UNIVERDIDADE FEDERAL DE GOIS

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INTRODUÇÃO O Abrigo Pedra Talhada é um sítio arqueológico com pinturas rupestres localizado em Niquelândia – GO. A formação rochosa não constitui nem gruta nem caverna, mas apenas um paredão, ao pé do qual grupos humanos do passado encontraram um lugar apropriado para acampamentos temporários. A arte rupestre que foi pintada no paredão compõe-se de grafismos geométricos, pequenas figuras animais, especialmente lagartos, dispersas pelo paredão. As figuras humanas são raras e estão compostas por segmentos de linhas. Os grafismos estão pintados nas cores vermelha, preta, branca ou ocre, principalmente em monocromia e raramente em bicromia. As datações do sítio mostraram ocupações de até 2.860 anos atrás. Existem centenas de abrigos similares registrados em todo o Brasil. O estudo da arte rupestre iniciado nos anos de 1970, mostra concentrações de abrigos em determinados territórios regionais. Para não ir muito longe do objeto da nossa pesquisa, citamos as pinturas rupestres do município de Serranópolis – GO, que representam grandes figuras animais associadas a desenhos geométricos. Em larga escala territorial, os estudos da arte rupestre têm identificado uma grande diversidade cultural. As diferentes características temáticas e técnicas revelam que distintas sociedades pré-coloniais expressaram seu conhecimento cultural através da arte rupestre. Paredões, lajes, grutas foram utilizados para gravar ou pintar desenhos de figuras humanas, animais, objetos do cotidiano e sinais, registrados em boa parte dos limites territoriais do Brasil. A importância da arte rupestre de Niquelândia concentra-se na sua representatividade arqueológica, na região. Esse é um dos raros abrigos com arte rupestre encontrado no nordeste do estado de Goiás. O sítio arqueológico Abrigo Pedra Talhada foi identificado em 1996 através do Projeto de Salvamento Arqueológico da UHE Serra da Mesa – PA-SALV-SM, em conseqüência da construção da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa. Toda a área, que viria a ser inundada pela formação do reservatório de água, foi vistoriada, e os sítios arqueológicos encontrados foram documentados e estudados, o que possibilitou uma amostragem do passado pré-colonial dessa região.

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  • INTRODUO

    O Abrigo Pedra Talhada um stio arqueolgico com pinturas rupestres localizado em

    Niquelndia GO. A formao rochosa no constitui nem gruta nem caverna, mas apenas um

    paredo, ao p do qual grupos humanos do passado encontraram um lugar apropriado para

    acampamentos temporrios. A arte rupestre que foi pintada no paredo compe-se de

    grafismos geomtricos, pequenas figuras animais, especialmente lagartos, dispersas pelo

    paredo. As figuras humanas so raras e esto compostas por segmentos de linhas. Os

    grafismos esto pintados nas cores vermelha, preta, branca ou ocre, principalmente em

    monocromia e raramente em bicromia. As dataes do stio mostraram ocupaes de at 2.860

    anos atrs.

    Existem centenas de abrigos similares registrados em todo o Brasil. O estudo da arte

    rupestre iniciado nos anos de 1970, mostra concentraes de abrigos em determinados

    territrios regionais. Para no ir muito longe do objeto da nossa pesquisa, citamos as pinturas

    rupestres do municpio de Serranpolis GO, que representam grandes figuras animais

    associadas a desenhos geomtricos. Em larga escala territorial, os estudos da arte rupestre tm

    identificado uma grande diversidade cultural. As diferentes caractersticas temticas e tcnicas

    revelam que distintas sociedades pr-coloniais expressaram seu conhecimento cultural atravs

    da arte rupestre. Paredes, lajes, grutas foram utilizados para gravar ou pintar desenhos de

    figuras humanas, animais, objetos do cotidiano e sinais, registrados em boa parte dos limites

    territoriais do Brasil.

    A importncia da arte rupestre de Niquelndia concentra-se na sua representatividade

    arqueolgica, na regio. Esse um dos raros abrigos com arte rupestre encontrado no nordeste

    do estado de Gois. O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada foi identificado em 1996

    atravs do Projeto de Salvamento Arqueolgico da UHE Serra da Mesa PA-SALV-SM, em

    conseqncia da construo da Usina Hidreltrica de Serra da Mesa. Toda a rea, que viria a

    ser inundada pela formao do reservatrio de gua, foi vistoriada, e os stios arqueolgicos

    encontrados foram documentados e estudados, o que possibilitou uma amostragem do passado

    pr-colonial dessa regio.

  • A histria foi recuperada, mas o patrimnio se perdeu. O Abrigo Pedra Talhada, bem

    como todos os stios arqueolgicos encontrados na rea, foi inundado, entre 1997 e 1998, com

    o enchimento do reservatrio. Os empreendedores da Usina Hidreltrica encontravam-se em

    pleno direito legal, j que os bens culturais e naturais foram, ao menos parcialmente,

    resguardados pelas pesquisas arqueolgicas e ambientais.

    Esta dissertao est fundada nos dados e documentao produzidos durante o decurso

    do PA-SALV-SM, e inclui a experincia vivenciada por mim durante o processo de

    salvamento do Abrigo Pedra Talhada, complementada por pesquisas bibliogrficas e anlises

    desenvolvidas no decorrer do Mestrado em Cultura Visual.

    Um dos objetivos deste trabalho foi a realizao do vdeo documental/educacional

    Memria da Pedra Talhada, que corresponde sntese dos dados levantados e dos estudos

    realizados no Abrigo Pedra Talhada. O vdeo relata, de maneira didtica, o conhecimento

    produzido atravs desta experincia, com o intuito de divulgar os resultados das pesquisas

    arqueolgicas que colaboram para a compreenso da pr-histria no territrio nacional, bem

    como chamar a ateno do pblico em geral para a importncia e necessidade de preservao

    do patrimnio histrico e artstico do perodo Pr-Colonial.

    Muitos vestgios do homem do passado ainda so desconhecidos. E so muitas as

    pessoas que no compreendem o valor histrico e artstico da arte rupestre, ou de uma gama

    de outros achados arqueolgicos. E somente atravs das informaes, das aes educativas,

    dos registros iconogrficos e outras aes do gnero, que se passa a reconhecer tais valores.

    Os achados podem criar ligaes afetiva com o lugar de origem. Qual de ns no teria uma

    certa satisfao em pertencer a lugares onde foram encontrados pinturas rupestres ou qualquer

    outro objeto que remetesse a sociedades muito antigas. Essa valorizao do espao no

    corresponde ao vnculo de propriedade, mas das relaes humanas, de afetividades com a terra

    a que se pertence, ou que ocupa, isto , com sua memria.

    A perda da arte rupestre tem resultado tanto de agentes intempricos como da

    populao visitante, que faz grafites sobre os desenhos, ou arranca pedaos da rocha para levar

    como lembrana. Outro tipo de impacto que a arte rupestre tem sofrido resulta de grandes

    empreendimentos ou da explorao de recursos naturais. A explorao de calcrio, por

    exemplo, destruiu muitos registros rupestres. Dessa maneira, a proposta do vdeo se constituiu

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  • de grande importncia no sentido de divulgar a memria cultural levantada atravs das

    pesquisas, e levar ao conhecimento pblico um local onde havia uma mostra representativa da

    arte rupestre brasileira.

    A minha histria pessoal com o Abrigo Pedra Talhada comeou com a participao na

    pesquisa de campo realizada em julho de 1996, na abrangncia do PA-SALV-SM. Devido

    experincia vivenciada em outros projetos participei como pesquisadora em arte rupestre no

    referido projeto. Os estudos sobre o Abrigo Pedra Talhada que realizei ento, constituem a

    base desta dissertao. A memria que se revela no vdeo no est fechada apenas nas

    lembranas da autora, mas no resultado da pesquisa que levanta informaes sobre a

    ocorrncia de pinturas rupestres em uma rea onde anteriormente no havia referncia a esse

    tipo de manifestao.

    Toda a documentao e registros dos estudos do Abrigo Pedra Talhada esto sob a

    guarda do Museu Antropolgico da Universidade Federal de Gois UFG. Esse material foi

    gentilmente colocado minha disposio para pesquisas adicionais, bem como, para a

    realizao do vdeo. Compe-se de fotos, filmagens em Super VHS, slides, reproduo do

    painel por meio digital, croquis, mapas, dataes, anlises laboratoriais, relatrios e objetos

    arqueolgicos.

    Desde a dcada de 1960, quando foram realizados os primeiros registros sistemticos

    da arte rupestre nos limites do Brasil, diversas publicaes tm sido produzidas sobre estes

    registros (PIAZZA, 1966; MARTIN, 1982; AGUIAR, 1982; GUIDON, 1982; PESSIS, 1984;

    PROUS, 1984; SCHMITZ, 1984 e PEREIRA, 1993, para citar apenas alguns). Um

    levantamento bibliogrfico destas obras relatrios cientficos, artigos de revistas e livros

    fornece o panorama geral das metodologias empregadas no estudo da arte rupestre, bem como

    das caractersticas formais da arte rupestre de diversas localidades. Mais recentemente,

    algumas publicaes de maior vulto tm buscado apresentar quadros mais gerais da arte

    rupestre brasileira ou no mbito regional (PROUS, 1992; PESSIS, 2003; PEREIRA, 2003).

    A obra do arquelogo Andr Prous (1992) Arqueologia Brasileira tem um cunho mais

    abrangente. Traz um captulo onde traado um balano dos encaminhamentos metodolgicos

    que tm sido desenvolvidos para o estudo da arte rupestre. Este trabalho est voltado para as

    tipologias morfolgicas ou temticas que permitem a definio das unidades classificatrias.

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  • Esboa, ainda, estudos comparativos com outras formas grficas indgenas e da cronologia dos

    painis.

    As caracterizaes tipolgicas foram agrupadas na tentativa de se delimitarem grandes

    conjuntos estilsticos. Esse procedimento rene painis de arte rupestre com as mesmas

    caractersticas formais e temticas. At o momento j foram caracterizadas oito tradies

    estilsticas, a maior parte delas com grande abrangncia territorial. Nos estados de Minas

    Gerais e Piau, onde as pesquisas nesse sentido esto mais desenvolvidas, j so identificados

    traos da identidade local em reas de fronteira de grupos distintos. Mas ainda existem regies

    em que a arte rupestre pouco conhecida e ser necessrio um levantamento maior desses

    registros para que se possa ter um quadro mais preciso da diversidade estilstica no territrio

    brasileiro (PROUS, 1992).

    A pesquisa sobre a arte rupestre desenvolvida no mbito desta dissertao traz

    consideraes em dois campos: o da arqueologia e o da histria da arte. A questo que se

    pretende alcanar : como podemos compreender a arte rupestre. No domnio da arqueologia a

    arte rupestre corresponde a um vestgio do passado remoto que, junto a outros achados permite

    reproduzir o modo de vida das sociedades pr-coloniais. Sendo a arqueologia uma cincia que

    nasceu do interesse pelo naturalismo, sempre esteve preocupada com a origem do homem. A

    arqueologia brasileira tambm se volta para o conhecimento dos povos que ocuparam o

    territrio brasileiro no passado e, quem sabe, tentar compreender processos de continuidade e

    descontinuidade que culminaram nas naes indgenas encontradas aqui, quando da chegada

    dos portugueses, e que tanto influenciaram a nossa cultura.

    No campo da histria da arte, o interesse pelos grafismos rupestres est voltado para a

    apreciao das formas estticas. No entanto, para apreci-las necessrio compreender como

    o homem pr-colonial experimentava as formas estticas. Estas formas estavam incorporadas a

    objetos utilitrios, seja de uso cotidiano ou ritual. O que percebvel na arte pr-colonial e

    entre os indgenas seus descendentes , a arte est incorporada aos objetos sem que haja

    distino entre o que utilitrio e o que esttico. Desta forma, no se pode abord-la por

    meio dos objetos, mas pela classificao das formas estticas (MENESES, 1983).

    Os estudos no Abrigo Pedra Talhada fundaram-se na caracterizao formal da arte

    rupestre, estabelecida nos modelos j testados por Prous (1992). Por meio deste procedimento,

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  • a arte rupestre de Niquelndia foi definida a partir das peculiaridades a seguir: predomnio de

    grafismos geomtricos sobre os figurativos animais e humanos; representao de animais em

    posio esttica e individual; representao de humanos por meio de traos elementares

    (cabea, tronco e membros); uso da monocromia e, em menor freqncia, da bicromia; entre

    outros. O estudo comparativo com estilos regionais indicou semelhanas tanto com a arte

    rupestre de Minas Gerais Tradio So Francisco e Planalto quanto com ocorrncias

    localizadas no estado de Gois grafismos da regio de Serranpolis.

    Esta abordagem tambm est permeada pela metodologia de Anne-Marie Pessis (2003)

    que compreende os grafismos dentro de um sistema de comunicao social. Os procedimentos

    da comunicao esto sujeitos a um conjunto de regras que regem as interaes sociais. O

    estudo formal das figuras identifica padres que caracterizam a comunicao grfica de um

    grupo. Esses padres de apresentao grfica correspondem a perfis tcnicos e identificam

    culturalmente seus autores.

    Para a execuo do vdeo Memria da Pedra Talhada utilizei imagens de arquivo

    cedidas pelo Museu Anropolgico/UFG. As imagens selecionadas apresentam a arte rupestre

    local e as pesquisas de campo. O vdeo foi dividido em trs partes para contar quais os

    resultados das pesquisas arqueolgicas, o que se sabe sobre as pinturas rupestres, e por fim,

    relacion-las com a histria da arte. Recursos tais como animaes e entrevistas foram

    utilizados para tornar mais didtica a apresentao dos temas abordados. Filmagens atuais

    foram necessrias para a realizao do vdeo.

    Memria da Pedra Talhada destina-se ao pblico em geral e pretende atender

    especialmente aos professores como recurso adicional em sala de aula. O campo de interesse

    levantado pelo vdeo corresponde ao perodo pr-colonial, abrangendo ainda, consideraes

    sobre o patrimnio histrico e artstico.

    A diviso dos captulos dessa dissertao agrupa a pesquisa da arte rupestre e a

    estrutura do vdeo. O primeiro captulo Os primrdios da arte rupestre contextualiza o estudo da arte rupestre no Brasil, apresentando uma reviso bibliogrfica dos trabalhos

    destinados a esta manifestao pr-colonial e discutindo a posio do Abrigo Pedra Talhada

    dentro do cenrio Nacional. Avalia as contribuies dadas para a compreenso deste objeto

    pela arqueologia e pela histria da arte.

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  • O segundo captulo O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia GO

    apresenta a contextualizao do stio arqueolgico no cenrio pr-colonial e relata as anlises

    realizadas a partir dos grafismos do Abrigo Pedra Talhada. Esse captulo procura contribuir

    para uma ampliao das pesquisas que j haviam sido realizadas em decorrncia do

    salvamento arqueolgico. A nova proposta, que compreende a arte rupestre integrada ao

    sistema de comunicao social, identificou na repetio dos grafismos o estabelecimento de

    padres da linguagem visual.

    O terceiro captulo Registro visual da memria da arte rupestre em Niquelndia- GO

    se volta para a produo do vdeo documental Memria da Pedra Talhada. Idealizado como

    um recurso para fins educacionais, o vdeo sintetiza o conhecimento gerado pela pesquisa

    arqueolgica e apresenta a memria de um legado perdido em decorrncia da inundao da

    rea para a formao do lago que hoje alimenta a Usina Hidreltrica de Serra da Mesa. A

    estrutura do vdeo composta por estratgias ou mecanismos utilizados na transmisso das

    idias veiculadas. A funo de cada uma delas comentada: a narrao fora-de-campo, as

    animaes, os interttulos, as entrevistas, as ilustraes, fotos e filmagens atuais. Traamos,

    ainda, consideraes de como entendemos a memria dentro do vdeo, o que corresponde

    tanto memria individual, circunscrita pela formao e pesquisa da autora, quanto memria

    coletiva que reconhece no abrigo um bem cultural e testemunho do passado.

    O resultado das pesquisas arqueolgicas aqui apresentado tem um significado relevante

    para a compreenso das sociedades produtoras da arte rupestre localizadas na regio de

    Niquelndia - GO. Devemos considerar que ainda cedo para dizer que as pinturas

    encontradas no abrigo correspondem a uma ocorrncia isolada, visto que as prospeces

    arqueolgicas no norte de Gois limitaram-se s adjacncias do Vale do Rio Tocantins

    atingidas pelo reservatrio da usina hidreltrica. As pesquisas arqueolgicas ainda no

    esgotaram o potencial de informaes nessa regio. No entanto, j apresentam bons resultados

    no que tange presena bastante recuada, 910 a.C., dos grupos de agricultores ceramistas que

    ocuparam, por curtos perodos, o Abrigo Pedra Talhada. Apesar deste trabalho apresentar uma

    sntese da ocupao nesse abrigo, os vestgios arqueolgicos encontrados no solo objetos

    cermicos e lticos ainda no foram comparados com os dos stios aldeias levantados no

    mbito do mesmo projeto PA-SALV-SM.

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  • O trabalho aqui apresentado deseja contribuir para a devoluo social do conhecimento

    cientfico, transformando documentos e dados em cenrios da vida do homem pr-colonial.

    Alm disso, oferecemos um recurso para professores, museus e outras instituies

    educacionais atravs do vdeo documental que, esperamos, poder suprir, ao menos em parte,

    a carncia de materiais didticos sobre o perodo pr-colonial.

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  • CAPTULO I

    OS PRIMRDIOS DA

    ARTE RUPESTRE

    Detalhe das pinturas do Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia, GO. Fonte: Acervo do MA/UFG.

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  • 1.1. ASPECTOS GERAIS DA ARTE RUPESTRE

    A arte rupestre uma das primeiras manifestaes estticas da humanidade das quais

    temos conhecimento. Outros testemunhos que tambm se conservaram at o presente so

    ossos entalhados, pequenas esculturas de rocha e objetos cermicos. Alm destes, possvel

    identificar, atravs dos desenhos rupestres, outras formas estticas produzidas na pr-histria,

    tais como pinturas corporais, adornos para cabea, braceletes e cintas que devem ter sido feitas

    em penas ou plumas.

    Por arte rupestre designam-se as pinturas e gravuras inscritas em paredes rochosos ou

    grandes blocos aflorados, podendo ou no constituir ambiente para o abrigo humano (SOUZA,

    1997). Este termo foi cunhado para referir-se especificamente ao comportamento do homem

    primitivo de representar grafismos em paredes rochosos.

    A mais conhecida das interpretaes dadas aos grafismos rupestres veio tona no final

    do sculo XIX em decorrncia das descobertas da arte Paleoltica da Europa Frana, Sua e

    Espanha. Nesta poca, sustentava-se que o homem do Paleoltico, Idade da Pedra Lascada,

    praticava uma arte mgica. Assim, as representaes de animais nas cavernas de Altamira e

    Lascaux evocavam o poder mgico da imagem. O homem primitivo pintava o animal que

    queria caar porque este era seu objeto de desejo. Neste sentido, a imagem estava constituda

    dos desejos do homem de alcanar determinado resultado.

    Esta interpretao dada por Henri Breuil (1952 apud LEROI-GOURHAN, 1964, p. 81)

    para os grafismos da Europa, parece no corresponder ao significado dos grafismos situados

    no territrio brasileiro, onde as representaes de animais so menos realistas. Em um cdigo

    simblico a figura de um animal pode significar muito mais do que o prprio animal, podendo

    comunicar as suas qualidades, fora, agilidade, fecundidade. Para que a comunicao se

    estabelea, necessrio que toda a populao ou aqueles a quem ela se destina reconheam o

    significado dos cdigos.

    O arquelogo francs Andr Leroi-Gourhan (op cit) foi o primeiro a fazer um

    levantamento integral dos grafismos rupestres do perodo Paleoltico nas grutas da Espanha e

    Frana. A partir deste levantamento, o autor empregou a metodologia da topografia estatstica,

    que forneceu o isolamento de conjuntos significantes e associaes de conjuntos a reas

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  • especficas dos paredes rochosos. Foi possvel constatar a dominncia de temas animais,

    especialmente os cavalos e bisontes em detrimento dos temas humanos; e a distribuio destes

    temas a locais especficos, como em paredes planas ou estreitas.

    Leroi-Gouhan fez interpretaes que so tidas como controversas e exageradas1, mas

    demonstrou, atravs do seu minucioso estudo, que as figuras rupestres seguem um complexo

    arranjo, no sendo de modo algum expresses lanadas ao acaso de pocas diferentes.

    Tambm confirmou as relaes simblicas dos grafismos, tornando simplista a interpretao

    da arte mgica-religiosa anteriormente fomentada por outros pesquisadores (op cit., p. 20-21).

    A complexidade da linguagem visual da arte rupestre pode ser percebida nos chamados

    grafismos geomtricos. Estes so formados por linhas, pontos e figuras tais como crculos,

    losangos, quadrados e outros. Do ponto de vista moderno, os grafismos geomtricos no se

    referem a objetos ou conceitos reconhecveis. Porm, para o grupo que os pintou, estes eram

    facilmente reconhecveis.

    E certamente, esta linguagem visual dos caadores-coletores, ou homens da pedra

    lascada, fazia aluso aos eventos importantes daquele povo ou s suas histrias sagradas. por

    isso que o arquelogo muito prudente em dar significados aos grafismos rupestres, porque

    um desenho pode ter significados diferentes em cada cultura.

    Nesse momento, uma tendncia prevalece nos estudos de arte rupestre e, independente

    da orientao terica, as pesquisas vm sendo marcadas por grande rigor tcnico no

    que se refere descrio de formas, de painis, anlise de pigmento etc. Esse

    movimento soa como uma reao srie de interpretaes fantasiosas ou pouco

    fundamentadas que marcou o estudo desse campo (GASPAR, 2003, p. 35).

    1.1.1. ARTE RUPESTRE NO TERRITRIO BRASILEIRO

    No Brasil a arte rupestre j foi identificada em grande parte do territrio nacional.

    Algumas reas, tais como, a Serra da Capivara, no estado do Piau, ou o Planalto Central, no

    interior do estado de Minas Gerais, registram uma maior concentrao de abrigos com pinturas

    1 Conforme comentrio de Victor Gonalves na Introduo: O mito, o rito e o resto da edio portuguesa do livro de Leroi-Gourhan (1964).

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  • rupestres. Isso se deve ao maior nmero de estudos nestas regies. Sabe-se que em algumas

    regies o levantamento destes sinais ainda pontual.

    Para uma localizao espacial da arte rupestre utilizaremos o levantamento de Prous

    (1992), atualizado por Gaspar (2003), que agrupa a arte rupestre em oito tradies, a saber:

    Meridional, Litornea Catarinense, Geomtrica, Planalto, Nordeste, Agreste, So Francisco e

    Amaznica.

    A tradio Meridional corresponde a

    gravuras de temtica geomtrica, e

    encontrada no Sul do Brasil e na Argentina.

    No Rio Grande do Sul apresentam-se

    alinhados nas escarpas do Planalto (figuras 1a

    e 1b). A temtica pode ser dividida em dois

    grupos. Um que se caracteriza pela ocorrncia

    de crculos maiores rodeados por crculos

    menores, sugerindo pegadas de feldeos. E a

    outra apresenta traos retos paralelos ou

    cruzados e as vezes curvos. So grafismos

    denominados tridctilos, que combinam trs

    traos partindo de um vrtice.

    Figura 1a: Gravuras da tradio Meridional. Canhembor, Nova Palma (RS). Fonte: Prous, 1992.

    Figura 1b: Gravuras da tradio Meridional. Stio Josefa (RS). Fonte: Prous, 1992.

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  • A tradio Litornea Catarinense tem painis gravados em ilhas litorneas do estado

    de Santa Catarina. Os locais sinalizados so de difcil acesso e at mesmo perigosos, esto a

    cerca de 15Km da costa. Os painis rupestres orientam-se para o alto-mar. Os desenhos so

    traos geomtricos linhas sinuosas, crculos concntricos, tringulos, pontos e formas

    humanas (figura 2).

    Figura 2: Gravuras da tradio Litornea Catarinense. Ilha dos

    Corais. Fonte: Prous, 1992.

    A Geomtrica corresponde a outra tradio de gravuras; agrupa manifestaes

    esparsas localizadas no Planalto, abrangendo os Estados de Santa Catarina, Paran, So Paulo,

    Gois e Mato Grosso. Caracteriza-se por gravuras geomtricas, sendo quase completamente

    inexistente as representaes figurativas. Em virtude da sua grande abrangncia espacial Prous

    (op. cit, p. 515) a subdivide em manifestaes setentrionais e meridionais. As gravuras

    Geomtricas setentrionais (figura 3a) encontram-se prximas a rios ou cachoeiras, muitas

    delas em blocos que ficam submersos durante as enchentes. So predominantes as depresses

    esfricas, destacando-se tambm os tridctilos. Os curvilneos se destacam na Pedra Lavrada

    do Ing (PB).

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  • Figura 3a: Gravuras da tradio Geomtrica. Pedra Lavrada, Ing (PB).

    Fonte: Prous, 1992.

    Os Geomtricos meridionais (figura 3b) esto em locais fora do alcance das

    enchentes. A tcnica da gravura por vezes completada pela pintura. So comuns os

    tringulos com incises ou pontos e as pegadas de aves, veados, felinos ou humanos.

    Figura 3b: Gravuras da tradio Geomtrica meridional. Morro do Avencal (SC).

    Fonte: Prous, 1992.

    Grafismos pintados esto agrupados na tradio Planalto. Encontram-se

    espalhados pelo Planalto Central Brasileiro desde sua fronteira entre Paran e So Paulo

    at a Bahia.O pigmento mais utilizado foi o vermelho, mais raramente aparecem o preto, o

    amarelo e o branco. A temtica representa animais, que ocorrem em maior freqncia que

    os desenhos geomtricos, enquanto que as figuras humanas so raras (figura. 4).

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  • Figura 4: Representaes de animais da tradio Planalto. Pinturas. Fonte: Prous, 1992.

    A arte rupestre do Abrigo Pedra Talhada aproxima-se da tradio Planalto no que

    tange ocorrncia da monocromia, que aparece mais freqentemente nas cores vermelha e

    preta. Quanto presena das figuras animais, estas no so predominantes em relao aos

    geomtricos, podendo representar uma variante da tradio Planalto.

    A tradio Nordeste estende-se pelos estados de Pernambuco, Rio Grande do

    Norte, Bahia, Cear, Minas Gerais. So pinturas monocrmicas vermelhas e alguns

    stios com gravuras. Representam uma abundncia de figuras humanas agrupadas e

    formando animadas cenas reconhecveis de caa, dana, guerra, cpula, rituais, etc. As

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  • figuras seguram armas (bastes, propulsores), cestas, etc. Entre os animais, predominam as

    emas, os cervdeos e pequenos quadrpedes (figura 5).

    Figura 5a: Grafismos da tradio Nordeste. Cenas da rvore. So Raimundo Nonato (PI). Fonte: Pessis, 2003.

    Figura 5b: Grafismos da tradio

    Nordeste. Cena de parto. So Raimundo Nonato (PI).

    Fonte: Pessis, 2003.

    A tradio Agreste encontra-se nos estados do Cear, Rio Grande do Norte,

    Paraba, Pernambuco e Piau. Representa antropomorfos isolados ou em raras cenas de

    poucos personagens. Existem vrios tipos de sinais acompanhados por animais ou figuras

    humanas que costumam ser de tamanho grande. Os animais geralmente esto em postura

    esttica, havendo emas, quelnios e pssaros de asas abertas e longas pernas, alguns com

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  • tendncia ao antropomorfismo2. H grandes figuras geomtricas bem elaboradas e carimbos

    (figura 6).

    Figura 6: Pinturas da tradio Agreste. Parque Nacional da Serra da Capivara (PI). Fonte: Gaspar, 2003.

    A tradio So Francisco encontrada no Vale do So Francisco em Minas

    Gerais, Bahia e Sergipe, bem como nos estados de Gois e Mato Grosso. Os grafismos

    geomtricos so maioria em relao s figuras animais e humanas. A utilizao da bicromia

    intensa nas figuras pintadas. Os raros zoomorfos so quase que exclusivamente peixes,

    pssaros, cobras, lagartos e talvez tartarugas. H representaes isoladas de ps humanos,

    armas (lana, propulsores), e instrumentos (cestos, tipiti, panela, maracas). As cores so o

    vermelho, o amarelo, o preto e o branco (figura 7).

    O painel rupestre do Abrigo Pedra Talhada, objeto de nosso estudo, apresenta certas

    semelhanas com a tradio So Francisco, especialmente no que tange ao predomnio de

    grafismos geomtricos em detrimento de figuras animais e humanas. Os zoomorfos tambm

    2 O desenho figurativo chamado de antropomorfo quando representa a figura humana, no todo ou em partes e zoomorfo quando representa animais (SOUZA, 1997). O antropomorfismo, por sua vez, indica a figura animal com caracterizao humana, como, por exemplo, a posio ereta com os membros superiores abertos. A frontalidade da figura animal, que quase sempre representada de perfil, neste caso, seria uma tendncia ao antropoformismo. Este termo busca descrever figuras de mbito regional (como em PROUS,1992).

    16

  • correspondem queles da tradio So Francisco; so representados por lagartos, tartarugas

    e emas. No entanto, a bicromia rara, sendo identificada mais claramente em grafismos

    que esto em posio cronolgica mais recente nos painis.

    Figura 7: Grafismos policrmicos da tradio So Francisco. Lapa do Boquete, Januria (MG). Fonte: Gaspar, 2003.

    A tradio Amaznica agrupa pinturas e gravuras. Distingue-se pela presena das

    figuras humanas simtricas e geometrizadas, tronco retangular preenchido por linhas

    cruzadas. Os diferentes painis mostram cabeas humanas gravadas, geralmente radiadas;

    bastes e linhas curvas gravadas; pinturas de retas e retngulos preenchidos com traos;

    alm das figuras humanas esquemticas3 de mos dadas. So, tambm, recorrentes os

    desenhos de mos, algumas vezes preenchidos com crculos concntricos (figuras 8).

    3 Os desenhos esquemticos correspondem queles que representam apenas elementos essenciais para o reconhecimento do objeto real. As figuras humanas esquemticas esto representadas por tronco, membros estendidos e cabea apenas delineada, sem detalhamento de ps, mos ou articulaes que poderiam sugerir movimento.

    17

  • Figura 8: Gravuras de figuras humanas da tradio Amaznica (PA). Fonte: Pereira, 2003.

    Em termos gerais, poderamos dizer que a arte rupestre no territrio brasileiro se

    caracteriza pela maior quantidade da temtica geomtrica em oposio s figurativas. Esta

    ocorrncia s no predominante na regio Nordeste, onde foram definidas duas tradies,

    ambas com predominncia de figurativos, humanos e animais.

    Estudos cronolgicos da arte rupestre europia levaram Leroi-Gourhan (1964, p. 86)

    a afirmar que a arte Paleoltica comeava no abstrato e, ao longo do tempo, tendia a um

    realismo cada vez mais acentuado. Esta afirmao constituiu-se de modelo para a

    cronologia dos grafismos.

    No Brasil, as estimativas cronolgicas parecem remeter maior antiguidade arte

    rupestre da regio Nordeste que, por sua vez, representada por grafismos figurativos. Esta

    questo merece a ateno de pesquisas futuras que possam determinar a cronologia dos

    grafismos e levar compreenso das evolues estilsticas na arte rupestre brasileira.

    Constata-se ainda que os painis gravados demonstram maior repetio dos grafismos do

    que os paredes pintados.

    No Abrigo Pedra Talhada, como veremos no Captulo II, h pouca repetio grfica.

    Talvez isto se d em funo da tcnica, j que a pintura permite maior maleabilidade da

    forma do que a gravura. Algumas anlises sobre mudanas estilsticas tm sido testadas por

    Prous (apud GASPAR, 2003, p. 63) no Vale do Peruau, municpio de Januria MG. Os

    desenhos do estilo So Francisco foram sucedidos por grafismos de caractersticas locais ou

    influncias exteriores.

    18

  • O Abrigo Pedra Talhada uma ocorrncia isolada que ainda no foi agrupada ao

    estudo das tradies. Notam-se semelhanas dos grafismos com a tradio So Francisco,

    porm sem a mesma intensidade no uso da bicromia; enquanto que o uso acentuado da

    monocromia poderia aproximar o Abrigo Pedra Talhada tradio Planalto, onde aparecem

    as figuras animais em posio esttica, conforme ocorre no Abrigo Pedra Talhada. Estas

    aproximaes poderiam corresponder a variedades regionais. A arte rupestre do estado de

    Gois carece de pesquisas mais sistemticas para avaliao da correspondncia com as

    demais tradies. Tal anlise poderia no s associ-la s unidades j existentes como

    tambm estabelecer novos estilos.

    A ausncia de registros rupestres em determinadas reas parece estar relacionada

    falta de levantamentos arqueolgicos. Estes registros s passaram a ser estudados mais

    intensamente h bem pouco tempo, fornecendo um quadro ainda incompleto da distribuio

    espacial da arte rupestre no territrio brasileiro.

    1.2. ALGUNS NORTEAMENTOS DA PESQUISA EM ARTE RUPESTRE NO BRASIL

    Os primeiros levantamentos arqueolgicos sistemticos no Brasil foram realizados

    na regio Sul, a partir de 1964. No incio, o estudo da arte rupestre limitava-se, em muitos

    casos, ao registro e documentao dos grafismos. O interesse da pesquisa voltava-se

    principalmente para as produes lticas e cermicas encontradas nos abrigos, como o

    caso do relatrio realizado em 1966 pelo antroplogo Walter Piazza (1966), que descreve

    apenas os testemunhos cermicos e lticos, limitando-se a apresentar as cpias dos painis

    rupestres. No levantamento realizado entre os municpios de So Joaquim e Urubici, no

    estado de Santa Catarina, foram encontradas trs grutas com petroglifos. A documentao

    do paredo foi feita por meio de cpias no plstico. Conforme a reproduo dessas cpias,

    os painis compunham-se de representaes de faces humanas ou mscaras, campos

    fechados preenchidos com linhas cruzadas ou radiadas, tringulos cortados por uma trao

    vertical e grafismos lineares.

    19

  • A partir da dcada de 1970, com a atuao das Misses Franco-Brasileiras nos

    estados do Piau e Minas Gerais, surgem diversos artigos sobre metodologia de anlise dos

    grafismos. A divulgao destes estudos tem sido feita atravs de revistas especializadas em

    arqueologia, constituindo um dos principais meios de acesso s pesquisas arqueolgicas no

    Brasil. Estas publicaes geralmente esto vinculadas a instituies que geram e divulgam

    suas pesquisas e, embora ocorram em uma periodicidade no muito regular promovem o

    acesso s informaes arqueolgicas. A ttulo de exemplo, podemos citar a Revista do

    Museu Paulista da Universidade de So Paulo, os Arquivos do Museus de Histria Natural

    da Universidade Federal de Minas Gerais, a revista Pesquisas, Srie Antropologia do

    Instituto Anchietano de Pesquisas do Rio Grande do Sul e a revista Clio da Universidade

    Federal de Pernambuco, entre outras.

    Apesar de no poder realizar um balano bibliogrfico detalhado destas publicaes,

    pela falta do conjunto das colees e por no ser este o objetivo do presente trabalho,

    buscamos relatar o contedo dos artigos. Em termos gerais, esses versam em trs linhas: a)

    divulgao do achado rupestre; b) metodologia de anlise dos grafismos e c) estudos

    interdisciplinares.

    A divulgao do levantamento de reas e stios arqueolgicos com grafismos

    rupestres pontual, mas fornece a diversidade de estilos presentes no territrio brasileiro.

    As informaes sobre os registros rupestres deixadas por cronistas, viajantes e naturalistas

    dos sculos XVII, XVIII e XIX foram utilizadas como fonte de dados para uma primeira

    viso da arte rupestre no estado do Par. Atravs da sinalizao dessas informaes foram

    levantadas trs reas de concentrao com grafismos rupestres: a) a regio dos rios

    Araguaia/Tocantins; b) a regio do rio Xingu; e c) o Noroeste do Par. A documentao em

    anlise foi feita atravs de desenhos ou fotografias. Os petroglifos mostram figuras

    humanas representadas em posio frontal, com os braos e pernas fletidos para cima e para

    baixo, enquanto que os zoomorfos so representados de perfil com alguma indicao de

    movimento. As pinturas mostram as figuras humanas em posio esttica, algumas vezes,

    s o rosto. A cabea apresenta olho, boca e nariz, enquanto que o corpo encontra-se

    preenchido ou delineado com desenhos geomtricos. Esto tambm presentes figuras de

    animais e grafismos geomtricos. Os pigmentos usados so o vermelho e o amarelo

    (PEREIRA, 1993, p. 21-44).

    20

  • Pesquisas posteriores concentradas no Noroeste do Par registram 15 stios com

    pinturas e um com gravuras a partir dos relatos documentais. Nessa ocasio, os stios so

    classificados, em estudo preliminar, em trs estilos distintos (PEREIRA, 1994, p. 321-335).

    No estado do Rio Grande do Norte, no municpio de Carnaba dos Dantas, foi

    encontrado um conjunto de abrigos com pinturas. A primeira pista para a identificao dos

    abrigos veio de um manuscrito de 300 pginas realizado entre 1924 e 1926, de autoria de

    Jos de Azevedo Dantas, natural de Carnaba. O manuscrito apresenta uma coleo de

    pinturas e gravuras rupestres da regio de Serid (RN). Uma expedio ao local encontrou

    sete abrigos com pinturas e dez com gravuras. Os grafismos, que foram chamados de estilo

    Serid caracterizam-se pela riqueza temtica, variedade das cores, trao firme, tamanho das

    figuras de 5cm a 15cm, e pelo grande realismo das cenas. A boca aberta das figuras

    humanas o elemento que distingue este estilo da tradio Nordeste (MARTIN, 1981/82, p.

    379-382). Posteriormente, foi registrado mais um conjunto de trs abrigos com pinturas

    denominado Casa Santa, na mesma regio. Um sentido mgico ou religioso foi atribudo

    s cenas que se repetem nos diferentes abrigos (MARTIN, 1982, p. 55-63).

    Algumas vezes o cadastramento dos stios arqueolgicos com arte rupestre constitui

    de instrumento para a preservao deste patrimnio. A ameaa preservao do Lajeado de

    Soledade no Rio Grande do Norte tambm chamou a ateno de gelogos da

    PETROBRS. Essa iniciativa promoveu a proteo da rea, que foi cercada. Com o apoio

    da PETROBRS, foram realizadas pesquisas no local, que contavam com a participao de

    arquelogos, paleontlogos e espelelogos. Os resultados das pesquisas apontam para a

    ocupao da rea por um grupo coletor/agricultor que teria habitado o entorno do Lajeado e

    utilizado o suporte rochoso para as inscries (BAGNOLI, 1994, p.239-253).

    No Vale do Sabugi, na Paraba, um conjunto de 15 stios com Itacoatiaras

    ameaadas pela eroso e ao antrpica foi cadastrado. A presena dos pesquisadores na

    rea volta a ateno da populao local para a importncia histrica dos sinais (MORAIS

    NETO, 1994, p. 133-155).

    A biologia aplicada ao estudo da arte rupestre descobre uma possvel representao

    de Toxodonte, um grande animal herbvoro extinto, localizado no municpio de Central

    (BA). A existncia deste animal na Amrica do Norte foi detectada desde o Mioceno

    inferior ou mdio, at o Pleistoceno Superior. Na Bahia, a presena de ossos de animais

    21

  • extintos e da representao do Toxodonte nos grafismos contriburam para a hiptese da

    convivncia do homem com os animais da Megafauna. A impreciso do resultado da

    datao de material sseo impossibilita uma datao absoluta, mas a extino desta fauna

    est estimada entre 14.000AP e 6.000AP no fim do Pleistoceno, o que poderia sugerir a

    antiguidade dos grafismos rupestres (BIGARELLA et al, 1984, p. 31-37).

    Outros ossos de mamferos que atualmente vivem na regio, embora em processo de

    extino, foram encontrados no Abrigo da Lesma, associados a vestgios humanos. A

    presena do homem foi registrada atravs de artefatos lticos, fragmentos de cermica e

    moluscos, fogueiras, pinturas e ossos humanos. Neste stio, as dataes de carvo variaram

    entre 1.137AP e 2.712 AP (LOCKS et al., 1993, p.69-75).

    Os pesquisadores da Misso Franco-Brasileira realizaram um levantamento

    arqueolgico na regio do Alto Mdio So Francisco abrangendo os municpios de

    Montalvnia e Januria, em Minas Gerais, atravs do apoio financeiro do CNPq. As

    dataes radiocarbnicas revelaram a ocupao da rea entre 11.000 A.P. at o perodo

    histrico por diversos grupos culturais. Os abrigos com pinturas rupestres foram

    classificados em estilo Nordeste e So Francisco (PROUS et al., 1984, p. 47-58).

    Ainda na bacia do Rio So Francisco, na regio de Una, foram registrados seis

    abrigos com pinturas e gravuras. De modo geral, as pinturas se caracterizam pelo pequeno

    tamanho das figuras, algumas com apenas 3cm. As representaes de humanos tm o corpo

    cheio ou apenas a linha do contorno; esto em posio frontal com braos estendidos para

    cima. As figuras animais esto representadas de perfil ou com vista longitudinal, no caso do

    lagarto. A noo de movimento representa aes tais como correr, pular, voar ou olhar para

    trs. Os animais identificados foram: veados, aves, roedores, tatus, um lagarto, uma

    possvel aranha e um provvel escorpio. Os geomtricos so, geralmente, crculos ou

    semicrculos concntricos, sois e pontos (os quais o pesquisador chama de sinais

    astronmicos). A tcnica correspondeu aplicao da tinta, s vezes mais lquida, s

    vezes mais pastosa, com algum instrumento que serviu de pincel. As cores predominantes

    foram o vermelho e o ocre; registraram-se ainda o amarelo, o preto e o branco (SEDA,

    1981/82, p. 397-408).

    22

  • Um dos abrigos da regio de Una, a gruta do Gentio II, apresentou rochas com

    vestgio de pinturas profundidade de 135cm. Este nvel foi datado em 8.620 100 AP,

    sugerindo a antiguidade relativa das pinturas (op cit., p.399).

    Outra importante experincia relatada nas publicaes especializadas correspondeu

    busca de referncias para a arte rupestre atravs da etno-histria. A pesquisa em

    documentos histricos mencionava a presena de indgenas guerreiros que se refugiaram

    nas matas entre Minas Gerais e Bahia. Esses grupos, atualmente denominados Krenak, so

    remanescentes na regio do Vale do Rio Doce MG. Ao serem interpelados sobre as

    pinturas rupestres, os mais velhos do grupo identificaram os paredes pintados como

    locais encantados e reconheceram alguns grafismos como pertencentes ao seu povo. Essa

    experincia renovou o conhecimento cultural e a auto-estima do grupo, alm de identificar

    na arte rupestre o universo cosmolgico do grupo indgena (BAETA, 1994, p. 303-320).

    De modo geral, as metodologias de anlises dos grafismos constituem diversas

    tentativas de se compreender a ocupao regional atravs dos grafismos rupestres. Os

    estudos cronolgicos dos painis rupestres na regio do vale do Rio Peruau, pequeno rio

    afluente do So Francisco, tiveram como objetivo a discriminao das unidades estilsticas

    e cronolgicas da regio. Os elementos de cronologia foram baseados nas superposies,

    assim como nas ptinas existente nas pinturas. A metodologia consistiu em identificar

    conjuntos de grafismos que pudessem apresentar referncias temporais. A comparao de

    diversos paredes com pinturas na regio estudada contribuiu para estabelecer a

    estratigrafia de grafismos no stio Boquete, que serviu de exemplo. Este estudo revelou que

    a tradio So Francisco, caracterizada por grafismos geomtricos bicrmicos, apresenta

    fcies assinaladas por temticas diferentes (vegetais ou animais diversificados) que foram

    acrescentadas produo local (SOL et al. 19881/82, p. 383-395).

    Na Bahia, a metodologia de classificao dos estilos utiliza como parmetro a

    metodologia aplicada por Valentin Caldern linguagem cermica. Vem dele o usado

    termo tradio, que compreendido como:

    ...[O] conjunto de caractersticas que se refletem em diferentes stios ou regies,

    associados de maneira similar, atribuindo cada uma delas ao complexo cultural de

    grupos tnicos diferentes, que as transmitiam e difundiam, gradualmente

    23

  • modificadas, atravs do tempo e do espao (CALDERN apud AGUIAR, 1982, p.

    92).

    Valentin Caldern define as fases que compem uma tradio como seqncias

    histricas de um processo evolutivo. Na arte rupestre, a tradio determinada pela

    temtica e pelas formas como essa temtica interpretada, tais como movimento ou

    estatismo, figuras grandes e pequenas, monocromia ou policromia etc.; enquanto que a fase

    corresponde s mudanas tcnicas que ocorrem nos desenhos ao longo do tempo. O termo

    fase foi substitudo por estilo, atendendo a uma concepo esttica, no estudo da arte

    rupestre. (AGUIAR, 1982, p. 91-104).

    Os procedimentos da pesquisa realizada na regio de So Raimundo Nonato (PI)

    apresentados pela arqueloga Nide Guidon (1982), foram publicados nos Anais da 1

    Reunio Cientfica da Sociedade Brasileira de Arquelogos SAB. Para a autora, o

    complexo arqueolgico no simplesmente o conjunto de vestgios produzidos pelos

    homens pr-histricos; constitui o levantamento de todos os dados produzidos pela

    diversidade de especialistas. Esta anlise interdisciplinar permite que o objeto arqueolgico

    seja visto sob diferentes enfoques.

    A anlise tipolgica dos painis rupestres busca agrupar o maior nmero possvel de

    elementos, encontrando os pontos de semelhanas entre os conjuntos grficos. Procura-se

    manter as unidades tal como elas foram concebidas pelos homens da pr-histria. A

    classificao dos grafismos em tradies, estilos, variedades feita a partir do diagnstico

    dos conjuntos e no pela somatria dos exames das figuras. Atravs das anlises dos dados

    pode-se estabelecer divises de estilos, cronologias, e colocar as diferentes variedades

    dentro de determinadas unidades culturais (op cit., p. 346-347).

    Ainda neste artigo Guidon apresenta um glossrio de termos definidos no mbito

    das pesquisas e que colaboram para uma unidade da terminologia empregada no estudo da

    arte rupestre. Dentre os quais separamos:

    Arte. O termo arte no tem nenhuma conotao esttica. Ns o utilizamos em sua

    primeira acepo, no conceito que tinha a palavra latina. Em resumo, a arte o

    conhecimento que permite a realizao de uma tarefa, de uma obra qualquer.

    24

  • Interpretao. Todo conhecimento sugerido pelos indcios contidos em

    representaes materiais. A apelao antropomorfo dada a um grafismo j uma

    interpretao.

    Tradio. definida pelos traos culturais obtidos pela anlise dos dados do

    registro central. A tradio definida pela temtica (op cit., p. 348).

    A metodologia de interpretao da arte rupestre apresentada por Pessis (1984)

    considerava que a interpretao dos grafismos dada pelo reconhecimento das figuras.

    Classifica em trs as possibilidades de identidade do grafismo: reconhecimento imediato,

    reconhecimento diferenciado, grafismos puros. Esse procedimento est voltado

    especialmente para o reconhecimento de aes transmitidas pelas figuras rupestres,

    buscando a natureza da ao em posturas e gestos (PESSIS,1984, p.38-46; 1993, p. 7-14;

    GUIDON, 1982, p. 117-128).

    1.2.1. ARTE RUPESTRE NOS ESTADOS DE GOIS E TOCANTINS

    A arte rupestre registrada no estado de Gois atravs do Programa Arqueolgico de

    Gois4 abrange os municpios de Serranpolis, Caiapnia, Formosa, Jaragu e Itapirapu, e

    ainda a regio de Monte do Carmo no Tocantins (integrado ao projeto antes da diviso do

    estado de Gois). Segundo estes estudos a ocupao do Planalto Central nas divisas do

    estado de Gois iniciou-se a 11.000 anos atrs. A estratigrafia dos grandes abrigos com arte

    rupestre indicaram a presena dos caadores-coletores nas primeiras ocupaes e de

    agricultores ceramistas nas mais recentes. Em Serranpolis a pintura parece ter sido

    praticada por todas as sucessivas ocupaes. Na camada datada em 10.500 anos, aparecem

    manchas de tintas, assim como nas camadas superiores. As caractersticas tcnicas das

    pinturas so o uso da tinta lquida aplicada com um pincel ou dedo e o pigmento seco

    riscado na rocha. O tamanho predominante das figuras de 15m a 30cm, mas existem

    figuras com alguns poucos centmetros e outras que atingem at um metro. A cor mais

    4 O Programa Arqueolgico de Gois foi um convnio entre a Universidade Catlica, o Instituto Anchietano de Pesquisas e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O acordo foi firmado em 1972 e pretendia produzir uma amostra da pr-histria do estado de Gois, pois no havia nenhum estudo nesse sentido (SCHMITZ, 1986).

    25

  • freqente o vermelho, mais raramente aparecem o amarelo, o preto e o branco

    (SCHMITZ, et al.,1984).

    A temtica compe-se de figuras animais, humanas e geomtricas. Os animais so

    variados: lagarto, tatu, tartaruga, macaco, veado, ema, seriema, arara, papagaio e outras

    aves. As figuras humanas so raras e as pisadas humanas aparecem com certa freqncia.

    Os grafismos geomtricos podem ser crculos, elipses, tringulos, losangos, retngulos, e

    ainda linhas retas, quebradas e curvas. As figuras podem estar vazias ou preenchidas (op

    cit. 1984).

    Em Serranpolis as gravuras aparecem em abrigos, junto com as pinturas. As

    pinturas foram executadas, geralmente, sobre as partes mais lisas e duras da rocha,

    enquanto que os petroglifos aparecem nos arenitos mais moles. Existem tambm abrigos

    exclusivamente com gravuras. Neste caso, a temtica se caracteriza por geomtricos

    lineares formando ngulos, figuras fechadas, crculos preenchidos com raios, grades,

    elipses, ps de felinos e de humanos, folhas, entre outros. Os nicos motivos que aparecem

    nas duas tcnicas so folhas e ps. A diversidade de motivos gravados no permitiu um

    indicador de semelhana estilstica, porque alguns grafismos tm ampla distribuio no

    territrio brasileiro (SCHMITZ, 1981/82, p. 415).

    Na regio de Caiapnia as tcnicas de pintura so as mesmas empregadas em

    Serranpolis a tinta lquida aplicada com pincel, a pintura a dedo e o basto seco. O

    pigmento mais comum foi o vermelho, raramente aparecem o preto e a policromia do

    vermelho e amarelo e/ou preto. As figuras humanas, em tamanho pequeno, cerca de 10cm,

    representam cenas de ao. Entre os animais esto representados os veados, antas, tatus,

    tartarugas, onas, aves, macacos e peixes. Algumas vezes os animais compem cenas com

    humanos ou so representados em bandos. Os peixes, por exemplo, podem estar aos pares

    ou em cardumes. Os geomtricos ocorrem em menor quantidade, correspondendo a crculos

    concntricos, losangos geminados, lineares, entre outros (SCHMITZ, et al.,1984).

    Em Caiapnia foram localizados trs abrigos com petroglifos em uma rea de

    inmeros abrigos pintados. Os desenhos lineares e fechados aparecem juntos a ps e figuras

    humanas. As cruzes so os nicos desenhos coincidentes nos petroglifos e pinturas.

    Ocorrem pela tcnica de abraso e picoteamento; os sulcos so preenchidos com pintura

    26

  • vermelha ou preta, ou cria-se um fundo sobre o qual feita a gravura. O picoteamento

    parece mais recente do que a tcnica de abraso (SCHMITZ, 1981/82).

    As pinturas na regio de Formosa esto localizadas em pequenas grutas calcrias,

    ocupando paredes e tetos. A tcnica corresponde pintura a dedo, ao pincelado e ao

    desenho com o pigmento seco. O pigmento usado em monocromia o vermelho, laranja,

    vinho, vermelho escuro ou negro, e em bicromia so usados o negro e o vermelho, ou o

    laranja e vermelho. Os motivos so predominantemente geomtricos e, mais raramente,

    figurativos, representando pegadas humanas, tartarugas, lagartos e aves (SCHMITZ, et al.,

    1984).

    Na Serra de Jaragu as gravuras esto sobre um bloco, localizado prximo da cidade

    do mesmo nome. A temtica compe uma cena com homens, mulheres e crianas,

    sugerindo uma representao ritual (SCHMITZ, 1984, et al., p. 61-64).

    Trs agrupamentos de petroglifos esto registrados no Municpio de Itapirapu. Os

    grafismos geomtricos so predominantes; os crculos concntricos esto presentes em

    todos os stios, aparecem ainda crculos vazios, com pontos ou seccionados, alm de

    lineares abertos e fechados. Os figurativos so dbios, provveis serpentes e ps com trs

    dedos (op cit., p. 69-72).

    Em Monte do Carmo (TO) foi localizado um stio abrigado com presena de

    material cermico, ltico e sepultamentos (nove a dez ao todo). As gravuras foram

    produzidas por meio de raspagem. As figuras correspondem a lineares paralelos, pontos,

    curvas e ngulos, alm de figuras fechadas, tringulos, quadrangulares e retangulares. Foi

    obtida uma datao de 1975 90 a.C. a 100cm de profundidade, ao passo que, nos nveis

    superiores, as datas alcanam 935 60 d.C (SCHMITZ, 1981/82, p. 409-418).

    A arte rupestre no estado de Gois mostra-se bastante diversificada aproximando-se

    a outras tradies melhor descritas em outros estados. Na avaliao de Schmitz as pinturas

    e gravuras de Serranpolis poderiam estar vinculadas tradio Planalto (MG), enquanto

    que em Caiapnia, estilos diferentes um semelhante tradio Nordeste (PI) e outro So

    Francisco (MG) , teriam ocupado o mesmo espao. As gravuras de um modo geral e as

    pinturas de Formosa remetem tradio geomtrica presente em toda formao Planltica.

    Divulgaes mais recentes da arqueologia de salvamento descrevem nove stios

    arqueolgicos com arte rupestre localizados no mdio vale do Rio Tocantins. As gravuras

    27

  • constituem-se de grafismos geomtricos, entre os quais os crculos concntricos ou cortados

    por linhas so abundantes. A tcnica de gravao corresponde ao picoteamento da rocha

    suporte. As pinturas distribudas em trs abrigos apresentam maior freqncia de figuras

    animais e geomtricas do que de figuras humanas. A variedade zoolgica representada no

    abrigo Serra do Carmo 1 corresponde a lagarto, veado, peixe, e um grafismo que se

    assemelha a anta ou capivara. No abrigo Serra do Carmo 3 os lagartos so de tamanho

    grande, entre 40cm a 100cm. Entre os geomtricos, chamam a ateno tringulos unidos

    pelo vrtice, crculos preenchidos com traos paralelos, conjuntos de pontos, entre outros.

    A maioria dos grafismos foi pintada em vermelho, mas existem tambm figuras

    policrmicas (ROBRAHN-GONZLEZ e DE BLASIS, 1997. p. 39-45).

    1.2.2. UMA LITERATURA DE APOIO ABRANGENTE E NECESSRIA

    Algumas dessas pesquisas culminaram em publicaes mais densas. O livro do

    arquelogo Andr Prous (1992) intitulado Arqueologia Brasileira foi a primeira publicao

    a sistematizar os resultados das pesquisas arqueolgicas no Brasil, entre elas as que se

    referem arte rupestre. No seu levantamento, o autor considera que as anlises dos

    grafismos tm se direcionado para caracterizar os elementos estilsticos necessrios para

    que se realizem comparaes entre os diversos painis rupestres, conforme j citado. O

    estudo dos estilos rupestres deve abranger tambm as mudanas formais dos grafismos que

    acontecem em faixas temporais seqenciais, e que se relacionam com mudanas culturais

    do contexto local (op cit, p. 511).

    Pr-histria da Terra Brasilis, organizado pela lingista Maria Cristina Tenrio

    (1999), um livro dedicado ao pblico em geral. Segundo a organizadora esta publicao

    colabora para a difuso dos resultados das pesquisas arqueolgicas, to restritos

    comunidade cientfica. Equivale-se tambm a um instrumento de informao para que o

    conhecimento da existncia desse patrimnio possa contribuir para a preservao dos stios

    arqueolgicos. A qualidade desta publicao encontra-se na autoria dos artigos realizados

    pelos mais renomados arquelogos brasileiros e pela atualidade dos textos, que levantam

    importantes temas, cobrindo, no tempo e no espao, o perodo pr-colonial.

    28

  • Desta obra citaremos apenas dois trabalhos que ainda podem acrescentar algumas

    informaes a este levantamento bibliogrfico. Referem-se arte rupestre dos estados de

    Par, Roraima e Mato Grosso do Sul. A arqueloga norte-americana Anna Roosevelt

    (1999, p. 35-50, In: TENRIO, op cit.) apresenta o resultado de pesquisas realizadas na

    Caverna da Pedra Pintada localizada no municpios de Monte Alegre (PA). Seus estudos

    revelam que os caadores-coletores se adaptaram tambm floresta tropical. As dataes

    radiocarbnicas situaram as primeiras ocupaes a 11.200 e 10.000 anos atrs, datas que

    correspondem s camadas com concentrao de pigmento utilizado nas pinturas. As figuras

    rupestres se constituem de grafismos geomtricos, diversos animais e cenas de caa e parto,

    alm de impresses de mos de crianas e adultos.

    As investigaes realizadas por Mentz Ribeiro (1999, p. 135-145, In: TENRIO, op

    cit.) em Roraima abrangem a Bacia Amaznica, mais precisamente os vales dos rios

    Branco, Tacutu, Uraricoera, Surumu e Cotingo. A regio foi ocupada em tempos mais

    remotos por caadores-coletores-pescadores, sucedidos por grupos ceramistas. As dataes

    obtidas por meio de escavaes remetem a 3.950 180 anos AP nas camadas at 110cm de

    profundidade, podendo atingir antiguidade maior em camadas mais profundas. A arte

    rupestre concentra pinturas e gravuras. As pinturas foram realizadas com pigmento de

    colorao vermelho-alaranjada e carmim-pardacenta. As figuras tm de 15cm a 20cm e

    foram efetuadas por pintura a dedo. Predominam os grafismos geomtricos, retngulos

    preenchidos por grades ou linhas, elipses geminadas, crculos concntricos, linhas em

    zigue-zague, entre outros. Os figurativos so sapos e lagartos.

    Os petroglifos foram localizados em trs formaes rochosas distintas: morros e

    serras, pequenos blocos de granito prximos aos rios, e em afloramentos de granito na

    posio horizontal. A tcnica corresponde ao picoteamento e ao alisamento. Os motivos so

    crculos concntricos, crculos unidos pelo vrtice ou por uma linha; entre os figurativos

    esto as cabeas com olhos e bocas e antropomorfos esquematizados. Os blocos horizontais

    parecem ter sido locais utilizados para polir instrumentos, provavelmente lminas de

    machado, deixando depresses circulares e alongadas. As depresses circulares poderiam

    ter sido resultado do polimento do corpo do objeto, e as alongadas, do gume (op cit., p.

    135-145).

    29

  • Finalmente, no Mato Grosso do Sul foram registrados grandes lajedos horizontais

    cobertos com imensas gravuras que abrangem 3.300m de extenso. Predominam as figuras

    geomtricas, sendo comuns, entre elas, os crculos concntricos. Os grafismos figurativos

    representam pisadas humanas e de animais, tais como onas, sapos e aves (SCHMITZ, p.

    150-165, In: TENRIO, 1999).

    Mais recentemente foram lanadas duas publicaes no mbito da arte rupestre

    regional. A primeira, Imagens da Pr-Histria, da arqueloga Anne-Marie Pessis (2003)

    da Universidade de Pernambuco, corresponde a um compndio sobre os grafismos

    rupestres da Serra da Capivara (PI). Os grafismos desta rea foram classificados em dois

    grandes conjuntos: a tradio Nordeste, caracterizada pela representao da figura humana

    em cenas de ao em tamanho miniaturizado e a tradio Agreste que apresenta humanos

    em postura esttica associados a grafismos geomtricos. Alm disso, Pessis oferece uma

    importante anlise sobre a ocupao da Serra da Capivara por grupos que viviam da caa e

    da coleta, e que foram precedidos por populaes de horticultores que se estabeleciam em

    aldeias.

    A segunda publicao, A arte rupestre na Amaznia, da pesquisadora Edhite

    Pereira (2003) do Museu Paraense Emlio Goeldi. A autora rene 111 registros

    arqueolgicos com pinturas e gravuras rupestres encontrados no estado do Par. Em termos

    estilsticos, possvel identificar a originalidade das formas amaznicas em relao s de

    outras partes do Brasil. As figuras humanas, predominantes na regio, esto em posio

    esttica e medem cerca de 50cm, algumas vezes, apenas a cabea aparece representada. Os

    grafismos geomtricos se caracterizam por linhas sinuosas.

    Uma observao ampla como a que acabamos de fazer nos permite anotar algumas

    questes que podem ser levantadas em torno do desenrolar das pesquisas em arte rupestre.

    Uma delas a dificuldade desse vincular os estudos locais ao mbito nacional. As

    publicaes apresentam um quadro bastante sinttico da arte rupestre levantada at o

    momento, fornecendo comparaes ainda muito superficiais. Alm disso, a dimenso

    territorial do Brasil ainda no foi totalmente coberta, sendo que muitos estados no

    desenvolvem pesquisas arqueolgicas, ao passo que, em outros, os levantamentos so

    apenas amostrais.

    30

  • As pesquisas em arqueologia tm se intensificado em decorrncia da arqueologia de

    salvamento. reas atingidas por explorao de recursos naturais ou outros

    empreendimentos devem ter seu potencial arqueolgico levantado antes de qualquer

    interferncia no terreno. Os salvamentos arqueolgicos tm contribudo para que novas

    regies sejam prospectadas, evitando a perda total do registro arqueolgico. As aes dos

    arquelogos e dos empreendedores so fiscalizadas pelo Instituto do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional IPHAN, e regulamentada pela legislao Federal.

    Os trabalhos analticos que se referem s tipologias da arte rupestre ainda so

    insuficientes para uma completa compreenso das variedades estilsticas presentes no

    territrio brasileiro. As classificaes tcnicas e temticas j definem diversas tradies,

    mas algumas delas devem ser retomadas para novas avaliaes em termos de seu alcance

    espacial, como por exemplo as tradies de petroglifos, que ora so muito restritas, ora so

    muito amplas, sendo necessrio definir melhor o deslocamento de frentes ocupacionais e as

    identidades culturais desses grupos.

    Estudos de mbito regional tm se sobreposto a essas investigaes, tais como a

    anlise sobre as seqncias culturais e sua distribuio espacial, os exames cronolgicos em

    paredes que demonstram diferentes manifestaes, alm da tentativa de se estabelecer

    comparaes etnogrficas. Estas so as primeiras abordagens para o alargamento das

    pesquisas com arte rupestre.

    O sentido da arte rupestre ainda obscuro. Alguns pesquisadores a vinculam a

    valores mgicos ou religiosos, outros lhes atribuem significados astronmicos,

    demonstrando que as anlises interpretativas ainda esto aqum do seu significado. Apesar

    de encontrar referncias tais como livre expresso do artista, contedo aleatrio, arte

    ingnua, ou expresses valorativas como ausncia de tcnicas sofisticadas, arte

    simples, no das mais ricas, acredito que a grande maioria dos pesquisadores d a ela o

    justo valor de expresso do conhecimento cultural de uma sociedade em seu tempo.

    Os grafismos do Abrigo Pedra Talhada, localizado em Niquelndia GO, esto

    integrados ao cenrio da arte rupestre do Planalto Central brasileiro. Suas caractersticas

    formais demonstram ser uma continuidade das manifestaes encontradas no Estado de

    Minas Gerais, definidas como Tradio Planalto e Tradio So Francisco. A datao mais

    recuada do stio arqueolgico, de 2.860 anos A.P., pode sugerir que essa ocorrncia seja

    31

  • resultado de uma expanso territorial na direo leste/oeste, considerando que as tradies

    mineiras j realizavam pinturas rupestres h cerca de 8.000 anos A.P. Porm, esta hiptese

    deve ser melhor estudada, uma vez que stios rupestres situados mais oeste do Planalto

    Central tambm fazem referncia aos estilos rupestres mineiros.

    1.3. CONTRIBUIES DADAS PELA ARQUEOLOGIA E PELA HISTRIA DA ARTE

    A prpria natureza da arte rupestre a coloca entre duas disciplinas: a arqueologia e a

    histria da arte. Considerando-se que esta dissertao se desenrola em uma academia de

    artes visuais, no poderamos deixar de tecer uma breve avaliao do ponto de vista das

    duas disciplinas em relao a um objeto que se coloca entre o testemunho do passado e a

    concepo esttica.

    Os objetos estticos do passado, de culturas extintas ou distantes sempre

    despertaram o interesse de museus e colecionadores. claro que este interesse estava

    ligado ao pensamento histrico da poca, s vezes mais ou menos preocupados com a

    relao histrico-cultural do objeto. Conseqncia disso so as espoliaes e contrabandos

    das relquias das culturas extintas, praticadas desde a antiguidade.

    No Brasil, a arte rupestre sempre foi eventualmente mencionada por curiosos e

    cientistas de diversos ramos do conhecimento. Dentre as mais antigas referncias arte

    rupestre no territrio nacional esto as cpias produzidas por naturalistas do sculo XIX,

    em suas viagens pelo Brasil. Para citar apenas alguns deles, Jean Baptiste Debret (1834)

    registrou as pinturas localizadas s margens do Rio Japur (figura 9) e Steinen copiou as

    gravuras s margens do Rio Paranatinga, em sua expedio pelo Rio Xingu. Mas o interesse

    pela preservao e estudo destes achados s veio um sculo depois.

    Figura 9: Registro de Debret (1834) de pinturas localizadas s margens do Rio Japur. Fonte: Gaspar, 2003.

    32

  • 1.3.1. O PONTO DE VISTA DA ARQUEOLOGIA

    A arqueologia, desde o seu surgimento, no sculo XIX, preocupa-se com a origem

    do homem. Advinda do interesse pelo naturalismo e decorrente do trabalho de Charles

    Darwin no sculo XVIII, a Origem das espcies, diversos antroplogos e pr-historiadores

    embrenham-se nas descobertas da origem do homem. Segundo o arquelogo Leroi-

    Gourhan (1964, p.16), o corpo desta cincia se constri a partir das descobertas. A

    paleontologia contribuiu para uma compreenso mais adequada dos achados. Atravs dela,

    entende-se que a Terra muito antiga e que o desenvolvimento humano foi muito longo e

    marcado por importantes mudanas geolgicas. Outras associaes com os despojos

    materiais engrossam as hipteses em relao adaptao ao meio, ao desenvolvimento

    tcnico, vida social.

    medida que se aumenta o inventrio dos achados arqueolgicos, estes vo se

    tornando cada vez mais completos. As diferenas entre as produes materiais

    ferramentas, sepultamentos, arte rupestre vo sendo detectadas e se tornando mais

    amplas. Um dos principais objetivos da arqueologia identificar esses padres sociais

    reconhecveis por meio das semelhanas e diferenas entre suas relquias. No estudo da

    cultura material no importa apenas a funo do objeto, mas tambm o seu tipo. So os

    detalhes identificadores de um conjunto que distinguem um grupo cultural.

    No estudo da arte rupestre necessrio estudar tanto as unidades grficas como o

    conjunto das obras. A morfologia padro ou os detalhes tpicos determinam o estilo, que

    ser til para realizar comparaes entre conjuntos diferentes. No entanto, a arte rupestre

    apenas um dos testemunhos deixados pelo homem nos lugares que ele ocupou. Outros

    vestgios encontrados devem ser relacionados a ela objetos lticos, cermicas,

    sepultamentos, restos alimentares a fim de que se possa determinar um grupo cultural.

    Os grafismos rupestres s comearam a ser sistematicamente estudados por

    arquelogos brasileiros a partir dos anos de 1960, quando foram feitos os primeiros

    levantamentos nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paran e So Paulo.

    Na dcada de 1970, instalam-se em Minas Gerais e Piau as Misses Franco-

    Brasileiras, que impulsionam as pesquisas arqueolgicas nestes dois estados. Com relao

    33

  • arte rupestre, buscou-se classificar os grafismos conforme padres estilsticos, iniciativa

    esta que se tornou referncia para o estudo esta manifestao em todo o Brasil.

    Desde o seu incio at hoje, houve muitas contribuies em direo compreenso

    dessa manifestao. Em primeiro lugar, j foi registrado e documentado um grande nmero

    de abrigos rochosos com grafismos rupestres em todo territrio brasileiro. Paralelamente, a

    cultura material encontrada nos stios foi estudada. Na tentativa de se interpretar os

    grafismos figurativos, foram identificadas, nas representaes de figuras humanas, aes

    ritualsticas, de caa e cpula, bem como representaes de gnero e hierrquicas. Dentre as

    representaes de animais foram identificadas diversas espcies veados, emas, araras,

    lagartos, entre outros. Porm, a maior dificuldade em compreender a arte rupestre est no

    fato de os indgenas atuais no se manifestarem por meio deste recurso, referindo-se aos

    desenhos como pertencentes a povos antigos anteriores a eles.

    Num segundo momento, buscou-se estabelecer conjuntos estilsticos que pudessem

    remeter a grupos culturais, como j foi dito. Com esse intuito, os paredes com arte

    rupestre foram agrupados em tradies, concentradas em determinadas regies. Foi possvel

    perceber que estes conjuntos abrangem uma ampla distribuio espacial, podendo, em suas

    reas de fronteira, se sobrepor ou se misturar (GASPAR, 2003, p. 45).

    Mas a partir daqui h muitas possibilidades de estudo para compreender a

    diversidade cultural existente na pr-histria brasileira. A associao entre arte rupestre e

    outros vestgios materiais ainda imprecisa.

    Em qualquer destes aspectos est concentrada a produo material do homem, e

    nesse contexto que o arquelogo insere a arte rupestre. O termo arte utilizado como

    referncia ao arteso e ao artefato, como frisa Prous em seu compndio sobre a arqueologia

    brasileira:

    Logo, devemos considerar a palavra arte neste contexto como uma simples

    aproximao, lembrando alis que arte e artista tm a mesma raiz latina que

    arteso; a arte o savoir faire, o conhecimento das regras que permitem realizar

    uma obra perfeitamente adequada a sua finalidade. Esquecer este ponto levaria a

    no entender os grafismos indgenas quando no so bonitos, julgando-os

    primitivos em termos de beleza, quando seus autores, em muitos casos, no

    procuravam de modo algum provocar um sentimento esttico, da mesma maneira

    34

  • que os tipgrafos no pensam, atravs do alfabeto, realizar obra de arte (PROUS,

    1992, p. 510).

    Atravs deste posicionamento, o arquelogo procura se eximir da compreenso

    esttica para centrar sua ateno no fazer. Neste sentido, a tecnologia narra o

    desenvolvimento humano.

    Mais recentemente, as pesquisas arqueolgicas tm considerado a finalidade

    de comunicao da arte rupestre. Ela tem sido vista como parte integrante de rituais, atravs

    dos quais so reforados os mitos. tambm considerada como meio de ligao com

    entidades superiores (PESSIS, 2003, p. 66).

    1.3.2. O PONTO DE VISTA DA HISTRIA DA ARTE

    Intrigantes questes so colocadas para aqueles que interpelam o estudo da

    manifestao rupestre num contexto artstico. Quando falamos de arte rupestre estamos ou

    no falando sobre arte? A apreciao que geralmente se faz, corresponde ao seu apelo

    esttico ou ao seu valor histrico? Como compreender o significado deste tipo de produo

    artstica?

    Alguns achados do perodo Pr-Colonial so considerados objetos estticos, tais

    como sinais rupestres, pequenas esculturas de pedra os muiraquits , ou adornos de

    ossos polidos. No entanto, uma outra classe de objetos, os artefatos e utenslios,

    apresentam elementos decorativos que tambm demonstram preocupao esttica. Muitos

    vasilhames cermicos foram decorados com pinturas, incises, relevos e apliques de

    elementos figurativos. Os artefatos de rochas lascadas refletem um grande conhecimento

    de lapidao na produo de pontas de projteis. No entanto, estes artefatos so de uso

    cotidiano, com funo utilitria.

    A dificuldade de apreciar objetos arqueolgicos como objetos de arte vincula-se ao

    fato de que nas sociedades Pr-coloniais as formas estticas estavam incorporadas a

    utenslios e artefatos utilitrios. Os vasilhames com decorao pintada ou modelada tinham

    funo de cozer, assar ou armazenar alimentos.

    35

  • Ento, como classificar estes objetos? Conforme depoimento dado pela historiadora

    da arte Profa. Dra. Maria Elizia, em entrevista:

    No podemos ver a arte rupestre com os mesmos parmetros existentes na arte

    tida como erudita. O conceito de arte est vinculado a cada poca histrica da sua

    produo. Cada perodo prioriza determinados aspectos formais para definir [o

    objeto] como produo de um determinado perodo (Entrevista, 09/03/2005).

    A arte rupestre constitui um elo de comunicao, no qual os grafismos so

    reconhecveis por aqueles que deles compartilharam. A manifestao rupestre est ligada a

    mitos, crenas, aes e gestos que nem sempre so vistos como pertencentes ordem

    esttica. Neste contexto, as pinturas e gravuras rupestres correspondem aos resduos de um

    acontecimento ritual.

    Para o antroplogo Clifford Geertz (1997), a arte um sistema de significao que

    utiliza a combinao de signos para exprimir um sentido. Para compor o objeto de arte o

    artista aproveita os elementos da sua vivncia, que tambm so compreensveis pelo

    expectador. Tanto um quanto o outro tm sua sensibilidade formada no mesmo contexto,

    no mbito das relaes culturais. Este o campo fecundo que legitima a arte e faz com que

    ela seja compreendida so os recursos do seu tempo e do seu meio.

    Os homens da pr-histria produziam suas pinturas nos paredes rochosos

    expressando seu sentido cultural. Ao mesmo tempo em que produziam formas, tcnicas,

    elementos estilsticos, expressavam contedo simblico e valores afetivos. A arte primitiva

    vai misturada vida cotidiana rituais, festividades sem que os seus autores possam

    distinguir entre uma atividade e outra.

    Neste sentido, as classificaes que fazemos dos objetos e das formas do passado

    so puramente convencionais, realizadas a partir do ponto de vista das noes artsticas do

    nosso tempo. So tentativas de se entender culturas das quais temos apenas vestgios.

    Apesar da arte rupestre constituir um objeto fixo que est exposto ao consumo

    visual, o seu significado social no era o de um objeto artstico. Ela tinha a finalidade de

    transmitir e reforar o conhecimento cultural do grupo, provavelmente em situaes rituais.

    Para Ulpiano Bezerra de Meneses (1983), o ponto frgil para a apreciao da

    manifestao artstica do perodo Pr-Colonial se considerar a existncia de uma

    36

  • categoria parte de objetos definidos como artsticos. H uma tendncia de se enquadrar

    objetos que no tm finalidade utilitria ao mbito artstico, tais como os adornos e

    enfeites. Porm, estes objetos tiveram um significado social bastante relevante para as

    sociedades pr-coloniais, transpondo a inteno esttica para a identificao de valores

    como posio social, descendncia, faixa etria, entre outros.

    Em seu livro Argonautas do Pacfico, Malinowiski (1978) relata como colares

    ornamentais considerados objetos estticos adquirem novos significados sociais. Dentro de

    uma tradio de trocas o colar representava respeito e prestgio para aquele que passava a

    possu-lo.

    A partir de consideraes como estas, Bezerra de Meneses opta pela anlise da

    forma esttica que pode estar presente tanto em adornos e objetos sagrados, como em

    artefatos e utenslios. Como forma esttica entende-se aquelas formas que no so

    exigidas pelo uso instrumental do objeto, mas constituem uma chave ou um estmulo no

    contato sensorial entre o observador e o mundo real (MENESES, 1983, p. 22). Este

    critrio ressalta elementos formais no contexto em que atua.

    Os objetos arqueolgicos do perodo Pr-Colonial mais comuns no cenrio nacional

    so os vasilhames cermicos, os artefatos de rocha lascada ou polida e a arte rupestre. A

    escassa ocorrncia de objetos de material sseo, conchas, madeira e fibras vegetais se deve

    especialmente ao clima mido, que destruiu muito destes testemunhos, enquanto que a

    existncia de outros costumes, como o uso de pinturas corporais e indumentrias, chegou

    at ns por meio dos registros rupestres. Todas estas manifestaes envolvem elementos

    formais especficos que caracterizam a produo dos povos Pr-Coloniais.

    Mas a variedade e riqueza dos objetos estticos da pr-histria podem ser ampliadas

    se usarmos como referncia as colees relacionadas ao incio do perodo Colonial no

    Brasil. Diversas so as expresses plsticas: arte plumria, tranado, miangas tramadas,

    mscara, cermica, escultura, entre outros.

    A referncia aos objetos francamente ornados tambm pode ser encontrada nos

    relatos dos primeiros exploradores e missionrios em expedies na regio amaznica. Um

    relato de 1540, feito por Gaspar de Carvajal, o cronista da viagem de Orellana, descreve os

    vasilhames cermicos produzidos pelos ndios Omgua.

    37

  • Havia nessa povoao uma casa de diverses, dentro da qual encontramos muita

    loua dos mais variados feitios: havia talhas e cntaros enormes, de mais de vinte

    e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas como prato, escudelas e candeeiros,

    tudo da melhor loua de que j se viu no mundo, porque a ela nem a de Mlaga se

    iguala. toda vidrada e esmaltada de todas as cores, to vias que espantam,

    apresentando, alm disso, desenhos e figuras to compassadas, que naturalmente

    eles trabalham e desenham como o romano (CARVAJAL apud CRULS, 1954, p.

    17).

    A arte plumria tambm foi mencionada por diversos cronistas dos sculos XVI e

    XVII. Esses adornos eram especialmente usados em festas e cerimnias. representativa

    desta arte a gravura que ilustra os relatos de Jean Lery de 1578 (figura 10), que mostra uma

    dana cerimonial Tupinamb onde os ndios caracterizam-se com pintura corporal e

    paramentos plumrios. No meio do crculo de danarinos, trs pajs vestem mantos

    tambm desse material. O valor da plumria indgena produzida neste perodo se

    expressava tanto na sua variedade de cores como na habilidade tcnica que demonstrava a

    sua manufatura, muitas vezes fixada sobre tecido de algodo. O trabalho tcnico de

    algumas peas deste perodo, pertencentes ao Museu Nacional, foi descrito na coletnea

    As Artes Plsticas no Brasil, publicada em 1952.

    que o forro das peas mais custosas, como os gorros com tapa-nuca e os longos

    mantos, to caractersticos dos Tupinamb, era feito de um retculo de tecido

    sobre o qual se fixavam pacientemente as penas, depois de previamente

    amarradas, duas a duas ou trs a trs, num bastonete de pau, - isto no caso do

    trabalho realizado com penas pequenas e delicadas, que no podiam ser

    diretamente atadas ao tranado (CRULS, 1952, p. 4).

    O que foi visto e recolhido no momento da chegada dos Portugueses no territrio

    brasileiro deixou um bom testemunho da produo esttica do perodo Pr-Colonial de

    sociedades extintas. Como j dissemos, as condies climticas inviabilizam a preservao

    destes materiais perecveis, resistindo apenas os artefatos de rocha e cermica. Apenas

    alguns registros arqueolgicos detectam a ocorrncia de uma produo esttica

    diferenciada.

    38

  • Figura 10: Manto de plumria usado em dana cerimonial dos Tupinambs. Gravura que ilustra os relatos de Jean Lery de 1578. Fonte: Mtraux, 1972.

    A rodela-de-fuso, de material ltico ou cermico, encontrado entre os vestgios de

    aldeias pr-coloniais, revela o uso do algodo para a tecelagem. Tambm so achadas

    sementes e conchas perfuradas usadas como adorno. Testemunhos como estes ltimos

    foram encontrados entre os escavados no Abrigo Pedra Talhada (figura 11).

    Figura 11: Concha perfurada que serviu de adorno. Stio Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia (GO). Fonte: Acervo do MA/UFG.

    A arte rupestre tem se revelado uma expresso esttica cuja produo estende-se

    por um longo perodo, tendo sido registrada desde as primeiras ocupaes, h 11.000 anos

    AP, at os anos imediatamente precedentes chegada dos colonizadores.

    Os desenhos rupestres eram executados por meio de duas tcnicas pintura e

    gravura. As pinturas eram feitas com tinta lquida aplicada com um graveto que servia de

    pincel, ou com o dedo. O pigmento seco podia ser aplicado diretamente na rocha, dando um

  • resultado semelhante ao giz de cera, ou em forma de p, a ser soprado sobre um molde. Os

    corantes eram de origem mineral; o vermelho, a cor mais comum, era extrado do xido de

    ferro. Segundo os dados copilados por Gaspar (2003), anlises fsico-qumicas de

    pigmentos revelaram que a cor amarela goetita, um xido de ferro hidratado, a cor branca

    era obtida de duas espcies de tinta, Kaolinita e gipsita; e o cinza, por sua vez, era uma

    mistura natural dos pigmentos vermelho e branco.

    A tcnica da gravura consistia em picotear ou friccionar a rocha at provocar uma

    inciso, e era realizada com a ajuda de uma rocha mais dura do que o suporte a ser

    decorado.

    Em toda a arte rupestre os elementos formais podem ser divididos em duas

    categorias: os geomtricos e os figurativos. Entre as formas geomtricas esto

    representadas linhas retas e curvas, pontos, crculos concntricos, crculos radiados,

    losangos, tringulos, quadrados e retngulos com preenchimento de grades. Os figurativos

    mais comuns so as figuras humanas e animais, tais como mamferos, aves e rpteis. Os

    vegetais e objetos instrumentais produzidos pelo homem foram raramente representados.

    Entre os vegetais, foram identificados tubrculos e ps de milho. Os instrumentos so

    armas, armadilhas, cestos e adornos associados s figuras humanas.

    O historiador da arte busca identificar elementos iconogrficos dotados de inteno

    esttica, independentemente da sua associao funo histrica. As colees agrupam

    objetos estticos de uma mesma procedncia espao-temporal, abordando categorias

    diferentes e materiais diversificados. Sua inteno a de promover a apreciao da

    manifestao esttica, recorrendo aos elementos formais ressaltados pelo objeto.

    1.3.3. MANEIRAS PARTICULARES DE SE OLHAR A ARTE RUPESTRE

    Para compreenso da arte rupestre foram abordados dois pontos de vista, o

    arqueolgico e o da histria da arte, que apresentaram informaes complementares a

    respeito desta manifestao. A partir desses campos investigativos foi possvel entender a

    arte rupestre no seu contexto social e em suas representaes formais.

    Para a arqueologia, a arte rupestre est carregada de significao, na medida em que

    remete ao testemunho de um ou mais grupos humanos que selecionaram um determinado

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  • ambiente ecolgico para seu habitat. Tiraram pigmentos de frutos e minerais para pintar a

    rocha a fim de manifestar a sua viso cosmolgica natural e sobrenatural; enterraram seus

    mortos, acenderam fogueiras e abandonaram suas vasilhas quebradas, deixando ali

    vestgios do que faziam e do que comiam.

    As formas pintadas no paredo foram produzidas pela mesma populao que

    descartou os testemunhos que os arquelogos chamam de vestgios e que so encontrados

    no solo dos stios arqueolgicos. Porm, estes elementos visuais so mais que

    identificadores de locais de interesse para as populaes Pr-Coloniais: so os nicos

    registros do imaginrio destes homens do passado.

    No campo artstico, necessrio perceber o que distingue a arte rupestre de outras

    artes visuais. O principal ponto que no podemos ler a arte rupestre atravs dos mesmos

    critrios usados na leitura da arte produzida em outros perodos, que possuem outras

    caractersticas peculiares, outras referncias culturais, enfim, outro estgio de vida social.

    Em particular, porque no perodo Pr-Colonial as formas estticas estavam incorporadas

    aos artefatos ou utenslios do uso cotidiano, no havendo a categoria de objeto artstico

    dissociada da funo utilitria.

    A abordagem da arte rupestre deve estar centrada na forma esttica condizente com

    o seu tipo de produo. Nesta perspectiva, so realizadas classificaes formais

    propores, volumes, simetrias, temas que definem uma srie de padres estticos. Andr

    Prous ordenou os paredes rupestres identificando oito estilos com padres temticos

    particulares.

    O enfoque das classificaes formais ainda muito preliminar, porque em muitas

    regies do territrio brasileiro no houve levantamento arqueolgico, ou o levantamento foi

    apenas amostral, fornecendo resultados ainda incompletos.

    A diversidade cultural no perodo Pr-Colonial um tema que ainda apresenta

    muitas lacunas. Consideramos as manifestaes rupestres como sendo testemunho de uma

    diversidade de grupos culturais que ocuparam as terras brasileiras. Estes grupos executaram

    seus grafismos com padres formais e tcnicos, na maioria das vezes, circunscritos a

    territrios delimitados, sugerindo uma correlao com diferentes identidades tnicas.

    As classificaes da arte rupestre so extremamente importantes para se entender o

    cenrio da produo esttica; mas medida que novas pesquisas venham associ-la aos

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  • demais vestgios arqueolgicos, ser possvel compreender o modo de vida dos homens do

    passado e identificar alguns elementos iconogrficos comuns a todos eles.

    A arte rupestre pode ser a ponte para conhecimento do imaginrio dos homens Pr-

    coloniais. As analogias com estudos antropolgicos tm esclarecido alguns pontos sobre a

    funo social das manifestaes rupestres. Essencialmente, esta uma expresso do

    conhecimento cultural de um povo onde esto representados eventos histricos e mticos.

    Mas tambm uma linguagem visual reconhecida pela coletividade e neste sentido, muitas

    questes ainda podem ser levantadas sobre como funcionava esse cdigo, e em que

    situaes ele era utilizado.

    Estas consideraes direcionaram a produo do vdeo documental Memria da

    Pedra Talhada, apresentado no Captulo III do presente trabalho. A finalidade do vdeo

    colaborar para a compreenso da pr-histria no territrio nacional. E a arte rupestre, como

    objeto do vdeo, comumente compreendida entre a histria e a arte. Por isso, tentamos

    esclarecer como o nosso objeto de estudo transita por estes enfoques. Tanto pela

    arqueologia quanto pela histria da arte, a arte rupestre vista como o produto de uma

    sociedade circunscrita por sua historicidade. o testemunho de um perodo o qual tentamos

    conhecer.

    Como objeto de estudo da arqueologia, a arte rupestre tem fornecido muitas

    informaes que complementam o cenrio Pr-Colonial, tanto no que se refere ao estudo da

    territorialidade e distribuio espacial, quanto nas referncias a costumes, tais como o uso

    de utenslios (cestos e armas), produtos alimentares (tubrculos e milho), cerimnias rituais,

    entre outros. A histria da arte, por sua vez, ressalta a sensibilidade de sociedades ligadas

    natureza e quilo que modificado pela ao humana; a transformao de objetos,

    respeitando padres rgidos que revelam no um utenslio ou artefato, mas uma forma

    esttica, uma sensibilidade coletiva formada a partir do seu conhecimento cultural.

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  • CAPTULO II

    O STIO ARQUEOLGICO ABRIGO PEDRA TALHADA,

    NIQUELNDIA GO

    Detalhe das pinturas do Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia (GO). Fonte: Acervo MA/UFG

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  • 2.1. UM ESTUDO DAS PINTURAS RUPESTRES DO STIO ARQUEOLGICO

    Este captulo trata do estudo e anlise das pinturas rupestres do Abrigo Pedra

    Talhada. Foi realizado em duas fases. A primeira corresponde anlise quantitativa e

    qualitativa realizada no decorrer do resgate do abrigo ocorrido entre 1995 e 1998. A

    segunda compreende a anlise das pinturas como linguagem visual, e foi desenvolvida

    como suporte para a elaborao do vdeo documental, realizado entre 2004 e 2005, no

    transcurso do Mestrado em Cultura Visual. Ambos os casos so experincias de pesquisa

    vivenciadas por mim e que colaboram na formao de uma base de dados para a realizao

    do vdeo Memria da Pedra Talhada.

    O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada foi identificado em 1995, a 50m da

    margem do Rio Tocantinzinho, no municpio de Niquelndia (GO) (figura 12: Mapa de

    localizao). As pesquisas do abrigo estavam integradas ao Projeto de Salvamento

    Arqueolgico da Usina Hidreltrica Serra da Mesa PA-SALV-SM, em decorrncia do

    levantamento arqueolgico da rea afetada pela formao do lago que hoje constitui o

    reservatrio de gu