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Cerâmica indígena do Brasil: Cultura material dos Paiter Suruí/RO e Asurini/Xingu/PA Autor: Jean-Jacques A. Vidal. Orientadora: Profa. Dra. Geralda Dalglish (Lalada) Neste artigo, tratamos de um aspecto específico da cultura material dos índios Paiter Suruí de Rondônia e Asurini do Xingu-PA, a cerâmica. Esta arte para estes povos envolve muito mais do que apenas o fator cerâmico, pois sabemos que em uma sociedade indígena a cultura material se insere em um universo maior, que inclui as relações sociais, a relação com a natureza e com a sobrenatureza. A arte, e mesmo as práticas tecnológicas, não ficam desligadas destas outras dimensões. As peças apresentadas representam um saber e no caso dos Suruí envolve um ritual em sua produção. Estas peças são fabricadas somente durante o período da seca, isto é, os meses de junho, julho e agosto, período este mais adequado para obtenção das matérias primas como a argila extraída do fundo do igarapé, das sementes para alisar as peças e da madeira para queimar. São importantes também as técnicas, comportamentos, atitudes, gestos e emoções, que envolvem esta prática artística. Em 1986, visitei a cidade de Cacoal, em Rondônia, a convite da indigenista Maria do Carmo Barcellos, com quem conversei muito sobre as peças cerâmicas que os índios

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Cerâmica indígena do Brasil: Cultura material dos Paiter Suruí/RO e Asurini/Xingu/PA

Autor: Jean-Jacques A. Vidal.

Orientadora: Profa. Dra. Geralda Dalglish (Lalada)

Neste artigo, tratamos de um aspecto específico da cultura material dos índios

Paiter Suruí de Rondônia e Asurini do Xingu-PA, a cerâmica. Esta arte para

estes povos envolve muito mais do que apenas o fator cerâmico, pois sabemos

que em uma sociedade indígena a cultura material se insere em um universo

maior, que inclui as relações sociais, a relação com a natureza e com a

sobrenatureza. A arte, e mesmo as práticas tecnológicas, não ficam desligadas

destas outras dimensões.

As peças apresentadas representam um saber e no caso dos Suruí

envolve um ritual em sua produção. Estas peças são fabricadas somente

durante o período da seca, isto é, os meses de junho, julho e agosto, período

este mais adequado para obtenção das matérias primas como a argila extraída

do fundo do igarapé, das sementes para alisar as peças e da madeira para

queimar. São importantes também as técnicas, comportamentos, atitudes,

gestos e emoções, que envolvem esta prática artística.

Em 1986, visitei a cidade de Cacoal, em Rondônia, a convite da

indigenista Maria do Carmo Barcellos, com quem conversei muito sobre as

peças cerâmicas que os índios traziam para vender. Fiquei impressionado

naquele momento com a beleza da forma e a coloração das peças, sem

nenhuma decoração. Pensei na possibilidade de realizar um trabalho com eles

e fiquei muito contente, quando me convidaram para visitar a aldeia.

Como resultado dessa convivência, muito gratificante, com os Suruí,

especialmente pelo interesse que manifestaram em acompanhar e participar de

minha pesquisa, defendi em 2011 no IA/UNESP, a minha tese de mestrado: “A

cerâmica do povo Paiter Suruí de Rondônia: continuidade e mudança cultural,

1970-2010”. Para esse trabalho, além dos índios, pude contar com o apoio de

minha orientadora, Profa. Dra. Geralda Mendes F.S. Dalglish (Lalada) e, em

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especial, da antropóloga Dra. Betty Mindlin, cujas obras sobre os Paiter Suruí

foram referência constante para entender a história desse povo e suas

características socioculturais. Esse trabalho também não teria sido possível

sem o acompanhamento altamente qualificado do líder e professor indígena,

Uraan Anderson Suruí.

Já a partir de 2010, houve o interesse de promover, de maneira mais

qualificada e em colaboração com os índios, a valorização da arte cerâmica

Suruí no meio urbano. Com o apoio de acadêmicos, galeristas, curadores e do

Museu do Índio – FUNAI (RJ), os índios Suruí conseguiram espaço e

oportunidade, segundo eles inovadoras, para participar de uma série de

eventos, todos relativos à sua arte mais relevante e diferenciada, a cerâmica.

Figura 1 - A ceramista Pamatoa Suruí modelando uma panela Itxira. Aldeia Gabgir – RO, da linha 14, 2014. Fotos Jean-Jacques Vidal.

Em 2015 tivemos a oportunidade de conhecer os Asurini do Xingu no estado do

Pará, povo que se distingue pela rica produção cerâmica, de forma bastante diferente

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dos Paiter Suruí. Essa diferença nos leva a uma primeira constatação: a arte cerâmica

indígena é extremamente diversificada no que se refere tanto à tecnologia como ao

estilo, às formas produzidas, à decoração e às implicações sociais e cosmológicas

indissociáveis da atividade.

Figura 2 – Ceramista Asurini dando acabamento em peça cerâmica decorada. Aldeia do Koatinemo, Xingu-PA, 2015. Foto Jean-Jacques Vidal.

Após o trabalho de campo entre os Asurini e a leitura de textos sobre os

significados dos grafismos aplicados em sua cerâmica (Müller, R.P. 1993,

2009) sentimos a necessidade de ampliar nossos horizontes e enriquecer o

nosso conhecimento sobre a diversidade da produção cerâmica ameríndia. A

primeira constatação é que não existe uma tradição cerâmica, mas uma grande

variedade de tradições, cada qual profundamente inserida em um contexto

sociocultural, ambiental e histórico específico.

Esta constatação, entretanto, não pode obscurecer que existem muitas

semelhanças na cerâmica ameríndia a serem registradas: o fato de ser uma

tarefa essencialmente feminina e uma atividade exclusivamente artesanal,

além de, apesar de algumas diferenças, ser elaborada com técnicas e

procedimentos bastante semelhantes.

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Constatamos também que todas as sociedades amazônicas que

produzem cerâmica, possuem regras, a serem obedecidas na sua fabricação.

Outro fator comum, apesar das mudanças, adaptações e inovações, é o fato

dos índios atribuírem à atividade cerâmica uma posição privilegiada nas suas

respectivas culturas, sendo considerada, em alguns casos, como um definidor

de identidade para si mesmos e frente a outras etnias indígenas ou aos não-

índios. Verificamos também o papel importante da cerâmica na mitologia e

cosmologia indígenas, assim como sua íntima relação com o meio ambiente de

onde provem as matérias primas para sua confecção e muitos dos padrões

para sua ornamentação.

É importante lembrar que em todas as sociedades indígenas

amazônicas, os donos dos conhecimentos e das artes são seres sobrenaturais

com os quais é preciso negociar, geralmente através da atividade xamãnica

(Els Lagrou, 2009). Este é um aspecto fundamental da arte indígena.

São notórias as diferenças entre o processo de fabricação e o estilo das

peças cerâmica Suruí e Asurini do Xingu. Podemos verificar visivelmente estas

diferenças nas peças abaixo (figura 3, coleção particular Regina Polo müller) e

(figura 4, coleção particular Betty Mindlin).

Figura 3- Peça Asurini, Xingu –PA, 1978. Figura 4- peça Suruí – RO,1980.

As belas formas e a coloração de tons quentes, sem nenhuma

decoração intencional a não ser os matizes provenientes da própria matéria

prima muito apreciados entre os Suruí, agregam um valor estético as suas

peças e valorizam as suas formas. Sempre ficamos muito intrigados com a

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perfeição das formas, acabamento e qualidade técnica da cerâmica Suruí.

Ainda mais por não possuir nenhuma decoração como acontece entre os

Asurini do Xingu. Constatamos em ambos os casos que todos os

procedimentos para a fabricação destas cerâmicas, são extremamente

elaborados e dirigidos especificamente para a obtenção de um resultado de

alta qualidade funcional e estética.

Referências Bibliográficas:

LAGROU, E. Arte Indígena no Brasil. Belo Horizonte: editora C/arte, 2009.

MINDLIN, B. Vozes da origem/ (seleção e organização) Betty Mindlin e Narradores Suruí; tradução e transcrição das gravações Antonio Ipokarã. Rio de Janeiro: Record, 2007.

___________ Diários da floresta. São Paulo: Terceiro Nome, 2006

___________Nós Paiter. Os Suruí de Rondônia. Petrópolis: Vozes,1985.

MÜLLER, R, P. Os Assurini do Xingu: história e arte . 2 ed.. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

____________ Ritual da Imagem: Arte Asurini do Xingu. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2009.

SILVA, F. A. As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asurini do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica.Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP,2000.

VIDAL, J.J.A. A cerâmica do povo Suruí de Rondônia: Continuidade e mudança cultural 1970 – 2010. Tese de mestrado apresentada ao Instituto de Arte da Universidade Estadual Paulista “Julio De Mesquita Filho”. UNESP. 2011.

VIDAL, L. Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, EDUSP, 1992.

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