Unidades tópicas e não-tópicas

264
UNIDADES TÓPICAS E NÃO-TÓPICAS Na história da análise do discurso francófona, a noção de formação discursiva, de início muito valorizada, conheceu um claro declínio a partir dos anos oitenta, sem no entanto se apagar ; continua ainda bastante utilizada, mas com um estatuto que não é muito claro. A partir dessa constatação, parece que se abre uma alternativa: dar-se conta desse refluxo, prognosticando o apagamento progressivo de uma noção vaga que pertenceria a uma época passada, ou, ainda, mostrar que a marginalização da noção de formação discursiva testemunha um desvio da análise do discurso. De minha parte, prefiro seguir uma terceira opção que consiste em mostrar o interesse – e os limites – dessa noção; o que supõe uma reflexão sobre a natureza das unidades reivindicadas atualmente pelos analistas do discurso, e, também, sobre a natureza da própria análise do discurso. Esse trabalho de esclarecimento não é supérfluo. Campo de pesquisa recente e que agrupa correntes muito diversas, a análise do discurso tornou-se um domínio de pesquisa extremamente ativo no mundo inteiro. Mas ela sofre de um déficit de legitimidade dada a heterogeneidade de seus conceitos e procedimentos. Também não se beneficia da indulgência atribuída às disciplinas de aplicação (como a didática das línguas ou a tradução automática) que podem se legitimar pelos serviços que prestam a este ou Este texto é em parte inédito; ele resulta da reescritura de um artigo publicado em 2003 em Romanistisches Jahrbuch (Band 43, p.109-118) sob o título « Que unidades para a análise do discurso

Transcript of Unidades tópicas e não-tópicas

Page 1: Unidades tópicas e não-tópicas

UNIDADES TÓPICAS E NÃO-TÓPICAS

Na história da análise do discurso francófona, a noção de formação discursiva, de início

muito valorizada, conheceu um claro declínio a partir dos anos oitenta, sem no entanto se

apagar ; continua ainda bastante utilizada, mas com um estatuto que não é muito claro. A partir

dessa constatação, parece que se abre uma alternativa: dar-se conta desse refluxo, prognosticando

o apagamento progressivo de uma noção vaga que pertenceria a uma época passada, ou, ainda,

mostrar que a marginalização da noção de formação discursiva testemunha um desvio da análise

do discurso. De minha parte, prefiro seguir uma terceira opção que consiste em mostrar o

interesse – e os limites – dessa noção; o que supõe uma reflexão sobre a natureza das unidades

reivindicadas atualmente pelos analistas do discurso, e, também, sobre a natureza da própria

análise do discurso.

Esse trabalho de esclarecimento não é supérfluo. Campo de pesquisa recente e que agrupa

correntes muito diversas, a análise do discurso tornou-se um domínio de pesquisa extremamente

ativo no mundo inteiro. Mas ela sofre de um déficit de legitimidade dada a heterogeneidade de

seus conceitos e procedimentos. Também não se beneficia da indulgência atribuída às disciplinas

de aplicação (como a didática das línguas ou a tradução automática) que podem se legitimar

pelos serviços que prestam a este ou àquele setor da sociedade. O que não quer absolutamente

dizer que não haja aplicação da análise do discurso. Ela apresenta, além disso, a particularidade

de não se referir a um gesto fundador: para ela, não há um Durkheim ou um Saussure, mas a

reavaliação de práticas de análise textual mais antigas e a convergência progressiva, nos anos

1980 e 1990, de correntes européias e anglo-saxãs que apareceram e se desenvolveram

independentemente umas das outras. Essa « convergência » não vai, no entanto, no sentido de

uma homogeneização; ela significa somente que existe constituição de um verdadeiro campo.

I

Uma dupla paternidade

Este texto é em parte inédito; ele resulta da reescritura de um artigo publicado em 2003 em Romanistisches Jahrbuch (Band 43, p.109-118) sob o título « Que unidades para a análise do discurso ? »

Page 2: Unidades tópicas e não-tópicas

Quando nos defrontamos com a noção de formação discursiva, somos obrigados a situá-la

em relação a dois tipos de categorias que se privilegiam hoje em dia na análise do discurso: umas

giram em torno do « posicionamento » da construção e da gestão de uma identidade em um

campo discursivo, outras em torno do « gênero » (de texto, ou de discurso, como veremos), isto

é, dos dispositivos de comunicação verbal em uma dada sociedade. Porém, sobre esse ponto, as

coisas não são claras.

A noção de « formação discursiva », com efeito, sofre e se beneficia simultaneamente de

uma dupla paternidade: aquela de Michel Foucault, que a introduziu em 1969 na Arqueologia do

Saber, mas que não reivindica absolutamente a análise do discurso, e aquela de Michel Pêcheux,

que fez dessa noção a unidade de base da chamada « Escola francesa de análise do discurso »,

em sentido estrito1, a qual ancora sua inspiração no marxismo althusseriano, na psicanálise

lacaniana e na lingüística estrutural.

No caso de Michel Foucault, é difícil – dizer isso é pouco – fixar o valor do conceito de

« formação discursiva », que se transforma sem cessar no fio da Arqueologia do Saber. O leitor

oscila constantemente entre uma interpretação em termos de « regras » e uma outra em termos de

« dispersão », a ponto de aí se perder. Percebe-se isso em particular no capítulo II (« As

formações discursivas »), no qual Foucault parece obedecer a duas injunções contraditórias :

definir os sistemas e desfazer toda unidade. Daí as formulações serem, à primeira vista, um

pouco desconcertantes :

« Tal análise não tentaria isolar, para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de

coerência; se atribuiria a tarefa de suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes; mas estudaria

formas de repartição (...)

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante

sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as

escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e

funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação

discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências,

1 Oponho esse « sentido estrito » àquilo que eu chamo de as « tendências francesas » em análise do discurso, que

convocam pressupostos teóricos muito diferentes.

Page 3: Unidades tópicas e não-tópicas

inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como « ciência » ou « ideologia »,

ou « teoria » ou « domínio de objetividade » (Foucault, 1969/1987: 43) 2.

Nessa passagem, a formação discursiva é apresentada simultaneamente como conjunto de

enunciados submetidos a uma mesma « regularidade » (2° parágrafo) e « dispersão » que excede

toda « coerência » (1° parágrafo ). Essa dupla linguagem, bem condensada naquilo que pretende

ser talvez um oxímoro (« sistema de dispersão ») dá trabalho aos exegetas da obra de Foucault ;

não faltarão soluções engenhosas para resolver essa dificuldade, mas aquele que se inscreve nos

procedimentos das ciências humanas ou sociais tem o direito de ficar perplexo.

Para Michel Pêcheux, nós dispomos de uma formulação muito mais clara no artigo

escrito em colaboração com Claudine Haroche e Paul Henry, « A semântica e o corte

saussuriano » (Pêcheux et al., 1971). O termo é emprestado de Foucault, mas se inscreve na rede

conceitual do althusserianismo, ao qual se filia Pêcheux, que usa constantemente « formação

social» e « formação ideológica ». A referência aos « clássicos do marxismo » lhe permite

definir a formação discursiva como « determinando o que pode e deve ser dito (articulado sob a

forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a

partir de uma posição dada em uma conjuntura dada » (Pêcheux et al., in Maldidier, 1990: 148).

Vemos aparecer nesse trecho a « posição » e o «gênero», por meio dos exemplos dados entre

parênteses, que são todos gêneros de discurso. No entanto, essa noção de « posição » não é

aquela de « posicionamento », no sentido que esse termo adquire correntemente em análise do

discurso. O posicionamento se define no interior de um campo discursivo, enquanto a

« posição », da qual fala Pêcheux, é inscrita no espaço da luta de classes.

Os parênteses abertos no trecho extraído de Pêcheux (« articulados sob a forma… »)

podem, a priori, ser objeto de uma dupla leitura, segundo se dá ênfase « àquilo que pode e deve

ser dito » ou « articulado sob a forma de uma arenga. ». Na primeira leitura, a menção a diversos

gêneros é acessória; na segunda, o discurso não pode ser « articulado » senão por meio de um

gênero de discurso; e é preciso, então, pensar a relação entre « posição », de uma parte, e

« arenga», « sermão » etc., de outra parte. O itálico de insistência sobre « o que pode e deve ser

dito », mas também o conhecimento do pensamento de Pêcheux incitam a optar pela primeira

leitura, que relega a segundo plano a problemática do gênero. É a « posição » que é

determinante, e o gênero de discurso não parece ser outra coisa que o lugar onde se manifesta

2 As referências para o público brasileiro são dadas com a paginação da tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 3a edição (N.T).

Page 4: Unidades tópicas e não-tópicas

alguma coisa que, por essência, está escondido, seguindo nesse aspecto o modelo psicanalítico

dominante na época.

Percebe-se que a noção de formação discursiva é tomada, desde a origem, segundo duas

problemáticas muito diferentes, que não definem claramente suas relações com o par

« gênero »/ « posicionamento ». Além disso – e este é um ponto importante quando se trata de

análise do discurso - os corpora de referência dos dois autores são muito diferentes: Foucault

busca seus exemplos na história das ciências; Pêcheux, na luta política (nota-se que os gêneros

citados entre parênteses privilegiam claramente os gêneros com finalidade ideológica aberta). O

valor de « formação discursiva » é então consideravelmente afetado.

Uma situação confusa

Atualmente os analistas de discurso estão longe das linhas programáticas de Foucault e

Pêcheux. À diferença das definições de « gênero» e de « posicionamento » ou de suas

transformações terminológicas, em relação às quais os pesquisadores discutem abundantemente,

a de « formação discursiva » é, na maioria das vezes, empregada como evidente. A título de

exemplo, pode-se considerar o livro de Jean-Michel Adam, Lingüística textual. Dos gêneros de

discurso aos textos (1999). A seção 2 do capítulo 3 se intitula « Gêneros, interdiscurso e

formações discursivas ». O leitor espera a definição dessas três noções; o que acontece

efetivamente para as duas primeiras. Para a terceira, encontra-se a seguinte definição:

Seguindo a definição da Arqueologia do saber : « Chamaremos de discurso um conjunto

de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva » (Foucault,

1969/1987:135). Os discursos se formam de maneira regrada no interior do espaço de

regularidade que constitui um interdiscurso. Essas regularidades não são outras que os

gêneros próprios a uma formação sociodiscursiva. (Adam, 1999: 86).

Se o termo é colocado em evidência no título, sua explicação continua, no entanto, pouco

explícita : é o « discurso » que é definido em relação à « formação discursiva ». Aparentemente,

o autor tem necessidade da noção de formação discursiva para nomear um excedente, alguma

coisa que não seria redutível ao gênero, nem ao posicionamento. Além do mais, Adam passa de

Page 5: Unidades tópicas e não-tópicas

« formação discursiva » à « formação sociodiscursiva », sem que se saiba exatamente se os dois

termos são sinônimos. A partir dos contextos de emprego de « formação sociodiscursiva » nesse

livro, pode-se pensar que se trata de variantes, mais ou menos equivalentes a « tipo de

discurso » : assim o capítulo 8 apresenta « uma mudança de formação discursiva » (título da

página 175), reformulada em « mudança de formação sociodiscursiva », a qual revela ser a

passagem de um fait divers a um poema, do discurso jornalístico ao discurso poético. Certamente

tal uso não corresponde nem à problemática de Foucault, nem àquela de Pêcheux.

Poderíamos fazer levantamentos sistemáticos dos empregos de « formação discursiva »

nos trabalhos de análise do discurso, para circunscrever mais precisamente sua área de uso, sua

margem de variação, segundo as vias tradicionais da análise lexicológica. Confiando em minha

experiência de leitor, na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ « na falta de uma

expressão melhor », nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não

corresponde a uma categorização clara.

Pode-se encontrar uma ilustração na obra recente de Annie Kuyumcuyan, Diction et

mention3 que se inscreve na teoria modular de Roulet, isto é, em uma outra problemática que

aquelas que deram origem à noção de formação discursiva. Essa noção não se encontra aí

definida, mas encontram-se enunciados como este :

Sem dúvida pareceria incongruente tratar de interação narrativa literária à seqüência de

observações relativas à análise dos diálogos, considerando as diferenças múltiplas (de

gênero, de disciplina, de intenção…) que separam suas formações discursivas respectivas.

(2002 : 250)

O autor, devendo opor narração literária e conversação autêntica, lança o termo « formação

discursiva » sem dúvida porque ele é vago e porque permite evitar noções mais bem

especificadas, mas inadequadas aqui, como « gênero » ou « tipo de discurso ».

Esse embaraço não é próprio de um ou outro pesquisador; quando redigi o verbete

« Formação discursiva » para o Dictionnaire d’analyse du discours, co-dirigido com P.

Charaudeau, eu mesmo substituí « formação discursiva » por « posicionamento », devido à

incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro.

3 Bern, Peter Lang, 2002.

Page 6: Unidades tópicas e não-tópicas

II

Não se pode dar um estatuto mais claro à noção de formação discursiva se não se leva em

conta o conjunto de termos que designam as categorias sobre os quais a análise do discurso

trabalha. Vou, então, distinguir dois grandes tipos de unidades: as unidades tópicas e as unidades

não-tópicas.

As unidades tópicas

1. As unidades territoriais

Há unidades que se poderiam chamar de unidades territoriais, as quais correspondem a

espaços já « pré-delineados» pelas práticas verbais. Pode se tratar de tipos de discurso

relacionados a certos setores de atividades da sociedade: discurso administrativo, publicitário,

político, etc., com todas as subdivisões que quisermos. Esses tipos englobam gêneros de

discurso, entendidos como dispositivos sócio-históricos de comunicação, como instituições de

palavras socialmente reconhecidas. Mesmo os gêneros que são definidos pelo próprio autor

também o são no interior de práticas verbais instituídas, como é freqüentemente o caso em

literatura ou em filosofia. Tipos e gêneros de discurso são tomados em uma relação de

reciprocidade: o tipo é um agrupamento de gêneros; todo gênero só o é porque pertence a um

tipo.

Isso dito, a noção de tipo de discurso é heterogênea; trata-se de um princípio de

agrupamento de gêneros que pode corresponder a duas lógicas diferentes: a do co-pertencimento

a um mesmo aparelho institucional e a da dependência em relação a um mesmo posicionamento.

Com efeito, não é a mesma coisa falar de « discurso hospitalar » e de « discurso comunista ». O

« discurso hospitalar » consiste na interação dos diversos gêneros de discurso em um mesmo

aparelho, no caso, o hospital (reuniões de trabalho, consultas, receitas, etc.). O « discurso do

partido x », por outro lado, consiste na diversidade dos gêneros de discurso produzidos por um

posicionamento determinado no interior do campo político (jornal cotidiano, panfletos,

programas eleitorais etc.). No primeiro caso, estamos em uma lógica de funcionamento do

Page 7: Unidades tópicas e não-tópicas

aparelho. No segundo, em uma ótica de luta ideológica, de delimitação de um território

simbólico contra outros posicionamentos; os gêneros aí se agrupam, então, em dois níveis: o

nível do posicionamento e o do campo ao qual esse posicionamento concerne. Mas nada impede

que se aborde também o discurso de um partido político como discurso de aparelho: nesse caso,

são os gêneros de discurso ligados ao funcionamento do partido que serão levados em conta.

2. As unidades transversas

Em análise do discurso, fazemos apelo igualmente às unidades que poderíamos chamar

de transversas, no sentido em que elas atravessam textos de múltiplos gêneros de discurso.

Podemos falar aqui de registros definidos a partir de três tipos de critérios: (a) lingüísticos; (b)

funcionais; (c) comunicacionais:

(a) Os registros lingüísticos são freqüentemente definidos sobre bases enunciativas: a

mais célebre tipologia é aquela que E. Benveniste (1966) estabeleceu entre « história » e

«discurso». Ela foi complexificada em seguida, em particular por J. Simonin-Grumbach

(1975) e Jean-Paul Bronckart (Bronckart et al., 1985). Há também tipologias fundadas

sobre as estruturações textuais, como as « seqüências» de Jean-Michel Adam (1999).

(b) Quanto aos registros definidos por critérios funcionais, conhecemos o célebre

esquema das seis funções de Jakobson, mas há outros, que se esforçam em classificar os

textos postulando que a linguagem é diversamente mobilizada segundo ela desempenhe

uma ou outra função dominante.

(c) Há também as unidades definidas por uma combinação de traços lingüísticos (em

geral enunciativos), funcionais e sociais para atingir registros de tipo comunicacional:

“discurso cômico », « discurso de vulgarização », «discurso didático», etc. Esses

discursos investem em certos gêneros privilegiados, eles não podem estar fechados

nesses gêneros. A vulgarização é a finalidade fundamental de certas revistas ou manuais,

por exemplo, mas ela aparece também no jornal televisado, na imprensa cotidiana, etc.

Page 8: Unidades tópicas e não-tópicas

As unidades não-tópicas

As unidades não-tópicas são construídas pelos pesquisadores independentemente de

fronteiras preestabelecidas (o que as distingue das unidades “territoriais”). Por outro lado, elas

agrupam enunciados profundamente inscritos na história (o que as distingue das unidades

«transversas»).

1. As formações discursivas

Unidades como « o discurso racista », « o discurso colonial », o « discurso patronal », por

exemplo, não podem ser delimitadas por outras fronteiras senão aquelas estabelecidas pelo

pesquisador; e elas devem ser especificadas historicamente. Os corpora aos quais elas

correspondem podem conter um conjunto aberto de tipos e de gêneros do discurso, de campos e

de aparelhos, de registros. Podem também, segundo a vontade do pesquisador, misturar corpus

de arquivos e corpus construídos pela pesquisa (sob a forma de testes, entrevistas, questionários).

É para esse tipo de unidade que o termo « formação discursiva », me parece, pode convir.

Com efeito, pode-se afinar bastante a caracterização dessas formações discursivas, que

abrem outras possibilidades além daquelas que exemplificam entidades como « o discurso

racista». A delimitação e o estudo dessas últimas implicam realmente a construção de corpora

heterogêneos, mas os textos de gêneros diversos que se encontram assim reunidos são unificados

em um nível superior por um foco único que os faz convergir: atrás da diversidade dos gêneros e

dos posicionamentos que dizem respeito aos textos do corpus assim construído, encontra-se a

onipresença de um «racismo» inconsciente que governa a fala dos locutores. Mas nada impede

que se definam as formações discursivas que não sejam igualmente organizadas a partir de um só

foco.

Ilustrarei essa reflexão por meio de um exemplo extraído de meus próprios trabalhos.

Interessando-me recentemente pela relação ideológica que se estabeleceu no fim do séc. XX

entre os europeus e os «indígenas» de regiões «exóticas», defini uma configuração de textos

distribuída em dois conjuntos: de um lado, romances, de outro manuais escolares4. Os romances

4 « As " Viagens extraordinárias " e o discurso escolar », Comunicação no Colóquio « Do escrito à tela: Julio

Verne e os povos indígenas », Maison de la Culture d’Amiens, 2005 (no prelo).

Page 9: Unidades tópicas e não-tópicas

eram constituídos pelas Viagens Extraordinárias de Júlio Verne5; os manuais eram os da escola

republicana leiga que se desenvolvia naquela época na França. Integrei assim, em um mesmo

espaço, dois conjuntos discursivos, os quais, por certo, tinham uma visão educativa, mas não

eram relativos nem ao mesmo gênero, nem ao mesmo tipo de discurso; não se dirigiam ao

mesmo público, nem veiculavam uma mesma ideologia. No entanto, pareceu-me que colocar em

relação esses dois conjuntos de textos seria produtivo de um ponto de vista da análise do

discurso, sem que fosse necessário postular que tais conjuntos constituíam a manifestação de um

mesmo princípio escondido: esses dois focos estavam ligados (do contrário, o fato de relacioná-

los seria arbitrário), mas suas diferenças não eram anuladas em proveito de uma unidade

superior.

Proporei, então, discutir dois tipos de formações discursivas: aquelas que são « unifocais »

(o « discurso racista », por exemplo) e as que são « plurifocais » (a configuração que associa os

romances de Júlio Verne e os manuais escolares, por exemplo). Com esse objetivo, uma incursão

em direção à polifonia bakhtiniana pode se mostrar útil. Sabe-se que um dos domínios no qual o

pensador russo investiu a noção de polifonia foi o romance : ele opõe os romances monológicos,

estruturados por um ponto de vista dominante, e os romances que, como os de Dostoievski,

confrontaram pontos de vista divergentes ao invés de serem dominados pelo ponto de vista

onisciente do narrador6. Mais que no romance, o domínio no qual essa distinção é mais evidente

é o teatro, no qual há um « arquienunciador», responsável pela peça, e os diferentes locutores

que são os personagens (Maingueneau, 1990, cap. 7): uma peça mostra o confronto entre pontos

de vista, os quais o arquienunciador tem por missão unificar pelos menos esteticamente. É, com

efeito, a tensão constitutiva do teatro que leva a combinar uma irredutível heterogeneidade dos

pontos de vista e uma unificação de ordem estética.

Mutatis mutandis, o analista do discurso que configura uma formação discursiva

plurifocal é um pouco como um dramaturgo. Da mesma maneira que este constrói um espaço no

qual as posições que se confrontam não estão unifocadas, o analista do discurso, a partir de

hipóteses de trabalho argumentadas, associa diversos conjuntos discursivos em uma mesma

configuração sem, no entanto, reduzir sua heteronímia. Mas trata-se de uma analogia parcial:

enquanto o dramaturgo não faz senão mostrar na cena a interação das vozes, o analista do

5 Vinte Mil Léguas Submarinas, Cinco semanas em balão, Casa a vapor, etc.6 La poétique de Dostoievski, trad.fr., Paris, Seuil, 1970. No português do Brasil, A poética de Dostoïevski, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981. (NT).

Page 10: Unidades tópicas e não-tópicas

discurso é obrigado a justificar explicitamente o dispositivo que ele constrói, apoiando-se sobre

saberes e normas de argumentação partilhadas pelas comunidades de pesquisadores aos quais ele

pertence.

Contudo, não é suficiente comparar vários conjuntos discursivos para que se possa falar

de formação plurifocal: é preciso ir além da simples comparação, que visa apenas melhor

depreender as especificidades de vários conjuntos discursivos. Com efeito, quando há

plurifocalização, a configuração não coloca em relação conjuntos autônomos, mas cria uma

unidade específica, que não se deixa reduzir a seus componentes. É em definitivo a orientação

dada à pesquisa que permite decidir se se trata de uma simples comparação ou de uma

plurifocalização. Consideremos, por exemplo, a tese em análise do discurso sustentada por C.

Oger en 20027, o qual constrói seu corpus associando os relatos da banca examinadora de três

concursos de altos funcionários franceses. A priori, podem-se entrever três possibilidades de

tratamento de um tal corpus: (1) uma comparação, uma análise contrastiva de três sub-corpora ;

(2) a definição de uma formação discursiva unifocal, que mostra que os três sub-corpora são de

fato regidos por um mesmo sistema de regras ; (3) a definição de uma formação discursiva

plurifocal, que mantém a heterogeneidade de três sub-corpora.

O caso (2) pode ser ilustrado pelo modo de pensar de Michel Foucault em As palavras e

as coisas (1966), no qual o autor faz convergir três conjuntos discursivos (« História natural »,

« A análise das riquezas», « A Gramática geral ») à primeira vista incomparáveis. Seu trabalho

consiste em mostrar que, na realidade, esses três conjuntos são regidos por um mesmo sistema de

regras, além da evidente diferença de seus objetos. A convergência que o analista revela não é

dada de início: tal convergência produz acontecimentos cujo interesse aumentará quanto mais

inesperada for a configuração de textos da qual tal convergência resulte.

Para o caso (3), eu penso dar o exemplo de minhas pesquisas – já antigas – sobre o

discurso religioso no século XVII8. Quando eu construí um « espaço discursivo » que

relacionava duas unidades tópicas, neste caso, dois posicionamentos em um mesmo campo – o

humanismo devoto e o jansenismo -, não era para comparar esses dois posicionamentos, mas

7 Candidatos-modelo, culturas e métodos. A prova de cultura geral em três concursos de seleção de elites da função pública (Escola de Guerra, Escola Nacional de Administração, Escola Nacional de Magistratura). Analyse de discours des rapports de jurys, tese defendida em 22 de novembro de 2002, em Paris XII.8 Voir Genèses du discours, Liège, 1984 (trad. para o português do Brasil por S. Possenti, sob o título Gênese dos discursos, Curitiba, Criar, 2005).

Page 11: Unidades tópicas e não-tópicas

para construir uma unidade bifocal, uma interação fundada sobre um processo de

« interincompreensão» regulada.

É então necessário ressaltar o caráter dinâmico e agentivo do termo «formação» em

«formação » discursiva. Em vez de considerá-lo em uma perspectiva puramente estática como

referindo-se a uma entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma a uma

configuração original. Isso permite o afastamento de uma concepção « especular » da construção

de corpus. Freqüentemente, com efeito, considera-se o corpus como uma espécie de condensado,

de espelho de um conjunto de textos cuja unidade seria dada de antemão; daí as discussões

acirradas para saber se o corpus é suficientemente « representativo ». A questão da

representatividade é, sem dúvida, fundamental, mas ela não deve permitir que se esqueçam as

operações que permitem instaurar esse corpus. Isso é verdadeiro quando se trata de uma

formação discursiva «unifocal» e é ainda mais evidente, quando se trata de uma formação

discursiva «plurifocal»: nesse último caso, os conjuntos textuais postos em relação não são

dados, mas seu encontro em uma mesma formação discursiva é uma espécie de ato violento do

analista, uma contestação das fronteiras que estruturam o universo do discurso.

Poderíamos igualmente ilustrar essa idéia por meio de exemplo da pintura abstrata em

oposição à pintura figurativa. Os especialistas o sabem bem: a pintura figurativa não é em nada o

desdobramento de uma realidade já existente, mas é inegável que seu caráter figurativo tende a

ocultar o arbitrário de seus códigos. Não é a mesma coisa para a pintura abstrata que, ao

contrário, coloca em evidência a independência da representação pictórica em relação à

“realidade”. E da mesma maneira que um quadro abstrato visa de início a interrogar nosso acesso

a essa « realidade», uma formação discursiva plurifocal coloca em primeiro plano as

interrogações que a pesquisa produz. Ela mostra que o pesquisador constrói uma certa

configuração de textos para constranger o universo do discurso a responder às questões que ele

elaborou.

O recurso às formações discursivas plurifocais é arriscado. O analista deve, com efeito,

satisfazer simultaneamente a duas exigências cuja compatibilidade não é evidente. É preciso, de

um lado, liberar-se parcialmente dos recortes preestabelecidos, de modo a definir um modo de

acesso a certo setor da produção discursiva; de outro lado, é preciso que a configuração que se

constrói não seja arbitrária a fim de dar uma inteligibilidade àquilo para o qual foi concebida.

Procedendo assim, o analista se encontra exposto a todas as formas de delírio interpretativo e de

Page 12: Unidades tópicas e não-tópicas

circularidade, ameaçado de encontrar no fim aquilo que ele formulou no início. Além disso, é

difícil não reduzir, in fine, toda a forma de plurifocalização a uma forma de «unifocalização »,

porque, diante de um texto ou um conjunto de textos que parecem heterogêneos, as rotinas

interpretativas que as instituições universitárias valorizam incitam a procurar um princípio

unificador, uma coerência escondida.

2. Os percursos

Pratica-se também em análise do dicurso o estabelecimento em rede de unidades de

diversas ordens (lexicais, proposicionais, fragmentos de textos) extraídas do interdiscurso, sem

procurar construir espaços de coerências, constituir totalidades. O pesquisador pretende, ao

contrário, desestruturar as unidades instituídas definindo percursos não esperados : a

intepretação apóia-se, assim, sob a atualização de relações insuspeitas no interior do

interdiscurso. Tais percursos são, hoje em dia, consideravelmente facilitados pela existência de

programas de informática que permitem tratar corpora muito vastos.

Podem-se também considerar os percursos de tipo formal (por exemplo, tal tipo de

metáfora, tal forma de discurso relatado, de derivação sufixal...); mas, nesse caso, se não se

trabalha sobre um conjunto discursivo bem especificado (em particular um gênero de discurso ou

um posicionamento), cai-se em uma análise puramente lingüística. Podem-se igualmente

considerar percursos fundados sobre materiais lexicais ou textuais (por exemplo, a retomada ou

as transformações de uma mesma fórmula em uma série de textos, ou ainda as diversas

recontextualizações de um « mesmo texto »). É assim que um trabalho foi desenvolvido sob a

fórmula « depuração étnica » (Krieg-Planque 2003); trata-se, antes de tudo, de explorar uma

dispersão, uma circulação, e não de relacionar uma seqüência verbal a uma fonte enunciativa.

Esses « percursos » suscitam reações ambivalentes. É com efeito muito sedutor

atravessar múltiplas fronteiras, circular no interdiscurso para fazer aparecer relações invisíveis

particularmente propícias às interpretações fortes. Mas o reverso da medalha é a dificuldade em

justificar as escolhas operadas e, então, corre-se o risco daquilo que chamamos, habitualmente,

de delírio interpretativo, ou, mais simplesmente, o risco de se encontrar na conclusão aquilo que

se propôs no início.

Page 13: Unidades tópicas e não-tópicas

Se retomarmos os diferentes tipos de unidades que evocamos, chegamos assim a um

quadro:

Unidades tópicas Unidades não-tópicas

Territoriais Transversas Percursos

Tipos / Gêneros de discurso

Gêneros concernentes a campos

Gêneros concernentes

a aparelhos

Registros lingüísticos

Registros funcionais

Registros

comunicacionais

Formações discursivas

Unifocais Plurifocais

Entre esses modos de agrupamento de unidades discursivas, aqueles que despertam mais

facilmente alguma suspeita são as unidades não-tópicas : « formações discursivas » e

« percursos ». Com efeito, elas não são estabilizadas por propriedades que definem fronteiras

pré-formatadas (qualquer que seja a origem dessa formatação), o princípio que as agrupa é uma

decisão tomada exclusivamente pelo analista. Não se poderia, no entanto, exagerar a distância

entre unidades tópicas e não-tópicas. De uma parte, as unidade tópicas, por mais « pré-

formatadas » que sejam, colocam ao pesquisador múltiplos problemas de delimitação, como

sempre ocorre nas ciências humanas ou sociais. Por outro lado, a construção de formações

discursivas ou de percurso não está submetida a um único capricho dos pesquisadores: há um

conjunto de princípios, de técnicas que regulam esse tipo de atividade hermenêutica. É verdade

que essas « regras da arte » estão freqüentemente implícitas, que elas são adquiridas por

impregnação, mas podemos presumir que, com o desenvolvimento da análise do discurso, a

construção das unidades será cada vez menos deixada ao capricho dos pesquisadores. Aliás,

mesmo as práticas hermenêuticas que não se submetem jamais a critérios de cientificidade

desenvolvem verdadeiros métodos de leitura: assim, a famosa teoria dos « quatro sentidos » da

Escritura na exegese cristã ou as técnicas de leitura praticadas pelos psicanalistas.

III

Page 14: Unidades tópicas e não-tópicas

Essa rápida síntese das unidades às quais recorrem os analistas do discurso não coloca

apenas problemas de metodologia, mas nos obriga a interrogar sobre a natureza mesma desse

domínio de pesquisa. Muitos estão tentados a se restringir às unidades « tópicas », isto é, às

unidades « de domínio », que julgam as únicas suscetíveis de serem objetivadas ; outros,

privilegiando uma visão radicalmente « interpretativa », preferem, ao contrário, apegar-se apenas

às unidades « não-tópicas ».

De meu ponto de vista, não pode haver análise do discurso, no sentido de uma disciplina

caucionada empiricamente e integrante das ciências humanas, se ela não construir um saber

sobre as unidades tópicas, aquelas que se apóiam sobre cartografias dos usos linguageiros. Mas

não pode também haver análise do discurso se houver exclusão das formações discursivas e dos

percursos, isto é, de unidades que contrariam as fronteiras preestabelecidas. Restringir a análise

do discurso apenas às unidades tópicas seria denegar (no sentido psicanalítico) a realidade do

discurso, que é colocada em relação permanente do discurso e do interdiscurso : este último

« trabalha » o discurso, que em retorno o redistribui perpetuamente. É desse impossível

fechamento que me parece testemunhar a persistência da noção de formação discursiva : não

haveria análise do discurso se não houvesse agrupamentos de enunciados inscritos nas fronteiras,

mas, por outro lado, também não haveria análise do discurso, se o sentido se fechasse nessas

fronteiras.

Estabeleci há algums anos uma distinção entre a abordagem « analítica » e a abordagem

« integradora » (Maingueneau, 1991 : 26); tratava-se já de um modo de evidenciar – na

conjuntura da Escola francesa dos anos 1960 e 1970 – essa fissura que impede a análise do

discurso de fechar-se sobre ela mesma. É necessário assumi-lo : estamos lidando com uma

« disciplina » que estava cindida por uma fissura constitutiva. É impossível fazer a síntese entre

uma abordagem que se apóia sobre fronteiras e uma que se nutre dos limites pelos quais a

primeira se institui. Entre as duas há uma assimetria irredutível. Os partidários das fronteiras têm

bons argumentos para sublinhar os riscos ligados ao uso das unidades não-tópicas ; por outro

lado, os partidários das unidades não-tópicas podem também com facilidade mostrar que uma

infinidade de relações interdiscursivas atravessam as unidades mais tópicas; e que a sociedade

está permeada de conjuntos de palavras que, embora não tenham um lugar determinado, são

mobilizadoras : o sentido é fronteira e subversão da fronteira, negociação entre pontos de

Page 15: Unidades tópicas e não-tópicas

estabilização da fala e forças que excedem toda localidade. Situação eminentemente

desconfortável porque vemos assim se justaporem, isto é, se intricarem, muitas vezes, na mesma

pesquisa, dois modos de abordagem heterônomos.

Tanto Foucault quanto Pêcheux procuraram preservar simultaneamente o caráter tópico das

unidades mobilizadas pela análise do discurso e sua inconsistência. A problemática de Pêcheux

fazia assim coexistir uma visão do discurso profundamente « analítico » - de inspiração

precisamente psicanalítica - que acentuava o processo de deslocamento, de condensação ou a

presença escondida e invasiva do interdiscurso no discurso, e uma visão cartográfica em termos

de « posição de classe », de « formação ideológica ». Em outro registro, Foucault também

apresentava uma visão dupla da discursividade, consistente e inconsistente ao mesmo tempo :

« sistema » e « dispersão ». É preciso levá-la em consideração de uma maneira ou de outra: a

análise do discurso não pode se fechar em um espaço homogêneo e compacto.

 

Page 16: Unidades tópicas e não-tópicas

ARQUEOLOGIA E ANÁLISE DO DISCURSO*

Um inevitável mal-entendido

Limitarei duplamente meu objetivo. Primeiro, porque me interessarei apenas por A

Arqueologia do saber. Segundo, porque me interrogarei não sobre a contribuição de Michel

Foucault para uma filosofia da linguagem de inspiração pragmática ou para uma teoria do

poder e da ideologia, mas sim para a sua contribuição ao campo mais específico da análise do

discurso. Estou consciente de que isto pode parecer um modo curioso de fazer justiça a um

pensador considerando apenas um setor reduzido de sua obra e, sobretudo, de inscrevê-lo em

uma problemática que não é verdadeiramente a sua. Falar da contribuição de Michel Foucault

para o campo da análise do discurso só é possível no interior de um mal-entendido

fundamental : Foucault jamais se colocou como fundador de uma disciplina, senão de um

modo irônico que não deve nos iludir.

Poderia me justificar dizendo que nós estamos aqui em um congresso de pragmática,

não em um congresso de historiadores da filosofia. Porém, não se trata de recorrer a

justificativas tão pouco teóricas : não apenas a história dos percursos criativos é feita de

bifurcações, de mudanças inesperadas, de acréscimos, etc, mas ainda, em se tratando de

Foucault, é difícil invocar qualquer ortodoxia para essa reflexão que pretende mais abrir

pistas do que construir um sistema.

A Arqueologia não é um texto isolado na obra de Foucault; ela se inscreve em um

percurso entre As palavras e as coisas e a série de obras sobre a sexualidade. Situada,

juntamente com A ordem do discurso, entre a série de livros de orientação claramente

epistemológica e textos de tonalidade mais política, a Arqueologia embaraça os

comentadores, mesmo se todo bom especialista em filosofia se empenha em estabelecer

conexões entre esse livro e o resto da obra de Foucault.

Considerando a multiplicidade das correntes que atravessam o campo do discurso, não

se pode esperar que o conjunto dos analistas do discurso se interessem pelo empreendimento

de Foucault. Mas sua contribuição à análise do discurso não passa despercebida. O ano em

que foi publicada A Arqueologia do saber foi também o ano em que o número 13 da revista

Page 17: Unidades tópicas e não-tópicas

Langages intitulado “A Análise do discurso” apareceu na França sob a forma daquilo que se

chamou mais tarde “Escola francesa”. A coincidência da simultaneidade dessas publicações é

importante para o historiador das idéias. “A Escola francesa de análise do discurso”, muito

influenciada pelo marxismo de Althusser e a psicanálise de Lacan, quebrava a continuidade

dos textos para estabelecer conexões invisíveis e revelar assim o trabalho de uma espécie de

inconsciente textual. Este procedimento da análise do discurso acreditava produzir uma

“ruptura epistemológica”, contribuindo para construir uma verdadeira ciência da ideologia

fundada simultaneamente sobre a lingüística estrutural, sobre o marxismo e sobre a

psicanálise. Eis que o livro de Foucault, longe de se inscrever nessa perspectiva, abria uma

concepção de discursividade que era orientada diferentemente. Como não se tratava apenas

de um conjunto de intuições brilhantes e como Foucault propunha uma rede fechada de

conceitos a serviço de uma concepção forte e coerente do discurso, ele não poderia deixar de

exercer uma forte atração sobre os analistas do discurso. Com efeito, A Arqueologia do saber

exerceu uma influência que poderíamos dizer « oblíqua », na medida em que essa obra se

afastava das correntes dominantes, mas sem definir claramente um espaço alternativo,

associado a um aparelho metodológico explícito.

Não vou retraçar a história complicada das relações entre Foucault e a análise do

discurso. O fato essencial é que o refluxo das correntes dominantes no fim dos anos sessenta

deu uma visibilidade crescente à Arqueologia, que se beneficiou do sucesso que as correntes

pragmáticas alcançaram no conjunto das ciências sociais e em lingüística, particularmente

pelo viés das teorias da enunciação. Mas sobre este ponto não se deve ser vítima de uma

ilusão retrospectiva, fazendo de Foucault o iniciador de problemáticas da análise do discurso

que, em realidade, não puderam ser marcadas por ele senão de forma indireta.

Ressaltarei primeiro alguns aspectos que, em meu ponto de vista, tornam difícil a

exploração do procedimento de A Arqueologia do saber. Evidenciarei, em seguida, algumas

idéias-força desse livro que me parecem produtivas para a análise do discurso, ao menos para

o tipo de análise do discurso que me interessa.

Page 18: Unidades tópicas e não-tópicas

Um texto inapreensível

Não se podem discutir enumerar todas as dificuldades que A Arqueologia suscita quando

se tem a idéia inoportuna de interrogá-la do ponto de vista da análise do discurso. Há uma, no

entanto, que é radical: como ler tal texto? É necessário acreditar no autor quando ele se

propõe a refundar « essas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas em seu

conteúdo que chamamos de história das idéias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos

conhecimentos »9 (p.23) ?

Não é que seja absolutamente necessário ordenar todos os livros em uma categoria, mas,

do ponto de vista em que nos colocamos aqui, essa ordenação é um obstáculo considerável. O

texto de Foucault tem de estranho o fato de entrelaçar modos de exposição claramente filosóficos

e outros que parecem provir de procedimentos clássicos nas ciências sociais. É assim que certos

capítulos da II e III partes propõem uma encenação eminentemente filosófica. Por exemplo, no

capítulo II, I (« As unidades do discurso ») o autor entende « libertar-se de todo um jogo de

noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade » (p.23), « deixar em

suspenso as unidades que se impõem da maneira mais imediata » (p.25), « colocar fora de

circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organiza, de antemão, o discurso que se

pretende analisar » (p.27), fazer aparecer « em sua pureza não-sintética, o campo dos fatos do

discurso » (p.29), projetar « uma descrição dos acontecimentos discursivos » (p.30), etc.

Reconhece-se aí a estrutura e o estilo da dúvida hiperbólica cartesiana ou da redução

fenomenológica

Outra dificuldade: a discordância entre o corpus de referência e a abrangência dos

conceitos colocados em circulação. O corpus de referência é em sua maior parte emprestado

de As palavras e as coisas, isto é à genealogia de algumas ciências desde a Renascença. A

isto se acrescentem materiais emprestados à história da medicina, primeiro campo de estudo

do autor. Trata-se então de um corpus reduzido se se pensa na amplitude e na radicalidade

das reflexões sobre « unidades do discurso » (II, I), « as formações discursivas » (II, II) ou

« a função enunciativa » (II, III), etc. Foucault o reconhece, aliás, no início do livro: o

privilégio atribuído às « ciências do homem » não é senão « um privilégio inicial . É preciso

ter em mente (...) que a análise dos acontecimentos discursivos não está, de maneira alguma, 9 As referências para o público brasileiro são dadas com a paginação da tradução de Luiz Felipe Baeta Neves,

Rio de Janeiro, Forense Universitária, 3a edição.

Page 19: Unidades tópicas e não-tópicas

limitada a semelhante domínio » (p.34). Não podemos criticar o autor por se apoiar sobre um

corpus limitado; por outro lado, podemos nos perguntar se a especificidade de tal corpus não

modifica a própria teoria. Trata-se com efeito de tipos de textos para os quais a materialidade

lingüística e textual parece, erroneamente, aliás, mais facilmente escamoteável para outros.

Ainda que Foucault tenha falado de « discurso » ou de « função enunciativa », ele manipula

elementos que se situam em um nível de alguma forma pré-lingüístico. Isso não deixa de

influir sobre a concepção do discurso que ele propõe. Estas linhas são reveladoras:

O que se descreve como « sistemas de formação » não constitui a etapa final dos

discursos, se por este termo entendemos os textos (ou as falas) tais como se apresentam

com seu vocabulário, sintaxe, estrutura lógica ou organização retórica. A análise

permanece aquém desse nível manifesto, que é o da construção acabada (…) se ela

estuda as modalidades de enunciação, não põe em questão nem o estilo, nem o

encadeamento das frases; em suma, deixa esboçada a disposição final do texto.

(1969/1987 : 83-84)

Tal tipo de afirmação é dificilmente compatível com os postulados de qualquer análise do

discurso, que não pode senão recusar tal concepção estratificada segundo a qual a organização

textual seria apenas um fenômeno de superfície e as estratégias interacionais seriam redutíveis ao

estatuto de assessório: « estilo », « retórica »…

Essa dificuldade entra em consonância com aquelas que a noção mesma

de « arqueologia » suscita. O livro começa com a reivindicação de um projeto, transformar

os « documentos » em « monumentos », e persegue longamente essa metáfora

arqueológica ; mas trata-se também constantemente de « análise enunciativa » e de

« prática discursiva ». Percebe-se uma tensão constante entre a inspiração claramente

estruturalista dessa « arqueologia » e o movimento de pensamento que coloca em primeiro

plano a « função enunciativa » e, mais amplamente, as problemáticas que atualmente são

familiares às correntes pragmáticas.

Sobre esse ponto, não se pode ignorar a transformação posterior das ciências da

linguagem; um dos sintomas mais evidentes de tal transformação é o sucesso das

problemáticas da análise do discurso. Restringindo a lingüística ao estudo da frase, a

Page 20: Unidades tópicas e não-tópicas

Arqueologia proporciona as condições necessárias para a preservação de suas ambigüidades.

Foucault recusa toda contribuição da lingüística que ele reduz a uma ciência da « língua » no

sentido saussureano, ou da « competência » no sentido chomskyano. Porém, não se pode ler a

Arqueologia deixando de lado a situação epistemológica que prevalecia na ocasião de sua

redação, na segunda metade dos anos sessenta. Dando uma concepção tão pobre da

lingüística, Foucault se confere o direito de reservar o campo do « discurso » à arqueologia

que ele parece promover, embora atualmente se esteja cada vez mais convencido de que se

deve estudar o discurso recorrendo-se às ciências da linguagem e não as ignorando ou

relegando-as a um espaço reduzido.

Algumas idéias-força

No entanto, um certo número de noções elaboradas pela Arqueologia constituem idéias-

força para a análise do discurso, ao menos para o estilo de análise do discurso que me

interessa.

• A afirmação daquilo que, no meu ponto de vista, funda toda verdadeira análise do

discurso, a saber, a opacidade do discurso, que não é redutível nem à língua, nem a instâncias

sociais ou psicológicas. Foucault tem fórmulas penetrantes sobre o assunto :

« Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa

e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele,

e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que

lhe é própria (…) Gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de

contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um

léxico e uma experiência ; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que,

analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes

entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática

discursiva (…). Tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os

discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou

Page 21: Unidades tópicas e não-tópicas

a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que

falam. » (1969/1987 : 54 e 56)

• Essa afirmação da irredutibilidade da ordem do discurso se marca em termos de

« prática discursiva », o que implica uma subjetividade enunciativa irredutível às formas

clássicas. Amarrando assim estreitamente discurso e instituição nos dispositivos de

enunciação que permitem simultaneamente o surgimento de eventos enunciativos os quais

constituem, por sua existência mesma, eventos, Foucault desestabiliza ainda as partilhas

tradicionais:

« O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de

um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz : é, ao contrário, um conjunto em que

podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si

mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares

distintos. (…) não é nem pelo recurso a um sujeito transcedental nem pelo recurso a uma

subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações (= das

enunciações de uma formação discursiva10) » (1969/1987 : 61-62).

• Quanto à problemática do arquivo, ela permite a não redução do espaço do discurso a

uma topografia de textos de múltiplos tipos : o discurso não é jamais um dado, ele surge

sustentado por um ruído de práticas obscuras que o configuram e o fazem circular segundo

trajetórias que se confundem com seus múltiplos modos de existência :

« Entre a língua que define o sistema de construção de frases possíveis e o corpus que

recolhe passivamente as palavra pronunciadas, o arquivo define um nível particular : o

de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos

acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação.

Tal prática não tem o peso da tradição; não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar

de todas as bibliotecas; mas não é, tampouco, o esquecimento acolhedor que abre a

qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade; entre a tradição e o

10 A explicação entre parênteses foi feita pelo autor do artigo na versão francesa.

Page 22: Unidades tópicas e não-tópicas

esquecimento, ela faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados

subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da

formação e da transformação dos enunciados.» (1969/1987 : 149-150).

• Tal problemática leva a guardar distância em relação à hermenêutica espontânea que

guia a análise de textos :

« A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que o pensamento

utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que se dizia no que estava dito? A análise do

campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o

enunciado na estreiteza e singularidade de seu acontecimento; de determinar as condições

de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações

com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de

enunciação ele exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa

de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro (...). » (1969/1987 :

31)

Há em tal postura algo de ascético que não pode ser levado ao extremo. No entanto, trata-se

de uma condição sine qua non para aceder plenamente à discursividade, para não atravessar o

discurso como uma superfície fina de modo a chegar a um sentido que não lhe é próprio.

• A essas idéias de abrangência extremamente geral, acrescentarei uma que concerne mais

particularmente ao tipo de análise do discurso sobre o qual trabalho há alguns anos, a de

« discursos constituintes », isto é, discursos (religioso, literário, científico, filosófico, etc.)

que em uma determinada sociedade gerenciam os fundamentos da imensa massa de palavras

sem serem fundadas por elas. Parece-me que o aporte de A Arqueologia é aqui de grande

importância, devido à crítica radical que esse livro faz dos pressupostos do procedimento

filológico: quando Foucault recusa noções como « visão de mundo », « autor »,

« documento », « influência », « contexto », etc., ele libera espaço para um procedimento de

análise do discurso centrado sobre o que chamo « instituição discursiva », enlaçamento

Page 23: Unidades tópicas e não-tópicas

recíproco de um uso da língua e de um lugar nesses dispositivos de enunciação que são os

gêneros de discurso. Apoiando-se sobre A Arqueologia, sobre as teorias da enunciação

lingüística e a pragmática, pode-se repensar todo um conjunto de práticas e de noções

imemoriais que ainda dominam nossa abordagem do texto.

Falei apenas em função de minha concepção de análise do discurso imagino que outros

considerariam diferentemente A Arqueologia, ou mesmo não privilegiariam necessariamente

esse livro na obra de Foucault. Reconheço que minha leitura foi duplamente infiel. Quando

esse livro foi publicado, ele pode ter parecido não atual. Não se via imediatamente como

ligá-lo aos saberes que o cercavam : com efeito, foi uma série de transtornos posteriores que

o tornaram cada vez mais legível. Somos, então, incitados a lê-lo, como eu o faço, da

maneira pela qual Foucault se recusava a ler os textos dos outros: como a prefiguração de um

discurso a vir.

Minha leitura foi também infiel no sentido de haver interrogado essa obra a partir de uma

disciplina cuja legitimidade Foucault recusa. Se devêssemos comentar Foucault como

filósofo, deveríamos procurar compreender a ambivalência de A Arqueologia e mostrar

como, simultaneamente, ela estrutura e desfaz seu discurso. Porque o desenvolvimento de

seu pensamento não é ambivalente por acidente; é a condição de um modo de pensar que

instaura meticulosamente um mundo conceitual mas que ao mesmo tempo esquiva, por meio

de uma série sempre aberta de negações ou denegações, toda fundação e todo território.

Page 24: Unidades tópicas e não-tópicas

OS DISCURSOS CONSTITUINTES11

Problemas de delimitação

Até hoje não foi justificada a necessidade de se agrupar numa unidade consistente

discursos como o discurso religioso, o filosófico, o literário, o científico, etc. Enquadrá-los

em uma mesma categoria, a de discursos constituintes, permite porém pôr em evidência

propriedades comuns que são invisíveis ao primeiro olhar. Semelhante categoria possibilita

abrir um programa de trabalho que nos parece promissor.

A pretensão desses discursos, assim chamados por nós de “constituintes”, é de não

reconhecer outra autoridade que não a sua própria, de não admitir quaisquer outros discursos

antes deles. Isso não significa que as diversas outras zonas de produção verbal (a

conversação, a imprensa, os documentos administrativos, etc.) não exerçam ação sobre eles;

bem ao contrário, existe uma interação constante entre discursos constituintes e não-

constituintes, assim como entre discursos constituintes. Mas faz parte da natureza destes

últimos negar essa interação ou pretender submetê-la a seus princípios. Os discursos

constituintes operam a mesma função na produção simbólica de uma sociedade, uma função

que nós poderíamos chamar de archeion. Esse termo grego, étimo do latino archivum,

apresenta uma polissemia interessante para a nossa perspectiva: ligado a archè, “fonte”,

“princípio”, e a partir daí “comando”, “poder”, o archeion é a sede da autoridade, um

palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os arquivos públicos. O

archeion associa assim intimamente o trabalho de fundação no e pelo discurso, a

determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores consagrados, e uma gestão

da memória.

Discursos como o religioso, o científico e o filosófico são evidentemente constituintes.

O discurso político nos parece operar sobre um plano diferente: ele se situa na confluência

dos discursos constituintes, sobre os quais se apóia (invocando a ciência, a religião, a

filosofia, etc.), e os múltiplos extratos da doxa da coletividade. Mas se, fundamentalmente, os

discursos constituintes se definem pela posição que ocupam no interdiscurso, pelo fato de

11 Artigo inédito resultado da síntese de diversos textos publicados sobre o assunto desde aquele que eu escrevi com F. Cossutta em 1995 (Langages n° 117, 1995, p. 112-125).

Page 25: Unidades tópicas e não-tópicas

não reconhecerem discursividade para além da sua e de não poderem se autorizar senão por

sua própria autoridade, mais importante do que os listar, é compreender o modo de

“constituição” que os caracteriza. Não se pode responder sim ou não à pergunta que interroga

se a psicanálise, por exemplo, é um discurso constituinte: conforme a concebia Lacan, não há

dúvida, mas quando se trata de uma simples disciplina terapêutica, certamente não. Tudo

depende da maneira como ela se institui.

Seguindo essa lógica, em contrapartida, nada impede de considerar a literatura um

discurso constituinte, embora isso choque a alguns. Sem dúvida porque mais ou menos

conscientemente assimilam “constituinte” e “fundador”. A reflexividade fundamental,

segundo a qual um discurso constituinte não pode obter autorização senão de si próprio,

varia, na verdade, conforme o discurso considerado. A “constituição” não funciona de um

único modo, ela adota tantos regimes quanto são os distintos discursos constituintes. Não é

então porque não reflete seu fundamento sob o modo do conceito ou da revelação divina que

a literatura não pertence a essa categoria.

Os discursos constituintes dão sentido aos atos da coletividade, eles são a garantia [os

fiadores] de múltiplos gêneros do discurso. O jornalista às voltas com um debate sobre um

problema social recorrerá muito naturalmente à autoridade do intelectual, do teólogo ou do

filósofo. Mas o inverso não acontece. Os discursos constituintes possuem, assim, um estatuto

singular: zonas de fala em meio a outras e falas que pretendem preponderar sobre todas as

outras. Discursos-limite, situados sobre um limite e lidando com o limite, eles devem gerar

textualmente os paradoxos que seu estatuto implica. Junto com eles vêm à tona, em toda sua

acuidade, as questões relativas ao carisma, à Encarnação, à delegação do Absoluto: para não

se autorizarem apenas por si mesmos, devem aparecer como ligados a uma Fonte

legitimadora. Eles são ao mesmo tempo auto e heteroconstituinte, duas faces que se supõem

reciprocamente: só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode

desempenhar um papel constituinte para outros discursos. O paradoxo constitutivo do

funcionamento de tais discursos é que esse Absoluto que os autoriza é supostamente exterior

ao discurso para lhe conferir sua autoridade, mas deve ser construído por esse mesmo

discurso para poder fundá-lo. Se tomamos o exemplo do discurso humanista devoto (que

surge no fim do século XVI e dura até a primeira metade do século XVII), sobre o qual

trabalhamos (Maingueneau, 1983 e 1984), veremos que ele instaura a figura de um Deus

Page 26: Unidades tópicas e não-tópicas

“doce” para legitimar sua doutrina contra-reformista, mas essa “doçura” é na verdade

elaborada pelos próprios textos que a reivindicam.

Pode-se apreender essa constituição segundo duas dimensões:

- A constituição como ação de estabelecer legalmente, como processo pelo qual o

discurso se instaura, construindo sua própria emergência no interdiscurso.

- Os modos de organização, de coesão discursiva, a constituição no sentido de um

agenciamento de elementos formador de uma totalidade textual.

Essas duas dimensões convergem para constituição no sentido jurídico-político,

aquele de um texto que serve de norma e garantia aos comportamentos da coletividade. Os

discursos constituintes pretendem delimitar, com efeito, o lugar comum da coletividade, o

espaço que engloba a infinidade de “lugares-comuns” que aí circulam.

Falamos aqui dos discursos constituintes de nosso tipo de sociedade, em sua essência

herdeiros do mundo grego. Porque, conforme a época e as civilizações, a função de

archeion não mobiliza os mesmos discursos constituintes. Em nossas sociedades, tais

discursos são ao mesmo tempo unidos e dilacerados por sua pluralidade. Sua existência se

faz inseparável da gestão dessa impossível coexistência, através de configurações em

reformulação constante. Cada discurso constituinte aparece ao mesmo tempo interior e

exterior aos outros, os quais ele atravessa e pelos quais é atravessado. Assim, o discurso

filosófico, em sua versão tradicional, atribuiu a si a missão de assinalar o lugar dos outros

discursos constituintes, e se viu, não menos constantemente, contestado pelos que ele

pretendia se subordinar. Na realidade, os discursos constituintes se excluem e se atraem em

uma irredutível imbricação : o discurso científico, por exemplo, é incapaz de se afirmar sem

invocar a cada instante a ameaça do discurso religioso ou do discurso filosófico, os quais

não cessam de renegociar seu estatuto em relação a ele.

A filosofia não admite, como regra geral, deixar-se estudar como um discurso entre os

outros; é o que testemunha a pobreza dos estudos empreendidos nessa direção. Mas é

preciso relativizar sua dupla pretensão de ser auto-constituinte e de legiferar sobre as

pretensões que emanam de outros tipos de discurso. É, aliás, o declínio da pretensão

hegemônica da filosofia, bem como os desenvolvimentos fecundos das disciplinas da

linguagem, que têm dado muito mais consistência a um projeto de análise do discurso

filosófico. Esse projeto supõe que se articulem as operações discursivas ao seu substrato

Page 27: Unidades tópicas e não-tópicas

lingüístico, para apreender em sua especificidade esse tipo de discurso que visa à

explicitação máxima de suas próprias condições de possibilidade. Eis o que nem as teorias

do reflexo (Lukàcs), nem as do sintoma (Altusser), nem as do arquivo (Foucault)

permitiriam pensar.

Uma análise da “constituição” dos discursos constituintes deve assim se ater a mostrar

a articulação entre o intradiscursivo e o extradiscursivo, a imbricação entre uma

representação do mundo e uma atividade enunciativa. Esses discursos representam o

mundo, mas suas enunciações são parte integrante desse mundo que eles representam, elas

são inseparáveis da maneira pela qual geram sua própria emergência, o acontecimento de

fala que elas instituem. Não procuraremos, como no procedimento estruturalista, uma teoria

da “articulação” entre o texto e uma realidade muda, não-textual: isso nos levaria a

pressupor uma separação que queremos superar. Na verdade, a enunciação se manifesta

como dispositivo de legitimação do espaço de sua própria enunciação, a articulação de um

texto e uma maneira de se inscrever no universo social. Recusamo-nos, assim, a dissociar,

na constituição discursiva, as operações enunciativas pelas quais se institui o discurso, que

constrói, assim, a legitimidade de seu posicionamento, e o modo da organização

institucional que o discurso ao mesmo tempo pressupõe e estrutura.

Uma categoria insólita

Interessar-se pelos discursos constituintes é ir de encontro a uma certa rotina de

trabalhos em análise do discurso, onde se tem a tendência em privilegiar as interações

conversacionais, ou então tipos de discurso como o discurso publicitário, midiático, político,

escolar, etc. Compreende-se que a análise do discurso, que é uma disciplina recente, tenha,

primeiramente, investido nos enunciados que tradicionalmente eram negligenciados pelos

estudos universitários: assim era mais fácil justificar seu lugar. Mas essa restrição não conta

verdadeiramente com qualquer sustentação teórica: não há motivos para a análise do discurso

se desinteressar de tal ou qual tipo de discurso.

A dificuldade em abordar textos “constituintes” se explica também por uma certa

resistência das correntes dominantes em análise do discurso, que muitas vezes privilegiam os

enunciados que não são submetidos a fortes restrições institucionais. Para além da questão da

Page 28: Unidades tópicas e não-tópicas

oralidade, importa também a questão da distância : distância entre sujeito falante e posição

de enunciação, distância entre as intenções comunicativas e a significação do texto, distância

entre instâncias de produção e de recepção. Certas facetas desse preconceito “fonocentrista”

foram reveladas e criticadas por Derrida em sua célebre Gramatologia. Trabalhar sobre

enunciados tão “distantes” em todos os sentidos que os relacionam aos discursos

constituintes, é partir do princípio de que o universo do discurso é radicalmente diverso.

Coisa que não é tão fácil de admitir. Durante séculos se pensou que certos tipos de textos

privilegiados (os literários e os religiosos, em particular) eram a fala por excelência;

atualmente tem-se a tendência de pensar que a “verdadeira” fala é a interação oral e que não

há verdadeira fala senão lá, onde não há “escrituralidade”. Sem dúvida, seria mais realista

aceitar que não existe uso da fala que seja o verdadeiro uso, que esta, como o Ser em

Aristóteles, se diz de diversas maneiras. O postulado do primado do interdiscurso não

implica que esse interdiscurso tenha um centro nem que ele seja homogêneo.

Falar de “discursos constituintes” é igualmente manejar uma categoria de estatuto

tipológico bem incerto. Os analistas do discurso12 manipulam habitualmente tipologias que se

baseiam em critérios de três ordens:

- As tipologias lingüísticas - na verdade, enunciativas - são independentes dos

conteúdos e das finalidades do discurso. Elas se apóiam, em geral, sobre a

problemática aberta por E. Benveniste13, que opunha enunciados ancorados na

situação de enunciação (“discurso”) a enunciados que rompem com sua situação

de enunciação (“história” ou “narrativa”). Essa bipartição foi refinada por diversos

autores, em particular J. Simonin-Grumbach (1975) e J.-P. Bronkart e seus

colaboradores (1985)14.

- As tipologias funcionais dividem os discursos segundo sua finalidade. Essas

classificações oscilam entre a atualização de funções muito abstratas, de ordem

comunicacional, como é o caso do célebre modelo de R. Jakobson (função

expressiva, referencial, fática, conativa, etc.), e funções de ordem claramente

12 J. Simonin-Grumbach (1975): “Pour une typologie des discours”, in Kristeva J. et al. (éds.): Langue, discours, société, Paris, Seuil. J.-P. Bronckart. et al. (1985): Le fonctionnement des discours. Un modèle psychologique et une méthode d’analyse, Neuchâtel-Paris, Delachaux e Niestlé.13 “L’homme dans la langue”, in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966.14 Ver em particular o artigo de André Petitjean (1989).

Page 29: Unidades tópicas e não-tópicas

sociológica ou psicossociológica (função lúdica, de conhecimento, de preservação

dos laços sociais, etc.).

- As tipologias situacionais são construídas a partir de gêneros de discurso

definidos sob critérios sócio-históricos: o telejornal, o romance policial, o

editorial, o sermão, etc. Esses gêneros de discurso são eles próprios incluídos

nesses tipos de discursos, correspondendo a setores da atividade social (discurso

político, midiático, literário, etc.). “Tipo” e “gênero” são assim duas faces da

mesma realidade: um tipo de discurso é constituído de gêneros, todo gênero se

destaca sobre o fundo de um tipo de discurso determinado. Podem-se igualmente

recortar os discursos em função da produção e da circulação de enunciados no

âmbito de instituições singulares (os gêneros do discurso no hospital, no tribunal,

etc.) ou se apegar a posicionamentos ideológicos (discurso patronal, comunista,

etc.) em um campo discursivo. Como “tipo” e “gêneros”, as noções de “campo” e

de “posicionamento” são duas maneiras diferentes de abordar a mesma realidade:

um campo é definido por uma rede de relações entre posicionamentos.

Onde aí se situaria a noção de “discurso constituinte”? Ela não se deixa encerrar

em nenhuma dessas três tipologias, ela as atravessa. Na verdade, ela se assenta sobre

propriedades ao mesmo tempo enunciativas, funcionais e situacionais. Agrupar numa

mesma classe discursos do tipo religioso, científico, literário, filosófico, para citar os mais

evidentes, implica supor uma certa função (dispor da mais forte autoridade), um certo

recorte de situações de comunicação de uma sociedade (há lugares, gêneros ligados a tais

discursos constituintes) e um certo número de invariantes enunciativos. Esses discursos

partilham ainda de numerosas propriedades ligadas a sua maneira específica de se inscrever

no interdiscurso, de fazer emergir seus enunciados e de fazê-los circular. Pode-se então

falar aqui de uma categoria propriamente discursiva, que não se deixa reduzir nem a uma

grade estritamente lingüística, nem a uma grade de ordem sociológica ou psicossociológica.

Posicionamento, comunidade discursiva, paratopia

Os discursos constituintes supõem um conflito permanente entre diversos

posicionamentos. Essa noção de “posicionamento” (doutrina, escola, teoria, partido,

Page 30: Unidades tópicas e não-tópicas

tendência, etc.) é demasiado pobre; ela implica apenas que os enunciados são relacionados

a diversas identidades enunciativas que se delimitam umas as outras. Eis um tema

recorrente na análise do discurso da França: a unidade de análise pertinente não é o

discurso em si mesmo, mas o sistema de referência aos outros discursos através do qual ele

se constitui e se mantém; referir-se aos outros e referir-se a si mesmo não são atos

distinguíveis senão de modo ilusório; o interdiscurso não se encontra no exterior de uma

identidade fechada sobre suas próprias operações. Certamente o posicionamento pretende

nascer de um retorno às coisas, de uma justa apreensão do Belo, da Verdade, etc. que os

outros posicionamentos teriam desfigurado, esquecido, subvertido etc., mas essa visada por

um termo que exorbita os discursos é na realidade atravessada por esses outros discursos.

Esses posicionamentos são eles próprios inseparáveis de grupos que os elaboram e os

fazem circular, gerindo-os. A partir do momento em que se trata de discursos-limite, que

são, além disso, discursos maximamente “autorizados”, não é ao conjunto dos membros da

sociedade que cabe avaliar, produzir e gerir os textos constituintes, mas a comunidades

restritas. É nesses grupos que se mantém uma memória e que os enunciados podem ser

avaliados em relação às normas, partilhadas pelos membros da comunidade associada a tal

ou qual posicionamento (por exemplo, tal grupo de pesquisa em sociologia) e pelos

membros da comunidade do mesmo campo, para além dos diversos posicionamentos (a

comunidade dos sociólogos, para retomar nosso exemplo).

O paradoxo, que é apenas aparente, é que para falar em nome de Deus ou em nome da

Ciência e se dirigir ao conjunto dos humanos, é preciso na realidade se dirigir a uma

comunidade reduzida. Os enunciados cujo alcance é global emergem de maneira

essencialmente local: os produtores desses textos se põem de acordo com as normas

internas de um grupo, não diretamente com uma doxa universalmente partilhada. Os

lugares institucionais de onde emergem os textos não se ocultam por trás de sua produção,

eles a moldam através de uma maneira de viver. Certamente as normas do grupo se fundam

sobre princípios transcendentes, mas estes últimos só são invocados através da mediação

das normas desse grupo. Não se pode conceber o romantismo sem a “boêmia”, nem os

escritores das Luzes, do século XVIII, fazendo-se abstração da rede internacional da

“República das Letras”. Não há independência entre as normas que regem os modos de

vida da comunidade e o “conteúdo” de seus posicionamentos.

Page 31: Unidades tópicas e não-tópicas

As diversas escolas filosóficas do mundo helênico não são as correntes ou escolas de

ciências humanas ou os laboratórios da física contemporânea, mas em todos esses casos o

posicionamento supõe a existência de redes institucionais específicas, de comunidades

discursivas que partilham um conjunto de ritos e normas. Pode-se distinguir comunidades

discursivas de dois tipos, estreitamente imbricadas: as que geram e as que produzem o

discurso. Um discurso constituinte não mobiliza apenas autores, mas uma variedade de

papéis sócio-discursivos: por exemplo, os discípulos das escolas filosóficas, os críticos

literários dos jornais, os juízes, etc.

A forma que toma uma “comunidade discursiva”, que não existe senão pela e na

enunciação de textos, varia às vezes em função do tipo de discurso constituinte em questão

e de cada posicionamento. Este último não é somente um conjunto de textos, um corpus,

mas uma imbricação entre um modo de organização social e um modo de existência de

textos. De nada serve imaginar os escritores das Luzes independentemente da rede

internacional da “República das Letras” ou os autores jansenistas independentemente dos

“solitários” de Port-Royal. Enquanto a escola epicurista era centrada sobre a figura de um

mestre venerado e se referenciava em um corpus dogmático, os discípulos de Pyrhon

consideravam a idéia mesmo de escola uma contradição com o espírito do ceticismo; mas

em um caso como noutro, doutrina e funcionamento institucional eram indissociáveis. O

discurso literário, de sua parte, inclui numerosos escritores que pretendem operar fora de

qualquer pertencimento; mas essa é justamente uma das características da literatura, qual

seja a de suscitar uma tal pretensão, de jogar com a tensão entre a criação solitária e o

pertencimento a grupos.

Falar assim de “comunidade discursiva” é afirmar que, por um movimento de

envolvimento recíproco, a comunidade é cimentada por discursos que são o produto dessa

comunidade. Esta problemática converge para outros trabalhos realizados em análise do

discurso, em particular sobre o discurso científico. Mas ela não está ainda suficientemente

elaborada; ela é, com efeito, muito sensível à diversidade dos discursos constituintes

concernidos, mas também aos posicionamentos no interior de cada campo. No discurso

religioso, por exemplo, os conflitos entre posicionamentos correspondem evidentemente,

para aqueles que o reivindicam, a modos de vida distintos; o que não é necessariamente o

caso dos posicionamentos científicos.

Page 32: Unidades tópicas e não-tópicas

Em se tratando de discursos constituintes, o estatuto do autor não pode ser, de

qualquer forma, evidente: um filósofo ou um escritor não podem se pôr nem no exterior

nem no interior da sociedade, eles estão condenados a alimentar sua obra do caráter

radicalmente problemático de seu próprio pertencimento a essa sociedade. Sua enunciação

se constitui através dessa impossibilidade mesma de atribuir para si um verdadeiro “lugar”.

Localidade paradoxal a que nós chamamos de paratopia. Não se trata do caso de um

indivíduo, mas de uma condição de possibilidade para o campo filosófico, literário etc., que

não é a ausência de qualquer lugar, mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar,

uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Não que

a filosofia ou a literatura tenham um funcionamento incomensurável em relação a outros

domínios de atividade (pode-se falar aí também de estratégias de promoção, de carreiras,

etc.), mas se não quisermos ficar aquém desse excesso que os funda, não podemos

considerá-los como uma atividade qualquer. Sem “localização” não há instituições que

permitam legitimar e gerir a produção e o consumo de obras; mas sem “des-localização”

não há verdadeira obra, porque é uma força que excede toda a sociedade que confere sua

legitimidade aos que falam do interior dos discursos constituintes.

Para o discurso filosófico, a paratopia aparece desde o início, com Sócrates discutindo

“na praça pública, nos balcões de bancos e em outros lugares” (Apologia de Sócrates, I).

Enunciador da ágora, Sócrates “pertence” na verdade a um lugar que excede qualquer lugar.

Posteriormente, a filosofia vai se definir por uma série de lugares mais ou menos parasitários,

dos quais ela se apropria mais ou menos longamente: assim, na antiguidade, a Academia, o

Pórtico, o Liceu etc. Ao lado desses lugares que tendem a se institucionalizar, filósofos como

os Cínicos alardeiam a paratopia em sua versão extrema: o barril de Diógenes vagando pela

cidade.

Esse pertencimento paradoxal que é a paratopia não é nenhuma origem ou causa, ainda

menos um estatuto: não é necessário nem suficiente ser um marginal “de carteirinha” para ser

tomado pelo processo de criação. A paratopia não é uma situação inicial: só há paratopia se

elaborada através de uma atividade de criação e de enunciação. Chateaubriand bem que

gostaria de ter sido “objetivamente” um aristocrata do Antigo Regime que não encontrou seu

lugar no mundo advindo da Revolução Francesa, ele não tinha nenhuma necessidade de

organizar uma criação em torno dessa tensão, que só posteriormente se tornou paratópica .

Page 33: Unidades tópicas e não-tópicas

Nem suporte, nem quadro, a paratopia envolve o processo criador, que também a envolve:

criar uma obra é em um só movimento produzir uma obra e construir através dela as

condições que permitem produzi-la. Não há situação paratópica exterior a um processo de

criação: dada e elaborada, estruturante e estruturada, a paratopia é ao mesmo tempo aquilo do

que é preciso se libertar pela criação e aquilo que a criação aprofundou, ela é

simultaneamente o que dá a possibilidade de aceder a um lugar e o que proíbe qualquer

pertencimento.

Inscrição e midium

O caráter constituinte de um discurso confere uma autoridade particular a seus

enunciados, que são investidos de toda a autoridade conferida por seu estatuto enunciativo.

Mais do que de “enunciado”, de “texto”, ou de “obra”, a questão aqui é de inscrições. O

conceito de inscrição contraria qualquer distinção empírica entre oral e gráfico: inscrever

não é necessariamente escrever. As literaturas orais são “inscritas”, assim como inúmeros

enunciados míticos orais, mas essa inscrição passa por vias distintas daquelas pelas quais

passa o código gráfico. A inscrição é radicalmente exemplar; ela segue exemplos e dá

exemplo. Produzir uma inscrição é não tanto falar em próprio nome, mas seguir os traços

de um Outro invisível, que associa os enunciadores-modelo de seu posicionamento e, no

limite, a presença daquela Fonte que funda o discurso constituinte: a Tradição, a Verdade, a

Beleza...

A inscrição se implanta pela defasagem de uma repetição constitutiva, a de um

enunciado que se instala em uma rede saturada de outros enunciados (por filiação ou por

rejeição) e se abre à possibilidade de uma re-atualização. Uma das características dos

enunciados pertencentes aos discursos constituintes é estarem ao mesmo tempo mais ou

menos fechados em sua organização interna e reinscritíveis em outros discursos. Por sua

maneira de se situar em um interdiscurso, uma inscrição se dá ao mesmo tempo como

citável (é conhecido, por exemplo, o quanto os filósofos fazem uso de fórmulas

generalizantes15). Mais amplamente, um estilo em literatura, um esquema de raciocínio

15 Ver o capítulo 8 deste livro.

Page 34: Unidades tópicas e não-tópicas

científico, embora consubstanciais a uma obra, podem ser re-atualizados por discípulos ou

epígonos ou reinscritos em contextos diferentes.

A inscrição se distribui por degraus de hierarquias instáveis. Certos textos adquirem

um estatuto de inscrição última, eles se tornam o que se poderia chamar de arquitextos.

Assim, a Ética de Spinoza ou A República de Platão, para a filosofia, os escritos dos Pais da

Igreja, para o discurso cristão. A Odisséia ou A Divina Comédia, para a literatura, etc. Bem

entendido, o estabelecimento de arquitextos legítimos é objeto de incessante debate entre os

posicionamentos, cada um procurando impor os seus ou a sua interpretação daqueles a serem

reconhecidos por todos.

A noção de “inscrição” implica necessariamente uma referência à dimensão

midiológica dos enunciados, para retomar um termo de R. Debray, ou seja, às modalidades

de suporte e de transporte dos enunciados. Um posicionamento não se define então somente

por “conteúdos”. Entre o caráter oral da epopéia, seus modos de organização textual e seus

conteúdos existe uma relação essencial; da mesma forma, entre a mídia televisiva e os

“conteúdos” que aí podem estar investidos. O “suporte” não é um suporte, ele não é

exterior ao que ele supostamente “veicula”. Sobre esse ponto, como sobre outros, trata-se

de superar as imemoriais oposições da análise textual: ação e representação, fundo e forma,

texto e contexto, produção e recepção, etc. Ao invés de opor conteúdos e modos de

transmissão, um interior do texto e um entorno de práticas não-verbais, é preciso conceber

um dispositivo em que a atividade enunciativa articula uma maneira de dizer e um modo de

veiculação dos enunciados que implica um modo de relação entre os homens.

Heterogeneidade discursiva

A análise dos discursos constituintes não se reduz ao estudo de alguns textos

privilegiados (as obras dos grandes sábios, os grandes textos religiosos, etc.) ou de alguns

tipos de textos privilegiados (as produções teológicas para teólogos, os artigos científicos

para cientistas e pesquisadores, etc.). Ela lida com uma produção discursiva profundamente

heterogênea. Uma hierarquia se instaura entre os textos “primeiros” e os que se apóiam

sobre eles para comentá-los, resumi-los, refutá-los, etc. Ao lado da grande filosofia, da alta

teologia ou da ciência nobre, existem as apostilas escolares, os sermões dominicais ou

Page 35: Unidades tópicas e não-tópicas

revistas de vulgarização científica. O discurso constituinte supõe essa interação de regimes

diversos, que têm, cada um, um funcionamento específico. As produções constituintes

consideradas fechadas, aquelas cuja comunidade de enunciadores tende a coincidir com a

dos consumidores, são sempre desdobradas em outros gêneros menos nobres, que são

igualmente necessários. O fato de que na França contemporânea a filosofia tenha se tornado

objeto de manuais de ensino secundário não é um acidente exterior à essência da filosofia,

como se esta última pudesse escapar de toda e qualquer didaticidade.

Sendo mais preciso, pode-se distinguir:

- Os textos ou gêneros primeiros (ou fontes) e os gêneros segundos, distinção que está

na base das problemáticas de vulgarização: de um lado os discursos que supostamente

produzem os conteúdos em sua “pureza”, de outro os discursos que se limitam a

resumir, explicitar, etc., uma doutrina já constituída anteriormente. Desse ponto de

vista, um artigo em uma revista científica será “primeiro”, mas não um manual

universitário ou um artigo em uma revista destinada ao grande público.

- Os gêneros de discurso fechados e os gêneros abertos: de um lado, discursos dos

quais os leitores são escritores potenciais ou efetivos de enunciados do mesmo gênero

(é o caso do discurso científico); de outro lado, discursos em que os leitores, em

número muito mais restrito que os escritores, não estão em posição de escrever

enunciados do mesmo gênero (é o caso de um jornal diário, por exemplo). Essa noção

de “abertura” é de manejo delicado para os discursos constituintes; em filosofia, por

exemplo, ela pode dizer respeito tanto à pretensão original dos textos de serem

abertos ou fechados quanto à realidade de seu modo de consumo. Um texto tem a

pretensão de ser aberto ou fechado quando essa característica decorre da maneira pela

qual ele constrói sua própria cena de enunciação. Por esse ponto de vista, as

Meditações de Descartes, escritas em latim, seriam “fechadas”, e seu Discurso do

método seria “aberto”. Mas essa pretensão pode não corresponder ao uso efetivo que

dele será feito; muitas obras filosóficas são lidas, com efeito, em vários níveis: pode

existir uma leitura “grande público” de Platão ou de Nietzsche.

- Os textos fundadores e textos não-fundadores. Distinção ambígua, que designa tanto

os textos de pretensão fundadora, isto é, os que se apresentam como tais, quanto

aqueles que a posteridade julgou fundadores retrospectivamente em relação à história

Page 36: Unidades tópicas e não-tópicas

do pensamento. Assim, o Discurso do método é fundador tanto de um ponto de vista

quanto de outro, ainda que não seja uma obra “fechada”. O mesmo vale para a

Interpretação dos sonhos, de Freud, que se apresenta como fundador e foi

reconhecido como tal. Os enunciados reconhecidos como fundadores são, por

definição, uma pequena minoria; eles pretendem definir uma nova maneira de fazer

filosofia, física, de escrever romances, etc.

Cada discurso constituinte suscita gêneros “segundos” que lhe são específicos.

“Vulgarizam-se”, por exemplo, os enunciados científicos, e não os enunciados literários.

Para o comentário desses últimos existe um conflito permanente entre duas instâncias de

legitimação: os sábios, legitimados pela Escola, e os amadores, que reivindicam para si uma

relação privilegiada, pessoal com os textos. O que evidentemente não se dá no caso dos

textos científicos. Em conseqüência, as linhas divisórias entre os diferentes discursos

constituintes não são tão simples. Poder-se-ia até dizer que as práticas de comentário dos

textos de Lacan ou de Freud mantêm relações complexas com a exegese religiosa; o que

não quer dizer que sejam a mesma coisa.

Admitiremos, nessa perspectiva, mesmo se isso afronta um ponto de vista bastante

comum, que, em matéria de discurso constituinte, de um mesmo movimento se instauram o

texto a interpretar e seu comentário. Essa idéia contraria representações comuns, para as

quais os enunciados “primeiros” não têm necessidade de enunciados segundos. O paradoxo

é que um texto pode se apresentar dispensando comentários se ele for objeto de um

comentário... As palavras de Cristo parecem ser tanto mais incomensuráveis quanto mais

uma infinidade de comentários não param de tentar esclarecê-las. O acúmulo de

interpretações torna um texto sempre mais interpretável e sempre mais inacessível.

Pode-se falar aqui de um quadro hermenêutico (Maingueneau, 1995b), que confere

aos enunciados primeiros um certo estatuto pragmático, um modo de circulação no

interdiscurso e uma “interpretabilidade”: é preciso comentá-los porque se supõe que a

riqueza de seu sentido excede a capacidade dos intérpretes, porque há um déficit irredutível

de toda interpretação em relação à “herméneia”, à mensagem que, através desses textos, a

Fonte entrega ao comum dos mortais. Em tal quadro hermenêutico, o texto não se

reconheceria cometendo um erro, só há intérpretes deficientes. Ele se beneficia assim de

um estatuto que, em pragmática, se diria “hiperprotegido”: ele pode jogar livremente com

Page 37: Unidades tópicas e não-tópicas

as máximas conversacionais, sem que isso atinja seu prestígio. Logo alguém se esforçará

para restituir e preservar seu significante em sua “autenticidade”, porque o texto é um

monumento (= o que permanece), sempre fora de alcance dos intérpretes que nele se

agarram.

A cena de enunciação

O locutor de um gênero de discurso cotidiano, assim como o professor que dá uma

aula ou o jornalista que redige um fait divers, trabalha no interior de um quadro

preestabelecido que sua enunciação não pode modificar. Ao contrário, quando se trata de

discurso constituinte – mais exatamente os textos “primeiros” de discursos constituintes,

aqueles que são fontes da mais alta autoridade – o locutor deve dizer construindo o quadro

desse dizer, elaborar dispositivos pelos quais o discurso encena seu próprio processo de

comunicação, uma encenação que é inseparável do universo de sentido que o texto procura

impor. A situação de enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se

constrói como cenografia por meio da enunciação. Aqui –grafia é um processo de inscrição

legitimante que traça um círculo: o discurso implica um enunciador e um co-enunciador,

um lugar e um momento da enunciação que valida a própria instância que permite sua

existência. Por esse ponto de vista, a cenografia está ao mesmo tempo na nascente e no

desaguadouro da obra.

Um dos mal-entendidos que dificilmente falta quando se suscita a noção de cenografia

é que ela é muitas vezes interpretada como uma simples cena, como um quadro estável no

interior do qual se desenrolaria a enunciação. Na verdade, é preciso concebê-la ao mesmo

tempo como quadro e como processo. A –grafia é um processo de inscrição legitimante que

traça um círculo: o discurso implica uma certa situação de enunciação, um ethos e um

“código linguageiro” (ver infra) através dos quais se configura um mundo que, em retorno,

os valida por sua própria emergência. O “conteúdo” aparece assim inseparável da

cenografia que lhe dá suporte .

Em Descartes, por exemplo, o Discurso do método é indissociável de uma cenografia

que, longe de ser apenas um procedimento a serviço de um pensamento, modifica o próprio

estatuto da filosofia. Nessa cenografia, um sujeito que se apresenta como simples detentor

Page 38: Unidades tópicas e não-tópicas

de razão, homem honesto desprendido de instituições religiosas e escolares, afirma a

excelência do “método”, do encadeamento dos argumentos, para um leitor que ele

pressupõe ter uma única qualidade: ser dotado de “bom senso”. O Discurso do método

constrói, assim, sua legitimação ultrapassando as fronteiras que, na época, eram

normalmente atribuídas ao discurso filosófico. Ele coloca na posição de árbitro autorizado

as pessoas honestas: “aqueles que se servem apenas de sua razão natural em toda sua

pureza”, conforme as palavras de Descartes. Não se pode, então, opor a cena de enunciação

e o enunciado como a “forma” e o “conteúdo”: a cena de enunciação é uma dimensão

essencial do “conteúdo”. O cartesianismo não é somente uma doutrina, é a instauração de

certas cenografias através das quais é delineada a doutrina.

Em um romance como “O estrangeiro”, de Albert Camus, o leitor se encontra preso

no processo de legitimação progressivo da cenografia que lhe permite precisamente

enunciar como “estrangeiro”. Quando ele abre esse texto, recebe uma certa palavra estranha

às cenografias romanescas habituais: frases breves, no passé composé*, remetidas a um eu

desinvestido. Aqui, o lugar e o momento da enunciação são um limite último: único “lugar”

e único “tempo” à medida dessa voz de estrangeiridade: logo após a morte da mãe, na praia

do assassinato, na espera da execução. A história tem precisamente por função validar essa

cenografia desconcertante, a leitura preenchendo a lacuna assim criada pelo surgimento da

narrativa.

Código linguageiro

Uma cenografia implica um certo uso da linguagem e é igualmente indissociável dele

Tratando-se de discurso constituinte, a língua (idioma escolhido e o uso que se faz dele) não

pode ser, com efeito, um instrumento neutro, mas está investida como apropriada ao universo

de sentido que o posicionamento pretende impor. Os textos não se desenvolvem na

compacidade de uma língua, mas através da interlíngua, o espaço de confrontação entre

variedades lingüísticas: variedades “internas” (usos sociais variados, níveis de língua,

dialetos...) ou variedades “externas” (idiomas “estrangeiros”). Tal distinção é, aliás, relativa

* “Passé composé” é a forma que tem por característica evocar os acontecimentos referindo-os ao momento da enunciação (NT).

Page 39: Unidades tópicas e não-tópicas

na medida em que a distância entre uma língua “estrangeira” e uma língua “não-estrangeira”

não é estanque: para um europeu letrado, o latim durante séculos não foi uma língua

“estrangeira”. Nessa noção de “código linguageiro” se associam a acepção de sistema

semiótico que permite a comunicação e a de código prescritivo: o código linguageiro que

mobiliza o discurso é, com efeito, aquele através do qual ele pretende que se deva enunciar, o

único legítimo junto ao universo de sentido que ele instaura.

A partir do momento em que se opera sobre a fronteira do dizível e do indizível, é

inevitável que a questão da língua torne-se crucial. A Verdade, a Beleza, o Bem, etc. não

podem se “encarnar” em qualquer idioma. Não é por acaso que durante muito tempo os

cristãos só tiveram acesso à Bíblia em latim, que não era nem a língua de Cristo nem a dos

Evangelhos; mas era a língua da Igreja. Retomando o exemplo do Discurso do método,

notaremos que, àquela época, a língua francesa participa da mesma dinâmica ideológica de

que participa Descartes. O trabalho de purificação articulado pelos letrados e pela Academia

francesa recém–fundada acompanhava o desenvolvimento de um discurso sobre a clareza do

francês, sobre sua suposta conformidade a uma ordem natural do pensamento, concepção que

não é “exterior” ao discurso de Descartes. A dinâmica iluminista do método cartesiano

investiu uma língua que está, na verdade, ela mesma atravessada pela dinâmica de uma

caminhada rumo à clareza. Produz-se assim um apoio mútuo entre duas forças.

Ethos

Um posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e

uma certa relação com a linguagem: deve-se igualmente levar em conta o investimento

imaginário do corpo, a adesão “física” a um certo universo de sentido. As “idéias” são

apresentadas através de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser, associada a

representações e normas de disciplina do corpo. Discursos de atribuição de referenciais

últimos, construção de um lugar enunciativo que dá sentido às práticas humanas, os discursos

constituintes são portadores de uma esquematização do corpo, mesmo se eles negam essa

dimensão. Retomamos aqui a problemática retórica do ethos. Concebendo-o dentro de uma

perspectiva pragmática, esse ethos emana do “mostrado”: o enunciador é percebido através

de um “tom” que implica uma certa determinação de seu próprio corpo, à medida do mundo

Page 40: Unidades tópicas e não-tópicas

que ele instaura em seu discurso. A legitimação do enunciado não passa somente pela

articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de uma corporalidade que se dá no

movimento mesmo da leitura.

Assim, a encenação da enunciação joga sobre três registros:

- um investimento cenográfico do discurso faz deste último o movimento em que se

elabora uma re-presentação de sua própria situação de enunciação;

- um investimento em um código linguageiro permite, jogando sobre a diversidade

irredutível de zonas e de registros de língua, produzir um efeito prescritivo que resulta de

uma conveniência entre o exercício da linguagem que implica o texto e o universo de sentido

que ele manifesta;

- um investimento imaginário dá ao discurso uma voz atestada por um corpo condizente

com a cenografia e com o código linguageiro.

Conclusão

O discurso constituinte implica assim um tipo de ligação específica entre operações

linguageiras e espaço institucional. As formas enunciativas não são aí um simples vetor de

idéias, elas representam a instituição no discurso, ao mesmo tempo em que moldam,

legitimando-o (ou deslegitimando-o) esse universo social no qual elas vêm se inscrever. Há

constituição precisamente na medida em que um dispositivo enunciativo funda, de uma

forma que é de certa maneira performativa, sua própria existência, fazendo como se extraísse

essa legitimidade de uma Fonte da qual ele seria apenas a encarnação (o Verbo revelado, a

Razão, a Lei, etc.). Há assim uma circularidade constitutiva entre a imagem que ele dá de sua

própria instauração e a validação retrospectiva de uma certa configuração da comunicação,

da repartição de sua autoridade, do exercício do poder que ele cauciona, denuncia ou

promove por seu gesto instaurador.

Terminarei com uma questão à qual é impossível se furtar: a da relação entre discursos

constituintes e a análise do discurso que se debruça sobre eles. Esta última está presa em um

paradoxo insuperável, dado que ela, ao mesmo tempo, emana do discurso constituinte

(científico, nesse caso), pretendendo ao mesmo tempo estar acima do caráter constituinte de

qualquer discurso. Se pretender negar esse paradoxo, a análise do discurso cairia na mesma

Page 41: Unidades tópicas e não-tópicas

ingenuidade da Filosofia, da Teologia e da Ciência, quando, em diferentes momentos,

tiveram a pretensão de reinar sobre a totalidade do dizível. Como não está em questão para a

análise do discurso se auto-proclamar a única instância de legitimação, cabe-lhe aceitar estar

incluída no domínio de investigação que procura analisar, ser criticada por aquilo que ela

pretende tomar por objeto.

Page 42: Unidades tópicas e não-tópicas

PROBLEMAS DE ETHOS

Depois de ter sido envolvida no movimento de descrédito da retórica, a noção de

ethos16 – refiro-me, aqui, apenas à noção de ethos discursivo17 – hoje está cada vez mais

presente. Mas, enquanto a retomada dos interesses pela retórica é relativamente antigo (foi

em 1958 que foram publicadas as obras fundadoras de Ch. Perelmann e de S. Toulmin), o

ethos teve que esperar os anos 80 para ocupar um lugar na reflexão sobre o discurso18 : não

somente suscitou comentários como conceito do corpus retórico, mas deu lugar a

prolongamentos novos no quadro das disciplinas que estudam o discurso.

Podemos nos perguntar por que hoje o ethos suscita tanto interesse. Evidentemente,

um tal retorno está em consonância com o domínio das mídias audiovisuais: com elas,

o centro de interesse deslocou-se das doutrinas e dos aparelhos que lhes estavam

ligados para a apresentação de si, ao “look” ; fenômeno que Regis Debray, por

exemplo, teorizou em termos de midialogia. Tal movimento acompanha o

enraizamento de qualquer convicção em uma certa determinação do corpo em

movimento ; testemunha-o a transformação da “propaganda” de antes em

“publicidade” : uma propunha argumentos para valorizar o produto, a outra elabora

em seu discurso o corpo imaginário da marca que supostamente está na origem do

enunciado publicitário.

Não me engajarei mais nesta direção ; aqui, proponho-me só a fazer um certo

número de observações para apreender o que está em jogo nessa noção de ethos. Para ter

Artigo publicado originalmente na revista Pratiques n° 113, junho de 2002, p.55-68.

16Ethos põe problemas de ortografia ; se se quer respeitar as convenções usuais em matéria de palavras gregas, dever-se-ia escrevê-la com um è, mas muitos usam um simples e, o que eu também faço. No plural, escreve-se em geral ethè e não ethoi, porque se trata de uma palavra neutra em grego antigo.17 Há, de fato, uma explicação sociológica da noção de ethos; ela pode, em um sentido, remeter a Aristóteles (Ética a Nicômaco, II 1), mas sobretudo a Max Weber que, em A Ética protestante e o espírito do capitalismo, fala do ethos (sem dar dele, no entanto, uma definição precisa) como de uma interiorização de normas de vida, à articulação entre crenças religiosas e sistema econômico, no caso, o capitalismo. No prolongamento dessa concepção, pode-se citar, por exemplo, o livro de Herbert Mac Closky et John Zaller, The American ethos : public attitudes toward capitalism and democracy, Cambridge (Mass.), 1984.18 No que se refere à França, parece-me que é em 1984 que começa a epxloração do ethos em termos pragmáticos ou discursivos : Ducrot, que integra o ethos a uma coneituação enunciativa (Ducrot, 1984 : 201) e eu mesmo, que proponho uma teoria de ethos em um quadro da análise do discurso (Maingueneau 1984, 1987). Anteriormente, M. Le Guern (1977) havia chamado a atenção para o valor que essa noção tinha na retórica do século XVII.

Page 43: Unidades tópicas e não-tópicas

dela uma visão mais rica, podemos remeter ao volume editado por R. Amossy (1999),

citado na bibliografia. Começarei lembrando as principais características do ethos retórico,

tal como se apresenta desde a problemática aristotélica ; invocarei, em seguida, um certo

número de problemas que se põem quando se quer estabilizar esta noção ; apresentarei,

enfim, minha própria concepção do ethos, insistindo em que esta é apenas uma das

explorações possíveis de uma noção que tem vocação interdisciplinar.

O ethos retórico

Escrevendo sua Retórica, Aristóteles pretende apresentar uma techné cujo objetivo

não é examinar o que é persuasivo para tal ou qual indivíduo, mas para tal ou qual tipo de

indivíduos (1356 b 32-3319). A prova pelo ethos consiste em causar boa impressão pela

forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório

ganhando sua confiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades à instância

que é posta como fonte do acontecimento enunciativo.

A prova pelo ethos mobiliza “tudo o que, na enunciação discursiva, contribui para

emitir uma imagem do orador destinada ao auditório. Tom de voz, modulação da fala,

escolha das palavras e dos argumentos, gestos, mímicas, olhar, postura, adornos etc. são

outros tantos signos, elocutórios e oratórios, vestimentais e simbólicos, pelos quais o orador

dá de si mesmo uma imagem psicológica e sociológica” (Declercq, 1992 : 48). Não se trata

de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica,

construída pelo destinatário por meio do próprio movimento da fala do locutor. O ethos não

age no primeiro plano, mas de forma lateral. Ele implica uma experiência sensível do

discurso, ele mobiliza a afetividade do destinatário. Para retomar uma fórmula de Gibert

(séc. XVIII), que resume o triângulo da retórica antiga, “instrui-se pelos argumentos ;

move-se pelas paixões; insinua-se pelos costumes”: os “argumentos” correspondem ao

logos, as “paixões”, ao pathos, os “costumes” ao ethos. Para A. Auchlin (2001 : 92), “pode-

se supor que o ethos se constrói sobre a base de dois mecanismos de tratamento distintos,

um que repousa sobre a decodificação lingüística e o tratamento inferencial dos

enunciados, e o outro, sobre o re-agrupamento de fatos em sintomas, operação de tipo

19 Citamos a tradução de M. Dufour (les Belles-Lettres, 1967)

Page 44: Unidades tópicas e não-tópicas

diagnóstico, que mobiliza recursos cognitivos da ordem da empatia”. Compreende-se que,

na tradição retórica, o ethos tenha sido freqüentemente considerado com suspeição :

apresentado como tão eficaz, ou, às vezes, mais, do que o logos, os argumentos

propriamente ditos, torna-se suspeito de inverter a hierarquia moral entre o inteligível e o

sensível.

De fato, na própria Retórica de Aristóteles, o ethos intervém de duas formas. Em

um primeiro emprego, designa um tipo de prova : “Persuade pelo “caráter” (ethos) quando

o discurso é considerado de forma a tornar o orador digno de fé ; nós confiamos, de fato,

mais rapidamente e de preferência em pessoas de bem em todos os assuntos em geral, e

completamente em questões que não comportam nada de certeza, mas deixam um lugar de

dúvida” (1356 a 4-7). Para produzir essa imagem positiva de si mesmo, o orador pode jogar

com três qualidades fundamentais : a phronesis, ou prudência, a aretê, ou virtude, e a

eunoia, ou benevolência. Aristóteles as expõe no início do segundo livro da Retórica:

“Quanto aos oradores, eles inspiram confiança por três razões ; elas são as únicas que,

postas de lado as demonstrações, determinam nossa crença : a prudência (phronesis), a

virtude (areté) e a benevolência (eunoia). Se, com efeito, os oradores alteram a verdade do

que dizem, quando falam ou aconselham, é por todas essas razões ao mesmo tempo ou por

uma dentre elas : ou, por imprudência, não pensam o justo; ou, pensando o justo, calam sua

opinião por maldade ; ou, embora prudentes e honestos, não são benevolentes; é por essa

razão que se pode, conhecendo o melhor partido, não aconselhá-lo” (1378 a 6-14).

Esse ethos retórico recobre uma realidade muito diferente daquela que o termo

designa na Ética a Nicômaco ou na Política : trata-se, com efeito, de um ethos percebido

por um público, e não do ethos característico de um indivíduo ou de um grupo, seus traços

de caráter, suas disposições estáveis. Mas, na Retórica também o ethos designa disposições

estáveis, que são apresentadas de dois pontos de vista complementares :

- O ponto de vista político : o capítulo 8 do livro I, que leva em conta as diferentes

constituições políticas, insiste na necessidade, para o orador, de não empregar o mesmo

discurso segundo esteja diante de defensores da monarquia ou diante de um auditório

convencido por idéias democráticas. Aristóteles fala do “caráter  (= ethos) das

constituições”. Os homens que vivem sob uma certa constituição política têm um certo tipo

Page 45: Unidades tópicas e não-tópicas

de caráter (= ethos), e a argumentação do orador deve adaptar-se a isso.

- O ponto de vista da idade e da fortuna : nos capítulos 12 a 17 do livro II, Aristóteles

descreve os traços de caráter particulares dos homens em função de sua idade (juventude,

maturidade, velhice) e de sua fortuna (seguindo a ordem de sua apresentação : a nobreza, a

riqueza, o poder e a sorte). Aristóteles descreve assim os diferentes caracteres que o orador

pode encontrar em um auditório : cabe-lhe escolher as diferentes paixões que deverá

suscitar nele. Como a virtude não é considerada em todos os lugares nem por todas as

pessoas da mesma maneira, é em função de seu auditório que o orador construirá uma

imagem de si conforme à que é considerada como virtude. A persuasão só é obtida se o

auditório pode ver, no orador, que tem o mesmo ethos que vê em si mesmo: persuadir

consistirá em fazer passar em seu discurso o ethos característico do auditório, para dar-lhe a

impressão de que é um dos seus que se dirige a ele.

O ethos retórico, o primeiro emprego, está ligado à própria enunciação, e não a um

saber extra-discursivo sobre o locutor. Este é o ponto essencial : “persuade-se pelo caráter

quando o discurso é tal que torna o orador digno de fé (...). Mas é necessário que essa

confiança seja efeito do discurso, não de uma prevenção sobre o caráter do orador” (1356

a)20. R. Barthes sublinha esse ponto : “São os traços de caráter que o orador deve mostrar

ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão (...) O orador

enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso, eu não sou aquilo”21. A

eficácia do ethos tem a ver com o fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação,

sem ser explicitado no enunciado.

Oswald Ducrot conceituou esse fenômeno através de sua distinção entre “locutor-L”

(=o enunciador) e o “locutor-lambda” (= o locutor enquanto ser do mundo), que atravessa

a distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer : o ethos se mostra no ato de

enunciação, ele não é dito no enunciado. Ele permanece, por natureza, no segundo plano da

enunciação : ele deve ser percebido, mas não deve ser objeto do discurso. “Não se trata de

afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu

discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de chocar o auditório, mas da

aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das

palavras, dos argumentos... Em minha terminologia, direi que o ethos está associado a L, o

20 Ênfase nossa.21 "L'ancienne rhétorique", in : Communications 16 (1966) p. 212.

Page 46: Unidades tópicas e não-tópicas

locutor enquanto tal : é na medida em que é fonte da enunciação que ele se vê revestido de

certos caracteres que, em conseqüência, tornam essa enunciação aceitável ou refutável”

(Ducrot 1984: 201).

Vê-se que o ethos é distinto dos atributos “reais” do locutor. Embora seja associado

ao locutor, na medida em que ele é a fonte da enunciação, é do exterior que o ethos

caracteriza esse locutor. O destinatário atribui a um locutor inscrito no mundo extra-

discursivo traços que são em realidade intradiscursivos, já que são associados a uma forma

de dizer. Mais exatamente, não se trata de traços estritamente “intradiscursivos” porque,

como vimos, também intervêm, em sua elaboração, dados exteriores à fala propriamente

dita (mímica, vestimentas …).

Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade.

Cada tomada da palavra implica ao mesmo tempo levar em conta representações que os

parceiros fazem um do outro, e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de

forma a sugerir através dele uma certa identidade.

Algumas dificuldades ligadas à noção

Em seus desenvolvimentos históricos, e também nas re-explorações que dela se

fazem hoje, a noção de ethos, por mais simples que possa parecer à primeira vista, coloca

múltiplos problemas, se se quiser caracterizá-la com alguma precisão. Assinalaremos

alguns.

O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que

o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele

fale. Parece necessário, pois, estabelecer uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-

discursivo. Só o primeiro, como vimos, corresponde à definição de Aristóteles. Certamente,

existem tipos de discurso ou de circunstâncias para as quais não se espera que o

destinatário disponha de representações prévias do ethos do locutor : isso ocorre, por

exemplo, quando se abre um romance. Mas a questão é completamente diferente no

domínio político, por exemplo, quando a maior parte dos locutores, constantemente

presentes na cena midiática, são já associados a um tipo de ethos que cada enunciação pode

Page 47: Unidades tópicas e não-tópicas

confirmar ou infirmar. De qualquer forma, mesmo que o destinatário não saiba nada

antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de que um texto pertence a um

gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria

de ethos. Pode-se colocar em dúvida o fundamento dessa distinção entre “pré-discursivo” e

“discursivo”, argumentando que cada discurso se desenvolve no tempo (um homem que

falou no começo de uma reunião e que retoma a palavra já adquiriu uma certa reputação

que a seqüência de sua fala pode confirmar ou não), mas parece mais razoável pensar que a

distinção pré-discursivo / discursivo deve levar em conta a diversidade dos gêneros de

discurso, que ela não é pertinente de forma absoluta.

Uma outra série de problemas advém do fato de que, durante a elaboração do ethos,

interagem ordens de fatos muito diversos : os índices sobre os quais se apóia o intérprete

vão desde a escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento textual,

passando pelo ritmo e a modulação. O ethos se elabora, assim, por meio de uma percepção

complexa que mobiliza a afetividade do intérprete, que tira suas informações do material

lingüístico e do ambiente. Há algo ainda mais grave : se se diz que o ethos é um efeito do

discurso, supõe-se que podemos delimitar o que decorre do discurso ; mas isso é muito

mais evidente para um texto escrito do que para uma situação de interação oral. Há sempre

elementos contingentes em um ato de comunicação, em relação aos quais é difícil dizer se

fazem ou não parte do discurso, mas que influenciam a construção do ethos pelo

destinatário. É, em última instância, mais uma decisão teórica do que de saber se se deve

relacionar o ethos ao material propriamente verbal, atribuir o poder às palavras, ou se se

deve integrar a ele elementos como a vestimenta do locutor, seus gestos, e, eventualmente,

o conjunto do quadro da comunicação. O problema é mais delicado se considerarmos que o

ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal, articula verbal e não-verbal

para provocar no destinatário efeitos que não decorrem apenas das palavras.

Além disso, a noção de ethos remete a coisas muito diferentes segundo seja

considerada do ponto de vista do locutor ou do destinatário : o ethos visado não é

necessariamente o ethos produzido. O professor que quer dar uma imagem de sério pode

ser percebido como monótono, e aquele que quer dar a imagem de indivíduo aberto e

simpático  pode ser percebido como doutrinador ou “demagogo”. Os fracassos, em matéria

de ethos, são moeda corrente.

Page 48: Unidades tópicas e não-tópicas

Na própria concepção de ethos, existem amplas zonas de variação: A. Auchlin

assinala algumas delas:

- O ethos pode ser concebido como mais ou menos carnal, concreto ou mais ou

menos “abstrato”. É a própria questão da tradução do termo ethos que está

em jogo aqui : caráter, retrato moral, imagem, costumes oratórios, atitude, ar,

tom …; o quadro de referência pode privilegiar a dimensão visual (“retrato”)

ou musical (“tom”), a psicologia popular, a moral etc.

- O ethos pode ser concebido como mais ou menos axiológico. Há

tradicionalmente uma discussão sobre o caráter “moral” ou não da prova pelo

ethos. Há ou não autonomia do ethos em relação aos costumes reais dos

locutores ? Atribui-se à retórica latina o preceito segundo o qual, para ser um

bom orador, é preciso antes de tudo ser um homem de bem. Posição que

parece oposta à concepção aristotélica.

- O ethos pode ser concebido como mais ou menos saliente, manifesto,

singular vs coletivo, partilhado, implícito e invisível. Alguns, como C.

Kerbrat-Orecchioni, associam a noção de ethos aos hábitos locucionais

partilhados pelos membros de uma comunidade : “Pode-se, de fato, supor

razoavelmente que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidade

obedecem a alguma coerência profunda, e esperar que sua descrição

sistemática permita extrair o “perfil comunicativo”, ou ethos, dessa

comunidade (isto é, sua maneira de se comportar e de se apresentar na

interação – mais ou menos calorosa ou fria, próxima ou distante, modesta ou

imodesta, “inconveniente” ou respeitosa do território do outro, susceptível ou

indiferente à ofensa etc.)” (Kerbrat-Orecchioni 1996 : 78). Um tal “ethos

coletivo” constitui, para os locutores que o partilham, um quadro, invisível e

imperceptível, como tal, do interior.

- O ethos pode ser concebido como mais ou menos fixo, convencional vs

emergente, singular. De fato, é evidente que existem, para um grupo social

dado, “ethé” fixos, que são relativamente estáveis, convencionais. Mas não é

Page 49: Unidades tópicas e não-tópicas

menos evidente que existe também a possibilidade e jogar com esses ethé

convencionais.

De qualquer forma, desde a origem, a noção de ethos não tem um valor unívoco. O

termo “ethos”, em grego, tem um sentido pouco específico e se presta a múltiplos

investimentos: em retórica, em moral, em política, em música... Já em Aristóteles, o ethos é

objeto de tratamentos diferentes na Política e na Retórica, e vimos que, nesse último livro,

ele designa ora propriedades associadas ao orador enquanto ele enuncia, ora disposições

estáveis atribuídas a indivíduos inseridos em comunidades. A isso se acrescentam todos os

problemas postos pela interpretação do corpus aristotélico e, mais amplamente, dos

corpora antigos. Os que têm familiaridade com esses termos não podem ignorar a

quantidade de debates que suscita desde mais de dois séculos a interpretação da menor

passagem dos grandes filósofos gregos …

Não é nossa tarefa aqui atribuir uma interpretação ao conjunto dos empregos de

“ethos” em Aristóteles, mesmo que restringindo-nos à Retórica ; o que nos interessa é,

antes, saber a que título essa categoria interessa a um setor determinado das ciências

humanas contemporâneas, em especial ao estudo do discurso. Não vivemos no mesmo

mundo da retórica antiga, e a fala não é mais governada pelos mesmos dispositivos; o que

era uma disciplina única, a retórica, é hoje dividida em disciplinas teóricas e práticas que

têm interesses distintos e captam o ethos em diversas facetas.

Não é de forma alguma possível estabilizar definitivamente uma noção desse tipo,

que é mais adequado apreender como o núcleo gerador de uma multiplicidade de

desenvolvimentos possíveis. Há uma grande distância, por exemplo, entre os esforços de

M. Dascal para integrar o ethos a uma “retórica cognitiva” fundada em uma pragmática

filosófica (Dascal, 1999) e as perspectivas dos “estudos culturais”, em que o ethos é

associado às questões de diferença sexual e de etniticidade (Baumlin J. et T, 1994). Os

corpora exercem um papel essencial nessa diversificação: aplicada a um texto filosófico do

século XIX, o ethos não põe os mesmos problemas que põe quando aplicado a uma

interação conversacional…

No entanto, limitando-se à Retórica de Aristóteles, pode-se concordar em relação a

algumas idéias, sem prejulgar a forma pela qual elas poderão eventualmente ser exploradas:

Page 50: Unidades tópicas e não-tópicas

- o ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma

“imagem” do locutor exterior à fala;

- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;

- é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento

socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação

precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada.

É com esse espírito que vou apresentar minha concepção pessoal de ethos, que se

inscreve no quadro da análise do discurso: mesmo se sua problemática é bem diferente,

parece que não é fundamentalmente infiel às linhas de força da concepção aristotélica do

ethos. Para ficar no espírito desse número de Pratiques, vou enfatizar o escrito.

II

Fui levado a trabalhar a noção de ethos em um quadro de análise do discurso e

sobre corpora que decorrem de gêneros que podem ser considerados “instituídos”, por

oposição aos gêneros conversacionais. Nos gêneros “constituídos”, sejam eles monologais

ou dialogais, os parceiros ocupam papéis pré-estabelecidos que permanecem estáveis

durante o evento comunicativo, e seguem rotinas mais ou menos precisas no

desenvolvimento da organização textual. Nos gêneros conversacionais, ao contrário, os

lugares dos parceiros são seguidamente negociados, e o desenvolvimento do texto não

obedece a restrições macro-estruturais fortes.

Minha perspectiva ultrapassa bastante o quadro da argumentação. Além da

persuasão pelos argumentos, a noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral

da adesão dos sujeitos a um certo posicionamento. Esse processo é particularmente

evidente quando se trata de discursos como a publicidade, a filosofia, a política etc., que –

diferentemente dos que decorrem de gêneros “funcionais”, como os formulários

administrativos ou os instrucionais – devem ganhar um público que está no direito de

ignorá-los ou de recusá-los.

Page 51: Unidades tópicas e não-tópicas

O “fiador”

A meu ver, a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que ela mantém

com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite articular corpo e discurso em

uma dimensão diferente da oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que

se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como

uma “voz”, associada a um “corpo enunciante” historicamente especificado.

Enquanto a retórica ligou estreitamente o ethos à oralidade, ao invés de reservá-lo à

eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, pode-se propor que qualquer texto escrito,

mesmo se ele o nega, tem uma “vocalidade” específica que permite relacioná-la a uma

caracterização do corpo do enunciador (e não, bem entendido, ao corpo do locutor extra-

discursivo), a um “fiador” que, por meio de seu “tom”, atesta o que é dito (o termo “tom”

tem a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral).

Isso quer dizer que optei por uma concepção mais “encarnada” do ethos, que, nessa

perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das

determinações físicas e psíquicas associadas ao “fiador” pelas representações coletivas.

Assim, acaba-se por atribuir ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”, cujo grau de

precisão varia segundo os textos. O “caráter”22 corresponde a um feixe de traços

psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição física e a uma

forma de se vestir. Além disso, o ethos implica uma forma de mover-se no espaço social,

uma disciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um comportamento. O destinatário

o identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações sociais, avaliadas

positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação contribui para reforçar ou

transformar.

De fato, a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma

personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte pregnante e ao

qual ele dá acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da leitura, é um estereótipo

cultural que subsume um certo número de situações estereotípicas associadas a

comportamentos: a publicidade contemporânea apóia-se maciçamente em tais estereótipos

(o mundo ético do quadro dinâmico???, dos esnobes, das estrelas de cinema etc.). No

22 Que não confundiremos, evidentemente, com o termo « caráter » , como qual se traduz freqüentemente o « ethos » da Retórica de Aristóteles.

Page 52: Unidades tópicas e não-tópicas

domínio da canção, por exemplo, notaremos que a passagem da simples inclusão de um

cantor em um clip teve o efeito de inserir o fiador em um mundo ético específico.

Propus designar com o termo “incorporação” a maneira pela qual o destinatário em

posição de intérprete – ouvinte ou leitor – se apropria desse ethos. Fazendo um uso pouco

ortodoxo da etimologia, pode-se, de fato, fazer jogar essa “incorporação” em três registros:

- a enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, ela lhe dá corpo;

- o destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a

uma maneira específica de relacionar-se com o mundo habitando seu próprio corpo;

- essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da

comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso.

Consideremos essa propaganda de aparelhos fotográficos publicada em uma

revista :

IXUS II Descubra o prazer do puro metal. Ixus II é um mini-bloco de aço de

acabamento acetinado e polido em que cada elemento foi pensado para uma

ergonomia exemplar em uma compacidade máxima. A qualidade da imagem é

assegurada por um novo micro-zoom 2x com lente esférica dupla, um auto-foco

de precisão de 108 patamares/paliers, um obturador de 1/900° que dispara em

tempo real todas as funções PQI para cópias de qualidade. Kit de lançamento

com estojo prático em couro cinza e caixa de rangement para 12 cassettes APS :

2000 F.

Full metal jacket

Canon : Mostre do que você é capaz

O fiador desse texto não é explicitado, mas o texto o “mostra”, por sua maneira

de dizer: faz o leitor entrar em um mundo mítico viril de matriz tecnológica e de

espírito de aventura (“mostre do que você é capaz”). Mais precisamente, esse mundo

ético é exemplificado pelo exército americano, como o indicam a re-atualização do

Page 53: Unidades tópicas e não-tópicas

nome “Cânon”, a menção ao título do filme « Full metal jacket » e o quepe com as

cores de redes militares, colocado sob o texto e sobre o qual se destaca o slogan :

« Mostre do que você é capaz ». Aqui não é necessário dar a ver o corpo do fiador; a

ativação do mundo ético o faz pelos estereótipos que a cultura de massa veicula sobre

o exército americano.

O discurso publicitário contemporâneo mantém por natureza um laço privilegiado

com o ethos; de fato, ele procura persuadir associando os produtos que promove a um

corpo em movimento, a uma maneira de habitar o mundo; como o discurso religioso, em

particular, é por meio de sua própria enunciação que uma propaganda, apoiando-se em

estereótipos avaliados, deve encarnar o que ela prescreve.

Mas não se pode considerar o ethos da mesma forma em qualquer texto. A

“incorporação” não é um processo uniforme; ela se modula em função dos gêneros e dos

tipos de discurso. O ethos, em um texto escrito, não implica necessariamente uma relação

direta com um fiador encarnado, socialmente determinável. Pode-se ver isso nesse trecho

de um artigo de Marie France (na seção “Vida Privada”), dedicado aos “progressos” que as

mulheres podem realizar em sua sexualidade.

(...) Sim, mas como? Um Pigmalião Papai Noel que chegue bem na hora certa, pronto para

desfazer todos os bloqueios, os medos e as tensões, para nos revelar a nós mesmas e para

transformar nossas tediosas relações em explosão de fogos de artifício, não desce todos os

dias por nossas chaminés... Os cassetes? Os livros? As revistas? Os estágios do tantrismo?

Existe toda uma parafernália pedagógica sobre o assunto, capaz de, em algumas lições,

despertar em você uma jovem Agnès. Mas o método Assimil não é o mais adequado ao

assunto. Nos Estados Unidos, os “Better Sex Video series” propõem, em seu nível 1,

“Técnicas sexuais melhores” ilustradas por alguns casais de boa vontade (...) (Marie France,

janeiro de 1996, p. 48)

Em uma concepção “ingênua” do discurso, seríamos levados a pensar que é o conteúdo

desse texto que importa, que ele é representativo de uma certa “ideologia” da mulher

moderna. De fato, porém, o “conteúdo” é indissociável do ethos de um corpo enunciante

“liberado” de suas tensões. O texto gera sua mensagem (resumida no título “Sexo: sempre

se pode fazer progresso”) por meio de um ethos bem característico. Esse artigo que trata

Page 54: Unidades tópicas e não-tópicas

dos “bloqueios”, das “tensões” do corpo é de fato enunciado por meio de um ethos de

mulher liberada, que joga com as referências culturais (a mitologia grega, o Papai Noel, A

Escola das mulheres de Molière), e que joga também com as tensões da língua (mistura de

registros, metáforas lúdicas...): a mulher que se libera sexualmente é a que poderia falar

assim. A maneira de dizer, de uma certa forma, é também a mensagem; o ethos, que se

considerava funcionar à parte, constitui sem qualquer dúvida uma condição essencial do

processo de adesão das leitoras ao que é dito. Mas esse ethos (que faz pensar no que

prevalece em Libération, por exemplo), não é referível a um estereótipo social delimitado:

é, antes, um ethos jornalístico impreciso, susceptível de atingir categorias sociais muito

diferentes.

Também pode ocorrer que o ethos só tenha existência intertextual:

Não é bom para o homem ficar lembrando o tempo todo que é homem.

Voltar-se para si já é ruim: voltar-se para a espécie, com o zelo de um

obcecado, é ainda pior: é atribuir às misérias arbitrárias da introspecção

um fundamento objetivo e uma justificação filosófica” (1964 : 9).

Nas primeiras linhas da obra de Cioran La Chute dans le temps mostra-se um ethos

moralista clássico, associado de forma privilegiada à máxima. Aqui, o mundo ético que a

leitura ativa não corresponde a um universo de comportamento socialmente atribuível, mas

a uma postura de escrita associada a uma corrente da tradição literária. Isso tem

conseqüências para a relação com o leitor: em um texto desse tipo, o público não é um

dado que se pode circunscrever sociologicamente, um “alvo”; ele é, de certa maneira,

instituído na própria cena de enunciação.

A enunciação joga com o ethos sobre o qual ela se apóia. Certamente, o ethos do

moralista clássico é mobilizado, mas uma leitura mais atenta mostra que é radicalmente não

atual, separado de qualquer sociabilidade.

De fato, um verdadeiro escritor não se contenta em incorporar seu leitor projetando-o

de alguma forma em estereótipos típicos. Ele joga com esses estereótipos por meio de um

ethos singular. Enquanto o ethos publicitário canônico é concebido para ser imediatamente

reconhecido, o ethos da obra de Cioran não pode ser verdadeiramente apreendido a não ser

lendo o próprio texto, entrando progressivamente no universo que ele configura.

Page 55: Unidades tópicas e não-tópicas

E isso pode fracassar. Encontra-se aqui o problema da distância entre o ethos que o

texto, em sua enunciação, pretende que seja elaborado por seus destinatários e aquele que

estes querem efetivamente elaborar, em função de sua identidade ou das situações em que

se encontram.

Encontram-se igualmente fenômenos de ethos composto, que misturam vários ethé.

Assim, nesse cartaz que promove um festival organizado pela associação “Cultura na

fazenda”23:

O festival é um momento, uma emoção, um único olhar absorvido pela

cena, uma concentração do tempo em um espaço reduzido. E, depois, há

o derredor, o adiante, o atrás. Em Beauquesne, o espetáculo acontece no

pátio de uma fazenda. Então, ao redor, obrigatoriamente, há as granjas

e a pastagem. Nas granjas, vêem-se exposições: fotos do festival,

imagens de pessoas, imagens de momentos. Na pastagem, bebe-se com

os amigos, janta-se antes do espetáculo, ceia-se para não ir embora logo.

Fala-se dos espetáculos vistos e dos que serão vistos. Evocam-se

lembranças contadas todos os anos. Às vezes, canta-se, até se toca

música. Enfim, continua-se a viver.

Este texto está ao lado de uma foto com vacas ao fundo. Um ethos assim mistura

ostensivamente traços de ethos de mediador cultural e de ethos rural convencional. Fazendo

isso, permite ao leitor “incorporar” o ethos de um fiador imaginário, combinação

improvável de distinção urbana e de retorno a um mundo rural tido como autêntico.

No capítulo dos ethé discursivos que não permitem estabelecer uma relação direta

com um estereótipo social determinado, evocaremos, por fim, o problema que colocam os

textos em que parece que “ninguém fala”, para retomar a célebre fórmula de Benveniste,

isto é, os enunciados desprovidos de marcas de subjetividade enunciativa. O que pode ser o

ethos de um enunciado (jurídico, científico, narrativo, histórico, administrativo...) que não

mostra a presença de um enunciador? De fato, quando se trabalha com textos que derivam

de gêneros determinados, o apagamento do enunciador não impede que se caracterize a

23 Trata-se do festival « Les comiques agricoles », que ocorreu em 3 e 4 de julho de 1999 em Beauquesne (Picardie).

Page 56: Unidades tópicas e não-tópicas

fonte enunciativa em termos de ethos de um “fiador”. No caso dos textos científicos ou

jurídicos, por exemplo, o fiador, além do ser empírico que produziu o texto materialmente,

é uma entidade coletiva (os sábios, os homens da lei...), que, por sua vez, representam

entidades abstratas (a Ciência, a Lei...), cujos poderes se considera que cada membro

assume quando assume a palavra. Dado que, em uma sociedade, qualquer fala é

socialmente encarnada e avaliada, a fala científica ou jurídica é inseparável de mundos

éticos bem caracterizados (sábios de guarda-pós brancos em laboratórios imaculados, juízes

austeros em um tribunal...), nos quais o ethos assume, conforme o caso, as cores da

“neutralidade”, da “objetividade”, da “imparcialidade” etc.

Assim, somos levados a tomar distância de uma concepção do discurso que se

apresenta por meio de noções como as de “procedimento” ou de “estratégia” e para as quais

os conteúdos seriam independentes da cena de enunciação em que são considerados. A

adesão do destinatário opera-se por um apoio recíproco da cena de enunciação (da qual o

ethos participa) e do conteúdo apresentado. O destinatário se incorpora a um mundo

associado a um certo imaginário do corpo, e este mundo é configurado por uma enunciação

que é assumida a partir desse corpo. Em uma perspectiva de análise do discurso, não

podemos nos contentar, como na retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de

persuasão: ele é parte pregnante da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o

vocabulário ou os modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de existência.

O discurso não resulta da associação contingente de um “fundo” e de uma “forma” ; não se

pode dissociar a organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de sua cena de

fala.

Ethos e cena de enunciação

Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito na cena

de enunciação que o texto implica. Essa “cena de enunciação” se compõe de três cenas, que

propus chamar “cena englobante”, “cena genérica” e “cenografia” (Maingueneau 1993). A

cena englobante atribui ao discurso um estatuto pragmático, ela o integra em um tipo:

publicitário, administrativo, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um

gênero ou a um sub-gênero de discurso: o editorial, o sermão, o guia turístico, a consulta

Page 57: Unidades tópicas e não-tópicas

médica... Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio

texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética,

amigável etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser

enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer

discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que

o torna pertinente. A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o discurso

ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas aquilo que a

enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de fala. Há gêneros de

discurso que se atêm a sua cena genérica, isto é, que não são susceptíveis de permitir

cenografias variadas (cf. o guia telefônico, as receitas médicas etc.). Outros, ao contrário,

exigem escolhas de uma cenografia: é o caso dos gêneros literários, filosóficos,

publicitários (há propagandas que apresentam cenografias de conversação, outras, de

discurso científico etc.)... Entre esses dois extremos, situam-se os gêneros susceptíveis de

cenografias variadas, mas que, mais freqüentemente, mantêm sua cena genérica rotineira.

Assim, há, por exemplo, uma cena genérica rotineira dos manuais universitários, mas o

autor de um manual sempre tem a possibilidade de enunciar por meio de uma cenografia

que se afasta dessa rotina: por exemplo, formulando seu ensinamento por meio da

cenografia de um romance de aventura.

A cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento:

desde sua emergência, a fala é carregada de um certo ethos, que, de fato, se valida

progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo,

aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um

enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena da qual vem a

palavra é precisamente a cena requerida para enunciar nessa circunstância. São os

conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar o ethos, bem

como sua cenografia, por meio dos quais esses conteúdos surgem. Quando um homem de

ciência sem exprime como tal na televisão, ele se mostra por meio da enunciação como

refletido, imparcial etc., ao mesmo tempo em seu ethos e no conteúdo de suas palavras.

Fazendo isso, define, por sua vez, implicitamente, o que é o verdadeiro homem de ciência,

e opõe-se ao anti-ethos correspondente.

Page 58: Unidades tópicas e não-tópicas

O ethos de um discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré-

discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos do texto em que

o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito): diretamente (“é um amigo que lhes

fala”), ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou de alusões a outras cenas

de fala (assim, F. Mitterand, em sua Carta a todos os franceses, de 1988, comparando sua

própria enunciação à fala de um pai de família à mesa da família 24). A distinção entre ethos

dito e ethos mostrado inscreve-se nos extremos de uma linha contínua, já que é impossível

definir uma fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o “mostrado”. O ethos efetivo, o que

tal ou qual destinatário constrói, resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso

respectivo varia segundo os gêneros de discurso. A flecha dupla no esquema abaixo indica

que há interação:

24 Ver terceira parte, « Cenografia e debate público ».

Page 59: Unidades tópicas e não-tópicas

Ethos efetivo

Ethos pré-discursivo Ethos discursivo

Ethos dito Ethos mostrado

Estereótipos ligados a mundos éticos

Se cada conjuntura histórica se caracteriza por um regime específico dos ethé, a leitura de

numerosos textos que não pertencem a nossa esfera cultural (no tempo e no espaço) é

freqüentemente dificultada não por lacunas graves em nosso saber enciclopédico, mas pela

perda dos ethé que sustentam tacitamente sua enunciação. Quando vemos as coplas da

Canção de Roland dispostos sobre uma folha de papel, é difícil restituir o ethos que os

sustentavam. Ora, o que é uma epopéia senão um gênero de performance oral? Sem ir tão

longe, a prosa política do séc. XIX é indissociável dos ethé ligados a práticas discursivas, a

situações de comunicação desaparecidas.

Em outras palavras, de uma conjuntura a outra, não são as mesmas zonas da

produção semiótica que propõem as maneiras de ser e de dizer mais importantes, as que

“dão o tom”. Os estereótipos de comportamento eram outrora acessíveis às elites de

Page 60: Unidades tópicas e não-tópicas

maneira privilegiada por meio da leitura dos textos literários, enquanto que, hoje, esse

papel é atribuído à publicidade, sobretudo em sua forma audiovisual.

Isso é claro para os séculos XVII e XVIII, quando o discurso literário era

inseparável dos valores associados a certos modos de vida. Os inúmeros textos que derivam

da corrente “galante”, por exemplo, não se contentavam em contar certas histórias ou em

expor certas idéias; eles o faziam por meio de um ethos discursivo específico, que

participava de um mundo ético da galanteria: ethos do “natural”, da “amabilidade”...

A especificidade de um ethos remete, de fato, à figura de um “fiador” que, por meio

de sua fala, se dá uma identidade que está de acordo com o mundo que ele supostamente

faz surgir. Uma tal problemática do ethos leva a contestar a redução da interpretação a uma

simples decodificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível funciona no

processo de comunicação verbal. As “idéias” suscitam a adesão do leitor por meio de uma

maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Tomado pela leitura em um ethos

envolvente e invisível, participa-se do mundo configurado pela enunciação, acede-se a uma

identidade de certa forma encarnada. O poder de persuasão de um discurso decorre em

parte do fato de que ele leva o destinatário a identificar-se com o movimento de um corpo,

por mais esquemático que seja, investido de valores historicamente especificados.

Conclusão

Desde que haja enunciação, alguma coisa da ordem do ethos se encontra liberado:

por meio de sua fala, um locutor ativa no intérprete a construção de uma certa

representação de si mesmo, colocando em perigo seu domínio sobre sua própria fala; é-lhe

necessário, então, tentar controlar, mais ou menos confusamente, o tratamento

interpretativo dos signos que ele produz. A partir desse dado incontornável, muitas

explorações do ethos são possíveis, em função do tipo e do gênero de discurso em questão,

e também em função da disciplina, ou de alguma corrente no interior de tal disciplina, à

qual a pesquisa se liga. Uma análise do discurso como eu a pratico não pode apreender o

ethos da mesma maneira que uma teoria da argumentação, ou uma teoria do discurso de

inspiração psico-sociológica. Esses dois parâmetros (corpo e disciplina), aliás, são apenas

Page 61: Unidades tópicas e não-tópicas

parcialmente independentes: sabe-se que cada disciplina ou cada corrente tem tendência a

privilegiar tal ou qual tipo de dados verbais.

Pode-se, evidentemente, renunciar à categoria do ethos, julgada muito instável, mas

é evidente que ela remete a um fenômeno único, mesmo que ele não possa ser apreendido

de maneira compacta. Como escreveu A. Auchlin, que visa aqui, antes de mais nada, às

interações conversacionais: “a noção de ethos é uma noção cujo interesse é essencialmente

prático, e não um conceito teórico claro (...). Em nossa prática ordinária de fala, o ethos

responde a questões empíricas efetivas, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de

nossa relação com a linguagem, nas quais nossa identificação é tal que se colocam em

funcionamento estratégias de proteção” (2001: 93). O importante, quando se é confrontado

com essa noção, é, pois, definir por qual disciplina ela é mobilizada, com qual ponto de

vista, e no interior de qual rede conceitual.

Page 62: Unidades tópicas e não-tópicas

CITAÇÃO E DESTACABILIDADE

Fórmula e destacabilidade

Podemos partir de uma constatação banal: na sociedade, circula um grande número

de enunciados que podemos designar pelo termo vago de fórmulas, ou seja, enunciados

curtos, cujos significante e significado são considerados no interior de uma organização

pregnante (pela prosódia, rimas internas, metáforas, antíteses...), o que explica que sejam

facilmente memorizados. Algumas dessas fórmulas circulam no interior de uma

comunidade mais ou menos restrita (uma seita, uma disciplina acadêmica...); outras são

conhecidas por um grande número de locutores espalhados em vários setores do espaço

social. São exemplos, no espaço de falantes do francês, “Aquilo que se concebe bem se

enuncia claramente” (Boileau), “E se restar apenas um, este serei eu” (Victor Hugo), etc. O

rótulo bem impreciso de “citação célebre” convém a esse tipo de fórmula.

Na verdade, essas citações podem fazer parte de dois tipos diferentes de

funcionamento: existem fórmulas que funcionam como enunciados autônomos e fórmulas

que são citadas para marcar um posicionamento específico que se opõe implicitamente a

outros. A fórmula “autônoma” é, em regra geral, interpretada segundo seu sentido imediato

numa interação entre locutores que não são especialistas no tipo de discurso de que provém

essa fórmula. Desse modo, o verso “Aquilo que se concebe bem se enuncia claramente”,

extraído da Arte Poética de Boileau (1674), é comumente utilizado como fórmula

autônoma em várias circunstâncias. Ele também pode ser utilizado para marcar

determinado posicionamento estético, determinada concepção historicamente datada, das

relações entre o sentido, a linguagem e a subjetividade.

Não basta constatar que determinados enunciados, que funcionam como fórmulas,

foram destacados de um texto. Esse trabalho de destaque não se aplica a qualquer material

verbal; numerosas fórmulas – de fato, a maior parte delas – correspondem a enunciados

que, em seu texto de origem, se apresentavam como destacáveis. Conhecemos o caso das

Texto inédito em português. Publicado em dezembro de 2004 na Revista Polifonia nº 8 – Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – Mestrado da UFMT. Tradução Fábio César Montanheiro – FCL/UNESP-Ar & Roberto Leiser Baronas – UNEMAT/UFMT.

Page 63: Unidades tópicas e não-tópicas

“máximas” ou “sentenças” que abundam em inúmeros textos do século XVI ou XVII: por

suas propriedades lingüísticas, elas se tornam fadadas ao destaque.

Tomemos como exemplo os dois primeiros versos da fábula “O escultor e sua

estátua de Júpiter” de La Fontaine:

Um bloco de mármore era tão belo

Que um escultor o adquiriu.

Esses dois versos não se apresentam como bom candidato ao destaque: trata-se de

um início de narração que evoca um processo singular. Por outro lado, os dois primeiros

versos da moral,

Cada um transforma em realidades

Conforme pode, seus próprios sonhos,

por sua posição tipograficamente realçada e por seu caráter generalizante, são bons

candidatos ao destaque.

Entretanto, ocorre que um enunciado que não tem propriedades de destacabilidade

adquira o estatuto de fórmula; é o caso do começo de Em busca do tempo perdido (“Por

muito tempo, fui dormir cedo”). Mas, a respeito desse ponto, a prosa romanesca está em

desvantagem em relação à poesia regular, que mantém naturalmente uma relação

privilegiada com a destacabilidade. Podemos imaginar, por exemplo, que um locutor, ao

presenciar um pôr do sol particularmente impressionante, invoque o verso de Baudelaire “O

sol se afogou em seu sangue coagulante”. Esse verso não ocupa uma posição relevante no

poema do qual ele é destacado, ele nem é sequer enunciativamente autônomo (ele não é

genérico, nem mesmo iterativo), mas, o simples fato de ser um alexandrino e de ser

fortemente metafórico o predispõe mais à destacabilidade.

A máxima heróica

Page 64: Unidades tópicas e não-tópicas

Vamos examinar um primeiro caso de enunciado que aspira à destacabilidade: o das

“máximas” muito freqüentes no teatro clássico francês do século XVII. Diferentemente da

estética romântica, a literatura clássica, prolongando neste aspecto os Antigos, procurou

constantemente produzir fórmulas destacáveis, “sentenças”. No Cid de Corneille,

encontramos, por exemplo, na boca do jovem herói Rodrigo:

- “Para quem vinga seu pai, não há nada impossível.”

- “O valor não espera a idade.”

Essas são asserções generalizantes que enunciam um sentido completo; são curtas,

bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem facilmente memorizáveis e

reutilizáveis. Elas devem, além disso, ser pronunciadas com o ethos enfático conveniente.

Tais “máximas”, ainda que seu conteúdo não tenha nada de original, não são, como os

provérbios, atribuídas à responsabilidade de um Sujeito Universal. São enunciados inéditos,

postos na boca de Rodrigo. Quando uma personagem emite tal máxima, seu caráter de

enunciado novo não é de modo algum indicado, mas, ao contrário – e aí está o dinamismo

essencial de seu gesto: ele oferece sua máxima inédita como se fosse o eco, a enésima

retomada de uma sentença que já seria conhecida e que é evidente.

Essas máximas que se apresentam como destacáveis de seu co-texto se fundam, com

efeito, na combinação aparentemente paradoxal de duas propriedades:

1. Elas devem ser percebidas como inéditas;

2. Elas devem ser percebidas como imemoriais.

É precisamente nesse ponto que se encontra o núcleo do efeito buscado: o

personagem produz algo memorável, isto é, um enunciado digno de ser consagrado, antigo

de direito, novo de fato. É porque é digno de ser antigo que pode aspirar a um estatuto

“monumental”. Ele inaugura a jusante uma série ilimitada de retomadas, apresentando-se

como o eco de uma série ilimitada de retomadas a montante. Esse tipo de enunciado visa,

portanto, produzir na realidade aquilo que não passa de uma pretensão enunciativa:

Page 65: Unidades tópicas e não-tópicas

apresentando-se como uma sentença já pertencente a um saber compartilhado, ele prescreve

justamente por isso mesmo sua retomada ilimitada.

Ele supõe, portanto, uma estrutura temporal totalmente singular, aquela de um tipo

de “citação original” – para retomar uma expressão de Adorno (1981: 29) –, uma estrutura

que Deleuze encontra no fenômeno da festa comemorativa: não é a festa da Federação (14

de julho de 1790) que repete a tomada da Bastilha (14 de julho de 1789) que ela comemora,

mas é a tomada da Bastilha que repete antecipadamente todas as festas da Federação. Esse

paradoxo temporal se encontra de alguma forma realizado na estrutura enunciativa desse

tipo de fórmula, que ultrapassa a si mesma no exato momento em que se enuncia: primeira

enunciação, ela retém de alguma forma em si mesma sua repetição ulterior, ela se

comemora ao se inaugurar.

Além disso, existe uma relação crucial entre heroísmo e sentença. O herói é aquele

que, na atualidade de sua enunciação, manifesta sua autonomia, aquele que por seu dizer

prescreve a si mesmo o que no mesmo movimento prescreve a todos. Esse tipo de fórmula

está, portanto, muito distante de um provérbio, que descreve a ordem do mundo do exterior:

em lugar de constituir heroicamente a lei por intermédio do dizer de um sujeito de

enunciação (“Locutor-L” de Ducrot) que refere a si mesmo como ser do mundo (“Locutor-

λ”), o provérbio implica uma ruptura modal e referencial entre o enunciador e seu

enunciado.

Essa fala de herói é associada a um gestual articulatório e corporal, um ethos

específico, que marca uma adesão total do sujeito. Essa adesão plena, seja ela entusiasmada

ou séria, justifica-se ideologicamente em termos de natureza (a “generosidade” é atributo

das raças nobres) e sua eficácia provém precisamente da miraculosa coincidência entre a lei

e o movimento espontâneo de uma natureza. Máxima e herói são assim considerados no

interior de uma mesma estrutura de exemplaridade. Por definição, uma sentença é uma

enunciação singular, cujo auto-posicionamento dêitico manifesta a autonomia frente a todos

os contextos particulares e a todos os sujeitos imagináveis. Da mesma forma, o herói é esse

indivíduo cujos gestos verbais ou não verbais se universalizam: o herói não realiza atos, ele

realiza aqueles atos que o Homem por excelência realiza, que, nessa situação, todo homem,

se é plenamente homem, deve realizar. Ao proferir essas fórmulas, o herói realiza então

Page 66: Unidades tópicas e não-tópicas

discursivamente a exemplaridade heróica, ele exprime a universalidade do Sujeito

Universal na singularidade do Eu enunciador.

Auto-posicionada, inatingível tanto em seu significante quanto em seu significado,

memorável, a máxima está fadada a se destacar de seu ambiente textual para levar uma vida

autônoma, preservada da decomposição, do esquecimento. Ela pode ser gravada sobre a

pedra, sobre o bronze, passar de um texto a outro.

A fórmula filosófica

Colocaremos essas máximas heróicas em contraste com um segundo tipo de

fórmulas, aquelas que são passíveis de serem destacadas dos textos filosóficos. Deixamos

de lado aqui o caso particular das filosofias (como é o caso na Antigüidade25) que produzem

enunciados diretamente destacados, espécies de slogans que são destinados a servir como

regra de vida ou como suporte à meditação. Nós falamos, ao contrário, de textos que

marcam umas ou outras de suas seqüências como destacáveis. Essa destacabilidade pode

ser indicada de várias maneiras:

Pelo paratexto: ao fazer dele um título (“O existencialismo é um humanismo”26) ou

um intertítulo.

Ao longo do texto propriamente dito: ao lhe destinar uma posição relevante (em

particular, mas não apenas, em posição inicial ou final).

Pela embreagem enunciativa: ao lhe conferir um valor generalizante ou genérico.

Por uma estruturação pregnante de seu significante (simetria, silepse...) e/ou de seu

significado (metáfora, quiasmo...).

Pelo metadiscurso: ao explicitar uma operação que confere um papel-chave a este

ou àquele enunciado (por exemplo, por uma retomada categorizadora: “essa

verdade essencial...”).

Eis um exemplo de seqüência filosófica destacável, que figura no final do capítulo I

das Duas fontes da moral e da religião de Bergson:

25 A respeito disso, conhecemos os trabalhos de P. Hadot.26 Título de uma obra de Sartre em francês.

Page 67: Unidades tópicas e não-tópicas

(...) Ao contrário, tudo se esclarece quando se vai buscar, além das

manifestações, a própria vida. Atribuamos então à palavra biologia o

sentido bem compreensível que ela deveria ter, que ela assumirá talvez um

dia, e digamos para concluir que toda moral, pressão ou aspiração é de

natureza biológica. (1951: 103).

Aqui, a destacabilidade da seqüência que colocamos em itálico é manifesta, ou seja,

acumula posição de destaque textual (posição final de um capítulo de uma obra que contém

apenas quatro), autonomização enunciativa (enunciado generalizante), operação meta-

discursiva (“digamos, para concluir”) que atribuI um papel-chave a esse enunciado; ela é

igualmente curta e paradoxal (em relação à doxa e em relação à representação comum da

doutrina bergsoniana, que passa por espiritualista). Esse enunciado é, então, um candidato

ideal ao estatuto de fórmula filosófica.

Para tal marcação – pela qual o autor distingue um fragmento como destacável, que

de algum modo o formata para uma virtual retomada citacional –, não podemos falar de

citação nem de embrião de citação: é apenas um ato de pôr em evidência que se opera em

relação ao resto dos enunciados que são atribuídos, sem mais, ao locutor.

A fórmula filosófica participa das três dimensões do “espaço filosófico”: campo,

arquivo e rede de práticas. Ela participa do campo na medida em que marca um

posicionamento, a singularidade de uma doutrina assinada: ela delimita um território, traça

uma fronteira que, enquanto tal, separa um interior e um exterior da doutrina. Participa

também do arquivo, visto que se inscreve na memória, no patrimônio da filosofia. Enfim,

ela é inseparável de práticas: uma fórmula filosófica é um objeto de dissertação potencial

para os alunos ou o suporte privilegiado para o comentário de texto num curso de filosofia.

Mas, na medida em que ela joga sobre dois planos (ao mesmo tempo como

enunciado autônomo e como fragmento extraído de um determinado texto), a fórmula

filosófica é tomada no interior de uma tensão constitutiva. Por um lado, é uma enunciação

que se volta sobre sua intransitividade, tipo de dizer profético absoluto, atribuído a uma

Origem que lhe dá foro de autenticidade: daí um efeito de “iconicidade” e a necessidade de

a citar com um ethos apropriado. Mas, por outro lado, é um fragmento de texto que tem a

particularidade de dar acesso ao conjunto de uma doutrina. Poderíamos falar de seu

Page 68: Unidades tópicas e não-tópicas

propósito de “fórmula-chave” ou de “fórmula-mestre”. Chave arquitetônica e chave de

porta, a FF – fórmula filosófica - presumivelmente condensa toda uma doutrina ou parte

dela, e constitui uma via de acesso privilegiada a seu universo de sentido. Podemos, assim,

analisar os dois sentidos de “mestre”: fórmula mestre (condensação ou via de acesso), mas

também fórmula de mestre, atribuída a uma autoridade.

Pela condensação semântica que ela implica, associada a uma estrutura de

significante pregnante, a fórmula filosófica se apresenta como enigmática: ela encerra em si

uma parte de obscuridade, diz e esconde ao mesmo tempo. É uma citação fadada a um

desdobramento, que a projeta sobre a doutrina da qual participa. Esse desdobramento é

regulado por um conjunto de gêneros de discurso codificados pela instituição escolar.

Podemos pensar nos comentários de texto ou nas dissertações, dois gêneros que visam

inscrever a fórmula num intertexto. Pode tratar-se do intertexto “interno”, ou do intertexto

“externo”, de uma rede aberta de textos filosóficos passados ou contemporâneos que

dependem de outros posicionamentos. Esses dois modos de desdobramento são, na verdade,

indissociáveis.

Consideremos este excerto de um manual de filosofia, em seu capítulo dedicado à

religião:

A título de exemplo, tomemos a célebre formulação, proposta por

Marx, e que na vulgata marxista constitui, seguindo a expressão de um de

seus intérpretes mais ilustres (nada menos do que Lênin), a pedra angular

da teoria marxista em matéria de religião. Ei-la: “A religião é o ópio do

povo”. (K. Marx, Contribuition à la critique de la philosophie du droit de

Hegel (1844). Berlin, 1953: 10-1)

Em sua brutalidade abreviadora (ela condensa um dogma ou uma prática), esse

enunciado já saiu de um contexto que atenua sua unilateralidade. Marx havia acabado de

dizer:

O combate contra a religião é, portanto, indiretamente, o combate contra

este mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa é

parcialmente a expressão da miséria real, parcialmente o protesto contra a

Page 69: Unidades tópicas e não-tópicas

miséria efetiva. A religião é o suspiro que conduz a criatura oprimida, a

cordialidade de um mundo sem coração, exatamente como é o espírito de

circunstâncias (Zustände) desprovidas dela. Ela é o ópio do povo. (p.169-

70)

A citação é primeiramente dada como fórmula autonomizada, célebre, mas isso para

remontar, de alguma forma, o percurso que vai do destaque à destacabilidade. Isso se faz,

num primeiro momento, pela atribuição de uma referência bibliográfica precisa, que mostra

a conformidade do locutor às normas do curso universitário; num segundo momento, se

processa uma recontextualização, de maneira a transformar exatamente sua exatamente em

fórmula. Uma vez reposta em seu contexto, a fórmula permite “desdobrar” a doutrina

marxista no que toca à religião.

A noção de sobreasseveração e sua exploração nas mídias

Agora que ilustramos essa “destacabilidade” por intermédio de exemplos literários e

filosóficos, podemos introduzir a noção de sobreasseveração e sua correlata, a de

sobreasseverador. As fórmulas célebres são, de fato, a parte emersa do iceberg. Basta

olharmos ao nosso redor para ver que os fenômenos semelhantes são abundantes, em

particular nas mídias.

Num primeiro momento, podemos dizer que uma seqüência sobreasserida num texto

é relativamente breve, de estrutura pregnante no plano do significado e/ou do

significante;

está em posição relevante no texto ou em uma passagem do texto, de modo a lhe

atribuir o estatuto de um condensado semântico, o produto de uma espécie de

sedimentação da realização do discurso;

é tal que sua temática deve estar em relação com o intuito do gênero de discurso, do

texto em questão: trata-se de uma tomada de posição no interior de um conflito de

valores;

Page 70: Unidades tópicas e não-tópicas

implica um tipo de “amplificação” da figura do enunciador, manifestada por um

ethos apropriado.

São evidentes os casos das máximas do Cid ou da fórmula de Bergson. Mas,

dissemos, essa sobreasseveração está também muito presente nas mídias contemporâneas,

particularmente no rádio e na televisão, por meio do fenômeno que as próprias mídias

denominam “pequenas frases”, aqueles enunciados curtos que, durante um curto período de

tempo, vão ser intensamente retomados nos programas de informação. De fato, é

impossível determinar se essas “frases pequenas” são assim porque os locutores dos textos

de origem as quiseram assim, isto é, destacáveis, fadadas à retomada pelas mídias, ou se

são os jornalistas que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer. De qualquer forma,

pelo clássico jogo de antecipação das modalidades de recepção, os formadores dos

enunciados, que são profissionais da vida pública, têm tendência a produzi-los em função

dos re-empregos que deles serão feitos.

Com efeito, a citação está inscrita no próprio funcionamento da máquina midiática,

cujos atores gastam seu tempo destacando fragmentos de textos para converte-los em

citações (para os títulos e os intertítulos, as resenhas, os resumos, as entrevistas, etc.).

Tornou-se, assim, uma rotina para os locutores que estão familiarizados com os

procedimentos midiáticos situar enunciados em posições textuais escolhidas – muito

freqüentemente ao final de unidade textual –, de modo a torná-las destacáveis, a favorecer

sua ulterior circulação. É como se os profissionais das mídias (produtores ou consultores

em comunicação) indicassem discretamente os fragmentos que desejam ver retomados.

Vejamos, como exemplo, esta entrevista do ator Samuel Le Bihan na Télé Star (12-

18 de abril de 2003):

Você diz que encarnar um papel novo é partir para a descoberta de si mesmo. O que

você sondou desta vez?

A relação com meu irmão. Quando eu tinha 16 anos, nossos pais se separaram. Ele

abandonou a escola – ele era muito agitado, como seu irmão mais velho – e veio viver

comigo. Eu tinha 23 anos e cuidei dele com toda falta de habilidade de minha idade: eu quis

Page 71: Unidades tópicas e não-tópicas

lhe dar o melhor, para que ele tivesse êxito nos pontos em que eu havia fracassado. Enfim,

eu queria bancar o pai sem ter envergadura para isso.

Com as mulheres, Rapha tem um modo bem infantil de sedução...

Sim, e nisso ele se assemelha a mim: apesar de meus esforços para parecer adulto, há em

mim uma parte da infância que simplesmente pede para continuar. Quando a gente cresce,

sempre quer se passar por homem. Quando eu era adolescente, tinha aimpressão de que me

pediam para pôr minha virilidade em primeiro lugar. Foi preciso ocultar meu lado doido.

Finalmente, é quando eu interpreto ou quando seduzo que volto a ser um garoto.

Os dois enunciados localizados no final da intervenção são destacáveis: por sua

posição ao final de unidade textual, pela presença de um conector reformulativo (“enfim”,

“finalmente”), por sua estrutura semântica pregnante e a referência a processos não

singulares, submetidos à repetição, que remetem a disposições duráveis. Nesse tipo de

artigo, a destacabilidade permite produzir títulos, intertítulos, legendas de fotos. Assim,

nessa entrevista, encontramos dois enunciados destacados entre aspas em posição

paratextual, um após a foto do ator (“há em mim uma parte da infância que simplesmente

pede para continuar”), outro como título (“Com as mulheres, eu me faço de irresponsável”.

Evidentemente, é o gênero que filtra o tipo de enunciados destacáveis semanticamente mais

pertinentes. É normal que, numa entrevista, sejam de preferência as afirmações da pessoa

entrevistada sobre si mesma as marcadas como destacáveis. Por outro lado, numa exposição

filosófica, a destacabilidade diz respeito, acima de tudo, a teses, a enunciados genéricos de

grande teor doutrinal.

Já que o funcionamento das mídias favorece que as seqüências já formatadas se

tornem “frases pequenas”, nada impede que um jornalista converta soberanamente em

“frase pequena”, graças a uma manipulação apropriada, qualquer seqüência de um texto. Os

locutores-origem se encontram, assim, com muita freqüência, na posição de

sobreasseveradores de enunciados que não foram formulados como tais nos textos. Produz-

se, assim, um desacordo essencial entre o locutor efetivo e esse mesmo locutor considerado

como sobreasseverador de um enunciado que foi destacado pela máquina midiática: esse

sobreasseverador é produzido pelo próprio trabalho da citação. De qualquer modo, em

Page 72: Unidades tópicas e não-tópicas

textos que são um produto coletivo constituído de fragmentos textuais em mosaico (em que

intervêm o locutor citado, seu agente, o jornalista, o paginador, o responsável pelo título), a

sobreasseveração não pode ser remetida a uma intenção.

Esse fenômeno é particularmente claro na imprensa escrita, que explora a

sobreasseveração de diversas formas. Existe, evidentemente, a via mais clássica, a dos

títulos dos artigos:

“No Ministério das Relações Exteriores: ‘As declarações fornecidas ao ministro não

são dignas de confiança’ ” (Le monde, 24.01.2004: 8)

Jean-Louis Borloo, ministro da cidade, sobre as áreas urbanas críticas: “As cidades

devem se tornar bairros comuns” (Libération, 10.11.2003: 14)

Mas o fenômeno adquire uma dimensão completamente diversa quando nos

voltamos para formas menos clássicas de citação. Os jornais distribuídos gratuitamente (na

França, particularmente Métro e 20 minutes), por exemplo, apresentam inúmeros quadros

com nomes variados:

A frase que mata - Valéry Giscard d’Estaing: “Raffarin, aquilo foi três meses de ilusão,

três meses de incertezas e, desde então, é a certeza de que ele não está à altura.” (20

minutes, 18.12.2003: 23).

A citação do dia - “Existe um problema europeu, existe uma crise, mas não é o fim do

mundo.” O delegado europeu Michel Barnier, ontem. (Métro, 15.01.2003: 4)

Foi dito! - “Todos aqueles que vivem na França devem se submeter às regras e aos

costumes da sociedade francesa.” O Conselho representativo das instituições judias da

França saudou, ontem, o discurso do chefe de Estado. (20 minutes, 18.12.2003)

Mas pode haver rubricas mais pomposas. Nesse sentido, Métro, num quadro

intitulado “Eles disseram”, faz uma lista de citações a respeito do Oriente Médio,

atribuídas a George Bush, Tony Blair, Ariel Sharon, Dominique de Villepin, Kofi Annan.

Page 73: Unidades tópicas e não-tópicas

Neste último exemplo, existe certa unidade temática. Mas está longe de ser sempre

assim, como o demonstra uma rubrica corrente nos jornais do estilo “news magazines”: as

páginas duplas de citações que formam um tipo de patchwork. Nesse sentido, em Veja, a

rubrica “Veja essa”, que alinha, por exemplo, em 3 de setembro de 2003 (p.34-5), dezoito

citações em que se misturam política e mundo do espetáculo. Eis duas delas:

“O Brasil deve ter cuidado para o espetáculo do crescimento não ser um vôo de

galinha” (Júlio Sérgio Gomes de Almeida, economista do Instituto de Estudos para o

Desenvolvimento Industrial, em entrevista a Paulo Henrique Amorin, no site Uol News.).

“Eu me acho linda.” (Preta Gil, cantora, a filha robusta do Ministro da Cultura, Gilberto

Gil, que posou nua para o encarte de seu CD.)

A autonomização da sobreasseveração frente ao texto de origem vai ainda mais

longe quando existe uma transformação do enunciado, ou de um ou outro de seus

parâmetros enunciativos, quando ele passa ao paratexto. Vejamos, por exemplo, esta

entrevista (4 páginas) do primeiro vencedor do reality show “Le Bachelor” e de sua

“noiva”. Um título extenso ocupa as duas primeiras páginas, sendo retomado no alto da

página seguinte.

Olivier e Alexandra

“Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”

Ora, o texto de origem, na página seguinte, propõe uma outra versão. O enunciado

em questão não tem Olivier e Alexandra como locutores, mas apenas Olivier; além disso, o

enunciando destacado é bem diferente:

Olivier: Se, algum dia, a coisa estiver menos bem entre nós, não vamos esconder.

Page 74: Unidades tópicas e não-tópicas

Não comentarei aqui as razões dessa transformação, mas vê-se que ela elimina

modulações, de modo a reforçar a autonomia e o caráter lapidar do enunciado, a aproveitá-

lo de modo a ser sobreasserido.

Outro exemplo, uma entrevista com uma atriz, Alexandra Kazan, que tem por título:

Alexandra Kazan

“Para durar nesta profissão, é preciso ser forte”.

Ora, o texto que se segue dá uma versão diferente:

As pessoas não se dão conta, elas têm a impressão de que, quando a gente é

conhecida, a gente chegou lá. Mas é difícil durar. É preciso ser muito forte

psicologicamente. Às vezes sou, às vezes, não. (p. 91)

Um movimento argumentativo complexo, dividido em quatro frases, com

modulações do locutor, é então transformado em uma frase única, generalizante, uma

espécie de sentença.

Isso não é de forma alguma um fenômeno exclusivo da imprensa popular, ainda que

leve em conta a diversidade dos jornais. É desse modo que o diário Le Monde, que pretende

ser um jornal de referência para as elites, recorre a ela, mas marcando sua diferença, ao

menos superficialmente. No meio de um longo artigo (p.22) de 29 de fevereiro de 2004,

intitulado “Os vinte dias que abalaram a redação de França 2”, o texto é salpicado por cinco

enunciados sobreasseridos com aspas e itálico negrito, associados a uma pequena foto em

preto e branco do rosto de seus locutores. O que é original aqui, em relação aos exemplos já

evocados, é que se trata de um processo de segundo grau, em que o destaque incide sobre

uma citação e não sobre uma enunciação primeira. Dessa forma, o trabalho é enormemente

facilitado, já que a própria citação sofreu um primeiro corte, que a aproximou do estatuto

de sobreasseveração.

“Alain Juppé resolveu (...), ele decidiu bater em retirada (...) Uma aposentadoria que

será progressiva” DAVID PUJADAS.

Page 75: Unidades tópicas e não-tópicas

“Nós não estamos muito próximos dos políticos, e veja o que nos acontece.” OLIVIER

MAZEROLLE

“É preciso que todas medidas sejam tomadas para que esse tipo de erro não se

reproduza mais” JEAN-JACQUES AILLAGON

“O erro cometido (...) deve nos levar a rever nossos procedimentos em nossos jornais e

em nossas reportagens” MARC TESSIER

“Não se trata de virar a página, mas de tirar proveito dos ensinamentos daquilo que

aconteceu” ARLETTE CHABOT

Em duas das cinco citações acima, a dimensão sobreasseveradora é enfraquecida

pela marca ostensiva de cortes sob a forma de reticências entre parênteses. Podemos ver

nisso o resultado de um compromisso entre a lógica da sobreasseveração e a necessidade de

preservar o ethos objetivo, sério do jornal, que não se dá ao direito de modificar as falas

citadas. Mas uma análise mais atenta revela que as coisas são mais complicadas. Apenas

dois dos cinco enunciados destacados retomam exatamente as citações do artigo. A de Marc

Tessier, por exemplo, diferencia-se de seu texto de origem no corpo do artigo (assinalamos

com negrito o que foi alterado):

Em um comunicado ele o homenageia, sublinhando que “o erro cometido (...) deve nos

levar, numa ânsia de exigência e de rigor, a rever nossos procedimentos em nossos

jornais assim como em nossas reportagens.”

Podemos observar que o corte já estava, de fato, na citação, sinal de que o desgosta

ao jornalista marcar as mudanças que ele mesmo opera ao converter as citações em

sobreasserções: as modificações executadas, como podemos imaginar, tendem a acentuar o

caráter de fórmula, a favorecer a sobreasseveração.

Não vamos multiplicar os exemplos nem a coleta dos fenômenos de destaque nas

mídias. Apenas sensibilizamos para essa problemática. Podemos, entretanto, à luz dos

exemplos evocados, fazer algumas distinções.

A primeira delas permite opor os enunciados destacáveis aos enunciados

destacados. Os primeiros são aqueles que, por meio de uma marcação apropriada,

Page 76: Unidades tópicas e não-tópicas

mostram-se como podendo/devendo ser destacados. É o caso prototípico dos enunciados

sentenciosos de Corneille ou dos doutrinais de Bergson ou de Marx. Os segundos não são

necessariamente provenientes de seqüências destacáveis.

Uma segunda distinção deve ser feita entre os enunciados destacados

autonomizados e não-autonomizados, distinção que corresponde a uma outra, entre

sobreasseveração forte (enunciados dissociados do texto de origem) e sobreasseveração

fraca (enunciados vizinhos do texto de origem). Os enunciados autonomizados romperam

com o texto de origem. A menos que se faça uma pesquisa, que não está ao alcance de todo

mundo, ninguém vai voltar à entrevista em que Giscard d’Estaing falou mal de Raffarin ou

àquela em que Preta Gil disse que ela se achava bela. Do ponto de vista do consumidor de

mídias, para os leitores, esse texto de origem não existe. No interior da sobreasseveração

“fraca”, oporemos os enunciados destacados de primeiro grau aos de segundo grau

(aqueles que são extratos de uma extração anterior, sob forma de citação).

Os enunciados não autonomizados mantêm um elo com um texto de origem. Esse é

particularmente o caso de todos os fenômenos de colocação de título, em que o enunciado

sobreasserido se encontra, de alguma forma, integrado no corpo do artigo. Vimos que isso

não implicava uma grande fidelidade; bem ao contrário. Isso apenas confirma os resultados

dos trabalhos recentes sobre o discurso direto, que acentuam seu caráter de simulação e a

intervenção constante do locutor que cita.

Num cruzamento entre a antropologia e a análise do discurso

Podemos ir mais longe e nos interrogar sobre as implicações que poderíamos dizer

“antropolingüísticas” da sobreasseveração. Por que esse florilégios de máximas, de

fórmulas filosóficas, de sentenças, de “frases pequenas”, de “frases que matam”, de

“citações do dia”, de “ele disse isso”...?

Num primeiro nível, podemos responder a essa questão invocando, e com razão, as

pressões específicas dos diferentes gêneros ou tipos de discurso. É evidente que a “pequena

frase” é indissociável do funcionamento da máquina televisual ou radiofônica, que a

multiplicação das fórmulas autônomas caracteriza a imprensa dita “popular”, que a forma

Page 77: Unidades tópicas e não-tópicas

filosófica está ligada ao caráter doutrinal do discurso filosófico, às necessidades do ensino,

etc.

Mas isso não basta. A sobreasseveração coloca questões radicais. Começamos, de

fato, a falar de sobreasseveração para enunciados que são modulados de certa forma pelo

locutor no interior de seu próprio discurso. Nessa perspectiva, a sobreasseveração apareceu

como um tipo de amplificação de certas seqüências do texto, o locutor fazendo-se

ocasionalmente de sobreasseverador. Mas fomos confrontados em seguida com uma série

de fenômenos de sobreasseveração atribuídos a um sobreasseverador que não pode

coincidir com o locutor do texto de origem. Isso pode até mesmo dizer respeito a sua

identidade: enquanto que na entrevista o “solteiro”, Olivier, é o único locutor do enunciado

“Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”, são Olivier e Alexandra que

são os sobreasseveradores do “mesmo” fragmento destacado no título. Nessa perspectiva,

podemos dizer que o sobreasseverador é mais o efeito da sobreasseveração, o correlato do

enunciado, do que sua fonte.

Uma maneira drástica de tirar proveito das conseqüências dessa divergência entre as

duas concepções do sobreasseverador seria dizer que o enunciado destacável implica uma

certa instância de enunciação e que o enunciado destacado implica uma outra, e que pouco

importa que essas duas instâncias sejam ou não indexadas pelo mesmo nome próprio. Mas

essa solução é provavelmente muito brutal: podemos dizer que o Giscard que disse “a frase

que mata” sobre Raffarin – que citamos acima – não tem nada a ver com o Giscard que

produziu o texto de que é extraída essa frase sobreasserida? Se admitíssemos que um

enunciado em um texto e esse mesmo enunciado convertido em sobreasseveração não têm

o mesmo autor, encontrar-nos-íamos numa situação lingüisticamente cômoda, mas

ontologicamente inextricável.

De qualquer forma, somos obrigados a distinguir entre uma sobreasseveração

pretendida (no sentido de uma pretensão pragmática implicada pela enunciação) e uma

sobreasseveração derivada. A primeira seria uma pretensão ligada à enunciação, que marca

enunciados como destacáveis; a segunda resultaria apenas do destaque, ela seria seu

correlato. A convergência entre as duas formas de sobreasseveração variaria segundo a

grande diversidade das práticas discursivas e não poderia jamais ser objeto de consenso. O

Page 78: Unidades tópicas e não-tópicas

ponto de dificuldade são particularmente as sobreasserções “derivadas”, que não seriam

“pretendidas”.

Esse tipo de dificuldade leva a evocar um caso teológico-político célebre, ligado à

controvérsia jansenista, a querela das proposições condenadas pela bula papal Cum

occasionne. Em 1º. de julho de 1649, o síndico da Faculdade de Teologia solicitou à

Sorbonne que condenasse sete proposições heterodoxas sobre a graça divina que ele dizia

ter encontrado nas teses dos estudantes. Ele não dizia explicitamente que essas teses eram

de Jansenius, mas, no contexto, todo mundo compreendeu que se tratava de condenar sua

obra principal, Augustinus, fundadora da doutrina jansenista. O debate se concentrou sobre

as cinco primeiras proposições. Foi pedido ao papa Inocêncio X que arbitrasse a questão, o

que ele fez em 31 de maio de 1653, pela bula Cum occasione, que as condenava.

A objeção dos jansenistas consistia em dizer que essas proposições não figuravam

no texto de Jansenius, que elas não eram objeto de uma asserção de sua parte no livro, que

ele não podia, portanto, ser seu locutor, no sentido modal. Vê-se que os adversários dos

jansenistas operaram uma “sobreasseveração derivada”, por meio de uma mudança que

condensa em alguns enunciados autônomos a doutrina que Jansenius presumivelmente

defende. A segunda proposição, por exemplo, “No estado da natureza decaída, jamais se

resiste à graça interior”, apresenta-se como uma tese vigorosa, atribuída a um

sobreasseverador que a profere diante do mundo. A estratégia de defesa essencial dos

jansenistas consistirá, logicamente, em desfazer esse nó, em romper todo elo entre o locutor

Jansenius e esse sobreasseverador construído pelo trabalho sobre os textos. Neste caso, o

sobreasseverador é particularmente autônomo em relação a Jansenius. Não apenas porque

não se trata propriamente de falar de citações exatas de sua obra, mas também porque se

supõe que esse sobreasseverador assume globalmente sete proposições que o síndico atribui

a diversos estudantes, e cuja unidade doutrinal é na verdade imposta por sua remissão

implícita à doutrina de Jansenius.

A sobreasseveração, qualquer que seja a modalidade, implica numa figura de

enunciador que não apenas diz, mas que mostra que diz o que diz, e presume-se que o que

ele diz condensa uma mensagem forte, induz a uma tomada de posição exemplar. A

sobreasseveração estabelece uma asserção que leva a uma responsabilidade diante do

mundo. O que bem demonstra o termo “proposição” utilizado nessa querela: são ao mesmo

Page 79: Unidades tópicas e não-tópicas

tempo proposições em um sentido gramatical lato, frases, e proposições no sentido de

“discurso significando o verdadeiro e o falso”, para retomar a definição do filósofo

medieval Abelardo.

O sobreasseverador é alguém que se sobrepõe, que mostra o ethos de um homem

autorizado, sob a influência de uma Origem transcendente, que estabelece valores, para

além das interações e das argumentações. Nesse caso, o apagamento da relação com o co-

texto acompanha um reforço do engajamento ilocutório. Quando Olivier e Alexandra

sobreassertam “Se a coisa não for bem entre nós, vamos contar para vocês”, ou Marx, que

“A religião é o ópio do povo”, tanto aqueles quanto este enunciam uma verdade refletida, a

expressão de uma totalidade: uma concepção do amor, da vida, uma doutrina filosófica.

O Augustinus é um in-fólio de mais de 1100 páginas, escrito em duas colunas

comprimidas, e cuja trama textual densa mobiliza e comenta citações. Um livro como esse,

profundamente imerso num imenso intertexto, não tem nenhuma finalidade de suscitar

sobreasserções. Os adversários dos jansenistas não o condenaram integrando elementos de

doutrina numa forma de discurso citado (“a idéia defendida por Jansenius segundo a

qual...”, “Jansenius afirma erroneamente que...”, etc.); eles acreditaram ser necessário

condensar aquilo que pensavam ser sua doutrina em alguns enunciados sobreasseridos.

Queriam condenar proposições, suscetíveis de serem assumidas por um sujeito responsável

diante do mundo, e não se confrontar com um livro que faz uma exposição argumentada,

que desdobra um espaço dialógico de confronto de pontos de vista dentro dos limites

impostos por certo contrato genérico. Tocamos, aqui, no arcaico. Por meio da unidade de

uma sobreasseveração, é a Verdade que torna o movimento de sua manifestação sensível,

ícone verbal pelo qual um Sujeito se concentra em sua unidade imaginária. Trata-se de

retornar para aquém da diversidade genérica, aquém mesmo da espacialidade do texto.

O ponto de vista dos especialistas do discurso – para quem, seguindo a filiação de

Bakhtin, só há fala no interior do horizonte de um gênero de discurso – opõe-se aqui à

ideologia espontânea dos locutores, para os quais se diz o que se pensa, numa relação

íntima entre uma expressão e um querer dizer. Esse ponto de vista do usuário

tradicionalmente é também o de todos aqueles que levam aos tribunais esse ou aquele

enunciado julgado heterodoxo. Para eles, não se trata de remeter a expressão de uma pessoa

má a um gênero, a uma situação. No fundo, tudo se dá como se o corte entre o enunciado

Page 80: Unidades tópicas e não-tópicas

frástico, simples ou complexo, tudo aquilo que pode servir como “fórmula”, e o texto,

remetesse a um corte profundo e obscuro entre aquilo que depende de um gênero de

discurso e aquilo que excede qualquer gênero, entre a pluralidade irredutível dos modos de

subjetivação enunciativas e dos jogos de linguagem e o gesto pelo qual um Sujeito de pleno

direito se coloca diante de uma coletividade associada a um conjunto de valores.

Neste ponto, surge uma questão difícil de não colocar: é possível manter a noção de

sobreasseveração tanto para os enunciados destacáveis, inscritos em seu co-texto, quanto

para os enunciados destacados? Se existe uma mudança de ordem entre o textual e aquilo

que poderíamos denominar o aforístico, que escaparia à oposição entre frase e texto, somos

tentados a nos perguntar se o emprego do conceito de sobreasseveração para os dois casos

em questão não cria uma continuidade artificial entre um e outro.

Parece-nos preferível não confundir uma lógica de sobreasseveração – que faz

aparecer uma seqüência sobre um fundo textual – e uma lógica de aforização (para ser

exato, um destaque aforizante) que implica um tipo de enunciação totalmente diferente:

uma outra figura do enunciador e do co-enunciador, do estatuto pragmático do enunciado.

A aforização atribui um novo estatuto à citação. Não se trata mais de representar, mas de

apresentar, de tornar presente, de fazer ouvir uma reserva de sentido na própria exibição de

uma enunciação, de tornar enigmático um enunciado que manifesta e esconde tudo ao

mesmo tempo, que apela para a interpretação.

Page 81: Unidades tópicas e não-tópicas

A NOÇÃO DE HIPERENUNCIADOR27

1. O sistema de particitação

Quando se analisam os usos da citação, dois planos interagem-se: o dos

procedimentos, categorizados à base de critérios diversos (enunciativos, tipográficos,

sintáticos, prosódicos: discurso direto, indireto, direto livre, discurso direto com que, etc.) e

o dos lugares: gêneros (o jornal, o romance...), tipos de discursos (a imprensa...),

posicionamentos (o discurso comunista, surrealista...).

Nós nos interessaremos por um sistema de citação singular, a “particitação”, uma

palavra-valise que funde “participação” e “citação”. Essa categoria fundamentalmente

pragmática atravessa vários gêneros, sem que, para isso, corresponda a um procedimento.

Mutatis mutandis, poder-se-ia dizer que se trata de um procedimento comparável àquele

dos lingüistas que, seguindo a linha de Benveniste (1966), distinguem vários sistemas

enunciativos (ao menos dois), segundo a relação que se estabelece entre enunciado e

situação de enunciação. Esses sistemas não são tipos28 propriamente ditos, ou gêneros de

discurso, nem feixes compactos de marcadores lingüísticos; são, antes, uma certa forma de

mobilizar o aparelho enunciativo, ao qual estão associados, de modo regrado, alguns

gêneros de discurso e alguns marcadores lingüísticos.

A “particitação” difere da citação prototípica, daquilo que geralmente vem ao

espírito quando se fala de “discurso citado”: corte de um fragmento, explicitação de sua

fonte, inserção em uma situação de comunicação de caso pensado em uma outra situação

(com todos os problemas associados ao conflito de localização dêitica entre os dois

espaços), distância variável entre mundo do discurso que cita e mundo do discurso citado

27 Este texto se constitui numa versão bastante modificada de um artigo publicado na revista Langages no. 156, 2004, p.111-26, sob o título Hyperénonciateur et particitation. Publicado em dezembro de 2005 na Revista Polifonia nº 10 – Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – Mestrado da UFMT. Tradução Roberto Leiser Baronas (UNEMAT/UFMT) & Fábio César Montanheiro (UNESP/CAr) 28 Eu sou favorável, aqui, ao emprego dominante, que faz do tipo de discurso o espaço que engloba os diversos gêneros de discurso de um mesmo setor de atividade. Para uma outra terminologia, ver Bronckart et al. (1985).

Page 82: Unidades tópicas e não-tópicas

em função da estratégia de modalização que o relator adota. No sistema de “particitação”

as coisas se apresentam de modo um pouco diferente:

O enunciado “citado” é um enunciado autônomo, porque ele já o é originalmente ou

porque ele foi previamente autonomizado mediante sua extração de um texto.

Essa citação deve ser reconhecida como tal pelos alocutários, sem que o locutor que

a cita indique sua fonte e nem mesmo deixe claro que ele efetua uma citação por

intermédio de um verbo dicendi introdutor, de um inciso, etc. A propriedade de

citação é marcada apenas por um deslocamento interno à enunciação, que pode ser

de natureza gráfica, fonética, para-lingüística... O enunciado citado é apresentado

em seu significante, dentro de uma lógica de discurso direto, mas levada ao

extremo: não se trata apenas de simular – como geralmente ocorre no discurso

direto –, mas de restituir o próprio significante. Contudo, essa restituição pode

aceitar uma dose de variação, como freqüentemente se mostrou para formas ainda

que comumente consideradas cristalizadas, os provérbios. A restituição do

significante é evidentemente associada ao fato de que não há indicação da fonte da

fala citada.

O locutor que cita mostra sua adesão ao enunciado citado, que pertence àquilo que

se poderia denominar um Thesaurus de enunciados de contornos mais ou menos

fluidos, indissociável de uma comunidade onde circulam esses enunciados e que,

precisamente, se define de maneira privilegiada por compartilhar um tal Thesaurus.

Por sua enunciação, o locutor que cita pressupõe pragmaticamente que ele mesmo e

seu alocutário são membros dessa comunidade, que eles são arrebatados em uma

relação de tipo especular: o locutor cita aquilo que poderia/deveria ser dito pelo

alocutário e, mais amplamente, por todo membro da comunidade que age de

maneira plenamente conforme à esse pertencimento.

Esse Thesaurus e a comunidade correspondente recorrem a um hiperenunciador

cuja autoridade garante menos a verdade do enunciado – no sentido estreito de uma

adequação à um estado de coisas do mundo –, e mais amplamente sua “validade”,

sua adequação aos valores, aos fundamentos de uma coletividade.

Page 83: Unidades tópicas e não-tópicas

Se retomarmos as categorias de Rabatel (2003), pode-se dizer que a particitação é

fundamentalmente uma forma particular de co-enunciação, pois existe acordo em torno do

Ponto de Vista - PDV. Trata-se, contudo, de uma forma particular de co-enunciação, já que

esse acordo, em conseqüência da particitação, é tal que torna inútil outras marcas de acordo

explícitas em torno do PDV. Pode-se avaliar a especificidade desse sistema de citação

colocando-o frente ao discurso direto livre (Rosier, 1999, p.278-98). Aparentemente, trata-

se de fenômenos muito comparáveis, uma vez que nos dois casos ocorre a ausência de

indicação da fonte; mas o Discurso Direto Livre – DDL - privilegia a doxa, o clichê: “O uso

privilegiado do discurso direto livre para produzir discursos-clichê a todos e a ninguém

favorece de algum modo o reconhecimento de segmentos aparentemente não atribuídos, na

verdade, porém, atribuídos a uma pessoa qualquer” (1999, p.296). A particitação, por outro

lado, gera um desnivelamento entre a voz “ordinária” do locutor que cita e uma voz extra-

ordinária. Em ambos os casos, o anonimato da fonte caminha de mãos dadas com o caráter

compartilhado das falas citadas, mas o locutor que cita o DDL se situa acima do propósito

citado, ele não se encontra em uma lógica de co-enunciação.

No estado atual parece-me difícil estabelecer um sistema a priori dos modos de

particitação, pois eles estão em contato estreito com a variedade de situações sócio-

históricas. O mais razoável é, provavelmente, distinguir diversas famílias de particitação,

funcionamentos pragmáticos que apresentam afinidades. É o que vamos fazer aqui,

operando diversos agrupamentos: não será, contudo, uma enumeração disparatada, nem

tampouco a exposição de uma grade sistemática.

2. As particitações sentenciosas

O primeiro grupo de que trataremos é o das particitações “sentenciosas”, para as

quais o apagamento enunciativo é mais evidente.

2.1. A enunciação proverbial

Page 84: Unidades tópicas e não-tópicas

Ficamos um pouco receosos ao tratar da enunciação proverbial sob um novo prisma,

principalmente quando se tem consciência de tudo o que pôde ser escrito sobre esse

assunto29. Na verdade, vamos apenas mostrar por que razões ela depende do sistema de

particitação.

No plano modal, sua característica mais interessante é, evidentemente, o

deslocamento entre aquele que profere o provérbio e aquele que garante sua veracidade.

Berrendonner (1982, p.207-11) fala de uma “citação-eco”, em que a mesma proposição

seria sucessivamente assumida por duas instâncias de fala: SUJEITO UNIVERSAL, depois

EU. Nas palavras de Ducrot (1984), seu “sujeito falante” não é seu “locutor”, aquele que se

apresenta como seu responsável, uma vez que essa responsabilidade é atribuída à

“sabedoria das nações”. Nessa perspectiva polifônica, o enunciado é, de certo modo,

produzido por duas vozes, adotando o sujeito falante um PDV que ele apresenta como

garantido por um SUJEITO UNIVERSAL. Na medida em que a instância validante – um

SUJEITO UNIVERSAL – coincide com o conjunto dos locutores de uma língua, membros

como ele da comunidade cultural e lingüística onde circulam os provérbios, aquele que

“cita” um provérbio participa da comunidade que lhe dá sustentação. (Grésillon et

Maingueneau, 1984).

O provérbio possui com toda certeza as características da particitação. Ele faz parte

de um “Thesaurus” indissociável da comunidade em que ele circula e que se define, entre

outras coisas, por compartilhar esse Thesaurus. Este último não tem contornos bem

delineados e as compilações de provérbios oferecem uma imagem muito imperfeita disso:

apenas um número restrito de provérbios é realmente compartilhado, e existem grandes

variações para os demais, segundo as regiões, os ambientes. Para além de contradições

imediatas entre provérbios, a unidade é assegurada pela remissão a esse hiperenunciador

comumente designado como “a sabedoria das nações” ou “a sabedoria popular”.

Por sua própria enunciação, o particitador de um provérbio confere a si – e a seu

alocutário (seu “particitador”...) o estatuto de membro de uma comunidade. Esta faz, aliás,

mais que estocar provérbios, ela é depositária de uma experiência que permite aos usuários

aplicá-los a situações inéditas oportunamente categorizadas.

29 Para um panorama recente, consulte-se o número 139 da revista Langages (2000).

Page 85: Unidades tópicas e não-tópicas

2.2. O adágio jurídico

O adágio legítimo, do qual se sabe ser bem próximo do provérbio, constitui

igualmente um bom exemplo de enunciado sujeito à particitação.

(1) Cartas têm mais credibilidade que testemunhos

(2) Todos os delitos são pessoais

O adágio em francês sofreu concorrência do adágio em latim por muito tempo:

(4) Os pais são aqueles que o casamento designa como tais.

Esse Thesaurus em latim reforçava o sentimento de pertencimento de seus usuários

à comunidade dos profissionais da justiça, cujo socioleto era, aliás, regularmente

ridicularizado por produções satíricas.

Não retornarei às similitudes de diversas ordens entre provérbio e adágio legítimo;

sobre esse assunto pode-se reportar ao artigo de Gouvard (2000). Entretanto, não concordo

com a idéia segundo a qual os adágios, diferentemente dos provérbios, recusariam a

combinação com “como se diz”:

“Os provérbios, que admitem encadeamento com ‘Como se diz’, não têm fonte determinada: eles remetem a representações estereotipadas, supostamente compartilhadas por todos (...). Por outro lado, os adágios, que não admitem encadeamento com ‘Como se diz’, podem ser interpretados somente em relação a uma das fontes do direito francês, dado que eles têm sentido e legitimidade apenas no quadro das convenções que regem o domínio de especialidade no seio do qual eles são empregados.”30

Para o que nos interessa aqui, a distinção entre a “fonte indefinida” do provérbio e a

“fonte definida” do adágio é secundária: O SUJEITO UNIVERSAL é suficientemente

30 No original: “Les proverbes, qui admettent l’enchaînement avec ‘Comme on dit’, n’ont pas de source déterminée: ils renvoient à des représentations stéréotypées censées être partagées par tous (…). En revanche, les adages, qui n’admettent pas l’enchaînement avec ‘Comme on dit’, ne peuvent être interprétés que par rapport à l’une des sources du droit français, puisqu’ils n’ont de sens et de légitimité que dans le cadre des conventions qui régissent le domaine de spécialité au sein duquel ils s’emploient.” (Gouvard, 2000, p.81)

Page 86: Unidades tópicas e não-tópicas

plástico para aceitar ambos. Tanto em um caso como em outro, o enunciador invoca um

hiperenunciador, uma outra instância não nomeada – seja a sabedoria das nações ou o

Direito francês – reconhecida pelos seus interlocutores, membros da mesma comunidade de

experiência, da mesma tradição. A diferença é que, em um caso (o provérbio) a

comunidade é de ordem natural, no outro (o adágio), ela é de ordem profissional. Que não

se confunda esse hiperenunciador dos adágios jurídicos com o “Legislador”, que é o

hiperenunciador do Direito positivo. Se este último dá sustentação ao Thesaurus das leis, o

primeiro é o responsável por uma experiência coletiva da prática da justiça, ainda que a

maioria dos adágios derive de forma mais ou menos direta de textos de lei.

O adágio jurídico é somente um caso extremo de uma família de particitações que

inclui, além do provérbio, as múltiplas sentenças associadas a certas comunidades de

profissionais: agricultores, pequenos investidores em ações, etc. É justamente porque a

meteorologia ou os negócios da bolsa de valores são, no fundo, incertos, que os membros

do grupo confirmam seu co-pertencimento, apoiando-se em certo número de normas de

comportamento estabilizadas em sentenças que têm como referente um hiperenunciador.

3. As particitações gráficas

3.1. As citações conhecidas

Ao lado dos provérbios, circulam na sociedade muitos outros enunciados curtos,

facilmente memorizáveis, cujo significante e significado são extraídos de uma organização

mais ou menos pregnante (pela prosódia, rimas internas, tropos...). Muitas dessas fórmulas

são extraídas de textos e podem figurar em “dicionários de citações”, onde a noção de

citação recobre de modo vago “frases conhecidas”, “provérbios” e “aforismas”, isto é,

qualquer enunciado curto (geralmente monofrástico) e autonomizado. Os organizadores

desse tipo de dicionário têm o hábito de coletar todo tipo de citação que acham úteis para os

locutores com falta de inspiração, nem sempre atentando para seu conhecimento público e

para sua possibilidade de memorização. De nossa parte, não deixamos de levar em

consideração os enunciados que podem ser objeto de particitações sentenciosas e nos

Page 87: Unidades tópicas e não-tópicas

limitamos a citações que têm por referente um autor individuado: aqui só nos interessam as

citações conhecidas e cujo significante permite que elas circulem facilmente.

Essas citações conhecidas circulam em uma comunidade mais ou menos ampla: por

exemplo, no espaço fracofono se encontrará enunciados como “Aquilo que é bem

elaborado é claramente enunciado”31 (A Arte Poética de Boileau), “Se apenas um

permanecer, eu serei esse um”32 (Os Castigos de Victor Hugo), etc. O mesmo se dá com as

perguntas de jogos televisivos ou radiofônicos do tipo “Quem disse...?”. Nós acabamos de

dar exemplos de versos. E não é por acaso: por suas propriedades, os versos são mais

facilmente destacáveis (Maingueneau, 2005, no prelo). Pode-se imaginar, por exemplo, que

um locutor, em presença de um pôr-do-sol particularmente impressionante, invoque o verso

de Baudelaire “O sol se afogou em seu sangue que se petrifica”33; esse verso não detém

uma posição de destaque no poema, tampouco é autônomo enunciativamente (não é

genérico, nem mesmo iterativo), mas o único fato de ser um alexandrino e de ser

fortemente metafórico, predispõe-no a ser destacável. De modo geral, o caráter de

“evocação” (Dominicy, 1990) da poesia e sua estrutura rítmica pregnante favorecem sua

autonomização. Acontece, contudo, que um enunciado que não tem propriedades de

destacabilidade chega ao estatuto de fórmula conhecida; é o caso do incipit de Em busca do

tempo perdido de Marcel Proust: “Por muito tempo fui dormir cedo”34; mas trata-se

precisamente de um incipit.

Nas comunidades em que circulam, essas fórmulas são suscetíveis de ser

mobilizadas por práticas muito diversas, que não evidenciam necessariamente a

particitação. Para uma fórmula filosófica, por exemplo, não ocorrerá particitação quando,

em um curso, um professor de filosofia comentar uma fórmula (e.g. “O homem é a medida

de todas as coisas”35) como um enunciado considerado em tal texto ou em tal autor.

Inversamente, ocorrerá particitação quando numa conversa entre especialistas de filosofia

se insere uma fórmula sem menção de autor.

3.2. A particitação humanista

31 No original: “Ce qui se conçoit bien s’énonce clairement”.32 No original: “Et s’il n’en reste qu’un, je serai celui-là”.33 No original: “Le soleil s’est noyé dans son sang qui se fige”.34 No original: “Longtemps je me suis couché de bonne heure...”.35 No original: “L’homme est la mesure de toute chose”.

Page 88: Unidades tópicas e não-tópicas

A noção de “citação conhecida” é, na verdade, enganosa. Algumas citações, a

exemplo dos provérbios, circulam em comunidades muito amplas; outras, em comunidades

menores, que ajudam a consolidar. Junto às comunidades fechadas (uma escola, uma

seita...) existem as comunidades amplas; é o caso, por exemplo, dos humanistas do século

XVI, que se reuniam em torno de um Thesaurus. Em Montaigne encontra-se um grande

número de citações em latim que são dadas sem autor:

(5) “Se vós tirastes proveito da vida, vós vos saciastes dela, parti satisfeito”.

Cur non ut plenus vitae conviva recedis ?

Se vós não a soubestes usar, se ela vos era inútil, o que vos importa tê-la

perdido, para que a querer mais ainda?”36

(6) “Aquele que chama Deus em seu socorro enquanto está incorrendo no

vício procede como o trapaceiro que invocaria a justiça em seu auxílio, ou

como aqueles que evocam o nome de Deus como testemunho de mentira”.

tacito mala vota susurro

Concipimus.

Poucos homens existem que ousassem revelar as súplicas secretas que fazem

a Deus (...)”37

36 No original: “Si vous avez fait votre profit de la vie, vous en estes repu, allez vous en satisfait,

Cur non ut plenus vitae conviva recedis ?

Si vous n’en avez su user, si elle vous était inutile, que vous chaut-il de l’avoir perdue,à quoi faire la voulez-vous encore?” (Livre I, XX, Garnier, tome 1, p.95)

37 No original: “Celui qui appelle Dieu à son assistance pendant qu’il est dans le train du vice, il fait comme le

coupeur de bourse qui appellerait la justice à son aide, ou comme ceux qui produisent le nomde Dieu en témoignage de mensonge:

tacito mala vota susurroConcipimus.

Page 89: Unidades tópicas e não-tópicas

É a passagem ao latim, o itálico e a posição tipograficamente destacada que

assinalam tratar-se de uma citação. Quando a familiaridade com o Thesaurus dos

consagrados textos gregos e latinos da Antigüidade é suficientemente grande, o leitor

atribuirá eventualmente (5) a Lucrécio e (6) a Lucain: a comunidade dos “humanistas” se

define justamente por seu conhecimento suposto dos textos desse corpus. O escritor

constrói o lugar de um leitor modelo que compartilha o mesmo Thesaurus e com o qual ele

comunga por sua própria particitação. Nesse dispositivo, os múltiplos autores do corpus

humanista greco-latino valem menos como escritores individualizados do que como as

múltiplas manifestações de um mesmo hiperenunciador, “a Antigüidade”, da qual todos

participam. Dá-se, em conseqüência, uma relação polifônica em três planos e não em dois,

como é o caso no provérbio: o particitador atribui a responsabilidade de seu enunciado a

um autor, não explicitado, mas esse autor por si só é uma manifestação contingente de um

hiperenunciador de que o particitador pretende estar embebido pelo próprio fato de citar

fragmentos de seu Thesaurus.

Nos séculos seguintes, esse Thesaurus vetusto não cessará de suscitar particitações, mas compreendendo uma comunidade de pertencimento bem menos vigorosa. Essa característica da escritura letrada é sinal de que se recebeu uma formação “clássica”, ela reforça a conivência entre escritor e leitor, que se reconhecem mutuamente como compartilhando o mesmo Thesaurus. Quando Freud põe como epígrafe de Traumdeutung

(7) Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo.

ele não precisa sua fonte, construindo o lugar de um leitor modelo familiar da Eneida. Muito evidentemente, essa referência a Enéias e à travessia dos Infernos é pejada de sentido para quem quer compreender a maneira pela qual o fundador da psicanálise representa para si mesmo sua empresa, mas, além disso, esse tipo de particitação é característico de uma certa configuração social e cultural.

3.3. O Thesaurus bíblico

A particitação, de um modo ou de outro, implica uma instância impositiva, que é fonte de valores. No caso de amplas comunidades culturais (citações conhecidas, provérbios..., ou, num grau menor, os humanistas), essa autoridade não é de ordem doutrinal; o mesmo não se dá no caso de religiões escritas ou das escolas filosóficas. No

Il est peu d’hommes qui osassent mettre en évidence les requêtes secrètes qu’ils font à Dieu (…)” (p.358)

Page 90: Unidades tópicas e não-tópicas

cristianismo como no judaísmo, o Thesaurus que torna possível a particitação coincide imaginariamente com um único livro, o Livro.Nesse excerto do Tratado do Amor de Deus de São Francisco de Sales

(8) “Théotime, quem olha para a mulher de seu próximo desejando-a, já adulterou com ela em seu coração, e aquele que amarra seu filho para imolá-lo, já o sacrificou em seu coração.”38

não existe indicação de autor, recorre-se somente ao itálico. Do leitor modelo, cristão neste caso, espera-se que perceba que se trata de uma frase do Cristo (Mateus, cap.5, 28). Observar-se-á que o texto distingue bem as falas citadas propriis verbis e as alusões a uma passagem da Escritura, como aquela no episódio do sacrifício de Isaac na frase que segue (“que amarra seu filho para imolá-lo”).

Nesse exemplo a particitação implica diretamente o hiperenunciador, por menos que se admita que Jesus é Deus: por intermédio do Cristo exprime-se o hiperenunciador que funda o Thesaurus católico, o próprio Deus. Aliás, o enunciador põe em evidência esse encadeamento de identificações enunciador-Jesus-Deus, pois insere a citação em uma frase endereçada ao destinatário do livro (Théotime...), permitindo, de certo modo, que o hiperenunciador se exprima por sua boca. Um modo de mostrar que ele está habitado por Ele. Eis um tipo de citação onipresente nas religiões do Livro: ao particitar fragmentos do Thesaurus, os locutores mostram o Espírito que os habita. Essa prática leva logicamente ao desaparecimento das marcas de discurso citado: cabe ao leitor ou ao ouvinte reconhecê-lo. O verdadeiro crente é aquele que tem essa competência, como se vê atualmente, por exemplo, nos discursos dos oradores fundamentalistas protestantes.

Na verdade, a maior parte da Bíblia constitui-se não de falas que emanam diretamente de Deus, mas de textos de autores anônimos ou míticos que dependem de gêneros de discurso muito diversos (narrativa histórica, mito, poema, provérbio, compilação de leis...) escritos em lugares e épocas distintos. Mesmo no Evangelho, o Cristo só fala por meio do discurso citado. Mas para os membros da comunidade, os múltiplos “autores” da Escritura são apenas porta-vozes do único e verdadeiro Autor (o Espírito de Deus) que os inspira e garante o conjunto dos textos, indiferente à diversidade dos gêneros e das épocas. Sem esse postulado, toda a hermenêutica religiosa rui, já que não se pode mais esclarecer um fragmento da Escritura por um outro. Encontra-se, assim, uma estrutura comparável àquela do Thesaurus humanista: Montaigne e seus pares citam enunciados independentemente dos autores e dos gêneros. No entanto, existe uma diferença: no Thesaurus cristão, o hiperenunciador é ao mesmo tempo locutor (a Bíblia é inspirada por Deus, mas Deus é também um dos locutores), ao passo que no Thesaurus humanista, o hiperenunciador, a Antigüidade, não coincide com nenhum dos locutores citados, que se configuram, cada um deles, em uma manifestação própria.

4. As particitações de grupo

38 No original: (8) “Théotime, qui voit la femme de son prochain pour la convoiter, il a déjà adultéré en son cœur ; et qui lie son fils pour l’immoler, il l’a déjà sacrifié en son cœur.” (Pléiade, livro XII, cap. X, p.966)

Page 91: Unidades tópicas e não-tópicas

Vamos considerar agora uma família bem diferente, as particitações de grupo, que implicam locutores coletivos. Elas visam à fusão imaginária dos indivíduos em um locutor coletivo que, por sua enunciação, institui e confirma o pertencimento de cada um ao grupo.

4.1. As particitações militantes

Essas particitações permitem reforçar a coesão de uma coletividade, opondo-a a um exterior ameaçador (slogans, canto de torcedores, gritos de guerra...). Diferentemente das particitações sentenciosas, as militantes são produzidas por um enunciador coletivo. Neste “coletivo” convém estabelecer uma distinção entre o grupo empírico dos locutores e a entidade de ordem institucional a que é atribuído o PDV. Esta última não pode se reduzir aos indivíduos empíricos que a constituem em um dado momento.

Para ser mais preciso, pode-se distinguir três níveis distintos:(a) os locutores empíricos, os indivíduos que compõem o grupo; assim

considerados, estes não interessam à análise do discurso;(b) o ator coletivo do qual eles participam: um partido, um conjunto de

manifestantes, uma associação;(c) o hiperenunciador que funda os diversos PDVs expressos por esse ator: “a

Esquerda”, “a Nação”, “o Clube”, etc.

Enquanto (b) tem por referente grupos de locutores que formam uma organização em um momento e lugar determinados, (c) tem por referente entidades de alguma forma transcendentes. Essa distinção vai se tornar mais clara nos exemplos que seguem.

Não entraremos aqui nos complexos problemas que a existência dos indivíduos coletivos propõe à semântica e à filosofia. Faremos apenas algumas distinções elementares para analisar esse tipo de particitação, abstendo-nos de qualquer engajamento ontológico a esse respeito39.

4.1.1. O slogan

A noção de “slogan” não apresenta o mesmo valor, conforme se trate de publicidade ou de movimentos políticos. Interesso-me aqui pelo slogan político que, diferentemente do slogan publicitário, depende por natureza do sistema de particitação. O slogan, a exemplo do provérbio, só pode ser repetido. O slogan se caracteriza como duplamente repetível: ele reclama um lugar de particitação (cartaz, panfleto, o mesmo slogan em diferentes suportes); além disso, ele é indefinidamente repetido por aqueles que lhe dão destaque. Ele implica ainda um ethos apropriado: no caso presente, um ethos que marca um empenho total da pessoa. Mas, enquanto as particitações sentenciosas não se constroem sobre a fronteira que distingue a comunidade de outras comunidades, a enunciação do slogan militante implica a existência de um exterior hostil ou indiferente frente ao qual se afirma o grupo. Neste caso, está-se em relação com um NÓS que supõe algo complementar, geralmente um concorrente no mesmo domínio.

Por enquanto, nossa noção de “coletividade” permanece fluida. Para refiná-la, pode-se servir da tripartição de Cruse (1986) que distingue

39 Pode-se avaliar a amplitude dessas dificuldades na obra de Descombes (1996).

Page 92: Unidades tópicas e não-tópicas

Os “grupos” reservados aos humanos, que são consolidados por uma finalidade comum: equipe, empresa, auditório...;

As “classes”, isto é “um conjunto de humanos baseado mais na posse de atributos comuns do que num projeto comum; uma classe tem menos coesão orgânica do que um grupo”: o campesinato, o clero, o professorado, os proletários...;

As “coleções”, isto é, ajuntamentos: montão, multidão, floresta, biblioteca... (1986, p.176)

Na particitação dos slogans militantes estão em causa fundamentalmente coletivos, cuja permanência é assegurada, no tempo, por “grupos” no sentido atribuído por Cruse, e não de “classes” ou de “coleções”. Mas esses grupos podem ser transitórios, como sugere o exemplo do auditório proposto por Cruse. Os grupos militantes quando são transitórios – é o que ocorre nas manifestações políticas ou sindicais – têm até mesmo mais organicidade do que os auditórios: um conjunto de passantes que escutam um camelô, por exemplo. Quando eles são estáveis, são comunidades pré-construídas, anteriores à enunciação, isto é, grupos ligados a um aparelho e dotados de uma memória compartilhada.

No caso de um grupo transitório, está-se em relação com uma comunidade hic et nunc que a enunciação do slogan tem exatamente a função de unir. Quando acontece uma manifestação que reúne uma população heterogênea em torno de uma questão atual, o slogan não tem outra comunidade-suporte senão o próprio grupo que o está enunciando; daí uma tendência para fragmentar os slogans em função dos sub-grupos que compõem essa comunidade transitória. A comunidade transitória fabrica um Thesaurus conjuntural (os slogans co-presentes no espaço-tempo dessa manifestação), que mistura slogans de circunstanciais e outros que passam de uma manifestação à outra. (cf. “É apenas o começo; continuemos o combate”!)40

Ocorre, entretanto, particitação, pois os diversos slogans implicam o lugar de um hiperenunciador cuja autoridade institui o conjunto de slogans compatíveis no espaço da manifestação: essa entidade (“os amigos da Liberdade”, “da Paz”, “os Democratas”, “os Patriotas”, etc.) deve existir para além desse agrupamento fugaz, assegurar uma continuidade imaginária de um agrupamento a outro. Diferentemente da “sabedoria das nações”, que permanece estável, esse hiperenunciador varia em função da opção política dos agrupamentos.

4.1.2. O canto de torcedores

O canto de torcedores (ver Gandara, 1997), diferentemente do slogan, é, por via de regra, preliminar à sua enunciação, fazendo parte do patrimônio do grupo, de uma instituição, no caso, os torcedores de um time esportivo. Essa diferença do slogan nada tem de absoluto, na medida em que nos regimes totalitários os slogans tendem a se cristalizar. Entretanto, é inerente ao político que boa parte dos enunciados desse gênero seja renovada para que eles permaneçam em contato direto e ativo com a conjuntura. Os cantos de torcedores assim como os gritos de guerra salientam acima de tudo uma lógica de Tradição, de repetição ritual, que conduzem à estabilização.

40 No original: “Ce n’est qu’un début, continuons le combat!”

Page 93: Unidades tópicas e não-tópicas

Eis dois exemplos de “canciones de cancha” do futebol argentino.41 O canto (9) põe em evidência a exclusão do adversário, o canto (10) reafirma sobretudo o pertencimento dos locutores ao grupo:

(9)

“Boca no tiene marido / Boca não tem maridoBoca no tiene mujer / Boca não tem mulherPero tiene un hijo bobo / Mas tem um filho idiota

Que se llama river pleit.”/ Que se chama river pleit42.

(10)

“Podran pasar los anos y no salir campeon / Poderão passar anos e o clube não ser campeãoPrefiero ser de Racing y no amargo como vos.” / Prefiro ser do Racing e não amargo como você.

4.2. As particitações de comunhão

Trata-se de particitações de locutor coletivo, que não privilegiam a fronteira da comunidade com o exterior, mas sim a fusão entre os membros do grupo. Exemplo paradigmático disso é, em registros bem diferentes, a oração ou a canção de estudantes de medicina. O esquema pode se complicar quando existe a presença de um intérprete.

4.2.1. A oração

Inscrevendo a oração no sistema de particitação, esclarece-se de modo particular o que pode significar “dizer / fazer uma oração”. As orações pertencem a um mesmo Thesaurus, cujo domínio consolida a comunidade. Esse domínio, como no caso do provérbio, associa uma memória (“conhecer suas orações”) e uma competência comunicativa que permite saber quais orações dizer diante de tal situação e como a dizer. As orações mais prestigiosas da Igreja Católica, o “Pai Nosso”, e a “Ave Maria” são, além disso citações no sentido mais ordinário: a primeira atribuída ao Cristo, a segunda ao anjo Gabriel; na verdade, a comunidade se une em pensamento pela identificação com um hiperenunciador encarnado (o Cristo) cujo anjo é apenas um porta-voz43.

41 Exemplos tomados a Gandara (1997, p.64-6).42 Trata-se evidentemente dos clubes Boca Junior e River Plate.

43 Por alguns aspectos, evocamos a problemática das “denominações citatórias” desenvolvida por L. Perrin, que a estende a textos inteiros: “para mim, toda unidade ou seqüência discursiva formalmente reconhecível, ou simplesmente apresentada, em virtude de suas propriedades formais, como tendo sido objeto de enunciações passadas instaura um significante unitário suscetível de fazer emergir uma denominação citatória. É assim principalmente com as orações, canções, parlendas e outros poemas, para citar apenas alguns gêneros de discurso, que emanam de nosso patrimônio cultural ou literário (e sem nos aventurar por enquanto a prestar conta das formas ou gêneros de discurso que não são textualmente memorizáveis). Uma oração, por exemplo, desde que reconhecida como tal, seja em virtude de suas propriedades formais, seja simplesmente porque ele

Page 94: Unidades tópicas e não-tópicas

4.2.2. As particitações com intérprete

Esse tipo de particitação é particularmente difícil de determinar, na medida em que a variedade de dispositivos de comunicação e das cenografias narrativas que ele torna possível é extremamente grande. O campo que essas práticas cobre é imenso. Pode-se, contudo, distinguir nele dois grandes conjuntos: “narrativos” (conto popular, mito...) ou “poéticos” (canção, poesia).

Essas particitações supõem um dispositivo de comunicação assimétrico. Nas particitações sentenciosas, ocorre uma reversibilidade essencial entre os dois pólos da comunicação: o particitador podia ser qualquer membro da comunidade; dá-se o mesmo, em um grau superior, com as particitações de grupo. Por outro lado, nas particitações com intérprete intervém uma instância mediadora que é dotada de competências superiores àquelas do alocutário, no que diz respeito à relação com o Thesaurus. O alocutário tende a se converter em público. Isso não significa afastamento da órbita da particitação, pois o intérprete aparece como um representante da comunidade, para quem ele atualiza fragmentos de um Thesaurus compartilhado. Aliás, o “público” o demonstra freqüentemente por suas reações: ele resgata as canções, emite sinais confirmativos em momentos apropriados, etc. Nesse caso, cai-se numa lógica de tradição, não de criação. Pode-se evocar aqui repertórios e práticas codificados como aquele do flamenco andaluz ou dos mariachi mexicanos. Mas, de forma mais ampla, um artista se inscreve numa tentativa de particitação a partir do instante em que ele segue um cânone tradicional, cujas regras são dominadas pela comunidade.

Nas particitações narrativas o narrador se apaga para “particitar” uma história virtualmente compartilhada pelo narrador e pelo narratário, membros de uma mesma comunidade cultural. É o caso de uma mãe de família que conta uma história do patrimônio sob a forma “a história de...”: “Eu vou lhe contar a história de...”, “Você conhece a história de...?”. Essas histórias do Thesaurus figuram nas antologias: contos populares franceses, contos de Grimm, de Perrault, etc. É, sobretudo às crianças que esses contos são narrados, pois presume-se que os adultos, membros plenos da comunidade, já os conheçam e possam contá-los. Isso não impede os adultos de escutá-los, confirmando com isso seu pertencimento. O Thesaurus tem por referente um hiperenunciador – “a Tradição”, “o Povo” – figurado na cultura francesa pela conhecida “Mãe Ganso”, que não tem outra função. O manuscrito dos contos de Perrault de 1695 tinha como título Contos de Minha Mãe Ganso, o autor se apagando diante da figura do hiperenunciador (Adam e Heidmann, 2004). É um equivalente, para o conto maravilhoso, daquilo que é a “sabedoria das nações” para o Thesaurus proverbial.

O narrador de um conto maravilhoso se abriga atrás de um hiperenunciador patrimonial, mas, diferentemente do que acontece com a citação conhecida, à qual sua brevidade e sua estrutura pregnante asseguram uma certa estabilidade, para ele não pode se tratar de citar de modo idêntico um enunciado que, por definição, não tem nem autor nem estabilidade. Existe, no entanto, certo número de índices que mostram uma vontade de respeito pelo significante, imposta pelo sistema de particitação, mas incompatível com as condições desse tipo de narração; é assim que os narradores de conto se afeiçoam a

foi previamente memorizada, instaura um significante unitário que nomeia uma situação genérica relativa a suas enunciações anteriores considerada como oração”.

Page 95: Unidades tópicas e não-tópicas

empregar algumas fórmulas (“Era uma vez...”, “Eles viveram felizes e tiveram muitos filhos...”), ou a preservar alguns arcaísmos (“a pequena cavilha cairá” para o Chapeuzinho Vermelho).

Seguindo a mesma perspectiva, poder-se-ia evocar a narração dos mitos. O narrador se coloca como seu particitador, apagando-se segundo estratégias diversas que mobilizam alguns marcadores lingüísticos de ordem testemunhal, um ethos, um certo registro de língua específicos.

5. O hiperenunciador com instâncias de enunciação complexas

Se na particitação não há autor citado, é porque se trata fundamentalmente de uma forma particular de enunciação, em que o acordo entre as duas instâncias é tal que se faz inútil a presença de outras marcas de adesão ao PDV. O hiperenunciador aparece como uma instância que, por um lado, garante a unidade e a validade da irredutível multiplicidade dos enunciados do Thesaurus e, por outro, confirma os membros da comunidade em sua identidade, pelo simples fato de eles manterem uma relação privilegiada com ele.

Todo discurso direto tem uma dimensão mimo-gestual forte, uma teatralidade; o particitador não transgride a regra: é preciso que ele se apague de alguma maneira diante de um hiperenunciador, mesmo se este último não pode ser um locutor propriamente dito. As práticas de particitação são assim ligadas a ethos discursivos característicos que cavam um desnivelamento enunciativo, o locutor, mostrando com isso que ele é apenas o porta-voz contingente de uma Fala vinda não importa de onde, passível de ser assumida não importa por que membro da comunidade.

Para ser preciso, já se pode distinguir entre dois grandes tipos de hiperenunciador, segundo se possa ou não lhe atribuir PDV.

Quando o hiperenunciador é individuado (Deus) ou quando se trata de um tipo de um SUJEITO UNIVERSAL dóxico (provérbios, adágios...), pode-se lhe atribuir a responsabilidade de conteúdos proposicionais. Com um hiperenunciador individuado, a explicitação desses conteúdos deve passar por uma hermenêutica mais ou menos codificada: o que Deus nos quer dizer com isso? Por outro lado, quando não se trata de um hiperenunciador individuado ou dóxico (corpus humanista, contos populares, orações...), a situação é mais delicada. Trata-se, neste caso, mais de uma instância responsável por uma memória do que uma consciência propriamente dita. Certamente, fala-se comumente de “espírito” de um grupo, mas trata-se de um ethos mais ou menos especificado, não de conteúdos proposicionais. No limite, isso pode ser uma identidade sem propriedades semânticas especificadas: particitar um verso de um poeta célebre corresponde a mobilizar uma instância de hiperenunciação inominável, aquela que dá sustentação ao patrimônio artístico, cultural, etc de uma comunidade.

Essa problemática do hiperenunciador se inscreve numa perspectiva mais ampla, que ainda não foi objeto de um tratamento de conjunto na análise do discurso, a das instâncias da enunciação que, na ausência de melhor, poder-se-ia dizer por simples comodidade “complexas”[sic]. Em regra geral, as teorias da enunciação lidam essencialmente com dois tipos de instâncias validantes: individuais e genéricas ou generalizantes (representadas comumente pelo SUJEITO UNIVERSAL da doxa). Na semântica e na filosofia da linguagem, ao contrário, na linha de pensamento do imemorial debate entre nominalismo e realismo, desenvolvem-se ontologias muito mais sofisticadas: que modo de existência deve-se conferir à entidades como “a França”, “o regimento”, “os

Page 96: Unidades tópicas e não-tópicas

jovens”, “a burguesia”, “a opinião pública”, etc.? Os analistas do discurso, por seu lado, abordam essa questão levando em conta a diversidade das práticas discursivas efetivas.

Para além de nosso “hiperenunciador”, pode-se incorporar outras peças a esse inventário. Existe, em particular, o caso dos textos que são objeto de uma elaboração coletiva. Isso recobre fenômenos muito variados, segundo a relação que se estabelece entre os sujeitos que cooperaram e a maneira pela qual o produto final pensa sua própria produção. Por exemplo, a responsabilidade dos textos publicitários é atribuída a um locutor individuado, a marca, cujas propriedades antropomórficas são conhecidas; esses textos são, contudo, notoriamente produzidos por uma agência de publicidade, que os assina de modo extremamente discreto. Existe também certo número de gêneros de discurso que emanam de aparelhos (da ONU aos sindicatos, passando por associações esportivas) em que o texto, atribuído a um enunciador institucional, resulta de uma negociação entre diferentes atores cujo nome figura no documento. Assim sendo, os relatórios do Banco Mundial (Maingueneau, 2000) fornecem a lista dos peritos que se reuniram para fazer o texto. O apagamento da pluralidade dos autores é menor no caso dos relatórios franceses de defesa de tese em letras e ciências humanas. (Dardy, Ducard, Maingueneau, 2002): se o conjunto do texto é de responsabilidade coletiva da banca, entidade indivisível que concede a menção e que é representada por seu presidente, cada parte é de responsabilidade de um único membro dessa banca. Nesse caso não há negociação, mas simples justaposição das contribuições de cada um.

Pode-se evocar também o caso muito banal da imprensa escrita, cujo regime de autoria está longe de ser simples. Cada artigo tem um autor singular, mas a instância que é o jornal transcende essa multiplicidade que encontra o meio de se encarnar no comitê de redação e em seu diretor. É o que permite, por exemplo, dizer que existe um tom específico do Libération, por exemplo, ou que tal jornal tem esse ou aquele posicionamento político.

Poder-se-ia opor, por exemplo, esse “metaenunciador” – que seria o jornal em relação à cada artigo que ele contém – e o “interenunciador” – resultante de uma negociação entre diversos pontos de vista, etc. Mas a coisas se complicam imediatamente: na medida em que essa “interenunciação” emerja da colaboração de pontos de vista convergentes (caso de um grupo unido que redige um panfleto) ou de um compromisso entre pontos de vista opostos (caso de uma moção política redigida por representantes de correntes distintas), na medida em que se trate de um grupo com fins ideológicos, que deve marcar uma posição em um campo, ou de um grupo com fins práticos, que busca apenas fazer funcionar um aparelho, etc.

Pode-se sempre multiplicar os rótulos para distinguir esses variados casos de figura (metaenunciador, multienunciador, plurienunciador, superenunciador, etc.), mas de pronto seria necessário resolver o problema de saber se é possível ou não selecionar categorias de base que, combinando-se, permitiriam explicar a diversidade dos gêneros de discurso atestados. Se tais categorias não existissem, seria necessário renunciar a toda terminologia de alcance global.É plausível que haja essa complexidade das instâncias de enunciação assim como aquela das formas do discurso citado. Os procedimentos de base que permitem citar são limitados, mas a diversidade dos gêneros de discurso, ela própria em estreita relação com a evolução dos suportes materiais, é tal que se descobre sem cessar novas formas de citação, que se confundem com a especificidade de cada um desses gêneros. Entre a estreiteza dos procedimentos de base e a proliferação dos usos do discurso citado, é necessário construir

Page 97: Unidades tópicas e não-tópicas

categorias intermediárias, fundadas sobre grandes partilhas de ordem enunciativa e pragmática que estruturem o universo do discurso.

Page 98: Unidades tópicas e não-tópicas

CENOGRAFIA EPISTOLAR E DEBATE PÚBLICO

Neste artigo, abordarei a carta não como gênero de discurso, mas como cenografia de carta

privada, mobilizada por discursos que pertencem a outros gêneros. Não tratarei de quaisquer gêneros,

mas daqueles que se ligam a debates públicos. Logo, será necessário levar em consideração a

distância constitutiva entre o caráter privado da relação epistolar e o caráter público de seu modo de

existência discursiva.

Esta dupla restrição – restrição do gênero do discurso à cenografia epistolar e restrição da

cenografia epistolar aos gêneros que fazem parte do debate público – exclui, portanto, tanto a carta

privada como gênero, isto é, a “verdadeira” carta de indivíduo a indivíduo, como as cartas,

publicitárias ou administrativas, em particular, que não participam do debate de idéias.

Acabo de falar de “cenografia”, termo que possui para mim um conteúdo preciso, no interior do

que denomino cena de enunciação de um texto. A “cena de enunciação” associa, com efeito, três

cenas de fala, dentre as quais apenas duas estão necessariamente presentes.

A cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso, a seu estatuto pragmático.

Quando recebemos um panfleto na rua, devemos ser capazes de determinar se se trata de algo que

remete ao discurso religioso, político, publicitário, etc., ou seja, devemos ser capazes de determinar

em que cena englobante devemos nos colocar para interpretá-lo, para saber de que modo ele interpela

seu leitor. Caracterização mínima, é verdade, mas que nada tem de intemporal: ela define o estatuto

dos parceiros e um certo quadro espaço-temporal. Não se pode falar de cena administrativa,

publicitária, religiosa, literária, etc., para toda e qualquer sociedade e para toda e qualquer época, e as

relações entre essas cenas variam de uma conjuntura a outra.

A cena englobante não é suficiente para especificar as atividades discursivas nas quais se

encontram engajados os sujeitos. Vemo-nos confrontados com gêneros de discurso particulares,

com rituais sócio-linguageiros que definem várias cenas genéricas. O gênero de discurso implica

um contexto específico: papéis, circunstâncias (em particular, um modo de inscrição no espaço e

no tempo), um suporte material, uma finalidade, etc. Cada gênero ou subgênero de discurso define

o papel de seus participantes: num panfleto de campanha eleitoral, teremos um “candidato”

dirigindo-se a “eleitores”; num curso, teremos um professor dirigindo-se a alunos, etc. A “cena

Texto publicado em SIESS, J. (Org.). La lettre: entre réel et fiction. Paris: SEDES, 1998, p.55-72.

Page 99: Unidades tópicas e não-tópicas

genérica” epistolar faz intervirem propriedades em dois níveis: no nível do gênero e no nível do

subgênero, especificados em função da cena englobante (a correspondência administrativa não

pertence à mesma cena genérica que a correspondência privada ou publicitária). Porém, no interior

da correspondência privada, se a análise o exigir, podem-se operar subdivisões segundo a visada

pragmática (carta de amor, carta de pêsames, carta de votos, etc.) e segundo o suporte

(correspondência em papel, eletrônica, etc.). Os gêneros e os subgêneros só podem ser

considerados como tais do ponto de vista por intermédio do qual se constrói a classificação: do

ponto de vista do gênero epistolar, a carta de amor é um subgênero, mas ela é também um dos

gêneros da expressão dos sentimentos amorosos. Na medida em que os gêneros são instituições de

fala sócio-historicamente definidas, sua instabilidade é grande, e eles não se deixam apreender em

taxinomias compactas.

Estas duas “cenas”, englobante e genérica, definem em conjunto o espaço estável no interior

do qual o enunciado ganha sentido, isto é, o espaço do tipo e do gênero de discurso. Em muitos

casos, a cena de enunciação reduz-se a essas duas cenas; porém, uma outra cena pode intervir, a

cenografia, a qual não é imposta pelo tipo ou pelo gênero de discurso, sendo instituída pelo

próprio discurso.

Consideremos, por exemplo, as dez primeiras Provinciais de Pascal, texto ao qual retornaremos

no presente artigo. De um ponto de vista genérico, trata-se de um conjunto de libelos44, jansenistas,

no caso, inscritos em uma controvérsia religiosa. Esses libelos não se apresentam como tais, mas

como uma série de “cartas” dirigidas sucessivamente a um amigo na província. Aqui, a cena epistolar

não é uma cena genérica, mas uma cenografia construída pelo texto, a cena de fala da qual o texto

pretende originar-se. Esses libelos poderiam ter se manifestado por meio de cenografias bem

diferentes sem que se alterasse por isso a cena genérica. A cenografia epistolar, como qualquer

cenografia, tem inevitavelmente por efeito fazer passar a cena englobante e a cena genérica ao

segundo plano, de modo que o leitor se encontre preso numa armadilha: se a cenografia é bem

explorada, ele recebe esse texto primeiramente como uma carta, e não como um libelo.

A escolha da cenografia não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua

cenografia, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. O discurso impõe

sua cenografia de algum modo desde o início; mas, de um outro lado, é por intermédio de sua própria

enunciação que ele poderá legitimar essa cenografia que ele impõe. Para isso, é necessário que ele

44 N.T. : «Escrito, geralmente curto, difamatório, injurioso ou satírico», segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Page 100: Unidades tópicas e não-tópicas

faça seus leitores aceitarem o lugar que ele pretende lhes designar nessa cenografia e, de modo mais

amplo, no universo de sentido do qual ela participa. Toda tomada de palavra é, com efeito, em

diversos graus, incursão em um risco, sobretudo quando se trata de gêneros ou de tipos de discurso

que têm necessidade de se impor contra outros pontos de vista e de provocar uma adesão que está

longe de ser já dada.

Em uma cenografia associam-se uma figura de enunciador e uma figura correlata de co-

enunciadores. Esses dois lugares supõem igualmente uma cronografia (um momento) e uma

topografia (um lugar), das quais pretende originar-se o discurso. Trata-se de três pólos

indissociáveis: em certo discurso político, por exemplo, a determinação da identidade dos parceiros

da enunciação (“os defensores da pátria”, “cidadãos honestos”, “administradores competentes”,

“excluídos”, etc.) está em sintonia com a definição de um conjunto de lugares ("a França eterna", "o

país dos Direitos do homem", "a encruzilhada da Europa", "a Europa cristã", etc.) e com momentos

de enunciação ("um período de crise profunda", "uma fase de mutação econômica", etc.) a partir dos

quais o discurso pretende ser proferido, de modo a fundar seu direito à palavra.

Para desempenhar plenamente seu papel, a cenografia não deve, portanto, ser um simples

quadro, um elemento de decoração, como se o discurso viesse ocupar o interior de um espaço já

construído e independente desse discurso: a enunciação ao se desenvolver esforça-se por instituir

progressivamente seu próprio dispositivo de fala. Ela implica, desse modo, um processo de

enlaçamento paradoxal. Desde sua emergência, a palavra supõe uma certa situação de enunciação, a

qual, com efeito, é validada progressivamente por meio dessa mesma enunciação. Assim, a

cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunciado que,

retroativamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa cenografia de onde se origina a palavra é

precisamente a cenografia requerida para contar uma história, para denunciar uma injustiça, etc.

Quanto mais o co-enunciador avança no texto, mais ele deve se persuadir de que é aquela cenografia,

e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo discurso.

Uma cenografia só se manifesta plenamente quando ela pode dominar seu desenvolvimento,

manter uma distância em relação ao co-enunciador. Em contrapartida, em um debate, por exemplo, é

muito difícil que os participantes possam enunciar por intermédio de suas cenografias: eles não

possuem o domínio da enunciação e devem reagir sem demora a situações imprevisíveis suscitadas

pelos interlocutores. Em situação de interação viva, o que passa ao primeiro plano é, na maioria das

vezes, a ameaça das faces e o etos.

Page 101: Unidades tópicas e não-tópicas

Escolhemos um exemplo de gênero de discurso, o libelo religioso, suscetível de cenografias

variadas. Existem, em contrapartida, gêneros de discurso cujas cenas enunciativas estão a princípio

reduzidas a suas cenas englobante e genérica : a correspondência administrativa, os relatórios de

peritos, as receitas médicas, etc., conformam-se às rotinas de sua cena genérica.

Outros gêneros do discurso são mais suscetíveis de produzir cenografias que se afastam de um

modelo preestabelecido, mesmo que este não seja o caso mais freqüente. Assim, um fait divers ou um

manual de gramática obedecem a rotinas, e tal obediência não implica que se tornem pouco naturais.

Pode-se imaginar que um fait divers adote uma cenografia policialesca ou que um manual de

gramática adote a cenografia de uma narração iniciática.

Nessas condições, podemos distribuir os gêneros numa linha contínua que teria como pólos

extremos :

- de um lado, os gêneros, pouco numerosos, que se limitam à sua cena genérica, que não

suscitam cenografias (por exemplo, o catálogo telefônico, as receitas médicas, etc.);

- de outro, os gêneros que por natureza exigem a escolha de uma cenografia: é o caso dos

gêneros publicitários, literários, filosóficos, etc. Há publicidades que apresentam cenografias de

conversação, outras, de discurso científico, etc. Há também uma grande diversidade de cenografias

que permitem constituir a situação de enunciação narrativa de um romance.

Entre esses dois extremos situam-se os gêneros suscetíveis de cenografias variadas mas que, na

maioria das vezes, limitam-se à sua cena genérica de rotina.

Uma tal variação mostra-se plenamente ligada à finalidade dos gêneros de discurso. O catálogo

telefônico, que não admite cenografia, é um gênero puramente utilitário. Em contrapartida, os

gêneros publicitários mobilizam cenografias variadas na medida em que, para persuadir seu

destinatário, devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade por intermédio de uma cena de

fala que seja valorizadora para o enunciador assim como para o co-enunciador.

Conforme o dissemos anteriormente, nossa contribuição neste artigo volta-se para a cenografia

da “carta pública”. Não se trata de uma categoria genérica bem fundada, mas que permite agrupar

comodamente um certo número de textos. “Público” deve aqui ser tomado em dois sentidos:

- trata-se de textos concebidos para serem difundidos em uma ampla coletividade, que não

se destinam a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos;

- trata-se, além disso, de cartas que visam participar diretamente de um debate público

existente ou que visam inaugurar um debate desse mesmo tipo.

Page 102: Unidades tópicas e não-tópicas

Poderíamos considerar que As ligações perigosas45 pertencem ao domínio dessa noção de

« carta pública », já que são impressas para um grande público e intervêm em diversos debates sobre

a educação, a moral, etc. Com efeito, parece-me não se tratar de cartas « públicas » nem no primeiro

sentido, nem no segundo. Não são na verdade cartas, mas um romance por cartas ; trata-se de um

agenciamento, cujas cartas são tão-somente os constituintes. Além disso, mesmo que esse livro

tivesse intenções políticas, no sentido amplo, mesmo que ele alimentasse debates, uma tal visada

somente poderia ser indireta. Nós apenas consideramos aqui os gêneros que têm por finalidade

declarada alimentar o debate público. Nosso objetivo centra-se com efeito em cenografias de carta

privada em gêneros não epistolares que visam agir sobre o espaço público. Ora, existem também

cartas públicas nas quais é a cena genérica que é epistolar. Esse é o caso em particular das « cartas

abertas ». No que nos interessa aqui, essa distinção não é significativa: a cena genérica epistolar

encontra-se em pé de igualdade com o seu estatuto, seu modo de intervenção, ao passo que a carta

privada servindo de cenografia a um gênero do debate público mantém por natureza uma tensão com

seu modo de intervenção. Em tais cenografias não lidamos com cartas privadas que foram desviadas

e endereçadas a um grande público, mas com uma encenação pública da relação epistolar privada, em

um fenômeno de dupla enunciação que pode assumir formas muito diversas. Considerando que uma

correspondência privada deve supostamente ter em vista apenas indivíduos, a carta pública como

cenografia somente pode ser da ordem do tropo: ela não pode ser recebida literalmente, mas sob o

modo do « como se ».

Para textos desse tipo pode-se falar de « tropo » já que o destinatário oficial dessas cartas, o

receptor endereçado, não é o seu destinatário principal, a saber, a opinião pública. Com relação à

interação oral, C. Kerbrat-Orecchioni fala de « tropo comunicacional » na seguinte situação:

«Existe tropo comunicacional cada vez que se opera, sob a pressão do contexto, uma inversão

da hierarquia normal dos destinatários, isto é, cada vez que o destinatário que, em virtude dos

índices de alocução, desempenha em princípio o papel de destinatário direto não representa

senão um destinatário secundário, enquanto o verdadeiro alocutário é na realidade aquele que

possui aparentemente o estatuto de destinatário indireto.»46

Em se tratando de textos escritos considerados no interior de um denso interdiscurso, em se

tratando de textos com cenografia, vemo-nos evidentemente obrigados a afinar esta primeira

caracterização para dar conta de sua complexidade.

45 N.T. : Romance epistolar de Choderlos de Laclos, publicado em 1782. 46 Les interactions verbales, I, Paris, A Colin, 1990, p.92.

Page 103: Unidades tópicas e não-tópicas

A priori a correspondência privada implica um certo número de condições. Cito em particular as

seguintes:

- a comunicação de indivíduo a indivíduo;

- o caráter diferido da enunciação (o leitor lê o texto em uma situação que não coincide com

a situação de sua produção);

- a possibilidade, e mesmo a obrigação moral, de uma resposta;

- o caráter único do texto (o que o distingue do impresso) ;

- um certo número de propriedades da conversação (liberdade de tema, de tom, variedade dos

temas abordados, recusa de toda espécie de « jargão », etc.).

Quando a carta privada se torna cenografia de um gênero de debate público, ela não explora

evidentemente todas essas virtualidades, mas privilegia algumas delas, em função de seu

posicionamento ideológico e da cena genérica à qual está associada. Podemos percebê-lo nos dois

textos que ilustrarão nossa reflexão: as dez primeiras Provinciais de Pascal e a « Carta a todos os

franceses », pela qual François Mitterand apresentou seu programa aos eleitores por ocasião da eleição

presidencial de 1998. Se a última privilegiou a dimensão de intimidade, uma vez que se supõe que a

carta se dirija de um membro da família a outro, as Provinciais enfatizam, dentre outros elementos, o

distanciamento em relação ao jargão teológico e a liberdade de tom.

Esses dois textos são muito diferentes em vários aspectos: não apenas pelo tipo de discurso ou

pela época que lhes correspondem, mas ainda pelo dispositivo de enunciação mobilizado. Não os

abordamos por intermédio da oposição tradicional entre « fundo » (a mensagem a ser transmitida) e

« forma » (a escolha de uma cenografia epistolar para transmiti-lo), mas numa perspectiva de análise

do discurso, remetendo essas cenografias aos campos discursivos nos quais elas intervêm, recusando

dissociar um « conteúdo » ideológico e um « quadro » pragmático.

A cenografia epistolar é explorada nesses dois textos de uma maneira que chamou a atenção

quando eles surgiram. Esse não é sempre o caso. Com bastante freqüência – e muito particularmente

na época clássica, que constitui de algum modo sua idade de ouro – a carta não é senão uma fôrma

passe-partout que permite, ao endereçar um texto («Carta a X a respeito de Y»), melhor inscrevê-lo

em um debate. Compreende-se que a carta se preste tão bem a esse papel. A exemplo do diálogo, ela

possui um estatuto de algo que se poderia chamar de «hipergênero» autoral. Se tantos textos da

Antigüidade e da Europa clássica adotaram essas cenografias é sem dúvida porque carta e diálogo são

estruturas genéricas com coerções pobres e que mantêm uma relação íntima com a conversação. A

Page 104: Unidades tópicas e não-tópicas

carta e o diálogo podem veicular todas as espécies de conteúdos e se prestam às situações de

comunicação mais variadas, explorando de maneiras diferentes esta forma básica da comunicação

verbal que é a troca de indivíduo a indivíduo. A carta pública pode, portanto, corresponder a

dispositivos extremamente diversos que a priori não poderíamos listar exaustivamente.

A categorização genérica mais difundida para as cartas que intervêm em debates públicos é a

da « carta aberta », cujo exemplo mais famoso é o «Eu acuso»47 de Zola. Porém, este dispositivo da

« carta aberta » não convém nem às dez primeiras Provinciais, nem à « Carta » de F. Mitterand,

textos nos quais a relação epistolar se prende à cenografia. A carta aberta dirige-se, com efeito, a dois

destinatários ao mesmo tempo, sendo um deles o destinatário atestado e o outro o público dos leitores

da publicação. Assim, « Eu acuso » é dirigido a um destinatário atestado, o presidente da República

(de onde o subtítulo « Carta ao presidente da República »), mas também aos leitores de « A Aurora »

e, para além deles, ao conjunto da opinião. Esse é também o caso das Provinciais 11 a 16 e 17 a 18,

que são dirigidas respectivamente « aos reverendos padres jesuítas » e « ao reverendo padre Annat,

jesuíta », mas que são difundidas clandestinamente junto ao grande público.

Nossos dois exemplos apresentam características diferentes e mobilizam uma estrutura de

dupla enunciação menos evidente, introduzindo uma instância aparentemente supérflua no processo

de comunicação. As Provinciais 1 a 10 não se dirigem a um destinatário atestado, mas constroem a

ficção de uma troca epistolar entre um cavalheiro48 de Paris e um de seus amigos de província :

«Carta escrita a um provincial por um de seus amigos ». A segunda carta é mesmo seguida de uma

breve « Resposta do Provincial às duas primeiras cartas de seu amigo», a qual faz da terceira carta

uma carta « para servir de resposta à precedente ». Porém, essa estrutura de troca epistolar não irá

muito longe porque essa « Resposta » serve principalmente para citar duas outras cartas, a de um

membro da Academia Francesa e a de « uma pessoa » a « uma dama », dois epistoleiros que

representam de algum modo o público-alvo desses panfletos. Nessas cartas, a ficção da

correspondência privada permite, com efeito, construir dois lugares: o de um cavalheiro epistoleiro

não versado em teologia e o de um destinatário de província também pouco versado em teologia; o

primeiro pretende, por intermédio de suas cartas, manter o segundo informado de um caso que é

então bastante divulgado, a saber, que a Sorbonne ameaça condenar certas proposições do teólogo 47 N.T. : Carta redigida pelo escritor Emile Zola e publicada no jornal L’Aurore, em 13/01/1898, dirigida ao presidente da República, Félix Faure, na qual Zola toma a defesa de Alfred Dreyfus. A referência à carta pelo título «Eu acuso» (no original, «J’accuse») deve-se ao fato de haver sido reproduzido na primeira página de L’Aurore, com destaque, o sintagma «J’accuse» que Zola repetia várias vezes ao final de sua carta, fazendo críticas e reprovando a atitude assumida na ocasião por oficiais de alta patente.48 N.T. : No original, honnête homme, termo que compreende a idéia de cidadão honesto, digno, íntegro.

Page 105: Unidades tópicas e não-tópicas

jansenista Antoine Arnault relativas à graça. Pouco a pouco, a partir da carta 4, as cartas vão estender

o campo da polêmica às práticas dos casuístas, que são encenadas por intermédio do personagem de

um gentil padre jesuíta com o qual o escrevedor49 mantém contato.

A partir da carta 11, como pudemos percebê-lo, o dispositivo muda, uma vez que lidamos

então com cartas abertas. Essa mudança de dispositivo de comunicação corresponde a uma mudança

radical de ethos: enquanto o escrevedor ? das dez primeiras cartas se apresenta por seu discurso como

um homem do mundo distanciado e irônico, aquele que escreve as cartas seguintes assume

diretamente seu estatuto de jansenista para interpelar violentamente, e mesmo com um tom profético,

os adversários efetivos dos jansenistas. Nas dez primeiras cartas, a submissão do escrevedor ? ao

ethos e às normas da carta mundana é condizente com o caráter fictício da cenografia epistolar: a

carta é de um « provincial » em teologia a um outro provincial, ela finge ignorar que constitui um

panfleto que se dirige também a adversários do campo religioso. Em contrapartida, nas cartas abertas

11 a 18, o caráter epistolar permite estabelecer uma estrutura de interpelação direta desses

adversários, sem passar por um desvio de ficção. Desse modo, constrói-se um lugar de destinatário

para o público visado indiretamente pelo próprio modo de difusão da cenografia escolhida, público

explicitamente designado como « as pessoas do mundo », « as próprias mulheres » («Resposta do

Provincial»). «O provincial» permite designar o lugar de leitura dessas « pessoas do mundo », que

são elas também « provinciais» em matéria de controvérsia teológica. Porém, esse destinatário-

modelo instituído pela cenografia que explora um gênero mundano, a carta, não exclui a existência

de um outro destinatário, o qual não é requerido nem por uma interpelação direta, nem pela

cenografia mundana, mas pela própria situação de controvérsia na qual se inscrevem as Provinciais :

os atores «profissionais» do debate teológico (jansenistas, neotomistas, molinistas, etc.). Esse texto

inscreve-se, com efeito, em uma longa cadeia de outros escritos de controvérsia dos quais não faz

senão retomar o conjunto de argumentos; desse modo, ele tem como público natural por definição o

público dessa controvérsia tal como ela se desenvolveu até então. Lidamos aqui com o equivalente de

uma « história conversacional », com uma controvérsia, precisamente. E, aliás, são os atores

profissionais que responderão por intermédio de uma série de outras cartas às quais se faz alusão

desde as primeiras palavras da carta 11: «Vi as cartas que o senhor tem monotonamente redigido em

relação às que escrevi a um de meus amigos a respeito de sua moral». Nessas dez primeiras cartas,

podemos, portanto, distinguir dois destinatários, com estatutos distintos:

49 N.T. : Na tradução de scripteur, adotaremos a forma dicionarizada escrevedor, ou ainda a forma analítica aquele que escreve, de modo a evitar a confusão com écrivain (escritor).

Page 106: Unidades tópicas e não-tópicas

- as pessoas do mundo, destinatário-modelo da cenografia da carta mundana, cujo lugar é

marcado pelo « provincial » e designado explicitamente pela «Resposta do Provincial»; esse

destinatário deve ser convertido em público efetivo;

- o público já constituído pela história da controvérsia, a acumulação dos escritos e de suas

respostas de ambas as partes no curso de vários anos.

Avancemos agora mais de três séculos para considerar a «Carta a todos os franceses» do

presidente-candidato François Mitterand. Sua cena englobante é aquela determinada pelo tipo de

discurso, no caso, o discurso político; sua cena genérica é a do programa eleitoral; sua cenografia é a

de uma carta, uma correspondência privada. O leitor da «Carta» encontra-se simultaneamente às

voltas com essas três cenas, uma vez que é interpelado ao mesmo tempo como cidadão (cena

política), como eleitor da eleição presidencial (cena do gênero de discurso) e como indivíduo que

recebe uma carta (cena reivindicada pelo texto). O quadro cênico do texto (cena englobante e cena

genérica) é, porém, relegado a um plano secundário em proveito da cenografia epistolar que

constitui seguramente um afastamento em relação às normas então dominantes da comunicação

política. Desse modo, o leitor cai numa espécie de armadilha, pois é levado a receber esse texto

como uma correspondência privada, não como propaganda eleitoral. Porém, trata-se apenas da

pretensão ilocutória da enunciação, do quadro pragmático que o discurso pretende impor: é

previsível que um grande número de eleitores, principalmente os que se opõem a Mitterand,

invertam a hierarquia e enxerguem tão-somente o quadro cênico e, assim, para os eleitores, tudo

não passará de propaganda socialista.

Todo discurso pretende convencer fazendo reconhecer a cena de enunciação que ele impõe e

por intermédio da qual se legitima: o homem político que apresenta sua enunciação por intermédio

de uma cenografia de correspondência privada, e não por intermédio de um relato de perito ou de

uma conversa diante da lareira, pressupõe pragmaticamente que uma tal cenografia não é um

simples vetor, mas algo que define um lugar de discurso comum para seus co-enunciadores, um

lugar de discurso condizente com o sentido a ser liberado. Como já o dissemos, a cenografia vem

legitimar o enunciado que, a seu turno, mostra, por intermédio de seu conteúdo, que a cenografia da

correspondência privada é condizente com as palavras proferidas pelo candidato.

Nas Provinciais, percebia-se um distanciamento entre a cena genérica do panfleto religioso e

a cenografia da carta mundana; por sua vez, a «Carta» de F. Mitterand implica uma tensão entre a

cena genérica do programa eleitoral de um presidente a ser eleito pelo sufrágio universal e a

Page 107: Unidades tópicas e não-tópicas

cenografia da correspondência privada. Aliás, desde o início do texto, o autor sente a necessidade de

denegar que seu enunciado pertença ao gênero «programa eleitoral»:

«Não lhes apresento um programa, no sentido habitual da palavra. Eu o fiz em 1981, quando

estava na direção do Partido socialista. Um programa, com efeito, é algo que diz respeito aos

partidos.»

Notamos, contudo, que a modalização autonímica «no sentido habitual da palavra» permite

não ultrapassar a fronteira da noção; aqui o enunciador «joga» com a noção de programa,

permanecendo em seu interior. Enquanto nas Provinciais a ficção epistolar rompia nitidamente com a

cena genérica do panfleto para constituir para si um novo público, aqui o enunciador se recusa a

oferecer uma distinção categórica: a cenografia não deve ocultar a cena genérica.

A dificuldade experimentada por F. Mitterand não é nova. Em um estudo sobre o uso dos

substantivos « programa», « projeto », « proposição » nas eleições legislativas de 197850, J.

Bastuji mostrou que a escolha dessas denominações genéricas era uma coerção da língua; como

« programa » – termo então adotado pelo « Programa comum da Esquerda » – implicava

sujeito coletivo e sistematicidade, o Partido Republicano e o RPR51 escolheram outros nomes no

paradigma dos nomes em pro-, prefixo associado a um esquema de movimento para a frente :

« projeto » e « proposições » eram palavras vistas como mais harmônicas com suas opções

políticas liberais. Dez anos mais tarde, na campanha de F. Mitterand, o recurso a uma

cenografia epistolar torna ainda mais delicado o uso de « programa » : o enunciador se

apresenta como sujeito que fala em seu próprio nome e estabelece uma oposição entre o

representante de partido que ele era e o indivíduo que ele se tornou pela unção presidencial.

Essa cenografia da correspondência privada invoca ela mesma a caução de uma outra

cena de fala : « espécie de reflexão em comum, como acontece de noite, em torno da mesa, em

família ». Assim, o eleitor não somente é alguém que deverá ler uma carta, mas também deverá

participar imaginariamente de uma conversa em família na qual o presidente assume

implicitamente o papel do pai. Esse encaixamento de uma cena de fala em uma outra nada tem

de surpreendente: as cenografias se apóiam freqüentemente em cenas de fala que denomino

validadas, isto é, já instaladas na memória coletiva, seja a título de algo que se rejeita ou de

modelo valorizado. A conversa em família durante a refeição é o exemplo de uma « cena

50 « Sémantique, pragmatique et discours », in Linx, Université de Paris X, n°4, 1981, p.7-45.

51 N.T. : RPR -Rassemblement pour la République, partido neogaullista assim denominado desde dezembro de 1976 e cujas origens remontam à Union pour la Nouvelle République, de 1959.

Page 108: Unidades tópicas e não-tópicas

validada » positiva na cultura francesa. O repertório dessas cenas varia em função do grupo

visado pelo discurso, mas, de modo geral, a qualquer público, por vasto e heterogêneo que seja,

pode-se associar um estoque de cenas que podemos considerar como compartilhadas. A « cena

validada » se apóia em um estereótipo descontextualizado, popularizado pela mídia. Produz-se

no discurso uma interação entre cenografia e cena validada ; é evidente, em particular, que a

cena validada da refeição em família acentua o caráter privado do epistolar.

O leitor da « Carta a todos os franceses » recebe, pois, simultaneamente, um fragmento

de discurso político, um programa eleitoral e uma carta pessoal que se apresenta ela mesma

como uma discussão em família. Essa cena validada é, aliás, retomada no final da « Carta » :

«Começando esta carta, eu escrevia que falaria aos senhores como em torno da mesa, em

família. Essa última palavra não me veio por acaso. Nasci, vivi minha juventude no seio de

uma família numerosa. As lições que dela recebi permanecem sendo minhas mais seguras

referências. »

Se, como foi visto, existe tensão entre a cena genérica de programa eleitoral e a cenografia da

“Carta”, existe também tensão entre essa cenografia e a cena validada da discussão em família: a

discussão é uma interação viva, enquanto uma carta supõe uma enunciação monologal. Essa tensão

não pode ser verdadeiramente suprimida; ela é parcialmente mascarada pelo movimento do texto:

«Escolhi este meio, escrever-lhes, a fim de me expressar acerca de todos os grandes temas

que merecem ser tratados e debatidos entre franceses, espécie de reflexão em comum, como

acontece de noite, em torno da mesa, em família ».

Com efeito, a supressão da tensão é puramente verbal. O grupo nominal “reflexão em

comum” joga nos dois campos: “reflexão” caminha no sentido de pensamento pessoal e “em

comum”, no sentido de discussão. Porém, como pode uma carta ser uma “reflexão em comum”? É na

dinâmica da leitura que se suprime praticamente a dificuldade.

A “Carta” coloca em relação uma comunidade de eleitores-destinatários e um enunciador-

candidato que, por sua enunciação, encontra-se excluído de tal comunidade. Por outro lado, o texto

esforça-se por apresentar destinador e destinatário como pertencendo à mesma comunidade, o que se

verifica nas fórmulas de endereçamento “meus caros compatriotas” e “entre franceses”.

Essa comunidade inclusiva52 é precisamente designada por uma série de entidades que

remetem à não-pessoa: « a França», « a República », «nosso país», « a Nação ». A maiúscula institui

52 Inclusivo deve aqui ser tomado no sentido de um « nós » inclusivo, que compreende simultaneamente o eu e o você.

Page 109: Unidades tópicas e não-tópicas

os referentes em conjuntos transcendentes em relação à diversidade empírica de seus membros, ao

passo que o “nosso” inclusivo apaga a alteridade do destinatário. A frase pela qual o enunciador se

exclui dos partidos (« Um programa, com efeito, é algo que diz respeito aos partidos. Não ao

presidente ou a quem aspira a tornar-se presidente») caminha no mesmo sentido: entre aquele que

escreve e os franceses não se interpõe nenhuma divisão, a “Carta” circula na homogeneidade de uma

comunidade reunida imaginariamente.

A essa série de entidades com valor inclusivo opõe-se seu complementar, a saber, o universo

exterior à França, marcado por “on”53 e por “o mundo”. Esses dois designativos possuem a

particularidade de poderem se referir ao complementar sem excluir os coenunciadores. Com efeito,

se concordamos com o que propõe Evelyne Saunier54, o «on»  marca a construção de uma instância

subjetiva sem que entre em consideração a alteridade verificada entre enunciadores / co-enunciadores

/ não-enunciadores. Em outras palavras, o “on” se refere a um ser humano abstraindo o que diz

respeito a seu estatuto enunciativo. O efeito produzido aqui é nítido: o “on”, por definição, não

coincide exatamente com os coenunciadores, mas nem por isso os exclui enquanto seres humanos.

Isto permite isolar a comunidade nacional, reunida “em família”, e, simultaneamente, não dissociá-la

do resto da humanidade, que se supõe esperar algo da França. O designativo “o mundo” vai no

mesmo sentido, uma vez que ele distingue os coenunciadores do resto dos humanos, sem, contudo,

excluir do mundo a França. Com efeito, essas referências de formas pessoais55 não devem ser

dissociadas da cenografia da correspondência privada, que pressupõe pragmaticamente aquilo de que

ela fala: o texto se refere a uma comunidade de franceses que, de certo modo, é constituída por essa

carta que pretende circular no interior de um espaço de pessoas íntimas. O dito e o dizer se sustentam

reciprocamente.

Um programa eleitoral que se apresenta como uma carta faz, desse modo, mais do que apenas

incorporar um conteúdo que lhe é independente: o discurso de F. Mitterand pôde ter um impacto,

pôde chamar a atenção numa dada conjuntura porque precisamente a cenografia da “Carta” não era

um mero procedimento. A esse respeito, o discurso político é comparável a outros tipos de discurso.

Se um filósofo coloca na forma de diálogo um pensamento que nada tem de dialógico, esse diálogo

será percebido como mera roupagem retórica.

53 N.T. : Forma pronominal do francês que, em português, corresponde, grosso modo, a « a gente », « alguém » ou ao índice de indeterminação do sujeito « se ».54 Identité lexicale et régulation de la variation sémantique, Tese de Doutorado de Lingüística, Paris X, 1996, p.428 e seguintes.55 N.T. : No original, repérages personnels.

Page 110: Unidades tópicas e não-tópicas

Para que uma cenografia faça, portanto, sentido, é preciso que esteja em harmonia não apenas

com os próprios conteúdos que sustenta, mas também com a conjuntura na qual intervém. Já

tratamos do primeiro aspecto, colocando em evidência o modo pelo qual o enunciado, já desde suas

primeiras linhas, justifica sua cenografia: a «carta» contesta a cena genérica do « programa » e

permite definir uma comunidade política imaginária. Quanto ao segundo aspecto, é ele que

possibilita à cenografia uma «relação ativa» sobre a conjuntura histórica; é nesse nível que a

analisamos como um “golpe” de política56, sintomático de um certo estado da comunicação política

na França. Certamente uma tal cenografia da correspondência privada participa de um movimento de

fundo da comunicação política, onde o discurso tende a se contentar com a singularidade biográfica

de sua fonte.

Isso permite atenuar a diferença em relação à cenografia epistolar das Provinciais. Pode-se ter

a impressão de que a “Carta a todos os franceses” tem apenas um destinatário, sendo o leitor evocado

na interpelação presente no título o único público capaz de ser considerado pelo discurso. De fato,

nos dois casos, podemos considerar que lidamos com uma dupla enunciação, uma enunciação

dirigida simultaneamente a dois destinatários. Isto é evidente no que concerne ao panfleto jansenista,

que visa ao mesmo tempo, tacitamente, ao “público genérico”, isto é, ao público dessa controvérsia, e

diretamente aos cavalheiros, por intermédio do lugar de leitura cuidadosamente construído para a

figura do “provincial”. No caso da “Carta a todos os franceses”, em contrapartida, parece não haver

senão um único destinatário, os eleitores, leitor-modelo e público genérico, mas podemos afirmar que

existe um segundo destinatário: no universo midiático do qual participa essa enunciação, o

destinatário indireto são os comentadores políticos e os jornalistas, cuja função é glosar o ato

enunciativo presidencial. Produto de uma equipe de comunicação, a “Carta” é um signo destinado a

entrar em um circuito previsível de modos de agir e de interpretações.

A relação entre os dois destinatários não é, contudo, a mesma para os dois discursos.

Poderíamos dizer que as Provinciais jogam um destinatário contra o outro: elas desejam seduzir os

cavalheiros, destinatário implicado, para atacar repentina e inesperadamente os aparelhos

eclesiásticos, destinatário genérico da controvérsia. Aqui, a opinião deve exercer uma pressão

significativa sobre uma parte desse público genérico, as autoridades eclesiásticas, que estão a ponto de

condenar os jansenistas na pessoa de Antoine Arnauld.

56 Cf. P. Lehingue et B. Pudal : «A «Carta a todos os franceses» caracteriza-se por sua diferença expressiva com as enformagens (N.T. : no original, mises en forme) esperadas e tidas como performantes do marketing político. Ela retoma aparentemente um gênero depreciado, considerado como obsoleto" » (art.cit. p.165).

Page 111: Unidades tópicas e não-tópicas

Por sua vez, a “Carta” deseja seduzir os eleitores, seduzir a opinião, destinatário implicado,

dirigindo-se a aparelhos midiáticos, destinatário segundo; porém, nesse caso, não se estabelece uma

oposição entre os dois destinatários, uma vez que se trata, pelo contrário, de mobilizar a mídia a

serviço de uma efetiva sedução do destinatário invocado. Postula-se que é a mídia que pode

influenciar a opinião por intermédio dos discursos que ela vai produzir acerca dessa “Carta”. Há

convergência desejada entre os dois destinatários.

Quanto à “Carta”, ela vai coroar um tipo de discurso político no qual o eleitor é cada vez

menos construído como sujeito político abstrato, sendo, antes, construído como indivíduo, o que é

correlato de uma posição de enunciador que se qualifica como indivíduo dotado de uma biografia e

de uma imagem singulares, e não como porta-voz de um coletivo ou como suporte de uma doutrina.

Avancemos um pouco mais: a própria escolha de uma cenografia epistolar privada distancia-se

igualmente do que se poderia considerar como sendo a nova norma da comunicação política, a saber,

a televisão. Ao empunhar a caneta, colocando em cena o ato de fabricação artesanal dessa carta por

intermédio de uma apropriada publicidade midiática bastante intensa, não se caminha, com efeito, no

sentido contrário: o candidato-presidente coloca-se à distância, como um homem que representa

princípios fundamentais, um homem da palavra inscrita, imemorial, dos verdadeiros valores, contra

os que falam de coisas vazias, supérfluas. Em outras palavras, se, na época das Provinciais, a escolha

de uma cenografia mundana permite estabelecer uma conexão ativa entre a controvérsia religiosa e

atividades discursivas «modernas», ao final do século XX a cenografia epistolar no debate político

produz uma equivalência entre a enunciação e atividades discursivas em vias de marginalização. O

que novamente chama a atenção. Aqui, como nas Provinciais, o essencial passa pela cenografia, e

não pelo conteúdo. Não se pode, desse modo, dizer que o recurso a essa cenografia provoque os

mesmos efeitos de sentido; produz-se uma filtragem, uma hierarquização distinta dos valores virtuais

desse gênero de discurso.

Deve-se, portanto, levar plenamente em consideração a dimensão midiológica da

comunicação epistolar. Para que a cenografia epistolar não pareça “chapada” ou “pouco natural”, é

preciso que ela se conecte com outros planos do discurso. Assim, as primeiras Provinciais não se

contentam em exibir alguns sinais de seu pertencimento ao gênero carta, mas ainda adotam o etos, o

código linguageiro, as normas de comunicação que são os vigentes nos gêneros mundanos. A

cenografia da carta, com efeito, não é intemporal, inscrevendo-se, antes, em normas de discursos

situados. Somente dessa forma é que é possível fazer com que os destinatários admitam que essa

Page 112: Unidades tópicas e não-tópicas

questão teológica lhes diz respeito: trata-se de uma questão teológica que lhes concerne uma vez que

se escreve a eles por intermédio de um discurso que é o deles.

Na medida em que se desenvolvem por intermédio de uma cenografia que se opõe claramente

à cena genérica rotineira, essas duas cartas públicas são, além disso, destinadas a chamar a atenção

na ordem do discurso. Aliás, não é indiferente que esses textos tenham deixado vestígios, ainda que

não o tenham feito na mesma escala: eles suscitam comentários e marcam uma inflexão no próprio

estatuto do discurso do qual se originam. Isto os torna algo bem diferente de um simples

“procedimento”. Sabe-se que as Provinciais marcam um deslocamento na distribuição das

autoridades: dirigindo-se ao público dos não-especialistas por intermédio de um código linguageiro

que é o da racionalidade comum encarnada em um certo tipo de francês, as Provinciais implicam

inconscientemente um novo espaço que será o das Luzes. Em meados do século XVII, a carta é uma

instituição de fala com algum poder sobre a rede de comunicação e constitui um dos vetores

privilegiados do pensamento e da sociabilidade: o estabelecimento de uma rede de correspondência

com membros prestigiosos de um espaço social é um sinal maior da importância de sua posição. Em

um mundo no qual a imprensa é embrionária e a carta é muito freqüentemente destinada a grupos de

leitores, uma boa parte das informações de peso passa por ela.

O epistoleiro é um tipo de enunciador individuado e que visa individualmente aos seus leitores,

e não, como é o caso em um livro, uma instância pouco nítida que se dirige a um público

indeterminado. Isto é o que acontece com a “Carta” de F. Mitterand, na qual a cenografia epistolar

coloca em cena uma figura-chave da família francesa, a imagem do pai, que se supõe pertencer à

mesma comunidade que seus destinatários : é a esfera de intimidade que é evidenciada. Aqui, não se

trata de etos irônico, nem do desejo de brilhar para um círculo escolhido (nas Provinciais, é menos a

dimensão de intimidade do que a de mundanidade que é privilegiada), mas de etos simultaneamente

afetuoso e grave que reúne cada família na organicidade da Pátria. Percebe-se que isso está em

sintonia com a definição das comunidades de pertencimento que implica a carta « privada »

(diferentemente da carta «aberta»): a carta privada é vista como devendo circular em uma esfera de

pertencimento que se justifique por intermédio dessa carta mesma. Em uma perspectiva pragmática,

com efeito, é evidente que a carta não se contenta em pressupor a existência de uma rede, de uma

comunidade, mas contribui no sentido de fazer com que tal rede exista e também no sentido de mantê-

la. O cartão postal de férias não é o simples registro de uma relação, mas contribui para constituir tal

Page 113: Unidades tópicas e não-tópicas

relação. Em um caso como no outro, é preciso enunciar por intermédio das próprias normas dessa

comunidade.

A carta pública tira partido dessa propriedade de interpelação convocando o destinatário

indireto; a carta pode ser endereçada a quem quer que seja, pois, de qualquer modo, ela terá

por destinatário um público. A esse respeito estamos muito perto e muito longe da dupla

enunciação teatral: muito perto porque, como no teatro, toda palavra falada dirigida a alguém

no palco também é dirigida ao público; muito longe também porque o teatro é fictício, enquanto

a carta é por essência parte do real. É claro que isso vale essencialmente para a « carta aberta ».

Com efeito, nas Provinciais, a carta é fictícia; contudo, o anonimato permite deixar o público em

dúvida no que diz respeito à autenticidade das cartas. Na época, muitos se esforçaram por

descobrir pessoas reais escondidas por detrás dos personagens da ficção, como se a carta tivesse

por si mesma uma força de autenticidade tal que provocasse imediatamente um efeito

documentário. O autor das Provinciais, aliás, valeu-se desse poder acrescentando cartas de

resposta ao escrevedor, do amigo do provincial, de um « acadêmico » e de uma « mulher do

mundo ». Isso permite representar no próprio texto um modo de difusão que denega a

artificialidade do texto : não é porque o texto é impresso que todo o mundo o lê, mas porque a

carta é passada de mão em mão, porque ela é copiada, no interior de uma elite. Quanto à

« Carta » de Mitterand, ela não tem necessidade de interpelar, de coagir, uma vez que é

legitimada pela cena genérica : por definição, um programa eleitoral é dirigido aos eleitores. O

destinatário não tem nenhuma necessidade de autentificar um texto que está imerso em sua

realidade.

O que é preciso, desse modo, trazer à reflexão é essa mistura de ficcionalidade, ligada ao

caráter privado/público da carta, e de verismo da carta.

Outra diferença entre os dois textos: o modo de recepção que os textos prevêem para si

mesmos. As cartas ao provincial são, antes de mais nada, destinadas a serem lidas. Se aquele que

escreve se submete tão rigorosamente às normas de discursos dos cavalheiros (um texto curto,

irônico, claro, etc.) é precisamente para modelar a opinião desses destinatários. O texto não se

apresenta como autoridade, mas invoca a autoridade de seus leitores, de seu « bom senso ». Em

contrapartida, há uma evidente defasagem entre o peso (a extensão, em particular) do programa

eleitoral e a cenografia da « Carta », que efetivamente apenas consegue tomar ares de carta em

suas duas zonas estratégicas, a saber, na abertura e no fechamento, que são as zonas das quais

Page 114: Unidades tópicas e não-tópicas

todos tomarão conhecimento, segundo se pensa. Na realidade, não se espera que o público leia

integralmente esse texto que excede todo e qualquer perfil de correspondência privada, mas que

o receba como algo da ordem da correspondência privada a ele endereçada por alguém que se

deu o trabalho de escrevê-lo de forma demorada e paciente. Enquanto as Provinciais, texto

clandestino, fora-da-lei, deve cortar o vínculo com suas condições de produção, apresentando-se

como surgindo de um lugar qualquer do meio em que circula, a « Carta » de F. Mitterand

participa de uma campanha na qual vários discursos são produzidos na televisão, nas revistas

ou nos jornais, acerca do processo de elaboração, do sujeito que escreve. Diferença entre as duas

cenografias epistolares que não remetem a condições apenas extrínsecas, mas ao próprio sentido

que elas pretendem instituir. Com efeito, o anonimato do escrevedor e do destinatário está em

sintonia com uma enunciação que pretende tomar por autoridade as regras do bom senso

comuns aos seres dotados de razão : pouco importa de onde venham as regras, uma vez que se

trata de um tribunal de regras universais. Em contrapartida, a «Carta» só pode adquirir sentido

se referida à familiaridade de um presidente-pai já intimamente conhecido, cujas trajetória

biográfica, idade e experiência constituem a autoridade. Somente uma subjetividade em posição

singular na comunidade pode, desse modo, se endereçar aos franceses para dar conhecimento de

seu programa, e mesmo denegar o próprio estatuto de programa.

No caso de cenografia epistolar associada a cenas genéricas, não basta considerar uma

carta pública como sendo uma carta privada desviada e dirigida a um vasto público ; trata-se,

antes, de uma encenação pública da relação epistolar em um fenômeno de dupla enunciação que

pode assumir formas muito diversas.

O que está em questão é saber se a carta pública pode escapar dessa dupla enunciação, se é

possível imaginar uma carta pública que se dirija diretamente a seus leitores. Uma carta pública

é necessariamente da ordem da dupla enunciação pelo próprio fato de seu destinatário

implicado cavar uma distância em relação ao caráter público de seu modo de difusão : há

sempre lugar para o terceiro desconhecido, não nomeado, aquele que não é o destinatário mas

que é aquele a quem se dirige a encenação. Há ainda uma outra coisa: o espaço no qual se

apresenta e circula a carta pública é um espaço midiático, que não pode coincidir com o

conjunto do corpo social. Existe um lugar abstrato no qual circulam os enunciados ideológicos,

um lugar que se encontra aberto a todos aqueles que participam desse lugar conflitual, um lugar

no qual interagem os diversos campos discursivos (filosófico, religioso, político, literário, etc.) e

Page 115: Unidades tópicas e não-tópicas

que ultrapassa o âmbito de qualquer grupo, de qualquer pertencimento, de qualquer limite

como, por exemplo, o limite que a definição explícita de um destinatário pretende construir.

É evidente que não é nunca a esse espaço público que remetem as cartas públicas, mas a

comunidades imaginárias para além de toda e qualquer compartimentalização, o Outro

derradeiro, referente absoluto. Desse modo, para Mitterand, temos a França, a «Pátria», para

além da mídia e daquela eleição em particular, a comunidade transcendente na história; o

mesmo no caso das Provinciais, onde temos a comunidade da Igreja eterna, para além de toda e

qualquer distinção entre os aparelhos eclesiásticos e os cavalheiros, para além da censura da

Sorbonne.

Devemos, portanto, tornar mais complexo nosso esquema, uma vez que a «comunidade de

pertencimento» suposta pela carta privada é dominada por uma «comunidade de transcendência» que

funda a legitimidade do tropo comunicacional implicado pela cenografia epistolar.

Page 116: Unidades tópicas e não-tópicas

O DISCURSO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS: UM DISCURSO

CONSTITUINTE?*

Neste artigo, eu me interesso pelo discurso das organizações internacionais, mais precisamente

por um gênero de discurso privilegiado dessas organizações: o relatório. Diferentemente de outros

gêneros – em particular, aqueles de circulação interna -, os relatórios são, de certa maneira, a

vitrine das organizações internacionais, a representação que elas oferecem de si mesmas para o

mundo exterior.

Existem diversas disciplinas que se encarregam do estudo do discurso, cada uma sendo

dirigida por um interesse específico; aqui, adoto o ponto de vista da análise do discurso que

apreende os enunciados enquanto a imbricação de um texto e de um lugar social. O objeto dessa

análise do discurso não é, portanto, nem a organização textual nem a situação de comunicação, mas

sim aquilo que as une mediante um modo de enunciação. Considerar os lugares independentemente

das falas que eles autorizam ou considerar as falas independentemente dos lugares dos quais elas

são parte pregnante é, portanto, permanecer aquém das exigências que fundam a análise do

discurso.

Esta teoria atribui, assim, um papel central à categoria de gênero de discurso, considerada, para

além da simples exterioridade entre “texto” e contexto”, como um dispositivo de comunicação ao

mesmo tempo social e verbal, historicamente definido. A partir dessa ótica, não serão chamadas de

“gênero” categorias como a narrativa, a descritiva, a polêmica etc., mas sim as práticas verbais como

o jornal cotidiano, a emissão televisiva, a dissertação filosófica etc., relacionadas a uma determinada

sociedade. O analista do discurso privilegia as condições materiais da comunicação, os papéis que

ela implica para seus participantes, os contratos tácitos que se estabelecem entre eles, seu suporte

material, as restrições que pesam sobre a organização textual etc.

Nesta breve contribuição, não pretendo incluir aspectos técnicos na análise lingüística dos

relatórios publicados pelas organizações internacionais, mas simplesmente questionar se eles

relevam ou não dos “discursos constituintes”1.

Esta noção se impõe a mim a partir de pesquisas que realizei, sobretudo a respeito dos discursos

religioso, científico, filosófico, literário. Ao perceber que muitas categorias de análise se transferiam

facilmente de um discurso a outro, fui levado à hipótese de que existia um campo específico no seio

1 Sobre essa noção, ver Maingueneau (1999)

Page 117: Unidades tópicas e não-tópicas

da produção verbal de uma sociedade, aquele dos discursos que eu propus chamar de “constituintes”,

que partilham um certo número de propriedades quanto às suas condições de emergência, de

funcionamento e de circulação.

Para esclarecer a noção de discurso “constituinte”, pode-se partir de uma constatação banal:

quando há debate sobre um problema social, solicita-se a opinião de indivíduos que falam em nome

da religião, da ciência, da filosofia..., pois se trata de discursos que são, supostamente, dotados da

maior autoridade. São, de certa maneira, os discursos últimos, aqueles que, ao se confrontarem com

um Absoluto, conferem sentido aos atos da coletividade; aqueles para além dos quais não há mais do

que o indizível. Zonas de fala entre outras e falas que se pretendem acima de qualquer outra, esses

discursos limites (localizados sobre um limite e expondo o limite) devem administrar textualmente

os paradoxos que seu estatuto implica. Com eles, colocam-se, com toda intensidade, as questões

relativas ao carisma; para não se apoiarem somente sobre si mesmos, eles devem se colocar, na

verdade, como se fossem ligados a uma Fonte legitimadora: estatuto singular de uma posição

enunciativa que participa, ao mesmo tempo, do mundo ordinário dos homens e das forças que o

ultrapassam.

Aqui, o adjetivo « constituinte » explora dois eixos semânticos de constituir e de seu derivado

nominal constituição:

- A constituição enquanto ato de estabelecer legalmente; nós nos inscrevemos, aqui, no

prolongamento de certas correntes pragmáticas que, ao relacionarem estritamente a enunciação à sua

legitimação, caracterizam o discurso como se ele instaurasse as modalidades de sua própria

emergência;

- A constituição enquanto modo de organização, disposição de constituintes; a análise

relaciona-se igualmente às totalidades textuais construídas sobre as relações de coesão/coerência.

Assim, mediante as operações enunciativas por meio das quais se institui o discurso,

articulam-se a organização textual e a organização institucional, que ele, sempre, ao mesmo tempo

pressupõe e estrutura. Trata-se, então, para o analista, de ressaltar a imbricação de uma representação

do mundo e de uma atividade enunciativa. O “conteúdo” do discurso aparece como inseparável da

maneira como ele administra sua própria emergência, o evento de fala que ele institui.

De fato, um discurso constituinte é, ao mesmo tempo, auto- e heteroconstituinte: na verdade,

somente um discurso que se constitui ao tematizar sua própria constituição pode desempenhar um

papel de constituinte em relação aos outros. Isso não significa que os outros vários tipos de

Page 118: Unidades tópicas e não-tópicas

enunciados (as conversações, a imprensa, os documentos administrativos etc) não ajam sobre eles;

muito pelo contrário, há uma interação contínua entre discursos constituintes e não-constituintes,

como há também entre os diferentes discursos constituintes. Mas é da natureza desses últimos negar

esta interação ou querer submetê-la a seus princípios.

Os discursos constituintes são variados e concorrentes, mesmo que cada um tenha, em um

momento ou outro, a pretensão de ser superior. Durante muito tempo, o discurso filosófico atribuiu a

si mesmo o direito de delimitar o lugar dos outros (religião, ciência, literatura); pretensão

constantemente contestada por aqueles que ele pretendia subordinar. Quanto ao discurso científico,

ele não pode existir sem evocar, a todo o momento, a ameaça que os outros discursos representam

para ele, os quais, por sua vez, não cessam de renegociar seu estatuto em relação a ele. Essa

pluralidade é irredutível: cada discurso constituinte está indissociavelmente ligado a outro na gestão

dessa coexistência impossível; dessa maneira, cada um parece estar, ao mesmo tempo, no interior e

no exterior dos outros, que ele atravessa e pelos quais é atravessado.

O conflito não se exerce apenas entre os diversos discursos constituintes; ele se exerce,

também, no interior dos próprios discursos constituintes, que se apresentam como um espaço de

conflito permanente entre diferentes posicionamentos. É uma característica das sociedades modernas

que os quadros de referência ideológica façam disso o objeto de um debate constante. Essa noção de

“posicionamento” (doutrina, escola, teoria, partido, tendência...) é muito pobre; ela implica somente

que os enunciados estão relacionados às diversas identidades produtoras do discurso que delimitam

umas às outras. A unidade pertinente de análise não é, portanto, o discurso em si mesmo, mas o

sistema de relações entre ele e os outros discursos, o interdiscurso, por meio do qual ele se constitui

e se mantém2.

Todo discurso constituinte se organiza em torno de textos-fontes, indissociáveis de instituições

que garantem que ele é necessário para interpretá-los e dizem que ele está autorizado a fazê-lo.

Pode-se falar aqui de “quadro hermenêutico”, no qual o sentido do texto excede, definitivamente, as

capacidades de seus intérpretes: por mais que se esforcem, eles não poderão esgotar a

“hermeneia”3, a fala essencial que a Fonte reserva especialmente a quem sabe ler. Tal herméneia

não resulta das intenções comunicativas ordinárias, ela não saberia se relacionar a uma

consciência assumida a partir das normas que presidem a comunicação verbal: o texto não tem

2 Trata-se do que tentamos desenvolver em Maingueneau (1984).3 De acordo com a tradição grega, a « hermeneia» encontra-se, antes, do lado da expressão, da manifestação do logos interior; hoje, ao contrário, estamos habituados a associar a hermenêutica à simples interpretação.

Page 119: Unidades tópicas e não-tópicas

autor, no sentido usual; seu “autor” é apenas o é pelo fato de ser o delegado de uma Instância sem

rosto. Ruptura que priva seu “autor”, ao mesmo tempo em que dá autoridade à obra e requer

intérpretes para ela. Colocar-se como enunciador de um texto constituinte não é falar em seu

próprio nome, mas seguir o traço de um Outro, no qual se personificam a Tradição, a Verdade, a

Beleza... Ao escritor inspirado por alguma Musa, fazem eco o pregador habitado pelo Espírito ou o

redator do Código Civil, porta-voz casual da voz do Povo.

Os textos que relevam dos discursos constituintes são, ao mesmo tempo, mais ou menos fechados em

sua organização interna e “reinscritíveis” em outros discursos e em contextos diferentes. Somos

obrigados, dessa maneira, a considerar a dimensão midialógica do discurso (retomando o termo de

R. Debray4), ou seja, as modalidades de suporte e de transporte dos enunciados. O “conteúdo”, na

verdade, não é independente do dispositivo de transmissão; ele implica o conjunto do dispositivo de

comunicação que torna o texto possível.

O enunciado que releva de um discurso constituinte se instala no interior de uma hierarquia de

gêneros de discurso: há enunciados mais “prestigiosos” que outros, pois se encontram mais

próximos da Fonte legitimadora: a grande filosofia, a alta teologia, a ciência nobre... são sempre

reduplicados por outros gêneros, menos nobres: manuais escolares, sermões dominicais, revistas de

divulgação... Instaura-se uma hierarquia entre os textos fundadores - de certa forma,

“autoconstituintes” -, e aqueles que os comentam, os resumem, os interpretam... Alguns textos

transformam-se naquilo que poderíamos chamar de “arquitextos”, como a Ética, de Spinoza, ou a

República, de Platão, para a filosofia; os escritos dos Padres da Igreja, para o discurso cristão...

Mas, é preciso ressaltar, o estabelecimento do cânone de arquitexto legítimo é objeto de um debate

incessante entre os posicionamentos, cada um procurando impor seus próprios arquitextos e a

interpretação que julga ortodoxa.

II

Para uma concepção de discurso que poderíamos chamar de “representacionista”, os gêneros

de discurso “manifestam”, “refletem” “a ideologia” de um lugar, de um grupo; no caso que nos

interessa, observaríamos, por exemplo, nos relatórios do Banco Mundial, a “expressão” da

“ideologia” dessa organização ou da ideologia daqueles que a dominam. Na verdade, é mais

4 Debray (1991).

Page 120: Unidades tópicas e não-tópicas

pertinente raciocinar em termos de “instituição discursiva”, o que significa empregar a relação em

dois sentidos: de um lado, os relatórios das organizações internacionais são instituições de discurso,

dispositivos de produção verbal institucionalizadas; mas, de outro lado, esses relatórios permitem às

instituições constituírem-se como tais: os gêneros de discurso específicos dessas organizações não

surgem como um “complemento” que manifestaria os conteúdos do pensamento que já estão lá ; eles

são, ao mesmo tempo, seu produto e a condição de sua identidade.

Este fato se traduz no funcionamento enunciativo: os textos dos relatórios das organizações

internacionais são também o lugar onde se auto-legitima a comunidade discursiva que produz esses

textos. Em outras palavras, esses textos falam do mundo (do desenvolvimento econômico, da

democratização, dos orçamentos etc) e, num mesmo movimento, legitimam as instâncias que falam

do mundo. É o que se percebe, de maneira quase caricatural, no prefácio do relatório do Banco

mundial (2000), nas palavras do presidente James D. Wolfensohn:

“Poverty amid plenty is the world’s greatest challenge. We at the Bank have made it our mission to

fight poverty with passion and professionalism, putting it at the center of all the work we do” (page

v)5.

A constatação da miséria do mundo é imediatamente sucedida pela auto-qualificação dos

autores. O “we” se refere tanto ao Banco Mundial, enquanto entidade do mundo, considerada

independentemente do discurso, quanto aos enunciadores do texto que contém esse “we”: na

qualidade de enunciadores que escrevem esse relatório, eles lutam performativamente contra a

miséria que é introduzida nas primeiras palavras do texto.

Percebe-se, aqui, o interesse do conceito de «comunidade discursiva”6, que designa os grupos

que existem somente pela e na enunciação de textos que eles produzem e fazem circular: há a

5 A pobreza excessiva é o maior desafio do mundo. Nós do Banco Mundial temos como missão lutar contra a pobreza com paixão e profissionalismo, luta mesma que tem sido o cerne de todo o trabalho que fazemos" (página v).6 Essa noção não é estabilizada na análise do discurso. Eu a introduzi (Maingueneau, 1984) para insistir no fato de que os modos de organização dos homens e de seus discursos são indissociáveis, que as doutrinas são inseparáveis da estrutura das instituições que as permitem emergir e as mantém. Pode-se estender essa noção a toda comunidade restrita de comunicação, organizada em torno da produção do discurso, qualquer que seja sua natureza: jornalística, científica etc. Seus membros partilham um certo número de modos de vida, de normas etc. Pode-se perguntar se a comunidade discursiva não deve incluir nada além dos produtores de textos ou se ela se estende àqueles que participam de sua elaboração ou de sua difusão. A problemática da comunidade discursiva tornou-se, a partir dos anos 1990, um espaço de pesquisa particularmente ativo, mas ela deve ser especificada por considerar a diversidade de tipos de discurso.

Page 121: Unidades tópicas e não-tópicas

imbricação de uma certa configuração textual e do modo de existência de um conjunto definido de

indivíduos. Fenômeno de enlaçamento recíproco: a comunidade é consolidada e legitimada pelos

discursos que são o produto dessa comunidade. É a questão da mediação, dos intermediários, que é,

assim, introduzida: os relatórios das organizações internacionais têm uma importância global –

pretender falar dos problemas do conjunto da humanidade -, mas eles são elaborados localmente, em

lugares institucionais restritos que não se apagam em sua produção, que a elaboram mediante a

maneira de viver de agentes que não têm nada de mediadores transparentes. Nessa perspectiva, todo

estudo de enunciados que se interroga sobre seu modo de emergência, de circulação e de consumo,

sem considerar o funcionamento dos grupos que os produzem e os administram, só pode ser redutor.

Os relatórios das organizações internacionais não são desses gêneros de discurso que ninguém

leria e cuja existência seria imposta por obrigações de ordem jurídica (como esses regulamentos ou

essas ordens afixadas nos cantos das fábricas); na verdade, eles são lidos pelos especialistas (e não

pelo conjunto da humanidade...), capazes de extrair deles os conteúdos implícitos, a partir de índices

de ordens variadas (que vão da apresentação material aos elementos “doutrinários”). No que diz

respeito à extração de implícitos, pode-se distinguir três grandes grupos de textos:

- os implícitos extraídos das interações verbais ordinárias (“Já é tarde”, querendo dizer, por

exemplo, “Você deve ir embora”);

- os implícitos que podem ser chamados de enigmáticos, ou seja, aqueles que se inscrevem no

que chamamos de um “quadro hermenêutico”: interpretação de textos literários, religiosos,

filosóficos... Trata-se, sobretudo, de textos que relevam dos discursos constituintes, os quais

somente os hermeneutas podem ler em sua totalidade;

- os implícitos para especialistas: um relatório de uma organização internacional ou um

relatório de defesa de tese, por exemplo, são compreendidos pelos leitores que sabem “ler

nas entrelinhas”. Os relatórios das organizações internacionais têm como público alvo

aqueles que têm o poder de decisão ou os conselheiros políticos ou econômicos, os

funcionários públicos internacionais e, obviamente, aqueles que participam das organizações

internacionais de mundos que lhes são conexos.

A este último tipo de implícito, relaciona-se tipicamente um fenômeno de “duplo endereço”,

uma vez que dois públicos são visados simultaneamente. O público oficial dos relatórios das

organizações internacionais (aquele da cena de enunciação construída pelo texto) é todo homem ou

Page 122: Unidades tópicas e não-tópicas

mulher de boa vontade, todo membro da humanidade que compreende a língua na qual o relatório é

escrito. Mas o conjunto efetivo de leitores visados é aquele dos especialistas, para quem esses textos

não fazem sentido apenas pelo seu conteúdo, mas também pela sua relação a um intertexto (os

relatórios anteriores do mesmo gênero ou textos de outros gêneros) e em função do saber de que eles

dispõem sobre as relações de força no mundo ou no interior das organizações internacionais. Para

esses leitores especialistas, os relatórios das organizações internacionais são fontes de informação

que podem ser úteis por diversas razões: para tomar uma decisão, para prever certas evoluções, para

redigir um outro relatório etc.

Por definição, esse gênero de discurso cultiva relações complexas com a posição de autor.

Consideremos o “Relatório mundial sobre o desenvolvimento humano 2000”, publicado pelas

Nações Unidas. Prestemos atenção à interessante ambigüidade do título: pode se ler “mundial” tanto

em termos de genitivo subjetivo quando de genitivo objetivo: um relatório que se sustenta no

mundo/um relatório que é feito pelo mundo. Como “o mundo”, enquanto tal, não pode falar, é a

ONU que fala em seu nome. Pode-se reconhecer aqui o estatuto singular da ONU, a qual é,

supostamente, a expressão da Humanidade, do mundo, o qual se auto-analisa numa reflexividade que

é cheia de muitos paradoxos.

O texto desse relatório apresenta dois níveis de autoria: a) um “prefácio” assinado por Mark

Malloch Brown, o presidente; b) o relatório propriamente dito, que é, por definição, anônimo e

atribuído à ONU, considerada enquanto coletividade indivisível. O contraste entre os dois planos é

marcado lingüisticamente pela passagem de um texto enunciado na primeira pessoa eu para um texto

onde o par eu-tu está, metodicamente, ausente. Mas o próprio relatório estabelece a relação entre o

Texto, em sua grandeza, sem autor, e as instituições empíricas que o produziram. Realmente, ao final

do prefácio, aparece um quadro com a lista dos “Membros da equipe encarregada da elaboração do

relatório”; lista que, entre outras funções, visa a mostrar, pela diversidade étnica dos sobrenomes,

que a Humanidade é representada em sua diversidade nesse relatório: “Philip Alston, Sudhir Anand,

Abdullahi A. An Na’im, Radhika Coomaraswamy, Meghnad Desai….“.

Nesse prefácio, encontram-se também advertências que parecem ter uma dupla função:

«Como todas as edições anteriores, esse Relatório Mundial sobre o desenvolvimento humano

se caracteriza pela sua total independência de espírito e pela ousadia de seu pensamento”

(Prefácio, p.iii).

Page 123: Unidades tópicas e não-tópicas

«As análises e recomendações expressas neste relatório não refletem necessariamente as

idéias do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, nem de seu conselho

administrativo ou de seus Estados membros” (Prefácio, p.iv).

Num nível imediato, pode-se ver aí uma simples precaução; num segundo nível, pode-se ver

a vontade de legitimar esse texto, não simplesmente como a emanação de uma organização, mas

como se fosse inspirado por um Espírito, com letra maiúscula, livre como todo espírito verdadeiro,

acima das instituições. Autorizando-se dessa forma, o texto deseja atribuir a si mesmo um sentido

mais nobre. Acrescenta-se aqui o processo de legitimação dos locutores dos discursos constituintes.

O Relatório do Banco mundial pretende, dessa maneira, não ressaltar as intenções comunicativas

ordinárias: seu texto não tem autor, no sentido usual. A comissão que o elaborou, a exemplo dos

concílios da Igreja, simplesmente deixou que alguma transcendência falasse por meio dela.

Uma outra característica desse gênero de discurso é o “tom” bastante particular de sua

enunciação, que o faz passar facilmente por “desagradável”, “pesado”, típico da “língua de

madeira”, para dizer tudo. Esse tom está relacionado, sobretudo, à ausência de marcas de interação e

de modalizações avaliativas, ao apagamento de referências reflexivas às instâncias de enunciação, a

um uso da língua que recusa toda estetização. Traços típicos de um ethos bem caracterizado.

Convém lembrar que o ethos, a partir da retórica aristotélica, é a imagem que o destinatário constrói

do locutor através da maneira que este se exprime7; trata-se de uma representação elaborada pelo

discurso, mas que se apóia em estereótipos historicamente especificados que preexistem ao discurso.

Na verdade, a legitimação dos discursos não passa somente pela articulação dos conteúdos; ela é

sustentada por um enunciador “fiador”, cuja “corporalidade”, mais ou menos imprecisa, é construída

no próprio movimento da leitura. As “idéias” se apresentam através de uma maneira de dizer que é

também uma maneira de ser, associadas às representações e normas de “disciplina” do corpo na

sociedade: existe um “mundo ético”, um universo de comportamentos estereotipados, correntemente

associados à burocracia sobre o qual se destaca cada uma das enunciações que emanam das

organizações internacionais e que esses textos confirmam ou infirmam.

Este ethos não pode estar dissociado de certo “código linguageiro”8, ou seja, da maneira

específica que têm os gêneros da ONU de investir na diversidade das línguas naturais. Esses textos,

7 Sobre essa noção, ver Amossy ed. (1999)8 Sobre essa noção, ver Maingeuenau (1993 : 101 e seguintes).

Page 124: Unidades tópicas e não-tópicas

na verdade, não se desenvolvem na compacidade de uma língua, mas através de uma “interlíngua”,

um espaço de confronto entre as variedades linguageiras: variedades “internas” (usos de determinada

profissão, níveis de linguagem, dialetos...) ou variedades “externas” (idiomas “estrangeiros”)9.

Distinção, além de tudo, relativa, na medida em que a distância entre língua “estrangeira” e “não

estrangeira” não é fixa (para um europeu letrado, o latim, durante muito tempo, não era uma língua

“estrangeira”, como é o caso do inglês, para muitos funcionários públicos internacionais). Nessa

noção de “código linguageiro”, associam-se as acepções10 de sistema semiótico que permite a

comunicação e de código prescritivo: o código linguageiro que mobiliza o discurso é, na verdade,

aquele por meio do qual o discurso deseja que se deva enunciar, o único legítimo em consideração

ao universo de sentido que ele instaura. É compreensível que os discursos constituintes mantenham,

assim, uma relação essencial com a interlíngua: a partir do momento que se opera sobre a fronteira

do dizível e do indizível, a questão da língua se torna crucial, o que também é verdade a respeito de

todo enunciado que quer ter uma autoridade influente, que pretende se inscrever em e produzir fatos.

Os relatórios das organizações internacionais são gêneros de textos que, certamente, são

escritos em francês, em inglês ou em outro idioma, mas, juridicamente, não são escritos nem em

francês, nem em inglês, nem em nenhuma língua natural, e sim na convertibilidade generalizada dos

diversos idiomas da humanidade. Daí uma impressão bastante peculiar para os leitores: o texto é

escrito em um idioma particular, mas ele lhes parece distante. De certo ponto de vista, ele é escrito

apenas no “código linguageiro” da ONU, o qual se caracteriza por uma pretensão ao apagamento de

especificidades, sejam elas culturais ou lingüísticas, como o manifesta a diversidade étnica da

comissão de redação.

O ethos “neutro” não é, portanto, o mesmo quando se trata de um texto jurídico, de um texto

científico, de um texto da ONU etc. O código linguageiro de um idioma sem particularidades

confere ao ethos distanciado dos enunciadores dos relatórios uma pureza extraordinária, aquela de

9 O termo “interlíngua” corresponde a duas noções bastante diferentes em lingüística. Para as teorias de ensino de línguas estrangeiras, ele designa a língua intermediária, utilizada transitoriamente pelo aprendiz, que mistura língua de partida e língua de chegada. Mas aqui “interlíngua” é considerado como um sentido totalmente diferente (Maingueneau, 1993 :104) ; trata-se de um equivalente de «intertexto» aplicado às variedades lingüísticas. “Interlíngua” designa, assim, o conjunto de línguas e de variedades no interior das línguas que são acessíveis para um locutor que ocupa determinada posição na sociedade. A interlíngua inclui também as línguas “mortas”, por exemplo, o latim ou o aramaico. Para todo texto que pretende de fato fazer sentido, os locutores são obrigados a tomar consciência dos recursos que a interlíngua lhes oferece (sobre esses conceitos de “código linguageiro” e de “interlíngua”: (Maingueneau (1993 : capítulo5).

10 Em lingüística, fala-se de «acepções» quando as diversas significações de uma unidade lexical são próximas, ou seja, quando há polissemia. Se essas diversas significações são muito distantes, fala-se de homonímia (por exemplo, para “manga”, parte da vestimenta, e “manga”, fruta).

Page 125: Unidades tópicas e não-tópicas

um mediador transparente entre a ONU e a humanidade que lhe dá delegação. A cada vez que é bem

sucedida, essa pureza vem confirmar a instância da enunciação que a produz, segundo um processo

de enlaçamento, de sustentação recíproca entre enunciado e enunciação: o mundo que configura a

enunciação dos relatórios das organizações internacionais é um mundo homogêneo, indiferente às

variações étnicas, geográficas, e integralmente acessível aos especialistas; são as propriedades de

certa maneira materializadas nessa enunciação neutralizada.

Nada disso acontece sem alguma incidência sobre o estatuto do enunciador. Os relatórios das

organizações internacionais são escritos em um idioma que funciona de maneira, pode-se dizer,

restrita, ao explorar apenas um número limitado de suas possibilidades sintáticas e semânticas,

projetando, assim, a figura do enunciador “reservado”, cuja singularidade foi banida. Mas a única

coisa evidente nisso tudo é a pretensão associada a esse discurso; para o mundo exterior, esse código

linguageiro é facilmente identificável como um discurso de especialidade entre muitos outros: o

francês (o inglês, o chinês, o russo...) das organizações internacionais. Chamaremos a atenção, aqui,

para o interesse da noção de comunidade discursiva translinguageira, introduzida por J-C Beacco

(1992) para designar essas comunidades internacionais onde a comunicação se efetua geralmente em

várias línguas naturais: comunidades científicas que se reúnem nos congressos internacionais,

empresas multinacionais, organizações internacionais (UNESCO, Organização das Nações

Unidas...), cujas línguas oficiais de trabalho são múltiplas. Essas comunidades surgem como lugares

nos quais os discursos são produzidos através dos mesmos gêneros, sendo que a única variável

visível parece ser, nesse caso, a língua utilizada.

III

Teriam esses relatórios das organizações internacionais relação com os gêneros que relevam de

um novo discurso constituinte? Para que se tratasse de discurso constituinte, seria necessário que os

relatórios não relevassem do discurso político, no sentido habitual do termo. O discurso político, na

verdade, não é um discurso constituinte, mas um discurso que é mediador entre os discursos

constituintes e a doxa, o que explica as relações bastante ambíguas que ele não pode deixar de

estabelecer com os meios de comunicação, tanto hoje em dia como na época da democracia grega.

Cada posicionamento no campo político se opõe a seus concorrentes, apoiando-se, em função de sua

identidade, em tais ou tais discursos constituintes: os discursos tecnocráticos se apóiam

Page 126: Unidades tópicas e não-tópicas

principalmente nas ciências econômicas; os discursos fundamentalistas, no discurso religioso; os

discursos comunistas se apóiam no discurso filosófico... Não se pode, portanto, considerar o discurso

das organizações internacionais como se relevasse do discurso político: ele não se opõe a outros em

um mesmo campo, a partir do momento que ele se beneficia, por definição, de um monopólio

enunciativo. Ele implica uma cena de enunciação bastante notável, na qual a Humanidade é

representada por uma instituição que se dirige aos homens, considerados em sua diversidade. O

discurso que pretende dizer o Universal pela boca de um Enunciador universal pode se imaginar no

direito de exceder os limites do político. É o que se pode observar desde as primeiras linhas do

“prefácio” do relatório mundial sobre o desenvolvimento humano 2000, da ONU, que se apresenta,

de maneira indireta, como diferente do discurso político:

« A luta pelos direitos do homem é, desde sempre, parte integrante do mandato da ONU : é o que

enunciam, ao mesmo tempo, a Carta das Nações Unidas e a declaração universal dos direitos do

homem. Entretanto, durante a guerra fria, os debates sérios sobre as relações entre o conceito e a

noção de desenvolvimento foram, frequentemente, falseados de maneira excessiva pelo discurso

político12” (página iii)

Mas, se o discurso das organizações internacionais não releva, propriamente falando, do

discurso político, deveríamos, por isso, ver nele um discurso constituinte? A resposta a essa questão

não é simples. Se considerarmos a pretensão enunciativa desse discurso, tal como ela surge de suas

modalidades de enunciação, ele é constituinte pela própria maneira como se institui. Mas, se

considerarmos as propriedades dos discursos constituintes, então podemos ser céticos. O Absoluto,

que um tal discurso poderia reclamar para si, lhe faz falta: não basta que o conjunto dos governos

tenha representantes legítimos, para garantir uma relação com um Absoluto, da qual

posicionamentos concorrentes querem se apropriar, ou com um discurso do qual são detentores uma

Tradição, um conjunto de textos consagrados, lidos por hermeneutas autorizados. Parece-me, antes,

que se estabelece uma relação com um discurso que seria o simulacro de um discurso constituinte. O

fato de que os textos das organizações internacionais sejam produzidos por uma instituição que se

coloca acima de toda instituição política e possui um monopólio enunciativo permite produzir um

simulacro de universalidade fundada em um Absoluto. Em nome da posição singular que as

12 O destaque em itálico é nosso.

Page 127: Unidades tópicas e não-tópicas

organizações internacionais ocupam no espaço das produções verbais, seu discurso não pode

funcionar como um discurso político, no sentido habitual do termo, mas ele não alcança por isso o

estatuto de discurso constituinte. Para que ele tivesse acesso a tal estatuto, seria necessário que ele

fosse o equivalente do mito nas sociedades primitivas, o que é – ao menos no estado atual das coisas

– incompatível com o funcionamento das sociedades complexas contemporâneas.

Esse caráter de «simulacro» se encontra em relação ambígua com seu próprio campo. Os

discursos constituintes, conforme se viu, supõem a existência de espaços conflituosos, nos quais

cada “posicionamento” se define em relação aos outros. O que se traduz, na superfície, em

numerosas polêmicas. No caso dos textos produzidos pelas organizações internacionais, há também

rivalidades, segundo as quais cada organização procura impor sua própria concepção do

“desenvolvimento” ou do “progresso”; mas essas lutas são condenadas a permanecer na sombra, elas

são compreensíveis apenas para os especialistas. Torná-las visíveis seria arruinar a própria

legitimidade dessas instituições, submetidas, dessa maneira, a uma “dupla restrição”: é necessário

distinguir-se para ter uma identidade; não se deve distinguir-se, para falar de maneira autorizada,

para ser a própria “Autoridade”. De fato, nessas modalidades de elaboração, um relatório das

organizações internacionais não difere dos relatórios redigidos por aparelhos como os partidos

políticos ou os sindicatos. Trata-se de textos que servem de plano de orientação para um grupo

reunido em torno de um projeto de ordem ideológica e que resultam de negociações difíceis entre

diferentes posições. Nesses gêneros de discurso, produz-se também um distanciamento entre os

redatores empíricos e a posição de Autor, a qual é atribuída a uma instância transcendente que funda

a instituição (o partido X agindo em nome do Socialismo, da Liberdade, da França, dos

Trabalhadores...). Mas, para que o discurso das organizações internacionais seja constituinte, ele

deve se colocar não como discurso de compromisso entre os pontos de vista, mas como fundado no

Absoluto; não como produzido por funcionários públicos e especialistas, mas por homens e mulheres

que se apóiam nesse Absoluto. No entanto, não pode ser o caso. Restam apenas os efeitos de

simulacro, a legitimação desse discurso oscilando entre o filosófico, o religioso e o científico: de um

lado, a remissão a uma filosofia/religião da humanidade que não pode ser muito vaga; de outro, a

remissão a saberes onde a economia ocupa quase todo o espaço.

Page 128: Unidades tópicas e não-tópicas

ANÁLISE DE UM GÊNERO ACADÊMICO*

Em geral, há um consenso entre analistas do discurso de que a noção de gênero

ocupa papel central na disciplina da qual se ocupam. Refletir sobre lugares sociais sem

levar em conta os textos – orais ou escritos – que tais lugares tornam possíveis (redução

social), ou refletir sobre os textos sem levar em conta os lugares sociais aos quais eles

pertencem (redução lingüística), poderia significar que o discurso não está sendo abordado

a partir do ponto de vista da análise do discurso. Como essa noção de gênero discursivo é,

em geral, utilizada para se referir a fenômenos heterogêneos, para começar, devo insistir na

diferença entre gêneros conversacionais e gêneros instituídos; em seguida, estudarei um

gênero instituído típico: o relatório de uma sessão de defesa de tese, tal como é praticada na

França. Esse gênero possui várias propriedades interessantes para a análise do discurso, não

somente porque esse tipo de relatório é fortemente associado a uma esfera bastante familiar

aos acadêmicos, mas também porque ele implica uma configuração original de autoria e

estratégias bastante interessantes de interpretação.

Gêneros discursivos

É amplamente conhecido que dois tipos de classificações de gêneros são utilizados:

por um lado, aquelas empregadas pelos falantes comuns, por outro lado, aquelas elaboradas

pelos acadêmicos. O primeiro tipo supre as necessidades do falante envolvido na produção,

armazenamento ou consumo de certos tipos de textos: o modo como um livreiro classifica

livros não é o mesmo que o de um leitor ou o de um professor de literatura. O segundo tipo

de classificações, especialmente aquele feito pelos analistas do discurso, é elaborado por

acadêmicos que utilizam critérios bastante explícitos. No entanto, mesmo em taxonomias

sistemáticas, há uma grande variedade de tipologias textuais – e, conseqüentemente, uma

vasta variedade de tipologias de tipologias – uma vez que o critério de classificação pode

ser variado (Petitjean, 1989): critérios lingüísticos, critérios funcionais, critérios

situacionais (isto é, as circunstâncias em que se dão os atos de fala), critérios “discursivos”

(isto é, critérios que associam características lingüísticas, funcionais ou situacionais: por

* Este texto foi publicado em Discourse studies, 4, 3, agosto de 2002, p.319-342.

Page 129: Unidades tópicas e não-tópicas

exemplo, aquilo a que denominamos “popularização” da ciência implica procedimentos

lingüísticos específicos, propósitos didáticos específicos, lugares de produção, de

circulação e de consumo específicos para os textos).

Na análise do discurso falado que se faz na França, a categoria “gênero discursivo”

(alguns preferem falar de “gênero textual”) é definida, em geral, por meio de um critério

situacional: refere-se a dispositivos de comunicação sócio-historicamente condicionados

que estão em constante mudança e aos quais são freqüentemente associadas metáforas

como “contrato”, “ritual”, “jogo”... Embora a noção de gênero venha dos antigos poetas e

retóricos gregos, tal concepção de gênero é bastante recente. Há algumas décadas,

principalmente por influência da etnografia da comunicação e das idéias de M. Bakhtin, é

uma noção que tem sido utilizada para descrever uma multiplicidade de enunciados

produzidos na sociedade. Jornais, programas de auditório televisivos, transações em lojas

etc., são considerados gêneros. Esses gêneros podem ser indefinidamente diversificados, de

acordo com o grau de precisão que o analista do discurso queira obter, e são caracterizados

de acordo com critérios tais como papel, finalidade, meio, organização textual... A origem

desses modelos é amplamente reconhecida como sendo o modelo de FALA de D. Hymes

(1967, 1972).

A fim de levar em conta toda essa diversidade, distingui, anteriormente

(Maingueneau 1999), três regimes para a questão dos gêneros:

Gêneros autorais, que são impostos pelo autor, algumas vezes pelo editor. Com

indicações “paratextuais”, como “resenha”, “reflexão”, “aforismo” etc., o autor

reivindica, a partir de uma decisão unilateral (não negociada), a definição parcial da

estrutura da sua atividade discursiva. Esses gêneros autorais estão presentes

principalmente em certos tipos de discurso: discursos literários ou filosóficos, é

claro, mas também os religiosos, políticos ou jornalísticos;

Gêneros rotineiros, que são os gêneros favoritos dos analistas do discurso: revistas,

entrevistas, palestras, negociações comerciais etc. Os papéis de cada um de seus

integrantes são definidos a priori e, em geral, mantêm-se estáveis durante o

processo de comunicação. Os falantes entram em uma estrutura pré-estabelecida

que, em geral, não é modificada. Esses gêneros rotineiros são os que melhor

Page 130: Unidades tópicas e não-tópicas

correspondem à definição de gênero discursivo como um dispositivo de

comunicação social e historicamente condicionado. Seus parâmetros resultam da

estabilização de restrições comunicacionais relativas a situações sociais específicas.

Seria inútil perguntar-se quem inventou esse ou aquele gênero rotineiro: sua

existência resulta de práticas sociais. Um historiador pode dizer quem publicou o

primeiro jornal ou a primeira prescrição médica, mas isso não interessa muito à

análise do discurso, e muito menos a quem utiliza tais gêneros. Eles podem ser

distribuídos em uma escala: em um extremo, gêneros que são ritualizados, o que

deixa muito pouco espaço de manobras para os falantes (gêneros judiciários, por

exemplo); na outra, gêneros que abrem possibilidades para variação pessoal.

Gêneros conversacionais da conversação “ordinária”, que não estão fortemente

relacionados a lugares e papéis institucionais ou a rotinas estabilizadas. A

organização textual e os conteúdos desses gêneros são, geralmente, confusos: sua

estrutura modifica-se constantemente durante a interação. Claro que serão

submetidos a fortes restrições, mas elas são, predominantemente locais. Enquanto

nos gêneros rotineiros as restrições são predominantemente globais e verticais, isto

é, impostas pela “posição”, nos gêneros conversacionais prevalecem restrições

horizontais, que são negociadas pelos parceiros. De fato, não é fácil dividir tais

gêneros em entidades distintas. Usando as palavras de E. Schegloff, eu diria que a

conversação é “aquela organização da fala que não está submetida a restrições

especificamente funcionais ou especificamente contextuais ou a práticas

especializadas de disposições convencionadas” (1999: 407); ao contrário, essa

forma da fala “é parcialmente especificável (e positivamente, não residualmente)

como um sistema distinto de troca verbal com referência à sua organização

distintiva de alternância de turnos” (1999:413).

Hoje, acredito que tal divisão dos gêneros em três regimes não é correta, embora

possa ser útil para fins didáticos. De fato, de um ponto de vista terminológico, o termo

“regime” pode nos levar a acreditar que conversações não são regimes, o que é

preocupante: é bem sabido que há um bom tempo esse termo tem sido usado para referir-se

a interações conversacionais (Coulmas ed., 1981). Isso põe um problema também de um

Page 131: Unidades tópicas e não-tópicas

ponto de vista empírico: parece mais apropriado dizer que “gêneros autorais” são, de fato,

um tipo do que nomeei anteriormente “gêneros rotineiros”. Como resultado, acredito, como

grande parte dos especialistas, que seria melhor distinguir apenas dois regimes genéricos,

submetidos a regras bastante diferentes: gêneros conversacionais, por um lado, e

instituídos, por outro – uma categoria que recobre o que chamei anteriormente de “gêneros

rotineiros” e “gêneros autorais”. Obviamente, essa distinção entre gêneros instituídos e

conversacionais não é nítida: particularmente no caso de conversações ritualizadas, práticas

verbais com propriedades de ambos os regimes podem ser facilmente identificadas. Assim,

ambos os regimes podem estar juntos em um mesmo evento de fala57.

Gêneros instituídos não formam um conjunto homogêneo. Gêneros instituídos

monológicos, tanto orais quanto escritos, aqueles que não implicam interação imediata,

podem ser distribuídos em uma escala de acordo com a habilidade do falante de categorizar

sua estrutura comunicativa e, especialmente, de elaborar uma “cenografia” (Maingueneau,

1993, 1999). Cada gênero do discurso é associado a uma “cena genérica”, que atribui

papéis aos atores, prescreve o lugar e o momento adequados, o suporte, a superestrutura

textual para textos de um gênero particular. Mas, para muitos outros gêneros instituídos,

um outro tipo de cena está implicado: a “cenografia”, que resulta de uma escolha dos

produtores do discurso. Grosso modo, a cena genérica é parte de um contexto, é a própria

cena que o gênero prescreve, enquanto que a cenografia é produzida pelo texto. Portanto,

dois textos que pertencem à mesma cena genérica podem encenar diferentes cenografias.

Uma pregação em uma igreja, por exemplo, pode ser encenada por meio de uma cenografia

profética, uma cenografia meditativa, e assim por diante. No primeiro caso, o orador falará

da maneira como falam os profetas na Bíblia e dará um papel correspondente a seus

destinatários; no segundo caso, ele fingirá que está falando consigo mesmo.

Nem todos os textos possuem cenografia. Como regra, gêneros administrativos, por

exemplo, somente obedecem a normas de suas cenas genéricas. Por sua vez, a publicidade

tem que escolher as cenografias de acordo com estratégias específicas do marketing. Por

exemplo, anúncios de sapatos podem usar uma grande variedade de estratégias. Uma

57 Um problema muito importante (e também clássico) é saber se uma conversação ordinária está fora das categorias dos gêneros. J. Swales, por exemplo, afirma que se trata de “uma ‘forma de vida’ pré-genérica” (Swales, 1990: 59). Outros distinguem vários registros na conversação ordinária, não gêneros, no sentido estrito. De qualquer modo, se “gêneros” são aplicáveis à conversação, não pode ser do mesmo modo como no caso dos gêneros instituídos. Uma discussão desse tema não cabe nesse artigo.

Page 132: Unidades tópicas e não-tópicas

mulher em seu quarto fazendo uma ligação para sua amiga, um jovem garoto descrevendo

seus novos sapatos para sua mãe, etc.

Levando em conta a diversidade de gêneros instituídos a partir deste ponto de vista,

devemos distinguir vários graus:

Gêneros de primeiro grau: gêneros instituídos que não estão submetidos à variação,

ou apenas a uma pequena variação; seus falantes obedecem a fórmulas e esquemas

rigorosamente pré-estabelecidos: listas telefônicas, certidões de nascimento, etc. De

fato, não podemos realmente falar em “autores” de tais textos.

Gêneros de segundo grau: gêneros nos quais os falantes precisam produzir

enunciados singulares ao mesmo tempo em que obedecem a um roteiro bastante

rígido: notícias na TV, correspondência de negócios, etc.

Gêneros de terceiro grau: gêneros que toleram variações, o que dá ao falante a

possibilidade de apelar para uma cenografia original. Um guia de viagens, por

exemplo, pode ser apresentado na forma de uma conversa entre amigos, de um

romance romântico, etc. Em 1988, durante sua segunda campanha presidencial,

François Mitterand publicou seu programa de governo na forma de uma carta

pessoal endereçada ao povo francês (“Lettre à tous les Français”). Esse programa

político foi apresentado por meio de uma cenografia inesperada, mas ele pertencia

claramente àquele gênero, obedecia às suas regras (papéis, tamanho, conteúdo...)58.

Gêneros de quarto grau: gêneros que requerem a invenção de cenários de fala:

propagandas, canções folclóricas, programas de entretenimento na TV... Se alguém

sabe que um texto é uma propaganda de um creme de beleza, isso não é suficiente

para saber por meio de qual cenografia ele será apresentado. É claro que muitas

cenografias são estereotípicas, mas a lógica de tais gêneros exige das pessoas a

eterna inovação. No entanto, tais inovações não devem modificar as estruturas

impostas pelo gênero, nem questioná-las.

Gêneros de quinto grau: gêneros para os quais a noção de gênero em si já põe um

problema. Eles não possuem um formato pré-estabelecido, mas zonas genéricas

sub-determinadas nas quais uma única pessoa, um autor com uma experiência

58 Sobre esse texto, ver Maingueneau (1998).

Page 133: Unidades tópicas e não-tópicas

individual, auto-categoriza sua própria produção verbal. Esses são os tipos de

gêneros aos quais eu me referia anteriormente, quando defini gêneros cujos nomes

são atribuídos por seus autores: “resenha”, “fantasia”, “reflexão”, “ficção”... Esses

autores têm em mãos uma vasta gama de possibilidades para elaborar suas próprias

categorias. Rótulos genéricos, como “jornais”, “talk show”, “palestra”, etc. são

atribuídos a atividades que existem independentemente de tais rótulos (na verdade,

muitas práticas discursivas não têm nomes...); ao contrário, se um autor religioso,

um político ou um moralista chamar seu texto de “meditação”, de “utopia”, de

“relatório”, etc., esse rótulo contribui profundamente para a maneira como tal texto

será interpretado. Aqui, o nome não pode ser substituído por outro nome, não se

trata de um rótulo meramente convencional que permite identificar uma prática

verbal: é a conseqüência de uma decisão pessoal, o vestígio de um ato de

posicionamento no interior de um determinado campo, geralmente inscrito na

memória coletiva. Mas esse rótulo que um autor pode atribuir a seu texto é apenas

uma parte de sua realidade comunicativa: quando um autor chama seu trabalho de

“fantástico”, essa categoria revela muito pouco do processo comunicativo efetivo

que está envolvido. Um rótulo genérico como “revista” refere-se aos parâmetros

gerais deste gênero de discurso, mas o rótulo “fantasia” atribuído por um poeta ao

seu trabalho não se refere à vasta gama de restrições que caracterizam publicações

poéticas em uma dada sociedade.

Gêneros de quarto e quinto graus são em muitos aspectos similares: ambos

precisam construir cenografias estimulantes para convencer suas audiências, dão sentido à

sua própria atividade discursiva e propõem uma estrutura que deve estar em harmonia com

o próprio conteúdo de seu enunciado. No entanto, enquanto os gêneros de quarto grau, por

exemplo, são impostos por obrigações sociais, aparecendo em decorrência de restrições

sociais precisas, os gêneros de quinto grau dependem do modo pelo qual um autor coloca

sua identidade em jogo. Portanto, escolher uma categoria genérica é mais do que uma

estratégia retórica: enquanto textos publicitários têm como objetivo um determinado efeito

(essencialmente fazer pessoas comprar produtos) e estão sempre buscando a melhor forma

de alcançar este resultado, um autor religioso ou um romancista não podem realmente

Page 134: Unidades tópicas e não-tópicas

definir qual o seu objetivo quando estão publicando o seu texto: “sobram , ainda, alguns

gêneros para os quais a finalidade, como critério primeiro, é inadequada”, que “desafiam as

atribuições de propósitos comunicativos” (Swales, 1990: 47).

Um gênero acadêmico

Neste artigo, não poderei analisar exemplos de todos os gêneros instituídos.

Estudarei apenas um gênero que pertence tipicamente aos gêneros de segundo grau: o

relatório de sessões de defesa de tese na França (RSDT). Apesar do crescimento da

internacionalização da escolaridade em muitos outros aspectos, esse gênero está ainda

submetido a critérios estritamente nacionais.

Os acadêmicos que praticam esse gênero buscam cumprir suas normas: não

pretendem modificar as convicções de uma audiência, ou moldar sua identidade por meio

de seus enunciados; apenas querem mostrar que são membros legítimos do mundo

acadêmico, que os legitima fazendo-os ser parte da banca da qual participam. Esse gênero

implica “estratégias de tentativa de perpetuação e de justificativa para manter, dar suporte e

reproduzir identidades” (Van Leuwen and Wodak, 1999: 93), mas, no caso, essa

“identidade” é a de uma comunidade que necessita regular a entrada de “imigrantes” e

checar se eles trabalham de acordo com as normas.

O RSDT está fortemente associado a tradições. Os ritos de uma defesa de tese

diferem de uma disciplina para outra, de um país para outro e, em certos países (na Suíça,

por exemplo), de uma região para outra. Em muitos casos, não há relatórios depois da

sessão de defesa. Neste artigo, vou considerar apenas relatórios de teses em humanidades

(incluindo ciências sociais e humanas) que são defendidas na França; relatórios de

matemática ou física são bem diferentes. No campo das humanidades, o RSDT é escrito

depois da sessão de defesa, e deve resumir as avaliações dos membros da banca. O texto é

destinado a fazer parte da documentação que pesquisadores apresentam quando querem ser

contratados por uma instituição acadêmica ou ser promovidos.

Este gênero é interessante por várias razões. Ele desempenha papel central na vida

dos pesquisadores (inclusive na dos analistas do discurso...): no decorrer de suas carreiras,

terão que defender uma tese, e a maioria deles terá que elaborar um relatório desse tipo

Page 135: Unidades tópicas e não-tópicas

quando participarem de bancas ou comissões. Além desta razão “afetiva”, o RSDT é

interessante também de uma perspectiva pragmática, se levarmos em conta,

particularmente, as formas de subjetividade enunciativa que ele implica, o modo como

restringe sua interpretação, suas estratégias de abrandamento das avaliações negativas e

suas formas originais de discurso relatado. Mas falta espaço para lidarmos com todos esses

aspectos.

Especificações do gênero

O RSDT é identificado pelo contexto institucional no qual aparece. É, tipicamente,

um gênero discursivo estabilizado, em decorrência de uma atividade social, um gênero

cujas regras, que são parte da competência comunicativa dos acadêmicos franceses, são

aprendidas por meio de sua prática. As pessoas que escrevem tais textos não têm

treinamento específico, não podem recorrer a um modelo que possam copiar, mas colocam

em ação regras tácitas de produção. Como um gênero instituído de segundo grau, o RSDT é

altamente ritualizado, o que é normal, se considerarmos suas importantes conseqüências,

que podem ser até mesmo jurídicas, para os membros da comunidade acadêmica. Diria que

o RSDT é o gênero chave de uma “comunidade discursiva” (Maingueneau, 1984: 14),

comunidade que é organizada em torno da produção de textos específicos59. J.-C. Beacco

(1999: 14) propõe a distinção de vários tipos de comunidades discursivas: a) comunidades

discursivas baseadas na economia (companhias...), nas quais nem todos têm permissão para

produzir certos gêneros, e a distinção entre comunicação interna e externa é clara; b)

comunidades discursivas ideológicas, baseadas na produção de valores, crenças... (partidos

políticos, igrejas, associações...) que produzem um grande número de textos militantes; c)

comunidades discursivas midiáticas, que difundem e confrontam opiniões e valores e

organizam a circulação de textos. Estão voltadas para o mundo externo e compartilham de

muitas propriedades das comunidades ideológicas e econômicas; d) comunidades

discursivas baseadas em atividades técnicas e científicas, que produzem conhecimentos 59 Esse conceito de “comunidade discursiva” difere um pouco do conceito de “comunidade de discurso” proposto por Swales (1990). Concordo com boa parte dos critérios que ele utiliza para definir “comunidades de discurso”, mas acredito que falar em “um conjunto de metas coletivas comuns” não é suficiente para caracterizar “comunidades discursivas”, cuja meta principal é produzir textos. Assim, de maneira aproximada, posso dizer que a minha “comunidade discursiva” é um subconjunto da “comunidade de discurso” de Swales. Desta perspectiva, o “Círculo de Estudos de Hong Kong” não seria uma “comunidade discursiva”.

Page 136: Unidades tópicas e não-tópicas

(esse é o caso do RSDT). Nessas comunidades, os gêneros são, essencialmente, “fechados”

(Maingueneau 1992: 120).

O RSDT é um bom exemplo de gênero “fechado”. A oposição entre discursos

“fechado” e “aberto” está fundada na relação entre produtores e receptores de uma

determinada atividade discursiva. Em discursos fechados, produtores e receptores tendem a

coincidir, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Esse é o caso da maioria dos escritos

científicos, cujo público é, de fato, composto por pessoas que produzem textos do mesmo

tipo. Nos discursos abertos, por sua vez, existe uma enorme diferença quantitativa e

qualitativa entre a população de produtores e a população de receptores. A esse respeito, os

casos de imprensa popular e de discurso político voltado para as massas são exemplares: a

população de produtores são grupos bastante restritos, com forte identidade, que se dirigem

a uma vasta população de receptores cuja caracterização social é, na maioria das vezes,

muito diferente da dos produtores. Nem todos os leitores (em particular, a comissão

convocadora) são autores de relatórios, uma vez que nem todos compõem bancas, embora

alguns deles as componham eventualmente. Esse caráter “fechado” do RSDT tem uma

conseqüência interessante, que será considerada mais adiante: como as pessoas que o

escrevem são as mesmas que o lêem, elas podem produzir um discurso codificado.

Como um gênero fechado, o RSDT é bastante particular, uma vez que sua função

principal é conferir o direito de entrar na comunidade de pesquisadores – portanto, a

comunidade de pessoas que podem redigir ou ler um RSDT. Quando alguém escreve um

relatório a favor de um candidato, quer dizer, indiretamente, que o candidato poderia

escrever um RSDT. De qualquer maneira, o fato em si de escrever um RSDT confere a

quem o escreve a possibilidade de mostrar-se digno o suficiente de ser membro da

comunidade acadêmica, e implica que ele é um especialista. Como afirma A. Diszak,

“entende-se que especialistas (...) devem combinar alta perícia em um campo com grande

conhecimento da linguagem para a exposição científica” (Duszak ed., 1997:25). Portanto, a

prática deste gênero não pode ser considerada uma tarefa meramente administrativa:

comunidades discursivas mantêm a si mesmas por meio da produção de textos, produção

que pressupõe a coesão da comunidade no interior da qual publicações de pesquisas – a

finalidade desta comunidade – são produzidas. Aqui, devemos pensar em termos de

“instituição discursiva” (Maingueneau, 1991: 169): o gênero é uma pequena “instituição”

Page 137: Unidades tópicas e não-tópicas

verbal, mas, ao mesmo tempo, a instituição (no sentido comum da palavra) da qual este

gênero participa mantém a si mesma por meio dos gêneros que ela possibilita e que, de

alguma forma, tornam possível a própria instituição.

O RSDT pode ser analisado de uma perspectiva local, como iremos fazer, mas é

necessário que seja considerado, também, de uma perspectiva global: um relatório não é

algo insular, mas sim um nó em uma extensa rede: o mundo acadêmico como um todo, que

vem se tornando cada vez mais internacional. O acesso ao status de membro de uma banca

resulta de um convite feito por um “anfitrião” (o orientador da tese), o que pode criar um

comprometimento tanto para o “convidado” quanto para o “anfitrião”. Isso depende das

circunstâncias. Se alguém possui um “capital” considerável de reputação (isto é, se é um

acadêmico famoso), e se aceita participar de uma banca “inferior”, o colega que o convidou

terá com ele uma dívida de gratidão. Por outro lado, se alguém é convidado para fazer parte

de uma banca de prestígio, ficará em débito com o seu “anfitrião”. Como o RSDT circulará

em diversas comissões para ser comentado e servir de base para outros relatórios, haverá

um fenômeno de feed-back em relação à participação em bancas julgadoras: alguns

acadêmicos que têm a reputação de serem severos em seus julgamentos não serão tão

convidados quanto aqueles que têm a reputação de serem condescendentes. Passo a passo,

o mundo acadêmico como um todo é envolvido, sendo considerado como um vasto sistema

no qual a reputação é intercambiada. (Hagstrom, 1965).

Assim como qualquer outro gênero, o RSDT tem como intenção modificar a

situação da qual participa. Sua finalidade explícita é avaliar uma tese e, até certo ponto, o

desempenho do candidato durante uma sessão de defesa. Mas uma de suas finalidades

implícitas é contribuir para o gerenciamento do complexo sistema de relações entre os

membros do mundo acadêmico.

SESSÃO DE DEFESA E RELATÓRIO DE DEFESA

O RSDT deveria ser o vestígio de um outro discurso, um evento de discurso oral,

isto é, a sessão de defesa, que dura, geralmente, três ou quatro horas e deve ser realizada

diante de um público composto, principalmente, por amigos, colegas e parentes do

candidato. Na banca, há de quatro a cinco examinadores, que falam durante a sessão. A

Page 138: Unidades tópicas e não-tópicas

sessão começa com uma exposição do candidato, seguida por interações entre o candidato e

cada membro da banca, algumas vezes entre os membros da banca. Apenas o público é

excluído da interação. Muito pouco disso permanece no RSDT. É claro que o relatório é

escrito depois da sessão, algumas vezes várias semanas depois, mas a razão pela qual o

RSDT é tão diferente da sessão é que esses dois gêneros têm dois status bastante distintos:

um é uma interação ritualizada, é um ato social de “investidura” acadêmica, o outro é um

texto feito para durar, um monumento, no sentido etimológico da palavra. Portanto,

podemos entender facilmente por que, em geral, comentários negativos ditos durante a

sessão são consideravelmente atenuados no RSDT. De fato, é de interesse dos membros da

banca, durante a sessão, valorizar sua face positiva às custas da face positiva do candidato:

mostrar sua capacidade crítica justifica sua presença na banca. Mas não é interessante fazer

o mesmo no RSDT: considerando as múltiplas relações entre os membros da comunidade

científica e o complexo sistema de trocas no qual estão todos envolvidos, a inscrição

irreversível de uma reprovação severa em um documento oficial pode voltar-se contra seu

autor.

No teatro, os espectadores percebem dois atos de comunicação simultâneos: um

entre o autor da peça e o espectador, o outro entre os atores. Em uma sessão de defesa, o

cenário é bem diferente: as interações entre os membros da banca são voltadas

indiretamente para o público. Em termos de “estrutura de participação” (Goffman, 1981), o

público é constituído de “extra-ouvintes” a quem não é dirigida a palavra, mas o falante

está consciente de sua presença e se comporta de acordo com isso. Clark e Carlson (1982)

falam de “participantes laterais” para se referirem a este tipo de cenário no qual o público

desempenha um papel, embora não tome parte na interação. Diferentemente dos “triálogos”

(Kerbrat-Orecchioni and Plantin eds., 1995) dos gêneros midiáticos, a sessão de defesa de

tese não tem nem produtores nem apresentadores: trata-se de um ritual no qual várias

pessoas comandadas pela instituição cooperam informalmente (isto é, sem nenhum

treinamento explícito); seguem regras jurídicas, usos tácitos da comunidade acadêmica à

qual pertencem e, também, máximas conversacionais.

Além disso, essa situação de “triálogo” é diferente daquelas de alguns programas de

TV ou rádio. (Charaudeau, 1991, Antona, 1995) nos quais espectadores silenciosos

representam um público invisível para o qual o programa é, na verdade, dirigido. Nas

Page 139: Unidades tópicas e não-tópicas

cortes, não é o público, mas o acusado, o advogado, o jurado que desempenham o papel

principal, como fazem, em uma defesa de tese, o candidato e a banca. Como os membros

da banca pertencem à parte mais influente da comunidade acadêmica, como o orientador da

tese faz parte da banca, como as relações entre os examinadores são, geralmente,

ambivalentes e são desempenhadas em diferentes níveis (pessoal, científico, institucional),

como a avaliação da tese é um marco muito importante na carreira do candidato, as

interações, ainda que discretas, entre os membros da banca no decorrer da sessão são

fundamentais. Quando um examinador está envolvido em uma interação com o candidato,

suas intervenções são inevitavelmente direcionadas aos outros membros. Mas essa

abundância de sinais é lateral; apenas “os de dentro” – que conhecem o estado das relações

entre os membros da banca – são capazes de dar a eles seu verdadeiro sentido.

Nessas circunstâncias, o RSDT tem que ser radicalmente diferente da sessão de

defesa: o primeiro não pode ser o vestígio, nem mesmo algum tipo de resumo do segundo.

São gêneros independentes, assim como o são uma performance teatral e a sua resenha em

um jornal. Devem ser sublinhados os contrastes entre um gênero que é basicamente teatral

e um gênero narrativo que implica um distanciamento do cenário do evento discursivo

original. O RSDT é um texto feito para ser guardado nos arquivos, voltado a leitores que

não estiveram presentes na sessão de defesa.

Como em muitos gêneros administrativos, os autores do RSDT utilizam muitas

fórmulas estereotipadas e estruturas pré-estabelecidas que são consideradas “normas” de

um texto escrito (Gülich and Krafft, 1997: 242). Essas fórmulas desempenham um papel

central nos gêneros discursivos “fechados”, uma vez que são um tipo de código que

permite que o autor mostre que pertence à comunidade: “a estrutura é reconhecida

simplesmente porque ela é conhecida, porque ela é parte de um código ao qual se tem

acesso (como membro de um grupo ou como coordenador de um dicionário de idiomas)”

Assim, ao “reconhecer” a estrutura, pode-se “reconhecer seu autor como membro de sua

comunidade” (1997: 257). Não estudarei essas fórmulas estereotipadas neste artigo, mas

elas são um componente essencial deste gênero.

OS CONSTITUINTES DO GÊNERO

Page 140: Unidades tópicas e não-tópicas

Vou apenas indicar algumas características do RSDT sem tentar propor um modelo

que seja válido para qualquer gênero do mesmo tipo.

Objetivo

A finalidade explícita do RSDT é a avaliação de uma tese e do desempenho do

candidato durante a sessão de defesa. Essa avaliação é exposta em um documento que

permite a outros representantes da instituição avaliar a aptidão do candidato para obter um

cargo no campo de pesquisas. Mas, como é comum nas ciências sociais, “o objetivo de

práticas sociais, ou de segmentos delas pode ser construído diferentemente nas diferentes

re-contextualizações desta prática (...) Elas são acrescentadas às atividades ou à seqüência

de atividades no discurso. E, por isso, elas são, com freqüência, tema de controvérsia e

debate” (Van Leuwen and Wodak, 1999 : 98). O problema foi identificado por Hymes

(1972) quando pensou sobre o componente “FINALIDADES” no seu modelo de FALA.

Esse é um aspecto da questão da diferença entre explícito e implícito, finalidade direta e

indireta.

Lugar

O lugar das sessões de defesa de tese é regido por restrições jurídicas: a sessão

precisa acontecer no território da universidade onde o orientador da tese trabalha, um

território que pode ser definido com base em critérios legais. Mas para o RSDT, a noção de

“lugar” é, inevitavelmente, mais abstrata: seu “lugar” não são os lugares empíricos onde é

escrito (os membros da banca podem escrever suas contribuições tanto na praia quanto em

seus escritórios), mas o lugar ao qual ele é destinado, o lugar onde ele é arquivado (como

regra, uma universidade ou alguma outra instituição de pesquisa). Outro aspecto

relacionado ao seu “lugar” diz respeito ao espaço no qual ele pode circular. Existe um

“lugar de nascimento” jurídico do RSDT, que mantém o documento e a gravação da sessão

de defesa em sua “memória” (de fato, em arquivos). O documento original pertence à

universidade e uma cópia é dada ao candidato (que não conhece com antecedência o

Page 141: Unidades tópicas e não-tópicas

conteúdo do relatório sobre sua tese). Há, também, o espaço em que o relatório é usado

para avaliar o candidato: as várias comissões que terão que basear nele suas avaliações.

Tempo

A inscrição temporal do RSDT pode ser considerada de pontos de vista variados:

diferentemente de gêneros como notícias veiculadas pela mídia ou pela TV, não podemos

falar em “periodicidade” para o RSDT. Ele acontece diversas vezes ao ano (de fato, com

mais freqüência em alguns períodos do que em outros), mas não há intervalos pré-

estabelecidos entre duas ocorrências. Sua “iteratividade” pode ser apreendida de maneiras

diversas: pela universidade onde ocorre a sessão de defesa, pelo orientador da tese, pelo

candidato, pelos membros da banca. Para o candidato, o RSDT é um documento único (em

princípio, alguém defende apenas uma tese na sua vida, pelo menos na mesma disciplina);

para quem escreve o relatório (o orientador e os examinadores externos), trata-se de uma

prática reiterada: o orientador da tese será, a priori, orientador de outras teses, e durante

suas carreiras os membros da banca participarão de muitas outras bancas. No entanto,

alguns orientadores são muito solicitados, outros, muito pouco: isso dependerá da fama e

do poder do pesquisador, mas também da sua disposição para orientar estudantes. Já os

membros da banca vão de uma banca para a outra intercambiando seus papéis: o presidente

da banca (que pode não ser o orientador da tese) recebe o papel orientador, o orientador

recebe o papel de presidente, e assim por diante. Se, por exemplo, em uma apresentação

anterior, um membro de uma banca X tem seu aluno severamente criticado por um colega

Y, isso pode influenciar o comportamento de X se ele vier a ser membro de uma banca em

que o candidato é um orientando de Y. Qualquer membro do mundo acadêmico sabe disso,

e sabe que os outros sabem que ele sabe disso, e assim por diante: um caso clássico de

conhecimento mútuo que regula o sistema. Logicamente, um examinador será incitado a

escrever um relatório cauteloso se ele sabe que mais tarde precisará de um favor do

orientador da tese que ele está avaliando.

Saber aproximadamente quanto tempo é necessário para a realização de um gênero

é parte essencial da competência genérica. Nenhuma regra explícita determina o tamanho

que um RSDT deve ter, mas existem algumas normas, que resultam da negociação entre

Page 142: Unidades tópicas e não-tópicas

várias restrições. Os autores de um RSDT devem produzir um texto suficientemente

informativo e preciso, que cumpra os propósitos do gênero, mas que não seja muito longo

(senão ele não será realmente lido pelos especialistas). Além disso, eles não querem gastar

muito tempo com isso: escrever um RSDT é considerado, em geral, uma tarefa

“enfadonha” e inevitável. Diferentemente da sessão de defesa, que é um ato social com

algum prestígio, escrever um relatório é uma obrigação burocrática que não valoriza seus

autores. Como um dos efeitos da necessidade de ajustar informatividade com o custo de

escrever e ler o relatório, uma norma tácita estabelece que cada membro da banca deve

escrever cerca de duas páginas.

Cada texto publicado é válido por um certo período, de acordo com o seu gênero:

uma revista mensal é válida por um mês, a Bíblia afirma ser eternamente válida, e assim

por diante. Como muitos documentos jurídicos, o RSDT não pode perder a validade. Essa é

uma das razões pelas quais os autores tendem a suavizar os julgamentos expressos durante

a sessão de defesa: eles sabem que o relatório não pode ser destruído ou modificado depois

de arquivado. Na verdade, essa restrição pode ser modalizada: um acadêmico que publicou

muitos artigos e livros tem pouco a temer de um RSDT, mas a situação é bem diferente

para quem está começando sua carreira. Não há dúvida de que um RSDT “ruim” pode ser

um empecilho, e isso explica porque a escrita de tal documento está submetida a um

controle rígido.

Apresentação do documento

O relatório é constituído de uma sucessão de folhas impressas (hoje, como regra,

com um processador de texto); pode ser curto (4 ou 5 páginas) ou longo (20 páginas, às

vezes mais). A maioria é constituída de cerca de 10 páginas. Algumas vezes, a disposição

material do texto não é perfeita (tinta desbotada, fontes ou espaçamentos heterogêneos...), o

que contrasta com a disposição perfeita esperada da tese do candidato. Isso é um efeito da

natureza dos dois gêneros. O candidato está em uma posição “inferior”, ele precisa propor

um objeto atraente para a banca. Por outro lado, o relatório é escrito por pessoas que

ocupam posições “superiores” e sua função é, principalmente, administrativa: o acadêmico

que escreve tais textos não espera nada em troca, exceto ser considerado adequado ao papel

Page 143: Unidades tópicas e não-tópicas

que a instituição lhe conferiu. É também uma questão de “aparência”: “no caso de

comunicações escritas, a apresentação e o estilo de documentos escritos precisa substituir a

apresentação e o estilo dos participantes. Com uma carta sem um logotipo colorido no

cabeçalho, com uma fonte uniforme e impessoal, o estilo burocrático pode expressar os

mesmo valores que um terno e uma gravata cinzas, sem sequer mencionar qualquer cor”

(Van Leeuwen and Wodak, 1999: 95). A “aparência” é um aspecto daquilo que tenho

chamado de ethos discursivo de textos escritos (Maingueneau 1987, 1998, Amossy, ed.,

1999): eles implicam uma “voz” que tem um tom específico. Os leitores (a partir de sinais

heterogêneos dados pelo texto) constroem uma figura mais ou menos definida do corpo do

falante que corresponde ao texto. A aparência do RSDT não deve ser rebuscada, porque

deve estar de acordo com um ethos austero. Um “bom” RSDT é simplesmente um

documento “limpo”, com uma fonte homogênea e de fácil leitura. Tal austeridade implica

um leitor modelo que adere aos valores tradicionais da ciência, considerada como a busca

da Verdade: supõe-se que um cientista prototípico não se preocupa com a “forma” às custas

do “conteúdo”.

Como qualquer gênero discursivo estritamente controlado por instituições, o RSDT

está associado a uma superestrutura específica e convencional (Van Dijk, 1981), altamente

previsível. J.-M. Adam (1999:69) prefere usar o termo “plano de texto”, que é

historicamente especificado e que permite ao produtor construir e ao destinatário

reconstruir a organização global dos textos de tal ou tal gênero. O plano de texto de um

RSDT pode ser facilmente aprendido por ser altamente ritualizado. Pode ser analisado

como uma sucessão de etapas:

(1) Indicações paratextuais: rótulo genérico (“Rapport sur la soutenance de la

thèse…” ) (“Relatório da sessão de defesa de tese...”), nome do candidato, título da

tese, disciplina, dia e lugar do evento, nome do orientador e dos outros participantes

da banca;

(2) Resumo da exposição do candidato (esta etapa não é obrigatória);

(3) Intervenções de todos os membros da banca; a transição de uma intervenção para

outra é feita por meio de fórmulas: “Le Professeur /M. / Mme X prend alors la

parole/intervient à son tour…” (“O Professor/Sr./Sra. X começa a falar/intervêm na

Page 144: Unidades tópicas e não-tópicas

sua vez …”). As intervenções são apresentadas de acordo com a sua ordem na

sessão de defesa. Essa ordem obedece a regras rígidas: por exemplo, a intervenção

do presidente é sempre a última;

(4) Avaliação final (decisão da banca, distinção);

(5) Assinatura de todos os membros da banca.

Indicações paratextuais (etapa (1)) são passíveis de variações:

“Rapport sur la soutenance de la thèse de doctorat de X” (“Relatório da sessão de

defesa da tese de doutorado de X”);

“Rapport sur la soutenance de la thèse présentée par X” (“Relatório da sessão de

defesa de tese apresentada por X”);

“Rapport de soutenance. Thèse de X” (“Relatório de Sessão de Defesa. Tese de

X”);

“Rapport sur la soutenance de thèse de X” (“Relatório da sessão de defesa da tese

de X”);

“Rapport de soutenance de thèse en vue du doctorat de l’université Y. Thèse

soutenue par X” (“Relatório da sessão de defesa da tese de doutorado da

universidade Y. Tese defendida por X”).

As assinaturas dos membros da banca são precedidas por fórmulas que não são

exatamente frases feitas; variações na tipografia podem também ser notadas:

(a) “Après avoir délibéré, le jury accorde à Monsieur X le grade de DOCTEUR DE

L’UNIVERSITE DE Y avec la mention: TRES HONORABLE avec

FELICITATIONS” (“Depois de ter deliberado, a banca concede ao Sr. X o grau de

DOUTOR PELA UNIVERSIDADE Y, com a distinção: MUITO HONROSA e com

CONGRATULAÇÕES60);

60 NT: A expressão correspondente, no Brasil, seria “X é considerado(a) aprovado(a) COM DISTINÇÃO E LOUVOR”. No entanto, optei por traduzir a expressão palavra por palavra para que as análises feitas pelo autor façam sentido.

Page 145: Unidades tópicas e não-tópicas

(b) “Après délibération, le jury déclare Madame X digne du titre de docteur (spécialité

= sciences du langage), et lui décerne la mention Très Honorable avec

félicitations, à l’unanimité. (En réponse à la demande du Conseil scientifique de

l’université X, le jury précise qu’il estime ce doctorat digne d’être proposé pour un

prix et/ou une subvention pour publication” (“Depois da deliberação, a banca

declara a Sra. X digna de receber o título de doutora (especialidade: ciências da

linguagem), e concede-lhe, por unanimidade, a distinção Muito honrosa e com

congratulações. (Em resposta à solicitação do Conselho Científico da universidade

Y, a banca torna explícito que considera este doutorado apto a ser indicado para

um prêmio e/ou receber um auxílio para publicação)”);

(c) “Après avoir délibéré, le jury, à l’unanimité, accorde la mention TRÈS

HONORABLE AVEC FELICITATIONS à X” (“Depois de ter deliberado, a

banca, por unanimidade, atribui a distinção MUITO HONROSA E COM

CONGRATULAÇÕES a X”);

(d) “Le jury, après avoir délibéré, déclare Madame X digne du titre de Docteur de

l’Université de Y, en Sciences du langage, avec la mention très honorable avec

felicitations, à l’unanimité” (“A banca, depois de ter deliberado, declara a Sra. X

digna do título de Doutora pela Universidade Y, em Ciências da Linguagem, com

distinção muito honrosa e com congratulações, por unanimidade”);

(e) “Après délibération du jury, Monsieur X a été déclaré digne du titre de Docteur

d’Université, avec la mention Très Honorable, à l’unanimité” (“Depois da

deliberação da banca, o Sr. X foi declarado digno do título de Doutor da

Universidade, com distinção muito honrosa, por unanimidade”);

(f) “Après une courte délibération, les membres du jury s’accordent pour attribuer la

mention ‘Très Honorable’. Elle leur paraît bien correspondre à l’appréciation portée

sur le candidat: un chercheur dont le potentiel est évident, capable de proposer et

d’élaborer une ‘thèse’ (au sens plein du mot), dans un domaine où il a commencé à

marquer sa place. Il manque encore un effort de conceptualisation et de

modélisation que l’on sent tout à fait à la portée du candidat” (“Depois de breve

deliberação, os membros da banca concordaram em conceder a distinção ‘Muito

honrosa’. Pareceu a eles que tal distinção corresponde bem à avaliação do

Page 146: Unidades tópicas e não-tópicas

candidato: um pesquisador cujas possibilidades são evidentes, capaz de propor e

elaborar uma ‘tese’ (no sentido pleno da palavra), em um domínio no qual ele

começou a deixar a sua marca. Um esforço de conceitualização e de modelização é

ainda necessário, o que sem dúvida está ao alcance do candidato”).

Reproduzi as fontes originais: como podemos ver, os autores usam livremente

negrito e caixa alta para realçar aquilo que querem. Várias frases feitas são usadas para se

referir a uma mesma coisa: “accorder le grade de…” (“conceder o grau...”), “déclarer

digne du titre de…” (“declarar digno do título…”), “s’accorder pour attribuer la

mention…” (“concordar em atribuir a distinção…”), “accorder la mention…” (“conceder

a distinção…”). Alguns especificam a disciplina a qual a tese pertence, outros não. A única

coisa que parece estável é a fórmula introdutória: “après avoir délibéré/délibération”

(“depois de ter deliberado/da deliberação”), provavelmente por ser um importante

marcador de fronteiras, que marca a passagem das sucessivas intervenções ao veredicto,

atribuído coletivamente pela banca. Vale notar que (b) e (f) comentam a distinção

concedida, mas por motivos opostos: em (b) o comentário diz, indiretamente, que a tese foi

muito bem avaliada, enquanto que em (f) podemos inferir que se trata de um doutorado

bem medíocre.

As intervenções dos membros da banca estão submetidas a um roteiro que estipula

que devem ser dados primeiros os aspectos positivos, depois os negativos, e então deve-se

concluir com uma avaliação global. Este é, pelo menos, o roteiro típico, esperado pela

comunidade acadêmica. A avaliação é estruturada como uma espécie de tópico (no sentido

retórico), cujos dois pólos são a apresentação do texto (tipografia, ortografia, estilo,

bibliografia, projeto) e o interesse científico da tese (corpus, tema, metodologia,

conclusões). Os examinadores podem ignorar o primeiro pólo deste tópico, mas nunca o

segundo.

Autores e destinatários

UM AUTOR PLURAL

Page 147: Unidades tópicas e não-tópicas

O RSDT requer “autores” (os participantes da banca) legitimados pela instituição,

detentores de títulos cuja relação está estabelecida em documentos jurídicos. Sua

legitimidade está baseada apenas no status acadêmico da banca: sexo, nacionalidade, idade,

religião não são pertinentes. Mas a fabricação material do texto é de responsabilidade de

apenas uma pessoa, que chamarei de compilador. Ele não é mencionado no texto, é

realmente um anônimo: se alguém conhece as regras tácitas do gênero, pode imaginar

quem é ele (em geral, o presidente da banca). Porém, a responsabilidade pelo veredicto e a

responsabilidade pelo relatório como um todo é coletiva. Temos, aqui, a manifestação de

uma estrutura de autoria bastante comum no discurso jurídico. Mas se “o Estado”, “a

Corte”, “a Companhia X”, etc. são normalmente representados por um membro da

coletividade (em geral, o presidente), que apõe sua assinatura em nome desta coletividade,

no caso do RSDT todos os membros da banca assinam seus nomes. Isso resulta,

provavelmente, do fato de que cada um, em outro nível, é responsável por sua própria

intervenção.

Portanto, no RSDT a avaliação é ao mesmo tempo divisível e indivisível: divisível

no que diz respeito a cada intervenção (“Sr. X intervém para dizer que...”) e indivisível no

momento do veredicto (“a banca declara...”). Este fenômeno está ligado à ambigüidade

desse gênero, que é, ao mesmo tempo, uma avaliação feita por diferentes pessoas, vários

acadêmicos de uma mesma disciplina, e a “história”, contada a partir de um ponto de vista

neutro, de um evento: a defesa.

O compilador, o acadêmico que “prepara” o texto, desempenha dois papéis:

ele é um organizador, é quem reúne e organiza as diferentes intervenções,

preocupa-se em conseguir as assinaturas, ocupa-se da apresentação material do

texto, adiciona o paratexto;

Page 148: Unidades tópicas e não-tópicas

ele é o narrador também: resume a exposição do candidato61 (mas nem sempre),

insere algumas transições62 e escreve a conclusão — de fato, o veredicto — algumas

vezes com um comentário.

Fiz a distinção em duas partes: narrador e organizador. O “organizador” torna o

texto materialmente compatível com as normas da instituição. O papel do “narrador”

consiste em converter as intervenções orais da apresentação em estágios de uma história.

Ao invés de mencionar as falas, ele precisa “encaixá-las” em uma sucessão de ações:

“Então, o Sr. X intervém e declara que...”, “A Sra. Y intervém e ressalta que....”. Hoje, o

papel de narrador não é dado, em geral, apenas ao compilador, mas é, de fato, distribuído

entre os membros da banca, que são co-narradores de suas próprias intervenções.

No entanto, nem sempre foi assim. É possível distinguir duas fases na produção do

RSDT:

(a) uma situação tradicional, em que um único escrevente era, ao mesmo tempo,

“organizador” e “narrador” e resumia as intervenções dos outros membros em um

relatório em que todos assinavam. Do ponto de vista material, o texto era

homogêneo (um espaçamento, uma fonte...);

(b) em uma outra fase, o escrevente apenas reunia os textos, justapondo-os de acordo

com a ordem das intervenções durante a sessão de defesa. Este é o modo que

prevalece hoje. Tal simplificação se tornou possível porque os membros da banca

aceitaram escrever suas contribuições na terceira pessoa do singular, prontas para

serem inseridas no relatório. De fato, há duas variantes, às vezes presentes no

mesmo texto. Na primeira variante, as diferentes contribuições são justapostas, e o

texto completo é fotocopiado (de modo que o compilador não precisa digitar os

61 Por exemplo: “La soutenance débute à 14H15. Le Président donne la parole à X qui, en moins d’une demie-heure, présente sa recherche avec beaucoup d’aisance, de sobriété et de clarté, en fait un bilan lucide et constructif, et trace des perspectives d’avenir pour continuer et élargir son travail à la fois dans le domaine strictement linguistique et dans le domaine didactique” (“A defesa começa às 14h15. O Presidente dá a palavra a X que, em cerca de meia hora, apresenta sua pesquisa com grande facilidade, sobriedade e clareza, faz um balanço lúcido e construtivo de sua pesquisa e propõe futuras possibilidades de continuar e estender o seu trabalho no domínio estrito da lingüística e no domínio didático”). 62 Por exemplo: “Le Président donne la parole à X, le rapporteur de la thèse, qui commence par complimenter Madame Y pour la présentation très claire et très complète qu’elle a faite de ses travaux “ (“O Presidente dá a palavra a X, relator da tese, que começa parabenizando a Sra. Y pela apresentação muito clara e completa fez de sua pesquisa”).

Page 149: Unidades tópicas e não-tópicas

textos novamente). O resultado de tal procedimento é um texto materialmente não

homogêneo (com várias fontes, tinta mais ou menos desbotada, margens

variadas...). Na segunda e mais recente variante, os membros da banca mandam um

arquivo por e.mail ou entregam um disquete ao compilador, que apenas “organiza”

o texto em um computador. O resultado é um texto perfeitamente homogêneo.

Como tem sido freqüentemente observado por analistas do discurso, evoluções que

à primeira vista são meramente técnicas trazem conseqüências consideráveis em um nível

diferente, se elas reforçam uma evolução de um outro tipo. Trata-se do caso aqui abordado.

O fato de cada examinador escrever sua própria intervenção referindo-se a si

mesmo na terceira pessoa tem um efeito no tom e no conteúdo. Como não há mais um

autor verdadeiro, responsável tanto pela organização quanto pela narração do texto, cada

um, de acordo com regras de ação de coordenação, deve escrever sua própria intervenção

ignorando as reações dos outros membros com quem divide a escrita do texto. Sob tais

circunstâncias, cada um tende a escrever de acordo com rotinas de escrita estabelecidas

pelo gênero, para neutralizar sua singularidade e com a finalidade de produzir um texto

“liso”, que pode facilmente ser ajustado às contribuições dos outros. Em geral, adaptam-se

ao ethos distante e à cena discursiva impostos pelo gênero.

Esse novo procedimento aprofunda uma forte tendência no modo de escrever tais

relatórios: os membros das bancas apresentam poucas avaliações negativas explícitas, o

que exige do leitor a capacidade de ler as críticas nas entrelinhas. Há, aqui, a intervenção de

um processo de conhecimento mútuo, bem conhecido pelos especialistas em pragmática: X

sabe que Y conhece as regras, Y sabe que X conhece as regras e que X sabe que Y conhece

as regras..., e assim por diante. Aqueles que contribuem com o relatório estão cientes da

importância deste gênero para a carreira dos pesquisadores, sabem também que as pessoas

interessadas neste documento (principalmente o candidato, seu orientador e os grupos aos

quais eles pertencem) sabem de sua importância; nessas circunstâncias, eles sabem que

suas contribuições serão julgadas por outros membros da comunidade acadêmica e que

uma avaliação excessivamente negativa (consideradas as normas implícitas da disciplina

em uma certa época) pode voltar-se contra eles. Logicamente, um sistema como esse

necessariamente tende a neutralização das avaliações, de modo a produzir muito poucas

Page 150: Unidades tópicas e não-tópicas

assimetrias na rede de trocas. Conseqüentemente, os membros da banca têm lealdades

divididas: eles precisam neutralizar seus julgamentos a fim de não terem inimigos e

obedecer às normas transcendentes das instituições acadêmicas que requerem deles um

julgamento baseado em suas convicções profundas. Desta forma, há uma difícil negociação

entre a legitimação por meio de uma boa interação com a comunidade e a legitimação por

meio das normas que fundam essa comunidade.

DESTINATÁRIOS E ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Quando falamos do “leitor” de um texto, isso pode significar muitas coisas

(Maingueneau: 1990): o público real (as pessoas que lêem o texto), o público genérico (o

público para quem o texto é destinado), o leitor modelo (o tipo de leitor que pode ser

inferido a partir das propriedades do texto), o leitor invocado (aquele explicitamente

especificado pelo texto).

O “público real” do relatório não é, a priori, muito diferente do “público genérico”:

apenas alguns parentes e amigos do candidato, algumas pessoas que trabalham nas

secretarias das instituições acadêmicas, às vezes, alguns analistas do discurso... não

pertencem ao “público genérico”. Esse público genérico não é determinado por meio de

alguma regra explícita que estipularia quem pode ler um RSDT: é o modo como esse

gênero circula que especifica o público, constituído, normalmente, do candidato e das

comissões acadêmicas para as quais esse tipo de documento é entregue. O “leitor modelo”

pode ser facilmente delineado: como um gênero discursivo “fechado”, o RSDT, em

decorrência das suas propriedades lingüísticas, discursivas e enciclopédicas, implica

leitores que pertencem ao mundo acadêmico ou estão familiarizados com ele.

O autor de um RSDT precisa antecipar as estratégias de leitura. Esse gênero permite

duas estratégias principais:

Leitura integral, que segue a continuidade do texto: essa é a leitura prescrita;

Leitura seletiva feita por um leitor especialista que, dominando as regras do gênero,

escolhe algumas passagens destacáveis (particularmente a relação de membros da

banca; as conclusões de cada intervenção, a avaliação final, a distinção concedida).

Page 151: Unidades tópicas e não-tópicas

O gênero favorece uma leitura não-linear, uma vez que é composto de intervenções

que são independentes umas das outras.

Ambas as estratégias são esperadas pelos autores, que são também leitores desse

gênero. Por isso, eles enfatizam cuidadosamente sinais de demarcação entre as

intervenções, geralmente fechados por uma fórmula avaliativa sintética, que é, ao mesmo

tempo, um sinal de fim e um resumo. Abaixo estão alguns exemplos:

“X conclut son intervention en disant le plaisir qu’il a eu à découvrir ce travail et

tous les vœux qu’il forme pour sa très large diffusion” (“X conclui sua intervenção

dizendo o quão gratificante foi avaliar este trabalho e que deseja que ele seja

largamente difundido”);

“En conclusion X estime que Mme Y a réalisé une très bonne thèse”

(“Resumidamente, X juga que a Sra. Y produziu uma tese muito boa”);

“Très satisfait des réponses apportées par la candidate, X se joindra à ses collègues

pour attribuer la mention Très Honorable avec Félicitations”(“Muito satisfeito com

as respostas dadas pelo candidato, X se juntará aos seus colegas para conceder a

distinção Muito Honrosa e com Congratulações”);

“Ces réserves faites, X félicite le candidat pour l’ampleur et la richesse de son

travail” (“Feitas essas ressalvas, X parabeniza o candidato pelo fôlego e riqueza de

seu trabalho”);

“Mais que ces légers regrets ne fassent pas oublier l’essentiel: la thèse de X

constitue un pas important dans un domaine riche et négligé”.(“A despeito dessas

pequenas ressalvas, não devemos esquecer do ponto principal: a tese de X constitui

um passo importante em um campo rico e negligenciado”);

“M X conclut en soulignant la cohérence de ce travail qui force le respect par son

sérieux et sa rigueur” (“Sr. X conclui enfatizando a coerência deste trabalho cuja

seriedade e rigor impõem respeito”).

UMA INTERPRETAÇÃO EM DOIS NÍVEIS

Page 152: Unidades tópicas e não-tópicas

Suponhamos que a seguinte sentença tenha sido retirada de um relatório: “X é um

pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade”. Em um primeiro

nível, para falantes que não pertencem ao mundo acadêmico, isso é um cumprimento. Mas,

em um segundo nível, o leitor especialista provavelmente interpretará tal sentença

significando, ao contrário, que o candidato é um pesquisador muito medíocre.

Esse exemplo é bastante artificial, porque a avaliação (positiva/negativa) não é

construída a partir de uma sentença isolada, mas a partir da convergência de vários

indicadores que são ponderados em um cálculo. Um curto cumprimento depois de uma

longa série de reprovações não terá o mesmo valor que o mesmo cumprimento feito no

começo de uma série de proposições elogiosas. O movimento argumentativo que envolve a

sentença também é importante. Comparemos essas duas contextualizações distintas do

nosso exemplo:

(1) “X est un chercheur méticuleux dont le travail se signale par son sérieux (E1). Mais

c’est aussi un chercheur audacieux qui ouvre des pistes nouvelles (E2)” (“X é um

pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade (E1). Mas é

também um pesquisador audacioso que abre novos caminhos (E2)”);

(2) “X est un chercheur méticuleux dont le travail se signale par son sérieux (E1).

Il/elle a patiemment relevé toutes les occurrences et dressé des tableaux (E2)” (“X é

um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade (E1). Ele

pacientemente gravou todas as ocorrências e fez tabelas (E2)”).

Em (1), o autor usa um topos argumentativo (Anscombre, 1995): “quanto mais sério

você é, menos criativo você é”, e o inverte em benefício do candidato, eliminando o topos

oposto, negativo nas disciplinas empíricas: “quanto mais criativo você é, menos sério você

é”. Como resultado, E1 é elogioso. O valor argumentativo de “mais” (mas), como

freqüentemente é o caso, permite reverter a direção argumentativa (Ducrot et al., 1980).

Por outro lado, em (2) a segunda proposição confirma o valor negativo de E1, que é

ilustrado por um exemplo.

Page 153: Unidades tópicas e não-tópicas

Vejamos, agora, três fórmulas conclusivas retiradas de nosso corpus. A primeira já

foi mencionada anteriormente:

(a) “Après une courte délibération, les membres du jury s’accordent pour attribuer la

mention ‘Très Honorable’. Elle leur paraît bien correspondre à l’appréciation portée

sur le candidat: un chercheur dont le potentiel est évident, capable de proposer et

d’élaborer une ‘thèse’ (au sens plein du mot), dans un domaine où il a commencé à

marquer sa place. Il manque encore un effort de conceptualisation et de

modélisation que l’on sent tout à fait à la portée du candidat” (“Depois de breve

deliberação, os membros da banca concordaram em conceder a distinção ‘Muito

honrosa’. Pareceu a eles que tal distinção corresponde bem à avaliação do

candidato: um pesquisador cujas possibilidades são evidentes, capaz de propor e

elaborar uma ‘tese’ (no sentido pleno da palavra), em um domínio no qual ele

começou a deixar a sua marca. Um esforço de conceitualização e de modelização é

ainda necessário, o que sem dúvida está ao alcance do candidato”)

(b) “Après délibération, le jury décerne à X le titre de docteur en Y avec la mention très

honorable et les félicitations du jury” (“Após deliberar, a banca concede a X o

título de doutor em Y com a distinção muito honrosa e com congratulações da

banca”);

(c) “Après en avoir délibéré, le jury déclare X digne du titre de docteur en…, et lui

accorde la mention très honorable avec les félicitations du jury, mention accordée à

l’unanimité” (“Depois de ter deliberado, a banca declara X digno do título de

doutor em Y, e concede-lhe a distinção muito honrosa e com congratulações da

banca, distinção dada por unanimidade”).

Em relação a (a), (b)-(c) são avaliações claramente muito mais positivas, como está

indicado pela diferença entre as duas distinções (com vs. sem congratulações). Já em

relação à (b) e (c), é difícil dizer qual é considerada melhor: será a convergência de

indicações presentes em todo o texto que permitirá ao leitor ler uma opinião boa ou ruim.

Essas estratégias de interpretação são típicas do gênero. Geralmente, tais fenômenos

são estudados em outros corpora. Os estudos pragmáticos trabalham, freqüentemente, com

Page 154: Unidades tópicas e não-tópicas

interações cotidianas. Por outro lado, práticas tradicionais de comentário preferem textos

que demandam uma abordagem hermenêutica, no sentido pleno da palavra, isto é, textos

(religiosos, literários...) que se acredita que contenham significados essenciais ocultos para

pessoas comuns. Quando um texto é considerado interno a uma “estrutura hermenêutica”

(Maingueneau, 1995), o intérprete precisa fazer mais do que entender este texto, ele precisa

postular que nenhuma interpretação pode ser realmente suficiente, que o texto está além de

qualquer interpretação. Não podemos falar de “atitude hermenêutica” para textos que são

apenas difíceis de entender, que precisam ser apenas esclarecidos, que não ocultam

qualquer segredo: este é o caso de textos jurídicos ou matemáticos, cujo sentido é obscuro

para as pessoas que não são especialistas.

A distinção entre estratégias interpretativas requeridas por conversações ordinárias

e por textos “hermenêuticos” é muito simplificadora. Na verdade, existem muitas práticas

interpretativas que não se ajustam a ela. Um bom exemplo é a fala psicoterapêutica, na qual

o psicólogo está sempre decifrando as palavras do paciente. Além disso, vários gêneros são

basicamente feitos para serem lidos por dois públicos: um público de “primeiro grau”, que

lê significados literais, e um público de “segundo grau”, que é capaz de extrair proposições

implícitas de um texto que, para pessoas comuns, pode parecer completamente unívoco.

Esse é tipicamente o caso de muitos discursos produzidos por diplomatas ou por políticos.

A dupla leitura é possível porque existem profissionais, especialistas (um público de

segundo grau) que compartilham do mesmo código que os produtores dos textos. Assim,

um discurso político na TV é imediatamente comentado por especialistas para os

telespectadores. Como resultado, esses gêneros são constituídos de forma a agradar as duas

audiências, que estão, com freqüência, fortemente associadas: no discurso político, as

interpretações dadas pelo público de segundo grau freqüentemente têm influência

considerável na recepção do público de primeiro grau.

Essa noção de público duplo é válida também para o RSDT. Em decorrência da

relação espelhada entre autores e leitores desse tipo de textos – uma conseqüência do fato

de se tratar de um gênero fechado – tal gênero é feito para ser lido nas entrelinhas pelos

membros competentes das instituições acadêmicas. Mas esta situação é diferente da

situação do discurso político, que realmente implica dois públicos que têm acesso a dois

níveis diferentes de sentido. Uma vez que o RSDT é, de fato, lido apenas, ou quase apenas

Page 155: Unidades tópicas e não-tópicas

por acadêmicos que pertencem a uma certa disciplina, muito poucas pessoas terão acesso

ao significado literal. Se alguém é membro de tais comunidades, ele deveria dominar a

interpretação desses textos. Além disso, enquanto comentadores políticos, de acordo com

suas posições políticas, divergem em relação a significados implícitos, em geral leitores

acadêmicos de um RSDT concordam no modo com o candidato deve ser avaliado: uma vez

que esse gênero é feito basicamente para a avaliação de uma tese e utiliza fórmulas

estereotipadas, isso não é realmente surpreendente.

Esse fenômeno é, de certa forma, remete àquilo que J. L. Austin (1975: 130) diz

sobre um ato ilocucionário realizado por meio de outro: se um jogador de bridge diz “três

de paus”, ele declara “três de paus”, mas também fornece ao seu parceiro a informação de

que ele não tem nenhuma carta de ouros, o que se dá em decorrência de uma convenção

extralingüística que é conhecida pelos jogadores de bridge. Do mesmo modo, quando se diz

“X é um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue pela sua seriedade”, declara-se o

conteúdo desse enunciado, mas veicula-se também a informação de que X é um

pesquisador medíocre. Pode acontecer, tanto para o bridge quanto para o RSDT, que o

receptor não domine as convenções, que no caso de bridge são abertamente ensinadas,

enquanto que no caso do RSDT são necessariamente aprendidas por meios informais.

A comparação entre essas duas práticas verbais não pode ir muito longe. O jogador

não tem outra solução a não ser apelar para a comunicação indireta, uma vez que ele não

pode, pelas regras do jogo, falar com o seu parceiro; assim, comunicação indireta é um

componente essencial do jogo. Um jogador que não aceitasse se comunicar indiretamente

não poderia jogar, pelo menos não de forma séria, com bons jogadores. Mas, o autor de um

RSDT que apela para comunicação indireta comporta-se do mesmo modo que em rotinas

convencionalizadas de polidez: pessoas obedecem a elas para serem aceitas na sociedade,

embora não sejam obrigadas a fazer isso; o membro de uma banca pode expressar

explicitamente sua avaliação. Isso se assemelha aos atos de fala indiretos (“você poderia

me passar um pouco de pão?”), que devem suavizar pedidos diretos. O que é paradoxal em

um pedido indireto como esse é o caráter explicitamente oculto do pedido: ele é ao mesmo

tempo oculto e perfeitamente explícito para qualquer falante. Do mesmo modo, em um

RSDT os membros da comunidade acadêmica ouvem enunciados cujo sentido implícito é

completamente claro. Porém, diferentemente dos atos de fala indiretos, declarações de

Page 156: Unidades tópicas e não-tópicas

bridge e enunciados de RSDT não são suspensos: a força ilocucionária de uma pergunta

como “você pode me passar o sal?” é suspensa pelo pedido, enquanto que a força

ilocucionária e o conteúdo de “X é um pesquisador meticuloso cujo trabalho o distingue

pela sua seriedade” ou de “Três de paus” não são suspensos.

Nessas circunstâncias, é possível indagar-se sobre a quem se destinam os

enunciados de “primeiro grau” de um relatório. Pode-se sugerir uma explicação para o fato

de que um enunciado poderia implicar dois lugares de destinatários: um ocupado por um

destinatário ingênuo, que teria acesso apenas aos significados de primeiro grau, o outro

ocupado por um destinatário de segundo grau, um especialista. Essa seria uma estrutura

polifônia (Ducrot 1984). Mas não desenvolverei este ponto neste artigo.

Seria interessante propor um teste. Passagens retiradas de relatórios seriam

apresentadas a três grupos distintos: pessoas instruídas que não pertencem ao mundo

acadêmico, acadêmicos que pertencem à disciplina e acadêmicos que pertencem a

disciplinas muito diferentes. Poderia ser verificado, assim, se pessoas que dominam as

regras de polidez são competentes o suficiente para interpretar corretamente as avaliações

expressas de maneira indireta nos relatórios. Caso contrário, poderia ser presumido que

dominar a interpretação destes relatórios não é um problema de polidez, mas um aspecto da

competência de qualquer acadêmico de qualquer disciplina. É possível, na minha opinião,

que algumas inferências possam ser feitas por qualquer um, algumas são reservadas aos

acadêmicos, e outras a acadêmicos que pertencem à disciplina do relatório. Outra série de

testes poderia ser feita com os indicadores que desencadeiam significados implícitos: ao

modificá-los, seria possível definir com mais precisão o papel desempenhado por eles na

interpretação.

Neste artigo estudei um gênero acadêmico. Além dos problemas específicos

inerentes a ele, acredito que essa análise discursiva pode levantar questões estimulantes

sobre a relação entre as propriedades lingüísticas de textos e as propriedades de

comunidades discursivas (Maingueneau, 1984), isto é, comunidades cuja função principal é

produzir e gerenciar certo tipo de textos. Uma das características essenciais da análise do

discurso é articular modos de dizer com instituições. As mais diversas comunidades

fechadas são similares no modo como lidam com os discursos: para elas, o discurso é, ao

Page 157: Unidades tópicas e não-tópicas

mesmo tempo, uma atividade “transitiva”, que tem como objetivo intervir em uma

realidade social, e uma atividade “intransitiva”, que permite aos membros do grupo

construir suas identidades. Por meio da produção de alguns gêneros acadêmicos

privilegiados, os autores estão constantemente legitimando o lugar que ocupam ou querem

ocupar. Às vezes também transformam, na maior parte das vezes de um modo quase

imperceptível, o próprio campo de suas atividades discursivas.

Referências bibliográficas:

ADAM J.-M. (1999), Linguistique textuelle. Des genres de discours aux textes, Paris,

Nathan.

ADAM Jean-Michel, HEIDMANN Ute, 2004, « Discursivité et (trans)textualité : La

comparaison pour méthode. L’exemple du conte », in L’Analyse du discours dans les

études littéraires, Amossy, R. et Maingueneau, D. (éds.), Toulouse, Presses

Universitaires du Mirail, 29-49.

ADORNO, Th. W. Quasi una fantasia. Trad. francesa Paris: Gallimard, 1981.

AMOSSY, R. (éd.) (1999), Images de soi dans le discours. La construction de l’ethos,

Lausanne, Delachaux et Niestlé.

ANSCOMBRE Jean-Claude (éd.), 2000, « La parole proverbiale », Langages 139.

ARISTOTE (1967), Rhétorique, Paris, Les Belles Lettres, trad. M. Dufour.

AUCHLIN, A.., 2001 : « Ethos et expérience du discours : quelques remarques », in

Politesse et idéologie. Rencontres de pragmatique et de rhétorique conversationnelle,

M. Wauthion et A.C. Simon (éds.), Louvain, Peeters, 77-95.

BARTHES, R., 1970 : « L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire », Communications, 16,

172-223.

BAUMLIN, J.S. et T.F., 1994 : Ethos. New Essays in Rhetorical and Critical Theory,

Dallas, Southern Methodist University Press

Page 158: Unidades tópicas e não-tópicas

BEACCO, J.-C. (1992), “Les genres textuels dans l’analyse du discours : écriture légitime

et communautés translangagières”, Langages n°105, p. 8-27.

BEACCO, J.-C. (ed.) (1999) L'astronomie dans les médias. Analyses linguistiques de

discours de vulgarisation. Paris: Presses de la Sorbonne nouvelle.

BENVENISTE Emile,1966, Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard. Edição

Brasileira: BENVENISTE, Emile, Problemas de Lingüística Geral I, Campinas,

Pontes, 1993.

BERGSON, H. (1951), Les deux sources de la morale et de la religion, Paris, PUF, (1° éd.

1932).

BERRENDONNER Alain, 1982, Eléments de pragmatique linguistique, Paris, Minuit.

BIBER, D. (1988), Variation across Speech and Writing, Cambridge, Cambridge Univesity

Press.

BRONCKART Jean-Paul et al., 1985, Le fonctionnement des discours. Un modèle

psychologique et une méthode d’analyse, Neuchâtel-Paris, Delachaux et Niestlé.

BROWN, G., Yule G. (1983), Discourse analysis, Cambridge, Cambridge University

Press.

CHARAUDEAU, P. (ed.) (1991) La télévision. Les débats culturels “Apostrophes”. Paris,

Didier.

CHARADEUAU, P. et MAINGUENEAU, D. éds. (2002), Dictionnaire d’analyse du

discours, Paris, Seuil.

CLARK, H.H., CARLSON, T.B. (1982) ‘Hearers and Speech Acts’, Language 58-2 : 332-

373.

COULMAS, F. (ed.) (1981) Conversational routine. The Hague/Paris/New York: Mouton.

CRUSE D. Alan, 1986, Lexical semantics, Cambridge University Press.

DARDY Claudine, DUCARD Dominique, MAINGUENEAU Dominique, 2001, Un genre

universitaire : le rapport de soutenance de thèse, Presses du Septentrion, Lille

DASCAL M. (1999), « L’ethos dans l’argumentation : une approche pragma-rhétorique »,

in R. AMOSSY (éd.), 61-74.

DEBRAY, R. (1991), Cours de médiologie générale, Paris, Gallimard.

DECLERCQ, G. (1992), L'art d'argumenter - Structures rhétoriques et littéraires, Paris,

Editions Universitaires.

Page 159: Unidades tópicas e não-tópicas

DELEUZE, G. (1968), Différence et répétition, Paris, PUF.

DESCOMBES Vincent, 1996, Les institutions du sens, Paris, Minuit.

DOMINICY, M. (1990), « Prolégomènes à une théorie générale de l’évocation », in

Vanhelleputte (Michel) éd., Sémantique textuelle et évocation, Louvain, Peeters, p.9-

37.

DUCARD Dominique, MAINGUENEAU Dominique, 2002, Le rapport de soutenance de

thèse. Un genre universitaire, Lille, Presses du Septentrion.

DUCROT Oswald, 1984, Le dire et le dit, Paris, Minuit. Edição Brasileira: DUCROT, O. O

dizer e o dito, Campinas, Pontes, ????

DUCORTO, O. (ed.) (1980) Les mots du discours. Paris, Minuit.

DUSZAK, A. (ed.) (1997) Culture and styles of Academic Discourse. Berlin-New York :

Mouton- De Gruyter.

FOUCAULT, M. (1969), L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard.

GANDARA, Lelia,1997, « Las voces del futbol. Analisis des discurso y cantos de cancha »,

Literatura y linguistica 10, 43-66, Universidad Catolica Blas Canas, Santiago (Chile).

GOFFMAN, E. (1981) Forms of talk. Philadelphie : Philadelphia University Press.

GOUVARD, Jean-Marie, 1999, «  Les Adages du droit français « , Langue française 123,

70-84.

GRÉSILLON, Almuth, MAINGUENEAU Dominique, 1984, « Polyphonie, proverbe et

détournement », Langages 73,112-125.

GÜLICH, E. and KRAFFT, U. (1997) “Le rôle du « préfabriqué » dans les processus de

production discursive”, in M. Martins-Baltar (ed.) La locution entre langue et usages.

Fontenay-aux-roses : ENS-Editions.

HAROCHE, C., HENRY, P., PÊCHEUX, M. (1971), « La sémantique et la coupure

saussurienne », Langages 24, 93-106, repris dans (Maldidier éd.).

HYMES, D. (1967) “Models of the Interaction of Language and Social Life”, in Mac

Namara (ed.) Problems of bilinguism. Journal of Social Issues, XXIII, 2.

HYMES, D. (1972), “Models of the Interaction of Language and Social Life”, in J.

Gumperz and D. Hymes (eds) Directions in Sociolinguistics. The Ethnography of

Communication. New York : Holt, Rinehart and Winston, 35-71.

Page 160: Unidades tópicas e não-tópicas

KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1994), Les interactions verbales tome 3, Paris, Armand

Colin.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1996), La conversation, Paris, Seuil.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. and PLANTIN, C. (eds) (1995) Le Trilogue, Lyon, Presses

Universitaires de Lyon.

KUYUMCUYUM, A. (2002), Diction et mention, Bern, Peter Lang.

LANGAGES n°117 (1995), « Les analyses du discours en France », Paris, Larousse

LE GUERN, M. (1977), L’éthos dans la rhétorique française de l’âge classique, in

C.R.L.S. (éd), Stratégies discursives, Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 281-287.

LEVINSON, S. (1983), Pragmatics, Cambridge, Cambridge University Press

MAINGUENEAU, D. (1984), Genèses du discours, Liège, Mardaga.

MAINGUENEAU, D. (1993), Le contexte de l’œuvre littéraire, Paris, Dunod.

MAINGUENEAU, D. (1995), « Présentation », Langages 117, 5-11.

MAINGUENEAU, D. (1996), « Ethos et argumentation philosophique. Le cas du

‘Discours de la méthode’ », in COSSUTTA F., 1996 (éd.) : Descartes et

l’argumentation philosophique, Paris, 85-110.

MAINGUENEAU, D. « Ethos, scénographie, incorporation », 1999 , in R. Amossy (éd.)

1999, p. 75-100.

MAINGUENEAU, Dominique (à paraître), 2005, « Citation, surassertion et aphorisation »,

Actes du Colloque Ci-dit (Cadiz, 2004). Edição brasileira: MAINGUENEAU,

Dominique. “Citation, surassertion et aphorisation.” In: POLIFONIA – Revista do

Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso –

UFMT, Cuiabá, 2004.

MAINGUENEAU, Dominique, 1984, Genèses du discours, Liège, Mardaga.Edição

brasileira: MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba, PR: Criar

Edições, 2005.

MAINGUENEAU, Dominique, 1990, Pragmatique pour le discours littéraire, Paris, Dunod.

Edição brasileira: MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário.

São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MAINGUENEAU Dominique, 2002, « Les rapports des organisations internationales : un

discours constituant ? », Nouveaux Cahiers de l’IUED 13, 119-132, Paris, PUF.

Page 161: Unidades tópicas e não-tópicas

MAINGUENEAU, D. (1987), Nouvelles tendances en analyse du discours, Paris,

Hachette.

MAINGUENEAU, D. (1990) Pragmatique pour le discours littéraire. Paris, Bordas.

MAINGUENEAU, D. (1991) l’Analyse du discours. Paris: Hachette.

MAINGUENEAU, D. (1992) « Le tour ethnolinguistique de l’analyse du discours »,

Langages 105 : 114-125.

MAINGUENEAU, D. (1995) « Interprétation des textes littéraires et des textes

juridiques », in P. Amselek (éd.) Interprétation et Droit, Bruxelles et Aix-Marseille :

Bruylant et Presses Universitaires d’Aix-Marseille.

MAINGUENEAU, D. (1998)  « Scénographie épistolaire et débat public », in J. Siess (éd.)

La lettre entre réel et fiction. Paris : SEDES.

MALDIDIER, D. (1990), L’inquiétude du discours, Paris, Editions des Cendres, p.133-

154.

NUNAN, D. (1993), Introducing discourse analysis, London, Penguin English,

OSIER, J.-P. (1998), Cours de philosophie, Paris, Belin.

PERRIN L., 2002, « Figures et dénominations », SEMEN 15, Presses Universitaires Franc-

Comtoises, 141-154.

PETIJEAN, A. (1989), « Les typologies textuelles », Pratiques 62 : 86-125.

RABATEL, Alain, 2003, « L’effacement énonciatif et ses effets pragmatiques de sous- et de

sur-énonciation », in Formes et stratégies du discours rapporté : approche linguistique

et littéraire des genres de discours, Lopez Munoz, J.-M., Marnette S. et Rosier, L.

(éds.), Estudios de Lengua y literatura francesas 14, 27-48, Université de Cadiz.

REBOUL, A., MOESCHLER, J. (1998), Pragmatique du discours, Paris, A. Colin

ROSIER Laurence (1999), Le discours rapporté. Histoire, Théories, Pratiques, Bruxelles,

Duculot.

ROULET, E. et alii (1985), L’articulation du discours en français contemporain, Berne,

Peter Lang

TITSCHER, S. MEYER, M., WOSDAK, R., VETTER, E. (2000). Methods of Text and

Discourse Analysis, London, Sage.

SCHEGLOFF, E. (1999) ‘Discourse, pragmatics, conversation, analysis’, Discourse

studies, 1, 4 : 405-437.

Page 162: Unidades tópicas e não-tópicas

SCHIFFRIN, D. (1994), Approaches to discourse, Oxford UK and Cambridge USA,

Blackwell

SIMONIN-GRUMBACH, J. (1975), « Pour une typologie des discours », in Kristeva et al.

(éds.), Langue, discours, société, Paris, Seuil.

SINCLAIR, J. McH, COULTHARD, M. (1975), Towards an analysis of discourse : the

English used by teachers and pupils, Oxford, Oxford Univeristy Press.

SWALES, J. M. (1990), Genre Analysis. English in Academic and Research Settings.

Cambridge : Cambridge University Press.

Van DIJK, T.A. (1985), Handbook of discouse analysis, 4 volumes, Londres, Academic

Press.

Van DIJK, T.A. (1996), « Vers l’analyse socio-politique du discours », in Le discours :

enjeux et perspectives, n° spécial du Français dans le monde, Paris, Hachette.

Van DIJK, T. A. (1981) « Le texte : structures et fonctions. Introduction élémentaire à la

science du texte », in A. Kibédi-Varga (ed.) Théorie de la littérature), Paris, Picard.

Van LEEWEN, T., Wodak, R. (1999), “Legitimizing immigration control : a discourse-

historical analysis”, Discourse studies vol. 1, 1, p. 83-118.