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UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO GLEIDE DE ALMEIDA RIBEIRO
ETNOMATEMÁTICA: SITUAÇÕES, PROBLEMAS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA REALIDADE DO SISTEMA EDUCACIONAL
MACUXI EM RORAIMA
SÃO PAULO
2012
UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA MESTRADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
GLEIDE DE ALMEIDA RIBEIRO
ETNOMATEMÁTICA: SITUAÇÕES, PROBLEMAS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA REALIDADE DO SISTEMA EDUCACIONAL
MACUXI EM RORAIMA
Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade Bandeirantes de São Paulo- UNIBAN, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática, sob orientação do Profº Dr. Ubiratan D’Ambrosio.
SÃO PAULO
2012
R369e Ribeiro, Gleide de Almeida
Etnomatemática: situações, problemas e práticas pedagógicas na realidade
do sistema educacional MACUXI em Roraima. ./Gleide de Almeida Ribeiro. -
São Paulo, 2012.
166 f.: il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado - Área de concentração: História da matemática) – Universidade Bandeirantes de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em
Educação Matemática.
“Orientação: Professor Dr. Ubiratan D’Ambrosio”
1. Etnomatemática. 2. Educação escolar indígena. 3. Cultura MACUXl. 4. Licenciatura intercultural. I. Título.
CDD: 372.7
GLEIDE DE ALMEIDA RIBEIRO
ETNOMATEMÁTICA: SITUAÇÕES, PROBLEMAS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA REALIDADE DO SISTEMA EDUCACIONAL
MACUXI EM RORAIMA
Dissertação apresentada à Universidade Bandeirante de São Paulo - UNIBAN para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática
Banca examinadora: Presidente e Orientador Nome: Prof. Dr. Ubiratan D´Ambrosio Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo - UNIBAN Assinatura: ________________________________________________ 1° Examinador titular Nome: Profª. Drª. Claudia Georgia Sabba Instituição: Universidade Nove de Julho-UNINOVE Assinatura: ________________________________________________ 2° Examinador titular Nome: Profª.Drª. Aparecida Rodrigues Silva Duarte Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo – UNIBAN Assinatura: ________________________________________________ Conceito:__________________________________________________
São Paulo,_________________de _______________de____________.
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos,
a reprodução total ou parcial desta dissertação por
processos de fotocopiadoras ou eletrônico.
Dedico esse trabalho aos meus pais, pela
angústia que sentiram em minha ausência;
A minha filha Glycya que me ensina a ser
melhor a cada dia;
A meus irmãos, sobrinhos, meus amigos,
formando uma família maravilhosa que tanto amo;
E ainda, de uma forma muito especial, aos
educadores indígenas, que são a fonte do meu
escrever!
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela oportunidade de chegar à reta final
deste trabalho. Por mostrar-me o caminho certo para dar cada passo em
direção às descobertas fascinantes que ocorreram durante a elaboração de
meu trabalho. Também agradeço por ter colocado pessoas maravilhosas no
meu caminho que deram-me forças para continuar.
Ao meu esposo Telmo, que torceu por mim sempre e mesmo à distância
acreditou no meu sucesso.
A minha amada filha, Glycya, que inspira minha vida, por ser
compreensiva maravilhosa e dedicada aos estudos. Minha fonte de orgulho
durante os dezoito anos de sua vida.
Aos meus pais, Esmeraldo e Zilda, que sempre me ofereceram o melhor:
amor, compreensão, apoio, incentivo e acima de tudo, o exemplo de uma vida
digna, da qual lembro-me todos os dias.
Meus agradecimentos aos meus irmãos, pela admiração e respeito que
sentem pela pessoa que sou.
Em especial a senhora Julia Paulino, verdadeira mulher indígena que
transmitiu sua sabedoria, força e carinho, me ensinando a importância das
raízes culturais.
Agradeço aos meus sogros, Augusto e Leoneide pela transmissão dos
valores culturais primordiais nos momentos de pesquisa.
Ao meu cunhado e amigo Jaime, pelas palavras de incentivo que me
davam forças para continuar nos estudos.
Meu agradecimento especial a Equipe da Fundação Carlos Chagas, e em
particular, Fúlvia Rosemberg que lidera com muita seriedade, apreço e
compreensão o Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da
Fundação Ford, proporcionando a oportunidade de participar deste programa
como bolsista.
Minha gratidão ao Professor Doutor Ubiratan D’Ambrosio pelos grandes
momentos de discussão em nossos encontros às sextas-feiras, que muito
acrescentaram em minha pesquisa.
Aos anciões e professores da região Baixo Cotingo, que proporcionaram-
me descobertas e momentos inesquecíveis no decorrer da pesquisa e que
foram fundamentais em todo o processo.
Às Professoras Doutoras Maria Helena Oliveira Palmas, Janete Bolite
Frant, muito importantes na minha vida acadêmica.
Ao Professor Doutor Ruy César Pietropaolo, pelo conhecimento,
experiência, paciência e dedicação que proporcionou em suas aulas,
fundamentais à minha formação.
À Professora Doutora Aparecida (Cida) pelo carinho e reflexões sobre a
História da Matemática.
À Professora Doutora Verônica Yumi Kataoka que, com muito
entusiasmo, ministrava suas aulas de Tópicos Fundamentais de Probabilidade
e Estatística. Entusiasmo que toma conta de todos os seus alunos!
Ao Professor Doutor Luiz Gonzaga Xavier de Barros, pela dedicação e
sensibilidade com que me conduziu à linguagem algébrica, deixando-me
confiante.
À Doutora Tânia Maria Mendonça Campos pelo carinho e competência,
abrilhantando o Programa de Mestrado em Educação Matemática.
RESUMO
A presente pesquisa analisa os instrumentos metodológicos, práticas
pedagógicas e a formação dos professores indígenas, potencialmente capazes
de qualificar as relações de ensino/aprendizagem na disciplina de matemática
e a inter-relação com os valores tradicionais Macuxi, em Roraima. Buscamos
apoio no Programa da Etnomatemática para desenvolver instrumentos de
análise que possam contribuir com os currículos escolares na melhoria da
educação escolar indígena, na revitalização dos valores tradicionais e no
desenvolvimento das comunidades indígenas. A motivação para o estudo
surge das seguintes indagações: Como os professores estão desenvolvendo
estratégias de ação, comuns no processo de ensino aprendizagem do saber /
fazer matemático, em seu ambiente escolar? Como essas estratégias
contribuem para a formação crítica do cidadão indígena, reavivando seus
valores culturais? Para responder às questões propostas, percorre-se o
caminho mais adequado: os pressupostos da abordagem qualitativa de cunho
bibliográfico, etnográfico, história oral e pesquisa de campo. Esta última foi
realizada na Escola Marechal Deodoro da Fonseca, comunidade Canavial,
terra indígena Raposa Serra do Sol, município de Normandia no estado de
Roraima. Por fim, as participações em oficinas pedagógicas, locais e regionais
proporcionaram a oportunidade de fazer entrevistas e observações relevantes
sobre o ensino da matemática no contexto educacional Macuxi.
Palavras chaves: Etnomatemática, Educação escolar indígena, cultura
Macuxi, Licenciatura Intercultural.
ABSTRACT
This research analyzes the methodological tools, pedagogical practices and the
training of indigenous teachers, potentially able to describe the relations
between teaching and learning in mathematics and the interrelation with
traditional values Macuxi in Roraima. This study was supported in the
Ethnomathematics Program in order to develop analytical tools that can help
improving school curriculum for a better indigenous education, traditional values
revitalization and the development of indigenous communities. The motivation
for the study came from the following questions: How teachers are developing
strategies, common in the teaching/learning process of knowing/doing math in
the school environment? How do these strategies contribute in critical citizen´s
construction reviving its indigenous cultural values? In order to answer the
questions posed, the most appropriate way was selected: the assumptions of
the qualitative approach in the literature, ethnography, oral history, and field
research. The last one mentioned was held in Marshal Deodoro da Fonseca
School, in Canavial community, indigenous land Raposa Serra do Sol,
Normandy city, in Roraima state. Finally, the participation in educational
workshops, local and regional, enabled the opportunity to conduct interviews
and relevant observations about the mathematics’ teaching in the educational
context Macuxi.
Keywords: Ethnomathematics, Indigenous Education, Macuxi Culture,
Intercultural Degree.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APIRR Associação dos Povos Indígenas de Roraima
CEE/RR Conselho Estadual de Educação
CEMPEM Centro de Estudos e Memória de Pesquisa em Educação
Matemática
CEFOR Centro de Formação dos Profissionais em Educação do estado
de Roraima
CF Constituição Federal
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CIR Conselho Indígena de Roraima
COIAB Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira
COPIAR Comissão de Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e
Acre
COPIAM Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia
CRI Centros Regionais Indígenas
CN Ciências da Natureza
DIEI Divisão de Educação Indígena
EEI Educação Escolar Indígena
ENEM- Exame Nacional do Ensino Médio
EJA Educação de Jovem e Adulto
FUNAI Fundação Nacional do Índio
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LDB Lei Diretrizes Bases
MEC Ministério de Educação e Cultura
NEI Núcleo de Educação Indígena
OMIR Organização das Mulheres Indígenas de Roraima
OPIRR Organização dos Professores Indígenas de Roraima
PPP Projeto Político Pedagógico
PEI Plano para o Etnodesenvolvimento
PNE Plano Nacional de Educação
RR Roraima (Estado de Roraima)
RCNE Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
SECD Secretária de Educação, Cultura e Desportos
SNHM Seminário Internacional de História da Matemática
SBHMAT Sociedade Brasileira de História da Matemática
SPI Serviço de Proteção ao Índio
UFRR Universidade Federal de Roraima
UNIBAN Universidade Bandeirante de São Paulo
LISTA DE FIGURAS
Fig.01 Saudações indígenas.............................................................................14
Fig.02 Momento da benção espiritual................................................................35
Fig.03 Mapa de localização geográfica das regiões..........................................49
Fig.04 Comemoração indígena para troca de cargos........................................52
Fig.05 Desenhos produzidos por professores indígenas ..................................57
Fig.06 Centros regionais de educação indígena- CRI.......................................72
Fig.07 Modelos de casas tradicionais ...............................................................79
Fig.08 O tipiti sendo utilizado ............................................................................80
Fig.09 Artes indígenas ......................................................................................81
Fig.10 Grafismos e seus significados................................................................81
Fig.11 Grafismo Macuxi.....................................................................................82
Fig.12 Croqui da comunidade Canavial.............................................................88
Fig.13 Alunos em excursão, pesquisa de campo............................................101
Fig.14 Figuras gravadas em pedra..................................................................102
Fig.15 Medida de braça ..................................................................................104
Fig.16 Descrição da situação problema...........................................................105
Fig.17 Espaço de aprendizagem ....................................................................108
Fig.18 Grupo de trabalho.................................................................................116
Fig.19 Alunos construindo o croqui de sua comunidade.................................117
Fig.20 Anciões construindo suas histórias ......................................................117
Fig. 21 Reprodução de história........................................................................118
Fig.22 Desenhos da criança Macuxi de 06 anos.............................................122
Fig.23 Desenhos do ambiente cultural ...........................................................123
Fig.24 Registro numérico e simbólico..............................................................125
Fig.25 Quantidades..........................................................................................126
Fig.26 Jamarú, utensílio usado para guardar bebidas indígenas ...................126
Fig.27 Crianças Macuxi na apresentação de trabalhos...................................128
Fig.28 Coordenador geral da Organização dos Professores Indígenas de
Roraima...........................................................................................................133
LISTA DE TABELAS E QUADROS
Tab. 01 Demonstrativo das regiões...................................................................50
Tab. 02 Escolas que fazem parte do Centro de Educação Amoo´ko Januário
em suas respectivas comunidades................................................................... 74
Tab. 03 Numeruukon, numeração indígena ................................................... 83
Q.01 Escolas indígenas da região Baixo Cotingo..........................................73
Q.02 Plano de Alzineide................................................................................98
Q.03 Plano semanal....................................................................................100
Q.04 Mini relatório .......................................................................................102
Q.05 Conceitos Matemáticos.......................................................................129
Gráfico 1 Estrutura do Curso..........................................................................132
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................ 14
1. O ESTADO DE RORAIMA: UM ESTADO INDÍGENA........................... 45
1.1 Contexto sócio histórico: terra indígena Raposa Serra do Sol......... 48
1.2 Educação indígena, educação para vida............................................ 53
1.3 Mitos e Lendas Macuxi...................................................................... 55
1.4 Educação escolar: desvalorização da educação indígena, Valores
culturais ameaçados...................................................................................... 58
1.5 O protagonismo indígena: a educação escolar redirecionada ao
contexto social do índio........................................................................ 61
1.6 A Organização dos professores indígenas de Roraima: um
destaque de lutas ............................................................................... 64
2. GESTÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM PROJETO EM CONSTRUÇÃO.... 71
2.1 Educação escolar: qual modelo educacional? ..................................... 74
2.2 Que matemática?....................................................................................76
2.3 A matemática cultural Macuxi: uma prática social..................................78
3. A PESQUISA EM PROCESSO................................................................ 86
3.1 Sobre a escola Marechal Deodoro da Fonseca.................................. 89
3.2 Sobre a Organização Curricular da Escola.......................................... 93
3.3 A matemática na prática educacional.................................................. 93
3.4 Comunidades indígenas construindo práticas pedagógicas: a
experiência coletiva ...................................................................................108
3.5 O contexto sócio educacional da criança macuxi...............................113
3.6 Do simbólico ao registro numérico......................................................124
4. A ETNOMATEMÁTICA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
EM RORAIMA............................................................................................131
4.1 O debate do currículo..........................................................................132
4.2 A matemática no contexto transdisciplinar..........................................137
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................144
REFERÊNCIAS...............................................................................................152
ANEXOS..........................................................................................................158
14
INTRODUÇÃO CAMINHOS PARA A PESQUISA
Figura 01: saudações indígenas Fonte: arquivo pessoal da autora
O grande desafio da educação é a prática do saber/fazer hoje, para refletir positivamente no amanhã, ou seja, todo o conhecimento construído hoje será a base de reflexão no futuro, para rever, reformular, aprimorar o saber/fazer que orienta nossa prática (D´AMBROSIO, 2010, p.80).
A lembrança de uma infância difícil não proporciona a nenhum ser
humano o desejo de relembrá-la. No entanto, não poderia iniciar esse trabalho
deveras importante, excluindo os detalhes que me trouxeram até este
momento. Em meus primeiros anos de vida, perdi um irmão e logo em seguida
meus pais separaram-se. Minha mãe (Makusi), então, revelou-me algo
importante: “Não sou desse lugar. Vou procurar minha família”.
Essa revelação intrigou-me, pois era o único lugar que conhecia até
aquele momento. Ao longo de tantas idas e vindas, procurei compreender a
frase de minha mãe; porém, foi a partir dos dez anos que comecei a entender.
15
O período ao qual me refiro, parte de 1940 do século XX. Esta época
retrata separação e perda para minha família. O processo de colonização
invadia as terras do lavrado de Roraima. As mulheres indígenas eram levadas
por fazendeiros para os trabalhos domésticos; e, da mesma forma, os homens
eram “escravos do campo”. Foi neste contexto, que minha avó materna foi
retirada do berço familiar por um dos grandes fazendeiros instalado nas terras
indígenas, hoje, Raposa Serra do Sol, dono da fazenda denominada Perfeição.
Minha mãe nasceu na fazenda Perfeição, e também foi tirada dos
braços de sua mãe para trabalhar em outra fazenda. Até a adolescência foi
criada por um senhor chamado França, “dono” de terras da região.
É neste ponto que destaco dois fatos importantes. O primeiro trata do
contexto familiar: o valor familiar dos Makusi1 é o esteio da comunhão, respeito
e dignidade.
O segundo trata dos etnos, palavra grega que se refere ao conjunto de
costumes e hábitos fundamentais no âmbito do comportamento (instituições,
afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças) característicos de uma
determinada coletividade, época ou região (HOUAISS, 2009). Para os Makusi,
a perda desses valores significa a perda da consciência de sua etnicidade
(condição ou consciência de pertencer a um grupo étnico).
Todos esses valores foram perdidos por minha mãe devido à
convivência com o homem Karaiwa2.
Dessa forma, a distância de seus antepassados não foi favorável à
valorização de sua cultura. A língua materna e os ensinamentos repassados
pelos anciões familiares foram expulsos terrivelmente de sua vida e
consequentemente da vida de seus filhos; entre eles, estava eu.
No entanto, esse fato jamais poderia interromper a caminhada de uma
índia Makusi. Pelo contrário, a busca da consciência étnica foi o alicerce do
meu transcender, afinal os Makusi são reconhecidos por sua perseverança,
luta e resistência.
1 Em alguns momentos do texto haverá a escrita palavra makusi que define a etnia na própria
língua materna. Na tradução em português a palavra é escrita como macuxi, aparecerá com maior frequência. 2 Karaiwa, na língua indígena makusi se refere ao homem branco.
16
Ao referir-me ao termo consciência, faço-o para justificar que, na
maioria dos casos, dos descendentes indígenas que passaram pelo processo
de aculturação3, poucos voltam à sua realidade, ou seja, não se identificam
como índios. Portanto, “a consciência se reflete e vai para o mundo que
conhece: é o processo de adaptação. A consciência é temporalizada. O
homem é consciente e, na medida em que conhece, tende a se comprometer
com a própria realidade” (FREIRE, 2011, p.30).
Nesta fase, coloco-me como cidadã indígena, comprometida com a
realidade do meu povo; buscando, como pesquisadora, compreender as
necessidades primordiais indígenas, em especial, dos Macuxi.
O povo Macuxi tem origem Pemon, do tronco linguístico Karibe e habita
a região do Monte Roraima, especificamente ao longo das fronteiras entre
Brasil, Venezuela e Guiana. Ao longo dessa pesquisa, obtiveram-se
informações preciosas sobre minha origem, descendência e membros de
minha família.
O contexto educacional é, da mesma forma, de primordial importância
na busca desses conhecimentos. Ainda para Freire, “o homem está no mundo
e com o mundo. Se apenas estivesse no mundo não haveria transcendência
nem se objetivaria a si mesmo” (Ibid., p.37). De fato, o que Freire afirma é: o
homem ao adquirir consciência, reconhece que não está sozinho no mundo e
ao reconhecer o outro, realiza escolhas, vontades; assim, a relação entre os
seres e o mundo, torna-os capazes de transcender.
Nesta direção, Ubiratan D´Ambrosio entende que é comum, a todas as
espécies de seres vivos, a busca pela sobrevivência desde que adquirem vida.
Isso se processa na utilização de recursos naturais para suprir necessidades
fisiológicas e na aquisição de modos de lidar com o ambiente.
Porém o ser humano,
vai além da busca de sobrevivência. Procura explicação, que vai além do aqui e agora, tentando entender o como e o porquê de fatos e fenômenos. (...) a nossa espécie obedece às pulsões de sobrevivência, como todas as demais espécies vivas, e de transcendência, como nenhuma outra espécie. (...) certos povos, ao longo de muitas gerações, compartilham elementos comuns das respostas às pulsões de sobrevivência e transcendência (2008 p. 21-22).
3 Processo de modificação cultural de individuo, grupo ou povo que se adapta a outra cultura
ou dela retira traços significativos. (HOUAISS, 2009)
17
Na busca por sobrevivência e transcendência, os povos indígenas de
Roraima vêm tornando-se, ao longo dos tempos, protagonistas de suas
próprias investigações. Buscam consciência cultural, “autonomia educacional”,
e conquista de seus próprios territórios; desenvolvendo suas próprias
estratégias, diálogos e técnicas de ensino/aprendizagem em contextos
interculturais.
Assim, a missão deste trabalho é discorrer, ainda que timidamente,
sobre processo de interpretação de fatos, fenômenos, estilos e técnicas que
D´Ambrosio (2008) afirma serem características que cada indivíduo desenvolve
para sua sobrevivência e transcendência. Para compreendermos como surge a
matemática nesses ambientes culturais e sociais, D´Ambrosio se utiliza do
exercício etimológico que o levou a adotar raízes gregas para desenvolver o
programa de pesquisa conhecido mundialmente como Etnomatemática. A
palavra etnomatemática, compõe-se de:
entender, explicar, aprender e ensinar, manejar e lidar com = Matema;
meio ambiente natural, social, etnopolítico e imaginário = etnos;
modos, estilos, maneiras, técnicas ou artes, tecne = tica;
etno+matema+tica = etnomatemática.
Assim sendo, procura-se especificar melhor, ao longo do trabalho,
como essa teoria se desenvolve no contexto educacional indígena Macuxi.
Para início do desafio, apresenta-se, nesta introdução, a trajetória da
autora em termos específicos e os primeiros fundamentos de pesquisa, bem
como a área temática: a prática pedagógica como meio de comunicação entre
as raízes culturais (anciões) e as novas gerações, baseando-se no programa
de D´Ambrosio, a Etnomatemática. Seguem-se a justificativa; a especificação
do problema, as questões de pesquisa, os objetivos, o método e os
fundamentos.
18
Minha trajetória
Nasci em 19 de setembro de 1973, na comunidade4 Sucuba, Município
de Alto Alegre. Minha mãe, Maria Zilda de Almeida, nasceu na região Baixo
Cotingo, ao Nordeste do estado de Roraima, nos arredores da comunidade
Xumina, no município de Normandia.
Na época, minha avó materna trabalhava na fazenda denominada
Perfeição. Como era costume, o colonizador tirava as mulheres do convívio da
aldeia para trabalhos domésticos e os homens para a pecuária. Assim, meus
avós foram destinados a trabalhos dessa natureza. Tiveram alguns de seus
filhos em domínios do fazendeiro; dentre eles minha mãe. Ainda adolescente,
ela teve o mesmo destino, foi doada aos “cuidados” do pecuarista França. O
prejuízo cultural à nossa família foi irremediável. Minha mãe perdeu contato
com a família quando foi levada pelo tal fazendeiro que a impediria de
manifestar sua cultura, aquela repassada a ela por meus avós: a língua, a
dança, a religião etc. Coloco um pequeno relato da história de meus avós para
que se possa compreender o quão difícil foi a trajetória desta pesquisadora.
Aos quinze anos, minha mãe mudou-se para comunidade Sucuba, município
de Alto Alegre, por conta de seu casamento com o Manoel dos Santos.
Tiveram cinco filhos, dentre eles, eu. Lamentavelmente, um menino foi a óbito
quando ainda criança.
Minha mãe, makusi, estudou até a 3ª série primária. Meu pai,
Wapichana, já falecido, não era alfabetizado. Aos seis anos de idade, meus
pais separam-se e minha mãe migrou para Boa Vista, Capital de Roraima. Por
falta de recursos, ela pediu ao meu padrinho, Dionísio, que cuidasse de mim
por um tempo. Meus irmãos mais velhos continuaram morando com meu pai.
Aos oito anos, ingressei pela primeira vez na escola, no ano de 1981.
Foi uma época difícil, pois tinha que percorrer 10 km de bicicleta. A escola foi
implantada na fazenda Pitombeira, e, em uma única sala, funcionavam as
4 Neste trabalho, em referências sobre os lugares habitados por povos indígenas, utilizarei o
termo comunidade indígena. Os termos mais primitivos, como maloca ou aldeia, em Roraima, caíram em desuso, sendo considerados pelos indígenas termos pejorativos com tom discriminatório.
19
séries de 1ª a 4ª. Muitos dos alunos eram filhos de fazendeiros e agricultores
dos arredores.
Lembro-me da cartilha Pipoca5 e da tabuada, porém, a segunda
causou-me trauma maior. A Professora Cléia nos obrigava a decorar uma
tabela por dia, do contrário, era castigo na certa, sendo o pior deles, a
palmatória. Não pude terminar o ano, pois minha mãe casou-se pela segunda
vez e foi me buscar. Fiquei fora da escola pelo resto do ano. Meu padrasto era
vaqueiro e por essa razão passamos por vários sítios e fazendas, o que
dificultou meus estudos.
Somente aos nove anos pude recomeçar minha trajetória estudantil.
Minha mãe matriculou-me na Escola Camilo Dias, na 1ª série, na capital Boa
Vista, onde passei a morar em definitivo até a fase adulta.
Por ser indígena e em faixa etária considerada fora do que é normal na
idade escolar, não me sentia confortável, pois os colegas de classe eram
menores e mais novos do que eu. Por outro lado, sentia-me feliz porque
ansiava ser alfabetizada. Saber ler e escrever era, naquele momento, um
sonho; fato que ocorreu sem muitas dificuldades.
Minha maior dificuldade era a matemática. A tabuada era meu tormento
e continuava a fazer sacrifícios para decorá-la. Depois, vieram as operações de
Adição, Subtração, Multiplicação e Divisão. Tudo era muito difícil.
Na 2ª série, olhei para a tabuada com “bons olhos”. O professor levava
um violão e primeiramente cantava a tabuada para os alunos ouvirem; depois,
em grupo, os alunos cantavam. Só então desgostei menos dos números. O
professor gostava do que fazia. Eu pensava: quando tiver uma profissão, quero
ser igual a esse professor. O tempo passou, e tudo ficou mais complicado, as
equações, as funções, os problemas... a matemática era muito difícil.
O fato mais marcante, ocorreu em certa ocasião em que um colega
chamou-me de “caboca” (cabocla6). É comum no estado, os chamados
“brancos”, tratarem os índios de forma pejorativa e discriminatória. Não gostei
daquela maneira de ser tratada, por isso procurei saber o significado da
palavra. Pois bem, se o termo caboclo é a mistura de branco com índio, não
5 Essa cartilha era usada nessa escola para alfabetização na década de 80.
6 Pessoa nascida de índia e branco (ou vice-versa), (HOUAISS, 2009).
20
poderia ser chamada como tal. Nesse momento, comecei a pesquisar a minha
verdadeira origem. Quem era eu na verdade? Fiz descobertas
impressionantes. O mais importante é que tenho uma origem, uma identidade
indígena. Portanto, cada vez que sou chamada de cabocla sempre corrijo o
termo: “sou índia, não cabocla”.
O colonizador tentou destruir nossa origem, nossa existência, mas o ser
índio sobreviveu aos massacres e continua crescendo.
Finalmente, terminei o Ensino Fundamental, na mesma escola, com
meus 17 anos, quando deveria estar terminando o Ensino Médio. Porém, nem
tudo estava perdido. Quando cursava o primeiro ano do Ensino Médio, fui
convidada por um amigo Wapichana para voltar à comunidade indígena.
Em 1991, fui contratada temporariamente para trabalhar como
professora na escola Nossa Senhora da Consolata. Na época, já existia um
movimento das lideranças indígenas com o objetivo de evitar que a Secretaria
de Educação do Estado enviasse professores não índios para as escolas
caracterizadas indígenas.
Naquele momento, a secretaria de educação já havia aceitado a criação
de um Núcleo de Educação Indígena (NEI), para cuidar dos interesses dessas
escolas, podendo contratar, temporariamente, índios que tinham concluído o
Ensino Fundamental para exercer a função de professor e, paralelo a isso,
tinham direito ao ingresso no Magistério Normal Parcelado7, onde o aluno
estudava nas férias duas vezes ao ano.
No Magistério, o professor que ministrou a disciplina Metodologia de
Ensino de Matemática mostrou, outra vez, que a matemática não era um
monstro. As confecções das formas geométricas, os jogos pedagógicos, as
equações passaram a ter sentido. O professor demonstrava a utilidade dos
cálculos.
Tradicionalmente, o professor é considerado um tipo de “espelho” para
o aluno que, consequentemente, repassa a metodologia “aprendida”. Dessa
forma, sem nenhuma formação pedagógica, tentava copiar o que havia visto
como aluna, e depois, imitando metodologias dos meus professores, repassava
7
A escola de formação de professores (magistério) foi criada pelo Decreto n°11, de 24 de março de 1997, formava professores para o ensino primário em dois períodos. O normal onde os alunos cursavam regularmente durante o ano.O Parcelado funcionava em períodos de férias duas vezes ao ano, dito “Magistério Normal Parcelado”.
21
os conhecimentos aos meus alunos. Nessa primeira experiência com o Ensino
Primário, lembrei-me dos bons professores que tive, tentei basear-me em suas
metodologias, que a meu ver eram adequadas. Os alunos contribuíam com as
aulas, traziam sementes e frutas para ajudar nas situações matemática que
estudávamos. Mesmo assim, algo me inquietava, será que existiam outras
formas de ensinar matemática? A matemática podia ser menos difícil?
Outro momento que não pode ser esquecido foi a felicidade de
reconhecer o meu lugar enquanto indígena. Pude perceber que nada sabia do
contexto riquíssimo e dos mistérios que envolviam nossa história. A partir disto,
procurei, cada vez mais, reconhecer e ser reconhecida como indígena, o que
ocorreu de fato quando casei-me com o índio Macuxi Telmo Ribeiro; com quem
tive minha única filha. Tempos depois, descobri que o mesmo era meu primo.
Foi quando procurei construir minha árvore genealógica. Passei a remexer no
passado de meus avós através do meu sogro Augustinho Paulino, que por
sinal, conhecia bem a família de minha mãe.
Dessa maneira, voltei às minhas origens e graças a Deus fui bem
recebida por meus parentes. Hoje, moro na região de origem da minha família,
de onde nunca deveria ter saído. Aprendo, a cada dia, coisas novas a respeito
de minha cultura, da qual, por motivos alheios à minha vontade, fui isenta de
aprender. Apesar disso, não deixei de sofrer discriminação, pois a sociedade
não perdoa as pessoas que não sabem “falar bem” e não são os melhores
alunos de uma sala de aula. Não esqueço certa ocasião na UNIBAN, quando
um colega me falou: “Gleide, o fulano de tal perguntou: vocês entendem o que
aquela índia fala?” Nossa! Eu pensei: em que mundo eu estou, será que ainda
existem pessoas com essa visão pequena de que o índio não pode ascender?
Ainda mais impressionante foi ouvir esse comentário de um estudante de
doutorado. Acreditem, fiquei decepcionada. Esse pequeno comentário foi
somente uma tentativa de descrever o menor sofrimento que um índio passa
para tentar conhecer “outro mundo” que não seja o dele. É claro que eu sou
consciente quanto a situações como essa, e que ainda posso vir a enfrentar.
Voltando a Roraima, trabalhei em três escolas indígenas do estado
antes de prestar concurso público para professores: Escola Nossa Senhora da
Consolata (comunidade Manoá), Escola Eduardo Ribeiro (Comunidade Jabuti),
22
ambas no município de Bonfim; e Marechal Cândido Rondon (comunidade
Boqueirão) município de Alto Alegre.
Em 1994, o Governo do Estado de Roraima abriu um concurso público,
momento em que passei para o quadro de funcionários públicos efetivos do
estado. No ano seguinte, retornei a Boa Vista, passando a trabalhar em
escolas da capital, em salas de 1ª a 4ª séries.
No ano de 1998, prestei o vestibular e ingressei no curso de
Licenciatura em Matemática, na Universidade Federal de Roraima- UFRR.
Concluí essa etapa com bastante dificuldade por ser um curso difícil e pelo fato
de não ter cursado o Ensino Médio normal, onde deveria ter aprendido
conteúdos básicos da matemática como, por exemplo, Matrizes, Progressão
Aritmética, Progressão Geométrica, Funções Exponenciais, etc. O Magistério
não havia nos preparado para enfrentar o nível superior; no meu caso, o Curso
de Matemática. Mesmo assim, não desisti. Buscava respostas para minha
angústia.
Para minha decepção, não encontrei respostas, pelo contrário, fiquei
frustrada porque a rigidez com que as disciplinas eram ministradas causava
espanto. Segui em frente, afinal, o curso tinha suas vantagens e me ensinou a
ser perseverante, a conquistar algo melhor para minha prática de sala de aula.
Fiquei na capital por um período de 12 anos, mas não estava contente
com isso. Sentia necessidade de voltar para minha comunidade e ajudar meu
povo.
Em 2008, recebi o convite da Professora Edite, coordenadora do
Projeto Magistério Indígena Tamî’kan8, para ministrar alguns módulos do
ensino de Matemática. Pude contemplar, neste curso de formação, as
dificuldades dos alunos/professores em desenvolver metodologias específicas
para área de Matemática. Nessa ocasião tive o primeiro contato com os livros
de Ubiratan D´Ambrosio e o Programa Etnomatemática. Os temas trabalhados
nesse módulo foram: Escolas indígenas e o ensino da Matemática; História da
Matemática e Introdução à Etnomatemática.
8 O Magistério indígena Tamî’Kan foi um projeto da Divisão de Educação Indígena em 2008,
mantido pelo Governo do Estado, com total de 300 alunos. O curso habilita professores indígenas que já atuam em escolas de suas comunidades, selecionados minuciosamente pelas lideranças. Os alunos estudam em etapas duas vezes por ano.
23
Nesse projeto, os alunos em formação eram professores que já
atuavam em escolas de suas aldeias e procuravam trocar experiências entre si.
Minha inquietação surgia a cada pergunta, nos momentos em que os alunos
precisavam realizar atividades práticas, na tentativa de contextualizar cálculos
matemáticos com situações vividas em comunidade. Por que a Matemática é
tão ruim e difícil? Por que meus alunos da comunidade não conseguem
compreender as operações fundamentais, equações, funções, entre outros.
Quando eu perguntava: “quem gosta de matemática?”.
A resposta já se pode imaginar. A maioria dizia que não. Com a
resposta negativa eu indagava aos alunos o fato de não gostarem da matéria.
Pedia que justificassem a resistência, o não gostar da disciplina. Geralmente as
respostas eram: “muitos cálculos, não tem sentido, é muito complicado,
aprendemos equações, por exemplo, mais nunca sabemos para o quê e
quando usar”. Então, para cumprir com o cronograma do curso, utilizei como
textos base o livro “Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade”
de autoria de D’Ambrosio (2005). Foi uma experiência interessante, os alunos
ainda não conheciam o Programa Etnomatemática, porém, perceberam que,
em algumas ocasiões, na escola, já desenvolviam de certa forma o programa
que, de acordo com o autor: “O que comumente se chama Matemática é,
portanto, uma forma de Etnomatemática, que se desenvolveu durante séculos
a partir de um contexto social e cultural europeu e que foi se adequando a
situações, problemas e ações requeridas nesse contexto” (1994, p.7).
Também no ano de 2008, participei do primeiro processo seletivo para
Coordenadores Pedagógicos Itinerantes indígenas. Cada coordenador deveria
acompanhar pedagogicamente escolas divididas nas regiões do estado. Por
exemplo, na região Baixo Cotingo, da qual faço parte, existem 22 escolas.
Nestas, passei a ter contato direto com os professores e comunidades da
região. Atuei até o primeiro semestre de 2010, quando saí para cursar o
mestrado.
Ao longo da minha atuação, constatei que a prática pedagógica
aplicada ao ensino da Matemática em escolas indígenas, em sua maioria,
ainda é a mesma de quando se iniciaram as primeiras escolas nas
comunidades indígenas: tradicional e individual. Isso, de certa forma, causa
impacto aos alunos, contribuindo para que os mesmos sintam antipatia pela
24
disciplina, resultando em reprovações. Outra importante descoberta foi que os
professores, embora familiarizados com algumas práticas, ainda não
conheciam a Etnomatemática. Dessa forma, entendi que poderia, de algum
modo, ajudar a melhorar esse contexto escolar. Passei a ler sobre o Programa
Etnomatemática e conhecer, ainda que distantemente, o autor desse
revolucionário Programa. Ubiratan D´Ambrosio, a meu ver, era uma lenda e
jamais imaginei conhecê-lo, porque do lugar em que eu estava, era um sonho
quase impossível.
Outra forma de incentivo foram as participações em assembleias gerais
de lideranças indígenas e de professores, seminários voltados à educação
escolar indígena, reuniões comunitárias, oficinas de construção da Proposta
Pedagógica regional, iniciativas da Organização dos Professores Indígenas de
Roraima – OPIRR, em parceria com a Universidade Federal de Roraima -
UFRR através do núcleo INSIKIRAN, hoje Instituto de Educação Superior
Indígena, Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
Participei de algumas conferências e seminários voltados à educação
escolar indígena, local e nacional. Essas reflexões culminaram em um resumo
geral sobre as preocupações e perspectivas dos povos indígenas focadas à
política de gestão educacional, melhoria da qualidade do ensino aprendizagem,
saúde, terra e projetos de etnodesenvolvimento.
Meu projeto acadêmico desenvolveu-se a partir da realização do curso
de especialização na Universidade Federal de Roraima, cujo tema foi Gestão
para o etnodesenvolvimento, onde realizei o primeiro trabalho, ainda que
incipiente, em Etnomatemática. Este contexto amplo levou-me a participar do
programa de bolsas para Pós-Graduação em Mestrado e Doutorado da
Fundação Ford, no Brasil, sob a responsabilidade da Fundação Carlos Chagas.
Com a aprovação da bolsa, o desafio foi encontrar um orientador, o que
aconteceu quando o Programa de acompanhamento da Fundação Ford
conseguiu com que o Doutor Ubiratan D´Ambrósio pudesse ser meu orientador.
Por isso, estou hoje na Universidade Bandeirante de São Paulo.
25
A área temática
O trabalho está conectado à Educação Matemática e,
consequentemente, ao Programa de estudo Etnomatemática, de modo que
procura-se contextualizar as práticas pedagógicas de professores indígenas
que ministram a disciplina Matemática.
De acordo com D`Ambrósio,
A matemática é geralmente conceitualizada como a ciência dos números e das formas, das relações e das medidas, das inferências, bem como da precisão, do rigor, da exatidão, e essas categorias do pensamento aparecem em todas as culturas, como manifestação de modos, maneiras e estilos de explicar, conhecer, lidar com a realidade (D’AMBROSIO, 1994, p.92).
Como citado anteriormente, o autor nos ajuda a considerar que os
povos indígenas desenvolvem a sua maneira seus métodos, estilos e técnicas,
para quantificar, medir e inferir, ou seja, desenvolve sua Etnomatemática, no
seu ambiente sócio cultural. Dai o fato pelo qual o Programa Etnomatemática
vem corroborar a ação educativa desse ambiente. Portanto, os valores culturais
manifestados por esses elementos (a arte ou técnica, de conhecer, de
entender, de agir em diferentes contextos naturais e culturais), retratam a teoria
do conhecimento, desenvolvendo ao mesmo tempo a teoria de cognição, o que
nos leva a outra visão de história e representações óbvias na prática
pedagógica.
Portanto, nenhuma contribuição seria mais relevante, a qual a
matemática se tornaria acessível a todos os povos, do que a Educação
Matemática. Esta se tornou o elo entre a academia e a escola mais distante.
Por isso, este trabalho creditou seus anseios no Programa Etnomatemática,
considerando a Educação Matemática, levada a cabo pela História da
Matemática.
A Etnomatemática sendo uma ponte entre povos de diferentes
contextos sociais contribui para o saber/fazer matemático com dignidade,
respeito, fortalecendo as raízes culturais e construindo novos conhecimentos
em práticas escolares.
O intento que temos ao escolher essa temática é contribuir com as
diferentes áreas de conhecimento. Sabendo que a Educação Matemática e a
Etnomatemática não causará nenhum impacto significativo no ensino
26
aprendizagem da matemática se não houver mudança de postura por parte de
pesquisadores, professores e profissionais da educação, ou seja, um olhar
pedagógico otimista é capaz de apontar novos caminhos para o descrédito que
hoje sofre o ensino nas escolas indígenas. Por outro lado, o programa oferece
oportunidade para que esses profissionais saiam do que D`Ambrósio chama de
“Gaiolas Epistemológicas” (disciplinas engaioladas), o qual farei menção mais
adiante. Para especificar melhor o que estou querendo dizer, no decorrer do
trabalho serão mostrados alguns trabalhos pedagógicos, oficinas, opiniões de
lideranças e professores que fazem parte desse contexto em Roraima.
Justificativa
Sabe-se que as escolas criadas para os índios, desde os primórdios da
colonização, descaracterizam o contexto educacional próprio de cada grupo
indígena. Para a Organização dos Professores Indígenas de Roraima - OPIRR
(2011), esse longo e desumano caminho pelo qual os povos indígenas de
Roraima foram obrigados a percorrer, não possui volta. Ao longo do percurso
ficou grande parte de seus valores culturais, os quais foram quase à extinção.
A escola implantada para o índio caracterizava-se, basicamente, como forma
de aculturação. Aprender a Língua Portuguesa e efetuar as quatro operações
era a meta dos padres Beneditinos e se tornou a cartilha dos professores da
época.
Aos poucos, não muito distante de nossa realidade, o movimento
indígena vem se organizando, realizam manifestações de descontentamento e
lutam por seus direitos. Povos discriminados historicamente vêm construindo
formas e modelos próprios de aprendizagem. Porém, há de se perguntar:
Esses modelos próprios de aprendizagem incluem a matemática cultural? Ou a
matemática dos 2+2, 1+1, 10+5, 2x8, 8x9... ainda impera nesses espaços
escolares?
Esta situação faz minha mente reportar-se aos meus oito anos de
idade. A longa caminhada, a distância de 10 km percorridos de minha casa até
a fazenda Pitombeira, onde funcionava uma escolinha rural (primeira escola em
que estudei). A professora Cléia, uma senhora distinta, era a dona da fazenda
e em suas aulas era extremamente exigente. Havia uma única sala onde
27
funcionavam de 1ª a 4ª séries. Alunos de diferentes tamanhos e idades juntos,
pois era a única escola nas proximidades da comunidade. O fato é que essa
fase da minha vida foi tão ruim que nem lembro o nome da escola.
Todos os dias, Cléia nos fazia decorar a tabuada de multiplicação e nos
ensinava as primeiras somas. Foi traumatizante: muitas noites, passávamos,
eu e minha prima, à luz de lamparina, decorando aquelas tabelas de soma,
subtração e multiplicação que mais pareciam uma penitência, repetíamos,
repetíamos... O curioso é que não me lembro de ter estudado a tabuada de
divisão, pois a professora dizia que se eu aprendesse a multiplicação
consequentemente saberia a divisão, mas eu não entendia nada disso. Ruim
mesmo era a hora da chamada oral, a cada nome, um sofrimento. Ao ser
chamado, o aluno teria que responder a tabuada que ela designasse; ao errar,
a palmatória estava ao lado para contribuir com o castigo. Às vezes, o aluno
ficava sem intervalo, estudando na sala. Eu não gostava dos dias que tinha
aulas de matemática. Portanto, é necessário fazermos reflexões sobre
mudanças relevantes no contexto educacional em que estamos vivendo.
O sonho dos povos indígenas é, em especial, construir uma educação
escolar que contemple suas ideias, modelos próprios de ensino-aprendizado e
práticas pedagógicas diferenciadas, o que não tem sido uma tarefa fácil. Para
que isso aconteça, é preciso contar com a participação de todos: comunidade e
suas especificidades, conhecimentos matemáticos, valores, histórias, sistemas
sociais, políticos e jurídicos, universidades focalizando formações específicas
para professores indígenas, bem como, um conhecimento maior sobre a
Educação Matemática. É importante considerar que, apesar dos avanços
teóricos, nota-se uma grande distância entre a proposta da Educação
Matemática, como projeto e discussão, e a situação do ensino da matemática
em sala de aula.
O grande desafio de um trabalho de pesquisa é pensar o que fazer, por
que fazer e para quem fazer. Com essas reflexões iniciais podemos direcionar
o trabalho baseando-nos no questionamento: “como fazer?”.
Antes de tudo, o educador deve compreender o significado de sua
condição humana, sendo ele um educador matemático, por exemplo, a
responsabilidade de construir conhecimentos junto aos seus alunos requer
28
ainda mais atenção, uma vez que a matemática é vista por muitos alunos como
a vilã de todas as demais disciplinas.
Portanto, acredito que o programa de estudo Etnomatemática é um
caminho para amenizar o conflito, já que se trata de um contexto geral de
aprender/fazer matemática, além de contribuir para a inserção de alunos no
mundo tecnológico e globalizado, sem discriminação, constituindo uma
humanidade mais feliz, como destaca o autor, em seu curso Monográfico na
Universidade Bandeirante de São Paulo,
Será que essa matemática não pode ser também o melhor suporte para fazer essa humanidade viver em paz, viver feliz, acabar com as desigualdades e todas essas coisas terríveis que estão acontecendo, se ela é um instrumento forte para destruir ela deve ser um instrumento forte para construir, se ela é forte no negativo, ela deve ser muito forte no positivo para construir uma humanidade feliz, essa é no fundo a essência da minha preocupação, com a educação, com a matemática e em tudo que eu faço, penso em meus netos, bisnetos, tataranetos que talvez não conheça, mais existirão e eu tenho uma responsabilidade... Não quero deixar para eles um mundo de infelicidade, de angustia, de medo... Eu acho que é isso que nos move a pensar em algo melhor, não por nós que não veremos, mas, por aqueles que virão ao mundo por nossa causa, somos parte disso! Essa é a grande motivação em tudo que eu faço, eu vejo a matemática como elemento que pode ser usado para contribuir em muito pra um mundo melhor (D’AMBROSIO, 2011).
Este estudo pretende trazer contribuições importantes para a reflexão
de muitos educadores indígenas, pois o olhar reflexivo de que existe:
a) uma necessidade urgente de mudança, novas formas de pensar
matematicamente será um degrau que subimos;
b) caminhos para orientar a construção de currículos diferenciados de
matemática no contexto do Programa Etnomatemática das escolas indígenas
do estado e, por que não pensar em escolas não indígenas;
c) incentivo aos sistemas educacionais a investir em novas formações,
principalmente voltadas à Educação Matemática como campo profissional e
científico que pouco se conhece no estado de Roraima;
d) conscientização ainda que utopicamente, os educadores indígenas a
promoverem uma educação digna de um povo que tanto tem buscado projetos
condizentes com sua realidade.
29
Questões de pesquisa
Almejou-se investigar, através do programa Etnomatemática, os
instrumentos metodológicos e práticas pedagógicas dos professores indígenas
potencialmente capazes de qualificar as relações de ensino aprendizagem na
disciplina de matemática e a inter-relação com os valores tradicionais Macuxi.
Para tanto, as investigações deste trabalho foram direcionadas pelas
seguintes indagações:
Como os professores, estão desenvolvendo estratégias de ação
comuns no processo de ensino aprendizagem do saber/fazer matemático em
seu ambiente escolar? E como essas estratégias estão contribuindo para a
formação crítica do cidadão indígena reavivando também os valores culturais?
Objetivos da investigação
Este projeto pretende investigar os instrumentos metodológicos usados
pelos professores indígenas em suas práticas pedagógicas potencialmente
capazes de qualificar as relações de ensino/aprendizagem na disciplina de
matemática e a inter-relação com a Educação Matemática.
Nos objetivos específicos enquadram-se: o desenvolvimento de
instrumentos de análise relevantes, que possam contribuir com os currículos
escolares na melhoria da educação escolar indígena, revitalização dos valores
tradicionais e desenvolvimento das comunidades indígenas.
Verificar como os professores têm se preparado profissionalmente para
atuar no processo de ensino.
Procedimentos metodológicos
A análise das questões propostas e a comprovação ou não da
hipótese, levou-me a percorrer o caminho considerado mais adequado: os
pressupostos da abordagem qualitativa de cunho bibliográfico, etnográfico,
história oral e pesquisa de campo. Durante o trabalho de campo realizei várias
visitas ao local da pesquisa, sendo necessária, principalmente, a participação
em eventos comunitários e regionais. Esses eventos distinguem-se em vários
30
sentidos: assembleias, festejos, reuniões, oficinas pedagógicas e seminários.
Nessa busca, realizaram-se algumas entrevistas e observações, tentando
responder às questões de pesquisa. Assim, discorrerei sobre as etapas
seguintes do processo metodológico.
As participações nos eventos educacionais foram indispensáveis para
identificar o desenvolvimento da política de gestão da Educação Escolar
Indígena em Roraima. Da mesma forma, o cuidado com aspectos históricos e
culturais nos currículos escolares, documentos que identificam a Matemática
cultural do povo Macuxi e as estratégias que os professores utilizam no ensino
das Ciências Naturais, foram importantes.
A história oral foi uma das principais fontes desta pesquisa. Este tipo de
fonte vem se fortalecendo desde a década de 70. Segundo Azenate Alves de
Souza Braz:
Partiu de esforços e preocupações de um grupo de historiadores ingleses que se propuseram a resgatar a história de atores que não deixaram registros oficiais de sua experiência histórica. Por exemplo: o movimento dos trabalhadores das minas inglesas. Também na França, o resgate da história, da resistência e do holocausto, igualmente valorizaram a importância dos depoimentos orais para a recuperação de episódios de uma história não escrita (2010, p. 37).
Ainda conforme a autora:
Este movimento espalhou-se pelos países da Europa e também pela América, de Norte a Sul, chegando a criar, em 1996, a Internacional Oral History Association, que reuniu pesquisadores de todo o mundo, empenhados em construir narrativas históricas a partir de fontes orais (Ibid. p.38).
Dessa forma, a história oral tem permitido a recuperação da memória,
da cultura de povos que até então eram esquecidos pela sociedade e mesmo
pela historiografia: os negros, índios, homossexuais, mulheres e outros.
Entre os procedimentos da história oral, optamos pelos depoimentos
de história etnográfica que procuram recuperar a cultura do povo Macuxi. É
claro que em certos momentos haverá abstrações e fantasias, porém como diz
D´Ambrosio (2008, p. 26), (...) “é difícil fazer história sem fantasias”.
As abstrações estão presentes, portanto, em todos os tipos de fontes e
requerem a crítica atenta do historiador. Dentro dessa perspectiva, foram
entrevistadas cinco pessoas. Três lideranças políticas do movimento indígena e
dois professores que cursam a Licenciatura Intercultural Indígena. Quero
ressaltar que as lideranças entrevistadas, tomaram ciência de se tratava de um
31
trabalho acadêmico, porém não utilizei um questionário; as informações foram
obtidas através de conversas informais, com perguntas e respostas.
A pesquisa se desenvolveu no estado de Roraima, mais
especificamente na região Baixo Cotingo, uma das regiões que compõem a
Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Tomei como base para a pesquisa,
uma das 22 escolas inseridas nessa região, a Escola Marechal Deodoro da
Fonseca, comunidade indígena Canavial. Nesta escola funciona o Ensino
Fundamental do qual, apenas uma professora foi entrevistada com um
pequeno questionário. O segundo professor entrevistado é o atual coordenador
da Organização dos Professores Indígenas de Roraima - OPIRR, descendente
dos anciões Macuxi.
Devido à necessidade de conhecer o contexto histórico do estado de
Roraima, que se evidencia um estado indígena, muitas leituras foram feitas
sobre o processo de colonização. Assim, se constatou que os povos indígenas
em Roraima se relacionam com práticas interculturais entre si. Esta inter-
relação proporcionou a esses povos perdas, lutas e conquistas ao longo do
tempo. Para suprir essa necessidade, contei com a ajuda de autores
conhecidos no âmbito estadual e nacional, como Adair J. Santos (2010), Jaci
Guilherme (2007), Paulo Santilli (2001) dentre outros.
Uma segunda pesquisa bibliográfica ocorreu em livros, sites, revistas e
artigos de interesse da temática, o que ocorreu ao longo de todo o trabalho.
Nesta etapa me inspirei em autores renomados como sustentáculos de minhas
observações: Ubiratan D´Ambrosio (1994, 2002, 2005, 2010), trazendo a
História da Matemática, Educação Matemática e os relevantes aspectos do
programa Etnomatemática no contexto escolar; Valsiner (2010), Oliveira (2010)
e Palangana (2001). Estes tecem sua teoria inspirados em Vygotsky, tratando
de novas formas na psyché humana, sob orientação social; Perrenoud (2002,
2005, 2001) com uma visão de prática reflexiva; Freire (1985, 2005, 2011) e
suas teorias sobre educação e pedagogia, em especial a “Pedagogia do
Oprimido”, entre outros que ajudaram nesta dura tarefa.
No terceiro momento da pesquisa foram realizadas visitas às
comunidades indígenas, iniciando pela comunidade Cararual. A história oral foi
pertinente neste momento. Primeiramente, entrevistando anciões que
participaram do processo de fundação histórica da região Baixo Cotingo. A
32
intenção inicial foi descobrir fatos importantes de cunho cultural e social para
aprofundar meus conhecimentos sobre as heranças culturais de meu povo, os
mitos e lendas, que não poderiam ser excluídos e, além disso, tentando
encontrar em algum momento uma conexão entre estes conhecimentos e o
Programa Etnomatemática que para D’Ambrosio:
É um programa de pesquisa que investiga, ao longo da evolução de um indivíduo, de um grupo, de uma comunidade, de um grupo social, de uma cultura, de uma civilização, os modos, estilos, maneiras, artes ou técnicas de explicar, de entender, de conhecer, de aprender, de lidar com o seu meio, o seu ambiente natural, social, político, cultural (D’AMBROSIO, 2011).
Com esta motivação, busquei informações por meio de entrevistas
valiosas com anciões de idade bem avançada, como é o caso da senhora Júlia
Manayari Paulino, matriarca da família Paulino, com mais de cem anos.
Privilegiada pela robustez, permanece como um memorial vivo das culturas e
saberes tradicionais do povo Makusi. Senhor Augustinho Paulino, pajé da
comunidade Cararual, filho de dona Júlia. Augustinho, ao longo de seus 80
anos, preservou os costumes e língua repassados pelos seus avós, adquiriu
conhecimentos de grande valor sobre o oficio de pajé, hoje o único de sua
comunidade atuando como pajé e curandeiro.
O senhor Raimundo Paulino, filho e tradutor da entrevista com Júlia,
nos recebeu carinhosamente e, não poderia deixar de ressaltar a colaboração
efetiva e indispensável de meu esposo Telmo Ribeiro Paulino, nesta etapa tão
importante fez todos os contatos e me acompanhou durante várias viagens. É
essencial destacar que fortaleci minhas raízes adquirindo dados de apreço
sobre as nossas tradições, informações que me levaram à reflexão profunda
sobre a verdadeira identidade indígena, as raízes que estão desaparecendo
rapidamente e nós nem ao menos percebemos.
Lembro-me de um pensamento de D’Ambrosio em um de seus
seminários, no dia 13 de agosto de 2010, na Universidade Bandeirante de São
Paulo:
O ser índio tem que ter suas raízes fortes... é como uma grande árvore, pode ser bonita, forte e frondosa, porém se não tiver bem enraizada não está segura, é frágil... O mesmo acontece conosco se não estivermos bem firmes e seguros de quem somos, do que queremos como seres humanos, não vamos mudar nada. O resgate cultural para construir um futuro transdisciplinar e transcultural, é, sobretudo, o foco, o mais importante (2010).
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A primeira etapa da pesquisa de campo teve apoio financeiro da
Fundação Ford na compra de passagens para a viagem.
Ao retomar contato com pessoas que me apoiaram nesse projeto,
realizei a viagem de volta à região Baixo Cotingo.
O acesso ao local é extremamente difícil, pois os meios de transportes
utilizados no período chuvoso são motos, bicicletas e cavalos. Isso dificultou
nossa viagem, tivemos que atravessar longos trechos a pé devido à lama nas
baixadas. Por não existir estrada nestes trechos, tudo fica mais difícil e
cansativo. Enfim, chegamos ao nosso local de destino, a fazenda denominada
Reserva9. A viagem foi longa, porém valeu a pena rever as paisagens
encantadoras do local, os campos e serras que o tornam belo, sem contar o
canto dos pássaros trazendo paz ao nosso coração, o cheiro da natureza, o ar
puro e o sussurrar de um pequeno riozinho passando logo atrás da casa, única
fonte de água para suprir as necessidades domésticas da kokó (vovó)
Leoneide Ribeiro, esposa do pajé, e para o banho de todos. Tudo isso foi a
recompensa de voltar pra casa.
Ao anoitecer, sem a luz natural do sol e sem energia elétrica, ficamos
com a luz das estrelas e de uma lamparina para prosseguir com nosso
trabalho, depois da deliciosa damurida10, acompanhada de uma paçoca de
carne seca, batida no pilão.
Iniciamos uma conversa bem descontraída com o pajé Augustinho que
se propôs a nos ajudar contando suas histórias. Antes do diálogo, fiz um relato
de minha estadia em São Paulo durante os últimos meses, as experiências
adquiridas e a necessidade de estar de volta. O senhor Augustinho, em
nenhum momento, se colocou contrário ao trabalho, sentindo-se a vontade
durante seus relatos. Pedi que ele contasse primeiramente sobre os mitos, as
lendas e os mistérios que envolvem a origem do povo Macuxi, pois existem
muitas versões, às vezes contraditórias sobre as histórias do nosso povo.
É de costume pedir aos nossos ancestrais, permissão e proteção para
adentrar em certos lugares considerados sagrados. Na cultura Macuxi, os
9 Reserva é uma antiga fazenda que pertencia a um grande fazendeiro há muitos anos. Depois
da luta dos nossos parentes, foi desocupada e entregue a aldeia. Hoje, ocupada pelo amoo´ko (vovô) Augustinho Paulino, pajé curandeiro e 2º tuxaua da comunidade. 10
Comida tradicional que jamais pode faltar na refeição dos Macuxi, temperada com ingredientes típicos (folhas e pimentas misturadas à carne de caça ou peixe).
34
locais como cemitérios dos ancestrais e o símbolo sagrado representado
geralmente por uma grande pedra, existente nos diferentes ambientes, rios,
lagos, cavernas etc. são valores míticos que exigem respeito. Uma vez que
existem os locais sagrados, existem também seus guardiões11. Para que eu
pudesse prosseguir com esse estudo, foi necessário um ritual, dessa forma
estaria abençoada e o trabalho teria o devido respeito.
Sendo assim, o primeiro procedimento foi receber as pinturas dos
grafismos tradicionais nos braços e na face, cada uma com seu significado. No
corpo, as pinturas são feitas com a polpa verde da fruta silvestre chamada
jenipapo, sua cor escura fixa na pele por mais ou menos quinze dias. Os
símbolos pintados nos braços, na barriga ou em outra parte do corpo
demonstram de que tribo (etnia) você é. A face é pintada com a semente de
urucum, a cor vermelha demonstra que ainda hoje o sangue inocente de nosso
povo é derramado. Depois das pinturas é a vez das vestes indígenas, que
foram inventadas em épocas mais recentes, para cobrir a nudez de seus
corpos no período de colonização. Para as mulheres, a saia e a blusa são
adereços usados nos momentos especiais, ambas confeccionadas com fibra
de buriti. Por último, o acessório mais importante neste ritual, o cocar, esse
tem como principal objetivo nos proteger de doenças. Usar o cocar é estar
protegida, segundo o pajé: de dor de cabeça, mau olhado, inveja, todos os
males que possam surgir durante todo meu trabalho. Tudo pronto, o pajé nos
abençoou com suas palavras de sabedoria e força, e assim me preparei para
uma nova etapa. A experiência é insondável, não há palavra para expressar a
emoção desse momento importante na minha vida.
Poderia estender a conversa por longos dias e ainda não seriam
suficientes para ouvir tudo que há de fascinante sobre os mitos, lendas e
costumes que foram perdidos ao longo do tempo. Junto a isso vem um
sentimento inexplicável, não sei se é dor, tristeza ou revolta, porém sei
descrever o que sinto agora: o desejo de registrar e colaborar para que nossas
heranças culturais não caiam em extinção. Um consolo é que ainda existem
11
Ou seja, chefe dos peixes, das aves, dos insetos, dos animais etc. Para se chegar a um desses locais é necessários que o pajé em seu trabalho espiritual peça a devida permissão.
35
pessoas como Augustinho e Júlia, que não deixaram tudo perder-se, e muito
da nossa cultura ainda se conserva em suas práticas diárias.
Figura 02: Momento da bênção espiritual Fonte: arquivo pessoal da autora – 2010
O passo seguinte, já mencionado anteriormente, foi a participação em
mini oficinas organizadas em dois locais estratégicos. A primeira ocorreu na
comunidade Pacú, onde se reuniram professores de 3 escolas e membros da
comunidade anfitriã, um total de 85 pessoas entre crianças, jovens e adultos.
A segunda oficina foi realizada na comunidade Araçá com a
participação de professores das 22 escolas da região. Além dos professores,
contamos com a participação de alunos, lideranças indígenas e pais de alunos,
num total de 143 pessoas.
Nas oficinas foi possível colher informações sobre as práticas
pedagógicas do ensino de matemática nessas escolas.
Outros momentos importantes foram os das entrevistas com dois
professores que estão cursando a Licenciatura Intercultural no Instituto
Superior de formação- INSIKIRAN. Por fim, busquei informações sobre o
Projeto Político Pedagógico da escola Marechal Deodoro da Fonseca, e
observei a prática escolar da professora Alzineide, com intuito de perceber se
existe alguma ligação entre o currículo da escola e o Programa
Etnomatemática.
36
Fundamentos
Não se faz história da matemática sem se pensar na história da Humanidade, a Matemática existe como parte integrante de toda nossa humanidade. A história da matemática é parte integrante da história do mundo! (D´Ambrosio, 2011).
Conhecer a história da matemática é uma recomendação importante
para qualquer pesquisador matemático, pois transmite o conhecimento do
passado, possibilitando mudanças no presente e no futuro.
Nesta análise, o principal é perceber como a educação matemática está
sendo desenvolvidas no contexto escolar, quais práticas os professores
indígenas de Roraima utilizam para tornar a relação aprendiz/educador
significativa.
Mas, o que é o educador matemático? A princípio, julgamos ser uma
pergunta insignificante, porque a primeira resposta parece ser simples. Ora! É
uma pessoa que trabalha com matemática!
Não é tão simples assim. Existem duas reflexões dignas de
consideração, e, talvez, os profissionais em educação que transmitem
conceitos matemáticos precisam discernir: A) eu sou um educador
matemático? B) entendo a relação entre ser educador e ser transmissor de
conceitos matemáticos?
Por que estou expondo essa situação? É simples, porque eu mesma
tenho ainda muitas dúvidas. No entanto, esse não é um debate a ser
aprofundado neste trabalho; porém, é uma preocupação que trago com relação
a centenas de professores que trabalham matemática em Roraima, e
possivelmente, não reconhecem o seu verdadeiro papel de educador
matemático.
Para o conceito de Educação, deveras amplo, não existe definição
específica, já que os estudiosos mais renomados nesta área não designam
uma concepção comum para definir o termo.
A começar pelo dicionário (HOUAISS, 2009), o qual define Educação
como aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o
desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano.
Já D´Ambrosio conceitua Educação “como um conjunto de objetivos,
planos, diretrizes da sociedade para facilitar e estimular cada indivíduo a atingir
37
seu potencial, além disso, colaborar com outros em busca de ações comuns
para o bem comum” (2010, p.68).
Silva Lopes (2001), por sua vez, entende que a concepção de
Educação, em termos mais gerais na vida indígena, é observar os aspectos
socioculturais e linguísticos, jamais isolados da criticidade própria, onde os
próprios índios são protagonistas em seus projetos de futuro. Portanto, é
imprescindível que toda ação educacional esteja associada a políticas internas
das comunidades indígenas, como forma de corroborar com a educação
indígena e a revitalização dos valores tradicionais; ou seja, reavivar cada Etno.
O debate em torno do termo Educação é de suma importância para o
desenvolvimento intelectual, moral e político do ser humano. Da mesma forma,
a discussão histórica da Matemática se projeta como princípio básico para todo
educador matemático.
De acordo com D’Ambrosio (2008), muitos historiadores renomados, ao
longo de décadas, vêm demonstrando o devido valor a essa temática em
âmbito internacional e nacional. Resumidamente, podemos destacar que a
história da matemática no Brasil começa a se identificar como área de pesquisa
a partir da década de 70, com o surgimento de comunidades científicas de
historiadores da matemática. Mais recentemente, em 1995, realizou-se o
primeiro SNHM (Seminário Internacional de História da Matemática), que se
firmou, sendo realizado a cada dois anos. Destaque é dado ao III SNHM, em
1999, ocasião em que surge a Sociedade Brasileira de História da Matemática
(SBHMat), tendo elegido, Ubiratan D’Ambrosio, como seu presidente. Desde
então, a área de pesquisa, vem ganhando prestígio, como frisado antes, no
Brasil e fora dele.
D’Ambrosio, no entanto, se identifica como um autodidata. Além de
historiador matemático de prestígio internacional, é um idealizador da busca
pela Paz. Suas ideias historiográficas das ciências e da matemática se
consolidaram a partir da década de 70. Sua presença na reunião científica no
instituto de Matemática de Oberwolfach-Alemanha, realizada em outubro de
1981, cujo tema específico foi a História da Matemática nos séculos XVII e
XVIII, marcou definitivamente suas ideias. D´Ambrosio também é precursor do
campo de pesquisa científica em Educação Matemática no Brasil. Pelo
exposto, há de se reverenciar esse educador merecidamente, porém a maior
38
colaboração, e acredito ser a consolidação de todo o trabalho de D’Ambrosio, é
sua contribuição na área de pesquisa Etnomatemática.
Segundo esse autor, a Etnomatemática teve sua base lançada em
âmbito Internacional no 5º Congresso Internacional de Educação Matemática,
onde realizou a conferência plenária de abertura, em Adelaide, Austrália. A
partir de então, esta área de pesquisa vem sendo disseminada entre povos e
nações de diversas culturas.
D’Ambrosio (2011) afirma que se pode produzir e ensinar a matemática
de forma digna, com ética, respeito ao próximo e respeito à vida, em diferentes
ambientes, diferentes povos ou nações; colocando que cada um deles é
possuidor de uma matemática própria, emergente de suas próprias culturas,
artes e técnicas em seu ambiente natural ou social,
A escola não se justifica pela apresentação de conhecimento obsoleto e ultrapassado e muitas vezes morto. A escola deve estimular a aquisição e difusão de conhecimento vivo, integrado nos valores e expectativas da sociedade, isso será impossível sem a utilização das ciências tecnológicas que dominarão a tecnologia educativa do futuro (Id. 2010. pg.80).
De fato, a Educação, desde os tempos remotos, é o conjunto de
estratégias que vêm sendo desenvolvidas para construção de ideais e
formação do cidadão. Desde o nascimento até a morte o ser humano recebe
orientações; primeiramente dos pais, depois da escola ou do ambiente em que
vive, porém, o questionamento do autor é quanto às estratégias e como elas
orientam os indivíduos a atingir o bem comum e o viver com dignidade,
peculiarmente a Educação Matemática.
Em termos mais gerais, D´Ambrosio (2008) relata que o século XIX foi
considerado o século de ouro da Matemática ocidental por sua consolidação
desde a antiguidade. Além disso, o século em questão intensificou sua
internacionalização, houve movimentação abundante de matemáticos.
Surgiram várias sociedades e revistas especializadas em vários países
da Europa e nos Estados Unidos da América, após a Guerra Civil (1861-1865),
estimulando a pesquisa científica.
Nesse ínterim, intensifica-se a pesquisa em matemática com a
contratação do inglês James Joseph Sylvester (1814-1897) pela Johns Hopkins
University, em Baltimore; e com a fundação da American Mathematical Society,
39
em 1894. Então, no final deste século, iniciam-se reflexões teóricas do ensino
da Matemática.
O autor afirma que a Educação Matemática emerge como área de
pesquisa na passagem do século XIX para o século XX. O marco de difusão
destas reflexões foi a revista L´Enseignement Mathématique criada em 1899,
em Paris, sob a direção de Charles - Ange Laisant, professor em Paris; e Henri
Fher, professor em Genebra, tendo em seu corpo editorial, os mais gabaritados
e competentes matemáticos. Somente na edição de número 06 dessa revista
(L´Enseignement Mathématique) é que a história na Educação Matemática foi
considerada relevante no meio acadêmico.
Com a fundação da Comissão Internacional de Instrução Matemática, o
IMUK/ICMI, sob liderança de Félix Klein, no ano de 1908, em Roma; a
Educação Matemática foi consolidada como uma subárea da matemática e da
educação, de natureza interdisciplinar.
No Brasil, as pesquisas em educação matemática e outras áreas
científicas se intensificaram em meados do século XX. Dos inúmeros trabalhos
realizados na área, destaca-se o livro de Euclides Roxo: A matemática na
escola secundária. Surge o grupo de pesquisa em história da educação
matemática /GHEMAT, que atualmente conta com arquivos de pessoas
importantes, dentre eles, destacam-se Ubiratan D’Ambrosio, Euclides Roxo e
Oswaldo Sangiorg, grandes estudiosos que contribuíram para a consolidação
desta área de pesquisa. Entre outros grupos de igual importância, existe o
CEMPEM, na Unicamp, que tece um panorama da pesquisa em Educação
Matemática.
A Educação Matemática ganhou força e se consolidou como uma área
de pesquisa. Nas últimas décadas, os esforços educacionais empreendidos por
diversas nações, entre elas, o Brasil, possibilitou à Educação Matemática
constituir-se como campo profissional e científico. Uma área de conhecimento
das ciências sociais humanas, que estuda o ensino e aprendizagem da
matemática. Nascida há mais de 40 anos, a Educação Matemática relaciona-se
com a Filosofia, com a Matemática, com a Psicologia, com a Sociologia, a
História, a Antropologia, a Semiótica, a Economia e a Epistemologia, sendo
uma área de amplos aspectos e de inúmeros e complexos saberes.
40
Tomando por base os estudos de Kilpatrick (1996, p. 8-10), pode-se
destacar pelo menos três fatores determinantes para o surgimento da
Educação Matemática como Campo Profissional e Científico:
O primeiro é atribuído à preocupação dos próprios matemáticos e dos
professores de matemática com a qualidade da divulgação/socialização das
ideias matemáticas às novas gerações. Essa preocupação dizia respeito tanto
à melhoria das aulas, quanto a modernização do currículo.
O segundo é atribuído à iniciativa das universidades europeias do
século XIX, em promover a formação dos professores secundários.
O terceiro, diz respeito aos experimentos realizados por psicólogos
americanos e europeus, desde o início do século XX, sobre o modo como as
crianças aprendiam a matemática.
Sendo assim, pode-se, em resumo, dizer que na Educação
Matemática, a História, a Educação, a Matemática e outras áreas de pesquisa
estão interligadas, oferecendo um amplo caminho de estudos e pesquisas.
Etnomatemática: um campo fértil para pesquisa
Anteriormente registrei alguns elementos que culminaram com o
surgimento da Etnomatemática, esta área de pesquisa que consolidou-se na
década de 70, com seu idealizador Ubiratan D´Ambrosio.
Seria muito difícil descrever a trajetória desse educador, uma vez que
este texto tornar-se-ia uma verdadeira Odisseia e esse não é foco do nosso
trabalho. O educador em questão começou a preparar as bases teóricas para
seu programa a partir de trabalhos publicados em várias revistas de circulação
Internacional.
Seguem alguns títulos importantes na consolidação e expansão da
área, comentados em (D´Ambrosio, 2002, p. 327-328):
D´Ambrosio, Ubiratan. “L´adaptation de la structure de l´enseignement
aux besoins des pays em voie de developpement”. Impacto of Science on
Society, 25(1): 100-1, 1975.
D’Ambrosio, Ubiratan.Objectives and goals of mathematics education”.
Proceedings of the Thirt Internartional Congress of Matematics Education,
41
Karlsruhe, 1976. Artigo publicado na íntegra pela Unesco, Paris em 1976, como
capitulo IX do volume Nuevas Tendencias en Educación Matemática IV.
O Quinto Congresso Internacional de Educação Matemática (ICME-5),
realizado em Adelaide, Austrália, em julho de 1984, marcou a evolução das
ideias sobre Etnomatemática. Muitos outros trabalhos de D’Ambrosio podem
ser encontrados no http://sites.uol.com.br/vello/ubi.htm.
Recorrendo a esse autor, a etnomatemática é um programa amplo que
envolve várias vertentes. Estudiosos, como filósofos, historiadores,
antropólogos, linguistas, psicólogos, educadores e outros especialistas,
desenvolvem trabalhos focalizados neste programa, e denominados:
“Matemática Cotidiana”, “Matemática Vernacular”, “Matemática de fora da
escola”, “Matemática de Rua”, “Matemática de Feira”, “Matemática Cultural”
entre outros. Do conjunto de trabalhos nesse tópico, destaca-se o de Analucia
D. Schliemann, David Carraher e Teresinha Nunes, intitulado: “Na vida dez, na
escola zero”.
Outros pesquisadores também merecem realce: Márcia e Robert
Ascher, para os quais a Etnomatemática é “o estudo de ideias matemáticas de
povos não letrados” (1981); Paulus Gerdes, de Moçambique, sempre com a
grande preocupação de melhorar o ensino da matemática através de pontes
com valores tradicionais da cultura em que se trabalha. (1985; 1988).
Na Amazônia, distinguem-se os trabalhos de Eduardo Sebastiani
Ferreira sobre povos nativos do Norte (1989), pois este abriu caminhos para
outros trabalhos. Mariana Kawall Leal Ferreira também se sobressai em seus
trabalhos, principalmente sobre antropologia cultural, ao analisar a estrutura do
pensamento matemático Xavante. Inúmeras pesquisas a esse respeito
encontram-se em Bibliografia comentada por Ubiratan D´Ambrosio no livro
“Ideias matemáticas de povos culturalmente distintos” (2002).
Os conceitos dos matemáticos e filósofos sobre a natureza da matemática carecem da dimensão empírica que caracteriza outras ciências da base experimental (...) a história da matemática foi sempre escrita do ponto de vista vitorioso, e precisa da dimensão social que pode esclarecer a natureza do conhecimento matemático. Tal fato se originou num conceito global, errôneo, do processo cognitivo entre os matemáticos (Ibid. p. 27).
Isto posto, pode-se perceber que não há consenso sobre a forma de
construção de conhecimentos matemáticos, no entanto existem vários
42
caminhos no que referem-se ao ensino e aprendizagem da matemática. Um
deles é apontado pelo autor:
A matemática é um sistema de conhecimento codificado, usando o termo “ciência”, entendendo que a matemática está incluída nele. (...) Mas que ciência? Estamos interessados no relacionamento entre “ciência aprendida e sociedade”, ou entre “etnociência e sociedade”, em que Etno aparece como conceito global e moderno de etnicismo cultural, que implica língua, códigos, símbolos, valores, atitudes, e implica, naturalmente, práticas matemáticas e cientificas? (Ibid. p. 28-29)
É significativo dizer que o Etno para o povo indígena Macuxi está
diretamente ligado à educação, para formação de cidadãos indígenas
centrados em conhecimentos repassados de seus ancestrais (valores,
costumes, crenças etc.) para continuação em suas gerações. Sendo assim, as
práticas educativas não estão construídas individualmente, ou pelo menos não
deveriam estar, porém, no que se refere à educação formal, especificamente
na Educação Matemática, o reconhecimento dessas práticas é um grande
desafio.
D’Ambrosio procura, em seu programa Etnomatemática, minimizar o
conflito da educação disciplinar, buscando maior integração dos fatos e
fenômenos que geram o conhecimento, ou seja, uma abordagem holística12 da
Educação Matemática (2010, p.09). O autor acredita que a Educação
Matemática na sociedade em conflito pode apontar estratégias de ações
contextualizadas, construindo um ideal de paz para a humanidade feliz. Em
sentido global, o autor vê a humanidade como carente da paz interior, paz
ambiental, paz social e a paz militar.
D´Ambrosio reconhece que o ideal de paz é uma utopia13, porém os
povos indígenas em Roraima vêm utopicamente buscando a trilogia de paz. Os
habitantes deste lugar, outrora viviam em suas terras, gozando do direito de ir e
vir, mas foram surpreendidos pelos invasores e usurpados em seu direito de
sentir qualquer tipo de paz. Com isso, a colonização rompeu com suas
manifestações culturais, espirituais e sociais durante muitos anos. No próximo
capítulo descreverei um pouco mais a esse respeito.
12
Abordagem, no campo das ciências humanas e naturais, que prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico em que seus componentes são tomados isoladamente (HOUAISS, 2009). 13
Qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômica verdadeiramente comprometida com o bem-estar da coletividade (HOUAISS, 2009).
43
Em resumo, este trabalho de pesquisa está organizado em quatro
capítulos. No primeiro capítulo discorro de forma sintética sobre o estado de
Roraima e o contexto sócio histórico da terra indígena Raposa Serra do Sol, na
qual a pesquisa foi realizada. Neste capítulo tento mostrar, em especial, a
importância da educação indígena Macuxi para a formação do cidadão
indígena.
No segundo capítulo, trago um panorama da educação escolar, o
processo de gestão educacional e a importância das organizações indígenas
envolvidas no processo. Faço um paralelo entre o modelo educacional e a
matemática cultural desenvolvida como prática social nas escolas indígenas.
No terceiro capítulo, faço uma análise de dois momentos importantes: o
primeiro, em torno do projeto político/pedagógico e do currículo de matemática
da escola estadual indígena Marechal Deodoro da Fonseca e a inter- relação
com o meio social da comunidade Canavial. No segundo, observo a construção
do planejamento coletivo apontando caminhos para os componentes
curriculares, partindo da realidade indígena e sua relação com a
etnomatemática.
No quarto e último capítulo, analiso a formação do professor e o
currículo numa perspectiva intercultural. Então, realizo, também, uma reflexão
do papel da matemática e das práticas pedagógicas do saber/fazer matemática
do curso de Licenciatura Intercultural do instituto superior indígena Insikiran,
sabendo que a relação com a etnomatemática é indispensável para a
construção do currículo transcultural.
44
CAPÍTULO I
O ESTADO DE RORAIMA: UM ESTADO INDÍGENA
Roraima é uma das 27 unidades Federativas do Brasil. Passou à
categoria de Estado em 05 de Outubro de 1988. Situado geograficamente
acima da Linha do Equador, no extremo Norte do país. Possui fenômenos
naturais dificilmente vistos em outros estados do Brasil.
Seu nome foi escolhido em homenagem ao majestoso Monte Roraima,
que figura como divisor natural das três nações vizinhas: Brasil, Venezuela,
Guiana. A palavra Roraima vem de origem indígena Patamona, “Rorôimã”
(Rôroimã), que significa: “Monte Verde”.
Sua área abrange um total de 225.116 km². Limita-se ao Norte, com a
Venezuela; ao Sul, com os estados do Amazonas e Pará; a Leste, com a
República Cooperativa da Guiana e a Oeste, com o estado do Amazonas e a
Venezuela. Sua capital é o município de Boa Vista (IBGE, 2010).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE registrou, em
2010, um aumento populacional de 39,10% nos últimos 10 anos. Em 2000, a
população estava em 324.397 habitantes, aumentando para 469.044, último
dado divulgado pelo IBGE.
O estado é composto por 15 municípios: Alto Alegre; Amajari; Boa
Vista; Bonfim; Cantá; Caracaraí; Caroebe; Iracema; Pacaraima; Normandia;
Mucajaí; Rorainópolis; São João da Baliza; São Luís do Anauá e Uiramutã.
Conforme o Plano de Etnodesenvolvimento do Território das terras
indígenas Raposa Serra do Sol e São Marcos – PEI, “Roraima é o estado que
abriga a maior população indígena do Brasil” (2010, P.13).
Segundo a Fundação Nacional do Índio – FUNAI/RR (2010),
atualmente, no estado de Roraima vivem cerca de 41.578 indígenas, divididos
em 9 povos espalhados por todo o estado, provenientes do tronco linguístico
Karibe e Aruak. São eles: Wai Wai, Wamiri Atroari, Yanomami, Yekuana,
Macuxi, Patamona, Taurepangue, Wapichana e Ingaricó, com 32 terras
demarcadas e homologadas.
Vejamos o tamanho da diversidade étnica desses grupos. As técnicas
de defesa, da caça, pesca, localização, os modelos de sobrevivência e
45
transcendência desses povos, em seus diferentes etnos, é o que caracteriza o
fazer/matemático desde os tempos remotos.
Antes da chegada dos colonizadores, esses povos habitavam
livremente as regiões de lavrado, serras e matas, como é o caso dos
Yanomami e os Waimiri Atroari, que tornaram-se os grandes protagonistas na
luta contra os invasores.
Conforme Vieira (2007, p. 96): “Lobo D´Almada, funcionário da Coroa
Portuguesa, em sua expedição de fiscalização, registrou a presença de 22
etnias indígenas que habitavam o Rio Branco, no Século XVIII”, afirmando,
dessa forma, que essas terras, posteriormente Estado de Roraima, foram
invadidas e tomadas cruelmente dos verdadeiros donos, os índios.
Segundo Sarlene Moreira da Silva:
A colonização e ocupação de Roraima podem ser divididas, em quatro períodos. O primeiro período iniciou-se com a “descoberta” do rio Branco pelos portugueses e encerra-se no início do século XVIII. O segundo período tem início no século XIX e estende-se até a criação do município de Boa Vista, em 1890. O terceiro período vai da criação do município até a criação do Território Federal de Roraima, em 1943. E o quarto e último período, de 1943 até os dias atuais. Estes períodos estão relacionados a fatos de relevância que servem para que se defina as quatro etapas históricas de ocupação de Roraima. O primeiro período de colonização inicia-se em 1750 e vai até 1800. A penetração espanhola e de outros povos europeus faz com que os portugueses voltem sua atenção para a região (FREITAS, 1997, Apud. Silva, 2011, p. 34).
Esse fato confirma a preocupação de D´Ambrosio, houve rompimento
completo da paz: interior, ambiental, social e militar. A pergunta aqui é: isso se
relaciona com a educação matemática? Para o autor, e ao meu olhar, sim. Ao
longo do processo de invasão e fixação dos não índios no território indígena,
houve muitas batalhas, tanto entre os colonizadores, como também entre
colonizadores e índios. Faço esse comentário porque os invasores, para obter
sucesso em sua empreitada, utilizaram-se de instrumentos tecnológicos: armas
de fogo, instrumentos de comunicação etc. Sendo assim, tanto para construir
esses instrumentos quanto para se manejar armas de fogo, por exemplo, é
preciso pessoas com conhecimentos e técnicas específicas para esse
propósito. Do mesmo modo, os instrumentos de defesa, o arco e a flecha são
modelos de arte e técnicas possuídas especificamente por povos primitivos, e,
dificilmente, são manejados por qualquer pessoa. Esses fatores configuram a
46
matema, conforme citado anteriormente. “Não me cabe outra resposta àqueles
matemáticos que não percebem como tudo isso se relaciona: pense e entenda
um pouco da história da humanidade e você verá o quanto as coisas estão
interligadas” (D´AMBROSIO, 2010, p.11).
Conforme fonte do Governo do Estado de Roraima (2011):
Foram os portugueses que trouxeram para o vale do Rio Branco as primeiras levas migratórias, vindas principalmente do Nordeste, cujas raízes genealógicas constituíram as famílias e a população roraimense. A partir do século XVIII, esse processo migratório se intensificou, mas foi marcante no início do século XX. Outra fase migratória expressiva ocorreu nas décadas de 70/80, com a abertura indiscriminada dos garimpos de ouro, diamante e cassiterita no Estado.
No entanto, nessa época, a cobiça pelas riquezas dos solos de
Roraima, principalmente em terras habitadas por indígenas, como foi o caso
das terras Yanomami, não foi encarada com tanta naturalidade, pois o sonho
de riqueza fácil havia alastrado-se no coração do “homem branco”,
prejudicando o bem mais precioso dos índios: “a mãe natureza”. Nesse caso, a
perda da paz interior e da paz ambiental se consolidou.
A febre do ouro causou o maior impacto ambiental da história de
Roraima, além do quase genocídio dos índios Yanomami, como registra Bruce
Albert:
A penetração repentina de milhares de garimpeiros no seu território teve um impacto dramático sobre os Yanomami, não só por causa das violências, desestruturação social e choque epidemiológico que eles causaram, mas também pelas degradações ambientais e transformações do sistema produtivo que eles impuseram a este grupo indígena (2010, p.156-157).
Recorro novamente a este autor, que em 1990 entrevistou o chefe do
povo Yanomami, Davi Kopenawa, e registrou a seguinte declaração:
Se os garimpeiros continuam a andar em nossa floresta, se eles não voltam para o lugar deles, os Yanomami vão morrer, eles vão verdadeiramente acabar. Não vai haver pessoas para nos curar. Os brancos que nos curam, médicos e enfermeiros, são poucos. Por isso, se os garimpeiros continuam trabalhando em nossa mata, nós vamos realmente morrer, nós vamos acabar... Já morreu muita gente, e eu não queria que se deixasse morrer toda esta gente... Mas os garimpeiros não gostam de nós, nós somos outra gente e por isso eles querem que nós morramos (Id. 1990, pag.14).
Após a incansável luta de Kopenawa para salvar seu povo do
genocídio, as autoridades resolveram debater o assunto. Em 1990, o governo
federal deu ordem às forças policiais para expulsar os milhares de garimpeiros,
47
que atuavam na área indígena, e consequentemente, homologou a Terra
Indígena Yanomami em 1992 (2010).
Dessa forma, muitos dos imigrantes vindos de outros estados do Brasil com o
sonho de riqueza fácil, não retornaram aos seus lugares de origem, e suas
raízes genealógicas se misturaram ao povo roraimense fazendo parte da
população do Estado de Roraima.
1.1 Contexto sócio histórico: Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Dentre os povos indígenas do estado de Roraima, situarei como foco de
pesquisa, o povo Macuxi14· De acordo com Santilli (2001), os Macuxi se
autodenominam como Pemon, do tronco linguístico Karib. Habitam a área do
Monte Roraima, divisor de águas que vertem para os rios Amazonas,
Essequibo e Orinoco. Mais detalhes podem ser vistos no livro de Paulo Santilli
intitulado: Pemongon Pata; Território Macuxi, rotas de conflito.
Segundo Paulino (2011), liderança Macuxi, até as primeiras décadas do
século XIX, os habitantes das regiões de lavrado e serras viviam em conjunto
em suas discussões na luta e articulação pela conquista do território indígena.
Esse território localiza-se no Nordeste do estado de Roraima; hoje, é registrado
e homologado como Terra Indígena Raposa Serra do Sol, habitat das etnias
indígenas: Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Patamona e Taurepangue.
A Raposa Serra do Sol limita-se ao Norte com a Venezuela; ao Sul
com o município de Normandia; a Oeste com a Terra indígena São Marcos e
com o município de Pacaraima; ao Leste com a República Cooperativa da
Guyana, e pelos rios: Tacutú, Maú, Miang, Surumu e Linha Seca. A extensão
territorial é de 1.747.464 hectares e equivale a 7,7% do Estado de Roraima,
que possui, no total, 22.429.898 hectares.
Na terra indígena vivem 21,4% da população rural do Estado (SILVA,
2012).
14
A palavra Makusi é de origem desconhecida, no entanto, os descendentes karibe assim se
identificam.
48
Ainda segundo a autora, a área, com uma população de 19.933
pessoas, é organizada política e administrativamente em quatro etno-regiões,
região das Serras, Surumu, Baixo Cotingo e Raposa.
Conforme o PEI (2010), cada Região com seus centros, e cada centro
com suas comunidades, formam uma hierarquia de instâncias por onde
passam as decisões. Dentro desta hierarquia, acontecem reuniões periódicas,
assembleias anuais, por centros e por região, sendo a maior instância a
Assembleia Geral das Populações Indígenas. A Assembleia é a instância
máxima de discussão das principais reivindicações, “lutas”, temáticas,
problemas internos e externos que dificultam a vida e a cultura indígena nas
comunidades. São discutidos aspectos e frentes comuns de trabalho, ações,
projetos, festas, avaliações etc. Estas também servem como estratégia de
sobrevivência e de defesa das ameaças ao território e às tradições.
Figura 03: Mapa de Localização geopolítica das regiões.
Fonte: SILVA, 2012
49
Regiões População
Serras 10.162
Surumu 2. 664
Baixo Cotingo 2.898
Raposa 4.209
Total 19.933
Tabela-01 Demonstrativo das regiões
Fonte: SILVA- 2012
A região Baixo Cotingo, local mais específico da pesquisa, tem uma
população de 2.898 habitantes, está localizada ao Norte do Estado de
Roraima, aproximadamente 100 km da capital, Boa Vista. É composta por trinta
e nove (39) comunidades.
Segundo Paulino (2011), antes da invasão dos não índios, apenas um
líder representava o grupo, cuidando da sobrevivência e bem estar do seu
povo. Porém, as infiltrações europeias, pecuaristas e garimpeiras obrigaram os
grupos a subdividirem-se. Daí a necessidade de se instituir lideranças em
grupos menores, criando o cargo de tuxaua15, o qual passou a ser a figura
responsável pela organização política da sua comunidade e porta voz de seu
povo nas reuniões de debates e reivindicações.
Em CIDR (1989, p. 48): “alguns velhos Macuxi contam que foram os
padres da Guiana que criaram o cargo de Tuxaua, outros acreditam que foi o
Marechal Rondon16 que nomeou os primeiros Tuxauas, dando a eles uma farda
militar e uma trombeta”.
Atualmente, a escolha do líder (Tuxaua) é baseada em características
indispensáveis: comprometimento com os valores étnicos, morais, coletivos,
prudência dialógica, respeito mútuo, participação, solidariedade e sensibilidade
às questões sociais, políticas, econômicas e ecológicas.
15 Tusawa- tuxaua é o líder indígena. Em outros grupos são denominados cacique ou
Morubixara etc. Em tempos mais remotos o líder Macuxi era representado pelo homem mais idoso do grupo familiar, que poderia também ser o Pia´san – Pajé, chefe espiritual. 16
Em 1927, o General Cândido Mariano da Silva Rondon, oficial do Serviço de proteção aos Indios-SPI, percorreu as confluências dos rios, Tacutú, Maú (Ireng), Cotingo, Surumu. “ tendo encontrado nas margens dos rios dezenas de aldeias Macuxi ” (Santilli, 2001, p.26). Nesta viagem de inspeção, Rondon delimitou o território que pertenciam aos nativos, em maior número, os Macuxi.
50
Um segundo líder é o Pajé, guardião de complexos valores mitológicos,
exerce dupla função: de líder espiritual e conselheiro de seu grupo.
Tradicionalmente, os Macuxi viviam em malocas plurifamiliar,
No meio, erguem-se as duas antigas casas Makusí: com sua forma característica, elas têm um aspecto incomparavelmente mais bonito e também são mais espaçosas do que as casas mais novas; estas, muito baixas, de planta octogonal, com seus tetos cônicos e as paredes baixas de cantos redondos (KOCH-GRUNBRG, 2006, p. 56).
O registro do autor se mostra relevante, pois nos revela o
conhecimento matemático primitivo que se desenvolvia com muita precisão na
construção de suas moradias. Os engenheiros eram os próprios índios, que
não utilizavam nenhum tipo de instrumento tecnológico de cálculos ou medidas,
usavam seus próprios instrumentos, feitos de madeiras ou pedras e suas
medidas tradicionais como a braça, polegadas, palmos etc.
A esse respeito, o comentário de D’Ambrosio afirma:
Infelizmente, a antropologia cultural pouco é reconhecida na academia, principalmente pelos matemáticos. A matemática e a educação científica foram também tendenciosas em relação às sociedades estáveis,(...) A matemática e o seu ensino tem sido considerados de forma independente ao contexto sociocultural (2002, p.25)
No contexto primitivo, a sobrevivência desse povo dependia da caça,
pesca, coletas de frutas e agricultura familiar. No entanto, durante o período de
colonização, esse costume foi transformando-se. Fato é que os Macuxi
começaram a dividir-se, e com isso, a forma de sobrevivência foi modificando-
se gradativamente no decorrer dos séculos.
Hoje eles vivem em casas separadas, cada família constrói sua própria
residência. A convivência plurifamiliar dá-se apenas em épocas de grandes
festejos, ou reuniões que se estendem por alguns dias.
Isto não significa que as manifestações culturais desapareceram
completamente, pelo contrário, os Macuxi vêm lutando para preservar sua
cultura: “Nossos ritos, cerimônias, mitos, lendas, artes, artesanatos e
alimentação caracterizam a diversidade cultural que herdamos de nossos
antepassados!” (CIR, 2008, s/p).
51
Figura 04: Comemoração troca de cargos Fonte: arquivo pessoal da autora- 2010.
Certamente, a cultura é importante para identificar cada povo, por isso
os Macuxi procuram preservar os rituais e comemorações ao longo do tempo.
Aracy Lopes da Silva ressalta claramente o significado dessa diversidade
cultural:
Os rituais indígenas constituem momentos importantes que marcam a socialização de um indivíduo ou a passagem de um grupo, de uma situação para outra. Eles marcam momentos constitutivos da identidade dos indivíduos nas diferentes fases de sua vida, incluindo a passagem para o mundo dos mortos. Manifestam as relações entre o mundo social e o mundo cósmico, entre o universo natural e sobrenatural (1995, p.336).
A cultura, os rituais e crenças manifestados na vida dos macuxi são
momentos de aprendizado. Os mais velhos transmitem às crianças e aos
jovens, o respeito ao próximo e à mãe natureza. A educação indígena acontece
desde o nascimento. Os conhecimentos da mulher anciã na hora do parto são
primordiais para a mãe e o bebê, daí em diante, a educação da criança se dá
principalmente pelos avós. No entanto, com a entrada da cultura do não índio,
essa educação vem diminuindo. Com isso, o desrespeito dos jovens ao seu
meio social vem sendo evidente. A violência nas comunidades indígenas
cresce a cada dia. Por isso, ressalto a importância da educação indígena para
a formação dos futuros cidadãos indígenas, porque aprendem valores culturais
e espirituais não ensinados pela escola.
52
1.2 Educação indígena, educação para vida.
Em todas as sociedades, o comportamento, os valores materiais e espirituais, o modo de pensar e de agir, o ato de plantar e colher, é o que difere uma sociedade de outras. Esses conjuntos de elementos é o que grosso modo chamamos de cultura (JUNQUEIRA, 2008, p. 99).
Na sociedade indígena, os fatos e fenômenos culturais, ainda que
menos valorizados em nossos dias, principalmente pelos jovens, estão
presente na educação. Essa educação se dá através do diálogo, dos rituais,
das manifestações culturais, o que destaca o caráter intelectual, social e
político do cidadão macuxi.
Recorrendo novamente a Junqueira (2008, p.60), a tradição oral
estabelece a comunicação através de diversos tipos de linguagem. A força
dessa tradição imprime características significativas, uma delas é o
desenvolvimento da atenção, do hábito de observar os detalhes da natureza,
seus ciclos e o comportamento das espécies animais e vegetais.
A educação do filho (homem) é responsabilidade do pai, do avô e do
pajé. Por exemplo, os meninos se preparam desde muito cedo para saber
caçar, pescar, plantar e cuidar do meio ambiente. Para isto, é necessário ele
(menino) submeta-se a certos rituais de cura e escarificações17 para tornar-se
um bom caçador, pescador (morupiara) 18. Quando o menino “muda a voz” o
pajé realiza o ritual. Para ser bom pescador, por exemplo, ele faz pequenos
cortes nos braços e passa remédios benzidos pelo pajé, dessa forma ele nunca
voltaria sem peixe.
O Pajé tem função primordial na educação da criança. Além de ser o
médico tradicional, é também o formador espiritual e intelectual. Em seus
rituais xamanistas usa ervas medicinais que somente a ele está autorizado o
acesso.
A educação da menina é função da mãe e da avó. A mulher tem a
responsabilidade de educar as filhas para conviver em sociedade, para
respeitar ao seu próximo, e, principalmente, para cuidar da família. A menina é
preparada para ser boa esposa e suas primeiras lições ensinam a preparar o
17
Arranhar ou praticar cortes mais ou menos leves na pele do braço ou pernas, depois são postas ervas medicinais indígenas nos locais escarificados. 18
Quer dizer bem sucedido, seu antônimo é panéma-mal sucedido (KOCH-GRUNBERG, 2006, p.98)
53
caxiri, fazer a damurida19, produzir os artesanatos que servem para seu
trabalho diário: panela de barro, peneira, tipiti, jamaxim, darruana, rede e
enfeites. Sua segunda função é o preparo da farinha do beiju e a coleta de
frutos.
Conta a anciã Julia Manayari que nunca foi à escola porque não existia
escola, quando surgiu a primeira escola na região, era somente para ensinar os
filhos dos brancos invasores:
Nós vivíamos em paz com nossos parentes até a chegada dos não indígenas. Depois chegou escola na aldeia e meus netos estudaram para ajudar nosso povo, hoje alguns são professores, enfermeiros, agentes de saúde que trabalham em nossa região. O que sei aprendi ao longo do tempo, sou falante da língua materna, cultivo a cultura, cantos, danças e costumes tradicionais (2010).
O casamento do índio dava-se quando ambos, homem e mulher,
estivessem preparados. Preparados eram os homens que já soubessem caçar,
pescar e ser pajé; e as moças que soubessem cozinhar, fazer bebida, panela,
rede e outras coisas. Então, realizadas as tarefas, os pais sabiam que os filhos
estavam preparados para o casamento.
Quando nasce uma criança na família, o pai é que faz o resguardo.
Durante um mês ele não pode realizar nenhuma atividade, também não pode
comer certos tipos de caça nem sair de casa para não prejudicar o bebê.
Essas eram as maneiras que os antigos educavam seus filhos e netos. Isso era muito respeitado por todos, os conselhos dos mais velhos eram seguidos fielmente, por isso os antigos viviam muito e com saúde. Hoje é muito triste ver tantas mulheres que morrem cedo e crianças não nascem saudáveis, pois não se pratica o que os ancestrais ensinaram (PAULINO, 2010)
Os mais novos aprendem ouvindo e observando, é um aprendizado gradual que exige o aprimoramento dos sentidos, do saber ouvir, enxergar, sentir. Observa-se muito e pergunta-se pouco (JUNQUEIRA, 2008, p.60)
Exemplos dessas verdades são alguns anciões que vivem mais de cem
anos, e ainda conseguem realizar suas atividades sociais, como é o caso da
entrevistada Julia Manayari, matriarca da família Paulino, da qual também sou
descendente. Com mais de cem anos, ainda pode-se dizer que é
verdadeiramente uma mulher indígena macuxi, porque aprendeu os costumes
e os preserva até hoje. “Fazemos parte do nosso ambiente, nós sabemos
respeitar e cuidar do ambiente” (Manayari, 2010).
19
Bebida e comida tradicional indígena.
54
O modelo de sobrevivência exposto até aqui é uma realidade presente
na educação indígena. No entanto, isto não significa que os índios pararam no
tempo, estagnaram-se. Nos próximos capítulos aprofundarei este assunto.
1.3 Mitos e lendas Macuxi
A cosmologia dos descendentes Caribe é composta de seres
sobrenaturais que dominam os ambientes dos quais a população indígena
depende para reprodução física e cultural. “Os Makusi acreditam que a
natureza (montanhas, rios, plantas, ventos, animais) possui guardiões
poderosos que podem trazer benefícios materiais e proteção espiritual, como
também doenças e mortes” (MILLER, 2008, p.45).
Alguns personagens que aparecem nas histórias orais são os
protagonistas da fundação do mundo, e, posteriormente, guardiões da cultura
Makusi. Dessa forma, é importante relembrar dois momentos de grande valor
na mitologia Macuxi. Primeiro, o aparecimento dos irmãos Insikiran e Anikê
como protagonistas da origem dos Macuxi. O segundo, é o momento em que
os irmãos encontram a árvore Wazaká20, que ao ser cortada deu origem às
árvores frutíferas e aos rios da região.
Os saberes míticos atravessam gerações e passam a constituir um elo
entre o passado e o presente. Essas histórias foram contadas pelos
ancestrais, em diferentes versões, porém a junção de todas elas compõe a
memória coletiva do grupo, sua origem e seu passado comum. O importante é
que essa relação de troca de conhecimento proporcione também transferência
de experiências e tradições entre todos os povos.
Neste contexto, faço referência ao ancião Agostinho Paulino, Macuxi,
pajé da comunidade Cararual ou Xamã21, como um importante líder e
construtor da historiografia do seu povo, e por isso não poderia deixar de
registrar o que foi dito por ele.
20
Wazaká era a árvore da vida, ao ser cortada por Insikiran e Anikê, tornou-se a fonte de águas e nascentes dos rios de Roraima. Seus galhos espalharam-se em várias direções e seus frutos originaram as plantas comestíveis existentes entre os povos (MILLER, 2008, p. 68, grifos meus) 21
Xamã é aquele que entra em contato com os espíritos-animais durante a cerimônia de transe, e que assume, ao olhar da sociedade, uma função de terapeuta e de conselheiro (na caça, na colheita) (DORTIER, 2010, p.653).
55
Segundo Neto Vanthuy:
Os pajés- pia´san (Makusi), marinau (Wapichana) são os principais reveladores da mitologia Karibe e Aruak aos monges Beneditinos. Eles (pajés) eram os sustentáculos da memória ancestral da tribo, os humanos que ligavam o mundo natural ao sobrenatural, que sustentavam o bem ou o mal da coletividade e o médico da alma e do corpo indígena (GIOCONDA MUSSOLINI, 1980; apud. NETO VANTHUY, 2011, p. 20).
MacDonell (2011, p.23) concorda: “os Macuxi acreditavam que o ser
humano era um animal entre outros e, portanto, nos mitos, os seres humanos
se transformam facilmente em animais e vice-versa”. Para esse autor, o mito
de origem Macuxi inicia quando o Jacaretinga furta os peixes do sol. O Sol
brigou com o jacaré e exigiu uma recompensa. O jacaré fez uma filha de barro
para ser mulher do Sol. Ela se molhou e derreteu, depois fez outra filha de
breu preto, esta por sua vez, derreteu no fogo. O jacaré fez, então, uma
terceira filha, de breu claro, que se tornou mulher do Sol. A mulher do Sol teve
dois filhos, Insikiran e Anikê. Os meninos cresceram até a altura de um metro.
Certo dia, a mãe errou o caminho do Sol e encontrou o caminho dos bichos.
Uma sapa malvada matou a mulher do Sol. Os filhos transformaram-se em
ovos para não morrer. A sapa tentou cozinhá-los, mas não conseguiu. Então,
os ovos quebraram e os meninos cresceram cerca de um metro. No episódio
final, os gêmeos vingaram a morte da mãe e saíram em busca do Sol. Não o
encontraram, mas encontraram Macunaíma, que fez os desenhos dos seres
vivos, inclusive dos homens em um pedaço de madeira. Insikiran transformou
os bonecos em seres viventes, os quais, depois, se espalharam pela terra.
Isso nos leva a crer que mitologicamente somos descendentes de Insikiran e
Anikê, os irmãos Wei, filhos do Sol.
O pajé Paulino22 (2011) concorda com a versão do autor e acrescenta
que Insikiran e Anikê encontram, entre os dentes da cotia, restos de frutas. Os
irmãos, por sua vez, seguem a cotia que os leva até uma grande árvore que
chamaram “Árvore da Vida”. Nela existiam todos os tipos de frutas. Os irmãos
resolveram cortar a árvore para que os frutos se espalhassem pela terra e se
multiplicassem e assim pudessem alimentar todos os seres vivos. Ao cortar a
árvore, os maiores galhos com as melhores frutas caíram para nordeste onde
22
Augustinho Paulino aprendeu o oficio de pajé, hoje o único de sua região.
56
fica a Guyana e Venezuela. Para o Brasil ficaram apenas alguns galhos, por
isso existem poucas frutas, pouca palha e pouca madeira na região. Do tronco
da árvore cortada começou a jorrar água que inundou toda a terra. Insikiran
ordenou ao tronco da árvore que se transformasse em pedra, e à água que
jorrasse para baixo e se transformasse em rios, lagos e lagoas.
Dessa forma, o que antes era o tronco da árvore Waizacá, agora é um
grande e esplendoroso monte, com todas as riquezas naturais, e conhecido
como Monte Roraima, de onde vem a fonte de água que alimenta os seres
vivos.
Figura 05: desenhos produzidos por professores indígenas
Fonte: OPIRR 2011
O não indígena se encanta com as belezas naturais do Monte
Roraima, um ponto turístico inesquecível. Para os povos indígenas é o
santuário de seus ancestrais, lugar dos espíritos de heróis mortos. Suas fontes
de água dão origem aos rios da região. Inúmeras lendas compõem a história
do Monte Roraima; essas são fontes de pesquisas antropológicas e apesar de
muitos estudos já produzidos sobre este lugar, ainda é privilégio dos indígenas
esse conhecimento, ou seja, somente os próprios indígenas são detentores das
riquezas lendárias. É importante destacar que muitos professores utilizam as
histórias produzidas por eles no ensino de sala de aula, o que tem fortalecido a
cultura.
1.4 Educação escolar: desvalorização da educação indígena, valores
culturais ameaçados.
Em Roraima, ao longo de toda a trajetória histórica, traçou-se um
panorama da educação escolar na área indígena marcado pela negação de
57
sua diferença cultural, de sua realidade social, política e econômica.
Catequizar e integrar a cultura ocidental eram as prioridades dos missionários,
que através da conversão aos valores do cristianismo, negaram aos povos
indígenas o direito de expressarem-se em sua própria cultura, em sua própria
língua. O sistema de ensino brasileiro, por ser monoculturalista, sempre
privilegiou a cultura da sociedade envolvida. Nestas circunstâncias, a escola foi
implantada nas comunidades indígenas, ou seja, conforme o modelo da
sociedade não indígena (OPIRR, 2011).
De acordo com a OPIRR, até a década de 1940, a educação dos índios
de Roraima ficou principalmente sob a direção da Igreja Católica. Já na década
de 1950, o Estado, através do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), assume o
projeto destinado à formação profissional e nacionalista dos povos indígenas,
ampliando, assim, a atuação em torno do objetivo integracionista. O saber
centrado no tríplice ato de ler, escrever e contar, foi a meta do ensino junto às
comunidades indígenas até os anos 1980.
As Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969 tinham por finalidade
promover a incorporação dos índios na comunhão nacional. Neste contexto,
foram instituídas políticas indigenistas; como o SPI (Serviço de Proteção aos
Índios), dirigido por Marechal Rondon, no início do século XX, em 1910. Para
substituí-lo, em 1967 criou-se a FUNAI. Em 1973 foi aprovada a Lei 6.001 –
Estatuto do Índio. A educação é estruturada para formar trabalhadores
comprometidos com a pátria, com o progresso; enfim, com um Estado Nação
que precisava fortalecer e ampliar suas categorias políticas, entre elas, a
língua, os símbolos nacionais, o território, a religião etc. Com essa perspectiva
são construídas as escolas para índios, visando formar homens cristãos e
patriotas a serem integrados à sociedade invasora com traço pecuarista,
minerador e nacional.
Segundo o (CIDR, 1990, p. 23), nesse ambiente de escolarização não
indígena, as crianças indías eram obrigadas a seguir rígidas regras,
começando pelo tempo de aula, horário de chegada e saída. Essa estrutura
escolar descaracterizou completamente a vida das comunidades.
Na “escola branca” as crianças indígenas passavam horas sentadas,
estudando conteúdos que nada tinham haver com os costumes da aldeia.
Aprendem o Português e a Matemática, desprezaram-se todos os valores,
58
necessários para a formação cidadã, repassados pelos pais (CIDR, 1990, p.
24).
O senhor Rari Lima, ancião Macuxi confirma o fato:
Quando comecei estudar, a escola proibia tudo que era do índio, a língua materna era proibida, a professora dizia pra nós:- não fala essa gíria de vocês... É feio ! Eu saía quatro horas da manhã para chegar a escola, andava muito, eu levava minhas flechinhas e no caminho eu flechava os passarinhos para nossa refeiçao de volta pra casa. Quando eu chegava na escola com minhas flechas, a professora dizia para eu não levar mais, pra deixar em casa, mas eu precisava delas...Se a gente chegasse atrasado, ficava de joelhos em cima de pedras na sala por meia hora. Era ruim, ela falava que a gente deveria aprender bem pra ser um bom soldado, um aviador, que essas coisas de índio não ia levar a gente pra frente. Uma vez, ela nos pegou fazendo nossa damurida numa panela de barro e ficou muito brava. Disse que não podíamos cozinhar nessas panelas porque era feita de areia, ia fazer mal pra nós, que a gente tinha que comprar as panelas que ela usava... de branco ( 2011).
Diante deste relato, podemos perceber quanto essa estrutura de
educação foi prejudicial aos povos indígenas. O modelo de escola implantado
estava enterrando as tradições e os ensinamentos dos mais velhos. O exemplo
mais claro disso foi a quase extinção da língua Macuxi e Wapichana. Hoje,
poucos são os falantes de suas línguas maternas e há predominância do
Português nas gerações atuais.
Nesse sentido, desabafa o Tuxaua Joaquim, Macuxi da comunidade
Taxi23 em assembleia anual:
Antes tudo era fácil. Agora, com os civilizados no meio, só temos dor de cabeça: antes de tudo a língua. A língua do civilizado é coisa emprestada, nao é coisa nossa. Também, na escola só ensina o português”. Eu ensinei um pouco a lingua Macuxi na escola e os meninos aprendem muito, alguns já falam bem. Temos que continuar assim e fazer mais para isso prevalecer (Assembleia dos tuxauas,1979, apud CIDR 1990, p. 25).
O relato mostra claramente a preocupaçao das lideranças quanto à
forte ameaça de extinção dos costumes tradicionais.
Assim como houve desvalorização da língua materna, substituida pela
Língua Portuguesa, ocorreu com a matemática tradicional.
Medeiros destaca:
No ensino tradicional da matemática não tem havido, em geral, um respeito pela criatividade do aluno. (....) A postura educacional presente nesse tipo de ensino da matemática é carregada pela
23
Taxi: fruto comestível comum na área indígena Raposa Serra do Sol
59
crença de que a ordenação das idéias matemáticas e os significados, os sentidos atribuidos a tais ideias são partilhados, desde os contatos iniciais com a matemática, de forma única e universal (...) ( 2005, p. 20-21).
No entanto, de acordo com Tassinari, as décadas de 60 e 70 foram
marcadas pela organização de movimentos em favor de uma reação à política
indigenista. Falava-se em proteção, mas promovia-se o etnocídio ou o
extermínio cultural dos povos indígenas. Encontros e debates foram
construindo ideias e ideais, definindo a escola como “frente ideológica” (2001,
p. 56).
Para conhecermos melhor esse processo histórico de construção de
uma escola para o índio, indico a dissertação de mestrado de Geisel Bento
Julião, intitulada: “Currículo como Construção Social em Contexto de Cidadania
Intercultural Indígena”, defendida em 2011, na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo- PUC.
Em meio a perdas e conquistas, podemos dizer que o povo indígena
em Roraima vem protagonizando seus projetos de futuro. Sendo assim,
discorrerei, no próximo capítulo, sobre os avanços que tornaram a educação
escolar, segundo Julião (2011, p.87), “redirecionada ao índio e pelo índio”.
1.5 O protagonismo indígena: a educação escolar redirecionada ao
contexto social do índio
Nos últimos 30 anos, os pesquisadores de diversas áreas de
conhecimento, e, principalmente, os da área de Educação, vêm
proporcionando debates acirrados em torno da educação escolar implantada
para o índio. Paralelamente, os povos indígenas, ao longo desse tempo,
também refletem sobre o que querem e como querem a escola em suas
comunidades.
De acordo com Santos (2010), a partir dos anos 80, a escola ganhou
um novo valor. As lideranças (tuxauas) passaram a lutar pela implantação e
melhoria das escolas; principalmente, pelo controle e destino da educação
escolar de suas aldeias. Os questionamentos dos conteúdos ministrados às
crianças e jovens indígenas, assim como a atuação dos professores não
índios, tornaram-se frequentes.
60
Santos destaca que os índios passaram a solicitar a formação de
membros das próprias aldeias. A consequência inicial dessas reivindicações foi
a substituição dos professores brancos por professores indígenas.
Helena Silva, por sua vez, assevera que foi à luz desse princípio
reivindicatório que o Movimento Indígena no Brasil, mais especificamente, na
Amazônia, Roraima e Acre, marcou a terceira fase de luta, onde os próprios
povos indígenas, a partir da década de 80, visam definir e autogerir seus
processos de educação formal.
a questão da criação e da autogestão dos processos de educação escolar indígena. Esta é sua especificidade: que os próprios povos indígenas discutam, proponham e procurem – não sem dificuldades – realizar seus modelos e ideais de escola, segundo seus interesses e suas necessidades imediatas e futuras. É um dado novo que distingue, em sua raiz, essa experiência de outras em curso. Seria, de fato, tentativa concreta de transformar a “educação escolar para índio” em “educação escolar do índio”. Nesse sentido, é um tema novo na história da educação escolar indígena no Brasil (1999, p. 67). a escola “pode vir a ser” algo que contribua na vida dos povos indígenas. Nessa perspectiva, escolas indígenas seriam, de fato, projetos indígenas de escolas, deixando de ser propostas de fora, “ofertas” de quem quer que seja: governo, ONGs, igrejas, universidades, e passariam a ser parte de um processo mais amplo que, necessariamente, deve estar nas mãos dos principais interessados: os povos indígenas (Ibid. p. 69)
Assim, os passos seguintes orientam os caminhos de mudança da
educação escolar em Roraima.
Conforme arquivos da Organização dos Professores Indígenas de
Roraima-OPIRR (2011), no ano de 1985, o Governo Federal, através do
Ministério de Educação lançou um debate nacional sobre educação,
denominado “O Dia D”, onde como tema central colocou-se: “Que escolas
temos? Que escola queremos?”. Em Roraima, a Secretaria Estadual de
Educação (SECD), organizou um encontro na cidade de Boa Vista para
debater a situação pedagógica das escolas na área indígena.
Neste encontro, tuxauas e professores fizeram críticas sobre o tipo de
educação que vinha sendo imposto às crianças e jovens indígenas, além de
apresentarem propostas de mudanças, como: cursos de formação, contratação
de professores indígenas e o direito dos alunos falarem e aprenderem (em)
suas línguas. Como resposta às reivindicações, no ano de 1986, a SECD/RR
abre em suas dependências um espaço administrativo com representação
61
indígena chamado de Núcleo de Educação Indígena (NEI). Este núcleo tinha o
objetivo de organizar, acompanhar e coordenar os trabalhos e atividades
relativos à educação nas escolas indígenas. O NEI, em tempos mais recentes,
passou à categoria de Divisão de Educação Indígena-DIEI.
Vale ressaltar que a DIEI, apesar de ser coordenada por uma
professora indígena, enfrentava dificuldades por não dispor de material
pedagógico adequado para atender às necessidades e reivindicações exigidas
pelos professores em prol de uma educação escolar que tem como princípios a
interculturalidade e o multilinguismo.
Outra base da educação escolar indígena em Roraima foi a Comissão
de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima - COPIAR que iniciou-se
em 1988 e, hoje, estende-se a outros estados da Amazônia, formando uma
grande articulação étnica em defesa de uma educação escolar que garanta
autonomia, em todos os aspectos da vida social, para os povos indígenas.
O primeiro encontro aconteceu em Outubro de 1988, no estado do
Amazonas, com 41 participantes de 14 etnias diferentes das regiões: Alto Rio
Negro, Alto Solimões, Baixo Amazonas, Médio Solimões e Roraima. Os temas
abordados eram: Formas originais de Educação; Educação escolar; Tipos de
Escola; Troca de experiências. Politicamente visava à discussão da
promulgação da nova constituição. O documento produzido neste encontro tem
por título. “Como deve ser a escola indígena” segundo o Conselho dos
Professores Indígenas da Amazônia, (COPIAM, 2010).
Porém, foi a partir do IV Encontro de professores (1991) que
aprofundou-se a discussão e reflexão sobre a elaboração de currículos, além
do estudo da legislação relacionada direta ou indiretamente à questão da
educação escolar indígena. Deu-se continuidade ao processo de discussão
sobre a articulação do movimento dos professores com as diversas
organizações indígenas (de caráter mais amplo, como a Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira- COIAB, e outros movimentos
específicos, como o de agentes de saúde indígena e de mulheres).
Realizou-se um trabalho inédito onde, através da metodologia dos
“temas geradores”, os professores puderam vivenciar um profundo exercício de
interculturalidade, confrontando os diversos saberes dos povos indígenas
presentes no encontro. Um dos momentos mais significativos foi a discussão e
62
aprovação de uma Declaração de Princípios sobre a Educação Escolar
Indígena, que tornou-se, desde esta ocasião, o principal documento do
movimento, de caráter articulador e reivindicatório.
Afirma-se que as políticas de educação para a escola indígena no
Estado têm sido acompanhadas, complementadas e pensadas com a
participação constante dos movimentos políticos e sociais dos indígenas
através de suas representações instituídas, principalmente pela Organização
dos Professores Indígenas de Roraima– OPIRR.
Nesse contexto, a colaboração da OPIRR no campo da educação
ocorre com participações diretas em eventos temáticos organizados pela
DIEI/SECD, com suas assembleias deliberativas regulares e em conselhos
específicos, inclusive no Conselho Estadual de Educação. Diante do exposto,
podemos perceber de maneira abrangente, que hoje os povos indígenas têm
redirecionado seus princípios educacionais, propondo e proporcionando
caminhos para um transcender com dignidade sem perder suas tradições
culturais.
1.6 A organização dos professores indígenas de Roraima: um destaque
de lutas
Neste trabalho cabe fazer uma referência especial à Organização dos
Professores Indígenas de Roraima – OPIRR, que protagoniza uma política
relevante na história da educação em Roraima. Com a força do movimento
organizado nos anos 90 e a necessidade de uma representação legal dos
professores indígenas na política educacional, surge a OPIRR.
Nos encontros e debates, nacionais e regionais, sobre problemas e
propostas de educação escolar em áreas indígenas, os professores realizaram
uma reunião na Missão de Surumú, município de Pacaraima, nos dias 26 a 28
de outubro de 1990. Nesta ocasião, reuniram-se 84 professores dos povos
Macuxi, Wapichana, Taurepangue e Ingaricó em busca de fortalecer a luta em
defesa de uma educação escolar verdadeiramente indígena que atendesse às
necessidades das comunidades de Roraima. Para isso, os professores
decidiram criar a Organização dos Professores.
63
A OPIRR destaca-se pelas políticas voltadas aos âmbitos: educacional,
como social e ambiental. Durante suas assembleias estaduais e regionais
surgem propostas relevantes, além do fato de ser a OPIRR, a instituição que
vem descaracterizando a política de apadrinhamento que reina no setor
educacional de Roraima. Durante seus 22 anos de criação, passaram pela
coordenação geral os professores: Fausto Mandulão; Zineide Sarmento;
Enilton André; Pierlangela Cunha; e o atual coordenador, professor Telmo
Ribeiro Paulino do povo Macuxi.
O principal objetivo da OPIRR é a promoção da educação indígena,
tanto na formação dos professores indígenas como na preparação de material
didático. Visa apoiar as atividades das lideranças indígenas em defesa de seus
direitos e reivindicações. Seu bordão é “Organizar para Educar e Fortalecer”.
Avançou na articulação de parcerias com outras organizações indígenas:
Conselho Indígena de Roraima-CIR; Organização das Mulheres Indígenas de
Roraima-OMIR; Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima-
APIRR; Sociedade para o Desenvolvimento Comunitário e Qualidade
Ambiental – TWM; Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia -
COPIAM e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -
COIAB. A OPIRR firmou parcerias com instituições como Ministério da
Educação – MEC, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e Universidade
Federal de Roraima - UFRR.
Uma das atividades importantes que a organização desenvolveu nos
primeiros anos de criação foi o projeto Anikê, iniciado em 1998. O projeto
propôs resgatar o nome dos heróis Anikê e Insikiran com seu mítico poder
criador para elaborar material didático nas áreas de História e Geografia, com o
intuito de atender as escolas de 5a a 8a série no Estado de Roraima.
Em 2000, graças a parcerias com o MEC e a FUNAI, programou-se a
primeira etapa do Projeto Anikê, oferecendo cursos presenciais em Boa Vista e
pesquisa de campo nas comunidades. Participaram desta experiência 42
professores indígenas, os quais foram escolhidos na Assembleia Geral da
OPIRR realizada, na comunidade Malacacheta, região Serra da Lua, município
de Cantá.
Como parte da articulação para conscientizar e divulgar a importância
dos objetivos do projeto, realizaram-se 8 encontros com as comunidades,
64
lideranças e professores, nas regiões de: São Marcos, Serras, Surumú, Baixo
Cotingo, Raposa, Taiano, Amajari e Serra da Lua. O material coletado nas
pesquisas é parte do Centro de Documentação da OPIRR. Com esta
experiência procurou-se dar continuidade aos trabalhos de preparação de
material didático bilíngue Macuxi-Português e Wapichana-Português.
Em âmbito nacional, a OPIRR destaca-se quando seu representante
professor Almerindo Raposo (vice coordenador), participa da reunião técnica
de professores indígenas em Brasília, em agosto de 2000. O tema da reunião:
“Construir Novas Práticas de Formação de Professores Indígenas no Brasil”.
O evento foi promovido pela coordenação geral de apoio as escolas
indígenas do Ministério da Educação. Participaram das discussões: 15
professores índios, representando 13 povos de diferentes partes do país.
Foram realizadas discussões sobre:
1) O professor indígena: perfil, vocação e envolvimento com a comunidade;
2) Currículo de formação de professores indígenas: o que é importante
aprender para ser professor indígena?
3) Currículo da escola: o que é importante ensinar na escola indígena?
4) Material didático e de pesquisa: o professor indígena como pesquisador e
autor de materiais didáticos;
5) Quem tem responsabilidade na formação do professor indígena: que precisa
ser feito?
6) Quem são os formadores dos indígenas?
As discussões proporcionaram reflexões sobre o futuro da educação
escolar indígena no Estado de Roraima.
A OPIRR, também contribuiu para a mudança de estrutura da
Coordenação de Professores Indígenas da Amazônia, Roraima e Acre –
COPIAR, que atualmente é o Conselho dos professores Indígenas da
Amazônia - COPIAM. A partir do ano 2000, o COPIAM deu continuidade aos
trabalhos até então desenvolvidos pela COPIAR. Sua 1ª Assembleia Geral
aconteceu no mesmo ano, com o tema: “A Educação Diferenciada é a Trilha do
Novo Milênio”.
Na ocasião, além de apresentarem informes regionais sobre a situação
da educação indígena, foi discutido e aprovado o estatuto do COPIAM e eleita
a primeira diretoria. Na diretoria, destacou-se a delegação de Roraima, ficando
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conformada da seguinte maneira: Coordenador Geral, Tomé Fernandez Cruz;
suplente, Fausto da Silva Mandulão (RR); Coordenador Administrativo,
Madalena Barbosa Albuquerque; suplente, Aumerindo Raposo (RR);
Coordenador Financeiro, Pierlangela Nascimento da Cunha (RR); suplente,
Charles dos Santos Oliveira (AM); Conselho Fiscal, Bruno Yanomami (RR),
Natalina da Silva Messias (RR), José Mário dos Santos Ferreira, Miguel Batista
Maia e Valter da Silva Monteiro.
A OPIRR firmou parceira com COPIAM em um plano de articulação não
só na Amazônia Brasileira, mas em outros estados da Federação. Seu objetivo
é fortalecer a educação entre os povos indígenas.
Apesar das dificuldades, a OPIRR tem conseguido avançar em seu
campo de atuação. Fortaleceu-se a Divisão de Educação Indígena - DIEI,
levando a cabo as reivindicações dos povos indígenas que foram declarados,
desde o chamado dia “D” e que trouxe o bordão: “Que escola temos? Que
escola queremos?” Nacionalmente discutiu-se sobre a realidade da educação
escolar. A partir deste período surgiu a reivindicação e necessidade por parte
dos pais e das lideranças indígenas de ampliarem-se escolas de nível
Fundamental e Médio nas comunidades.
Outro trabalho idealizado pela OPIRR foi o Projeto Magistério Indígena
Parcelado. Assim como a promoção de cursos, encontros e eventos regionais,
estaduais e da Amazônia. A OPIRR tem reivindicado: habilitação e formação
para os professores nas pesquisas de sua própria história, alternativas sociais
e econômicas autossustentáveis para as escolas e comunidades, e tem
acompanhado o aumento e o progresso de escolarização indígena.
Com intuito de discutir novas propostas para o futuro da educação em
Roraima, a OPIRR realizou alguns Seminários estaduais e internacionais, dos
quais sobressai-se o II Seminário realizado em setembro de 2000, na
comunidade Canauanim. No evento, discutiu-se a necessidade da formação
superior dos professores indígenas. Foram definidos alguns critérios para os
cursos e as formas de seleção dos professores e estudantes indígenas que
não tinham acesso à universidade. A proposta principal foi a criação de cursos
de formação diferenciados, que garantissem o respeito à diversidade cultural e
à realidade vivida nas comunidades.
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Em 2001, essa proposta concretizou-se, nasceu o Núcleo INSIKIRAN,
vinculado à Universidade Federal de Roraima, visando à formação superior
específica para indígenas. Inicialmente esta formação restringiu-se ao curso
denominado Licenciatura Intercultural. A coordenação da OPIRR acompanhou
a comissão interinstitucional que discutiu a Proposta Pedagógica e o Currículo
do curso. Houve grande interesse por parte da reitoria da Universidade, o que
garantiu a concretização da proposta. O núcleo Insikiran foi a realização dos
anseios de lideranças indígenas que almejavam a formação superior indígena.
Em 2002, iniciou-se a primeira turma de alunos na Licenciatura Plena
com enfoque Intercultural. Fato que veio consolidar definitivamente a
participação dos povos indígenas na Universidade Federal de Roraima.
Atualmente, o Instituto de Formação Superior Indígena- INSIKIRAN
funciona com duas graduações: a Licenciatura Intercultural e a Gestão
Territorial Indígena. Há previsão de novos cursos na área de saúde e
educação.
Nos últimos anos, a OPIRR tornou-se uma forte aliada na manifestação
do descontentamento dos povos indígenas com o descaso do poder público.
No interior de suas assembleias, são debatidas e elaboradas propostas de
melhorias para os principais problemas que atingem a educação escolar e
outras dificuldades sociais.
As assembleias da OPIRR acontecem em duas fases: regionais e
estaduais. Nas regionais, os participantes discutem internamente os anseios
sócio educacionais de suas comunidades/escolas. Nas estaduais acontece a
culminância dos trabalhos desenvolvidos nas regiões em contexto amplo.
As atividades desenvolvidas durante a assembleia acontecem em três
momentos. Inicialmente, as lideranças, professores, alunos e participantes
debatem o tema principal; em seguida, colocam as dificuldades e problemas
de sua comunidade ou região.
No segundo momento, recebem-se os representantes de órgãos
governamentais e não governamentais convidados. As lideranças fazem a
exposição de suas dificuldades e reivindicações; depois, é dada
oportunidade para os convidados responderem, e abre-se o debate entre
lideranças e convidados.
67
Após o debate, são formados grupos de trabalho. Nesse momento, os
grupos formados por regiões elaboram suas propostas de atividade para os
meses seguintes; além disso, são elaborados projetos de melhoria dos
contextos: social, educacional, ambiental, entre outros.
Por último, a secretaria da assembleia faz a sistematização das
propostas elaboradas pelos grupos de todas as regiões, formando um
documento final. O documento deve ser aprovado e assinado pela
assembleia; depois é enviado aos órgãos competentes. Vejo que não será
necessário relacionar neste trabalho todos os documentos elaborados nas
assembleias da OPIRR, no entanto, achei conveniente exemplificar com
parte do documento elaborado na XIX assembleia da OPIRR de 2012.
Nós, Lideranças e Professores Indígenas de Roraima, representantes legítimos das etnias Macuxi, Wapichana, Yekuana, Ingaricó, Wai-Wai, Yanomami, Patamona, Sapará e Taurepangue, pertencentes às Regiões do Amajari, Baixo Cotingo, Murupu, Taiano, Raposa, Serras, Serra da Lua, Surumú, Ingaricó, Wai-Wai e membros da Organização dos Professores Indígenas de Roraima – OPIRR, elaboramos esse documento mostrando a verdadeira realidade das escolas Indígenas e nossas reivindicações relacionadas abaixo. Existem aproximadamente 14 mil alunos e 1400 professores indígenas entre Quadro da União, Quadro Efetivo e Quadro Temporário e 227 escolas indígenas no Estado. [...] na XIX Assembleia Geral dos Professores Indígenas de Roraima com o tema “Educação e Etnodesenvolvimento Econômico Sustentável, Sócio Cultural e Político”, ocorrida no Centro Regional do Lago do Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol - RR, nos dias 9, 10, 11 e 12 de abril de 2012 veio apontar caminhos para os problemas que enfrentamos na educação, saúde, meio ambiente e direitos dos povos indígenas. Após as apresentações das temáticas, questionamentos, discussões e avaliações sobre o tema da assembleia, suas especificidades e a diversidades da realidade dos Povos Indígenas no Estado de Roraima, vimos mostrar problemáticas quanto à adoção de políticas públicas específicas, previstas e amparadas pela Constituição Federal Brasileira e Legislação infraconstitucional e por isso apresentamos nossas demandas e reivindicar junto às Instituições Públicas do estado de Roraima, as mesmas reivindicações que tem sido pauta na maioria das Assembleias dos tuxauas e professores já realizadas. [...] esses fatos obrigam a OPIRR, juntamente com os povos indígenas de Roraima e promotores da educação escolar indígena fazerem reivindicações para melhorias do processo educacional. Seguem nossas reivindicações. [...]
Que haja acompanhamento pedagógico das atividades desenvolvidas nas escolas Municipais pelas Secretarias Municipais de Educação;
Que sejam promovidos Cursos de capacitação específicos para professores indígenas que atuam na Educação Infantil;
Que sejam realizados Concursos Específicos para profissionais indígenas da Educação Escolar;
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Que a Merenda destinada às Escolas contenha gêneros alimentícios que façam parte dos hábitos alimentares dos povos indígenas.
Que seja assegurado pelos municípios o transporte escolar para os alunos da rede municipal de ensino.
Que seja ofertado o Ensino Médio Integrado específico para alunos indígenas;
Que sejam promovidos Cursos de capacitação específicos para professores indígenas em conformidade com a área de atuação;
Que seja obrigatória a oferta e o ensino das línguas indígenas em todos os níveis e modalidades de ensino.
Que seja garantida a elaboração dos Projetos políticos pedagógicos das Escolas Indígenas Estaduais e municipais e nestes assegurados as especificidades da Educação Escolar Indígena nos seus diversos níveis e modalidades de ensino;
Que sejam unificados os calendários escolares indígenas por região;
Que as construções das escolas e centros de formação considerem os modelos arquitetônicos indígenas;
Que seja assegurada a oferta da educação especial para escolas indígenas estaduais e municipais e viabilizadas a capacitação dos profissionais que atuarão nesta modalidade de ensino;
Que seja garantida a implantação do ensino de nove anos em todas as escolas indígenas e assegurada a formação dos profissionais para atuarem nesses níveis;
Que haja oferta de acordo com a demanda apresentada pela comunidade (1º, 2º e 3º seguimentos EJA);
Que sejam ofertados Cursos Técnicos/Profissionalizantes considerando a demanda por Regiões nos centros de Formação, a exemplos Agronomia, turismo, mecânica, eletrônica, marcenaria, eletricidade, e outros;
Que seja assegurada a formação continuada para os profissionais indígenas da educação e que esta aconteça nos Centros Regionais;
Que sejam implementados Centros de Formação por região para atender a demanda dos cursos de formação continuada, profissional e técnica;
Que sejam implantados Campus Universitários por região, consideradas as demandas das comunidades indígenas para a oferta de cursos específicos;
Que sejam garantidas a oferta e ampliação do número de vagas nos processos seletivos vestibulares das Instituições de Ensino Superior Federal e Estadual, para o ingresso dos estudantes indígenas;
Que sejam ofertados Cursos de Pós Graduação (Lato e Scrito Sensu) considerando a formação dos profissionais da educação escolar indígena e suas demandas específicas. [...] Que sejam estabelecidas políticas linguísticas para os povos indígenas e assegurados os recursos financeiros para elaboração e publicação dos materiais didáticos pedagógicos;
Que sejam apoiados financeiramente os projetos de auto sustentação para as escolas, organizações e comunidades indígenas
Que sejam estabelecidos convênios de cooperação técnica com instituições de pesquisa que possam viabilizar a capacitação dos alunos e professores na elaboração e implementação de projetos autossustentáveis nas comunidades indígenas. [...] (19ª ASSEMBLEIA DOS PROFESSORES INDÍGENAS DE RORAIMA, 2012)
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O documento elaborado no final da assembleia tem importantes
finalidades. Na área educacional, o documento serve de base para orientar as
comunidades nos projetos escolares. Outra finalidade é mostrar às autoridades
as reivindicações e demandas das escolas e principalmente estabelecer as
normas educacionais que estejam de acordo com a realidade de cada povo. É
importante destacar que esses debates e documentos gerados durante as
assembleias vêm orientando as organizações, professores e comunidades na
construção de modelos educacionais próprios, assim como seus projetos
pedagógicos e currículos diferenciados para as escolas indígenas de Roraima.
Para esclarecer melhor como acontece a gestão educacional no
Estado, faço referencia à Divisão de Educação Indígena - DIEI e aos Centros
Educacionais Implantados nas regiões indígenas, expostos a seguir.
70
CAPÍTULO II
GESTÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM PROJETO EM CONSTRUÇÃO
Reforçando o já dito no documento final da OPIRR (2012), no Estado
de Roraima, o número de escolas em comunidades indígenas somam 227
unidades, atendendo mais de 14 mil alunos, abrangendo 51% das escolas
estaduais distribuídas em 32 terras indígenas, geridas pela DIEI. Esse setor
está ligado diretamente à Secretaria de Educação do Estado de Roraima.
As escolas são assistidas pedagogicamente pelos coordenadores
pedagógicos itinerantes, cargo criado em 2008, por determinação do próprio
gabinete da SECD, que fundou a Coordenação Pedagógica Itinerante Indígena
e não Indígena. Os coordenadores pedagógicos recebem treinamentos e
capacitações, porém atuam com deficiências estruturais como, por exemplo, a
deficiência de transporte e de materiais pedagógicos para que as metas de
atendimento e visitas pedagógicas possam acontecer adequadamente.
Somente as escolas estaduais indígenas classificadas na tipologia da
SECD como pertencentes ao grupo de médio porte desfrutam de coordenação
pedagógica permanente; até segundo semestre de 2011 foram contadas 21
unidades.
Os dispositivos legais da Constituição Federal de 1988 e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB) asseguraram aos índios uma educação
diferenciada, cujo princípio central é o multiculturalismo. É justamente nesta
linha de princípios que os professores indígenas vêm discutindo e
aperfeiçoando suas propostas pedagógicas na perspectiva de criação de um
sistema próprio para a educação escolar indígena.
Apesar desses avanços, o destaque hoje é a falta de material didático,
infraestrutura e apoio pedagógico adequado para a concretização do projeto
educativo que os índios reivindicam para suas aldeias.
Atualmente, a Divisão de Educação Indígena tem como gestora a
Professora Ineide Izidorio Messias, da etnia Macuxi, que conta com uma
equipe de assessores índios e não índios. Porém, a gestora e sua equipe não
tomam suas decisões isoladamente, as decisões importantes são tomadas
71
somente com participação e anuência dos povos indígenas em suas
assembleias, como destacado anteriormente.
Para melhor conduzir o processo educacional em Roraima, as escolas
estão organizadas e são acompanhadas por etno-regiões. Cada região possui
um centro escolar de educação, um gestor e um coordenador pedagógico,
ambos indígenas. Neste caso, o coordenador pedagógico é o mesmo
itinerante.
Os centros de educação funcionam como extensão da DIEI, possuindo
certa “autonomia” em decidir política e pedagogicamente melhorias para as
escolas de sua região.
Vale destacar que as regiões educacionais não são dividas por povo ou
etnia e sim pelo seu contexto político24, como mostra a figura abaixo:
Figura 06: Centros Regionais Indígenas – CRI
Fonte: DIEI- 2011
24
São elas: Região das Serras, Baixo Cotingo, Surumú e Raposa (compõe a terra indígena Raposa Serra do Sol); São Marcos, Taiano, Amajari, Serra da Lua, Murupú e Yanomami.
72
Frente a isto, destaco o Centro Regional Indígena Amoo´ko Januário,
na região Baixo Cotingo, local mais específico de pesquisa. Este centro é
responsável pelas 22 unidades escolares mantidas pelo Governo do Estado.
Tais unidades de ensino inserem-se em um amplo universo de
dessemelhanças quanto a sua estrutura física, localização, estado de
conservação, capacidade de suporte, acesso entre outros.
O Centro de Educação Amoo´ko Januário, está localizado na
comunidade indígena Camará. Ainda não possui uma estrutura física própria,
os materiais necessários para seu funcionamento são guardados na escola da
comunidade. Este é um dos principais empecilhos para o bom andamento do
atendimento administrativo e pedagógico da região. Apesar de diversas
reivindicações de melhorias, até o ano de 2012, não houve nenhuma resposta
positiva. Dessa forma, o ensino dessas escolas vem sofrendo a cada ano com
a falta de acompanhamento pedagógico. A distribuição das escolas está
evidenciada no quadro abaixo:
CENTRO DE EUCAÇÃO DE EDUCAÇÃO AMOO´KO JANUÁRIO
Quadro 01: Escolas indígenas da região Baixo Cotingo.
Fonte: DIEI- 2011
73
Tabela 02: escolas que fazem parte do Centro de Educação Amoo´ko Januário em suas respectivas comunidades.
Fonte: DIEI-2011
2.1 Educação escolar: qual modelo educacional?
Diante das sínteses anteriores é difícil analisar a educação escolar
isolada do contexto sociocultural. A escola que outrora era usada para privar a
criança indígena de uma formação étnica, impedindo-a de manifestar seus
valores culturais e sua liberdade de expressão, hoje parece ser um espaço de
construção coletiva, dialógica em busca de valores perdidos.
Para Paulo Freire, a educação hoje precisa ser usada para a prática da
liberdade, liberdade para criar e construir. Freire insiste na concepção de que a
prática pedagógica humanizadora é a saída; prática em que o método deixa de
ser manipulador para ser conscientizador (2005, p.63).
Na visão de Natalina Messias (2010, p.1), até meados dos anos 60 do
século XIX:
Fazer escola na sua prática essencial de ensinar, orientar e avaliar o aprendizado já era uma glória. Com a evolução e o aperfeiçoamento
N° Escola Estadual Indígena Comunidade N° de
alunos Ensino
01 Amoo´ko Kaipitá Placa 18 1ª / 4ª
02 Bento Macuxi Escondido 31 1ª / 4ª
03 Cícero Trajano Feliz
Encontro 21 1ª / 4ª
04 Coronel Mota Olho D’Água 45 1ª / 8ª
05 Índia Anita Mari Mari 22 1ª / 4ª
06 Índio Benedito Repouso 7 1ª / 4ª
07 Índio Benigno de Almeida Cararual 14 1ª / 4ª
08 Índio Bernaldo Travessão 5 1ª / 4ª
09 Índio Francisco Jauarizinho 28 1ª / 4ª
10 Índio Gabriel Câmara 150 1ª / 8ª / E.M
11 Índio Gustavo Alfredo Araçá da Serra
186 1ª / 8ª / E M
12 Índio Hermínio Paulino São Pedro 11 1ª / 4ª
13 Índio José Bacaba Perdiz 12 1ª / 4ª
14 Índio Luiz Trajano Pacu 28 1ª / 4ª
15 Índio Macuxi Floriano Sete Flores 7 1ª / 4ª
16 Índio Macuxi Hernesto Pinto
Itacutú 51 1ª / 8ª
17 Índio Soecário Monte Sinai 6 1ª / 4ª
18 José Neto Copaíba 18 1ª / 4ª
19 Marechal Deodoro da Fonseca
Canavial 44 1ª / 4ª
20 Maria Enedina Lima Vizela 6 1ª / 4ª
21 Índio do Juazeiro Juazeiro 13 1ª / 4ª
22 Santa Maria de Normandia Santa Maria 35 1ª / 8ª
74
dessa prática e com a criação de novas teorias, começamos a vislumbrar uma pedagogia sócio - construtivista.
Para a autora, o que se desenvolve nas escolas do estado de Roraima
é uma pedagogia indígena e não uma didática indígena, visto que a didática
não é uma ciência, seu status não vai além de uma disciplina, o que a difere da
pedagogia, verdadeira ciência, que além de produzir teoria, renova-se com
suas próprias correntes metodológicas e didáticas.
A autora, com base nos estudos de Paulo Freire, afirma que essa
pedagogia nasce do produto do meio do nosso povo, resultado dos
conhecimentos orais, materializados na memória coletiva, consequentemente à
mostra de tradições culturais. Suas práticas estão presentes no dia a dia da
aldeia e da escola de três formas: socialmente, quando exercitamos as línguas
maternas, verbalizando e escrevendo; economicamente, quando nos
relacionamos interna e externamente; e politicamente, quando lutamos pela
garantia de nossos direitos imemoriais, que são também constitucionais
(MESSIAS, 2010, p.2).
Nesse sentido, utilizo o termo de Paulo Freire “político pedagógico” e
“pedagogo revolucionário”. Freire afirma que as pessoas devem partir de suas
debilidades, para poder alcançar a sua superação. O autor ainda destaca que o
“educador revolucionário” é aquele que já se encontra situado histórica e
socialmente, na sociedade, em processo, em um nível maior do processo atual
(1985, p. 13).
Dessa forma, coloca-se o “pedagogo revolucionário” onde Messias
(2010) inspira-se dizendo que o educador indígena pratica uma “pedagogia
verdadeiramente indígena”.
O que parece ser, de fato, é que a educação no estado de Roraima
partiu desse processo de construção “político pedagógico revolucionário”, pois,
como já citado anteriormente, é no interior de reuniões, assembleias e
seminários que nascem novas propostas e metodologias de ensino/
aprendizagem e a formação política do cidadão indígena acontece. Daí a
posição de Messias: “assim, somos também construtivistas dialógicos, pois
construímos uma pedagogia indígena construtivista dialógica” (Ibid. p.2).
As visões dos autores Freire e Messias nos levam a crer que o modelo
pedagógico nas escolas indígenas do estado de Roraima tem por base o sócio
75
construtivo. No entanto, venho refletindo ao longo do trabalho sobre o contexto
do ensino, em especial, da Matemática, nesses ambientes escolares.
2.2 Que matemática?
Ainda tenho por hipótese que há uma descontextualizarão entre a
matemática não indígena e o conhecimento matemático cultural indígena
promovido nas escolas da Região Baixo Cotingo, prevalecendo à matemática
eurocêntrica, uma atenção individual.
Com base nessa hipótese, posso ressaltar, em resumo do que já foi
exposto no capítulo anterior, alguns exemplos dessa imposição. Segundo
Saviani (2010), antes do contato dos povos indígenas com a colonização, a
educação indígena dava-se por três elementos básicos, que são:
a força da tradição que é a bússola orientadora das ações dos
índios mais velhos;
a força da ação que se caracteriza pelo aprender fazendo e por
fim;
a força do exemplo, neste caso o dos mais velhos. É o exemplo
de vida, ação e reflexão para os mais jovens; atos modelam
comportamentos através da transmissão dos conteúdos da
tradição.
Segundo este autor, nesta época havia um processo educativo, porém
não havia um pensamento pedagógico elaborado e com objetivo claro de
intervenção nessa prática educativa. Isto só aconteceu com a chegada dos
colonizadores; daí, podemos afirmar que a escola introduziu uma nova forma
de educação no seio das comunidades.
Essa intervenção pedagógica não indígena ocorreu também no campo
da matemática, pois a escola passou a priorizar a matemática do colonizador e
descartar e desqualificar a matemática dos povos indígenas locais, inclusive a
matemática do povo Macuxi.
Desde o início, a educação escolar das comunidades vem tentando
ensinar um tipo de matemática sem contexto, que é desconhecida dos mestres
(anciãos) da comunidade e assim, não tem aplicabilidade no dia a dia da
sociedade onde as crianças indígenas estão inseridas.
76
Se analisarmos melhor o ambiente escolar indígena da atualidade,
encontraremos conhecimentos matemáticos alheios à realidade da criança.
Essa criança, por mais que tente, encontrará dificuldades, tanto na
aprendizagem como no desenvolvimento mental, tendo em vista que o meio
social e cultural em que se insere, difere daquele ensinamento matemático
oferecido pela escola. Nesse caso, a sensação presente, no campo da
matemática escolar, é uma teoria deslocada da prática.
Dessa forma, podemos dizer que, de um lado, temos a escola
ensinando uma matemática eurocêntrica; de outro lado, o meio social em que a
criança está inserida, pratica outro tipo de matemática, bastante distinta da
oferecida pela escola.
No entanto, a pesquisa nos mostra que ambas, (Matemática Formal e
Matemática Cultural) podem, paralelamente, a partir de uma pedagogia
intercultural, considerar a Educação Matemática na perspectiva
Etnomatemática, como meio de aprendizagem fundamental nesse processo e,
ainda que incipiente, a matemática cultural será contextualizada através de
situações e problemas inseridos no processo escolar, sabendo que nenhuma
poderá anular a outra.
Para qualificar esse trabalho de pesquisa e afirmar ou refutar minha
hipótese, analisei três momentos de discussão e prática do contexto escolar na
região Baixo Cotingo. O primeiro aconteceu na comunidade indígena Canavial
onde funciona a escola indígena Marechal Deodoro da Fonseca; o segundo em
uma oficina pedagógica coletiva com três escolas envolvidas em um local de
difícil acesso; o terceiro e último deu-se no curso pedagógico em amplitude
maior, envolvendo as 22 escolas da região. Esses momentos serão descritos a
seguir.
2.3 A Matemática cultural Macuxi: uma prática social
Nossos ancestrais, Insikiran e Anike, nos deixaram a cultura e habilidades que sabemos. Somos engenheiros e carpinteiros, ninguém estudou na escola do branco para construir nossas casas, construir nossas panelas, nossos artesanatos (PAULINO, 2010).
77
Neste contexto, julgo importante mencionar que, no cenário mundial, as
informações sobre os povos culturalmente distintos vêm se intensificando a
partir da segunda metade do século XIX até os dias atuais.
No continente americano, dos registros feitos por cronistas, etnógrafos
e viajantes, tomo por referência o trabalho de Teodor Koch-Grunber, etnólogo
alemão autor da obra “Do Roraima ao Orinoco”, dividida em cinco volumes. O
primeiro volume foi traduzido para a Língua Portuguesa em 2006.
O autor conheceu e registrou a vida e história dos índios em Roraima
entre os anos de 1911 a 1913. Faz importante referência à matemática cultural
desses povos, às artes e técnicas, desde os modelos em cestarias, registros
simbólicos às arquitetônicas moradias. “Essas casas de palha, redondas,
amarronzadas, protegidas por teto cônico, encaixam-se harmoniosamente no
caráter dessa majestosa região montanhosa. (...) a casa tem cinco metros de
altura e uma circunferência de 32,15m. A altura da porta é de 1.62m, e sua
largura, 70 cm” (2006, p.105-106). Este tipo de moradia reflete bem a
sabedoria dos anciões e sua harmonia com a natureza. O formato da casa,
com a aparência da montanha, demonstra a firmeza e a segurança da moradia.
A altura seria para manter a casa purificada, assim a temperatura tornava-se
baixa, deixando a casa acolhedora. É importante destacar que esse tipo de
moradia requer um raciocínio de engenharia minucioso; os construtores
precisam ser detentores desse conhecimento. No entanto, os engenheiros
indígenas não adquirem esse conhecimento na escola, sua sabedoria é
adquirida de seus antepassados.
78
Fonte: CIR F Figur Figura 07: Modelo de casas tradicionais. Fonte OPIRR-2011
Recorrendo mais uma vez a Junqueira (2008), quando este se refere a
estilos de vida social indígena e não indígena afirma: a representação
simbólica (símbolo) se manifesta na vida social e permite a cada sociedade
criar suas próprias regras, leis e costumes desde as manifestações mais
simples da vida até a mais elaborada relação teórica com fenômenos naturais
do universo. Atribuímos valores a tudo que nos cerca, neste caso específico
(Etnomatemática), a criatividade e a inter-relação com a natureza não é um
caso à parte.
Exemplo disso é o que descreve Koch-Grumber, representado pelas
figuras acima. A geometria Macuxi, usada nas construções de suas moradias,
não é uma invenção alheia à realidade. Se analisarmos melhor, percebemos
79
que o desenho geométrico demonstrado anteriormente tem inspiração nos
modelos das montanhas e serras do lugar habitado por eles.
Conforme afirma D´Ambrosio (2011), o homem se relaciona com a
natureza em busca de sobrevivência e transcendência. Ele, ser humano, é
identificado por seus modos, estilos, comportamentos e conhecimentos em
seus diferentes ambientes,
A busca de sobrevivência, que consiste essencialmente na utilização de recursos naturais para satisfazer necessidades fisiológicas e na aquisição de modos de lidar com o ambiente, é comum a todas as espécies. Mas, a espécie humana vai além da busca de sobrevivência. Procura explicações, que vão além do aqui e agora, tentando entender o como e o porquê de fatos e fenômenos.
Diante do exposto, cito um segundo caso de relação do homem –
natureza. Tratamos, agora, dos artesanatos utilizados pelos Macuxi em seu
quotidiano. O tipiti, por exemplo, é confeccionado em formato da Cobra Grande
(guardiã dos rios lagos e lagoas), é importante na produção da farinha, do
caxiri e do beiju. Primeiramente as mulheres ralam a mandioca, depois sua
massa é depositada no tipiti para retirar o tucupi25.
Outros objetos de artes como a peneira, a darruana etc. são ensinados
pelos artesãos da comunidade. Ver figuras abaixo:
Figura 08: O tipiti sendo utilizado Fonte: OPIRR- 2011
25
Líquido extraído da mandioca, utilizado, geralmente, no preparo do molho a ser misturado à
pimenta (molho de Pimenta).
80
Figura 09: Artes indígenas. Fonte: arquivo pessoal da autora (2010)
O terceiro exemplo, de igual importância, são os grafismos deixados
pelos ancestrais em rochas. Os grafismos são usados na identificação do povo
indígena Macuxi. As pinturas, no corpo ou no rosto, caracterizam ocasiões
especiais. Dependendo do evento utilizam um tipo de grafismo (PAULINO,
2010).
Figura 10: grafismo e seu significado Fonte: arquivo pessoal da autora (2011)
Segundo Paulino, existem muitos grafismos em pedras feitos pelos
ancestrais Macuxi, como ilustra a imagem seguinte:
81
Figura 11: Grafismo macuxi.
Fonte: OPIRR-2011
Recorrendo ainda aos trabalhos de Diana Green sobre os diferentes
termos numéricos das línguas indígenas no Brasil, encontrei base para expor o
quarto e último exemplo da Etnomatemática na sociedade Macuxi. Green
afirma que o sistema de numeração macuxi é constituído da base 20.
É importante lembrar que todas as maneiras de calcular e contar são racionais e lógicas. Umas exprimem um lógico holístico e outras um lógico sequencial, da mesma forma que uma pessoa toca piano ouvindo enquanto outra lê notas musicais. Um sistema numérico não é menos ‘inteligente’ que outro. É diferente. Mesmo assim, todos os sistemas são sensatos e adequados às necessidades dos respectivos povos (2002, p.273).
A contagem vigesimal desse povo são quinários, pois os numerais
maiores do que cinco compõem-se dos mesmos cinco termos, e o numeral dez
é considerado a composição de “cinco mais cinco”, ou seja, mão mais mão.
“Neste sistema, o termo cinco significa “nossa mão”, daí para frente, usa-se a
outra mão para contar até dez.” (GREEN, 2002, p.260).
82
Nesta relação, a contagem macuxi está relacionadas à própria pessoa -
Pemongon26. A tabela abaixo mostra melhor esse sistema:
Numeração na língua Macuxi Significado Algarismo hindu- arábico
Yawonpî (....) 0
Tiwin um dedo da mão 1
Saakîne dois dedos da mão 2
Serîwîne três dedos da mão 3
Saakrîrî quatro dedos da mão 4
Miya´taikin uma mão completa/cinco dedos 5
Tiwin Miya`pona tîmo´tai um dedo + a mão 6
saakîne miya´pona tîmo´tai dois dedos + a mão 7
Serîwîne miya´pona tîmo´tai três dedos + a mão 8
saakrîrî miya´pona tîmo´tai quatro dedos + a mão 9
Miya´tamînawaîrî as duas mãos /dez dedos 10
Tiwin Miya`pona tîmo´tai um dedo do pé + as mãos 11
saakîne miya´pona tîmo´tai dois dedos do pé + as mãos 12
Serîwîne miya´pona tîmo´tai três dedos do pé + as mãos 13
saakrîrî miya´pona tîmo´tai quatro dedos do pé + as mãos 14
Pu`taikin um pé + as mãos /quinze dedos 15
Tiwin pu´pona timo´tai um dedo do pé + um pé + as mãos 16
saakîne pu´pona timo´tai dois dedos do pé + o pé + as mãos 17
Serîwîne pu´pona tîmo´tai Três dedos do pé + o pé + as mãos 18
Saakrîrî pu´pona tîmo´tai Quatro dedos do pé + o pé + as mãos
19
Tiwin pemongon uma pessoa /todos os dedos 20
Tiwin pemongon Tiwin uma pessoa+ um dedo 21
Tiwin pemongon saakîne uma pessoa + dois dedos 22
Tiwin pemongon Serîwîne uma pessoa+ três dedos 23
Tiwin pemongon Saakrîrî uma pessoa +quatro dedos 24
Tiwin pemongon Miya´taikin uma pessoa + uma mão 25
Tiwin pemongon tiwin miya´pona tîmo´tai
uma pessoa + uma mão + um dedo da mão
26
Tiwin pemongon saakîne miya´pona tîmo´tai
uma pessoa + uma mão + três dedos da mão
27
Tiwin pemongon Serîwîne miya´pona tîmo´tai
uma pessoa + uma mão + três dedos da mão
28
Tiwin pemongon saakrîrî miya´pona tîmo´tai
uma pessoa+ uma mão + quatro dedos
29
Tiwin pemongon Miya´tamînawaîrî uma pessoa + as mãos 30
Tabela 03: Numeruukon (numeração).
Fonte: OPIRR- 2011
26
Ou seja, uma pessoa.
83
Para ilustrar melhor, utilizarei a idade de Paulino. Quando entrevistado,
em 2011, Paulino nos explica como seria essa representação:
Tenho 80 anos, então se uma pessoa tem 20 dedos, duas pessoas têm 40 dedos, três pessoas 60 e quatro pessoas 80. Então dizemos – Saakrîrî (quatro) pemongon (pessoa), ou seja, contamos 4 pessoas ou 80 dedos, minha idade. Você tem 37 anos de idade, então digo, Tiwin pemongon Miya´tamînawaîrî (30) mais saakîne miya´pona tîmo´tai (7), 37 anos.
Outros modelos de representação das práticas matemáticas estão
presentes nas ações coletivas e expressam valores fraternais. Por exemplo,
quando a família vai pescar e chegam da pescaria, os peixes são divididos
primeiramente por tamanhos, pequeno, médio e grande, evidentemente os
peixes são distribuídos igualmente e em tamanhos proporcionais a cada
família.
Assim, pode-se dizer que essa prática matemática expressa o amor
fraternal que é comum entre os macuxi.
Portanto, acredito que a abordagem ao Programa Etnomatemática
neste trabalho é relevante para:
a) enaltecer os conhecimentos matemáticos tradicionais macuxi,
b) apontar estratégias de ação coletiva que possam contribuir na construção
dos currículos escolares,
c) intensificar o diálogo entre anciões, crianças e jovens que vem diminuindo
gradativamente.
D´Ambrosio (2011) afirma que:
O homem em sua busca de explicação para tais fatos e fenômenos, desenvolve métodos, utiliza-se de meios existentes em seu ambiente cultural, social em busca de respostas. Com isso, aparece a Matemática, se utilizam de conhecimentos matemáticos próprios para transcender.
O autor considera que Etnomatemática é um programa de pesquisa
transcultural e transdisciplinar sobre história e filosofia da matemática, com
implicações pedagógicas. Seu objeto de pesquisa é o conjunto de ticas, de
matema em distintos etnos, o que é intrínseco à condição humana.
No fundo, o que o programa tenta explicar é o processo de geração,
organização e transmissão de conhecimentos; entre eles, os conhecimentos
matemáticos de qualquer povo. Convida-nos a conhecer e buscar outras
formas matemáticas que não seja aquela que tradicionalmente é considerada,
84
pronta e imutável, mas a matemática que nos leva à reflexão e a produção de
conhecimentos em busca de sobrevivência e transcendência, porém sem
destruir.
D´Ambrosio julga importante praticar coisas novas, renovar os
currículos para melhorar nossa educação, a Matemática ou Etnomatemática. O
professor não pode repetir todos os anos a mesma coisa, os mesmos
exercícios, os mesmos métodos, temos que inovar, novas didáticas são
necessárias, utilizar-se dos recursos tecnológicos que são parte do nosso
cotidiano, ter criatividade, trabalhar o concreto, aproveitar os conhecimentos
das crianças.
Diante do exposto, fica evidente que conceitos matemáticos culturais
estão presentes entre o povo macuxi, porém o trabalho de pesquisa busca
responder: quais? Se é que existem, as estratégias de ação, comuns no
processo de ensino aprendizagem do saber / fazer matemático, em seu
ambiente escolar, contextualizadas com a matemática cultural em busca de
transcendência?
O debate até aqui propôs uma reflexão importante relacionada à
educação indígena e valores culturais que vêm sendo preservados ao longo da
história da sociedade macuxi. Porém, ainda há necessidade de conhecer um
pouco mais sobre seu processo educacional, principalmente ao que se refere
ao aprendizado matemático nas escolas indígenas em Roraima.
Para tanto, acredito ser necessário fazer um breve relato, no qual não
pretendo me aprofundar. Isto se dará apenas para ter base sólida de como
funciona o sistema sócio - educacional no qual as escolas estão inseridas.
85
CAPÍTULO III
A PESQUISA EM PROCESSO
Das comunidades existentes na região Baixo Cotingo, escolhi a
comunidade Canavial. Esta escolha deveu-se ao fato de ser a mais antiga e a
primeira a ter acesso a escola fora dos domínios de fazendeiros, posseiros e
missionários.
Fundada por volta de 1915, com o nome Mangueira, hoje Canavial,
localiza-se ao Norte do Estado de Roraima, município de Normandia,
aproximadamente 184 km da capital de Boa Vista.
Mitologicamente, a comunidade deveria chamar “maloca da cobra”
porque o Insikiran transformou uma cascavel em pedra, e a pedra que se
encontra na cabeceira do igarapé denominado Igarapé da Cascavel (eska`sa
wîttî), conhecido também como Igarapé da Aratanha.
O povo que habitava esta localidade em tempos primitivos era
pertencente à etnia macuxi. O contato inter étnico com a etnia Wapichana
permitiu o casamento, principalmente, de mulheres Macuxi com homens
Wapichana, “nesse caso, os filhos do casal pertencem à etnia da mãe27”
(KOCH-GRUNBERG, 2006, p. 56).
Os anciões contam que Canavial era uma grande aldeia onde todos
viviam em harmonia. Sua subsistência baseava-se nos bens naturais (caça,
pesca e coleta de frutos silvestres), hoje essas práticas ocorrem com menor
frequência. A agricultura é prática constante na maioria das famílias, com a
plantação da mandioca, milho, feijão, melancia, abóbora, banana, cana, batata,
pimenta entre outros.
Os pioneiros a habitar a comunidade foram os índios: Luís, o pajé;
Miliano, Estevão, Paulo, Francisco Caniço, Machado, Atanásio, Filismino, José
Matias, Luisinho, Duarte, Adelson, Hilário, Zacarias, Miliano, pai do Zacarias;
Oreliano, pai do Caubi. Na época, havia por volta de 200 habitantes, e era
administrada pelo tuxaua Gabriel Batista.
27
Incluo-me nessa organização de parentesco, minha mãe Macuxi e meu pai Wapichana,
portanto, me reconheço Macuxi.
86
Os problemas comunitários começaram a aparecer com a entrada do
não índio, de nome Dandae, com a promessa de ajudar às famílias que ali
estavam. Casou-se com a filha do pajé Luís, prometendo ajudá-lo com
alimentação e outros produtos de consumo. Quando já estava instalado, o
senhor Dandae (fazendeiro) passou a impedir que os proprietários (nativos)
praticassem a pesca e caça nos arredores de “sua propriedade”. A partir desse
momento, iniciou-se uma divergência entre o fazendeiro e índios da aldeia.
Apareceram as bebidas alcoólicas causando sérios problemas entre as
famílias.
Neste contexto, os moradores foram forçados a encontrar outros meios
de sobrevivência. A migração de algumas famílias foi inevitável, a procura por
locais distantes e fora do alcance do colonizador foi o motivo da origem de
outras comunidades que hoje compõe a região Baixo Cotingo.
Atualmente, a comunidade é habitada por povos Macuxi e Wapichana,
sendo a Língua Portuguesa predominante entre os mesmos. Apenas 08
pessoas são falantes da língua materna Macuxi, e 01 da língua Wapichana,
entre 29 pais de família, no total de 162 habitantes.
A forte presença da cultura branca na comunidade trouxe sérios
prejuízos às manifestações culturais desse povo. Além da imposição da língua
Portuguesa, a música e dança tradicionais (parichara e tucui), foram
substituídas por outras danças como o forró e música sertaneja. A medicina
natural e a pajelança foram substituídas por remédios farmacêuticos receitados
pelo médico, desvalorizando a função do pajé. Os mitos e a religião indígena
também foram mudados, a maioria dos moradores locais, aderiu à religião
católica ou à protestante.
Atualmente, algumas famílias mantêm-se com a aposentadoria dos
idosos, outras contam com o salário de funcionário público: da educação ou da
saúde (professores e agentes de saúde). Os pais de alunos recebem a bolsa
família (programa do governo federal). A criação de animais também é um dos
meios de autossustentação dessas famílias (criação de bovinos, suínos,
galinhas e patos).
87
Figura 12: Croqui da comunidade Canavial. Fonte: Alzineide - 2010
Nos anos 60, a dominação colonizadora (posseiros, fazendeiros) era
fato consumado. Os índios perderam a liberdade de ir e vir. A discriminação, a
ameaça de morte e a violência física eram constantes. A educação escolar era
privilégio dos filhos dos invasores, pois, segundo Paulino (2010), a escola
funcionava na fazenda Perfeição, sede das inúmeras fazendas espalhadas em
toda a região. A entrada na escola era permitida por meio de pagamento
mensal, fato que impedia as crianças indígenas ter acesso à educação escolar.
Por outro lado, as lideranças indígenas já iniciavam o movimento
organizado contra o poder do colonizador, e a luta pelo direito da posse de
suas terras era real. Estratégias e metas foram traçadas, o povo indígena
estava consciente do que queria e como queria. Em meio a esses objetivos
estava a escola como “frente ideológica” (TASSINARI, 2001, pag. 56).
O Projeto Político Pedagógico da escola pesquisada foi o documento
ao qual tive acesso como referência para análise da realidade escolar da
comunidade em questão. Além disso, acompanhei alguns momentos da prática
pedagógica da professora Alzineide, estudante do curso Licenciatura
Intercultural INSIKIRAN28, ministrante da disciplina de Matemática.
28
Por força de reivindicação política dos povos indígenas, surge Instituto Insikiran de Formação
Superior Indígena criado em 06/12/2002, inicialmente como Núcleo, hoje Instituto.
88
3.1 Sobre a escola Marechal Deodoro da Fonseca
Essa escola é a evidência clara de que os povos indígenas da região
Baixo Cotingo, além de buscar a sobrevivência, buscavam também a
transcendência.
Conforme o seu Projeto Político Pedagógico - P.P.P., atualmente, a
escola é mantida pelo Governo do Estado de Roraima, administrada pela
Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desportos. Criada pelo Decreto
de nº 12/66 de 03 de março de 1966; na época, reconhecida legalmente pelo
governo Fernando Ramos Pereira, o então governador do Amazonas,
responsável também pelas terras de Roraima.
O nome dado à escola foi de responsabilidade das primeiras
professoras não índias: Nazaré Conceição de Souza e Telma Trajano. Hoje a
escola é reconhecida pela Resolução Nº 08/08 do Conselho Estadual de
Educação- CEE/RR. Possui autorização para funcionar apenas o ensino
fundamental de series inicial (1º ao 5º ano).
Seguem alguns depoimentos de anciões Macuxi, em destaque no
P.P.P. (2010), a respeito da fundação desta escola:
Na época que foi fundada a escola, o tuxaua era o Senhor Duarte Lima, considerado o tuxaua geral por administrar grande número de pessoas de três comunidades, a escola inicialmente funcionou com duas professoras e 40 alunos, com ensino fundamental de 1ª a 4ª série aproximadamente nos anos de 1964 a 1965. A primeira estrutura foi construída pela própria comunidade e com a chegada do padre Ludovico na região, incentivou a comunidade a reivindicar a construção de prédio em alvenaria [...] (HILÁRIO LIMA, 2010). Quando entendi um pouco, o tuxaua da região era o Gabriel, hoje falecido, ele colocou o primeiro tuxaua nesta comunidade, o senhor Adelson Bezerra (Taliano), que passou apenas 4 meses no cargo, saiu por ter sérios problemas na sua administração. O seu sucessor foi o senhor Duarte Lima, nesta época funcionava uma escola na região na Fazenda Perfeição, onde os professores eram pagos pelo fazendeiro e os alunos precisavam pagar para estudar nesta escola que pertencia ao fazendeiro Roberto Costa, por essa razão de difícil situação financeira que nós indígenas na época passávamos, não podíamos pagar... Isso fez com que as lideranças começassem a pensar em trazer uma escola para atender a própria comunidade. Após muitas lutas conseguiram implantar uma escola de 1ª a 4ª série, sendo a primeira escola indígena a ser criada na região Baixo Cotingo. Com essa criação houve problemas com os fazendeiros e os indígenas, pois os fazendeiros queriam a escola na própria fazenda Aratanha, havendo diversas ameaças, mas depois, a comunidade ganhou a escola com um prédio em alvenaria inaugurada em 04 de março de 1973. Para a nossa comunidade foi bom, pois ajudou muitos alunos que hoje são professores, agentes de saúde, etc. e
89
atuam na escola e em outras comunidades [...] ( BONIFÁCIO, ancião curador, 2010). Quando comecei a estudar, na época foi com a primeira professora Telma Trajano no ano de 1965, ela foi embora e ficou a professora Nazaré Conceição de Souza, com quem terminei o meu ensino fundamental de 1ª a 4ª série. Depois que saí, a escola foi construída pelo governo Fernando Ramos Pereira, passei vários anos fora, retornei e hoje sou novamente aluno da Educação de Jovens e Adultos do 2° segmento, porque acho que estudar é importante, mas as autoridades não querem reconhecer essa modalidade de ensino e estou muito triste com isso [...] (FRANCISCO LACERDA, 2010).
O depoimento do senhor Francisco nos mostra que a escola enfrenta
sérios problemas. Entre eles, a falta de continuidade do ensino fundamental, do
6º ao 9º Ano, que funciona de forma irregular, assim como, a modalidade de
ensino de Jovens e Adultos - EJA, do qual Francisco, de 54 anos, é aluno no 2º
segmento. O reconhecimento legal de tais modalidades é reivindicado desde a
década de 90; porém, até o ano de 2011, ainda não havia sido concretizado,
com isso os alunos matriculados nessas modalidades sofrem a ameaça, ano
após ano, de serem privados do direito a educação escolar.
Vale ressaltar que muitos alunos desistem antes de concluir o ensino
fundamental, ou deixam a comunidade para estudar em outras escolas, tanto
em outros municípios, quanto na capital. A saída de jovens e adolescentes do
seio comunitário é fator de preocupação, pois muitos deles se desviam de seus
objetivos. Os meninos, geralmente, começam a ingerir bebidas alcoólicas ou se
envolvem com entorpecentes, como a maconha e outros. As meninas
engravidam antes mesmo de completar os 15 anos, às vezes vítimas de
violência sexual doméstica etc.
As escolas são, na verdade, agências de reprodução social, econômica e cultural e, que na melhor das hipóteses, oferecem aos grupos socialmente excluídos apenas uma mobilidade social individual e limitada. O desafio da educação escolar indígena é se propor um sistema de ensino de qualidade e diferenciado, no sentido de atender as especificidades de um povo diferente da sociedade nacional, considerando que seus horizontes de futuro não são os mesmos que os nossos ( LADEIRA, 1999, pag.143, apud P.P.P, 2010, p.8).
De acordo com o censo escolar de 2011, a escola possui 44 alunos
regularmente matriculados (1º ao 5º ano), contando com sete professores
90
disponibilizados pela Secretaria de Educação, Cultura e Desporto/RR, dos
quais quatro com formação em Magistério, dois com Ensino Médio e um
cursando Licenciatura Intercultural no Instituto de Formação Insikiran. Desses
professores, três pertencem ao quadro efetivo estadual e quatro do quadro
temporário (seletivados).
A escola objetiva ação educativa fundamentada nos princípios da
universalização de igualdade de acesso à Educação Básica, gratuita e de
qualidade, nos termos enfatizados pela legislação que garante o ensino público
no país, nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal, considerando,
frequentemente, as peculiaridades e condições específicas que implicam a
política de oferta e execução da educação escolar indígena, não raro
ministrada sob a defesa marcada por tensões e rupturas na intensidade e no
sentido da construção curricular (P.P.P. 2010, p. 10).
A Proposta Política e Pedagógica da Escola Estadual Marechal
Deodoro da Fonseca é a de uma Escola de qualidade, democrática,
participativa e comunitária, concebida como espaço de resgate cultural, de
socialização e desenvolvimento de teorias e práticas sugeridas pelos
parâmetros curriculares da escola indígena, além da percepção e da
importância consideradas e atribuídas ao conhecimento tradicional e de outras
origens, combinados com a preparação para o exercício da cidadania através
da prática e cumprimento de direitos e deveres.
A Escola tem por finalidades, além daquelas estritamente
compreendidas pela relação didático/pedagógica, a ampliação desta ação
baseada na proposta política que recomenda a reedificação, a manutenção e a
promoção da cultura local, das tradições comunitárias, da manifestação e
cultivo da língua, da valorização e do pertencimento étnicos, bem como a
percepção e interesses voltados ao acesso de outros conhecimentos
produzidos por sociedades de outros lugares, considerando-se o conhecimento
científico e os avanços tecnológicos decorrentes da experiência de outros
povos; estimular o desenvolvimento cognitivo incluindo os aspectos afetivo,
ético, estético e a noção da pluralidade étnica; possibilitar o prosseguimento do
aprendizado curricular em outros níveis de ensino não ministrados no
estabelecimento (P.P.P. 2010, p. 12).
91
Além disso, a escola tem a responsabilidade de preparar o cidadão
compromissado em defender o interesse do seu povo e buscar a melhoria na
forma de desenvolvimento da sua comunidade. Focalizada nesses interesses,
a escola elencou os principais pontos relacionados à ação pedagógica.
1. As comunidades devem escolher os professores, fazer
planejamento e discutir a formação de professores;
2. Reunir todos os membros da comunidade, principalmente os
anciões, para juntamente com os professores, pais e mães discutir
qual o melhor caminho para construir uma educação dialógica no
processo de ensino aprendizagem que se vai usar na escola;
3. Trabalhar valores culturais, morais e físicos;
4. Integrar elementos da vida social aos conteúdos trabalhados;
5. Compreender este aluno/a como um/a cidadão/ã que deve ser
um/a agente transformador/a da sociedade, além de crítico/a,
responsável e participante. (P.P.P. 2010, p. 13).
As estratégias metodológicas da Escola Estadual Marechal Deodoro da
Fonseca, com muitos impasses, estão sendo construídas e baseadas na
oralidade. A oralidade, uma presença cultural muito forte na educação dos
docentes, assim como o papel social dos docentes, papel social dos mais
velhos, enquanto conselheiros, enquanto educadores. Isto tem sido
apropriado/transformado pela escola e faz parte do currículo que se constrói
(P.P.P. p. 24).
Durante a pesquisa, percebi que as atividades sociais da comunidade
estão presentes de maneira muito forte na escola, e os alunos participam das
reuniões da comunidade, dos mutirões, das assembleias etc., refletindo uma
perspectiva metodológica de educação que respeita e aproveita a vida
comunitária como instrumento pedagógico. Os mais novos aprendem com os
mais velhos. Isso os Macuxi e Wapichana sabem muito bem. Por essas razões,
a prática pedagógica dessa escola, parece-me interdisciplinar/transdisciplinar,
construída em seminários, conferências, aula expositiva e dialógica,
fórum/debate, pesquisas, filmagem e planejamento coletivo.
92
3.2 Sobre a organização curricular da escola
Pensar o currículo nas escolas indígenas é pensar a vida. Por exemplo, a temática da terra e preservação da biodiversidade está intimamente relacionada à vida, à saúde, a existência dos povos indígenas. Sem terra, o “índio” é “nada” (MANDULÃO, 2006, p.221, apud. P.P. P, 2010, p. 36)
De acordo com Mandulão, o papel curricular de sustentação do Projeto
Político-Pedagógico da escola Deodoro da Fonseca é objeto de reflexão nos
termos preconizados por estudos, recomendações e experiências oferecidos
pelo contexto social local e pelo exterior a ele. O currículo da escola é
protagonista em discussões em recintos democráticos, contando com a
participação de professores e cursistas indígenas, pais e membros da
comunidade. Esse trabalho tem avançado sob vários aspectos, entre eles os
que utilizam a linguagem, o conhecimento tradicional adquirido dos povos
indígenas e experiências pedagógicas sugeridas pelos próprios índios que
ganham status de paradigma e corroboram para a construção de esboço e
planejamento para sua execução dentro dos parâmetros sugeridos pelas
políticas nacionais. Os agentes sociais da escola utilizam uma matriz curricular
aberta que dialoga com a realidade das aldeias, dos territórios e do meio
ambiente onde estão inseridos.
Ainda na visão de Mandulão, o maior esforço a ser realizado no âmbito
da democratização e viabilização do currículo da escola, seria o de fazer dele
um instrumento de valorização da dialética no seu mais amplo sentido. Inserir,
através da prática pedagógica, elementos de mediação capazes de considerar
a relação educador/educando, entendida como um processo que envolve
trocas permanentes e contínuas, com ganhos que se processam
multilateralmente (MANDULÃO, 2006, p. 221, apud. P.P.P. 2010, p. 36).
Sabemos que o debate sobre o currículo é muito amplo e delicado, por
isso, é uma reflexão que deve ser aprofundada em outro momento.
3.3 A matemática na prática educacional
Mediante as exposições anteriores, passo a focalizar minhas análises
na prática pedagógica do ensino e aprendizado da matemática. A Professora
93
Alzineide, citada anteriormente, permitiu minhas observações, tanto na prática,
como no acesso a seus planejamentos de ensino. Aqui, minha dificuldade foi
deixar minhas certezas e convicções e pensar no contexto científico da
pesquisa. As observações foram realizadas com a turma de 5º ano.
Inicialmente, faço menção a autores que poderão nos auxiliar nessa
difícil tarefa.
Fiorentini, afirma que, nas concepções classistas ditadas pelo
positivismo, o aprendiz, na visão empirista de Lock, era visto como algo
semelhante a uma “tábua rasa”, onde seriam depositados os conteúdos pelo
mestre (1995, p.10).
No entanto, Fiorentini destaca que, o modo de ver o ensino da
matemática acontece de três formas:
a) rigor e formalização dos conteúdos aplicados na sala de aula;
b) conteúdos aplicados de forma a prevalecer a aprovação dos alunos;
c) a matemática usada para a formação cidadã, ligada ao contexto social
e valorizando o conhecimento do aluno.
Em sua terceira visão, o autor destaca que as experiências científicas
levadas a cabo por Piaget, sobre a construção do saber nas fases de
desenvolvimento do indivíduo, fundamentaram a universalidade desse
processo, levado ao campo educacional pelas experiências pedagógicas de
Paulo Freire.
Neste sentido, Oliveira (2010) nos recorda as experiências de Vygotsky,
na Rússia, levando a concepção vivenciada de aprendizagem, baseada (e
respeitando) o universo e a realidade vivida pelo aluno.
Sendo assim, recorro também a referências de autores destacados por
Fiorentini (1995), mostrando que suas experiências sociais convergem para
uma linha semelhante de visão pedagógica, que se convencionou chamar, no
fim do século passado, de Sócio Construtivismo, ou ainda, Sócioetnocultural,
que considera o aprendiz como um sujeito do processo de aprendizagem,
mudando essencialmente o papel do educador.
Embora o construtivismo venha ganhando força, nos modelos
pedagógicos das escolas indígenas de Roraima, nesta análise, penso ser
conveniente destacar a tendência Sócioetnocultural.
94
Esta tendência aparece no Brasil nos anos 70, com a visão de que a
Educação Matemática poderia dar atenção especial aos aspectos
socioculturais das crianças economicamente menos favorecidas, como
crianças indígenas, afrodescendentes etc. (FIORENTINI, 1995, p. 24).
Nessa abordagem, aparece o historiador e educador matemático
Ubiratan D´Ambrosio com sua visão holística e, etimologicamente, com as
palavras gregas: Etno, máthéma - matemá e techné – tica; dando vida à
Etnomatemática.
Para D´Ambrosio:
O que chamamos de matemática é uma resposta à busca de sobrevivência e de transcendência, acumulada e transmitida ao longo de gerações, desde a pré- historia. (...) Em suma, todos os fazeres e saberes são respostas do homem a informações recebidas da realidade, que é o complexo de tudo que é material, ampliado por experiências vividas e acumuladas, na forma de memórias (2008, pg. 22).
Diante do exposto, podemos passar para a experiência pedagógica de
Alzineide. De posse do plano de aula da professora pesquisada, podemos
perceber a proximidade da linha sócioetnocultural. Com sua prática
pedagógica, a mesma tenta contextualizar os conhecimentos matemáticos
formais, com aspectos sociais, ou seja, a prática do dia a dia. Vejamos o plano
abaixo.
PLANO DE MATEMÁTICA BIMESTRAL DE 5º ANO
OBJETIVO GERAL
O ensino da disciplina de matemática nas escolas indígenas tem por objetivo o
aprendizado do aluno na utilização de conceitos matemáticos na formulação de hipóteses
sobre a solução de uma determinada situação problema comum ao seu cotidiano, sendo ele de
ordem pessoal ou social, mas que leve o aluno a refletir sobre a sua própria realidade atuando
de forma direta na melhoria de sua comunidade utilizando de uma inter-relação entre a
matemática e os recursos tecnológicos em função de promover soluções para os problemas do
dia a dia do aluno.
Vale ainda ressaltar os seguintes pontos:
1)Identificar os conhecimentos matemáticos de sua cultura bem como meios para
compreender, resolver situações a sua volta valendo-se das ferramentas que a matemática
oferece.
2)Saber transmitir ideias matemáticas fazendo uso da linguagem oral (em língua portuguesa e
indígena) e saber relacionar enunciados com representações matemáticas.
95
5)Estimular o estabelecimento de conexões entre temas matemáticos e temas de outras áreas
como história, geografia, linguística e ciências, entre outros.
6)Sentir-se seguro da própria capacidade de construir conhecimentos matemáticos,
desenvolvendo a auto estima e a perseverança na busca de soluções;
7)Interagir com seus pares de forma cooperativa, trabalhando coletivamente em busca de
soluções para problemas propostos identificando aspecto consensuais ou não na discussão de
um assunto, respeitando o modo de pensar dos colegas e aprendendo com eles.
Metodologia
A metodologia aplicada ao ensino da Matemática procura resposta que norteie a
aprendizagem, por exemplo, como surgiu a matemática, de que maneira ela se apresenta no
cotidiano e em que ela pode nos ajudar.
É mostrado também aos alunos que a matemática se conecta com outras áreas de
conhecimentos científicos e tecnológicos. E o papel dessa ciência nas transformações sociais
em momentos importantes da história.
Trabalhar, por meio de situações-problema, que envolvam questões familiares e
comunitárias que façam o aluno pensar, analisar, julgar e decidir-se pela melhor solução;
Mostrar que o conteúdo tem significado, que é importante para a vida em comunidade e
sociedade em geral ou que ajudará a entender melhor o mundo em que vive;
O trabalho deve se desenvolver de forma contextualizada e interdisciplinar, isto significa
aproveitar ao máximo as relações entre os conteúdos e o contexto pessoas e
comunitário/social do aluno, só assim o aluno vê significado no que lhe proposto para estudar.
Pesquisa
Pesquisas e coleta de dados para construir tabelas e gráficos sobre os diversos
aspectos da comunidade;
Jogos
Construção de jogos matemáticos envolvendo as quatro operações e outros conteúdos;
Atividades variadas Individuais e coletivas
Execução de trabalhos em grupos para estimular a cooperação atendendo em grupos
diferentes, as necessidades e aprendizagens dos alunos;
Atividades, exercícios e procedimentos didáticos com o mesmo conteúdo para facilitar a
compreensão, a aprendizagem e a fixação do mesmo;
Atividade de compra e venda;
Confecção de cartazes;
Trabalhar as notas do aluno, idade, frequência, aprovação, reprovação e etc.em formas
de gráficos, tabelas e porcentagens, etc.;
Construção de maquetes: escola, comunidade, roça, horta, etc. Fazendo a escala de
medidas.
Converter a medida padrão em medidas da comunidade ex.(lata, litro de farinha em quilo).
Interpretar gráficos de jornais e revistas.
Construir gráficos a partir dos problemas (sistemas).
96
Utilizar extrato bancário para calcular juros de empréstimos: compras a prazo, tendo em
vista poder escolher em comprar à vista ou a prazo por exemplo.
Avaliação
A avaliação assume um caráter de investigação, de questionamento, de
problematização, exigindo uma reflexão constante das ações do professor e do caminho
percorrido pelo aluno em seu processo e aprendizagem.
A avaliação deve fornecer pistas para que o professor investigue e compreenda as
dificuldades dos alunos, analise erros e dúvidas como elementos primordiais na reorientação
de suas estratégias; enfim, reconheça que as dúvidas e incertezas presentes nos
questionamentos e respostas dos alunos favorecem a construção de novas relações entre as
ideias trabalhadas.
A avaliação da aprendizagem de Matemática deve estar em consonância com os
aspectos do ensino e aprendizagem. Isso significa que, por meio da avaliação, devemos
observar, por exemplo, se os alunos: demonstram autonomia e criatividade na busca de
estratégias de solução para os problemas que investigam e comunicam, oralmente e por
escrito, suas descobertas; analisam e relacionam conceitos em Matemática: relacionam a
Matemática com outros campos de conhecimento.
Relação de conteúdos temáticos
Números e Operações
Leitura, escrita, comparação e ordenação de números naturais, inteiros e racionais.
Análise, interpretação e resolução de situações-problema, envolvendo o significado das
operações com números naturais e inteiros.
Realização das operações por meio de estratégias pessoais e do uso da técnica
operatória convencional.
Potenciação e radiciação de números naturais.
Grandezas e Medidas
Calculo de área e perímetro de figuras planas desenhadas em malhas quadriculadas
Medidas de tempo
Espaço e forma
Figuras planas e sólidas geométricos.
Composição e decomposição de figuras planas (triângulo retângulo e paralelogramo).
Referências bibliográficas
97
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: matemática.
Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade. Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Brasília: 2005.
DANTE, Luiz Roberto. Didática da resolução de problemas de Matemática. 12ª. Ed. São
Paulo: Ática, 2007.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1990.
OREY, Daniel C. ROSA, Milton. Etnomatemática como ação pedagógica. Editor geral,
Bernadete Barbosa Morey. Natal, RN, 2004.
SILVA, Aracy Lopes da. e GRUPIONI, Luís Donizete. A temática indígena da escola: novos
subsídios para professores do 1° e 2° graus. Brasília, MESC/MARI/UNESCO, 1995.
Quadro 02: Plano de Alzineide.
Fonte: Alzineide- 2010
O plano exposto nos leva a relevantes reflexões. Primeiro, nos mostra
um panorama básico de como os professores procuram à sua maneira
relacionar conteúdos formais à realidade da comunidade escolar. No caso de
Alzineide, procura-se diversificar as bibliografias como forma de melhorar sua
metodologia de ensino, por exemplo. Cito Dante, que problematiza os conteúdos
deixando-os mais dinâmico e D’Ambrosio, com uma visão transdisciplinar da
realidade matemática, entre outros nos quais a professora se apoia para
dinamizar sua prática pedagógica.
Segundo, nos alerta para a importância do planejamento. O plano é
imprescindível para evitar o improviso e o desperdício de tempo. É a forma de
aproveitar o máximo do tempo disponível para o desenvolvimento das aulas. Ao
planejar, o professor mostra que tem compromisso com seu aluno e
principalmente evita a aula monótona, sem criatividade. Por outro lado, o
professor deve lembrar que o aluno é mais importante do que o planejamento;
ao planejar ele deve priorizar as necessidades reais do aluno. Portanto, o
conhecimento social/comunitário do aluno e principalmente o contexto
matemático são fundamentais para esta tarefa.
Diante das observações do planejamento, proporcionei um momento de
diálogo com Alzineide. Na ocasião fiz o seguinte questionamento: Como você
vê a sua prática pedagógica, e de outros professores quanto ao ensino da
disciplina Matemática na escola? A essa questão, Alzineide respondeu:
Cada professor usa uma metodologia diferente, seja ela tradicional ou interdisciplinar, baseado nesse fato, o ensino de matemática na
98
escola Marechal Deodoro da Fonseca, se desenvolve no cotidiano dos alunos, por exemplo: ao ser realizado um evento na comunidade, os professores que ensinam a matemática utilizam como avaliação um relatório de cada aluno envolvendo a matemática. Mas nem sempre se consegue trabalhar os conceitos matemáticos contextualizados com a prática, tendo que usar o modelo tradicional. Tenho me esforçado em repassar aos alunos a matemática de forma adequada, que seja voltada pro seu dia a dia no primeiro momento, depois os envolvo com a matemática escolar universal (2010).
Por essa reflexão, podemos perceber que a Educação Matemática na
escola pesquisada vem tentando quebrar o modelo tradicional disciplinar
eurocêntrico, a realidade do aluno está, de certa forma, fazendo uma conexão
entre a teoria e a prática.
No entanto, isso não é suficiente para afirmar o tipo de matemática
que vem sendo transmitida na escola em foco: Matemática eurocêntrica?
Matemática cultural? Ambas?
Para termos uma ideia conclusiva a esse respeito, observei a
aplicação dos conceitos na prática de Alzineide. Essa ação pedagógica foi
desenvolvida de forma interdisciplinar: Geografia, História e Matemática. A
professora ministrante das disciplinas Geografia e História propôs aos alunos
um trabalho de campo. O objetivo de Geicy (professora de História e
Geografia) era mostrar os desenhos deixados em rochas pelos ancestrais
como memória viva, que esses podem contar como viveram e como
pensavam nossos antepassados. Um estudo mais profundo nesse sentido
seria relevante. Muitos dos desenhos descritos no Capítulo II são encontrados
facilmente nas montanhas e cavernas que compõe a bela paisagem desta
comunidade. Por falta de nitidez, muitas figuras não foram utilizadas, ver
figura 14.
Geicy levou os alunos à serra do Muçum29. O resultado deu origem a
um mini relatório elaborado pelos alunos. Apesar de ter sido uma atividade
muito interessante no âmbito da História, procurei focalizar minha análise em
conexão com a Matemática. A seguir exponho a atividade realizada por
Alzineide.
29
Cientificamente conhecido por peixe teósteo, simbrânquio (CHIARADIA, 2008); na cultura
Macuxi conhecido por peixe cobra, nesse caso guardião do lugar.
99
Alzineide utilizou o contexto da atividade de Geicy para executar sua
atividade na aula de matemática. Antes de executar o planejamento, nos
explicou o que seria feito, mostrando um plano semanal. Vejamos:
Planejamento semanal
Tema: conhecendo o contexto histórico-geográfico da comunidade Canavial e sua aplicação na
Matemática.
Objetivo: valorizar a memória de nossos ancestrais apontando as diferenças entre as variadas
formas de medidas que temos e como são usadas no nosso dia a dia.
Conteúdos a ser trabalhado: Grandezas e Medidas: Cálculo de área e perímetro de figuras
planas.
Metodologia:
O mundo está em constante mudança, dado o grande e rápido desenvolvimento da tecnologia.
Por isso, a aula se dará da seguinte forma:
Faremos uma pesquisa na comunidade para descobrir os tipos de medidas que são utilizadas
com, mas frequência;
Escrever e desenhar os tipos de medidas encontradas dentro na comunidade;
Pesquisar nos livros didáticos os tipos de medidas e fazer a comparação com a prática no seu
quotidiano.
Recursos:
Materiais didáticos, pais de família, e os próprios alunos.
Avaliação:
Ela se dará durante toda a realização das atividades.
Participação, comportamento e atividades feitas. l
Quadro 03: Plano semanal Fonte: Alzineide- 2010
O plano semanal nos revela o contexto interdisciplinar, momento
importante, onde os alunos estão inseridos diretamente na atividade. A
atividade de pesquisa leva os alunos a certa autonomia, ou seja, os alunos não
ficam esperando o conhecimento que a professora traz para a sala de aula, vão
em busca do conhecimento.
No primeiro momento, foi realizada uma excursão nas mediações da
comunidade, para que os alunos pudessem identificar a distância da
comunidade até o local da excursão. Assim, a professora pôde perceber se o
aluno tinha a noção de centímetros, metros ou quilómetros.
O local escolhido foi a serra do Muçum, próxima à comunidade. No dia
anterior, os responsáveis pela excussão avisaram aos pais e alunos que a
100
saída seria ao amanhecer. A caminhada dura, em média, três horas e vinte
minutos, caminham parte na área de lavrado e parte subindo a serra.
A atividade que o aluno deveria realizar após a excursão, é a produção
de um mini relatório com anotações pertinentes ao conteúdo proposto. Por
exemplo, o tempo de caminhada, a noção de distância e comentários à sua
maneira sobre a experiência da viagem.
Figura 13: alunos em excursão, pesquisa de campo. Fonte: Geicy-2010
Quando a comissão chega finalmente ao local desejado, no alto da
montanha, analisam as figuras desenhadas nas pedras. Segundo os mais
idosos, são grafismos macuxi, desenhos de animais e plantas deixados há
milhões de anos por Insikiran e Anikê, os ancestrais que caminhavam por toda
a região, como comentado no capítulo II e mostrado a seguir.
101
Figura 14: jabuti, flores, macaco.
Fonte: Geicy- 2010
Colocando em prática o planejamento
A volta da excursão foi o momento de debate, a professora fez perguntas aos alunos
para perceber se eles tiveram a noção da distância entre a escola e o local final da excursão.
As respostas foram divergentes. Por exemplo, uns disseram que deveria ser 5 km, 7
km, 9 km, 10 km e etc. Ao ser questionado, um dos alunos disse que deveria ser 10 km, porque
ele comparou o tempo que levou para chegar a ao topo da serra (3h e 20min), com o tempo de
viagem que faz de sua casa até a comunidade próxima, com a mesma distância.
Porém, um dos alunos não concordou. Em sua opinião, a viagem durou mais tempo
porque era “subindo a serra” que é bem mais cansativo e lento. Ou seja, a distância, na visão
do aluno, não pode ser comparada às horas, pois, se fosse em terreno plano não levariam três
horas.
Dessa forma, o aluno que respondeu 9 km acertou. Segundo a professora, a distância
foi medida anteriormente pelos moradores. A professora perguntou a esse aluno, de que forma
ele havia descoberto, o aluno respondeu que a distância que ele andou, era semelhante ao
local da fonte de água que abastece a comunidade. A distância foi medida quando fizeram a
encanação de água, a fonte d´água é localizada em cima da serra denominada Cascavel,
próxima ao local da excursão, sendo assim, o aluno inferiu que seria a mesma distância.
A professora explanou o conteúdo proposto anteriormente. Aqui ela utiliza os
instrumentos de medidas como, o metro, a régua etc.
Quadro 04: Mini relatório. Fonte: Alzineide-2010
Alzineide procura envolver os alunos num debate interessante
promovendo uma conexão entre o raciocínio lógico e a realidade, incentivando-
102
os na busca de suas próprias conclusões a respeito dos conteúdos
trabalhados. Outra importante ação pedagógica de Alzineide é mostrar aos
alunos que as situações do dia a dia são importantes para a conexão com os
conteúdos estudados na escola. Para fixar melhor as atividades realizadas
anteriormente, Alzineide propõe uma atividade de pesquisa para seus alunos.
Tomei para reflexão apenas a atividade de um aluno, do qual não fui
autorizada a revelar o nome civil. Portanto, o identifiquei por um nome
indígena, Kaikusi (onça).
Atividade proposta:
1. Pesquise com seus familiares situações de vida concretas nas quais
apareçam os usos das grandezas e medidas.
Neste caso, os alunos tiveram uma semana para fazer a pesquisa com
seus familiares.
Inúmeros exemplos surgiram: desenhos e situações vividas pelas
famílias foram descritos. Porém, julguei conveniente observar apenas o
trabalho do aluno denominado Kaikusi.
Veja o que o pai desse aluno30 falou sobre as medidas,
Existem muitas maneiras de medir na comunidade. Exemplo: braças, passos, palmos, polegadas. A braça, utilizamos mais para medir a linha de roça. Pega uma vara e medi com os braços abertos. Não tem uma medida igual para todos, vai depender da altura da pessoa, se é ela é baixa, média ou alta (KAIKAN, 2010).
Na comunidade Canavial, as medidas citadas acima ainda são
prioritárias nas atividades dos pais. A braça, por exemplo, é constantemente
usada para medir o terreno das plantações. Os anciões supõem que meia
braça corresponde a um metro, uma braça a dois metros e 25 braças
correspondem a uma linha de roça.
Essas medidas são indiscutíveis na hora de se negociar. Por exemplo,
na hora em que a família decide vender sua roça, ela diz quantas linhas a roça
tem, para que o comprador decida se pode comprar ou não. Geralmente,
acontece a troca de serviço: a família que se propõe a negociar fica
responsável por colher ou produzir o produto disponível. Ao terminar, o
30
Originalmente o nome de identificação macuxi está relacionado com elementos da natureza
ou conforme sua característica (ave, animal, planta, magro, feio etc.). No caso do pai citado o identifico pelo nome indígena ( Kaikan- tatu grande).
103
comprador é obrigado repassar metade, de todo o produto colhido ou
produzido, para o proprietário.
O importante nesta atividade foi promover o diálogo entre a família e a
escola, os pais reforçam a importância de trabalhar com a natureza, o tempo
certo de plantar e colher, o local apropriado para se produzir os alimentos.
Esse é o conhecimento transcultural repassado pelos anciões. A figura
abaixo demonstra uma das formas de medir a braça.
Figura 15: medida de braça. Fonte: arquivo pessoal da autora- 2010
Voltemos à atividade proposta por Alzineide. Vejamos a seguinte
situação descrita por Kaikusi:
Exemplo 1:
Meu pai colocou uma roça de milho, maniva e feijão. A medida da roça
é de 06 linhas, ou seja, 50 braças de largura e 100 braças de comprimento. O
tempo gasto para plantar a roça é de dois meses: um mês para limpar o local,
um mês para preparar a terra e plantar. A braça do meu pai é próxima a dois
metros. A cada 25 braças correspondem a uma linha.
Exemplo 2:
Desta roça, foram colhidas 40 sacas de milho com 80 litros; 15 sacas
de feijão com 60 quilos. E, por fim, foram feitas 50 sacas de farinha com 80
104
litros cada. A farinha, vendida na comunidade por litros, é R$ 3,00 cada, a lata
com 20 litros custa R$ 50,00 e a saca sai por R$ 200,00.
Além do processo de troca, comum na convivência comunitária; existem
as exceções comerciais. A venda, neste caso, é a maneira que a família
encontra para comprar os produtos básicos (sabão, açúcar, arroz, óleo, fósforo
entre outros).
É importante ficar claro que as medidas descritas por Kaikan não
podem ser comparadas exatamente com a medida oficial (o metro), pois
segundo os anciões, essas medidas são próprias de sua tradição. Se
comparadas com o metro, podem não coincidir com medidas exatas.
Os alunos perceberam essa diferença, quando, na tentativa de
contextualizá-las com m2 houve algumas falhas nas medidas. Utilizando o
metro, tiraram algumas medidas de braça. A braça de Kaikusi, por exemplo,
mediu 1, 86 cm. As outras medidas foram bem parecidas. Portanto, não se
pode dizer que uma braça tenha medidas exatas.
Figura 16: descrição da situação problema. Fonte: arquivo pessoal da autora- 2010
105
No primeiro exemplo, o pai considerou que a área total de sua roça é
de 150 braças sendo que cada linha são 25 braças; assim, ele conclui que sua
roça possui 06 linhas.
Em resumo, percebemos que a forma de medir dos indígenas não
invalida a medida formal, ou seja, se analisarmos o pensamento do autor ao
considerar a área de sua roça em 150 braças, não significa que ele esteja
errado, pois é essa a forma com que as famílias se comunicam e entendem, já
que as linhas de roças nem sempre estarão organizadas em áreas quadradas.
Os alunos, por outro lado, apesar de ouvirem muito sobre linha de roça,
braça etc., pouco compreendiam, na realidade, o processo prático.
A forma de como foi trabalhada a relação escola e contexto cultural é o
que Fiorentini (1995) definiu como sócioetnocultural. Para a professora
pesquisada:
O desenvolvimento das atividades pelos alunos com a ajuda da família foi de fundamental importância, pois a prática do dia a dia na comunidade no que se trata da matemática é comum. As operações são feitas, na maioria das vezes, sem uso de instrumentos como o metro, régua etc. Quando a prática é diferente, os alunos aprendem com mais facilidade, porque eles sabem o que e para que estão aprendendo (2011).
Nesse sentido, é importante destacar que o interesse desse trabalho
não é o ensino de conceitos, algoritmos ou fórmulas matemáticas, pois os livros
didáticos já o fazem muito bem. O foco maior está em levar reflexão aos
educadores indígenas quanto à sua prática pedagógica.
Cabe agora o comentário de (NUNES et al., 2009, p.149), “ os alunos
devem ter a oportunidade de resolver o problema individualmente antes de
discutir sua resolução de problema”.
O exemplo mostrado é pertinente por considerarmos que não é
impossível promover um ensino interdisciplinar, multidisciplinar ou
transdisciplinar nas escolas indígenas de Roraima. Por outro lado, não estou
afirmando que os métodos utilizados aqui, descartarão o ensino tradicional “do
quadro negro, giz e livro didático”, ou que eu queira que os alunos tenham uma
estagnação e não transcendam.
Nosso interesse é que a educação escolar promova um ensino de
qualidade, que os valores culturais sejam inclusos no contexto escolar, onde o
aluno promova reflexão, questione, procure soluções para seus problemas e
106
sua comunidade, utilizando instrumentos tecnológicos disponíveis e úteis para
sua caminhada futura.
Recorro a Dante (2007, p. 12):
As mudanças sociais e o aprimoramento cada vez maior e mais rápido da tecnologia impedem que se faça uma previsão exata de quais habilidades, conceitos e algoritmos matemáticos seriam úteis hoje para preparar um aluno para sua vida futura. Ensinar apenas conceitos algoritmos que atualmente são relevantes parece não ser o caminho, pois eles poderão torna-se obsoletos daqui a quinze ou vinte anos, quando a criança de hoje estará no auge de sua vida produtiva. Assim, um caminho bastante razoável é preparar o aluno para lidar com situações novas, quaisquer que sejam elas. E, para isso, é fundamental desenvolver nele iniciativa, espírito explorador, criatividade e independência através da resolução de problemas.
Na opinião de Alzineide:
A matemática deve ser utilizada na convivência do aluno no seu cotidiano, no resgate da cultura, na revitalização da língua materna etc. Na forma de trabalho comunitário, na pescaria, na roça, pesquisa de campo, nas construções de casas, barracões. Conhecer as regras da matemática, tanto na teoria como na prática é importante, para estar preparado para o mercado de trabalho, e proporcionar melhorias socioeconômicas para sua própria comunidade e para o seu povo. O aluno deve ter uma formação de hábitos de prática reflexiva (2011).
Alzineide reforça que tenta praticar uma metodologia diferente, porém
ainda existem muitas dificuldades em sair do contexto disciplinar de ministrar
conteúdos descontextualizados. Esse fator, segundo ela, é decorrente da
formação dos professores que continua sendo disciplinar. Apesar do curso de
formação intercultural superior indígena ter por objetivo promover uma prática
pedagógica intercultural, ainda não atingiu de fato sua meta. Diante disso,
podemos perceber que a Matemática utilizada nas escolas indígenas de
Roraima, em sua maioria, ainda é eurocêntrica. Os cálculos são isolados, sem
contexto. Aprofundarei a discussão a esse respeito futuramente.
Por outro lado, penso ser necessária, paralelamente à formação dos
professores, uma discussão crítica dos currículos que hoje se apresentam.
Para concluir essa primeira análise, volto a mencionar a tendência
sócioetnocultural. Esta, no “âmbito da Educação Matemática, tem se apoiado
na Etnomatemática” (FIORENTINI, 1995, p.25).
A Etnomatemática veio quebrar o paradigma de que a matemática é
única, universal. Portanto, vejo na Etnomatemática o ponto de partida para a
107
construção de um currículo próprio, para o espaço de ensino aprendizagem, e
mais importante é que esse currículo seja definido pelos professores indígenas.
Porém, é preciso ter cuidado para não perder o foco, a motivação; o raciocínio
dos alunos deve, sempre, levá-los ao aprendizado. Estou alertando para o fato
de que muitos professores utilizam práticas que deixam os alunos sem direção,
transformam a aula em brincadeiras, perdem tempo, chegando ao final sem
nenhuma conclusão dos conteúdos trabalhados, sem atingir sua meta. É
preciso sonhar, planejar uma aula fantástica, porém sem perder o intuito
principal, que é o aluno e sua realidade.
Concluo esta parte da análise com a fala de Fiorentini:
O aluno terá uma aprendizagem mais significativa e efetiva da matemática se esta estiver relacionada ao seu cotidiano e à sua cultura. Ou seja, o processo de aprendizagem dar-se-ia a partir da compreensão/ sistematização do modo de pensar e de saber do aluno (FIORENTINI, 1995, p.25).
3.4 Comunidades indígenas construindo práticas pedagógicas: a
experiência coletiva.
Figura 17: espaço de aprendizagem. Fonte: OPIRR - 2011
A escola e os professores não formam apenas espíritos, mas identidades, ligadas a origens, culturas, crenças e valores coletivos (PERRENOUD, 2005, p.134).
108
É, portanto, com o espírito de coletividade, que venho descrever um
segundo momento de ações pedagógicas promovido nas escolas indígenas.
Estas ações são direcionadas por um projeto de acompanhamento
administrado pelos gestores pedagógicos da Divisão de Educação Indígena -
DIEI.
Dentre outros trabalhos como esse, achei conveniente participar de
duas oficinas, para analisar as questões de pesquisa que direcionam este
trabalho. O encontro foi escolhido porque as escolas participantes se localizam
em região de difícil acesso, por isso ficam isentos de acompanhamento
pedagógico.
Esta oficina representa uma ação coletiva de coordenadores
pedagógicos da DIEI, professores, alunos, pais e a OPIRR.
Neste caso específico, a oficina aconteceu na comunidade Waitá- Pacú,
uma das mais distantes da capital. No local funciona a Escola Estadual Índio
Luís Trajano, com o nível fundamental de séries iniciais.
Reuniram-se os professores das comunidades adjacentes, Santa Maria
de Normandia e Travessão, ambas com o Ensino Fundamental.
Em época chuvosa, o transporte se dá apenas por via área. Não
existem estradas, somente trilhas feitas pelos próprios habitantes da região,
por essa razão, as três escolas reúnem-se para uma ação coletiva, construindo
modelos pedagógicos mais próximos de sua realidade.
As três escolas participantes foram: Índio Luís Trajano, Santa Maria de
Normandia e Índio Bernaldo, reunindo 10 professores, todas com as mesmas
dificuldades, tanto de acesso à capital como carência de acompanhamento
pedagógico.
A comunidade anfitriã (Waitá) apoiou o evento com cessão de espaço e
alimentação. Os membros da comunidade fizeram questão de participar do
evento, do menor ao mais idoso.
Destaco que o desenvolvimento das ações no decorrer da oficina é um
processo de construção participativa com base na realidade histórica dos
povos indígenas destas aldeias, considerando o contexto de vida, o modelo
próprio de ensino aprendizagem, valorizando a língua, costumes e tradições.
109
Sob o tema: Construindo práticas pedagógicas, uma experiência
coletiva; e com o subtema Meio ambiente e o ensino da matemática
desenvolveu-se a oficina.
Os professores são responsáveis pela ação pedagógica participativa no
intuito de elaborar seus projetos educacionais, projeto político pedagógico e o
calendário escolar junto às comunidades.
Objetivos gerais da oficina:
Desenvolver capacidades do professor macuxi para a gestão da escola
no contexto atual, marcado pela crescente e irreversível relação com
outras culturas e sociedades, bem como pela condição de minoria étnica
num país pluricultural.
Oferecer condições teóricas, metodológicas e práticas para que os
professores macuxi, juntamente com suas comunidades, possam torna-
se efetivos na construção dos projetos políticos - pedagógicos de suas
escolas.
Propiciar aos professores conhecimentos de planejamento e gestão
escolar para que possam apropriar-se do processo educacional e levá-lo
adiante de forma autônoma;
Objetivo específico:
Fomentar a reflexão sobre o ensino, tendo como exemplo a
matemática, e a importância de material didático apropriado.
Dentro da proposta de acompanhamento pedagógico da Divisão de
Educação Indígena, destacam-se dois fundamentos:
a) as oficinas de capacitação possuem o papel especial de construir
conceitos necessários à formação profissional, tendo sempre uma relação
direta com o que acontece nas outras modalidades de ensino, tanto nos
intercâmbios como no acompanhamento pedagógico;
b) A estratégia de ensino/aprendizado para as áreas ciências da
natureza e outros conhecimentos científicos, alimenta-se com referências em
práticas interculturais, e permite serem reelaboradas durante o ano letivo, a
partir de novos elementos, de sistematizações, de construção de conceitos.
Essas oficinas não podem ser tratadas como ações isoladas do resto
dos planejamentos pedagógicos que as alimentam com práticas, experiências,
110
elementos e referências que permitem ao professor refletir e reelaborar os
conceitos didáticos.
É importante destacar que os eventos realizados no contexto regional,
como oficinas e outros trabalhos pedagógicos, passam por avaliação prévia
das lideranças. Primeiramente, faz-se um diagnóstico das escolas num
conjunto de reuniões e assembleias regionais. Estas ajudam os responsáveis
pela ação a evidenciar as dificuldades dos professores em relação a vários
fatores do sistema de ensino, entre as quais se destaca a construção das
propostas pedagógicas das escolas e o currículo escolar.
Diante desse contexto, a escolha do tema para o ensino de matemática
adequou-se à proposta de trabalho desta pesquisa.
A sistematização dos conhecimentos específicos da disciplina, segundo
a progressão da aprendizagem, sendo a matemática e alfabetização, os
exemplos mais praticados pelos professores no decorrer dos trabalhos. A
oficina serviu para apontar caminhos de organização do currículo de
matemática.
A oficina ocorreu em 05 dias, partindo de uma realidade vivenciada
pelos professores macuxi, divididos em grupos de trabalhos com anuência dos
participantes. Decidiram por três grupos de trabalhos: de alunos, de
professores, de pais e anciões da comunidade.
Tendo o sócio construtivismo como eixo teórico-metodológico do curso,
partimos do cotidiano da vida escolar, das experiências vividas em diferentes
espaços e momentos e do acúmulo de discussões com a comunidade. Com
diferentes acúmulos de experiências, todos, indistintamente, possuem saberes
que são fundamentais para a construção de uma educação macuxi.
Freire constata que:
não é possível construir uma Educação libertadora reproduzindo uma relação de ensino e aprendizagem calcada na educação bancária, isto é, quem ensina é detentor do saber e quem aprende, por outro lado, desprovido de saber, torna-se apenas um receptor dos conhecimentos repassados. Construção do conhecimento dentro de um processo dialógico em que todas as vozes têm eco e valor, participam, constroem juntas. É também, partir daquilo que faz sentido, que tem significado para o grupo, para o indivíduo, para a comunidade, num movimento constante e inacabado (2005 p. 66-67).
As escolhas metodológicas, intrinsecamente relacionadas com o
referencial teórico, foram feitas de forma articulada ao objetivo do Curso.
111
Perrenoud (2002), por exemplo, se preocupa com os dispositivos de
diferenciação, e ao propor que o diferencial não deve ser o tempo, inclui como
demanda que o ensino não deve ser tão calcado em conteúdos, sendo
necessário enxugar cada disciplina de seus conteúdos, para abrir espaços para
competências, sabendo-se da capacidade da pessoa de pesquisar o que lhe
falta.
Assim, para o autor, os caminhos de aprendizagem é que devem ser
diferentes. Outra posição de Perrenoud, confirmando o trabalho de outros
pensadores da educação, é que, desde o início da prática da escrita, deve-se
desenvolver mais o pensamento reflexivo, dissertativo, e a argumentação
(PERRENOUD, 2001).
Durante a oficina, algumas atividades foram pensadas para que se
organizasse essa forma de pensamento, para que se percebesse a relação
entre as partes do curso, de que não se tratavam de conteúdos estanques,
mas de ações encadeadas para produzir reflexões sobre alguns aspectos da
escola.
Os critérios de escolhas foram justificados devido à organização e
construção dos trabalhos. Os professores e pais elaboram planejamentos
contextualizados, baseados em histórias reais vividas pelos membros
participantes.
Os alunos elaboraram histórias, desenhos e mapas conforme a
realidade de suas comunidades, os pais construíram histórias, e por fim, os
anciões construíram e traduziram o histórico das comunidades em Macuxi e
Português.
As práticas dos trabalhos durante a oficina foram de construção e
sistematização dos conceitos matemáticos em consonância com a convivência
cultural e ambiental.
Inicialmente, procurei identificar as principais dificuldades dos
professores em suas práticas de sala de aula, ouvir relatos e desabafos dos
professores, pais e alunos. As histórias são bem parecidas, dificuldades com
alunos que não conseguem assimilar conteúdos, a falta de materiais didáticos
para auxiliá-los, e, principalmente, métodos de ensino que proporcionem aos
alunos o prazer de desenvolver suas capacidades de aprendizagem.
112
Diante do exposto, o Programa Etnomatemática, sendo um construtor
de ideias matemáticas, foi utilizado para pensar o currículo e o ensino-
aprendizagem nas escolas envolvidas.
3.5 O contexto sócio educacional da criança macuxi.
Na busca de transcendência o homem desenvolve um conjunto de artes ou técnicas, que são acumuladas, ao longo da história para explicar fatos, fenômenos, conhecer e lidar com o seu determinado ambiente natural ou cultural (D´AMBROSIO, 2008, p. 26).
Nesta perspectiva, procurei identificar a teoria D´Ambrosiana:
a) ETNO: o meio ambiente natural, social, etnopolítico e imaginário;
b) MÁTHEMA: o processo de entender, de explicar, de aprender e ensinar, e
de manejar e lidar com;
c) TECHNÉ (TICA): para identificar exprimir as técnicas e artes. Para entender
melhor como acontece essa dinâmica de ensino sociocultural, relato algumas
situações pedagógicas ocorridas durante a oficina.
Contando com a contribuição do pensamento Vygotskyano, tento
mostrar como esse aprendizado acontece naquele contexto social. A criança
internaliza os valores, o significado dos mitos, das lendas, respeitando as
regras de contato com os símbolos, que a elas são repassados como proteção,
apoio e sustentação. Para D’Ambrosio (2012), nessa relação de contato, a
criança desenvolve a pulsão de sobrevivência e de transcendência e, uma vez
que ela (criança) transcende, desenvolve estratégias de observar, comparar,
classificar e ordenar, medir e quantificar, inferir. Assim, a criança desenvolve o
que Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal (ZDP)
(PALANGANA, 2001, p. 130).
Nesse sentido, podemos afirmar que a aprendizagem de tais
conceitos, que ocorrem na interação social da criança, possibilita o
desenvolvimento mental da mesma.
Para Vygotsky, a aprendizagem e o desenvolvimento são diferentes,
mas interdependentes, e, sendo interdependentes, um torna o outro possível.
Para ele, as competências linguísticas são o elo (interdependência) entre
aprendizagem e desenvolvimento mental.
113
Vygotsky defende que a aprendizagem está presente desde o início da
vida de cada ser humano; assim, toda situação de aprendizagem gera também
um processo histórico, sendo esse, essencial para o desenvolvimento mental.
Por sua vez, este desenvolvimento é composto de dois níveis: desenvolvimento
real ou efetivo e desenvolvimento potencial.
O primeiro nível é composto pelo conjunto de informações que a
criança tem em seu poder. Tais informações permitem à criança resolver
problemas sem a ajuda de alguém com maior maturidade. O segundo nível é
aquele que a criança ainda não conseguiu atingir, mas pode consegui-lo por
meio da interação e orientação de outras pessoas.
Nesse caso, o nível de desenvolvimento potencial é definido pelos
problemas que a criança pode conseguir resolver com a ajuda do outro. Daí
surge a ideia de zona de desenvolvimento proximal que é constituída por
aquelas funções que ainda não estão maduras, mas em processo de
maturação, isso significa que são habilidades que, na criança, ainda estão em
estágio embrionário e outra pessoa com maior conhecimento pode contribuir
para essa maturação.
Vygotsky acredita que:
a aprendizagem cria a zona de desenvolvimento proximal, ou seja, ela ativa processos de desenvolvimento que se tornam funcionais na medida em que a criança interage com pessoas em seu ambiente, internalizando valores, significados, regras; enfim, o conhecimento disponível em seu contexto social [...] (PALANGANA, 2001, pag. 130)
Diante disso, Vygotsky entende que há diferenças quanto à capacidade
de desenvolvimento potencial, porém essas diferenças ocorrem, em sua
grande parte, devido à qualidade do ambiente em que as crianças vivem. A
diversidade nas condições sociais promovem aprendizagens diversas, e estas,
por sua vez, ativam diferentes processos de desenvolvimento mental.
Da teoria de Vygotsky podemos concluir o seguinte:
a) Desenvolvimento e aprendizagem são dois processos distintos,
porém, interdependentes;
b) a aprendizagem torna o desenvolvimento possível e vice-versa;
c) as competências linguísticas são o elo de interdependência entre
aprendizagem e desenvolvimento;
d) o adulto ocupa lugar estratégico e importante nesse contexto.
114
A esse respeito, procurei entender com mais detalhes o processo de
interação das crianças indígenas com o contexto sociocultural das
comunidades em que estão inseridas. Tomo como exemplo a história da
fundação desta comunidade. Ao perguntar aos alunos se eles sabiam o
significado do nome (Waitá) um deles responde:
O vovô Luís Trajano chegou neste lugar por volta de 1940, ao sair para pescar ele viu um grande peixe, vovô flechou o peixe, mas não conseguiu segurar. O peixe era muito grande e tinha muita força, então vovô transformou o peixe em pedra-TÎ, até os dias de hoje, o nome do peixe era Pacú, na língua macuxi, Waitá, ele é o protetor daquele rio, por isso a comunidade ficou conhecida com esse nome (2010).
Com base na colocação do aluno, destaca-se a pedra-Tî, que se
tornou um símbolo espiritual, respeitado pelos moradores, que repassam a
história de geração em geração. Sendo assim, a criança, desde muito cedo,
internaliza esses valores culturais.
Olhando por outro ângulo, este símbolo, assim como outros existentes
nos arredores do lugar, serve também como objeto de localização, uma pedra,
uma serra, uma planta tem seus significados, serviam e servem de orientação.
Geralmente uma criança que mora na cidade se localiza por ruas,
avenidas, lojas, praças etc. Para os alunos do contexto indígena, a orientação,
obviamente, não é a mesma, porém, quando uma determinada pessoa envia
uma criança ou um jovem a outro local, ela recomenda “vai pelo caminho da
serra A, passa pela pedra B, mas não mexa com o “fulano de tal”. Isto significa
que a criança já domina a noção do tipo de significados que estes símbolos
culturais representam àquele lugar, o que também serve como estratégias de
localização e orientação.
É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que lhe fornece formas de perceber e organizar o real, as quais vão constituir os instrumentos psicológicos que fazem a mediação entre o indivíduo e o mundo (OLIVEIRA, 2010, p.38).
Com base nestas reflexões entendemos que a Etnomatemática está
presente em cada Etno. Nesse caso, no sócioetnocultural das crianças macuxi.
Quando o trabalho começa ficar cansativo, promovem-se momentos de
reflexão e socialização do grupo. Com a dinâmica denominada “teia de
aranha”, houve o momento de descontração. O destaque neste momento foi o
sentimento de união. “Construir uma educação escolar coletiva e de qualidade
115
é um desafio que se pretende vencer realizando atividades como esta”,
reflexão do grupo.
Figura 18: grupo de trabalho. Fonte: arquivo pessoal da autora - 2010
O segundo momento do trabalho foi dedicado às orientações. Neste
contexto recorro também à posição de Freire quando afirma “que a educação é
diretiva mesmo, ela é um partir de. O educador deve partir da concepção do
mundo que tenha o educando ou que tenha a massa popular” (1985, p. 11).
Focalizado neste “partir de” é que os participantes do curso
desenvolveram seus trabalhos. Partindo de sua própria realidade, contexto
cultural, crenças e tradições.
Utilizando algumas cartolinas, papel ofício, lápis de cor e pincéis,
construíram-se trabalhos artísticos primorosos.
Os alunos se empolgaram desenhando o mapa da comunidade com
ajuda das mães que ativamente participaram na construção dos desenhos,
orientando os filhos.
116
Figura 19: alunos construindo o croqui de sua comunidade. Fonte: arquivo pessoal da autora -2010
A satisfação dos mais idosos ao descrever a história de sua
comunidade é notável em cada rosto. Aqueles que não dominam a escrita
recordam os detalhes da história, relatando-os aos componentes do grupo.
Figura 20: anciões construindo suas histórias. Fonte: arquivo pessoal da autora- 2010
A coletividade também acontece no momento da refeição. Os
participantes desenvolvem o espírito fraternal, um sentimento que os macuxi
consideram indispensável no convívio social. Cada pai de família contribuiu
com o que pôde.
117
Abro parêntese para relatar um fato interessante. Um dos pais
necessitou sair para uma caçada. Ele contou que o local da espera é
estratégico, sua arma nesta caçada foi arco e flecha. Essa técnica de abater a
presa é pouco utilizada nos dias atuais, por ter sido substituída por armas de
fogo. Porém o pai justifica o uso da flecha:
A caça é uma necessidade, isso significa que devemos matar apenas aquela caça. Se eu uso a arma de fogo, assusta os outros animais que estão nos arredores do local, com isso as caças vão procurar lugares cada vez mais distantes. Fico à espera da presa, sentado debaixo do pé de taxi, seu fruto é muito apreciado pelos veados. Certa hora da noite, quando o céu não tem luar o veado aparece para saborear o fruto, é nessa hora que aproveito para abatê-lo (2010).
Figura 21: reprodução de história. Fonte: arquivo pessoal da autora - 2010
O caçador conta toda a história através de desenho. Ao contá-la frisou
que situações vivenciadas no dia a dia podem ser reproduzidas em sala de
aula. Alertou também quanto aos cuidados que devemos ter com o meio
ambiente e os animais silvestres. Matar os animais somente em caso de
necessidade. Não matar qualquer animal que não sirva de alimento, porque a
preservação do meio ambiente é muito importante. E destaca, “assim, os
alunos podem produzir suas próprias histórias e conhecimentos a partir da sua
própria realidade”.
Diante do aspecto sociocultural apresentado, percebemos duas fases
importantes do Programa Etnomatemática, as quais volto a lembrar, são
118
interdependentes. Os etnos e matemas, ou seja, o etno: a relação homem e
meio ambiente desenvolve o processo de entender, de explicar, de aprender e
ensinar, de manejar e lidar com os problemas e situações do dia a dia
(máthema).
A partir das situações vivenciadas a priori, os participantes passaram a
refletir sobre o ensino, para essa pesquisa focaremos no ensino e aprendizado
matemático.
Nesta fase, procurou-se definir os conceitos nas áreas das ciências da
natureza; especificamente os conceitos matemáticos, priorizando a resolução
de problemas como forma de levar os alunos ao raciocínio lógico, interpretação
e leitura, destacando a importância do desenvolvimento da aprendizagem
através de seu ambiente.
Para Dante (2007, p.10), “um problema matemático, é qualquer
situação que exija a maneira matemática de pensar e conhecimentos
matemáticos para solucioná-la”.
Indagou-se, então, sobre como os alunos apreendem os números.
Cada professor relatou suas experiências e dificuldades, concluindo que o
aprendizado do número relaciona-se à grafia, a linguagem e a compreensão de
sua quantidade, contá-los oralmente e a sequência numérica. Os aspectos
práticos da organização dos trabalhos foram utilizados com fins didáticos,
desde a contagem ao planejamento da alimentação onde cada família
contribuiu com algo, dividindo os deveres entre si.
As noções básicas que antecedem a ideia de número, como
quantificação, comparação, posição, localização, quantidade e agrupamentos
(conjuntos), foram trabalhadas a partir da maneira como esses conceitos são
formados na educação Macuxi (não escolar) para se remeter novamente ao
processo escolar.
Nesse sentido, partiu-se da construção do conceito de característica.
Primeiro perguntou-se: “o que é característica”? Foram dados alguns exemplos
junto à explicação.
Para o entendimento do conceito e também para integração e
socialização foi realizada uma atividade sobre descrição das características
dos participantes do curso.
119
Cada componente do grupo escolhia uma pessoa que admirasse muito.
Depois, cada uma fez um desenho do seu companheiro; em seguida, houve a
apresentação dos desenhos. O grupo procurava descobrir quem era a pessoa
demonstrada. Depois de analisarem as características apresentadas no
desenho: baixo, alto, magro, gordo, cabelo curto, cabelo comprido; descobriam
quem era o companheiro.
Após essa atividade, precisávamos produzir uma metodologia para
identificar as escolas e suas características de forma comparativa, que
permitisse observá-las e minimamente sintetizar as informações. Os alunos
passaram a construir os desenhos de suas comunidades.
Os resultados foram as especificidades (características) de cada uma
delas e suas respectivas escolas: população, gênero, número de alunos,
número de professores, alunos por turma, número de crianças, jovens e
adultos por turma, número de mulheres e de homens por turma. O produto
desse trabalho, cada um dos mapas, é uma poderosa ferramenta de análise,
cujo objetivo não é encerrar-se em si mesmo, mas auxiliar a construção da
organização do ensino de matemática.
Conforme Ferreira (2002), a importância da matemática para vida social
é indiscutível, porém o que vem sendo questionado com mais enfoque nos dias
atuais, por educadores matemáticos, é a forma como conceitos matemáticos
estão sendo conduzidos ou construídos nos ambientes educacionais.
As atividades humanas são consideradas como formas de relação do homem com o mundo, sendo assim, a ideia de atividade envolve a noção de que o homem se orienta por objetivo, agindo de forma intencional, por meio de ações planejadas (OLIVEIRA, 2010, p.98).
Nesse sentido, a coordenação frisou a importância de se trabalhar com
os componentes do currículo: objetivos, estratégias, conteúdos, avaliação,
principais elementos do planejamento escolar, o que queremos estudar ou o
que queremos aprender? Quais caminhos podem ser percorridos para chegar a
tal objetivo?
Para que os grupos de trabalhos compreendessem melhor a esse
respeito, foi dado o seguinte exemplo:
Uma família pretende viajar para outra região. Primeiramente ela vai
pensar: o que vamos fazer lá? (objetivo), como vamos chegar a esse lugar?
120
(Metodologia, estratégias). Digamos que o lugar de destino não tem acesso a
transportes terrestre, então vamos pensar se iremos a pé, a cavalo, de
bicicleta. Qual caminho é mais curto, por onde devemos seguir? Por último,
tirar as conclusões da viagem (avaliação), se foi boa ou ruim, que dificuldades
ocorreram durante o percurso?
Dessa forma, ficou claro o que seriam os componentes do
planejamento. O mesmo acontece com o ensino em sala de aula. Se eu quero
ensinar o aluno a contar em macuxi, como vou fazer para isso acontecer? Os
participantes acharam interessante a ideia de contagem. Tais explicações
foram dadas pelo fato de que há alunos, pais e outros membros da
comunidade que têm menos entendimentos sobre as atividades pedagógicas
na escola. Assim, ficou evidente que, na vida como no ambiente escolar, cada
passo deve ser organizado.
Os professores dividiram-se novamente em dois grupos, junto aos
alunos e a comunidade para trabalhar os conceitos que foram discutidos.
Partindo do princípio de Vygotsky que a criança aprende com o meio, e
de Ubiratan D’Ambrosio destacando que “não existe uma única matemática, há
muitas matemáticas” (2010, p.16), o que deve ser relembrado é que uma
criança, indígena ou não, já pratica, em seu dia a dia, conceitos matemáticos
informais que fazem parte de sua cultura; seja o conceito de grupo, vivência
coletiva, posição, distância, divisão, soma; dessa forma, aprende com o meio
social em que está inserida.
Primeiramente, pensou-se na situação familiar (grupo/conjunto), a
criança aprende inicialmente com quem convive em grupo: pai, mãe, irmãos,
avós (família). Partindo desses conceitos, a criança começa a separar as
quantidades: quantos irmãos, o pai e a mãe formam um par, avô e avó
maternos e paternos. Ainda pensando em grupos, a criança sabe que existem
diversos tipos de divisão de grupos. No trabalho de coleta, caça, pesca, a
criança começa a distinguir muito cedo o grupo de frutos comestíveis e de não
comestíveis, grupos de animais, peixes, aves.
Os pais ensinam estratégias de caçada, de pesca, tipos de armas
usadas (flecha, armadilhas) e o mais importante: a quantidade. Ao sair para
caçar, a criança sabe que dependendo do grupo familiar, vai matar uma caça
grande ou pequena; na pescaria a quantidade de peixes será proporcional aos
121
dias nos quais esses poderão ser consumidos, ou seja, o suficiente para durar
o tempo e não para estragar, já que as famílias não possuem geladeiras.
A busca por sobrevivência proporciona modelos de aprendizagem
própria. Nessa direção, os conceitos matemáticos desenvolvem-se a partir de
seu ambiente cultural.
Para Gerdes:
Seres humanos desenvolvem ideias matemáticas, entre outras, quando elaboraram atividades culturais e pensam sobre as mesmas. Essas ideias podem ou não ser transmitidas a outros indivíduos, apreendidas de outros grupos, ou então inventadas por indivíduos ou demais sociedades em interação. A produção de conhecimentos matemáticos ocorre em todas as culturas humanas. (...) A matemática não é produto de uma esfera cultural particular, mas de uma experiência comum a todos os povos. (...) O pensamento matemático só é inteligível ao adotarmos uma perspectiva intercultural. Insere essa contextualização de ideias ao Programa Etnomatemática (2002, p.222).
Figura 22: desenho da criança macuxi de 6 anos.
Fonte: arquivo pessoal da autora - 2010
Ao considerar o contexto, é impossível construir, saber/fazer
matemática isolada da prática. A criança em seu etno desenvolve matemás
(estratégias de sobrevivência e transcendência), consequentemente, manifesta
as ticas (artes e técnicas). Essas ações estão interligadas, o conhecimento do
seu contexto étnico em conexão com o ensino da escola.
122
Figura 23: desenhos do ambiente cultural. Fonte: arquivo pessoal da autora - 2010
Podemos perceber na figura anterior que o aluno ainda não domina a
prática de leitura e escrita em sua formalidade, porém ao identificar os animais
que servem de alimento, ele também diferencia as técnicas de caçada; ora
usando a flecha, ora usando a espingarda (arma de fogo).
Vygotsky corrobora com essa ideia:
Nesse caso, os desenhos não são utilizados como forma de expressão individual, como atividade que se encerra em si mesma,
123
mas como instrumentos, como signos mediadores que representam conteúdos determinados (OLIVEIRA, 2010, p. 73).
Pensando no âmbito psicológico, essa aprendizagem trata da teoria
sociocultural da inteligência defendida por Vygotsky e Luria. Na perspectiva
educacional, essa teoria é fundamental no desenvolvimento intelectual da
criança, pois ao utilizar instrumentos disponíveis em cada ambiente cultural, ou
seja, objeto concreto ou simbólico serve para ampliar sua capacidade mental
(NUNES et al., 2010, p.19).
A autora vem ressaltar ainda:
Que a visão sociocultural de inteligência propõe que a escola participe do processo de desenvolvido da inteligência da criança ao lhe oferecer acesso a instrumentos e objetos simbólicos, como sistemas de numeração, que amplificam sua capacidade de registrar quantidades, lembrar e solucionar problemas (ibid. p. 43).
3.6 Do simbólico ao registro numérico
A reflexão que tecemos até aqui, justifica-se no sentido de mostrar que
o professor deve perceber o momento em que o aluno já dispõe de maturidade,
para então iniciar com representação de símbolos.
Na realidade Macuxi, os professores na oficina mostraram como
podem iniciar esse processo. O professor utilizou o conhecimento do aluno
para construir metodologias importantes, facilitando assim, a aprendizagem e o
e valorizando o contexto cultural em que está inserido.
Os exemplos a seguir nos mostram, de que forma esses professores
estão trazendo materiais concretos para introduzir a matemática formal na
escola.
124
Figura 24: registro numérico e simbólico. Fonte: arquivo pessoal da autora – 2010
Na figura acima, podemos ver que o aluno toma como objeto de
representação o que lhe é mais comum, ao mesmo tempo em que relaciona
quantidade e número, ele também exercita a escrita da língua materna.
“Quando a criança aprende a contar ela começará a usar a contagem como um
instrumento de pensamento, para auxiliar sua habilidade de registrar e lembrar-
se de quantidades, e amplificar sua capacidade de resolver problemas”
(NUNES et al., 2010, p.20).
Quando a autora destaca a importância de a criança utilizar a contagem
para pensar e registrar quantidades, entende-se que, um dos caminhos para
ajudar o aluno a apreender os números e consequentemente usá-los na
resolução de problemas é mostrar que não se pode separar o real do formal.
125
Figura 25: Quantidades
Fonte: arquivo pessoal da autora- 2010
Figura 26: Jamarú, utensílio usado para guardar bebidas indígenas.
Fonte: arquivo pessoal da autora - 2010
Neste caso, os professores têm por objetivo mostrar aos alunos os
conhecimentos e experiências obtidas através de desenhos para representar
126
as quantidades, pois o aluno já trás em seu bojo conceitos numéricos, lendo
em sua própria língua materna conforme sua realidade.
Assim, o professor indígena, ao se identificar a esse conceito de
educação, não será um transmissor bancário, mas formador dialógico
construtivista. (FREIRE, 2005).
O que Freire (2005) coloca é que enquanto a criança recebe uma
formação local, ligada a valores étnicos, ela se reconhece como cidadã
daquele contexto social. Por outro lado, ela também não pode se isolar de um
contexto social mais amplo. A globalização, a tecnologia está presente em
todas as sociedades, sendo ela indígena, ou não. Portanto, a globalização, o
capitalismo, os mercados mundiais desenvolvem-se em favor da tecnologia,
das ciências avançadas, e por mais distante e isolado que um povo esteja, é
impossível não depender cada vez mais dessa globalização.
Diante disso, não podemos esquecer que, ao mesmo tempo, de onde
vêm benefícios, vêm também destruições e perdas.
Se for pensar em coisas horríveis que aconteceram no passado e coisas horríveis que aconteceram há pouco tempo e que estão acontecendo hoje, nações sendo bombardeadas, populações sendo dizimadas, florestas sendo cortadas. Em todas essas coisas, a matemática está envolvida, no fundo tudo isso está intimamente ligado, a matemática foi o melhor suporte que a sociedade encontrou para fazer todos esses estragos e destruições. Será que essa matemática não pode ser também o melhor suporte para fazer essa humanidade viver em paz, viver feliz, acabar com as desigualdades [...] (D´AMBROSIO, 2011).
Diante do exposto, seria relevante destacar que a educação escolar, no
contexto sociocultural de hoje, tem avanços em relação ao contexto primitivo
onde se iniciou, com jesuítas após o descobrimento do Brasil. Ao longo de todo
o processo de escolarização do índio e a dinâmica de cultura, podemos
perceber duas coisas importantes: no Século XXI, os povos indígenas, assim
como outros povos ditos “isolados”, passaram por grandes mudanças. Os
choques de culturas promoveram transformações em todos os sentidos: língua,
os modos de sobrevivência, etc. Portanto, o mundo globalizado os obriga a
transcender.
O choque cultural substituiu práticas culturais primitivas, por outros
elementos culturais com os quais a criança passou a conviver. Por exemplo,
nos dias mais atuais, as crianças iniciam cedo o contato com o mundo
127
tecnológico, o que não exclui uma criança indígena. Essa adaptação quebra o
paradigma de que o ser índio é incapaz de produzir suas próprias estratégias
de transcendência.
Figura 27: Crianças macuxi em exposição de trabalhos.
Fonte: arquivo pessoal da autora – 2010
Ao analisar o contexto educacional dessa oficina pude perceber que há
interação da realidade local com a global, estão interligadas, o aluno
transcende paralelamente como processo de aprendizagem, o local como
forma de se identificar etnicamente, e o formal para conviver com a sociedade
global, como depõe o professor Paulino Ribeiro (2011):
Matemática é fundamental em todos os campos de estudos, ela está nas principais tecnologias, a ciência tecnológica é parte da matemática. Sem os conhecimentos matemáticos não se constrói nada, a matemática, assim como o estudo das línguas, é o carro chefe da educação escolar indígena.
Para concluir essa fase de reflexão, mostrarei, em síntese, os
conceitos, selecionados pelos professores, que seriam usados no currículo da
escola. Foi a partir de uma conceituação mais clara desses processos
(descritas nos trabalhos elaborados durante a oficina) que se partiu para as
definições dos conteúdos das que seriam trabalhados no ensino Fundamental
01.
128
Neste encontro, não foi feita nenhuma ordem de conceitos, pois a
necessidade maior era o envolvimento do professor com novas metodologias
que facilitassem o aprendizado dos alunos.
Noções espaciais de posição: primeiro, último, perto, longe..
Noções de quantidade: Conjuntos (grupo), pouco, muito, vazio, nada, cheio, mais que, menos que ...
Noções de ordem: primeiro, último, crescente, decrescente, maior que, menor que, Agrupamento / classificação de elementos semelhantes.
Leitura e escrita do sistema vigesimal macuxi.
Representação dos números: em algarismos Indo Arábico Posição numérica (sistema decimal posicional: unidade, dezena, centena, milhar...) Números pares e impares, números ordinais.
Estimativa - o número: contagem oral, sequência e ordenação numérica, quantificação (associação do numero à quantidade).
Calendário - Medidas de tempo: minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, estações chuvosa e seca.
As quatro operações Adição: conceito; algoritmo, técnica operatória: sem representante (sem vai um) com representante (com vai um). Subtração – conceito; algoritmo, técnica operatória: sem empréstimo, com empréstimo. Multiplicação – conceito; dobro, múltiplos e tabuadas, algoritmo, técnica operatória: com multiplicador simples (só com unidade). Divisão – conceitos inteiro, metade, algoritmo, técnica operatória com divisor simples (só com unidade)
- Operação concreta, operação no ábaco, cálculo mental. - Dinheiro: quantificação do dinheiro (associação da cédula ao valor correspondente em reais)
Valor unitário da mercadoria/valor total da compra; troco; resolução de problemas.
Quadro 5: Conceitos Matemáticos
Esta lista de conteúdos foi inspirada a partir do livro de Dante (2007).
Os professores procuraram relacionar os conteúdos da escola branca com a
realidade da escola indígena. A necessidade de conhecer a matemática
universal é um fato, no entanto, é preciso que a matemática e os
conhecimentos culturais permaneçam como base para formação inicial dos
alunos indígenas.
129
O encontro encerrou-se após a aprovação da lista composta pelos
professores e com a anuência dos participantes que ficaram satisfeitos com a
realização do evento.
130
CAPÍTULO IV
A ETNOMATEMÁTICA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM RORAIMA
No interior de assembleias e eventos educacionais muito se tem
discursado a respeito das dificuldades de ensino aprendizagem nas escolas
indígenas de Roraima. Os temas debatidos com maior intensidade orientam-se
por princípios teóricos metodológicos como: interculturalidade,
transdisciplinaridade e diálogo construtivista dialógico.
Sabemos que há uma preocupação por parte de educadores,
pesquisadores e lideranças indígenas a respeito da implementação desses
princípios nas propostas pedagógicas e currículos das escolas. Por outro lado,
não será possível a realização dessa proposta se a formação de profissionais
que atuam nas escolas indígenas não for baseada nesse mesmo princípio.
Pensando nisso, os educadores indígenas31, em 2001, iniciaram uma
discussão a respeito da formação de professores em nível superior indígena,
como já comentado no capítulo III. Segundo Carvalho (2008), a Organização
dos Professores Indígenas de Roraima-OPIRR, apoiada pelas organizações
indígenas (CIR, OMIR, APIR) levou ao conhecimento da Universidade Federal
de Roraima- UFRR sua reivindicação em caráter de urgência. Em 2002, cria-
se, no Campus da UFRR, o núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena.
O Projeto Político Pedagógico do curso baseia-se na trilogia:
interculturalidade, transdisciplinaridade e dialogia social.
Carvalho (2008) define o princípio de interculturalidade como uma
relação de saberes baseados no respeito entre diferentes culturas, ou seja, o
encontro dessas culturas ocorre para ampliar conhecimentos em mútua
harmonia. A transdisciplinaridade é posta como reconhecimento dos diferentes
níveis de realidade que são governados por diferentes tipos de lógicas. O
conhecimento produzido nesse princípio vai além do aqui e agora, ou seja, a
transcendência é possível com maior amplitude. Por fim, a dialogia social,
nesse contexto, define-se como rompimento das generalizações entre Povos
31
Para os povos indígenas em Roraima os educadores indígenas são: lideranças, professores e todos que participam da discussão educacional.
131
Indígenas, Igreja e Estado reconhecendo a todos como atores legítimos do
processo.
A proposta pedagógica concentra-se em três grandes áreas: Ciências
Sociais, Comunicação e Artes e Ciências da Natureza.
Gráfico 1 – Estrutura do Curso
O gráfico nos mostra as dimensões das áreas de conhecimentos para
formação de professores, que ainda se encontra em processo de adaptação e
construção. Nossa intenção em mencionar esse curso é para que possamos
compreender melhor a última análise de pesquisa na região Baixo Cotingo.
4.1 O debate do currículo.
O último momento desta pesquisa deu-se em Janeiro de 2012, na
comunidade indígena Araçá da Serra. O curso promovido pela Organização
dos Professores Indígenas de Roraima-OPIRR contou com a participação das
22 escolas indígenas da região, com o total de 143 pessoas.
Sob o tema Planejamento Pedagógico objetivou-se: promover aos
professores indígenas o desenvolvimento de propostas metodológicas de
132
ensino, assim como, discutir a proposta de formação de professores no que se
refere a definição dos currículo para as escolas participantes.
Na comunidade anfitriã, Araçá, está a Escola Estadual Indígena Índio
Gustavo Alfredo, município de Normandia. A escola funciona com o Ensino
Infantil, Fundamental e Médio.
A formação dos professores participantes da oficina vai do Ensino
Fundamental32 ao Ensino Superior, que é o caso dos discentes da Licenciatura
Intercultural (alguns, egressos do curso).
Apesar de o curso ter promovido um amplo debate no âmbito
educacional, sobre currículo, formação e planejamento pedagógico, vou
concentrar minhas reflexões na minha questão de pesquisa, especificamente
ao ensino da matemática. Em síntese, apresento o momento inicial do curso.
A Coordenação da Organização dos Professores Indígenas de
Roraima-OPIRR, na pessoa do professor Telmo Ribeiro Paulino, iniciou a
oficina discorrendo sobre o tema: Perfil do professor e o compromisso com o
movimento indígena.
Figura 28: Coordenador Geral da OPIRR. Fonte: arquivo pessoal da autora – 2012
32
Os professores de língua materna atuam nas escolas sem exigência de formação, por isso
muitos deles possuem apenas o ensino fundamental.
133
Paulino Ribeiro situou sua concepção de compromisso em dois
momentos. Primeiro, como as comunidades indígenas almejam seu
profissional; que perfil esse professor deve dispor para atuar nas escolas dessa
região. O questionamento inicial do coordenador foi sobre o que é ser professor
ou educador e como nos identificamos dentro da comunidade onde vamos
atuar?
Algumas características, dentre as muitas citadas pelo autor foram:
estar sensível às expectativas e as demandas da comunidade relativas à
educação escolar; saber dialogar com as lideranças de suas comunidades,
pais e alunos; relacionar-se de forma respeitosa, ajudá-las nas dificuldades e
defender seus interesses; desenvolver os tipos de sabedoria (didático –
pedagógico, psicossociais, culturais e políticos) implicados na função; tornar-
se, progressivamente, pesquisador, estimulador e divulgador das produções
culturais indígenas entre as novas gerações e na sociedade envolvente; ser
conhecedor e transmissor dos direitos e deveres das sociedades indígenas no
país e no mundo; ser capaz de conhecer seu trabalho de forma abrangente,
apoiando o preparo do aluno para a vida social; relacionar a proposta
pedagógica da escola à proposta política mais ampla de sua comunidade no
que se refere ao seu presente e futuro.
Esse conjunto de atributos, claramente idealizados, forma o perfil
almejado pelos professores e por sua comunidade. O perfil almejado é a
representação social de um professor indígena referencial.
Durante o segundo momento da palestra, Paulino destaca o amparo
legal pelo qual esse profissional se orienta para construir uma prática
pedagógica diferenciada.
A Lei de diretrizes e bases da educação LDB/96 em seu:
Art. 65 – a educação escolar indígena, para ser realmente específica, diferenciada e adequada às peculiaridades culturais das comunidades indígenas, necessita que os profissionais que atuam nas escolas pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar. Art. 66 – Os professores índios deverão ter acesso a cursos de formação inicial e continuada, especialmente planejados para o trato com a pedagogia indígena;
E Paulino conclui: “para que esse apoio legal aconteça na prática, é
preciso o acompanhamento e informação dos membros da comunidade com as
134
autoridades; sendo assim, o professor é membro, a partir do dia e hora que ele
chegar à comunidade, e deve trabalhar de acordo com sua organização”.
Outra grande contribuição para esclarecimentos dos professores, foi da
Universidade Federal de Roraima, na pessoa do professor Luiz Otávio.
Otávio discorre sua palestra orientada pelo tema: Panorama sobre a
legislação da educação escolar indígena, Currículo e Projeto Político
Pedagógico.
Para esclarecer esta situação, Otávio traça seu comentário em
pareceres e normas. Segundo ele, a legislação vem como auxílio, deve ser
cumprida para defender nossos interesses, no entanto, quando tratamos da
educação escolar indígena, é necessário trabalhar o modelo de educação que
nos ajudará no futuro, conhecendo os direitos e deveres.
Otávio, portanto, demonstra a lógica e concepção de planejamento da
grande maioria das famílias; considera que é dever do professor a função de
educar os filhos, com isso a participação das famílias na escola é mínima.
Então, por que a concepção de educação tem mudado? Ultimamente, essa
concepção está mudando devido à redemocratização dos anos 80, com o
intuito de traçar os novos rumos da qualidade de ensino, isso acontece graças
ao esforço de toda a sociedade.
Otávio faz referência também aos currículos, parte importante do
curso. Sua reflexão, agora, se orienta a partir das ideias do regime militar
consolidado. Para Otavio, a participação de toda a sociedade é de grande
importância, pois mostrou que a forma de ensino/aprendizado e os currículos
escolares podem ser flexíveis. As escolas tiveram a possibilidade de organizar
o ensino por série.
No regime militar havia o Currículo Nacional, que ainda vigora na Costa
Rica e Uruguai. Para o Brasil, seria muito difícil adotar um currículo único e
ainda assim, obedecer e respeitar as diferenças e valores culturais de cada
povo e estado.
A organização de currículos, para muitas escolas, é um dos pontos
polêmicos e crítico. Não há um modelo a ser seguido, devem ser organizados
conforme decisão da comunidade escolar; seja por eixos temáticos e/ ou temas
contextuais, para atender diversas áreas de conhecimentos.
135
Na visão de Paulino (2012), a partir dos anos 80, no regime militar, a
qualidade do ensino era baseada por série e só funcionava na teoria. Mas, com
a organização dos movimentos de bases, chegou-se a discutir e colocar em
prática os modelos de currículos, mais adequado a cada povo.
Otávio complementa dizendo ser necessário produzir e criar novos
métodos de ensino para desenvolver nas escolas indígenas, pois o modelo
atual não está sendo eficaz, já que os resultados de avaliações pelo sistema
mostram que existe uma deficiência no ensino e aprendizagem. Porém, isso
não é proporcional em todas as escolas, pois existem professores que
desenvolvem métodos que realmente educam. O importante é saber como e a
quem aplicá-los. Nas disciplinas, os conhecimentos devem estar conectados,
contextualizados, respeitando os valores do grupo escolar. As mudanças
devem incluir os currículos reelaborados pelos povos indígenas.
Assim, quando acaba a ideia de um currículo único, fechado, vem a
ideia de novas modalidades de ensino. Precisamos entender o que vem a ser o
currículo, as bases da legislação educacional.
Outra questão sugerida é como mudar os rumos da educação de hoje
para obter melhores escolas, melhores alunos e melhores professores no
futuro. “Portanto, a região do Baixo Cotingo está de parabéns, pois vem
tomando novas iniciativas com a formação e qualificação de seus professores”
(OTÁVIO, 2012).
Fausto Mandulão corrobora com o fato de que é necessário fazer
correção e alteração urgente do currículo escolar para que não haja mais a
desvalorização dos conhecimentos indígenas. A arte indígena tende ao
fortalecimento da cultura indígena para ser difundida e valorizada por todos,
como a pintura corporal, desenhos, artesanatos, a matemática cultural. O
modelo do regime tradicional muito antes dos militares já lia assim. Por
exemplo, ao colocar as cadeiras todas em colunas, alunos silenciosos, regras
rígidas na escola, e todos eram obrigados a aderir a esse sistema. Dessa
maneira, vem a concepção da desvalorização da cultura do povo indígena.
“Quando um professor vai para a sala de aula, na maioria das vezes, não faz
nenhum diagnóstico situacional das reais necessidades dos alunos”
(MANDULÃO, 2012).
136
Na opinião do tuxaua Rari Lima, a educação, nos últimos anos, tem
mudado muito; sendo que na escola, a nossa cultura foi perdida. Mas, é
preciso paciência para poder resgatar tudo, para podermos praticar nossos
rituais no dia a dia. “Já conquistamos nossa terra, mas é preciso melhorar a
sobrevivência de nosso povo e isso só acontecerá mediante o estudo,
estratégias, inteligência”.
E Mandulão (ibid.) conclui esse primeiro debate dizendo,
Existe um grande número de instrumentos tecnológicos nas comunidades como (celulares, notebook.) e devemos fazer o papel de conscientizador, como utilizar esses instrumentos para que no futuro os alunos não sofram as consequências por não terem nenhuma orientação anteriormente. O professor não é o dono do conhecimento e sim um interventor dos saberes nas escolas e devemos optar pelo seu perfil, capacidade e habilidade, sendo ele um pesquisador e interlocutor dos conhecimentos da comunidade, sendo capaz de captar os conhecimentos necessários para poder repassar para os alunos, e dessa maneira, ser criativo e saber discernir o que é útil para o seu conhecimento e para que tenha a valorização cultural do seu povo.
4.2 A matemática no contexto transdisciplinar
A síntese do debate inicial sobre o ensino nas escolas indígenas em
Roraima, leva-nos à reflexão de D´Ambrosio (1994), a escola de modelo
disciplinar europeu é algo que nada tem haver com as tradições indígenas, por
isso devemos refletir sobre o verdadeiro sentido da educação, sobretudo da
educação matemática.
O resultado de um processo educacional é fazer com que o indivíduo aja, atue no seu ambiente a partir da percepção de sua realidade. Indivíduos estão recebendo permanentemente informações da realidade (que são na verdade estímulos para ação), através de códigos genéticos, dos sentidos e de memória. (...) A razão de ser da Educação é facilitar e estimular a ação comum, geradora de cultura e de vida social. No caso específico da construção da escola, a comunidade de aprendizes deverá ser solicitada a se manifestar sobre o que deve ser a escola como espaço físico. Será um espaço que facilite a ação comum, que facilite a execução de tarefas (projetos) comuns. (...) O papel do professor não é o do mestre tradicional, imbuído de uma autoridade sugerida pelo próprio espaço físico: separado dos alunos, com uma mesa que impõe autoridade, em pé perante os alunos sentados, e utilizando um quadro-negro onde a mensagem, "escrita", é o símbolo da verdade. (...) Como toda ação, a ação educativa está ancorada numa estratégia. A estratégia da ação educativa é denominada currículo (p. 94-95).
137
A partir dessa reflexão, podemos perceber que o papel do educador vai
além do espaço físico da escola; os professores estão imbuídos a construírem
propostas de currículos que venham ao encontro dos anseios de seus alunos,
focados num objetivo comum de seu povo.
Voltando ao contexto do curso em debate, o que discute-se é a
proposta de um currículo diferenciado. Os professores, pelo que se percebe,
ainda não têm uma definição de como deve ser esse currículo.
Da proposta de Formação de Professores do Curso Intercultural,
podemos refletir sobre dois aspectos que podem ser relevantes: o curso é
intercultural, sua proposta pedagógica é transdisciplinar e se divide em três
áreas de conhecimento. O segundo aspecto, refere-se à eficácia das
estratégias de ação do curso, que levam o professor a atuar e desenvolver, em
suas escolas, a prática de sua formação.
De acordo com o projeto político pedagógico da Licenciatura
Intercultural, o discente, ao ingressar no curso, inicialmente passa por um
período de adaptação. Os primeiros dois anos são de formação comum; nesse
período, o aluno tem orientação básica sobre as três grandes áreas. A partir do
terceiro ano, o aluno escolhe a área com a qual melhor se identifica: Ciências
Sociais, Comunicação e Artes ou Ciências da Natureza.
A esse respeito, baseio-me na visão de D´Ambrosio (2012), de modo
que o educador e seu aprendiz tenham êxito no ensino/aprendizagem, é
necessário ser autodidata, ou seja, o educador precisa sair do que ele chama
de gaiolas epistemológicas. O termo parece estranho, porém se refere
justamente às disciplinas ou áreas de conhecimentos. As três áreas citadas da
licenciatura, por exemplo, são as grandes gaiolas. No caso mais específico da
“gaiola” das Ciências da Natureza, as disciplinas Geografia, Química, Física e
Matemática conectam-se. Porém, o autor alerta que nesta situação o professor
ficar preso às disciplinas. Ou seja, no espaço da “gaiola”, e muitas vezes “ele
nem sabe de que cor a “gaiola” é pintada por fora”. Portanto, os professores
precisam sair de suas disciplinas, mesmo que sua formação seja a de ciências
da natureza, é necessário buscar, em outras “gaiolas”, o conhecimento
necessário para tornar sua prática transdisciplinar.
138
Sobre o segundo aspecto e agora com maior ênfase, faço minha
reflexão baseada na opinião de professores que cursam a Licenciatura
Intercultural, ou são egressos do curso, cujo objetivo é:
Formar e habilitar professores indígenas em Licenciatura Plena com enfoque intercultural, com áreas de concentração em Ciências Sociais, em Comunicação e Artes ou em Ciências da Natureza, de acordo com legislação vigente (CARVALHO, 2008, p. 12).
Durante a oficina de planejamento em foco, o maior questionamento
sobre a organização curricular das escolas dessa região foi: como será o
currículo que encaminhará os planejamentos de ensino? Por disciplina, área de
conhecimento ou tema contextual? O tema mais polêmico de todas as áreas foi
justamente o das Ciências Naturais. Os professores paravam sempre que se
falava nessa área. Como fazer um contexto interdisciplinar? Principalmente no
que tange os conceitos matemáticos?
Veja o que disse Mandulão, professor egresso da Licenciatura
Intercultural: “não tenho competência para falar sobre a contextualização da
Matemática com outras áreas de conhecimentos”. Ou seja, Mandulão, na
ocasião, estava referindo-se a dificuldade dos professores de matemática para
conduzir o ensino dessa disciplina.
Nesse momento destaco outras opiniões de professores presentes na
oficina:
A proposta de trabalhar o planejamento por tema contextual é algo novo para as escolas indígenas, é um desafio que deve ser encarado exclusivamente pelos professores que atuam na Licenciatura Intercultural. E deve ser importante incluir essa proposta no currículo da escola. (Jaime Lima Araújo, acadêmico egresso da licenciatura intercultural – comunidade araçá, 2012). A proposta de trabalhar com o tema contextual é algo que a Universidade Federal de Roraima trouxe como inovação para os novos métodos de ensinar nas escolas. Acredito que contextualizar os conhecimentos é muito importante. Os novos métodos trazem propostas de trabalhar a interdisciplinaridade. (Gildo Segundo Trajano, cursista da Licenciatura Intercultural – comunidade Araçá, 2012),
Acredito que uma das melhores formas de planejamento é por tema contextual, pois exige do professor pesquisa e compromisso com o aprendizado dos alunos. (Léia Ramos, egressa da Licenciatura Intercultural - comunidade Araçá, 2012). É importante o resgate histórico do nosso povo, pois neles estão grandes valores culturais sobre astronomia, localização, conhecimentos míticos sobre o tempo, a natureza, a terra, etc... Isso
139
é interculturalidade. (Samuel, cursista da Licenciatura Intercultural – comunidade Araçá, 2012),
A formação em pedagogia não contempla essas propostas, mas que futuramente deve ser adotado pelas escolas e inclusa na proposta pedagógica das escolas. (Rosarildo, cursista de Pedagogia da Universidade Estadual de Roraima – comunidade Araçá, 2012).
O importante é o professor ser pesquisador dentro e fora da comunidade. O professor é responsável por buscar fundamentos em fontes que estão disponíveis na escola/ comunidade. Acredito que dominar os conteúdos é uma tarefa muito importante, que deve ser preocupação constante dos professores, daí a importância de um curso como esse. (Enes Paulino, cursista de Licenciatura Intercultural – comunidade São Pedro, Araçá, 2012)
Muitas comunidades vivenciam o currículo intercultural na prática, porém o desafio agora é sistematizá-lo e registrar como e o que queremos ensinar e aprender, mas a teoria é um desafio é burocrático demais. (Telmo Ribeiro Paulino, cursista da Licenciatura Intercultural – comunidade Cararual). Com certeza é importante a valorização dos professores indígenas da nossa própria região na orientação de planejamento por tema contextual; a importância da pesquisa, currículo e avaliação das propostas de planejamento anual dentro das escolas indígenas. Chega de dependermos sempre dos doutores, filósofos que pouco conhecem a nossa realidade, somos capazes de construir propostas inovadoras. (José Mário Martins da Silva, cursista da Licenciatura Intercultural – comunidade Olho D água, 2012).
Com base nos depoimentos proferidos durante todo o curso, pude
perceber que, apesar de existir um curso que se apoia na metodologia
intercultural/transdisciplinar, a prática da maioria dos professores continua
sendo a mesma, direcionada pelo modelo estático tradicional disciplinar.
Principalmente no que se refere aos conhecimentos matemáticos.
Inovar, para esses professores, é um grande desafio. Existe uma
grande barreira para se construir uma prática intercultural.
Pude perceber essa dificuldade, quando os professores tentavam
construir um planejamento interdisciplinar por tema contextual. Os temas
contextuais na visão dos participantes, nem sempre estavam de acordo com os
conceitos matemáticos e a dúvida imobilizava a todos.
A metodologia do curso foi o trabalho em grupos por área de
conhecimento. Porém, o grupo das Ciências da Natureza não conseguiu
chegar a um consenso. O que fazer agora? Os assessores de cada área foram
convocados em regime de urgência para debater a situação.
140
Depois de muitas discussões, os assessores decidiram fazer o
planejamento de ciências naturais juntos, em mutirão. Mesmo assim, ainda
ficaram muitas dúvidas na hora de colocar em prática esse tipo de metodologia.
Existe possibilidade de se trabalhar todos os conteúdos contextualizados ou
nem sempre? Há momentos em que o professor precisa voltar ao tradicional?
Nessa hora um dos assessores fez a seguinte colocação:
Essa dificuldade advém da formação do professor, se o professor não domina o conteúdo matemático jamais vai contextualizar os conhecimentos! Aprendemos desde o início de nossa formação o modelo tradicional e não conseguimos sair disso, pois não aprendemos o significado desses conceitos, porque e onde usar, simplesmente engolimos sem direito a questionar (PAULINO, 2012).
Diante dessa colocação, volto à concepção de D´Ambrosio (2012),
temos que sair da “gaiola”, adquirir outros conhecimentos. Nesse caso, por que
os professores possuem essa dificuldade? Porque foram formados dentro da
“gaiola”. Eu me formei em Matemática, não entendo de Geografia, História,
Psicologia etc. Esse, portanto, deve ser o pensamento de professores que
pensam ser o dominador apenas de uma disciplina, e por isso, quando vamos
debater sobre a prática intercultural não possuímos conhecimentos necessários
para dialogar com as outras disciplinas. Ficamos estáticos.
Com objetivo de sair da “gaiola”, D´Ambrosio não vê outra solução, se
não a prática transcultural, ou seja, o conhecimento transcultural do educador
matemático é essencial para o sucesso do ensino aprendizagem. Pra isso,
desenvolveu o Programa Etnomatemática, um programa transdisciplinar. Este
programa permite que os professores saiam do conforto disciplinar e
transcendam de forma a conhecer os conceitos necessários para sua prática
intercultural, transdisciplinar e outros. Pois a Etnomatemática, como frisado no
Capítulo III, segue a tendência sócioetnocultural, portanto desenvolve uma
prática transdisciplinar. Destaco que a ideologia do autor em seu programa de
pesquisa é contribuir para a paz, suas reflexões em âmbito mundial refletem-se
no uso da Matemática como instrumento capaz de proporcionar a paz interior,
ambiental, social e militar. Para isso, o educador matemático precisa sair de
sua “gaiola” epistemológica, uma vez que o fizer, perceberá os problemas em
visão mais ampla e buscará novos conhecimentos.
141
Assim, de posse de outros conhecimentos, o sujeito vai gerar novos, ou
seja, de fora da “gaiola”, ele recebe as informações que a realidade lhe mostra,
ao recebê-las parte para a ação e essa ação gera novos conhecimentos.
No entanto, o autor reconhece que para sair da “gaiola” o sujeito
enfrenta dificuldades. Em sua opinião, a primeira dificuldade é o código de
linguagem próprio, que somente os que estão na gaiola conhecem. Outra
dificuldade é achar que a matemática é inútil, que não serve para nada. Pelo
contrário, a matemática é muito importante, porém ela tem que ser acessível a
todos, e para isso, é necessário sair da “gaiola”. A matemática deve ser
mostrada em linguagem que todos entendam.
Partindo dessa concepção e apoiada nos depoimentos dos professores
da região Baixo Cotingo, conclui-se que a formação de professores precisa ser
melhor analisada em âmbito metodológico e prático. Destaco a área das
Ciências da Natureza, ou seja, que o Educador Matemático deve estar disposto
a sair da “gaiola”.
Para fundamentar melhor o que digo, busco, no Boletim do Instituto de
Formação Superior Indígena Insikiran (2011, p.7), uma reflexão dos alunos da
turma K33 a esse respeito:
Muito embora a proposta pedagógica do curso de Licenciatura Intercultural esteja voltada a uma metodologia específica, onde a teoria e prática deveriam estar integradas ao longo de todo processo de formação dos cursistas e principalmente que esse fosse voltado a uma construção transdisciplinar, merece uma reflexão sobre todo o processo de formação, falo especificamente na área de CNS. Existe uma necessidade urgente de revermos a matriz curricular onde está inserido o conjunto de conhecimentos de matemática, física, química, biologia, enfim as Ciências da Natureza. Os alunos formados nessa área geralmente estão ministrando aulas no Ensino Médio, onde os conteúdos de matemática, química e física são bem mais aprofundados. Sendo assim, o professor, ao sair da formação superior, estará respaldado em conhecimentos básicos para tal finalidade, porém não está ocorrendo esse intercâmbio de conhecimentos. As turmas já formadas não tiveram essas necessidades supridas, ou seja, não houve um aprofundamento nos conteúdos ministrados durante o curso das CNS em matemática, em química, física e biologia... Muito se fala em transdisciplinaridade ou interculturalidade, mais como contextualizar equações, na prática, em nossas escolas se não aprendemos a base teórica? Não se pode fugir totalmente da fundamentação da Matemática Elementar com a História. Temos que pensar em formar EDUCADORES MATEMÁTICOS, da Física que também não foge de cálculos numéricos, historiadores, biólogos, por fim; essa é a Dinâmica das
33
Turma de acadêmicos que ingressaram no Curso de Licenciatura Intercultural por meio do
vestibular da Universidade Federal de Roraima-UFRR em 2010.
142
Culturas. Então, como inserir conteúdos mais específicos dentro de cada etapa das CNS? Penso que tudo depende de diálogos e consenso, pois existe um caminho longo a ser percorrido até chegarmos onde queremos, por mais que gostaríamos de trabalhar somente o diferenciado contextualizando todos os mapas conceituais, não se pode deixar de entender as ciências da natureza como um todo, sem deixar de entender a teoria e prática fundamentadas no Etnoconhecimento.
Diante do importante debate, pude entender que os professores em
Roraima, principalmente aqueles que estão em formação, ainda estão presos
às “gaiolas” e mesmo dentro da “gaiola” não estão conseguindo dominar os
conhecimentos matemáticos,assim como, os da física, da química etc.
Portanto, posso sugerir que a Etnomatemática seja vista com maior ênfase nos
curso de formação de professores em Roraima. Procurando em metodologias
de pesquisa, envolver o professor pesquisador e o dinamismo do conhecimento
matemático, contextualizando (conjuntos, números naturais, números cardinais
e números reais etc.). A Investigação em Educação Matemática é muito
importante; conhecer melhor o contexto educacional das escolas indígenas
para um saber/fazer matemático melhor; o professor pesquisador precisa
conhecer a História da Matemática; as matemáticas dos povos Indígenas e a
inter-relação com a Matemática Financeira, Medidas e Formas em Geometria;
estabelecer relações entre o Programa Etnomatemática e o Ensino
Fundamental e Médio (equações, funções afins, funções quadráticas, funções
polinomiais, funções exponenciais e logarítmicas, progressões, sistema de
equações, matrizes e determinantes, introdução a números complexos etc.); a
Educação Matemática abrange todos esses conhecimentos; a Modelagem
Matemática para Construção de Materiais Didáticos e a Didática da Resolução
de Problemas, são essenciais para uma boa formação de educadores
matemáticos, todas as pessoas devem dominar os cálculos (diferencial e
integral). Por fim, o desafio da formação de professores em busca de definir
currículos para satisfazer a formação crítica do cidadão indígena depende de
todos nós.
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho percorrido para produção deste trabalho nos trouxe novas
perspectivas para a construção de propostas pedagógicas, currículos e
projetos que colaborarão para o avanço da educação escolar indígena do
estado de Roraima, com enfoque mais específico para o ensino da matemática.
Não faria sentido analisar a prática dos professores que ministram a
disciplina Matemática isolada do contexto sociocultural. Portanto, busquei no
programa etnomatemática apoio para investigar as ações pedagógicas desses
professores no processo de ensino/aprendizagem no contexto educacional
Macuxi em Roraima.
Sabemos que a escolarização europeia não foi útil para a formação das
crianças indígenas, foi usada para descaracterizar sua identidade étnica,
impedindo-a de manifestar seus valores culturais, língua e sua liberdade de
expressão. Felizmente, depois de tanta luta e perseverança dos povos
indígenas, a escola hoje é aliada, é o espaço que foi conquistado para
construção coletiva e dialógica em busca dos valores perdidos.
Paulo Freire vê esse tipo de conquista como uma ação revolucionária.
O autor afirma que as pessoas partem de suas debilidades, fragilidades para
alcançar a superação. O autor ainda destaca que o “educador revolucionário é
aquele que já se encontra situado histórica e socialmente, na sociedade, em
processo, em um nível maior do processo atual” (1985, p. 13). Diante desse
fato, fica claro que o professor indígena é um pedagogo revolucionário.
A educação no estado de Roraima partiu do processo de construção
político-pedagógico revolucionário. No interior de reuniões, assembleias e
grandes debates nascem novas propostas, metodologias de ensino
aprendizagem e projetos revolucionários dos povos indígenas. “Somos também
construtivistas dialógicos, pois construímos uma pedagogia indígena
construtivista dialógica” (Messias, 2010, p.2).
Os indígenas conquistaram suas terras, libertaram-se dos invasores
que os oprimiam, projetaram seus sonhos e firmaram projetos de mudanças.
Atualmente, o desafio é colocar em prática os projetos elaborados pelas
lideranças. Projetos que visam beneficiar as comunidades e contribuir para
melhoria e bem estar do povo, principalmente no que diz respeito ao
144
Etnodesenvolvimento econômico, saúde e a educação de qualidade, por isso
os educadores indígenas vêm buscando, cada vez mais, formações,
construindo novas metodologias e currículos diferenciados de ensino.
As atividades pedagógicas inovadoras são importantes para o sucesso
do ensino, os professores de Língua Materna e outros professores de
Português, Ciências, Matemática, História etc. precisam estar conectados para
produzir práticas interculturais, transdisciplinares. Para que isso venha a
acontecer, dependemos da busca de conhecimentos. O professor precisa sair
da mesmice, sair das “gaiolas” disciplinares, reconhecer que é necessário
renovação, procurar maneiras eficientes para levar o aluno ao êxito.
Êxito não só para passar nos exames, testes obrigatórios como a Prova
Brasil, ENEM e tantos outros usados para medir conhecimentos. Minha crítica
a esse respeito é quanto ao modelo desses testes, pois os alunos indígenas
participam desses exames e geralmente não obtém o resultado que o sistema
espera. É claro, não terão sucesso, pois os exames são feitos para alunos do
Sul, Sudeste, e mais grave ainda, é que não são pensados para a realidade
indígena. É necessário rever urgentemente para quem e por quem estão sendo
elaborados esses exames.
Diante das reflexões, acredito que a recomendação de D’Ambrosio
(2012) é relevante para a revolução pedagógica:
A transcidisciplinaridade recusa a arrogância da certeza e propõe a humildade da busca... É um novo pensar, uma outra forma de entender o conhecimento e o comportamento, visando sobreviver com dignidade. A grande meta da Educação é a formação de um indivíduo étnico, criativo e crítico (D’AMBROSIO, 2012)
Portando, reforço que a abordagem Etnomatemática, um programa
transcultural, é o caminho para: enaltecer os conhecimentos matemáticos
tradicionais macuxi; apontar estratégias de ação coletiva que possam contribuir
na construção dos currículos escolares; intensificar o diálogo entre anciões,
crianças e jovens que vem diminuindo gradativamente.
De posse das análises realizadas no contexto geral, pude concluir que
a educação escolar no contexto sociocultural de hoje teve avanços importantes
desde a colonização. No Século XXI, os povos indígenas, assim como outros
povos ditos “isolados” depararam-se, fortemente, com culturas diferentes. O
choque de culturas promoveu transformações em todos os sentidos: língua,
145
modos de sobrevivência, etc. A tecnologia adentrou as comunidades indígenas,
o mundo globalizado os obriga a transcender. Por exemplo, nos dias atuais, as
crianças iniciam bem cedo a ter contato com o mundo tecnológico (celular,
televisão, computador etc.). Essa adaptação influenciou também na escola, o
que não é de todo ruim, porém a comunidade escolar é responsável por usar
esses instrumentos como meio de aprendizagem, desenvolver suas próprias
estratégias de transcendência.
A educação indígena repassada de pelos anciões é de extrema
importância para formação do cidadão indígena, portanto, a dinâmica do saber
indígena tradicional e da escola, devem estar em sintonia, contextualizados. A
criança e o jovem recebem orientação da família e buscam o conhecimento
global para sua carreira profissional, sabendo que o compromisso com seu
povo é primordial.
É importante destacar a evidência de que o povo Macuxi, assim como
outros povos indígenas de Roraima, tem poder de articulação política
importantíssima. As reuniões comunitárias, regionais e estaduais contam com a
participação maciça de seus representantes legítimos, que propõem debates e
discutem o futuro dos seus descendentes.
A escola, hoje, é vista como uma grande colaboradora para
revitalização da cultura indígena; por isso, os professores estão presentes
nessas discussões e participam ativamente das decisões de mudanças.
Esta pesquisa deteve-se na análise de três momentos importantes: o
ensino da matemática na escola Indígena Marechal Deodoro da Fonseca,
comunidade indígena Canavial; A oficina pedagógica realizada na comunidade
Pacú, envolvendo as escolas consideradas de difícil acesso, Índio Luís Trajano,
Santa Maria de Normandia, Índio Bernaldo, todas funcionando com o ensino
fundamental; e por último o curso de planejamento envolvendo as escolas de
Ensino Fundamental e Médio da região Baixo Cotingo, Terra indígena Raposa
Serra do Sol.
Durante a pesquisa de campo, foi possível perceber aspectos
importantes sobre a educação escolar e as dificuldades dos educadores
indígenas. Primeiro, procurei elencar algumas dificuldades que ora vem se
tentando superar.
146
Um dos maiores desafios que os professores enfrentam é a construção
de um currículo dinâmico, próprio para as escolas indígenas, que respeite as
especificidades e os modelos próprios de cada comunidade.
No caso específico do currículo da Matemática, é um desafio que está
em processo de construção. Minha visão, nesse caso, é um currículo
etnocultural em constante revisão, partindo sempre do conhecimento que o
aluno possui e suas reais necessidades. É fato que os professores estão
procurando desenvolver metodologias contextualizadas, iniciando uma prática
interdisciplinar, no entanto, há um caminho longo para se chegar a um ideal
possível.
A escola pesquisada é um exemplo desse tipo de contexto. A
professora entrevistada nos mostrou que é possível promover o fazer
pedagógico intercultural. Quero frisar, mais uma vez, que o objetivo deste
trabalho não foi desenvolver fórmulas e cálculos matemáticos, ou montar um
modelo de currículo a ser seguido, uma vez que o currículo deve ser construído
pela própria comunidade escolar. O que este trabalho pode trazer é uma
reflexão sobre o processo educacional em Roraima, e principalmente ao que se
refere ao saber/fazer matemático.
Ao ser questionada sobre a atuação dos professores que ministram a
disciplina matemática, Alzineide nos respondeu:
Cada professor usa uma metodologia diferente, seja ela tradicional ou interdisciplinar, baseado nesse fato o ensino de Matemática na escola Marechal Deodoro da Fonseca, se desenvolve no cotidiano dos alunos. Por exemplo: ao ser realizado um evento na comunidade, os professores que ensinam a matemática utilizam como avaliação um relatório de cada aluno envolvendo a matemática.
Com base na resposta, é possível perceber concretamente que os
professores utiliza-se de instrumentos disponíveis para o desenvolvimento
cognitivo dos alunos em sala de aula, partindo de sua própria realidade. Outra
importante característica do curso de matemática é a inter-relação dos
conteúdos propostos com outras áreas de conhecimentos. Foi possível
perceber isso nos objetivos do planejamento bimestral de Alzineide (2010).
O ensino da disciplina de Matemática na Escola Marechal Deodoro da Fonseca tem por objetivo o aprendizado do aluno: a utilização de conceitos matemáticos na formulação de hipóteses sobre a solução de uma determinada situação problema comum ao seu cotidiano, sendo ele de ordem pessoal ou social, mas que leve o aluno a refletir
147
sobre a sua própria realidade atuando de forma direta na melhoria de sua comunidade, utilizando-se de inter-relação entre a matemática e os recursos tecnológicos em função de promover soluções para os problemas do dia a dia do aluno. Vale ainda ressaltar os seguintes pontos: 1) Identificar os conhecimentos matemáticos de sua cultura bem como meios para compreender, resolver situações a sua volta valendo-se das ferramentas que a matemática oferece. 2) Saber transmitir ideias matemáticas fazendo uso da linguagem oral (em língua portuguesa e indígena) e saber relacionar enunciados com representações matemáticas. 5) Estimular o estabelecimento de conexões entre temas matemáticos e temas de outras áreas como história, geografia, linguística e ciências, entre outros. 6) Sentir-se seguro da própria capacidade de construir conhecimentos matemáticos, desenvolvendo a auto estima e a perseverança na busca de soluções; 7) Interagir com seus pares de forma cooperativa, trabalhando coletivamente em busca de soluções para problemas propostos identificando aspecto consensuais ou não na discussão de um assunto, respeitando o modo de pensar dos colegas e aprendendo com ele.
Na prática, pude acompanhar o desenvolvimento de tais objetivos. A
professora conseguiu envolver escola e comunidade, pais e alunos na
construção de conhecimentos quando pediu aos alunos que investigassem que
tipo de medidas os pais utilizavam em seu trabalho cotidiano. Momento
satisfatório na visão de pais alunos e professores, pois proporcionou diálogo e
valorização da cultura tradicional indígena.
Diante disto, pode-se pensar em um currículo elaborado a partir de
temas contextuais, elaborando pequenos projetos visando os aspectos
culturais, locais e globais. Por exemplo, utilizando temas de eventos
comunitários, trabalhos de pesquisa, datas comemorativas, temas transversais
etc. Este aspecto pode ser possível com a ajuda dos gestores indígenas e
instituições parceiras que acompanham o processo pedagógico dessas
escolas. Dessa forma, podemos excluir o modelo de currículo estático, imposto
pelo Sistema Nacional para todas as escolas do Brasil, sobre o qual ficou
evidente o fato de não atender às necessidades das escolas indígenas.
O segundo momento de análise nos mostrou claramente que o sucesso
da educação escolar, independe do local, distância ou da tecnologia,
características de escolas mais próxima da capital. O desenvolvimento da
oficina pedagógica nas escolas de difícil acesso nos mostrou que o trabalho
coletivo de comunidades/escola é imprescindível na construção do currículo
matemático.
148
As crianças, desde cedo, aprendem técnicas de sobrevivência,
consequentemente de transcendência, desenvolvendo gradativamente um
conjunto de aprendizado que D’Ambrosio denomina como Etnomatemática.
Pude concluir nesta oficina que é possível a construção de saber/fazer
matemática a partir do contexto da criança. A princípio, o professor faz o
diagnóstico prévio do conhecimento do aluno, em seguida ambos vão definindo
as formas do curso de matemática, procurando fortalecer os aspectos culturais,
intraculturais (culturas internas) e interculturais (culturas externas).
Pensando no contexto externo, pensa-se no mundo globalizado que
independentemente do contexto escolar não se pode desconsiderar. No
entanto, antes de discutir as metodologias do ensino da Matemática propostas
pelos não índios, é imprescindível observar exemplos de diferentes formas de
ver, praticar e ensinar a matemática dos povos indígenas. Os professores
precisam refletir sobre o papel da Matemática no currículo das escolas
indígenas e propor algumas sugestões de ensino; trocar experiências pessoais
de atividades matemáticas com outros professores; discutir a importância social
dos conhecimentos matemáticos nos ambientes escolares.
Em âmbito regional, a pesquisa mostrou que as dificuldades
pedagógicas se devem a formação continuada do professor.
Repito o que disse anteriormente sobre a formação de professores no
Estado. Em 2002, iniciou-se a Formação em Licenciatura Intercultural,
formando especificamente professores indígenas. Para nível médio, temos o
Magistério Indígena, entretanto, ficou claro, no último momento de análise, que
ainda não é o ideal.
Os cursos procuram desenvolver uma metodologia intercultural,
incentivando os professores no desenvolvimento de pesquisas científicas locais
para o resgate e valorização da cultura. Apesar desse contexto, a prática dos
professores na escola apresentaram contrastes que precisam ser analisados
pelos formadores e formandos.
Trago a conclusão de que o processo de formação dito Intercultural
continua “engaiolado”. Os professores desenvolvem práticas pedagógicas
diferentes dos conhecimentos adquiridos no curso intercultural, ou seja, na
formação existe um contexto com outras áreas de conhecimentos, enquanto a
prática do professor na sala de aula é isolada, descontextualizada. Posso
149
concluir que os professores ainda praticam uma metodologia disciplinar, não
conseguiram transmitir a interculturalidade para o ensino/aprendizagem,
principalmente no Ensino Médio. A educação inter e transcultural ainda é falha
na formação de professores. Muito se discute sobre o tema, porém ainda não
acertaram o caminho para o currículo transcultural.
Apesar de a educação intercultural ser ideal para os povos indígenas,
não existe receita pronta; portanto, é necessário empenho, perseverança e
muito aprendizado para que os formadores atuem de forma participativa em
busca de uma proposta educacional digna.
O professor D’Ambrosio (2012) enfatiza que o educador matemático
deve ter o conhecimento transcultural, para isso ele deve sair da “gaiola” da
tradicionalidade em busca da transculturalidade, “o novo está fora da gaiola”.
Nos encontros de culturas, conhecimentos novos acontecerão, somente se o
educador sair do seu “mundo” disciplinar, o mundo da Matemática, da Física,
do Português, Ciências, da História etc. e relacionarem-se, abrindo a porta para
o aprendizado inter e transcultultural.
Volto a afirmar que o saber/ fazer matemática de forma crítica, é
possível com o Programa Etnomatemática, pois trata-se de um programa que
busca valorizar a todas as matemáticas, o caráter político, ideológico e sócio-
econômico centrado na formação individual e social do cidadão indígena.
Desse modo, o professor indígena reúne excelentes condições para
modificar a proposta de educação para cidadania, privilegiando as vivencias
interculturais dos envolvidos no processo educacional.
Sendo assim, sugiro, para as formações presentes e futuras, que
proporcionem reflexibilidade aos seus currículos e propostas pedagógicas,
oportunidades para o professor pesquisador desenvolver um programa
dinâmico, contextualizando a matemática indígena e não indígena, conceitos
locais e globais. Os currículos de matemática das escolas indígenas merecem
atenção, devem deixar de serem cópias de currículos nacionais, repetitivos e
enfadonhos.
Esta pesquisa nos mostrou parte do caminho percorrido, os desafios e
conquistas da formação do professor e suas práticas pedagógicas. Sabendo
que é possível fortalecer a educação matemática, que encontra-se em
processo de construção no contexto educacional macuxi. Frisamos ainda, que
150
não se pode construir a dinâmica do currículo da matemática independente das
relações sociais interculturais.
Para tanto, deixo para o educador matemático meu incentivo para a
busca do novo, procurar o máximo de conhecimentos sobre a História da
Matemática; a matemática dos povos indígenas; valores culturais, assim como
os conceitos matemáticos formais (Matemática Financeira, Medidas e Formas
em Geometria, equações, funções afins, funções quadráticas, funções
polinomiais, funções exponenciais e logarítmicas, progressões, sistema de
equações, matrizes e determinantes, introdução a números complexos etc.);
um conhecimento maior sobre a Modelagem Matemática, que certamente será
útil para construção de Materiais Didáticos e a Didática da Resolução de
Problemas que estão presente no nosso saber/ fazer matemática.
151
REFERÊNCIAS
1. Fontes bibliográficas
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157
ANEXOS Anexo A- Entrevistados Fontes orais: entrevistados durante a pesquisa.
Agostinho Paulino: liderança indígena da etnia Macuxi, Terra Indígena Raposa Serra do Sol; nascido no dia 25/08/1937; 49 anos como Tuxaua da Comunidade Cararual; 29 anos como Coordenador da Região Baixo Cotingo; 01 ano como Coordenador de Base do CIR. Depoimento concedido em Outubro de 2010, janeiro de 2011, na comunidade cararual. Alzineide Almeida de Castro: professora macuxi, com 25 anos de idade, moradora da comunidade Canavial, aluna do curso de Licenciatura Intercultural Insikiran/UFRR. Casada tem duas filhas. Depoimento concedido em março de 2011, na comunidade Canavial e Janeiro de 2012 em Boa Vista, RR.
Julia Manayari Paulino: Viúva, matriarca da família Paulino, tem 103 anos de idade. Moradora da comunidade São Pedro. Depoimento concedido em outubro de 2010, na comunidade São Pedro. Rari Lima: tuxaua da comunidade Mari- Mari, 65 anos de idade, professor de língua Materna Macuxi. Depoimento concedido em Novembro de 2011, na comunidade Jawarizinho. Telmo Ribeiro Paulino: professor e atual coordenador da Organização dos Professores Indígenas de Roraima-OPIRR, aluno da Licenciatura Intercultural Inssikiran/UFRR. Com 39 anos de idade, casado tem 02 filhos, descendente da família Paulino, morador da comunidade Cararual. Depoimento concedido em janeiro de 2012, em boa vista, RR.
158
Anexo B - Termo Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Título da Pesquisa: “Etnomatemática: situações, problemas e práticas
pedagógicas na realidade do sistema educacional macuxi em Roraima”
Nome do (a) Pesquisador (a): GLEIDE DE ALMEIDA RIBERO
Nome do (a) Orientador (a): Professor Dr. Ubiratan D´Ambrosio
O Sr. ou Sra. e seu (sua) filho (a)................................ estão sendo
convidados a participar desta pesquisa que tem como finalidade investigar as
estratégias de ação comum no processo de ensino aprendizagem do saber /
fazer matemático desenvolvido pelos profissionais da educação e como está
sendo usado os valores socioculturais do povo Macuxi neste processo.
Ao participar deste estudo os senhores permitirão que a pesquisadora
Gleide de Almeida Ribeiro colete os dados necessários para sua pesquisa
através de entrevistas gravadas e áudio e vídeo. Os senhores têm liberdade de
se recusar a participar e ainda se recusar a continuar participando em qualquer
fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo. Sempre que quiserem poderão pedir
mais informações sobre a pesquisa através do telefone da pesquisadora do
projeto e, se necessário através do telefone do Comitê de Ética em Pesquisa.
Sobre as entrevistas:
As entrevistas de darão em encontros de aproximadamente uma hora em
dia e horário combinado entre a pesquisadora e os entrevistados.
Riscos e desconforto: a participação nesta pesquisa não traz
complicações legais.
Um possível desconforto será o tempo dispensado para tais entrevistas
por parte dos participantes, porém qualquer sinal de cansaço ou indisposição
poderá ser interrompida. Os procedimentos adotados nesta pesquisa
obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme
Resolução no. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos
procedimentos usados oferece riscos à dignidade dos senhores.
159
Confidencialidade: todas as informações coletadas neste estudo são
estritamente confidenciais. Somente a pesquisadora e o orientador Prof. Dr.
Ubiratan D`Ambrosio terão conhecimento dos dados.
Benefícios: ao participar desta pesquisa os senhores não terão nenhum
benefício direto. Entretanto, esperamos que o resultado deste trabalho traga
contribuição relevantes para reavivar a cultura, assim como, trazer a tona os
conceitos matemáticos culturais dos Macuxi, e que a informações sejam
usadas na proposta de currículo das escolas indígenas do estado de Roraima.
Acreditamos que a pesquisa proporcionará momentos de conhecimentos
recíprocos e os resultados sejam divulgados e atribuídos a todos os
participantes.
Pagamento: Os senhores não terão nenhum tipo de despesa para
participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua participação.
Após estes esclarecimentos, solicitamos o seu consentimento de forma
livre para participar desta pesquisa. Portanto preencha, por favor, os itens que
se seguem: Confirmo que recebi cópia deste termo de consentimento, e
autorizo a execução do trabalho de pesquisa e a divulgação dos dados obtidos
neste estudo.
Obs: Não assine esse termo se ainda tiver dúvida a respeito.
Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e
esclarecida, manifesto meu consentimento em participar, de meu filho (a) ou
alguém de minha família em participar desta pesquisa.
Responsável 1 RG:
__________________________________
Responsável 2 RG:
___________________________________
Pesquisadora: Gleide de Almeida Ribeiro
___________________________________
Orientador: Prof. Dr. Ubiratan D`Ambrosio
Pesquisadora: Gleide de Almeida Ribeiro, RG: 89627, telefones: (11) 6073-
9660/ (95)36257682
160
Orientador: Prof. Dr.Ubiratan D`Ambrosio, RG:1425462, telefone (11) 3088-
0266
Telefone da Comissão de Ética: (11) 2972-9000
E-mail: [email protected]
Eu,___________________________________,RG nº
__________________,responsável legal por
____________________________________, RG nº_____________________
declaro estar suficientemente informado a respeito das informações que li
acima, ou que foram lidas para mim, a respeito do projeto “Etnomatemática:
situações, problemas e práticas pedagógicas na realidade do sistema
educacional macuxi em Roraima” Ficaram claros para mim quais são os
propósitos do estudo, os procedimentos, as garantias de confidencialidade e
autorizo a veiculação dos resultados para os usos mencionados. Está claro
também que minha participação é isenta de qualquer tipo de despesas. Assim
sendo, concordo em participar deste estudo e poderei retirar o meu
consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem
penalidades ou prejuízo para mim e sem prejuízo para a continuidade da
pesquisa em andamento.
São Paulo, _____ de ____________ de _______
_______________________ ________________________________
Assinatura do sujeito de assinatura do pesquisador pesquisa/representante legal responsável
________________________
______________________ Assinatura da testemunha
Assinatura da testemunha
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste sujeito de pesquisa ou representante legal para a participação neste estudo.
______________________________
Assinatura do responsável pelo estudo
Data ____/_____/_____
161
Anexo C – Questionário utilizado para orientar a pesquisa de campo com
professores
QUESTIONÁRIO RESPONDIDO PELO PROFESSOR E COORDENADOR DA
OPIRR – TELMO RIBEIRO PAULINO DO POVO MACUXI.
1. Qual a sua visão geral sobre a Educação Escolar Indígena em Roraima: no
contexto Professores indígenas: Atuação, formação e profissionalização?
- É grande a demanda dos professores indígenas ainda sem formação em
magistério ou nível superior, a maioria deles assume a sala de aula sem passar
por capacitações básicas para lidar com alunos de diversos níveis e culturas.
Vale ressaltar que os professores não índios com formação não tem os
conhecimentos necessários sobre os povos indígenas o que impede o
desenvolvimento de uma proposta intercultural, ou melhor, transcultural,
acabam perdidos e assim prejudicam toda uma discussão que vem sendo
realizado a tempo. O acesso a informações reais sobre os povos indígenas
ainda são muito precárias o que vem dificultando ao longo dos anos a
compreensão do que seja a educação escolar indígena. Em Roraima já tem um
avanço significativo sobre E.E.I., a maioria dos professores nas comunidades
indígenas hoje são membros de suas próprias aldeias e buscam formação. Não
podemos esquecer que as dificuldades e prejuízos são incalculáveis quanto às
culturas tradicionais que se perderam aos poucos e luta-se ainda para o não
desaparecimento total, mesmo que a sociedade ainda possua uma noção
errônea sobre os povos indígenas denominando-os como seres ultrapassados,
primitivos, aculturados e sem vontade própria. Ainda é recente que os sistemas
de ensino deram início à elaboração de propostas para a formação especifica
dos professores indígenas, o bom seria que as políticas públicas tivessem uma
visão voltada aos povos indígenas como um povo que constrói uma educação
transcultural, o que precisa ser feito com certeza são incentivos e apoio para
que os professores, alunos e comunidade construam seus próprios materiais
didáticos voltados a sua realidade. O processo de formação é carente de
cursos específicos e recursos humanos indígenas e não indígenas com uma
162
noção clara da questão curricular que é tão complexa, acabando em
tradicionalismo e capacitações como ações isoladas ao contrario do que se tem
ouvido nos discursos de grandes lideres indígenas. Os recursos financeiros
aplicados, em alguns casos, são apenas os repassados pelo MEC, ainda
assim, não atendeu à demanda de qualificação da totalidade dos professores
indígenas já em serviço. É bastante diversificada a situação dos professores
indígenas com relação ao vinculo empregatício, a demanda se resume em
professores estaduais, municipais, seletivados e alguns são voluntários, ainda
assim existem escolas paralisadas ou extintas por falta de professores. É
urgente e necessário que se institua e regulamente a carreira do magistério
indígena que deverá garantir aos professores indígenas, além de condições
adequadas de trabalho, remuneração compatível com as funções exercidas e
isonomia salarial com os demais professores da rede de ensino devendo ser a
forma de ingresso por meio de concurso publicam especifico, adequado às
particularidades lingüísticas e culturais dos povos indígenas. Existem inúmeros
desafios que os professores enfrentam para exercer uma pratica intercultural
nas escolas: choque de lideranças, valorização de nossos conhecimentos em
detrimento das praticas e ciências indígenas, metodologias voltadas a
interculturalidade, matériais didáticos diferenciados, os currículos das escolas
indígenas ainda são disciplinar, não existe um referencial curricular específico
na maioria dos estados, o RCNEI deixa muito a desejar quando os professores
vão para a sua prática em sala de aula, pois estão acostumados a repassar os
conteúdos prontos, praticando o método tradicional que prevalece ate hoje. É
importante salientar que os professores devem ser em 1º lugar comprometido
com a educação escolar indígena para o desenvolvimento do processo de
ensino – aprendizagem sendo articuladores, facilitadores, intervindo,
orientando, problematizando, considerando a atitude de curiosidade dos
diversos alunos para construção de novos conhecimentos, o professor deve
entre outras funções primordiais ser capaz de envolver a comunidade e
detectar juntamente com os seus alunos os problemas que atingem
diretamente o ensino aprendizado e a vida comunitária, propondo soluções
cabíveis para o avanço e qualidade de ensino nas modalidades existentes nas
escolas indígenas.
163
2. O que você tem a dizer sobre as práticas pedagógicas dos professores para
o ensino da disciplina matemática na escola?
- A prática pedagógica dos professores tem sido razoável no ensino da
Matemática nas escolas, devido à falta de oficinas pedagógicas
especificamente para os professores de Matemática com metodologias novas
para melhorar com as atividades e incentivar, levantar a autoestima dos
professores.
3. Qual a sua participação nesse processo de ensino aprendizagem?
- Pedagogicamente a minha participação tem sido pequena, mais politicamente
e como representante de organização tenho como meta para 2012 realizar
oficina pedagógica em áreas exatas nas regiões com parceria da UFRR,
CEFOR, DIEI e OPIRR, toda essa parte pedagógica seria o papel da SECD
mais isto não esta acontecendo e deixa sempre a desejar.
4. Qual a sua opinião quanto aos resultados do rendimento dos alunos na
disciplina de Matemática?
- O rendimento dos alunos indígenas na disciplina de matemática tem sido
muito fraco devido à ausência de oficinas de capacitação para os profissionais
na área.
5. Quais as propostas de melhoria para prática do professor?
- A proposta é realizar oficinas de capacitação para os professores de
Matemática, dessa forma a prática pedagógica irá ter um resultado satisfatório.
6. Onde a matemática cultural está sendo usada como ferramenta de
contribuição para seu trabalho?
- A Matemática cultural não esta sendo utilizado nas escolas devido à falta de
oficinas pedagógicas e com professores que conhecem a Matemática cultural
que tenham esse domínio/conhecimento da disciplina.
7. Descreva os pontos positivos e negativos para uso da Matemática no
cotidiano da comunidade escolar.
Pontos positivos da Matemática na comunidade:
- Ajuda no desenrolar de uma construção;
- No percentual de dados populacional da comunidade e região;
- Gráfico de natalidade de crianças e velhos;
- Na construção de tanques para criar peixes;
- Na medida das roças.
164
- Nos dados de bovinos e outros animais da comunidade e região;
Pontos Negativos
- Falta de oficinas na área de Matemática para professores e com toda certeza
envolverá os alunos que sempre participam.
Anexo D – Questionário
QUESTIONÁRIO RESPONDIDO PELA PROFESSORA ALZINEIDE ALMEIDA
DE CASTRO DO POVO MACUXI.
1. O que você tem a dizer sobre as práticas pedagógicas dos professores para
o ensino da disciplina Matemática na escola?
- Cada professor usa uma metodologia diferente, seja ela tradicional ou
interdisciplinar, baseado nesse fato o ensino de Matemática na Escola
Marechal Deodoro da Fonseca, se desenvolve no cotidiano dos alunos por ex:
ao ser realizado um evento na comunidade os professores que ensinam a
Matemática utilizam como avaliação um relatório de cada aluno envolvendo a
Matemática.
2. Qual a sua participação nesse processo de ensino aprendizagem?
- Ensinar aos alunos a matemática de forma adequada que seja voltada pro
seu dia a dia.
3. Qual a sua opinião quanto aos resultados do rendimento dos alunos na
disciplina de Matemática?
- Tendo em vista os alunos estão muito devagar até porque não se interessam
muito pela disciplina.
4. Quais as propostas de melhoria para prática do professor?
- Que seja utilizada na convivência do aluno no seu cotidiano, no resgate da
cultura, na revitalização da língua materna, etc...
5. Onde a Matemática cultural está sendo usada como ferramenta de
contribuição para seu trabalho?
- Na forma de trabalho comunitário, na pescaria, na roça, pesquisa de campo,
nas construções de casas, barracões, etc...
6. Descreva os pontos positivos e negativos para uso da Matemática no
cotidiano da comunidade escolar.