Uma vida, duas almas

11
UMA VIDA, DUAS ALMAS

description

Relato da romaria de Descalvado a Tambaú, pelo Caminho da Fé, realizada entre os dias 19 e 21 de Março de 2015!

Transcript of Uma vida, duas almas

  • 0

    UMA VIDA, DUAS ALMAS

  • 1

    (Diego de Toledo Lima da Silva E-mail: [email protected])

    Romeiros: Diego de Toledo Lima da Silva e Aline Cristina Bonfiglio de Toledo

    Fotos de Capa: Santurio Nossa Senhora Aparecida de Tamba

    Caminho da F entre Santa Rita do Passa Quatro e Tamba

    Joanpolis Pirituba - Limeira Descalvado

    Porto Ferreira Santa Rita do Passa Quatro - Tamba

    19 a 21 de Maro de 2015

    mailto:[email protected]

  • 2

    DUAS SEMANAS ANTES...

    Pela janela vislumbrava a chuva caindo lentamente pela paisagem rural. Na

    vastido do horizonte, aps terras e plantaes, apenas um morro azul exibia sua

    imponncia, azul da cor do mar.

    Nas palavras de algum poeta o entardecer do dia revelou uma surpresa,

    ratificada em seu primeiro caminho de terra. Superou seus medos iniciais, alis, os

    enfrentou na cara e na coragem. Ainda confuso com tanta novidade, segui ao seu

    lado na inexatido de estradas de cho, soltando palavras repetidas e outras frases

    muitas vezes dita.

    Os pingos de chuva insistiam em molhar o solo, enquanto as abas de nossos

    chapus serviam de proteo. Entendida a finalidade do chapu, ela seguia a

    passos largos, com vrias negativas para goiabas do mato.

    Viveramos outras vidas sem entender o sentido dos dias, nem a direo das

    noites. Mas em algum relance de loucura as fazendas, stios e matas seriam a base

    de sua transformao - ou do incio dela -, de uma alma urbana para rural.

    Acompanhando as nuvens carregadas, a noite trouxe a mudana que os

    olhos tanto esperam durante o dia, a escurido e o descanso de um simples e

    misterioso corao noturno. Cortando densas plantaes, em algum momento

    alcanaramos a origem, terras iluminadas por fracas luzes em altos postes.

    Cansada e cheia de dvidas a mulher recebeu apenas um parabns,

    felicitaes por ter superado seus primeiros quilmetros de terra. Mais do que o

    caminho externo, sua maior superao foi vencer o medo e a angstia, bem na

    vspera do Dia Internacional da Mulher... A ela minha homenagem!

  • 3

    A CAMINHO...

    Ainda eram as primeiras horas da manh de quinta-feira e seguamos num

    nibus rumo a Descalvado, ponto de partida de nossa romaria. Pela janela

    visualizava a paisagem tomada pela chuva, enquanto ao lado ela cochilava

    profundamente.

    Era sua primeira romaria a p, um desafio e tanto, primeiro pela falta de

    costume de caminhar por estradas de cho e segundo pelas condies que

    encontraramos devido s constantes chuvas.

    H tempos eu andava sem rumo, solto pelo serto e seus caminhos. Alguns

    dias atrs ela havia questionado o motivo da romaria, mais uma vez no soube

    responder... Promessa, dvida ou simplesmente o ato de caminhar e seguir em

    frente. Certamente no havia motivo, mesmo assim ela resolveu me acompanhar,

    superando seus medos e preocupaes. Certo que desaprovaes e negativas

    jamais seriam motivos de impedimento, o esprito peregrino sempre superar as

    barreiras impostas.

    Desembarcamos na rodoviria de Descalvado e seguimos sentido praa

    central, acompanhados de uma garoa. Entramos na igreja e pedimos a beno de

    Nossa Senhora do Belm, com a viso das primeiras setas amarelas que seriam

    nossas guias pelo Caminho da F.

    Um lanche acompanhado de uma tubana bem gelada, longa prosa na

    lanchonete e o primeiro carimbo!

  • 4

    DE SONHO E DE P, O DESTINO DE UM S...

    Samos do asfalto urbano e assumimos o caminho de terra, alis, de barro. A

    estrada bastante precria exigia muitos cuidados, literalmente amassvamos barro

    para conseguir andar poucos metros.

    Por entre plantaes, matas, pastos e cerrados, placas e setas amarelas

    carregavam nossos pensamentos pela eternidade do Caminho, desviando de uma

    poa dgua aqui, outra l. Mulher de sangue doce, ela foi atacada por uma formiga

    do mato, um batizado e tanto de f.

    Sentido Mato Negro ouvi suas primeiras reclamaes de dor e cansao.

    Tambm carreguei sua mochila, ajudando-a a vencer a subida, j em terras de Porto

    Ferreira. Vencidos os ltimos trechos de terra batida, seguamos lentamente, suas

    pernas estavam doloridas e o longo caminho at o hotel foi um verdadeiro desafio

    fsico e psicolgico.

    Palavras de nimo j no ajudavam, pela rea central de Porto Ferreira

    debandou em lgrimas, um misto de limite fsico/mental e emoo. A chegada ao

    hotel marcou seu primeiro dia de romaria, com direito primeira bolha no p

    direito.

  • 5

    O MILAGRE DO MORRO...

    ltimo dia da estao de vero, o amanhecer em Porto Ferreira foi iluminado

    pelos primeiros raios de sol, um alento para a sequncia de dias de tempo nublado

    e chuvoso. Busquei as bnos do mrtir So Sebastio, no belo santurio situado

    na praa central. Um grupo de fiis terminava suas oraes matinais, rezas que nos

    acompanhariam durante todo o trajeto at Santa Rita do Passa Quatro.

    Aps um reforado caf da manh, iniciamos a jornada com um alongamento

    nas proximidades da antiga estao de trem de Porto Ferreira. Em poucos minutos

    atravessamos o rio Mogi-Guau e suas barrentas guas, s 07:30 hs.

    No hotel j haviam me avisado que enfrentaramos muita subida e uma

    temida inclinao, conhecida popularmente como Morro do Cnion. Ocultei isso

    dela, visando no abalar seu nimo.

    Os primeiros trechos de terra estavam mais favorveis caminhada em

    comparao com o dia anterior. Logo fomos presenteados pela doura de laranjas

    maduras, entregues por um sitiante que nos desejou sorte no longo e cansativo

    caminho.

    Passados os laranjais estrada no existia, era apenas barro e nada mais,

    justificando o nome de vrios stios locais: Barreiro. Suas dores limitavam a

  • 6

    velocidade de nossos passos, assumi as duas bolsas e buscava anim-la. Passada

    a capela na encruzilhada e negando caronas, senti seu limite, suas dores e

    dificuldades, mas tambm o tamanho de sua f.

    frente, um rural bastante negativo no ajudou em nada, demonstrando

    incrvel desconhecimento que quele era o Caminho da F, passagem de tantas

    romarias.

    Havamos alcanado o sop do temido morro, a 553 metros de altitude no Km

    11,7 da jornada. quelas terras foram banhadas por suas lgrimas, um choro puro e

    verdadeiro, que tambm me colocou no limite.

    Com o peso de duas mochilas e ela segurando a ala de uma delas, a passos

    lentos, iniciamos a subida. Intercalando rezas do Pai-Nosso e Ave-Maria, as nuvens

    carregadas nos cercavam por todos os cantos... Considero um verdadeiro milagre

    ela ter superado o morro naquelas condies fsicas, mentais e psicolgicas, sendo

    que apenas ao iniciar a descida que o cu derrubou suas guas. Havamos

    alcanado o Km 15 e a altitude de 784 metros.

  • 7

    LONGA E ETERNA AVENIDA...

    Logo alcanamos a rodovia e o portal da cidade, seguindo por uma longa

    avenida, ambos protegidos por capas de chuva. O cansao fez do trecho final do

    caminho uma eternidade, ela no sentia mais as pernas e os ps, e meus ombros

    estavam bastante doloridos.

    Em frente a uma loja ela desabou completamente, sentou no cho e chorou...

    Foi acolhida, tirou a capa, a mochila e o tnis, e sentou numa confortvel cadeira.

    Faltavam poucas centenas de metros para o hotel, o qual alcanamos s 14:30 hs.

  • 8

    VALSA DE TAMBA...

    No dia anterior, ainda na chegada cidade de Santa Rita do Passa Quatro,

    havamos acordado que eu seguiria sozinho para Tamba. Ela ficaria no hotel e iria

    de nibus, encontrando-nos em terras do Padre Donizetti. Estava bem disposto

    para a caminhada, apesar dos ombros doloridos. Segui por trechos urbanos, quase

    invisvel para a populao local em sua rotina de sbado.

    Prximo sada da cidade, um rapaz dentro do seu veculo me chamou,

    perguntando se eu seguia pelo Caminho da F. Com a resposta positiva, junto de

    uma mulher escreveram uma inteno num pequeno bilhete, colocaram dentro de

    um envelope branco e pediram para levar a Nossa Senhora.

    Prontamente atendidos e com a inteno na mochila, prossegui por belos

    cafezais, com aquela velha cano do povo na mente. O caminho bastante tranquilo

    abraava belas paisagens rurais, numa paz de encher a alma de alegria.

    Entre uma cano e outra, refros perdidos na sincronia dos toques de viola

    caipira, aproximava-me do Morro do Itatiaia e da imagem do Cristo Redentor, ponto

    de elevao da regio, contornando seu sop entre canaviais. Passado algumas

    velhas fazendas fui recepcionado pela pitoresca Capela de Nosso Senhor do

    Bonfim.

  • 9

    Alcanando um triste e perigoso asfalto sem acostamento, com mato alto e

    muito lixo, alm de carros em alta velocidade, mais de 15 Km a serem superados.

    Ali, at passarinhos inexistiam, num deserto de amargurar o corao. Os esforos

    extras dos dias anteriores pesaram e muito neste trecho, superado em algumas

    horas.

    Chegado a Tamba senti grande emoo, entrando pela Casa dos Milagres

    (antiga morada do Padre Donizetti) e no Santurio de Nossa Senhora Aparecida.

    Borboletas danavam no jardim de flores da praa, bem como ces descansavam

    na paz e no silncio do interior das construes.

    Depositei a inteno recebida em Santa Rita do Passa Quatro, conjugando

    pensamentos naquele pedido. Entreguei uma fotografia e o tero carregados por

    toda romaria, escrevendo em tortas linhas a sina desta viagem. Pouco depois

    encontrei minha companheira na rodoviria, almoamos no Tarzan e retornamos

    para casa, junto de seus pais.

    quela no foi e nem ser a ltima romaria, mas especial como todas as

    peregrinaes. Em algum pedao da Rodovia Anhanguera prometi retornar ao

    Caminho da F desta vez at Aparecida e as guas do rio Paraba do Sul... Quanto

    a ela, acredito que no seguir na prxima jornada, mas quem sabe?

  • 10