Cantiga de lua ontem”, de Gláucia de Souza e Jorge Harrmann.

Terceira antologia

Poesia: porto de quem mais?

Poemas cujo foco são

seres ou objetos

existentes ao redor dos

indivíduos. Poemas que

se aproximam da

repetição sonora dos

trava-línguas

(aliterações,

assonâncias e repetição

de palavras).

“Feijão com arroz”, do folclore;

“Trem de ferro”, de Manuel Bandeira;

trava-línguas trazidos pelos participantes da oficina.

Quarta antologia

Poesia: portos em outros lugares

Poemas cujo foco são

outras terras, outras

línguas e/ou outras

épocas. Poemas

predominantemente

imagéticos.

“O sol e Taichi”, de Miyasawa Kenji;

“Tanto amare, tanto amare”, do folclore moçárabe;

“Sol nascente”, do folclore africano;

“El niño mudo”, de Federico García Lorca;

“O bicho”, de Manuel Bandeira.

Quinta antologia

Poesia: uma viagem estrelada

Poemas cujo foco são

terras imaginárias e/ou

utópicas. Poemas

predominantemente

“O país da Cocanha holandês – séc. XV”, do folclore;

“Vivo feliz no meu armário”, de Ricardo Azevedo;

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imagéticos. “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias;

“Passeio nº 6”, de Manoel de Barros.

É interessante a forma alegórica como Fraisse trata as antologias. Para o

autor, elas são ao mesmo tempo “museu” e “manifesto”, pois tanto podem manter

tradições canônicas, como alterá-las. Nesse sentido, ao elaborar as antologias

distribuídas aos participantes das oficinas, procurei mesclar textos de autores

consagrados como infanto-juvenis com outros considerados como “literatura de

adulto”. Tentei, também, contemplar cada conjunto com textos de diferentes

épocas e regiões, assim como dispor lado a lado textos de folclore puro, de

inspiração folclórica e de autoria.

Apropriando-me da alegoria de Fraisse (a que compara as antologias a

museu e manifesto), tomei a liberdade de criar uma outra. Nos encontros da

oficina Uma viagem através da poesia, as antologias foram baús de viagem, pois

guardaram a trajetória dos encontros. Tais baús não se restringiram a guardar

somente textos escritos, mas também imagens e sons, como a coletânea de

textos visuais apresentados no sétimo encontro (Apêndice E: Imagens utilizadas no sétimo encontro) e a de canções utilizadas em todos os encontros (Apêndice F: Relação das músicas utilizadas nos encontros).

Sobre esse último baú de viagem, as canções foram utilizadas em

diferentes momentos: sempre que o poema estudado fosse acompanhado de

melodia, como no caso dos poemas de folclore puro; no sexto encontro, como

forma de desencadear percepções auditivas e em todos os encontros, como pano

de fundo para o momento da criação. Nessa última situação, os baús sonoros,

compostos de músicas instrumentais, foram sendo cada vez mais necessários

para os participantes da oficina. Num dos poucos momentos em que não

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escreveram com fundo musical, os pré-adolescentes demonstraram interesse em

que esse acompanhamento sonoro existisse.

Em relação à caracterização dos participantes da oficina, o grupo contou

com quatorze alunos que a assinalaram como uma das três primeiras escolhas

entre as demais oferecidas. Alguns dos participantes declararam no questionário

inicial não gostar de poesia, mas, mesmo assim, escolheram a oficina por

vontade/curiosidade próprias.

Segue quadro com a relação dos participantes da oficina e respectivas

idades, sexo e séries em curso:

IDENTIFICAÇÃO22 IDADE SEXO SÉRIE23

A. 12 anos Feminino Amora I C. 11 anos Masculino Amora II F. 12 anos Masculino Amora I G. 12 anos Feminino Amora II I. 11 anos Feminino Amora II J. 12 anos Feminino Amora II K. 11 anos Feminino Amora II K. 12 anos Feminino Amora II L. 10 anos Masculino Amora I L. 11 anos Feminino Amora II R. 12 anos Feminino Amora II Re. 12 anos Feminino Amora II T. 11 anos Feminino Amora I V. 13 anos feitos pouco

antes da oficina Masculino Amora II

Conhecidos a rota de viagem e os viajantes, nossa viagem segue pela

descrição de cada uma das atividades realizadas em cada encontro, bem como

pela análise da produção dos participantes passo a passo.

22 No corpo do trabalho, optei por identificar cada participante apenas pela inicial de seu primeiro nome e por sua idade. 23 As turmas de Amora I e II correspondem respectivamente às quintas e sextas séries do Ensino Fundamental.

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4.2 Portos em que ancoramos24

4.2.1 Poesia: porto de partida25

O primeiro encontro teve como finalidade apresentar a oficina aos

participantes e fazer um levantamento do que o grupo entendia por poema. A

etapa da percepção iniciou-se com a cantiga de roda “A canoa virou”. Cada

participante foi convidado a integrar a roda para executar a coreografia da cantiga

e, ao mesmo tempo, fazer sua apresentação para os demais colegas. Durante

esse momento, a primeira reação do grupo foi de riso, de recriação dos versos da

cantiga, de pouca participação na roda, mas, aos poucos, todos se integraram à

atividade, como mostra o registro fotográfico feito no dia do encontro:

No segundo momento, o da discussão, os alunos debateram oralmente

sobre a pergunta “A canoa virou é um poema ou não?”. Não foi consenso que a

letra da cantiga constituísse um poema. Ambos os grupos, o que considerou a

letra da cantiga de roda um poema e o que não a considerou assim, pautaram

seus argumentos na existência ou não de rimas no texto. Os que reconheceram

as rimas na cantiga “A canoa virou” acharam que a letra constituía um poema. Os 24 Os planos de trabalho de cada encontro da oficina encontram-se no Apêndice B: Atividades desenvolvidas passo a passo. 25 Os questionários respondidos pelas crianças, assim como a produção individual “Minha viagem agora” encontram-se no Anexo 1: Primeiro encontro.

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que não as reconheceram não consideraram a letra como tal. Em seguida, o grupo

iniciou discussão sobre as diferenças entre poesia e poema. Procurei não intervir

com respostas para os questionamentos do grupo, mas mostrar que, ao longo da

oficina, tais dúvidas seriam solucionadas por eles mesmos.

Posteriormente, no momento da criação, o grupo respondeu ao

questionário inicial, assim como desenvolveu um texto intitulado “Minha viagem

agora”. A partir dessa produção inicial dos alunos, estabeleci algumas categorias

de análise dos textos, a saber:

1- Elementos temáticos:

• textos que expressam sonhos coletivos;

• textos que expressam sonhos individuais;

• textos que expressam sensações.

2- Elementos de expressão:

• textos em prosa;

• textos em versos, sem características formais do poema (ou com

poucas) ou em prosa com algum característica formal de poema;

• textos em versos com características formais dos poemas.

Tais categorias foram estabelecidas em função da teoria estudada para a

elaboração da oficina Uma viagem através da poesia. Busquei verificar, através da

comparação entre a produção inicial e a final, até que ponto os pré-adolescentes

estudados apresentaram transformações em seus textos, quer de abordagem

temática, quer de expressão poética. Assim como propôs Eliot, em “Tradição e

talento individual”, procurei verificar até que ponto, através das atividades de

percepção, discussão e criação da oficina, seus participantes operaram

mudanças em sua produção escrita no sentido de escrever poemas cuja temática

transcendesse a mera expressão de sentimentos pessoais, na direção de

sensações partilháveis por todo ser humano. Ao mesmo tempo, procurei observar

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até que ponto tais pré-adolescentes evidenciaram nos seus textos o uso de uma

linguagem que se aproximasse da poética.

Dos quatorze textos produzidos no primeiro encontro, seis deles

apresentaram tematicamente sonhos individuais: ir à Ilha do Mel, à França, a

Fortaleza, à Espanha, na companhia de amigos, familiares, atores/cantores

famosos e amores. Três dos textos abordaram sonhos coletivos: lugares

paradisíacos, fantásticos, em que não havia caça a animais, em que tudo era

lindo, a natureza imperava e não havia injustiça, nem dificuldade. Apenas três

textos falaram sobre sensações provocadas pelo lugar visitado. Dois deles, muito

parecidos, traçaram o percurso de seus autores numa viagem intergaláctica:

Sai da terra fui para mercurio correi de preto fui para plutão conjelei, achei um anel lindo que me deichou no centro do sol virei carvão fui para o anel fiquei jirando para la e pra cá e peguei uma garafa de leite e depois fui para urano e eu fiquei meio maluco e fui para marte e fiquei brincar e depois fui para Netuno e quase conjelei (F., 12 anos). fui pra marte cai em júpiter escoreguei pra plutão pulei pra mercúrio tava guente fui pra saturno to nu anel meteoro me pegou me levou para netuno la tava bom mais tive que i para urano cheguei la tive que vim pra terra cheguei e tirei uma foto dos planetas (L., 10 anos).

Os textos de F., 12 anos e L., 10 anos trazem muitas marcas de oralidade,

tais como a ausência de pontuação, pouco conhecimento de convenções

ortográficas e pensamento aditivo (evidenciado pela seqüência de verbos que

expressam os fatos vividos cronologicamente). Trazem, também, a

experimentação sensorial de um eu na viagem que empreende: sensações de

calor, de frio e de loucura. É no seu próprio corpo que cada eu que se expressa

vive a viagem que faz. É uma viagem real em suas sensações, mesmo que a um

lugar fictício.

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O terceiro texto que expressa sensações em relação ao lugar visitado é um

pequeno poema feito por L., de 11 anos:

Sonhando eu viajo pelo mundo Itália, Japão, Havaii... Índia ou Taiti De barco ou de avião Ou até numa bolinha de sabão Vou onde meu sonho me levar Até chegar a hora... De acordar! (L., 11 anos)

No que diz respeito aos elementos de expressão poética, onze alunos

escreveram textos em prosa, um tentou dar ao seu texto uma estrutura de poema

(centralizou seu texto no centro da página, sem, contudo, dividi-lo efetivamente em

versos) e apenas dois deram ao seu texto características formais de poema.

Ao longo das atividades desenvolvidas em oficina, procurei observar até

que ponto, em seus textos, os pré-adolescentes estudados aproximaram-se de

uma expressão poética sensorial, através de linguagem figurada, bem como

evidenciaram elementos formais próprios do poema. Defendo que somente

através de atividades que resgatem a sensorialidade e a corporalidade orais é

possível que alguns alunos cheguem à produção de textos que tenham

características mais próximas ao poético.

4.2.2 Poesia: porto de mim mesmo

O segundo encontro com os alunos participantes da oficina teve como mote

a reflexão acerca de si mesmo, a partir do nome de batismo dado a cada um. Nas

diferentes culturas, orais ou não, a escolha do nome do bebê que nasce é muito

significativa e, muitas vezes, marcada por rituais que envolvem o significado desse

nome e, como na cultura judaica, dentre outras, reflete as circunstâncias desse

nascimento, ou o papel a ser desempenhado pelo recém-nascido na sociedade.

As mudanças de vida também implicam mudança de nome. Para citar apenas

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algumas personagens bíblicas, temos o “batismo” de Eva, primeira mulher; a

mudança de nome de Sara, esposa de Abraão; o nascimento de Jesus e a

conversão de Pedro:

O homem chamou sua mulher Eva, por ser a mãe de todos os viventes (Gn, 3, 20).

Deus disse a Abraão: “A tua mulher Sara não mais a chamarás de Sarai, mas seu nome é Sara. Eu a abençoarei, e dela te darei um filho; eu a abençoarei, ela se tornará nações, e dela sairão reis de povos” (Gn, 17, 15-16).

A origem de Jesus foi assim: Maria, sua mãe, comprometida com José, antes que coabitassem em casamento achou-se grávida pelo Espírito Santo. José, seu esposo, sendo justo e não querendo difamá-la, resolveu repudiá-la em segredo. Enquanto assim decidia, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se a ele em sonho, dizendo: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus”. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão Emanuel”, o que traduzido significa Deus está conosco (Mt, 1, 18-23). O anjo, porém, acrescentou: “Não tenhas medo, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus (...) O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (Lc, 1, 30-35). André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que, tendo ouvido as palavras de João, o haviam seguido. Encontrou primeiramente Simão, seu irmão, e lhe disse: “Encontramos o Messias (que quer dizer Cristo”). Ele o conduziu a Jesus. Fitando-o, disse-lhe Jesus: “Tu és Simão, filho de João; chamar-te-ás Cefas (que quer dizer pedra)” (Jo, 1, 40-42).

Em relação à importância do nome próprio e de sua relação com a

sonoridade do poema oral, bem como com a música, Zumthor destaca que os

zulus compõem para cada criança que nasce a sua própria canção de ninar, que

permanece para ela por toda a sua vida como nome e marca de sua

individualidade (Zumthor, 1997, p. 94). O autor destaca, também, a existência, em

etnias africanas, de poemas curtos, “acrescentados ao nome ou ao título de um

humano, de um animal, de uma divindade, um objeto e que, explicitando o sentido,

o integra a uma história” (Zumthor, 1997, p. 96). Zumthor registra a seguinte

prática entre os malinké: “Quando da imposição do nome ao recém-nascido, entre

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os malinké, o pai improvisa, enquanto as mulheres dançam uma tirada épica sobre

o ancestral de quem provém esse nome” (Zumthor, 1997, p. 97). Também entre

as crianças, as brincadeiras com os nomes de colegas são freqüentes. Nomes

próprios são inseridos no meio de cantigas de roda, em quadras populares e,

inclusive, servem de “provocação” entre crianças, através de rimas, tais como

“Ana, cara de banana”, “Chico, cara de mico” etc.

Em função da importância sonora e semântica que os nomes próprios

assumem nas diferentes culturas, optei por iniciar o momento da percepção, no

encontro intitulado Poesia: porto de mim mesmo, por uma atividade que

envolvesse os nomes dos participantes e sua expressão corporal. No momento da

percepção, cada participante falou seu nome com uma sonoridade que lembrasse

seu jeito de ser, assim como acompanhou sua fala de gestos que também

representassem seu temperamento. Coube aos demais do grupo adivinharem que

características pessoais estavam presentes na performance de cada um.

Surgiram representações de tranqüilidade,

(L., 11 anos)

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de alegria,

(C., 11 anos) de comunicatividade,

(J., 12 anos)

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de timidez, dentre outras...

(R., 12 anos)

Logo após a representação sonora e corporal de seus nomes, os

participantes da oficina elaboraram listas com palavras cuja sonoridade lhes

remetesse a seus próprios nomes. Tais listas encontram-se no Anexo 2: Segundo encontro. Destaco a seguir as listas de L., 11 anos; C., 11 anos; J., 12

anos e R. 12 anos, para podê-las comparar posteriormente com a representação

por eles realizada no momento da percepção e com os poemas produzidos no da

criação.

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São elas:

Participante da oficina Palavras da lista L., 11 anos

(representação: tranqüilidade) • Marisa; • camisa; • brisa; • pisa; • Lupi; • Lu; • Luz.

C., 11 anos (representação: alegria)

• Hique; • Rique; • elefante; • risonho; • Ique; • engraçado; • esperto; • combina; • termina; • diante.

J., 12 anos (representação: comunicatividade)

• banana; • cana; • Diana; • Fernanda; • Bianca; • Ananda; • Jubalândia; • brabona; • irritadinha; • bonitinha; • gatinha; • feinha.

R., 12 anos (representação: timidez)

• raiz; • asa; • Laís; • Taís.

A discussão ocorreu a partir de poemas em que aparecem antropônimos

(“Graça”, de André Neves e “Primavera”, de Bartolomeu Campos de Queirós), de

forma a estabelecer a comparação entre eles e a lista elaborada por cada um.

Durante a discussão, os alunos expressaram que tanto os poemas quanto as

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listas por eles elaboradas foram feitos a partir da repetição, quer de sons, quer de

palavras. Quando responderam oralmente sobre se achavam que as listas e os

textos “Graça” e “Primavera” eram poemas, os pré-adolescentes estudados

responderam que “Primavera” era um poema porque tinha rimas; “Graça” não era

um poema, pois parecia com as brincadeiras que as crianças fazem, tais como “O

doce perguntou pro doce qual era o doce mais doce que o doce de batata-doce. O

doce respondeu pro doce que o doce mais doce que o doce de batata-doce é o

doce de batata-doce”; enquanto as listas não eram poema, pois eram somente

palavras soltas.

Mostrei, em seguida, o livro de Bartolomeu Campos de Queirós, intitulado

Diário de classe. Nesse livro, o autor elabora uma série de poemas com

antropônimos, como uma lista escolar de chamada. São dedicados dois poemas

para cada nome próprio, o primeiro deles com uma estrutura que se aproxima de

poemas concretos, em que a disposição da palavra no papel é sobremaneira

importante, como expressa Augusto de Campos, em seu texto “pontos-periferia-

poesia concreta”, de 1956. Baseando-se em Mallarmé, diz o autor sobre o uso do

espaço gráfico:

Os brancos, com efeito, assumem importância, agridem à primeira vista; a versificação o exigiu como silêncio em torno, ordinariamente, no ponto em que um trecho, lírico ou de poucos pés, ocupa, no meio, cerca de um terço da página: eu não transgrido essa medida, apenas a disperso. O papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou reaparece, aceitando a sucessão de outras (CAMPOS, 1987, p. 24).

Para o título “Primavera”, Queirós elaborou os poemas:

R O S A * O * * * * * A ? (QUEIRÓS, 1992, p. 42)

Rosa reparouna palavra primavera. Viu ave, viu ímã e prima. leu rima de era e Vera. Viu mar e Mara colhendo pêra. Mas Rosa não colheu flores na palavra primavera! (QUEIRÓS, 1992, p. 43)

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O poema visual de Bartolomeu Campos de Queirós, de certa forma,

motivou a produção do segundo poema. Assim, tal como o autor, na etapa da

criação, cada participante da oficina escreveu um texto em versos com as

palavras surgidas na lista elaborada no momento da percepção, a partir de seu

nome, para ser afixado em um cordel e, posteriormente, lido por todos. Ao mesmo

tempo em que escreviam, os alunos puderam manusear os seguintes

poemas/livros, caso tivessem vontade:

• AZEVEDO, Ricardo. Ela nada o nada, eu invento no vento. São Paulo:

Melhoramentos, 1991.

• CAPPARELLI, Sérgio. “Entro ou não entro”. In: 111 poemas para crianças.

Porto Alegre: L&PM, 2003. p.69.

• CAPPARELLI, Sérgio. “Na minha pele”. In: 111 poemas para crianças.

Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 68.

• CAPPARELLI, Sérgio. “As sardas de Dora”. In: 111 poemas para crianças.

Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 50.

• CAPPARELLI, Sérgio. “Vovô sapo”. In: 111 poemas para crianças. Porto

Alegre: L&PM, 2003. p. 51.

• CIÇA. O livro do trava-línguas. 17 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1986.

• FURNARI, Eva. Assim assado. 2 ed. São Paulo: Moderna, 2003.

• LALAU. Quem é quem. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

• NEVES, André. Poesias dão nomes ou nomes dão poesias? São Paulo:

Ave Maria, 2001.

• PESSOA, Fernando e LAGO, Angela. Pedacinhos de Pessoa. Belo

Horizonte: RHJ, 1996.

• QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Diário de Classe. São Paulo: Moderna,

1993.

• VENEZA, Maurício. Embola, enrola e rola. São Paulo: Atual, 2003.

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Ao escreverem as listas a partir de seus nomes próprios, os alunos não

precisaram se preocupar em procurar palavras que, de certa forma, estivessem

relacionadas com as suas representações sonoras dos nomes, apenas em buscar

semelhanças sonoras. Também não foi solicitado aos alunos, no momento da

criação, que elaborassem poemas relacionados com as representações.

Entretanto, uma rápida comparação entre as representações de L., 11 anos; C.,

11 anos; J., 12 anos e R. 12 anos e as listas e os poemas que elaboraram permite

certas constatações.

L., 11 anos, expressou seu nome através da representação da

tranqüilidade. É curioso que tenha escolhido, entre outras, as palavras “brisa” e

“luz”. A tranqüilidade expressa por L., 11 anos, ao pronunciar seu nome, foi

representada na lista que elaborou, assim como no poema que compôs, no

momento da criação:

Luísa de manhã Abria a janela A brisa em seu rosto... E a luz clara e bela Ilumina o seu quarto Lupi, Lupizinha... Vá dormir bem quietinha Pois ainda é de manhã Vá dormir, vá queridinha! (L., 11 nos)

No poema de L., 11 anos, a tranqüilidade está expressa através da brisa

que toca o rosto de Luísa, da luz clara e bela que adentra o seu quarto e da forma

diminutiva e carinhosa com que é tratada (“Lupi”, “Lupizinha”, “quietinha”,

“queridinha”). A repetição sonora do fonema [l], presente no nome “Luísa”, confere

ao poema um tom de leveza e de delicadeza, quebrados pelo abrir de janela de

Luísa, reproduzido sonoramente pelo repetição do grupo [br] em “abria” e “brisa”.

Já C., 11 anos, representou seu nome através da expressão de alegria. As

palavras que escolheu para compor sua lista sugerem, de certa forma, essa

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alegria: “risonho”, “engraçado”, “esperto”. A escolha da palavra “elefante”,

juntamente com os sonoros antropônimos “Hique”, “Rique” e “Ique” sugerem

alegria, através do inusitado.

No poema que produziu no momento da criação, C., 11 anos, expressa

movimento e alegria, através das infinitas metamorfoses de Henrique: de assado,

vira engraçado; de sonho, vira risonho; do nada, vira Hique; do nada, vira elefante,

para só então seguir adiante. O poema de C., 11 anos, assemelha-se às

parlendas, tanto no que diz respeito à seqüência de fatos (um puxa o outro),

quanto à ludicidade sonora:

Henrique é rique que é Hique, do assado ficou engraçado de um sonho ficou risonho que via roupas que combina e do nada termina. Ai, ai, ai esse Henrique que do nada já vira Hique, tudo é infinito e do nada vira elefante, que só anda em diante. (C,m 11 anos).

Já a lista de J., 12 anos, possui uma série de antropônimos, que expressam

a inter-relação social de Juliana: “Diana”, “Fernanda”, “Bianca”, “Ananda”.

Também seu poema expressa a interação entre amigas e a impressão que

causam nos outros:

Juliana adora banana e caldo de cana Tinha uma amiga fernan da que era brabona Outro, Diana que viaja por o mundo Jubalândia Bianca irritadinha E Amanda

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feinha mas tinha uma gatinha bonitinha chamada florzinha (J., 12 anos)

R., 12 anos, expressa seu nome de forma muito tímida. Isso de certa forma

pode ter se refletido na lista de quatro palavras que elabora (raiz, asa, Laís, Taís),

assim como no pequeno poema que produz:

Raíssa é uma menina que cria asas para a liberdade Mas quando se junta com Laís e Tais cria raiz. (R. 12 anos)

Ao contrário da timidez mostrada na atividade de percepção e no tamanho

da lista e do poema que escreve, R., 12 anos, fala de Raíssa, uma menina não

tímida, livre para voar quando está sozinha, mas também livre para ficar junto com

as amigas. Sonoramente, “raiz” aproxima-se pela rima com “Laís” e “Taís”. As

amigas da menina representam o diferente para a menina Raíssa. Ela transcende

a raiz e a amizade: é Raíssa, passa além das asas que cria. É livre, inclusive para

ser presa pela raiz da amizade.

Terminada a criação, cada aluno dispôs seu poema num cordel, para que

todos pudessem ler os trabalhos uns dos outros. Ao descrever os diferentes

momentos das Oficinas de Trampolim Afetivo, Jolibert destaca a importância do

momento que chama de “intercâmbios e interações”: “Para que todos os meninos

possam cultivar sua imaginação, parece-nos indispensável socializar os achados

como micro-trampolins que reativam os imaginários individuais” (Jolibert, 1995, p.

59). Os pré-adolescentes participantes da oficina, no segundo encontro, puderam

ler os poemas uns dos outros, afixados num cordel, assim como, na Espanha do

século XVI e XVII, os auditórios populares reunidos para ouvirem a leitura de

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novelas de cavalaria, partilhavam os pliegos sueltos e os pliegos de cordel. Essa

partilha de poemas produzidos ocorreu sempre ao final de cada encontro, através

da leitura em voz alta.

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No final do segundo encontro pedi que os alunos escolhessem um poema

dos livros que lhes foram mostrados para ser compartilhado na semana seguinte.

4.2.3 Poesia: porto de quem mais?

O terceiro encontro centrou-se na exploração do espaço próximo aos

participantes, a saber, seres e objetos que estão à nossa volta. Nesse momento,

além de continuar trabalhando com a camada sonora do poema, busquei iniciar

alguns procedimentos que proporcionassem situações de criação de imagens,

através do uso de linguagem figurada. Para tanto, o terceiro encontro teve como

primeiro momento, o da percepção, um jogo em que cada participante precisou

eleger um animal ou um objeto para se colocar em seu lugar e agir como tal,

emitindo sons e fazendo gestos característicos. A eleição do ser ou do objeto

representado deveria ter correspondência com alguma característica dos

participantes da oficina. Esse exercício associativo vai ao encontro do que José

Paulo Paes aponta como o principal objetivo da poesia: transformar o cotidiano

pela observação, fazer o leitor sentir mais profundamente o significado dos seres e

das coisas (Paes, 1996, p. 27). Coube ao grupo adivinhar o animal ou objeto

representado. Surgiram representações individuais ou em grupo sobre situações

de vivência de cada um, bem como de seres:

a) surfista e prancha de surfe;

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b) jogador de basquete quicando a bola;

c) computador;

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d) sapo coaxando;

e) galo cantando;

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f) cachorro e seu dono.

Houve, nas representações dos alunos, uma alternância entre reproduzir

situações concretas de seu dia-a-dia, como em a, b e c, e imitações de objetos e

animais, como em d, e e f. Não solicitei aos alunos que justificassem suas

escolhas, a não ser se assim o quisessem, mas, no final da atividade, alguns

participantes espontaneamente encaminharam o grupo para o momento da

discussão, ao mencionarem que, nas representações dos colegas, algumas

reproduziam vivências pessoais, outras tratavam de “comparações” dos indivíduos

com o objeto/animal representado. Também, nesse momento, foi feita a leitura dos

poemas sobre flores e animais da segunda antologia distribuída aos alunos.

Busquei, através da vivência corporal, iniciar atividades que explorassem o uso

imagético da palavra, por meio de associações metafóricas e/ou de comparações.

Segundo Luria (1987, p. 197), existem formas especiais de alocução, nas quais o

subtexto ou o sentido interno existe sempre, como as construções comparativas e

os provérbios em cuja essência encontra-se o sentido figurado.

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Ao proporcionar vivências corporais em que cada participante precisou

eleger um animal ou um objeto para se colocar em seu lugar e agir como tal,

emitindo sons e fazendo gestos característicos, busquei despertar comparações e

a criação de imagens. Através da representação que fizeram, cada aluno pôde

resgatar suas vivências corporais, pôde realizá-las, concretizá-las, passá-las da

virtualidade à atualidade. Ao ouvirem/lerem os poemas sobre flores, animais e

objetos da segunda antologia, os pré-adolescentes participantes da oficina

puderam observar de que forma foi construído o sentido figurado pelo autor de

cada poema.

A discussão girou sobre a comparação entre esses poemas. O grupo

entrou em acordo acerca do fato de que em quase todos eles algum elemento da

natureza foi comparado ao ser humano ou a algum comportamento seu. Como

diferença, o grupo apontou o fato de haver a repetição de versos (refrão) nos

poemas “Flor de maravilha”, “Rosa amarela”, de folclore puro, enquanto, nos

poemas de autoria ou de inspiração folclórica, as repetições que ocorriam eram as

de palavras e não as de versos.

Antes de iniciarem o momento da criação, os alunos leram em voz alta os

poemas escolhidos entre os dos livros consultados na sessão anterior. É

interessante fazer uma análise dessa seleção, tendo em vista quais critérios a

nortearam. Os participantes da oficina escolheram os seguintes poemas, dentre os

que lhes foram apresentados:

• “Arara de Iara” e “Pinto”, n’O livro do trava-línguas, de Ciça;

• “Era uma vez/ um médico aprendiz”, do livro Assim assado, de Eva Furnari;

• “Briga” e “Para ler comendo farofa”, do livro Embola, enrola e rola, de

Maurício Veneza;

• “Quem tem o quê”, do livro Quem é quem, de Lalau;

• “Ver de perto o nosso verde”, do livro Ela nada no nada, eu invento no

vento, de Ricardo Azevedo;

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• Pedacinho de pessoa, de Fernando Pessoa e Angela Lago;

• “Receita da bisavó” e “Será real, será ilusão”, do livro O tempo perguntou

pro tempo, de Lenice Gomes;

• “Manhã”, do livro 111 poemas para crianças, de Sérgio Capparelli.

As escolhas dos pré-adolescentes nos fazem refletir acerca do que já foi

dito sobre o conceito que possuem de poesia/poema. Seis dos poemas

selecionados (“Arara de Iara”, “Pinto”, “Briga” e “Para ler comendo farofa”) nos

remetem diretamente à forma de composição dos trava-línguas, já “Ver de perto o

nosso verde” é um verso único, que compõe uma das várias brincadeiras sonoras

que o autor faz em seu livro. Ao escolherem textos de inspiração folclórica, de

certa forma, os alunos aproximaram-se do que comumente consideram como

poema, ou seja, textos cuja sonoridade é marcada. Entretanto, a proximidade

desses poemas de inspiração folclórica com os trava-línguas, antes considerados

não-poemas pelo grupo de pré-adolescentes, proporcionou certa reflexão acerca

da possibilidade de existirem outras formas sonoras diferentes da rima em um

poema, tais como aliterações, assonâncias e repetições de palavras.

Em Ela nada no nada, eu invento no vento, Ricardo Azevedo traz uma

coleção de frases montadas em função de sua sonoridade e de sua ambigüidade.

“Ver de perto o nosso verde”, verso-frase escolhido por um dos alunos

participantes da oficina, em virtude dessa repetição de sonoridades, aproxima-se,

ainda que mais sutilmente do que os poemas anteriormente citados, dos trava-

línguas. Traz, também, certo tom de nonsense, igualmente verificado na quadra,

quase um mini-conto, de Eva Furnari “Era uma vez/Um médico aprendiz./ Quando

operava o paciente/aumentava-lhe o nariz”, do livro Assim assado.

O poema narrativo de Furnari aproxima-se do nonsense dos limericks,

forma também curta, ao que tudo indica, de origem popular. Antes de Edward Lear

a consagrar, essa forma foi publicada pela primeira vez através dos versos de um

anônimo, no livro The History of Sixteen Wonderful Old Women, illustrated by as

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many engravings: exhibiting their Principal Eccentricities and Amusements, em

1820, por John Harris and Son.

São dessa coletânea de limericks, o poema que se segue:

OLD WOMAN OF LYNN

There liv'd an Old Woman at Lynn, Whose Nose very near touch'd her chin, You may easy suppose, She had plenty of Beaux; This charming Old Woman of Lynn. (Havia uma velha mulher em Santo Aleixo cujo nariz quase lhe tocava o queixo, você deve ter certeza de que era cheia de beleza, Essa charmosa senhora de Santo Aleixo. Tradução minha) Disponível em http://www.nonsenselit.org/Lear/limbooks/wow04.html, acesso em 29 de abril de 2006.

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Os limericks tornaram-se uma forma poética estabelecida no século XIX na

Inglaterra, em virtude de ser a preferida de Edward Lear. São de Lear os limericks:

Era uma vez um velho e seu nariz que sempre advertia: “Se você me diz que o meu nariz é comprido, é porque vive iludido!”, o velho orgulhoso com seu nariz” (LEAR, 2003, p. 9)

No comprido nariz desse senhor, passarinhos adoravam se pôr; mas iam todos embora quando achavam que era hora, aliviando o nariz desse senhor. (LEAR, 2003, p. 45)

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A repetição de versos dos limericks (e do pequeno poema de Eva Furnari)

remete-nos à existente nos trava-línguas, bem como à ludicidade verbal que tal

repetição traz. Isso justificaria, de certa forma, a preferência de um dos pré-

adolescentes participantes da oficina pelo poema curto de Furnari. Um outro

provável motivo da escolha desse poema é que, tal como os limericks de Lear, ele

tematiza o corpo em seu grotesco, suas diferenças, como os textos aqui

transcritos, que enfocam alguém dono de um enorme nariz.

Em uma determinada época de minha prática docente, tive a oportunidade

de trabalhar com os limericks de Lear junto a pré-adolescentes. Desse trabalho,

surgiram reflexões26 acerca do porquê de textos como os de Lear e o já citado de

Furnari, cheios de comicidade, concisão, nonsense, mas, sobretudo, de

personagens tipificadas, que se destacam ora por suas características físicas,

diferentes, ora por seus hábitos estranhos, agradarem tantos aos pré-

adolescentes.

Segundo Freud (1987), o brincar é importante para as crianças, porque é

através dele que elas lidam com suas tensões inconscientes. Ao crescerem, elas

deixam de brincar e formam um substituto para essa atividade. Passam, então, a

fantasiar, a criar devaneios. Com a idade adulta, vem a vergonha da própria

fantasia, na medida em que a “seriedade” frente ao mundo real é cobrada aos

adultos. Assim, o humor vai resgatar-lhes o prazer de brincar.

Os pré-adolescentes, entre a infância e a adolescência, vêem-se privados

da possibilidade de demonstrarem suas fantasias, pois a sociedade passa a lhes

exigir uma postura mais adulta. Identificados com as personagens tipificadas

desses poemas, tais pré-adolescentes podem resgatar o lúdico de seus próprios

corpos, através do riso, sentindo-se, assim, menos estranhos no mundo novo em

que estão por se inserir. Através dessas personagens e do rir de sua estranheza,

26 Tais reflexões encontram-se, na íntegra, em SOUZA, Gláucia de. O livro dos disparates: a leitura de Edward Lear na pré-adolescência. Cadernos do Aplicação. Porto Alegre, vol. 10, n. 2, p. 273-279, jul./dez., 1997.

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os pré-adolescentes inconscientemente riem de si mesmos, de seus medos, de

suas transformações, do julgamento dos outros, de suas “quedas” para, enfim,

buscar uma forma de juntar seus múltiplos pedaços a serem unidos com a cola do

auto-conhecimento. É com cola forte que outra personagem tipificada de Lear

resolve seus problemas:

There was an Old Man of Nepaul, From this horse had a terrible fall; But, though split quite in two With some very strong glue, They mended that Man of Nepaul. (Havia um homem em São Gonçalo que caiu de seu cavalo mas, mesmo tendo se quebrado, acabou por ser colado. E emendaram aquele homem de São Gonçalo.) (LEAR, Edward. The nonsense books of Edward Lear. New York: The New American Library, 1964 - Tradução minha)

Os limericks (ou textos semelhantes a eles, como o de Furnari) e fórmulas

verbais lúdicas, como os trava-línguas, da cultura popular, e o poema-verso, de

Azevedo, podem proporcionar um resgate do brincar, inclusive com o próprio

corpo (o aparelho fonador, no caso dos trava-línguas). Isso destaca a importância

de trazer para a sala de aula, ao se trabalhar o poema, textos de folclore puro e de

inspiração folclórica.

Em relação aos demais textos escolhidos pelos alunos participantes da

oficina, três deles, mesmo que remetam a poemas de folclore puro, assumem uma

feição explícita de poema autoral, pois reinventam temas e fórmulas. São eles os

poemas de Lenice Gomes “Receita da bisavó” e “Será real, será ilusão”, do livro O

tempo perguntou pro tempo e “Quem tem o quê”, do livro Quem é quem, de Lalau

e Laurabeatriz. Quanto aos dois primeiros, apesar de fazerem referência explícita

a diferentes trava-línguas, procuram recriá-los através da inserção desses num

contexto determinado. Em “Receita da bisavó”, o trava-língua “Qual o doce mais

doce do que o doce de bata-doce?” insere-se na conversa animada entre meninas

e uma doceira, enquanto, em “Será real? Será ilusão?” os trava-línguas “Um tigre,

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dois tigres, três tigres”, “Lé com cré” e “Corre cutia na casa da tia” fazem parte de

um espetáculo de malabaristas.

No poema “Receita de avó”, o trava-língua surge apenas no final do poema,

deslocado da situação de brincadeira verbal. As meninas Dulce e Diana discutem

qual o doce mais doce que existe. Resolvem perguntar à doceira Dona Dalva,

autoridade no assunto, que, baseando-se em sua bisavó, responde que o doce

mais doce é o doce de batata-doce. A doceira fundamenta sua história na tradição

(“receita de minha bisavó”), agindo como legítima representante da cultura oral,

pois vive o que fala (faz doce ainda hoje, mantendo a tradição da bisavó) e se

insere numa tradição não só de sua família, pois faz o doce mais doce, o doce de

batata-doce, que remonta ao trava-língua, próprio da cultura oral. Há, nesse

poema de Lenice Gomes, um diálogo entre texto de autoria e texto de folclore

puro. O poema se enriquece na medida em que o leitor o associa ao trava-língua.

Já em “Será real? Será ilusão?”, a intertextualidade transforma o poema em

metapoema. Os malabaristas são os próprios três tigres que, num circo,

apresentam seu malabarismo de palavras: “Acendem-se as luzes,/ O dançarino

anuncia:/ - Um tigre,/ Dois tigres,/ Três tigres”. Ao nomear os malabaristas como

tigres, a autora remete o leitor para a brincadeira de trava-línguas propriamente

dita, transformando-a em desafio e aventura. Nos versos de Lenice, são os

próprios trava-línguas que agem, executando seu malabarismo verbal. Assim, o

poema não fala somente de um circo, mas de como se montam os trava-línguas:

“(...) por um fio mágico/ Os três equilibristas sustentavam/ As brincadeiras”.

“Quem tem o quê”, de Lalau e Laurabeatriz, organiza-se em torno da

repetição da fórmula “X tem Y” (“Sapato tem pé,/ Passarinho tem árvore” etc), que

proporciona uma série de associações imagéticas de causa e efeito. A repetição

da mencionada fórmula, bem como a marcação rítmica do poema aproxima-o das

parlendas do tipo “Hoje é domingo,/ Pé de cachimbo./ O cachimbo é de barro,/

Bate no jarro./ O jarro é fino,/ Bate no sino./ O sino é de ouro,/ Bate no touro./ O

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touro é valente,/ Bate na gente./ A gente é fraco,/ Cai no buraco./ O buraco é

fundo,/ acabou-se o mundo!” (Machado, 2001, p. 59). Contudo, as associações de

imagem presentes no poema não são imediatas, como nos poemas orais, que

precisam ser assimilados mais rapidamente através da audição. Elas requerem

uma certa reflexão. A partir da associação “Sapato tem pé”, o autor vai tecendo

uma seqüência que, gradativamente, se encaminha para associações mais

abstratas, tais como “Bicicleta tem brisa”, “Lágrima tem saudade”, até chegar ao

verso final “Antes, depois”. Para compreender que após um antes vem um depois,

o leitor é levado a refletir sobre outras relações imagéticas mais simples, como

“Passarinho tem árvore”.

Por serem um intermédio entre poemas de folclore puro e poemas de

autoria, os textos escolhidos pelos alunos (com exceção de Pedacinho de Pessoa

e “Manhã”, de Sérgio Capparelli, marcadamente de autoria), quer se aproximem

mais ou menos dos textos de folclore puro, podem, devido justamente a essa

inspiração folclórica, aproximar o jovem leitor de poemas autorais, em que lhes é

requerida uma maior reflexão lingüístico-semântica.

Outro aspecto interessante também a ser observado em relação aos

poemas escolhidos é a forma como os pré-adolescentes registraram suas

escolhas de poemas no papel (Anexo 3: Terceiro encontro). Solicitei a cada um

deles que escrevesse numa folha o nome do poema escolhido e dados de

referência, como nome do autor e do livro em que se encontrava o texto e/ou da

editora. Dos onze participantes que registraram suas escolhas, seis assinalaram o

autor corretamente, o que indica o conhecimento de uma cultura que privilegia a

autoria artística. Três não registraram o nome do autor, mas apenas o nome do

livro e do poema escolhidos, enquanto um escreveu o nome do autor na folha,

mas disse não saber a autoria do poema. Nesse caso, o antropônimo Ciça foi lido

como parte integrante do título da obra: “Çiça o livro do trava-língua Não achei o

autor Nome do poema: Pinto”.

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Em função da disposição gráfica da capa, tal pré-adolescente confundiu o

nome da autora com o do livro. Entretanto, demonstrou possuir noção de que um

livro, enquanto registro escrito, normalmente tem autoria, embora admita não a ter

conseguido reconhecer através da capa. O nome da autora Ciça, assim como

aparece na capa, foi entendido como o título do livro, seguido do “aposto” O livro

do trava-língua:

O mesmo ocorreu com Pedacinho de Pessoa, de Fernando Pessoa e

Angela Lago. O aluno que o escolheu, apesar de ter reconhecido não se tratarem

de poemas isolados, mas de uma continuidade, ao registrar sua escolha, não

conseguiu identificar a autoria, nem através da ilustradora, nem do poeta:

“Pedacinho de poema Autor: RHJ É um poema só eu escoli um trecho”. Depois de

analisar a capa do livro, depreendeu que o autor era RHJ (o nome da editora),

pois não reconheceu o trocadilho sutil presente no título (pessoa,

substantivo/Pessoa, poeta). O estranhamento do aluno que escolheu Pedacinho

de Pessoa, de certa forma, deveu-se ao fato de o livro possuir textos poéticos de

autoria, que pouco estão vinculados à tradição oral.

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Após lerem em voz alta e discutirem os poemas escolhidos na semana

anterior e os da segunda antologia, os pré-adolescentes passaram ao momento

da criação. Nessa etapa, cada um deles desenvolveu um poema a partir da

proposta “Se eu fosse cor”. O conjunto produzido pelos alunos teve as seguintes

características:

a) aspectos de poemas de folclore puro;

b) nenhuma estrutura de poema (distribuição em versos), mas com alguma

outra característica de poema;

c) tentativa de utilização de estrutura de poema;

d) tentativa de utilização de linguagem figurada.

No que diz respeito à referência a textos de folclore puro, dos quatorze

participantes da oficina, apenas dois registraram textos de memória como se

fossem seus. Os demais empreenderam esforço de criação autoral. Entretanto,

em seus textos, evidenciaram aspectos de poemas de folclore puro, tais como

estrutura de parlendas e de trava-línguas, próprios dos textos discutidos nos

encontros anteriores: Se eu fosse cor: seria azul, cor dos céus e da água que é a preferida de todos, que mata a cede e nunca acaba, que lava elefante, que escorre em diante, que cai dos céus e pinga-pinga e pinga sem parar de voar, que molha a gente e o que era ceco fica molhado e o que era escuro fica iluminado. (C., 11 anos) Eu seria Rosa,/ Rosa muito Rosa/ Porque Rosa/ é Rosa/ E você sabe/ que cor é/ rosa? É rosa. /A cor mais rosa /da rosolândia e rosa/ é a minha cor/ preferida/ mais rosa mesmo. (I., 11 anos)

Em relação ao uso da estrutura de poema, ou seja, da distribuição do texto

em versos, aqueles que não a utilizaram evidenciaram noção do limite do verso

através da rima, ou da utilização centralizada da folha branca, como nos exemplos

que se seguem:

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Se eu fosse cor seria vermelho como o coração como verão. (L., 10 anos) Se eu fosse cor seria azul, azul do mar, azul do céu como papel. (L., 10 anos) Se eu fosse cor seria laranja, pois laranja é alegre como pássaros, lindo como as flores e chamativo como as outras cores. (G., 12 anos) Se eu fosse cor: Seria amarelo como o sol, ou margarida e girassol, seria amarelo como por de sol, ou ate mesmo um caracol. (G., 12 anos) Se eu fosse cor queria ser azul pisina bem claro ou um preto bem escuro e chateado. Se eu fosse cor queria estar em todo lugar correr livre sem se preocupar. (V., 13 anos) Se eu fosse cor, eu seria uma cor linda, uma cor única, uma cor que chame a atenção, uma cor que todos gostem dela. (F., 12 anos)

No que diz respeito ao uso de rimas, alguns dos pré-adolescentes

apresentaram inclusive rimas ricas, internas e toantes:

Se eu fosse cor seria o azul. Que é cor de céu E também do mar. E tenho desejo de voar Pelo céu e pelo mar. E se cair não sei Nadar. (K., 12 anos) Eu seria rosa, Pois a cor rosa, dá alegria a vida. Por que a rosa é rosa? para ser rosa. A rosa é igual a rosa da Rosa Maria. (Re., 12 anos) Se eu fosse cor seria verde, verde como grama, como cana. (L., 10 anos)

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Através dos exemplos já citados, podemos observar que houve, na

produção de poemas desse terceiro encontro, a tentativa de transpor o exercício

corporal vivenciado no momento da percepção, através do uso de comparações,

mesmo que ainda mais restritas à fórmula “Eu seria como...”. Entretanto, alguns

pré-adolescentes tentaram comparações inusitadas, como as do poema de L., 11

anos:

SE EU FOSSE COR... Se eu fosse cor Seria azul, cor do mar Ou até da arara-azul a cantar Se eu fosse cor Seria preto, cor do rock Ou do buraco negro que nos puxa sem um toque Se eu fosse cor, Seria vermelho Cor da paixão que mora no meu coração Se eu fosse cor, Seria branco Mas branco é tão pálido que eu cairia no pranto Se eu fosse cor Eu seria um arco-íris Mas, um arco-íris diferente Que abrigasse todas as cores E formasse uma família... Como na casa da gente (L., 11 anos)

O quarto encontro continuou tratando da exploração do espaço próximo aos

participantes (seres e objetos que estão à nossa volta). O momento da percepção

constituiu-se em um desafio de trava-línguas trazidos pelos alunos e,

posteriormente, comparados aos seguintes poemas da segunda antologia, no

momento da discussão: “Pombinha” e “Eu vi o sol”, do folclore; “Nem o sábio

sabe”, de Fernando Paixão; “Quero-quero” e “O pente”, de Lalau; “Saudade” e “O

mendigo e a lua”, de Leo Cunha; “A menina na janela”, de Sérgio Capparelli;

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“Cantiga de lua ontem”, de Gláucia de Souza e “Caderno”, de Ricardo Azevedo

(ver Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros).

Ao compararem os poemas da antologia com os trava-línguas, os

participantes da oficina concluíram que, tanto os poemas de folclore puro, quanto

os trava-línguas apresentaram o recurso da repetição de palavras, de fonemas e,

no caso das cantigas apresentadas no encontro anterior, de versos inteiros

(refrões). O recurso da repetição também foi observado na produção dos poetas

lidos, como no caso das formas verbais “quero”, no poema “Quero-quero”, e

“Cabe”, em “Caderno”; da palavra “que”, em ”Saudade”, e das expressões “Se for

de...”, no poema “O mendigo e a Lua”. Sobre a musicalidade dos poemas orais,

Zumthor destaca que esses possuem uma “alegria fônica”, que surge a partir da

manipulação de dados lingüísticos da estrutura formulaica, através da

repetição/recorrência de padrões melódicos. Tal “alegria fônica” não tem relação

especificamente com os aspectos sonoros do poema, mas se expande para

aspectos gramaticais e de sentido. Diz o autor:

O ritmo resultante da recorrência se marca em todos os níveis da linguagem; a oralidade não favorece apenas os ecos sonoros. Repetições de estrofes, de frases ou versos inteiros, de grupos prosódicos ou sintagmáticos, de construções, de formas gramaticais, de palavras, de fonemas, mas também de efeitos de sentido, o discurso usa, indiscriminadamente, todos os meios para alcançar seu objetivo. A repetição se submete à regularidade do paralelismo, opondo os membros dois a dois; ou então ela se liberta desta regra numeral. Ela se localiza em determinados lugares privilegiados, ou invade o texto. Ela retoma identicamente seu tema, o opera uma variação parcial; ela se constrói em consecução rigorosa, ou de acordo com diversas modalidades de alternância. (ZUMTHOR, 1997, p. 149)

Nesse sentido, ao terem ouvidos atentos para as repetições sonoras, os

meninos e meninas participantes da oficina puderam se sentir desafiados a buscar

outras relações entre aspectos aparentemente lúdicos no poema e aspectos

funcionais desses. Ainda segundo Zumthor, as reiterações sonoras situam os

ouvintes do poema oral num tempo e num espaço próprios e é através delas que

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as imagens são sensorialmente reiteradas e expressam uma visão de mundo

comum à platéia (Zumthor, 1997, p. 151).

Em relação à construção de imagens apresentada nos textos, os alunos

participantes da oficina observaram que os seres e os objetos foram

freqüentemente tratados de forma humanizada/animada (“Lua ontem me falou”,

em poema “Cantiga de lua ontem”) e foi recorrente a construção de comparações

entre seres e objetos, como no poema “Menina na janela”: “A lua é uma gata

branca,/ mansa (...) O sol é um leão sedento,/ mulambento (...)”. Tal

representação sensorial/humanizada de objetos e seres em geral vai ao encontro

do que Zumthor fala acerca da construção imagética nos poemas orais. Segundo

ele, tanto na escrita quanto na oralidade, os recursos retóricos são os mesmos. As

diferenças surgem “quando os fatores figurativos elementares (deslocamentos,

substituições, transferência), agindo nas profundezas do texto, aí se manifestam

na superfície sob formas específicas, culturalmente condicionadas” (Zumthor,

1997, p. 144). Assim, no poema oral a imagem é construída pela palavra, símbolo

do mundo: a palavra é o que representa. Em muitas culturas orais, isso é que

motiva as séries encantatórias,os enigmas, os oráculos...

.

Em função da inter-relação aspecto sonoro-aspecto imagético nos poemas

orais, a etapa da criação, nesse quarto encontro, tentou promover o uso da

linguagem figurada, através da proposta “Se eu fosse animal, flor, sol, lua, mar ou

objeto”. Assim como na produção de poemas do encontro anterior, a maioria dos

textos evidenciou aspectos relacionados à de matriz folclórica, tais como estrutura

de parlendas e de trava-línguas. Entretanto, ficou evidente o esforço autoral.

Apenas um aluno apresentou uma quadra popular sabida de memória. Houve, no

conjunto como um todo, a tentativa de estabelecer comparações inusitadas, como

no trecho de C., 11 anos, que se compara a um elefante para superar a dor que

sente: “eu seria o elefante que é grande, elegante e que segue em diante na

estrada sorridente que não tem um dente que escorre alegrimente que até a

mente da gente doi, que só eu sei”.

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As imagens surgidas nos poemas produzidos pelos pré-adolescentes nesse

encontro aproximaram-se da lógica oral de composição. Ao analisarmos tais

imagens, observamos que muitas partem de um senso comum, de uma sabedoria

que as assemelham aos provérbios e aos ditos populares. São imagens

cristalizadas e de conhecimento prévio de quem as lê, imagens do cotidiano, como

as analogias feitas pelo moleiro friulano Menocchio e discutidas por Ginzburg

(1987). Estão carregadas de oralidade, de formulismo próprio de quem

compartilha o mesmo grupo, o dia-a-dia do ser humano. De acordo com Zumthor,

o formulismo funciona como uma citação de autoridade e têm efeito de

acumulação:

De contornos mais ou menos estáveis, mas sempre (ainda que contextualmente) identificáveis, a unidade formular funciona como uma citação de autoridade. Ela remete a um texto social, virtual, mas incontestável, palavra tradicional e pública (...) Pouco importam os aspectos ocasionais: criação literal ou imitada, até parodiada, de um autor; locução metafórica cristalizada; expressão acabada, vinculada a esta ou aquela situação a este ou aquele discurso ; máxima; provérbio. Eu os reuni sob a denominação “fórmulas”, no sentido em que Zavarin e Coote, de um ponto de vista etnológico, envolvendo fenômenos de fraseologia, de paremiologia e de folclore, falavam de “formulaic text”. (ZUMTHOR, 2001, p.198)

Nos poemas dos pré-adolescentes participantes estudados, Lua e Sol

encarnam o par amoroso em seus desencontros (“Se eu fosse o sol e tu fosse a

lua no eclipce do amor minha boca na sua” - A., 10 anos), o mar representa o

infinito do amor (“Se eu fosse o mar seria imenso e infinito como o amor que sinto”

– K., 12 anos), a Lua, companhia na solidão (A lua é minha amiga/ De noites e

noites/ Ela me conta sua vida / E seus amores / A lua me conta do céu/ Do sol e

da terra ardida/ Que ela vê lá de cima/ até a hora da despedida” – L., 11 anos). O

que, em primeira análise, poderia ser classificado como “falta de criatividade” dos

participantes da oficina, à luz de Zumthor, assume feição de procedimento de

composição da poesia oral.

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Como a proposta de criação teve um caráter pessoal, algumas

comparações mostraram-se quase herméticas, como a de L., 10 anos: “Se eu

fosse objeto seria um banquinho, banquinho para devorar os pés do homem”.

Essa comparação, quase indecifrável, aproxima-se, de certa forma, do modo de

composição da lírica moderna. Ao se referir ao modo de elaboração da metáfora

na lírica moderna, Friedrich (1978, p. 207) destaca que essa une o aparentemente

improvável, algo próximo a algo distante, pois a lírica moderna serve à linguagem

e à sua experimentação e não à referência com o mundo, diferentemente das

metáforas dos poemas orais.

Um outro exemplo de poema que se aproxima do processo de construção

metafórica da lírica moderna é “Objeto-Telefone. Pessoa”, de T., 11 anos:

Objeto-Telefone. Pessoa Telefone toca Telefone toca Atendeu! Só liguei para dizer que eu te amo. (T., 11 anos)

A construção desse pequeno poema dramático também remonta ao que

Friedrich diz acerca da construção metafórica da lírica moderna. Segundo o autor,

um dos processos de formação da metáfora moderna é a justaposição dos

elementos associados (Friedrich, 1978, p. 208). No caso do poema de T., 11 anos,

a justaposição das palavras “Objeto”, “Telefone” e “Pessoa” permite ao leitor a

associação objeto-telefone e objeto-pessoa. No pequeno poema dramático, o eu

que espera pelo telefonema é reificado desde o título: é objeto que espera passivo

o outro que lhe vem pelo telefone. Enquanto o objeto “telefone” é sujeito dos

versos “Telefone toca/ Telefone toca”, o terceiro verso não apresenta sujeito

explícito. Quem atendeu? O eu que espera? Relevante, também, para a

construção da associação Objeto-Telefone- Pessoa é a indefinição do eu que se

expressa nos dois últimos versos do poema: quem fez a ligação?

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4.2.4 Poesia: portos em outros lugares

O quinto encontro teve como finalidade desenvolver atividades que

ressaltassem o ritmo do poema, a partir da temática viagem. Contou com

planejamento mais livre, na medida em que, já decorrida a metade dos encontros

da oficina, senti necessidade de avaliar o que havia sido feito até então. A

temática “viagem” serviu como preparação para o sexto encontro, cuja finalidade

foi desenvolver atividades com poemas de diferentes épocas e regiões.

O momento da percepção consistiu na elaboração de um “jogral” com a

parlenda “Um, dois, feijão com arroz” e o poema “Trem de ferro”, de Manuel

Bandeira. Ao mesmo tempo, os participantes, divididos em pequenos grupos,

recitaram a parlenda e os versos “Café com pão”, “Agora sim,/ café com pão”,

“Muita força”, “Pouca gente” e “Virge Maria que foi isso maquinista”,

acompanhados ou não de palmas e chocalhos feitos de lata:

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Assim como, nos séculos XV e XVI, a sensualidade das palavras

despertava no leitor a compreensão do texto escrito (Grafton, 2002, p. 24), através

da marcação do ritmo da parlenda “Um, dois, feijão com arroz...”, os alunos da

oficina puderam depreender o ritmo de alguns versos de Bandeira e associá-lo à

sonoridade de um trem. Através do “jogral” realizado no momento da percepção,

os participantes da oficina puderam descobrir o movimento rítmico, tanto da

parlenda, quanto dos versos de Bandeira, pois, segundo O. Brik (1971, p. 132), só

o podemos perceber no discurso poético e não no poema escrito.

Tanto O. Brik quanto Tinianov consideram que o ritmo precede o verso.

Dessa forma, perceber o não-verbal do poema (seu movimento rítmico) significa

preparar-se para a compreensão do que é verbal no poema (elementos

semântico-sintáticos).

Em seguida, o grupo ouviu a versão de Egberto Gismonti de “O trenzinho

do caipira”, de Villa Lobos. Tal composição musical, em suas diferentes versões, é

rica em material narrativo sonoro. Sem nenhuma palavra, o ouvinte empreende

uma viagem pelos recantos por que passa o trenzinho. No momento da discussão,

os pré-adolescentes registraram a semelhança rítmica dos versos de Bandeira

com o andar de um trem, bem como os elementos sonoros da versão de Gismonti

que evidenciavam a sua passagem por diferentes lugares.

O momento da criação constituiu-se numa produção de poema livre, com a

finalidade de verificar que aspectos trabalhados durante os encontros surgiriam

nos textos dos participantes. A produção do quinto encontro caracterizou-se pela

tentativa de dialogar com diferentes textos de conhecimento dos alunos. Os pré-

adolescentes que até então só haviam escrito poemas que sabiam de memória de

caráter popular, como A., 12 anos, começaram a reproduzir, na folha de papel,

textos de autoria de outrem. No caso de A., 12 anos, pela primeira vez, ela

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perguntou, antes de iniciar seu trabalho, se poderia “adaptar” algum poema que já

tivesse sido escrito por algum autor.

Registrou, então, de memória, a letra da canção “Fico assim sem você”, de

Abdullah e Cacá Moraes, interpretada pela dupla Claudinho e Buchecha e, mais

recentemente, pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto. Seguem-se os

dois trechos, o da aluna e o dos autores:

EU SEM VOCÊ Amor sem beijinho, buchecha sem Claudinho, sou eu assim sem você! Futebol sem bola, piupiu sem Frajola... Sou eu assim sem você! Carro sem istrada, queijo sem goiabada... Sou eu assim sem você. Por que que tem que ser assim se o meu desejo não tem fim! Eu te quero a todo instante nem mil autos falantes vão poder falar por mim!! (A., 12 anos) FICO ASSIM SEM VOCÊ Avião sem asa, fogueira sem brasa Sou eu assim sem você Futebol sem bola Piu-piu sem Frajola Sou eu assim sem você Por que é que tem que ser assim Se o meu desejo não tem fim Eu te desejo a todo instante Nem mil alto-falantes Não podem falar por mim Amor sem beijinho Buchecha sem Claudinho Sou eu assim sem você Circo sem palhaço Namoro sem abraço Sou eu assim sem você Tô louco pra te ver chegar Tô louco pra te ter nas mãos Deitar no teu abraço Retomar o pedaço Que falta no meu coração Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas Pra te ver Mas o relógio ta de mal comigo

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Por que é que tem que ser assim... Neném sem chupeta Romeu sem Julieta Sou eu assim sem você Carro sem estrada Queijo sem goiabada Sou eu assim sem você Por que é que tem que ser assim... Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas Pra te ver Mas o relógio ta de mal comigo (ABDULLAH e CACÁ MORAES)

Os escritos de A., 12 anos, fazem-nos refletir acerca do que Grafton (2002,

p. 31) relata sobre da escrita na Renascença: a cópia era importante para os

jovens estudantes europeus do século XVI, pois, através dela, eles chegavam à

compreensão do que liam. Já Fabre destaca que, na França, a partir de 1870, a

cópia acompanhou os jovens no serviço militar através dos “cadernos de

canções”, em que registravam textos de diferentes formatos, conforme

empreendiam suas viagens. Tais cadernos, confeccionados sempre por um jovem

soldado, com ou sem o auxílio de um escrivão, atestava os lugares por ele

percorridos. Os “cadernos de canções” tornavam-se registros do que foi vivido por

cada soldado, por isso, não importava quem criou o texto: apenas o ato da cópia

legitimava a autoria do caderno, objeto mítico nas mãos de cada jovem. Diz Fabre:

(...) o serviço militar, que marca uma etapa tanto mais essencial na vida de cada homem quanto mais o confronta com um mundo mais distante de sua origem social, vem acompanhado da confecção aplicada do ‘caderno de canções’. O novo soldado atira-se quase de imediato à sua tarefa: copia as palavras de ‘pequenos formatos’ impressos ou dos cadernos dos companheiros mais avançados. A data de cada sessão de escrita está inscrita ao fim da página, o caderno desconta o tempo. Se o recruta não domina a escrita, apela para um ‘escrivão’, mas o caderno é sempre autentificado por uma assinatura final. Sobretudo depois de 1900, a obra toma um aspecto mais acabado, orna-se de iluminuras, frisos de desenhos decalcados dos periódicos frívolos. Um trabalho recente – sobre dezessete cadernos da região de Aude e de Arièges – demonstra que eles não têm como finalidade fixar e enriquecer um repertório: sete deles foram esquecidos logo após o retorno, a maior parte dos outros não

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passaram de ‘livros’ que se olham, emprestam, mas dos quais muitas palavras não evocam nada. Pois a função do caderno está em outro lugar. As canções que contêm são todas francesas – à exceção dos ‘hinos’ regionais em ‘patoá’. Os temas evoluem – da galanteria ao patriotismo – de acordo com as modas de Paris. Os ornamentos e as figuras reproduzem estilo das revistas do período. Portanto, as cópias são, antes de mais nada, objetos que testemunham a passagem pelos lugares, um meio social e uma língua distantes e prestigiosos. Ao fixar essas produções de aparência pobre, a escrita consagra-se como o bem apropriado daquele que, voltando para casa, traz seu caderno como um talismã (FABRE, 2001, p. 218-219).

Ao jovem soldado francês do fim do século XIX, início do XX, não importava

o assunto do texto registrado em seu caderno, nem tampouco se era criação sua.

A autoria era conferida pela posse da escrita, pela posse do caderno. Assim

também para A., 12 anos, a noção de autoria vai se ampliando pouco a pouco, ao

longo das atividades da oficina. Se anteriormente a aluna apresentou textos que

trouxe de memória, da tradição oral, ao fazer uma “adaptação” da letra da canção

“Fico assim sem você”, de Abdullah e Cacá Moraes, coloca-se na posição de

autora do texto que “adapta”. A cópia de trechos dessa canção legitima essa

autoria, como legitimava a do jovem proprietário dos cadernos de canções: “Ao

tomar completamente posse do escrito, fazendo alguns um caderno ou um livro,

tornam-se a título coletivo ou pessoal, escritores”. (Fabre, 2001, p. 321)

Segundo Fabre (2001, p. 220), ao aprender a ler, aprendemos a reconhecer

os textos de que não poderíamos ser autores e, por conseqüência, colocamo-nos

no lugar de leitores. Também A., 12 anos, aprende aos poucos a distinguir textos

que traz de memória daqueles que produz de própria lavra, como esse, escolhido

por ela para apresentar para os demais colegas, quando do término da oficina:

MEU PAÍS IMAGINÁRIO Eu moro num país cheio De árvores, cachoeiras E muita alegria. No meu país todos têm Liberdade e muita felicidade. Eu sou muito feliz No meu país... Mas eu não Tenho tudo que quero, Mas amo tudo que tenho. (A., 12 anos)

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Mesmo que aluda a um dito popular (“Não tenho tudo que quero, mas amo

tudo que tenho”), esse texto de A., 12 anos, ao contrário dos apresentados até o

quarto encontro, evidencia uma criação própria, mesmo que longe de atingir

qualidades poéticas diferenciadas.

Um outro exemplo, produzido por I., 11 anos, aproxima-se dos daqueles

mencionados por Fabre, produzidos pelos jovens soldados franceses da virada do

século XIX para o XX. Trata-se de uma colagem de lugares-comuns, letras de

música (novamente a canção “Fico assim sem você”) e o slogan do comercial de

TV “Sou brasileiro e não desisto nunca”:

DESPERDIÇOU Falei que te amo e você não me quis mas você ainda vai me procurar, mais eu não volto, a, eu não volto, você vai ver, mas eu não existo longe de você é a solidão é o meu pior castigo\eu conto as horas para poder te ver mas o relógio está de mal comigo Só queria dizer que te amo é não perco sem você neste mundo por nada, nada, não tenho mais palavras pra dizer te amo. Mais sou brasileira e não desisto nunca. (I., 11 anos)

O diálogo intertextual esteve bastante presente na produção livre desse

encontro, o que evidenciou certo grau de reflexão dos pré-adolescentes

participantes da oficina acerca dos textos lidos e da forma como foram compostos.

A partir do poema “Pintou uma rosa no pedaço”, de Sérgio Napp (ver segunda

antologia no Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros), K.,

11 anos, criou o poema “O sol e o girassol” enquanto T., 11 anos, criou uma

releitura para os versos de “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira (ver terceira

antologia no Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros). Ao

ser indagada sobre sua releitura dos versos de Manuel Bandeira, T., 11 anos,

informou que seu trabalho referia-se a pessoas que estivessem em situação de

necessidade, como pessoas pobres ou detentos. Seguem os poemas de K., 11

anos, e de T., 11 anos:

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O SOL E O GIRASSOL O sol brilhando E os girassóis se virando gira, gira, girassol acompanhando o sol Dia e noite Gira, gira Noite e dia Gira, gira, girassol... (K., 11 anos)

Café com pão Rebelião. (T., 11 anos)

Dos textos produzidos no quinto encontro, um destacou-se por se remeter

ao poema “As meninas”, do livro Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles. Cabe

ressaltar que tal poema não estava em nenhuma antologia distribuída aos alunos

ao longo da oficina e a referência a ele evidencia um possível esforço da aluna

participante relacionar seu próprio texto a outros de seu repertório de leitura:

AS IRMÃS Gisele, Priscila e Déborah São minhas irmãs: Gisele é a mais velha Prisicila é a do meio Déborah é a menor. Gisele é a Gisa. Priscila é a Purichira Déborah é a Debinha Mais quem eu sou? Sou aquela que é a menor de todas. Tenho saudades de todas, mais a que eu mais tenho saudade é a Debinha: Que abria a janela e dizia: bom dia! (R., 12 anos)

A partir do sexto encontro, busquei desenvolver atividades que

proporcionassem a formação de imagens e o descentramento, pois, no dizer de

Eliot, a tarefa do poeta não é a busca de novas emoções, mas o resgate das

cotidianas, trabalhadas no interior do poema, o que resulta na transformação do

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sujeito poético numa espécie de sujeito coletivo, despersonalizado (Eliot, 1920).

Nos trabalhos de oficina, ainda que não tivesse sido dado nenhum destaque à

descentralização do sujeito poético, K., uma menina de 12 anos, elaborou o texto

do quinto encontro (poema livre), utilizando uma voz masculina adulta. Assim

como o trovador galego-português que compõe suas cantigas d´amigo através de

um eu-feminino, K., 12 anos, expressou-se na voz de um eu-masculino:

A AMIZADE Tenho amigos muito importantes Hoje até mais do que antes Eu era feliz antigamente E agora sou triste mas tenho “amor” em minha mente. E até no coração Apesar de amar em vão Por que a pedi em casamento E ela disse não (K., 12 anos)

Ainda que tematize uma preocupação pré-adolescente, a saber, a

aceitação/ rejeição amorosa, o texto de K., 12 anos, descola o eu que se expressa

do eu que escreve. Não é a voz de uma menina de 12 anos que fala de suas

apreensões em relação ao ser amado, mas a de um eu adulto, do sexo masculino

(“Eu era feliz antigamente”), que sofre por ter seu pedido de casamento negado.

Do sexto ao nono encontro da oficina, busquei mais enfaticamente esse

descentramento, o descolamento do eu que escreve em relação ao eu que se

expressa no poema. Para tanto, foram desenvolvidas atividades que

despertassem sensações a partir de canções, inicialmente de diferentes culturas

e, posteriormente, imagens e textos de terras imaginárias.

A partir do sexto encontro, as atividades corporais foram sendo substituídas

por atividades de registro escrito de percepções sensoriais, causadas pela música,

pelas imagens e pela leitura de poemas em voz alta. Chartier (1991, p. 14)

observa que, nos séculos XVI e XVII, para se escrever eram necessárias práticas

como saber a distância adequada corpo-texto escrito, ter bem posicionados os

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braços, enfim, adotar uma postura corporal compatível com a leitura de um texto

escrito.

Por esse motivo, optei por valorizar a postura corporal de leitura e de escrita

a partir do sexto encontro, como se observa nas imagens dos pré-adolescentes

participantes da oficina:

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No sexto encontro, o momento da percepção centrou-se na audição de

canções populares de diferentes povos, a saber:

a) “Nonazanina ore kuá”, cantiga de ninar indígena;

b) “Dorme, dorme”, cantiga de ninar árabe;

c) “Au feu, le pompier”, cantiga francesa;

d) “Alecrim”, cantiga popular portuguesa;

e) “Sansa kroma”, cantiga popular da África do Sul.

Após a audição de cada canção, os pré-adolescentes registraram as

sensações que tiveram ao ouvir cada uma delas. Por serem em sua maioria

cantigas em línguas diferentes do Português, as sensações estiveram mais

relacionadas com a percepção musical do que com a de significados lingüísticos.

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O quadro que se segue aponta um levantamento feito a partir das respostas

dadas pelos alunos. Não era necessário que cada um deles transcrevesse uma

única sensação ao ouvir cada cantiga:

“Nonazanina

ore kuá” “Dorme, dorme”

“Au feu le pompier”

“Alecrim” “Sansa kroma"

Felicidade 2 ocorrências 1 ocorrência 3 ocorrências 1 ocorrência 1 ocorrência

Confusão 1 ocorrência

Angústia 1 ocorrência

Tranqüilidade, paz

6 ocorrências 1 ocorrência

Tristeza 1 ocorrência 5 ocorrências

Alegria 1 ocorrência 1 ocorrência 7 ocorrências 5 ocorrências 6 ocorrências

Agitação 1 ocorrência 1 ocorrência 5 ocorrências

Vontade de rir 2 ocorrências 1 ocorrência 8 ocorrências 4 ocorrências 3 ocorrências

Vontade de dançar

2 ocorrências 3 ocorrências 5 ocorrências 4 ocorrências

Vontade de tocar

instrumentos, cantar, batucar

1 ocorrência 5 ocorrências 3 ocorrências

Vontade de estar lá

1 ocorrência

Elementos relacionados ao estranhamento

cultural (tontura, religiosidade,

diferença, confusão etc.)

3 ocorrências 4 ocorrências 1 ocorrência 1 ocorrência

Ao utilizar canções de diferentes povos, busquei uma aproximação com o

que elas pudessem despertar de sentido nos participantes da oficina, bem como

identificar até que ponto esse sentido trazia a marca do significado de cada uma

dessas canções. Cabe, nesse momento, trazer à discussão uma das reflexões

que Luria fez em suas últimas conferências, que estão no livro Pensamento e

linguagem. Luria diferencia “significado” de “sentido”. Segundo ele, significado é o

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“sistema de relações que se formou objetivamente no processo histórico e que

está encerrado na palavra” (Luria, 1987, p. 45), é, também, um:

(...) sistema estável de generalizações, que se pode encontrar em cada palavra, igualmente para todas as pessoas. Este sistema pode ter diferente profundidade, diferente grau de generalização, diferente amplitude de alcance dos objetos por ele designados, mas sempre conserva um ‘núcleo’ permanente, um determinado conjunto de enlaces. (LURIA, 1987, p. 45)

Já o sentido, de acordo com o autor, é o significado individual da palavra,

separado do sistema objetivo de enlaces. Compõe-se dos enlaces que têm

relação com o momento e a situação dados. Cada palavra possui, assim, um

significado, vinculado à história, conservado por e para todos, e um sentido, que é

individual, ligado à situação dada e às vivências afetivas do sujeito. Através da

audição das cantigas de diferentes culturas, os participantes das oficinas não

puderam, num primeiro momento, descobrir seu significado (exceto “Alecrim”,

todas eram em língua estrangeira), mas puderam atribuir sentidos às marcas

sonoras extra-textuais, tais como as melodias das cantigas, os instrumentos

utilizados, a entonação do cantor. Assim, à cantiga de ninar indígena “Nonazanina

ore kuá”, a sensação de paz/tranqüilidade teve maior número de incidências,

enquanto “Sansa kroma”, que fala de um passarinho que perdeu os pais e, desde

então, protege as crianças órfãs, teve incidência maior das sensações de alegria,

agitação e vontade de dançar.

Por fugir muito a sonoridades culturais próximas à nossa, a cantiga de ninar

árabe “Dorme, dorme” teve o maior grau de estranhamento em relação às demais.

A ela os pré-adolescentes atribuíram as sensações de tontura, religiosidade,

diferença e confusão. Ainda assim, não obstante esse estranhamento, houve

cinco incidências de sensação de tristeza, quando da audição dessa cantiga.

Utilizando a diferenciação entre sentido e significado, feita por Luria, mesmo que

tal diferenciação tenha como base a palavra e não elementos extra-textuais, talvez

tenha sido difícil atribuir um significado à cantiga árabe “Dorme, dorme” por ela ser

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culturalmente estranha ao grupo, mas isso não impediu que lhe fosse atribuído o

sentido de tristeza.

Posteriormente, no momento da discussão, cada aluno soube a origem

cultural de cada cantiga, assim como o que cada uma delas representava. Para o

momento da discussão, cada aluno ouviu uma leitura em voz alta do poema “O

sol e Taichi”, do poeta japonês Miyasawa Kenji, constante da quarta antologia

distribuída aos alunos (ver Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros). Após a leitura em voz alta feita por mim, cada um deveria registrar as

sensações que teve com a audição do poema. Aos poucos, com a releitura desse,

de posse da folha da antologia, os alunos discutiram as sensações que tiveram de

alegria, paz, solidão, frio, confusão, grandeza, angústia, mudanças de estações e

tristeza e viram que essas foram motivadas pelas imagens que o poeta criou em

seu poema. Nele, o sol é comparado a um pequeno prato de prata no céu. É

brilhante, porém de um brilho tímido e pequeno. Está sendo encoberto pelo branco

das nuvens e da neve, que toma o seu lugar ao começar a produzir luz. Em meio

a esse cenário frio e branco, Taichi destaca-se por ser ele próprio quem traz de

volta o sol: veste suas calças vermelhas (como vermelho é o sol que desponta no

branco da bandeira japonesa), suas vermelhas e quentes calças. Em meio ao frio,

surge simbolicamente o calor de Taichi. Taichi, nome próprio posto lado a lado

com a palavra sol, no título do poema, é igualado à fonte de calor e de alegria que,

no momento, o sol não pode ser.

Essa associação entre sentidos e significados de diferentes palavras, tal

como ocorre no poema “O sol e Taichi”, permite a retomada das últimas

conferências de Luria. Nelas, o autor, ao falar de campo semântico, afirma que

“cada palavra evoca todo um complexo sistema de enlaces, transforma-se no

centro de toda uma completa rede semântica, atualizando determinados campos

semânticos, os quais caracterizam um aspecto importante da estrutura psíquica da

palavra” (Luria, 1987, p. 76).

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Segundo Luria, as palavras despertam em quem as ouve/lê enlaces

associativos que podem ser externos, ou seja, aqueles que se referem a situações

concretas, como, por exemplo, “casa-teto” e “cachorro-rabo”, e internos, que são

evocados por inclusão da palavra em uma categoria determinada, como

“cachorro-animal”, “cadeira-móvel” e “cedro-árvore”. Sobre esses dois tipos de

enlace, diz o autor:

Estas associações foram denominadas, na psicologia clássica, ‘associações por semelhança’ ou ‘associações por contraste’. É fácil ver que os enlaces verbais que emergem involuntariamente refletem as peculiaridades do pensamento sensorial, real-concreto, ou do pensamento ‘categorial’, que vimos anteriormente. (LURIA, 1987, p. 77)

Luria destaca, também, que, por trás de cada palavra, está um sistema de

enlaces sonoros, situacionais e conceituais. Nos sujeitos normais, à medida que

se tornam adultos, os enlaces sonoros (associações sonoras entre palavras) estão

quase sempre inibidos. Segundo ele:

Raramente, alguém diante da palavra ‘koshka’ dirá ‘kroshka’, ‘krishka’ etc. Dificilmente, a palavra ‘skripka’ evocará ‘skrepka’. O afastamento destes enlaces sonoros dá-se em benefício dos enlaces semânticos, mais essenciais. Os enlaces semânticos, tanto os situacionais como os conceituais, são indiscutivelmente dominantes nos sujeitos normais. No entanto, como conseqüência da riqueza de enlaces situacionais e conceituais, em todos os casos dá-se a escolha do significado necessário dentre os muitos possíveis, uma vez que os diferentes significados surgem com diferente probabilidade no momento em que o sujeito escuta a palavra. (LURIA, 1987, p. 80)

No caso dos pré-adolescentes participantes da oficina, se, nos primeiros

encontros, as associações entre palavras ocorreram no plano sonoro, a partir da

metade da oficina, busquei atividades que proporcionassem associações

situacionais e conceituais, como forma de auxiliá-los na compreensão do sentido

interno dos textos lidos. Sobre a compreensão textual, Luria assinala que ela:

não se limita à compreensão do significado superficial. O significado da frase, a comunicação de um acontecimento ou de uma relação, a expressão geral de um pensamento não é a última etapa da compreensão. Já nas alocuções verbais ou comunicações relativamente

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simples, juntamente ao significado externo, aberto do texto, existe um sentido interno que se designa com o termo subtexto. Este subtexto existe em qualquer forma de alocução, desde as mais simples até as mais complexas. (LURIA, 1987, p. 195)

Ao analisar a profundidade de leitura de um texto, Luria ressalta que essa

depende principalmente da sensibilidade emocional do sujeito em detrimento ao

seu intelecto formal. Essa colocação vai ao encontro da proposta de oficina feita

aos pré-adolescentes do Projeto Amora, que parte de vivências sensoriais e do

resgate do corpo como condição para a leitura e a produção de poemas. Para

compreender o subtexto, é necessário vivenciá-lo. Ainda segundo Luria, a

capacidade de compreensão do subtexto:

(...) representa um aspecto especial da atividade psíquica, que pode não estar correlacionado em absoluto com a capacidade de pensamento lógico. Estes dois sistemas – o sistema de operações lógicas na atividade cognitiva e o sistema de compreensão emocional do significado ou do sentido profundo do texto – são dois sistemas diferentes. (LURIA, 1987, p. 197)

Entretanto, a vivência sensorial desse subtexto não necessita acontecer no

plano factual. É preciso saber como se colocar no lugar do outro que está se

expressando no texto. Não foi preciso que cada pré-adolescente vivenciasse a

neve real para que compreendesse as sensações de alegria, de paz, de solidão,

de frio, de confusão, de grandeza, de angústia, de mudanças de estações e de

tristeza presentes no subtexto do poema “O sol e Taichi”, mas foi preciso que

depreendessem tais sensações através de um sentido interior de neve, provocado

pelo poema. Cabe, nesse momento, então, trazer à discussão o que propõe

Stanislavski acerca da preparação do ator, pois tal autor baseia-se justamente no

fato de que o ator deve vivenciar as sensações, as emoções de seu papel, a partir

das suas próprias.

Stanislavski, na primeira parte de A criação de um papel, intitulada “A

desgraça de ter espírito de Griboyedov”, destaca três períodos na preparação do

papel pelo ator: o estudo do papel, o conferir-lhe vida e o dar-lhe forma

(Stanislavski, 1999, p. 21). Escrito entre 1916 e 1920, esse texto é a mais antiga

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das explorações de Stanislavski sobre o assunto que irá retomar ao longo de sua

obra, ou seja, por meio do consciente, atingir o inconsciente, através da técnica.

Para Stanislavski, a primeira leitura de uma peça é essencial para o ator,

pois é ela que o vai marcar emocionalmente e é através dela que vão se construir

as circunstâncias interiores para a criação do papel. Segundo o autor, é preciso

que o ator aproxime-se de seu papel por meio de suas próprias sensações, de

suas próprias emoções reais, de sua experiência pessoal de vida, ou seja, de sua

percepção emocional. Nesse sentido, é preciso que ele tenha imaginação ativa,

que se coloque “em” uma determinada situação, que se mescle às circunstâncias

do papel (Stanislavski, 1999, p.43).

Entretanto, mesmo que busque, em suas emoções, em suas sensações e

em suas vivências pessoais, requisitos para a composição do seu papel, o ator

deve criar aquilo que lhe falta:

O ator deve amar os sonhos e saber usá-los. Essa é uma das mais importantes faculdades criadoras. Sem imaginação não pode haver criatividade. Um papel que não passou pela esfera da imaginação artística nunca se tornará atraente. O ator precisa saber aplicar sua fantasia a toda espécie de temas. Deve saber como criar em sua imaginação uma vida verdadeira com qualquer material que lhe seja dado. Como uma criança, ele deve saber brincar com qualquer brinquedo, e achar prazer em seu jogo. O ator tem plena liberdade de criar o seu sonho, desde que não se extravie muito do pensamento e tema básico do dramaturgo. Há vários aspectos da vida da imaginação e de seu funcionamento artístico. Podemos usar nossa visão interior para ver todo tipo de imagens visuais, criaturas vivas, rostos humanos, suas feições, paisagens, o mundo material dos objetos, cenários, e assim por diante. Com nosso ouvido interior, podemos ouvir toda sorte de melodias, vozes, entonações, etc. podemos sentir as coisas da imaginação, impelidos por nossa memória de sensações e emoções. Há atores de coisas vistas e atores de coisas ouvidas. Os primeiros são dotados de uma visão interior especialmente boa, e os segundos de uma sensível audição interior. Para o primeiro tipo, ao qual eu mesmo pertenço, o meio mais fácil de criar uma vida imaginária é com o auxílio de imagens visuais. Aos do segundo tipo, o que ajuda é a imagem do som. Podemos amar todas as imagens visuais, auditivas, ou outras. Podemos gozá-las passivamente, de fora, sem sentir nenhum impulso para uma ação direta; numa palavra: com a “imaginação passiva” podemos ser a

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platéia de nossos próprios sonhos. Ou podemos tomar parte ativa nesses sonhos com a “imaginação ativa”. (STANISLAVSKI, 1999, p.38)

Stanislavski continua seu pensamento defendendo que o ator deve ser um

observador, deve buscar cada vez mais acumular não só conhecimentos, mas

também impressões e lembranças vivas, pois só assim seu modo de pensar e de

sentir será mais sutil e mais ampla, variada e substancial será também a vida de

sua imaginação sobre um mesmo e único tema. Com base em Stanislavski,

busquei provocar sensações nos participantes das oficinas, através de

movimentos corporais, de músicas, de imagens e de leituras em voz alta, como

forma de lhes proporcionar uma compreensão do sentido interno dos poemas

lidos, assim como de promover situações de criação de poemas. Sobre a palavra

falada e a compreensão do sentido interno, diz Luria:

(...) As pausas e a entonação são, neste caso, os meios de tradução do nível de significações externas desdobradas ao nível do sentido interno. A arte dos grandes narradores como Zakushniak, Kocharian, Andronikov, Zhuravliov consiste em levar até o ouvinte, utilizando os correspondentes meios – pausas, entonação, gestos – não somente o significado externo da comunicação, mas, também seu sentido interno, seu subtexto e, inclusive, os motivos que se encontram por trás das ações dos personagens ou que estão na base das vivências do autor. Já nos referimos àqueles meios utilizados para facilitar a tradução do texto transmitido oralmente, desde o nível dos significados externos ao nível dos sentidos internos. Os mesmos problemas existentes na compreensão da linguagem escrita, mesmo que aqui os meios sejam outros. Nem a entonação, nem o gesto, nem a pausa aparecem na linguagem escrita e a separação de parágrafos, os espaços, os sinais de pontuação não garantem completamente a possibilidade de compreensão do sentido interno do texto. Por isso, naturalmente, o processo de compreensão do subtexto ou do sentido, que se oculta atrás do texto escrito, tem aqui um caráter mais complexo e exige um trabalho autônomo ativo por parte do sujeito (LURIA, 1987, p. 198).

Após a leitura oral do poema de Miyasawa Kenji, os participantes da oficina

foram desafiados a iniciarem o momento da criação, através da escrita de frases

que expressassem um sentimento já vivenciado por cada um, sem, contudo,

mencioná-lo. Apesar de a maioria das frases circunscreverem-se à descrição do

factual (“Hoje meu pai vem passar o Natal comigo” – A., 11 anos, para representar

alegria; “Hoje estou brincando muito e não estou cansado” – L., 10 anos, para

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representar disposição e “Ontem fui a uma festa e voltei às duas horas da manhã”,

I., 11 anos, para representar cansaço), três textos destacaram-se pela utilização

de metáforas bastante interessantes:

Sabe, eu sou amarelo, cor do castelo, tenho cabeça de cogumelo e coração preto. Um dia achei o azul, que era lindo cor do ceu, mas um dia o marrom robou sua cor, sem o azul não posso ser o amarelo, e para ser o amarelo, tive que virar o preto. Agora sou azul, por que o preto virou branco e com o branco tudo virou o amarelo e com ele apareci e virei o Azul. Sou amarelo, céu azul e meu coração preto. (C., 11 anos) Alguém que gosto muito morreu. Chorei, mas para mim foi melhor, fui vê o pôr-do-sol no Gasômetro. (G., 12 anos) SAUDADE Estou deitada no meu quarto Uma dor aperta meu peito A vontade de chorar vem chegando E eu na minha cama Vou me aconchegando. (L., 11 anos)

Ser uma cor luminosa por fora e uma escura por dentro, ver o pôr-do-sol e

aconchegar-se na cama, mesmo que partam de experiências pessoais, são

imagens que representam de modo mais universal os sentimentos de tristeza, de

reflexão, de recolhimento, próprios de qualquer ser humano. Os três trechos

escritos pelos alunos, dessa forma, aproximam-se da condição do poema lírico de

representar uma emoção que não seja exclusiva do eu que a expressa, mas que

pareça exclusiva de quem o lê.

No momento da criação propriamente dita, a atividade desenvolvida continuou remetendo os alunos para a esfera do emocional. Através do mote

“Sinto certo sentimento”, verso inicial do poema “Sei lá”, do livro Ninguém sabe o

que é o poema, de Ricardo Azevedo, publicado pela Editora Ática em 2005, cada

aluno teve de desenvolver um poema que expressasse em linguagem figurada

uma das sensações listadas durante a audição das canções, no momento da

percepção. O desafio, cada vez mais, passou a ser fazer do poema uma instância

de expressão de sentimentos, mas não necessariamente os que vive o eu que

escreve. Saber identificar em si a emoção e transformá-la em sentimento universal

foi o desafio lançado para os pré-adolescentes estudados: o de serem poetas-

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fingidores, que chegam a fingir a dor que realmente sentem, parafraseando os

versos de Fernando Pessoa.

Numa linguagem ao mesmo tempo pessoal e universal, alguns alunos

conseguiram abordar sensações como:

• desconforto consigo mesmo ou com o espaço circundante: eu estou voando, ando e ando correndo, endo, endo mas isso mostra a cor do vermelho, ou o boeiro, que é marrom, preto, cinza e não é branco, estou totalmente verde, voando da cor azul, correndo com a cor preta e dormindo com o coração marrom. O sol viajou e agora tudo esta tão marrom cor do moletom de Seu João. (C., 11 anos) Ontem teve sol Hoje teve chuva Amanhã vai ter nublado No meu mundo iluminado (K., 11 anos)

• amor e saudade:

Hoje o sol está radiante. É um lindo dia A água do mar está brilhante. E ao olhar o céu vi como ele ria Tudo está calmo Sinto o céu a um palmo O amor me rodeia Enquanto rolo na areia (K., 12 anos) O sol se foi Agora no céu têm uma bola prateada refletindo no rio Minha mãe Minha amada Que se foi Levando parte do meu coração e me deixando só eu, a lua e o chão. (L., 11 anos)

O texto de C., 11 anos, segue na linha de imagens cromáticas, que

expressam as alternâncias entre a sensação de liberdade (verde, azul) e a de

desconforto (preto, marrom), reiteradas pelas ações de voar (associada à cor azul

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e, conseqüentemente, à sensação de liberdade) e correr/dormir (associadas às

cores preta e marrom, portanto à sensação de desconforto). Há a personificação

do sol (“o sol viajou”). Já o texto de K., 11 anos, tece uma descrição climática

para, por fim, aproximar tal descrição da paisagem interior do eu que se expressa:

ao mundo iluminado desse eu, contrapõe-se o tempo nublado.

Já os textos de K., 12 anos, e L., 11 anos, transferem para a paisagem o

sentimento amoroso: a tranqüilidade da natureza e o desaparecimento do sol

indicam respectivamente a presença do amor e a ausência do ser amado. O

poema de L., 11 anos, aborda ainda mais sofisticadamente o sentimento de perda,

através da construção imagética “e me deixando só/ eu, a lua e o chão”. Estar só,

no chão, indicia um abatimento moral intenso e não apenas o ato de estar deitado.

Um texto destacou-se pela tentativa de expressar um sentimento coletivo.

Ao invés de falar de uma sensação pessoal, V., 13 anos, optou por abordar a

construção de utopias, de um mundo mais equânime. Dessa forma, antecipou as

propostas de atividades dos dois encontros posteriores:

O GRANDE SENTIMENTO O mundo gosta de rir e temos que fazer uma vida que não seja só de risadas mas também de tristesa. Para poder ajudar quem prisisa ser ajudado. Para poder achar o sentimento certo.

4.2.5 Poesia: uma viagem estrelada

O sétimo e o oitavo encontros tiveram por finalidade promover instâncias de

leitura e de produção de poemas, a partir de textos e/ou imagens que abordassem

seres e lugares imaginários. Através dessas imagens e desses poemas, busquei

que os alunos participantes da oficina chegassem à criação de poemas de forma o

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mais possível desvinculada de um eu que expressa apenas sentimentos e

sensações pessoais.

A construção de utopias projeta no futuro uma expectativa que se deseja

para o presente. Sobre o mito da Cocanha, terra imaginária que aparece em

diferentes tradições folclóricas, Hilário Franco Júnior, no prefácio de seu livro

Cocanha, várias faces de uma utopia, diz que, mesmo que tal utopia seja um

mosaico mítico, a composição desse relato apresenta “fragmentos manipulados de

forma própria conforme a época e o local de cada versão” (Franco Júnior, 1998, p.

10). Assim, a Cocanha assume feições um pouco diferentes na Medievalidade e

na Modernidade. Na Cocanha de cada época, existe o que mais faz falta no grupo

que a cria. No caso da Cocanha moderna, por exemplo, diz o autor:

Enquanto as utopias intelectuais modernas, como as de Thomas Morus, Francis Bacon e Tommaso Campanella, estavam mais preocupadas em reformar o sistema político-social do que em melhorar as condições concretas de vida das camadas despossuídas, a Cocanha oferecia a elas uma nova Idade de Ouro. Ela buscava superar, no plano imaginário, a principal dificuldade daquelas pessoas: a carestia alimentar. (FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 14)

Optei por utilizar textos da literatura que versassem sobre espaços

imaginários, como os presentes na antologia do oitavo encontro (Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros), por eles apresentarem esse

duplo caráter de universal e de circunscrito ao temporal/regional. Contudo, antes

de iniciar o trabalho com os textos dessa antologia, optei por, a partir de imagens

projetadas, aproximar os pré-adolescentes de formas visuais de seres imaginários.

Apenas duas imagens não retrataram tais seres: o poema “Sei lá”, de Ricardo

Azevedo, e a ilustração de Estela Capón para o livro de María Elena Walsh, El

país de la geometría.

Segue a lista de imagens apresentadas aos alunos, que podem ser

encontradas no Apêndice E: Imagens utilizadas no sétimo encontro:

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• Imagem 1: Poema “Sei lá”, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO,

Ricardo. Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005.

• Imagens 2 e 3: “Mermaids and Mermen” (Sereias e Sereios), Culver

Pictures Inc., do livro KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to

gnomes, fairies, elves and other little people. New York: Gramercy

Books, 2000.

• Imagem 4: “The fays” (“As fadas”),Culver Pictures Inc., do livro

KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to gnomes, fairies, elves and

other little people. New York: Gramercy Books, 2000.

• Imagem 5: “O próprio sol ficou cheio de frieiras”, Gustave Doré, do

livro BURGUER, G. A. Aventuras do Barão de Münchhausen. Belo

Horizonte: Vila Rica, 1990.

• Imagem 6: “O monóculo”, Margarita Guerrero, do livro BORGES,

Jorge L. e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários.

São Paulo: Globo, 2000.

• Imagem 7: “Anfisbena”, Margarita Guerrero, do livro BORGES, Jorge

L. e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. São

Paulo: Globo, 2000.

• Imagens do conjunto 8: “Guitarra Pensilis”, “Manypeeplia

Upsidedownia”, “Phattfacia Stupenda”, “Piggiwiggia Pyramidalis”, de

Edward Lear, do livro LEAR, Edward. The nonsense books of

Edward Lear. New York: The New American Library of World

Literature, 1964.

• Imagem 9: Sem Título, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO,

Ricardo. Histórias folclóricas de medo e quebranto. São Paulo:

Scipione, 1997.

• Imagem 10: Sem Título, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO,

Ricardo. Histórias folclóricas de medo e quebranto. São Paulo:

Scipione, 1997.

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Algumas reflexões surgem a partir do quadro com as sensações mais

destacadas pelos alunos. Uma delas é o fato de haver, no trabalho com imagens,

diferentemente das sensações despertadas pela audição das cantigas, uma

reincidente descrição das cenas exibidas, em contraposição à baixa incidência da

sensação de estranheza frente a elas (apenas cinco registros). A última coluna da

tabela demonstra que nenhuma das imagens projetadas deixou de ser descrita por

algum dos pré-adolescentes. O descrever pode demonstrar uma tentativa de os

alunos compreenderem o que viram, uma forma de “dissecarem”, de analisarem a

cena que lhes foi apresentada.

Conforme destaca Walter Ong (1998, p. 86-87), a visão chega ao ser

humano através dos detalhes: para se olhar o todo é preciso dissecá-lo, girar os

olhos pelo que foi visto, enquanto o som envolve os ouvidos. Ao mesmo tempo em

que se preocuparam em descrever o que viram, houve, por parte dos alunos da

oficina, a tentativa de inserção pessoal no contexto mostrado. Há vinte ocorrências

de registro de inserção de si mesmo na imagem mostrada, várias delas com

referência a percepções ligadas aos sentidos humanos.

Como referências de inserção sensorial nas imagens mostradas, temos: Me senti vendo uma sereia. (A., 12 anos) Sinto o som do mar. Sinto o vento do mar. (F., 12 anos) Imaginei como deve ser ter um olho só. (L., 11anos) Parece que estou voando pelo céu azul. (C., 11 anos)

Tal atitude é importante, pois serviu como um exercício de descentramento

do eu. Colocando-se a si próprios em uma cena ou no lugar de um ser imaginário,

cada aluno está testando sua capacidade artística de transmitir, com emoção, um

sentimento que não lhe pertence, a partir de sua própria percepção. Cada um

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deles está fazendo sua análise da imagem na concepção, embora teatral, de

Stanislavski: Pela análise, o ator passa a conhecer melhor seu papel. A análise é, também, um meio de familiarizar-se com a peça toda pelo estudo de suas partes. Como num trabalho de restauração, a análise calcula o todo, fazendo viver vários dos seus segmentos. A palavra “análise” tem, geralmente, uma conotação de processo intelectual. É usada em pesquisas literárias, filosóficas, históricas e outras. Mas em arte, qualquer análise intelectual, empreendida por si só e como único objetivo, será prejudicial, pois suas qualidades matemáticas e secas tendem a esfriar o impulso do “élan” artístico e do entusiasmo criador. Em arte, o sentimento é que cria, e não o cérebro. O papel principal e a iniciativa, em arte, pertencem ao sentimento. Aqui, o papel da mente é apenas auxiliar, subordinado. A análise feita pelo artista é muito diferente da que faz o estudioso ou o crítico. Se o resultado de uma análise erudita é o ‘”pensamento”, o de uma análise artística é o “sentimento”. A análise do ator é sobretudo a do sentimento, e é executada pelo sentimento. (STANISLAVSKI, 1999, p. 26)

De que forma essa tentativa de aproximação de sensações estranhas ao eu

que lê e que escreve o poema se refletiu na criação do sétimo encontro? Os

participantes da oficina tiveram primeiramente de pensar em um ser imaginário

que representasse o que estavam sentindo. Em seguida, tiveram de desenhar

esse ser em uma folha e, posteriormente, escrever um poema sobre ele.

I., 11 anos, fez sua personagem explicitamente baseada na imagem “O

próprio sol ficou cheio de frieiras”, de Gustave Doré:

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A imagem de Doré destacou-se por receber o maior número de ocorrências

de sensações como sono, morte, dor, angústia, tristeza e abatimento. Tais

sensações aparecem no poema que I., 11 anos, compôs no momento da criação.

É nítida a associação da imagem de desamparo de Gustave Doré, com a de

tristeza e de solidão expressas através de palavras por I., 11 anos. Em seu

poema, palavras como “deprimida”, “frio”, “(r)uiva”, “dor”, aliam-se à falta de brilho

da Lua:

L A lua brilha muito mas um dia ela parou de brilhar começou a ficar deprimi- da e com frio Porque o vento ruiva o vento ventas sobe um calafrio e leva a dor para os casais mas se a lua não brilha ninguém brilha (I., 11 anos)

O vôo dos seres imaginários mostrados em “The fays” (“As fadas”) para os

pré-adolescentes serviu de mote para a criatura alada, criada por L., 11 anos:

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A sensação de alívio e de liberdade obteve nove ocorrências no grupo das

sensações descritas pelos pré-adolescentes a partir das imagens que lhes foram

mostradas, três delas surgiram em função dos seres alados da imagem “The fays”

(“As fadas”). Assim como a imagem das pequenas fadas voando em insetos, o

“anjo” de L., 11 anos, voa alto, livre, um vôo de mente (traduzida pela palavra

“imaginarium”) e criação (traduzida pelas palavras “dormir” e “sonho”), até sentir-

se aconchegado pela quentura de suas asas brancas, em terra firme:

IMAGINARIUM Os pés não tocam o chão Ele voa A mente está no alto Ele viaja Como um arranha-céu Ele volta para casa Mas No caminho se perde Se perde do seu rumo E encontra o paraíso Seu pêlo branco o esquenta Seus espinhos o protegem E ele volta a dormir Para pelo menos no sonho Voltar para casa O sonho o avisou O que ele jamais sonhou Que a terra em que estava a descansar Era mesmo o seu lar (L., 11 anos)

O eu que se expressa no poema de L., 11 anos, não descreve uma

sensação pessoal, mas a de um ser que lhe é exterior, que é acompanhado de

perto em suas ações e em suas sensações de busca, vôo e liberdade. L., 11 anos,

consegue fazer um poema em que, sem falar de si, desloca o desejo pré-

adolescente de sonho e liberdade para um outro ser inventado. Não há em seu

poema uma intenção meramente pessoal, mas o sentimento universal de

liberdade, traduzido pela metáfora do vôo e da altura (“arranha-céu”).

Ainda que seja mais pessoal do que o poema de L., 11 anos, o texto de L.,

10 anos, também expressa uma questão própria da adolescência: o desconforto

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frente ao próprio corpo, através da comparação entre o eu que se expressa e o

Monstro de Tramoncho.

MINHA COMBINAÇÃO Minha combinação, com o monstro de Tramoncho Tramoncho é a sua origem origem do monstro ele é feio eu também ele se parece com migo eu também (L., 10 anos)

Tal desconforto em relação ao próprio corpo faz com que os pré-

adolescentes se identifiquem com textos de nonsense, como o de L., 10 anos, e

seu Monstro de Tramoncho, e das figuras desproporcionais de Edward Lear, como

já comentei anteriormente. Essa referência às desproporções corporais surge na

representação do Dumbomen, de T., 11 anos:

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A partir da criação da personagem grotesca Dumbomen, que nos remete à

personagem de O homem elefante27, T., 11 anos, fala de diferença, desconforto e

aceitação social através um poema curto, mas rico em significação:

PENSE-REFLITA Pense reflita o Dumbomen tem Sentimento. Os brutos amam. (T., 11 anos)

Já em seu título, T., 11 anos, confere a seu poema um tom de denúncia,

através do uso da forma verbal imperativa, que convida o leitor ao exercício lógico

de justapor Dumbomen aos seres brutos, os seres brutos ao amor e,

conseqüentemente, Dumbomen aos sentimentos que possui, à sua origem

humana. Ao encerrar seu poema com a afirmação consagrada de que “os brutos

também amam”, T., 11 anos, inverte o tom jocoso que apresenta no texto que

acompanha seu desenho e confere humanidade ao Dumbomen. A partir de sua

vivência pré-adolescente de desconforto consigo mesma, de necessidade de

aceitação, T., 11 anos, consegue que o eu que se expressa em seu poema fale do

sentimento universal humano de rejeição/aceitação social em função das

diferenças.

R., 12 anos, optou por criar uma terra imaginária, em vez de uma

personagem. A única paisagem projetada para os pré-adolescentes foi a de Estela

Capón, intitulada “Había una vez un amplio país blanco de papel”, do livro El país

de la geometría, de María Elena Walsh. R., 12 anos, optou, então, por desenhar a

sua ilha imaginária, lugar onde habita o “ser esquisito”:

27 Dirigido por David Lynch e baseado em livro de Sir Frederick Treves e Ashley Montagu, o filme O homem elefante conta a história de John Merrick, um cidadão da Inglaterra vitoriana, que era portador do caso mais grave de neurofibromatose múltipla registrado, tendo 90% do seu corpo deformado. Essa situação fez com que ele passasse toda a sua existência se exibindo em circos de variedades como um monstro.

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Ainda que não tenha sido intenção de R., 12 anos, a representação que ela

faz de seu lugar imaginário permite-nos uma associação com as de paraísos

imaginários, feitas ao longo da história, tais como a gravura anônima da década

de 1560, intitulada “O Reino de Panigon”, reproduzida no livro Cocanha: várias

faces de uma utopia, de Hilário Franco Júnior:

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No Reino de Panigon, cabem todos os prazeres, os sonhos, as

utopias, mesmo as mais absurdas, como se lê em trecho do poema que

acompanha a imagem e leva, também, o mesmo nome:

Creiam, sem que eu precise jurar, Pois esse lugar é milagre da natureza, Que as casas são lá cobertas de pudins Mais perfumados que flor de laranja e murta. Janelas e portas são feitas de grandes bolos. (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 118)

R., 12 anos, cria seu paraíso imaginário a partir de seu desenho e do

diálogo com o poema “Caderno”, do livro Meu material escolar, de Ricardo

Azevedo, Quinteto Editorial, 2000, o que demonstra que, pouco a pouco, os

participantes da oficina vão se exercitando na arte de compor seus textos através

do diálogo com outros, quer escritos, quer visuais. Também faz parte do processo

de composição poética desses pré-adolescentes a apropriação de textos

preexistentes e a elaboração de seu próprio texto a partir deles:

A ILHA Cabem tudo numa ilha, cabem os pássaros e os macacos cabem o céu cheio de estrelas, cabem as cidades e as ruas, cabem as flores do jardim, cabem todos os meus amigos, cabe um enorme coração, cabe um coqueiro cheio de coquinhos, e sobra até um cantinho para mim dormir mais um pouquinho. (R., 12 anos)

O oitavo encontro foi, enfim, o momento em que, desde a percepção, os

pré-adolescentes tiveram presente a palavra escrita. Nesse momento, cada

participante leu silenciosamente os poemas da quinta antologia (ver Apêndice G: Antologias distribuídas durante os encontros), a saber: “O país da Cocanha

holandês”. In: FRANCO Jr. Hilário. Cocanha: várias faces de uma utopia. Cotia:

Ateliê Editorial, 1998. p. 63-67; “Vivo feliz no meu armário”, Azevedo, Ricardo.

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Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005. p.60-62; “Canção do

Exílio”, Gonçalves Dias, In: Bandeira, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros:

poesia da fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 47-48.);

“Passeio nº 6”, Barros, Manoel de. Matéria de poesia. 3ed. Rio de Janeiro: Record,

1999. p. 45. Em seguida, os alunos registraram suas sensações e suas

percepções numa folha de papel, assim como escreveram de qual poema

gostaram mais e por quê.

O texto mais citado em preferência pelos alunos foi “Canção do exílio”, de

Gonçalves Dias, com cinco referências a ele: Eu prefiri o 3. Por que é o poema que me senti feliz, alegre e que morava em um lugar lindo, que ninguem mais mora (eu e minha familia). (C., 11 anos)

Canção do Exílio porque é tocante e envolve as pessoas que escutam da sensação de leveza, liberdade como se você estivese voando dá vontade de morar no lugar e tão maravilhoso só de imaginar quero ir morar lá. (J., 12 anos) Canção do exílio. Porquê fala de um verdadeiro paraíso habitado pelo seu inventor parece ser lindo... (L., 11 anos) Escolheria o poema Canção do Exílio. Porque nesse poema eu me senti como estivesse no paraíso (terra) do poema, onde tudo acontece, tudo de bom. Eu gostei mais desse poema porque me senti mais LIVRE das coisas ruins. (R., 12 anos) Eu escolheria o 3º. Por que o poema esta falando do Brasil que é o pais que eu nasci e também tem uma natureza linda. (V., 13 anos)

Através de suas justificativas para a escolha desse poema, percebemos

que houve certa compreensão, por parte dos alunos, da idealização da terra

descrita pelo eu que se expressa. Em segundo lugar, foram citados em

preferência os poemas “O país da Cocanha holandês”, do século XV e Passeio nº

6, de Manuel de Barros, com três citações cada. Seguem as justificativas para a

escolha de cada um dos poemas:

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- “O país da Cocanha holandês”: Por que ele fala em coisas estranhas dessa vida. (F., 12 anos) Se eu tivesse que escolher um poema eu escolheria: O primeiro porque parece um pais perfeito todos não passavam fome todos eram felizes e tudo era comida (o que eu mais gosto). (I., 11 anos) Eu escolho o 1º porque eu adoro ser liberto e também porque eu gosto disso. (L., 10 anos) O país da Cocanha Holandesa. É bem divertido nunca poderá existir parece uma versão nova de João e Maria. (L., 11 anos)

- “Passeio nº 6”:

Eu iscoli esse poema porque eu acho interesanti tambem com liberdade de fazer as coisas. (A., 12 anos) Eu gostei do último, pois me senti melhor, alegre e me tocou mais. (G., 12 anos) O poema que eu mais gostei foi o último porque eu achei interessante e que o menino (a) está viajando (pensando). Por isso que eu gostei. (Re., 12 anos)

Curiosamente, o único texto da antologia direcionado a um público juvenil, o

poema “Vivo feliz no meu armário”, recebeu apenas uma menção, mas a

justificativa para a sua escolha não foi a referência à sua temática próxima ao

adolescente, ou seja, a tensão entre o mundo real e o inventado pelo eu que se

expressa, mas a criatividade lingüística do autor : “O poema 4 porque nesse

poema eu achei legal como o Ricardo Azevedo usou a imaginação e como tantas

coisas cabem num armário” (K., 11 anos).

A maior incidência de citações para o poema “Canção do Exílio” e a menor

para “Vivo feliz no meu armário”, uma releitura do poema de Gonçalves Dias, pode

indicar que a imagem da terra paradisíaca descrita no poema de Gonçalves Dias

foi mais compreensível aos pré-adolescentes, em virtude de seu caráter mítico,

presente no imaginário de diferentes grupos sociais. A imagem da terra onde

cantam os sabiás aproxima-se das imagens construídas, pela oralidade, de

paraíso perdido. A imagem da terra idílica em “Canção do exílio” retoma o mito do

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paraíso terrestre, da Cocanha. Tal como Menocchio, cuja imagem de paraíso

aproxima-se da Cocanha, os pré-adolescentes participantes da oficina viram em

“Canção do exílio” a representação da imagem de paraíso, de mundo novo,

recorrente em diferentes épocas, nas mais diversas culturas, com feições

distintas, através da oralidade. A Cocanha é o retorno a um passado mítico,

projetado no futuro e “Canção do exílio” aproxima-se do mito do paraíso perdido,

muito mais do que o “armário”, território paradisíaco representado por Ricardo

Azevedo em seu poema.

Após trabalharem com os diferentes poemas da quinta antologia, como os

alunos criaram, então, seus próprios paraísos na terceira etapa do oitavo encontro

(criação)? Os paraísos criados pelos participantes da oficina trouxeram não só

sonhos e medos pessoais, mas também coletivos. Como utopias coletivas,

aparecem desde desejos mais concretos, como, alimentação, até a solidariedade

e a justiça social:

DESEJOS: Era uma vez um lugar lindo que seu nome era “O lindo mundo da imaginação”. La qualquer coisa era posivel, voar, comer muitos e muitos doces. Existe um animal que eu tenho medo, um que corre nas matas, caminha na areia e me busca em camera lenta. Ele tem 2 metros de altura, parese um elefante, grande e elegante, que só eu sei. Mas vamos deixar de bobagem e lembrar das coisas boas que minha mãe me falava. (C., 11 anos) O MEU PAÍS IMAGINÁRIO No meu país Não existe dinheiro, Todos pegam o que querem E quando querem. Todos trabalham só Para ajudar os outros E são todos amigos Niguem fica solitario, Todos unidos em prou de uma causa o Amor. (V., 13 anos)

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Dois poemas se destacaram dos demais pelo manejo com a linguagem,

através da referência, mesmo que inconscientemente, a outros textos não

trabalhados em oficina, ou por apresentarem um eu que se expressa diferenciado

do eu que produz o poema. O primeiro deles é “Meu paraíso”, de J., 12 anos:

MEU PARAÍSO O paraíso que eu quero é mágico Saia a realidade Entre a imaginação Meus sonhos virem realidade E não sejam apenas Café com pão Tudo folhado em ouro Menos o coração Que nesse país não existise violência nem discriminação. (J., 12 anos)

Em “Meu paraíso”, a referência a “café com pão” retoma o poema “Trem de

ferro”, trabalhado em oficina, enquanto o cenário todo folheado a ouro remete-nos

à personagem grega do Rei Midas, cujo dom de transformar tudo o que tocasse

em ouro trouxe-lhe fome e sede. Uma outra história relacionada ao Rei Midas e

registrada por Kury (2001, p. 265) conta sobre o encontro de Midas e Sileno que,

após acordar de seu sono causado por vinho em demasia, contou para o rei, como

lição de sapiência, a história de dois reinos, Eusebés (Reino Piedoso) e Máquimos

(Reino Belicoso). Enquanto a vida em Eusebés era feliz e seus habitantes

longevos e morriam entre gargalhadas, em Máquimos, os habitantes nasciam

armados para combater. Em ambos os reinos o ouro abundava. No paraíso

descrito por J., 12 anos, em seu poema, o ouro não traz tristeza, como trouxe a

Midas e aos habitantes de Máquimos, pois o coração não é feito desse metal. J.,

12 anos, constrói, assim, a imagem de uma terra em que os sentimentos não são

“contaminados” pela ganância, onde a ganância não gera violência, nem

discriminação.

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Já no segundo poema, “Do amor para os amantes”, L., 11 anos, o eu que

se expressa de forma personificada é o próprio amor, que constrói seu mundo

pequeno em cada coração:

DO AMOR PARA OS AMANTES Meu mundo é miniatura Para eu poder manipulá-lo Assim como na prefeitura Poder modificá-lo Quando eu choro Faço cachoeiras E quando espirro Faço goteiras Meu mundo não tem ladrões Pois meu mundo É nos seus corações. (L., 11 anos)

Encerrado o oitavo encontro, o nono foi dedicado à avaliação e o décimo à

preparação do sarau a ser apresentado para todos os colegas no Festival de

Oficinas.

4.2.6 Poesia: porto de chegada

Como encerramento e avaliação das atividades desenvolvidas, retomei o

primeiro encontro, através da solicitação aos alunos para que respondessem às

mesmas perguntas presentes no questionário inicial, assim como escrevessem

novo texto com o título “Minha viagem agora”. Tais questões e textos, as mesmas

do Apêndice C: Questionário e produção Iniciais, estão no Apêndice D:

Questionário e produção finais. Busquei, através da repetição das mesmas

atividades no início e no final da oficina, identificar mudanças nas respostas dos

alunos acerca de alguns aspectos que julguei significativos, tais como as

concepções que eles apresentaram do poema, quer em suas definições, quer

através dos textos finais produzidos.

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As respostas ao questionário inicial estão no capítulo 3 e giraram em torno

de três grupos de concepção acerca do que é um poema: o primeiro apontava o

poema como aquilo que provoca/expressa emoção (3.1), o segundo, como forma

de contato, de comunicação com o outro (3.2) e o terceiro, como produção coletiva

(3.3). No questionário final, as concepções que os pré-adolescentes tiveram do

que seja um poema transitou entre três grupos de definição: um primeiro que

conceituou poema/poesia como instância de expressão de um eu, um segundo

cuja base de definição foram elementos formais e, ainda, um terceiro, junção dos

dois anteriores, cuja caracterização de poema/poesia apontou para a expressão

de um eu, através de um texto com características formais próprias.

São exemplos do primeiro grupo de definições:

Nos poemas o autor expressa os seus sentimentos ou acontecimentos. E nos textos não necessariamente. (G., 12 anos) Poesia é um texto expressivo (texto que expressa o que estamos sentindo como amor, saudade, tristeza, etc. a poesia geralmente se expressa de modo que podemos imaginar cenários ou imagens). (K., 12 anos)

Poemas... nos poemas o poeta viaja sai da realidade, usa palavras profundas... pode até virar criança de novo! (L., 11 anos)

Poemas são coisas que o autor se expressa, eu acho, e já os textos normais são coisas que quase sempre são mentiras, como as lendas (R., 12 anos)

Para mim uma poesia é uma inspiração do poeta que fala sobre várias coisas. Ex.: qualidade da pessoa, onde ela vive, objetos, cores etc. (Re., 12 anos)

Já o segundo grupo apresentou os seguintes exemplos de definições de

poema/poesia:

É um texto que pode ter rimas ou não. (C., 11 anos)

Que ele é dividido em palavras pequenas, na maioria das vezes os poemas rimam e os textos não, e nos poemas tudo parece tão divertido, as palavras se juntam e isso parece uma grande alegria (C., 11 anos)

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É uma coisa que rima. (F., 12 anos)

É uma história, uma frase, um verso que pode rimar ou também não rimar. (G., 12 anos)

Poemas tem que ser no meio da folha e rimam. (I., 11 anos)

Poemas são versos e textos são linhas contínuas com parágrafo às vezes sem sentido. Já poema é angelical e bonito. (J., 12 anos)

Poema tem mais ritmo! É super expressivo e desperta a minha imaginação. (K., 12 anos)

Poesia é tipo um poema só que rima, nem sempre rima, mais é muito legal ouvir coisas que rimam, e até engraçado. (R., 12 anos)

Eu vejo que o poema é uma rima que se faz. Texto já não. Texto já é uma história sem rima. (Re., 12 anos)

É um jeito de se expressar com música e com rima. (V., 13 anos)

É que poema parece música com estrofes e ritimo. (V., 13 anos)

Finalmente, aponto exemplos de conceituações que envolvem tanto o plano

formal quanto o da expressão: Para mim poesia é um tipo de histórias que rimam, e poesia são coisas bonitas e o poeta bota coisas que ele sente. (A., 12 anos) Poemas rimam e os poetas colocam o que eles sentem na hora ou as vezes não, e textos são só histórias. (A., 12 anos)

Poesia é a arte de escrever verso e expressar sentimentos, sensações em palavras com rima ou sem rima mais pode mostrar algo. (J., 12 anos)

Poema tem mais ritmo! É super expressivo e desperta a minha imaginação. (K., 12 anos)

Enquanto, nas respostas ao questionário inicial, os pré-adolescentes que

participaram da oficina consideraram ser poesia a expressão de um eu para

consigo mesmo, ou de um eu para um outro, no questionário final, mesmo que

tenham considerado poesia como instância de expressão de um eu, esse eu

ganhou a feição de eu-criador e não meramente aquele que expressa sentimentos

e sensações. Nas definições dadas pelos alunos sobre poema, não aparece a de

poema enquanto instância de comunicação de um eu para um outro, o que

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poderia nos levar a supor uma aproximação, por parte dos pré-adolescentes de

poemas em que o eu endereça seu poema para si mesmo, poemas eu-eu, como

os classifica Johnson (1982, p.1-3), em seu livro The idea of lyric, a partir de Eliot,

bem como um certo afastamento de poemas em que um cantor endereça (ou

pretende endereçar) o poema a um outro singular ou plural, poemas aos quais

Johnson chama de eu-tu.

Ainda que incipientemente, a definição de poema enquanto instância de

expressão de um eu para consigo mesmo, sem que haja preocupação com a

platéia, com um tu a que se dirija o poema, aproxima-se da concepção que a lírica

moderna tem de poema. Nas conceituações dos pré-adolescentes, surgem

palavras tais como “autor” e “poeta” para designar esse eu, assim como a

expressão “arte de escrever”, atribuída ao fazer poético. Essa aproximação dos

pré-adolescentes em relação a poemas eu-eu pode, assim, ter despertado neles

certa noção de autoria

Os participantes da oficina, embora que de forma tênue, demonstraram

perceber que o fazer poético se afasta do que Mauger (1999) classifica como

literatura de evasão, de divertimento, e assume um compromisso lingüístico,

imaginativo e de conhecimento de si mesmo e do outro, tal como podemos ler nas

definições já mostradas dos participantes da oficina. Ainda que, no final dos

encontros, os pré-adolescentes estudados tenham descoberto um fazer poético

próprio de um eu, como se observa em suas conceituações de poema, apenas L.,

11 anos, apontou que as sensações expressas por esse eu através do poema

podem não ser necessariamente as suas próprias sensações. Diz L., 11 anos: “É

uma forma do poeta se expressar sem dizer os seus sentimentos, contar histórias,

voltar ao passado”. Em sua forma simples de explicar, L., 11 anos, demonstrou

compreender o que Eliot (2006) propôs, em “Tradição e talento individual”, sobre o

poeta como aquele que transcende a mera expressão de sentimentos pessoais,

na direção de sensações partilháveis por todo ser humano.

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Significativas, também, foram as inúmeras referências formais que os pré-

adolescentes fizeram em suas caracterizações de poema. A forma é elemento

constitutivo do poema para os pré-adolescentes estudados, conforme atestam

suas respostas ao questionário final. Ao longo de suas produções escritas, há uma

crescente preocupação com a construção de imagens, com a sonoridade das

palavras e com a divisão do texto em versos e estrofes, o que, de modo algum,

quer dizer que essa tentativa tenha logrado êxito totalmente. Considero que a

simples tentativa em trazer para seus textos essa preocupação estética já

demonstra certo grau de compreensão do poema enquanto forma de criação

artística. Considero, assim, que a atenção dispensada às características formais

pelos pré-adolescentes já representa um passo para que consigam refletir sobre a

importância de observarem esses elementos ao lerem e ao escreverem poemas.

Esse reconhecimento da importância do trabalho com a palavra escrita no

poema faz com que a concepção que os alunos trouxeram de poema no término

da oficina aproxime-se, de certa forma, de Lotman, para quem os signos na arte

não têm um caráter convencional, por isso, apresentam uma interdependência

entre a expressão e o conteúdo (Lotman, 1978, 56). Se, num momento inicial, a

rima é a única marca diferencial no poema, no questionário final, os alunos

apontaram a importância da existência de outros elementos formais, tais como

ritmo e divisão em versos e estrofes, assim como questionaram a necessidade de

haver sempre rima na constituição dos poemas.

No que diz respeito à leitura e à audição de poemas, onze pré-adolescentes

que freqüentaram a oficina declararam que os costumam ler ao responderem à

pergunta 4, ainda que muitos deles tenham mencionado apenas a própria oficina

como instância de leitura. Apenas seis declararam que costumam ouvir poemas.

Uma das mudanças significativas observadas nas respostas aos

questionários foi a referência a poemas de autores, no item 6, em que cada aluno

foi solicitado a escrever um poema de que se lembrasse. Três alunos escreveram,

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nesse item, poemas de sua autoria ou de um outro colega do grupo: C., 11 anos;

F., 12 anos (colocou o texto de L., 10 anos) e L., 10 anos. Nove participantes

escreveram poemas que leram ao longo da oficina, ou em livros tirados na

biblioteca, com respectivos autores ou fontes. Segue a lista de autores citados

pelos alunos: I., 11 anos – Manuel de Barros; J., 12 anos – Castro Alves; K., 11

anos – Lalau; K., 12 anos – Ricardo Silvestrin; L., 11 anos – Mario Quintana; R.,

12 anos – Mario Quintana; Re., 12 anos – João Cláudiio Arendt; T., 11 anos –

Lalau; V., 13 anos – Sol nascente (poema popular em berber). Apenas três

colocaram textos de memória, de autoria desconhecida: A., 12 anos e G., 12 anos.

Enquanto nas respostas ao questionário inicial e nas produções de texto

dos primeiros encontros foi freqüente, nos poemas registrados, quer ouvidos, quer

lidos, quer “criados” pelas crianças, a alusão a poemas de folclore puro, como

quadras, trava-línguas e ditos populares, no questionário final foi quase unânime a

referência a textos de inspiração folclórica e a seus autores. Essa opção dos

alunos participantes da oficina evidencia uma gradual diversificação no universo

de leitura desses pré-adolescentes. Antes próximos ao que Spina (1982) classifica

como poesia primitiva, de caráter coletivo, ligada ao modus vivendi de uma

coletividade, os participantes da oficina vão aos poucos trazendo, para o seu

universo cultural, poemas com um caráter oral menos explícito, como os de

inspiração folclórica que, mesmo conservando traços de poemas de folclore puro,

apresentam marca autoral.

Para analisar o texto final, produzido no nono encontro, retorno às

categorias observadas quando da análise da produção inicial homônima, chamada

“Minha viagem agora”, de modo a verificar até que ponto os pré-adolescentes

estudados apresentaram transformações em seus textos, quer de abordagem

temática, quer de expressão poética. São elas:

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1- Elementos temáticos:

• textos que expressam sonhos coletivos;

• textos que expressam sonhos individuais;

• textos que expressam sensações.

2- Elementos de expressão:

• textos em prosa;

• textos em versos, sem características formais do poema (ou com

poucas) ou em prosa com algum característica formal de poema;

• textos em versos com características formais dos poemas.

Enquanto na produção inicial, dos quatorze textos escritos, seis

apresentaram tematicamente sonhos individuais, dos quatorze finais, apenas

cinco. Em relação aos textos que trouxeram experimentações sensoriais, o

número passou de três, no conjunto da produção inicial para seis no da final. O

aumento do número de textos que exploram sensações é bastante significativo, na

medida em que foi parte da proposta de oficina partir do resgate do corpo, da voz

e da oralidade do poema para chegar à leitura e à tentativa de textos poéticos cujo

vínculo com o poema oral não fosse tão marcado.

No conjunto de poemas que expressaram sensações, observei, também,

que vários deles não se restringiram à expressão de vivências pessoais. Mesmo

que apresentassem a voz de um eu, esse eu transcendeu a mera expressão de

sentimentos pessoais, na direção de sensações partilháveis por todo ser humano,

como observamos nos poemas que se seguem: MINHA VIAGEM AGORA Fui para uma viagem longa e deserta onde só existia eu e as pedras do caminho. Fui comprar uma passagem para a minha viagem Pensei, Pensei e Pensei será que esta viagem vai trazer minha felicidade? (I., 11 anos)

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MINHA VIAGEM AGORA O meu sonho é voar E a minha viagem é agora e o meu sonho vai se realizar vou poder planar no ar numa viagem que é como uma miragem estou vendo paisagens com uma coragem de voar (K., 11 anos) MINHA VIAGEM AGORA Saí da Terra para ir pra Marte ficar sozinho como Sempre.

Sempre fiquei sozinho Então Ficarei normal Lá é vazio Vazio como pensei Pensei certo mas Não é como quero (L., 10 anos) MINHA VIAGEM AGORA Só sei viajar no sonho Então eu vou sonhar Sonhar com a minha viagem no mar Mas o mar é tão... melancólico então vou para o céu Ou melhor... para o espaço Vou descobrir vida em Marte Vou voar para qualquer parte Depois de voltar para a Terra Continuo viajando Viajando como vento Sem ver passar o tempo Voltei a ser feliz Como eu sempre fui Como se nascesse de novo voar é bom mas para voar tem que ter o dom o dom de imaginar fazer o pensamento voar! esse dom todo poeta tem... (L., 11 anos)

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Nos textos de I., 11 anos; K., 11 anos; L., 10 anos e L., 11 anos, surgem

sonhos próprios da humanidade: voar, ser feliz, não se conformar com a solidão e

sonhar, preocupações e vontades existenciais de todos os seres humanos. A

viagem está presente nos textos desses alunos como instância que inicia uma

transformação, assim como em vários contos populares em que o herói vê-se

impelido a deixar sua casa para buscar uma situação diferente da que vive.

O poema de I., 11 anos, aborda a solitária viagem em busca de si mesmo.

É uma viagem “deserta”, “longa”, em que o eu que se expressa vai estar sozinho

com as pedras do caminho. A expressão “pedras do caminho” é uma imagem

cristalizada para representar dificuldades, por esse motivo, o eu que se expressa

traduz a incerteza de sua busca através da pergunta final “será que esta

viagem/vai trazer minha felicidade?”. Não há destino determinado para a viagem

do eu que se expressa no poema de I., 11 anos, o que reforça a idéia de viagem

ao interior de si mesmo.

Diferentemente, o poema de L., 10 anos, apresenta destino determinado

para a viagem empreendida pelo eu que se expressa: Marte. Como no poema de

I., 11 anos, há o encontro com a solidão, através do vazio de Marte, mas essa

solidão, estado em que o eu que se expressa comumente vive, é refutada, e não

buscada, através do verso final “mas não é como quero”. Marte também está

presente no poema de L., 11 anos. Nesse poema, o eu que se expressa sonha

com várias viagens que empreende. Primeiramente, busca o mar, mas desiste,

pois ele lhe traz melancolia; em seguida, busca o espaço; posteriormente, viaja

com o vento para, depois, nascer de novo através do vôo do pensamento e do

fazer poético: “esse dom todo o poeta tem...”, diz L., 11 anos. O vôo como forma

de viajar também está presente no poema de K., 11 anos. Ter coragem é requisito

para esse vôo, para a realização do sonho do eu que se expressa.

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Um outro aspecto importante a ser avaliado no momento final da oficina é a

expressão em linguagem poética. Através da comparação entre as produções

inicial e final, procurei verificar até que ponto os pré-adolescentes evidenciaram

nos seus textos o uso de uma linguagem que se aproximasse da poética. No que

diz respeito aos elementos de expressão poética, se onze alunos escreveram

textos em prosa na produção inicial, esse número caiu para apenas três na final.

Enquanto, no conjunto de textos iniciais, apenas um tentou dar ao seu escrito uma

estrutura de poema, ou seja, centralizou seu texto na página, sem, contudo, dividi-

lo efetivamente em versos, no conjunto final, dois o fizeram. O número de alunos

que conseguiu dar ao seu escrito características formais de poema subiu de dois

na produção inicial para nove na final.

Se, num primeiro momento, predominaram textos em prosa,

gradativamente, nos primeiros escritos dos alunos, surgiu a rima, limite do verso

para a maioria dos pré-adolescentes nos primeiros encontros da oficina. Aos

poucos, esse limite, vinculado ao poema oral, vai cedendo lugar à divisão em

versos que leva em conta não só o ritmo, mas também o limite da página branca,

característico do poema escrito. É o caso K., 12 anos, cujos textos da produção

inicial e final, e de um intermediário, exemplificam de forma bem marcante essa

mudança:

MINHA VIAGEM AGORA (texto inicial) A minha viagem acontece em uma quarta feira é feriadão de quarta, quinta, sexta, sábado e domingo eu vou a paris com 5 amigos - Eduardo, Luísa B., Guilherme, Graziela R. e Mariana. Nós vamos para a Torre Eiffel e passamos a tarde lá no dia seguinte vamos andar com alguns “barcos” (aquelas canoinhas que passam pela cidade) depois vamos ao BUDA’S BAR e ficamos no 2º andar e lá encontramos... O Thierry, o Lucas, o Erick Marmo e o Eminem. Pedimos autógrafos ao Erick Marmo e ele passou a noite conosco mas depois foi embora e o Thierry foi embora com ele. Na sexta pela manhã fomos ao Hawaii, lá encontramos o Mike, o Chester, a banda Reação Cadeia. Obs: Antes de ir embora o Thierry levou um tapa na cara! (K., 12 anos) SE EU FOSSE COR Se eu fosse cor eu se- ria a cor branca. Cor da folha, pois esta é minha escolha.

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Mas se eu quisesse mudar de cor Seria o azul. porque ele é lindo e esse é o seu valor. (K., 12 anos) MINHA VIAGEM AGORA (texto final) Vou fazer uma viagem Uma linda viagem Para conhecer o mundo Este lindo mundo O meu mundo Um mundo sem guerra Mundo sem briga Somente paz e harmonia Onde sempre vemos Um belo e lindo dia Para esta viagem eu não compro passagem e não levo bagagem pois só penso em bobagem Mas isto é verdade pois nesta viagem vou voar pelo céu e pelo mar que é lindo e me faz chorar (K., 12 anos)

No primeiro texto produzido por K., 12 anos, intitulado “Minha viagem

agora”, podemos observar a ausência de pontuação, convenção própria da

escrita. O texto apresenta uma seqüência de fatos relativos à viagem empreendida

pelo sujeito da enunciação, quase um relatório, um roteiro por onde ele passou e

com quem esteve. As referências são sempre a lugares e a personagens reais,

mesmo que o arranjo desses lugares e personagens aconteça de forma inusitada.

O sujeito da enunciação vai de Paris ao BUDA’S BAR (um bar no bairro Cidade

Baixa, no município de Porto Alegre) e, posteriormente, ao Havaí, como num

passe de mágica. Também pode encontrar amigos pessoais (Eduardo, Luísa B.,

Guilherme, Graziela R., Mariana, Thierry e Lucas) e personalidades conhecidas (o

ator Erick Marmo e os músicos Eminem e banda Reação em Cadeia) com o

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mesmo grau de intimidade. Não há nesse primeiro texto de K., 12 anos, nenhum

aspecto que nos faça dizer que se trata de um poema.

Já o segundo texto, uma produção elaborada no terceiro encontro de

oficina, traz a tentativa de divisão das frases em versos, através dos pares de rima

folha/escolha e cor/valor. Nos versos em que as rimas não se fazem presentes, há

certo desequilíbrio nessa divisão, pois é a noção oral de rima como limite final dos

versos que lhes guia a cesura. Em relação ao eu que se expressa nesse poema, é

nítida certa generalização em relação ao primeiro texto. Ele não se refere a fatos e

a personagens existentes, mas a uma sensação do eu frente à possibilidade de se

comparar a uma cor.

Na produção final, o texto de K., 12 anos, assume uma feição bem diferente

daquele escrito no primeiro encontro. A viagem empreendida pelo eu que se

expressa já não se parece com uma viagem real, mas com a construção de um

mundo utópico em que há sempre paz e harmonia. Também a distribuição em

versos está bem mais harmônica e ritmada. Ainda que conte com o recurso da

rima para dividir seus versos, K., 12 anos, consegue alternar esse recurso, com a

harmonização de versos com números de sílabas diferentes, como se observa na

seguinte estrofe:

Mas isto é verdade pois nesta viagem vou voar pelo céu e pelo mar que é lindo e me faz chorar (K., 12 anos)

Essa estrofe inicia-se com dois versos de cinco sílabas (“Mas isto é

verdade/ pois nesta viagem”). Em seguida, seguem-se versos de duas, três e

quatro sílabas, respectivamente: “vou voar/ pelo céu/ e pelo mar”. Essa gradação

do número de sílabas dos versos (duas, três e quatro sílabas) confere ao poema a

idéia de aumento de velocidade, de impulso necessário ao ato de voar. Por fim, a

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estrofe apresenta um pequeno verso de duas sílabas (“que é lindo”), seguido de

outro de cinco (“e me faz chorar”). Essa assimetria traz para o poema a idéia de

liquidez, de continuidade do choro.

Quanto às rimas, ela está presente em apenas três versos, de forma

alternada e consoante: “voar”, “mar”, “chorar”. Através da rima, aproximam-se os

lugares imaginários visitados pelo eu que se expressa e a emoção por ele vivida

em sua viagem. Ainda outra aproximação sonora chama-nos a atenção: as

palavras “verdade” e “viagem”. Na estrofe anterior “viagem” foi associada a

palavras com rima consoante (“passagem”, “bagagem”, “bobagem”). Nessa estrofe

analisada, constitui rima toante com “verdade”, o que provoca no leitor certo

estranhamento em relação ao que era esperado (mais uma rima consoante).

Mesmo que tenham sido produzidas intuitivamente, tais variações rítmicas,

bem como associações rímicas, presentes no texto final de K., 12 anos, podem

ter-se desencadeado a partir das atividades em que o resgate do corpo e da

sensorialidade foi feito: o ouvir, o ver e o movimentar-se fazem parte do processo

de percepção do poema enquanto tal. É preciso perceber o poema para melhor o

compreender e o produzir.

Ainda que os textos da produção final, intitulada “Minha viagem agora”, bem

como quaisquer outros produzidos ao longo das oficinas, estejam longe de serem

atribuídos a poetas, profissionais da palavra, pude observar neles mudanças que

evidenciam certo grau de compreensão do que vem a ser a linguagem poética.

Finalmente, um momento da oficina foi importante para a consolidação do

trabalho feito ao longo dos demais encontros: a organização do sarau de poemas

a ser apresentado no Festival de Oficinas.

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4.2.7 Festival de oficinas

Terminados os encontros planejados, os pré-adolescentes prepararam um

sarau de poemas para a apresentação no Festival de Oficinas. A idéia de realizar

um sarau foi pouco a pouco elaborada ao longo dos encontros, através das muitas

situações de leitura de poemas em voz alta por parte dos alunos. Dentre esses

momentos, um deles foi bastante significativo. No oitavo encontro, durante o

momento da criação, o grupo recebeu a visita de professores-visitantes, oriundos

de outro município. Ao serem solicitados a que falassem um pouco sobre como

era o trabalho desenvolvido por eles ao longo da oficina, os pré-adolescentes

resolveram ler em voz alta poemas de sua autoria, assim como outros das

antologias distribuídas, conforme podemos ver no registro fotográfico do encontro:

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Após esse contato com os professores-visitantes, os pré-adolescentes

decidiram, então, apresentar um sarau de poemas escritos por eles mesmos, no

Festival de Oficinas, evento dedicado à socialização das aprendizagens entre os

grupos. Não foi solicitado que os alunos justificassem suas escolhas de poemas

para integrarem a antologia apresentada no festival, mas, curiosamente, os

poemas escolhidos foram os escritos durante os últimos encontros, a maioria

deles com a temática “Meu país imaginário”.

Como continuidade à apresentação do sarau, o grupo teve um tempo

dedicado às perguntas dos alunos espectadores, como podemos observar na

seqüência de registros fotográficos:

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Através do sarau, os participantes da oficina puderam ver seus poemas em

estado de performance, bem como socializar os achados feitos nos encontros com

os demais colegas, conforme propõe Jolibert (1995, p. 59). Zumthor considera a

performance como o momento em que a mensagem poética é simultaneamente

transmitida e recebida: locutor e ouvinte encontram-se juntos para a partilha da

mensagem poética, por esse motivo, segundo o autor, o momento da performance

é o momento crucial na existência do poema. Diz Zumthor:

A performance constitui o momento crucial de uma série de operações logicamente (mas nem sempre de fato) distintas. Enumero cinco delas, que são as fases, por assim dizer, da existência do poema: 1. produção, 2. transmissão, 3. conservação, 4. conservação, 5. em geral) repetição. A performance abrange as fases 2 e 3, em caso de improvisação, 1,2 e 3. (ZUMTHOR, 1997, p. 33-34)

Dessa forma, segundo Zumthor, os pré-adolescentes participantes da

oficina, tendo passado pelo processo de produção de textos durante os encontros,

através da performance feita no sarau, puderam exercer a transmissão de seus

poemas para os transformar em obras. Para Zumthor (1997, p. 83), obra é tudo o

que é comunicado poeticamente num dado momento: textos, sonoridades, ritmos,

elementos visuais, enfim, todos os fatores da performance. Já o poema é o texto e

a melodia da obra, sem levar em conta os outros fatores, enquanto o texto é a

seqüência lingüística percebida auditivamente.

Ao partir de corpo e da voz, a oficina Uma viagem através da poesia

gradativamente passou ao poema escrito para, em seu momento final, o da

apresentação no Festival de Oficinas, retornar ao oral, através da performance,

por escolha dos próprios alunos. Que inferências podem ser feitas a partir desse

fato e de todas as reflexões por mim aqui feitas ao longo dos capítulos anteriores?

Em que porto seguro, afinal, chegamos ao fim dessa viagem? Surgem a algumas

conclusões, nenhuma definitiva, pois se realmente podem existir portos seguros,

nenhum deles é o destino derradeiro de um bom viajante...

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para tecer essas considerações finais, gostaria de retomar as

categorizações que Johnson (1982, p. 1-3) faz, a partir de T.S. Eliot, sobretudo as

que tratam de poemas eu-tu e de poemas eu-eu, a que Eliot chama de

meditativos. Em relação aos poemas eu-tu, esses trazem a marca de uma voz

exterior, do contato com uma platéia que a ouve, a quem os poemas são

endereçados. Por esse motivo, mantêm o vínculo com a oralidade e com as

representações corporais, na concepção de Zumthor, com a performance. De

certa forma, a noção que as crianças trazem para a escola, bem como a que

trouxeram os pré-adolescentes estudados antes de participarem da oficina,

aproxima-se desse modelo eu-tu, proposto por Johnson, e dos poemas de folclore

puro, por trazerem o vínculo com o corpo que se move, no caso das cantigas de

roda, e com a voz que soa/canta, no caso das parlendas e das cantigas de ninar.

No que tange aos poemas eu-eu, esses prescindem de um endereçamento

a uma platéia. Podem, assim, estar desvinculados de uma realização vocal e

vinculados ao universo da escrita. Em virtude de estarem separados do universo

da oralidade e inseridos numa perspectiva textualista, tais poemas podem ser

retomados pelo leitor tantas vezes quantas forem necessárias. Não é preciso que

sejam compreendidos de imediato. No caso da lírica moderna, esse vínculo com a

palavra escrita é bastante importante, em virtude da complexidade que tal lírica

apresenta, em relação aos poemas de folclore puro. Ao ingressarem na escola,

crianças e pré-adolescentes travam contato com um tipo de poema escrito, muitas

vezes de caráter autoral que, de certa forma, vai de encontro à concepção oral

que trazem de poema.

Na medida em que a lírica moderna caracteriza-se por ser textual, veiculada

pela palavra escrita e mais hermética, faz-se necessário que, muitas vezes, o

leitor de tal produção poética, antes de compreendê-la, esteja preparado para

percebê-la (Friedrich, 1978, p. 182). Nesse sentido, faz-se necessário, para o leitor

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da lírica moderna, o resgate das emoções cotidianas, trabalhadas no interior do

poema e a transformação do sujeito-poético num sujeito coletivo, anônimo (Eliot,

1920, cap. II). Assim, é importante que, na escola, haja o resgate da perspectiva

não textualista dos poemas, com a finalidade de promover a aproximação desses

alunos que trazem concepções de poema vinculadas ao oral com o universo do

poema escrito. No caso dos pré-adolescentes estudados, o resgate de poemas

eu-tu foi importante como uma pré-atitude de leitura de poemas autorais. Perceber

o poema oral para, gradativamente, inserirem-se no universo do poema escrito foi

um caminho frutífero para os participantes da oficina. Tal como os gregos da

época da scriptio continua, os pré-adolescentes estudados partiram da atitude de

colocar a voz e o corpo à disposição do escrito em direção à leitura silenciosa,

bem como passaram do poema de folclore puro para o de autoria. Foi

fundamental, dentro de cada encontro com os alunos, o momento da percepção.

Não pretendo entrar em juízo de valor no que diz respeito à diferenciação

poema oral/poema escrito, poema de folclore puro/poema autoral, pois, embora

tenham características distintas, possuem riquezas próprias que me fazem crer na

importância de todos nas atividades desenvolvidas em sala de aula. A escola deve

ser cenário para o trabalho e a vivência de poemas, quer de folclore puro, quer de

autoria. No caso dos pré-adolescentes estudados foi de significativa importância o

contato com poemas de inspiração folclórica, pois, mesmo sendo autorais e

compostos para a escrita, trazem marcas dos poemas de folclore puro. É comum,

na literatura dita infantil e juvenil, que muitos autores busquem nos poemas de

folclore puro inspiração para o seu criar. Em virtude dessa dupla vinculação, com

o poema de folclore puro e com o de autoria, os poemas de inspiração folclórica,

por um lado, aproximam-se da concepção oral que muitos dos alunos estudados

trazem para a escola, assim como servem de iniciação ao universo do poema

autoral.

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Em relação aos pré-adolescentes participantes da oficina, o contato com

diferentes tipos de poemas, bem como o resgate da voz e do corpo, antes que

trabalhassem com o poema escrito, proporcionou o despertar de experiências de

memória, quer individuais, quer coletivas, bem como a recuperação de vivências

arcaicas (Perroti, 1990, p. 26; Aguiar, 1999, p. 252). Tal resgate foi importante,

imprescindível até, para a criação de poemas, pois os textos poéticos, em função

do vínculo que trazem entre som e significado, conquistam sentidos e emoções,

antes de chegarem à razão (Bordini, 2003, p. 70).

No que diz respeito à estrutura do poema, os participantes da oficina, em

suas produções finais, conseguiram, em sua maioria, apresentar a noção de verso

enquanto limite visual de cada linha do poema. Essa noção foi para eles mais fácil

de ser percebida através dos poemas de folclore puro, em virtude das rimas e do

isomorfismo dos versos que tais poemas apresentam. Entretanto, em seus

momentos de criação, tais alunos não conseguiram esboçam qualquer

compreensão das relações entre ritmo e semântica no poema. Pude constatar

que, apesar de reconhecerem o limite visual de um verso, os alunos participantes

da oficina demonstraram não perceber o ritmo enquanto elemento gerador de

sentido. Contudo, através dos momentos de percepção da oficina, eles puderam

vivenciar auditivamente, e através de seus próprios corpos, com palmas e

diferentes marcações rítmicas, formas pelas quais o ritmo pode imprimir

significado. Foi o que pude observar na atividade com o poema “Trem de ferro”, de

Manuel Bandeira, cujos versos “Café com pão”, aproximam-se ritmicamente do

andar de um trem. Mais uma vez pude constatar que o resgate do corpo e da

vocalização do poema é essencial para a leitura e a produção de poesia,

principalmente no que diz respeito a conscientização das relações entre ritmo e

significado..

Quanto à produção escrita dos pré-adolescentes estudados, no que tange à

qualidade poética, ela não se restringiu ao mero jogo sonoro de palavras. Aqueles

que freqüentaram os encontros participaram (ou tentaram participar) do jogo de

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descentramento de seus próprios eus, através da construção de textos que

expressassem utopias coletivas, como a criação de seus paraísos imaginários. Ao

participarem do gradativo jogo de descentramento proporcionado pela oficina, os

pré-adolescentes puderam experimentar uma das funções da poesia, segundo

Georges Jean: a de promover a organização do olhar que cada pré-adolescente

lança sobre si mesmo (Jean, 1990, p. 79). A partir dessa emoção pessoal e da

ampliação do olhar para diferentes vivências e sensações, cada participante da

oficina pôde rumar em direção a um olhar representativo do mundo que o rodeia

(Eliot, 2006).

Os textos que os participantes da oficina desenvolveram sobre suas terras

imaginárias destacam-se nesse sentido: através deles, houve a tentativa de

expressar, por meio da voz de um eu, as utopias partilháveis por um grupo de

indivíduos e, posteriormente, por seres humanos em geral. Claro está que não foi

intenção da oficina formar poetas, muito menos fazer com que os participantes

escrevessem poemas que se aproximassem da lírica moderna, mas promover

certo grau de descentramento necessário à leitura de poemas autorais, a partir de

vivências corporais, do resgate do cotidiano e da voz do poema, em direção a uma

vivência escrita que proporcionasse aos pré-adolescentes a expressão de

impressões e experiências importantes para o ser humano em geral.

Em relação à leitura de poesia, se, para os pré-adolescentes estudados, ela

antes representava uma forma de relação consigo mesmo e de evasão, como

descrito na página 83 desse trabalho, após as atividades desenvolvidas, está

presente, na produção escrita da maioria dos participantes, não só a busca de

expressão individual, mas, de certa forma, coletiva, através também das

construções utópicas de suas terras imaginárias.

A partir das experiências emocionais, de sentimentos universais, como

amor, solidão, alegria, tristeza, vida, morte, freqüentes nos textos de folclore puro,

cada pré-adolescente teve, por meio da poesia, a possibilidade de ampliar sua

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visão sobre si mesmo, através da inserção no universo das utopias coletivas, das

necessidades sociais, bem como das aspirações do ser humano. No processo de

leitura e de produção de poemas, é preciso, antes, partir de e acerca de si mesmo,

de vivências próprias e próximas, como nos encontros Poesia: porto de mim mesmo e Poesia: porto de quem mais?, para reconhecer-se enquanto

leitor/criador, a partir do outro (Poesia: portos em outros lugares). É preciso

reconhecer-se enquanto leitor/produtor de poemas, primeiramente em suas

vivências arcaicas, para, posteriormente, reconhecer-se no outro. Isso só é

possível através de vivências corporais e do resgate dessas vivências na

veiculação do poema, também através da performance, como ocorreu na oficina

Uma viagem através da poesia.

A partir desse gradual descentramento vivido, cada participante da oficina

pôde experimentar o que Paes (1996, p. 27) considera como o principal objetivo

da poesia, que é mostrar a novidade da vida e do mundo, atiçar a imaginação,

libertar da rotina, fazer sentir o significado dos seres e das coisas. Através de seu

“porto de partida”, de suas próprias vivências e emoções, cada pré-adolescente

pôde empreender uma viagem rumo à construção de novos desafios, de novas

visões de mundo, uma “viagem estrelada”, título do encontro final da oficina, que

alude ao poema-livro de Ricardo Azevedo28: VIAGEM ESTRELADA Vou abrir minha janela, vou subir pelas paredes Vou correr no fio elétrico, pegar carona com as nuvens Vou pular de galho em galho, escalar sete montanhas Atravessar a floresta, no meio da noite escura Planejar a minha rota, desenhar o meu caminho Descobrir o meu destino, no fundo do coração Depois vou seguir em frente, na direção do horizonte Companheiro da alegria. do prazer e da esperança Levando na mão direita a força do meu calor E na outra, com cuidado, um bocadinho de amor Vou mais depressa que o tempo, vou varando a madrugada Não posso perder um dia nesta viagem estrelada. (AZEVEDO, 1985)

28 O poema Viagem estrelada, título de um pequeno livro de Ricardo Azevedo, foi posteriormente revisto e inserido pelo autor no livro Dezenove poemas desengonçados, Editora Ática. Optei por citar no corpo desse trabalho a versão que foi primeiramente publicada.

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Destaco um outro elemento significativo no que diz respeito ao gradual

caminho empreendido na oficina, que vai do poema oral, de folclore puro, para o

autoral. O poema oral, para ser veiculado, segundo Zumthor (1997, p. 33-34),

precisa passar pelas etapas da produção, da transmissão, da recepção, da

conservação e da repetição, e, por isso, estão presentes no momento da

performance, ao mesmo tempo, voz, poema e platéia. Esse contato entre voz e

ouvido proporciona a interação simultânea entre aquele que vocaliza o poema e

aquele que o ouve. Essa interação é importante, na medida em que promove a

circulação e a conservação do poema oral. O caráter agregador do poema oral,

nos encontros de oficina, facilitou a troca de aprendizagens entre aqueles que dela

participaram.

Acerca da importância da interação entre os participantes da oficina,

através do resgate do corpo e da voz, cabe registrar que, para Vygostsky (1991, p.

27-33), é através do contato com o outro que se dá a aprendizagem. A

vocalização dos poemas foi uma instância de interação entre os pré-adolescentes

estudados, aos poucos substituída pelo poema lido silenciosamente por todos.

Assim, conforme os encontros foram-se encaminhando para a abordagem do

poema escrito, cada participante da oficina atuou como mediador de leitura para

os demais. Dessa forma, a interação através da voz e do corpo proporcionou a

possibilidade de troca de percepções e de idéias, bem como a ampliação de

leituras. Sobre as leituras literárias, diz Mauger:

As leituras literárias permitem, de uma parte, fazer trabalhar, ensaiar ficticiamente os esquemas oriundos da experiência do mundo real, para validá-los, confortar ou, ao inverso, modificar, colocá-los à prova do mundo do texto e, em definitivo, “se fazer uma opinião”. Elas induzem, de outra parte, a aquisição de novos esquemas de interpretação e ação (...). (MAUGER, 1999, p. 393-424)

Cabe nesse momento tecer uma consideração que pode servir para futuras

investigações: na medida em que cada pré-adolescente foi mediador de leitura

para seus colegas, conforme os textos lidos e discutidos vão-se tornando mais

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complexos, torna-se necessária a mediação também do adulto. De acordo com

Hauser, quanto mais complexo o texto ou menos entendidos ou receptores, mais

necessária a mediação de professores, diretores, intérpretes e críticos.

Sociologicamente, uma obra não está terminada tal qual sai da mão do artista,

mas quando se efetua a recepção. Conforme Hauser, por mais espontânea e

irresistivelmente que se comunique o artista, ele muitas vezes necessita

intérpretes e intermediários para que haja o entendimento e a apreciação

adequados da obra. (Hauser, 1977, p. 590).

A partir da proposta que faço de abordagem do poema através do resgate

do corpo e da voz, para ser mediador da leitura e da escrita de poemas na escola,

os educadores precisam, também eles, vivenciar o poema em sua corporalidade,

em sua vocalização. Durante um dos encontros da oficina, a classe foi visitada por

duas estagiárias do Instituto de Letras da UFRGS, que não só realizaram

observações, mas também participaram das atividades de oficina, executando as

mesmas tarefas que os alunos, lendo e produzindo poemas. Se, para ser

mediador de leitura, os profissionais vinculados a essa tarefa têm de ser

primeiramente leitores, para mediar a escrita, eles precisam também vivenciá-la.

Por isso, precisamos conhecer de que forma os cursos de formação de

mediadores, dentre eles as Licenciaturas em Letras, vêem a leitura e a produção

de poemas em sala de aula e de que forma preparam seus alunos para essa

tarefa. É muito comum nos cursos de Artes Visuais, Dramáticas e Musicais, que

os estudantes exerçam de fato atividades vinculadas a tais áreas, como

exposições, peças teatrais, recitais ou shows. Isso, entretanto, é muito raro nos

cursos que formam profissionais para o trabalho com leitura e escrita. Pouco ou

nada há de incentivo à escrita literária desses futuros profissionais, muito menos

no que diz respeito à criação poética.

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A produção de poemas une criador e leitor (Jean, 1990, p. 130). Não é, e

nem deve ser, intenção da escola, em suas diferentes instâncias, formar poetas,

mas proporcionar a experiência de leitura e escrita, de recepção e de recriação de

poemas. Através da recepção e da produção de poemas, quer através da voz,

quer da escrita, a oficina Uma viagem através da poesia constituiu-se, para seus

participantes, assim como para as estagiárias presentes no encontro, em um

“lugar-poesia” (Jolibert, 1995, p. 45-53).

Conforme nos advertem Jean (1989) e Jolibert (1995), os momentos de

contato com poemas devem ser ampliados para toda a escola e não se

restringirem a momentos isolados. A escola toda deve ser “escola da poesia”,

como propõe Georges Jean (1989) e “lugar-poesia”, de acordo com Jolibert

(1995). A oficina Uma viagem através da poesia, não obstante a sua curta

duração, foi desencadeadora de um processo de leitura e de produção de poemas

com base em etapas (percepção, discussão, criação) que podem e devem ser

desenvolvidas em outros momentos escolares e com diferentes tipos de poemas.

Tal proposta teve por base o resgate das emoções sensoriais (percepção),

presentes no fazer poético, para, em momento posterior, despertar a leitura de

poesia e refletir sobre essas emoções (discussão), como forma de despertar a

criação de poemas (produção). Muito ainda há para ser feito no que diz respeito

ao trabalho com o poema em sala de aula, principalmente em relação à produção

de poemas cujas características se aproximem da lírica moderna. Pretendi, com a

oficina Uma viagem através da poesia, propor uma das alternativas de

aproximação entre pré-adolescentes e a leitura e a produção de poemas. Essa

alternativa talvez seja inicial e se aproxime das oficinas dos T.A.I. (Talleres de

Trampolín Afectivo e Imaginário) propostos por Jolibert (1995), cuja finalidade

principal é despertar o imaginário, suscitar emoções e provocar imagens.

Os alunos participantes da oficina tiveram suas emoções e seu imaginário

despertados pelas vivências sensoriais por que passaram ao longo dos encontros.

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Cabe, ainda, em outros momentos de aprendizagem que não as oficinas, dar

continuidade ao processo de recepção e de produção de poemas, principalmente

no que diz respeito aos aspectos formais da linguagem poética.

Dessa forma, entendo que foi possível, através do resgate da oralidade e

da corporalidade, promover uma aproximação inicial entre os pré-adolescentes

estudados e a leitura e a produção de poemas. Nesse sentido, foi essencial o

contato com poemas de folclore puro e de inspiração folclórica, rumo à leitura de

poemas de autoria. Cabe, a partir dessa experiência, buscar formas pelas quais o

poema possa ser lido, produzido e discutido em outras instâncias dentro da

escola.

Assim como no poema “O menino poeta”, de Henriqueta Lisboa, a escola

deve buscar, a partir de seus alunos, um olhar poético. Deve, antes de formar

poetas, desenvolver esse olhar entre alunos, professores e comunidade escolar

em geral. O contato com elementos que promovam a percepção sensorial do

poema e com o poema falado pode despertar esse primeiro encontro efetivo com

a poesia. Assim como na oficina Uma viagem através da poesia, a escola deve

tentar ver o poema não como uma tipologia de texto a ser inserida no contexto de

sala de aula, mas deve ela mesma, escola, ser uma escola da poesia, como

propôs Georges Jean, uma escola de escuta de diferentes vozes, de diferentes

sonoridades, assim como uma escola da escrita de diferentes formas e de

diferentes vivências humanas, culturais e artísticas.

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Apêndice A:

Programação da oficina

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Programa da oficina “Uma viagem através da poesia” Oficineira: Profª Gláucia Regina Raposo de Souza Duração: dez encontros de aproximadamente uma hora e meia Público alvo: crianças do Projeto Amora I e II (CAp UFRGS) – 5ª e 6ª séries Primeiro encontro: Poesia: porto de partida.

• Apresentação da oficina e aplicação de proposta de produção de poema a ser desenvolvida pelos participantes. Essa produção será repetida ao final da oficina e comparada pela pesquisadora.

Segundo encontro: Poesia: porto de mim mesmo.

• Atividades cuja temática gira em torno do próprio nome dos participantes.

Terceiro encontro: Poesia: porto de quem mais?

• Atividades que giram em torno de objetos e seres que estão à nossa volta.

Quarto encontro: Poesia: porto de quem mais?

• Atividades que giram em torno de objetos e seres que estão à nossa volta.

Quinto encontro: Poesia: portos em outros lugares.

• Atividades com poemas de diferentes épocas e regiões, cuja temática pode abordar terras distantes.

Sexto encontro: Poesia: portos em outros lugares.

• Atividades com poemas de diferentes épocas e regiões, cuja temática pode abordar terras distantes.

Sétimo encontro: Poesia: uma viagem estrelada.

• Atividades com poemas de terras e de seres imaginários. Oitavo encontro: Poesia: uma viagem estrelada.

• Atividades com poemas de terras e de seres imaginários. Nono encontro: Poesia: porto de chegada

• Avaliação dos encontros das oficinas e nova aplicação da proposta de produção de poema desenvolvida no primeiro encontro.

Décimo encontro:

• Preparação de apresentação para o Festival de Oficinas.

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Apêndice B:

Atividades desenvolvidas passo a passo

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Primeiro encontro: Poesia: porto de partida.

• Objetivo geral: Apresentar a oficina e os participantes dela. Aplicar questionário inicial e proposta de produção de poema a ser desenvolvida pelos participantes.

• Primeiro momento (percepção): Apresentação dos participantes e da oficineira através da cantiga de roda “A canoa virou”.

• Segundo momento (discussão): Explicação acerca do trabalho a ser desenvolvido ao longo da oficina. Conversa sobre o que cada um acha que é poesia.

• Terceiro momento (criação): Após ouvir cada um dos participantes da oficina, a oficineira convidará o grupo a responder a um questionário que deverá ser repetido no último encontro. Em seguida, cada um deverá produzir um poema com o título de “Minha viagem agora”. Como música de fundo, enquanto escrevem, os alunos escutarão à música “Cantiga de Partida”, do livro Cantigas de ninar vento, de Gláucia de Souza, Cristina Biazetto e Jorge Herrmann, Kalligraphos, 2004.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Segundo encontro: Poesia: porto de mim mesmo.

• Objetivo geral: Desenvolver atividades cuja temática gire em torno do próprio nome dos participantes.

• Primeiro momento (percepção): Nesse primeiro momento, será solicitado a cada participante que faça a apresentação de seu nome de uma forma sonora: cantada, ritmada, com modulações de voz ou acompanhamento de instrumentos. A sonoridade escolhida deve, de certa forma, destacar alguma característica do participante. Conforme cada participante for apresentando sonoramente seu nome, os demais tentarão adivinhar a característica representada. Em seguida, numa folha, cada participante deverá acompanhar seu nome de palavras que lhe soem parecidas.

• Segundo momento (discussão): Após, a oficineira apresentará alguns textos cujas temáticas são antropônimos: São alguns exemplos: GRAÇA Graça sem conhecer Graça Perguntou a Graça Qual a sua graça. Graça com graça Respondeu para Graça Que a sua graça Era a mesma Graça de Graça. As duas Graças Deram muitas gargalhadas engraçadas. Que graça! (NEVES, André. Poesias dão nomes ou nomes dão poesias? São Paulo: Ave Maria, 2001. p. 15) PRIMAVERA Rosa reparou na palavra primavera. Viu ave, viu ímã e prima. Leu rima de era e Vera. Viu mar e Mara colhendo pêra. Mas Rosa não colheu flores na palavra primavera! (QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Diários de classe. São Paulo: Moderna, 1993. p. 43)

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Dando seguimento à leitura dos poemas, o grupo discutirá sobre as semelhanças e diferenças existentes entre ambos.

• Terceiro momento (criação): A partir da leitura e discussão dos textos, cada participante deverá criar um poema com seu próprio nome, que serão colocados em um cordel para a leitura de todos os participantes da oficina. Enquanto escrevem, os participantes ouvirão a música “O Brasil”, do CD Os Dias de Madredeus, do conjunto homônimo. Para esta atividade, serão disponibilizados para manuseio e leitura os seguintes livros/poemas: AZEVEDO, Ricardo. Ela nada o nada, eu invento no vento. São Paulo: Melhoramentos, 1991. CAPPARELLI, Sérgio. “Entro ou não entro”. In: 111 poemas para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2003. p.69. ________. “Na minha pele”. In: 111 poemas para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 68. ________. “As sardas de Dora”. In: 111 poemas para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 50. ________. “Vovô Sapo”. In: 111 poemas para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 51. CIÇA. O livro dos trava-línguas. 17 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FURNARI, Eva. Travadinhas. São Paulo: Moderna, 2003. LALAU. Quem é quem. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. NEVES, André. Poesias dão nomes ou nomes dão poesias? São Paulo: Ave Maria, 2001. PESSOA, Fernando e LAGO, Angela. Pedacinhos de Pessoa. Belo Horizonte: RHJ, 1996. QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Diários de classe. São Paulo: Moderna, 1993. VENEZA, Maurício. Embola, enrola e rola. São Paulo: Atual, 2003.

Cada participante deverá escolher um dos poemas dos livros indicados para o terceiro encontro.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Terceiro encontro: Poesia: porto de quem mais?

• Objetivo geral: Desenvolver atividades que girem em torno de objetos e de seres que estão à nossa volta.

• Primeiro momento (percepção): Jogo “Se eu fosse...”. Nesse momento, os participantes deverão imaginar como seriam se fossem transformados em um objeto ou em um animal. Em seguida, representarão para os colegas como agiriam, através de ações e sons para que os colegas adivinhem qual o objeto ou o animal representado.

• Segundo momento (discussão): Em seguida, cada participante fará leitura em voz alta dos poemas escolhidos na semana anterior, bem como de alguns poemas da segunda antologia: “Flor de maravilha” e “Rosa amarela” (Alegria, alegria: as mais belas canções de nossa infância, Editora Leitura) e “Pintou uma rosa no pedaço” (de Sérgio Napp, Delicadezas do espanto, Saraiva, 2004). Cada participante deverá descobrir semelhanças e diferenças entre cada poema.

• Terceiro momento (criação) Cada participante deverá escrever poemas a partir da proposta “Se eu fosse cor”, enquanto ouvem a música “A andorinha”, do CD Os dias de Madredeus, do conjunto homônimo. Observação: Em casa, os alunos deverão pesquisar trava-línguas para desafio de trava-línguas no quarto encontro.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Quarto encontro: Poesia: porto de quem mais?

• Objetivo geral: Desenvolver atividades que girem em torno de objetos e de seres que estão à nossa volta.

• Primeiro momento (percepção): Desafio de trava-línguas trazidos pelos alunos. Após serem divididos em dois grupos, cada participante escolherá um adversário para lhe propor um trava-língua. Em seguida, a oficineira apresentará os demais poemas da segunda antologia: “Pombinha” (Alegria, alegria: as mais belas canções de nossa infância, Editora Leitura), “Nem o sábio sabe” (de Fernado Paixão, Dia brinquedo, Ática, 2004), “Quero-quero” (de Lalau, Fora da gaiola, Companhia das Letrinhas, 1997), “Saudade” (de Leo Cunha, Poemas avoados, Saraiva, 2004), “Eu vi o sol” (Alegria, alegria: as mais belas canções de nossa infância, Editora Leitura), “O mendigo e a lua”, de Leo Cunha, Cantigamente, Ediouro, 2001), “A menina na janela”, de Sérgio Capparelli, restos de arco-íris, L&PM, 1985), “Cantiga de lua ontem” (de Gláucia de Souza, Cantigas de ninar vento, Kalligraphos, 2004), “Caderno” (de Ricardo Azevedo, Meu material escolar, Quinteto Editorial, 2000) e “O pente” (de Lalau, Girassóis, Companhia das Letrinhas, 1985).

• Segundo momento (discussão): Após se desafiarem através dos trava-línguas e de ouvirem os poemas da segunda antologia, cada participante deverá levantar semelhanças e diferenças entre ambos os grupos: o de trava-línguas e o de poemas. Durante a discussão, a oficineira proporá questões tais como: Podemos chamar ambos os grupos de poemas? Por quê? Em que ambos os grupos se parecem? Em que diferem? Ao serem escritos no papel, como é a forma de cada texto de cada grupo?

• Terceiro momento (criação): Cada participante deverá escrever poemas a partir da proposta “Se eu fosse animal/ flor/ sol/ lua/ mar/ objeto”. Enquanto escrevem, os alunos escutarão a música “As montanhas”, do CD Os dias de Madredeus, do grupo homônimo.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Quinto encontro: Poesia: portos em outros lugares. (Encontro preparatório)

• Objetivo geral: Desenvolver atividades que ressaltem o ritmo nos poemas, a partir de poemas cuja temática indique o assunto “viagem”.

• Primeiro momento (percepção): O grupo deverá montar um jogral com a parlenda “Um dois, feijão com arroz...” e versos do poema “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira. O ritmo das atividades será marcado por palmas e chocalhos feitos de latas. Uma parte do grupo falará a parlenda, enquanto os demais se dividirão entre os trechos de Manuel Bandeira “Café com pão”, “Virgem Maria que foi isso maquinista” e “muita pressa”.

• Segundo momento (discussão): Após o jogral, a oficineira distribuirá a terceira antologia, com os textos escritos tanto da parlenda como do poema de Manuel Bandeira. Os participantes discutirão semelhanças e diferenças entre ambos os textos, observando o ritmo que cada um tem.

• Terceiro momento (criação): Os participantes deverão produzir poemas de tema livre, enquanto ouvem a música “O trenzinho do caipira”, de Villa Lobos, do CD Trem caipira, de Egberto Gismonti.

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Sexto encontro: Poesia: portos em outros lugares.

• Objetivo geral: Desenvolver atividades com poemas de diferentes épocas e regiões.

• Primeiro momento (percepção): Os participantes farão a audição de diferentes canções, em línguas estrangeiras. Após a audição de cada canção, deverão registrar suas sensações e suas percepções numa folha de papel. Serão ouvidas as canções: “Nonazanina ore kuá”, indígena e “Dorme, dorme”, árabe, do CD Cantigas de ninar de todo o mundo; “Au feu, le pompier”, francesa, do CD Compitnes à jouer, de Dudu Sperb; “Alecrim”, portuguesa e “Sansa Kroma”, africana, do CD Crianças do mundo. Em seguida, cada participante deverá escrever no máximo três frases em que transmitam uma de suas sensações ao ouvir as canções, sem, contudo, mencionar a sensação escolhida, ou seja, deverão exprimir a sensação através de frases com imagens. Cada participante deverá escolher uma frase para ser lida e os demais adivinharão que sensação ela representa.

• Segundo momento (discussão): A oficineira lerá alguns poemas da quarta antologia e discutirá, junto com os alunos, os sentidos possíveis para as imagens que neles aparecem. Poemas que constam na quarta antologia: “O sol e Taichi”, de Miyasawa Kenji; “Tanto amare, tanto amare”, jarcha popular em moçárabe; “Sol nascente”, poema popular africano; “El niño mudo”, de Federico García Lorca e “O bicho”, de Manuel Bandeira.

• Terceiro momento (criação): Os participantes deverão produzir um poema que fale, em linguagem figurada, de uma das sensações listadas durante a audição das canções. Como sugestão de título, será apresentado o verso “Sinto certo sentimento”, do poema “Sei lá”, de Ricardo Azevedo, do livro Ninguém sabe o que é o poema, Ática, 2005. Enquanto escrevem, os alunos ouvirão a música “Good King Wenceslas”, do CD A winter garden, de Loreena Mc Kennit.

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Sétimo encontro: Poesia: uma viagem estrelada.

• Objetivo geral: Desenvolver atividades de leitura de poemas de terras e de seres imaginários, a partir de motivação trazida por ilustrações variadas.

• Primeiro momento (percepção): Nesse momento, serão projetadas para os alunos algumas ilustrações retiradas de livros. Após a projeção de cada imagem, os alunos deverão registrar suas sensações e suas percepções numa folha de papel. Serão projetadas as seguintes imagens:

Imagem 1: Poema “Sei lá”, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO, Ricardo. Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005.

Imagens 2 e 3: “Mermaids and Mermen (Sereias e Sereios), Culver Pictures Inc., do livro KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to gnomes, fairies, elves and other little people. New York: Gramercy Books, 2000.

Imagem 4: “The fays” (),Culver Pictures Inc., do livro KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to gnomes, fairies, elves and other little people. New York: Gramercy Books, 2000.

Imagem 5: “O próprio sol ficou cheio de frieiras”, Gustave Doré, do livro BURGUER, G. A. Aventuras do Barão de Münchhausen. Belo Horizonte: Vila Rica, 1990.

Imagem 6: “O monóculo”, Margarita Guerrero, do livro BORGES, Jorge L. e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.

Imagem 7: “Anfisbena”, Margarita Guerrero, do livro BORGES, Jorge L. e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.

Imagens do conjunto 8: “Guitarra Pensilis”, “Manypeeplia Upsidedownia”, “Phattfacia Stupenda”, “Piggiwiggia Pyramidalis”, de Edward Lear, do livro LEAR, Edward. The nonsense books of Edward Lear. New York: The New American Library of World Literature, 1964.

Imagem 9: Sem Título, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO, Ricardo. Histórias folclóricas de medo e quebranto. São Paulo: Scipione, 1997.

Imagem 10: Sem Título, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO, Ricardo. Histórias folclóricas de medo e quebranto. São Paulo: Scipione, 1997.

Imagem 11: “Había una vez un amplio país blanco de papel”, Estela Capón, do livrvo WALSH, María Elena. El país de la geometría. Buenos Aires: Hyspamérica, 1986.

• Segundo momento (discussão): A oficineira discutirá com os alunos sobre os possíveis significados das imagens, relacionando-as com seus títulos, ou trechos de texto a que poderiam remeter.

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• Terceiro momento (criação): Os participantes deverão pensar em algum ser ou lugar imaginário que represente o que esteja sentindo. Em seguida, deverá desenhar o ser ou o lugar em uma folha e, posteriormente, escrever um poema em que tal ser ou lugar apareça. Enquanto escrevem seus textos, os alunos escutarão a música Peer Gynt, suíte nº 1, de Grieg.

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Oitavo encontro: Poesia: uma viagem estrelada.

• Objetivo geral: Desenvolver atividades de leitura de poemas de terras e de seres imaginários, a partir de motivação textos escritos.

• Primeiro momento (percepção): Os participantes da oficina deverão ler silenciosamente os poemas da quinta antologia: “O país da Cocanha holandês”. In: FRANCO Jr. Hilário. Cocanha: várias faces de uma utopia. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 63-67; “Vivo feliz no meu armário”, Azevedo, Ricardo. Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005. p.60-62; “Canção do Exílio”, Gonçalves Dias, In: Bandeira, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 47-48.); “Passeio nº 6”, Barros, Manoel de. Matéria de poesia. 3ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 45. Em seguida, deverão registrar suas sensações e suas percepções numa folha de papel.

• Segundo momento (discussão): A oficineira ouvirá as sensações e as percepções dos alunos acerca dos textos lidos, após leitura em voz alta dos poemas por parte dos alunos. Em seguida, contextualizará os textos e discutirá com os alunos o que eles entenderam de cada um: como leram cada imagem, de qual dos poemas gostaram mais e por quê.

• Terceiro momento (criação): Os participantes deverão compor um poema que fale de seu próprio país imaginário: nele devem estar os medos, as descobertas, os desejos de cada um. Enquanto trabalham, os alunos ouvirão a música “O Brasil”, do CD Os dias de Madredeus, do grupo homônimo.

Observação: Antes do término do encontro, os alunos irão à biblioteca para escolherem livros de poemas que deverão ser trazidos no nono encontro e servirão de consulta para as respostas que darão ao questionário final. Caso seja de interesse do grupo, os livros poderão ser trocados, lidos em voz alta, ou em silêncio, após o questionário e a produção final da oficina terem sido feitos.

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Nono encontro: Poesia: porto de chegada.

• Objetivo geral: Verificar a aprendizagem final dos participantes. Aplicar questionário final (o mesmo aplicado no primeiro encontro) e proposta de produção de poema a ser desenvolvida pelos participantes.

• Primeiro momento (percepção): Os participantes trarão livros de poemas e, de posse deles, assim como das antologias distribuídas ao longo das oficinas, deverão responder ao questionário, o mesmo aplicado no primeiro encontro.

• Segundo momento (discussão): Conversa sobre o que cada um aprendeu sobre o que é um poema e como ele se compõe.

• Terceiro momento (criação): Após entregarem os questionários e discutirem suas aprendizagens, cada um deverá produzir um poema com o título de “Minha viagem agora”, o mesmo título do poema produzido no primeiro encontro. Como música de fundo, enquanto escrevem, os alunos escutarão as canções ouvidas ao longo da oficina.

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Décimo encontro:

• Objetivo geral: Preparação de apresentação para o Festival de Oficinas.

Em virtude de ser um encontro totalmente dedicado aos ensaios para a apresentação no Festival de Oficinas, ele não será estruturado nas três etapas dos demais (percepção, discussão e produção).

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Apêndice C:

Questionário e produção iniciais

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OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

1- Para você, o que é poesia? ____________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

2- Você gosta de poesia? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

3- Você costuma ler poemas? Onde? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

4- Você costuma ouvir poemas? Onde? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

5- Que diferenças você vê entre poemas e outros tipos de texto?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

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6- Que tal aproveitar o espaço abaixo para escrever um poema de que você se lembre?...

7- Onde você leu ou ouviu o poema que escreveu? Conte como foi.

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

8- Você sabe quem fez o poema que você escreveu?

____________________________________________________________

Esse espaço é para você usar como quiser:

desenhando, escrevendo poemas etc.

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Nome:_______ - Idade: ___ anos - Amora ___

Data: ___________ - Primeiro Encontro

MINHA VIAGEM AGORA

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Apêndice D:

Questionário e produção finais

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OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

1- Para você, o que é poesia? ____________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

2- Você gosta de poesia? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

3- Você costuma ler poemas? Onde? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

4- Você costuma ouvir poemas? Onde? Por quê?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

5- Que diferenças você vê entre poemas e outros tipos de texto?

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

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6- Que tal aproveitar o espaço abaixo para escrever um poema de que você se lembre?...

7- Onde você leu ou ouviu o poema que escreveu? Conte como foi.

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

8- Você sabe quem fez o poema que você escreveu?

____________________________________________________________

Esse espaço é para você usar como quiser:

desenhando, escrevendo poemas etc.

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OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

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Apêndice E:

Imagens utilizadas no sétimo encontro

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Imagem 1: Poema “Sei lá”, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO, Ricardo. Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005.

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Imagens 2 e 3: “Mermaids and Mermen” (Sereias e Sereios), Culver Pictures Inc., do livro KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to gnomes, fairies, elves and other little people. New

York: Gramercy Books, 2000.

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Imagem 4: “The fays” (“As fadas”),Culver Pictures Inc., do livro KEIGHTLEY, Thomas. The world guide to gnomes, fairies, elves and other little people. New York: Gramercy Books, 2000.

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Imagem 5: “O próprio sol ficou cheio de frieiras”, Gustave Doré, do livro BURGUER, G. A. Aventuras do Barão de Münchhausen. Belo Horizonte: Vila Rica, 1990.

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Imagem 6: “O monóculo”, Margarita Guerrero, do livro BORGES, Jorge L. e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.

Imagem 7: “Anfisbena”, Margarita Guerrero, do livro BORGES, Jorge L. e GUERRERO,

Margarita. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.

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Imagens do conjunto 8: “Guitarra Pensilis”, “Manypeeplia Upsidedownia”, “Phattfacia Stupenda”, “Piggiwiggia Pyramidalis”, de Edward Lear, do livro LEAR, Edward. The nonsense

books of Edward Lear. New York: The New American Library of World Literature, 1964.

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Imagem 9 e 10: Sem Título, Ricardo Azevedo, do livro AZEVEDO, Ricardo. Histórias folclóricas de medo e quebranto. São Paulo: Scipione, 1997.

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Imagem 11: “Había una vez un amplio país blanco de papel”, Estela Capón, do livro WALSH, María Elena. El país de la geometría. Buenos Aires: Hyspamérica, 1986.

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Apêndice F:

Relação das músicas utilizadas nos encontros

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RELAÇÃO DAS MÚSICAS UTILIZADAS NOS ENCONTROS:

1- Cantiga de partida – Gláucia de Souza/Jorge Herrmann – CD Cantigas de ninar vento

2- Cantiga de lua ontem – Gláucia de Souza/Jorge Herrmann – CD Cantigas de ninar vento

3- Nonazanina ore kuá – cantiga indígena – CD As mais belas e tradicionais cantigas de ninar de todo o mundo

4- Dorme, dorme – cantiga árabe - CD As mais belas e tradicionais cantigas de ninar de todo o mundo

5- Au feu le pompier – folclore francês – Dudu Sperb – CD Comptines à jouer 6- Alecrim – folclore português – CD Recreio especial: crianças do mundo 7- Sansa kroma – cantiga africana - CD Recreio especial: crianças do mundo 8- A canoa virou – folclore popular – CD Alegria, alegria: as mais belas

canções de nossa infância 9- Flor de maravilha – folclore popular – CD Alegria, alegria: as mais belas

canções de nossa infância 10- Rosa amarela – folclore popular – CD Alegria, alegria: as mais belas

canções de nossa infância 11- Eu vi o sol- folclore popular – CD Alegria, alegria: as mais belas canções de

nossa infância 12- Pombinha – folclore popular – CD Alegria, alegria: as mais belas canções

de nossa infância 13- As montanhas – CD Os Dias de Madredeus 14- A península – CD Os Dias de Madredeus 15- A andorinha – Pedro Ayres Magalhães – CD Os Dias de Madredeus 16- O Brasil – Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão– CD Os Dias de

Madredeus 17- O trenzinho do caipira – Villa Lobos/versão de Egberto Gismonti – CD Trem

caipira 18- Good King Wenceslas – John Mason Neale (adaptação de Loreena Mc

Kennitt) – CD A winter garden 19- Peer Gynt (suite nº 1) – Grieg – CD Grieg

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Apêndice G:

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

COLÉGIO DE APLICAÇÃO PROJETO AMORA

OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Primeira antologia Nome: ______________________________________________________ GRAÇA O GRÃO-DUQUE Graça sem conhecer Graça O Grão-Duque Perguntou a Graça ao comia grão: Qual a sua graça. grão de bico, Graça com graça feijão frade, Respondeu para Graça de batata doce Que a sua graça só metade, Era a mesma pois tinha Graça de Graça. uma herdade fora da cidade. As duas Graças Veio um barão Deram muitas gargalhadas engraçadas. e deram-lhe o título de Duque do Grão Que graça! e o Grão-Duque (NEVES, André. Poesias dão nomes ou nomes de tão furioso, dão poesias? São Paulo: Ave Maria, 2001. p. 15) parecia um leão, de tão granulado, parecia um dragão, incendiado PRIMAVERA pela irritação. Rosa reparou (LETRIA, José Jorge. O livro das na palavra primavera. Rimas traquinas. 5 ed. Lisboa: Terramar, 2000. Viu ave, viu ímã e prima. CANTIGA DE PARTIDA Leu rima Minha mãe passou no mundo de era e Vera. e me deu um grande anel Viu mar pra viajar solta de tudo e Mara colhendo pêra. num barquinho de papel. Mas Rosa não colheu flores No barquinho levo junto na palavra primavera! lápis, tinta, amor, pincel. Só eu mesma sei meu rumo: (QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Diário de Classe. rua, nuvem, andança, véu. São Paulo: Moderna, 1993. p. 43) (SOUZA, Gláucia de. Cantigas

de ninar vento. Porto Alegre: Kalligraphos, 2004) A CANOA VIROU A canoa virou Se eu fosse um peixinho Por deixá-la virar E soubesse nadar, Foi por causa do(a) ____ Tirava o (a) _____ Que não soube remar. Do fundo do mar. (Tradição popular)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL COLÉGIO DE APLICAÇÃO

PROJETO AMORA OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA Segunda antologia

Nome: ______________________________________________________

SOBRE FLORES: FLOR DE MARAVILHA ROSA AMARELA Eu ia passando, Olha a rosa amarela, rosa, Flor de maravilha Tão bonita e tão bela, rosa, Lá no bebedor, Olha a rosa amarela, rosa, Flor de maravilha, Tão bonita e tão bela, rosa. Meu chapéu caiu, Flor de maravilha. Iaiá, meu lenço, ó Iaiá, Meu amor apanhou, Para me enxugar, ó Iaiá, Flor de maravilha. Que a despedida, ó Iaiá, (Alegria, alegria: as mais belas Só me faz chorar, ó Iaiá. canções de nossa infância, Ed. Leitura) (Alegria, alegria: as mais belas

canções de nossa infância, Ed. Leitura) pintou uma rosa no pedaço

maneira delicada cara de menina

endiabrada

ah, quantas voltas deram os girassóis

(NAPP, Sérgio. Delicadezas do espanto. São Paulo: Saraiva, 2004)

SOBRE ANIMAIS: POMBINHA NEM O SÁBIO SABE QUERO-QUERO Pombinha, quando tu fores. O pássaro é primo Quero,

Escreve pelo caminho, distante Quero voar Se não achares papel, do peixe que come. Quero, Nas asas do passarinho. Quero cantar. Quando os mares riem Da boca faz um tinteiro, a espuma Sou porteiro Da língua, pena dourada, mostra os dentes De fazendas. Dos dentes, letra miúda, Sou guardião Dos olhos, carta fechada. O latido dos cães Das terras. voa A pombinha voou, por entre as casas. Tudo que Voou, voou. Espero Ela foi-se embora A tarde existe É ser sempre E me deixou. porque Quero-quero. (Alegria, alegria: as mais belas a manhã fechou os olhos. (LALAU, Fora da canções de nossa infância, Ed. Leitura) (PAIXÃO, Fernando. Dia brinquedo. gaiola. São Paulo: São Paulo: Ática, 2004) Companhia das Letrinhas, 1997)

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SOBRE SOL E LUA: SAUDADE EU VI O SOL Eu pensava que à noite Eu vi o sol, o sol ia dormir Vi a lua clarear, que o sol ia pra casa Eu vi meu bem que ia lá pra China Dentro do canavial. que o sol virava lua De manhã cedo, que acabava a pilha Tantas jandaias. que punha a capa preta Vêm as morenas que a montanha engolia Sacudindo as saias. que o sol também ficava Mas à tardinha, com saudade de mim. Vêm as jandaias (CUNHA, Leo. Poemas avoados. Sacudindo as penas. São Paulo: Saraiva, 2004) (Alegria, alegria: as mais belas

canções de nossa infância, Ed. Leitura) O MENDIGO E A LUA MENINA NA JANELA Se for de comer é queijo. A lua é uma gata branca, Se for de correr é bola. mansa, Se for de gostar é beijo. que descansa entre as nuvens. Se for de gastar é sola. Se não for, é toda lua, O sol é um leão sedento, se não for, é toda sua. mulambento, (CUNHA, Leo. Cantigamente. que ruge na minha rua. 4 ed. Rio de Janeiro: Ediouro,

2001) Eu sou uma menina bela, na janela,

CANTIGA DE LUA ONTEM de um olhar sempre à procura. Lua ontem me falou (CAPPARELLI, Sérgio. Restos de que um dia, se eu quisesse, arco-íris. Porto Alegre: L & PM, 1985) me daria um tanto dela E o que ela não sabia, para que meu bem viesse é que, se Lua não fosse, se banhar em minha janela... roubaria o meu amor (SOUZA, Gláucia de. Cantigas pra levar desfeita em doce de ninar vento. Porto Alegre: para o Sol namorador! Kalligraphos, 2004) SOBRE OBJETOS: CADERNO O PENTE Cabe tudo num caderno: Toda vez cabe o desenho do mundo, Que sonhava cabe o céu cheio de estrelas, Com cabelo, cabem as cidades e as ruas, Aquele pente cabem as flores do jardim, Sem dente cabe desenho de bicho, Tinha cabe, sim, letra de música, Pesadelo. cabe minha assinatura, cabem vinte telefones, Se sonhava cabe recado para amigo, Com cabelo preto, cabe foto de cantor, Não dormia cabe selo e figurinha, Direito. cabe o emblema do time, Se sonhava desenho de coração, Com cabelo comprido, e sobra até um cantinho Ficava pra fazer minha lição. Deprimido. (AZEVEDO, Ricardo. Meu material escolar. São Paulo: Quinteto Editorial, 2000)

Se sonhava Com peruca, Deixava A penteadeira Maluca. Que vida Aquela! Que cara De soneca! Um pente Banguela Que pertence A um careca! (LALAU, Girassóis. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1985)

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PROJETO AMORA OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA Terceira antologia

Nome: ________________________________________________________________ FEIJÃO COM ARROZ (mnemônia) Um, dois, Feijão com arroz. Três, quatro, Feijão no prato. Cinco, seis, Bolo inglês. Sete, oito, Comer biscoito. Nove, dez, Comer pastéis. (MACHADO, Ana Maria. O tesouro das cantigas para crianças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001) TREM DE FERRO Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Café com pão Voa fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha que eu preciso Muita força Muita força Muita força Oõ... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De ingazeira Debruçada

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No riacho Que vontade De cantar! Oô... Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matá minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... (BANDEIRA, MANUEL. Estrela da vida inteira. 11 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986)

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TRAVA-LÍNGUAS TRAZIDOS PELOS PARTICIPANTES DA OFICINA

• O rato roeu a roupa do rei de Roma • A aranha arranha a jarra

A jarra arranha a aranha Nem a aranha arranha a jarra Nem a jarra arranha a aranha

• O caju do Juca E a jaca do Cajá O jacá da Juju E o caju do Cacá

• Sabendo o que sei e sabendo que sabes E o que não sabes e o que não sabemos, Ambos saberemos se somos sábios, Sabidos ou simplesmente saberemos Se somos sabedores.

• E a Rosa Rita Ramalho Do rato a roer se ria.

• Num ninho de mafagafos, Tem sete mafagafinhos. Quem os desmafagafizar, Bom desmafagafizador será.

• Tenho um pé de cafanguito. Quem o descafanguitar; Bom descafanguitador será; Como eu descafanguitei, Bom descafanguitador serei.

• O bispo de Constantinopla É bom constantinopolitanizador; Quem o desconstantinopolitanizar, Bom desconstantinopolitanizador será.

• Lá vem o velho Félix , Com um fole velho nas costas; Tanto fede o velho Félix Como o fole do velho fede.

• Pedro tem o peito preto, O peito de Pedro é preto; Quem disser que o peito de Pedro não é preto, tem o peito mais preto que o peito de Pedro.

• Pinga a pipa Dentro do prato; Pia o pinto E mia o gato.

• O pinto pia, A pipa pinga. Quanto mais o pinto pia, A pipa pinga.

• Se a papa papasse papa, Se o Papa papasse pão. O Papa tudo papava. Seria um Papa papão.

• Se a liga me ligasse Eu ligava a liga; Mas como a liga não me liga, Eu também não ligo a liga.

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PROJETO AMORA OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA Quarta antologia

Nome: ______________________________________________________

O SOL E TAICHI Hoje o sol é um pequeno prato de prata no céu e as nuvens estão invadindo rapidamente a sua face A neve começou a produzir luz...

Taichi calçou sua calça grossa e vermelha (Poema de Miyasawa Kenji)

!Tanto amare, tanto amare, habib, tanto amare! Enfermeron olios nidios E dolen tan male (Tanto amar, tanto amar, amado, tanto amar! Adoeceram (meus) olhos brilhantes e doem tanto.) – Jarcha nº 18 (FRENK, Margit. Lírica española de tipo popular. 10 ed. Madrid: Cátedra, 1994)

RISING SUN

O rising sun Who beats on the rock in the morning! O you who have been in love Tell me the remedy that will help me. For the one I want wants me not And the one I want not awaits me. (Versão para o inglês do poema popular em berber - AWDE, Nicholas. Treasury of African Love. New York: Hippocrene Books, 1997 SOL NASCENTE

Ó, sol nascente, Que bate na pedra de manhã! Ó, você que está amando, Diga-me o remédio que vai me socorrer. Pois aquela que eu quero não me quer E aquela que eu quero não me aguarda.

EL NIÑO MUDO El niño busca su voz. (La tenía el rey de los grillos.) En una gota de agua buscaba su voz el niño. No la quiero para hablar; me haré con ella un anillo que llevará mi silencio en su dedo pequeñito. En una gota de agua buscaba su voz el niño. (La voz cautiva, a lo lejos, se ponía un traje de grillo)

Federico García Lorca, Canciones. In: Obra poética completa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 324-236

O BICHO

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986. p. 179)

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COLÉGIO DE APLICAÇÃO PROJETO AMORA

OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA

Quinta antologia Nome: ________________________________________________________

O PAÍS DA COCANHA HOLANDÊS

Séc. XV No nosso país São muitas as atividades Necessárias para se viver. Então ouçam o que vou lhes contar. Passei certa vez por uma terra Estranha e desconhecida, Um grande milagre que vocês podem agora conhecer: Deus permitiu àquela gente Entrar e ficar no país Sem trabalhar e sem preocupações, Dedicando-se a muitas canções. Existe terra melhor do que O país da Cocanha? Metade dele é muito melhor que a Espanha, A outra metade melhor do que a Betuve. Ali existem muitas mulheres bonitas. Aquele é o país do Espírito Santo: Lá quem mais dorme ganha. A ninguém é ali permitido trabalhar, Velho ou jovem, forte ou fraco. Ali ninguém morre. As casas ali têm paredes de salsichas, As cercas são de peixes de água doce, As janelas e as portas de salmões e esturjões, Os pratos de omelete, Os jarros de cerveja. Os utensílios domésticos São de ouro fino, Neles brilham o bom vinho, Tão claro como os raios de sol. As vigas que suportam as casas Foram feitas de manteiga, Dobradouras, rocas e coisas semelhantes Foram feitas de pão. Ali os bancos e as cadeiras São de carne assada, As pranchas pesadas Assados apimentados, As ripas enguias fritas, As telhas pequenas panquecas. [...] As roupas bonitas são baratas, Estão amontoadas em frente das casas, Junto com calças e sapatos.

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Qualquer um pode pegá-las. Em todas as ruas encontram-se preparadas Mesas com toalhas brancas sem manchas, Cheias de pão e vinho, peixe e carne Conforme o gosto das pessoas. No país corre um rio De vinho bom e de cerveja boa, Moscatel e ainda clarete. Ali também tem Romeny,

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E as meninas do meu armário Passam cheirosas sem pisar o chão E querem saber de mim E roubam meu coração Vivo feliz no meu armário E da janela do lado de cá Decido meus caminhos E da janela do lado de lá Imagino outras possibilidades E no porão da gaveta do lado debaixo Enterro certos segredos Vivo feliz no meu armário Mas deixo a porta entreaberta E pela clarabóia da parte de cima Enxergo a paisagem distante, o raio de sol, as pessoas a saudade, o tempo em disparada, a noite [escura, as tardes fagueiras, as sombras das [bananeiras e o canto incalculável dos pássaros (Azevedo, Ricardo. Ninguém sabe o que é o poema. São Paulo: Ática, 2005. p.60-62)

CANÇÃO DO EXÍLIO

Kennst du das Land, wo die Citronen blühn, Im dukein Laub die Gold-Orangen glühn, Keenst du es wohl? – Dahin, dahin! Möcht’ ich… ziehen. Goethe Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.

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Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’ inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Coimbra, julho 1843 (Gonçalves Dias, In: Bandeira, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 47-48.)

PASSEIO Nº 6

Casebres em ruínas muros escalavrados... E a lesma – na sua liberdade de ir nua Úmida! (Barros, Manoel de. Matéria de poesia. 3ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 45)

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PROJETO AMORA OFICINA UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA

OFICINEIRA: PROFª GLÁUCIA DE SOUZA Antologia do Festival de Oficinas

Nome:________________________________________________________________ Antologia de poemas produzidos pelo grupo de alunos

O MEU PAÍS IMAGINÁRIO Victor Goldschmidt No meu país, Não existe dinheiro. Todos pegam o que querem E quando querem. Todos trabalham só Para ajudar os outros E são todos amigos. Ninguém fica solitário. Todos unidos em prol De uma causa solidária E especial: A felicidade. MEU PAÍS IMAGINÁRIO Amanda M. de Castro Eu moro num país cheio De árvores, cachoeiras E muita alegria. No meu país todos têm Liberdade e muita felicidade. Eu sou muito feliz No meu país... Mas eu não Tenho tudo que quero, Mas amo tudo que tenho. POSSO TUDO Isadora O. da Silva Vou andar Vou brincar Mas a coisa que não vou Esquecer é de amar Vou saltar Vou nadar Vou mergulhar até o fundo Do mar Vou brigar Vou xingar Mas também vou perdoar A ILHA DESERTA Raíssa Teixeira Cabe tudo numa ilha, Cabem os pássaros e os macacos, Cabe o céu cheio de estrelas,

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Cabem as cidades e as ruas, Cabem as flores do jardim, Cabem todos os meus amigos, Cabe um enorme coração, Cabe um coqueiro cheio de coquinhos E sobra até um cantinho Para eu dormir mais um pouquinho. MEU PARAÍSO Juliana F. Tavares O paraíso que eu quero é mágico Sai a realidade entra a imaginação Que meus sonhos virem realidade E não apenas ilusão Tudo folheado a ouro Menos os corações Que nesse país não exista violência Nem discriminação A ÁGUA DESTA FLOR Renata F. Marques A água desta flor parte meu coração Para que não parta o meu coração Me dê uma flor do seu bom humor Com um pingo da parte do teu coração para me dar o teu amor com um pedaço do teu humor. HOJE NÃO ESTOU BEM Lucas F. C. Silva Hoje não estou bem bem não estou se estivesse bem não seria assim como sou Assim como sou não é como quero, quero ser diferente diferente como gente gente igualmente.

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IMAGINARIUM Luísa Baptista Os pés não tocam o chão Ele voa A mente está no alto Ele viaja Como um arranha-céu Ele volta para casa Mas No caminho se perde Se perde do seu rumo E encontra o paraíso Seu pêlo branco o esquenta Seus espinhos o protegem E ele volta a dormir Para pelo menos no sonho Voltar para casa O sonho o avisou O que ele jamais sonhou Que a terra em que estava a descansar Era mesmo o seu lar NA TERRA DOS DOCÊS Karen L. Sama Na terra dos Docês Há um doce Mais docê que um Doce O Rei Docê PENSE-REFLITA Thayane L. Pires Pense reflita o Dumbo-man tem Sentimento. Os brutos amam. MINHA VIAGEM AGORA Graziela D. Ramos Eu deitada, penso como seria “Minha Viagem Agora”. Penso que estou com minhas Amigas sorrindo e gritando... Até não poder mais. Gritando para o mundo que nós nos adoramos e estamos felizes cada vez mais. E quando abro os olhos e vejo que foi só um sonho mas um sonho que poderá acontecer, então logo para minhas amigas e conto como foi... A minha viagem agora.

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MINHA VIAGEM AGORA Carlos H. do Nascimento Se eu tivesse um avião, viajava agora mesmo para ver meu irmão, forte, rapidão. Até parece um leão, que me dá conselhos que só ele e meu coração dão. Sinto muita alegria, como a água da pia, que ria feito uma guria, com saudade de um abraço carinhoso que só meu irmão pode dar. Se pudesse já estava voando, ou correndo, ou caminhando, mas junto com meu amigão, irmão, leão, parceirão e muito calmo. Estou com muita saudade, mas tudo passa e, com o tempo, as traças começam a furar as lembranças e carinhos do passado. SE EU FOSSE COR Fernandez D. Fortunato Se eu fosse cor, eu seria uma cor linda, uma cor única, uma cor que chame a atenção, uma cor que todos gostem dela.

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