Umbanda e Candomblé: Pontos de Contato em Salvador –...

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  • XVI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Msica (ANPPOM) Braslia 2006

    Trabalho aceito pela Comisso Cientfica do XVI Congresso da ANPPOM

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    Umbanda e Candombl: Pontos de Contato em Salvador BA

    Mackely Ribeiro Borges Universidade Federal da Bahia

    e-mail: [email protected]

    Sumrio: Este trabalho discute a presena de elementos do Candombl Angola e de Caboclo na Umbanda praticada em Salvador (BA). A fuso de elementos de diversas procedncias e naturezas d a Umbanda um carter nacional, refletindo a sua capacidade de adaptao a distintos contextos e desempenhando um papel importante na vida das pessoas que a praticam.

    Palavras-chave: Umbanda, Candombl, Msica.

    A Umbanda considerada a primeira religio genuinamente brasileira. pois foi formada no Brasil. Surge como uma religio universal, isto , dirigida a todos e a sua trajetria marcada pela busca de uma legitimao e institucionalizao diante da sociedade e do Estado brasileiro. Apresenta caractersticas prprias, suas canes, danas, oferendas, trabalhos, representando um papel importante na vida religiosa das pessoas que a praticam. uma religio essencialmente urbana desde o seu surgimento associado aos fenmenos de industrializao e urbanizao, at os dias de hoje.

    Na literatura existente sobre o assunto, h um consenso de que a Umbanda teria surgido no Rio de Janeiro, na dcada de 1920 (Cf. Bastide, 1971; Concone, 2001; Negro 1996; Jensen, 2001; Ortiz, 1999; e Prandi, 1991). Atualmente, sua prtica encontra-se espalhada por todo o territrio brasileiro, com destaque nos grandes centros urbanos, permeada por um forte sincretismo presente tanto na sua formao quanto no seu culto. H na sua concepo uma fuso de elementos de vrias procedncias e naturezas diversas, entre eles das culturas indgena, branca e negra, que tambm representam a raiz da formao da sociedade brasileira, que se fundem dando-lhe um carter nacional, mantendo-a viva.

    Este fator, aliada a sua capacidade de adaptao aos contextos locais, possibilitou a existncia de ramificaes em seu culto que se diferenciam pela maior ou menor aproximao das influncias branca e negra. Serra (2001: 221) definiu de forma precisa esta variao em trs direes principais: A Umbanda Branca, a Mista e a Preta. A Umbanda Branca caracteriza-se pela adoo da doutrina esprita kardecista e pela negao das origens e influncias negras. A Umbanda Mista caracteriza-se pela mistura das vertentes branca e negra, isto , apresenta elementos do Kardecismo e do Catolicismo associados a algumas prticas emprestadas das religies afro-brasileiras. E na Umbanda Preta predomina a associao com os cultos afro-brasileiros, no qual muitos autores apontam a existncia de uma modalidade chamada Umbandombl (Cf. Jensen, 2001 e Negro, 1996).

    A Umbanda praticada em Salvador (BA) se apresenta sob as categorias Branca e Mista. A primeira categoria caracteriza-se pelo seu pblico, formado por pessoas de nvel intelectual e financeiro alto e se localizam em bairros nobres (Amaralina, Barra, Caminho das rvores, Pituba, entre outros), no qual os centros so formados por grupos familiares, com o acesso restrito apenas aos familiares ou queles que pertencem ao mesmo crculo de amizades. A segunda categoria fortemente influenciada pelo Candombl Angola e pelo Candombl de Caboclo, e seus adeptos

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    pertencem a todas as classes sociais tendo os seus centros localizados em bairros populares e perifricos.

    Acreditamos que uma das principais contribuies do Candombl de Caboclo na formao da Umbanda a entidade do Caboclo. Porm, os Caboclos do Candombl e da Umbanda possuem caractersticas distintas. No Candombl, os Caboclos esto na mesma categoria dos orixs (Cf. Pvoas, 1989: 106), e se voltam para a transmisso das suas histrias, lendas, danas, vestimentas entre outros fatores relacionados ao conceito da divindade da mata e do dono da terra, ancestral indgena, o primeiro habitante em solo brasileiro. Enquanto que na Umbanda so considerados entidades inferiores aos Orixs na escala de desenvolvimento espiritual e a sua funo est direcionada ao atendimento ao pblico, seguindo a filosofia kardecista da prtica da caridade. O pai-de-santo Matambalessi (Cf. Silva, 1995: 104), da nao Angola tambm aponta estas diferenas entre os Caboclos do Candombl e da Umbanda: no candombl, o caboclo que vem mais evoludo para as coisas da natureza. Na umbanda eles so mais rezador, curador, benzedor, ensina rezas e simpatias, canta pontos com nome de santo. No candombl eles cantam samba-de-roda e coisas da natureza deles.

    No entanto, existem outros elementos que apontam muitas semelhanas entre estas duas religies, especialmente na cidade de Salvador. Antoniel Bispo, Diretor-Secretrio da FENACAB1, nos explica que a chave para desvendar estas similaridades entre a Umbanda e o Candombl Angola e de Caboclo est na msica e na capacidade sincrtica da Umbanda:

    Esta forma de utilizao da Umbanda muito levada para o lado de Angola porque exatamente, eu Antoniel vejo assim, mais fcil o ritual, os toques, os cnticos. Porque, na verdade, os cnticos de Angola so praticamente semelhantes quase aos cnticos das msicas que se cantam pra caboclo [Candombl de Caboclo]. A Umbanda daqui como em todo lugar, ela vem pegando pedaos de coisas diferentes. O toque dos atabaques na nao Queto so completamente diferentes. Ns da nao Queto utilizamos para tocar os nossos atabaques os aquidavis, as baquetazinhas. O toque de Angola um toque de mo e tambm muito utilizado na Umbanda. Os cnticos so bem levado pro lado de Angola. Que ns cantamos praticamente, ns do Queto, tudo em iorub, no cantamos em portugus. muito mais fcil para Angola ficar semelhante ou similar Umbanda do que o Queto.2

    Estas similaridades entre a Umbanda e o Candombl Angola e o Candombl de Caboclo so encontradas no Centro Umbandista Rei de Bizara, localizado no bairro de Brotas em Salvador. Este centro possui duas particularidades: a primeira que se trata de um centro-escola, voltado para o desenvolvimento dos mdiuns e o conhecimento dos fundamentos umbandistas pelo pblico em geral. Aps cumprir todas as etapas com durao total de sete anos, permitido ao mdium abrir o seu prprio local de culto. Desta forma, o Centro Umbandista Rei de Bizara a matriz para a formao de muitos centros umbandistas em Salvador3 e em outras cidades como Rio de Janeiro, So Paulo, Governador Valadares (MG) e Braslia. A segunda particularidade o papel de destaque ocupado pelas entidades da esquerda (Exus e Pombagiras), tanto na conduo dos trabalhos quanto no calendrio das festas, enquanto que em outros locais a presena destas divindades restrita ou muitas vezes at evitada.

    1 A Federao Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB) uma entidade localizada em Salvador (BA)

    com o objetivo de coordenar, fiscalizar e amparar os locais de culto afro-brasileiro, inclusive os centros umbandistas. De acordo com os dados da FENACAB, existem atualmente 53 registros de centros umbandistas em 28 bairros/localidades. Este registro nos d apenas um panorama geral da presena da Umbanda em Salvador, no refletindo a situao real em termos quantitativos.

    2 Depoimento de Antoniel Atade Bispo em entrevista realizada em 03/04/2006. 3 So exemplos de centros umbandistas formados em Salvador: o Centro Umbandista Oxossi Matalamb, Ians

    da Pedra do Ouro e Rosrio de Luz, cujo endereo no foi informado pela me-de-santo, que apenas afirmou que estas casas de culto se localizam em reas prximas do bairro de Brotas.

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    No Centro Umbandista Rei de Bizara estas divindades recebem o nome de Escravos. No depoimento abaixo, a me-de-santo Amlia Cndida da Silva explica os motivos esta denominao que acreditamos ser indita4 no universo umbandista: So mensageiros dos Orixs. Os Orixs trabalham aqui, mas pra limpar e fazer tudo, eles tem que ter um empregado, e o empregado eles. [...] Voc sabe que na Umbanda a gente tem que comear pelos Escravos. eles que manobram tudo.5

    Alm deste ponto de vista mico, acreditamos que a adoo deste termo pelo centro indica uma influncia direta do Candombl Angola. Neste culto, o Exu chamado de Escravo-de-Inquice6 como nos explica Seu Benzinho7:

    quando a gente trata de escravo-de-inquice, sabe-se que est se referindo a Exu, pois s ele o mensageiro dos inquices. (...) Ele conhecido como o diabo. As cantigas chamam Exu, Bambojira,[ou Bombonjira], Jiramavambo, Mancuce, Imbemberiquiti, Imb Perequet, Ingambeiro, Quitungueiro, Caracoci. (Santana, 1984: 45-46)

    Conforme o depoimento acima, Giramavambo8 uma das denominaes atribudas aos Exus, que tambm usada no Centro Umbandista Rei de Bizara como podemos verificar no seguinte ponto cantado:

    Se desconsiderarmos algumas alteraes, este mesmo ponto possui basicamente uma

    estrutura meldica semelhante a uma outra cantiga para Exu encontrada no Il Ax Dele Om9, onde se pratica o Candombl de Caboclo (Cf. Garcia, 1996 e 2001:63), o que poderia ser considerado uma comprovao musical da relao entre as duas religies.

    4 Durante a pesquisa bibliogrfica no foi encontrada nenhuma referncia sobre a denominao Escravos dado

    aos Exus e Pombagiras. 5 Depoimento dado em entrevista realizada em 21/04/2006. 6 Inquice a designao dada ao orix no Candombl da nao Angola. 7 Seu Benzinho membro de uma casa de Candombl Angola e foi um dos convidados do Encontro de

    Naes de Candombl realizado em Salvador em 1981 (Cf. Santana, 1984: 45-46). 8 Durante a pesquisa bibliogrfica encontramos a denominao Jiramavambo escrita com J e com G, no

    entanto, resolvemos adotar a grafia Giramavambo. 9 Segundo Garcia (1996:28) o Il Ax Dele Om se localiza na localidade de Arenoso, bairro de Tancredo

    Neves, rea perifrica da cidade de Salvador- BA.

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    Pombagira o Exu feminino, cuja denominao representa um elemento banto dentro da

    doutrina umbandista por ser de origem quimbunda, lngua pertencente a uma as tribos originrias de Angola-Congo-Ls e Contracosta (Cf. Povoas, 1989: 18 e 24-25). No Candombl Angola e de Caboclo, Bombojira, outro termo de origem banto, um dos nomes dados ao Exu masculino, cuja semelhana prosdica Pombagira/Bombojira nos chama a ateno. Outro caso de compartilhamento de repertrio acontece nos dois exemplos a seguir, no qual verificamos tambm a semelhana na prosdia encontrada nos textos das duas cantigas, no qual as frases soam parecidas. O primeiro exemplo um ponto cantado em portugus encontrado no Centro Umbandista Rei de Bizara e o segundo uma cantiga em lngua banta encontrada no Il Ax Dele Omi (Cf. Garcia, 1996: 135).

    Ponto cantado no Centro Umbandista Rei de Bizara:

    Cantiga do Il Ax Dele Omi (Cf. Garcia, 1996:135):

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    Portanto, diante destas semelhanas, acreditamos que existe um complexo processo de trocas musicais entre a Umbanda e o Candombl, no qual a mesma cantiga pode ser utilizada em ambos os casos, onde a mesma melodia acompanha textos diferentes ou ento a mesma letra pode receber um tratamento musical diferenciado. Contudo, como acontece este trnsito dos repertrios entre estas religies aparentemente diferentes? Na viso mica de Tia Preta, todas as entidades que trabalham no Centro Umbandista Rei de Bizara no so impedidas de trabalhar em outras casas de Candombl ou Umbanda. Vatin (2001:13) tambm acredita que quando uma divindade migra de uma nao para outra, seu repertrio de cantigas a acompanha. Em vista disso, h a possibilidade destas entidades carregarem seus repertrios, porm, eles devem seguir ao sistema da casa de culto, que no caso deste centro, a cantiga deve ser cantada em portugus por se tratar da prtica da Umbanda, uma religio brasileira.

    Por fim, a identidade da Umbanda est em constante processo de construo onde a adaptao ao contexto a sua marca registrada. Neste caso, foram abordados apenas alguns elementos que proporcionam a insero do Centro Umbandista Rei de Bizara no contexto de Salvador, uma cidade formada por uma populao de maioria negra e parda com uma cultura fortemente influenciada pelo Candombl, que se faz presente em mais de 2000 terreiros (Cf. Vatin, 2001:9). Acreditamos que as possibilidades de encontrar outras semelhanas sero ampliadas com a anlise de outros fatores que compem o universo umbandista deste centro. Semelhanas estas, que nos fazem regressar ao incio da formao da Umbanda, influenciada pelos cultos bantos trazidos pelos escravizados vindos da Bahia para o Rio de Janeiro. Hoje no Centro Umbandista Rei de Bizara estes elementos permanecem sob os mais diversos aspectos, inclusive na msica.

    Referncias Bibliogrficas Bastide, Roger (1971). As Religies Africanas no Brasil: Contribuio a uma Sociologia das Interpretaes

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    Prandi, Reginaldo (1991). Os Candombls de So Paulo: A Velha Magia na Metrpole Nova. So Paulo: Hucitec e Edusp.

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