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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS CEILÂNDIA, QUILOMBO DOS CANTARES: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA ANA CAROLINA DE SOUZA SILVA 2017

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS

CLÁSSICAS

CEILÂNDIA, QUILOMBO DOS CANTARES: UMA PROPOSTA

METODOLÓGICA

ANA CAROLINA DE SOUZA SILVA

2017

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CEILÂNDIA, QUILOMBO DOS CANTARES: UMA PROPOSTA

METODOLÓGICA

ANA CAROLINA DE SOUZA SILVA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

curso de Graduação em Português do Brasil como

Segunda Língua como requisito básico para a

conclusão de curso.

Orientadora: Enilde Faulstich.

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Ao povo ceilandense.

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AGRADECIMENTOS

Chegou a hora de agradecer àqueles que me ajudaram nesse corre. A participação

de cada um foi muito significativa, pois agregaram, consideravelmente, na travessia que

me levou aos resultados desse trabalho.

Agradeço ao Divino por me dar forças diariamente nesse processo. Ao meu filho

Jorge, guerreiro que me motivou com o olhar menino e o sorriso doce de criança; nunca

deixou que se apagasse em mim o nervo da vida. A minha mãe, outra guerreira e melhor

amiga; são insuficientes as palavras de gratidão a você, minha querida, que apoiou e

acreditou em meu trabalho. Agradeço a minha vó e aos irmãos queridos que conviveram

com tantas emoções. Amo vocês, minha família.

Aos meus prezados alunos, gratidão eterna. Meus amados, tornarei a ensaiar com

vocês as possibilidades de se viver melhor nessa cidade. Gratidão por serem iluminados

como são, vocês são inspiradores. Ao vice-diretor que tão bem me atendeu na escola,

acreditou em meu trabalho e incentivou-me até o fim.

A minha saudosíssima e sublime orientadora, Enilde Fausltich. Foste aquela que

me concedeu a liberdade de pesquisar com amor. Ao meu generoso, digno e amigo, Saulo

Nepomuceno, gratidão pelas orientações, recomendações e diálogos sinceros que

tivemos. Leonardo Ortegal, gratidão pelas referências. Aos amigos companheiros nesse

processo de criação, Gabriel Azevedo, Paula Rodrigues e Rebeka Aguiar; foi ótimo

compartilhar todas as emoções sentidas com vocês, grata pela humanidade que

transparecem.

Aos integrantes do SDR, em especial, Nego Beto; você é raro, cara. Gratidão aos

colegas do Sarau V.A., pois vocês muito me inspiram. À musa, Karina Biondi; embora

não saiba, é para mim uma grande professora, pois mostrou, com seus passos, a

possibilidade de percorrer esta vereda.

Nada disso aconteceria se não fosse minha casa, a Ceilândia. À população

ceilandense, gratidão. Vocês são minha maior inspiração, minha referência de vida. Amo

tua simplicidade, humildade e personalidade, meu povo.

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RESUMO

A proposta do presente ensaio foi desenvolvida no Centro de Estudos Lexicais e

Terminológicos (Centro Lexterm) da Universidade de Brasília. Este trabalho relata a

experiência vivenciada em uma escola de Ensino Fundamental II da Ceilândia Sul – DF.

A região administrativa apresenta diversas problemáticas de ordem social; portanto,

procuro reunir obras de cantores de rap que, a fim de combater as dificuldades da cidade,

relacionam a Ceilândia a um quilombo. Dessa forma, também esclareço as concepções

presentes na história e na contemporaneidade acerca do quilombo. Para a realização desta

pesquisa etnográfica, foram realizadas entrevistas em campo e foi desenvolvido um

projeto na escola intitulado “Ceilândia, quilombo dos cantares”, com o propósito de

desenvolver uma metodologia de ensino de língua voltada a alunos do 6º ano que se

encontram em situação de vulnerabilidade e atraso escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Ceilândia, educação linguística, quilombo, rap.

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ABSTRACT

The purpose of this essay was developed at the Center for Terminological and Lexical

Studies (LexTerm Center), at the University of Brasília. This project reports an

experience lived in a primary school of Ceilândia Sul - DF. The administrative region

presents several social problems; therefore, I try to gather songs from rappers who, in

order to combat the difficulties of the city, relate Ceilândia to a quilombo. In this way, I

also clarify the conceptions present in history and contemporaneity about the quilombo.

In order to execute this ethnographic research, interviews were conducted in the field and

a project (entitled "Ceilândia, quilombo dos cantares") was developed at the school, with

the purpose of developing a methodology of language teaching directed to students of the

6th grade who are in vulnerability situation and backwardness scholar situation.

KEY WORDS: Ceilândia, linguistic education, quilombo, rap.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 8

I ..................................................................................................................................... 8

II .................................................................................................................................. 10

III ................................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1. Novos quilombos, velhas doutrinas ...................................................15

I ................................................................................................................................... 15

II .................................................................................................................................. 21

III ................................................................................................................................ 22

CAPÍTULO 2. Linguística aquilombada: da importância dos estudos funcionalistas

na favela ......................................................................................................................... 25

I ................................................................................................................................... 25

II .................................................................................................................................. 25

III ................................................................................................................................ 27

IV ................................................................................................................................ 29

V .................................................................................................................................. 30

CAPÍTULO 3. Métodos e experiências .......................................................................35

I ................................................................................................................................... 35

II .................................................................................................................................. 36

III ................................................................................................................................ 39

IV ................................................................................................................................ 41

V .................................................................................................................................. 44

CAPÍTULO 4. “Ceilândia, quilombo dos cantares”: um breve relato .................... 47

I ................................................................................................................................... 47

II .................................................................................................................................. 47

III ................................................................................................................................ 49

CONSIDERAÇÕES ..................................................................................................... 52

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 55

GLOSSÁRIO ............................................................................................................... 58

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INTRODUÇÃO

I

As ruas da Ceilândia são vivas. Por todos os lugares que passo, observo a movimentação

de crianças, idosos, adultos, trabalhadores, cachorros; os gritos, buzinas, conversas e risos.

Também, eventuais tiros. Essa metrópole é abastecedora de um grande número de

trabalhadores; move-se majoritariamente pelo comércio e hoje está no Grupo 3 dentro dos 5

grupos de Regiões Administrativas, divididos segundo as faixas de renda per capita mensal (1,2

SM)1. Apesar de estar em vantagem – comparada a demais regiões como Samambaia, Estrutural

e Itapoã -, a cidade ainda passa por mazelas sócio estruturais. Esses fatores são perceptíveis a

partir da história da composição da cidade e, também, na fala dos ceilandenses.

Subindo as quadras da Ceilândia Sul em direção a instituição que atende alunos do

Ensino Fundamental, vejo áreas mal estruturadas, abandonadas, tomadas pelo matagal; o tráfico

que acontece livremente enquanto crianças seguem para as escolas. Na porta, percebo a agitação

dos estudantes e, do outro lado da rua, o típico grupo de bikes - são meninos que não compõem

o corpo estudantil, mas sempre colam2 em frente à escola rotineiramente. Trocam ideia3 com

as meninas, alguns alunos também colam com o grupo antes da entrada – penso que por

questões de status. Reconheço-os como típicos – e eis uma informação importante nessa

pesquisa - pois eu estudara nessa mesma escola quando menina. As faces se atualizam, mas já

se tornara cultural o encontro dos jovens na porta da escola.

Entro, procuro o vice-diretor. É meu primeiro dia e mal posso esperar para conhecer

meu público alvo. A escolha não fora ocasional; pedi que me indicasse a turma mais

problemática. Os alunos, em geral, estão em atraso escolar, apresentam problemas sociais

externos à escola, problemas que refletem no desenvolvimento escolástico. O vice-diretor me

acompanha, apresenta-me aos alunos e eles, indiferentes, não dão muita ideia4 para meu

1 Codeplan: Indicadores de Desigualdade Social no Distrito Federal, 2007. Disponível em

<http://www.codeplan.df.gov.br/images/CODEPLAN/PDF/pesquisa_socioeconomica/demografia/Demografia_e

m_Foco_1_Indicadores_de_Desigualdade_Social_no_Distrito_Federal.pdf>. Acesso em 27/03/2017. 2 COLAR: Frequentar; visitar.

Palavras grafadas em negrito referem-se a termos locais. Eles foram reunidos em glossário. 3 TROCAR IDEIA: Conversar; papear. 4 DAR IDEIA: Prestar atenção.

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projeto e proposta. Posso entender o porquê de a professora regente ceder tão tranquila e

rapidamente as aulas; ela agradecera por isso.

Foi necessária muita paciência para, primeiramente, organizá-los em círculo.

Justifiquei: era necessário que olhássemos nos olhos uns dos outros. Falei um pouco de minha

experiência enquanto ceilandense, ex-aluna daquela escola, assim como minha trajetória

escolar e acadêmica. Atentei-os da importância dos estudos e o quanto poderiam conseguir com

isso. Muito dispersos ainda, desobedientes, os alunos não davam atenção. Jogavam bolinhas de

papel, ofendiam-se (o bullying é algo comum naquela turma) e respondiam uns aos outros com

agressões físicas aos insultos. Com paciência, tentei chamar-lhes a atenção. Primeiramente, eu

os observei. Dei a ideia5, enfatizando que corríamos6 lado a lado7, que estávamos juntos8,

que estivessem ligados9 para isso. Expliquei a importância do português oficial como

instrumento de acesso nos processos oficiais e cotidianos; reforcei que, quanto mais estivessem

ligados, mais teriam regalias como os boy10 têm. Questionei o quanto deveriam aprender sobre

seus direitos e, para minha surpresa, nenhum dos 15 alunos presentes sabiam o que era a

Constituição.

Os alunos relatavam ter histórico criminal, uma aluna disse-me ser mãe. A turma tem,

em média, 14 anos e vários problemas sociais envolvidos.

Apenas no final da primeira aula consegui realizar minha primeira dinâmica: uma

meditação. Com custo, eles fechavam os olhos e então pedi que relembrassem situações ruins,

situações que lhes fizeram sentir-se feridos, magoados e até com ódio. Posteriormente, pedi

para que expusessem esse sentimento com um grito coletivo e muito alto. Gritamos três vezes

e, no final, alguns choraram.

No segundo período, propus que fizessem uma entrevista uns com os outros. Preparei

um questionário que continha as seguintes perguntas:

1. Nome

2. Idade

3. Sexo

4. Cor

5. Estrutura familiar

5 DAR A IDEIA: Orientar; avisar; ensinar. 6 CORRER COM: Acompanhar o outro nas trajetórias; estabelecer parcerias. 7 LADO A LADO: Relação horizontal entre pessoas. 8 ESTAR JUNTO: Ser companheiro, ser amigo; oferecer ajuda/apoio. 9 ESTAR LIGADO: Estar atento. 10 BOY: De “playboy”, aquele que possui boa condição financeira.

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6. Situação financeira (em salários mínimos)

7. O que gostavam de fazer

8. O que não gostavam de fazer

Então, uma briga na sala. Cadeiras voando, palavrões, murros. Entro no meio, separo,

tento entender. Os alunos tremem, suas feições são agressivas, tensas. Converso com um, depois

com o outro. O motivo da briga: provocações e um palavrão que remetia a mãe de um deles.

Boto-os frente a frente para pedirem desculpas. Resistem, mas pedem. Olham nos olhos.

Conversamos pessoalmente. Terminamos. Consigo 11 entrevistas, 5 entrevistados. Uma

redação que mais parece um pedido de socorro, pois a aluna sofre constantemente o bullying.

II

A Ceilândia é a Região Administrativa do Distrito Federal de número IX. Seu nome é

um reflexo de sua história; a sigla C.E.I. significa Campanha de Erradicação de Invasões. A

etimologia da palavra “erradicar” é de origem latina, formada pelo sufixo “EX-” (para fora)

com o radical “RADICARE” (enraizar), logo, desarraigar, arrancar as raízes. Esse nome ilustra

bem as ações políticas de realocação dos construtores do Distrito Federal para as margens, com

um movimento violento de segregação social e espacial. Até hoje a Ceilândia passa por lutas

territoriais. Dentre outras características que determinam sua marginalização, a cidade

apresenta um baixo grau de escolaridade, fator que dificulta o desenvolvimento da cidadania

desses moradores.

Segundo a Constituição Federal de 1988, a educação que é “direito de todos e dever do

Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. No

entanto, a realidade das escolas públicas da Ceilândia mostra o contrário. As crianças não

mostram grande interesse pelas aulas, assim como os professores em ensiná-las. Ademais, as

crianças relatam que as condições de suas famílias são problemáticas e, por isso, realizam seus

corres11, seja abandonando a escola para trabalhar ou optando pelo crime para conseguir

dinheiro e/ou status.

Essas crianças vêm das famílias que construíram Brasília. Os avós ou pais foram

trabalhadores advindos, principalmente, da Região Nordeste, em busca de benfeitorias. Esses

moradores que foram erradicados de vilas operacionais lutaram e ainda lutam por melhorias de

vida e dignidade.

11 Necessidades financeiras diárias.

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A partir desta pesquisa, percebo que o fato desses moradores passarem por mudanças

frequentes (da região Nordeste às vilas operárias e, posteriormente, às RAs) revela uma

instabilidade na construção de identidade dos mesmos, que não conseguiam adaptar-se a um

espaço. Esse coeficiente é sinalizado no rap12, gênero musical que é presente na RA desde seu

início.

A tradição pela busca de cidadania e dignidade, na Ceilândia, se manifesta a partir da

estética do rap. As letras dos rappers ceilandenses fazem denúncias das mazelas, preconceito

e violências que sofrem os moradores da cidade; nas composições, é possível encontrar a

frequência de expressões que afirmam a Ceilândia enquanto quilombo13. E é através das

declarações das canções rap que cantores e grupos movem a comunidade ceilandense para que

ela tenha conscientização e esforce-se por direitos básicos.

Ao que a história comprova até hoje, a Ceilândia não tem na sua concepção a formação

territorial de um local que servia como um “agrupamento de negros fugidos [...] ainda que não

tenham ranchos levantados em parte despovada nem se achem pilões neles”, como sugeria o

Conselho Ultramarino de 1740 (apud CARRIL, 2006, p. 52); tampouco a perspectiva

antropológica da Associação Brasileira de Antropologia (1989) que vê o quilombo enquanto

“toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos, vivendo de cultura de

subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”14. Por que,

então, o rap da Ceilândia se utiliza de termos como quilombo, escravidão, Zumbi e abolição

como correspondência da luta histórica da cidade?

III

“A questão da infância abandonada [...] a criança cresce

sem nenhum apoio, é marginal, é fabricada pela sociedade

e depois a própria sociedade mata. Ou seja, a classe

dominante fabrica e depois mata o marginal”.

(documentário ORÍ15, 1989)

12 Rap é a sigla de rhythm and poetry (ritmo e poesia). Esse movimento surge no distrito do Bronx (Nova Iorque).

É um movimento de negros, descendentes de africanos escravizados que foram trazidos às Américas, e de latinos

que migraram para os Estados Unidos, pós Segunda Guerra, em busca de melhores condições de vida.

(TEPERMAN, 2015). 13 “O nome original vem de Angola, que em determinado momento da história da resistência angolana queria dizer

acampamento de guerreiros na floresta, administrado por chefes rituais de guerra” (NASCIMENTO apud RATTS,

2006). 14 Disponível em Cultura.RJ <http://www.cultura.rj.gov.br/materias/a-forca-do-legado-afrobrasileiro>. Acesso

em: 18/04/2017. 15 O documentário, lançado em 1989, é o resultado de pesquisas de 10 anos. É um trabalho colaborativo entre a

cineasta e socióloga Raquel Gerber e a historiadora Beatriz Nascimento. O filme retrata discussões sobre a cultura

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Considerar a Ceilândia um quilombo é um desafio, certamente. No entanto, não busco

aqui uma averiguação científica para tal comprovação. Enquanto observadora e estudiosa da

língua16, percebo a frequência de uso do termo quilombo nas canções de rap, assim como o

resgate histórico a respeito da escravidão. O léxico presente nas músicas releva a reposta ao

preconceito contra a cor negra presente até hoje no Brasil. Associar a Ceilândia como

“Quilombo dos Cantares” é sensibilizar-me diante dessas manifestações linguísticas presentes,

gradativamente, na cidade. E para a Ceilândia, o que é o quilombo? Para conseguir respostas

dentro dessa enigmática metáfora, corro às fontes. A primeira delas é o Sarau V.A., movimento

que ocorre na Ceilândia desde 2013 e, na minha concepção, uma das mais importantes nascentes

de artistas locais. De lá, ouvem-se poemas, samba, coco, raps; se manifestam também o break,

o DJ, e claro, o quinto elemento do Hip Hop17: o conhecimento18.

A segunda fonte é a escola. Escolher uma instituição de Ensino Fundamental não

aconteceu de forma randômica. Segundo os dados da Infopen, a maior parte da população

carcerária sequer completou essa etapa da Educação Básica. Além disso, segundo o

recenseamento, a maioria é negra. Interessante, para respaldo, que não há a opção “pardo” como

raça, cor ou etnia nessa pesquisa. Enquanto isso, no IBGE, o grande censo de pesquisas

quantitativas no Brasil, a maioria dos brasileiros se auto declara parda. Questionar quem é o

branco ou negro no Brasil não é necessariamente o foco dessa investigação, mas este dado é

instigador para futuros levantamentos. Até porque não havia apenas negros nos quilombos,

como hoje não há apenas negros nas favelas e periferias do Brasil.

A maioria na Ceilândia (34,1%) tem o primeiro grau incompleto –coincidentemente?

Eu não diria. Daí a importância de cortar o problema pela raiz. A campanha de erradicação na

Ceilândia continua no sentido do extermínio velado que ainda ocorre na região. Ao serem

negados direitos básicos como saúde e educação, é negado também o direito à cidadania dos

negra no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980 e conta a história de Beatriz Nascimento, militante negra que

pesquisa a História dos "Quilombos" da África do século XV ao Brasil do século XX. 16 Para o Funcionalismo, “a língua é um instrumento de interação social, cujo correlato psicológico é a competência

comunicativa, isto é, a capacidade de manter a interação por meio da linguagem. Segue-se que as descrições das

expressões linguísticas devem proporcionar pontos de contato com seu funcionamento em dadas situações. A

Pragmática é um marco globalizador, dentro do qual se deve estudar a Semântica e a Sintaxe”. (CASTILHO, 2010,

p. 64). 17 Os principais elementos que compõem o Hip Hop são o DJ (músico), o break (dança), o grafite (arte visual) e o

MC (mestre de cerimônias). 18 Em 1977, o músico Afrika Bambaataa passa a argumentar a existência de um quinto elemento no Hip Hop, o

conhecimento. A ideia era reforçar a potencialidade do movimento como um instrumento de transformação social

ligado às lutas do movimento negro (TEPERMAN, 2015, p. 27).

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componentes dessa cidade. Na letra “Negro drama”, de Racionais MCs, Mano Brown relata as

privações vividas pela população periférica em São Paulo.

O trauma que eu carrego

Pra não ser mais um preto fodido.

O drama da cadeia e favela:

Túmulo, sangue,

Sirenes, choros e velas.19

Mas essa também é uma característica do rap ceilandense. No documentário “Rap, o

canto da Ceilândia”20, os rappers locais relatam sua chegada na cidade ainda pequenos, vindos

da Vila do IAPI. Eles contam os preconceitos que sofriam por serem moradores da Ceilândia e

também narram o processo de construção da cidade, assim como algumas conquistas locais. Na

obra do grupo Câmbio Negro21 também há relatos de contratempos comuns das periferias. Este

fora um dos primeiros grupos de rap da Ceilândia e um dos grandes precursores do gênero no

Brasil. A letra “Sub-raça” revela a insatisfação dos moradores:

Agora irmãos22, vou falar a verdade.

A crueldade que fazem com a gente

Só por nossa cor ser diferente;

Somos constantemente assediados pelo racismo cruel.23

É relevante reconhecer nas letras de rap que o drama maior que ocorre nas favelas e

periferias atinge majoritariamente os negros.

E lá, nesta escola da CEI, reflito sobre tudo isso. Acompanho os alunos, observo seus

discursos e ensaio nossas aulas. Eles, os grandes personagens deste espetáculo, são também os

melhores sinalizadores que me auxiliam na composição das aulas que seguem. E para

alcançarmos a cadência conjunta, ouvimos raps, debatemos a cidade e eles correspondem o

aprendizado em consonância através de textos escritos, depoimentos e ações.

19 Faixa 5 do CD “Nada como um dia após o outro dia” (2002) do grupo Racionais MCs. Acesso em 27/05/2017

às 17:35 em <https://www.vagalume.com.br/racionais-mcs/negro-drama.html>.

20 Adirley Queirós, 2005. 21 Desde o final da década de 1980, o grupo ceilandense entra na cena musical da cidade como representante do

gangsta rap. O estilo é “caracterizado por batidas pesadas e sombrias e letras politicamente engajadas e agressivas,

retratando os aspectos mais duros da realidade social em comunidades desprivilegiadas (TEPERMAN, 2015, p.

97). 22 IRMÃO: Amigo; pessoa no qual se tem afinidade ou empatia. 23 Faixa 13 do CD “Sub-raça” (1993) do grupo Câmbio Negro. Acesso em: 24/05/2017 às 22:12 em

<https://www.vagalume.com.br/cambio-negro/sub-raca.html>.

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E quando a professora já foi aluna? E quando a pesquisadora já foi o objeto? Relato uma

experiência vivida a partir da busca de direitos, cidadania e construção destes alunos, filhos do

quilombo Ceilândia.

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CAPÍTULO 1

Novos quilombos, velhas doutrinas

I

Enfim, o filme acabou pra você.

A bala não é de festim,

Aqui não tem dublê.

Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia,

Eu sei, as ruas não são como a Disneylandia

(Racionais MCs – Capítulo 4, Versículo 3)24

Evidentemente a questão de cor, dentro do universo quilombo, levanta questionamentos.

São de fato apenas negros que compõem os quilombos urbanos?

A pesquisadora Carril (2006) desenvolve um trabalho na Geografia que estuda a

formação do quilombo urbano nas hiperperiferias da metrópole paulista. Ela identifica a busca

de identidade sociocultural de cantores do movimento Hip Hop a partir da auto representação

quilombola. A autora averigua o processo histórico do quilombo na reprodução de uma luta

contra a escravidão, representada pelo “quadro social, econômico e psicológico” no qual os

negros, segundo a autora, ainda vivenciam (CARRIL, 2006, p. 243). Mesmo não havendo uma

padronização de cores nas periferias, é possível averiguar que o negro ainda está em

desvantagem social.

Na experiência em sala de aula, ao interrogar-lhes a cor, a maioria se autodeclara negra,

dentre eles, o aluno que já fora preso e que acredita que, para realização de seus corres25 é

preciso recorrer a vida do crime. “E por que?”, lhe questiono? Será mesmo esta sua única

opção?

Retomo o pensamento de Carril (2006) que compreende a construção de uma negativa

imagem do negro como resultado de uma desigualdade estruturada em caráter social. “Ela é

profunda e se remete a ausência de direitos, à exclusão da voz social e a superexploração típica

da condição do negro” (CARRIL, 2006, p. 243). E esse silenciamento e exclusão estão

enraizados culturalmente, no qual o negro se vê em condição fatal, devido a cor de sua pele.

24 Faixa 4 do CD “Sobrevivendo no inferno” (1997) do grupo Racionais MC’s. Acesso em 19/05/2017 às 16:15

em < https://www.vagalume.com.br/racionais-mcs/capitulo-4-versiculo-3.html> 25 Forma de conseguir dinheiro.

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O extermínio de negros no Brasil é histórico, e a condição fatalista resulta em

estereótipos ligados a “cor de ladrão”. O jovem periférico, em especial o negro, é vítima de

aniquilamento, outrora pela mão dos capitães do mato e hoje pela polícia. E a justificativa,

encontrada nas letras de rap, estão ligadas a pobreza e a cor. Em letras como “Boa Esperança”,

do rapper Emicida, essa crítica fica evidente nos seguintes trechos:

E os camburão, o que são?

Negreiros a retraficar

Favela ainda é senzala, Jão26

Bomba relógio prestes a estourar

[...]

Nessa equação chata, policia mata? PLOW!

Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão27

E, evidentemente, a “cor de ladrão” o qual ele faz menção não é a branca. A analogia

feita entre navios negreiros e os camburões da polícia declara a violência que sofrem os

periféricos referente ao militarismo policial. E as cidades que crescem esmagam paulatinamente

às margens o trabalhador informal, o pobre, o negro. Isso em consequência de uma especulação

imobiliária que distancia as classes pobres rumo às margens, distanciando-os dos centros - as

grandes concentrações econômicas. E os centros, portanto, recorrem de melhor qualidade em

serviços prestados à população, como saúde, educação e lazer, previstos na Constituição

Federal:

CAPÍTULO II

DOS DIREITOS SOCIAIS

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a

alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e

à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta

Constituição.

O Plano Piloto, por exemplo, abriga uma quantidade superior de hospitais e redes de

saúde públicos; mas quem de fato utiliza esses hospitais? Sendo a periferia mais distante, nessa

26 JÃO: De “João”, vocativo relacionado a qualquer pessoa no qual não se sabe ou não é necessário especificar o

nome. 27 Faixa 10 do CD ”Sobre crenças, quadris, pesadelos e lições de casa” (2015) do cantor Emicida. Acesso em:

24/05/2017 às 22:30 em <https://www.vagalume.com.br/emicida/boa-esperanca.html>.

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circunferência28, o negro é ainda mais constrito na disputa territorial e de cidadania. A

pesquisadora Carril (2006) contrasta a presença de afrodescendentes nas “hiperperiferia”, em

relação a “bairros mais equipados”:

A afirmação faz-se pelo contraste entre a pequena presença

de população afro-descendente nos bairros mais equipados

da cidade e sua grande presença nos que aqui formam a

hiperperiferia. Por sua vez, ao crescimento da criminalidade

e da violência correspondem a reificação da cor no crime.

É o retorno das classes perigosas que traz de volta o medo

que as elites do século XIX tinham das sublevações dos

escravos. Agora, a mídia reforça o preconceito ao enfatizar

a categoria racial quando relata o assalto, o furto e o

sequestro. (CARRIL, 2006, p. 247)

Chamar a periferia de quilombo é resgatar uma simbologia de resistência e luta. Nesses

locais, o rap representa fortemente essa luta em suas letras ao tratarem as problemáticas da

periferia enquanto quilombo. E esse aquilombamento ocorre no momento que a periferia se

identifica com o negro escravizado. Nessa perspectiva, Carril (2006) afirma:

Não houve ainda a alforria, segundo algumas

interpretações, porque falta emprego, infraestrutura urbana,

e a exploração do trabalho destituiu o acesso àquilo que a

sociedade de consumo apresenta como modelo da

cidadania. Retira mesmo as condições mínimas de

reprodução social. Os capitães do mato foram substituídos

pelos policiais, afundindo a uma população étnica

especifica como alvo de controle policial.

(CARRIL, 2006, p. 244)

No rap, há ainda outros exemplos que expõem essas problemáticas. O CD “Aqui Vamos

Nós” do grupo Sobreviventes de Rua, apresenta um poema que faz menções ao tempo da

escravatura ao relatar a morte de uma mulher negra. Ela leva um tiro de um policial, como relata

o trecho:

O camburão do braço armado do Estado brasileiro

Se confunde com os porões de um navio negreiro

28 Nesse sentido, parto da etimologia da palavra “periferia”. PAIRI quer dizer “ao redor” e é aparentado com o

Grego PERI-, “ao redor”. Acesso em 19/06/2017 às 02:42 em <

http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/periferia/> .

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Nos campos de concentração da ditadura

O extermínio não se interrompeu pra quem carrega a pele escura29

O cantor Criolo também incorpora o discurso crítico contra o militarismo dos canas30.

Outrossim, faz menção de palavras que remetem tanto a luta negra quanto a luta de classes, ao

declarar:

“A beleza de um povo, a favela não sucumbi

Meu lado África, aflorar, me redimir

O anjo do mal alicia o menininho

Toda noite alguém morre

Preto ou pobre por aqui

Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu

Shiva, Ganesh, Zé Pilin dai equilíbrio

Ao trabalhador que corre atrás do pão

É humilhação demais que não cabe nesse refrão”31

E se a Ceilândia, essa periferia, não tem um aglomerado de pretos, onde estão? É devido

a essas violências e preconceito velado, torna-se preferível identificarem-se enquanto pardos.

Primeiro porque, devido a histórica repressão contra as pessoas de cor negra, não há incentivo

algum para que se tenha orgulho da cor. Com isso, foi-se perdendo a representatividade para

que o sujeito negro pudesse se identificar. O cruel resultado disso são indivíduos que sequer

tem noção de sua etnicidade e acabam por declarar-se pardos. E que cor é essa?

O site “Pata” apresenta um mapa interativo baseado nos dados do Censo IBGE de 2010.

No mapa, é possível observar a distribuição geográfica, densidade demográfica e diversidade

racial do povo brasileiro. Nota-se a forte presença de pardos na Ceilândia, como a Figura 1:

29 Faixa 6 do CD “Aqui vamos nós” (2015) do grupo Sobreviventes de Rua. 30 CANA: Polícia. 31 Faixa 1 do CD “Convoque seu Buda” (2014) do cantor Criolo. Acesso em: 29/05/2017 às 12:49 em

<https://www.letras.mus.br/criolo/convoque-seu-buda/>.

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Outro fator considerável é que, nas periferias e favelas, os negros continuam a ser

exterminados. Os relatos das músicas rap e dos alunos ceilandenses apresentam a insatisfação

com as ações policiais que são contra esse grupo. Ademais, sabemos que a concentração de

negros na periferia, sendo maior, acarreta em um problema diretamente ligado a cor.

Todavia, a cidadania será concedida ao negro caso ele não esteja em situação de

vulnerabilidade. Lembro-me de Lourdes Carril (2006) ao utiliza-se do discurso de Oracy

Ribeiro que diz: “No Brasil, o negro rico é branco, o branco pobre é negro” (apud CARRIL,

2006, p. 239). E continua:

O branco, o negro, o caboclo e o mameluco são híbridos de

um processo histórico de uniões inter-raciais, ressaltando

que o mito da democracia racial se construiu

ideologicamente pela miscigenação. Ocultando as

distâncias entre as classes sociais.

(CARRIL, 2006, p. 242, grifo meu)

Nesse sentido, o sociólogo Clóvis Moura (1983) identifica que há na história do Brasil

uma ideologia que ignora as origens étnicas do negro. O autor detecta o mito da democracia

racial como “um elemento desarticulador da consciência crítica e revolucionária do negro

brasileiro” (MOURA, 1983, p. 31).

A falsa ideia de que há uma democracia racial leva ao ideal de que não há preconceito

no país. Ao refletir a mestiçagem no Brasil, questiono-me: Quem é o preto? Que é o pardo?

Esse processo, de mestiçagem, começa desde a invasão portuguesa, há mais de 500 anos atrás.

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Ao chegarem aqui com penas e espadas nas mãos32 de forma altamente violenta e impositiva,

não é absurdo conceber que o estupro também estava nestes contatos. O negro, sempre colocado

à margem, chegando em condição periférica de escravizado, está inferiorizado dentro das

relações verticais na sociedade. Evidentemente passavam por estupros, debate ainda recente no

discurso feminista dentro das periferias. O filho da negra estuprada, escravizada, animalizada,

não poderia ser um filho legítimo ou sequer ter legitimidade, como ela também não tinha.

A ideia de mestiçagem no Brasil, no entanto, não resolve as questões de quem se

encontra no dilema de não ser nem branco, nem negro. A cor passa a ser uma permuta, no qual,

em alguns casos, ser menos escuro pode funcionar como uma promoção para acessibilidade.

E quando as periferias concebem uma identificação com o quilombo, sentem-se

representados, parte-se de uma concepção de um imaginário de resistência. A imagem do

quilombo diretamente ligada a uma população unicamente de negros é utópica, uma vez que os

quilombos nunca foram completamente negros, pois havia índios e brancos na composição de

sua história (CARRIL, 2006, p. 238).

Do início, a favela concentra majoritariamente a população

negra, mas, a partir da década de 1950, correntes

migratórias de trabalhadores negros e brancos, sobretudo

nordestinos, também passarão a avolumar a contingente

favelado. (CARRIL, 2006, p. 230)

Carril (2006) entende que o quilombo “se tornou um forte símbolo da luta de liberdade”

(CARRIL, 2006, p. 238). E aqui, retoma-se a questão da cor no sentido da desigualdade.

Em entrevista com o rappers e professor Leonardo Ortegal, do Departamento de Serviço

Social da Universidade de Brasília, percebo em sua fala características que ilustram os fatores

citados acima:

Hoje, penso quilombo com essa chave de novas

epistemologias de realidade da população negra no Brasil:

diáspora33, genocídios. A partir de diáspora e genocídio,

você tem um povo que vem de uma diáspora nordestina,

uma população que tem que viver em um país que é hostil.

Eles vêm de África para o litoral, do litoral para o centro do

32 Faço referência ao verso de Luís de Camões (1572) “Numa mão sempre a espada, e noutra a pena” encontrado

no Canto VII do livro “Os Lusíadas” (DE CAMÕES, L. V. Os Lusíadas: Canto VII. São Paulo: Martin

Claret,2000). 33 Silva (2000) caracteriza diáspora como “Dispersão, em geral forçada, de um determinado povo por lugares

diferentes do mundo. Na análise pós-colonialista, destacam-se a diáspora dos povos africanos, causada pelo

comércio escravagista, e o movimento contemporâneo de migração –visto como uma diáspora- dos povos das

antigas colônias europeias para suas antigas metrópoles” (apud STROBEL, 2008, p. 33).

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país (geograficamente), e daí para uma periferia dentro

desse quadradinho central. Esse movimento de tentativa de

ocupação de espaço, de afastamento de espaço, coloca a

população como uma metáfora do que vemos

historicamente. Nesse sentido, considero que parte do

movimento de Ceilândia, sobretudo quando ela estava se

estabelecendo, tenha esses traços, essa natureza quilombola

por parte de grandes segmentos.

II

A Ceilândia é resultado de “sangue, suor e lágrimas”34, fala que, segundo o cantor X

confirma a dificuldade dos moradores em se estabeleceram na RA. Não apenas por serem

retirados - contra a própria vontade - de seus lares que ficavam próximos a Brasília, mas também

por terem diversas limitações que impediam sua dignidade enquanto pessoas humanas. A luta

dos candangos que construíram a capital foi em prol da garantira de “um pedaço de chão”, como

afirma o cantor.

A construção de Brasília foi com o intuito de ser a sede político-administrativa do país,

portanto habitariam apenas os servidores públicos que trabalhariam nela (PESSOA, 2009). A

obra foi realizada por trabalhadores advindos, principalmente, da Região Nordeste. Segundo

Tavares (2009), o censo de 1958 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) alega

que 43% da população do Distrito Federal era da Região Nordeste. Em massa, eles vinham em

direção ao Centro-Oeste em busca de melhorias e qualidade de vida.

A maioria dos trabalhadores optou por continuar na região após a construção de Brasília,

alojados nas vilas operárias que construíram nas proximidades do Plano Piloto. Eram

alojamentos provisórios que abrigavam os candangos - termo que, segundo Tavares (2009), é

de natureza pejorativa. “Candango” é de origem africana (quinbundo35); foi usado por

portugueses que se referiam aos negros no período colonial. Uma das hipóteses levantadas por

Tavares (2009) a partir de sua investigação é a de que o termo fora inspirado no nome de um

cachorro que habitava o Palácio do Catetinho. Tendo Kubitschek sabido disso, chamava os

operários – em especial os nordestinos - de tal forma.

Outra hipótese é a de que o termo “operários” era designado aos trabalhadores de maior

prestígio (como arquitetos e engenheiros) e “candango” à mão de obra explorada nas jornadas

de trabalho (TAVARES, 2009, p. 67). Uma das vilas que fortemente foi transferida para a área

34 Fala do documentário “Rap, o canto da Ceilândia” de Adirley Queirós, 2005. 35 Língua de origem banto, falada em Angola pelos ambundos.

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que seria a Ceilândia foi a Vila do IAPI. A vila era repleta de barracos pouco estruturados,

erguidos por madeira, papelão e zinco; eles não possuíam serviços básicos como de energia,

água e esgoto. Os ceilandenses sobreviveram a tudo isso e, sem dúvida, graças ao sentimento

coletivista que uniu a cidade.

Em 1970, a população das vilas passava de 70.000 habitantes, portanto, o governo

constrói a Estrada Parque do Contorno que contornava o Plano Piloto em prol de sua

conservação. Ele alegava que as áreas que as vilas se situavam poderia causar riscos ao

saneamento básico da capital. Essa divisão – chamada por Ammann de “saneamento estético”

(apud PEREIRA, 2016, p. 2) - foi um movimento segregatício, uma limpeza visual que afastou

as classes baixas do centro administrativo; enquanto isso, as classes média e alta se favoreceram

espacialmente ao ficarem em áreas como o Guará e Lago Sul, próximas a capital.

A distância da Ceilândia ao Plano (cerca de 30km)36 dificultou ainda mais a situação

dos moradores. Eles estavam distantes de serviços como escola, hospitais e lazer; estavam

distantes, principalmente, de seus empregos, localizados majoritariamente no Plano.

Hoje, a Ceilândia ainda passa por lutas territoriais. O Pôr do Sol e Sol Nascente são as

áreas mais pobres de Ceilândia –ainda em processo de regulamentação. Eram chácaras que

foram divididas, vendidas e invadidas por pessoas que até hoje sofrem com as derrubadas que

ocorrem regularmente nos locais.

III

Povo africano, latino americano,

Os preto tá rimando, arma de 500 anos.

Revolução Brasil vê povo no poder

Contra o capitalismo nada temos a temer

Desligue a TV, vem vem pra rua sim

A geração Palmares que nunca vai morrer

Nosso espírito de luta não se entrega, não se vende.

(Sobreviventes de Rua - Aqui vamos nós) 37

O grupo Sobreviventes de Rua relata a militância negra e se utiliza de ditos como “povo

africano” e “geração Palmares” para representar a resistência e luta ceilandense por cidadania.

Além disso, reconhece o rap como uma arma de revolução há “500 anos”. Evidentemente, o

36 Codeplan (2007). Disponível em <

http://www.codeplan.df.gov.br/images/CODEPLAN/PDF/Pesquisas%20Socioecon%C3%B4micas/Colet%C3%

A2nea%20das%20RAs/RA_Ceilandia.pdf> . 37 Faixa 2 do CD “Aqui vamos nós” (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.

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rap não existe há 500 anos, mas o grupo procura retratar que a luta negra se faz desde a chegada

do africano escravizado no Brasil, sendo o rap mais uma dessas ferramentas na luta do

movimento negro.

É facilmente perceptível que o quilombo surge no rap como uma expressão alusiva. As

reproduções dos autores mostram a necessidade por representação. Sabemos que o escritor

romântico do século XVIII buscava soluções dentro das problemáticas da época a partir da fuga,

fosse na infância ou nos pioneiros de sua história (os cavaleiros medievais em Portugal, e o

índio no Brasil). Dessa forma o faz o negro, quando busca valor no passado ancestral, no

quilombo, em Zumbi dos Palmares. Não deslegitimo a luta do negro a partir de tal comparação,

mas reconheço a necessidade por simbologias de representação na estética.

As mazelas descritas no rap tratam de realidades vividas por parte de uma população

abandonada. Assim, a busca das periferias por cidadania vai se revelar no rap com a retomada

do termo quilombo. Beatriz Nascimento (1989) afirma:

Então, nesse momento, a utilização do termo quilombo

passa a ter uma conotação basicamente ideológica,

basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no

sentido de comunidade, no sentido de luta como se

reconhecendo homem, como se reconhecendo pessoa que

realmente deve lutar por melhores condições de vida,

porque merece essas melhores condições de vida desde o

momento em que faz parte dessa sociedade.

(NASCIMENTO. 1989 apud RATTS, 2006, p. 53, grifo

meu)

Para Nascimento (1989), o conceito de quilombo parte de uma visão simbólica,

metafórica, diria. Ela foi uma historiadora que levou os conceitos de quilombo para além do

academicismo. Para ela, quilombos urbanos são ressignificados pela favela como um lugar de

“ continuidade de uma experiência histórica que sobrepõe a escravidão à marginalização social,

segregação e resistência dos negros no Brasil” (RATTS, 2006, p. 11).

O quilombo no século XIX tivera um significado ligado a um instrumento ideológico de

libertação da exploração de trabalho. Assim, o quilombo não é visto como uma instituição, mas

como resistência étnica e política. A primeira, devido ao auto reconhecimento com a identidade

negra e a segunda remete as lutas e procura de cidadania e participação política nos espaços.

Os cantores de rap buscam cantar o quilombo como uma forma de liberdade de

expressão, pois reconhecem a exclusão que sofrem e as vocacionam através das canções. É uma

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24

maneira de expor as mazelas, denunciá-las dentro de uma estética aprovada pelos moradores de

periferia, em especial, os jovens.

Hoje, os quilombos denunciam a conjuntura das políticas desiguais nas periferias do

Brasil mediada “pelos investimentos dos bairros de classe média e alta enquanto os pobres são

empurrados para o ‘fundão’”, como afirma Milton Santos (SANTOS, 2001 apud CARRIL,

2006, p. 211). Assim, o quilombo reaparece representado na música, retomando uma

problemática histórica no Brasil relacionada a discriminação da cor negra e da desigualdade

social.

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CAPÍTULO 2

Linguística aquilombada38: da importância dos estudos funcionalistas na favela

I

A ocupação territorial do Brasil, embora tenha ocorrido a mando de Portugal, foi feita por

uma população não-branca. Desde a ocupação da costa à formação das cidades mineiras no

ciclo do ouro, a conquista territorial brasileira deve ser atribuída, principalmente, ao negro e ao

índio (ILARI, 2009).

Ademais, a difusão do português ocorreu por parte desses agentes, que transmitiam de

gerações para gerações características que tinham presença marcante de línguas africanas e

indígenas - no vocabulário, na sintaxe e na fonética - em uma deriva imprópria. Já o português

oficial, falado por uma pequena população, era mais resistente a mudanças, principalmente na

escrita. No livro O Português da Gente (2009) de Rodolfo Ilari, há uma tabela que ilustra a

distribuição populacional de etnias no Brasil, como demonstrado abaixo:

1538-1600 1602-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

africanos 20% 30% 20% 12% 2%

negros brasileiros - 20% 21% 19% 13%

mulatos - 10% 19% 34% 42%

brancos

brasileiros

- 55% 10% 17% 24%

europeus 30% 25% 22% 14% 17%

índios integrados 50% 10% 8% 4% 2% Fonte: Mattos e Silva (2004a). Note-se que aumenta progressivamente a proporção de mulatos, ao passo que

diminui a de africanos e índios integrados.

II

Uma característica das línguas é seu dinamismo. A Sociolinguística Variacionista de

Labov (1972) deixa clara essa qualidade, pois defende que as estruturas linguísticas se tornam

heterogêneas em consequência das diferentes características encontradas entre e dentro das

comunidades de fala. Assim, os falantes podem se referir a um mesmo aspecto de forma

38 Utilizo-me de tal termo para fazer referência metodologias de ensino de língua voltadas à realidade das escolas

públicas de periferias, favelas e quilombos urbanos do Brasil.

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particular, pois utilizam efetivamente sua capacidade comunicativa de manifestarem-se em

diferentes níveis. Fatores como os espaços geográficos, as classes sociais, idade e níveis de

escolaridade determinam essas manifestações linguísticas dessemelhantes.

Os diálogos dentro de periferias mostram o dinamismo das línguas39. Assim, é

incontestável que essas populações carregam fortemente traços próprios da variação coloquial

do português; mas, além disso, apropriam-se de um vocabulário que retoma o tempo da

colonização e escravidão no Brasil. Quando os falantes adotam condutas de aquilombamento

em prol de visar o desenvolvimento de dinâmicas nas favelas, retomam tanto os termos quanto

as práticas ligadas a uma ancestralidade; ou ainda, a uma necessidade de representatividade.

Dentro do curso de Português do Brasil como Segunda Língua (PBSL), é possível abrir

o leque de debate quanto aos públicos alvo40 que o curso atende, com a intenção de desenvolver

a questão da educação nas periferias do Brasil. Mas isso apenas tonar-se-á possível quando a

linguagem de periferias for reconhecida como autônoma e idiossincrática. A linguagem dessas

comunidades, usada para o desenvolvimento, para as inter-relações e para construção cognitiva

se torna um instrumento de comunicação, e é preciso reconhecer isso.

A Ceilândia, por exemplo, utiliza-se do movimento Hip Hop como um elemento

compassivo, pois relata a realidade, ao passo que reconhece as mazelas enfrentadas diariamente,

e verifica maneiras de sobrevivência e resistência para a cidade e seus moradores. E ao povo

ceilandense, é congruente a linguagem utilizada para fazer tais denúncias, pois os falantes se

reconhecem nas canções. E é partir desses pressupostos que infiro o quão importante é aos

jovens marginalizados que se disponham de uma linguagem que lhes dê representatividade no

processo de escolarização. Segundo Faulstich (2015):

Harmonizar línguas é combinar sistemas, de modo que o

resultado seja uma relação abstrata no plano discursivo – a

harmonização linguística - que expõe, no léxico e na

gramática, a representação de um bilinguismo explícito por

causa da conformidade conceitual consistente entre signos.

(FAULSTICH, 2015, p. 1)

39 A exemplo, é possível observar nos raps até agora citados a variação entre os termos favela, periferia e quilombo

para fazer referências às populações que vivem em áreas marginalizadas em relação aos centros urbanos. 40 Segundo o site do Departamento de Linguística, Português Línguas Clássicas da Universidade de Brasília, o

curso de PBSL é voltado para profissionalizar futuros professores para o “ensino da língua portuguesa para falantes

e usuários de outras línguas, seja língua estrangeira, língua indígenas ou língua de sinais”. <

http://www.lip.unb.br/graduacao/cursos>.

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A harmonização de línguas, nesse caso, se faz no momento de contemplação de

diferentes funções, objetivos e resultados conseguidos na comunicação. Considerar os

elementos de comunicação das periferias é reconhecer seus caráteres simbólico e funcional.

Com a preocupação de harmonizar a variante das periferias à língua padrão, os autores

da língua, seja na modalidade escrita ou falada, ampliariam os contextos de articulação,

manifestação e comunicação. Nesse momento, a variante oficial do português tornar-se-ia uma

segunda língua aos alunos de periferia, pois é majoritariamente utilizada em situações muito

formais ou oficiais. Para os meninos, neste momento da educação é importante que estejam

cientes disso, para que não criem ansiedade frente a variação padrão. Eles se queixam, pois

acreditam ser uma linguagem muito distante, e esse fator só se prolifera conforme os alunos

tem contato com esse português. Ao passo que os estudantes entendem a funcionalidade desse

português, não apagariam suas próprias marcas de fala, mas ampliá-las-iam.

Basta que olhemos um pouco para história para ver o quão significativo é considerar a

linguagem do povo. Se pensarmos na formação da consciência nacional na Europa do século

XVI, perceberemos que um fator fortemente contribuinte foi o fato de poucas pessoas terem o

domínio do latim e, por isso, inspirados em Lutero, vários Estados e cidades publicavam obras

em línguas vulgares a fim de expandirem as vendas. Resultado disso foi um grande público

leitor que incluía mulheres e mercadores (ANDERSON, 20088, p. 49). Ou seja, quanto mais se

considera a língua do povo, mais autonomia e condecoração ela terá, a fim de que se facilite os

processos de manifestação da língua, principalmente, no caso, na modalidade escrita.

III

Tendo em vista os grupos alvo que o curso de PBSL pode atender, desconhecia o grupo

de quilombolas, a princípio. E depois questionei-me: Quem são os quilombolas? O que é o

quilombo? Entretanto, não pretendo generalizar o complexo contexto sociocultural de Ceilândia

enquanto quilombo, mas reconhecer as práticas de aquilombamento presentes no ativismo dos

componentes desse lugar.

Ao avaliar as definições quanto ao termo quilombo, encontro-o como oriundo de áreas

banto (kílombó), que significava “área de homens guerreiros” (DEC, 2012, p. 647). No Brasil,

no entanto foi concebido pelo colonizador como um espaço que abrigava africanos e

afrodescendentes rebeldes que fugiam para locais de difícil acesso para construírem seus modos

de vida; o conceito chega ao Brasil para “caracterizar seus territórios de resistência” (DEC,

2012, p. 647). Hoje, o conceito está, também, ligado às manifestações de luta no movimento

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negro no Brasil. A concepção de fugitivo está relacionada ao olhar colonial, para negros

fugidos. E esses negros fugidios não simplesmente buscavam a fuga, mas condições humanas

de sobrevivência. Fugiam devido à exploração de sua mão de obra e desvalorização de sua

etnia, pois o ideal euro-centrista compreendia-os com um olhar incongruente. A fala de

Montesquieu em 1753 ilustra bem essa visão:

Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de

escravizar os negros, eis o que eu diria:

Tendo os povos da Europa exterminado os da América,

tiveram de escravizar os da África a fim de utilizá-los no

desbravamento das suas terras.

O açúcar seria muito mais caro se não se cultivasse a planta

que o produz por intermédio de escravos.

Aqueles a que nos referimos são negros das cabeça aos pés

e têm o nariz tão achatado, que é quase impossível lamentá-

los.

Não podemos aceitar a ideia de que Deus, que é um ser

muito sábio, tenha introduzido uma alma, sobretudo uma

alma boa, num corpo completamente negro (...) É

impossível supormos que tais gentes sejam homens, pois,

de os considerarmos homens, começaríamos a acreditar que

nós próprios não somos cristãos (apud MOURA, 1983, p.

20).

Eis uma perspectiva que parte do explorador. E as consequências são incontáveis.

Estando o negro em condição de marginal desde o início da história do Brasil, restaram-lhe

poucas oportunidades. Portanto, fica evidente a diminuição da população negra no Brasil, ao

passo que cresce o universo de mulatos (ver quadro na página 23). Estando o negro em local de

desvantagem, cresce a mestiçagem no país. “Quanto menos preto, melhor”, é o que eu diria no

lugar dessas pessoas. E como dizer o contrário?

As declarações voltadas ao negro, assim como aspectos relacionados a sua cultura foram

ridicularizados, alegorizados. E o mesmo movimento ocorreu com a concepção de quilombo.

Portanto, para avaliar o conceito da palavra quilombo, considero as palavras da historiadora

Beatriz Nascimento (1989) no documentário “Orí”. Percebo o movimento de travessia da

expressão, de África ao Brasil quando a autora afirma:

Quilombo é de origem banto, que acompanha toda a

filosofia, todo o ethos do quilombo, o comportamento do

quilombo. As regiões de quilombo de Angola nesse período

do século XVI, com o mercantilismo, são regiões de

exercício de grandes guerreiros, táticas, estratégias de

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29

tomada de regiões e de ocupações e de relações com etnias

que vão se encontrar na grande caminhada do reino do

Ndongo para o sul de Angola. E é assim também que são os

quilombos brasileiros, principalmente a partir de Palmares:

a sua maneira de migrar para o Sul acompanha, do mesmo

jeito, a guerra que acontece naquele momento com várias

alianças dos reis de Angola, Nzinga, principalmente. Zinga

foi uma rainha, uma Angola (significa “rainha”) que luta o

tempo todo para manter a autonomia do grupo dela, daí o

quilombo, daí a relação dela com quilombo de Palmares.

Ela quer tanto salvar a integridade, a autonomia dela, que

ela obriga o povo dela a imitar as práticas dos Imbangalas,

aquele povo antropófago”.

(NASCIMENTO, Orí, 1989, grifo meu)

IV

Adentro a escola, observo o material didático e é decepcionante. A gramática tradicional

ainda é a mais utilizada na instituição. E essa gramática, de caráter preconceituoso em relação

às variantes que fogem do padrão do português, tem a necessidade de estabelecer padrões em

busca de um uso idealizado da língua, ocorrência arcaica que se inicia desde os gregos antigos

(MARTELOTTA, 2016, p.45).

Esse atributo se reflete até hoje em nossa língua. Sempre que se aponta um português

“errado”, é porque esse está fora dos padrões de um português idealizado e elitizado, chamado

português culto. Se observarmos mais criticamente, é averiguável que a questão da erudição da

língua está ligada às relações de poder. Efetivamente as classes altas são as que têm mais contato

com estruturas “corretas” (MARTELOTTA, 2016, p. 47) e, portanto, são também as classes

com mais oportunidades e privilégios.

Em contrapartida estão os funcionalistas. A gramática funcionalista-cognitiva tem a

preocupação de basear-se na língua em uso e considera estruturas mais complexas, como o texto

e o discurso; também compreendem o dinamismo das línguas, por estarem em constante

movimento e mudança.

O funcionalismo tem, como correspondente, a capacidade comunicativa de preservar a

interação via linguagem e entende os papéis sociais como marcantes na escolha das estruturas

linguísticas do falante. Dessa forma, penso que não é possível determinar qualquer estrutura

linguística como única e pronta, tida como a mais correta, mas sim que há diferentes formas

estruturais para situações e funções sociais apropriadas – gramaticalizações (CASTILHO,

2012).

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Ao meu ver, a variação e a mudança são as características mais claras da linguagem

humana. Basta observar as mudanças que sofreram as línguas desde, por exemplo, a formação

da Península Ibérica ao português do Brasil atual, “[...] nem o latim nem o português são

unidades estanques, línguas nascidas e cristalizadas imediatamente, com sua gramática e seu

léxico de uma vez só estabelecidos” (BASSO&GONÇALVES, 2014, p. 19).

Para compreender o funcionamento da língua, é preciso assimilá-la ao contexto com o

todo (MARTELOTTA, 2016, p. 63). É uma análise mais aprofundada que essa gramática faz;

parte da práxis e, por isso, a considero essencial e significativa nessa pesquisa. Fato é que os

alunos de periferia já têm uma língua que lhes é funcional em vários aspectos, entre eles, os

corres diários. No entanto, essa linguagem não é suficiente em diversos campos, especialmente

os oficiais.

Na perspectiva funcionalista, a gramática41 não pode ser analisada distintamente ao

discurso; e é possível, na prática, modelá-la conforme as necessidades. Como afirma Cunha, “a

estrutura é uma variável dependente, pois são os usos da língua que, ao longo dos tempos, dão

forma ao sistema” (CUNHA, 2016 p. 174). Já a linguagem é “um instrumento de interação

social” (CUNHA, 2019, p. 157). E a nós, estudiosos dessa corrente, as declarações e textos são

relacionados às funções na comunicação entre pessoas.

E onde estão, nas escolas, materiais didáticos que se relacionam com a realidade dos

alunos? Onde estão os materiais que acompanham o movimento, a mudança, a dinâmica na

linguagem deles? Onde estão, ao menos, as práticas que contempla o universo dos jovens

periféricos?

Professor, me refiro a você: se parar para repensar na sala de aula, perceberá o quão

desprendido está o material disponibilizado para os aprendizes. E não é preciso refletir muito

profundamente para compreender que suas práticas também estão. É vulgar e desumano culpar

apenas a instituição de ensino, assim como o material didático. O juízo começa olhando para si

mesmo, no quão compromissado socialmente está ao entrar dentro de sala de aula ao começar

esse culto que é o ensinamento.

V

Quilombo s.m. (sXVI cf. MS) 1 HIST B acampamento

fortificado dos jagas, design. atribuída aos povos que

41 “[...] conjunto de procedimentos necessários para, através da utilização de elementos linguísticos, produzimos

significados em situações reais de comunicação” (MARTELOTTA, 2016, p. 63).

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31

invadiam o Congo e Angola em fins do sXVI. 2 HIST B

local escondido, ger. no mato, onde se abrigavam espaços

fugidos 3 HIST B povoação fortificada de negros fugidos

do cativeiro, dotada de divisões e organização interna (onde

tb. se acoitavam índios e eventualmente brancos

desprivilegiados socialmente) cf. mocambo 4 CNÇ ETM

MÚS AL auto típico do Natal alagoano no qual negros e

índios ou caboclos dançam vestidos em trajes que lembram

os dos reisados, do auto dos guerreiros etc. cf. toré ETIM

quimb. kilombo ‘união; cabana, acampamento, arraial,

povoação; capital; exército’; Nei Lopes cita Adriano

Parreira em AParE: “voc. Kilombo (nos sXV-XVII) tem

uma dupla conotação: uma, toponímica e outra, ideológica.

Eram assim também designados os arraiais militares mais

ou menos permanentes, e também as feiras e mercados de

Kasanji, de Mpungo-aNdongo, da Matamba e do Kongo.

(Dicionário Houaiss da língua portuguesa).

Esta é a definição de quilombo segundo o dicionário Houaiss, e ela se difere de

concepções encontradas nas falas dos entrevistados. Vejamos, toda língua apresenta

complexidade em diferentes graus e subsistemas e está como mais um dos conhecimentos

propiciados comunitariamente. Assim, a língua faz parte da cultura de todos os povos e é a

maneira que os indivíduos de dada comunidade de fala têm para emitir suas necessidades e

convicções. É importante lembrar que todos os povos são dotados de cultura, e é equivocado

colocar sociedades como primitivas ou bestiais por terem seus valores e hábitos distintos dos

“comuns” a outros povos (em geral, essa relação vertical é estabelecida nas relações de poder).

No entanto, há nitidamente estruturas mais sólidas na língua, e os falantes as modificam

com estruturas não tão condensadas, assim possibilitando que a língua se adapte a contextos.

Por isso, sentencia-se o caráter versátil das estruturas.

Uma das perspectivas do funcionalismo admite uma interação entre forma e função

(CUNHA, 2016, p.159). Destaco a pertinência dessa perspectiva, visto que a forma é adaptável

aos contextos de uso; uma mesma informação tem sua estrutura modificada conforme o

interlocutor ao qual se dirige o discurso. As funções externas, então, interferem na organização

interna da língua. E é a partir dessa perspectiva que justifico a versatilidade que passou o termo

quilombo ao longo da história do Brasil.

Há, ainda, na língua, gramaticalizações, visto que as estruturas se integram devido à

necessidade de satisfazer dadas funções sociais. Logo, a Sintaxe Funcional parte do significado

contextualizado para explicar a palavra e estruturas linguísticas utilizadas (CASTILHO, 2012).

É observável esse processo na transformação da palavra quilombo. Tanto na fala dos

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entrevistados, quando nas bibliografias pesquisadas é possível encontrar formas como o verbo

aquilombar, como adjetivo aquilombado, como o substantivo aquilombamento (remete à

execução da prática) e, ainda, as formas quilombismo e quilombolista encontradas no

Dicionário Houaiss da língua portuguesa:

Quilombismo s.m. (1989 cf. AEScisC) HIST resistência

exercida pelo movimento dos quilombos contra o sistema

escravagista branco; ação dos quilombolas ETM

quilombola + -ismo.

Quilombolista adj. 2g. (1988 cf. AEScisC) relativo a ou

próprio do quilombolismo ETM quilombolismo + -ista,

com troca de sufixo.

(HOUAISS, 2001, p. 2359)

Nas concepções funcionalistas da língua, assim como pude identificar nessa

investigação, acredito que a Pragmática seja especialmente relevante, pois está atrelada aos

contextos de uso da língua. A língua é instrumento da nossa natureza comunicativa e, também,

instrumento de solução de problemas. Dessa maneira, além de fazer parte da cultura de uma

sociedade, a língua é ferramenta da construção da própria cultura, pois é principalmente através

dela que os indivíduos de uma comunidade trocam, repetem e disseminam conhecimentos.

Logo, as manifestações linguísticas são de precisão humana e se modulam conforme as

necessidades expressas (CEZARIO).

Cezario (2012) apresenta dois princípios para explicar o funcionalismo. O primeiro é o

princípio universal da iconicidade, que é a relação correspondente entre forma e função,

expressão e conteúdo. Apresenta os subprincípios da quantidade (o grau de complexidade do

conteúdo está diretamente relacionado ao tamanho da forma), da proximidade (quanto mais

significativos forem os conceitos entre si, mais significativa será sua forma morfossintática) e

da ordenação linear (informações importantes são topicalizadas). O segundo princípio é da

marcação que retrata as marcações nas formas em parâmetros de estrutura, distribuição e

complexidade.

O princípio da marcação de formas verbais apresenta-se presente na fala de comunidades

com condições econômicas mais carentes, periféricas e, também, em situações de fala altamente

descontraídas e coloquiais –nesse último caso, perpassa por quase todas as camadas

socioeconômicas, desde que em contextos de informalidade. Dentro desse princípio, a

complexidade estrutural pode ocorrer em formas marcadas pelo plural, tanto em nomes, quanto

em verbos. Outra característica é a frequência de distribuição, que é a ocorrência da forma não

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marcada em diversas comunidades de fala. A última característica é a complexidade cognitiva,

que se refere ao esforço mental do falante ao produzir o enunciado com a marcação padrão;

esse fator pode acarretar na perda de fluidez da sentença em vários contextos de uso

(CEZARIO, 2012).

Os processos de lexicalização são semelhantes aos de gramaticalização. Os falantes

utilizam de estruturas sintáticas para novas construções semânticas, que assumem papel de

nome ou verbo. Ocorre em níveis distintos, com sintagmas parcialmente fixos, no qual o

significado e o significante estão associados com melhor clareza, e essa nitidez se distancia ao

passo que há formas complexas semi-idiossincráticas e formas idiossincráticas inanalisáveis

(BRINTON&TRAUGOTT apud CEZARIO, 2012). Assim como acontece nos processos de

gramaticalização, essas mudanças ocorrem conforme a aceitabilidade de determinada

comunidade de fala.

Com a repetição e aceitabilidade, a língua se torna arbitrária. Os processos de

gramaticalização estão atrelados à criatividade e repetição. Diante de novas situações

cotidianas, o indivíduo se depara com problemáticas de comunicação. Por esse motivo, os

padrões já estabelecidos na língua não são suficientes para que ele se comunique efetivamente

e de acordo com suas novas necessidades. Por consequência, o falante reutiliza as formas e

estruturas de forma criativa para ressignificá-las em seu discurso. Ao passo que há

aceitabilidade e entendimento dessas novas funções, elas se estabelecem e são adicionadas à

língua.

No campo lexical, por exemplo, ocorre o aproveitamento do termo quilombo nas canções

de rap. Dentro de um processo metafórico e criativo, os indivíduos têm a necessidade de

implementar sua capacidade comunicativa e valem-se do vocábulo em contextos que não estão

dentro da concepção de um “aglomeramento de negros escravizados”. A compreensão do

interlocutor é essencial e essa nova palavra se estabiliza através do processo de repetição e

aceitabilidade.

Pensar o contexto urbano de Ceilândia numa perspectiva quilombista também pode

significar apropriar-se do termo para a criação de uma nova concepção, uma transformação na

língua. E com a transformação linguística, há expressamente uma modificação nas práticas e

cultura do povo. Mas qual a importância de considerar tal discurso dentro das periferias? De

que modo essas mudanças acarretariam na educação linguística dos alunos nas escolas? E como

poderia o rap contribuir para tal?

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35

CAPÍTULO 3

Métodos e experiências

I

A trajetória desta pesquisa etnográfica exigiu o contato com experiências diversas, pois

tratar-se de um assunto extremamente complexo. Qual a relação que procuro fazer entre esses

três temas centrais: o rap, o quilombo e a Ceilândia. Depois, como eles estariam enquadrados

em uma metodologia de ensino voltada ao desenvolvimento linguístico de crianças que estão

no Ensino Fundamental (anos finais) em condição de atraso escolar?

Foi possível ver até aqui que há letras de rap que procuram conscientizar seus ouvintes

quanto as violências contra o negro e o pobre das periferias. Para inteirar os interlocutores, os

cantores de rap retomam o quilombo, a escravidão e figuras como Zumbi dos Palmares a fim

de denunciar as moléstias contra os marginalizados de áreas urbanas.

Como embasamento teórico, no Capítulo 1, utilizei-me de textos como os da geógrafa

Lourdes Carril (2006) e a historiadora Beatriz Nascimento (1989, 2006) que discutem questões

como a condição do negro no Brasil e a formação e concepção de quilombo ao longo da história

e na contemporaneidade. No Capítulo 2, considerei estudiosos da Linguística Funcionalista

como Enilde Faulstich (2015), Mário Eduardo Martelotta (2016), Ataliba Castilho (2012) e

Maria Maura Cezario (2012), pois debatem a língua com conceitos atuais e aplicáveis para os

métodos de ensino propostos na experiência em sala de aula.

Finalmente, as escolhas mais importantes estão relacionadas às letras de rap, aos

entrevistados e à escola. Para a pesquisa linguística, utilizei-me majoritariamente das canções

do grupo de rap Sobreviventes de Rua (SDR), pois é um conjunto que faz parte do cenário

musical ceilandense há 20 anos. O CD “Aqui vamos nós”, obra escolhida, tem canções

próximas ao gangsta rap, canções que falam de amor, mas o foco foi nas faixas que retomam

o quilombo, o estereótipo do negro e sua marginalização. Os integrantes relatam em suas letras

a realidade do povo trabalhador e divulgam as desigualdades sociais cometidas na Ceilândia,

com temáticas como o crime, a pobreza, o preconceito social e racial, as drogas e a consciência

política. Dessa forma, buscam empoderar os jovens ceilandenses contra a cultura de submissão

e miséria. Portanto, são as canções do SDR um importante material didático utilizado em sala

de aula. Ademais, perceber o rap enquanto um professor é reconhecer o potencial que sua

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mensagem tem de resgatar a humanidade e cidadania sonegadas às crianças marginalizadas em

condição de vulnerabilidade. Essa concepção é manifestada pelo famoso ditado do universo

Hip Hop: “o rap salva vidas”.

Ter esta percepção foi possível sob a contribuição de outra prática experienciada: o

Sarau V.A. Trata-se de um movimento social que ocorre no bairro P-Norte, na Ceilândia, onde

artistas da região administrativa, assim como de demais RAs, expõem seus trabalhos

semanalmente. As obras dos participantes também discorrem acerca do crime, da pobreza, das

desigualdades e da violência policial.

A escola42, como citado anteriormente, fez parte de minha história. Enquanto

ceilandense e negra, pude vivenciar práticas de exclusão nesta instituição quando cursara o

Ensino Fundamental II. Compreender a experiência vivida nesta pesquisa, no caso, dependeu

da combinação com experiências passadas. Diante a profissão que tive possibilidades de

exercer, posso perceber a responsabilidade social que carrego. Voltar à Ceilândia, agora, em

condição de professora, é retribuir todo o conhecimento adquirido em minha caminhada.

II

Errou, tio43, de novo, o que você falou?

Disse que eu era bandido, eu não sou.

Esse é meu estilo, essa é minha cor,

Tudo que eu faço pelo rap é por amor44

(Sobreviventes de Rua – Errou, tio – grifo meu)

As canções do grupo SDR foram essenciais para os debates em sala de aula. Esse grupo

refere-se, em suas letras, a Ceilândia enquanto quilombo. Em entrevista com o integrante Nego

Beto, percebi o compromisso social do grupo em debater sobre o extermínio da juventude negra,

a violação de direitos do povo periférico e o racismo por parte da polícia. Essas temáticas têm

como propósito desconstruir a imagem alienadora exposta pelas elites midiáticas. Segundo o

cantor:

42 Por questões éticas, não será citado neste trabalho o nome da instituição de ensino, assim como a identidade dos

alunos, por motivos de resguardo. Cito que, para a realização deste trabalho, foi concedida a autorização por parte

do diretor e vice-diretor da escola. 43 TIO: Não há grau de parentesco. Trata-se de um vocativo destinado àquele que não se sabe o nome, em geral,

homens mais velhos. 44 Faixa 4 do CD “Aqui vamos nós” (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.

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A partir do momento em que tivemos a oportunidade de

conhecer a história da população quilombola, tivemos um

choque de realidade. Indagamos entre nós “o que seria um

quilombo hoje”? Foi como se a rua gritasse: “Somos nós, a

periferia que não recebeu indenização ao sair da escravidão;

somos nós, o povo que ousou lutar e sonhar até mais que

JK, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer; somos nós, o povo

trabalhador que construiu a resistência para erguer de forma

corajosa os barracos sem reboco”. Povo esse que, sem

conhecer a sua história, resiste o capitão do mato (estado de

direito) e levanta todos os dias disposto a enfrentar esse

sistema racista para garantir liberdade as futuras gerações.

Então, quando nos deparamos com essa situação, a gente já

identificou uma mesma realidade: a identidade com a

população quilombola. (grifo meu)

Quando indago Nego Beto sobre o que é o quilombo, ele responde:

É lutar pelo pedaço de chão; ter liberdade para

sonhar, revisar a história e perceber quão difícil foi resistir

no campo de batalha. Para chegar até aqui foi derramado

muito sangue inocente. Nossa cultura, nossas raízes são

resilientes. Tem que ter fôlego de vida para enfrentar as

perseguições dessa elite fria, violenta e racista.

A fala do cantor remete as questões levantadas por Carril (2006) quanto às

interpretações feitas acerca de uma alforria nunca alcançada, justificada pela escassez de

recursos básicos para a sobrevivência mediante um trabalho explorador.

Reconhecer a importância do rap nas práticas educativas não ocorreu aleatoriamente.

Foi frequentando e observando os encontros de artistas no Sarau V.A. que pude perceber o quão

enriquecedor poderia ser essa estética musical em sala de aula, devido a aproximação da

linguagem com a dos alunos.

O movimento surgiu a partir da união de artistas amigos que, sem equipamentos,

reuniam-se todas as terças feiras para trocar poesias. Com o tempo, a iniciativa tomou uma

grande dimensão, de modo que hoje apresentam-se no sarau pessoas da comunidade da

Ceilândia e demais RAs do Distrito Federal. A sigla V.A. significa “voz e alma”, política

adotada pelos organizadores de que os ouvintes devem manter o respeito enquanto o artista

expõe sua poesia ou improviso. As temáticas das obras expostas pelos poetas variam entre a

falta de políticas públicas nas periferias, a homofobia, o racismo, a falta de lazer na cidade e o

feminismo. Segundo o rapper e organizador do Sarau V.A., Rafinha Bravoz:

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O objetivo principal é dar voz a quem não tem. É para

qualquer pessoa ser o protagonista da sua comunidade,

protagonista naquele momento que tá falando, pois alguém

vai ouvir. Porque a gente vive à margem, né?! É uma

“síndrome do Plano Piloto”, onde as coisas boas só

acontecem lá. E na periferia a gente vai ser oprimido pela

polícia, vai ser oprimido pela família patriarcal; toda essa

cultura de marginalização.

Para o rapper, o discurso quilombola é presente nas poesias do sarau devido a relação

da história dos quilombos com a Ceilândia -e seu distanciamento com a casa grande (o centro).

Rafinha completa fazendo uma associação entre bairros da RA e os quilombos:

A gente tem o Quilombo da Expansão, tá ligado?! Tem o

Quilombo do Sol Nascente, o Quilombo do Pôr do Sol, o

Quilombo do Setor O, o Quilombo da QNR, o Quilombo da

QNQ, o próprio Quilombo do P-Norte, que, dentro da

Ceilândia, já é afastado. (grifo meu)

Então, como afirma Beatriz Nascimento (apud RATTS, 2006) o quilombo é expresso

de forma ideológica, uma vez que a fala do interlocutor tem, em sua natureza, o propósito de

luta por benfeitorias para si e para a sua comunidade.

Quando o cantor destaca a questão da condição de margem na Ceilândia reconhece a

desigualdade perante o centro, ou o Plano Piloto, como ele cita. Ressalto as colocações de Carril

(2006) a respeito da cor negra, que nas periferias é exposta como a “cor do crime”. Esse

preconceito é reforçado pelas mídias.

Careço de mencionar um episódio que ocorrera na instituição durante o período que

estive trabalhando o projeto: uma briga. O confronto envolveu muitos alunos45; foi uma briga

muito violenta, de modo que um dos alunos foi hospitalizado. A violência foi tão banalizada

por parte dos estudantes, que vários filmavam e aplaudiam o ocorrido. Um dos vídeos terminou

nas mãos de uma famosa rede de televisão que expôs o fato de forma superficial; eles não

tiveram informações concretas, tampouco a autorização da escola ou da família da criança.

Após a exibição, a empresa permaneceu insistindo para que a escola e a mãe cedessem uma

entrevista; ambas resistiram e negaram. Esse episódio ilustra a forma irresponsável que as

mídias têm de divulgar a Ceilândia e outras periferias do Distrito Federal. O lastimável

resultado é que estas notícias corroboram para a construção do velho estigma de que na

Ceilândia só são encontrados criminosos.

45 Os alunos da turma que atendo não estavam envolvidos nesta briga. O incidente ocorreu no turno contrário.

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Outro lamentoso episódio ocorreu durante as visitações ao Sarau V.A. O sarau mal

começara e 10 camburões da polícia civil interromperam o evento para realizar uma ação. Nada

em especial foi descoberto, mas os artistas –em especial os negros- foram tratados com total

desprezo, desrespeito, sendo humilhados e silenciados durante toda a ação. Eles ameaçaram

deter os indivíduos que filmavam a ação com total abuso de poder. No outro dia, a mesma mídia

divulgou a ação de forma distorcida, desqualificando o movimento político que acontece na

praça. Como Carril (2006) afirma, neste momento os capitães do mato são ressignificados pelos

policiais que tem como alvo as pessoas negras.

Percebo, então, a necessidade de tornar os alunos protagonistas de seus discursos. Que

não apenas falem, mas ouçam o que dizem. Dessa maneira, as primeiras aulas foram destinadas

à oralidade. Debatíamos a questão da desigualdade social, as violências cometidas pela polícia

e o racismo. Mas, para não limitar o diálogo às problemáticas, sempre os questionava para que

observassem esses tópicos criticamente; assim, debatíamos, também, soluções plausíveis para

os problemas expostos.

Quando no documentário Orí se fala “em infância abandonada”, deve-se considerar as

condições de vulnerabilidade vividas pelas crianças marginalizadas. Parte da responsabilidade

dessa conjuntura é do poder público, que lhes sonega os direitos elementares. Trabalhar com

crianças de escola pública de periferia, então, é desafiador e extremamente delicado. Reflito

sobre os dados da Infopen (2014), que destacam que o perfil da população carcerária é

constituído por 31% de cativos entre 18 e 24 anos, sendo 67% de cor negra; e 53% tem o Ensino

Fundamental incompleto. A maioria dos crimes cometidos é por tráfico (27%) e roubo (21%),

sendo o tempo total das penas da população prisional condenada entre 4 e 8 anos (26% dos

casos). Por isso a escolha por uma instituição de Ensino Fundamental não é ocasional.

A caminho da universidade, quando observo a fila do ônibus que liga a Rodoviária do

Plano Piloto à Penitenciária do Distrito Federal (Papula) observo muitas mulheres. Todas elas

são muito simples e carregam numerosas sacolas; algumas interagem na fila imensa. Entre elas,

muitas negras e outras pardas e brancas. Logo cedo, elas aparentam ansiedade para embarcar

no próximo ônibus que sairá bastante lotado em destino ao presídio onde poderão ver seus

filhos, maridos e parentes. Penso no destino dos alunos mais uma vez, e nas técnicas

educacionais possíveis para que eles compreendam o poder da informação e da criticidade na

vida cotidiana.

III

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40

A escola que me proponho a trabalhar é simples e os recursos didáticos dispostos não

são muito eficazes para abarcar as necessidades dos estudantes. A começar pelo livro didático

de português disposto pelo Ministério da Educação que utiliza métodos da gramática tradicional

para o ensino de língua padrão. As propostas da Base Nacional Curricular Comum dialogam

que:

A língua tem duas dimensões: é oral e escrita. Assim, sua

aprendizagem considera o contínuo entre oralidade e

escrita: na alfabetização, em que o oral é representado por

notações (letras e outros signos), nos usos sociais da língua

oral e nos usos sociais da leitura e da escrita – nas práticas

de letramento. A meta do trabalho com a Língua

Portuguesa, ao longo do Ensino Fundamental, é a de que

crianças, adolescentes, jovens e adultos aprendam a ler e

desenvolvam a escuta, construindo sentidos coerentes

para textos orais e escritos; a escrever e a falar, produzindo

textos adequados a situações de interação diversas; a

apropriar-se de conhecimentos e recursos linguísticos –

textuais, discursivos, expressivos e estéticos – que

contribuam para o uso adequado da língua oral e da língua

escrita na diversidade das situações comunicativas de que

participam.

Mas como é possível alcançar essas práticas mediante conteúdos do livro didático tão

distantes da realidade dos aprendentes? Como é possível que produzam textos adequados a

diferentes situações se não há sequer uma aproximação linguística, se não há verossimilhança

com sua linguagem?

Outro fator problemático é a estrutura escolar. As salas de aula dispõem de poucos

recursos lúdicos, limitando-se ao velho padrão “quadro e giz”. As cadeiras ainda correspondem

ao modelo de enfileiramento de carteiras e cadeiras, impossibilitando uma prática social e

conjunta.

O atual modelo metodológico é arcaico no sentido que toda a avaliação é feita por

intermédio de cópia. Eles copiam as questões do quadro, copiam as respostas que encontram

nos livros, copiam os textos que encontram na internet para realizar os trabalhos, copiam as

respostas que memorizam para responder as provas. E a criticidade? Onde está a construção do

pensamento? Onde está a relação com a realidade? Ainda, onde está a funcionalidade de tais

práticas na vida cotidiana?

Não é surpresa que as crianças abandonem a escola, que não tenham assiduidade, que

reajam com rebeldia aos comandos pedidos em sala de aula. O despreparo por parte da gestão

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da escola e dos educadores também são grandes responsáveis para o fracasso escolar dos

aprendizes.

E o que fazer quando seus alunos já desistiram de suas potencialidades? O que fazer

quando os pequenos desconhecem seus direitos, seus deveres, sua cidadania? Encarar essa

realidade é árduo. Os alunos, em geral, são violentos, dispersos, desinteressados e rebeldes. E

a culpa é de quem? Me pergunto.

São diversos os questionamentos que me levaram a desenvolver esta metodologia. As

técnicas refletidas para dar conta de reparar as condições expostas acima também são inúmeras.

E o que fiz? A partir desses materiais planejo as aulas e sigo rumo a escola para encontrar os

pupilos todas as quintas-feiras a tarde e trabalhar este fenômeno: a língua.

IV

-‘Cêis tão ligados que eu também tenho que fazer o meu

corre?

Acima, algo que lhes questionei um dia. A linguagem que utilizo com os estudantes em

sala de aula contempla suas falas. Empregar gírias e expressões da periferia são apenas alguns

dos recursos que utilizo e os resultados são os melhores. Há, acima de tudo, reconhecimento

em minha fala. Portanto, a primeira prática retoma os princípios de harmonização linguística

de Faulstich (2015). Esta linguagem –a variante periférica - será o grande intermediador de

aproximação com a turma.

Utilizo-me de métodos funcionalistas. A abordagem linguística tem o ofício de

compreender os contextos sociais para entender as escolhas linguísticas do falante. Como

afirma Castilho (2012), não há estrutura linguística estática e correta, mas funções sociais

apropriadas para cada variante da língua. A exemplo, a expressão “corre”, que tem diversos

significados na periferia, e passa por processos de modificação de sentidos, denominado por

Castilho (2014) como semanticização46.

Os alunos do projeto não reconheciam outras significações para a palavra corre, se não

o significado ligado às atividades criminais. Com o diálogo, essa concepção foi desconstruída,

de modo que, ao final da aula, compreendiam o termo como:

46 “É o processo de criação, modificação e categorização do significado linguístico. Esse processo cobre os campos

da semanticização lexical, composicional e pragmática” (CATILHO, 2014, p. 92).

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1. Recorrer a vida do crime;

2. Esforço muito grande para execução de tarefas;

3. Atividades cotidianas;

4. Ações que o indivíduo deve realizar em um curto espaço de tempo;

5. Necessidades diárias;

As palavras “corre” e “correria”, então, passaram por processor de gramaticalização

(CASTILHO, 2012), pois advém do verbo “correr”. A primeira expressão, no presente do

indicativo, utilizado na 3ª pessoa do singular; a segunda, no futuro do pretérito do indicativo,

utilizado na primeira pessoa do singular.

Ao prezar a linguagem dos alunos, considero as táticas da Sintaxe Funcional, que analisa

as manifestações linguísticas a partir do contexto de uso. Vou além da normatização da língua

imposta por defensores de um “português culto” e correto, que desconsideram as variantes e

suas peculiaridades. As elites, classes que mais têm contato com o padrão do português,

evidentemente têm, também, mais oportunidades que as classes marginalizadas

(MARTELOTTA, 2016).

Dessa forma, procurei abandonar os livros didáticos. Me propus, primeiramente, ao

debate. Escolhida a temática de cada aula, selecionava raps que dialogassem com os assuntos

e avaliei-os criticamente junto dos alunos. Pedia que lessem em voz alta e que discorressem

acerca dos entendimentos com os trechos das canções. A princípio, poucos eram os que

voluntariamente falavam, mas foi possível a cada aula, a cada momento, incentivá-los a terem

protagonismo de voz nas rodas de debate.

Em seguida, além de preocupar-me em harmonizar nossos instrumentos de

comunicação, resolvi modificar a configuração espacial da sala. Nos primeiros contatos, pedi

que reformulassem o posicionamento das cadeiras. Primeiro, deixaríamos de utilizar carteiras,

cadernos e canetas; assim, fizemos um grande círculo com as cadeiras na sala. Disse-lhes: “A

gente tem que olhar na cara do outro, tá ligado? Quer xingar o colega? Então olha na cara,

véi47. Qual o problema”?

Dessa maneira, não havia competição na sala; ninguém teve posição verticalizada nas

rodas, inclusive eu mesma. Nenhum deles foi avaliado com vistos em cadernos, nem tiveram

que copiar textos homéricos acerca dos conteúdos trabalhados. É importante destacar que, com

47 VÉI: Variação da gíria “velho”. Vocativo destinado a qualquer pessoa, independente de gênero ou idade.

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o tempo, antes mesmo que eu adentrasse a sala de aula, os alunos já haviam organizado o

ambiente para iniciarmos a conversa do dia.

Essa configuração, no entanto, não foi suficiente para resolver as violências cometidas

entre os estudantes; o bullying estava sempre presente no ambiente. E não é difícil entender

porque agem assim: são tão violentados cotidianamente (com a marginalização e com a

escassez de recursos básicos, por exemplo), que refletem isso nas inter-relações. Portanto,

estabeleci que a base para o desenvolvimento das aulas seria o respeito. Evidentemente, não

pude evitar com isso que se ofendessem, mas exigi que se desculpassem, que olhassem nos

olhos e enxergassem no outro um alguém como eles, merecedor de respeito.

Quando declaravam coisas como:

-Cala a boca, animal. A p’sôra tá falando!

Respondia:

-Não é “cala a boca”. Você tá falando com algum animal? Peça desculpas.

E foi com mudanças lexicais simples como estas que conseguimos começar a

estabelecer o respeito em sala.

Para manter a atenção dos alunos, foi necessário, também, que fizessem pequenas

práticas meditativas no início das primeiras aulas. É possível tranquilizar a mente, relaxar o

corpo, aliviar as dores, fortalecer o sistema imunológico e desenvolver a percepção e

concentração a partir de técnicas de meditação, como afirma Goleman (1999):

Em essência, a meditação é o esforço para reexercitar a

atenção. E isso que dá à meditação os efeitos incomparáveis

de obtenção de conhecimentos, aumento da concentração e

capacidade de relacionar-se com empatia. A meditação é

porém mais usada como uma técnica rápida e fácil de

relaxamento. (GOLEMAN, 1999, p. 14)

A prática meditativa tem sido um mecanismo muito utilizado na sociedade pós-

moderna, devido aos corres diários. Ela funciona como uma terapia para problemas de

desordens psicossomáticas, e auxilia rapidamente nas situações estressantes (GOLEMAN,

1999, p. 17). A esses alunos que simplesmente reagem violentamente aos problemas

encontrados em sala de aula, achei necessário utilizar de práticas meditativas para que se

concentrassem e tentassem resolver as adversidades de forma mais racional.

As meditações eram guiadas. Sentados em círculo, deveriam fechar os olhos e respirar

profundamente enquanto levavam o pensamento e a imaginação aos locais que descrevia.

Lugares, objetos, cores, pessoas, várias foram as conduções utilizadas. Após a prática, os alunos

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relatavam voluntariamente como fora a experiência, de modo que este era o primeiro link que

fazia com a temática da aula do dia.

Ao passo que estas técnicas traziam, progressivamente, resultados positivos, me propus

a lecionar os conteúdos fora da sala de aula; levei os alunos a outros ambientes da escola,

portanto. É neste momento que passei a trabalhar a escrita. Optei pelo “xadrez” - assim

intitulado pelos alunos-, trata-se de um pequeno pátio que contêm uma bonita área verde ao ar

livre. O local contém mesas e cadeiras de concreto com tabuleiros de xadrez desenhados sobre

as mesas. A partir desta aula não foi mais preciso realizar as práticas meditativas, pois os alunos

já aguardavam preparados o início de nossa aula. Sentados nas mesas que comportavam até

quatro alunos, eles discutiam nos pequenos grupos. Foram distribuídas imagens que retratavam

questões sociais comuns na Ceilândia: racismo, pobreza, violência contra a mulher e

preconceito contra pessoas do estilo Hip Hop48. Juntos eles debatiam as imagens para,

posteriormente, responder individualmente questões referentes às mesmas.

Com essa prática, foi possível ressignificar o espaço escolar. Eles se surpreenderam e

gostaram de realizar a atividade além das limitações de quatro paredes, que é a sala de aula. A

prática de atividades como esta são de natureza ubuntu49, prática africana que possibilita modos

de viver conjuntamente de forma policêntrica e antirracista.

V

-Você se identifica com essa música?

-Sim.

-Por que?

-Porque é um rap, né p’sôra.

-Tá, e daí?

-Ah, ele tá falando dos cana, né?!

-Alguém tem alguma história ruim que passou com os cana

e quer compartilhar?

48 Há um grande estigma construído pela mídia que constróis a imagem de bandidos às pessoas que utilizam bonés,

roupas largas, colares de prata e tatuagem. O “estilo bandidão”, como denominam os próprios alunos, prova de

que está no imaginário social a associação deste estilo com o malfeitor, o delinquente. 49 “Em linhas gerais, ‘ubu’ indica tudo que está ao nosso redor, tudo que temos em comum. ‘Ntu’ significa a parte

essencial de tudo que existe, tudo que está sendo e se transformando. [...] Porque ubuntu significa que só posso ser

feliz se as pessoas ao meu redor também estão felizes” (NOGUERA, 2012, p.148-150).

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-P’sôra, uma vez eu levei um bacú50 do nada. Tava eu e

meu brother. A gente só tava caminhando na rua, só. Os

cara enquadraram a gente. Eu fiquei com medo porque só

tinha a gente na rua.

-Complicado, né?! E como você se sentiu?

-Ah, eu achei paia51, né?! Nada a ver52, moço53.

-Alguém sabe por que o irmãozinho aqui levou um bacú?

-Oxi, porque ele é da quebra54.

-Porque ele é preto.

Com falas como estas foi possível desenvolver aulas que tratassem sobre a

discriminação social e o racismo que ocorre nas periferias.

Uma das questões pontuais discutidas em sala de aula era a acessibilidade de direitos.

Dentro de um país que adota práticas burocráticas apoiadas em uma cultura grafocentrista55,

faz-se necessário o domínio da modalidade escrita oficial para que não sejam ainda mais

excluídos socialmente. Mas como é possível alcançar tal domínio, uma vez que esta modalidade

é tão distante de suas linguagens?

Dentro da cultura de periferias, a língua é carregada de particularidades. Mas as

expressões utilizadas acima são retidas pelos falantes cotidianamente e são aceitas nos

contextos de fala. Com criatividade, as expressões são criadas e repetidas na comunidade, de

forma que se agrega a língua, pois os recursos disponibilizados muitas vezes não são suficientes

para manifestarem-se efetivamente (CEZÁRIO, 2012).

Reconheço a linguagem desse grupo, e me aproprio dela a fim de educá-los. Mas é

preciso ir além dessa variante para que eles alcancem os espaços de poder. Portanto, para

trabalharmos a língua em sala de aula, também planejei aulas dedicadas a prática de reescrita.

Essa técnica foi utilizada a fim de que os alunos percebessem os desvios linguísticos (da língua

oficial) cometidos. Não apenas tinham que reescrever os textos baseados nas correções, mas

desenvolver tópicos que poderiam ser melhor explorados por eles. Assim, foi possível que, aos

poucos, trabalhássemos textos gradativamente mais complexos.

50 BACÚ: Revista policial. 51 PAIA: Ruim, desagradável. 52 NADA A VER: Não há sentido. 53 MOÇO: Assim como “véi”, o vocativo é destinado a qualquer pessoa, independente de gênero ou idade 54 QUEBRA: De “quebrada”, refere-se a periferia. 55 Conduta colonizadora que sujeita o indivíduo a modalidade escrita do português.

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47

CAPÍTULO 4

“Ceilândia, quilombo dos cantares”: um breve relato

I

“Ceilândia, quilombo dos cantares” é o nome dedicado ao projeto56 realizado na

instituição de ensino. O nome faz uma analogia ao “Quilombo dos Palmares”, que tivera no

século XVII a liderança de Zumbi dos Palmares57. A figura de Zumbi é a figura do herói

nacional ligado à memória do quilombo (RATTS, 2006, p. 123). Chamo o projeto assim, pois

é através das canções de rap e da poesia marginal que os ceilandenses retomam o quilombo.

Para a realização deste projeto, tive a autorização da instituição. No entanto, por

tratarmos de assuntos muito delicados, opto por resguardar a identidade dos alunos e da escola.

Os próximos subcapítulos contém as anotações58 da experiência de dois encontros com

os alunos, já no fim do Projeto.

II

Aula do dia 22/06

Ao chegar na escola, deparo-me com um aluno e uma aluna da turma na direção. A

história: diante uma confusão, ela dera um tapa na cara do aluno que revidou agressivamente.

O aluno foi suspenso.

Hoje sugeri que tivéssemos aula na Biblioteca. Os alunos, a caminho do local, soltavam

piadas como “Hoje a aula é no cemitério”. E de fato, o espaço é pouco frequentado. Antes de

chegarmos, parei no pátio da escola e sugeri uma conversa. Critiquei o posicionamento violento

dos alunos, mostrando a eles que não admitiria esse tipo de comportamento em minhas aulas,

advertindo, inclusive, que não daria continuidade no projeto caso esses eventos de desrespeito

continuassem a ocorrer. Atentei-os sobre a importância de correrem lado a lado, pois em suas

condições de marginalização, era importante construir laços de confiança e respeito com os

demais.

56 É importante destacar que nenhum recurso financeiro foi disponibilizado, seja por parte da escola, seja pela

universidade. 57 Segundo Abdias do Nascimento, Zumbi é o “fundador do quilombismo” (NASCIMENTO, 1980, p. 256, grifo

meu). 58 Toda a experiência foi registrada em um Diário de Bordo.

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Chegando na Biblioteca, já disponibilizara dicionários nas mesas. Pedi aos alunos que

procurassem a palavra quilombo. Os dicionários utilizados foram o Aurélio Júnior (2011),

Saraiva Jovem (2010), Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras (2011) e Caldas

Aulete Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (2011). Estes dicionários foram

encontrados no “cemitério” encaixotados, esquecidos em um canto. O material estava bem

conservado, aparentando pouco uso.

Os alunos procuraram o termo e pedi que lessem em voz alta o significado. Em geral,

as definições tratavam o quilombo como o “refúgio de escravos” -ou seja, a perspectiva do

colonizador. Então, comecei a contar-lhes um pouco da história do Brasil desde a invasão

portuguesa. Problematizei a questão dos indígenas e negros escravizados que eram trazidos

d’África – toda a aula foi lecionada em simples e direta variante do português utilizada pelos

alunos na periferia. Eles participavam, questionavam e respondiam as questões colocadas, o

que mostrou que o conhecimento estava sendo alcançado.

Em seguida, questionei o porquê de os cantores de rap chamarem a Ceilândia e outras

periferia e favelas de quilombo, e aos poucos iam respondendo com:

-Porque a favela é resistência.

-Resistência do que?

-Das coisas que passa.

-Que coisas?

-Hospitais ruins, escolas ruins, os cana.

-E por que os “navios negreiros” são vistos como “camburões do braço armado do

Estado brasileiro”?

-Por causa da violência. Porque a gente apanha, eles humilham a gente.

Em seguida, passei um poema que se encontra na faixa 11 do CD “Aqui Vamos Nós”

do grupo Sobreviventes de Rua. Pedi que lessem e respondessem as questões oralmente em

grupo:

1. Que tipo de texto é esse?

2. A linguagem utilizada se parece com a sua? Por que?

3. Que palavras que aparecem no texto que são muito distintas da sua?

4. Do que fala o poema?

5. O que é o quilombo?

6. A Ceilândia é um quilombo?

As respostas foram muito positivas pois, pouco a pouco, líamos o poema juntos para

interpretá-lo. A linguagem utilizada nesse poema é bastante formal, pois são encontrados verbos

conjugados na segunda pessoa do singular (“geraste”, sobreviveste”, disseste”, “tens”, entre

outros), além de vocabulário incomum no cotidiano periférico (“bradei”, “açoite”). No entanto,

ao interpretarmo-lo juntos, não houve limitações na compreensão do texto. Respondemos as

questões conjuntamente e, em seguida, coloquei a faixa no CD para que escutassem.

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O poema é declamado com bastante vivacidade, com uma voz firme e forte. Além disso,

o ritmo expresso pelo poema, a musicalidade e os sons que aparecem ao fundo, no momento da

declamação (trovões e sons da noite), criam uma atmosfera sombria e densa, o que carrega o

poema de emoção do eu-lírico. Ao passo que o poema é ouvido, é possível construir uma

imagem de um negro fugido, que corre pelas matas em chamas.

Este poema continha o mesmo discurso de protesto dos demais textos trabalhados em

sala. No entato, sua estrutura foi construída dentro da variante padrão da língua. Foi possível

construir uma harmonização no momento que o poema foi lido individualmente e depois

coletivamente, de forma que fazíamos as interpretações pontualmente. Finalizamos a aula com

louvor.

III

Aula do dia 29/06

Aula na Biblioteca.

Preparei uma atividade que consistia em elaboração de texto. No enunciado haviam duas

opções de construção textual. Esta é a segunda vez que dois novos alunos aparecem para a aula.

Todos deveriam elaborar, individualmente, a atividade descrita abaixo:

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No total, 14 alunos participaram da aula e apenas 2 não fizeram a atividade proposta.

Procurei incentivá-los, ajudar-lhes a construir uma narrativa, mas eles, no fim, alegaram estar

cansados ou ainda alegaram que não conseguiam.

Durante a aula eles iam construindo o texto, e ao passo que desenvolviam, pediam que

eu avaliasse. Dei sugestões, mas em momento nenhum questionei os desvios linguísticos

cometidos. Esses reparos serão feitos para o próximo encontro, no quão farão a reescritura de

textos, e desenvolverão um trabalho final.

Foram percebidos bastantes desvios que mostram o quão distante alguns alunos estão

da língua padrão. Mas o processo criativo ocorreu em todos eles, mostrando que havia ali

conhecimento e certa criticidade aos pontos sugeridos.

Havia em cada um dos textos uma imagem diferente. Elas, em geral, mostravam a ação

violenta da polícia, a violência contra a mulher e a situação de moradores de rua.

PRODUÇÃO DE TEXTO

Opção 1: Reflita profundamente a situação destas pessoas. Pense a

respeito da história que contamos sobre os quilombos e a realidade das favelas e

periferias do Brasil. Agora, redija um texto criando uma história. Você dará aos

seus personagens nomes e idades.

Você escolherá a Ceilândia como cenário e discutirá criticamente o

porquê destas pessoas sofrerem. Seu texto deverá ter no mínimo 15 linhas e 3

parágrafos. No último parágrafo você deverá apresentar uma solução para o

problema apresentado.

Lembre-se de ser bem criativo. Utilize uma linguagem mais formal.

Opção 2: Reflita profundamente a situação destas pessoas. Pense a

respeito da história que contamos sobre os quilombos e a realidade das favelas e

periferias do Brasil. Agora, redija um texto criando um rap. Você dará aos seus

personagens nomes e idades.

Você escolherá a Ceilândia como cenário e discutirá criticamente o

porquê destas pessoas sofrerem. Seu rap deverá ter no mínimo 15 linhas. Na

última parte você deverá apresentar uma solução para o problema apresentado.

Lembre-se de ser bem criativo. Utilize uma linguagem típica do rap.

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Ao final, recolhi os textos e ouvi: “Tô preferindo essas aulas que as outras do começo”.

Observações:

O aluno59 apontado como o mais problemático pela turma e pela escola mudara de turno.

Infelizmente, não tivemos mais contato. Ele participou do projeto desde o começo, e mostrava

interesse nas aulas, muito respeito por mim e simpatia às atividades propostas.

Outra aluna (a que é mãe) que participou ativamente das primeiras aulas também tem

faltado bastante. Um dia, ao avistar a aluna na rua, perguntei o porquê de estar tão ausente nas

aulas. Ela relatou problemas com o marido. Nos braços, a aluna tinha várias cicatrizes que,

segundo ela, foram resultado de cortes feitos (por ela mesma) para aliviar a raiva que sentia.

Questiono-me o que ocorreu com estes alunos.

59 No início do projeto, soube pela escola e pelos alunos que ele acabara que cumprir pena em uma unidade de

retenção para menores infratores.

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CONSIDERAÇÕES

Dentro desta pesquisa foi possível perceber que a palavra quilombo passa por diversas

transformações. Apresento as concepções de teóricos da Geografia e da História. Além disso,

procuro a concepção dicionarizada do termo, assim como sua manifestação na estética musical

própria das periferias.

Nas periferias, o quilombo irá significar a luta e a resistência, principalmente no

movimento negro. Quando os sujeitos se aquilombam, é com a tentativa de promover melhoras

às favelas; eles resistem e existem. Reconhecem a exploração, o preconceito, a segregação e a

minorização que sofrem por parte de políticas públicas, pelo abuso de poder por parte da polícia

e por parte dos estereótipos que estão no imaginário da sociedade, construídos pela elite

midiática.

Dentro de um contexto urbano, o “escravo” passa a ser o proletariado, o negro, o pobre

de periferia; “navios negreiros” são ressignificados como os camburões da polícia. Neste

momento, o quilombo é a representação das áreas marginalizadas nos centros urbanos (também

chamados “periferias” e “favelas”).

É possível que os alunos inseridos nessa realidade tenham acesso à educação formal

eficaz a partir de metodologias que envolvam a interação. Só é possível haver conhecimento,

compreensão, quando há representatividade; só é possível aprender com o outro. E se há uma

aproximação desse outro com a realidade do indivíduo, se há uma harmonização na forma como

esse outro se comunica, se há de fato uma interação, a comunicação funciona.

A variante oficial é uma língua de acessibilidade, porque possibilita que se interprete os

direitos e deveres do cidadão em leis, possibilita diálogos em contextos oficiais, possibilita o

ingresso em universidades e em cargos públicos. Portanto, é importante ter este conhecimento

para a articulação em momentos específicos. Levar este conhecimento de forma efetiva às

periferias é oferecer possibilidades para que os indivíduos tenham escolhas além da vida do

crime e do emprego informal. Permite que eles tenham autonomia e criticidade.

As questões dos alunos desta turma tão problemática eram sempre discutidas entre os

professores e a gestão escolar. No entanto, os membros nunca vislumbraram uma resolução

para a turma. Os professores regentes declaravam intenso cansaço quanto às tentativas de

solucionar os problemas deste grupo.

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Trabalhamos letras de rap, debates, meditações, escritura e reescritura de textos. No

início, a resistência mostrada por parte dos alunos foi, aos poucos, dando lugar à criação, à

curiosidade, a ação conjunta e ao respeito.

Para desenvolver esta metodologia foi preciso, acima de tudo, compreender o contexto

que estes estavam inseridos. Pesquisei criticamente a história deste quilombo, a Ceilândia, em

textos teóricos e em textos estéticos a fim de compreender as problemáticas locais.

Vários estereótipos foram desconstruídos nesse processo. Os alunos entendiam sua

história e seu papel na sociedade, compreenderam a realidade do negro. Esse conhecimento foi

avaliado nas produções de textos. As imagens trabalhadas em sala que relatavam questões como

a situação das periferias, o preconceito contra o negro, a violência contra a mulher, o

preconceito contra o estereótipo do bandido (ligado à estética do Hip Hop) foram

representações da construção da imagem da periferia. Os resultados possibilitaram que os

alunos reconhecessem o outro com um olhar mais compreensível. Isso só foi possível com

práticas de ressocialização e desenvolvimento linguístico.

“Professora, vou abolir com minha namorada”. Quando o aluno pronuncia tal

declaração, procura associar a palavra “abolir” com “terminar”. Pensar em abolição da

escravatura é ter o entendimento de que este fatal acontecimento fora encerrado. E de fato foi?

Por que o rap, então, retoma o quilombo e a escravidão?

A simbologia do quilombo ocorre como uma busca no passado histórico que justifica a

condição presente. Usar esse discurso em sala de aula foi extremamente positivo, pois foi

possível problematizar desde as violências cometidas pelo poder público às violências que

ocorriam entre eles próprios na escola.

Por que os jovens periféricos ainda estão nesta condição? É como se, para sobrevivência,

tivessem em aquilombar-se, ainda tendo que manter esse discurso de resistência, como aquele

que sobrevive perante tudo isso. Foi necessário conhecessem a cidade para entenderem suas

condições. Hoje, eles sabem porque precisam estudar a variante padrão do português e sabem

quando usar.

Devido ao estereótipo negativo da Ceilândia construído pela mídia, não há um incentivo

de promover a cidade; isso ocorre, entre outros fatores, por conta da especulação imobiliária.

Esta cidade60, tão importante na construção da capital, passa por uma falsa abolição, no qual

são mantidos às margens resistindo e sobrevivendo.

60 Não desconsidero a realidade de outras RAs em condições ainda mais problemáticas que a Ceilândia, como o

Itapoã, a estrutural e o Varjão. Incentivo, inclusive, que a situação dessas regiões administrativas seja

problematizada a fim de promover recursos que solucionem essas questões.

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54

Se outrora os alunos se interessavam em exibir celulares e alianças –cujos procedentes

nunca questionei, mas segundo eles, eram resultados de seus corres - hoje mostram suas

opiniões com total liberdade para manifestarem-se.

Uma vez que a questão da violência é tão corriqueira na escola, foi necessário que

fizéssemos atividades voltadas a essa temática a fim de reparar estes comportamentos. É

impossível, cruel e até utópico conceber que trabalharia com os meninos essencialmente a

língua, visto que há tantos outros fatores a serem discutidos em sala. Ora, que serventia veriam

na língua padrão se não fosse problematizando o contexto que estão inseridos, tal como a

funcionalidade dessa variante?

Para finalizar, acrescento alguns trechos do poema de Deley de Acari, que problematiza

a relação que se faz com o termo quilombo e a favela. Deley, expressa em seus versos, a leitura

de quilombo como um lugar positivo, comparado à realidade das favelas.

Quem diz que favela é quilombo urbano

Não vive, não sabe o que diz

Não sabe que quilombo urbano seria sinônimo de

socialismo,

Não machismo, não racismo, igualdade, irmandade,

parceria, ajuda mútua, amor, felicidade, harmonia

E que na favela, há muito pouco de cada

isso, um quase nada de cada isso.

(“Quem diz que... Não vive, não sabe o que diz”61)

61 Poema encontrado no livro “Um século de favela” organizados por Alba Zaluar e Marcos Alvito (Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2006).

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GLOSSÁRIO

Bacú: Revista policial.

Boy: De “playboy”, aquele que possui boa condição financeira.

Cana: Polícia.

Colar: Frequentar, visitar.

Corre/correria: Atividades criminais; Necessidade financeiras diárias; Esforço muito grande

para execução de tarefas; Atividades cotidianas; Ações que o indivíduo deve realizar em um

curto espaço de tempo; Necessidades diárias.

Correr com: Acompanhar o outro nas trajetórias; estabelecer parcerias.

Dar ideia: Orientar; avisar; ensinar.

Dar a ideia: Prestar atenção.

Estar junto: Ser companheiro, ser amigo; oferecer ajuda/apoio.

Estar ligado: Estar atento.

Irmão: Amigo; pessoa no qual se tem afinidade ou empatia; aquele com que se corre lado a

lado.

Jão: De “João”, vocativo relacionado a qualquer pessoa no qual não se sabe ou não é

necessário especificar o nome.

Lado a lado: Relação horizontal entre pessoas.

Moço: Assim como “véi”, o vocativo é destinado a qualquer pessoa, independente de gênero

ou idade

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Nada a ver: Não há sentido.

Paia: Ruim, desagradável.

Quebra: De “quebrada”, refere-se a periferia.

Tio: Não há grau de parentesco. Trata-se de um vocativo destinado àquele que não se sabe o

nome, em geral, homens mais velhos.

Trocar ideia: De “quebrada”, refere-se a periferia.

Véi: Variação da gíria “velho”. Vocativo destinado a qualquer pessoa, independente de gênero

ou idade.