UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO … · 1.4 – As três funções da boa-fé...

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA AS FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA Por: Keller Patricia de Rezende Reis Orientador Prof. Francis Rajzman Rio de Janeiro 2012

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

AS FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA

Por: Keller Patricia de Rezende Reis

Orientador

Prof. Francis Rajzman

Rio de Janeiro

2012

2

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

AS FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA

Apresentação de monografia à AVM Faculdade

Integrada como requisito parcial para obtenção do

grau de especialista em Direito Civil.

Por: . Keller Patricia de Rezende Reis

3

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Francis e demais

professores, pelo ensinamento

transmitido.

4

DEDICATÓRIA

A Deus, aos meus pais, aos meus irmãos,

sobrinhos e meu esposo Aldizio.

5

RESUMO

Este trabalho apresenta inicialmente a boa-fé objetiva, sua origem,

posterior evolução e suas três funções – interpretativa, integrativa e limitadora.

Em seguida, aborda as figuras parcelares da boa-fé objetiva, com suas

características, apontando os entendimentos doutrinários que as

fundamentam. Por fim, analisa-se a aplicação desses institutos na

jurisprudência brasileira.

6

METODOLOGIA

Os métodos que levam ao problema proposto foram à leitura de livros,

revistas e julgados de nossos Tribunais.

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I - A boa-fé objetiva

1.1 – Origem

1.2 – No direito brasileiro

1.3 – Conceito

1.4 – As três funções da boa-fé objetiva

1.4.1 - Interpretativa 1.4.2 – Integrativa 14.3 – Limitadora CAPÍTULO II – As figuras parcelares da boa-fé objetiva

2.1 – Venire Contra factum Proprium

2.1.1 - Surrectio

2.1.2 - Supressio

2.2 – Tu quoque

2.3 - Estoppel

2.4 – Duty to Mitigate the Loss

CAPÍTULO III – Abordagem jurisprudencial do tema

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

8

INTRODUÇÃO

A partir da vigência do Código Civil de 2002 a boa-fé objetiva foi

expressamente introduzida em nosso ordenamento jurídico, prevista no art.

422 do Código Civil, como cláusula geral, possibilitando aos juízes uma maior

atuação e flexibilidade do direito.

A boa fé é um princípio constitucional, decorrente do princípio da

dignidade da pessoa humana e relaciona-se com a eticidade, solidariedade e

sociabilidade.

Relaciona-se, também, a boa-fé com a lealdade, honestidade e

probidade com a qual a pessoa condiciona o seu comportamento, e por

conseqüência, à vedação das condutas dos comportamentos contraditórios,

decorrente da terceira função da boa-fé, qual seja, do controle ao exercício de

direitos (limitadora).

Neste sentido, ao longo desse trabalho serão estudados o histórico,

fundamento, a tríplice função da boa-fé objetiva e as seguintes modalidades

das figuras parcelares da boa-fé, quando há uma violação desta e de seus

deveres anexos: a teoria dos atos próprios, também conhecida como venire

contra factum proprium, suas subespécies: surrectio e suppressio, tu quoque,

estoppel e a teoria do dever de mitigar as próprias perdas, conhecida como

duty to mitigate de loss.

Posteriormente, serão analisados alguns julgados de tais institutos na

jurisprudência brasileira.

Em suma, o que se deseja é demonstrar como está sendo resolvida a

relação jurídica quando violada a boa fé objetiva e seus deveres anexos.

9

CAPÍTULO I

A BOA-FÉ OBJETIVA

1.1 - Origem

A boa-fé objetiva teve sua origem no Direito Romano, que, em seus

primórdios, cultuava-se a deusa Fides ao celebrar negócios. O termo fides

significava fidelidade, expressando a idéia de cumprir o que se diz ou que se

promete. Posteriormente, foi acrescido o substantivo bona para designar o

comportamento que se espera da parte (fides bona). A partir daí, surge, então,

os contratos de boa-fé, em que ambas as partes deveriam cumprir o acordado

(força vinculante). Essa quantificação ética da boa-fé decorreu da necessidade

imposta pelo desenvolvimento da atividade comercial no Império Romano.1

O sistema jurídico romano se baseava no processo, pois era

representado por ações para os diversos casos concretos, surgindo daí, os

bonae fide iudicia, ou seja, aquelas pretensões que eram apresentadas com

esteio na fides. Judith Martins-Costa os define como procedimentos perante o

juiz, nos quais se sentenciava com amparo nos ditados de boa-fé, nas

hipóteses em que não havia texto expresso em lei, conferindo ao juiz um

especial mandato para decidir de acordo com as circunstâncias do caso”.2

Daí, os romanos diferenciavam no campo processual, os contratos

formais, com cláusulas rígidas, e os consensuais com base na fides, os que

não dependiam de solenidade especial, tuteladas por ações de boa-fé em que

o juiz tinha amplo poder de atuar, interpretando conforme o prometido pelas

partes. De acordo com Menezes Cordeiro, a fides bona já se apresentava

como elemento de segurança e proteção das expectativas das partes, ao

1 DICKSTEIN, Marcelo. A Boa-fé Objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Supressio. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010, p.7. 2 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. Sâo Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.120-121.

10

garantir um comportamento leal e honesto durante o cumprimento das

obrigações.3

Posteriormente, depois da Idade Média, a edição do Código Civil

Francês representou um marco da boa-fé, embora fosse aplicada apenas na

sua acepção subjetiva, porém foi a partir do Código Civil de 1900, com a

entrada em vigor do código alemão – BGB, que houve a consagração do

respectivo princípio, mas como cláusula geral, dando maior flexibilidade ao

ordenamento, em sua acepção objetiva, passando a constar em vários códigos

civis.

1.2 – No direito brasileiro

O nosso Código Comercial de 1850, revogado pelo novo código civil,

tratava da boa-fé como norma de conduta, relacionada à função interpretativa

conforme as práticas e os costumes do lugar.

Também a boa-fé não foi abordada no Código Civil de 1916 como

cláusula geral, mas somente em seu sentido subjetivo, motivo pelo qual, levou

a doutrina e os Tribunais a reconhecer a boa-fé objetiva como princípio geral e

de observância obrigatória.

Com o advento da Lei 8.078/90, do código de Defesa do Consumidor,

que estabeleceu normas sobre as relações de consumo, é que consagrou a

boa-fé objetiva nos arts. 4,III e art. 51,IV, ao considerar nulas de pleno direito,

as cláusulas contratuais abusivas, com um extenso rol.

Após dez anos da vigência do Código de Defesa do Consumidor, o

Código Civil de 2002 positivou a boa-fé objetiva como cláusula geral em seus

artigos 113,187 e 422, in verbis:

3 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes, Da Boa fé no direito Civil. Op.cit., p.105.

11

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a

boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao

exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico

ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na

conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e

boa-fé”.

A boa-fé objetiva, como princípio fundamental para o direito

obrigacional, não se refere a dados psicológicos e internos, como a vertente

subjetiva, mas a elementos externos, representando um dever de conduta

pautado nas normas e valores expressos no ordenamento jurídico para a

defesa da antiga regra neminem laedere, princípio que coíbe a lesão ao

patrimônio de outrem que teve origem no direito romano.4

É de se ressaltar a importância da aplicabilidade da boa-fé objetiva nas

relações negociais encontradas no direito obrigacional, pois haverá uma

flexibilidade ao solucionar os casos concretos pelo magistrado.

Enfim, a positivação do princípio da boa-fé objetiva fez com que as

partes, tenham um dever de agir pautada na lealdade, confiança, para a

garantia da estabilidade e segurança das transações.

1.3 – Conceito

Desde o seu surgimento no Direito Romano – fides – significando

lealdade à palavra dada, houve uma ampliação em seu conteúdo que não

apresenta um conceito determinado, mas há doutrinadores, como Fernando

Noronha que identifica a existência de duas modalidades de boa-fé. Uma de

4 MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro. 2ª. ed.rev.Rio de Janeiro:Lumen Juris,2001.

12

caráter subjetivo, que diz respeito à análise dos aspectos internos do

comportamento do sujeito, referindo-se à condição psicológica, um estado de

espírito, motivação e intenção das partes que, muitas vezes, por ignorarem

certos fatos que podem gerar vícios no negócio jurídico, agem de determinada

forma.5 A outra, de caráter objetivo, vai além e é marcada por um efetivo dever

de conduta a ser seguido por todas as partes da relação obrigacional baseado

na lealdade, probidade e correção.6

Essa distinção se dá porque um indivíduo pode agir de boa-fé subjetiva,

mas em desacordo com o padrão da conduta leal, ética, ferindo o princípio da

boa-fé objetiva, resultando em um ato ilícito nos termos do art. 187 do Código

Civil.7

Cláudia Lima Marques leciona que:

“Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação

‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no

parceiro contratual, respeitando-o, respeitando os seus

interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus

direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução,

sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando

para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do

objetivo contratual e a realização dos interesses das

partes”.8

5 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994. 6 NORONHA, Fernando. Idem. 7 Nelson Rosenvald cita em sua obra Dignidade humana e boa-fé no código civil, como exemplo, o que ocorreu com o cantor “Zeca Pagodinho” quando rompeu o contrato com a empresa A e se vinculou à empresa B, sua concorrente no ramo de cervejas. Sustentou o músico que não sabia de seu compromisso de exclusividade com a empresa A. Não obstante a eventual presença da boa-fé subjetiva há flagrante violação do princípio da boa-fé objetiva. 8 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

13

Há, então, um dever entre as partes de observar a lealdade, a probidade

e honestidade no decorrer de um negócio jurídico, pois é uma norma de

conduta, e nisto consiste a boa-fé objetiva.

Com relação ao conteúdo da cláusula geral, Marcelo Dicksten9

menciona que é necessário que as partes se abstenham de todo o

comportamento que possa tornar a execução mais onerosa para a outra parte,

evitando venire contra factum proprium, que é a inadmissibilidade da pretensão

quando entra em contradição com a sua própria conduta anterior, cooperar

com adimplemento contratual e, no caso de inadimplemento, comportar-se de

modo legal, inclusive com a mitigação dos prejuízos do devedor.

A cláusula geral por ser uma expressão vaga e imprecisa gera uma

indeterminação do conceito de boa-fé, possuindo certo grau de subjetivismo e

abstração. Portanto, o conteúdo da norma de dever agir de acordo com o

princípio da boa-fé objetiva não está na lei, devendo ser construído pelo juiz no

caso concreto, levando em conta os critérios objetivos que fundamentam esse

princípio.10

1.4 – As três funções da boa-fé objetiva

Para que se conheça o conteúdo da boa-fé objetiva é fundamental

estudar as suas funções. Divide-se a doutrina pátria em três funções

específicas, a de teor hermenêutico do contrato, a de integração de deveres

jurídicos e a de limitação ao exercício de direitos, embora haja quem atribua

ainda outra função, a nulificadora, capaz de ensejar a nulidade de

determinadas disposições contratuais, pela inobservância da cláusula geral.

9 DICKSTEIN, Marcelo. A Boa-fé Objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio, 2ª.ed.Rio de Janeiro:Lumen Juris,2010,p.21. 10 CORDEIRO, Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina,2007.

14

A primeira função está elencada no art. 113 do código civil, ao dispor

que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os

usos do lugar de sua celebração”; a segunda está no art. 422, “os contratantes

são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua

execução, os princípios de probidade e boa-fé”; e a terceira do art. 187, ao

dizer que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,

excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,

pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

1.4.1 – Função interpretativa

Quando na relação contratual surgir ambigüidades ou lacunas que tornem conflituosa a execução dos termos contratados, a interpretação das

cláusulas contratuais deve privilegiar a boa-fé objetiva e não o sentido à

ilicitude, à imoralidade ou a um desequilíbrio de posições contratuais.

A cláusula geral da boa-fé é cogente e sua abertura e mobilidade

conferem ao juiz um especial mandato ou poder para decidir o caso de acordo

com as circunstâncias concretas.11O magistrado poderá suprir e integrar ao

negócio jurídico deveres anexos (art. 422 do Código Civil) ou limitar com fulcro

no art. 187 do Código Civil.

A atuação do magistrado quanto ao exercício dessa função

interpretativa foi objeto de debate e aprovação do Enunciado 26 na I Jornada

de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a cláusula geral contida no art.

422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir

e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de

comportamento leal dos contratantes”.

11 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado:sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,1999.

15

Essa função interpretativa deve ser feita com intuito de preservar o

contrato, conforme previsto no art. 184 do Código Civil e no art. 51, §2º do

Código de Defesa do Consumidor. Neste entendimento, leciona Heloisa

Carpena Vieira de Mello, afirmando que “a boa-fé não se presta unicamente à

defesa do contratante hipossuficiente, atuando como fundamento para orientar

interpretação garantidora de ordem econômica (...) de modo a assegurar a

prevalência do interesse que se apresenta mais vantajoso em termos

sociais”.12

Assim, de maneira objetiva e concreta, o princípio da boa-fé objetiva se

impõe como expressão da “necessidade de um comportamento ético, de

lealdade, de correção, na gênese, execução e interpretação dos negócios

jurídicos”.13

1.4.2 – Função integrativa

Apesar da relação jurídica ser formada por efetivos deveres de

prestação, primários (núcleo da relação obrigacional e tipo contratual) e

secundários, possuí também deveres acessórios (adicionais, anexos), estes,

relacionados ao agir de acordo com a boa-fé, sendo importantes na integração

dos contratos.

Essa função integradora de direitos e deveres adicionais

desempenhadas pela boa-fé objetiva, embora menos aparente no Código Civil

de 2002, pode ser extraída em seu art. 422.14

12 MELLO, Heloisa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo. Problemas do direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 13 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5 ed.Rio de Janeiro:Renovar,2003. 14 DICKSTEIN, Marcelo. A Boa-fé Objetiva na Modificação Tácita da Relação Jurídica: Surrectio e Supressio. 2 edição.Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2010, p.66.

16

Esses deveres anexos não estão explícitos, mas por decorrerem de uma

cláusula geral sua observância se torna cogente, não podendo as partes

renunciá-las ou eliminá-las.

Os sujeitos da relação obrigacional, a despeito de estarem em uma

relação polarizada, não estão de forma alguma em competição, nem em

situação de subordinação. Ao revés, a boa-fé impõe aos sujeitos que, diante

dos fins da relação obrigacional, atuem em cooperação entre si para que se

possam alcançar os respectivos desideratos da relação a qual está

inequivocamente integrada pelos deveres relacionados à eticidade.15

Assim, tendo em vista que a relação contratual não tem por escopo

único a satisfação do credor, o ajuste entre as partes deve ser cumprido para a

real satisfação das finalidades expectadas por elas sobre o negócio, sendo a

cooperação o pressuposto de conduta lógico em que se deve pautar tanto o

credor quanto o devedor, quando do cumprimento das suas obrigações. O

credor deixa de ser mero partícipe, exatamente em razão da incidência do

princípio da boa-fé objetiva, o que lhe impõe o dever de cooperar, igualmente,

de modo a facilitar o melhor adimplemento obrigacional. Deve, ainda, se

comportar de modo a mitigar os prejuízos do devedor, caso ele tenha

descumprido uma das obrigações contratuais, ou seja, ciente de que haverá o

inadimplemento, deve o credor adotar as medidas que atenuem ao máximo os

danos derivados do ilícito contratual.16

Em relação ao devedor, deverá cumprir suas obrigações com lealdade,

sob pena de inadimplemento por violação dos deveres anexos. Como

exemplo, temos a violação positiva do contrato, também chamada por Pontes

de Miranda de “adimplemento ruim” ou “insatisfatório”, que consagra hipótese

de inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de um dever

15 DICKSTEIN, op cit, p.68. 16 DICKSTEIN, op cit, p.69-70.

17

lateral, quando este não tenha vinculação direta com os interesses do credor

na prestação.17

A boa-fé objetiva impõe a todos os sujeitos envolvidos na relação

obrigacional outros deveres, tais como de segurança, esclarecimento,

informação, lealdade, segredo, proteção, com intuito de cumprimento do

negócio realizado pelas partes.

1.4.3 – Função limitadora

A função limitativa visa manter o equilíbrio na relação jurídica contratual,

impedindo comportamentos contrários a lealdade e a confiança, aqueles as

quais não se enquadram no padrão de conduta imposto pela cláusula geral,

servindo, também, como um freio para o princípio da autonomia da vontade e

relativizando o princípio do pacta sunt servanda.

A cláusula geral passa a atuar como instrumento de controle de

cláusulas e condutas abusivas, possibilitando a compreensão do nexo de

causalidade existente entre a boa-fé e o conceito de equilíbrio de posições

contratuais.18

A boa-fé objetiva limita, portanto, determinado exercício de direito pelo

seu titular, impondo-lhe comportamento coerente e consistente com conduta

anterior, isto é, veda a adoção de comportamento contraditório, protegendo,

assim, a confiança despertada no outro.19 Diante dessa função da boa-fé

objetiva, surge à teoria dos atos próprios, consubstanciando-se na tutela da

confiança.

17 DICKSTEIN, op cit, p.71. 18 AMARAL JUNIOR, Alberto do. A boa-fé e o contratual das cláusulas constitucionais nas relações de constitucionais nas relações de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.6, p.27-33, abr./jun.1993. 19 DICKSTEIN, op cit, p.80-81.

18

Importante salientar a teoria do adimplemento substancial, que visa

impedir que o credor resolva o contrato quando o devedor já cumpriu grande

parte de sua obrigação ou somente deixa de cumprir parte insignificante

perante o todo, visto que pode o credor exigir o cumprimento da obrigação

faltante, mas não a extinção do contrato pelo incumprimento de uma parcela

mínima, sob pena de ferir o dever acessório de lealdade, cooperação e

proteção decorrentes da boa-fé.

Nesse diapasão, é o entendimento do seguinte Acórdão:

“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÃO. FALTA DA ÙLTIMA PRESTAÇÃO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido”.(Resp.272.739/MG, Rel.Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª. Turma, julgado em 01/03/2001).

Portanto, a boa-fé objetiva poderá impor o cumprimento de um dever

anexo, principalmente nas hipóteses de comportamento contraditório, abusivo

ou desproporcional.

19

CAPÍTULO II

AS FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA

2.1 – Venire contra factum proprium

Ocorre o venire contra factum proprium quando uma pessoa realiza um

comportamento totalmente contraditório com a situação anteriormente criada e

expectativa gerada na outra, frustrando-a posteriormente.

A vedação do comportamento contraditório é decorrente da terceira

função da boa-fé, qual seja, do controle ao exercício de direitos.

O jurista Ruy Rosado de Aguiar Júnior assim explica o significado e o

conteúdo da expressão:

“A “teoria dos atos próprios”, ou a proibição de venire contra factum proprium, “protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte”.20

É necessário a prática de dois comportamentos (inicial – factum

próprium e o contraditório a este) pelo indivíduo, lícitos, mas que a boa-fé

objetiva torna-os inadmissíveis quando violar a tutela da confiança criadas

numa contraparte ou terceiro e causar-lhe prejuízos (dano efetivo ou potencial).

20 JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Extinção dos contratos por Incumprimento do Devedor, AIDE: Rio de Janeiro, 2004, p.251-252.

20

No mesmo sentido, o Enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil pelo

Conselho da Justiça Federal, que assim dispõe: “A vedação do comportamento

contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da

confiança, tal como se extrai dos artigos 187 e 422 do Código Civil”.

Embora o direito brasileiro não tenha positivado a teoria dos atos

próprios ( venire contra factum proprium) como princípio geral, encontra

amparo legal no art. 422 do Código Civil e no art. 187 do mesmo Código. A

legislação apresenta diversos exemplos da vedação ao comportamento

contraditório em hipóteses específicas (arts. 175, 476, 491 e 619) e para os

demais casos, deve-se aplicar a boa-fé objetiva e a tutela da confiança como

seus fundamentos normativos.

Ressalta-se que a teoria dos atos próprios tem natureza subsidiária, não

podendo aplicá-la quando a ordem jurídica prescrever qualquer outra solução

específica para o caso concreto.

Finaliza Marcelo Dickstein acerca da excepcionalidade das teorias dos

atos próprios:

“(...) Em outras palavras, a teoria é aplicável somente na ausência de outra expressa solução legal para o caso, que torna inoponível a conduta de um sujeito quando é contraditória com outra anterior, emanada do mesmo sujeito, que frustra as legítimas expectativas. Se existir no ordenamento jurídico norma que confere efeitos ao ato praticado, qualquer descumprimento desse preceito submeter-se-á às regras próprias de responsabilidade civil”.21

Visa com a aplicação do “venire contra factum proprium” prevenir ou

reparar danos daquele que confiou num comportamento de outrem,

salientando-se que basta o dano potencial, podendo ser danos patrimoniais e

morais, estes, decorrentes da ruptura da legítima confiança.

21 DICKSTEIN, Marcelo, op,cit, p. 108.

21

2.1.1 – Surrectio

É considerada uma subespécie de venire, com denominação dada em

Portugal originada na jurisprudência alemã como Erwirkung. A doutrina

considera tanto este instituto como o da suppressio faces de uma mesma

moeda, pois os conceitos e a origem de ambos estão interligados.

Segundo Menezes Cordeiro, a surrectio é o “instituto que faz surgir um

direito que não existe juridicamente, mas que tem existência na efetividade

social”. 22 Surge um direito a partir da prática de um comportamento reiterado

de determinados atos, gerando expectativa e confiança que assim

permaneceria.

Portanto, a surrectio pode ser conceituada como um instituto que coíbe

o comportamento contraditório e se caracteriza pelo surgimento de um direito

por força de uma conduta constante em desacordo com o estipulado,

qualificado pelo decurso de tempo e que despertou a legítima expectativa de

que essa conduta seria mantida.23

Exemplo aplicável deste instituto é citado por José Carlos Barbosa

Moreira, no caso de alguém que aluga um imóvel e insere no contrato de

locação uma cláusula pela qual o locatário fica proibido, sob pena de

resolução, de abater as árvores do quintal. Entretanto, durante anos, o

locatário pratica o ato proibido, de maneira ostensiva, com pleno conhecimento

do locador, que até anui em receber presente sabidamente talhado na madeira

de uma das árvores. Se, inopinadamente, com total surpresa para o locatário,

esse locador, num giro de 180º, resolver invocar a cláusula proibitiva para dar

por finda a locação, terá agido de modo contrário à boa-fé. Nesse caso, para

neutralizar o exercício inadmissível do direito, bastará que se rejeite o pedido

22 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fe no direito civil. Op.cit. p.806. 23 DICKSTEIN, Marcelo, A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: surrectio e suppressio, op.cit., p. 118.

22

de despejo com base na cláusula contratual cuja infração fora por longo tempo

tolerada, ou até aprovada tacitamente.24 Nesse caso, o locador criou uma

legítima expectativa no locatário de que a conduta inicial continuaria a ser

observada e se o comportamento contraditório do locador gerar algum dano ao

locatário, este poderá ser indenizado pelo ato considerado ilícito, conforme o

disposto no art. 187 do Código Civil.

Por não haver um dispositivo específico em nosso ordenamento jurídico

que se refere à surrectio a fonte desse instituto está no art. 330 do Código

Civil, que assim dispõe “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz

presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”, ou seja,

fundamenta-se no princípio da segurança jurídica quanto ao lugar do

pagamento, da boa-fé e na confiança legítima.

Como a surrectio é uma subespécie de venire contra factum proprium

muitos dos seus requisitos são aproveitados, com as suas devidas

especificidades e adaptações, pois igualmente vedam o comportamento

contraditório e objetivam a tutela da confiança, coibindo condutas que infrinjam

algum dos deveres anexos que decorrem da boa-fé.25

Marcelo Dickstein, após análise mais detalhada da surrectio, indica

cinco pressupostos para a sua configuração: (i) a conduta inicial reiterada,

sendo comissiva para a surrectio; (ii) a legítima confiança justificada pelo

decurso do tempo; (iii) um comportamento contraditório que, em um segundo

momento, irá frustrar as expectativas da contraparte, pois estará em

desencontro com a conduta inicialmente adotada; (d) o prejuízo causado, pois

a segunda conduta deve piorar a situação do sujeito; e por fim, (v) a identidade

dos sujeitos.26

24 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Abuso do Direito. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 13, jan/mar., Rio de Janeiro:Padma, 2003, p.106. 25 DISCKTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio,, op,cit.p.128-129. 26 Idem, p.130.

23

Na surrectio, a conduta inicial deve ser uma conduta comissiva,

caracterizada pelo exercício reiterado de uma situação jurídica em desacordo

com o acordado ou do ordenamento.

Quanto à tutela da confiança, é necessário que haja esta em virtude do

decurso do tempo, com a estabilização na relação jurídica, permitindo o

surgimento do direito.

Em relação ao terceiro pressuposto, o comportamento contraditório

refere-se a uma conduta posterior que contrariou a anterior, bastando,

portanto, a objetiva contradição em violar às expectativas geradas na conduta

inicial.

Quanto aos prejuízos causados, a vantagem ou o benefício conquistado

por meio da conduta (comissiva) exercida de forma reiterada tem que estar

ameaçado pelo exercício do segundo comportamento.27 Este, pode gerar um

dano efetivo ou potencial, preventiva – evitar o comportamento contraditório,

ou reparador – já houve prejuízo causado, impondo o desfazimento da conduta

posterior ou ressarcimento, sendo necessário em qualquer dessas duas

funções, a existência do dano.

Por fim, a identidade dos sujeitos – o sujeito ativo da conduta inicial

deve ser o mesmo da conduta posterior, bem como o sujeito passivo,

ocorrendo uma vinculação do sujeito ao seu comportamento.

Alguns autores, como Anderson Schreiber entende ser essa uma visão

restrita, preferindo adotar a expressão desenvolvida pela jurisprudência dos

Tribunais Espanhóis, “centro de interesses”, pois engloba entes

despersonalizados, entendendo não ser relevante que o sujeito formal das

27 DISCKTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio,, op,cit.p.147.

24

condutas seja exatamente o mesmo, mas que emanem os comportamentos do

mesmo centro de interesses.28

Os efeitos da surrectio é que a partir da conduta comissiva e da

confiança gerada pelo decurso do tempo, ocorrerá à modificação da relação

jurídica existente com a aquisição de novos direitos. A consolidação de uma

confiança razoável, por meio da tutela da justa expectativa, a ser definida no

caso concreto e de forma objetiva, vai coibir a conduta contraditória,

permitindo-se a manutenção da nova situação jurídica.29 O impedimento dessa

conduta contraditória é o segundo efeito da surrectio, tendo em vista que a

teoria dos atos próprios possui uma natureza preventiva e quando o

impedimento não puder ser evitado ou for ineficaz, passa a ter direito a ser

indenizado em razão da ilicitude ocorrida, correspondendo o terceiro efeito.

A responsabilidade da contraparte será independente de culpa,

conforme posicionamentos sedimentados pelo Conselho da Justiça Federal,

enunciados n. 37 e 363, respectivamente, na I e IV Jornada de Direito Civil:

“37 – Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito

independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

“363 – Art. 422: Os princípios da probidade e da confiança são de ordem

pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da

violação”.

Além disso, quando não for possível impedir a consumação da conduta

contraditória, poderá além da reparação de danos, exigir também, o

desfazimento desse comportamento, desde que possível, pois pode haver um

interesse coletivo ou social de maior relevância na sua manutenção.

28 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2 ed.Rio de Janeiro:Renovar,2007, p.156. 29 FERNANDES, Magda Mendonça apud DISCKTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio, op,cit.p.150.

25

2.1.2 – Suppressio

Também é uma subespécie de venire contra factum proprium,

caracterizando pelo fato de o comportamento anterior do sujeito consistir em

uma omissão. Ou seja, ocorre a Suppessio, chamada pelo direito alemão de

Verwirkung quando o titular de um direito, por inatividade ou comportamento

concludente, permitir que se forme na contraparte a crença legítima de que

não mais exercerá esse direito e depois o exerce, contrariando a confiança

despertada. Essa conduta é considerada desleal porque representa, em última

análise, um comportamento contraditório, ainda que não amparado em uma

ação (factum proprium), mas na omissão ou inatividade do titular do direito,

caracterizadora de comportamento concludente.30

A suppressio apresenta os mesmos pressupostos da surrectio: a

conduta inicial reiterada – omissiva, ou seja, o prolongamento excessivo da

inércia do credor se inicia no momento em que o titular teria, pela primeira vez,

a oportunidade de fazer valer o seu direito, configurando uma atitude passiva;

a legítima confiança justificada pelo decurso do tempo – se determinada parte

não exerceu um direito que lhe era facultado durante longo decurso de tempo,

criando na contraparte a legítima expectativa de que não será mais exercido,

proteger-se-á a confiança justificada; um comportamento contraditório que irá

frustrar as expectativas da contraparte – pratica ato a que deveria se abster,

pois a conduta inicial já criou uma expectativa na outra parte de que nesse

sentido iria permanecer; a existência de prejuízo e a identidade de sujeitos,

estes dois, já expostos na surrectio.

Os efeitos da suppressio são os mesmos da surrectio: a modificação da

relação jurídica, em virtude de um comportamento omissivo, que implicará a

perda de um direito não mais exercido; o impedimento da conduta contraditória

e a reparação do dano causa pela conduta contraditória e seu desfazimento.

30 FRITS, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. 1ª. ed., 2008, Editora:Juruá, 2009, p. 175.

26

Desta forma, a diferença da suppressio e surrectio está no fato de que

neste, há uma comissão – naquele, há uma omissão.

É o que se verifica, por exemplo, quando o locador de um imóvel aceitou

receber a renda com cinco dias de atraso, durante todos os meses de vigência

do contrato, e, após esse longo lapso temporal sem se opor a tal fato, resolve

mudar de conduta e passar a exigir a multa moratória. O comportamento do

locador é contraditório e contrário à boa-fé objetiva, por frustrar as legítimas

expectativas criadas no locatário no sentido de que concordava com o tempo

do pagamento e, consequentemente, de que não iria cobrar os encargos

moratórios inicialmente exigíveis. Após longo período sem cobrança de tais

encargos, não pode o locador, sem justificativas, mudar contraditoriamente de

posição, seja para exigir o pagamento das multas vencidas, seja para que o

locatário passe a efetuar o pagamento na data inicialmente pactuada.31

O comportamento reiterado do locatário – ainda que praticado de forma

distinta do convencionado – aliado à aquiescência do locador fez surgir ao

primeiro o direito de exigir a manutenção da nova data de pagamento por

incidência da surrectio, que tem por objetivo proteger as legítimas expectativas

que foram despertadas. Além disso, em virtude da suppressio, perdeu o

locador o direito de cobrar as penalidades previstas no contrato exatamente

porque o passar do tempo, sem exercício de tal direito, criou no locatário a

legítima expectativa de que as multas não mais seriam exigidas,

correspondendo à concordância do locador com a nova data em que os

pagamentos vinham sendo efetuados.32

2.2 – Tu quoque

31 DISCKTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio,, op,cit.p.81-82. 32 Idem, p.82.

27

A expressão tu quoque remonta ao Império Romano, quando o

Imperador Júlio César, vítima de uma conspiração para assassiná-lo, foi traído

por seu filho único e adotivo, Brutus, que disse a ele: “Tu quoque, Brutus, fili

mili!” – Até tu Brutus, filho meu! No seu sentido literal, significa “até tu”.

Este instituto proíbe que a parte exija uma determinada conduta que ela

própria já havia violado anteriormente para beneficiar-se de disposição

contratual ou legal.

Exemplo da aplicação desse instituto é mencionado por Ruy Rosado de

Aguiar Júnior, que cita a hipótese em que um condômino que viola regimento

interno ao depositar móveis em área comum, destinando-a, inclusive para uso

próprio, não poderá exigir sanção a outro condômino que toma idêntica

atitude.33

O instituto do tu quoque possui pontos em comum com o venire contra

factum proprium, a suppressio e a surrectio, quanto à incoerência e a

contradição. Alguns doutrinadores incluem o tu quoque como subespécie de

venire.

A distinção entre o tu quoque e o venire, encontra-se no fato de que

naquele, as condutas são isoladamente ilícitas, ao passo que neste, elas, ao

menos separadamente, são tidas como lícitas, surgindo à ilicitude no momento

em que são confrontadas as condutas anterior e posterior.34

No direito brasileiro, tem-se como exemplo do tu quoque a regra do art.

476 do CC/02 segundo a qual “nos contratos bilaterais, nenhum dos

contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da

do outro” – princípio inspirador da exceptio non adimpleti contractus.

33JUNIOR, Ruy Rosado de Aguiar, Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor – Resolução. Op.cit. p.254. 34 AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Direito Civil – Introdução e Teoria Geral. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2009, p. 141.

28

2.3 – Estoppel

A estoppel surgiu a partir da jurisprudência britânica, sendo considerado

um instituto análogo ao venire e como seu fundamento, a teoria dos atos

próprios, por estar relacionada com a proteção das expectativas.

Essa figura visa, em linhas gerais, repelir a pretensão daquele que

reclama algo contradizendo conduta anteriormente adotada.35

Judith Martins Costa destaca que esse instituto admite diversas

configurações, entre elas a estoppel by conduct, cuja eficácia é similar a

algumas das funções desempenhadas pelo venire do Direito, pois visa impedir

que uma pessoa assuma uma conduta distinta do que havia falado ou agido,

prejudicando a outra pessoa que confiou nas expectativas criadas a partir do

primeiro comportamento. No entanto, salienta que a função do estoppel é

eminentemente defensiva, sendo um princípio processual integrante das

regras de prova (rules of evidence), enquanto que o venire pode atuar também

como fundamento de ação e de exceção.36

Alejandro Borda elenca quatro características fundamentais da figura do

estoppel: (i) eficácia processual; (ii) aplicação como meio defensivo; (iii) o uso

recíproco; e, a que considera mais relevante, (iv) a proteção da aparência

jurídica.37

2.4 – Duty to Mitigate the Loss

35 MARTINS-COSTA Judith apud DICKSTEIN, Marcelo, A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio,, op,cit.p.183. 36 Idem, p.184. 37 BORDA, Alejandro apud DICKSTEIN, Marcelo, A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: Surrectio e Suppressio,, op,cit.184.

29

Trata-se de uma teoria em que consiste o credor mitigar a própria perda,

sendo introduzido no Direito brasileiro pelo estudo de Véra Fradera, no qual

segundo a autora teve origem no direito anglo-saxão, tendo natureza de dever

e recebe o nome de duty to mitigate the loss, de onde foi recepcionado pelos

ordenamentos jurídicos continentais, com qualificações jurídicas diversas.

Pressupondo Fradera uma lacuna no Código Civil de 2002 a esse

respeito, a mesma defendeu a recepção dessa teoria por meio do princípio da

boa fé prevista no art. 422 do Código Civil de 2002, com base num dever

acessório de mitigar a própria perda e também, com certa influência na

jurisprudência francesa, ser possível a recepção pela proibição de venire

contra factum proprium e no abuso de direito.

Em decorrência de suas investigações feitas em seu artigo publicado,

Véra Fradera apresentou uma proposta de Enunciado ao art. 422 do CC do

Conselho Federal de Justiça, que foi aprovado, in verbis: Enunciado 169:

”Art.422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o

agravamento do próprio prejuízo”.

Daí, a doutrina brasileira aceitou a recepção do duty to mitigate the loss,

havendo divergências quanto ao fundamento jurídico dessa recepção, se dever

acessório, abuso de direito, venire contra factum proprium e supressio e

também a imputação de dano. Além disso, a doutrina aponta os arts. 769 e

771 do Código Civil como aplicação da teoria, estendendo sua aplicabilidade à

responsabilidade aquiliana e ao processo civil e não somente ao direito

contratual.

Os contratos bancários são a principal fonte da doutrina para criar

exemplos de aplicação do duty to mitigate. Afirma-se, em geral, que as

instituições financeiras, mormente “diante da alta taxa de juros previstas no

30

instrumento contratual”,38 não podem permanecer inertes em face do

inadimplemento contratual, devendo adotar medidas para minimizar o próprio

prejuízo, como notificar o cliente que não encerrou sua conta e é cobrado por

sua manutenção para providenciar o seu encerramento39 ou mesmo negar

crédito a cliente já endividado, para evitar o superendividamento”40

Como exemplo de aplicação em nossos Tribunais do duty to mitigate the

loss , podemos citar as multas diárias (astreintes) fixadas pelo Magistrado para

compelir a outra parte a cumprir a obrigação, em que o credor demora para

executar, transformando em valor superior ao da obrigação principal, devendo

o Juiz recalcular o valor da multa para reequilibrar a relação jurídica; casos em

que a administradora de cartões demorou quase cinco anos parra cobrar

judicialmente o pagamento de faturas, período em que a dívida do cliente

inadimplente mais que dobrou; do débito foram excluídos juros de mora,

correção monetária e multa moratória, desde a data do inadimplemento da

primeira prestação até a data do ajuizamento da ação de cobrança.

Enfim, Daniel Pires Novais dias41 destaca a detecção de três diferentes

grupos de caso em que o duty to mitigate tem sido aplicado pelos Tribunais:

um primeiro em que o credor, diante de inadimplemento contratual, não adota

medidas para evitar o agravamento do próprio prejuízo; um outro em que a

vítima de dano extracontratual não adota medidas para evitar o agravamento

do próprio dano e o último composto por situações que envolvem exercício

considerado tardio de direito e aumento vultoso de débito.

Sendo assim, o principal fundamento adotado pela doutrina brasileira

quanto à recepção do duty to mitigate the loss é o dever acessório, tendo em

38 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 5 ed. São Paulo: Método, 2010, v.3, p.132. 39 GARCIA, Leonardo Medeiros. Direito do Consumidor, Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p.50. 40 FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.617. 41 DIAS, Daniel Pires Novais. O duty mitigate the loss no Direito Civil Brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. Revista Forense, v.413, 2011 (janeiro-junho), p.78.

31

vista que o princípio da boa-fé objetiva, positivado no art. 422 do Código Civil

impõe as partes contratantes deveres acessórios de cooperação ou lealdade

entre si, ou seja, trata-se de um dever acessório de mitigar a própria perda.

É importante ressaltar que a doutrina européia reconhece a figura do

encargo de evitar o próprio dano como fundamento da aplicação do duty.

32

CAPÍTULO III

ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL SOBRE O TEMA

a) Venire contra factum proprium

A Des. Relatora da 18ª. Câmara Cível do Estado do Rio de Janeiro, por

decisão monocrática, negou seguimento ao recurso de Apelação n. 0026447-

65.2010.8.19.0003, vez que o condomínio autor ao cobrar as cotas

condominiais em virtude do que dispõe a Convenção do Condomínio,

apresentou uma conduta contraditória, pois essa cobrança se fundou em

decisão cuja nulidade invoca em ação autônoma, restando patente a violação

ao princípio da boa-fé objetiva (venire contra factum proprium).42

Também houve a aplicação do venire, entendendo a 4ª Câmara Cível do

TJRJ, que o apelante efetuou o registro da criança após ter conhecimento do

resultado negativo do exame de DNA e pretendeu posteriormente a declaração

da inexistência de filiação c/c anulação de registro de nascimento, o que foi

improvido o recurso, tendo em vista a ausência de vício de consentimento, pois

registrou por vontade própria, demonstrando a má-fé do apelante que efetuou

o registro sabendo que não era pai, motivo pelo qual não pode alegar a própria

torpeza em seu proveito.43

b) A suppressio

42 Ap.Cível n. 0026447-65.2010.8.19.0003, Rel. Des.Helena Candida Lisboa Gaede, 18ª. Câmara Cível do TJRJ, julgado em 11/08/11.

43 Ap.Cível n. 0013343-03.2010.8.19.0004, Rel. Des. Marcelo Lima Buhatem, 4ª. Câmara Cível do TJRJ, julgado em 18/01/12.

33

Trata-se de um Agravo de Instrumento interposto contra a sentença que

rejeitou as justificativas apresentadas pelo executado em uma ação de

execução de alimentos e decretou a sua prisão civil por 30 dias.

No caso, os alimentos foram fixados no ano de 1998, tendo o

alimentando ingressado com a presente execução de alimentos, pelo rito da

coerção pessoal (art.733 do CPC), em fevereiro de 2010, após doze anos da

fixação do título executivo alimentar.

Assim, que em atenção ao princípio da boa-fé objetiva, entendeu a 8ª.

Câmara Civil do TJRS que se o credor de alimentos não recebeu nada do

devedor por mais 12 anos permitiu com sua conduta a criação de uma legítima

expectativa no devedor e na efetividade social de que não haveria mais

pagamento e cobrança e com base na figura da suppressio, essa inércia do

credor por tão longo tempo e a conseqüente expectativa levou ao

desaparecimento do direito, reconhecendo a ilegalidade no decreto prisional

com base naquele vetusto título alimentar.44

Outro caso, foi o que ocorreu no julgamento do Recurso Especial nº

1202514 / RS, no Superior Tribunal de Justiça, relatado pela Ministra Nancy

Andrighi, em que também se invocou a figura da suppressio, tendo em vista

que à época, o recorrente renunciou o direito à correção monetária para a

manutenção do vínculo contratual que perdurou por 06 anos e após, a sua

rescisão, pleiteou judicialmente a respectiva correção monetária. Com esse

comportamento, frustrou uma expectativa legítima construída e mantida ao

longo de toda a relação contratual, motivo pelo qual inviável a pretensão do

44 Ag.Inst. n. 70042234179, Rel. Des. Rui Portanova, 8ª. Câmara Cível do Rio Grande do Sul, julgado em 18/08/11.

34

recorrente de exigir retroativamente valores a título de correção monetária que

vinha regularmente dispensado.45

c) A surrectio

A surrectio representa a criação – o surgimento – de uma relação

obrigacional, pela prática reiterada de um comportamento durante um certo

lapso de tempo, prática essa que cria a legítima expectativa de que o

comportamento seguirá sendo observado.

Nesse sentido, o Acórdão proferido pela Sexta Câmara Cível do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul, reconheceu que a prática reiterada de uma

determinada conduta, no caso, a recorrente permitiu que alunos inadimplentes

assistissem regularmente às aulas e realizassem as provas durante todos os

semestres do curso, e diante desse comportamento, gerou uma expectativa de

que possui o direito que, ainda que informalmente, foi-lhe assegurado,

introduzindo na pactuação cláusula não escrita, motivo pelo qual não se

coaduna com a boa-fé a conduta da mesma de impedir o acesso dos alunos

tão-somente ao exame final, aplicando-se, portanto, o instituto da surrectio.46

Caso diferente foi que ocorreu na hipótese analisada pelo Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro47 em que o locador propôs uma ação de

cobrança de alugueres em face do locatário, porém o mesmo já não residia

mais lá, pois com a anuência do próprio locador passou a ser ocupado por

outra pessoa, tendo prometido que faria outro contrato de locação com a nova

locatária, o que não o fez.

45 Resp 1202514/RS, Rel Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma, julgado em 21/0611 e publicado em 30/06/11. 46 Ap.Cível. n. 70039443031, Rel. Ney Wiedemann Neto, 6ª. Câmara Cível de Novo Hamburgo/RS, julgado em 17/03/11, publicado em 31/03/2011. 47 Ap.Cível. n. 0001991-09.2010.8.19.0211, Rel. Des. Antônio Saldanha Palheiro, 5ª. Câmara Cível do Rio de Janeiro.

35

Essa atitude do locador demonstra o distanciamento da boa-fé, pois

ajuizou ação em face da ré, sabendo que esta exonerou do contrato,

apresentando nova locatária com sua anuência. Tal comportamento configura

verdadeira afronta aos princípios da função social do contrato e da boa-fé

objetiva. Aplicou-se a figura da surrectio – o direito subjetivo (locatária) de

impedir o exercício do direito do outro contratante (locador) e também da

suppressio – o locador ao permitir e manter a locação a pessoa diversa do

contrato, criou-se a expectativa legítima de que a locatária se desvinculara da

locação.

d) Tu quoque

Um dos famosos casos em que se aplicou a figura do Tu quoque no

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul remete à Apelação Cível nº

591028295 – julgado em 1999, da relatoria do Des. Ruy Rosado de Aguiar

Junior, foi quando se reconheceu a responsabilidade civil de empresa

alimentícia, industrializadora de tomates, depois de ter fornecido sementes

importadas a agricultores ao tempo do plantio, com manifesta intenção de

adquirir o produto, e resolveu, por sua conveniência, não mais industrializá-los

naquele ano, causando prejuízos aos agricultores em razão da expectativa de

venda da safra, ficando os tomates, portanto, sem possibilidade de colocação

no mercado. Portanto, houve expectativa frustrada no presente caso, dentro do

instituto da boa-fé.48

Outra situação foi o que ocorreu no julgamento do Recurso da Apelação

Cível nº70015004872 do Acórdão emanado da Sexta Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em que uma empresa no

ramo de informática que provê acesso local à internet realizou um contrato

com uma empresa que atua como provedor de acesso à rede mundial de

informações, Internet, em diversas localidades do país e proprietária de uma

48 Ap.Cível. n. 70025301938, Rel. Des. Marilene Bonzanini Bernardi, 9ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, julgado em 18/02/2009.

36

rede de serviços on-line, com intuito de fornecer a ré todos os meios técnicos

necessários (infra-estrutura física) para que a mesma pudesse prover acesso à

Internet aos assinantes que viessem postular os serviços da autora, bem como

aos assinantes do serviço de acesso da autora na localidade mediante a

remuneração com base no número de horas trafegadas (utilizadas) pelos

assinantes.49

Para tanto, seria remunerada com um percentual incidente sobre o

número de horas utilizadas pelos assinantes ao acessarem os serviços

oferecidos e que tal contrato teria validade de 24 meses e prorrogação

automática. Após o vencimento do contrato, o réu manifestou o desejo de não

mais renovar, apoderando-se dos clientes da autora.

Com base na boa-fé objetiva, que no caso concreto, foi violado, pois, em

que pese tenha a empresa autora optado pela expansão dos serviços por sua

livre e espontânea vontade, apostando no ganho de maiores lucros, deveria o

réu ter-lhe alertado sobre a possibilidade de não continuidade do contrato, o

que faria a autora repensar quanto à expansão do negócio. Incidência do tu

quoque, a respeito do qual se objetiva vedar a adoção de comportamentos

contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a

determinado direito subjetivo derivado do contrato.

Outro exemplo é o que ocorreu no julgamento da apelação cível nº

0316772-11.2010.8.19.0001 da 8ª. Câmara Cível do Tribunal do Estado do Rio

de Janeiro, interposta por uma consumidora em face de uma concessionária

que presta serviços de eletricidade, objetivando reformar sentença que julgou

improcedente o pedido.50

49 Ap.Cível. n. 70015004872, Rel. Des. Arthur Arnildo Ludwig, 6ª. Câmara Cível da Comarca de Novo Hamburgo/RS, julgado em 26/11/09. 50 Ap.Cível. n. 0316772-11.2010.8.19.0001, Rel. Des. Luiz Felipe Francisco, 8ª. Câmara Cível Tribunal do RJ, julgado em 10/01/12.

37

Alegou a autora a ilegalidade no TOI lavrado e a abusividade da

conduta da concessionária-ré, enquanto de outro lado, sustentou a ré que após

a lavratura do TOI, com a troca do medidor, passou a ser apurado consumo na

unidade consumidora, o que antes, não ocorria, registrando valores muito

baixos ou até nulos.

A partir desses argumentos, a 8ª. Câmara Cível do TJ/RJ constatou que,

de fato a autora não afastou a ocorrência de desvio de energia elétrica, pois

nem apresentou sequer uma fatura paga nem impugnou os documentos

apresentados pelo réu e alegação de estar inadimplente, motivo pelo qual não

pode a autora invocar a cláusula ou regra que haja violado e com base na

parêmia tu quoque, corolário do princípio da boa-fé objetiva negou-se

provimento ao recurso.

e) Duty to Mitigate the Loss

Trata-se de caso em que uma pessoa natural celebrou um contrato de

alienação fiduciária junto ao banco, tendo por objeto um veículo de 1996,

comprometendo-se a efetuar o pagamento no prazo de 36 meses de parcelas

mensais e fixas, porém após o pagamento de 24 parcelas, em razão de

dificuldades financeiras, o autor incidiu em mora o que gerou ação de busca e

apreensão ajuizada pelo réu, que resultou na devolução amigável do bem.

Ocorre que o réu não entrou em contato com o autor, não fornecendo

qualquer tipo de informação sobre a venda do bem a terceiros, violando com a

sua conduta o dever de informação, uma vez que o autor entregou o bem

imediatamente e não foi informado prévia e adequadamente sobre a soma

total a pagar após a devolução do bem, a fim de que pudesse exercer seu

direito à devolução das quantias, se devidas.

38

Diante da inércia do banco-réu o autor acabou por ter títulos protestados

em seu nome.

O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro considerou neste contexto a

aplicação do duty to mitigate the loss ou mitigação do prejuízo pelo próprio

credor, pois o banco infringiu o dever anexo de cooperação, relacionado

diretamente com a boa-fé objetiva.51

51 Ap.Cível. n. 0000040-93.2008.8.19.0002, Rel. Des. Roberto de Abreu e Silva, 9ª. Câmara Cível do Rio de Janeiro, julgado em 13/12/11.

39

CONCLUSÃO

De todo o exposto, verifica-se que a adoção do princípio da boa-fé

objetiva em nosso ordenamento como cláusula geral ampliou a atividade do

juiz na solução dos casos concretos, baseando-se nos valores éticos que o

conceito de boa-fé implica, tais como lealdade e honestidade, respeitando e

observando os princípios fundamentais do ordenamento jurídico.

Ela exerce na sua aplicação três importantes funções: integração, ou

seja, como aquela que impõe os deveres anexos de conduta,

independentemente da vontade das partes, tais como, o dever de lealdade,

cooperação, informação, segurança e prestação de contas; interpretativa,

disposta no art. 113 do Código Civil, devendo a interpretação das cláusulas

contratuais privilegiar sempre o sentido que estiver em conformidade com a

boa-fé objetiva.

A terceira e última função é a limitativa do exercício de direitos, sendo

disciplinada pelos arts. 186,187 e 927 do CC/02, bem como complementada

pelo art. 927 do CC , evitando comportamentos contraditórios. Teve influência

de outras teorias, como as do ato próprio, do venire contra factum proprium –

seria proteção da parte contra aquela que pretenda exercer uma conduta

contraditória com o comportamento assumido anteriormente, a supressio – o

não exercício prolongado de um direito não poderá mais sê-lo, por contraria a

boa-fé.

Existem também outras figuras que proíbem o comportamento

contraditório: a surrectio – surgimento de um direito em decorrência da prática

continuada de certos atos, o tu quoque – evita que aquele que descumpriu

uma norma legal ou contratual não possa exigir do outro o cumprimento do

preceito que ele próprio descumprira. Também temos a figura do estoppel,

idêntica ao venire, aplicável no direito anglo-saxão, que protege a confiança

40

alheia e prevêem sanções quanto aos efeitos dos danos gerados pela

contradição e a do duty to mitigate lhe loss, constituindo um recente

movimento de sistematização doutrinária e de aplicação no direito civil, em que

a parte tem o dever de mitigar a própria perda.

Logo, são institutos que prestigiam a boa-fé objetiva como fundamento

constitucional, assim como a vedação da conduta contraditória, indicando que

nossos Tribunais vêm os adotando em diversas situações, entendendo que as

partes têm o dever de agir com lealdade recíproca e em respeito à boa-fé.

41

REFERÊNCIAS

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43

ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 1

AGRADECIMENTO 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I

A BOA-FÉ OBJETIVA 9

1.1 - Origem 9

1.2 – No Direito brasileiro 10

1.3 - Conceito 11

1.4 – As três funções da boa-fé objetiva 13

1.4.1 – Interpretativa 14

1.4.2 – Integrativa 15 1.4.3 – Limitadora 17 CAPÍTULO II

AS FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA 19

2.1 – Venire Contra factum Proprium 19

2.1.1 – Surrectio 21

2.1.2 – Supressio 25

2.2 – Tu quoque 26

2.3 – Estoppel 28

2.4 – Duty to Mitigate the Loss 28

CAPÍTULO III

ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL DO TEMA 32

CONCLUSÃO 39

REFERÊNCIAS 41

44

ÍNDICE 43