UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO … · Como parâmetro de aplicação pratica do tema...

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA Tutela Externa Do Crédito e a Atual Interpretação Contratual Por: Paula Regina dos Reis Bacellar Orientador Prof. Francis Rajzman Rio de Janeiro 2012

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

Tutela Externa Do Crédito e a Atual Interpretação Contratual

Por: Paula Regina dos Reis Bacellar

Orientador

Prof. Francis Rajzman

Rio de Janeiro

2012

2

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

Tutela Externa Do Credito e a Atual Interpretação Contratual

Apresentação de monografia à AVM Faculdade

Integrada como requisito parcial para obtenção do

grau de especialista em Direito Privado e Civil.

Por: . Paula Regina dos Reis Bacellar

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por permitir a conclusão

desta importante etapa de minha vida

profissional.

Agradeço a minha família, por acreditarem

na minha capacidade de crescer.

Por fim agradeço a todas as pessoas

queridas que torceram por mim ao longo

dessa caminhada.

4

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha família por me

incentivar e me encorajar a lutar pela

realização de mais uma etapa da minha

vida.

5

RESUMO

Esta dissertação realizou um estudo sobre a tutela externa do

crédito representada através da responsabilidade civil do terceiro que interfere

dolosamente em relação contratual da qual não faz parte. A pesquisa

abrangeu os principais aspectos do contrato, tais como os princípios

contratuais modernos surgidos com a Constituição de 1988, efeitos internos e

externos da relação contratual e sua oponibilidade. Fez-se ainda uma breve

exposição acerca da responsabilidade civil com enfoque em estabelecer a

natureza jurídica da teoria em estudo. Em seguida foram elencados os

fundamentos específicos para aplicação da tutela externa do crédito em nosso

ordenamento jurídico, abordando dentro de cada fundamento alguns

requisitos trazidos pelo novo paradigma civil-constitucional adotado. Por fim

foi abordada a questão da solidariedade dos agentes causadores de dano,

com relação à aplicação da cláusula penal (quando contratada) e alguns

exemplos reais já discutidos por nossa doutrina e jurisprudência sobre o

assunto, objetivando comprovar que nossos tribunais já se encontram

preparados para utilizar a doutrina.

Palavras-chave: Contratos – Responsabilidade Civil – Direito Civil-

Constitucional – Limites e Efeitos Contratuais Externos – Oponibilidade.

6

METODOLOGIA

Para criação do presente trabalho utilizei vasta bibliografia de direito

civil das obrigações a fim de construir os fundamentos jurídicos da tutela

externa, uma vez que esta matéria ainda não possui doutrina consolidada no

Brasil. Como parâmetro de aplicação pratica do tema me servi do livro “Da

Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito” do

Professor Português E. Santos Junior, indicado pelo ilustre amigo Carlos

Konder, bem como consultei diversas revistas especializadas em direito civil,

onde foi possível observar através de artigos recentes a posição de

doutrinadores brasileiros já atentos a esta nova realidade contratual. Por fim

acrescentei o julgado de São Paulo referente ao “caso Zeca Pagodinho” o de

Minas referente ao “caso das Distribuidoras de Combustível” a fim de traduzir

a relevância e aplicabilidade da tutela externa do crédito em nosso

ordenamento.

7

SUMARIO

Introdução 08

1. Construção da Doutrina da Tutela Externa 10

1.1 - O direito civil sob a perspectiva constitucional 10

1.2 - Os princípios modernos do direito contratual 12

1.3 - A relatividade e a oponibilidade do direito de credito 18

inseridos na responsabilidade civil

2. Fundamentos Específicos – Requisitos 22

2.1 - Contrato Valido 22

2.2 - Conhecimento Prévio 23

2.3 - Ato Ilícito 25

3. Questões Relevantes a Aplicação do Tema 29

3.1 - Teoria do Terceiro Cúmplice 29

3.2 - Solidariedade e aplicação da clausula penal 30

entre devedor e terceiro

3.3 - Aplicação da Doutrina no Brasil – alguns 36

precedentes jurisprudenciais

Conclusão 42

Indicações Bibliográficas 45

Índice 50

8

INTRODUÇÃO

Como bem colocou Caio Mário da Silva Pereira, “o mundo moderno

é o mundo dos contratos.” É o contrato, sim, o mais difundido instrumento de

regulamentação e harmonização de interesses diversos – quiçá, opostos – na

vida em sociedade.

Com efeito, a globalização, tal como conhecida no mundo moderno,

trouxe consigo a expansão econômica e o aumento superlativo das trocas

comerciais. Mais do que nunca, o contrato tornou-se instrumento

imprescindível, tão necessário quanto a própria lei.

Com essa expansão de fronteiras– jamais vista anteriormente na

história do mundo – o direito contratual, representante fiel do direito privado,

sofreu uma nova interpretação à luz de aspectos constitucionais e sócio-

econômicos. Afinal, a nova realidade não poderia deixar de ecoar no mundo

dos contratos.

Todo o processo de conexão do mundo criou um novo eixo de

equilíbrio para a sociedade, sendo certo que o direito contratual também foi

obrigado a se ajustar a esse novo eixo.

Enfim, foi necessária uma nova interpretação do direito contratual

para ampliar seus efeitos a uma perspectiva social.

Os princípios contratuais clássicos tiveram de se adequar aos

princípios modernos. A autonomia da vontade alargou seu conceito a fim de

abraçar a função social do contrato.

9

Este novo paradigma ampliou também a oponibilidade dos efeitos

dos contratos que passam a relevar os direitos de terceiros alheios à relação

contratual. Sua importância se dá com objetivo de estabelecer os limites da

relação contratual, os externos.

Foi preciso mitigar o princípio da relatividade – que, a priori, servia

apenas como fundamento para proteção do terceiro frente ao contrato -, em

nome da doutrina moderna que busca justificar a responsabilização do

terceiro que interfere negativamente na relação contratual, prejudicando os

contratantes.

Trata-se da denominada tutela externa do crédito, tema do presente

trabalho.

Ora, se o contrato pode ser oposto a terceiros e pode produzir

efeitos perante terceiros (que não as partes contratantes), então o contrato

pode também fazer surgir para esses mesmos terceiros o dever de respeitar a

relação contratual, não interferindo nos direitos dos contratantes.

Surge, em síntese, para o terceiro o dever de não obstar o

cumprimento do contrato e não prejudicar qualquer das partes contratantes.

Esse fenômeno – ainda em construção no nosso ordenamento

jurídico, sob o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato –

terá seus fundamentos, requisitos e aplicabilidade analisados neste trabalho.

10

1. Construção da Doutrina da Tutela Externa

1.1 - O direito civil sob a perspectiva constitucional

Segundo o professor Miguel Reale, presidente da comissão

elaboradora do Código Civil de 2002, a elaboração do novo código se baseou

em 3 (três) princípios fundamentais, quais sejam: eticidade, socialidade e

operabilidade.

“OS TRÊS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS ETICIDADE – Procurou-se superar o apego do Código atual ao formalismo jurídico, fruto, a um só tempo, da influência recebida a cavaleiro dos séculos 19 e 20, do Direito tradicional português e da Escola germânica dos pandectistas, aquele decorrente do trabalho empírico dos glozadores; esta dominada pelo tecnicismo institucional haurido na admirável experiência do Direito Romano. Não obstante os méritos desses valores técnicos, não era possível deixar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da técnica jurídica, que com aqueles deve se compatibilizar. Daí a opção, muitas vezes, por normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais.[...] A SOCIALIDADE – É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente, feita para um País ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo. Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Daí o predomínio do social sobre o individual.[...] A OPERABILIDADE – Muito importante foi a decisão tomada no sentido de estabelecer soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação pelo operador do Direito. Nessa ordem de idéias, o primeiro cuidado foi eliminar as dúvidas que haviam persistido durante a aplicação do Código anterior.[...]”1.

1 REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Disponível em <www1.jus.com.br/doutrina/texto>. Acesso em 16 maio 2010.

11

Este esclarecimento do professor Miguel Reale não deixa dúvida

que o Direito Civil contemporâneo visa destacar a aplicação social de seus

institutos, a fim de manter a harmonia e solidariedade social. E para isso,

afasta e desestimula qualquer prática contrária ao equilíbrio da sociedade e a

credibilidade das relações sociais.

O modelo do Código Civil de 1916 – representante fiel do direito

privado – visava atender uma sociedade que acreditava que o direito civil era

capaz de prever todas as circunstâncias merecedoras de tutela jurídica. Era

uma codificação à margem da Constituição, baseada na autonomia da

vontade privada.2

Contudo, esse modelo de ordenamento mostrou-se insuficiente para

atender às necessidades do cidadão e para acompanhar as mudanças

ocorridas na segunda metade do século XX, especialmente as advindas da

industrialização.

O Código Civil de 2002 trouxe aos indivíduos maior consciência de

seu papel na sociedade e passou a exigir do Estado eficiente proteção e

garantia de seus direitos. Tal ordem visava, principalmente, privilegiar a

dignidade da pessoa e o desenvolvimento dos direitos sociais.

Para relação contratual este novo paradigma, claramente propõe

uma reinterpretação dos princípios clássicos da liberdade de contratar, da

autonomia privada e da relatividade a fim de alcançarmos um equilíbrio

comum, onde são respeitados tanto os interesses individuais, quanto os

coletivos. 3

2 GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Op. Cit., p.212.

3 SILVA, Luiz Renato Ferreira da. Op.cit., p.132

12

O direito civil, a partir de então, ganha regras de caráter geral, a fim

de adequar-se à Constituição. Seus institutos devem refletir a idéia de justiça

social nas relações privadas.

Nota-se assim a criação de um direito civil-constitucional, que,

aplicado a teoria contratual, justifica a enorme importância de responsabilizar

aquele que causa dolosamente dano ao direito alheio.4

1.2 - Os princípios modernos do direito contratual

A partir da doutrina social acima examinada acerca da teoria dos

contratos e da necessidade de reinterpretação dos princípios clássicos sob

uma perspectiva constitucional de garantias, somam-se também ao estudo da

doutrina da tutela externa do crédito os novos princípios contratuais.

Não se trata do abandono da teoria clássica, mas sim de uma

complementação daquela teoria sob o prisma das necessidades coletivas.

Sobre a necessidade de uma nova reflexão, ressalta o Ministro Eros

Grau:

“(...) falar em uma nova teoria contratual não significa reconstruir a teoria geral do contrato. Ao revés, implica a necessidade da construção de novas teorias que se adaptem e expliquem uma realidade social renovada. Ou seja, para enfrentar a atual fase da sociedade globalizada, caracterizada pela interação entre as relações econômicas, políticas e jurídicas, os negócios jurídicos devem ser celebrados sob o aspecto civil-constitucional, buscando a realização da justiça social.”5

4 KONDER, Carlos Nelson. Op. Cit., p. 48 5 GRAU, Eros Roberto. In FORGIONI, Paula. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p.17.

13

Neste sentido, a concepção contratual moderna apresenta como

inovação os seguintes princípios:

Ø Princípio do Equilíbrio Econômico

Também conhecido como princípio da equivalência das prestações

ou ainda como princípio do equilíbrio material, tem como finalidade precípua

não permitir a vantagem excessiva e a exploração que levam ao desequilíbrio

contratual desastroso para uma das partes. O preço acordado e o serviço

prestado devem ser justos, proporcionais, equivalentes entre si.

O mundo moderno entende o contrato como instrumento essencial

para circulação de riquezas e constante fluxo de bens e serviços. É fácil

concluir, portanto, que o caráter econômico do contrato revela sua

essencialidade na sociedade capitalista construída para o lucro e para o

consumo, restando ao caráter jurídico apenas garantir a segurança

necessária para sua aplicação.6

Nada mais coerente, então, que o contrato seja regulado de forma a

não exceder o limite do objeto particular contratado, mantendo equilibrada a

relação social.

Para tanto, o Código Civil vigente toma como mais uma regra de

validade e eficácia dos contratos a existência do equilíbrio de condições e

prestações acordadas entre contratantes.

Vale ressaltar o entendimento de Paulo Luiz Neto Lobo:

“O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e

6 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2003.p. 156.

14

após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas. [...]” 7

É uma atitude exigida apenas dos contratantes no momento da

formação do instrumento, não sendo possível a interferência de terceiro não

contratante nesta estipulação.8

Ø Princípio da Boa-fé Objetiva

A boa-fé objetiva é determinada pela conduta exigível.9

Seu conceito está intimamente ligado à relação social da época e

aos padrões entendidos como corretos ou exigíveis a toda coletividade10. É

um instituto que traz como corolários, por exemplo, quando aplicado à relação

contratual, o dever de informar, o devedor de proteção, o dever de

cooperação, de confiança, de lealdade, entre outros – deveres anexos11.

7 LÔBO, Paulo Luiz Netto . In APARECIDO, Hernani Ferreira (coord.). O novo Código Civil Discutido por Juristas Brasileiros. 1 ed. Campinas: Bookseller, 2003, p.87 e 88. 8 Completa Teresa Negreiros: “O ressurgimento do instituto da lesão é um dos mais perfeitos símbolos da valorização do equilíbrio econômico – entendido como princípio da equivalência entre as prestações contratuais – sendo tal ressurgimento decisivo para que o princípio em questão seja hoje considerado um dos três princípios que apóiam a construção de uma renovada teoria contratual.” NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.169 9 Ibid. p. 125 10 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 116 11 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. Cit., p. 116

15

Na verdade, a boa-fé objetiva é um princípio contratual defendido e

aplicado pelo Estado como cláusula geral de conduta. Sua não observância

consiste em ato violador de um dever anexo à relação contratual. O objetivo é

valorizar a tutela da confiança recíproca, cabendo punição àquele que não a

respeitar.

O Código Civil vigente a partir de 2002 deixa claro, em três de seus

artigos, a necessidade de aplicabilidade do instituto a todo e qualquer

contrato, verbis:

“Art. 113 - Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”12 “Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”13 “Art. 422 - Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”14

O primeiro dispositivo acima transcrito traz a boa-fé como cláusula

geral presente em todos os negócios e contratos celebrados, destacando a

importância da intenção das partes independente dos termos declarados no

contrato (intenção x declaração)15.

12 Parte Geral – Do Negócio Jurídico 13 Parte Geral – Dos Atos Ilícitos 14 Parte Especial - Dos Contratos em Geral 15 O art. 112 do CC-2002 pretende, explicitamente, privilegiar a intenção sobre a declaração. Só é preciso ter em mente que a análise de qualquer intenção só é possível através de alguma declaração. Vejamos seu texto: “art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

16

O segundo dispositivo complementa a análise do primeiro ao prever,

implicitamente, os deveres decorrentes do princípio da boa-fé, quais sejam: os

princípios da probidade, da razoabilidade e da colaboração.

Já o terceiro dispositivo relaciona diretamente o princípio da boa-fé

objetiva à teoria contratual, exigindo que a conduta confiável, seja observada

pelos contratantes em todas as fases contratuais16.

Teresa Negreiros complementa esta análise de artigos ao citar a

teoria da tripartição das funções da boa-fé defendida por Judith Martins-Costa:

“A abrangência do princípio é contornada mediante uma tripartição das funções da boa-fé, quais sejam; (i) cânon interpretativo-integrativo; (ii) norma de criação de deveres jurídicos e (iii) norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos”.17

Portanto, os contratantes devem respeitar tanto os limites internos,

inerentes ao contrato e às próprias partes, como os limites externos, que

dizem respeito à sociedade como coletivo e à tutela do terceiro como

indivíduo.

Ø Princípio da Função Social do Contrato

Os novos limites necessários à teoria contratual objetivam, entre

outros aspectos, a ponderação do excesso de liberdade conferido às partes

no momento da contratação – diferentemente, aliás, do que ocorria no Estado

Liberal.18

16 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. Cit., p.116. 17 MARTINS-COSTA, Judith. Boa-fé no Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.427. Apud. NEGREIROS, Teresa. Op. Cit., p.118-119. 18 CARDOSO, Patrícia. Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto contratual. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma n° 20, out.2004, p. 127.

17

Cumpre esclarecer, neste ponto, que a regra geral de validade do

contrato como negócio jurídico ainda é a liberdade de contratar e a autonomia

da vontade19. É muito importante que as partes se comprometam com aquilo

que elas livremente desejam para que o contrato tenha aplicabilidade.

Por outro lado, a função social do contrato indica que a liberdade

individual não deve ultrapassar o limite dos direitos dos demais membros da

sociedade sobre a qual se aplicará este acordo.

Nesse sentido, dispõe o enunciado nº 23 aprovado na I Jornada de

Direito Civil promovida pelo Superior Tribunal de Justiça à ocasião do advento

do novo Código Civil:

“A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses meta individuais ou interesses individuais relativos à dignidade da pessoa humana.”

A idéia de limite social não se restringe à uma obrigação dos

contratantes com a sociedade, mas serve sobretudo para definir a nova

obrigação dos terceiros não contratantes que, ao serem protegidos pela

solidariedade social aplicada aos contratos, ganham ainda o dever de

respeitá-los, garantindo sua eficácia.

A função social traz consigo duas perspectivas de tutela: (1) a tutela

do terceiro, que se traduz no dever dos contratantes em respeitar os limites

sociais para não afetar os direitos de outrem (não contratante) e (2) a tutela

da obrigação, que incumbe aos não contratantes o dever de respeitar e de

não interferir no crédito alheio.20

19 Ibid. p. 128. 20 RENTERÍA, Pablo. Op. Cit., p. 288

18

Uma via de mão dupla: Ao mesmo tempo em que o terceiro não

contratante é respeitado, ele também tem o dever de respeitar as partes

contratantes e o contrato a ser executado.

Assim se define o objetivo da função social do contrato, que visa à

transformação da perspectiva egocêntrica na busca de um direito coletivo,

inserido no meio onde este será aplicado21.

1.3 - A relatividade e a oponibilidade do direito de credito inseridos na

responsabilidade civil

A função social do contrato analisada sob o prisma prático da tutela

externa do crédito pressupõe uma adaptação do princípio clássico da

relatividade dos contratos a fim de estender os efeitos do contrato para além

das partes contratantes.22

De fato, a autonomia da vontade e a relatividade dos efeitos do

contrato constituíam, na teoria clássica, o fundamento para constituição deste

pacto. A autonomia, no âmbito da contratação livre, e a relatividade no âmbito

de limitar os efeitos do contratado apenas as partes que nele se

manifestaram.

O direito tradicional é firmado na concepção da res inter alios acta,

aliis neque nocet neque potest e res inter alios iudicatae alii non praeiudicant

e alteri stiplari non potes23 (os atos concluídos por uns não podem beneficiar

ou prejudicar a outrem). Trata-se do princípio da relatividade dos contratos,

21 COSTA, Pedro Oliveira da. Op.cit., p. 55. 22 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. O princípio da relatividade dos efeitos contratuais. In MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 277. 23 Ibid. p. 255.

19

segundo o qual “o contrato só ata aqueles que dele participaram. Seus efeitos

não podem nem prejudicar nem aproveitar a terceiros.”24

Este entendimento deixa clara a impossibilidade de opor os efeitos

contratuais a terceiros, uma vez que estes não participaram da formação do

pacto. É uma conclusão lógica e razoável sobre um acordo de vontades

determinadas, sendo impossível permitir que terceiro venha a ser atingido

pelos efeitos de um contrato, do qual não participou na formação e do qual

talvez até desconheça.25

O princípio da relatividade contratual, na sua forma clássica, visa

proteger o direito de terceiros não contratantes – e como já definimos

representa a tutela de terceiros. Neste caso, não se examina a hipótese do

terceiro se envolver na relação contratual, trata-se de uma idéia de terceiro

passivo que, por consequência, merece ser preservado de quaisquer efeitos

advindos daquele contrato.

Ocorre que à interpretação da função social do contrato importa

uma nova concepção que propõe que o princípio da relatividade seja visto de

forma menos intensa. O contrato passa a ser considerado instrumento

vinculado a um projeto de construção de valores socialmente escolhidos, não

é mais aceitável conceber um vinculo tão estreito ao particular.26

A reforma do Código Civil de 2002 positivou em seu art. 421 a

necessidade do pensamento coletivo. Esta mudança de perspectiva se fez

necessária na medida em que, a cada dia, as relações pessoais se tornam

mais e mais interligadas.

24 VENOSA, Sílvio de Salvo. Teoria geral dos contratos. 3ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 26. 25 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Op. Cit., p 260.

26 MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit., p.49.

20

No ensinamento da Professora Teresa Negreiros:

“A esta altura da nossa exposição, já é possível afirmar, sem maiores delongas exemplificativas, que existem numerosas razões para contestar a soberania dos aspectos voluntários na conformação do estatuto contratual. O princípio da boa-fé, a exigir dos contratantes uma conduta leal da qual surgem deveres acessórios que não são objeto de obrigações consentidas, a teoria da lesão, a autorizar a revisão judicial do contrato, e, de uma forma geral, a orientação legislativa de índole intervencionista, com caráter cogente, assumidamente protecionista em favor da parte considerada vulnerável, revelam que a autonomia da vontade é hoje insuficiente como fundamento da força obrigatória dos contratos.”27

A função social do contrato vem mitigar o princípio da relatividade

derivado da autonomia, alargando seu entendimento e aplicabilidade para um

conceito direcionado ao meio de sua execução. As partes contratantes, além

de deverem continuar protegendo o crédito por elas acordado e os direitos

dos terceiros alheios ao contrato (tal como dita a relatividade), tem agora

preservado seu direito do crédito em relação a terceiros.

O limite social dos contratos abrange os deveres de proteção do

crédito constituído para além das partes que o definem, fazendo surgir para

terceiros o dever de não interferir.

Esta amplitude do conceito clássico que a partir de 2002, admite

que terceiros não só devam ser protegidos, mas também devam proteger o

crédito, gera uma nova visão de oponibilidade dos efeitos contratuais28.

Antes da nova teoria contratual trazida pelo Código Civil de 2002, os

efeitos dos contratos eram oponíveis apenas aos contratantes, pois não se 27 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.219-220. 28 Nas palavras de Orlando Gomes: “a existência de um contrato é um fato que não pode ser indiferente a outras pessoas, às quais se torna oponível”. GOMES, Orlando, Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.139.

21

cogitava de uma intensidade de trocas de interesse que pudesse gerar uma

interferência voluntária de terceiros na relação contratual alheia a ponto de

desarmonizá-la.

Modernamente, com o contrato inserido na perspectiva social, já se

admite esta conduta. A intenção dos novos princípios, então, é gerar meios

que impeçam conseqüências desastrosas à estabilidade contratual. Para

tanto, a relatividade dá lugar a função social, que tem meios concretos para

opor a terceiros a responsabilidade sobre seus atos.29

A oponibilidade dos efeitos do contrato não se restringe apenas às

partes contratantes, esta agora se aplica a todo aquele que interferir na

relação contratual até o limite de sua interferência.30

29 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Op. Cit., p.116. 30 Existem contratos que, em seu texto, já prevêem o envolvimento de terceiros, como por exemplo, a estipulação em favor de terceiros. Não é deste tipo de relação que a tutela externa do crédito vem tratar.

22

2. Fundamentos Específicos - Requisitos

2.1 - Contrato Valido

A configuração da responsabilidade civil do terceiro interferente

exige além dos requisitos de imputação, de causalidade e do dano, uma

relação jurídica pré-estabelecida, ou seja, um contrato válido. O terceiro

frustra as legítimas expectativas das partes, na medida em que impede ou

perturba a execução deste contrato.

Se a relação encontra-se extinta, seja pelo cumprimento integral das

obrigações assumidas, seja em relação a ocorrência de vícios que maculam

sua validade, se torna impossível a interferência de quem quer que seja.

Um contrato defeituoso em sua origem, que não atendeu aos

pressupostos constitutivos, e assim, padece de nulidade, o que o torna

inidôneo à produção dos efeitos. A nulidade impede a relação jurídica sendo

impossível a produção de efeitos.

O mesmo raciocínio é usado para a hipótese de contrato anulável,

pois embora este ainda produza efeitos para as partes até a decretação de

sua ineficácia, com a declaração não haverá o que opor a estas ou a

terceiros.

Na fase pré-contratual onde as partes ainda estão discutindo a

viabilidade de selar uma relação, a oponibilidade contra terceiros tem o

mesmo fim, sendo impossível responsabilizar este terceiro que pretende

defender seus interesses no seio de uma negociação ainda em andamento.31

31 Caio Mário defende sobre as relações pré-contratuais: “são controversas prévias, sondagens, debates em que despontam os interesses de cada um, tendo em vista o contrato futuro [...] não geram por si mesmas e entre si obrigação para qualquer dos participantes [...] não criam vínculo jurídico entre eles”.

23

Esta é uma típica hipótese de livre concorrência que não gera dano.

Trata-se apenas da discussão de interesses com intenção de efetivação do

negócio mais vantajoso para os futuros contratantes.32

Uma exceção a este entendimento seria o caso das partes já terem

assinado um contrato preliminar, que segundo o art. 462 do código civil,

atendidos os requisitos essenciais do contrato principal, o contrato preliminar

vincula as partes a celebração principal – responsabilidade civil pré-contratual.

2.2 - Conhecimento Prévio

O conhecimento pelo terceiro do contrato interferido responde pelo

requisito imprescindível à configuração da responsabilidade de que ora se

trata.

Os autores brasileiros reconhecem a necessidade de o terceiro ter

conhecimento efetivo do contrato para que possa surgir sua responsabilidade

civil.

E não poderia ser diferente, o direito de crédito tem por objeto uma

prestação que se configura numa atividade, num comportamento do devedor,

sem qualquer exigência legal de publicidade.

32 Fernando Noronha descorda deste pensamento: “a parte que nas negociações preliminares procede deslealmente, viola os princípios que são impostos pelo princípio da boa-fé objetiva que impõe a não-interrupção injustificada das tratativas, a informação leal, o sigilo quanto a informações recebidas da contraparte e, em geral, a não indução desta em erro”. Na realidade o professor Fernando Noronha tem fundamento para tese que defende, ocorre que na visão de Caio Mário, a análise da relação pré-contratual vai além da questão temporal ingressando no tipo de vínculo firmado entre as partes no momento da quebra de tratativas. NORONHA, Fernando. Op. Cit., p. 456.

24

Ao tomar ciência do ajuste de vontades, imediatamente o terceiro

torna-se obrigado a respeitá-lo, sendo-lhe defeso interferir negativamente em

sua execução.33

Cumpre ressalvar a possibilidade de lesão do direito alheio sem que

o próprio violador tenha conhecimento da possibilidade de causar dano, tendo

em vista que terceiros não tem o dever de conhecer créditos particulares.

Os contratos particulares (que definem obrigações) não têm um

sistema de registro que os dê publicidade como se exige aos direitos reais,

dependendo do caso concreto para se verificar o conhecimento do bem

tutelado.

Nesses casos, a responsabilidade cabe integralmente ao

contratante, que tinha obrigação de cumprir as cláusulas do contrato que

estipulou com outrem e não o fez, ficando o terceiro ignorante isento de

qualquer sanção.

Em síntese, não existe oponibilidade sem conhecimento.34

33 Teoria da Utilidade Social do Contrato, defendida por MULHOLLAND, Caitlin. Op. Cit., p. 267-268. 34 “em síntese de todas estas ponderações, entendemos que a responsabilidade civil do terceiro resulta da oponibilidade, pois uma vez que este tenha conhecimento de um contrato anteriormente celebrado, deve atuar de maneira solidária e leal, em consideração aos interesses dos contratantes, procurando evitar qualquer interferência lesiva no contrato”. CARDOSO, Patrícia. Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto contratual. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma n° 20, out.2004, p. 142.

25

2.3 - Ato Ilícito

O ato ilícito é o fato gerador da responsabilidade civil, sem o qual

não existe a obrigação de indenizar. Considera-se ato ilícito, o ato contrário ao

direito, à ordem jurídica.

O contrato é um valor juridicamente tutelado que, como tal, deve ser

respeitado por todos. Sua violação é, indubitavelmente, um ato ilícito. Sendo o

contrato oponível a todos, existe uma obrigação legal de abstenção à pratica

de qualquer ato que interfira na relação. É o dever geral de não lesar.

Nessa ordem de idéias, vale refletir se o nexo de imputação e de

causalidade da responsabilidade de terceiro derivam apenas do conhecimento

da obrigação e do ato ilícito, ou também é preciso identificar a intenção de

interferir ou prejudicar esta relação – dolo ou culpa?

Segundo Caio Mário, o direito civil pós 2002 se desprendeu das

distinções sutis relativas à intenção do agente quanto ao cometimento do

dano para se ater a figura do ato ilícito em si. O dolo e a culpa, antes como

institutos divergentes, agora se fundem para determinar o ato ilícito, restando

como relevante e fundamental para reparação a noção de culpa como quebra

do dever ao qual o agente está adstrito.35

Tanto o dolo quanto a culpa são elementos da conduta humana que

configuram o fato típico e caracterizam-se pela violação ou inobservância de

uma regra, que produz danos aos direitos de outros. Neste sentido vejamos o

que regula o art. 186 do Código Civil vigente que abre o título “Dos Atos

Ilícitos”:

35 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – introdução ao direito civil e a teoria geral de direito civil – vol. 1. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 658.

26

“art.186. Aqueles que, por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

O dispositivo acima elencado define o ato ilícito não só quanto a

ação ou omissão voluntária (pressupondo o dolo), mas também quanto a

negligencia ou imprudência (pressupostos da culpa). Ou seja, o agente que

conhecendo o direito alheio, com intenção ou não de prejudicar, causar dano,

estará cometendo ato ilícito e deverá ser responsabilizado por este.

Sendo assim, dando-nos um apanhado geral, Aguiar Dias nos

enobrece com o seguinte comentário:

“Sem dúvida, a culpa varia de aspectos, o que induz à necessidade de estabelecer distinções. Mas o fato de perceber e reconhecer que ela pode revestir, ora de forma contratual, ora de forma extracontratual, de nenhum modo influi na unidade de conceito fundamental. Chironi, atendendo a isso mostra que culpa é a lesão de direito alheio imputável ao agente, e nisto reside a unidade de sua substância. (...)”36

De forma contrária, E. Santos Júnior afirmar ser “difícil ou raramente

configurável uma situação em que a acção interferente de terceiro, que

conheça o crédito, não se assuma como dolosa, configurando-se como

meramente negligente.”37

No mesmo sentido, Fernando Noronha afirma ser o dolo essencial

para configuração da responsabilidade do terceiro:

“[...] quando terceiro interveniente for movido pelo propósito de causar dano ao credor, isto é, quando proceder dolosamente, ele será sempre obrigado a indenizar, devido a uma razão de ordem pública: todo dano dolosamente causado deve ser indenizado. [...] Nas situações de indução ao inadimplemento de obrigação alheia, quando não se puder dizer que o terceiro procedeu dolosamente, o

36 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 109. 37 JÚNIOR, E. Santos. Op. Cit., p. 504

27

princípio da autonomia privada e os respectivos corolários, a liberdade contratual e a eficácia relativa (ou inter partes) dos contratos, impedem em regra a invocação da tutela externa”.38

Nesse sentido, o próprio conhecimento prévio do contrato já torna a

conduta, do terceiro, dolosa. O dolo é inerente à conduta consciente do

terceiro em interferir na execução de um contrato do qual este não é parte.

Aproximando ambas as correntes tem-se como conclusão que a

intenção de prejudicar está no próprio ato de interferir em algo que se

conhece.

Entretanto, apesar da hipótese defendida por Caio Mário definir

como fundamento da tutela externa, a culpa como cláusula geral de

descumprimento de dever, é o dolo que representa a hipótese mais justa de

responsabilização do terceiro. A aplicação no caso concreto sempre vai

depender de provas.

Por fim Judith Martins-Costa apresenta sua tese:

“Do ponto de vista subjetivo, é necessária a intenção de interferir, ou a conseqüência de estar interferindo. Não é preciso dolo, mas sim a “interferência intencional não justificada”, ou segundo o Restatement, torts, 2,d, uma interferência intencional e imprópria (improper)”39.

Não seria plausível no contexto de mundo globalizado em que

vivemos que apenas a intervenção de terceiro, sem análise da intenção de

sua conduta já configurasse sua responsabilidade.

Cumpre esclarecer que os direitos obrigacionais não têm exigência

legal e obrigatória de publicidade, como já vimos anteriormente. Terceiros

38 NORONHA, Fernando. Âmbito da responsabilidade civil. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 3, v. 12, p. 58, 2002. 39 MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit., p.55.

28

podem interferir nas relações alheias sem ter conhecimento exato do que está

tutelado juridicamente.

No próximo tópico deste trabalho, com a descrição dos tipos de

dano que o terceiro pode causar à relação contratual ficará mais evidente a

necessidade de comprovação da intenção do agente em lesar o direito alheio.

29

3. Questões Relevantes a Aplicação do Tema

3.1 - Teoria do Terceiro Cúmplice

A ligação entre devedor e terceiro, ambos com intenção de

inadimplir um crédito tutelado, descrita nas duas últimas hipóteses

demonstradas no item acima, caracteriza a chamada teoria do terceiro

cúmplice.

Como o próprio nome sugere trata-se das situações em que o dano

causado ao credor é conseqüência da ação conjunta do devedor e do terceiro

– em cumplicidade.

O artigo 608 do nosso Código Civil legitima em seu texto a

oponibilidade – externa - dos efeitos do contrato contra terceiros que aliciam

um dos obrigados.40

A partir desta hipótese se faz necessário um estudo sobre a

aplicação da responsabilidade específica para estes casos. A teoria

supramencionada conjuga, além de intenções de vontades, tipos de

responsabilidades diversas. O devedor é responsável contratualmente e o

terceiro extra contratualmente.

40 “art. 608 do CC. – Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”.

30

3.2 - Solidariedade e aplicação da Clausula Penal entre Devedor e

Terceiro

A clausula penal é a previsão contratual, de natureza acessória,

estabelecida como instrumento de que se valem as partes, nas relações

obrigacionais, para fomentar o cumprimento do pacto obrigacional a fim de

evitar o descumprimento e eventuais prejuízos decorrentes da violação.

Salientando sua necessidade perante os contratos Arnaldo Rizardo

nos ensina:

“sempre acompanha os contratos um grau de insegurança no atendimento o atendimento do que neles consta estabelecido, gerando um grau de instabilidade nas relações econômicas e sociais. Quanto maiores as instabilidades de uma economia, e mais fortes as crises que assolam os povos, ou menos evoluída a consciência moral das pessoas, geralmente mais cresce a inadimplência das obrigações, ensejando mecanismos de defesa e proteção dos direitos e créditos emanados das convenções e contratos.”41

A cláusula penal possibilita que as partes, expressamente,

estipulem um valor, uma indenização a ser paga pelo devedor caso ocorra o

inadimplemento da obrigação. Este inadimplemento pode ser: total, parcial ou

pela simples mora.

O Código Civil francês de 1804 (art. 1.226) já exprimia essa idéia,

afirmando que a intenção da cláusula penal era “assegurar a execução da

convenção”.

A pena convencionada pode ser estipulada conjuntamente com a

obrigação principal ou em momento posterior, desde que antes da verificação

do inadimplemento, pois o contrário não atenderia ao seu escopo de prévia

41 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.251.

31

liquidação das perdas e danos. Em qualquer das hipóteses, terá a cláusula

penal natureza acessória, ligando-se à obrigação de que previne o

inadimplemento.

Nesse sentido, o art. 409 do novo Código Civil positiva: “a cláusula

penal, estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode

referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial

ou simplesmente à mora”.

Sendo assim, é possível que o seu objeto corresponda não só a

uma quantia pecuniária, como também a outro bem economicamente

apreciável ou, à realização de um serviço ou abstenção em proveito do

credor. Pode até mesmo consistir na perda de certa vantagem por parte

daquele que violou as disposições contratuais, como uma benfeitoria ou

melhoramento bastando que esteja clara a estipulação para o caso de

inadimplemento.

Traçando um paralelo com outros sistemas jurídicos, em torno da

função da cláusula penal, têm-se duas posições antagônicas: uma defende

que esta deve representar uma prévia estipulação das perdas e danos

devidos pelo inadimplemento ou pela mora do devedor; a outra defende que

esta deveria significar a punição àquele que descumpre ou retarda o

implemento da prestação devida.

Historicamente, nota-se já no direito romano que a stipulatio penae

foi modificada para sobrelevar-se em seu papel de elemento reparador, como

forma de composição das perdas e danos. Disso não discrepou o sistema

francês, no qual as penas cominatórias tinham função de recomposição

patrimonial, perdendo a cláusula penal o seu aspecto punitivo. Por outro

turno, entrementes, o Código das Obrigações suíço e o BGB alemão

32

avultaram o caráter punitivo da cláusula penal, remontando às origens

primitivas romanas.

Em meio a essa dicotomia, a ordem jurídica brasileira, seguindo a

trilha do art. 1.229 da lei francesa, abraça a natureza reparatória da cláusula

penal, reconhecendo-lhe função de indenização previamente fixada. Do

mesmo modo que o legislador de 1916, o Código Civil de 2002, acertada e

expressamente, ressalta a natureza compensatória da cláusula penal,

notadamente nos artigos 410, 411 e 412, afirmando que:

“Art. 410 - quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa em benefício do credor. Art. 411 – “quando se estipular cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal. Art. 412 - o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.”

Abraça, pois, o novo texto codificado a posição de que a função

elementar da cláusula penal é prefixar a indenização no caso de inexecução

da obrigação ou retardamento no seu cumprimento. Esse o seu objetivo,

entender diferente é desvirtuar-lhe o caráter e finalidade.

Em síntese, assevera Orlando Gomes sobre a cláusula penal:

“genuína função, apresenta-se como um meio de que servem as partes de um contrato para delimitar, de antemão, a responsabilidade pela inexecução culposa. Constitui, em síntese, prefixação convencional de perdas e danos.”42

O inadimplemento ou a mora obrigacional, sem dúvida, impõe

consideráveis prejuízos ao credor, além de transtornos de ordem prática. Para

42 GOMES, Orlando. Obrigações, 10ª Ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.162.

33

aplicação da cláusula penal estipulada, no entanto, o nosso ordenamento não

exige que se prove a ocorrência do dano sofrido, vez que se dispensa

qualquer discussão sobre a matéria.

A esse respeito, o art. 416 do CC-2002 é claro ao dispor que “para

exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo”. O

credor pode exigir a multa, uma vez que já se estabeleceu previamente um

montante para o dano que, presumivelmente, decorre do inadimplemento.

Não se cogita o quantum do prejuízo sofrido efetivamente pelo

credor, pois já se estipulou previamente quanto seria o valor devido pelo

descumprimento ou mora.

Tratando-se de cláusula expressa, a pena convencional os obriga os

contratantes na forma pactuada. Todavia, na prática, sua aplicabilidade

denota uma imutabilidade relativa, e não absoluta. Com o intuito de coibir

abusos, é fundamental que se tenha em tela a possibilidade constante

(independente de previsão contratual) de revisão judicial do valor da cláusula

penal, em nome da ordem pública, em nome de todos os novos princípios

contratuais já estudados.

Quanto à solidariedade na tutela externa do crédito, já

mencionamos neste trabalho, que a interferência do terceiro aliada ao

interesse do devedor cria uma relação de dupla responsabilidade quanto ao

inadimplemento contratual.

O regime então adotado para esta pluralidade de responsáveis sem

dúvida é o da solidariedade, visto que não é possível fracionar o prejuízo

causado na medida do inadimplemento de cada agente a fim de individualizar

suas responsabilidades.

34

O credor por sua fez não pode cobrar a frustração de um mesmo

crédito de dois agentes diferentes. Neste sentido terceiro e devedor vão

responder solidariamente pelo dano causado.43

Aplicar esta solidariedade aos princípios da cláusula penal, expostos

acima, é sem dúvida um problema prático e também teórico. Vale lembrar que

para aplicação da cláusula penal, assim que detectado o dano o credor já está

hábil para se valer do pactuado, sem necessidade de provar a extensão do

mesmo, tendo em vista sua pré-estipulação, concordância e ciência do

devedor.

Ocorre que o dano causado pelo devedor conjuntamente com

terceiro não pode obrigar este terceiro ao cumprimento de uma cláusula que

este não pactuou. Para este caso seria necessário que o credor interessado

fosse obrigado a mensurar o prejuízo efetivo, para então delimitar a

responsabilidade de cada agente.

Em um contrato com cláusula penal, o devedor é obrigado a

responder pelo prejuízo no limite do estipulado na cláusula, e o terceiro que

tem responde extra-contratualmente por sua conduta, está responsável

apenas nos limites do dano em si.

Neste sentido conclui nosso raciocínio, E. Santos Júnior:

“está em causa o princípio da relatividade do contrato: não tendo o terceiro estipulado a cláusula penal, pois não foi parte do contrato ou na convenção independente que a albergou, a cláusula não pode ser eficaz em relação a ele, para o vincular a uma prestação indenizatória que não contratou, como, inversamente, não pode ele pretender aproveitar-se dela, limitando, vinculativamente, perante si, alguém – o credor – que não contratou com ele. De resto e em

43 Para E. Santos Júnior “em conformidade com o regime da solidariedade passiva, aquele dos responsáveis que haja pago a indenização ao credor terá direito de regresso contra o outro responsável, na medida em que haja pago para além do que, em face da violação da situação, se entenda ser o âmbito da sua responsabilidade.” JÚNIOR, E. Santos. Op. Cit., p. 558.

35

consonância, a responsabilidade do terceiro, e não contratual, como a do devedor. Deste modo, o terceiro responderá perante o credor pelos danos efectivamente resultantes da lesão. E a solidariedade entre ambos responsáveis existe apenas até o limite do valor por que ambos devam responder. Assim, se o montante dos prejuízos exceder a cláusula penal, o devedor e terceiro são solidariamente responsáveis até o limite do valor fixado na cláusula penal, mas, para além deste valor só o terceiro responde, individualmente; por outro lado, se o montante dos prejuízos efectivos ficar aquém do valor fixado na cláusula penal, o terceiro e o devedor só respondem solidariamente até o limite do valor efectivo dos prejuízos; para além dele, até ao montante definida na cláusula penal, apenas o devedor responderá individualmente.”44

Partindo desta análise é fácil concluir que podem existir casos em

que o valor auferido aos prejuízos seja idêntico ao valor da cláusula penal.

Sendo assim terceiro e devedor por terem agido conjuntamente para aquele

prejuízo responderão solidariamente no limite da cláusula penal.

O importante é salientar que a possibilidade supramencionada

decorre de uma coincidência de valores e não da aplicação de uma cláusula

contratual penal específica contra um terceiro não contratante.

Em síntese, o terceiro será responsável sempre que o contratante

prejudicado comprovar os prejuízos sofridos, uma vez que apenas o devedor

é obrigado a pagar a cláusula penal independentemente da prova de qualquer

dano.

Provados os danos, o terceiro responde de forma solidária ao

devedor, nos termos do prejuízo apurado, tendo como limite o valor do

prejuízo efetivo e não a cláusula penal, uma vez que esta última representa

tão somente o limite da responsabilidade do devedor.

44 JÚNIOR, E. Santos. Op. Cit., p. 561-562.

36

3.3 - Aplicação da doutrina no Brasil - alguns precedentes

jurisprudenciais

No Brasil a responsabilidade civil do terceiro que interfere na relação

contratual ainda não é difundida. Poucos são os trabalhos específicos sobre o

tema que se encontram esparsos em periódicos especializados em direito

privado. Ou então, a matéria é tratada como um mero tópico inserido em

estudos sobre os efeitos do contrato e o princípio da relatividade.

Todavia, a aproximação dos direitos reais e de crédito, o

reconhecimento dos efeitos externos do contrato, a sua oponibilidade em

contraste com a relatividade são constantemente tratados pelos tribunais, em

razão da mudança de paradigma ocorrida no ordenamento civil pátrio.

O código de defesa do consumidor, por exemplo, trouxe significativa

contribuição ao direito civil, especialmente no plano da extensão dos efeitos

contratuais ou sua qualificação pela definição ampla de sujeito de direito da

relação de consumo.

Antes da promulgação do CDC, a responsabilidade civil do

fabricante encontrava obstáculo quase intransponível, consubstanciado na

existência de vinculo contratual entre ele e o consumidor.

Modernamente, o art. 12 do CDC prevê a responsabilidade solidaria

do fornecedor, produtor, construtor e importador, não levando em conta a

ausência de relação jurídica direta com o consumidor. O referido artigo,

indubitavelmente, representou verdadeiro rompimento da res inter acta neque

nocet prodest.

37

Admite-se, então que o fabricante, que não participou do contrato

celebrado entre fornecedor e consumidor, portanto, terceiro, seja

responsabilizado pela inadequação do bem adquirido.

Antônio Junqueira, em parecer de 1997, trouxe à doutrina brasileira

um estudo sobre a responsabilidade civil do terceiro interferente. O parecer

analisa a situação das distribuidoras de combustível que interferiram na

relação de exclusividade tratada entre postos de gasolina e outra distribuidora

concorrente.

No caso a distribuidora contratante tinha com o posto de gasolina –

que levava sua bandeira – relação de exclusividade quanto á distribuição de

combustível. Ocorre que outra distribuidora concorrente, vai ao posto

contratante e lhe oferece a distribuição de se combustível a preço mais baixo.

Em seu entendimento Junqueira explica:

“As distribuidoras que vendem combustíveis a postos “Oil”, quebrando a exclusividade contratualmente assegurada, estão, pois, a cometer ato ilícito (art. 159 do Código Civil); são elas solidariamente responsáveis pelas conseqüências do inadimplemento contratual praticado pelos postos “Oil”. Essa solidariedade está expressa na parte final do art. 1518 do Código Civil: “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos a reparação do dano causado, e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pel reparação”. [...] Assim sendo, diante de todo exposto, não temos dúvida de que a Companhia Distribuidora de Petróleo “Oil”, além das providências judiciais e ações de inadimplemento que lhe competem contra seus postos revendedores, que adquiriram ou venham a adquirir, combustíveis de distribuidoras estranhas, tem também diretamente, contra essas mesmas distribuidoras, direito, quer de impedir o ato ilícito, quer, se cometido o delito, de obter indenização cabal. É o nosso parecer.”45

A jurisprudência por sua vez, ainda não trata diretamente da

questão, contudo, não se pode negar sua evolução no que se refere aos

45 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Op. Cit., p. 119-120.

38

efeitos externos do contrato e a possibilidade de os mesmos virem a afetar a

esfera jurídica de terceiros.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais analisou o tema a partir de

uma ação ordinária ajuizada por posto de gasolina (e outro), em desfavor da

distribuidora com a qual mantinha relacionamento comercial.

Durante a execução do contrato entre o posto e a distribuidor, o

posto passou por dificuldades financeiras, tornando-se devedor da

distribuidora. A fim de quitar sua dívida, os donos do posto resolveram vendê-

lo. Ocorre que o contrato definitivo dependia da apresentação por parte da

distribuidora, de documento contendo o valor total da dívida e esta se negou a

apresentar. Vejamos a ementa:

“CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE FUNDO DE COMÉRCIO – DEPENDENCIA DE CONDUTA DE TERCEIRO – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA – NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO BRASILEIRO – CONDUTA ILÍCITA CONFIGURADA – SUBSTRATO PROBATÓRIO – INDENIZAÇÃO PARCIALMENTE DEFERIDA”.

Em primeira instância a ação foi julgada parcialmente procedente,

pois o magistrado entendeu que a recusa da apresentação do documento não

configurava ato ilícito. Entretanto em segunda instância o caso foi melhor

esclarecido, reconhecendo o ato ilícito da distribuidora pelos seguintes

fundamentos:

“[...] em que pese à ausência de violação de dever contratual ou extracontratual, os novos paradigmas do Direito pátrio, trazidos a partir da Constituição Federal de 1988, conduzem a outro entendimento. O novo Código Civil abandonou o paradigma individualista e inseriu novos paradigmas no Direito pátrio, deixando de lado o relevo protecionista da liberdade, segurança e propriedade privada para destacar a solidariedade e a eticidade. Os institutos como a função social da propriedade, função social dos contratos e boa-fé objetiva demonstraram não mais uma preocupação exacerbada com o ideal leberalista individualista, mas com o coletivo, o social.

39

Neste contexto, insere-se a boa-fé objetiva, que reputo violado na espécie. [...] A aludida obrigação não decorre do contrato de compra e venda – que, de fato, não foi firmado pela ré – mas de cláusulas gerais expostas no novo Código Civil, dos deveres anexos de cuidado, lealdade, boa-fé e solidariedade (pré e pós) contratual (art.421 e 422). [...] O dever de não lesar vai além da execução do contrato e estende-se para período posterior, não podendo uma parte, porque não mais mantém vínculo contratual com outra, criar dificuldades para a outra – que se encontra em dificuldade financeira – sob o argumento de que não tinha obrigação contratual ou legal de apresentar o documento. [...] Trata-se de confissão de que – com reduzida visão de que a não apresentação do valor devido e listagem de equipamentos não configura ato ilícito contratual ou extracontratual – a apelada efetivamente violou os princípios da boa-fé e da solidariedade contratual. [...] Cabia a ré ter fornecido a declaração necessária à concretização da compra e venda do fundo de comércio, devendo-se levar em conta que (restou provado) a própria demandada tinha pretensão de adquiri-lo”.46

Mais recentemente, em 2008, o Tribunal de São Paulo apreciou

outro caso específico sobre a responsabilidade do terceiro interferente. O

caso se tornou extremamente notório por se tratar de concorrência em

campanha publicitária, envolvendo, como “garoto propaganda” o famoso

cantor Zeca Pagodinho.

O caso trata da contratação do cantor pela empresa Schincariol

para lançamento de seu novo produto, a cerveja Nova Schin. O contrato tinha

como objeto a veiculação de três peças publicitárias com participação do

cantor e de outros artistas a fim de promover a nova cerveja no mercado em

caráter de exclusividade.

Ocorre que logo após a veiculação da primeira propaganda na TV, o

cantor foi procurado pela em presa concorrente Ambev para assinatura de um

46 Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação n° 1.0024.04.462640-6/001. Autor: Posto Alaska Ltda. E outros, Réu: Ale Combustíveis S/A. Relator Des. Alberto Vilas Boas.

40

contrato de publicidade que visava promover o mesmo produto da Schincariol

– uma cerveja.

Não existem dúvidas que o contrato do cantor com a Schincariol

ainda estava em vigar e continha cláusula de exclusividade. Mas ainda assim,

sem qualquer aviso a sua contratante primeira, o cantor fechou contrato com

a Ambev que sabia dos termos do contrato do Zeca com a Schincariol.

Tais condutas resultaram em diversas ações pela empresa

Schincariol, tanto contra o Zeca Pagodinho (Jessé Gomes da Silva Filho),

quanto contra a agência publicitária que fez a propaganda (JGS) e também

contra a concorrente Ambev.47 O objetivo da Schincariol era a paralisação das

propagandas da Ambev com participação do cantor, o cumprimento do

contrato celebrado, bem como a indenização pelos prejuízos morais e

materiais sofridos.

Na cautelar foi reconhecida a obrigação da Ambev de não mais

circular suas propagandas que continham a imagem ou a voz do autor sob

pena de multa diária. Desta decisão foram interpostos agravos48 que foram

desprovidos, mantendo a sentença de primeiro grau.

Ultrapassando todas as peculiaridades deste caso e do deslinde de

suas ações, vejamos a parte que nos interessa quanto ao reconhecimento

pela jurisprudência da tutela externa.

47 São elas: 583.00.2004.002404-9 (ação indenizatória – Schincariol x Ambev); 000.03.156894-7 (ação cautelar – Schincariol x Ambev); 583.00.2004.008428-0 (ação de indenização por dano moral – Schincariol x Ambev e CBB); 583.00.2004.031717-8 (ação de obrigação de fazer e não fazer – Schincariol x Ambev, JGS Produções artísticas e Jessé Gomes da Silva Filho); 583.00.2004.109435-2 (ação indenizatória); 583.00.2004.027913-8 (ação cautelar); 583.00.2007.117728-6 (ação de indenização por danos morais e materiais – Schincariol x Ambev).

48 Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumentos n°s 346.328-4/5 e 346.344-4/8

41

O eminente Relator Des. Roberto Mortari decidiu na cautelar sobre

a oponibilidade do contrato entre a Schincariol e o Zeca Pagodinho contra

Ambev:

“A primeira refere-se a um vínculo contratual preexistente e devidamente comprovado, que se traduz para os fins da cautelar ajuizada, no fumus boni iuris legalmente exigido. Mesmo porque, ainda que a Ambev não tenha sido signatária do contrato entre Zeca Pagodinho e Schincariol, sua conduta ao deixar de observar o pacto de exclusividade nele contido, é potencialmente apta a gerar dano indenizável, o que se de um lado deverá ser alvo de regular contraditório na ação principal a ser proposta, lhe confere, ao menos por ora, status para figurar no pólo passivo da demanda. A outra é de ordem ética e aliada à necessidade de se evitar que o desrespeito ao aludido vínculo persista, acarretando maiores danos para as partes envolvidas e para o meio social, justifica a urgência da medida, refletindo o periculum in mora. [...] Não é difícil identificar na campanha publicitária veiculada pela Ambev, pontos contrários a ética. No mínimo, ela estimula a traição e o desrespeito aos contratos, práticas nocivas à sociedade, que não pode ficar exposta a tal aviltamento, enquanto as partes discutem, dentro dos autos, suas razões e eventuais perdas e danos”.

Apesar dos poucos casos elencados acima, já se pode notar que a

tutela externa do crédito, encontra espaço em nosso ordenamento, ainda que

de forma tímida ou ainda aplicada por analogia com outros institutos. Em

pouco tempo acredita-se que a doutrina e jurisprudência brasileira já

regulamentarão esta teoria.

42

CONCLUSÃO

O presente trabalho pretendeu estudar em linhas gerais, a tutela

externa do crédito e a possibilidade de se responsabilizar civilmente um

terceiro que interfere em relações contratuais alheias.

A viabilidade desta teoria iniciou-se a partir da expansão das

relações mundiais e da necessidade de adoção de um novo paradigma, no

qual os princípios constitucionais ganham espaço no âmbito privado, trazendo

para o direito civil a preocupação social.

O código civil de 2002 positivou esta mudança em alguns de seus

artigos, que a partir de então restringem a autonomia privada aos limites

sociais. No âmbito contratual este novo paradigma fez surgir princípios

contratuais modernos e adequados à nova realidade social, complementando

as concepções adotadas pelos princípios clássicos. Esta complementação

deve ser analisada à luz da Constituição, uma vez que a visão individualista

das relações cedeu lugar à socialidade.

Dentre os novos princípios se destaca a função social do contrato

como relevante ponto para análise do aspecto externo dos contratos. Sua

importância amplia a relação jurídica para além da relação entre contratantes.

O contrato agora é analisado a partir de seu aspecto interno e de

seu aspecto externo, que interesse não só as partes mas também a sua

aplicação na sociedade. O interesse social impõe uma releitura do princípio

da relatividade contratual. Neste sentido, os efeitos do contrato não mais se

limitam aos contratantes, podendo vir atingir a esfera de terceiros.

43

Para estes terceiros que são protegidos pela legislação, surge

também o direito recíproco de proteger as relações jurídicas. Como estes não

são parte dessa relação, seu dever é o de não intervir, permitindo que a

obrigação contratada seja cumprida dentro dos limites pactuados e legais.

Quando a atuação de terceiro, intencionalmente, causa dano ao

adimplemento contratual, este deve ser responsabilizado na extensão da

lesão que causou.

Uma ressalva a esta conduta é feita para viabilizar a livre

concorrência prevista em nosso ordenamento. Por isso, a responsabilidade do

terceiro só se dá em casos em que se comprova sua intenção de lesar o

direito alheio.

O estudo evidenciou também que para oponibilidade da tutela

externa do crédito é preciso ter conhecimento do direito do outro, neste

sentido foi apreciada a possibilidade da projeção erga omnes dos efeitos

contratuais, sob o fundamento do direito subjetivo que por si só já estabelece

uma obrigação geral de respeito aos ajustes de vontade.

Embora o tema não seja muito difundido no Brasil, o

reconhecimento dos efeitos externos do contrato e sua oponibilidade contra

terceiros, já vem sendo estudada por parte de nossa doutrina e jurisprudência.

O que legitima este entendimento na ordem prática de nosso ordenamento

jurídico.

A responsabilidade civil do terceiro tem nos artigos 186, 187, 927 e

942, do Código Civil os fundamentos para sua configuração e aplicação, que

são: o cometimento de um ato ilícito, um dano decorrente deste e o nexo

causal entre a conduta do agente e o dano efetivo.

44

A atuação do terceiro pode lesar a relação alheia de diferentes

formas que se dividem em dois tipos básicos: a atuação unilateral do terceiro

ou a atuação conjunta do terceiro e do devedor contra o credor ou seu direito

de crédito. Está última hipótese é conhecida pela doutrina como teoria do

terceiro cúmplice, devido a comunhão de agentes causadores de dano.

Não basta, contudo, que o terceiro conheça a existência do ajuste

de vontades, a intenção de interferir no contrato – dolo - é essencial para que

não se cometam injustiças. Afinal este terceiro não é parte do acordo e a

regra da responsabilidade ainda é a relatividade de efeitos, sendo permitida

sua mitigação apenas se comprovada intenção de prejudicar.

Conclui-se assim que a responsabilidade do terceiro é

extracontratual e subjetiva. Nos casos em que se verifica a cumplicidade de

intenções de interferir, a regra é a solidariedade de responsabilidades.

Como questão relevante este trabalho ressaltou ainda a

possibilidade de aplicação da cláusula penal ao terceiro em conjunto com o

devedor que a pactuou. Restando entendido que o terceiro só deve responder

no limite de seu dano, cabendo a cláusula penal apenas ao devedor que a

contratou.

Sobre o exposto, conclui-se que a tutela externa do crédito encontra

amparo na teoria da responsabilidade civil extracontratual, sendo possível a

responsabilizar o terceiro que intencionalmente causa dano ao crédito alheio.

Este trabalho buscou agrupar em seus capítulos os requisitos e

fundamentos para configuração desta doutrina em nosso ordenamento

jurídico. Ao final, com objetivo de comprovar a sua viabilidade ressaltou

alguns entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que já aplicam esta

teoria. Fica então proposta a questão para futuros debates.

45

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Ações: 583.00.2004.002404-9 (ação indenizatória – Schincariol x Ambev);

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0 (ação de indenização por dano moral – Schincariol x Ambev e CBB);

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Ambev, JGS Produções artísticas e Jessé Gomes da Silva Filho);

583.00.2004.109435-2 (ação indenizatória); 583.00.2004.027913-8 (ação

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Apelação n° 1.0024.04.462640-6/001. Autor: Posto Alaska Ltda. E outros,

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visitado em 26/10/2011.

50

ÍNDICE

Folha de Rosto 2

Agradecimento 3

Dedicatória 4

Resumo 5

Metodologia 6

Sumário 7

Introdução 8 a 9

Desenvolvimento 10 a 41

Conclusão 42 a 44

Indicações Bibliográficas 45 a 49

51