UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL · apelos de seu pai, do grilo-falante e da fada, que estiveram...

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA DISCURSO PEDAGÓGICO, ETHOS E CENAS DA ENUNCIAÇÃO EM PINÓQUIO DE CARLO COLLODI JÉSSICA HELOISA DA SILVA NERY Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2012

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

DISCURSO PEDAGÓGICO, ETHOS E CENAS DA

ENUNCIAÇÃO EM PINÓQUIO DE CARLO COLLODI

JÉSSICA HELOISA DA SILVA NERY

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO

2012

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

N369d

Nery, Jéssica Heloisa da Silva. Discurso pedagógico, ethos e cenas da enunciação em

Pinóquio de Carlo Collodi / Jéssica Heloisa da Silva Nery. -- São Paulo; SP: [s.n], 2012.

67 p. : il. ; 30 cm. Orientador: Carlos Augusto Baptista de Andrade. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Discurso pedagógico 3. Ethos 4.

Literatura infantil I. Andrade, Carlos Augusto Baptista de. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 82-5(043.3)

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

DISCURSO PEDAGÓGICO, ETHOS E CENAS DA

ENUNCIAÇÃO EM PINÓQUIO DE CARLO COLLODI

JÉSSICA HELOISA DA SILVA NERY

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela Banca Examinadora em 19/12/2012.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Prof.ª Dr.ª Amélia Maria Jarmendia

Universidade Cruzeiro do Sul

Prof.ª Dr.ª Regina Helena Pires Brito

Universidade Presbiteriana Mackenzie

A Deus, que me deu forças para vencer esta etapa.

Aos amigos que estiveram ao meu lado.

À minha família, principalmente aos meus pais, que me ensinaram

a valorizar o conhecimento.

Ao Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade, que me

conduziu ao longo do complexo processo de aprendizagem,

tornando-o mais tranquilo.

AGRADECIMENTOS

Este é o momento de sinceros agradecimentos a todas as pessoas,

familiares e amigos que me acompanharam ao longo desta

caminhada. Os desafios durante o percurso foram enormes, porém

as motivações ultrapassaram tais problemas, o que permitiu, mesmo

em momentos de angústia, a devida perseverança para chegar ao

final.

Agradeço primeiramente a Deus, que me deu força na caminhada,

abençoando-me com pessoas especiais, sábias e generosas nesse

percurso da minha vida.

À minha família, principalmente os meus pais, meu esposo e minha

filha Maria Eduarda, que me acompanharam em todos os momentos,

incentivando-me e compreendendo a minha recorrente ausência.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade,

que me ensinou que não sabemos tudo e que sempre devemos

refletir sobre nossas ações. Orientou-me com sabedoria e paciência,

dando exemplo de ética profissional, responsabilidade, além de

demonstrar na prática o que é ser professor e pesquisador.

Aos meus colegas de Mestrado, principalmente Jaqueline, Luis

Ângelo e Flavio, que também trilharam esse percurso.

Às professoras doutoras Amélia Maria Jarmendia e Regina Helena

Pires Brito, pelos apontamentos e importantes contribuições dadas

durante o exame de qualificação.

Aos professores do Programa de Mestrado em Linguística da

Universidade Cruzeiro do Sul: Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Tinoco Cabral,

Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti, Prof.ª Dr.ª Irenilde Pereira dos

Santos, Prof.ª Dr.ª Magali Elisabete Sparano, Prof.ª Dr.ª Maria Valíria

Aderson de Melo Vargas e Prof.ª Dr.ª Sônia Sueli Berti Santos, que

durante o curso proporcionaram relevantes discussões para minha

formação acadêmica.

E, finalmente, à Prefeitura Municipal de Caraguatatuba (SP), por meio

da Secretaria Municipal de Educação, que possibilitou as condições

financeiras necessárias, apoiando em todos os momentos e

demonstrando a real preocupação com a formação de seus

professores.

“NINGUÉM IGNORA TUDO. NINGUÉM SABE TUDO. TODOS NÓS SABEMOS ALGUMA COISA. TODOS NÓS IGNORAMOS ALGUMA

COISA. POR ISSO APRENDEMOS SEMPRE”.

PAULO FREIRE

NERY, J. H. S. Discurso pedagógico, ethos e cenas da enunciação em Pinóquio de Carlo Collodi. 2012. 67 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2012.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise discursiva de alguns

excertos da obra Pinóquio, na versão original de Carlo Collodi. A história difere da

que está na memória da maioria das pessoas, que a conhecem pela adaptação feita

pelos estúdios Disney. O processo que levou a história do boneco que queria ser

gente às telas mudou várias questões ligadas á imagem da personagem principal.

Pretende-se, então, observar o ethos da personagem Pinóquio e como ele vai se

modificando durante o desenvolvimento da história, mediante as cenografias que

vão sendo constituídas. O trabalho, ainda, procura discutir o atravessamento que se

constitui na obra entre os discursos literário e pedagógico, questão que marca as

histórias para crianças na época. A dissertação fundamenta-se em princípios da

Análise do Discurso de linha francesa, principalmente nas questões discutidas por

Dominique Maingueneau. Este trabalho está inserido na Linha de Pesquisa

Discurso, Gênero e Memória, do Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro

do Sul.

Palavras-chave: Discurso pedagógico, Discurso literário, Literatura infantil, Ethos,

Cenas da enunciação.

NERY, J. H. S. Pedagogic discourse, ethos and scenes of enunciation in Pinocchio of the Carlo Collodi. 2012. 67 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2012.

ABSTRACT

This paper aims to carry out a discursive analysis of some excerpts of the work

Pinocchio, in the original version of Carlo Collodi. The story differs from what is in the

memory of most people who know the adaptation made by Disney. The process that

led to the story of the puppet who wanted to be the screens we changed several

issues related to the image of the main character. Then we intend to observe the

ethos of the character Pinocchio and how it is modified during the development of the

story through the sceneries that are being made. The work also discusses the

crossing that is in the works between the literary and educational speeches, question

mark children's stories at the time. The dissertation is based on principles of

discourse analysis of the French line, especially on issues discussed by Dominique

Maingueneau. This work is part of the Line Speech Research, Gender and Memory ,

the MA in Linguistics from the Cruzeiro do Sul University.

Keywords: Pedagogic discourse, Literary discourse, Children's literature, Ethos,

Scenes of enunciation.

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 11

CAPÍTULO 1

1 DISCURSO, DISCURSO PEDAGÓGICO E DISCURSO LITERÁRIO NA

ESFERA EDUCACIONAL: PINÓQUIO EM EVIDÊNCIA ............................... 14

1.1 Discurso pedagógico: contexto e influência .............................................. 17

1.2 Discurso literário: a arte em jogo ................................................................ 21

1.2.1 A literatura infantil na escola ....................................................................... 25

1.2.2 A literatura infantil no Brasil ........................................................................ 29

1.2.3 Leitura e literatura ........................................................................................ 31

1.3 O contexto da história de Pinóquio, de Carlo Collodi ............................... 35

CAPÍTULO 2

2 A PERSONAGEM PINÓQUIO: O ETHOS E AS CENAS DE ENUNCIAÇÃO –

CONSTRUÇÕES A PARTIR DAS PROPOSIÇÕES DO ENUNCIADOR ....... 38

2.1 O ethos discursivo: alguns apontamentos ................................................ 40

2.2 Cenas enunciativas: do tipo de discurso aos índices textuais ................ 45

CAPÍTULO 3

3 UMA POSSÍVEL ANÁLISE DO CORPUS ..................................................... 49

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 63

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 65

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Busca-se no presente trabalho fazer uma análise da obra intitulada As

aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, criada no contexto italiano do século XIX,

especificamente em 1883.

A formação do autor foi clássica em Música e Letras. Fundou e dirigiu o

jornal Il Lampione (1848-1849), cujas matérias desenvolvidas estavam ligadas, em

sua maioria, a conteúdos políticos e culturais. Em 1881 Collodi criou o primeiro jornal

italiano para crianças, chamado Giornale Per i Bambini, onde passou a publicar uma

série de capítulos da história de Pinóquio, que dois anos mais tarde foi transformada

em livro.

A história começa com um simples pedaço de lenha, cujo fim seria a

lareira para aquecer a casa de Mestre Cereja, como era chamado o amigo de

Gepeto. Porém, ao ver que aquele pedaço de madeira ria e debochava, Cereja ficou

assustado. Com medo, resolveu presentear seu amigo Gepeto, pois sabia que o

artesão planejava criar uma marionete que soubesse dançar, dar saltos mortais e

outras peripécias.

Após ganhar vida nas mãos de Gepeto, a marionete ganhou o mundo,

recusando-se a ir para a escola. Viveu grandes aventuras até reconhecer que os

apelos de seu pai, do grilo-falante e da fada, que estiveram presentes em sua

caminhada, necessitavam ser ouvidos, a fim de que pudesse realizar seu maior

sonho: ser um menino de verdade.

Pretende-se aqui trabalhar com a história de Collodi, que difere da versão

que está na memória da maioria das pessoas: a adaptação da Disney, que alterou

questões pontuais no ethos mostrado pelo seu primeiro enunciador.

É importante deixar claro que não será realizada uma comparação da

versão original com a adaptada. A intenção é observar como a personagem

principal, na versão original, é construída em alguns recortes, assim como aos olhos

do enunciatário essa vai mudando para a cada momento criar, como diz

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Maingueneau (2010), um ethos coextensivo a toda enunciação, levando o

leitor/enunciatário a construir uma representação do que é mostrado.

Assim, por meio de marcas linguísticas e extralinguísticas, a partir da

materialidade do texto, é possível observar como a personagem é mostrada pelo

enunciador. Levanta-se ainda questões do discurso pedagógico presentes nas

relações que a história construiu ao longo dos anos e como essa foi utilizada para

mostrar o discurso autoritário do certo e do errado, até pela analogia entre a mentira

e o nariz do boneco, que cresce quando esse cria o ethos de mentiroso.

Fundamenta-se este estudo em princípios da Análise do Discurso de

Linha Francesa, relacionados ao ethos e às cenas de enunciação, como também se

busca os fundamentos teóricos de discurso, do discurso pedagógico, que no caso

dessa história se imbrica com o literário, da literatura infantil, buscando meios para

apontar os caminhos, considerados acertados, como ensinamentos morais para

obter sucesso na vida social.

Ainda que considerada um clássico da literatura infantil, As aventuras de

Pinóquio, em sua versão integral, está longe de ser a mais lida entre as crianças.

Seu autor é ainda relativamente desconhecido, porque há uma tendência em ligar

Pinóquio à Disney, seja na versão escrita ou cinematográfica. O que se vê circular

são as diversas traduções e edições, segundo a ótica adulta que deseja conferir um

cunho moralizador, não permitindo que outros sentidos possam ser observados em

uma obra de tamanha abrangência. Portanto, este trabalho, ao analisar os ethé

mostrados pelo enunciador na figura de Pinóquio, em determinadas cenografias,

procura evidenciar a importância da situação comunicativa, pois o contexto de

enunciação torna-se fundamental para a produção de sentidos.

Dividida em três capítulos, esta dissertação inicia contextualizando o

discurso para identificar os discursos pedagógico e literário, pois enquanto o

primeiro se encontra na esfera educacional e mostra como a história é utilizada

como material pedagógico, o segundo preocupa-se com a qualidade e criatividade

do texto, em uma esfera artística que intenciona o “burilamento textual”, ou seja,

transversal ao contexto escolar.

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O segundo capítulo discute questões relativas à Análise do Discurso,

mais pontualmente em relação às cenas de enunciação e ao ethos discursivo.

Finalmente, no terceiro capítulo, desenvolve-se a análise em alguns

excertos da obra, que foram escolhidos/motivados pela alteração no ethos de

Pinóquio, onde no desenrolar da história o enunciador procurou mostrar tais

mudanças.

Finalizando o trabalho são apresentadas as considerações finais e as

referências que embasaram as reflexões no percurso do desenvolvimento desta

dissertação.

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CAPÍTULO I

1 DISCURSO, DISCURSO PEDAGÓGICO E DISCURSO LITERÁRIO NA ESFERA

EDUCACIONAL: PINÓQUIO EM EVIDÊNCIA

Antes de tratar dos discursos pedagógico e literário, para que se

compreenda a abordagem discursiva presente neste trabalho, é fundamental refletir

sobre o conceito de discurso, pois, de certa forma, esse tem sentidos variados por

se tratar de uma palavra empregada em inúmeros contextos comunicativos.

Brandão ([20--?]), no que escreveu para o site do Museu da Língua

Portuguesa, fez um apanhado sintético e palatável sobre esse assunto,

possibilitando uma leitura clara, eficaz e eficiente sobre tal questão.

Segundo a autora, pode-se ler/ouvir a palavra discurso em diversas

situações, desde aquele proferido pela mãe, que faz um tremendo discurso, por uma

questão mal realizada pelo filho, sinônimo aqui de repreensão, de “chamar a

atenção”, dar “uma bronca” etc., até o discurso do político no palanque, ou mesmo o

de um sacerdote frente a sua congregação. Esse conceito lato está mais presente

no senso comum.

Ademais, a noção de discurso que se pretende observar neste trabalho

está ligada ao que Brandão ([20--?]), nesse mesmo texto, chamou de “produção de

sentidos”, a partir de determinados dizeres. Ou seja, como há comunicação em

diferentes situações da vida social humana, promove-se diversas interações,

originando-se produções de incontáveis sentidos, tendo vista o lugar em que essas

são realizadas com seus interlocutores, motivados por valores ideológicos. Fica

claro, então, que o discurso a que se refere à Análise do Discurso não é

simplesmente o ato de fala ou a exposição escrita de algum assunto. Nas situações

complexas de interação, ao produzirem linguagem, os falantes de um idioma

produzem discursos, ou seja, uma atividade geradora de sentidos, situada em

determinado tempo histórico entre faltantes/ouvintes e escritores/leitores. Todo

enunciador em tais momentos (geográficos/históricos) particulares, ao proferir

determinado enunciado, apresenta-o de forma que a comunidade em que está

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inserido consiga entendê-lo/interpretá-lo, pois aquele está impregnado pela ideologia

(crenças) dessa.

Para ficar claro, recupera-se o que disse Brandão ([2012]) ao apresentar

características do discurso, discutidas por Maingueneau (2004):

1) O discurso deve ser compreendido como algo que ultrapassa o nível puramente gramatical, linguístico. O nível discursivo apóia-se sobre a gramática da língua (o fonema, a palavra, a frase), mas nele é importante levar em conta também (e sobretudo) os interlocutores (com suas crenças, valores) e a situação (lugar e tempo geográfico, histórico) em que o discurso é produzido;

2) No nível do discurso, os falantes/ouvintes, escritor/leitor devem ter conhecimentos não só do ponto de vista linguístico (dominar a língua, as regras de organização de uma narrativa, de uma argumentação etc.), mas também de conhecimentos extralinguísticos: conhecimento para produzir discursos adequados às diferentes situações em que atuamos na nossa vida; conhecimentos de assuntos, temas que circulam na sociedade; conhecimento das finalidades da troca verbal e para isso são importantes a imagem que faço de mim, da minha posição, a imagem que tenho das pessoas com quem falo, imagens que vão determinar a maneira como devo falar com essas pessoas;

3) O discurso é contextualizado, isto é, do ponto de vista discursivo, toda frase (ou melhor, enunciado) só tem sentido no contexto em que é produzido. Assim, um mesmo enunciado, produzido em momentos diferentes (quer seja pelo mesmo sujeito ou por sujeitos diferentes) vai ter sentidos diferentes e, portanto, pode corresponder a discursos diferentes;

4) O discurso é produzido por um sujeito – um EU que se coloca como o responsável pelo que se diz (de forma explícita como num diário de adolescente, ou implícita como no discurso da Ciência) e é em torno desse sujeito que se organizam as referências de tempo e de espaço. Ex.: no enunciado: “Hoje, meu depoimento será sobre a infância vivida na casa de minha avó”, os termos “hoje”, “meu”, “minha” devem ser entendidos em relação ao sujeito que fala e que se coloca como eu do discurso. E esse sujeito que fala assume uma atitude, um determinado comportamento (de firmeza, dúvida, opinião) em relação àquilo que diz (usa para isso recursos da língua como: infelizmente, talvez, certamente, na verdade, eu acho) e em relação àquele com quem fala (explicitamente por expressões do tipo Você, caro leitor, ou escolhendo os termos adequados ao seu nível sócio-cultural, usando uma linguagem mais informal, gírias ou linguagem mais formal de acordo com a situação);

5) O discurso é interativo, pois é uma atividade que se desenvolve, no mínimo, entre dois parceiros (marcados linguisticamente pelo binômio Eu-Você). A conversação é o exemplo mais evidente dessa interatividade: os parceiros monitoram a sua fala de acordo com a reação do outro. Mas, no discurso escrito, o locutor está também preocupado com seu leitor, a ele dirigindo-se explicitamente (como em meu caro leitor) ou procurando uma linguagem adequada a ele (um livro de literatura infantil, um guia médico para pais leigos em assuntos médicos têm toda uma linguagem voltada para o público que se quer atingir) ou utilizando-se de estratégias de discurso para se defender, antecipar a contra-argumentação do leitor;

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6) O discurso é uma forma de atuar, de agir sobre o outro. Quando prometemos, ordenamos, perguntamos etc., praticamos uma ação pela linguagem (um ato de fala) que tem por objetivo modificar uma situação. Por ex., o eu te batizo X pronunciado pelo padre numa cerimônia de batismo muda a situação da pessoa no quadro da religião católica; numa passeata, um cartaz com o enunciado Não à corrupção visa modificar comportamentos de pessoas envolvidas nesse ato e mostra a atitude de indignação daqueles que levam esse cartaz;

7) O discurso trabalha com enunciados concretos, falas/escritas realmente produzidas (e não idealizadas, abstratas, como as frases da gramática) e os estudos que se fazem deles visam descrever suas normas, isto é, como funciona a língua no seu uso efetivo. Por ex., se alguém faz uma pergunta, pressupõe-se que ele ignore a resposta e tem interesse nessa resposta; e, ainda, que aquele a quem é feita a pergunta tem condições de responder-lhe. Se essas regras não são obedecidas, por ex., se ele sabe a resposta, mas pergunta assim mesmo, é porque o locutor tem intenções implícitas. O interlocutor se pergunta então por que razão, sabendo a resposta, ele me fez a pergunta assim mesmo?, e por uma série de raciocínios (inferências) vai procurar o sentido que está por trás;

8) Um princípio geral rege o discurso: o princípio do dialogismo. A palavra dialogismo vem de diálogo – “conversa”, “interação verbal” que supõe pelo menos dois falantes. Quando falamos dirigimo-nos sempre a um interlocutor; mesmo num monólogo (quando falamos conosco mesmos), num diário, criamos uma personagem (um outro eu) com quem imaginariamente dialogamos;

9) Mas o discurso é também dialógico porque quando falamos ou escrevemos, dialogamos com outros discursos, trazendo a fala do outro para o nosso discurso. Isso se faz de forma explícita usando, por exemplo, o discurso direto, indireto, indireto livre ou colocando palavras, enunciados (do outro) entre aspas ou itálico. Mas podemos fazer isso também de forma implícita, sem dizer quem falou (e aquele que ouve ou lê, tem o mesmo conhecimento de quem escreve ou fala vai entender, daí a importância da leitura, da ampliação do conhecimento de mundo, do conhecimento enciclopédico). Isso acontece, por exemplo, quando usamos um provérbio, um ditado popular, nas paródias, nas imitações, nas ironias etc.;

10) Por causa desse caráter dialógico da linguagem, dizemos que o discurso tem um efeito polifônico. Isto ocorre, porque meu discurso dialoga com outros discursos, outras vozes nele estão presentes, vozes com as quais concordo (e vêm reforçar o que eu digo) ou vozes das quais discordo total ou parcialmente. Outra palavra usada para expressar esse caráter polifônico da linguagem é heterogêneo. O discurso é heterogêneo (polifônico) porque é sempre atravessado, habitado por várias outras vozes;

11) Todo discurso é construído numa rede de outros discursos; em outras palavras, numa rede interdiscursiva. Nenhum discurso é único, singular, mas está em constante interação com os discursos que já foram produzidos e estão sendo produzidos. Nessa relação interdiscursiva (com outros discursos), quer citando, quer comentando, parodiando esses discursos, disputa-se a verdade pela palavra numa relação de aliança, de polêmica ou de oposição. É nesse sentido que se diz que o discurso é uma arena de lutas em que locutores, vozes, falando de posições ideológicas, sociais, culturais diferentes procuram interagir e atuar uns sobre os outros.

Como se pode observar, há muito que se discutir sobre a noção de

discurso stricto sensu. Toda a discussão para chegar a essas considerações foram

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estudadas durante o percurso histórico de constituição da própria disciplina Análise

do Discurso, que aborda a língua a partir de várias correntes teóricas, que será

apresentada no Capítulo II desta dissertação.

Todavia, fica clara a concepção de discurso que será adotada neste

trabalho. Ou seja, é a produção de sentidos que se constrói a partir da interação

entre interlocutores, observado o contexto de produção e todas as implicações que

possam pesar, tendo em vista as relações sócio-histórico-culturais dos sujeitos como

responsáveis pela sua constituição.

Pensar na história de Pinóquio é também observá-la em uma esfera

educacional, pois o discurso que está presente na criação de Collodi é pedagógico.

Dado que o autor quer ensinar algo, o texto trabalha com a mudança de

comportamento da personagem após algumas lições que aprendeu. Para tanto,

reflete-se, a seguir, sobre algumas teorias acerca do discurso pedagógico.

1.1 Discurso pedagógico: contexto e influência

Não há como falar em discurso pedagógico na educação brasileira sem

observar sua relações de poder, mantendo privilégios para determinadas classes

sociais.

Desde o descobrimento, essas vantagens se mantém e perduram até os

dias atuais, à medida que se constatam diferentes níveis de qualidade nas escolas.

As pessoas que possuem melhores condições financeiras acabam por entrar nas

instituições de ensino mais qualificadas.

Essas diferenças não acontecem somente com indivíduos, mas também

entre grupos sociais. Há em torno dessa questão uma espécie de mito, que se refere

às chamadas aptidões individuais, onde os menos aptos constituem as classes

sociais menos privilegiadas e dominadas, enquanto os mais aptos ocupam classes

sociais privilegiadas e dominantes. Assim, é esperado que estudantes advindos de

classes desfavorecidas tenham rendimento igualmente baixo.

É possível observar na prática cotidiana que, apesar da realidade

pedagógica estar em processo de mudança, inúmeras das práticas escolares e

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algumas políticas mantém essa percepção dicotômica. Mudanças ainda são

necessárias para que a escola seja capaz de garantir um espaço de equidade social.

Esse deve ser o plano de um discurso pedagógico construído para a valorização da

pessoa humana, ou seja, que prepare cada educando para além da sala de aula.

O discurso pedagógico se encontra em uma complexa zona de poder,

compreendendo inúmeros microuniversos discursivos, que se sustentam em

relações intertextuais e interdiscursivas, voltados à formação e à informação,

propondo-se a criar/transmitir conhecimentos, gerar competências, despertar

vocações, enfim, estabelecer sistemas de crenças em determinados propósitos.

No discurso pedagógico tradicional, encara-se o professor como detentor

de um determinado conhecimento, com o poder necessário para controlar a situação

de aprendizagem sem, no entanto, ser moderador de um encontro de vozes.

Na instituição escolar o enunciado produzido pelo docente é colocado em

um contrato que lhe credita o lugar de detentor do saber. O pacto de fala que o liga

ao aluno não lhe permite ser “não-possuidor do saber”; ao contrário, torna-o

antecipadamente legitimado. Outorga a informação que recebeu e passa ao

estudante, submetendo-se à autoridade da Ciência. É na conformação do discurso

pedagógico que o professor, comumente, não percebe que é perpassado pela

ideologia.

Parece que mesmo na discussão de questões voltadas a um ensino

emancipador, o educador não consegue perceber a educação como um instrumento

eficaz para a conquista da equidade social. O discurso pedagógico dominante ainda

perpetua as relações de poder no traçado do discurso do sujeito/professor.

A sala de aula é um espaço institucional. Sua atual estrutura se mantém

da mesma forma de outrora: carteiras dispostas em fila indiana, marcando a postura

autoritária de poder, ligada a uma educação que não prevê reflexões em grupo ou

compartilhamento de espaços. Ordens incidindo sobre ordens. Em suma, o ator

social (no caso, o professor) acaba como instrumento de reprodução, que legitima

uma ideologia tão conservadora quanto vigente.

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Orlandi (1987), ao refletir sobre as formações imaginárias na escola,

reforça a questão aqui tratada, caracterizando o discurso pedagógico como

autoritário, com base na distinção feita entre três tipos de discurso: lúdico, polêmico

e autoritário.

Por meio do discurso pedagógico (autoritário), Orlandi (1987, p. 30)

analisa quem ensina / o quê / para quem / onde, considerando a função de ensinar

equivalente a de inculcar, dissimulado como transmissor de informação, por meio de

uma metalinguagem e da apropriação do cientista pelo professor. Apropriando-se da

voz do cientista, o professor acaba apagando sua voz pedagógica, ficando como

detentor de determinado conhecimento e estigmatizando a seguinte premissa: o

professor é o que sabe; o aluno, o que está na escola para aprender. Dessa forma,

acaba desvalorizando o que o estudante traz de saberes em sua bagagem adquirida

por meio de suas vivências.

Pode-se observar isso na obra de Collodi, tanto nos momentos em que as

pessoas procuram ensinar Pinóquio a fazer o bem, quanto pela prática que se faz da

leitura dessa obra, já com intenções de demonstrar que é preciso seguir algum

comportamento, a fim de ser considerado socialmente como uma pessoa de bem.

Como apontou Pêcheux (1990), o discurso manifesta as relações de

poder causadas pela interpretação ideológica. No discurso pedagógico, professores

e alunos têm a ilusão de representarem fontes de saber, quando são interpelados no

processo educativo, no entanto, acabam reproduzindo sentidos já legitimados, sem

nenhuma interferência sobre esses. Dessa maneira, pode-se dizer que o discurso

remete à relações imaginárias, à lugares/posições na formação social. O discurso

pedagógico nesse bojo é estabelecido por meio da inculcação ideológica.

No Brasil, os primeiros estudos sobre o discurso pedagógico foram de

Orlandi, na obra A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, publicada

pela primeira vez em 1983. Nessa publicação há o argumento que reforça a questão

discutida até o momento, acerca do caráter ideológico do discurso pedagógico: “[...]

não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na

polissemia contida [...]” (ORLANDI, 1987, p. 15).

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Pinóquio, na história formulada por Collodi, possui uma vontade própria e

procura traçar seu caminho, mas sempre acaba barrado por “lições” que alguns

personagens lhe apontam, ou seja, deve-se moldar a determinado padrão ideológico

para alcançar o objetivo, no caso do fantoche, de se tornar humano.

Orlandi (1987, p. 15) apoia-se em Pêchêux (1995) e Bourdieu (1974) para

caracterizar a escola como o lugar da reprodução cultural e o sistema educacional

como a solução mais dissimulada para a transmissão de poder, uma vez que nesse

ambiente também é mantida a estrutura das relações de classe.

Como a proposta de análise da obra de Collodi está vinculada à

percepção que se pode ter do discurso pedagógico ali presente, é relevante apontar

alguns elementos que marcam tal discurso.

Como na obra há a presença de discursos que se atravessam, o

pedagógico e o literário (que serão discorridos em seguida), percebe-se claramente

alguns aspectos que remetem o enunciatário para o universo escolar. Por exemplo,

ainda que Pinóquio quisesse ser gente, acabou por fugir da escola. O que será que

isso pode representar? Entre outras possibilidades interpretativas, há um fio

condutor que faz com que se perceba a necessidade de ir à escola, como uma

espécie de dever sagrado, para se conquistar a humanização desejada.

De certa forma, brota-se a necessidade imposta socialmente, de que é

importante sair das ruas, deixar as brincadeiras e passar a ouvir alguém que, de

fato, detém o conhecimento para o crescimento geral da criança.

Adentrando em alguns aspectos linguísticos, poder-se-ia citar, por

exemplo, que o discurso pedagógico tem em sua constituição:

1 Procedimento circular, pois insere uma proposição e busca sempre

retomá-la com verbos específicos, tais como: compreender, entender,

perceber, entre outros;

2 Há também uma utilização de verbos no imperativo, pois como

discurso autoritário, a voz da Ciência e que faz do professor um

detentor do saber, apresenta proposições fechadas como informações

verdadeiras e que não podem ser questionadas;

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3 O mito de apenas uma resposta certa também está inserido no

discurso pedagógico;

4 Marcas linguísticas de autoridade, ou seja, apresentações de nomes

eminentes que afirmaram algum tipo de conhecimento, tais como:

conforme fulano de tal, segundo tal pessoa.

Como se oberva, algumas marcas presentes no discurso pedagógico

podem ser observadas na análise que será realizada. Como já dito, para que se

possa construir uma contextualização mais abrangente do discurso pedagógico em

Pinóquio, de Collodi, será necessário discutir a questão do discurso literário, assunto

que se dará no próximo item.

1.2 O Discurso literário: a arte em jogo

Ainda que mencionado anteriormente, retoma-se este tema para efeito de

reforçar o discurso literário, onde a noção de discurso atua em dois planos:

enquanto de um lado possui certos valores clássicos da Linguística, de outro é

passível de um uso pouco controlado, na qualidade de palavra-chave de certa

concepção de língua. Quando se aponta para o discurso literário, promove-se a

convergência de algumas ideias diretamente ligadas à abordagem da literatura.

O discurso pressupõe uma organização textual, uma forma de ação; é

interativo, orientado, contextualizado, assumido por um sujeito, regido por normas e

considerado no âmbito de um interdiscurso.

Maingueneau (2009) propõe, a partir da retomada de múltiplas formas de

abordagem do texto literário, o que denominou “análise do discurso literário”. Em seu

percurso, o autor procura demonstrar que, de um modo geral, a partir do século XIX

no Ocidente – e mais especificamente no contexto francês – as abordagens do texto

literário ou se fecharam sobre o postulado da imanência, do autotelismo da obra, ou

procuraram responder à pergunta de “[...] como ir do texto ao contexto, ou do

contexto ao texto [...]” –, considerando aqui o termo “contexto” de maneira genérica,

referindo-se tanto a aspectos relacionados à esfera do histórico-social, quanto às

características relacionadas ao autor da obra.

22

Para o teórico, o discurso literário não é isolado, pois participa de um

discurso constituinte, designado fundamentalmente pelos discursos que se propõem

como de origem, validados por uma cena de enunciação que os autoriza. Os

discursos constituintes conferem sentidos aos atos de uma determinada

coletividade.

Como todo discurso constituinte, o literário mantém relação com a

memória, com certo arquivo literário, por valores ideológicos deixados por uma

tradição. Toda obra literária forma unidade com a gestão de sua identidade no

intertexto, estruturando-se por meio de tensões que tornam possíveis, ou seja, o

estreito relacionamento entre posição dos interlocutores e memória intertextual.

Quando se fala do intertexto de uma obra literária, pensa-se em outros textos

literários, pois as obras se alimentam não só de outras obras, mas também das

relações que estabelecem com os enunciados.

Toda obra se divide a priori entre a imersão no corpus então reconhecido como literário e a receptividade a uma multiplicidade de outras práticas verbais. A relação com o não-literário é redefinida sem parar, e a delimitação daquilo que pode ou não alimentar a literatura, mas também advir da literatura, se confunde com cada posicionamento e cada gênero no interior de um certo regime de produção discursiva (MAINGUENEAU, 2009, p. 166).

O trabalho filológico, na segunda metade do século XIX, desenvolveu

uma metodologia com a finalidade de decifrar e comparar manuscritos antigos,

inclusive literários, procurando determinar sua origem, datá-los e acompanhar sua

transmissão. Assim, o filólogo passou a tratar o texto como um documento,

observado sobre o espírito e os costumes da sociedade. No entanto, não deixaria de

questionar a respeito da natureza do texto, da época, do motivo pelo qual foi escrito,

como afirmou Maingueneau (2009).

Dessa forma, pode-se dizer que o texto era considerado como se tivesse

uma dupla via – como documento de época e como conjunto de vestígios, do qual

se questiona sobre sua natureza, modos e razão de existência. Esse é um forte

indício de que a Filologia do século XIX não parou de perseguir sua própria

definição. Oscilando entre uma “Filologia estrita” – que elaborava técnicas eficientes

para decifrar escrituras antigas, estudar manuscritos – e uma “Filologia ampla” – que

se propunha a ser uma Ciência da cultura –, essa pôde constituir-se e firmar-se

23

como uma verdadeira disciplina, na medida em que se valia de suas técnicas

eficientes para realizar uma apreensão global da cultura, o que lhe conferia certa

transcendência, “[...] o componente onírico sem o qual as instituições do saber não

podem mobilizar as energias nem perdurar [...]” (MAINGUENEAU, 2009, p. 15).

Mussalim (2011, p. 1452) ressalta que:

[...] a Filologia não tinha razão alguma para se restringir ao estudo dos textos antigos e literários, mas assim o fez. Em função da tendência à autonomização das Ciências Modernas da cultura (a História, a Etnologia, o Direito, a Geografia, as Ciências Sociais etc.) e da crescente autonomização da Linguística, que buscava legitimar seu estatuto de Ciência dissociando o estudo da cultura do estudo das línguas enquanto sistemas arbitrários. A vontade da Linguística (e também das Ciências Sociais) de delimitar o que pertencia ao terreno da cientificidade fortaleceu a ruptura com o tratamento de questões estéticas, em geral, associadas a um déficit de cientificidade. Isso estimulou os estudos filológicos a concentrarem seus esforços nos textos antigos e nos literários; era uma forma de garantir sua especificidade, que, na verdade, não era garantida apenas pelo tipo de objeto analisado, mas pelos próprios pressupostos que a sustentam. No caso da análise de textos literários, por exemplo, a Filologia considera evidente que a literatura exprime uma dada sociedade e tenta reconstituir o mundo em que determinado texto surgiu.

Explicita, ainda, que, ao final do século XIX, consagrou-se o que foi

chamado de “história literária”, disciplina que surgiu vinculada às Faculdades de

Letras, assumindo os pressupostos da Filologia para o estudo do texto literário. Esse

momento histórico marcou o período em que a análise textual stricto sensu passou a

ser realizada a cargo da Estilística, enquanto as interpretações vinculadas ao belo

ficaram a cargo dos ensaístas, artistas e críticos. Posteriormente, porém, essa

perspectiva foi criticada pelo que se chamou “nova crítica”.

Diversas questões foram levantadas e novas formas de pensamento

surgiram em contraposição ao estruturalismo, que passou a perder força pela

necessidade de se observar a língua em seu contexto.

Como aponta Mussalim (2011, p. 45), o estruturalismo, no final da década

de 1960, já havia ficado no passado. Vivia-se então uma linguística gerativista, que

se achava bem implantada, artigos de Benveniste sobre enunciação e de Jakobson

sobre os dêiticos e os escritos de Austin e Searle já estavam publicados. Não era

mais possível, nesse contexto de emergência de correntes enunciativas e

pragmáticas, abordar a problemática do texto a partir do postulado da imanência.

Assim, uma nova forma de tratar a comunicação verbal se impunha e se sustentava

24

sobre algumas ideias, tais como: o discurso como atividade, a interação, a

reflexividade da enunciação, a inscrição dos enunciados em gêneros do discurso,

uma concepção institucional do sentido, a inseparabilidade entre texto e contexto,

entre outras, como afirma Maingueneau (2009).

Nessa conjuntura, o nome de Bakhtin congregava as tentativas de

renovação do olhar sobre o discurso literário. A Análise do Discurso, como já

mencionado, foi desenvolvida na segunda metade da década de 1960, no entanto,

todas as ponderações que essa trazia ainda estavam ligadas ao discurso político. O

que podemos dizer é que em relação aos estudos do discurso literário, à medida que

esses começaram a surgir como discurso, passaram a ser estudados, observando-

se as suas próprias condições de enunciação (MAINGUENEAU, 2009). Dessa

forma, levou-se em conta, também, o estatuto do escritor, associado ao seu modo

de posicionamento no campo literário, as relações com o enunciatário, os papéis

vinculados aos gêneros, os suportes materiais e os modos de circulação dos

enunciados.

O autor considera que a análise do discurso literário, em toda a sua

complexidade, observa as modalidades sociais e históricas da comunicação literária

sem abrir mão da necessidade de se apoiar nas Ciências da Linguagem. Essa

posição é presente na proposta do autor, à medida que observamos os tipos de

categorias com as quais esse propõe a operacionalização da análise do discurso

literário, entre as quais citamos: cena de enunciação (tipo de discurso, gênero e

cenografia); dêixis discursiva (enunciador, coenunciador, topografia e cronografia);

ethos, para citar apenas as categorias mais conhecidas.

O discurso literário não é isolado, ainda que tenha sua especificidade:

participa de um plano determinado da produção verbal, a do discurso constituinte,

categoria que permite melhor apreender as relações entre literatura e Filosofia,

literatura e religião, literatura e mito, literatura e Ciência.

A expressão “discurso constituinte” designa fundamentalmente o discurso que se propõe como discurso de Origem, validada por uma cena de enunciação que autoriza a si mesma. Levar em conta as relações entre os vários “discursos constituintes” e entre discursos constituintes e discursos não-constituintes pode parecer uma custosa digressão, mas esse agir aumenta de maneira ponderável a inteligibilidade do fato literário. A questão da autoridade da fala vai, com efeito, bem além da literatura, que não é o único tipo de discurso que se funda no estatuto, por assim dizer,

25

“xamântico” de uma fonte enunciativa que participa ao mesmo tempo do mundo comum e de forças que excedem o mundo dos homens (MAINGUENEAU, 2009, p. 60).

A literatura, ou o discurso constituinte como um todo, mantém uma dupla

relação com o interdiscurso, alimentando-se de outros textos mediante diferentes

procedimentos (citações, imitações, investimentos de um gênero etc.), por

conseguinte, expondo-se à interpretação, à citação, ao reemprego.

A noção de literatura como discurso constituinte, além de fundamentar a

ruptura com as noções românticas e modernistas do texto literário para fins de

abertura, propõe a literatura como discurso autolegitimador, ligado a uma complexa

rede de textos, de agentes e de modos de circulação. Assim, todo discurso

constituinte só existe e só exerce seu poder e sua efetiva circulação na sociedade se

for constituído por uma “instituição discursiva”. Assim, Maingueneau (2009, p. 53)

define a instituição literária como noção que:

[...] designa a vida literária (os artistas, os editores, os prêmios etc.). Podemos ampliar seu domínio de validade, como o fazem muitos sociólogos, levando em conta o conjunto de quadros sociais da atividade dita literária, tanto as representações coletivas que se tem dos escritores, como a legislação (por exemplo, sobre os direitos autorais), as instâncias de legitimação e de regulação da produção, as práticas (concursos e prêmios literários), os usos (envio de um original a um editor...), os habitus, as carreiras previsíveis e assim por diante. Essa ampliação do campo de visão promoveu uma profunda renovação da concepção que se pode ter do discurso literário.

O caráter constituinte de um discurso confere a seus enunciados um

estatuto particular. O discurso literário busca, dessa forma, absorver no mais

profundo de sua exposição, suas próprias estruturas teóricas, pronto a operar com

essas obliquamente, em um nível estrutural ou a reinscrevê-las ficticiamente como

seu próprio conteúdo. É, pois, nas formas literárias que se tem de tornar manifesto o

pensamento que a literatura produz.

1.2.1 A Literatura infantil na escola

A partir da Idade Moderna, a infância passou a merecer um olhar

diferenciado pela sociedade, que percebeu a necessidade de uma formação mais

específica para cada etapa do crescimento. Isso ocorreu devido ao surgimento de

um novo conceito de família, preocupada em estimular o afeto entre os seus

26

membros. Tal valorização gerou uma necessidade de controle no desenvolvimento

intelectual da criança, bem como a manipulação das suas emoções.

Cademartori (1994) aponta para o desenvolvimento da literatura infantil

em dois momentos: a lendária e a escrita. A literatura lendária apareceu da

necessidade materna de se comunicar com seus filhos, de contar coisas que os

rodeavam. Surgia nesse momento a contação de histórias apenas orais, sem

nenhum tipo de registro escrito.

Para o autor, os primeiros livros infantis surgiram no século XVII,

registrando algumas das histórias que eram contadas. Obras de cunho satírico

foram concebidas por intelectuais que lutavam contra a opressão para estigmatizar e

condenar usos, costumes e personagens que oprimiam o povo. Para não serem

atingidos pela força do despotismo, os autores foram obrigados a esconder suas

intenções sob um manto fantasioso.

Bettelheim (1996) coopera para a contextualização da literatura infantil ao

falar dos contos de fadas. Perrault iniciou essa produção entre os anos de 1628 e

1703, com os livros Mãe gansa, O barba azul, Cinderela, A gata borralheira, O gato

de botas e outros. Depois disso, apareceram outros escritores, tais como: Andersen,

Collodi, Irmãos Grimm, Lewis Carrol, Bush.

Um dos objetivos da literatura infantil, marcada pelos contos de fadas, era

possibilitar à criança a entrada desde cedo com esse gênero discursivo. Assim, a

obra na vida infantil possibilitaria uma maior compreensão de si e do outro,

oferecendo-lhes a oportunidade de desenvolver o potencial criativo e ampliar os

horizontes da cultura e do conhecimento, percebendo o mundo e a realidade

circundantes.

[...] enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança (BETTELHEIM, 1996, p. 20).

Também se pode compreender a obra literária como uma tomada de

consciência da realidade, caracterizada pelo sentido humano dado a esse mundo

concreto. Assim, não é um mero reflexo na mente, que se traduz em palavras, mas o

27

resultado de uma interação ao mesmo tempo receptiva e criadora. Essa relação se

processa por meio da mediação da linguagem verbal, escrita ou falada.

Cademartori (1994, p. 23) afirma que a literatura infantil se configura não

só como instrumento de formação conceitual, mas também de emancipação da

manipulação da sociedade. Se a dependência infantil e a ausência de um padrão

inato de comportamento são questões que se interpenetram, configurando a posição

da criança na relação com o adulto, a literatura surge como um meio de superação

da dependência e da carência por possibilitar a reformulação de conceitos e a

autonomia do pensamento.

A maioria de nossas crianças tem o primeiro contato com a literatura

apenas quando chega à escola e, na maioria das vezes, a literatura vira uma

obrigação escolar, devido à forma como é apresentada. Muitos livros são indicados

para leitura não levando em consideração o gosto e a faixa etária em que a criança

se encontra, dificultando o processo de leitura e compreensão. Uma história traz

consigo inúmeras possibilidades de aprendizagem e muitos discursos. Entre as

quais estão os valores apontados no texto, que poderão ser objeto de diálogo com

as crianças, possibilitando a troca de opiniões e o desenvolvimento da capacidade

de expressão. O estabelecimento de relações entre os comportamentos dos

personagens da história e das próprias crianças em nossa sociedade possibilita ao

professor desenvolver inúmeros conteúdos a serem trabalhados nesse período

escolar.

Pode-se destacar que experiências felizes com a literatura infantil em sala

de aula são aquelas em que a criança interage com diversos textos trabalhados de

tal forma que possibilite o entendimento do mundo em que vive e que construa, aos

poucos, seu próprio conhecimento. Para alcançarmos um ensino de qualidade, faz-

se necessário que o professor descubra critérios e que saiba selecionar as obras

literárias a serem trabalhadas com os alunos. Precisa desenvolver recursos

pedagógicos capazes de intensificar a relação da criança com o livro e com seus

próprios colegas.

[...] para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e

28

aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam (BETTELHEIM, 1996, p. 13).

A literatura infantil estabelece uma relação dialógica com o leitor, o livro,

sua cultura e a própria realidade. Além de contar ou ler a história, possibilita

condições para que o leitor trabalhe a interpretação a partir de seu ponto de vista, da

sua realidade, assumindo posições frente aos fatos narrados, defendendo atitudes e

personagens, criando novas situações e construindo uma história inédita, que

retratará resquícios de sua vivência, ou seja, de sua própria história.

[...] ler histórias para crianças, sempre, sempre [...]. É poder sorrir, rir, gargalhar com as situações vividas pelas personagens, com a idéia do conto ou com o jeito de escrever dum autor e, então, poder ser um pouco cúmplice desse momento de humor, de brincadeira, de divertimento [...]. É também suscitar o imaginário, é ter a curiosidade respondida em relação a tantas perguntas, é encontrar outras idéias para solucionar questões (como as personagens fizeram [...]). É uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos - dum jeito ou de outro - através dos problemas que vão sendo defrontados, enfrentados (ou não), resolvidos (ou não) pelas personagens de cada história (cada uma a seu modo) [...]. É a cada vez ir se identificando com outra personagem (cada qual no momento que corresponde àquele que está sendo vivido pela criança) [...] e, assim, esclarecer melhor as próprias dificuldades ou encontrar um caminho para a resolução delas (ABRAMOVICH, 1995, p. 17).

Ao invés de uma imposição para atender o currículo, ou para cumprir

determinações apenas escolares, é importante compreender que a conquista do

leitor se dá por meio de uma relação prazerosa com o livro infantil, no qual o sonho,

a fantasia e a imaginação se misturam à realidade única, levando-o a vivenciar

emoções em parceria com as personagens da história, introduzindo-o em uma

situação de realidade. Abramovich (1995, p. 170) aponta a questão da emoção,

afirmando que:

[...] é ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes, como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a insegurança, a tranqüilidade, e tantas outras mais, e viver profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as ouve – com toda a amplitude, significância e verdade que cada uma delas fez (ou não) brotar [...]. Pois é ouvir, sentir e enxergar com os olhos do imaginário!

Sabe-se que a leitura é um processo de contínuo aprendizado. Alguém

acostumado a ler busca respostas para suas dúvidas e atualiza-se sempre que

necessário.

29

1.2.2 A literatura infantil no Brasil

A literatura infantil brasileira teve sua origem na literatura didática/escolar,

no final do século XIX. Começou a ser produzida de maneira sistemática por

professores brasileiros, com a finalidade de ensinar às crianças, de maneira

agradável, valores morais e sociais, assim como padrões de conduta relacionados

com o engendramento de uma cultura escolar urbana e necessária, do ponto de

vista de um modelo republicano de instrução do povo.

Esse fato só começou a ser enfrentado na década de 1920, com a

produção do escritor Monteiro Lobato e, especialmente, com a publicação, em 1921,

de Narizinho arrebitado, quando, articuladamente à expansão e solidificação do

mercado editorial, teve início um processo de autonomização da literatura infantil em

relação às origens didáticas/escolares, mediante a priorização programática de seu

efeito estético.

A partir de 1970, com o chamado boom da produção de livros para

crianças e jovens, especialmente a despeito da persistência da literatura infantil de

caráter “pedagogizante” e de qualidade questionável –, houve a consolidação dessa

tendência “esteticizante” da literatura. Pode-se depreender como uma das

características apontadas na produção de literatura infantil brasileira sua oscilação

entre os gêneros didático e literário e o correspondente esforço de superação do

didatismo, ou seja, de usar a literatura apenas como um subterfúgio para o ensino

curricular em favor da literalidade.

Para esse esforço contribuiu especialmente a produção acadêmica a

partir do final da década de 1980 no âmbito dos estudos literários, com sua forte

tendência normalizadora sobre a produção de literatura infantil, decorrente de uma

perspectiva dos estudos do gênero.

Os pesquisadores que se dedicam ao estudo da literatura infantil,

observando a questão genérica, procuram dar ênfase à abordagem literária, com a

finalidade de produção de um discurso especializado, com seus correspondentes

valores e finalidades, tanto sociais quanto científicos.

30

Acadêmicos da área da Educação vêm, cada vez mais, dedicando-se ao

estudo da literatura infantil, enfatizando suas possibilidades no processo de ensino-

aprendizagem escolar e utilizando métodos e procedimentos da pesquisa em

educação, principalmente os que correspondem aos objetivos de intervenção na

prática pedagógica. Priorizam as questões relativas ao qualificativo infantil do gênero

e sua condição de “instrumento agradável”, na maioria dos casos secundarizando-se

ou mesmo desconsiderando-se as discussões acerca das questões literárias e

estéticas1.

Enfim, no movimento de constituição desse campo de conhecimento, sua

identidade específica passa a depender do lugar de onde falam os sujeitos

autorizados dos discursos especializados, assim como dos valores e finalidades

sociais e científicos. Pode-se, então, definir, como apontado por Mortatti (2011), que

a literatura infantil é como um conjunto de textos – escritos por adultos e lidos por

crianças – que foram paulatinamente denominados como tal, em razão de certas

características sedimentadas historicamente, por meio, entre outros, da expansão de

um mercado editorial específico e de certas instâncias normalizadoras, como a

escola e a Academia.

No Brasil, trata-se de um gênero literário, cuja origem está diretamente

relacionada com a organização de um aparelho escolar e com certas concepções de

infância, segundo as quais a criança – leitor previsto para o texto do gênero e

responsável pelo qualificativo infantil – é um ser considerado “sem voz” e “em

formação”.

Para a literatura ter seu crescimento integral, necessita submeter-se: ao

processo de escolarização, enquanto prática sociocultural mediadora entre os

mundos adulto e infantil; à aprendizagem da leitura, enquanto prática sociocultural

mediadora entre os textos produzidos por adultos com finalidades de formação e

seus leitores infantis.

Consequentemente há uma unidade múltipla determinantemente

constitutiva do gênero – simultaneamente literário e didático –, a qual implica

reconhecer que os termos literatura e infantil não se encontram em relação de

1 Estudo que determina o caráter do belo nas produções naturais e artísticas.

31

oposição, mas de complementaridade, embora indiquem hierarquização semântica

constitutiva de sua natureza.

Enfim, a literatura deve ser sinônimo de espontaneidade, liberdade e

prazer. Percebe-se então, que ler pode tornar-se prazer e hábito se introduzido na

escola de maneira significativa.

Contudo, uma pergunta surge nesse contexto: como trabalhar a questão

da espontaneidade, perpassada pelo discurso pedagógico autoritário? Desvincular a

literatura dos processos avaliativos escolares, mostrando caminhos que apresentem

a primeira como uma aquisição pessoal de conhecimento e desvinculada de

julgamento poderia ser o começo de um trabalho dialógico.

1.2.3 Leitura e literatura

Como diz Silva (1991), a fase da infância é o melhor momento para o

indivíduo iniciar sua emancipação pela palavra. É nesse período (entre os oito e

treze anos de idade), que as crianças demonstram o interesse pela leitura. O

estudioso Bamberger (2000) reforça a ideia de que é importante habituar a criança

às palavras afirmando que, ao possibilitar ao pequeno uma experiência positiva com

a linguagem, desenvolve-se o seu potencial humano.

A sociedade, com o passar do tempo, cresceu e modernizou-se por meio

da industrialização, expandindo, assim, a produção de livros, o que promoveu os

laços entre a escola e a literatura. De acordo com Lajolo e Zilbermann (2002, p. 25),

“[...] a escola passa a habilitar as crianças para o consumo das obras impressas,

servindo como intermediária entre a criança e a sociedade de consumo”.

A partir desse momento, inúmeros pesquisadores tentam mostrar aos pais

e professores a importância de o livro estar presente no dia a dia infantil. Bamberger

(2000) afirma que, comparada ao cinema, ao rádio e à televisão, a leitura tem

vantagens únicas, pois o leitor pode escolher entre os melhores escritos do presente

e do passado. Além disso, esse poderá ler onde e quando mais lhe convém, no

ritmo que mais lhe agrada, podendo retardar ou apressar a leitura; interrompê-la,

reler ou parar para refletir, a seu bel-prazer. Poder ler o que, quando, onde e como

32

bem entender garante o interesse contínuo pela leitura, tanto em relação à educação

quanto ao entretenimento.

Martins (2003) chama a atenção para um contato sensorial com o objeto

livro, que, segundo a autora, revela "um prazer singular" na criança. Na leitura, por

meio dos sentidos, a criança é atraída pela curiosidade, pelo formato, pelo manuseio

fácil e pelas possibilidades emotivas que o livro pode conter. Martins comenta que

esse jogo com o universo escondido no livro pode estimular no pequeno leitor a

descoberta e o aprimoramento da linguagem, desenvolvendo sua capacidade de

comunicação com o mundo.

Os primeiros contatos com a leitura despertam na criança o desejo de

concretizar o ato de ler o texto escrito, facilitando o processo de alfabetização. Para

que essa experiência sensorial ocorra, é importante o contato infantil com o livro.

No Brasil o acesso ao livro é dificultado devido a muitos fatores sociais,

econômicos e políticos. Nas unidades escolares, encontram-se poucas bibliotecas

que de fato funcionam como tal e as existentes não dispõem de um acervo

adequado ou de profissionais aptos a orientar o público infantil, no sentido de um

contato agradável e propício com os livros. Conforme Souza (2012), as bibliotecas

domiciliares são mais difíceis, pois os pais, quando se interessam em comprar livros,

comumente os escolhem pela capa, dada a falta de orientação, uma vez que

participam pouco ou quase nada da vida escolar de seus filhos.

É importante que pais e educadores discutam sobre a necessidade de

incluir a leitura no âmbito da atividade escolar, destacando a sua importância no

processo de formação do leitor crítico.

Nas duas primeiras décadas do século XX, as obras didáticas produzidas

para a infância apresentavam um caráter ético-didático, o livro tinha a finalidade

única de educar, apresentar modelos, moldar a criança de acordo com as

expectativas dos adultos. Os livros dificilmente tinham o objetivo de tornar a leitura

fonte de prazer, sua intencionalidade maior era retratar a aventura pela aventura,

buscando aspectos moralizantes que propusessem algum tipo de ensinamento

valorizado pelo adulto, nesse patamar estão as fábulas e contos diversos.

33

Encontravam-se poucas histórias que falassem da vida de forma lúdica, ou que

fizessem pequenas viagens em torno do cotidiano.

Por volta da década de 1970, a visão maniqueísta do sistema educacional

passou a ser repensada e a literatura infantil entrou em um processo de valorização,

principalmente pela contribuição das obras de Monteiro Lobato. No Brasil, há uma

ramificação por diversos caminhos da atividade, valorizando a aventura, o cotidiano,

a família, a escola, o esporte, as brincadeiras, as minorias raciais, penetrando até no

campo da política e suas implicações.

A literatura infantil foi, assim, modificando-se e hoje ocupa um lugar de

destaque pela produção que tem proporcionado à criança um desenvolvimento

emocional, social e cognitivo indiscutíveis.

É através de uma história que se pode descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outras regras, outra ética, outra ótica [...]. É ficar sabendo História, Filosofia, Direito, Política, Sociologia, Antropologia etc., sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH, 1995, p. 17).

Assim, quanto mais cedo a criança tiver contato com os livros e perceber

o prazer que a leitura produz, maior será a probabilidade de se tornar um adulto

leitor.

A criança que ouve ou lê histórias é capaz de comentar, indagar, duvidar

ou discutir, realizando uma interação verbal. As atividades de leitura vêm ao

encontro das noções de linguagem postuladas por Bakhtin (1992), que destaca o

confronto de ideias e de pensamentos em relação aos textos, marcando a

importância da visão comunicativa da linguagem, na qual a interação é construída

por meio das inserções dialógicas, quer com pessoas ou textos.

Na interlocução podemos adquirir conhecimento que evolui por meio do

confronto, da contrariedade. A linguagem, segundo Bakthin (1992), é constitutiva,

isto é, o sujeito constrói o seu pensamento a partir do raciocínio do outro, portanto,

uma linguagem dialógica.

Toda a vida é dialógica por natureza, ou seja, viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar. O homem participa em todo esse processo com a sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. Ele se põe todo na

34

palavra e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 1992, p. 112).

Partindo desse ponto de vista, é pela interação social e pelo diálogo que

se pretende compreender a relevância da literatura infantil que, segundo afirma

Coelho (2001, p. 17), “[...] é um fenômeno de linguagem resultante de uma

experiência existencial, social e cultural”.

Assim, pode-se definir a leitura como um processo no qual o leitor realiza

um trabalho ativo de construção do significado do texto, ou seja, a leitura no sentido

de compreensão do mundo é condição básica do ser humano. Essa compreensão

de sentido daquilo que o cerca, inicia-se desde o nascimento, no seu primeiro

contato com o mundo. Os sons, os odores, o toque, o paladar, de acordo com

Martins (2003) são os primeiros passos para aprender a ler. No entanto, é uma

atividade que implica não somente a decodificação de símbolos, pois envolve uma

série de estratégias que permita ao indivíduo compreender o que lê. A esse respeito,

os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN) registram que:

Um leitor competente é alguém que, por iniciativa própria, é capaz de selecionar, dentre os trechos que circulam socialmente, aqueles que podem atender a uma necessidade sua. Que consegue utilizar estratégias de leitura adequada para abordá-los de forma a atender a essa necessidade (BRASIL, 2001, p. 54).

Tal aspecto marca que a capacidade para aprender está ligada ao

contexto pessoal. Lajolo e Zilberman (2002) afirmam que cada leitor entrelaça o

significado pessoal de suas leituras de mundo com os vários significados que

encontrar ao longo da história de um livro, por exemplo.

A leitura, ou melhor, o ato de ler, então, não se restringe apenas à

decodificação, já que essa não está imediatamente ligada a uma experiência,

fantasia ou necessidade do indivíduo. A decodificação é apenas uma, das várias

etapas de desenvolvimento da leitura. A compreensão das ideias percebidas, a

interpretação e a avaliação são as outras etapas que, segundo Bamberger (2000, p.

23), “[...] fundem-se no ato da leitura”.

É fundamental motivar as crianças e os jovens ao hábito da leitura,

abordando as relações entre a literatura e ensino, legitimando a função da leitura por

meio de sugestões de livros, assim como atividades didáticas, tentando despertar o

35

uso da obra literária em salas de aula e lares, com objetivos cognitivos e não apenas

para cumprir alguns procedimentos pedagógicos.

Com relação à leitura e à literatura infantil, fica claro que é preciso

explorar a função educacional do texto literário (ficção e poesia) por meio da seleção

e análise de livros infantis; do desenvolvimento do lúdico e do domínio da

linguagem, utilizando as histórias infantis como caminho para o ensino, despertando

o gosto pela leitura, procurando trabalhá-las em processos de intertextualizações

com outras linguagens, com a finalidade de promover maior compreensão do texto

fonte lido.

As diferentes estratégias para o uso de textos infantis no aprendizado da

leitura, assim como a interpretação e produção desses podem ser exploradas com o

intuito final de promover um ensino de qualidade, prazeroso e direcionado à criança.

Assim, pode-se começar a transformar o Brasil em um país de leitores, à medida

que sejam multiplicadas as práticas escolares, buscando analisar, cada vez mais e

com maior profundidade, os textos apresentados para as crianças.

1.3 O contexto da história de Pinóquio, de Carlo Collodi

A história de Pinóquio, de Carlo Collodi – pseudônimo literário de Carlo

Lorenzi (1826-1890) –, conforme já dito, surgiu no contexto italiano em 1883.

Publicada originalmente em formato de folhetim, entre 1881 e 1883, sob o título A

história de uma marionete, a novela de Carlo Collodi é um dos textos literários que

mais sucesso fez (e ainda faz) entre adultos e crianças.

Transcendendo a mera comoção, Collodi conseguiu resumir muito do

caráter italiano e comentar inúmeras questões sociais, tais como: pobreza, fome,

importância da educação e mau funcionamento das instituições públicas. Em seu

percurso de transformação de boneco a menino, Pinóquio enfrenta as intempéries

das noites longas e frias, depara-se com a autoridade da Lei, padece de uma fome

terrível e descobre a solidão da condição humana. Fantasia, humor e ironia se

combinam nesse clássico da literatura, indicado para todas as idades. Pelo seu

eterno encanto, Pinóquio é considerado pela crítica como um dos pilares da

literatura italiana.

36

A história começa com um pedaço de lenha, cujo fim seria a lareira para

aquecer a casa de Mestre Cereja. Porém, ao ver que o pedaço de lenha ria e

debochava, ficou com medo e resolveu presentear seu amigo Gepeto, pois sabia

que o artesão planejava criar uma marionete que soubesse dançar, esgrimir, dar

saltos mortais etc.

Após ganhar vida nas mãos de Gepeto, a marionete ganhou o mundo,

recusando-se a ir para a escola. Viveu grandes aventuras até reconhecer que os

apelos de seu pai, do grilo-falante e da fada, que estiveram presentes em sua

caminhada, necessitavam ser ouvidos, a fim de que pudesse realizar seu maior

sonho: transformar-se em um menino.

Carlo Collodi nasceu em Florença, em novembro de 1826. Era o filho mais

velho entre os dez irmãos. Passou a infância na montanhosa cidadezinha de Collodi.

Foi enviado para o seminário de padres de Val d'Elsa, no entanto, após sua

ordenação, começou a trabalhar como vendedor de livros. Nasceu no período em

que seu país era dividido em cidades-Estado rivais. Quando o movimento pela

unificação nacional da Itália se espraiou, Collodi, então com 22 anos, tornou-se

jornalista, lutando pela independência italiana. Em 1848, fundou o jornal satírico Il

Lampione (O Lampião), que acabou em 1849. O periódico seguinte, La Scaramuccia

(A Escaramuça), teve mais sorte e em 1860 fez ressurgir Lampione. Collodi também

escreveu comédias e editou jornais e revistas.

Nessa época o escritor abandonou o jornalismo, voltando-se para a

fantasia infantil, traduzindo para o italiano contos de fada do escritor francês Charles

Perrault, quem reviveu histórias já esquecidas do senso comum, como O

Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e O Gato de Botas. Posteriormente,

passou a escrever suas próprias histórias infantis.

Com a personagem Pinóquio, o autor introduziu uma complexa teia de

questões morais. “Pinóquio é uma espécie de Macunaíma” (2011), diz Lombardi. A

autora compara a transgressão e a vagabundagem do boneco às características do

herói “sem nenhum caráter” de Mário de Andrade. Escrito há 130 anos por Collodi, a

obra também pretendia ser didática ao estilo da época. A literatura e o teatro de

então traziam personagens rebeldes e desbocados. Concebida como um folhetim

37

semanal de histórias infantis, a aventura da marionete terminava no capítulo XV,

com a morte de Pinóquio por enforcamento. Como os leitores protestaram, o

protagonista voltou à vida e a história terminou 21 capítulos depois.

Para além de seus méritos próprios, o sucesso da história de Collodi

possui explicações sociais. O autor passou a usar de seu humor não apenas contra

a moral da sociedade, mas também avesso à unificação do País, que, datada em

1880, deixava a desejar.

Dedicava-se cada vez mais a escrever obras para crianças e jovens, que

tiveram algum sucesso, mas a união de pequenos Estados em uma só Monarquia

não foi acompanhada pela padronização da língua. Reinavam os dialetos, a

comunicação era precária e o País passava por uma crise de identidade. Quando

surgiu o primeiro capítulo de A história de um boneco, a Itália dava seus passos

iniciais em direção a uma língua própria. À medida que Pinóquio ganhava

humanidade, contribuía para a formação da identidade nacional e se tornava querido

pelos leitores de todas as regiões italianas.

Com Pinóquio, Collodi emergiu do anonimato para a fama e, segundo

seus estudiosos, nunca mais escreveu nada tão notável.

No próximo capítulo serão discutidas questões ligadas à Análise do

Discurso, mas pontualmente as relativas ao ethos e às cenas enunciativas, que

serão analisados nos excertos da obra, ao longo do Capítulo III.

38

CAPÍTULO 2

2 A PERSONAGEM PINÓQUIO: O ETHOS E AS CENAS DE

ENUNCIAÇÃO – CONSTRUÇÕES A PARTIR DAS PROPOSIÇÕES

DO ENUNCIADOR

A Análise do Discurso de Linha Francesa (ADLF) surgiu, como aponta

Brandão (2004), entre as décadas de 1960 e 1970, na França. Os estudos sobre a

língua, à época, estavam ligados ao texto literário.

O momento histórico foi agitado, marcado por diversas manifestações de

cunho político, que se transformaram em objeto de estudo da ADLF, em um primeiro

momento, refletindo sobre posições bem marcadas, como o discursos de esquerda e

de direita, observando que um determinado enunciado não se limitava apenas a um

estudo puramente linguístico, quanto ao mero exame de sua parte gramatical, mas

que deveria levar em conta aspectos externos à língua, ou seja, os elementos

históricos, culturais e ideológicos que cercavam a produção de um determinado

discurso no contexto em que circulava.

Para essa disciplina, o estudo da linguagem exige que, a partir da

materialidade linguística, os usuários do idioma coloquem em ação saberes

linguísticos e sócio-histórico-culturais. Com isso, surge um conceito fundamental

para a ADLF que é o de condições de produção. Em outras palavras, o conjunto de

elementos que cerca o enunciado: contexto sociocultural, o lugar de onde se fala, a

imagem que se faz de si e do outro, o assunto que é tratado.

Brandão (2003), ao apontar para uma história da Análise do Discurso,

procura apresentar o percurso pelo qual essa passou. A autora afirma que a

Linguística, até a primeira metade do século passado, era fechada em um postulado

estruturalista, balizado pela oposição língua/fala, apontada por Saussure. Com o

tempo, percebeu-se que uma Ciência tão fechada não dava conta dos fenômenos

da língua. Foi a partir de então que os estudiosos passaram a olhar para as

questões que estavam em um nível fora do estritamente linguístico.

39

No ano de 1952, em sua obra intitulada Análise do discurso, Harris

observou os segmentos superiores das frases, as chamadas relações transfrásticas,

a partir de um método distribucional. No entanto, ainda não se tinha a preocupação

com o sentido dos textos.

Uma das tentativas mais ricas para se chegar à Análise do Discurso que

hoje se conhece foram os estudos sobre enunciação, primeiramente com Bally (em

1951) e depois com Jakobson (em 1963) e Benveniste (em 1966).

Benveniste (2005) afirmou que o transformador da língua em discurso é o

ato de enunciação. Nesse o sujeito falante se apropria do aparelho formal da língua,

para realizar um trabalho individual de conversão, alterando a língua em discurso por

um processo de apropriação.

Para Maldidier (apud BRANDÃO, 2003) a ADLF como disciplina nasceu a

partir de uma dupla fundação, centrada nos estudos de Jean Dubois e Michel

Pêcheux:

Os anos 60 são os anos do estruturalismo triunfante. A Lingüística, promovida à Ciência piloto, está no centro do dispositivo das Ciências [...]. O projeto da AD nasce neste contexto [...] o liame entre a expansão da Linguística e a possibilidade de uma disciplina (nova) como a análise de discurso é explícita.

Trata-se de dois grandes autores, apesar de atuantes em diferentes

áreas: Dubois, que foi linguista e lexicólogo e Pêcheux, filósofo, situando-se no

campo da história das Ciências, influenciado mais tarde pelas ideias de Foucault;

atuaram em um espaço comum: do marxismo e da política. Enquanto para o

primeiro a AD foi pensada em um continuum, ou seja, a passagem do estudo da

palavra ao estudo do enunciado, o segundo a pensou como uma ruptura

epistemológica em relação ao que se fazia nas Ciências Humanas, e passava a

articular conceitos como sujeito e ideologia.

Nesse contexto, para Pêcheux (1995), o sujeito deixa de ser um dado a

priori, passando a ser visto como construção do discurso, em um processo

simultâneo por meio da ideologia. Para explicar a questão, o autor afirma que:

O sentido de uma palavra, expressão, proposição, não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo

40

sócio-histórico em que palavras, expressões, proposições são produzidas (PÊCHEUX, 1995, p. 160).

Para o estudioso, o discurso seria um dos lugares em que a ideologia se

manifesta e se torna concreta por meio da língua.

As noções de formação discursiva e formação ideológica passam

posteriormente a fazer parte dos estudos da Análise do Discurso. Para tanto,

Pêcheux promove ajustes em suas formulações teóricas, para apresentar o conceito

de formação ideológica, dizendo que essa estabelece um jogo de dominação ou

aliança, no contexto em que são travadas as polêmicas. Por sua vez, Brandão

(2012, p. 46) recupera os estudos sobre essas duas formações (discursiva e

ideológica) para afirmar que:

Podemos definir formação ideológica como o conjunto de atitudes e representações ou imagens que os falantes têm sobre si mesmos e sobre o interlocutor e o assunto em pauta. Essas atitudes, representações, imagens estão relacionadas com a posição social de onde falam ou escrevem, têm a ver com as relações de poder que se estabelecem entre eles e que são expressas quando interagem entre si. É nesse sentido que podemos falar em uma formação ideológica colonialista, uma formação ideológica capitalista, neoliberal, socialista, religiosa etc. Uma formação ideológica pode compreender várias formações discursivas em relações de polêmica ou de aliança. Temos, por exemplo, a ideologia colonizadora (no Brasil do século XIX) compreendendo várias formações discursivas, como a escravagista, a pró-abolição da escravatura, a pró-imigração etc.

Para tanto, cada formação discursiva reuniria um conjunto de enunciados

marcados por características comuns, definidas pela sua relação com determinada

formação ideológica. Assim, todos os textos de certa constituição discursiva

remeteriam a uma formação ideológica, fazendo com que a constituição discursiva

determinasse o que pode ser dito, a partir do lugar, da posição social que o sujeito

ocupa.

Nessa perspectiva, a seguir reflete-se sobre questões importantes para a

Análise do Discurso: o ethos e as cenas de enunciação.

2.1 O Ethos discursivo: alguns apontamentos

Para tratar da questão do ethos é importante observá-lo em sua

constituição histórica, desde a interpretação concebida por Aristóteles. Para o

41

filósofo, o ethos está ligado diretamente à retórica, apontando para o sujeito-

enunciador que, no ato de sua fala, procura construir uma imagem positiva de si com

o propósito de persuadir seu interlocutor.

Há nos estudos aristotélicos três espécies de provas, que são

empregadas com a intenção de persuadir o enunciatário: a primeira, que reside no

caráter do orador, o ethos; a segunda, responsável por despertar as paixões nos

ouvintes, o pathos; e a terceira, chamada de logos, o próprio discurso por aquilo que

demonstra ou parece demonstrar. Nessa análise, apresenta-se um enunciatário que

se deixa convencer por essas três provas.

Observado como a representação dos sentimentos do auditório, o pathos

presente no enunciado estaria ligado diretamente às ações de impressionar, seduzir,

fundamentar os argumentos por meio de uma paixão, com a finalidade de construir

um poder persuasivo, recaindo sobre o ouvinte toda a carga afetiva gerada pelo

logos do orador.

O logos, por sua vez, sendo o próprio discurso, convenceria, por si, pelos

argumentos utilizados na situação comunicativa e ornado pelos tipos de discurso

literário, argumentativo etc.

Ao tratar do ethos, Aristóteles aponta que o caráter moral do sujeito-

enunciador não é algo independente de sua fala. Se se trata de alguém

reconhecidamente sincero é pelo discurso que será confirmado tal caráter. No

entanto, se o enunciador não tem prestígio social e conta com uma imagem

comprometida, é necessário que, mediante o discurso, desfaça tal percepção,

mostrando que seu caráter não corresponde à imagem que se tem a seu respeito.

Acentua o filósofo, dessa maneira, que uma das características do ethos

é exatamente o poder do orador em evidenciar o seu caráter pessoal, para que seu

discurso digno seja percebido como verdadeiro. Portanto, quanto mais reconhecido

for o sujeito-enunciador, seu discurso será mais aceitável e persuasivo diante de

seus enunciatários. Por isso, deve prezar pela integridade de seu caráter, como

premissa para o processo persuasivo, conforme aponta o pensador:

42

O caráter pessoal do orador alcança a persuasão, quando ele nos leva a crer no discurso proferido. Acreditamos mais nos homens de bem por serem mais preparados e íntegros. [...] O seu caráter pode ser chamado de o mais eficiente meio de persuasão que ele possui (ARISTÓTELES, 2007, p. 23-24).

É possível compreender que na concepção aristotélica o ethos é

entendido como a imagem de si no discurso proferido e liga-se diretamente ao

caráter do orador, fiando-se na confiança de gerar em seus interlocutores um

importante papel no processo persuasivo. Contudo, tão condição não equivale

necessariamente ao caráter do orador, pois será aquilo que esse diz de si e não

aquilo que é efetivamente.

Maingueneau (2009) retoma tais discussões e apresenta o ethos como

uma noção discursiva, pois é construído por meio do discurso. Em vez de ser

apenas a imagem do locutor exterior à fala, está intrinsecamente ligado a um

processo interacional de influência sobre o outro.

O ethos está ligado ao ato da enunciação, mas também não se pode

negar que o público constrói a representação do ethos pelo que o enunciador diz

antes mesmo de começar a falar.

O ethos de um discurso resulta de uma intenção de diversos fatores: o ethos pré-discursivo, o ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto em que o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito), diretamente (“é um amigo que vos fala”) ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou alusões de outras cenas de fala (MAINGUENEAU, 2009, p. 270).

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si,

como bem pontua Amossy (2008). Para tanto, não é necessário que o

locutor/enunciador faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades, nem mesmo que

fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e

enciclopédicas, suas crenças explícitas e implícitas são suficientes para construir

uma representação.

Nota-se, no texto de Collodi, que o ethos da personagem Pinóquio visto

pelos adultos é extremamente construído pelo viés do discurso pedagógico: retira-se

da história apenas o que serve aos propósitos dos mais velhos. Elege-se o

desinteresse de Pinóquio pelo estudo e as mentiras pregadas como paradigma de

43

ensinamento aos pequenos, a fim de que sejam estudiosos, obedientes e não

questionadores do poder dos adultos.

A interpretação desses fatos isolados transforma a obra em uma unidade

simplista e contrária à intenção do texto literário, que é proporcionar a multiplicidade

de leituras, bem como o prazer aos seus leitores.

Analisar o ethos da personagem Pinóquio é mostrar como se constrói o

discurso nessa obra literária. A produção de uma imagem por meio da interação

leitor/texto começa a possibilitar reflexões sobre pontos de vista sociológicos, como

o de Goffman (2006), cujas pesquisas sobre a interação, ou uma apresentação de si

e dos ritos de interação exerceram profunda influência na análise das conversações.

Goffman (2006, p. 36) mostra que toda interação social definida como “[...]

a influência recíproca que os parceiros exercem sobre suas ações respectivas,

quando estão em presença física uns dos outros [...]”, exige que os atores forneçam,

por seu comportamento voluntário ou involuntário, certa impressão de si,

contribuindo para influenciar seus parceiros do modo desejado.

Adotando a metáfora teatral, o autor fala de representação que entende

ser “[...] a totalidade da atividade de determinado indivíduo, em dada ocasião,

realizada com o objetivo de influenciar de certa maneira um dos participantes”. O

teórico também discorre sobre o papel ou rotina, definidos como “[...] o modelo de

ação preestabelecido desenvolvido durante uma representação e que se pode

apresentar ou utilizar em outras ocasiões”.

Autores que trataram da interação, tais como Benveniste, Goffman,

Kerbrat ou Orecchioni, não fizeram uso do termo ethos. A integração do conceito às

Ciências da Linguagem encontra uma primeira expressão na teoria polifônica da

enunciação de Ducrot (1987), ou seja, em sua pragmática semântica. Ao designar

por enunciação a aparição de um enunciado, e não o ato de alguém que o produz, o

autor evita relacioná-lo preliminarmente a uma fonte localizada, a um sujeito falante.

É o próprio enunciado que fornece as instruções sobre o(s) eventual(ais)

autor(es) da enunciação. Também é importante não confundir as instâncias internas

do discurso, que são ficções discursivas, com o ser empírico que se situa fora da

44

linguagem. A pragmático-semântica abandona o sujeito falante real para se

interessar pela instância discursiva do locutor, mas o faz colocando radicalmente em

xeque sua unicidade. Diferencia o Locutor (L) do Enunciador (E), que é a origem das

posições expressas pelo discurso e lhe é responsável; divide o locutor em “L”, ficção

discursiva, e em “λ”, ser do mundo, aquele de quem se fala (“eu” como sujeito da

enunciação e “eu” como sujeito do enunciado).

Analisar o locutor L no discurso consiste não em ver o que esse diz de si,

mas em conhecer a aparência que lhe conferem as modalidades de seu dizer. É

nesse ponto que Ducrot (1987, p. 189) recorre à noção de ethos: “O ethos está

ligado a L, o locutor como tal: é como origem da enunciação que ele se vê investido

de certos caracteres que, em contrapartida, tornam essa enunciação aceitável ou

recusável”.

Ao que parece, não é por acaso que a noção de ethos é mobilizada pela

concepção de enunciação da pragmático-semântica. Trata-se, na verdade, de uma

perspectiva que enfatiza a fala como ação que visa a influenciar o interlocutor. É o

interesse pelo discurso em ato e por sua eficácia no interior de um questionamento

sobre o sentido que parece explicar o recurso.

Maingueneau (1995) retoma e refina a questão do ethos e discute pontos

que influenciam a sua percepção marcada pelas cenas de enunciação. Com isso,

procura fazer um levantamento sobre como o ethos aparece não apenas no discurso

argumentativo como se pensava, mas em toda troca verbal.

A eficácia do ethos relaciona-se, assim, com o fato desse envolver a

enunciação sem ser explicitado no enunciado, por mais que esteja ligado ao

locutor/enunciador. Na medida em que se acha na origem da enunciação, é a partir

de dentro que o ethos se caracteriza com esse locutor. Com efeito, o

locutário/enunciatário atribui ao locutor/enunciador inscrito no mundo extradiscursivo

características que são, na realidade, intradiscursivas, porque estão associadas a

um modo de dizer. Essas características não são estritamente intradiscursivas, pois,

na elaboração do ethos, intervêm igualmente dados exteriores à fala propriamente

dita. O ethos está intrinsecamente ligado ao ato de enunciação.

45

Portanto, neste trabalho, ethos, ou imagem de si no discurso, pode estar

ligado tanto a juízos de valor, quanto a juízos de existência, pois é o que se faz da

personagem Pinóquio no decorrer da história. A imagem do “eu” que se constrói a

cada enunciação manifesta a arbitrariedade do enunciador, que formula opiniões e

julgamentos em virtude de interesses subjetivos, pessoais e individuais.

Maingueneau (1995) aponta para um enunciador que deve conceder-se e

ao seu enunciatário, direitos e deveres para legitimar seu dizer, ou seja, explicitar no

discurso sua posição institucional.

[...] a maneira de dizer autoriza a construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida em que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma interação entre o locutor e seu parceiro (MAINGUENEAU, 1995, p. 64).

Tal noção de ethos tem uma estreita relação com a imagem prévia que o

auditório (particular ou universal) faz do orador, ou com a ideia que esse faz do

modo como seus alocutários o veem.

Esse ethos pré-discursivo é um dado preexistente ao discurso. Ou seja,

para construir seu ethos, o interlocutor se baseia no que sabe a priori a respeito do

locutor/enunciador, para somar aos dados que observa em função do dizer na

enunciação. Dessa maneira, como veremos na análise presente no Capítulo III, a

construção do ethos de Pinóquio realizada na leitura da obra vai surgindo à medida

que se percebe uma relação aos discursos pedagógico e literário.

Para o Maingueneau (1995), a noção de ethos articula-se às cenas da

enunciação, como se pode verificar a seguir.

2.2 Cenas enunciativas: do tipo de discurso aos índices textuais

O discurso não é originário de um único sujeito, mas de outras vozes,

outras falas que atravessam o acontecimento de linguagem, que é a enunciação,

responsável pelo funcionamento discursivo e pelo surgimento do enunciado.

A noção de cena de enunciação, de acordo com Maingueneau (2009),

pode ser dividida em três partes: englobante, genérica e cenografia.

46

A cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso. Está

relacionada ao tempo e ao espaço, pois advém da necessidade da sociedade. Para

exemplificarmos poderíamos falar sobre o discurso filosófico, o poético, o político, o

publicitário, o pedagógico, o literário, entre outros. Essa cena não é suficiente para

explicitar as atividades discursivas nas quais se encontram os sujeitos. Podemos

associar a cena englobante à de tipo de discurso.

A cena genérica corresponde ao gênero do discurso, definindo seus

papéis. Está ligada a uma instituição discursiva, ou seja, é o contrato associado a

um gênero de discurso. O domínio dos gêneros (ou a competência genérica) é

fundamental para a capacidade discursiva, pois permite ao sujeito interpretar

enunciados que são decorrentes de uma formação discursiva. Em síntese, permitem

o conhecimento do tipo e do gênero discursivo.

A cenografia é identificada em variados índices localizáveis no texto, ou

no paratexto2. Não se espera que essa se designe. Mostra-se, por definição, para

além de toda a cena de fala que seja dita no texto. Não é um simples alicerce, uma

maneira de transmitir conteúdos, mas o centro em torno do qual gira a enunciação.

A literatura é entendido como um discurso no qual a identidade se constitui por meio

da negociação de seu próprio direito de construir mundo específico mediante certa

cena de fala. Os tipos de cenografia mobilizada dizem obliquamente como as obras

definem sua relação com a sociedade e como se pode, no âmbito dessa sociedade,

legitimar o exercício da fala literária.

Um dos problemas de compreensão da cenografia está justamente em

pensar que essa é um cenário ou um quadro já construído e independente no

interior de um espaço. Muito pelo contrário, a cenografia é constituída à medida que

a enunciação se desenvolve. Trata-se, assim, da cena de fala que o discurso

pressupõe para que possa ser enunciado. Essa cena se apoia na memória coletiva,

com a finalidade de legitimar um enunciado, ao passo que também é legitimada. A

escolha da cenografia é intencional, pois o discurso se desenvolve a partir dessa, no

intuito de conquistar a adesão com a instituição da cena enunciativa, tornando a

mensagem legítima.

2 São elementos que estão para além do texto, ou seja, informações que acompanham a obra e que

contribuem para sua significação e motivação de leitura.

47

Há gêneros que se limitam ao cumprimento de sua cena genérica, como

uma folha de cheque, por exemplo, no entanto, há outros que exigem a escolha de

uma cenografia própria, apesar de se limitarem às regras da cena genérica. Nesses

casos há uma construção no texto e pelo texto. O coenunciador a reconstrói por

meio de vestígios, tais como: conhecimento do gênero discursivo, dos níveis da

língua, do ritmo, da entonação, do estilo e dos conteúdos explícitos.

A dêixis discursiva, ou seja, fenômeno de referenciação, relacionada às

cenas de enunciação, define a coordenada de pessoa/espaço/tempo implicada em

um ato enunciativo. Corresponde ao eu-tu, aqui-agora, que são os elementos

essenciais para a encenação discursiva, é construída pelo enunciador e

coenunciador, pela cronografia (tempo) e pela topografia (espaço). Conforme

Maingueneau (2008, p. 89), “[...] trata-se de estabelecer uma cena e uma cronologia

conformes às restrições da formação discursiva”.

Para melhor compreendê-la aponta-se a seguir alguns conceitos de

dêixis:

a) Pessoal: assinala os papeis dos participantes no ato comunicativo,

permitindo a codificação do referente. É assinalada pelos pronomes

pessoais, possessivos, e pela flexão verbal (primeira, segunda e

terceira pessoa do singular e do plural);

b) Temporal: está ligada ao momento da enunciação, demonstrando o

tempo linguístico e as locuções adverbiais temporais, como agora,

ontem, entre outros exemplos;

c) Espacial: é responsável por indicar o espaço da enunciação,

recorrendo aos advérbios de lugar e aos demonstrativos;

d) Discursiva: uso de determinadas expressões em um enunciado para

lhe fazer referências anteriores ou posteriores;

e) Social: uso de expressões que estabelecem alguma distinção social.

Os pronomes de tratamento e expressões formais representam esse

tipo de dêixis.

48

O constructo da cenografia perpassa pelo processo de referenciação, pois

essa é construída para que o coenunciador perceba as relações que foram

estabelecidas no texto, naquele determinado espaço/tempo.

Nos excertos que serão analisados é possível notar que o discurso

proferido pelo enunciador constrói uma imagem singular que apresenta toda a

narrativa visando à captação do coenunciador, por isso institui cenografias e

discursos em conformidade com os traços e as peculiaridades de cada um.

Imagens projetadas pelas cenas enunciativas se combinam com a

imagem do público leitor e, obviamente, também com as imagens dos sujeitos que

são expostos aos discursos pedagógico e literário: professores, pais e alunos, com

os quais o enunciador deseja dialogar. As palavras são perpassadas pelas palavras

do outro, pelo interdiscurso, que o discurso elabora em meio a tantos outros.

No Capítulo III, apresenta-se algumas das análises de excertos da obra

de Collodi.

49

CAPÍTULO 3

3 UMA POSSÍVEL ANÁLISE DO CORPUS

Como dissemos no início, neste trabalho pretende-se analisar o ethos da

personagem Pinóquio, em alguns excertos da obra de Collodi, apontando questões

relativas aos discursos pedagógico e literário.

Nesse contexto, é também nossa intenção observar como algumas

palavras/expressões foram escolhidas pelo enunciador com a finalidade de que o

coenunciador possa construir o ethos de Pinóquio em cada uma das passagens

observadas.

Os três primeiros capítulos do livro apresentam a construção da marionete

por Gepeto. Os capítulos seguintes são responsáveis pelas aventuras do boneco de

madeira na incessante busca de se tornar menino.

Coelho (1991) diz que a história de Pinóquio é um conto maravilhoso,

portanto, atribuí à obra sua cena genérica. O texto de Collodi foi apropriado pelo

imaginário popular, permitindo que a saga fosse recontada, reescrita e recriada de

forma diversificada, incorporando outros gêneros, inclusive. Observando-se a

explicitação de uma condição moral em certas releituras dessa história, notamos que

uma das conclusões que as crianças chegam ao terminar de ler as peripécias da

marionete construída por Gepeto é: se uma pessoa mentir seu nariz pode crescer.

Contudo, no texto original, esse caráter não está muito presente, uma vez que o

crescimento do nariz da personagem acontece apenas duas vezes (nos capítulos

XVII e XXIX), sendo que após a percepção desse fenômeno, o boneco trata de

desmentir os ocorridos. No entanto, esse cunho moralizador é o que mais marca o

inconsciente do leitor, levando o conto a uma condição de fábula por meio dessa

leitura.

Diante da riqueza literária do texto de Collodi, inúmeras questões podem

ser mobilizadas, por isso, a seguir, reflete-se em alguns dos excertos, a fim de

promover a reflexão proposta.

50

O excerto a seguir descreve a fabricação da marionete por Gepeto e vai

apontando as primeiras travessuras do boneco.

De volta a sua casa, Gepeto começa imediatamente a fabricar o seu boneco, que decide chamar de Pinóquio. As primeiras travessuras da Marionete. 1 A casa de Gepeto era um quartinho térreo, que pegava luz apenas

através do vão de uma escada. Os móveis não podiam ser mais simples: uma cadeira ruim, uma cama pouco confortável e uma mesinha toda cheia de defeitos. Na parede fundo, se via uma lareira com o fogo aceso, mas o fogo era pintada, uma panela que fervia ardentemente, expelindo nuvem de vapor de verdade.

2 Logo que chegou em casa, Gepeto pegou as ferramentas e começou a esculpir e fabricar o boneco.

3 – Que nome lhe darei? – disse para si mesmo. Vou chamá-lo de Pinóquio. Este nome lhe trará sorte. Conheci uma família inteira de Pinóquios: Pinóquio, o pai, Pinóquia, a mãe, e Pinóquios, as crianças, e todas viviam muito bem. O mais rico deles pedia esmolas.

4 Quando encontrou o nome para seu boneco, então começou a trabalhar seriamente e lhe fez logo os cabelos, depois a testa, depois os olhos.

5 Feitos os olhos, imaginem a surpresa quando percebeu que eles se moviam e que o olhavam fixamente.

6 Gepeto, sendo examinado por aqueles olhinhos de madeira, sentiu-se constrangido e disse com uma voz brava:

7 – Olhinhos de madeira, por que me fitam? 8 Ninguém respondeu. 9 Então, depois dos olhos, esculpiu o nariz. Mas o nariz, apenas feito,

começou a crescer, e virou em poucos minutos, um narigão que não acabava mais.

10 O pobre Gepeto se extenuava em cortá-lo e recortá-lo, mas quanto mais o cortava e o diminuía, mais aquele nariz impertinente crescia.

11 Depois do nariz, fez a boca. 12 A boca nem estava pronta e começou imediatamente a rir e caçoar

dele. 13 – Pára de rir! – disse Gepeto, irritado. Mas foi o mesmo que falar com

as paredes. 14 – Pára de rir! já disse! – gritou, com voz ameaçadora. 15 Então a boca parou de rir, mas botou toda a língua para fora.

No próprio título do capítulo, há uma ocorrência do local em que a

narração se passará, por meio da expressão, “De volta para casa”. Nesse local, a

casa de Gepeto, velhinho muito alegre, que queria fabricar uma marionete

maravilhosa e que inicia a obra de talhar e dar forma ao pedaço de madeira dado

por Mestre Cereja.

A ansiedade de Gepeto para realizar tal tarefa é marcada pelo advérbio

“imediatamente”. Dessa maneira, o enunciador marca uma posição para que o leitor

perceba o quanto a personagem era desejada. Ainda no título, há uma

nominalização, por meio do substantivo próprio Pinóquio, que aparece de forma

recorrente, pois é catafórica quando o enunciatário percebe seu sentido pela relação

51

que faz com o título da obra. Todavia, anafórica em função das relações que o autor

fará com outras partes do texto, inter-relações que expressarão, inclusive, como o

enunciador construirá o ethos da marionete.

A cenografia construída remete o leitor para uma percepção complexa

das relações que ali serão construídas. O local não era agradável: móveis simples,

uma cadeira ruim, cama pouco confortável, mesinha cheia de defeitos. Realidade e

ficção, de certa forma, fundem-se no jogo do discurso literário proposto pelo

enunciador. O fogo da lareira era pintado (primeiro parágrafo), mesma condição da

panela que estava ao lado. No entanto, a aproximação com a realidade é marcada

pelo verbo no futuro do pretérito “parecia”, ao se referir à nuvem de vapor que saia

da panela, levando o enunciatário a uma percepção de uma construção crível por

meio da ficção. Tal aspecto é recorrente na literatura infantil, que procura trabalhar o

limite entre a ficção e a realidade.

O que já foi anunciado no título do capítulo se evidência tanto no segundo

parágrafo, em relação à ansiedade de Gepeto, que começa a esculpir sua

marionete; quanto ao nome da personagem que o enunciador revela a origem no

terceiro parágrafo, ao afirmar que por ter conhecido uma família de Pinóquios, o

nome traria sorte ao seu boneco. Nesse parágrafo há uma cenografia que faz com

que o enunciador perceba certa contradição no momento em que o substantivo

“esmola” se relaciona ao adjetivo “rico”. A frase “O mais rico deles pedia esmola”,

aponta para uma vida difícil, que remeterá o enunciatário exoforicamente aos

possíveis problemas vividos no contexto em que a obra foi escrita: período de

dificuldades para a maioria da população.

A partir dos próximos parágrafos, Gepeto acelera a criação de sua obra.

Já nesse processo de construção, percebe-se que o boneco de madeira, mesmo

antes de estar pronto, ganha personalidade. Ao fazer os olhos, Gepeto sente-se

constrangido, pois esses ganham vida e já começam a fitá-lo, irritando o esculpidor,

aborrecimento marcado pela adjetivação do substantivo “voz” pela palavra “brava”

(sexto parágrafo).

Antes mesmo de completo, o enunciador constrói o ethos de Pinóquio por

meio da cenografia que é construída. O boneco já tem vida própria desde o pedaço

52

de madeira entregue por Mestre Cereja. Quando Gepeto faz o nariz (nono

parágrafo), há um primeiro conflito, tendo em vista o conhecimento de mundo que o

enunciatário possa ter hoje em relação à leitura que faz dessa obra. Como dito

anteriormente, a história de Collodi teve sua maior repercussão por meio da

adaptação realizada pela Disney que, de certa forma, liga o crescimento do nariz de

Pinóquio à mentira. O nariz cresce demasiadamente, marcado pela palavra “narigão”

(nono parágrafo). Não há alusão, nesse momento, a nenhuma questão relativa à

mentira. No décimo parágrafo Gepeto tenta cortá-lo, mas quanto mais o aparava,

mais esse crescia. Marcado pelo adjetivo “impertinente”, o enunciatário começa a

construir o ethos da personagem pelo que o enunciador vai expondo a respeito da

marionete. No momento em que fez os olhos, pode-se dizer que o boneco era

“observador”, uma referência ao nascimento, pois toda criança, quando vem ao

mundo, começa a observar seu entorno e a interagir com esse.

Antes mesmo de concluir a boca da personagem, essa começa a caçoar

(parágrafo 12), mostrando um ethos de debochado que vai além da figura de mal-

educado, pois depois da ameaça de Gepeto (parágrafo 14), o boneco para de rir,

fecha a boca, no entanto, coloca toda a língua para fora (parágrafo 15).

O enunciador direciona a narrativa pelas escolhas que realiza,

possibilitando ao coenunciador a construção de um ethos irônico e insolente.

Em outro excerto deste mesmo capítulo temos:

1 Diante daquele comportamento insolente e irônico, Gepeto ficou triste e melancólico, como nunca tinha ficado em toda a sua vida, e, dirigindo-se a Pinóquio, lhe disse:

2 – Filho mais arteiro! Ainda nem está pronto e já começa a faltar respeito com seu pai! Isso é mau, meu menino, muito mau!

[...] 3 Quando Gepeto acabou de fazer-lhe os pés, recebeu um pontapé na

ponta do nariz.

Observa-se, nesse trecho, como a construção do ethos contribui para

moldar e avalizar modelos de comportamento. Nessa perspectiva, compreende-se

melhor a eficácia do discurso das obras literárias, sua capacidade de apresentar as

ideias mediante um modo de dizer que remete a uma forma de ser, ou o imaginário

de uma vivência. Assim, o ethos de desrespeitoso, de insolente e irônico aparece na

narrativa, apontando para a personagem em um determinado espaço cenográfico.

53

O excerto acima chama, também, para o juízo de valor que Gepeto faz de

Pinóquio, devido à postura que a sua criação toma em relação ao seu criador. Pode-

se dizer que tal trecho reforça o discurso pedagógico que se deseja mostrar às

crianças em relação ao mau comportamento, da marionete.

Ao mostrar a tristeza pela falta de respeito no primeiro parágrafo,

melancólico, Gepeto usa o adjetivo “arteiro” para mostrar o que sente em relação ao

que Pinóquio fez, lembrando que tudo aconteceu antes mesmo de o boneco estar

pronto. Gepeto diz “isso é mau”, mas assume sua paternidade, “meu menino”, no

entanto, não deixa de intensificar o que sente ao enfatizar “muito mau”.

A maldade do boneco vai além do que se espera, inclusive, quando

Gepeto faz seus pés, pois de imediato o artesão leva um pontapé na ponta do nariz

(terceiro parágrafo).

Dessa forma, Collodi vai propondo a relação entre o que seria um bom e

um mau comportamento como propósito contextual de mostrar às crianças uma

realidade social específica.

O excerto a seguir, ainda do terceiro capítulo, apresenta um

acontecimento em que Pinóquio, ao ter as pernas construídas, corre pelo quarto e

alcança a porta, saindo rapidamente para a rua, saltando como uma lebre, fazendo

com que Gepeto, da mesma sorte, corra atrás da marionete até, em determinado

momento, encontrar um policial. Segue o excerto:

1 O policial, sem se mexer um centímetro, pegou-o facilmente pelo nariz [...] e o devolveu às mãos de Gepeto, que, para dar-lhe uma lição, queria logo puxar as orelhas. Mas imaginem como ficou quando, ao procurar as orelhas, não conseguiu encontrá-las. E sabem por quê? Porque na pressa de esculpir o boneco, havia esquecido de fazê-las

[...] 2 – Vamos para a casa. Quando estivermos lá, não duvide que vamos

acertar as contas, viu, rapazinho? 3 Pinóquio ao ouvir essas palavras atirou-se no chão e não quis

caminhar [...] 4 – Pobre boneco! – diziam alguns – Tem razão em não querer ir para

casa! [...] 5 – Esse Gepeto parece um homem gentil, mas é um verdadeiro tirano

com os meninos! [...] 6 Em suma tanto falaram e tanto fizeram, que o policial libertou Pinóquio

e levou para a cadeia o pobre Gepeto

54

[...] 7 – Filho desnaturado! E pensar que eu queria tanto fazer um boneco

bondoso! Mas a culpa é toda minha! Devia ter pensado nisso antes!

Ao perceber que o boneco estava correndo e que Gepeto o perseguia, o

policial agarra Pinóquio pelo nariz. Gepeto quis dar uma lição em Pinóquio. Aqui o

enunciador remete o coenunciador a buscar uma informação exofórica por meio da

memória discursiva, no sentido de que “puxar a orelha” era uma forma de

repreensão para as crianças (primeiro parágrafo). No entanto, a personagem não

tinha orelhas, pois Gepeto tendo pressa em esculpir a marionete, acabou

esquecendo tais detalhes, o que não o impedia de ouvir, pois no terceiro parágrafo o

verbo “ouvir” está presente em sua forma nominal. Após escutar que teria de ajustar

contas, o enunciador cria para Pinóquio um ethos de dissimulado, pois o boneco se

atira ao chão, recusando-se a caminhar.

No quarto parágrafo as outras personagens que observam a situação

criam uma imagem de que o fantoche está sofrendo nas mãos de uma pessoa vil.

Tal aspecto é reforçado pelo substantivo “tirano” e intensificado pelo adjetivo

“verdadeiro”. Há consequências na dissimulação de Pinóquio, que, de tão bem

realizada, garantiu sua soltura ao mesmo tempo em que provocou a prisão de

Gepeto. Além de dissimulado, a marionete tornou-se “filho”, no entanto um rebento

desnaturado, conforme pode se observar no sétimo parágrafo.

Por meio desses conflitos entre os posicionamentos, percebe-se a

construção do ethos em relação à personagem Pinóquio. A tristeza e a expressão

final de Gepeto, marcada pela expressão “filho desnaturado”, caracteriza bem o tom

de uma fala decepcionada, triste, desacreditada e culpada do artesão, reforçando

ainda o ethos violento da personagem Pinóquio.

O capítulo IV é um dos que mais chamam a atenção na obra quando se

se compara o original à adaptação realizada pela Disney, pois nesse episódio figura

uma personagem amplamente conhecida pelo público atual: o Grilo Falante. Na

versão adaptada esse representaria a consciência que acompanha Pinóquio em sua

trajetória. No entanto, na obra de Collodi, o Grilo é a voz da correção, amplamente

carregada no discurso pedagógico, daquele que quer ensinar e que detém o

conhecimento do que é bom e do que é mau.

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Já no título do capítulo o ethos de menino mau é corporificado: “A história

de Pinóquio com o Grilo Falante, em que se vê como os meninos maus não gostam

de ser repreendidos por quem sabe mais do que eles”.

Há nesse título uma comparação como figura de linguagem, pois

apresenta Pinóquio em relação aos meninos maus. O enunciador usa o discurso

pedagógico para ensinar a diferença entre crianças boas e más. Afirma que os

meninos maus não gostam de ser repreendidos, levando seu interlocutor a pensar

que a repreensão é boa e só os bons a aceitam.

No trecho abaixo, podemos observar algumas questões importantes:

1 Então meninos, enquanto o pobre Gepeto era levado para a prisão sem ter nenhuma culpa aquele impertinente do Pinóquio, que ficou livre das garras do policial, corria pelos campos para chegar logo em casa. E na fúria da corrida saltava barrancos altíssimos, espinheiros e fossos cheios de água, exatamente como teria feito um cabrito ou uma lebre sendo perseguidos por caçadores. Chegando em casa, encontrou a porta entreaberta. Empurrou-a, entrou e, assim que a havia fechado, sentou-se no chão, soltando um grande suspiro aliviado.

2 Mas o seu alívio durou pouco, porque ouviu no quarto alguém fazia: 3 – Cri-cri-cri! 4 – Quem é que me chama? – disse Pinóquio todo assustado. 5 – Sou eu! 6 Pinóquio virou-se e deu de cara com um grande grilo que subia

lentamente pela parede. 7 – Me diga, Grilo: quem é você? 8 – Eu sou o Grilo Falante e vivo neste quarto há mais de cem anos. 9 – Hoje, porém, este quarto será meu – disse a marionete – E, faça-me

um favor, vá-se embora sem mesmo olhar para trás. 10 – Eu não vou embora daqui – respondeu o Grilo – sem antes lhe dizer

uma grande verdade. 11 – Me diga, mas ande logo. 12 – Ai dos meninos que se revoltam contra seus pais e que fogem de

casa por puro capricho! Nunca serão felizes neste mundo, e mais cedo ou mais tarde se arrependerão amargamente.

13 – Pode cantar caro Grilo, como quiser e como preferir. Mas eu sei que, amanhã bem cedinho, quero ir embora daqui, porque se fico aqui, acontecerá comigo aquilo que acontece com todos os outros meninos, quer dizer, me mandarão para a escola e, querendo ou não, terei de estudar. E, para ser bem sincero, eu não tenho nenhuma vontade de estudar. Me divirto mais correndo atrás das borboletas ou subindo nas árvores para pegar os passarinhos nos ninhos.

14 – Pobre tolinho! Mas você não sabe que, fazendo assim, se tornará um homem ignorante, de quem todos vão rir?

15 – Fique quieto, Grilo agourento! Gritou Pinóquio. Mas o Grilo, que era paciente e filósofo, em vez de ficar ofendido com essa impertinência, continuou com o mesmo tom de voz:

16 – Se você não gosta de ir à escola, por que não aprende ao menos uma profissão com a qual possa ganhar honestamente um pedaço de pão?

17 – Quer saber por quê? – respondeu Pinóquio, que começava a perder a paciência. – Porque de todos os ofícios do mundo, tem apenas um que me agrada.

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18 – E qual seria? 19 – Aquele de comer, beber, dormir, me divertir e vagabundear o dia

todo. 20 – Para a sua informação – disse o Grilo Falante com a sua mesma

calma –, todos aqueles que fazem isso acabam indo para o hospital ou para a prisão.

21 – Se cuide, Grilo agourento! Se me irrito, ai de você! 22 – Pobre Pinóquio! Tenho pena de você! 23 – Por que tem pena de mim? 24 – Porque você é uma marionete e, pior ainda, porque você tem a

cabeça de madeira. 25 Com essas últimas palavras, Pinóquio saltou furioso e pegou sobre o

balcão um martelo de madeira, que atirou contra o Grilo Falante. Talvez nem tivesse a intenção de machucá-lo, mas infelizmente acertou em cheio na cabeça. O pobre Grilo teve fôlego apenas para fazer cri-cri-cri, e depois ficou ali, amassado contra a parede.

Já no primeiro parágrafo, percebe-se com clareza que Pinóquio não teve

nenhuma preocupação com a prisão de Gepeto, fixado pelo enunciador com mais

um aspecto que possibilita perceber a imagem do boneco, ou seja, marcado nesse

parágrafo pelo adjetivo “impertinente”.

Pinóquio correu e voltou para casa, aliviado, no entanto, o conforto durou

pouco, pois ouviu “alguém” que fazia “cri-cri-cri”. O uso do pronome indefinido

“alguém” personifica o personagem que será apresentado, nessa posição catafórica

o pronome remete o leitor para a continuidade do texto, ainda que a personagem

apenas se apresente adiante, no oitavo parágrafo.

Ao se expor, o “grande” grilo mostra sua longevidade naquele lugar,

dizendo que vivia ali há mais de cem anos. Essa expressão remete o coenunciador a

uma imagem exofórica de experiência, pois pessoas mais velhas passaram por mais

experiências e, portanto, devem saber mais.

Novamente mostrado por meio de um ethos de arrogância, Pinóquio

assegura-se de apresentar-se como proprietário do quarto e solicita que o Grilo vá

embora.

Nesse momento percebe-se o discurso pedagógico no dizer do grilo, que

remete às questões que profere como expressão da verdade (décimo parágrafo).

Introduz, como fosse um mandamento bíblico, tal verdade ao dizer: “– Ai dos

meninos que se revoltam contra seus pais e que fogem de casa por puro capricho

[...]”, seguido da devida punição: “[...] Nunca serão felizes neste mundo, e mais cedo

ou mais tarde se arrependerão amargamente”.

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Nesse capítulo, a instituição escola surge como um lugar ruim para os

maus garotos. Pinóquio, ao contestar o discurso do Grilo, afirma que não ficará ali,

pois se o fizer será mandado para escola e querendo ou não terá de estudar,

mostrando claramente sua aversão pelo estudo. Dessa maneira, o enunciador lança

mão dessa questão para mostrar ao coenunciador que ir à escola é algo que os

bons meninos fazem com naturalidade.

A forma de recreação apontada por Pinóquio no parágrafo 13 (correr atrás

de borboletas e subir em árvores) é colocada como algo ruim, pois está diretamente

ligada à questão da ignorância, sustentada no parágrafo 14.

Há outra questão que salta aos olhos nesse capítulo: a dicotomia entre

estudo e trabalho, dado que, no parágrafo 16, o Grilo sacramenta: “Se você não

gosta de ir à escola, por que não aprende ao menos uma profissão com a qual

possa ganhar honestamente um pedaço de pão?”

Tais considerações vão apontando para a construção de um ethos de

impaciente para Pinóquio, pois começa a se irritar com o Grilo.

Mostrando, mais uma vez, características que Pinóquio se apraz, o

enunciador busca verbos como: “comer”, “beber”, “dormir”, “divertir”, “vagabundear”

(parágrafo 19), todos na voz da marionete, para exemplificar o seu descaso em

relação ao que o Grilo dizia.

A irritação da personagem chega a tal ponto que ameaça o Grilo Falante

no parágrafo 21: “Se cuide, Grilo agourento! Se me irrito, ai de você!”

Uma das questões que podem deixar os leitores da obra de Collodi

perplexos é que, devido às versões dessa história, raros são os que conhecem o

verdadeiro fim do Grilo Falante. Estamos ainda no capítulo IV, no qual o ethos

violento e ingrato da personagem é reafirmado com uma atitude extrema: sem

pensar, Pinóquio mata o Grilo Falante, mostrando as consequências do “agir” por

impulso, dado que mesmo sem intenção, acaba por jogar o martelo sobre o outro

personagem, acertando-o fatalmente na cabeça (parágrafo 25).

Como são inúmeras as peripécias do Pinóquio no texto de Collodi, far-se-

á um salto para o capítulo XVII, com a finalidade de mostrar que, com o avançar da

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obra, constrói-se paulatinamente a transformação de boneco de madeira para

menino, desejo tão intrínseco à personagem.

O título do capitulo é: “Pinóquio come o açúcar, mas não quer tomar

remédio. Porém, quando vê os coveiros que vêm buscá-lo, então aceita tomar

remédio. Depois, diz uma mentira e, como castigo, o seu nariz cresce”.

De certa forma, ao colocar os títulos na obra, o autor/enunciador procura

preparar o leitor para questões que serão discutidas em cada divisão do livro. No

caminhar da personagem, vê-se sua transformação cada vez mais intensificada. O

boneco fica doente, pois terá de tomar o remédio que, no início do título, é

identificada a recusa pela expressão “não quer”, embora posteriormente Pinóquio

seja convencido pela presença do substantivo “coveiros”, aqui empregado de forma

metafórica para representar “a morte”. O título nos remete ainda para o que já

estava no imaginário coletivo: que o nariz de madeira passará a crescer devido à

mentira, apesar desse fenômeno já ter se manifestado anteriormente, no momento

em que Gepeto fazia o nariz da marionete.

O capítulo XVII começa da seguinte forma:

1 Assim que os três médicos saíram do quarto, a Fada se aproximou de Pinóquio e, depois de tocar-lhe a testa, notou que estava com febre altíssima.

2 Então derreteu um certo pozinho branco num copo de água e, dando para ele, disse docemente:

3 – Beba, e em poucos dias você estará curado. 4 Pinóquio olhou para o copo, torceu a boca levemente e logo depois

perguntou com voz lamuriosa: 5 – É doce ou amargo? 6 – É amargo, mas lhe fará bem. 7 – Se é amargo, eu não quero. 8 – Acredita em mim beba. 9 – Eu não gosto de coisas amargas. 10 – Beba, e quando tiver bebido, lhe darei uma bolinha de açucareiro de

ouro. 11 – Antes quero a bolinha de açúcar, depois bebo aquela água amarga. 12 – Você me promete? 13 – Sim... 14 A fada lhe deu a bolinha, e Pinóquio, depois de mastigá-la e engoli-la

em dois segundo, disse lambendo os beiços: 15 – Que maravilha seria se o açúcar também fosse um remédio!... Eu me

trataria todos os dias. 16 – Agora mantenha a sua palavra e beba essas poucas gotinhas de

água que lhe devolverão a saúde. 17 Pinóquio pegou o copo com má vontade na mão e enfiou nele a ponta

do nariz. Depois aproximou a boca, depois voltou a enfiar a ponta do nariz. Finalmente disse:

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18 – É amarga demais! Amarga demais! Eu não posso beber. 19 – Como você pode dizer isso se nem experimentou? 20 – Eu imagino! Senti pelo cheiro. Quero antes uma outra bolinha de

açúcar...

Esse capítulo apresenta Pinóquio sendo tratado por médicos. Para

contextualizar, faz-se importante dizer que os capítulos XV e XVI narram a

perseguição que alguns assassinos fazem a Pinóquio, enforcando-o em um galho de

carvalho. No capítulo XVI, a personagem conhece uma fada que o ajuda a sair da

forca e encontra três médicos: um corvo, uma coruja e um grilo falante, que passam

a falar sobre o boneco.

Em seguida, no capítulo XVII, há uma interação entre a Fada e Pinóquio.

No início, ao perceber que o boneco padecia de febre alta, procura dar-lhe um

remédio, derretendo certo pozinho branco (segundo parágrafo) em um copo com

água. Apesar da referência exofórica que pode provocar no leitor o fato do pozinho

branco ser açúcar, essa perspectiva é quebrada pela enunciação da Fada ao dizer,

no sexto parágrafo, que se tratava de remédio amargo.

A partir desse momento, o enunciador leva o enunciatário a uma

percepção do que as crianças fazem para tomar remédio: tornam-se manhosas e

extremamente carentes. Nesse contexto, o remédio aparece com um sentido de

“coisa ruim”, por meio do adjetivo “amargo”, causando na personagem certo repúdio,

marcado pela expressão “não quero”, no sétimo parágrafo.

Inicia-se então uma negociação recorrente no universo infantil: a

barganha para que tome o remédio.

Tal troca é marcada pelo pedido de Pinóquio, que deseja a “bolinha de

açúcar” (parágrafo 11), cujo advérbio de tempo “antes” marca a proposição de se

atender aquilo que a fada enseja, desde que o enfermo possa experimentar primeiro

o que sai de um açucareiro de ouro. A presença do adjetivo “ouro” denota que a

bolinha de açúcar é apresentada pelo enunciador como uma preciosidade, diferente

do remédio que curaria o mal da personagem.

Nas sucessivas tentativas da Fada, Pinóquio vai arrumando desculpas

para evitar o remédio, que mais tarde toma avidamente, quando percebe que

morreria se não o fizesse.

60

O excerto continua mostrando as relações da criança com o adulto que,

por meio de um discurso pedagógico, vai informando e ensinando qual a melhor

forma de se avaliar determinadas posições.

Finalmente salta-se para o final do capítulo XXXVI, que trata da

transformação final.

Passando por tantas agruras e situações difíceis, ouvindo inúmeros

personagens durante a história, Pinóquio começa a sentir emoções que lhe

conduzem à condição de bondade marcada ideologicamente pela sociedade.

É por meio dessa experiência de mudança de personalidade que o

enunciador agora apresenta uma marionete que vai se transformando em menino e

que, para tanto, é constituída de um novo ethos.

A cenografia é construída observando-se os detalhes que marcam a

mudança de personalidade, apontada já no primeiro parágrafo com a expressão “seu

bom coração”, o que desenrola uma série de ações que culminam na transformação

do boneco de madeira em menino. Já marcada no próprio título do capítulo, que diz:

“Finalmente Pinóquio deixa de ser uma marionete e vira um menino”, poder-se-ia

inferir que, com um coração bondoso, o caminho de Pinóquio seria diferente, a ponto

de não ser mais comandado por ações negativas. O sonho que tivera finalmente se

transformaria em realidade. Observemos o seguinte excerto:

1 – Muito bem, Pinóquio! Graças a seu bom coração, eu lhe perdôo por todas as molequices que você fez até hoje. Os meninos que cuidam amorosamente dos próprios pais na sua miséria e nas enfermidades merecem sempre muito reconhecimento e muito afeto, mesmo se não podem ser citados como modelo de obediência e de bom comportamento. Seja ajuizado no futuro e será feliz.

2 Nesse momento, o sonho acabou, e Pinóquio acordou com os olhos arregalados.

3 Agora imaginem a sua surpresa quando, acordando, percebeu que não era mais uma marionete de madeira, mas, em vez disso, havia se transformado em um menino como todos os outros. Deu uma olhada ao seu redor e, em vez das paredes de palha da cabana, viu um lindo quartinho mobiliado e ajeitado com uma simplicidade quase elegante. Pulando da cama encontrou preparada uma linda roupinha nova, um boné novo e um par de botinhas de couro que eram tão lindas que pareciam pintura.

4 Assim que se vestiu, colocou naturalmente as mãos nos bolsos e encontrou um pequeno porta-moedas feito de marfim, sobre o qual estavam escritas as seguintes palavras: “A Fada dos cabelos azuis devolve ao meu querido Pinóquio as quarentas moedas e lhe agradece muito pelo seu bom coração.” Aberta a porta – moedas, em vez de

61

quarenta moedinhas, brilhavam ali quarenta moedas de ouro novinhas, novinhas.

5 Depois foi se olhar no espelho, e lhe pareceu ser outro. Não viu mais refletida a mesma imagem da marionete de madeira, mas, sim, a imagem ágil e inteligente de um lindo menino de cabelos castanhos e olhos azuis, com um ar alegre e festivo.

6 Em meio a todas essas maravilhas que aconteciam uma depois da outra, Pinóquio não conseguia saber se era tudo verdade ou se estava sonhando com os olhos abertos.

7 – E o meu pai, onde está? – gritou de repente. 8 E, entrando no quarto ao lado, encontrou o velho Gepeto sadio,

animado e de bom humor, como nos velhos tempos, e ele havia inclusive retomado a sua profissão de carpinteiro e estava justamente desenhando uma belíssima moldura cheia de folhas, flores e cabecinhas de diversos animais.

9 – Mate uma curiosidade minha, paizinho: como é que se explicam todas as mudanças de repente? – perguntou Pinóquio pulando no seu colo e lhe cobrindo de beijos.

10 – Essas mudanças na casa são todas de mérito seu – disse Gepeto. 11 – Por que mérito meu? 12 – Porque, quando meninos maus se tornam bons, tem virtude de fazer

com que também aqueles da família tenham um aspecto mais alegre e sorridente.

13 – E o velho Pinóquio de madeira, onde será que se escondeu? 14 – Ele está lá – respondeu Gepeto, que lhe apontou uma grande

marionete apoiada na cadeira, com a cabeça virada para um lado, os braços caídos e as pernas cruzadas e dobradas, de um jeito que parecia um milagre se ainda ficasse em pé.

15 Pinóquio virou-se e ficou olhando-a. E depois de olhá-la por um bom tempo, disse para si mesmo com uma enorme complacência:

16 – Como eu era engraçado quando eu era uma marionete! E como agora eu estou contente por ter me tornado um bom menino!

A transformação perpassou por uma tomada de consciência. Todo ethos

mostrado pelo enunciador durante a trajetória agora dá lugar a um de “bondade”, de

“compreensão” e de percepção da importância que outras pessoas têm. Essa nova

singularidade provoca até a mudança do espaço em que vive, pois o quartinho

rústico e feio do início, torna-se um espaço mobiliado e ajeitado com uma

simplicidade quase elegante (terceiro parágrafo).

Surge um ethos não mais de marionete, mas de menino transformado,

bom, inteligente, elegante, festivo (quinto parágrafo). O tratamento mal-educado que

era dispensado a Gepeto agora dá lugar a uma relação carinhosa, marcada pelo

vocativo “paizinho” no nono parágrafo, seguido da ação frisada pela oração “[...]

pulando no seu colo e lhe cobrindo de beijos.”

Portanto, as ideias de ethos, cenografia, discursos pedagógico e literário

puderam ser observadas nos excertos analisados, relacionados à adesão do sujeito

coenunciador ao discurso proferido. Nesse sentido, o ethos opera como um meio

62

pelo qual os enunciadores oferecem aos coenunciadores pistas a partir das quais se

torna possível formar uma imagem do sujeito.

Em Pinóquio, Collodi aponta para críticas que desejava fazer da

sociedade, tais como a pobreza, a fome, a desobediência, a mentira, a prepotência

e, no meio de todas essas questões de caráter negativo, aparece a importância da

educação, marcada por um discurso pedagógico claro, como possibilidade de

superação.

À medida que a marionete vai se formando, detalhes de sua nova

concepção vão surgindo. O boneco, já com características de sujeito próprio, passa

a se chamar Pinóquio e, desde o início da sua constituição, podem-se observar

algumas de suas características, tais como as travessuras, a ingratidão e a violência,

que posteriormente dão lugar ao afeto, carinho e amor.

63

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho foi realizada uma análise de excertos da obra

literária As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi (2002), em sua versão para o

idioma português, traduzida por Carolina Cimenti.

Pode-se dizer que toda atividade comunicativa entre interlocutores produz

diversos sentidos, que se constrói na interação entre os falantes. O enunciador em

interação com seu coenunciador situa-se em determinado tempo histórico, espaço

geográfico, valores e crenças culturais, enfim, em uma ideologia que é veiculada nos

diversos discursos proferidos. Ainda, pode-se constatar que o discurso é algo que

ultrapassa o nível puramente gramatical e linguístico, por ser produzido por um

sujeito em interação com outros. A obra de Collodi, ligada ao seu contexto sócio-

histórico-cultural, apresenta valores que faziam e fazem parte da sociedade como

um todo.

Fica clara a percepção no discurso literário de outro discurso que o

atravessa – o pedagógico. A todo momento observa-se que algum personagem

procura ensinar algo a Pinóquio que, de início, apresenta um ethos incompatível

com os valores sociais e que, por meio da aprendizagem e de suas passagens por

diversas circunstâncias da vida, percebe sua natureza. Assim, pelo desejo de se

tornar um humano, passa por uma espécie de metamorfose marcada pela alteração

de seu ethos. Collodi, a partir da metáfora do pedaço de madeira que,

preliminarmente, consegue ter forma esculpida por Gepeto, constrói pela

aprendizagem uma nova vida, essa dentro dos padrões sociais.

Por meio da complexa cenografia criada mediante a intersecção de duas

cenas englobantes é possível perceber os discursos literário e pedagógico.

Como analisar então se um discurso está ligado diretamente ao olhar do

leitor/coenunciador? Por certo outras pessoas poderão construir novos sentidos dos

que aqui foram apontados, inúmeras passagens poderiam ser analisadas e outras

questões certamente emergiriam. Dessa maneira, concreto é que outros trabalhos

podem ser realizados a partir dessa obra, que instiga os universos literário e

pedagógico.

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Observar e rememorar a experiência com o texto literário pode também

marcar as possibilidades de ampliação que se pode dar à leitura. Essa traz à tona

memórias, cujas experiências permitiram falar da história e de (inter)ações que

concretizaram o fazer literário, docente e discente, retomando questões que

comumente passam despercebidas.

Essa obra literária, ainda desconhecida por uma quantidade significativa

de leitores, suscitou inéditos olhares sobre antigos temas que, por certo, continuarão

sendo abordados tanto na literatura quanto no espaço escolar.

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