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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO - LATO SENSU
AVM FACULDADE INTEGRADA
LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA AFRO-
BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
Por: Aline Gimenes Soares
Orientadora
Prof. Edla Trocoli
Rio de Janeiro
2012
2
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA AFRO-
BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
Apresentação de monografia à AVM Faculdade
Integrada como requisito parcial para obtenção do
grau de especialista em Educação Infantil e
Desenvolvimento
Por: Aline Gimenes Soares
3
AGRADECIMENTOS
Á Deus pela oportunidade de estar
concluindo minha segunda pós-
graduação e ao meu esposo Adam
Alfred pelo companheirismo, incentivo
e apoio recebidos ao longo do curso.
4
DEDICATÓRIA
Ao Colégio e Projeto Social AIACOM por
ter me dado á oportunidade de exercer
minha profissão, ampliando meus
horizontes na compreensão de uma
educação mais justa e igualitária.
5
“(...) todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje (...). Temos de saber
o que fomos, para saber o que seremos”
Paulo Freire
6
RESUMO
Através desta monografia apresenta-se o papel que a Literatura Infantil exerce
dentro do cenário educacional, como um recurso pedagógico a ser utilizado
para a construção da identidade da criança, em especial a afro-brasileira.
Analisa-se, portanto, a contribuição, ou não, desta ferramenta para a formação
identitária da criança e sua importância dentro do contexto escolar. Valendo-se
de referenciais teóricos que contemplam em seus discursos a Literatura a favor
de uma educação que prioriza a diversidade da sociedade brasileira.
7
METODOLOGIA
Para a realização deste trabalho recorreu-se a revisão bibliográfica de
autores que se dedicaram a pesquisar o tema em questão: A Literatura Infantil
e a Construção da Identidade da Criança Afro-brasileira. Foram utilizados, em
especial, livros e pesquisas a sites especializados que tratam do assunto.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
CAPÍTULO I 11
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL 11
1.1 – Breve histórico da literatura infantil no cenário nacional 11
1.2 – Por que ouvir histórias na Educação Infantil – o papel do professor 14
CAPÍTULO II 18
A LITERATURA INFANTIL NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA
CRIANÇA
18
2.1 – O processo de construção identitária da criança 18
2.2 – Um olhar sobre a identidade étnico-racial nos livros infantis:
A literatura de Monteiro Lobato
20
2.3 – A Lei 10.639/03, a literatura e a formação da criança pequena 23
CAPÍTULO III 26
A LITERATURA E A CRIANÇA AFRODESCENDENTE: Construção ou
Negação
3.1 – Porque abordar as questões étnico-raciais na literatura infantil
3.2 – Os esteriótipos das histórias infantis: igualdade ou discriminação
racial?
26
26
28
33
CONCLUSÃO 36
BIBLIOGRAFIA
ÍNDICE
39
41
9
INTRODUÇÃO
A escola como espaço educativo, deve fortalecer a identidade e
subjetividade de seus alunos, utilizando-se de inúmeros recursos, um deles é a
literatura infantil.
A literatura pode (e deve) possibilitar um trabalho grandioso em sala de aula,
que valorize a identidade, respeito às diferenças e reflexão acerca das relações
constituídas na sociedade, além de instigar a imaginação e fantasia,
características pertinentes à infância.
O contato da criança com as histórias infantis é (ou pelo menos deve
ser) estabelecido desde a Educação Infantil, pois através da história a criança
reflete sobre sua condição pessoal e sobre sua existência no mundo social. De
acordo com Coelho (2000, p.43) a literatura feita para crianças é “o meio ideal
não só para auxiliá-las a desenvolver suas potencialidades naturais, como
também auxiliá-las nas várias etapas de amadurecimento que medeiam entre a
infância e a idade adulta”. Logo, podemos fazer emergir a partir da contação de
histórias, diversos sentimentos, modos de pensar, agir e de se relacionar
consigo mesmo e com o outro. Para Heloísa Pires Lima:
A psicanálise folheou as ingênuas obras e nos contou uma
história de profundos conflitos psíquicos, relacionando
personagens a chaves emocionais, como abandono,
perda, competitividade, autonomia, etc., que auxiliariam na
ordenação da caótica vida interna da criança em
formação. Para além de uma função, a terapêutica, as
narrativas voltadas para um leitor jovem apresentam o
dinamismo das diferentes culturas humanas e o que
imaginamos ser um espaço de significações, aberto às
emoções, ao sonho e à imaginação.
Partindo do pressuposto de que a instituição escolar é notadamente um
ambiente de diferentes culturas, onde a diversidade étnico–racial se faz
presente na convivência entre crianças brancas, negras, indígenas, entre
10
outras, o professor tem o papel de mediar e orientar toda a complexidade das
relações humanas. Buscando também na literatura a diversidade presente na
nossa gente, no nosso povo, nos nossos alunos.
Se nossa sociedade é plural, étnica e culturalmente, desde os
primórdios de sua invenção pela força colonial, só podemos
construí-la democraticamente respeitando a diversidade do
nosso povo, ou seja, as matrizes étnico-raciais que deram ao
Brasil atual sua feição multicolor composta de índios, negros,
orientais, brancos e mestiços. (MUNANGA, p.18)
Portanto, este trabalho apresenta como objetivo geral a tentativa de
analisar criticamente a importância da literatura na Educação Infantil para a
construção da identidade da criança, em especial a afrodescendente.
Permitindo que o educador reflita acerca das histórias que não abordam as
questões étnico-raciais nos livros infantis.
Ressalta ainda como objetivos específicos a importância da literatura infantil no
cenário educacional; a literatura a serviço da igualdade nos aspectos social e
cultural no interior das escolas e a elevação da autoestima da criança negra no
ambiente escolar.
Espera-se com este trabalho justificar a importância da literatura infantil
como mais um recurso disponível no auxílio da formação da identidade da
criança dando destaque as afro-brasileiras, buscando de igual modo,
alternativas de promoção da igualdade racial, na educação, através dos livros
infantis.
11
CAPÍTULO I
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Bendito aquele que semeia livros e faz o povo pensar.
Castro Alves
1.1 – Breve histórico da literatura infantil no cenário
nacional
A literatura infantil brasileira começou a dar os seus primeiros ensaios no
início do século XIX com a implantação da Imprensa Régia, que iniciou
oficialmente em 1808 a atividade editorial no Brasil, publicando livros para
crianças. As publicações consistiam em traduções de livros como: As
aventuras pasmosas do Barão de Munkausen, a coletânea de José Saturnino
da Costa Pereira, Leitura para meninos, contendo uma coleção de histórias
morais relativas aos defeitos banais às idades tenras, dentre outras poucas
obras. Estas publicações eram esporádicas, portanto, insuficientes para
caracterizar uma produção literária brasileira regular para a infância. A história
literária no Brasil para crianças só se efetivou tardiamente, nos arredores da
proclamação da República, quando o país passava por grandes
transformações: a modernização.
Decorrente a esta acelerada modernização e urbanização, causada pelo
expansionismo do capitalismo e o fim da escravatura, o momento se tornou
propício para o advento da literatura infantil. Os consumidores de produtos
industrializados foram formando diversos públicos para os quais se destinavam
as publicações, de material escolar à livros e revistas para crianças, como por
exemplo, a revista infantil Tico-Tico.
O sucesso do lançamento, a longa permanência da
revista no cenário editorial, a importância de suas
personagens na construção do imaginário infantil
12
nacional, a colaboração recebida de grandes artistas –
tudo isso referenda que o Brasil do começo do século,
nos centros maiores, já se habilitava ao consumo dos
produtos da hoje chamada indústria cultural. (LAJOLO e
ZILBERMAN, 1987, p. 24)
De acordo com Lajolo e Zilberman antes de todo este modernismo não
havia uma preocupação em escrever para os “pequenos” porque não existia
ainda a concepção de “infância” que temos nos dias de hoje. Logo a
compreensão de uma faixa etária diferenciada, com interesses próprios e
necessitada de uma formação específica, só foi possível com o surgimento da
sociedade moderna advinda com uma nova classe social dominante: a
burguesia.
Antes da constituição deste modelo familiar burguês,
inexistia uma consideração especial para com a infância.
Esta faixa etária não era percebida como um tempo
diferente, nem o mundo da criança como um espaço
separado. Pequenos e grandes compartilhavam dos
mesmos eventos, porém nenhum laço amoroso especial
os aproximava. A nova valorização da infância gerou
maior união familiar, mas igualmente os meios de
controle do desenvolvimento intelectual da criança e a
manipulação de suas emoções. Literatura infantil e
escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são
convocadas a cumprir esta missão (ZILBERMAN, 1987,
p.13)
Com o aperfeiçoamento do sistema escolar, patrocinado pela burguesia,
a escola tornou-se a instituição em que as sociedades modernas confiaram à
iniciação da infância, tanto em seus valores ideológicos, quanto nas
habilidades e técnicas, assim como nos conhecimentos necessários à
produção de bens culturais. Portanto é na transição entre os séculos XIX e XX
que se abre espaço, nas letras brasileiras, para um tipo de produção didática
literária direcionada em particular ao universo infantil.
13
Apesar de todo o movimento de valorização da escola, e, portanto, de
uma necessidade de produção literária diversificada, houve uma preocupação
em atender a demanda da sociedade que se apresentava carente de material
adequado para as crianças brasileiras. Um exemplo de precariedade de
material literário nacional estava nas traduções e adaptações de histórias
europeias que circulavam no Brasil desta época. Editadas em Portugal, as
histórias eram escritas num português que se distanciava bastante da língua
materna dos leitores brasileiros. Assim ao final do século XIX existiu um grande
apelo sobre a importância da leitura na formação do cidadão. A partir daí
intelectuais, jornalistas e professores começaram a produzir livros infantis que
tinham público certo. De acordo com Lajolo e Zilberman todas as obras
produzidas estavam destinadas ao “corpo discente das escolas igualmente
reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil
moderno”. (p. 28)
Desta forma houve a justificativa para tantos apelos nacionalistas e
pedagógicos, estimulando a produção de livros infantis brasileiros e de corretas
traduções do forte panorama de obras infantis estrangeiras, presentes nos
clássicos dos irmãos Grimm, Perrault e Andersen, divulgados nos Contos da
Carochinha (1894) nas Histórias da avozinha (1896) e nas Histórias da
Baratinha (1896), todas as obras assinadas por Figueiredo Pimentel e editadas
pela livraria Quaresma.
Todo este movimento em prol de produções nacionais, a forte referência
literária nos moldes europeus e o advento da República deram origem a
produções literárias brasileiras com uma nova função educativa: o livro como
um grande instrumento de difusão do civismo e patriotismo, com narrativas que
faziam alusão a episódios e heróis brasileiros e à exaltação da natureza.
Para Lajolo e Zilberman:
...uma literatura infantil a serviço de um fim ideológico é
bastante marcado por um dos traços mais constantes da
literatura brasileira não infantil: a presença e exaltação
da natureza e da paisagem que, desde o romantismo...
14
permanece como um dos símbolos mais difundidos da
nacionalidade. (1987, p. 39)
Analisando o início da trajetória da Literatura Infantil observamos que a
mesma esteve atrelada às influências da Europa e consequentemente aos
interesses políticos da época e das classes dominantes. A literatura infantil
dentro deste cenário contribuiu para a formação da elite cultural burguesa,
através da reutilização de material literário oriundas das adaptações dos
clássicos e de produções de cunho patriótico. Ambas carregavam valores e
padrões de normas e condutas incutidas em suas narrativas.
Sobre os clássicos dos contos de fadas:
O conto de fadas, como é apresentado à infância, faz a
criança acostumar-se, ou pelo menos deve acostumá-la,
a reagir de forma conformada de sonhos, quando
desenvolve impulsos que estão em desacordo com a
sociedade. (ZILBERMAN. 1987, p.46)
Numa perspectiva mais moderna a literatura passou a enfatizar a
necessidade de uma formação mais emancipada das crianças, as obras
infantis responderam as novas exigências com textos mais renovados, que
procuraram estimular a criatividade infantil, transmitindo ao mesmo tempo
mensagens mais progressivas aos leitores mirins.
1.2 – Por que ouvir histórias na Educação Infantil – o papel
do professor
A leitura é uma atividade decisiva na formação intelectual e social dos
pequeninos, na medida em que a mesma permite a criança um discernimento
do mundo e um posicionamento perante a sua realidade. Logo, a justificativa
que legitima a sua importância dentro da instituição escolar está no papel
formador e transformador da leitura ao narrar histórias que contemplem as
15
diferentes culturas presentes na sociedade e aos enredos carregados de
mistérios, magias e aventuras - características pertinentes à primeira infância.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil comtempla o
texto acima, quando em suas páginas, 25 e 26, salienta que:
Por meio da linguagem, o ser humano pode ter acesso a
outras realidades sem passar, necessariamente, pela
experiência concreta. Por exemplo, alguém que more no
sul do Brasil pode saber coisas sobre a floresta ou povos
da Amazônia sem que nunca tenha ido ao Amazonas,
simplesmente se baseando em relatos de viajantes, ou
em livros. Com esse recurso, a criança tem acesso a
mundos distantes e imaginários. As histórias que
compõem o repertório infantil tradicional são inesgotável
fonte de informações culturais, as quais se somam a sua
vivência concreta.
Deste modo a escola é um espaço privilegiado para estimular o gosto
pela leitura, assim como para o intercâmbio da cultura, “não podendo ser
ignorada, muito menos desmentida a sua utilidade”. (ZILBERMAN, p.14)
Em se tratando da instituição escolar, enquanto formadora de leitores, é
imprescindível que o professor seja o mediador para que de fato o “ouvinte”
mirim possa desenvolver as habilidades advindas com as estórias infantis.
Segundo Zilberman formar o leitor crítico é atribuição do educador, que leva a
criança a tomar consciência do real, a posicionar-se perante a vida, a perceber
e diferenciar os temas e personagens presentes na trama ficcional, e a
conviver com a realidade e a fantasia.
... razão e imaginação não se constroem uma contra a
outra, mas, ao contrário, uma pela outra. Não é tentando
extirpar da infância as raízes da imaginação criadora que
vamos torná-la racional. Pelo contrário, é auxiliando-a a
manipular essa imaginação criadora cada vez com mais
habilidade... (HELD, 1980, p.48)
16
Assim como Zilberman, a mestre em Educação Joseane Maia destaca
em seu livro Literatura na formação de leitores e professores que o professor
tem papel fundamental para a consolidação de uma leitura prazerosa e
significativa para o educando. O educador tem a função de “tornar acessível o
conhecimento exigido, de impor desafios para que a criança dê saltos no
aprendizado, incentivando sua curiosidade” a partir da literatura infantil. (p. 84)
Para tal, é necessário que o professor adote em sua prática, instrumentos
adequados ao cumprimento de sua função didática, utilizando o livro em sala
de aula, seguindo alguns critérios. De acordo com Zilberman estes critérios
são: (p.27)
a) A escolha de livros apropriados ao público infantil;
b) Ao emprego de recursos metodológicos eficazes, que estimulam e
valorizam a leitura, suscitando o entendimento das obras e a
verbalização, pelos alunos, do que foi assimilado e aprendido;
c) O conhecimento de um acervo literário significativo;
d) O domínio de critérios de julgamento estético, que permitam a seleção
de histórias de valor e qualidade;
Porém o importante é que a literatura infantil no âmbito escolar não se
resuma apenas a mais um “pedagogismo”, com o intuito de transmitir
conteúdos, ideais, conceitos e valores, mantendo somente um caráter
educativo. Mas que o professor utilize esta ferramenta para aguçar o
desenvolvimento, criatividade e imaginação da criança, valendo-se de variadas
narrativas, seja pela poesia, contos de fadas, mitologias, folclore ou histórias de
heróis aventureiros. É possibilitar ao aluno um pensamento questionador e
crítico sobre sua realidade.
Estas e outras questões são destacadas por Held, autora francesa que
apresenta uma análise minuciosa do universo do livro infantil. Held critica o
pedagogismo, que empobrece a leitura da obra literária destinada à criança e
valoriza a leitura que apresenta a fantasia em suas narrativas:
17
O papel do fantástico não é, de maneira alguma, dar a
criança receitas de saber e de ação, por mais exatas que
sejam. A literatura fantástica e poética é, antes de tudo e
indissociavelmente, fonte de maravilhamento e de
reflexão pessoal, fonte de espírito crítico, porque toda
descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois, mais
críticos diante do mundo. (HELD, 1980. P243)
Em conformidade com Held, Zilberman salienta que uma das relevâncias da
literatura no seio educacional é formar o leitor crítico, permitindo que a mesma
(literatura) assuma uma função formadora e não meramente pedagógica. Todo
este trabalho deve ser desenvolvido desde as tenras idades, ou seja, começa
na Educação Infantil.
18
CAPÍTULO II
A LITERATURA INFANTIL NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE DA CRIANÇA
Para compreender o outro,
É preciso compreender a si mesmo.
A literatura nos fornece grandes lições sobre isso.
Edgar Morin
2.1 – O processo de construção identitária da criança
O desenvolvimento da identidade está fortemente relacionado com os
processos de socialização. Logo as instituições de educação infantil que se
constituem, por excelência, em espaços de socialização, propiciam o contato e
o confronto entre crianças, adultos e suas diferenças socioculturais. Todo este
contato com a diversidade colabora para que a criança construa sua identidade
e torne também a escola um campo privilegiado para a “experiência educativa”.
De acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil:
A identidade é um conceito do qual faz parte a ideia de
distinção, de uma marca de diferença entre as pessoas,
a começar pelo nome, seguido de todas as
características físicas, de modos de agir e de pensar e
da história pessoal. Sua construção é gradativa e se dá
por meio de interações sociais estabelecidas pela
criança, nas quais ela, alternadamente, imita e se funde
com o outro para diferenciar-se dele em seguida, muitas
vezes utilizando-se da oposição. (Pg. 13)
A escola exerce uma função essencial, por constituir-se em uma das
principais instituições responsáveis pela formação do sujeito, possibilitando a
este a (re)construção de valores e condutas na afirmação de identidades. A
vivência com as diferentes origens socioculturais, religiões, etnias, costumes e
19
hábitos, permite a criança pequena na escola, conhecer-se, diferenciar-se e
refletir sobre sua condição social no mundo. De acordo com Stuart Hall (2005
apud CAMPOS - LIMA 2010, p178), a identidade é algo que se constrói ao logo
do tempo, de forma inconsciente e não inata existente na consciência do
momento em que nasce. “Ela permanece sempre incompleta, está sempre em
processo, sempre sendo formada”. Por este prisma, pais, responsáveis,
profissionais da educação e demais adultos são os responsáveis pela
construção da identidade da criança. Estas pessoas serão os modelos para os
“pequenos”, uma vez que conscientes ou inconscientemente, direcionarão o
que pode ser feio ou bonito, certo ou errado, pode ou não pode, transmitindo-
lhes valores éticos e morais, de modo que possam assegurar-lhes uma posição
na sociedade.
Portanto, um dos objetivos das instituições de Educação Infantil é
justamente criar possibilidades para que as crianças possam construir sua
identidade a partir da valorização da sua autoestima, respeitando e
reconhecendo suas características e seu modo de ser e viver:
É importante criar situações educativas para que, dentro
dos limites impostos pela vivência em coletividade, cada
criança possa ter respeitados os seus hábitos, ritmos e
preferências individuais. (RCN. p. 27)
Corroborando para os feitos descritos acima, um dos recursos a serem
utilizados pelo corpo docente da Educação Infantil é a Literatura. A literatura
pode possibilitar ao professor, um trabalho riquíssimo de valorização da
identidade, de respeito às diferenças e de potencialização dos quereres
infantis, “já que a criança é, por natureza, questionadora e pesquisadora... e
busca compreender o mundo que a cerca” (VILANOVA aput CAMPOS - LIMA
2010, p. 160).
Mas será que a literatura infantil disponibilizada nas escolas brasileiras
sempre esteve em conformidade com as orientações do Referencial Curricular
20
no que diz respeito “à valorização das características étnicas de nossas
crianças”? Ou ao “reconhecimento e respeito dos diversos grupos étnicos e
culturais das sociedades brasileiras”? Estas questões estiveram latentes nos
trabalhos da educadora Rita de Cássia Carvalho Lima. Para Lima, pedagoga
da Assessoria de Diversidade Étnico-Racial da Secretaria da Educação da
Rede Municipal de Itabuna – BA, a escola é um dos lugares onde as crianças
vivenciam diferentes situações que marcarão sua trajetória e que definirão sua
autoimagem e sua autoestima.
A maneira como cada um vê a si próprio depende
também do modo como é visto pelos outros. O modo
como os traços particulares de cada criança são
recebidos pelo professor, e pelo grupo em que se insere
tem um grande impacto na formação de sua
personalidade e de sua autoestima, já que sua
identidade está em construção. (RCN. p. 13)
Segundo Lima os modelos preestabelecidos pela sociedade, os padrões
de beleza e preferências étnicas historicamente construídas e apontados como
referenciais, pela mídia, pelos materiais didáticos e livros infantis, “interferem
de modo positivo ou negativo na vida dos diferentes alunos das escolas
brasileiras” (143). Neste sentido, Sousa (2001, aput CAMPOS - LIMA 2010, p.
196) afirma que “as imagens que moram em nossas mentes desde a infância
influenciam nossos pensamentos durante a vida.” Para Lima em se tratando de
imagens positivas, a criança poderá se tornar um adulto com maior
aceitabilidade das diferenças; do contrário, estas experiências, contribuirão
para a não aceitação do “próprio eu”, trazendo inúmeras dificuldades para a
criança que se encontra em processo de construção identitária.
2.2 – Um olhar sobre a identidade étnico-racial nos livros
infantis: A literatura de Monteiro Lobato Nasci do negro e do branco e quem olhar para mim
É como se olhasse para um tabuleiro de xadrez
A vista passando depressa fica baralhando cor
No olho alumbrado de quem vê.
21
Francisco José Teineiro
Observando o acervo de histórias e contos infantis, nos deparamos com
o “branqueamento” que vincula no imaginário coletivo brasileiro: das brancas
de neve, das cinderelas e da literatura de Monteiro Lobato, por exemplo.
Este último foi consagrado na literatura infanto-juvenil por ter criado o
Sítio do Pica Pau Amarelo. Obra que quebrou paradigmas, rompendo com o
círculo de dependência aos padrões literários provindos da Europa,
principalmente por valorizar a ambientação local da época da década de 20, ou
seja, a pequena propriedade rural. O autor também utilizou-se de personagens
nacionais dando ênfase principalmente às crianças da estória (Emília, Pedrinho
e Narizinho) que são os grandes protagonistas da trama. Monteiro Lobato
misturou a realidade com a fantasia, sendo reconhecido com êxito por todos
estes feitos. Porém Lobato pecou em sua obra ao dar evidência aos
personagens negros de uma forma inferiorizada. É o caso da personagem Tia
Anastácia, “cujo nível intelectual e comportamental não ultrapassa ao dos
pequenos, sendo às vezes, mesmo inferior”. (ZILBERMAN, p.55).
Portanto, a literatura de Monteiro Lobato, apesar de todo o seu prestígio e
reconhecimento, também colaborou para disseminar e cristalizar, no imaginário
coletivo brasileiro “o ideal de superioridade branca em detrimento da
inferioridade negra. Os personagens criados por ele tinham um lugar definido: o
de coisificação, animalização e subserviência.” (Rita de Cássia Carvalho Lima,
p.146).
Pois cá comigo disse Emília – só aturo estas histórias
como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer
não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm
humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até
bárbaras, coisa mesmo de negra beiçuda como Tia
Anastácia. Não gosto, não gosto e não gosto!
(MONTEIRO LOBATO. Histórias de Tia Anastácia. Ed.
Brasiliense: São Paulo. 6ª Ed. 1957 p. 30)
22
Ao utilizar este exemplo bastante conhecido, compreendemos que a
figura negra, na construção histórico-ideológica brasileira não esteve
contemplada de forma valorosa na literatura infantil.
Analisando todas as considerações acima e buscando consolidar a
História e Cultura dos povos africanos e dos afrodescendentes e no currículo
escolar, a lei n.º 10.639/03, defende ações afirmativas na reconstrução da
identidade étnico racial, de modo que contribua para a construção da
autoestima das crianças negras, bem como para a sensibilização das crianças
não negras no ambiente escolar.
Altera a Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial a Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “Histórias e Cultura Afro-
brasileira” e dá outras providências. (BRASIL, LDB,
2003)
Aos “olhos” da Lei o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental
e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput
deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do
Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileiras.
23
"Art. 79- O calendário escolar incluirá o dia 20 de
novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação. (Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da
Independência e 115o da República.)
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Percebemos a partir dos discursos acima, que o “olhar” do educador
deve ser o de criticidade ao selecionar livros infantis. Livros que não
propaguem pré-conceitos em relação a personagens afrodescendentes ou a
literaturas que contemplem apenas um único referencial de etnia e cultura. Mas
que as histórias infantis lidas nas escolas considerem, valorizem e apreciem a
diversidade presente em nossa sociedade. Para que crianças negras, brancas
e indígenas possam se vir nas histórias infantis, sem a disseminação negativa
de sua identidade, sem serem “desrespeitadas na sua vida cotidiana e sem
serem associadas a uma visão simplista e depreciativa na sua condição de ser
humano” (LIMA, p. 150).
2.3 – A Lei 10.639/03, a literatura e a formação da criança
pequena
Uma Educação antirracista não só
proporciona o bem estar do ser humano, em
geral, como também promove a construção
saudável da cidadania e da democracia
brasileiras.
Eliane Cavaleiro
Apesar da lei 10.639 vigorada e sancionada em 2003 dirigir-se
especificamente aos currículos do Ensino Fundamental e Ensino Médio, a
mesma dialoga também com o Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil que prevê em seus conteúdos, para o alunado de 04 anos
24
em diante, o respeito ás características pessoais da criança relacionadas ao
gênero, etnia, estatura etc. Bem como a valorização da cultura e do grupo ao
qual a mesma está inserida. (p.38).
De acordo com JORGE e AMÂNCIO, (2008) o trabalho com a literatura
ocupa um lugar privilegiado no atendimento dos objetivos da Lei 10.639, uma
vez que a literatura favorece a múltiplas oportunidades para debater aspectos
culturais e históricos do continente africano em detrimento da cultura brasileira.
A não efetivação desta lei no âmbito educacional corrobora para a ignorância,
que tem sido ao longo da história da humanidade, um campo fértil para a
“propagação de preconceitos”.
Para Jorge e Amâncio a utilização de Literaturas Africanas e Afro-brasileiras na
escola, além de desenvolver um trabalho antirracista, possibilita um trabalho
interdisciplinar que amplia o capital cultural do aluno nas áreas de: (p. 110).
• História:
Compreendendo os processos de colonização e de independência da história
do Brasil e de países africanos;
• Geografia:
Estudando os aspectos ambientais e demográficos do continente africano,
dando ênfase nos países de língua portuguesa;
• Artes:
Desenvolvendo diferentes linguagens e expressões artísticas a partir da
produção de eventos dentro das escolas, onde os alunos possam apresentar
espetáculos de música e dança, de leitura de poemas, exposição de fotos,
desenhos e pinturas.
O cerne da Lei 10.639/03 é propor uma educação para a diversidade,
que traga para o currículo a discussão sobre o trato democrático das
diferenças. A lei exige por parte das escolas, mudanças de postura
pedagógica: na superação de preconceitos, no desafio do diálogo cultural em
âmbitos nacionais e internacionais e uma postura aberta frente ao diverso.
25
Logo, observamos que o papel da escola da atualidade é o de criar
condições e espaços para que se discuta e reflita sobre a diversidade existente
nas sociedades. E neste sentido a literatura infantil exerce uma grande
influência formadora, pois o leitor infantil, deve ser tratado como um ser que
pensa, critica e reflete sobre o mundo. Que opina sobre a sociedade na qual
convive e participa, a partir da sua identificação com os enredos das histórias
infantis.
Esta visão educativa que permite o educando refletir e formar suas
opiniões é defendida por Paulo Freire, que acredita que a educação é um ato
político e que, portanto, exige ação intencional, posicionamentos e escolhas.
Este discurso imprime uma responsabilidade ainda maior às escolas, aos
docentes e ao poder público em promulgar literaturas que discutam e garantam
questões de afirmação positiva da cultura negra e das demais culturas nas
histórias infantis.
26
CAPÍTULO III
A LITERATURA E A CRIANÇA AFRODESCENDENTE:
Construção ou Negação
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua
pele, por sua origem ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem
aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.
(Nelson Mandela)
3.1 – Porque abordar as questões étnico-raciais na literatura
infantil
Uma literatura que represente de forma afirmativa a história, a origem e
as conquistas dos indivíduos afrodescendentes, contribuirá para que crianças
possam valorizar a identidade étnica do povo brasileiro, abolindo atitudes
preconceituosas e racistas em nosso meio educacional. Logo, torna-se
indispensável que os currículos e os livros escolares estejam isentos de
qualquer conteúdo racista ou de intolerância. É indispensável que as histórias
infantis dialoguem com as contribuições dos diversos grupos étnicos na
formação da nação e da cultura brasileira. Ignorar essas contribuições – ou não
lhes dar o devido reconhecimento – é também uma forma de discriminação
racial.
A educadora Inaldete Pinheiro Andrade em Construindo a Autoestima da
Criança Negra demonstra preocupação com este reconhecimento e valorização
da identidade étnica brasileira, questionando: qual o orgulho que a criança
negra terá ao buscar em sua memória a história de seu povo, ou qual o papel
dos afrodescendentes na história do Brasil? E como a família media as
inquietações ou o silêncio desta criança frente a estas memórias? De acordo
com a autora é na ausência da referência positiva nas literaturas de um modo
geral, que permite a criança, chegar à idade adulta, apresentando total rejeição
à sua origem racial, acarretando prejuízos em sua vida cotidiana. Porém se a
pessoa acumula em sua memória referências positivas do seu povo “é natural
27
que venha à tona o sentimento de pertencimento como reforço à sua
identidade racial” alimentando uma memória construtiva para sua humanidade.
A construção de uma identidade negra positiva é um
desafio que os negros brasileiros tem enfrentado, uma
vez que se encontram em uma sociedade, a qual
historicamente, dissemina a ideia deque, para ser aceito
socialmente, é preciso negar-se, ou seja, é preciso
enquadrar-se nos moldes do branco, visto como padrão
social e cultural (SANTOS e CAMPOS, p. 182)
Assim, contar ou recontar histórias em que crianças negras são
protagonistas, onde seus heróis travam lutas ou sagas vitoriosas em prol de um
bem comum, trazem para o público infantil uma autoafirmação de sua
identidade e valorização de sua origem/cultura. Do mesmo modo a criança que
não apresenta características afrodescendentes deve reconhecer e respeitar
com “olhos de quem percebe a diferença” a diversidade étnica do nosso país.
3.1.1 Chimananda Adichie – um exemplo a favor da literatura afro:
Chimananda Adichie é escritora e também uma ilustre contadora de
histórias nascida na Nigéria, que revela o cuidado que devemos tomar para
não difundir um único modelo de literatura infantil no inconsciente das
crianças. Adichie nos conta em O Perigo de Uma Única História, palestra
realizada em 2009, que iniciou seus escritos escrevendo histórias infantis
quando ainda era criança, reproduzindo os modelos de personagens que
tinha como referência quando pequena (de príncipes e princesas brancos
de olhos azuis). Suas histórias a princípio não dialogavam com a realidade
local de sua cultura. Não contemplavam os moldes de vida nigerianos, não
havendo, portanto, nenhuma identificação com seus próprios registros.
Para Adichie isso aconteceu porque:
...somos impressionáveis e vulneráveis face á uma
história. Principalmente quando somos crianças... Eu
convenci-me de que os livros, por sua própria natureza,
tinham que ser estrangeiros e tinham que ser sobre as
28
coisas com as quais eu não podia me identificar.
(ADICHIE, 2009)
Suas histórias passaram a sofrer mudanças radicais quando Adichie
conheceu os livros africanos. A autora percebeu que pessoas “com a pele cor
de chocolate cujos cabelos crespos não podiam formar rabos de cavalos”,
também podiam existir na literatura. Foi quando Adichie passou a escrever
sobre sua cultura, sobre coisas que podia reconhecer e se identificar. Adichie
não é contra a literatura estrangeira, até porque esta literatura “mexia com sua
imaginação” e abria novos horizontes para mundos desconhecidos. A
contadora de histórias enfatizou, porém, em seu discurso, que conhecer e
explorar outros universos literários permitiu-a entender que poderiam existir
dentro da literatura outras possibilidades de histórias e enredos mais próximos
a sua realidade. Salvando-a de utilizar apenas um único modelo, uma “única
história”.
A partir do exemplo de Chimananda Adichie observamos a importância
de se trabalhar com elementos e realidades que façam sentido à criança. Pois
quando a criança se vê inserida nas páginas de um livro de forma positiva
“tanto mais terá prazer em ler, em aprender, com oportunidades para recriar e
se autoafirma-se como um ser político”. (VILANOVA aput CAMPOS - LIMA
2010, p. 166).
3.2 – Os esteriótipos das histórias infantis: igualdade ou
discriminação racial?
A discriminação racial não é um problema da criança
negra, mas uma oportunidade de crianças negras e não
negras se conhecerem, discutirem e instaurarem novas
formas de relação, que tenham impacto em suas vidas e
na sociedade como um todo.
Santos
As instituições escolares em sua prática cotidiana, de forma consciente
ou não, prescreve o que está certou ou errado, bom ou mal, bonito ou feio. E
29
neste último exemplo, utiliza como referencial de beleza o padrão “europeu
branco”, aceito como modelo a ser seguido, seja nos livros didáticos e
paradidáticos ou nos demais recursos pedagógicos. Em contrapartida, este
“padrão” acaba por desvalorizar a estética do negro, visto como feio ou inferior.
Esta homogeneidade da sociedade não considera as diferenças, existente
entre as pessoas - não as percebendo como fonte de riqueza e cultura
brasileira, gerando estereótipos no imaginário coletivo brasileiro.
A representação da figura negra na literatura, de acordo com Vilanova,
começou a ser exposta no início do século XX. Esta “exposição” não se
baseava na contribuição cultural deste povo para os brasileiros, mas sim na
sua história de dor e piedade. Onde a escravidão e a segregação dos negros
são entoadas nos escritos de Olavo Bilac e Coelho Neto, em seus Contos
Pátrios - literatura de cunho patriótico endereçada às crianças. (p.162)
Segundo Silva estes estereótipos, têm uma função importante, uma vez que é
através deles, “que as ideologias são veiculadas nos materiais pedagógicos”.
(SILVA, apud MUNANGA, 2005, p. 24).
Neste mesmo prisma, Heloísa Pires Lima em Personagens Negros: um
breve perfil na literatura infanto- juvenil (2005) reforça que personagens negros
aparecem nas histórias geralmente vinculados à escravidão. As narrativas
naturalizam o sofrimento e a dor. Os enredos são tristes e mantém a marca da
condição de inferioridade pela qual a humanidade negra passou. De acordo
com Lima:
Cristalizar a imagem do estado de escravo torna-se uma
das formas mais eficazes de violência simbólica.
Reproduzi-la intensamente marca, numa única
referência, toda a população negra, naturalizando-se,
assim, uma inferiorização datada. A eficácia dessa
mensagem, especialmente na formatação brasileira,
parece auxiliar no prolongamento de uma dominação
social real. O modelo repetido marca a população como
perdedora e atrapalha uma ampliação dos papéis sociais
30
pela proximidade com essa caracterização, que
embrulha noções de atraso.
O problema não está em contar histórias de escravos,
mas na abordagem do tema. (LIMA, 2005, P. 103)
Em conformidade com a autora descrita acima, Rita de Cássia Carvalho
Lima em A Disseminação do Racismo nas entrelinhas do Livro Infantil (2010, p.
148) dá ênfase a algumas obras literárias infantis que são carregadas de um
preconceito velado que perpetua no inconsciente coletivo brasileiro. Dentre as
obras citadas destaca-se o livro de Ruth Rocha, “O Amigo do Rei”. A autora na
tentativa de trazer um personagem negro em conformidade com a Lei de 2003
aborda a relação de uma criança negra com outra branca, que em seus
diálogos travam saberes como: a escravidão, conceitos de quilombo, a
resistência escrava e a importância da liberdade... Porém o texto nos leva a
dúbias interpretações e o título que é dado à história (O Amigo do Rei) também
atende a um ideal de branqueamento, onde se privilegia e destaca o amigo
branco, pois o Rei é o ex-escravo negro.
Dando continuidade às análises literárias, Heloísa Lima destaca a
história “Em Busca da Liberdade”, um texto de Sonia de Almeida. Na capa
observamos a figura de um menino negro, frágil de frente, contrastando com a
imagem branca da figura de fundo, vestida com botas, associada à ideia de
poder que a arma reforça a personagem de cor clara.
Outra obra infantil descrita por Heloísa é “O Macaco e a Velha”, um texto de
Ricardo Azevedo que apresenta um conto popular, conhecido como “conto de
risos”. A obra é carregada de preconceito, visto que uma das principais
agressões à criança negra é apelidá-la de macaca, o que já gera inúmeros
processos de brigas que, repetidas, “terminam em expulsão do ambiente
escolar e marginalizações dos ambientes institucionais”. Heloísa indaga qual a
contribuição de um livro como este para um comportamento antirracista? Além
do mau gosto da história, faltou também sensibilidade na publicação, pois a
ilustração da capa associa a figura negra alo lado das bananas... (LIMA, p.116)
31
Toda obra literária, porém, transmite mensagens não
apenas através do texto escrito. As imagens ilustradas
também constroem enredos e cristalizam as percepções
sobre aquele mundo imaginado. Se examinadas como
conjunto, revelam expressões culturais de uma
sociedade. A cultura informa através de seus arranjos
simbólicos, valores e crenças que orientam as
percepções de mundo. (LIMA, P.101)
Segundo Vilanova a literatura endereçada ao leitor infantil pouco “faz
alusão a cultura africana e afro-brasileira, quando esta não é inferiorizada.
Logo, a criança afrodescendente possui menos opções de se ver representada
nos escritos e ilustrações com valores éticos, estéticos, sociais e políticos. para
que possa perceber-se como coparticipante dos feitos sociais brasileiros.
(VILANOVA aput CAMPOS - LIMA 2010, p. 166).
De acordo com uma pesquisa realizada por Vera Moreira Figueira –
pesquisadora do Arquivo Nacional Rio – os materiais didáticos disponíveis às
crianças - incluindo neste bojo, os livros endereçados a elas - corroboram para
propagar e reproduzir o preconceito racial nas escolas, a partir da existência de
estereótipos. (1990, apud MUNANGA, 2005, p. 53)
Sant’Ana conceitua o preconceito como:
... uma opinião preestabelecida, que é imposta pelo
meio, época e educação. Ele regula as relações de uma
pessoa com a sociedade.
Ao regular, ele permeia toda a sociedade, tornando-se
uma espécie de mediador de todas as relações
humanas. Ele pode ser definido, também, como uma
indisposição, um julgamento prévio, negativo, que se faz
de pessoas estigmatizadas por estereótipos. (1990, apud
MUNANGA, 2005, p. 64).
32
A questão do preconceito foi claramente demonstrada na pesquisa de Figueira,
que atendeu uma população composta por 442 alunos da rede de ensino
público, sendo 238 estudantes brancos, 121 pardos e 83 negros.
A metodologia da pesquisa consistia em:
...entrevistas individuais, nas quais eram mostradas
várias fotografias a cada estudante, algumas pessoas
negras (pretas, não pardas), outras brancas. Ao
entrevistado era dito que aquelas pessoas mostradas
nas fotos faziam parte do seu cotidiano, no caso, a sala
de aula. Em seguida, pedia-se ao entrevistado que
escolhesse entre estes colegas fictícios, qual gostaria
que fosse seu melhor amigo, qual a mais simpática, a
mais feia, a mais inteligente, etc.. Em seguida, foram
introduzidas fotos de homens e mulheres adultos,
brancos e negros, pedindo ao entrevistado que se
situasse neste mundo de adultos. (1990, apud
MUNANGA, 2005, P.54)
As respostas foram agrupadas em dois blocos. O primeiro, que exprime
qualidades socialmente positivas, e o segundo, que exprime qualidades
socialmente negativas: Vejamos os dados:
TABELA 1 QUALIDADES POSITIVAS
(PREFERÊNCIA POR BRANCOS)
AMIGO 76,2% SIMPÁTICO 50% ESTUDIOSO 75,3%
INTELIGENTE 81,4% BONITO 95%
RICO 94,6%
TABELA 2 QUALIDADES NEGATIVAS
(PREFERÊNCIA POR NEGROS)
BURRO 82,1% FEIO 90,3%
PORCO 84,4% GRANDE LADRÃO 79,6%
33
A conclusão desta pesquisa mostrou que para a maioria dos
entrevistados, preferencialmente os brancos detêm qualidades bem aceitas
socialmente; e nos negros concentram-se aquelas socialmente marginalizadas
pela sociedade. Esta pesquisa realizada no município do Rio de Janeiro em
1988 ilustrou também, como o preconceito racial e o estereótipo da figura
negra é difundido com a contribuição de materiais didáticos vinculados as
escolas de um modo geral.
3.2.1 - Uma nova ideologia para a literatura infantil contemporânea
Em contrapartida aos exemplos citados anteriormente, no livro “O
Menino Nito”, de Sônia Rosa, narra a história de um menino que chorava por
tudo e que ninguém da sua família “aguentava” mais tanta choradeira. De
acordo com Rita de Cássia Lima o que é importante nessa história é ressaltar
que, além de abordar a questão racial explícita nas imagens, ela trata também
das questões de gênero. A trama tem como cenário uma família negra, sendo
extremamente positiva do ponto de vista étnico e para a autoimagem da
criança negra que se vê inserida na história. Toda a narrativa “oportuniza um
diálogo sobre as normas sociais preestabelecidas que prescrevem posturas,
comportamentos e atitudes diferenciadas para homens e mulheres” (p.155).
Quando Nito nasceu foi uma alegria só. Todo mundo
ficou contente, de tão gracinha que era, logo, logo,
começou a ser chamado de bonito: Bonito pra lá... Bonito
pra cá... Até virar apenas Nito. Todo mundo achava
lindo. (2002 apud CAMPOS - LIMA 2010, p. 154).
Observamos, portanto, que a escola deve estimular o prazer pelas
leituras que valorizem a construção da autoestima das crianças
afrodescendentes, pois positivar a negritude e o passado escravo, através das
histórias de resistências ou de simples amostras de ilustrações de personagens
negros, é resgatar a nossa história de forma gloriosa e saudável na construção
34
do imaginário infantil. Logo, constitui-se como necessidade educacional a
interação das crianças negras e não negras com livros literários que quebrem
paradigmas de como o indivíduo afrodescendente é visto na sociedade, de
como suas representações culturais são veiculadas pela literatura.
Para as crianças negras, um dos aspectos positivos será a sua autovalorização
e sua autoafirmação identitária. Para as brancas uma maneira de quebrar
modelos cristalizados nas falas e nas atitudes racistas que cercam o convívio
em seus lares, escolas e na comunidade em que vivem.
Para que possamos contemplar de forma realmente positiva as
diferentes culturas e povos que ajudaram a formar as identidades brasileiras, é
importante e necessário que a indústria editorial atente-se para que
simbolismos da africanidade não se perpetuem com “Nastácias, Saci Pererê,
Negrinho do Pastoreio... Dentre outros estereótipos. (Vilanova. P. 166).
Abaixo algumas sugestões literárias que contemplam de forma
afirmativa a criança e a cultura afrodescendente, a partir de uma literatura
contemporânea.
... dando voz a personagens negras, a literatura
oportunizará às crianças afrodescendentes vislumbrarem
sua importância, sua cultura, sua beleza corpórea...
Participarão de uma leitura diferente daquelas histórias
de dores que conhecemos, para que, de fato tenham a
autoestima profícua para o empoderamento como
cidadão no mundo e do mundo. (VILANOVA, p.172)
• BARBOSA, Rogério Andrade. Contos africanos - para crianças brasileiras.
Ed. Paulinas.
• BARBOSA, Rogério Andrade. O Filho do Vento. São Paulo: DCL, 2003.
• COSTA, Madu. Meninas negras. Editora Mazza.
• LIMA, Heloísa. A Semente que veio da África, editora Salamandra.
• LUSTOSA, Isabel. A História dos Escravos. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 1998.
• MACHADO, Ana Maria. Mas que Festa!. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
35
• MACHADO, Ana Maria. Menina Bonita do Laço de Fita. São Paulo:
Melhoramentos.
• NICOLELIS, GISELDA LAPORTA. Amor não tem Cor. São Paulo: FTD, 2002.
• OTERO, Regina; RENNÓ, Regina. Ninguém é igual a ninguém: o lúdico no
conhecimento do ser. São Paulo: Editora do Brasil, 1994.
• PEREIRA, Edimilson de Almeida. Os reizinhos do Congo. São Paulo:
Paulinas, 2004.
• RAMOS, Rossana. Na minha escola, todo mundo é igual. São Paulo: Cortez,
2004.
• RODRIGUES, Martha. Que cor é a minha cor? Editora Mazza.
• SANTOS, Joel Rufino. Gosto de África. Histórias de lá e daqui. São Paulo:
Global, 2001.
• SOLER-PONT, Anna. O Príncipe Medroso e Outros Contos Africanos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
• UNICEF. Crianças como você: uma emocionante celebração da infância.
São Paulo: Ática, 2004.
36
CONCLUSÃO
o boi da cara preta tem uma cara bonita, não é uma
careta; o boi da cara preta é irmão do boi da cara branca,
do boi da cara malhada. O boi da cara preta tem a cor
do rosto da mamãe, o rosto que você, criança, se alegra
quando olha...
(Inaldete P. Andrade)
A escola como um espaço privilegiado para a interação e construção de
identidades deve repensar o papel do negro na Literatura Infantil a partir de
narrativas que valorizem a diversidade etnica das crianças brasileiras. Esta
valorização permitirá que os educandos percebam as diferenças existentes na
sociedade como algo positivo e não como uma maneira de hierarquizar as
relações sociais - algumas vezes difundida erroneamente em algumas
literaturas citadas no corpo deste trabalho.
Repensar as questões etnico-raciais na literatura infantil a favor da
construção identitária da criança, nos fez refletir como os profissionais da
educação são inculbidos de importantes funções, sendo uma delas a de não
propagar e disseminar o preconceito no interior das escolas. Percebemos que
o educador deve-se ater as questões etnico raciais de forma a contribuir para a
valorização e resgate da cultura afrobrasileira, já que também estamos
amparados pela Lei. Neste sentido, a escolha por uma literatura infantil exerce
função importantissima, visto que a literatura demonstra sua utilidade quando
as crianças refletem sobre sua condição pessoal e social através das narrativas
fantásticas das histórias contidas nos livros.
Ressignificar os valores difundidos nas literaturas de educação infantil,
nos fez observar que o repertório de maior divulgação pela mídia e pelas
escolas são os dos contos de fadas, com princesas brancas e loiras, e também
da literatura de Monteiro Lobato. Isto nos permite compreender que “a imagem
do negro, durante a contrução hstórico-ideológica brasileira, sempre esteve
voltada para o negativismo”. (LIMA, p. 146). Portanto, é importante propor
variedades de leituras que não tragam o preconceito velado nas entrelinhas
37
dos livros, mas que sejam utilizados textos ricos e pertinentes à temática de
aceitação das diversidades de nosso país.
A Lei 10.639 de 2003 vem dar um novo significado às questões etnico
raciais dentro das instituiçoes escolares, valorizando a negritude de forma que
a figura negra não seja mais retratada de maneira sutil ou depreciativa. Assim a
lei auxilia a implementação de literaturas contemporâneas que divulguem a
diversidade, uma vez que a criança brasileira é historicamente multiétnica e
precisa se encontrar nas narrativas através de personagens valorosos
ajudando-a construir de modo positivo sua identidade.
Isso leva a supor que uma imagem desvalorativa /
inferiorizante de negros, bem como a valorativa de
indivúduos brancos, possa ser interiorizada, no decoorer
da formação dos indivíduos por intermédio dos
processos socializadores. Diante disso cada indivíduo
socializado em nossa cultura poderá interiorizar
representações preconceituosas a respeito desse grupo
sem dar conta disso, ou até mesmo se dando conta por
acreditar ser o mais correto. (CAVALEIRO, 2005, aput
CAMPOS - LIMA 2010, p. 179)
Sobre o papel da Educação Infantil e da escola como espaço das
diferenças, Santana (2006, p.29) nos apresenta com muita propriedade que:
É com o outro, pelos gestos, pelas palavras, pelos
toques e olhares que a criança constituirá sua identidade
e será capaz de reapresentar o mundo atribuindo
significados a tudo que a cerca. Seus conceitos e valores
sobre a vida, o belo, o bom, o mal, o feio, entre outras
coisas começam a construir nesse período.
38
Em suma, precisamos perceber as diferenças como enriquecedoras de
nosso trabalho pedagógico. Diferenças que caminhem para a educação que
valoriza a diversidade permitindo não transformar o que é diferente em
desigual. Somente assim teremos uma educação que de fato seja igualitária e
justa para todas as etnias que ajudaram a formar o que conhecemos hoje como
“povo brasileiro”.
39
BIBLIOGRAFIA
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40
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41
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO
AGRADECIMENTO
DEDICATÓRIA
EPÍGRAFE
RESUMO
METODOLOGIA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
02
03
04
05
06
07
08
09
CAPÍTULO I
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
1.1 – Breve histórico da literatura infantil no cenário nacional
11
11
1.2 – Por que ouvir histórias na Educação Infantil – o papel do professor 14
CAPÍTULO II
A LITERATURA INFANTIL NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA
CRIANÇA
18
2.1 – O processo de construção identitária da criança 18
2.2 – Um olhar sobre a identidade étnico-racial nos livros infantis:
A literatura de Monteiro Lobato
20
2.3 – A Lei 10.639/03, a literatura e a formação da criança pequena 23
CAPÍTULO III
A LITERATURA E A CRIANÇA AFRODESCENDENTE: Construção ou
Negação
3.1 – Porque abordar as questões étnico-raciais na literatura infantil
3.1.1 Chimananda Adichie – um exemplo a favor da literatura afro
3.2 – Os esteriótipos das histórias infantis: igualdade ou discriminação
racial?
3.2.1 - Uma nova ideologia para a literatura infantil
contemporânea
26
26
27
28
33