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UNASP-CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO
CAMPUS ENGENHEIRO COELHO
TRADUTOR E INTÉRPRETE
TAMARA MAGALHÃES RODRIGUES
“THE FIRST SENSE”: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NA TRADUÇÃO DO
CONTO DE NADINE GORDIMER
ENGENHEIRO COELHO
2014
TAMARA MAGALHÃES RODRIGUES
“THE FIRST SENSE”: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NA TRADUÇÃO DO
CONTO DE NADINE GORDIMER
Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo-Campus Engenheiro Coelho-do curso de Tradutor e Intérprete sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria de Moura Schäffer.
ENGENHEIRO COELHO
2014
Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,
do curso de Tradutor & Intérprete, apresentado e aprovado em 09 de novembro de
2014.
____________________________________________________
Orientadora: Profª Drª Ana Maria de Moura Schäffer
__________________________________________________________
Segundo Leitor: Prof. Ms Neumar de Lima
Dedico este trabalho aos meus pais e aos meus irmãos que sempre me apoiam e ajudam,
Obrigada por tudo.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente à Deus por ter me capacitado e me dado o privilégio e a
oportunidade de ter essa realização em minha vida. Sem Ele não conseguiria.
Tudo vem dEle e à Ele são todas as coisas;
À minha orientadora, professora Ana Maria de Moura Schäffer. Obrigada pelo
seu tempo, sua dedicação e paciência. Sou muito grata por tudo;
Aos meus professores que, direta e indiretamente, contribuíram para a
realização deste trabalho;
Aos meus pais, Antônio e Santana, que sempre me aconselham, me apoiam
e me incentivam a continuar lutando. Este trabalho também é fruto do esforço
de vocês e é a realização de seus sonhos. Obrigada por tudo. Vocês são o
maior exemplo na minha vida;
À minha irmã Thamiris por ter me ajudado sempre que precisei e por ter me
incentivado e aconselhado quando precisei e ao meu irmão, Juan, por sempre
me fazer rir tornando a minha vida mais feliz. Amo vocês demais.
RESUMO
Este trabalho é uma tradução comentada de um conto da autora sul-africana Nadine Gordimer que traduzi para o português do Brasil. O conto escolhido foi The first sense, que foi publicado em 2006, em The New Yorker’s archive, local onde muitas das obras da autora surgiram. O gênero história de ficção curta foi o que mais trouxe destaque para Gordimer, ao ela expor neste gênero questões que incomodavam a alma humana e instigavam a crítica aos problemas sociais e políticos do seu país. O meu estudo enfatizou ,dois aspectos: por um lado o enquadramento do conto no contexto da obra de Gordimer e os aspectos centrais da sua obra, tendo como foco a segregação racial na África do Sul, tema que emerge em todos os seus trabalhos; por outro, a natureza empírica como o fator relevante da tradução, ao se trazer um pouco das implicações teóricas da tradução literária, a partir de noções como a traduzibilidade, o papel do tradutor e o processo de recriação literária de autores como Antunes (1991), Britto (2002) e César (1999), tradutores de textos literários que praticaram na década de 1990 a tradução comentada e anotada, no caso de César; e os demais que são referência de tradução literária no Brasil, como é o caso de Britto. Procurei reproduzir em português não apenas os sentidos, mas também as denúncias sociais contra o apartheid feitas pela autora no conto. Observei aspectos sintáticos e semânticos, como o tipo de vocabulário usado e imagens que são particularmente interessantes e que apresentaram dificuldades no traduzir. Analisando a tradução, observei o estilo literário da autora e sua importância para a literatura sul-africana e universal. Ao apresentar a tradução do conto, objetivei sinalizar algumas das dificuldades e soluções, bem como as reflexões relacionadas ao estilo da autora, à margem da leitura do seu texto.
Palavras-chave: Tradução literária; Tradução comentada e anotada; Apartheid
ABSTRACT
This paper is an annotated translation of a short story of the South African author Nadine Gordimer which I translated into Portuguese of Brazil. The tale chosen was The first sense, which was published in 2006 in The New Yorker's archive, where many of the author's works appeared. The genre of short story fiction was what most brought her prominance as she exposes this genre issues that bothered the human soul and incited criticism of social and political problems of her country. Our study emphasized two aspects: first, the framework of the tale in the context of the work of Gordimer and central aspects of her work, focusing on racial segregation in South Africa, a theme that emerges in all her works; secondly, the empirical nature as the relevant factor of the translation, by bringing a bit of the theoretical implications of literary translation, from notions such as translatability, the role of the translator and the process of recreating literary authors such as Antunes (1991), Britto (2002) and César (1999), translators of literary texts that practiced in the 1990s commented, annotated translation, in the case of César; and others that are a reference of literary translation in Brazil, as in the case of Britto. We seek to reproduce in Portuguese not only the senses but also the social complaints against apartheid made by the author in the story. We observe syntactic and semantic aspects such as the type of vocabulary and images that are particularly interesting and which presented translation problems. Analyzing the translation, we observe the literary style of the author and her importance to the South African and world literature. In presenting the translation of the tale, we aim to identify some of the difficulties and solutions, as well as the reflections related to the style of the author and the margin reading of her text.
Key-Words: Literary translation; Commented and annotated translation; Apartheid.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Trechos comentados A .............................................................................. 40
Tabela 2: Trechos comentados B .............................................................................. 41
Tabela 3: Trechos comentados C ............................................................................. 42
Tabela 4: Trechos comentados D ............................................................................. 43
Tabela 5: Trechos comentados E .............................................................................. 44
Tabela 6: Trechos comentados F .............................................................................. 45
Sumário
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 10
2 METODOLOGIA .............................................................................................................................. 12
3 SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA ............................................................................................ 13
4 CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E HISTÓRICO-CULTURAIS DO CONTO “THE FIRST
SENSE” DE NADINE GORDIMER .................................................................................................. 18
5 O CONTO E SUA TRADUÇÃO COM NOTAS E COMENTÁRIOS ........................................ 22
5.1 Considerações Preliminares sobre o Processo Tradutório do Conto e o Estilo Literário de
Gordimer .............................................................................................................................................. 22
5.2 Tradução Comparativa da Pesquisadora ................................................................................ 23
5.3 Notas e Comentários da Pesquisadora .................................................................................... 39
Tabela 1: Trechos comentados A .................................................................................................... 40
Tabela 2: Trechos comentados B .................................................................................................... 41
Tabela 3: Trechos comentados C .................................................................................................... 41
Tabela 4: Trechos comentados D .................................................................................................... 42
Tabela 5: Trechos comentados E .................................................................................................... 43
Tabela 6: Trechos comentados F .................................................................................................... 44
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 46
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 48
1 INTRODUÇÃO
O presente objeto de estudo é uma pesquisa acadêmica que abordará o
formato de monografia e terá como parte fundamental a pesquisa bibliográfica na
área de tradução comentada e anotada. Os principais autores que fundamentam
nosso estudo são Britto (2012), Cesar (1999) e Antunes (1991). A escolha desses
autores se justifica porque, primeiramente são poetas, tradutores e críticos literários.
Principalmente Britto que é importante pela sua profunda atuação no campo da
tradução literária, tanto como tradutor como quanto professor da área em
universidades brasileiras.
Para isso, levantamos o seguinte questionamento se ao se fazer uma
tradução comentada: basta que nos concentremos em buscar sentidos na língua de
chegada ou é exigido de quem traduz esse tipo de gênero textual, aprofundamento
nas características da língua-fonte consideradas relevantes no autor e no período
literário a que ele pertence? Considerando-se tal problemática, defendemos que
uma tradução comentada alcança seus objetivos, quando durante o processo, quem
traduz se aprofunda na pesquisa sobre o período literário vivido pelo autor do texto
original, nas características literárias desse período, bem como nas do autor em
estudo, observando suas idiossincrasias e estilo de escrita.
Na tentativa de responder à pergunta levantada, discutiremos as dificuldades
que os tradutores encontram ao traduzir uma obra literária e as técnicas usadas
pelos profissionais e, a partir da tradução, do conto literário “The first sense”, da
autora Sul-Africana Nadine Gordimer (2006), ainda não traduzido para o português
do Brasil. Identificaremos as dificuldades que o tradutor encontra para traduzir uma
obra, ao realizar a tradução comentada, para tentar identificar estratégias de
tradução que facilitem a tradução de textos desse gênero; além disso,
comentaremos e anotaremos, a partir das pesquisas sobre a autora e sobre o conto,
o período do mesmo, suas características, as dificuldades encontradas ao traduzir e
as estratégias adotadas para resolver os problemas de tradução.
A busca por um trabalho de tradução de um conto literário nos ajudará a
entender melhor os procedimentos e estratégias adotados por quem transita nesta
área, cientes de que traduzir não é, nem nunca foi uma tarefa fácil. Uma das áreas
11
que mais chama a atenção de um estudante de tradução, talvez para alguns que
pretendem seguir carreira, é a tradução literária. Talvez seja pelo fato de envolver a
tradução de histórias ou apenas paixão pela profissão; mas o que realmente chama
a atenção é a criação final.
Embora a exigência de fidelidade persiga o profissional da tradução, quando
se fala em tradução literária, há mais autonomia, pois nesta área é possível se
aventurar mais no processo de recriar de forma criativa, a tradução, sem fugir do
original pois o resultado final que deve chegar ao leitor da língua meta não deve se
distanciar daquele pretendido pelo texto da língua fonte.
2 METODOLOGIA
Neste trabalho será desenvolvida uma pesquisa introspectiva e retrospectiva.
Ao mesmo tempo que traduzirmos, realizaremos comentários sobre o processo de
tradução, com a finalidade de discutir sobre a prática tradutória, analisar os aspectos
do texto-fonte e justificar as soluções dadas a possíveis problemas encontrados no
processo tradutório.
O primeiro passo tomado foi o de escolher um conto contemporâneo de autor
não tão conhecido no contexto brasileiro e inédito enquanto tradução. Em seguida,
avaliou-se o impacto desse autor no contexto de partida, seu período literário e sua
importância para a literatura de seu país.
A tradução comentada seguiu as orientações de Antunes (1991), César
(1999) e Britto (2012), tradutores literários que têm praticado a tradução comentada
e anotada.
Depois de realizada a pesquisa bibliográfica sobre o autor escolhido, o
período literário a que pertence e as características desse período, o próximo passo
do objeto de estudo será a tradução do conto escolhido e a realização das notas
sobre o mesmo; para, finalmente, chegar ao aspecto mais importante do estudo que
é comentar o processo de tradução, as dificuldades encontradas e as estratégias e
justificativas empregadas para tentar resolver os problemas tradutórios.
Com a finalização deste trabalho, esperamos que o processo tradutório
aumente nossa autoconsciência enquanto profissional da área e,
consequentemente, ajude-nos a melhorar a qualidade das traduções feitas.
3 SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA
Neste capítulo faremos considerações sobre as implicações de se traduzir um
conto literário, a partir de Britto (2012, p.11) que, em sua obra A Tradução Literária,
reflete que: “a tradução é uma atividade indispensável em toda e qualquer cultura
que esteja em contato com alguma outra que fale um idioma diferente”.
Na tradução literária, o tradutor tem que estar ciente de que ele tem que
manter-se fiel em absoluto com o original para não deixar passar nada que a
principio possa parecer estranho ou sem sentido, mas que acaba sendo de grande
valor no texto original, por isso é importante ser fiel ao original. Para o tradutor, a
tradução literária pode ser vista como um “jogo de tradução”, como afirma Britto:
…o significado não é uma propriedade estável do texto, uma essência que possa ser destacada do texto e isolada de maneira definitiva; minha visão do sentido é (…) antiessencialista. Seguindo a visão de Wittgenstein, porém, eu diria que a tradução de textos segue determinadas regras que constituem o que podemos denominar de “jogo da tradução”. Eis algumas regras deste jogo: o tradutor deve pressupor que o texto tem (…) um determinado conjunto de sentidos específicos, tratando-se de um texto literário, já que uma das regras do “jogo da literatura” é justamente o pressuposto de que os textos devem ter uma pluralidade de sentidos, ambiguidades, indefinições etc. Outra regra do jogo da tradução é que o tradutor deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa” que o original, e, portanto deve reproduzir de algum modo os efeitos de sentido, de estilo, de som (no caso da tradução de poesia) etc., permitindo que o leitor da tradução afirma [sic], sem mentir, que leu o original. (…) Não se trata, pois, de tratar o sentido dentro de uma visão essencialista; trata-se simplesmente de respeitar as convenções do que se entende por tradução, na sociedade e no tempo em que vivemos. (2012, p. 28-29)
Percebemos que a tradução pode ser vista como uma recriação do original
sempre levando em conta o que o original produz. Os efeitos causados no leitor do
original têm que ser os mesmos na tradução.
Ao falarmos em tradução, não imaginamos o grau de dificuldade que a
mesma envolve. Britto (2012), afirma que muito diferente do que a maioria das
pessoas pensam sobre a tradução, na verdade, ela é uma atividade de criação muito
complexa que por mais que o dicionário dê o significado e a origem da palavra, não
apresentará a forma certa de expressá-la na frase e, muitas vezes, não ajudará no
14
processo de dar sentido à frase, pois o maior problema começa na própria estrutura
do idioma, ou seja, na sintaxe das palavras que são conhecidas no idioma.
Ainda de acordo com Britto, ele diz que na visão do senso comum:
[...] traduzir é, na verdade, uma tarefa relativamente fácil; que o principal problema do tradutor consiste em saber que nome têm as coisas num idioma estrangeiro. Que este problema se resolve com a consulta de dicionários bilíngues; e que, com os avanços da informática e o advento da internet, em pouco tempo a tradução será uma atividade inteiramente automatizada, feita sem a intervenção humana (2012, p. 12 e p. 18- 19).
No entanto, pelo que entendemos com a prática e leituras de teóricos da área,
esta visão do senso comum não se sustenta, visto que, conforme defende Britto
(2012, p. 14), a tradução é uma atividade criativa bem complexa que, por mais que o
dicionário dê o significado da palavra e a origem da mesma, não apresentará a
forma certa de expressá-la na frase e, muitas vezes, não ajudará no processo de dar
sentido à frase, pois o maior problema começa na própria estrutura do idioma, ou
seja, na sintaxe das palavras que são conhecidas no idioma.
Antunes (apud BRITTO, 2012, p.14) em Notas sobre Tradução Literária
afirma, com palavras diferentes, o mesmo que Britto: “Embora seja uma prática cada
vez mais corrente, a tradução literária apresenta questões complexas e às vezes
insolúveis que vão desde a sua própria definição até às técnicas básicas de
realização”. Então podemos afirmar que, mesmo que seja uma atividade conhecida,
traduzir não é uma tarefa relativamente fácil e muito menos rápida, pois o processo
da tradução leva tempo e é complexa, como afirma Britto (2012) e Antunes (1991),
por causa da própria estrutura do idioma.
A tradução literária nada mais é do que a arte de recriar numa outra língua um
texto literário fazendo o possível para preservar a sua literalidade. Porém, já que o
problema está na própria estrutura do idioma, como devemos preservar a sua
literalidade? Britto (p. 48) afirma, com um exemplo de tradução de um manual, que
“em tais casos o objetivo do tradutor é muito claro; ele tem que passar para a língua-
meta toda a informação contida no texto em língua-fonte, e fazê-lo com o máximo de
funcionalidade”. Se na língua- fonte o manual apresentou utilidade na língua- meta
também deve ser útil, ou seja, todas as informações presentes na língua- fonte
devem estar presentes na língua-meta com o objetivo de ser fácil e útil para o
15
consumidor. Porém não podemos dizer que na tradução literária o objetivo é o
mesmo. O tradutor deve sim se manter fiel ao original mantendo as mesmas
informações causando um impacto no leitor da língua-meta, o mesmo impacto que o
leitor da língua- fonte teve. Porém, segundo Britto (2012, p. 54), fazer uma tradução
com as mesmas informações é uma tarefa inatingível. O tradutor precisa estar ciente
que seus objetivos na hora da tradução podem não ser todos alcançados. O
principal objetivo do tradutor tem que ser o de determinar quais características do
original são mais importantes, quais são possíveis de reconstruir na tradução e,
depois, pelo menos, tentar recriar um texto com essas características.
Contudo, o tradutor, mesmo tendo conhecimento da língua e de suas
limitações, vendo uma tradução como uma atividade de criação, a mesma deve
estar o mais próximo possível do texto original. Pode até mesmo ser com palavras
diferentes, mas tem de estar próximo para que o leitor diga, sem confusão ou algo
parecido, que leu a obra original. É o que Britto também considera:
Em suma: cabe ao tradutor, dentro dos limites do idioma com que trabalha, e de suas próprias limitações pessoais, produzir na língua- meta um texto que seja tão próximo ao texto fonte-fonte, no que diz respeito às suas principais características enquanto obra literária, que o leitor de sua tradução possa afirmar, sem estar mentindo, que leu o original (2012, p. 55).
Como base nisso, podemos afirmar que a tradução é uma atividade de
recriação do texto original e é o que Antunes (1991) também afirma. Para ele a
tradução literária pode ser encarada como uma criação nova, recriação como
acabamos de ver, algo que é dotado de um valor original. Sobre a questão do
problema no idioma, ele afirma:
De qualquer maneira, quando se fala da intraduzibilidade de um texto sobretudo literário, devemos entender que o termo tem uma função dialética na colocação do problema. Não deve ser tomado ao pé da letra. Pois, assim como toda criação artística, a tradução é um desafio, um esforço de expressão, de comunicação (1991, p. 5).
Então entendemos que o processo da tradução é, nada mais nada menos do
que a recriação da obra original, e os problemas na sintaxe, na estrutura do idioma
não significa que ela é intraduzível mas sim que já que toda língua tem seus
problemas e dificuldades, deve-se recriar o objetivo da obra sempre mantendo a
mensagem do original, como já vimos também.
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Na tradução de um conto literário, o tradutor não precisa se preocupar em
simplificar aquilo que não é nada simples; a única preocupação é causar um impacto
no leitor da língua meta, o mesmo que o da língua fonte teve. Por isso, o ponto
chave é conhecer as características do autor e a cultura da língua meta para assim
obter um bom resultado não só para a tradução, mas também para o leitor. E para
ter este bom resultado, o tradutor deve ter uma identificação com o texto que está
traduzindo. Isso também serve para quando se faz uma tradução comentada, que é
o objetivo deste trabalho.
O tradutor deve traduzir mesmo sabendo quais são as suas implicações,
dificuldade, objetivos, o que dá para pôr na tradução e o que não. Afinal, toda e
qualquer língua apresenta problemas, portanto a tradução literária deve ser vista
como a recriação da obra original. Mas o que podemos dizer sobre essa
modalidade? Sobre a tradução literária comentada, contaremos com as
considerações de Cesar (1999) em Crítica e Tradução. A autora afirma o mesmo
que Britto (2012) e Antunes (1991):
O primeiro tipo de notas (talvez o mais evidente) se relaciona com os problemas gerais de interpretações ou com questões mais amplas. [...] surpreendentemente o tipo de notas mais frequente se relaciona com problemas de sintaxe (CESAR, 1999, p. 286-287).
A partir disso, percebemos a similaridade com as afirmações de Britto e
Antunes sobre a complexidade, a dificuldade que o tradutor encontra no idioma na
hora de realizar a tradução. Pode ser que no momento da tradução, por causa das
dificuldades encontradas no idioma, o tradutor tenha que recorrer a pesquisas mais
profundas ou dependendo da obra, o tradutor não encontre essa necessidade.
“A tradução anotada pode ser vista como uma tarefa fundamentalmente
técnica”, diz Cesar (1991, p. 292); porém, a anotação nada mais é do que a
concentração de todo o conteúdo da tradução:
No entanto, se nos indagarmos sobre as razões que levam à concentração de notas em determinados momentos da história, concluiremos que o comentário técnico é inconscientemente conduzido por pontos literários centrífugos, isto é, pelo conteúdo. (1999, p. 292).
Então o tradutor se vê envolvido de forma pessoal e profissional, ou seja, ele
sente a necessidade de explicar os trechos em que a história se intensifica,
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colocando os seus pensamentos, as suas palavras na própria tradução. O tradutor
deve estar ciente da existência de todo e qualquer tipo de sentimento como tensão,
amor, medo, compaixão, desespero etc. e, se ele identificar na obra e achar
necessário explicar, tem que tentar passar com a mensagem certa. Se ele não
estiver ciente disso não terá como passar a mensagem na obra. Ficará com
dificuldade e a mensagem não será a mesma que a do original, já que, como já
vimos, o principal objetivo do tradutor é o de passar ao leitor da língua-meta a
mesma mensagem, o mesmo efeito que o da língua-fonte teve.
Para concluirmos este capítulo, entendemos que o tradutor faz uma espécie
de jogo de tradução e, ao traduzir nesse jogo, o máximo de cuidado é exigido para
não gerar uma tradução sem pé nem cabeça, sempre tendo como meta a fidelidade
com o original mesmo sabendo que nem todas as metas que o tradutor tem podem
ser atingidas. Um bom tradutor é o que realiza uma tradução que corresponde, às
vezes não perfeitamente, mas de forma razoável, com o texto original. Outro fator
importante é que a maior dificuldade e problema que o tradutor encontra, conforme
levantou César (1999), está na sintaxe do idioma, já que a cultura de cada país é
diferente; e se o tradutor estiver ciente disso, a tradução será mais que uma
recriação do original. Na tradução comentada (anotada), o tradutor, devido ao
grande envolvimento em alguns trechos da obra, sente a necessidade de explicar
com as próprias palavras sem tornar-se um traidor quanto ao original, passando a
mensagem, a beleza que o original apresenta. Afinal, um tradutor não pode ser
considerado um traidor, mas sim um recriador, já que “beleza e fidelidade são
perfeitamente compatíveis” (BRITTO, 2012, p. 19).
4 CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E HISTÓRICO-CULTURAIS DO CONTO “THE
FIRST SENSE” DE NADINE GORDIMER
Neste capítulo faremos considerações sociais, históricas e culturais sobre a
autora sul-africana Nadine Gordimer e sobre o conto escolhido para a tradução
comentada, levando em conta pesquisas bibliográficas.
Gordimer nasceu em Springs, cidade mineira na África do Sul, em 20 de
novembro de 1923 e era filha de imigrantes. Sua mãe nasceu na Inglaterra e seu pai
na Letônia. Estudou numa escola cristã e aos 9 anos começou a escrever em casa
pois ficava aos cuidados de sua mãe devido a sua obsessão para com sua saúde.
Nadine publicou seu primeiro trabalho aos 15 anos e em 1948 mudou-se para
Johannesburgo, onde frequentou a Universidade de Witwatersrand por apenas um
ano. Ela desistiu dos estudos pois preferia escrever. Em 1949 publica o seu primeiro
livro que é uma coletânea de contos intitulada Face to Face. Nele ela revela a sua
preocupação com a segregação racial na sociedade sul-africana. Em 1952, publica
A voz macia da serpente, sua primeira coleção de histórias curtas. A seguinte foi o
romance The lying days, publicado em 1953, ambos de temas que exploram os
direitos da população negra que é um dos temas que Gordimer mais explora ao
escrever as suas obras.
No fim dos anos de 1960, passa a viver nos Estados Unidos onde leciona em
diversas escolas até o início da próxima década. The Conservationist (1974) é um
romance em que a autora mostra um contraste entre o mundo Zulu e o fluxo de
industrialização proposto pela sociedade europeia. Como já mencionado antes,
Gordimer explora muito o tema dos direitos da população negra de seu país, por
isso suas novelas e romances têm como tema as dificuldades de comunicação entre
a comunidade branca e negra em seu país, em consequência do Apartheid, que
proibia a convivência das duas etnias. Seus livros, além da temática dos problemas
raciais, também analisam a repressão na África do Sul e em outros estados
africanos. Em 1991, recebeu o Prêmio Nobel da Literatura, e até 1994 já havia
publicado 13 novelas, duas centenas de pequenas histórias e diversos livros de
ensaio.
19
Para entendermos a escrita de Nadine Gordimer, é necessário conhecer um
pouco da história do país onde nasceu e viveu. Em 1652, o holandês Jan Van
Riebeek fundou uma colônia de 70 homens no Cabo de Boa Esperança para
fornecer uma escala aos navios mercantes que passavam pela África e tinham como
destino a Indonésia. Os primeiros colonizadores que ficaram conhecidos como
bôeres - do holandês boer e que significa agricultor, família de grupos étnicos que
existe no sudeste da África do Sul - escravizavam os nativos em suas plantações no
litoral. Os franceses, ingleses e alemães se juntaram a eles algum tempo depois.
Sendo assim, a população branca é fruto da mistura dos primeiros colonos
holandeses com os demais que se juntaram. Estes se denominavam africânderes.
Em 1800, a colônia do Cabo foi tomada pelos britânicos, mas só em 1814 tornou-se
posse deles. Depois de a escravidão em solo britânico ter sido proibida, em 1834
atritos surgiram entre os africânderes e os britânicos, fazendo com que os
africânderes mudassem para o interior, levando consigo os escravos negros e
construíssem fazendas tipo seminômades. O conflito racial teve início com o povo
Xhosa, os agricultores nativos. No final do século XVIII, e por quase um século, o
conflito chegou a um estado de guerra entre grupos África do Sul e Namíbia.
A maioria das leis do Apartheid vieram do governo britânico, em 1948; porém,
os holandeses e alemães que já estavam na África do Sul eram convictos
defensores da supremacia branca. O objetivo é o mesmo, é a luta contra o
Apartheid, cujo fim Nadine Gordimer teve a alegria de presenciar anos depois da
escrita do livro A gente de july (1981). Ela continuou a explorar os problemas de seu
país em livros como O engate (2004) e Beethoven was one-sixteenth black, uma
coletânea de contos.
Gordimer foi considerada pelos meios acadêmicos uma das escritoras sul-
africanas de mais destaque por ter escrito mais de 30 obras, que são: A filha de
burguer (1979); Um abraço de soldado (1980), coletânea de pequenas histórias e A
gente de july (1981). Dentre os títulos de honra que já recebeu, podemos citar os: de
Yale, Harvard, Columbia, New School for Social Research, EUA, Universidade de
Leuven, na Bélgica, da Universidade de York (Inglaterra), Universidades da Cidade
do Cabo e Witwatersrand (África do Sul), da Universidade de Cambridge (Inglaterra).
No dia 20 de março deste ano, o site UOL publicou uma matéria sobre uma
entrevista que Nadine Gordimer concedeu à revista italiana Republica. Aos 90 anos
20
de idade, a autora revela que está com câncer no pâncreas e que não tem mais
força para escrever seus contos; como é bastante crítica com suas obras, ela
prefere não escrever.
The First Sense, o conto escolhido para tradução e análise, faz parte de
Beethoven was one-sixteenth black: and other stories, uma coletânea de contos; o
conto é um romance deturpado pela guerra que descreve a delicada construção de
um casamento entre um talentoso e ambicioso violoncelista e sua esposa que não é
nada talentosa e ambiciosa. Trata-se, na verdade, de um triângulo amoroso que
envolve o casal e um violoncelo e, ao mesmo tempo, torna-se um relato vívido entre
grandes artistas da música clássica e um conto de credibilidade emocional e de
traição. No decorrer da história, percebe-se que o violoncelo começa a ser descrito
como se realmente fosse uma mulher, a sua amante, com aspectos físicos
femininos. As comparações que a autora faz entre a intimidade do casal são
semelhantes ao jeito como o marido toca o instrumento. A esposa deseja que seu
casamento seja extraordinário, porém tem de aprender a lidar com a vida musical
extraordinária de seu marido. Fica enciumada com o fato de o marido mostrar amar
mais ao instrumento que a ela; afinal, ela fez a escolha de apoiá-lo e ajudá-lo com
sua carreira. Em determinado ponto, a esposa chega a se questionar e a imaginar
com quem ele a trai, já que ele acaba se tornando uma pessoa fria e distante dela.
Então ela fica imaginando, inúmeras vezes, quem provavelmente seria a amante
dele. Mas ela não se afasta dele, não o rejeita e muito menos o confronta com medo
de perdê-lo mais ainda e acabar mandando-o para os braços de outra mulher, se é
que ela exista. No desenrolar do romance, percebemos que não é só o marido que é
um verdadeiro apaixonado pelo instrumento, mas também ela acaba se
apaixonando e agradecendo ao próprio instrumento. The first sense foi publicado
inicialmente no The New Yorker, no ano de 2006.
No conto notamos a característica do Apartheid no romance, já que o mesmo
se passa em um momento pós-guerra, momento este quando a segregação já havia
sido proibida. Com ele percebemos a criatividade que Gordimer tinha para escrever
sobre um tema tão difícil, mas não só pelo tema que antes foi citado, mas também
por outros. Gordimer consegue passar uma intensidade em cada linha, cada
sentimento que a obra contém é muito bem descrito em cada parte do conto. Até
21
mesmo o preconceito, em uma das partes, é bem descrito, sentido e reproduzido
para o leitor.
E é neste sentido que, ao desenvolvermos a tradução comentada de um de
seus contos, objetivamos também prestar uma homenagem a esta tão renomada
autora que infelizmente faleceu durante o processo de escrita desse trabalho, e cujo
legado literário tem enriquecido não só seu país de origem, mas também se
estendido a outros, graças à tradução de todas as suas obras.
5 O CONTO E SUA TRADUÇÃO COM NOTAS E COMENTÁRIOS
5.1 Considerações Preliminares sobre o Processo Tradutório do Conto e o
Estilo Literário de Gordimer
Como já dito antes, a tradução é uma recriação do original com o objetivo de
passar o efeito que o original produz. Britto (2012) afirma que mesmo que a tradução
seja uma atividade criativa ela também é complexa e mesmo que o dicionário dê o
significado e a origem das palavras, ele não dará a forma correta de expressar a
palavra na frase. E um dos principais objetivos deste trabalho é o de identificar
possíveis estratégias que facilitem o processo de tradução de textos literários. A
tradução é uma atividade que tem como ponto principal a comunicação entre
pessoas de diferentes línguas e a transmissão de conhecimentos entre culturas e se
a tradução não for bem feita, ela pode ter um efeito bem diferente do original.
Sabemos que uma tradução perfeita não existe, portanto cabe ao tradutor fazer com
que essa impossibilidade desapareça e para isso é necessário fazer uma tradução
que flua em compreensão na língua-meta para não gerar uma confusão na
mensagem e muito menos perdê-la.
Segundo pesquisas, para Gordimer a liberdade de expressão era primordial
para a atividade de escritora. Ela acreditava que existiam duas bases para a
liberdade: uma é a de se poder votar à sua escolha e outra é a liberdade para se
dizer o que pensa, seja a imprensa seja um cidadão comum. Para ela ter o direito de
publicar livros e expressar os seus pensamentos é um caminho de compreender a
vida, pois um livro acaba sendo mais importante que jornais e revistas, pois ele
transforma-se em um testemunho para a próxima geração. Gordimer afirmava ter
muita preocupação com a mensagem que passaria em suas obras, desde a visão
crítica à comunicação com o leitor. Suas obras são de um inglês simples e sem
complexidade alguma. Em seus romances, contos e ensaios, ela nunca foi uma
autora panfletária. Ela conseguia descrever de forma sútil o contexto social em que
vivia, e a profundidade de suas personagens em suas obras conta muito a história
contemporânea africana.
23
Durante o processo de tradução de The first sense, notamos que a riqueza do
mesmo encontra-se nas expressões. Com nossa experiência tradutória, percebemos
que o conto traz muitas expressões rotineiras que, às vezes, levam quem traduz a
dar voltas e buscar paráfrases para não perder a riqueza do texto. Assim, antes de
empreendermos o processo de tradução, o primeiro passo tomado foi o de pesquisar
possíveis traduções para as expressões e, até mesmo, recriá-las para manter o
sentido literário do conto. Assim como a autora ao escrever tinha a preocupação da
mensagem que passaria ao leitor, também tivemos essa preocupação de manter a
mensagem que a autora passa ao leitor.
5.2 Tradução Comparativa da Pesquisadora
“The First Sense”
“A Primeira Sensação”
By Nadine Gordimer
Tradução de Tamara Magalhães Rodrigues
Original em Inglês Tradução para o Português do Brasil
Parágrafo 1: She has never felt any
resentment that he became a musician and
she didn’t. Could hardly call her amateur
flute-playing a vocation. Envy? Only pride in
the achievement that he was born for. She
sits at a computer in a city-government
office, earning, under pleasant enough
conditions, a salary that has at least
provided regularly for their basic needs,
while his remuneration for the privilege of
being a cellist in a symphony orchestra has
been sometimes augmented by chamber-
music engagements, sometimes not; in the
summer, the off season for the orchestra,
Ela nunca ficou ressentida com o fato de ele
ter se tornado músico e ela não. Mal podia
dizer que seu jeito amadorístico de tocar
flauta era uma vocação. Inveja? Apenas um
orgulho da realização com o fato de que ele
nasceu para isso. Ela trabalha na frente de
um computador, num escritório da cidade,
ganhando, em condições bastante
agradáveis, um salário que é, pelo menos,
regular para as suas necessidades básicas;
enquanto a remuneração dele pelo privilégio
de ser um violoncelista numa orquestra
sinfônica aumenta pelos compromissos com
a música de câmara, outras vezes, não; na
24
he is dependent on these performances on
the side.
estação baixa da orquestra, em
contrapartida, ele depende dessas
atuações.
Parágrafo 2: Their social life is in his
professional circle—fellow-musicians, music
critics, aficionados whose connections
insure them free tickets, and the musical
families in which most of the orchestra
members grew up, the piano-teacher or
choir-singing mothers and church-organist
fathers. When new acquaintances
remember to give her the obligatory polite
attention, with the question “What do you
do?,” and she tells them, they clearly
wonder what she and the cellist who is
married to her have in common.
A vida social de ambos está envolvida no
círculo profissional dele; os colegas
músicos, críticos musicais, aficionados
cujas conexões lhes garantem ingressos
grátis e as famílias musicais na qual a
maioria dos membros da orquestra
cresceram, o professor de piano ou as
coralistas e os organistas de igreja. Seus
novos amigos lembram-se de dar-lhe uma
atenção obrigatória, só por educação, com
a pergunta: “O que você faz?”, ela os
responde e claramente eles imaginam o que
ela e o violoncelista, com quem é casada,
têm em comum.
Parágrafo 3: As for her, she found when
she was still an adolescent—the time for
discovering parental limitations—that her
cheerful father, with his sports shop and the
beguiling heartiness that is a qualification
for that business, and her mother, with her
groupies exchanging talk of female
reproductive maladies, from conception to
menopause, did not have in their
comprehension what it was that she wanted
to do. A school outing at sixteen had taken
her to a concert where she heard, coming
out of a slim tube held to human lips, the
call of the flute. Much later, she was able to
identify the auditory memory as Mozart’s
Flute Concerto No. 2 in D, K. 314.
Meanwhile, attribution didn’t matter any
more than the unknown name of a bird that
Quanto a ela, encontrou o instrumento
quando ainda era adolescente, época de
descobrir a limitação dos pais. Seu alegre
pai, com sua loja de esportes e a cativante
cordialidade que é a qualificação para esse
negócio; e sua mãe, com suas fanáticas
conversas sobre as doenças reprodutivas
femininas desde a concepção até a
menopausa, e a filha não entendia o que
sua mãe queria dizer com isso. Um dia, aos
dezesseis anos uma excursão da escola a
levou a um concerto onde ela ouviu, vindo
de um tubo fino e que era mantido em
lábios humanos, o chamado da flauta. Muito
tempo depois, ela conseguia identificar, com
a memória auditiva, o Concerto de Mozart
para Flauta No. 2 em Ré maior, K314.
Enquanto isso, a atribuição não importava
25
sang heart-piercingly, hidden in her parents’
garden. The teacher who had arranged the
cultural event was understanding enough to
put the girl in touch with a musical youth
group in the city. She babysat on weekends
to pay for the hire of a flute, and began to
attempt to learn how to produce with her
own breath and fingers something of what
she had heard.
mais do que o nome desconhecido de um
pássaro que cantava agudamente com o
coração escondido no jardim de seus pais.
O professor que tinha planejado um evento
cultural sabia o suficiente para colocar a
menina em contato com um grupo de jovens
músicos na cidade. Ela trabalhava como
babá aos fins de semana para poder pagar
o aluguel da flauta e começar a se esforçar
para aprender como produzir, com seu
fôlego e dedos, algo que havia ouvido.
Parágrafo 4: He was among the Youth
Players. His instrument was the very
antithesis of the flute. Part of the language
of early attraction was a kind of repartee
about this, showoff, slangy, childish. The
sounds he drew from the overgrown violin
between his knees: the complaining moo of
a sick cow; the rasp of a blunt saw; a long
fart. “Excuse me!” he would say, with a
clownish lift of the eyebrows and a down-
twisted mouth. His cello, like her flute, was a
secondhand donation to the Players from
the estate of some old man or woman that
was of no interest to family descendants. He
tended it in a sensuous way, which, if she
had not been so young and innocent, she
could have read as an augur of how his
lovemaking would begin. Within a year, his
exceptional talent had been recognized by
the professional musicians who coached
these young people voluntarily, and the
cello was declared his, no longer on loan.
Ele estava entre os jovens musicistas. O
seu instrumento era o oposto da flauta.
Parte da deste tipo de atração precoce era
uma espécie de resposta: ser exibido, falar
gírias e ser infantil. Os sons que ele tirava
do violino que ficava entre seus joelhos
parecia um mugido, como a queixa de uma
vaca doente, a lima de uma serra sem corte
e um longo peido. — “Desculpe-me!” ele
diria, com um levantar das sobrancelhas e a
boca torcida. Seu violoncelo, assim como a
flauta dela, era uma doação aos musicistas
do estado de homens ou mulheres, cujos
instrumentos não interessavam mais aos
descendentes da família. Ele guardava de
uma forma sensual que, se ela não fosse
tão jovem e inocente, poderia ler como uma
adivinha como a sua vida amorosa
começaria. Dentro de um ano, o
excepcional talento dele foi reconhecido
pelos músicos profissionais que treinaram
estes jovens voluntariamente, e o violoncelo
já era dele e não mais emprestado.
Parágrafo 5: They played together when Eles tocavam juntos quando estavam
26
alone, to amuse themselves and secretly
imagine that they were already in concert
performance, the low, powerful cadence
coming from the golden-brown body of the
cello making her flute voice sound, by
contrast, more like that of a squeaking
mouse than it would have heard solo. In
time, she reached a certain level of minor
accomplishment. He couldn’t lie to her.
They had, with the complicity of his friends,
found a place where they could make
love—for her, the first time—and, out of
commitment to a sincerity beyond their
years, he couldn’t deceive her and let her
suffer the disillusions of persisting with a
career that was not open to her level of
performance. Already she had been hurt,
dismayed at being replaced by other young
flautists when ensembles were chosen for
public performances by “talented musicians
of the future.”
“You’ll still have the pleasure of
playing the instrument you love best.”
She would always remember what
she said: “The cello is the instrument I love
best.”
sozinhos para se divertirem e,
secretamente, imaginarem que já estavam
em um concerto. Um baixo de cadência
poderosa vinha do corpo amarronzado do
violoncelo, fazendo fluir o som da sua flauta.
Um contraste mais parecido com um rato
rangendo do que um solo. Por hora, ela
chegou a um certo nível de menor
realização pessoal. Ele não podia mentir
para ela, pois havia, com a cumplicidade de
seus amigos, encontrado um lugar onde
eles pudessem fazer amor — para ela, a
primeira vez — e um compromisso com a
sinceridade ao longo dos anos. Ele não
podia enganá-la e deixá-la sofrer com as
desilusões de persistir com uma carreira
que não era aberta para o seu nível de
concerto. Ela já havia sido ferida e
desmotivada por ter sido substituída por
outros jovens flautistas quando conjuntos
completos foram escolhidos para as
apresentações públicas pelos “talentosos
músicos do futuro”.
— “Você ainda terá o prazer de tocar
o instrumento que mais ama”.
Ela sempre se lembrara do que ele
disse: — “O violoncelo é o instrumento que
mais amo”.
Parágrafo 6: They grew up enough to leave
whatever they had been told was home, the
parents. They worked as waiters in a
restaurant; he gave music lessons in
schools. They found a bachelor pad in the
run-down part of town, where most whites
were afraid to live because blacks had
Eles cresceram o suficiente para deixar tudo
o que tinham em casa, os pais.
Trabalharam como garçons em um
restaurante. Ele deu aulas de música em
escolas. Acharam um apartamento de
solteiro na parte decadente da cidade onde
a maioria dos brancos tinha medo de morar
27
moved there since segregation was
outlawed. In the generosity of their
passionate happiness they had the
expansive impossible need to share
something of it—the intangible become
tangible—bringing a young man who played
pennywhistle kwela on the street corner up
to their kitchen nook to have a real meal
with them, rather than tossing small change
into his cap. The white caretaker of the
building objected vociferously. “You mad?
You mad or what? Inviting blacks to rob and
murder you. I can’t have it in the building.”
porque os negros haviam mudado para lá
desde a proibição da segregação. Na
generosidade de sua felicidade apaixonada,
eles tinham a expansiva necessidade
impossível de compartilhar algo deles — o
intangível tornou-se tangível — trazendo um
jovem, que tocava uma *Pennywhistle
Kwela na esquina da rua, para a sua
cozinha para ter uma refeição de verdade
com eles, em vez de jogar um pequeno
trocado em seu chapéu. O zelador branco
do prédio se opôs veementemente: — Você
está louco? Você é maluco ou quê?
Convidando os negros para roubar e matar
você. Eu não posso tê-lo no prédio.
Parágrafo 7: She went to computer courses
and became proficient. If you’re not an artist
of some kind, or a doctor, a civil-rights
lawyer, what other skill makes you of use in
a developing country? Chosen, loved by the
one you love—what would be more
meaningful than being necessary to him in a
practical sense as well, able to support his
vocation, his achievements yours by proxy?
“What do you do?” “Can’t you see? She
makes fulfillment possible, for both of them.”
Ela fez cursos de computação e tornou-se
competente na área. Se você não é algum
tipo de artista ou doutor, advogado de
direitos civis, que outra habilidade faz de
uso em um país em desenvolvimento?
Escolhido. Amado pelo que você ama. O
que seria mais significativo do que ser algo
necessário para ele em um sentido prático e
ser capaz de suportar a vocação dele, as
conquistas dele pela sua aproximação? —
“O que você faz?” “Você não vê? Ela faz de
tudo para satisfazer ambos”.
Parágrafo 8: Children: married more than
a year, they discussed this, the supposedly
natural progression in love. Postponed until
next time. Next time, they reached the fact:
as his unusual gifts began to bring
engagements at music festivals abroad and
opportunities to play with important—soon-
to-be-famous—orchestras, it became clear
Os filhos, casados há mais de um ano falam
sobre isso. A progressão supostamente
natural no amor. Adiado até a próxima vez.
Na próxima, eles chegaram à conclusão: os
dons incomuns dele começaram a trazer
compromissos em festivais de música no
exterior e a oportunidade de tocar com
importantes orquestras; estavam prestes a
28
that he could not be a father, home for the
bedtime story every night, or for schoolboy
soccer games, at the same time that he was
a cellist, soon to have his name on CD
labels. If she could get leave from her
increasingly responsible job—not too
difficult, on occasion—to accompany him,
she would not be able to shelve that other
responsibility, care of a baby. They made
the choice of what they wanted: each other,
within a single career. Let her mother and
her teatime friends focus on the hazards of
reproduction, contemplating their own
navels. Let other men seek immortality in
progeny; music has no limiting lifespan. An
expert told them that the hand-me-down
cello was at least seventy years old and the
better for it.
serem famosos. Ficou claro que ele não
podia ser um pai que estaria em casa na
hora de dormir para contar história ou para
ir os jogos de futebol da escola, ao mesmo
tempo em que fosse um violoncelista, que
logo teria seu nome em etiquetas de CD. Se
ela pudesse deixar de ser incrivelmente
responsável no seu trabalho — o que não
seria muito difícil nesta ocasião— só para
acompanhá-lo, ela não seria capaz de
arquivar essa outra responsabilidade, a de
cuidar de um bebê. Eles fizeram a escolha
que queriam: um ao outro, dentro de uma
carreira solo. Deixe que a mãe dela e suas
amigas da hora do chá foquem nos perigos
da reprodução, contemplando seus próprios
umbigos. Deixe outro homem procurar a
imortalidade na descendência, a música
não tem tempo limitado de vida. Um
profissional da área lhes disse que o
violoncelo de segunda mão tinha pelo
menos setenta anos e por isso, era melhor.
Parágrafo 9: One month—when was it?—
she found that she was pregnant; kept
getting ready to tell him but didn’t. He was
going on a concert tour in another part of
the country, and by the time he came back
there was nothing to tell. The process was
legal, fortunately, under the new laws of the
country, conveniently available at a clinic
named for Marie Stopes, a past campaigner
for women’s rights over their reproductive
systems. Better not to have him—what?
Even regretful. You know how men, no
matter how rewarded with success, buoyant
with the tide of applause, still feel they must
Um mês — quando foi isso mesmo? — ela
descobriu que estava grávida. Estava se
preparando para contar para ele, mas não
conseguia. Ele estava saindo para uma
turnê em outra parte do país, e quando
voltou não havia nada para dizer. O
processo foi legal. Felizmente, estava
dentro das novas leis do país,
convenientemente disponível numa clínica
chamada Marie Stopes, uma clínica ativista
que lutava pelos direitos das mulheres em
relação aos seus sistemas reprodutivos.
Melhor não ter ele — o quê? Ainda
arrependida. Você sabe como são os
29
prove themselves potent. (Where had she
picked that up? Eavesdropping, as an
adolescent, on tea parties.)
homens, não importa o quanto são
recompensados com sucesso e flutuantes
com a maré de aplausos, ainda sentem que
devem provar-se potentes. (Como ela sabe
disso? Espiando como se fosse uma
adolescente em festas de chá).
Parágrafo 10: She was so much part of the
confraternity of orchestras. The rivalry
among the players, drowned out by the
exaltation of the music they created
together. The gossip—because she was not
one of them, both the men and the women
trusted her with indiscretions that they
wouldn’t risk with one another. And when he
had differences with guest conductors from
Bulgaria or Japan or God knows where,
their egos as complex as the pronunciation
of their names, his exasperation found
relief, as he unburdened himself in bed of
the podium dramas and moved on to the
haven of lovemaking. If she was in a low
mood—the -bungles of an inefficient
colleague at work, or her father’s “heart
condition” and her mother’s long complaints
over the telephone about his disobeying
doctor’s orders with his whiskey-swilling
golfers—the cello would join them in the
bedroom and he’d play for her. Sometimes
until she fell asleep to the low tender tones
of what had become his voice, to her, the
voice of that big curved instrument, its softly
buffed surface and graceful bulk held close
against his body, sharing the intimacy that
was hers. At concerts, when his solo part
came, she did not realize that she was
smiling in recognition, that this was a voice
Ela fazia parte da confraria de orquestras. A
rivalidade entre os músicos abafou a
exaltação da música que eles criaram
juntos. A fofoca era que ela não era parte
deste grupo de homens e mulheres. Todos
confiaram nela com indiscrições que não
arriscariam com outra pessoa e quando ele
teve diferenças com os maestros
convidados da Bulgária, do Japão ou sabe
Deus de onde, seus egos, tão complexos
como a pronúncia de seus nomes, e sua
irritação encontrou alívio quando ele relaxou
na cama, o pódio dos dramáticos e passou
para um paraíso ao fazer amor. Se ela
estava de baixo astral, — os trabalhos mal
feitos de um colega de trabalho ineficiente
ou a “condição do coração” do seu pai e as
longas queixas que sua mãe fazia ao
telefone por ele desobedecer às ordens do
médico, se embebedando de uísque com os
jogadores do golfe — o violoncelo se
juntaria a eles no quarto e ele tocaria para
ela. Às vezes, até que ela adormecesse. Os
tons baixos haviam tornado-se para ela a
voz dele, a voz daquele instrumento grande
e curvado, sua superfície suavemente
polida e o volume gracioso mantido próximo
ao seu corpo, dividindo a intimidade que era
dela. Nos concertos, quando a parte solo
dele começava, ela não se dava conta que
30
she would have recognized anywhere,
among other cellists bowing other
instruments
estava sorrindo ao perceber que esta era a
voz que ela reconheceria em qualquer lugar
dentre outros violoncelistas que tocam seus
instrumentos.
Parágrafo 11: Each year, the music critics
granted, he played better. Exceeded
himself. When distinguished musicians
came for the symphony and opera season,
it was appropriate that he and she should
entertain them at the house, far from the
pad they’d once dossed down in. Where
others might have kept a special piece of
furniture, some inheritance, there stood in
the living room, retired, the cello he’d
learned to play on loan. He now owned a
Guadagnini, a mid-eighteenth-century cello,
found for him by a dealer in Prague. He had
been hesitant. How could he spend such a
fortune? But she was taken aback,
indignant, as if someone had already dared
to remark on his presumptuous
extravagance. “An artist doesn’t care for
material possessions as such. You’re not
buying a Mercedes, a yacht!” He had
bought a voice of incomparable beauty,
somehow human, though of a subtlety and
depth—moving from the sonority of an
organ to the faintest stir of silences—that no
human voice could produce. He admitted—
as if telling himself in confidence, as much
as her—that this instrument roused in him
skilled responses that he hadn’t known he
had.
A cada ano, segundo os críticos musicais,
ele tocava melhor, superando-se. Quando
músicos ilustres vinham para a sinfônica e
para a temporada de ópera, era apropriado
que ele e ela os entretecem em casa, longe
do teclado que um dia haviam tocado. Onde
outros guardariam um pedaço especial de
mobília, alguma herança, lá estava, na sala
de estar, aposentado, o violoncelo
emprestado no qual aprendera a tocar.
Agora ele era dono de um Guadagnini, um
violoncelo de meados do século XVIII,
encontrado por um negociante para ele, em
Praga. Ele ficou hesitante; como poderia
gastar tamanha fortuna? Mas ela foi pega
de surpresa, indignada, como se alguém
tivesse se atrevido a observar em sua
presunçosa extravagância. — “Um artista
não liga para posses materiais como esta.
Você não está comprando uma mercedes,
um iate!” Ele comprou uma voz de beleza
incomparável, de alguma forma humana,
embora de uma sutileza e profundidade —
movendo-se da sonoridade de um órgão à
agitação mais fraca dos silêncios — que
nenhuma voz humana pode produzir. Ele
admitiu, falando para si em confiança, mais
que a ela — que este instrumento despertou
nele respostas hábeis que ele não sabia
que tinha.
Parágrafo 12: In the company of guests Acompanhado de convidados, para os quais
31
whose life was music, as was his, he was
as generous as a pop singer responding to
fans. He’d bring out the precious presence
in its black reliquary, free it, and settle
himself to play among the buffet plates and
replenished wineglasses. If he’d had a few
too many, he’d joke, taking her by the waist
for a moment, “I’m just the wunderkind
brought in to thump out ‘Für Elise’ on the
piano,” and then he’d play so purely that the
voice of the aristocratic cello, which she
knew as well as she had that of the charity
one, made all social exchange strangely
trivial. But the musicians, entrepreneurs,
and guests favored to be among them
applauded, descended upon him, the
husbands and gay men hunching his
shoulders in their grasp, the women giving
accolades, sometimes landing on his lips. It
wasn’t unusual for one of the distinguished
male guests—not the Japanese but
especially the elderly German or Italian
conductors—to make a pass at her. She
knew that she was attractive enough,
intelligent enough, musically and otherwise
(even her buffet was good), for this to
happen, but she was aware that it was
really the bloom of being the outstandingly
gifted cellist’s woman that motivated these
advances. Imagine if the next time the
celebrated cellist played under your baton in
Strasbourg you were able to remark to
another musician your own age, “And his
wife’s pretty good, too, in bed.”
a música era a vida como também o era
para ele, era tão generoso quanto um
cantor pop ao responder seus fãs. Haveria a
preciosa presença de seu relicário preto, o
tiraria, se contentaria em tocar no buffet e
reabasteceria os copos de vinho. Se ele
bebesse um pouco demais, ele brinca,
pegando pela cintura por um momento: —
“Sou apenas o prodígio sendo trazido para
fora com "Für Elise" no piano”. Então ele
tocava de forma tão pura que a voz do
violoncelo que ela conhecia tanto quanto o
da instituição de caridade fez toda troca
social, curiosamente trivial. Mas os músicos,
empresários e convidados preferiam estar
entre eles para aplaudir, para cair sobre ele,
os maridos e os homens gays levantando
os ombros ao seu alcance; as mulheres
fazendo elogios, às vezes aterrissando em
seus lábios. Não era incomum para um dos
ilustres convidados do sexo masculino —
não os japoneses, mas em especial os
condutores mais velhos alemães e italianos
— abrir caminho para ela. Ela sabia que era
atraente e inteligente o suficiente,
musicalmente e de outra forma, mesmo que
o seu buffet tenha sido bom, para isso
acontecer, ela estava ciente da alegria do
que realmente era ser a mulher do
violoncelista excepcionalmente talentoso
que motivou estes avanços. Imagine se na
próxima vez que um famoso violoncelista
tocasse, sob sua batuta, em Estrasburgo,
fosse capaz de observar outro músico da
sua idade, “e sua esposa muito boa,
também, na cama”.
32
Parágrafo 13: Once the guests had gone,
host and hostess laughed about the
flirtatious attention, which he hadn’t failed to
notice. The cello stood grandly against the
wall in the bedroom. Burglaries were
common in the suburbs, and there were
knowledgeable gangs who looked not for
TV sets and computers but for paintings and
other valuable objects. Anyone who broke in
would have to come into the bedroom to
catch sight of the noble Guadagnini, and
face the revolver kept under the pillow.
Uma vez que os convidados foram embora,
o anfitrião e a anfitriã riram do atencioso
flerte, o qual ele não tinha deixado de notar.
O violoncelo ficou grandiosamente
encostado na parede do quarto. Assaltos
eram comuns nos subúrbios e havia
gangues conhecidas que não procuravam
por aparelhos de TV e computadores, mas
sim por pinturas e outros objetos de valor.
Qualquer um que arrombasse a casa teria
de ir para o quarto para ver o Guadagnini e
enfrentar o revólver guardado debaixo do
travesseiro.
Parágrafo 14: Bach, Mozart, Hindemith,
Cage, Stockhausen, and Glass were no
longer regarded in the performance world
patronizingly as music that blacks neither
enjoyed nor understood. The national
orchestra, which was his base—while his
prestige meant that he could absent himself
whenever he was invited to festivals or to
join a string ensemble on tour—had a black
trombonist and a young second violinist with
African braids that fell about her ebony neck
as she wielded her bow. She spoke German
to a visiting Austrian conductor; she’d had a
scholarship to study in Strasbourg.
Professional musicians have always been a
league of nations; for a time, the orchestra
had a tympanist from Brazil. He became a
special friend, and on occasion a live-in
guest, who kept her company when the
beautiful cello accompanied its player
overseas.
Bach, Mozart, Hindemith, Cage,
Stockhausen e Glass não eram mais
considerados, no mundo da apresentação
condescendente, como a música que os
negros não gostavam e nem entendiam. A
orquestra nacional, a qual era a sua base,
enquanto o seu prestígio significava que ele
podia ausentar-se sempre que fosse
convidado para festivais ou para participar
de uma orquestra de cordas em turnê, tinha
uma trombonista negra e uma segunda
violinista jovem com tranças africanas que
caíam-lhe sobre o braço de ébano do
violino, enquanto manuseava seu arco. Ela
falou alemão com o maestro austríaco que
os visitava. Ela devia ter uma bolsa de
estudos em Estrasburgo. Os músicos
profissionais têm sido sempre uma liga das
nações; por um tempo, a orquestra teve um
timpanista brasileiro. Ele tornou-se um
amigo especial e, de vez em quando, um
hóspede que mantinha a empresa dela
33
quando o belo violoncelo acompanhava seu
músico ao exterior.
Parágrafo 15: She was aware that, without
a particular ability of her own, beyond an
everyday competence in commercial
communications, she was privileged enough
to have an interesting life, and a remarkably
talented man whose milieu was also hers.
Ela sabia que sem uma habilidade especial
de sua própria autoria, além de uma
competência todos os dias em
comunicações comerciais, havia sido
privilegiada o suficiente para ter uma vida
interessante e um homem
extraordinariamente talentoso cujo meio de
vida também era dela.
Parágrafo 16: What was the phrase? She
“saw the world,” often travelling with him.
She had arranged a leave, to accompany
the string ensemble to Berlin, for one of the
many musical events in commemoration of
the two-hundred-and-fiftieth anniversary of
Mozart’s birth, but then couldn’t go after all,
because her father was dying—cheerfully,
but her mother had to be supported.
Qual era a frase? Ela “conheceu o mundo”
geralmente viajando com ele. Ela tinha
arranjado uma licença para acompanhar a
orquestra de cordas para Berlim, para um
dos muitos eventos musicais, em
comemoração ao aniversário de duzentos e
cinquenta anos de Mozart, mas não poderia
ir com ele em tudo, porque seu pai estava
morrendo e sua mãe precisava de seu
apoio.
Parágrafo 17: The ensemble met with
exceptional success, among musicians of
high reputation from many countries. He
brought back a folder full of press cuttings—
a few in English—glowing. He tipped his
head dismissively—perhaps you can
become inured to praise, in time, or perhaps
he was tired, drained by the demands of his
music. She had suggestions for relaxation:
a film, a dinner, away from concert-hall
discipline, with the ensemble musicians;
one becomes close to people—a special
relationship that she had long recognized in
him—with whom one has achieved
O conjunto reuniu-se com o sucesso
excepcional como os músicos de grande
reputação de muitos países. Ele trouxe de
volta uma pasta cheia de recortes de jornais
— alguns em inglês — brilhando. Ele
inclinou a cabeça com desdém; com o
tempo talvez se acostumaria com os elogios
ou talvez ele só estivesse cansado,
esgotado pelas exigências que a sua
música trazia. Ela tinha sugestões para o
momento de descanso: um filme, um jantar,
ficar longe da disciplina da sala de concerto
com o conjunto de músicos. A pessoa fica
próxima das pessoas com quem conseguiu
34
something. He was not enthusiastic. “Next
week, next week.” He took the revered cello
out of its solitude in the case carved to its
shape and played, to himself, to her—well,
she was in the room those evenings.
algo, uma característica especial que ela
admirava muito nele. Ele não estava
entusiasmado. — “Na próxima semana, na
próxima semana”. Ele tirou o respeitoso
violoncelo de sua solidão, esculpido à sua
forma e tocou para si mesmo e para ela.
Bom, em noites como estas ela estava na
sala.
Parágrafo 18: It is his voice, that glorious
voice of his cello, saying something
different, speaking not to her but to some
other.
He makes love to her. Isn’t that
always the signal of return after he has
been away?
There’s a deliberation in the
caresses. She is almost moved to say
stupidly what they’ve never thought to say
to each other: Do you still love me?
He begins to absent himself from her
at unexplained times or for obligations that
he must know she knows don’t exist.
The voice of the cello doesn’t lie.
É a sua voz. A gloriosa voz do seu
violoncelo dizendo algo diferente, falando
não para ela, mas para alguém.
Ele fez amor com ela. Não é sempre
este um sinal de retorno depois que ele ia
embora?
Há uma deliberação nas carícias.
Ela é quase movida a dizer, de forma
estúpida, o que eles nunca pensaram em
dizer um para o outro: — Você ainda me
ama?
Ele começou a se afastar dela, por
razões inexplicáveis, ou por obrigações que
ele imagine que ela sabe que as mesmas
não existem.
A voz do violoncelo não mente!
Parágrafo 19: How to apply to the life of
this man that shabby ordinary
circumstance—what’s the phrase? He’s
having an affair. Artists of any kind attract
women. They sniff out some mysterious
energy of devotion there, which will always
be the rival of their own usually reliable
powers of seduction. Something that will be
Como aplicar na vida deste homem que
decai em circunstância comum — qual é
mesmo a frase? — Ele está tendo um caso.
Artistas de qualquer natureza atraem as
mulheres. Eles farejam alguma energia
misteriosa de devoção, energia que sempre
será a rival de seus próprios poderes,
geralmente confiáveis de sedução. Algo que
35
kept from even the most desired woman.
Who could know that attraction better than
she? But, for her, that other, mysterious
energy of devotion has now made of love a
threesome.
The cello with its curved body
reverentially in the bedroom.
What woman?
será mantido até mesmo pela mulher mais
desejada. Quem poderia conhecer melhor a
atração do que ela? Mas para ela, essa
outra energia misteriosa de devoção fez
agora um ménage à trois1.
O violoncelo com seu corpo curvado
respeitosamente no quarto.
Mas que mulher?
Parágrafo 20: At music festivals around the
world, the same orchestral players, the
same quartets and trios keep meeting. In
different countries, they share a map of
common experience, live in the same
hotels, exchange discoveries of restaurants,
complaints about concert-hall acoustics,
and enthusiasm over audience response. If
it were some musician encountered on a
particular tour, that didn’t necessarily mean
that the affair was a brief one, which had
ended when the man and the woman went
their separate ways, seas and continents
apart; they might meet again, plan to, at the
next festival, somewhere else in the world—
Vienna, Jerusalem, Sydney—where he had
played or was contracted to play soon. The
stimulation not only of performance before
an unknown audience but of meeting again,
the excitement of being presented with the
opportunity to continue something
interrupted.
Nos festivais de música ao redor do mundo,
os mesmos músicos da orquestra, os
mesmos quartetos e trios continuavam se
encontrando. Em diferentes países, dividiam
um mapa de experiências em comuns,
moravam no mesmo hotel, trocavam
descobertas de restaurantes, as
reclamações sobre os concertos acústicos e
o entusiasmo sobre a resposta do público.
Se fosse algum encontro de músicos em
uma turnê especial não significaria
necessariamente que o caso era breve,
caso que acabou quando o homem e a
mulher seguiram caminhos separados,
oceanos e continentes de distância. Eles
podem se encontrar de novo. É o plano, no
próximo festival, em algum lugar do mundo:
Viena, Jerusalém, Sydney, onde ele tocou
ou foi contratado para em breve tocar. O
estímulo não só de desempenho diante de
uma plateia desconhecida, mas de
reencontro, a empolgação de ser
presenteado com a oportunidade de
continuar algo que foi interrompido.
Parágrafo 21: Or was the woman nearer Ou era a mulher que morava perto de casa?
1 Ménage à trois- relacionamentos sexuais entre três pessoas.
36
home? A member of the national orchestra
in which he and his cello were star
performers? That was an identification she
found hard to look for, considering their
company of friends in this way. A young
woman, of course, a younger woman than
herself. But wasn’t that just the inevitable
decided at her mother’s tea-table forum?
The clarinet player was in her late forties,
endowed with fine breasts in décolleté and
a delightful wit. There was often repartee
between them, the clarinet and the cello,
over drinks. The pianist, young with waist-
length red-out-of-the-bottle hair, was a
lesbian kept under strict guard by her
woman. The third and last female musician
in the orchestra was also the last whom one
would be crass enough to think of: her
name was Khomotso; she was the second
violinist of extraordinary talent, one of the
two black musicians. She was so young;
she had given birth to an adored baby, who,
for the first few months of life, had been
brought to rehearsals in the car of
Khomotso’s sister so that the mother could
suckle the infant there. The director of the
orchestra gave an interview to a Sunday
newspaper about this, as an example of the
orchestra’s adaptation to the human values
of the new South Africa. The violinist was
certainly the prettiest, the most desirable, of
the women in whose company the cellist
spent the intense part of his days and
nights, but respect, his human feeling,
would be stronger than sexual attraction, his
identification with her as a musician would
Ou a que fazia parte da orquestra nacional
da qual ele e seu violoncelo eram astros?
Essa foi uma identificação que ela achou
difícil de procurar, considerando a sua
companhia de amigos. Uma mulher jovem é
claro, mais jovem do que ela, mas isto não
foi apenas o que é inevitável decidido no
fórum de mesa de chá de sua mãe? Uma
clarinetista que estava nos seus quarenta e
tantos anos, dotada de seios finos no
decote e um humor delicioso. Houve,
frequentemente, ponderações entre eles, o
clarinete e o violoncelo, sobre bebidas. Ou
seria a pianista, jovem com o cabelo
vermelho que ia até a cintura, uma lésbica
mantida sob a guarda estrita de sua mulher.
A terceira e última mulher musicista da
orquestra era também a última em quem
alguém seria estúpido o suficiente para
pensar: o nome dela era Khomotso. Era a
segunda violinista de talento extraordinário,
uma das duas musicistas negras. Ela era
tão jovem, tinha dado a luz a um adorável
bebê que, nos primeiros meses de vida, fora
trazido aos ensaios no carro de sua irmã
para que ela pudesse amamentá-lo. O
diretor da orquestra concedeu uma
entrevista para um jornal de domingo sobre
isto, como um exemplo de adaptação da
orquestra para os valores humanos da nova
África do Sul. A violinista foi certamente a
mais bonita, a mais desejada das mulheres,
cuja companhia o violoncelista passou a
parte mais intensa de seus dias e noites.
Além de respeito, o seu sentimento humano
seria mais forte do que a atração sexual, a
37
make distracting her from that taboo. As for
him, wouldn’t it look like the old South
Africa—a white man “taking advantage of”
the precariously balanced life of a young
black woman?
sua identificação com ela como um músico
a distrairia daquele tabu. Quanto a ele, não
se parecia com a velha África do Sul — um
homem branco “se aproveitando” da vida
precariamente equilibrada de uma jovem
negra?
Parágrafo 22: His lover might also have
been one of the faithful season-ticket
holders who gave post-performance parties.
He had a lunchtime friendship with one of
the male regulars, an industrialist and
amateur viola player with a fine music
library, from which he was free to borrow.
Or it might have been the wife of one of
these men. Many of the wives were
themselves career women, much younger
than their wealthy husbands, bringing
intelligence of a commitment to ideas and
activities outside the arts, as well as what
he might see as sexual availability.
A amante dele também poderia ser uma das
fiéis fãs da época dos convites que deram
para as festas após as apresentações. Ele
tinha um amigável almoço com um dos
frequentadores masculinos, um
industrialista e tocador de viola amador,
com uma biblioteca de música muito
requintada, da qual ele era livre para pegar
emprestado. Ou pode ter sido a esposa de
um destes homens. Muitas das esposas
eram mulheres de carreira, mais jovens do
que seus saudáveis maridos, dotadas de
inteligência, de um compromisso com ideias
e atividades fora das artes, bem como o que
ele poderia ver como disponibilidade sexual.
Parágrafo 23: It was no longer assumed
that she would go with him, as she always
had, when he accepted invitations to
receptions or private houses; the unspoken
implication was that these were now strictly
professional. He no longer suggested what
had also been assumed—that when he was
to give a recital in another city in their home
country she would, of course, be there. He
packed his overnight bag on their bed, took
up the black-clad body of the cello, and
kissed her goodbye. There were well-
spaced acts of dutiful intercourse, as if it
Já não se pensava que ela sairia com ele, já
que ela sempre estava junto dele quando
ele aceitava os convites para recepções ou
para as casas particulares; a implicação
tácita era que estes eram agora
estritamente profissionais. Ele não sugeriu o
que já havia sido assumido que, quando ele
fosse participar de um recital em outra
cidade, em seu país de origem, ela deveria,
é claro, estar lá. Ele arrumou a mala na
cama dos dois, pegou o corpo coberto de
preto do violoncelo e lhe deu um beijo de
adeus. Havia atos sexuais bem espaçados
38
were as routine as a regular haircut. She
began to want to avoid the approach in bed,
and then grew fearful that she would send
him to the other woman by suggesting that
she did not desire him; at the same time,
she wanted terribly to put her hands, her
mouth on the body beside her, no matter
the humiliation of the act, which he fulfilled
like a medical procedure, prescribed to
satisfy her. A bill to be paid.
e obrigatórios, como se ele fosse tão
rotineiro quanto um corte de cabelo regular.
Ela começou a querer evitar a aproximação
na cama e depois ficou com medo de que
acabaria mandando-o para outra mulher,
sugerindo que ela não o desejava; porém
ao mesmo tempo, ela queria terrivelmente
colocar as mãos e a boca sobre o corpo,
não importava a humilhação do ato que ele
cumpriu como um procedimento médico,
prescrito para satisfazê-la. Uma conta a ser
paga.
Parágrafo 24: She waited for him to speak.
About what had happened. To trust the long
confidence between them. He never did.
She did not ask, because she was also
afraid that what had happened, once
admitted, would be irrevocably real.
One night, he got up in the dark,
took the cello out of its bed, and played.
She woke to the voice, saying something
passionately angry in its deepest bass.
Then there came the time when—
was it possible, in his magnificent, exquisite
playing?—there was a disharmony, the low
notes dragging as if the cello were refusing
him. Nights, weeks, the same.
Ela esperou que ele falasse sobre o que
aconteceu. Tinha fé na confiança que há
muito existia entre eles. Ele nunca falou. Ela
não perguntou, porque estava com medo de
que o que aconteceu, uma vez assumido,
podia ser irrevogavelmente real.
Uma noite, ele se levantou, tirou o
violoncelo da sua cama e tocou. Ela
acordou ao som da voz, dizendo algo
apaixonadamente brava, num profundo tom
baixo.
Então veio a época em que houve
uma desarmonia - era possível, no
magnífico e requintado jogo dele? As notas
baixas se arrastando como se o violoncelo
as estivesse recusando. Por noites e
semanas aconteceu o mesmo.
Parágrafo 25: So. She knew that the affair
was over. She felt a pull of sadness—for
him. For herself, nothing. By never
confronting him she had stunned herself.
Soon he came to her again. The
Então, ela soube que o caso havia
acabado. Ela sentiu uma tristeza por ele,
não por ela, e se surpreendeu por nunca tê-
lo confrontado.
Logo, ele voltou para ela novamente.
39
three of them—he, she, and the cello
against the wall—were together.
He made love better than ever
remembered, caresses not known, more
subtle, more anticipatory of what could be
roused in her, what she was capable of
feeling, needing. As if he’d had the
experience of a different instrument to learn
from.
Os três — ele, ela e o violoncelo encostado
à parede — estavam juntos!
Ele fez amor melhor do que ela se
lembrava. Carícias nunca feitas antes, mais
sutis, mais antecipatórias do que poderia
ser despertado nela, o que ela era capaz de
sentir e de necessitar. Era como se ele
tivesse tido na experiência de um outro
instrumento um aprendizado.
5.3 Notas e Comentários da Pesquisadora
Nesta seção apresentaremos os comentários feitos pela pesquisadora a
respeito do conto escolhido The First Sense. Como apresentamos na metodologia,
nossos comentários serão feitos seguindo as orientações de Antunes (1991), Britto
(2002) e Cesar (1995); esta ultima na sua tradução de Bliss, de Katherine Mansfield.
Comecemos falando sobre o título. Para a realização desta tradução tivemos
que analisar o contexto da história apresentada no conto. Analisar o que a esposa
sentiu ao perceber que seu marido podia a estar traindo. Com o decorrer da história
o conto torna-se um relato vívido entre grandes artistas da música clássica e de
credibilidade emocional e de traição, inúmeras vezes imaginando quem seria a
suposta amante. Mas no fim percebe que na verdade era o violoncelo. Sendo assim,
podemos considerar o que ela sentiu como uma primeira sensação, no caso, de
traição. Portanto A primeira sensação é a tradução que mais se encaixou, por ter
essa ligação com a obra de acordo com o contexto de todo o conto.
Como sabemos, o apartheid foi uma política racial implantada na África do
Sul, e Gordimer o teve como tema principal para escrever as suas obras. Seus
romances, contos e ensaios têm sempre essa marca, essa característica a qual
podemos considerar como sendo um ponto forte da autora. Em The First Sense
essa característica é apresentada de forma explícita em alguns pontos, porém em
outros, aparece somente nas entrelinhas, revelando-se apenas com uma ou outra
40
palavra. Mas essa marca se repete, e muito, no conto. Vejamos alguns exemplos na
tabela abaixo:
Tabela 1: Trechos comentados A
Exemplo 1: “[…] where most whites were
afraid to live because blacks had moved
there since segregation was outlawed”.
Ver parágrafo 6
“[...] onde a maioria dos brancos tinha medo
de morar porque os negros haviam mudado
para lá desde a proibição da segregação”.
Exemplo 2: “In the generosity of their
passionate happiness they had the
expansive impossible need to share
something of it—the intangible become
tangible—bringing a young man who played
pennywhistle kwela on the street corner up
to their kitchen nook to have a real meal
with them, rather than tossing small change
into his cap. The white caretaker of the
building objected vociferously. “You mad?
You mad or what? Inviting blacks to rob and
murder you. I can’t have it in the building”.
Ver parágrafo 6
“Na generosidade de sua felicidade
apaixonada, eles tinham a expansiva
necessidade impossível de compartilhar algo
deles – o intangível tornou-se tangível —
trazendo um jovem, que tocava uma
*Pennywhistle Kwela na esquina da rua,
para a sua cozinha para ter uma refeição de
verdade com eles, em vez de jogar um
pequeno trocado em seu chapéu. O zelador
branco do prédio se opôs veementemente:
—“Você está louco? Você é maluco ou quê?
Convidando os negros para roubar e matar
você. Eu não posso tê-lo no prédio”.
Tabela 1: Trechos comentados A
Percebemos que no decorrer deste parágrafo não é tão claro essa questão do
racismo. Só fica claro quando a autora cita o “branco” referindo-se tanto as pessoas
quanto ao zelador do prédio, dando, assim, a entender, no segundo exemplo, que o
jovem que tocava flauta na esquina da casa do casal, a quem eles queriam ajudar
era negro, não merecendo, por isso, nenhuma comiseração.
Vejamos mais um exemplo:
41
Tabela 2: Trechos comentados B
Exemplo 3: “The third and last female
musician in the orchestra was also the last
whom one would be crass enough to think
of: her name was Khomotso; she was the
second violinist of extraordinary talent, one
of the two black musicians”
Ver parágrafo 21
“A terceira e última mulher musicista da
orquestra era também a última em quem
alguém seria estúpido o suficiente para
pensar: o nome dela era Khomotso. Era a
segunda violinista de talento extraordinário,
uma das duas musicistas negras”.
Tabela 2: Trechos comentados B
Neste exemplo, podemos considerar como característica do apartheid quando
ela fala que seria de extrema estupidez pensar que seu marido a estava traindo com
uma violinista negra e acaba imaginando que não haveria possibilidade alguma
disso acontecer. Outra ênfase colocada nas entrelinhas do discurso racista refere-se
ao fato de que, apesar de ter talento extraordinário no violino, é a sua cor que é
considerada razão para que ela seja desqualificada como suposta amante do
marido. A partir da leitura, entendemos que a esposa, mesmo que anteriormente
estivessem ela e seu marido dispostos a ajudar um negro, não aceitava a
possibilidade de seu marido a trair com uma negra. Por isso ela diz que a última
pessoa que ela poderia imaginar ser a amante do marido seria a violinista. Este
pode ser considerado um belo exemplo que apresenta o grau de profundidade com
que a autora retrata o apartheid daquela época.
Durante o conto, temos muitos outros exemplos dessa marca da autora, como
se pode perceber na tabela abaixo.
Tabela 3: Trechos comentados C
Exemplo 4: “[…] had a black trombonist and
a young second violinist with African braids
that fell about her ebony neck as she
“[...] tinha uma trombonista negra e uma
segunda violinista jovem com tranças
africanas que caíam sobre o braço de ébano
42
wielded her bow. She spoke German to a
visiting Austrian conductor; she’d had a
scholarship to study in Strasbourg”.
Ver parágrafo 14
do violino, enquanto manuseava seu arco.
Ela falou alemão com o maestro austríaco
que os visitava. Ela tinha uma bolsa de
estudos em Estrasburgo”.
Exemplo 5: “As for him, wouldn’t it look like
the old South Africa— a white man “taking
advantage of” the precariously balanced life
of a young black woman?”
Ver parágrafo 21
“Quanto a ele, não se parecia com a velha
África do Sul — um homem branco “se
aproveitando” da vida precariamente
equilibrada de uma jovem negra?”.
Tabela 3: Trechos comentados C
No exemplo 4, percebemos fortemente o preconceito racial da época, ou seja
como que uma negra podia tocar violino numa orquestra, se não fosse com bolsa. É
muito claro essa marca da autora nesse exemplo. Já no exemplo 5, entendemos que
o homem se aproveitava daquela jovem violinista negra.
O processo da tradução é a recriação da obra original. Os problemas na
sintaxe e/ou estrutura do idioma, não a torna intraduzível, mas já que toda língua
apresenta seus problemas e dificuldades, devemos recriar o objetivo da obra sempre
mantendo a mensagem do original. Para realizar o processo de recriação houve a
necessidade de fazer pesquisas para uma possível tradução. A conclusão é que
certas frases, se mantidas literalmente como já dito, não ficariam com uma tradução
adequada, continuariam com a mensagem original, porém confusa na tradução. Não
é o caso de todas as frases. Existem frases que se traduzidas literalmente ficam
adequadas, conforme se pode observar nos exemplos abaixo:
Tabela 4: Trechos comentados D
Exemplo 6: “An expert told them that the
hand-me-down cello was at least seventy
years old and the better for it”.
Ver parágrafo 8
“Um profissional da área lhes disse que o
violoncelo de segunda mão tinha pelo menos
setenta anos e por isso, era melhor”.
43
Exemplo 7: “[…] her mother’s long
complaints over the telephone about his
disobeying doctor’s orders with his whiskey-
swilling golfers”.
Ver parágrafo 10
“[...] e as longas queixas que sua mãe fazia
ao telefone por ele desobedecer às ordens
do médico, se embebedando de uísque com
os jogadores do golfe”.
Tabela 4: Trechos comentados D
Outro ponto interessante que vale a pena comentar, é o fato da autora, sendo
a esposa, usar em muitas partes do conto a figura de linguagem— metáfora— para
descrever o instrumentos como se fosse uma mulher. Todo o uso dessa linguagem
leva a crer, em algumas partes, que quem ela cita é uma mulher, porém ao
prosseguirmos na leitura do conto, percebemos que se trata de um instrumento.
Como exemplo dessa metáfora temos algumas comparações que a esposa faz
sobre o jeito com que o marido toca o instrumento e estas se assemelham à
intimidade do casal. Por um instante pensamos ser de fato uma mulher, mesmo
citando em algumas partes o instrumento. Os exemplos a seguir nos ajudam a
perceber esse fato.
Tabela 5: Trechos comentados E
Exemplo 8: “He tended it in a sensuous
way […]” Ver parágrafo 4
“Ele guardava de uma forma sensual [...]”
Exemplo 9: “[…] the cello would join them in
the bedroom […]”.
Ver parágrafo 10
“[...] o violoncelo se juntaria a eles no
quarto[...]”
Exemplo 10: “[…] its softly buffed surface
and graceful bulk held close against his
body, sharing the intimacy that was hers
[…]” Ver parágrafo 10
“[…] o volume gracioso mantido próximo ao
seu corpo, dividindo a intimidade que era
dela [...]” Ver página
Exemplo 11: “But, for her, that other,
mysterious energy of devotion has now
“Mas para ela, essa outra energia misteriosa
de devoção fez agora do amor um ménage à
44
made of love a threesome”.
Ver parágrafo 19
trois”.
Exemplo 12: “He packed his overnight bag
on their bed, took up the black-clad body of
the cello, and kissed her goodbye. There
were well-spaced acts of dutiful intercourse,
as if it were as routine as a regular haircut”.
Ver parágrafo 23
“Ele arrumou a mala na cama dos dois,
pegou o corpo coberto de preto do violoncelo
e lhe deu um beijo de adeus. Havia atos
sexuais bem espaçados e obrigatórios, como
se ele fosse tão rotineiro quanto um corte de
cabelo regular”.
Tabela 5: Trechos comentados E
No conto, a esposa acaba vivendo numa espécie de alienação. No início, ela
fala como a sua mãe é uma mulher alienada, que se preocupa com vários motivos e
sem nenhuma razão. Percebemos claramente que a mãe dela é descrita como uma
mulher fanática e alienada que, de tanto reclamar, tudo acabava tornando-se
repetição. Por exemplo, ela sempre falava sobre as doenças reprodutivas femininas,
sobre o que é ter um filho. Com a leitura do conto percebemos que a esposa acaba
tornando-se fanática assemelhando-se a sua mãe. Só que com motivos diferentes.
Ela tem uma preocupação excessiva com o que o marido está fazendo e com tudo
que acontece ao seu redor. Ela falou tanto de sua mãe que não percebeu a
semelhança que tinha com ela. Essa constatação pode ser verificada nos exemplos
a seguir
Tabela 6: Trechos comentados F
Exemplo 13: “[…] and her mother, with her
groupies exchanging talk of female
reproductive maladies, from conception to
menopause, did not have in their
comprehension what it was that she wanted
to do”. Ver parágrafo 3
“[...] e sua mãe, com suas fanáticas
conversas sobre as doenças reprodutivas
femininas desde a concepção até a
menopausa, e a filha não entendia o que a
mãe queria dizer com isso”.
Exemplo 14 “Let her mother and her teatime
friends focus on the hazards of
“Deixe que a mãe dela e suas amigas da
hora do chá foquem nos perigos da
45
reproduction, contemplating their own
navels”. Ver parágrafo 8
reprodução, contemplando seus próprios
umbigos”.
Tabela 6: Trechos comentados F
Concluindo este capítulo, podemos afirmar que mesmo sabendo que uma
tradução perfeita não existe, tentar fazer com que, pelo menos, fique compreensível
é uma estratégia que o tradutor tem de levar a sério. Portanto, a tradução
comentada poder ser vista como uma tarefa que se concentra no conteúdo da obra,
pois durante o processo tradutório, o tradutor se envolve tanto com a história que
aos poucos vai se intensificando a ponto de sentir a necessidade de explicar a obra.
Levando em conta também a estratégia de pesquisar as expressões e procurar a
melhor tradução que se encaixe na frase e ainda assim mantenha a mensagem do
original. Podemos considerar, a partir da realização deste capítulo, que o papel do
tradutor é muito desafiador.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho desenvolvido teve como tema a tradução comentada que seguiu
as orientações de Antunes (1991), César (1999) e Britto (2012), tradutores literários
que têm praticado a tradução comentada e anotada.
Os objetivos lançados foram alcançados, uma vez que, a partir do processo
tradutório, foi possível identificar as dificuldades que o tradutor encontra para
traduzir uma obra. A prática tradutória faz com que nos aprofundemos de tal forma
na pesquisa sobre o período literário vivido pela autora do texto original, e nas
características literárias desse período, que nos leva a querer comentar com mais
exatidão e explicação a obra em questão.
Nadine Gordimer, autora de The first sense, conto escolhido para realização
da tradução comentada deste trabalho, tinha uma forma de escrita bastante rica. O
fato de a autora lutar sempre pela liberdade de expressão, pensando que todos têm
o direito de se expressar, baseando suas obras em um momento tão difícil e
conturbado que foi o Apartheid no fez ganhar tamanha admiração não só por suas
obras, mas também por sua vida, ainda que a mesma tenha sido discreta. Gordimer
realmente foi uma mulher de opinião que conseguiu, através de suas obras, se
expressar.
Entendemos que no processo tradutório é preciso ser fiel ao original para não
deixar passar nada que, a princípio, possa até parecer estranho e sem sentido, mas
que acaba sendo de grande valor para o original. Por isso, o tradutor tem que fazer
uma espécie de jogo de tradução para, assim, recriar, já que tradução é a recriação
do original. Sendo assim, percebemos que todos os tradutores enfrentam algum tipo
de dificuldade na hora de traduzir, seja ela na sintaxe do idioma ou não, pois um
tradutor é diferente do outro. Mas o que realmente importa é se ele conseguiu
passar a mensagem que o original apresenta para o leitor da língua-meta, porque,
às vezes, os tradutores recebem obras tão exuberantes que cabe ao tradutor,
durante o processo tradutório, manter a mensagem do original e causar, na
tradução, o impacto que o original causa.
A realização deste trabalho foi de grande satisfação pessoal, pois tendo tido a
experiência de tradução pude constatar que realmente não é nada fácil fazer uma
47
tradução. Além disso, posso afirmar que meu processo tradutório não só ampliou
meu vocabulário como também aumentou minha autoconsciência como profissional
da área e me ajudou a melhorar a qualidade de minhas traduções.
48
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, B. Notas sobre tradução literária. Disponível em: http://google.com.br.
Acesso em: 27 de abril de 2014;
BRITTO, P.H. A tradução literária. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012;
CESAR, A.C. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999;
GORDIMER, Nadine. The first sense. The New Yorker’s archive,2006. Dispon[ivel
em: <http://www.newyorker.com/>. Acesso em maio de 2014;
http://www.infopedia.pt/$nadine-gordimer;jsessionid=hqt+Rot6MYTQ3zVWPXigsA__
Acesso em 15 de junho de 2014;
http://entretenimento.uol.com.br/flip/ultnot/ult4326u276.jhtm Acesso em 15 de junho
de 2014;
http://www.liceus.com/cgi-bin/aco/lit/02/11351.asp. Acesso em: 23 de julho de 2014;
http://www.newyorker.com/books/double-take/nadine-gordimer-in-the-new-yorker
Acesso em: 17 de outubro de 2014.