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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU INSTITUTO A VEZ DO MESTRE A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI Por: Maria Valéria Gomes Orientador Profª Mary Sue Carvalho Pereira Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E O ADOLESCENTE EM

CONFLITO COM A LEI

Por: Maria Valéria Gomes

Orientador

Profª Mary Sue Carvalho Pereira

Rio de Janeiro

2009

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E O ADOLESCENTE EM

CONFLITO COM A LEI

Apresentação de monografia ao Instituto A Vez do

Mestre – Universidade Candido Mendes como

requisito parcial para obtenção do grau de

especialista em Psicologia Jurídica.

Por: Maria Valéria Gomes

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AGRADECIMENTOS

A todo corpo docente do curso de pós-graduação em

Psicologia Jurídica do Instituto A Vez do Mestre da

Universidade Cândido Mendes.

À orientadora Mary Sue, que com grande sensibilidade e

competência, guiou-me na consecução deste trabalho.

Aos colegas, que não se furtaram a compartilhar

conhecimentos, tornando assim, nossa tarefa mais rica.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu companheiro de vida, Rui e

a Esther Kullock, pela potência de amor com que facilitou

a geração desta vida. Meu carinho a vocês, que me

auxiliam a manter acesa a chama da esperança, com sua

companhia amorosa e seu incentivo.

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RESUMO

Este trabalho teórico apresentado como trabalho de conclusão de curso

é fundamentado na psicanálise. Ele propõe reflexões sobre agressividade,

infância e adolescência. O ponto de partida para estas reflexões foi o

adolescente em conflito com a lei e trabalha-se com a hipótese de que os

adolescentes, quando transgridem as leis sociais, tentam encontrar respostas a

seus conflitos inconscientes.

Segundo D. W. Winnicott, a característica fundamental da Tendência

Anti-Social é o impulso que ela dá ao menino ou menina para alcançar o que

havia antes do momento ou da condição de deprivação. Esta criança primeiro

sofreu uma experiência intensa de abandono e em seguida reorganizou-se na

forma de alguém que se encontra em estado neutro, submetendo-se, porque

não há nada mais que a criança seja suficientemente forte para fazer. Este

estado pode parecer bastante satisfatório, do ponto de vista dos que cuidam

dela. E então, por uma ou por outra razão, a esperança ressurge: sem ter

consciência e desenvolvendo mecanismos de dissociação, a criança começa a

sentir uma certa urgência em voltar atrás, para além do momento da

deprivação, quando tudo ia bem, para assim desfazer o pavor à angústia

impensável ou à confusão que se instalou enquanto o estado neutro ainda não

se havia organizado.

Podemos encontrar uma situação aonde o jovem vai a busca de algo

que julga ter perdido e então dirige sua agressividade, primeiro para a mãe e

depois, se a situação não se resolver, para os seus substitutos simbólicos.

A Tendência Anti-social pode ocorrer em crianças; em adolescentes

tornar-se delinqüência e na idade adulta, psicopatia, caso o sujeito não receba

o suporte e os limites necessários nas fases iniciais da vida.

Palavras-chave: deprivação, agressividade, esperança, reivindicação,

dissociação, abandono.

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METODOLOGIA

Nosso interesse pelo tema em questão surgiu, primeiramente pelo

processo de aprofundamento teórico em psicanálise, principalmente em um de

seus teóricos, D. W. Winnicott, pediatra inglês que se tornou psicanalista em

virtude da convicção, confirmada em sua prática clínica, de que a maior parte

dos problemas que levavam mães e bebês ao seu consultório eram devidos a

dificuldades emocionais extremamente primitivas. Um segundo momento se

deu durante o curso de pós-graduação latu senso em Psicologia Jurídica. Nele,

tivemos a oportunidade de transitar por outros teóricos e pensadores que, a

partir de seus referenciais, estão buscando um diálogo com vários saberes, na

tentativa de problematizar questões tão prementes na contemporaneidade,

como juventude, adolescência, agressividade e violência.

Para realizarmos este trabalho, lançamos mão de pesquisa bibliográfica

e leitura de livros, revistas e artigos que versassem sobre o tema proposto,

buscando subsidiar nossas reflexões. A tarefa teve início com a gestação de

um projeto de monografia, a partir de contatos semanais com a orientadora

Mary Sue.

Germinada a proposta inicial, confeccionamos o projeto monográfico, dividimo-

lo em capítulos e construímos uma hipótese, que esperamos esteja clara e

bem fundamentada nas páginas que se seguem.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 10

CAPÍTULO II - DESTITUIÇÃO DA INFÂNCIA E CRISE

CONTEMPORÂNEA 25

CAPÍTULO III - O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: UMA

REFLEXÃO PSICANALÍTICA 33

CONCLUSÃO 40

BIBLIOGRAFIA 44

ÍNDICE 47

FOLHA DE AVALIAÇÃO 48

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INTRODUÇÃO

Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo

começo, qualquer um pode começar agora e fazer um

novo fim.

Chico Xavier

A família é constituída por vários indivíduos que compartilham

circunstâncias históricas, culturais, sociais, econômicas e afetivas. É uma

unidade básica do desenvolvimento de experiências, de realização ou de

fracasso. Nestas relações, caberia aos pais ensinar estas circunstâncias e aos

filhos, aprendê-las. (Ferrari e Vecina, 2002).

O processo familiar e de sociabilização infantil (que ocorre nas primeiras

fases de seu desenvolvimento e se complexifica ao longo da vida), é realizado

e compartilhado por dois ou mais adultos, pois as crianças necessitam

confirmar os conceitos que foram transmitidos, auxiliando-as na internalização

daquilo que lhe está sendo ensinado. (Ferrari e Vecina, 2002).

A criança necessita de uma figura afetiva estável, que desempenhará o

papel de mediador da construção de sua identidade. Seu processo de

identificação será conturbado, se este contexto familiar que a recebe não for

continente e protetor. (Ferrari e Vecina, 2002).

Um bom vínculo entre pais e filhos, uma relação de confiança,

espontaneidade e transparência só são possíveis se, cada um dos

componentes dessa interação, puder realizar uma aprendizagem emocional

satisfatória.

Freud (apud Ferrari e Vecina, 2002) ressalta a tarefa de socialização da

família e a contribuição desta para a formação da personalidade dos sujeitos,

mediante a constituição de vínculos afetivos. O psiquismo não é algo dado pela

natureza, mas fruto de uma construção cultural que ocorre ao longo do

desenvolvimento infantil, no contexto das relações familiares.

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Já Winnicott (apud Ferrari e Vecina, 2002), quando fala dos cuidados

maternos e da função básica da família, para uma compreensão psicológica,

descreve uma “mãe suficientemente boa” como aquela capaz de se adaptar

plenamente às necessidades do bebê, reconhecendo-lhe as diferentes

manifestações de fome, frio e dor. O bebê é, nesse momento inicial de seu

desenvolvimento, um ser frágil e completamente dependente do outro. Assim, a

devoção da mãe ou daquele que a substitui na realização desta função

materna, em sua maneira de segurar, manusear e dar significado ao mundo é

indispensável para que o bebê possa dar continuidade a um crescimento

saudável.

Uma criança que não recebeu esses cuidados básicos sofreu, em maior

ou menor grau, uma privação. Isso poderia acarretar prejuízos, abrindo

caminho para o surgimento de sintomas, como por exemplo, comportamentos

anti-sociais.

De acordo com Winnicott (1999), a tendência anti-social, então, seria

conseqüência de uma falha ocorrida na infância e, caso não seja dada ao

sujeito que apresenta esse comportamento a possibilidade de resgatar aquilo

que perdeu, a possibilidade de um recomeço, poderá haver um

recrudescimento dos sintomas, passando para a delinqüência ou mesmo a

psicopatia.

Assim, a pergunta que nos fazemos é: será que os profissionais

envolvidos nos cuidados aos jovens sabem o que venha a ser a Tendência

Anti-Social, assim como a definiu Winnicott? Portanto o presente trabalho visou

compreender teoricamente o conceito de Tendência Anti-Social proposto por

este autor, bem como permitir aos profissionais identificar traços desta variável

de comportamento.

De modo geral, este trabalho se dirige a psicólogos, psicanalistas, profissionais

do direito e áreas afins, propondo uma reflexão sobre a criança e o

adolescente, com vistas à compreensão dos sentimentos e emoções

envolvidos nas relações entre pais e filhos, sobretudo quando a

responsabilidade faz com que o conhecimento desta dinâmica seja tão

importante no cotidiano dos profissionais destas áreas.

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CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

1.1 DESENVOLVIMENTO INFANTIL NORMAL

Todo indivíduo é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento e

não há nada que possa ser qualificado como saudável ou doente, dentro do

processo da existência humana, que seja desvinculado e independente das

condições ambientais às quais esse mesmo indivíduo pertence ou teve origem.

A teoria do amadurecimento pessoal é o ponto nuclear do pensamento

analítico de D. W. Winnicott, que a considerou como “espinha dorsal”

(backbone) do seu trabalho teórico e clínico.

Segundo Elsa Oliveira Dias (2003), essa teoria dá ênfase aos estágios

iniciais da criança, período esse em que estão sendo constituídas as bases da

personalidade e da saúde psíquica, sobretudo o que se passa na relação mãe-

bebê, descrevendo as necessidades humanas fundamentais desde as etapas

mais primitivas até a morte do indivíduo, bem como as condições ambientais

que favorecem a constituição de sua personalidade, incluindo-se a capacidade

de relacionamento com o mundo e com os objetos externos, assim como o

estabelecimento de relacionamentos interpessoais.

Na normalidade, é o ambiente que se adapta ao bebê e, à medida que

este amadurece, na presença do ambiente facilitador, ele vai criando não

apenas um, mas vários sentidos do real. Para Elsa Oliveira Dias (2003),

quando as coisas não vão bem, é a criança quem se vê compelida a adaptar-

se ao ambiente, isso pode ser o início da formação de um falso-si mesmo

patológico. Diante disso, pergunta-se: como será a personalidade de uma

criança que está se desenvolvendo normalmente? Como será o processo de

caráter que está se fortalecendo em bases saudáveis?

A perspicácia de uma criança não acarretará um atraso no processo de

amadurecimento da personalidade. Para Winnicott (1999), sempre que há uma

suspensão em algum ponto do desenvolvimento emocional, a criança buscará

retroceder ao ponto onde houve a falha, agindo, muitas vezes, como se fosse

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uma criança menor. O adulto também procede desta maneira, por exemplo,

quando frustrado pode tornar-se grosseiro ou apresentar uma reação de raiva

tal que isso lhe provoque um sintoma físico. Uma pessoa equilibrada tem

maneiras mais refinadas de enfrentamento de situações problemáticas, uma

criança está aprendendo a vivenciar essas situações e sua relação com o

mundo está apenas no início.

A infância é um processo gradual de formação de crenças em pessoas e

coisas e esse período é elaborado aos poucos, através de experiências

satisfatórias onde algumas necessidades são atendidas e justificadas, e de

experiências insatisfatórias, onde a raiva, o medo e a insegurança também

podem surgir. Sendo assim, a criança tem que encontrar um lugar onde possa

agir e a partir do qual possa construir um método pessoal para conviver com

seus impulsos destrutivos. (Winnicott, 1999).

Façamos então a pergunta: por que a pessoa normal e

sadia tem, simultaneamente, a sensação da realidade do

mundo e da realidade do que é imaginativo e pessoal? O

que aconteceu para que você e eu ficássemos assim? É

uma grande vantagem ser assim, pois desta maneira

podemos usar a nossa imaginação para tornar o mundo

mais emocionante e usar o mundo real para exercer a

nossa capacidade imaginativa. Será que crescemos

assim mesmo? Bem, o que quero dizer é que não

crescemos assim se, no princípio, cada um de nós não

tiver uma mãe capaz de nos apresentar o mundo em

pequenas doses.

(Winnicott: A criança e seu mundo, 1982, p.77).

Winnicott (1982), apresenta a criança normal como vivaz, esperta,

brincalhona e espontânea. Uma criança assim enfrenta os desafios da

existência, pois uma vida sem lágrimas e problemas só pode existir quando há

obediência sem espontaneidade.

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Um lar adaptativo seria difícil de existir para sempre, pois

qual seria o alívio para uma cólera justificada numa

criança?

(Winnicott: A criança e seu mundo, 1982, p.142).

Não há bebê sozinho: há a dupla mãe-bebê. A mãe também é o

ambiente do bebê e há normalidade quando ambos se compreendem e se

ajudam dentro de seus recursos naturais.

Uma criança normal emprega os recursos que a natureza lhe ofereceu

para defender-se contra a angústia e os conflitos que não tolera. No entanto,

esse tipo de capacidade que envolve discernimento, é ainda bastante reduzida

nessa fase, pois ainda não é fácil para ela saber que tipo de auxílio poderá

obter. A anormalidade revela-se na limitação e na rigidez da capacidade infantil

para discernir qual tipo de auxílio está ao seu alcance. (Winnicott, 1982, p.

143).

A criança pode urinar na cama como um protesto contra a severidade da

mãe. Urinando na cama, ela se defende em relação a seus direitos, de maneira

que não adiantaria a essa criança receber um medicamento contra enurese

noturna, pois, ao contrário de uma doença, ela estaria sinalizando que

conserva sua individualidade que sente ter sido ameaçada pelas ordens da

mãe. Após algum tempo, se for orientada e compreendida pela mãe, esta

criança acaba abandonando o sintoma e adotando uma maneira saudável para

afirmar sua personalidade frente a frustrações. Ela está aprendendo a discernir

entre o bom e o mau, entre o que gosta e o que não gosta.

Winnicott (1982), chama de “sintomas” aos recursos empregados pelas

crianças para defesa de seus interesses em circunstâncias apropriadas. A

criança saudável também grita e explode de raiva porque ela gravita em torno

de sua própria realidade interna, onde o prazer é a tônica, sendo que uma das

tarefas principais daqueles que cuidam de crianças é auxiliá-las a transitar

pelos pólos da ilusão e da desilusão.

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A criança saudável e normal tem grande alegria proveniente da

satisfação de seus impulsos imediatos. Muitas vezes, no entanto, ao unir-se a

um grupo, acaba precisando passar por um período de desilusionamento, onde

parte dessa espontaneidade tem que ser abandonada para integração aos

outros. (Winnicott, 1982, p.145).

Contudo, nada poderá ser abandonado que não tenha

sido primeiro descoberto e possuído. Quão difícil é para a

mãe certificar-se de que cada criança adquiriu, por seu

turno, o sentimento de ter conhecido o essencial do

amor, antes de se lhe pedir que tolere e prossiga com

menos que tudo! São realmente de esperar choques e

protestos, em ligação com uma aprendizagem tão

dolorosa. (Winnicott, 1982, p.145).

Ainda sobre o processo de desilusão e sua importância para o

desenvolvimento saudável da criança, pode-se dizer que o bebê só é capaz de

alcançar o final do processo de desilusão se já experimentou a ilusão de ser

Deus, o criador do mundo. Ele é desiludido ao despertar de sua ilusão, ao

compreender que verdadeiramente não o é. Se a ilusão tiver um término

apressado, ou seja, antes que o bebê esteja preparado para reconhecer este

fato, provavelmente ele sofrerá um trauma.

O processo de desilusão na vida do bebê ocorre quando a mãe começa

a sair do estado de preocupação materna primária, quando o bebê é muito

dependente e precisa dela para tudo. Nesta fase, com o bebê mais crescido, a

mãe passa a não estar tão integralmente acoplada a ele e então começam a

ocorrer “desadaptações” e “falhas” graduais de sua parte, não significando que

ela abandona seu filho. (Winnicott, 1982). A partir disso, o bebê vai se

adaptando a uma nova fase, vais saindo da ilusão de que é um Deus, que cria

todas as coisas: a mãe, a fralda, o leite na hora certa, o embalo e o brinquedo

que o distrai. Ele vai percebendo o mundo ao seu redor, o não-eu. Esse

processo, inclusive, deve acontecer gradualmente, pois se a ilusão tiver um

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término apressado, ou seja, antes de o bebê estar preparado para reconhecer

este fato, provavelmente sofrerá um trauma. (Abram, Jan, 2000, p. 160).

Ainda acompanhando as idéias de Winnicott:

Conseqüentemente existe um aspecto normal no trauma.

A mãe é sempre ‘traumatizada’ no bojo da adaptação. É

dessa forma que o bebê faz a passagem da dependência

absoluta para a dependência relativa. Porém, o resultado

não é o mesmo de um trauma, pois a habilidade da mãe

de sentir a capacidade do bebê, minuto após minuto,

emprega novos mecanismos mentais. O sentimento de

não-eu que o bebê apresenta depende da atuação da

mãe nesse campo do cuidado materno. Os pais atuam

conjuntamente, fazendo com que a família opere como

uma unidade, o que dá continuidade ao processo de

desilusão da criança.(apud – Abram,Jan – A linguagem

de Winnicott, 2000, p.160).

Ainda dentro da linguagem de Winnicott, a mãe falha e passa a corrigir

as suas falhas, ensinando ao bebê e à criança, o significado da confiança

materna:

O bebê nada sabe a respeito da comunicação, a não ser

dos efeitos da falta de confiança. É quando se estabelece

a diferença entre a perfeição mecânica e o amor humano.

Os seres humanos sempre falham: no decorrer dos

cuidados comuns a mãe tenta, o tempo todo, corrigir

suas falhas. Essas falhas relativas, com a imediata

reparação, indubitavelmente somam-se finalmente à

comunicação a fim de que o bebê venha a conhecer o

que é o sucesso. Uma adaptação bem sucedida,

portanto, origina o sentimento de segurança, o

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sentimento de ser amado...Existem incontáveis falhas

que são seguidas dos cuidados que corrigem aquilo que

acaba por transformar-se na comunicação do amor. Mas

de fato existe um ser humano ali para cuidar. Quando a

falha não é corrigida no tempo exigido, em segundos,

minutos ou horas, empregamos o termo ‘privação’. A

criança privada é aquela que, após experimentar a

correção dessas falhas, vive uma falha que não é

corrigida. É então que o empenho da criança cria as

condições necessárias para que a correção das falhas,

uma vez mais, dite um modelo para sua vida. (apud –

Abram, Jan, 2000).

É difícil para a criança esse processo que envolve o estar dentro do

princípio de realidade: perde-se algo aqui, se paga o preço pela própria

liberdade ali. A criança saudável não aceita isso assim tão facilmente. Protesta

porque aprender a perder é doloroso, é algo que pode frustrar suas

expectativas.

A criança normal testa todas as condições para aprender e crescer. Se a

sua mãe souber contornar os sintomas da criança, sem entrar em pânico com

toda a agitação que algumas crianças conseguem provocar no ambiente para

testá-lo, estará dando assistência suficientemente boa para seu filho, agindo de

modo natural. (Winnicott, 1982).

Até aqui, falou-se basicamente das relações da criança com sua mãe. E

a presença do pai? Ele é essencial na vida da criança, pois a insere na

realidade. Entretanto, podem surgir podem surgir dificuldades em relação ao

reconhecimento da figura paterna na trajetória diária da criança pequena;

dúvidas quanto a contar ou não com a presença desse pai. Podem surgir

sintomas e complicações, seja por amor, seja por sentimentos mistos de ódio e

amor, ou até por ciúmes da mãe ou do pai; mesmo assim, a criança vai

precisar enfrentar esse lado da realidade: o mundo das relações. Deve seguir

em frente, desafiando toda e qualquer situação mais complexa da realidade

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externa, até mesmo o que inclui o nascimento de irmãozinhos novos que

chegam para retirar-lhe o lugar central na família. (ibid, p. 146).

Concluindo, podemos dizer que pelos desenhos e brincadeiras infantis,

pode-se observar que a criança cria um mundo interior e pessoal. Nesse

mundo, onde batalhas são ganhas e perdidas, a magia se conserva num

equilíbrio oscilante. (Winnicott, 1982).

Esse mesmo mundo interior vai expressar-se através do corpo da

criança por meio de dores e perturbações corporais e será acompanhado de

tensões e angústias do mundo exterior. A mãe não deve achar que seu filho

está doente. O seu corpo poderá ser visto como o palco de um teatro onde a

criança dramatizará suas representações internas e será possuída por “toda

espécie de pessoas reais e imaginárias”. Por vezes, essas pessoas e animais

imaginários “saltarão para fora”.(Winnicott, ibid, p. 147).

Os pais dessa criança devem compreender que a criança tem o seu

direito de existir e não devem solicitar que se comporte como um adulto. Se

todos os personagens estão em um plano externo à personalidade da criança é

por um bom motivo que devem ser cuidados e respeitados pelos seus pais.

(Winnicott, 1982).

A criança saudável brinca e deve ser estimulado o brincar em sua vida

pelos pais. Para Winnicott (1982), se a criança estiver brincando, poderá haver

lugar para um sintoma ou mais, e se ela brincar, sozinha ou com outras

crianças, não haverá nenhum problema realmente grave à vista. A mãe pode

sentir-se feliz e saber que há normalidade se perceber imaginação e prazer

nessas brincadeiras, pois isso depende de uma exata percepção da realidade

externa. Isso deve acalmar a mãe, mesmo que a criança esteja urinando na

cama, gaguejando, demonstrando explosões de mau-humor ou esteja tendo

ataques de birra. O brincar sinaliza que a criança está se desenvolvendo num

ambiente bom e estável e que é capaz de tornar-se um ser humano integral,

com todas as possibilidades de ser desejado, acolhido e amado.

O brincar, baseado como é na aceitação de símbolos,

contém possibilidades infinitas. Torna a criança capaz de

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experimentar tudo o que se encontra em sua íntima

realidade psíquica pessoal, que é a base do sentimento

de identidade em desenvolvimento. Tanto haverá

agressividade como amor. (Winnicott, 1999, p.107).

A brincadeira, o uso de formas e artes e a prática

religiosa tendem, por diversos mas aliados métodos para

uma unificação e integração geral da personalidade. Por

exemplo, pode-se facilmente ver que as brincadeiras

servem de elo entre, por um lado, a relação do indivíduo

com a realidade interior e, por outro lado, a relação do

indivíduo com a realidade externa ou compartilhada.

(Winnicott, 1982, p.164).

O brincar e as brincadeiras infantis permitiriam à criança uma

possibilidade de elaborar seus medos e terrores inimagináveis:

Conquanto seja fácil perceber que as crianças brincam

por prazer, é muito mais difícil para as pessoas verem

que as crianças brincam para dominar angústias,

controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia se

não forem dominados. A angústia é sempre um fator na

brincadeira infantil e, freqüentemente, um fator

dominante. A ameaça de um excesso de angústia conduz

à brincadeira compulsiva, ou à brincadeira repetida, ou a

uma busca exagerada dos prazeres que pertencem à

brincadeira; se a angústia for muito grande, a brincadeira

redunda em pura exploração da gratificação

sensual.(ibid, p. 162).

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1.2 A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL

Segundo Winnicott (1999), o comportamento anti-social não está

atrelado a um diagnóstico psiquiátrico, nem se compara à neurose ou psicose.

Pode ser encontrado em indivíduos de todas as idades, desde que, quando

crianças, tenham passado por um histórico de privação emocional, quando haja

lhe faltado certas características essenciais da vida familiar. Isso pode

acontecer no lar ou em vários outros lugares. A tendência anti-social é

caracterizada por:

Um elemento que compele o meio a ser importante. A

criança ou o adolescente, através de pulsões

inconscientes, compele alguém se encarregar de cuidar

dele.(Winnicott, 1999, p. 139).

Quando se estuda o conceito de tendência anti-social elaborado por

Winnicott, deve-se compreender dois conceitos: privação e deprivação. A

privação é a experiência de abandono pela qual pode passar um bebê quando

muito pequeno e antes de ter desenvolvido na mente a capacidade de

diferenciar o eu e o não-eu. Para Winnicott, as conseqüências da privação

levam ao desenvolvimento de defesas radicais, que culminariam na psicose

infantil precoce, A deprivação, por sua vez, é uma terrível experiência de

abandono que se passa após um período de bom desenvolvimento e cuidados

adequados, que possibilitaram à criança pequena desenvolver um eu capaz de

reconhecer os agentes responsáveis pelo seu sofrimento no meio externo, e é

por isso que suas reações ao que lhe acontece serão direcionadas ao

ambiente. (Gorayeb, Raul, 2004).

A deprivação é um primeiro elemento que caracteriza a tendência anti-

social e que permite uma hipótese de origem para o problema. Em reação ao

acontecimento, tendo a criança atingido um grau de maturidade mínimo,

desenvolvem-se outros mecanismos que definirão os outros componentes do

quadro. Winnicott descreve que, ao reconhecer que “o ambiente lhe deve algo”,

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o bebê dirige sua agressividade para fora, e como já reconhece a mãe, ela será

o seu alvo preferido. Se com o passar do tempo essa situação não for tratada,

outros alvos serão escolhidos em substituição à mãe. Muitas vezes ocorrem

roubos sintomáticos, que funcionam como se a criança estivesse recuperando

“algo que lhe é devido”. (Winnicott, 1999).

Comportamentos anti-sociais podem ser compreendidos como furtos,

roubos, enurese noturna, fugas, agressões, onde tais situações sinalizam que a

criança estaria comunicando “um verdadeiro desapossamento” (Winnicott,

1999, p.140), como a perda de algo bom, que foi importante para a sua

experiência até um certo momento e que lhe foi retirado por um período maior

do que aquele em que se pode manter viva a sua lembrança. Assim, Winnicott

aponta que esta sinalização é uma esperança no que tange a possibilidade de

restabelecer seu caráter.

Até então, a teoria psicanalítica tinha atribuído à delinqüência, à

criminalidade e à ansiedade, um caráter de culpa inevitável, resultante de

ambivalências inconscientes. Eram considerados decorrentes do conflito que

surgia com o ódio e o desejo de destruir, dirigidas contra a pessoa amada e

necessária. Pensava-se que, quando a culpa se acumulava e não encontrava

saída na sublimação ou reparação, algo tinha que ser feito para que o indivíduo

se sentisse culpado disso. A etiologia da delinqüência era vista em termos de

luta que se trava no mundo interior, na subjetividade do indivíduo. Winnicott

(1999), aceitava que os distúrbios de comportamento tinham origem nos

conflitos inconscientes, mas considerava também o fator ambiental como

determinante para a constituição do sujeito, com um local seguro e estável

onde o indivíduo poderá desenvolver-se.

Contudo, a criança pode ser classificada como desajustada ou

incontrolável, recebendo um severo tratamento em alojamentos especiais e/ou

a incompreensão dos pais, ou daqueles que a cuidam. Caso seja mantido este

tratamento, quando adolescente, poderá vir a ser delinqüente. Como jovem

adulto, poderá desenvolver alguma psicopatia e remetido para institutos

correcionais ou para uma prisão. (Winnicott, 1999). Seria, então, função dos

pais e/ou do terapeuta, administrar, tolerar e compreender tais pulsões,

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entendendo-as como “esperança”. Para isso, seria necessário, ainda segundo

o autor, que se levasse em conta o ponto exato do trauma da privação,

incluindo o histórico anterior e o posterior, bem como a persistência da

condição traumática.

Além de episódios de roubo, a destrutividade é considerada como uma

estabilidade do meio que ajuda a criança a suportar a tensão resultante de um

comportamento impulsivo. Uma vez que a criança necessita de confiança,

liberdade para movimentar-se, agir, exercitar-se, e quando isso lhe é negado, a

reação aos fatores ambientais se torna intensa. No entanto, isso indica a

necessidade de suporte, de acolhimento para ser e crescer. (Winnicott, 1999).

Winnicott (1999), postula serem duas as raízes da tendência anti-social:

a busca do objeto perdido e a destruição. A criança quando rouba um objeto

acredita que, com esta ação, possa ter de volta a mãe para si, pois acredita ter

direitos sobre. A criança cria a mãe em sua onipotência, de maneira que:

[...] a mãe satisfaz a criatividade primária da criança e,

assim, converte-se no objeto que a criança estava

disposta a encontrar. (ibid., p. 141).

O autor atenta para os primeiros sinais de privação, através do

comportamento imperioso, da avidez relacionada ao apetite, das reclamações

compulsivas do bebê, decorrentes de frustração, que chegam a incomodar.

Outras manifestações incluem a sujeira (defecar, urinar), a enurese noturna, o

direito de molhar o corpo da mãe, a compulsão para sair e comprar alguma

coisa, fugas de cãs, saídas sem objetivo, a vadiagem e a destrutividade

compulsiva.

A atividade terapêutica para estes casos envolve o provimento e

cuidados à criança. A criança deve redescobrir isso e experimentar, de novo os

impulsos do Id, testando-os. O ambiente estável supre e dá a terapêutica

conveniente a essa criança que sofreu privação. A mãe e a família ajudam

muito em casa, conversando, cuidando, impondo limites amorosos desde cedo.

O ambiente, para Winnicott (1999), deve oferecer uma nova oportunidade de

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“ligação egóica”, ajudando a criança a perceber que houve uma falha ambiental

no apoio a esse ego, e que isso redundou na tendência anti-social.

Seria necessário dar nexo à aparente irracionalidade do comportamento

delinqüente, à rigidez de seus padrões e à sua compulsividade, pois há algo a

ser comunicado nesses momentos. Quando uma criança sofre uma perda,

espera-se que haja uma manifestação de aflição. Se isso não ocorrer, pode

haver um distúrbio mais profundo.

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1.3 A AGRESSIVIDADE

Para Winnicott (1999), amor e ódio envolvem agressividade e é a partir

desses sentimentos que se constroem as relações humanas. No ser humano,

esta agressividade é disfarçada e atribuída a agentes externos, tornando difícil

a compreensão de suas origens instintivas e reprimidas. Isto traria um perigo

em potencial para o indivíduo e para a comunidade, onde se fazem

necessárias fantasias inconscientes. Caso contrário, se desencadeia a atitude

anti-social.

Para o autor, desde bebê, o homem possui a relação de amor e ódio,

bem como a manifestação de comportamento agressivo. Em inúmeras

atividades, a criança brinca de construir e destruir, onde esta última ação não a

faz sentir-se desesperada e culpada por isso. A criança destrói magicamente e

não comete nenhuma violência, por enquanto. Mas um dia, esta mágica falha,

e ela injuria com a boca, xinga. Depois, leva os pais à exaustão com o seu

comportamento: esgota-os de cansaço quando está furiosa com eles. Pode

mordê-los até tirar-lhes sangue; pode jogar as louças ao chão e depois ficar

triste com o que acabou de fazer. Testa o ambiente e só magoa aqueles de

quem gosta muito. Essa excitação precisa direcionar sua energia para algo,

mas não sabe o que fazer com toda essa explosão de energia dentro de si.

Em outros casos, os bebês podem morder os seios maternos, tirando

sangue com suas gengivas e assim aterrorizar sua mãe. No entanto, o bebê

morde não porque está irado ou frustrado, mas porque está muito excitado.

Outros podem proteger o seio de tal forma, que passam a sofrer de inanição,

pois, para não morder o seio, chupam o lado interno de seu lábio inferior,

ferindo-se. Assim, uma vez que pode machucar, o bebê pode também inibir

seus impulsos, facilitando a proteção do ser amado. Da mesma forma que tem

capacidade para a destruição, tem para proteger o que ama de sua própria

destrutividade (aqui ocorre em sua fantasia). Faz parte do seu apetite e é uma

forma de amor instintivo, segundo Winnicott (1999).

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Winnicott (1999), considera três aspectos sobre a agressividade. O

primeiro se refere à voracidade1 teórica ou um amor/apetite primário, onde o

objetivo do bebê é a satisfação. Para gratificar-se, pode por em perigo quem

ama. Há uma conciliação consigo e o encontro de alguma satisfação que evita

com que ele seja perigoso. Frustrado, ele odeia alguma parte de si, a menos

que encontre alguém fora de si mesmo para frustrar e que suporte ser odiado.

O segundo aspecto se refere ao que pode causar dano naquilo que

menos provavelmente o cause. Os elementos agressivos do apetite podem ser

isolados e poupados para serem usados na hora da fúria e só mobilizados e

atualizados quando para se defender de uma realidade má. Para o autor,

existem forças inerentes à personalidade da criança e que podem ser isoladas

de suas muitas expressões instintivas. Existem forças boas e más atuando e

buscando o predomínio. Quando forças destrutivas ameaçam dominar as

forças de amor, o indivíduo tem que fazer algo para salvar-se. Então, extravasa

seu íntimo, representando um papel destrutivo, pedindo controle por meio de

uma autoridade externa (através do limite). Isso também pode ser realizado,

imaginativamente, pelo brincar, e pelo trabalho.

Winnicott (1999), viu a relação entre o abandono da masturbação e da

exploração sensual, como a propiciadora do vínculo entre a realidade exterior e

a interior e o início do comportamento anti-social. A masturbação e a

dramatização são métodos alternativos e podem falhar. A criança pode achar

sua realidade interna terrível demais em confronto com a realidade externa.

Sua fantasia é muito ruim para ser aceita, não podendo ser usada na

sublimação. Faz-se necessário alterar “Eus” internos por novas experiências de

incorporação e projeção. Encontrar novas formas de eliminar a agressividade.

A criança que chuta uma bola despende energia de agressividade pelos pés,

porque necessita, naquele momento, agredir e dar pontapés.

O terceiro aspecto se refere ao controle da agressividade em uma fase

mais adiantada do desenvolvimento, observada em jovens e adolescentes. Isso

motiva a competição em jogos e trabalhos. Se a agressividade for incontrolável,

a lei se encarregará de cuidar disso. Para Winnicott (1999), toda a agressão

1 Winnicott usa a palavra voracidade para expressar a idéia da fusão original de amor e agressão.

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que não é negada e é aceita como responsabilidade pessoal, é fonte de força

ao trabalho de reparação e restituição. Não se deve neutralizar impulsos

destrutivos, pois na construção da personalidade, o indivíduo deve ser capaz

de “drenar cada vez mais o instintual” (p. 102), capacitando-se para reconhecer

sua própria crueldade e avidez, para dominá-las, convertê-las em atividade

sublimada.

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CAPÍTULO II

DESTITUIÇÃO DA INFÂNCIA E CRISE

CONTEMPORÂNEA

Hoje em dia estamos diante de um fenômeno de encurtamento do

período da infância e um alongamento da adolescência. Como se o período de

latência sombreasse essa infância e o adolescimento se esticasse para além

da adolescência e atingisse a vida adulta. Além disso, (ou devido a isso?),

também percebemos um aumento na agressividade e violência da criança e

uma destituição da função parental. Frente a esse novo cenário, a proposta de

refletir sobre as possíveis causas da agressividade na infância e adolescência,

bem como a destituição das funções parentais, tendo como referência Freud e

Winnicott em seus pressupostos teóricos nos pareceu adequada.

A infância não “existia” enquanto categoria social e histórica antes dos

meados do século XII. Não havia lugar para infância como a entendemos

atualmente, já que não figura em nenhum registro da época. Somente a partir

do século XVII, cabe à sociedade reconhecer a existência de uma infância,

anteriormente confundida ou diluída na idade adulta (Maia, 2005).

Na modernidade, à infância adita-se o significado de incapacidade e de

fragilidade, e a criança continua não tendo seu direito de ser um ser social,

posto que embora considerada, não lhe é atribuída responsabilidade sobre

seus atos e, assim, não tem a liberdade de ser (Maia, 2002).

O lugar da infância, na contemporaneidade é o espaço da negligência e

do “abandono moral” (Khel, 2000) e, assim, a criança não pode ser criança,

sendo condenada a viver uma eterna adolescência. É como se à criança

estivéssemos imputando obrigações e valores muito cedo, e com isso

estaríamos vivenciando uma diluição da infância como um espaço social que

foi construído ao longo de alguns séculos. Em décadas anteriores a criança

(assim como em sociedades primitivas), após breves rituais de iniciação,

tornava-se um adulto. Hoje, ainda segundo Khel (ibid.), a adolescência se

alonga cada vez mais e a infância se encurta, como se o período de latência

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sombreasse a infância. O que ocorre, hoje em dia, é um fenômeno que está

sendo denominado de “adultescência”, termo que designa o ideal de ser

adolescente para sempre, com adultos tendo condutas adolescentes e faltando

padrões adultos para aqueles que verdadeiramente estariam atravessando a

infância e a adolescência poderem identificar-se.

Ao acharmos que a criança pode assumir responsabilidades para as

quais ainda não está preparada, damos a ela obrigações de adolescentes,

suprimindo a etapa da infância tão necessária. Isso traz conseqüências sérias

à constituição deste sujeito que é a criança. Ao delegarem à criança a

responsabilidade por seu próprio desenvolvimento, os pais falham nas funções

parentais de holding, de limites intransponíveis, que Winnicott postula

(Winnicott, 1999b), seja da mãe em estabelecer um ambiente suficientemente

bom a essa criança para que ela possa ir descobrindo o meio a seu tempo;

seja um ambiente indestrutível, estabelecido pelo pai e pelo seu lugar como

aquele que sustenta a mãe e limita a relação desta criança com a mesma. Sem

essas funções sendo exercidas de forma suficientemente boa, a criança acaba

por perder os seus referenciais identificatórios. Vemos, então, surgir uma

família de adolescentes, sem um papel definido que caiba à criança e outro aos

adultos: os papéis muitas vezes são invertidos ou aparecem diluídos.

Desinventamos a infância em prol de algo que, se pararmos para analisar, não

sabemos bem o que seja, nem quais a conseqüências futuras (Maia, 2002).

Diante desse desinventar, cabe indagar: Onde foram parar as nossas

estruturas sociais que, antes, sustentavam todo um desenvolvimento bio-psico-

social da criança? (Vilhena, 1998, p.66). Diante desse desinventar afirmamos

que

[...] una madre puede ser suficientemente buena em um

reino suficientemente sólido; pero si el reino deja de ser

suficientemente sólido, si es um reino incertidumbre, la

práctica de crianza tiene que tener algo de profético si

quiere estabilizarse em base a predicciones. (Lewkowics,

2003, p.5).

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Esperamos que nossos filhos sejam a nossa imagem de felicidade

(Vilhena,1998). Mas o que seria felicidade para a contemporaneidade? Se o

que esperamos de nossos filhos é que sejam nossos parceiros, como

poderemos estar querendo que eles nos vejam enquanto ideais ou enquanto

detentores de limites a serem dados a eles? Com parceiros fazemos grupos,

bandos, nos igualamos a eles. (Pulsional – revista de psicanálise, ano XVIII, n.

184, dezembro/2005, clínica do social). Como cobrar desses jovens, respeito e

obediência em outros moldes? Queremos o passado que nos tranqüilize da

transgressão, mas queremos o presente que nos dê apenas o prazer de ter,

nos filhos, apenas amigos, porque para os pais atuais:

[...] a tida autoridade passa a ser vivida com

autoritarismo, como uma ameaça a esta felicidade

desejada, a este amor tão propalado. Aos pais caberia

apenas a tarefa amorosa, sendo delegada a outras

instâncias públicas a tarefa educativa.(ibid., p.72).

A criança, nesse sentido, torna-se a caricatura da felicidade impossível

dos adultos. Isso evidencia a desconstrução de um espaço, o da infância e o

de ser criança, e acreditamos que uma das conseqüências mais gritantes

dessa nova configuração familiar seja a questão da destituição do papel e

função parentais, no sentido de os adultos estarem abdicando do seu lugar, e

tirando a criança do seu.

A criança responde a essa excessiva demanda de obrigações que

fogem ao seu entendimento, através de estratégias de sobrevivência, sendo a

agressividade uma delas e a violência o seu extremo. Negligência,

agressividade, violência.

A questão da agressividade no ser humano suscita, desde Freud, uma

situação paradoxal: todos admitem que a agressividade, tomada em seu

sentido mais lato, quase que sinônimo de destrutividade e violência, existe no

ser humano, mas custam admiti-lo e a estudá-lo como algo inerente ao mesmo

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(Maia, 2001). Assim, poucas pessoas admitem serem cruéis em atos e em

pensamentos. Aqui temos todo um trabalho de civilização que nos educa a

tolhermos e ocultarmos essa vertente de nosso psiquismo e é este preço alto

que pagamos em nome da civilização, até porque não há como extirpar a

agressividade do ser humano. Quando ela não surge de uma forma explícita,

muitas vezes aparecerá de forma implícita, voltando-se para o próprio homem

que a negou (ibid.). Logo,

[...] é sempre possível unir um considerável número de

pessoas no amor, enquanto sobrarem as outras pessoas

para receberem as manifestações de sua agressividade.

(Freud, 1930, p. 119).

O caráter marcante da violência pode ser especificado como sendo o

desejo de causar mal, humilhar, fazer sofrer a outro (Costa, 1986). O ato

violento porta a marca de um desejo, o emprego deliberado da agressividade.

Não há, portanto, violência instintiva, porque falar de violência é falar de uma

intencionalidade destrutiva. Poderíamos dizer que a agressividade opera

quando há reconhecimento, pelo sujeito, do objeto a quem endereça sua

reivindicação agressiva.

Um ato agressivo é também um pedido de

reconhecimento e endereçamento de uma mensagem a

esse outro.(Souza, s/d).

A agressividade, ao contrário da violência, inscreve-se dentro do próprio

processo de construção da subjetividade, uma vez que seu movimento ajuda a

organizar o labirinto identificatório de cada sujeito. (Vilhena e Maia, 2002).

Assim, qualquer sinal de indiferença, de risco de não satisfação, de não

reconhecimento pode reconduzir à experiência do desamparo primordial e aos

becos sombrios e tenebrosos da violência contra o outro que nos ameaça.

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(pulsional – revista de psicanálise – clínica do social, ano XVIII, n. 184,

dezembro/2005).

Em outras palavras, a ampliação dos mecanismos narcísicos

potencializa os mecanismos de impotência e desamparo constitutivos do

sujeito, dificultando as práticas de solidariedade social. Seus efeitos acentuam

as reações de segregação, o antagonismo e o ódio em relação ao diferente,

tornando maiores e insuportáveis às pequenas diferenças entre o sujeito e o

outro.

No reino da pura força, o que talvez possa ser apreendido como uma

possibilidade de laço social é o medo da morte, a pura luta para sobreviver,

não viver, pois existe uma diferença fundamental. Viver diz respeito ao desejo,

enquanto sobreviver restringe-se à necessidade.

Para Winnicott, o oposto à morte não é o estar vivo, e sim ter uma vida

criativa (Winnicott, 2000). Daquele que apenas sobrevive, pode-se dizer, como

Hannah Arendt (2001), que ele é muito triste, pois os homens, embora devam

morrer, não nascem para morrer, mas para começar. Para Arendt, a violência

destrói o poder e destitui e anula o outro, enquanto a agressividade é

construtiva e se inscreve em um processo de subjetivação, uma vez que seu

movimento ajuda a organizar o labirinto identificatório de cada sujeito (Vilhena

e Maia, 2002).

Descobrir a existência do outro sem que este seja visto como uma cópia

menos bem acabada, menos elaborada, mais primitiva ou mais carente, é

descobrir a diferença. Ou seja, o outro não é uma reprodução imperfeita do Eu.

O Outro é o Outro. É justo nesta possibilidade de diferir que lhe é conferida a

sua singularidade (Vilhena, 1993, p.27).

Essa diferença ocorre na possibilidade do gesto espontâneo do bebê

poder acontecer. Esse movimento agressivo criativo o faz encontrar a mãe,

seja no chute dentro da barriga materna, seja no impulso de sugar o seio na

hora de mamar. A agressividade do bebê o faz trocar com o mundo/meio, e a

oposição que ele encontra numa relação é, para ele, a troca em si. Essa troca,

advinda da percepção da oposição instaura, para ele (o bebê), um sentido de

realidade. A agressividade primária vista como um gesto espontâneo, quando

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acolhida, fornece ao bebê a idéia de criação (Winnicott, 2000). Porém, quando

não acolhida, instaura a agressividade ruidosa, quando esta deveria ser

sempre silente. Dessa forma, a agressividade que destrói, que pode ferir tanto

o meio (assustando os que observam a criança em seus movimentos de

procura), quanto e, principalmente, esta criança que procura no meio aquilo

que por direito seria seu, advém do mesmo lugar da agressividade que é

criadora, dentro de um ciclo benigno. É a mesma agressividade: o que mudou

foi como o meio acolheu este gesto, que de criativo passou a ser reativo

(Vilhena e Maia, 2003).

Para Winnicott (2000), a agressividade pode tomar vários caminhos, e

estes caminhos estarão em estreita relação com a resposta ambiental: o

desenvolvimento normal da capacidade de inquietude e duas alternativas

patológicas, que seriam a não-capacidade para a quietude e a questão da

formação do falso-self, ligado à questão da tendência anti-social.

Em “Aspectos da delinquência juvenil”, Winnicott (1999), é enfático

quanto à importância do lar na constituição do sujeito, quando alerta que cabe

a este “suportar com êxito tudo o que a criança fizer para desuni-lo, ela acaba

por acalmar-se através de brincadeiras” (p.256-7).

Tudo indica que nos casos que hoje assistimos acontecer em nossa

sociedade, esteja havendo uma falha básica da família em seu papel

contenedor dos impulsos agressivos. A tendência anti-social, que seria normal

até nos bons lares, está se transformando rapidamente em destrutividade,

violência e delinquência (Maia, 2002). Assim, a partir da idéia de o ato

agressivo ser “uma reivindicação de reconhecimento e endereçamento de uma

mensagem”, é possível fazermos uma aproximação deste com a tendência

anti-social, postulada por Winnicott. Para este autor, esta pode ser a expressão

da esperança que algumas crianças ainda mantém dentro de si; uma crença ou

crédito da criança no meio, entendendo-se esta esperança como um

movimento do meio em relação à criança, curando-a de sua deprivação.

Winnicott vê, neste tipo de ato, a busca de um limite e de um acolhimento

demonstrado neste endereçamento. Mas este endereçamento de SOS por

parte da criança ou do adolescente à sociedade é de difícil entendimento, posto

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ser subjetiva sua percepção e interpretação, quer seja pelos pais, quer pela

sociedade. E, se não entendido a tempo, esse SOS irá perdendo-se em

ganhos secundários cada vez maiores, fornecidos pela mesma sociedade que

deveria lê-los como um apelo de limites e ajuda. (Vilhena e Maia, 2002).

Assim, podemos ver que a questão do comportamento anti-social, que

questiona, pela atuação um direito a um lugar, o colo e atenção da mãe, e um

limite e significação para seus atos na figura do pai, pode, caso não seja

atendido, aumentar sua área de ação e passar a ser destrutivo. Winnicott

(1999) acreditava poder medir o grau de saúde submersa na tendência anti-

social pelo incômodo que ela causa no meio. A destrutividade seria a forma

mais desesperada de tentar chamar a atenção para si mesmo que uma criança

poderia lançar mão: ela estaria denunciando a quebra da figura identificatória,

teria se tornado, segundo o próprio Winnicott (ibid.), um delinqüente, ou seja,

aquele que desaloja as coisas de seu lugar, do lugar que é atribuído pela

sociedade – no caso a falta total de lugar, já que estaria apelando um grito de

SOS para as estruturas mais vastas da sociedade, que seriam as leis do país,

e procurando o limite nas barras de uma prisão. (Maia, 2002).

Acreditamos que a agressividade de nossas crianças e jovens, essa

agressividade que Winnicott irá denominar de normal e criativa, podendo vir a

ser, em outro extremo, patológica e destrutiva, circula por esta questão do

abandono, negligência e falha nas funções materna primária e paterna dessas

crianças. A criança que no período de dependência absoluta, deve ser

sustentada pela mãe e, depois, na dependência relativa, pela mãe e pelo pai,

está tendo que assumir, muito cedo, a responsabilidade pelos seus atos,

entendendo-se responsabilidade por um se responsabilizar infantil e

onipotente, pela falta de alguém que deveria estar lá, suficientemente forte,

para conter a intrusão do meio e não está, ou está fragilizado, com medo de

ser ou fazer o que tem de ser feito.

Assim, os pais acabariam por criar uma negligência no ato de criar seus

filhos e de criar seus padrões de como lidar com esse filho, porque não se

sentem como autores de um fazer e de um dizer significado socialmente. Desta

forma estaria falhando a função materna primária e a função paterna de ser o

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ambiente indestrutível, aquele que dá a “moldura” a um “quadro” que está se

constituindo enquanto tal.

Desta forma, a agressividade, o impulso agressivo acabam não se

fundindo com o impulso amoroso, fazendo-se expressar pela tirania da criança

pequena que fala com sua mãe ou seu pai como um igual, ou como se fosse

seu dono. Sua agressividade resolve onipotentemente o problema da falta e da

falha, resolve pelo grito, no “eu quero” sem limites, pelo papagaiar de falas e

pelo desejar coisas de adultos. Adultos estes atordoados diante de seus

próprios espelhos, seus filhos. Os filhos da contemporaneidade são o retrato de

pais com medo de serem pais, retrato do abandono, do lugar que resta vazio, a

ser preenchido por algo ou alguém que está fora da família, seja virtualmente,

pelos heróis da televisão ou pelos colegas virtuais na Internet. Dessa forma,

perpetua-se a onipotência e o narcisismo infantil e não se instaura o princípio

da realidade de forma efetiva nesta infância, que responde ao adulto como

tendo outro ideal de ego, posto que esses pais estariam não podendo mais

ocupar esse lugar e papel. (Maia, 2002).

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CAPÍTULO III

O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: UMA

REFLEXÃO PSICANALÍTICA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como sabemos, prevê

uma equipe técnica para subsidiar o judiciário. Uma das atribuições da equipe

técnica é a de atender adolescentes em conflito com a lei. Quando um

adolescente comete um ato infracional2, ele passa inicialmente pela autoridade

policial que deverá encaminhá-lo ao Ministério Público. O Promotor de Justiça

pode promover o arquivamento dos autos, conceder remissão ou representar à

autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa3 (cf., ECA, art.

180). O atendimento do psicólogo ao adolescente em conflito com a lei ocorre

no momento em que é apresentado ao Ministério Público.

Durante este atendimento, o adolescente se apresenta sendo capaz de

falar acerca de sua história de vida e do ato infracional que cometeu. Não raro,

ouvem-se queixas de abandono por parte dos pais (afetivo ou material) que o

adolescente apresenta na reflexão de sua conduta. É importante ressaltar que,

neste caso, não se trata de um atendimento investigativo, visto que o

adolescente já pôde oferecer detalhes da infração que constam nos autos de

investigação enviados pela delegacia, mas sim de uma possibilidade para que

o adolescente fale acerca de sua história e também de seu sofrimento psíquico,

isto é, de seu pathos. Deste modo, defendemos a idéia de que, o mais

importante neste momento, é permitir que o adolescente fale sobre a infração

que cometeu, podendo iniciar uma reflexão acerca da mesma.

É verdade que houve muita evolução, a nível jurídico, no que se refere

ao atendimento do adolescente em conflito com a lei, contudo nem sempre foi

assim. É mister sinalizar que houve ocasiões em que não se dava voz ao

2 Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal” (Art. 103, ECA). O adolescente que comete uma infração é referido como ‘adolescente em conflito com a lei’. 3 O adolescente não cumpre pena, mas sim medida sócio-educativa. As medidas que lhe podem ser aplicadas são: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção e regime de semi-liberdade e internação em estabelecimento educacional (Art. 112, ECA).

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adolescente. Este era julgado à revelia de seu discurso, de sua subjetividade.

Minahin (1992), por exemplo, em um estudo muito interessante, apresenta

como era a investigação, na concepção jurídica, acerca da infração cometida

por um adolescente. Durante muito tempo vigorou o método positivista no

direito, onde se valorizava a objetividade do fato e pouca importância se dava à

subjetividade. Inclusive, a capacidade para o discernimento, ou de fazer uso da

razão, era o principal parâmetro de julgamento quando o adolescente cometia

uma infração. Segundo a autora:

O maior de nove e o menor de quatorze annos que

procurou ocultar o crime e destruir-lhe os vestígios, prova

que obrou com discernimento, sendo, portanto,

responsável (Acc. Do Trib. De Just. De São Paulo de 12

de maio de 1893. Gaz. Jur. De São Paulo, vol. 3, p.

301)...É circunstância indicativa de discernimento a

certeza no réo de que commettia um acto punido que o

levaria à prisão (Trib. De Just. De São Paulo, em 27 de

Outubro de 1910; Ver. De Direito, vol. 19, p. 394)

(Minhain, 1992, p. 71-72).

Acontece que dentro de uma reflexão psicanalítica, os atos agressivos

praticados por adolescentes em conflito com a lei, não podem ser analisados

prescindindo-se do inconsciente. Winnicott (1999), por exemplo, ressaltou que

os adolescentes, quando transgridem as leis, parecem tentar encontrar alguma

resposta para seus conflitos inconscientes. Ele também chamou a atenção dos

terapeutas para que valorizassem o impulso inconsciente dos pacientes com

tendência anti-social.

A tendência anti-social caracteriza-se por um elemento

que compele o ambiente a tornar-se importante. O

paciente, devido a impulsos inconscientes, obriga alguém

a encarregar-se de cuidar dele. A tarefa do terapeuta é a

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de envolver-se com esse impulso inconsciente do

paciente, e o trabalho é realizado em termos de manejo,

tolerância e compreensão. (Winnicott, 2000, p. 409).

Sua tese principal em relação à delinqüência é a da deprivação, que é

uma privação emocional que ocorreu durante muito tempo na infância, o que

comprometeria a capacidade de utilizar sua criatividade para se relacionar com

o mundo externo, por conseguinte, mediante impulsos inconscientes, a criança

compele alguém a cuidar dela.

Sá (2001), baseando-se em Winnicott, assinala que a privação

emocional pode ser compreendida como um “défcit” nas relações primárias do

sujeito com a mãe. A ela caberia oferecer segurança ao filho, segurança esta

que se refere à capacidade de administrar seus impulsos, principalmente

dando segurança nos momentos de frustração inevitável.

A mãe, na expressão de winnicott (1987), é o primeiro

‘organizador psíquico’ da criança. (Sá, 2001, p.15).

Sendo assim, tanto a conduta anti-social quanto a delinqüência,

estariam relacionadas à deprivação na vida familiar, assim como, revelariam

motivos inconscientes. Este é o motivo pelo qual Winnicott convida os

magistrados à não se fixarem na objetividade dos atos agressivos e

delinqüentes, isto porque,

[...] os ladrões estão inconscientemente procurando algo

mais do que bicicletas e canetas-tinteiro. (Winnicott,

1999, p.128).

Vale ressaltar que a psicanálise examina o psiquismo desde as

primeiras relações do bebê com sua mãe e Vilhena e Maia (2002) assinalam

que cabe à família dar suporte ao bebê para que este possa lidar com sua

agressividade. Deste modo, os atos agressivos e delinqüentes revelariam uma

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falha das funções materna e paterna da família a qual pertenceria o jovem,

assim como a mãe, no relacionamento primitivo com seu bebê, não estaria

conseguindo conter seus impulsos agressivos:

A tendência anti-social, que seria normal até nos bons

lares, está se transformando rapidamente em

destrutividade, violência e delinqüência. (Vilhena e Maia,

2002, p.38).

A partir da experiência de escuta a adolescentes em conflito com a lei, é

possível identificar, pela fala de alguns, que estão em busca daquilo que

Winnicott chamou de “círculo de amor e força” (Winnicott, 1999, p.130), o qual

seria capaz de tolerar a agressividade, assim como de oferecer amor. Isto seria

proporcionado por aqueles que cumprem a função materna e paterna.

Vilhena e Maia (2002), ao analisarem a inscrição da conduta anti-social

e da delinqüência na cultura contemporânea, apontaram a relação existente

entre estas e manifestações agressivas e violentas, visto que a conduta anti-

social é apontada por Winnicott como existente em toda criança que, ao roubar

um bombom, estaria buscando a mãe, ao passo que a delinqüência já

expressaria um pedido de socorro para que o meio se preocupe com ele

(Winnicott, 1999).

Freud em O mal-estar na civilização (1930), afirmou que levou muito

tempo para se reconhecer a pulsão agressiva e que seria mais fácil atribuí-la

aos animais e não aos seres humanos, visto que isto confrontaria convicções

religiosas e sociais.

Com efeito, para Freud (1930), a agressividade é constitutiva do

psiquismo e é a manifestação da pulsão de morte. Todavia, a civilização impõe

restrições à agressividade, assim como à sexualidade. Tanto que o sentimento

de culpa existente na relações humanas ocorre pelo fato de o Supereu, uma

instância psíquica reguladora de nossa conduta, dirigir sua agressividade e

severidade ao Eu, quando descumprida alguma de suas leis. Em outras

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palavras, não há como a humanidade livrar-se da agressividade e a tendência

é sempre a de negar que o sujeito tenha uma inclinação inata para ela.

Freud afirma ainda que a civilização deve envidar esforços supremos “a

fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem” (1930, p.

117). A máxima do amor cristão: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, é

vista por Freud como uma exigência ética que não leva em conta a

agressividade do ser humano, deixando-lhe a ilusão de que pode se ver livre

da agressividade.

O mandamento ideal de amar ao próximo como a si

mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo

fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza

original do homem. (ibid.).

Ainda no Mal-estar...Freud faz realmente questão de notar que nem nos

círculos analíticos a recepção da existência da pulsão de morte ou pulsão de

destruição foi calorosa, mas, diz Freud referindo-se à segunda teoria das

pulsões, “com o decorrer do tempo, elas conseguiram tal poder sobre mim, que

não posso mais pensar de outra maneira”. (ibid, p. 123). Mais precisamente

sobre a agressividade ele assinala:

[...] não posso mais entender como foi que pudemos ter

desprezado a ubiqüidade da agressividade e da

destrutividade não eróticas e falhando em conceder-lhe o

devido lugar em nossa interpretação da vida. (idem).

Laplanche e Pontalis (1998), também assinalaram que Freud

reconheceu tardiamente a importância da agressividade em sua teoria, mas, ao

mesmo tempo, ressaltaram que desde a Interpretação dos Sonhos (1900), a

“pulsão hostil” aparece sob a pena de Freud. Com efeito, na Traumdutung,

quando Freud refere-se aos “Sonhos sobre a morte de pessoas queridas”,

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momento no qual ele também apresenta pela primeira vez a história de Édipo,

ele afirma que:

[...] apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram

entre os componentes essenciais do acervo de impulsos

psíquicos que se formam nessa época. (Freud, 1900, p.

261).

Winnicott, analisando a agressividade em Agressão e suas raízes

(1999), afirmou que, no âmago do ser humano existe amor e ódio e que os

bebês já os possuem com toda a intensidade. A criança pequena, inclusive,

vive com mais intensidade o amor e o ódio do que os adultos. Eis a afirmação

de Winnicott:

Parti do pressuposto, o qual tenho consciência de que

nem todos consideram correto, de que todo o bem e o

mal encontrados no mundo das relações humanas serão

encontrados no âmago do ser humano. Levo esse

pressuposto mais longe afirmando que no bebê existe

amor e ódio com plena intensidade humana. (Winnicott,

1999, p.94).

Sendo assim, as relações humanas estão impregnadas desses

sentimentos. O que acontece, contudo, é que a agressividade, que seria a

expressão do ódio, é negada; em geral é atribuída a fatores externos e não a

internos.

De todas as tendências humanas a agressividade, em

especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a

agentes externos, e quando se manifesta, é sempre uma

tarefa difícil identificar suas origens. (ibid.).

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Para o autor, o primeiro passo para se avaliar uma atitude agressiva ou

uma tendência anti-social é valorizar as fantasias inconscientes do sujeito em

questão; ele discorda das teorias que tentam explicar a agressividade como

uma expressão pura e simples de algo instintual; esta seria uma premissa

falsa, segundo Winnicott.

Baseando-nos nos pontos de vista de Freud (1930), Winnicott (1999) e

no raciocínio de Vilhena e Maia (2002), acreditamos que os atos de

agressividade dos adolescentes em conflito com a lei, constituir-se-iam em uma

forma de expressar seus conflitos inconscientes que devem ser considerados

na análise dos mesmos. A psicanálise irá valorizar a história de cada sujeito,

sem se preocupar com diagnósticos que deixe míope a dinâmica da vida

psíquica.

Ainda faz-se mister ressaltar que a agressividade não pertence

exclusivamente aos adolescentes em conflito com a lei. Pelo fato de ser

constitutiva do psiquismo, a agressividade estará sempre se manifestando nas

relações humanas, sendo uma das causas apontadas por Freud para o mal-

estar na civilização.

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CONCLUSÃO

Quando levantamos a importância de ouvir o adolescente em conflito

com a lei, favorecendo-lhe a possibilidade de falar sobre alguns aspectos de

sua vida, incluindo o seu sofrimento, tem-se também a intenção de contribuir

para que o aspecto jurídico não se limite somente às informações contidas nos

documentos que falam sobre o adolescente e sobre o seu ato. Gerez-Ambertín

em seu artigo La sanción penal: entre el “acto” y el “sujeito Del acto” (2004),

sustenta a tese de que os sujeitos que tem conflitos com a justiça devem

implicar-se com seu ato. O implicar-se é um comprometimento subjetivo com

seu ato e que só é possível mediante as palavras, isto é, mediante seu

discurso.

Gerez-Ambertín (2004) faz questão de notar que o sujeito não é portador

de uma liberdade plena e nem possuidor de um ‘livre’ arbítrio. Com efeito, a

psicanálise aponta para uma causalidade psíquica inconsciente dos atos

humanos.

Tendo por base essas noções é que defendemos, outrossim, a idéia de

que o adolescente também é sujeito. Inclusive Alberti (1999) ressaltou

sobremaneira a importância de se escutar o ‘sujeito adolescente’. Este

raciocínio sobre o sujeito adolescente vem contribuir com nossa argumentação

de que, no que tange ao atendimento a adolescentes em conflito com a lei,

deve-se-lhes oferecer oportunidades para que falem acerca de seu ato.

Somente falando é que o sujeito poderá dar um sentido ao seu ato. Uma

escuta atenta, interessada, não retaliadora, poderá proporcionar um ambiente

benigno e gerar o restabelecimento de um diálogo, quer do adolescente

consigo, quer do adolescente com a lei.

Este aspecto é muito importante porque, se a análise da questão dos

atos de agressividade cometidos por adolescentes em conflito com a lei ficar

somente no aspecto descritivo e caracterológico dos atos, não se fará mais

necessário acolher e escutar os adolescentes, as estatísticas responderão por

eles.

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Todavia, a psicanálise vai apontar a importância de o sujeito subjetivar

seu ato, ou seja, de ele se envolver com o mesmo a fim de se responsabilizar

por sua conduta. Se não for oferecida ao adolescente esta possibilidade, o

mesmo corre o risco de viver em um automatismo sem fazer qualquer reflexão

sobre seus atos.

Ainda existe uma outra questão que acreditamos ser importante:

pesquisas psicanalíticas em instituições jurídicas são sempre um desafio

porque, como afirmou Barra (2005):

Sabemos que a psicanálise porta uma certa

marginalidade, visto que aponta para o mal-estar e

desvela a impossibilidade de uma existência harmônica.

Esse lugar marginal é o responsável pela independência

que ela mantém sobre os demais saberes e, nesse

sentido, é preciso interrogar qual o alcance e quais os

limites da psicanálise em um espaço de saúde e de uma

instituição representante e executora direta da lei jurídica

(p.221).

Martinho (2005) ressalta ainda que a psicanálise “não é uma ciência

humana que pensa o indivíduo, centrada nos valores humanos, no Bem

Supremo, na satisfação plena e na felicidade absoluta”. (p.187)

No que se refere à resistência à Psicanálise, Derridá (2001) em uma

palestra proferida na Universidade de Sorbonne, em Paris, alertou sua platéia

assinalando que:

O mundo, o processo de globalização do mundo, tal qual

vai, com todas as suas conseqüências – políticas,

sociais, econômicas, jurídicas, tecnocientíficas etc. – sem

dúvida resiste, hoje, à psicanálise. E o faz segundo

formas novas que vocês sem dúvida estão pensando. Ele

resiste de maneira desigual e difícil de analisar. À

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Psicanálise opõe-se, notadamente, afora um modelo de

ciência positiva, ou melhor, positivista, cognitivista,

fisicista, psicofarmacológica, genetista, às vezes também

o academismo de uma hermenêutica espiritualista,

religiosa ou chãmente filosófica – ou pior, porque tudo

isso não se exclui – instituições, conceitos e práticas

arcaicas do ético, do jurídico e do político que parecem

ainda dominadas por uma certa lógica, isto é, por uma

certa metafísica ontoteológica da soberania (autonomia e

onipotência da pessoa – individual ou estatal – liberdade,

vontade egóica, intencionalidade consciente, se se

quiser, o eu, o ideal do eu e do supereu, etc.).(Derridá,

2001, p.16).

Ainda para Derridá, apesar das resistências à psicanálise, esta é

convidada a “[...]pensar, penetrar e mudar os axiomas da ética, do jurídico e da

política, notadamente nos lugares sísmicos onde tremula o fantasma teológico

da soberania e onde se produzem os mais traumáticos acontecimentos

geopolíticos”. (ibid., p. 18). Estes acontecimentos a que o autor se refere

seriam: os crimes contra a humanidade, os direitos humanos, o poder soberano

do Estado, a pena de morte, etc.

Portanto, a Psicanálise nasce no séc. XIX e percorre todo o séc. XX

continua atual e, naturalmente, deve se confrontar, outrossim, com as novas

formas de atendimento que se faz no séc. XXI, mesmo que haja resistências

quanto à sua cientificidade. É possível, portanto, para um psicanalista, atuar e

pesquisar dentro de vários âmbitos de atendimento, como por exemplo, em

uma Promotoria de Justiça onde são atendidos adolescentes em conflito com a

lei.

Partindo para uma finalização, acreditamos que uma reflexão

psicanalítica sobre agressividade e adolescência, na contemporaneidade, não

pode prescindir da contribuição da teoria Winnicottiana, isto porque ele foi um

dos psicanalistas que apresentou uma extensa obra sobre a relação entre

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privação emocional, agressividade e delinqüência. Seguindo a afirmação de

Freud (1930) de que a agressividade é constitutiva do psiquismo e baseando-

se nas relações objetais entre mãe-bebê, Winnicott demonstrou as implicações

inconscientes que existem por trás de atos agressivos, o que muito contribuiu

para a reflexão e atuação de psicanalistas que atendem jovens em conflito com

a lei.

Winnicott postula e defende a voz da esperança no ato agressivo

destrutivo, porque nele está implícito um pedido de socorro ao meio e a

esperança de que este meio reconheça esse grito, esse gesto simbólico e o

acolha. Mesmo que o deserto da realidade seja algo indiscutível, está aí em

nosso dia a dia, também estão em nosso dia a dia outras experiências, que nos

falam de uma outra maneira de ser resiliente, frente aos infortúnios de mãos

que balançam o berço até o bebê cair no chão. Como nos diz o autor em “Tudo

começa em Casa”, “a esmagadora maioria dos bebês do mundo, nos milhares

de anos, tem tido uma maternagem satisfatória; se assim não fosse, o mundo

estaria mais cheio de loucos do que de pessoas sãs, e isso não acontece.

(Maia, 2005).

É nesta voz da esperança que apostamos diante do pedido de socorro

implícito na atitude anti-social

Acreditamos, outrossim, que estas reflexões podem se estender muito

além do que o atendimento a adolescentes em conflito com a lei em uma

Promotoria de Justiça. No Brasil, como já sinalizamos, o adolescente cumpre

medida sócio-educativa, sendo as mais conhecidas a liberdade assistida (na

qual o adolescente deve ser acompanhado semanalmente ou quinzenalmente

por uma equipe técnica), e a internação, que é a privação de liberdade. Neste

momento, poder-se-ia perguntar: até que ponto a execução destas medidas

sócio-educativas reconheceriam o pedido de socorro, tantas vezes

desesperado, destes jovens? Se este reconhecimento não for possível, se a

discursividade do adolescente for prescindida, se o sistema, de fato, for o da

‘punição’, poderá favorecer, como assinalou Gerez-Ambertín (2004, p. 33) que

o iter criminis (o caminho do crime) recomece.

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47

ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTO 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 10

1.1 DESENVOLVIMENTO INFANTIL NORMAL 10

1.2 A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL 18

1.3 A AGRESSIVIDADE 22

CAPÍTULO II - DESTITUIÇÃO DA INFÂNCIA E CRISE CONTEMPORÂNEA 25

CAPÍTULO III - O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: UMA

REFLEXÃO PSICANALÍTICA 33

CONCLUSÃO 40

BIBLIOGRAFIA 47

ÍNDICE 48

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FOLHA DE AVALIAÇÃO

Nome da Instituição: UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO LATU-SENSO

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

Título da Monografia: A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL

E O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI

Autor: MARIA VALÉRIA GOMES

Data da entrega: 26 DE JANEIRO DE 2009.

Avaliado por: Conceito: