UNIVERSIDADE DE LISBOA -...

957
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SECÇÃO AUTÓNOMA DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS Os Museus Escolares de História Natural – Análise histórica e perspectivas de futuro (1836-1975) Inês Duarte Aleixo Lourenço de Oliveira Gomes DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS 2014

Transcript of UNIVERSIDADE DE LISBOA -...

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE CINCIAS

SECO AUTNOMA DE HISTRIA E FILOSOFIA DAS CINCIAS

Os Museus Escolares de Histria Natural Anlise histrica e

perspectivas de futuro (1836-1975)

Ins Duarte Aleixo Loureno de Oliveira Gomes

DOUTORAMENTO EM HISTRIA E FILOSOFIA DAS CINCIAS

2014

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE CINCIAS

SECO AUTNOMA DE HISTRIA E FILOSOFIA DAS CINCIAS

Os Museus Escolares de Histria Natural Anlise histrica e

perspectivas de futuro (1836-1975)

Ins Duarte Aleixo Loureno de Oliveira Gomes

Tese orientada pela Doutora Marta Catarino Loureno e pelo Professor

Doutor Lus Antnio de Matos Vicente, especialmente elaborada para a

obteno do grau de Doutor em Histria e Filosofia das Cincias.

2014

Ao Pedro

Ao Sebastio

i

Agradecimentos

Uma tese de doutoramento deve sempre muito a muitas pessoas. Cabe-me aqui

expressar a minha gratido a todos os que, de variadssimas formas, ajudaram a realizar

este trabalho.

Em primeiro lugar, quero agradecer aos meus orientadores; ao Professor Doutor Lus

Vicente, que me apresentou os museus escolares de histria natural, e Doutora Marta

Loureno, que acolheu desde o primeiro momento este projecto de investigao, e cujas

contribuies para a sua gnese e desenvolvimento foram essenciais.

Agradeo tambm ao Centro Interuniversitrio de Histria das Cincias e da Tecnologia

(CIUHCT) e Seco Autnoma de Histria e Filosofia das Cincias (SAHFC), agradecendo,

particularmente, Professora Doutora Ana Simes e ao Professor Doutor Henrique Leito

os estmulos e sabedoria numa viagem reflexiva sobre o que a Histria das Cincias e

seus conceitos fundamentais. Professora Doutora Ana Carneiro agradeo a leitura

atenta de alguns captulos, propondo sugestes de correco com comentrios sempre

pertinentes s primeiras verses desta tese. Ao CIUHCT, agradeo, ainda, a possibilidade

que me deu de apresentar o meu trabalho em diversos congressos nacionais e

internacionais, permitindo o meu crescimento intelectual, assim como o aprofundamento

da minha investigao. Ao secretariado da SAHFC e do CIUHCT, em particular Assuno

Bispo e Magda Eloy, agradeo pela disponibilidade permanente para tratar dos assuntos

de natureza burocrtica associados realizao desta tese. Agradeo a todos os meus

colegas do CIUHCT pela discusso, estmulo, motivao e troca de ideias, Antonio

Snchez, Bruno Almeida, Bruno Barreiros, Catarina Madruga, Cludia Castelo, Conceio

Tavares, Cristina Picano, Francisco Romeiras, Isabel Zilho, Jlia Gaspar, Luana

Giurgevich, Lus Tirapicos, Lusa Sousa, Nuno Figueiredo, Pedro Raposo, Ricardo Castro,

Teresa Nobre de Carvalho e Teresa Salom Mota. Um agradecimento especial Marta

Macedo e ao Samuel Gessner pelos comentrios assertivos que foram fazendo, pela

reviso dos textos que fui escrevendo e pelas ajudas nas suas tradues.

ii

Agradeo, tambm, ao Professor Doutor Lus Carolino o entusiasmo e prontido com que

sempre se disponibilizou para ir lendo o meu trabalho, motivando-me para a sua

realizao. Professora Doutora Maria Joo Mogarro e ao Professor Doutor Joo Brigola,

assim como, mais uma vez, Professora Doutora Ana Carneiro, agradeo pelas

pertinentes crticas no mbito das provas pblicas que realizei ao longo do

doutoramento. Agradeo, igualmente, ao Professor Doutor Jos Ramn Bertomeu-

Snchez por me ter acolhido em Valncia, no incio deste projecto, estimulando-me com

o seu apoio, as conversas tidas e as sugestes de livros e artigos. Agradeo, tambm, a

Mar Cuenca-Lorente o apoio logstico para a realizao dessa viagem e a Jos Rul

Snchez Martnez pela ajuda em Mrcia. Ao Professor Doutor Josep Simon agradeo a

prontido com que me disponibilizou os seus trabalhos e os anurios das escolas

secundrias espanholas, uma importante fonte no enquadramento internacional da

minha investigao. Ao Joo Guilherme, ao Professor Doutor Rui Rebelo e ao Professor

Doutor Carlos Assis agradeo o apoio na identificao dos espcimes existentes no Museu

de Histria Natural do Colgio Militar, tarefa que infelizmente no chegou a ser concluda.

Ao Lus Ceraco, ao David Felismino e Ana Romo agradeo a discusso, aprendizagem e

camaradagem ao longo dos trabalhos que realizamos em conjunto. Ao primeiro devo uma

palavra especial por todo o apoio e disponibilizao de fontes e artigos.

Um agradecimento, tambm, s instituies e pessoas que permitiram que esta pesquisa

fosse possvel. Fundao para a Cincia e Tecnologia, pela bolsa que me atribuiu

(SFRH/BD/ 47653 /2008), sem a qual este trabalho no teria sido possvel. Ao Major-

General Fernando Joaquim Alves Cias Ferreira, data da minha pesquisa no Colgio

Militar director do mesmo, e ao Coronel Jos Pedro Contente Fernandes, ento Chefe do

Servio Escolar, devo um agradecimento especial. Desde que souberam da minha tese

prontificaram-se a dar-me acesso a todas as coleces do Colgio e a todos os

documentos do Arquivo Histrico. Agradeo ao Professor Pinto Lopes, professor de

biologia do Colgio e responsvel pelo Museu de Histria Natural pela sua disponibilidade

e simpatia durante toda a minha investigao no Colgio. Agradeo a todos os que

iii

possibilitaram e acompanharam as visitas s escolas e autorizaram a utilizao das

imagens na tese, Ana Campos, Ana Isabel Feitor, Ana Pires, Antnio Almeida, Cludia

Vieira, Dora Oliveira, Fernando Delgado Santos, Isabel Pio, Iracema Cordeiro, Joo Paulo

Constncia, Joo Paulo Dias, Joo Paulo Leonardo, Madalena Lambria, Marcolina Guerra,

Raul Santos, Teresa Carvalhal e Vanda Salvaterra. Dra. Paula Telo agradeo a

disponibilidade para me esclarecer sobre as iniciativas do Ministrio da Educao e

Cincia relativas ao patrimnio escolar. Agradeo, ainda, aos funcionrios das Bibliotecas

e Arquivos que consultei, nomeadamente o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o

Arquivo e Biblioteca da Secretaria-geral do Ministrio da Educao e Cincia, o Arquivo

Histrico e Biblioteca do Colgio Militar e a Biblioteca da Faculdade de Cincias, toda a

disponibilidade demonstrada. Em particular, a Dra. Franoise Le Cunff, do Ministrio da

Educao e Cincia, deu o maior apoio na consulta das fontes documentais, sem a ajuda

da qual esta tese no teria chegado aos resultados a que chegou. Devo, tambm, uma

palavra de apreo ao Vtor Gens do Arquivo Histrico dos Museus da Universidade de

Lisboa e Dra. Amrica Balau Esteves da Biblioteca da Faculdade de Cincias da

Universidade de Lisboa pela seriedade com que executa o seu trabalho, mesmo quando

defrontada com dificuldades internas.

Agradeo, por fim, minha famlia e amigos, suporte permanente sem o qual dificilmente

teria concludo este trabalho. Ao Pedro, o meu primeiro e mais crtico leitor, agradeo a

leitura atenta e cuidadosa de todos os textos que escrevi ao longo dos ltimos 5 anos, os

seus comentrios e o seu encorajamento. Ao Sebastio, que nasceu trs meses depois do

incio deste projecto, e por isso sempre o acompanhou, agradeo o seu amor e o seu

sorriso.

iv

v

Resumo

Cruzando as reas disciplinares da histria das cincias, histria das coleces e

patrimnio cientfico, esta tese tem como objecto de estudo as coleces de histria

natural dos liceus portugueses. O seu objectivo identificar e caracterizar as linhas de

fora que orientaram a sua constituio, desenvolvimento, trnsitos e usos entre 1836 e

1975 de forma a compreender as prticas de ensino no passado e os significados dos

objectos que as constituem no presente.

Do ponto de vista patrimonial, um levantamento preliminar sobre o que existe

actualmente, ainda que fragmentado, permitiu enquadrar este patrimnio e sua

importncia para as prprias escolas, para a comunidade cientfica e para a sociedade

portuguesa. Do ponto de vista da histria das cincias, deu-se centralidade s fontes

materiais, atravs da sua divulgao e da demonstrao da sua pertinncia, sobretudo

quando cruzadas com fontes documentais e iconogrficas. O estudo destas coleces de

ensino permitiu conhecer mais profundamente como as cincias biolgicas e geolgicas

foram ensinadas nos liceus portugueses, contribuindo para o conhecimento sobre as

prticas cientficas e pedaggicas em Portugal. Este estudo reflecte sobre o lugar das

cincias no ensino ao longo dos sculos XIX e XX e permite destacar a importncia da

circulao, das trocas locais e das redes globais, na construo dos lugares para o ensino

das cincias.

Palavras-chave: coleces de histria natural; liceus; patrimnio cientfico; patrimnio

da educao; histria da educao cientfica

vi

Abstract

Using natural history collections in Portuguese schools (1836-1975) as a main source and

point of departure, this thesis crosses methodological approaches from the history of

science, the history of collections and scientific heritage studies, to identify and describe

the creation, development, transit and use of natural history teaching collections and to

understand past practices and the meaning of objects in the present.

From a scientific heritage perspective a survey, albeit geographically limited, enabled a

preliminary overview of the present state of natural history collections in schools, as well

as their significance for the schools, research and society. From the perspective of the

history of science, this thesis underlines the crucial role of material culture as primary

sources, through its use and demonstration of its relevance, especially when

complemented with textual and iconographic sources. The study of teaching collections

allowed a deeper understanding of how biological and geological sciences were taught in

Portuguese secondary schools, reflecting the changing status of science during the

nineteenth and twentieth centuries, uncovering new dimensions of science teaching in

Portugal and highlighting the importance of circulation, local exchanges and global

networks in the construction of teaching spaces in science.

Key words: natural history collections; secondary schools; scientific heritage; heritage

of education; history of scientific education

vii

Abreviaturas

AHCM Arquivo Histrico do Colgio Militar

AHMUL Arquivo Histrico dos Museus da Universidade de Lisboa (antigos Arquivos

Histricos do Museu de Cincia e do Museu Bocage).

ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

ASGME Arquivo da Secretaria-geral do Ministrio da Educao e Cincia

BSCS Biological Sciences Curriculum Study

CIUHCT Centro Interuniversitrio de Histria das Cincias e da Tecnologia

CSIP Conselho Superior de Instruo Pblica

DGEL Direco Geral do Ensino Liceal

DGIP Direco Geral de Instruo Pblica

FCUL Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa

IICL Instituto Industrial e Comercial de Lisboa

JAEES Junta Administrativa do Emprstimo para o Ensino Secundrio

MR Ministrio do Reino (M depois da abreviatura MR significa mao)

MUHNAC Museu Nacional de Histria Natural e da Cincia

UL Universidade de Lisboa

UNL Universidade Nova de Lisboa

viii

ndice Geral Agradecimentos ................................................................................................................................... i

Resumo ............................................................................................................................................... v

Abstract .............................................................................................................................................. vi

Abreviaturas ...................................................................................................................................... vii

Introduo .......................................................................................................................................... 1

1. Histria, Educao e Coleces de Histria Natural .................................................................... 13

1.1 Coleco, Museu e Patrimnio no contexto da Histria da Escola ........................................ 13 1.2 O ensino cientfico no cruzamento entre histria das cincias e histria da educao ........ 16 1.3 Cultura material: A problemtica das fontes materiais na histria ....................................... 21

1.3.1 Biografias de objectos e coleces ................................................................................. 25 1.4 A dupla relevncia das coleces de histria natural para o passado e para o presente ..... 28 1.5 As coleces de histria natural na histria das cincias e na histria da educao ............ 33

1.5.1 As coleces de histria natural em Portugal ................................................................. 36

2. De objectos empoeirados a patrimnio cientfico: As coleces de histria natural das escolas secundrias portuguesas na actualidade ......................................................................................... 43

2.1 Iniciativas nacionais recentes de preservao, estudo e acessibilidade do patrimnio cientfico das escolas .................................................................................................................... 43 2.2 Um retrato do presente: As coleces de histria natural das escolas secundrias ............. 51

2.2.1 As visitas: Mtodos e mbito .......................................................................................... 51 2.2.2 O panorama actual .......................................................................................................... 53

2.3 Notas finais: Objectos empoeirados ou patrimnio cientfico? .......................................... 66

3. As coleces de histria natural nas reformas do ensino secundrio ......................................... 71

3.1 Antecedentes histricos dos liceus portugueses: O passado recente e a influncia estrangeira ................................................................................................................................... 74 3.2 De Passos Manuel a Jaime Moniz (1836-1894) ...................................................................... 84 3.3 A Reforma de Jaime Moniz (1894-1895) ................................................................................ 92 3.4 Eduardo Jos Coelho e as novas propostas do sculo XX (1905-1928) ................................. 98

3.4.1 A Reforma de 1905.......................................................................................................... 98 3.4.2 O ensino das cincias depois de Eduardo Jos Coelho ................................................. 102

3.5 As ltimas dcadas do liceu ................................................................................................. 111

4. Coleces de histria natural dos liceus portugueses: Constituio, desenvolvimento, circulao e prticas ........................................................................................................................................ 121

4.1 As primeiras coleces de histria natural nos liceus portugueses (1836-1895) ................ 126

ix

4.2 As coleces de histria natural depois de Jaime Moniz e nas primeiras dcadas do sculo XX (1895-1928) ........................................................................................................................... 144

4.2.1 O impacto da Reforma de Jaime Moniz nas coleces de histria natural .................. 144 4.2.2 A autonomia antes da Junta Administrativa do Emprstimo para o Ensino Secundrio (1906-1928) ............................................................................................................................ 162

4.3 As coleces de histria natural nas ltimas dcadas do liceu (1928-1975) ....................... 170

5. A coleco de histria natural do Colgio Militar, Lisboa .......................................................... 187

5. 1 O Museu de Histria Natural do Colgio Militar na actualidade ........................................ 190 5.2 A criao do Colgio Militar e as disciplinas de cincias ...................................................... 195 5.3. Origens e desenvolvimento do Museu de Histria Natural do Colgio Militar .................. 198

5.3.1 As aquisies ................................................................................................................. 198 5.3.2 As doaes .................................................................................................................... 204

5.4 O discurso e as prticas ........................................................................................................ 220

Discusso ........................................................................................................................................ 231

Bibliografia e Fontes ....................................................................................................................... 241

x

ndice de Tabelas

Tabela 1. Nmero de escolas por categoria de material, de acordo com o levantamento realizado em 1996 pelo Ministrio da Educao. ............................................................................................ 65 Tabela 2. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal, nos liceus de primeira classe. ......................................................................... 87 Tabela 3. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal, nos liceus de segunda classe. ......................................................................... 89 Tabela 4. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal, nos liceus de primeira classe. ......................................................................... 99 Tabela 5. Nmero de horas semanais nas diferentes disciplinas da rea das humanidades para todos os anos do curso liceal, nos liceus de primeira classe. ........................................................ 100 Tabela 6. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal e nmero de horas semanais de aulas prticas de cincias, nos liceus de primeira classe. .............................................................................................................................. 104 Tabela 7. Nmero de horas de aulas semanais nas disciplinas de cincias naturais e fsica e qumica para todos os anos do curso liceal, nos liceus de primeira classe. .................................. 104 Tabela 8. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal e nmero de horas semanais de aulas prticas de cincias, nos liceus de primeira classe. .............................................................................................................................. 105 Tabela 9. Nmero de horas de aulas semanais nas disciplinas de cincias biolgicas e geolgicas e fsica e qumica para todos os anos do curso liceal, nos liceus de primeira classe. ...................... 106 Tabela 10. Nmero de horas de aulas semanais nas diferentes reas disciplinares para todos os anos do curso liceal e nmero de horas semanais de aulas prticas de cincias, nos liceus de primeira classe. .............................................................................................................................. 112 Tabela 11. Nmero e percentagem de liceus por categoria de material, 1895. ........................... 139 Tabela 12. Distribuio dos espcimes zoolgicos (vertebrados) por classe, em diversos liceus, 1895.. ............................................................................................................................................. 140 Tabela 13. Nmero de categorias de material por liceu, 1895. ..................................................... 143 Tabela 14. Nmero e percentagem de liceus por categoria de material, 1906. ........................... 154 Tabela 15. Nmero de categorias de material por liceu, 1906. ..................................................... 155

xi

Tabela 16. Distribuio dos espcimes zoolgicos (vertebrados) por classe, em diversos liceus, 1895 e 1906. ................................................................................................................................... 156 Tabela 17. Nmero e percentagem de liceus por categoria de material, 1928. ........................... 164 Tabela 18. Nmero de categorias de material por liceu, 1928. ..................................................... 165 Tabela 19. Distribuio dos espcimes zoolgicos (vertebrados) por classe, em diversos liceus, 1895, 1906 e 1928. ......................................................................................................................... 166 Tabela 20. Nmero e percentagem de liceus por categoria de material recebido pela Comisso de Reapetrechamento, 1966-1972 . ................................................................................................... 179 Tabela 21. Nmero de categorias de material comprado pela Comisso de Reapetrechamento por liceu entre 1966 e 1972. ................................................................................................................ 180

xii

ndice de Figuras

Fig. 1 Coleco de histria natural da Escola Secundria de S da Bandeira, Santarm, dispersa pelos corredores da Escola (Novembro, 2010) ................................................................................ 56 Fig. 2 Animais taxidermizados revelando sinais de deteriorao, Colgio Portuglia, Lisboa (Outubro, 2011).. ............................................................................................................................. 57 Fig.3 Arquivo Histrico da Escola Secundria de Cames, Lisboa (Junho, 2009) ......................... 58 Fig. 4 Exemplares das coleces de histria natural das diversas escolas visitadas ..................... 59 Fig. 5 Coleco de espcimes zoolgicos conservados em lquido, Escola Secundria de S da Bandeira, Santarm (Novembro, 2010) ........................................................................................... 60 Fig. 6 Coleco de microscpios, Escola Secundria de Gil Vicente, Lisboa (Dezembro, 2010) ... 60 Fig. 7 Coleco de rochas, Colgio Portuglia, Lisboa (Outubro, 2011) ........................................ 60 Fig. 8 Coleco de modelos para estudo da cristalografia, Escola Secundria de Gil Vicente, Lisboa (Dezembro, 2010) ................................................................................................................. 61 Fig. 9 Modelo anatmico do corpo humano da casa Auzoux, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ................................................................................................................................................ 61 Fig. 10 Modelo geolgico da casa Nucleon, Escola Secundria Mouzinho da Silveira, Portalegre (Dezembro, 2010) ............................................................................................................................ 62 Fig. 11 Nautilus pompilius cravado, Escola Secundria Andr de Gouveia, vora (Agosto, 2011) .......................................................................................................................................................... 62 Fig. 12 Coleco de modelos anatmicos de plantas da casa Brendel e vulo campilotrpico de Alisma plantago, modelo da mesma casa, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011). ................... 63 Fig. 13 Coleco de histria natural da Escola Secundria de Jos Estevo, Aveiro (Junho, 2014) .......................................................................................................................................................... 63 Fig. 14 Mquina de filmes rotativos e respectivo filme (BSCS), Escola Secundria de Ferno Mendes Pinto, Amada (Outubro, 2010). .......................................................................................... 64 Fig. 15 Modelos anatmicos de zoologia da casa mile Deyrolle, Escola Secundria de Pedro Nunes, Lisboa (Novembro, 2010) ..................................................................................................... 66 Fig. 16 Coleco geolgica oferecida pelo Instituto Superior Tcnico por intermdio de Alfredo Bensade. Escola Secundria Antero de Quental, Ponta Delgada (Setembro, 2014) ................... 148 Fig. 17 Jardim botnico e campo experimental, Escolas Normais do Porto ............................... 157

xiii

Fig. 18 Emberiza sp. procedente do Colgio de Campolide, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) .............................................................................................................................................. 158 Fig. 19 Museu de Histria Natural, Liceu Cames....................................................................... 160 Fig. 20 Aula de fsica, Liceu de Guimares .................................................................................. 160 Fig. 21 Aula de Cincias Naturais (6. classe), Liceu Passos Manuel ........................................... 161 Fig. 22 Gabinete de Cincias Naturais - Alunos da 6. classe de microscopia, Liceu de Aveiro, ano lectivo de 1926-1927. ..................................................................................................................... 168 Fig. 23 Gabinete de Cincias Biolgicas e Geolgicas, Liceu Maria Amlia Vaz de Carvalho ..... 169 Fig. 24 Nota do Liceu de Santarm, agradecendo as oferta de coleces pelo director do Museu Bocage. ........................................................................................................................................... 174 Fig. 25 Etiquetas de algumas das casas produtoras e importadoras de materiais didcticos. ... 177 Fig. 26 Aula de Cincias Naturais, Colgio Militar, Lisboa. .......................................................... 191 Fig. 27 Aula de Cincias Naturais, Colgio Militar, Lisboa. .......................................................... 191 Fig. 28 Actual Museu de Histria Natural, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ................ 192 Fig. 29 Espcimes taxidermizados, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ........................... 193 Fig. 30 Modelos anatmicos de botnica da casa R. Brendel: modelo de Euphorbia cyparissias e modelo esquemtico da ramificao alterna, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ............. 193 Fig. 31 Modelos anatmicos de zoologia da casa Les Fils dmile Deyrolle: modelo do sistema nervoso de um Cyclostoma e anatomia de um Helix pomatia, Colgio Militar, Lisboa (Janeiro, 2012) .............................................................................................................................................. 194 Fig. 32 Modelos anatmicos do olho e do ouvido humano da casa Auzoux, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) .......................................................................................................................... 202 Fig. 33 Texugo (Meles meles) originalmente da coleco de D. Pedro V no Pao das Necessidades e respectiva etiqueta com a inscrio off. El Rei, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) .... 207 Fig. 34 Passeriforme (Tanagra ornata) originalmente pertencente ao Real Museu da Ajuda, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ...................................................................................... 207 Fig. 35 Herbrio do Instituto Botnico da Universidade de Coimbra, Colgio Militar, Lisboa (Janeiro, 2012)................................................................................................................................ 211 Fig. 36 Exemplar geolgico oferecido pela Comisso dos Servios Geolgicos, Colgio Militar, Lisboa (Janeiro, 2012) .................................................................................................................... 213 Fig. 37 Exemplares diversos oferecidos, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) .................. 215

xiv

Fig. 38 Desenhos vista realizados por alunos e respectivos modelos, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) .......................................................................................................................... 225 Fig. 39 Herbrio realizado por aluno, Colgio Militar, Lisboa (Dezembro, 2011) ....................... 226

xv

ndice de Anexos (Volume 2)

Critrios seguidos na transcrio dos documentos ............................................................... 278

I. Visitas Exploratrias de Campo: Fichas de Levantamento do Patrimnio Cientfico ................................................................................................................................... 280

II. Levantamento do patrimnio museolgico das escolas (1996) ............................... 304

III. Planos de estudos das cincias naturais (1836 1975) ............................................ 363

IV. Referncias a materiais e prticas associadas ao ensino das cincias naturais (1836 1975) ......................................................................................................................... 369

V. Relao dos objectos cuja aquisio era considerada pelos reitores dos liceus

necessria para o ensino das cincias naturais em 1895.......................................... 374

VI. Relao de vertebrados enviada em 1895 ao Ministrio do Reino por Francisco da Fonseca Benevides, director do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, e que este se propunha a executar para enviar aos liceus. ........................................................ 404

VII. Relao dos trabalhos apresentados pela estagiria Maria Margarida Maia de

Medina durante os seus dois anos de estgio no Liceu Pedro Nunes (1937-1939). ................................................................................................................................... 411

VIII. Relao dos filmes e projeces fixas cujo Ministro da Educao Nacional, Francisco

Leite Pinto, em 27 de Janeiro de 1956, considerou do maior interesse adquirir para os gabinetes e laboratrios dos liceus. ..................................................................... 415

IX. Relao dos exemplares oferecidos pelo Museu de Lisboa (Escola Politcnica) ao

Colgio Militar em 1880 e 1906 e ao Liceu de Santarm em 1925. ......................... 419

X. Relao de animais, vertebrados e invertebrados, enviados pela Universidade de Coimbra aos liceus de Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, assim como, ao Colgio Militar, em 1898. ....................................................................................................... 446

XI. Relao do material para o ensino das cincias naturais fornecido pela Junta

Administrativa do Emprstimo para o Ensino Secundrio (1928-1934). .................. 466 XII. Relao de material comprado pela Comisso de Reapetrechamento em Material

das Escolas Superiores e Secundrias (1960 e 1972). ............................................... 497 XIII. Inventrios do material existente nos liceus em 1895, 1906 e 1928 para o ensino das

cincias naturais. ....................................................................................................... 635 XIV. Relao do material comprado pelo Colgio Militar para o ensino das cincias

naturais (1926-1975). ................................................................................................ 897

xvi

XV. Relao do material oferecido que deu entrada no Museu de Histria Natural do Colgio Militar (1926-1975) ...................................................................................... 906

XVI. Programa dos trabalhos prticos realizados no Colgio Militar em 1917, 1922, 1924, 1925 e 1962. .............................................................................................................. 917

xvii

xviii

Introduo

1

Introduo

Entre os mltiplos documentos actualmente preservados no Arquivo Histrico do Museu

Nacional de Histria Natural e da Cincia (MUHNAC), na Politcnica, encontram-se

registos de exemplares zoolgicos enviados a alguns liceus nos sculos XIX e XX. Na lista

de animais cedidos por Jos Vicente Barbosa du Bocage ao Colgio Militar, em Abril de

1880, constam vrios exemplares provenientes do Real Museu das Necessidades,

constitudo por D. Pedro V, e cujas coleces foram oferecidas, aps a sua morte, ao

Museu da Politcnica, por D. Lus. Na mesma lista tambm mencionado um

passeriforme oriundo do Brasil - de nome comum sanhao-rei e data da recolha

classificado como Tanagra ornata - procedente da Coleco Antiga. Esta coleco tinha

pertencido Real Academia das Cincias de Lisboa que, por sua vez, tinha incorporado as

coleces do Real Museu da Ajuda. Hoje, no Museu de Histria Natural do Colgio Militar

podem observar-se alguns destes exemplares, nomeadamente o passeriforme acima

referido.

Este episdio enquadra de forma exemplar o ponto de partida desta tese, ao longo da

qual se argumentar que os antigos liceus tm um patrimnio cientfico muito relevante,

que simultaneamente uma janela para o passado e para o presente e que, em larga

medida, permanece desconhecido da comunidade cientfica e do pblico em geral.

A presente tese tem como objecto de estudo as coleces de histria natural dos liceus

portugueses. As balizas cronolgicas deste trabalho, 1836 e 1975, so respectivamente o

ano de criao e de extino destes estabelecimentos de ensino secundrio. Porm,

como notam Nvoa e Santa Clara, se a data de criao evidente, o mesmo no se pode

dizer da data de extino. Estes autores consideram o ano de 1978 como o termo oficial

dos liceus com a publicao do decreto que determinou a sua designao como escolas

secundrias1. Por seu lado, o estudo de Ramos do assume antes o ano de 1975 como

1 Antnio NVOA e Ana Teresa SANTA-CLARA (coords.), Liceus de Portugal: Histrias, Arquivos, Memrias (Porto: Asa,

2003), p. 10.

Os Museus Escolares de Histria Natural

2

derradeiro2. No presente trabalho esta foi, tambm, a opo escolhida. A razo prende-se

com o Decreto-Lei n. 260-B/753 que, no mbito da consolidao do ensino secundrio

unificado, aproxima o ensino liceal e tcnico, propondo um nico programa comum para

todo o ensino secundrio.

O estudo das coleces num perodo temporal to alargado deve-se ao interesse em

compreender, ainda que de forma exploratria e sustentada num levantamento de fontes

que se encontram inditas, no s a sua gnese, mas tambm o seu desenvolvimento e

uso durante todo o perodo em que esta tipologia de escola secundria existiu.

Deve ser assinalado que tambm as antigas escolas tcnicas possuram (e possuem)

importantes coleces cientficas, inclusivamente de histria natural. Porm, a anlise

centrou-se nas coleces dos liceus por vrias razes. Por um lado, e desde logo, por

razes de amplitude, considerada demasiado vasta para um estudo deste tipo. Por outro

lado, por uma razo de foco. Dada a sua vocao de ensino profissionalizante e orientado

para a prtica, as escolas tcnicas e industriais levantam questes que esto fora dos

objectivos desta tese. Os liceus tinham propsitos amplos, como a educao nobre, i.e. a

educao moral e intelectual de cavalheiros, a educao geral dos cidados e a sua

preparao para a vida, bem como a formao dos alunos para ingresso no ensino

superior4. As prticas associadas utilizao de coleces cientficas no ensino liceal

estariam assim previsivelmente mais prximas das prticas da cincia no que diz respeito

a instituies, pessoas, redes e trnsitos, pelo que foi considerado o seu estudo mais

interessante na perspectiva da histria das cincias, pelo menos numa primeira

abordagem.

As coleces de histria natural dos antigos liceus introduzem dois nveis gerais de

investigao interdependentes: i) a sua importncia para uma melhor compreenso da

2 Jorge RAMOS do , Ensino liceal (1836-1975) (Lisboa: Secretaria-geral do Ministrio da Educao, 2009).

3 Com data de 26 de Maio de 1975, publicado no Suplemento do Dirio do Governo n. 121, I Srie, de 26 de Maio de

1975. 4 Ver NVOA e SANTA-CLARA (2003), op. cit., pp. 17-18 e Vasco Pulido VALENTE, O Estado liberal e o ensino: Os liceus

portugueses (1834-1930) (Lisboa: Gabinete de Investigaes Sociais, 1973), pp. 7-30.

Introduo

3

histria das cincias e da educao em Portugal; e ii) o papel actual destas coleces,

quer para as respectivas instituies, quer para a sociedade.

Importa tentar responder a uma srie de questes: Como eram constitudas as coleces

de histria natural dos antigos liceus? Que mecanismos permitiram o seu

desenvolvimento e manuteno? De que forma reflectiam os currculos e as orientaes

metodolgicas expressas nos programas oficiais da disciplina? Em que medida

contriburam para efectivar um programa de ensino em que a cultura das cincias se

tentava afirmar e em que o valor da observao transcendia o dos livros? Como eram

utilizadas? Como diferiram os materiais ao longo dos anos? Porque deixaram de ser

utilizadas? Que materiais sobreviveram passagem do tempo e podem hoje ser

estudados? Qual o valor e o papel histrico, museolgico, cientfico e social das coleces

de histria natural que existem actualmente nas escolas portuguesas?

por isso inevitvel que esta tese, apesar de se centrar na histria das cincias, se

encontre na fronteira terica, conceptual e metodolgica entre a histria, os estudos de

coleces, a museologia e os estudos de patrimnio. O seu objectivo compreender as

linhas de fora que orientaram a constituio, desenvolvimento, trnsitos e uso das

coleces de histria natural dos antigos liceus no que diz respeito provenincia,

utilizao e significado em termos das prticas de ensino dos objectos que as constituem.

A anlise enquadrada pela reconfigurao disciplinar da histria das cincias iniciada

nas dcadas de 1960 e 1970. At esta data a maioria das narrativas em histria das

cincias focavam-se nas grandes descobertas de cientistas. A cincia era encarada como o

culminar de um processo de acumulao progressiva de conhecimento que conduzia ao

avano da civilizao. A segunda metade do sculo XX veio questionar estes relatos,

transformando a investigao nesta rea disciplinar. Estas modificaes no sero aqui

detalhadas, uma vez que a literatura historiogrfica sobre o assunto vasta5. , contudo,

importante realar que estas novas correntes vieram, como diz Golinski, chamar a

5 Ver, a este propsito, por exemplo: Jan GOLINSKY, Making Natural Knowledge: Constructivism and the History of

Science (Cambridge: Cambridge University Press, 1998).

Os Museus Escolares de Histria Natural

4

ateno para o facto do conhecimento cientfico no ser uma revelao de uma ordem

natural, mas antes uma criao humana num determinado contexto material e cultural6.

A cincia passou a estar ligada s prticas, i.e. forma como o conhecimento cientfico

percebido, comunicado, interpretado e apropriado, e no, apenas, aos pensamentos dos

grandes cientistas7. Os historiadores passaram a interessar-se por estudos locais, que

exploram em grande detalhe os ambientes onde a cincia produzida e, tambm, onde o

conhecimento cientfico recebido e reutilizado por outros actores8. O ensino, um

elemento crucial na construo das sociedades contemporneas, passou,

posteriormente, assim como os contextos materiais onde a cincia se produz e onde

comunicada9, a ser central, uma vez que tem uma relao directa com esta recepo e

reutilizao do conhecimento.

Neste mbito, Secord clarifica a importncia do estudo da histria do ensino das cincias

e da utilizao de fontes materiais. O autor tenta responder questo What big

questions and large-scale narratives give coherence to the history of science?,

apontando para a necessidade de os historiadores considerarem a cincia, i.e. a produo

de conhecimento, como um processo de comunicao ao qual subjaz uma srie de

movimentos de transmisso, traduo ou apropriao, entre outros cujo

reconhecimento e compreenso so fundamentais10. Secord parte da ideia que cada

texto, imagem, aco e objecto so um vestgio de um processo de comunicao, com

receptores, produtores, modos e convenes de transmisso11. Assim, para alm da

anlise do texto ou objecto, propriamente dito, e da forma como foi produzido e

apropriado pelos receptores, a forma prtica como foi comunicado, como viajou entre o

emissor e o receptor, ganha uma importncia chave.

6 Ibid., p. 6.

7 Nicholas JARDINE, Reflections on the preservation of recent scientific heritage in dispersed university collections,

Studies in History and Philosophy of Science 44 (2013): 735-743, p. 737. 8 Ibid.

9 David N. LIVINGSTONE, Putting science in its place: Geographies of Scientific Knowledge (Chicago: Chicago University

Press, 2003). 10

James SECORD, Knowledge in transit, Isis 95 (2004): 654-672. 11

Ibid., p. 661. Citao original: () every text, image, action, and object [are] a trace of an act of communication, with receivers, producers, and modes and conventions of transmission.

Introduo

5

Esta perspectiva alarga as categorias geralmente em anlise. A abordagem de Secord

coloca as prticas de comunicao da cincia, nomeadamente o ensino das cincias nas

escolas, dentro do processo de produo de conhecimento e a anlise de todos os

vestgios desse processo deve, nas suas prprias palavras, ser a fundao do verdadeiro

trabalho histrico12. Secord d, ainda, particular ateno aos aspectos materiais da

cincia. Diz o autor que os historiadores so, inevitavelmente, cronistas do mundo

material uma vez que todas as evidncias do passado esto na forma de coisas

materiais13. So necessrias, a seu ver, histrias do desenvolvimento dos ()

documentos que relatam as prticas, i.e. histrias das coisas que corporizam as prticas,

que possibilitam fazer a ponte entre o trabalho tcnico [no caso do ensino, o trabalho de

transmitir informao] e o contexto onde esto inseridos14. Os padres de circulao

das coisas em movimento permitem, segundo Secord, seguir prticas que vo para

alm dessas coisas particulares, conduzindo a um melhor entendimento da prtica

cientfica e da produo de conhecimento15. Assim, o estudo da histria das coleces de

ensino contribui para a compreenso da histria das cincias.

A tese desenvolveu-se em torno de quatro abordagens: i) um estudo exploratrio de

fontes materiais e documentais; ii) uma identificao e anlise macro dos acontecimentos

que, a nvel nacional, possam ter tido influncia na constituio e desenvolvimento das

coleces de histria natural dos antigos liceus; iii) uma identificao e anlise macro das

coleces ao longo do perodo em estudo, dos desenvolvimentos que foram tendo, das

pessoas e instituies envolvidas na sua organizao, bem como dos seus usos e

significados; e finalmente iv) uma anlise micro, de carcter local, que simultaneamente

sintetiza e examina os elementos recolhidos anteriormente.

12

Ibid., pp. 661 e 665. Citao original: To do real historical work, this perspective needs to be not only explicit but also foundational. 13

Ibid., p. 665. Citao original: () historians are inevitably chroniclers of the material world; All evidence from the past is in the form of material things. 14

Ibid., p. 667. Citao original: So we need accounts of the generic development of the field notebook, the experimental register, the museum catalogue, and other documents of practice, as bridging studies moving between specific passages of technical work and their wider settings. 15

Ibid., p. 665. Citao original: patterns of circulation; things in motion.

Os Museus Escolares de Histria Natural

6

O estudo exploratrio de fontes teve como objectivo, atravs de visitas de campo, fazer

um levantamento de fontes materiais e documentais no sentido de caracterizar o estado

actual das coleces de histria natural do ponto de vista da utilizao, relevncia, estado

de conservao e arquivos que as documentam.

Quanto anlise dos acontecimentos com potencial influncia sobre as coleces, esta

centrou-se no exame da legislao, permitindo enquadrar as coleces a partir dos

documentos que lhes definiam objectivos e utilizao. Esta abordagem inspirou-se na

proposta metodolgica de Loureno e Gessner para a histria de coleces cientficas,

inclusivamente coleces que hoje j no existem16. Dado que as coleces no so

entidades estanques, a sua descrio em qualquer momento do passado ou presente os

objectos que as constituem, assim como pessoas que os usavam, como e com que

objectivo deve ser entendida luz de um contexto que vai para alm da sua prpria

materialidade17. Loureno e Gessner desenvolveram o conceito de pontos crticos, que

definem como singularidades externas com impacto sobre coleces: a sua criao e

desmantelamento e eventos como deslocalizaes devido a mudanas institucionais,

polticas e sociais, morte dos proprietrios, guerras, revolues, desastres naturais como

incndios ou terramotos, etc.

A aplicao da metodologia dos pontos crticos histria das coleces dos antigos

liceus portugueses no , contudo, imediata, uma vez que no se est na presena de

uma coleco singular, mas de um conjunto de coleces existentes em diferentes

escolas. Assim, os pontos crticos podem variar, consideravelmente, a nvel micro e local,

em funo da coleco em anlise. Todavia, possvel encontrar pontos crticos que,

potencialmente, tiveram impacto macro e simultneo nas coleces de histria natural

em todo o pas. Tal o caso, por exemplo, da legislao que regulava o ensino liceal, que

dava indicaes explcitas, como se ver no captulo 3, sobre o ensino das diferentes

disciplinas, nomeadamente sobre as metodologias que deveriam ser empregues. Desta

16

Marta C. LOURENO e Samuel GESSNER, Documenting Collections: Cornerstones for more history of science in museums, Science & Education 23 (2014): 727-745. 17

Chris GOSDEN e Yvonne MARSHALL, The cultural biography of objects, World archaeology 31 (1999): 168-178, p. 174.

Introduo

7

forma, esta tese parte do pressuposto, como em outros estudos18, que a organizao e

utilizao de coleces nos diferentes liceus do pas pode ter sido influenciada e limitada

pelos documentos emitidos a nvel central. Com efeito, a formao de uma coleco de

material didctico est ligada aos programas e s metodologias vigentes. Se verdade

que h diferenas entre a escola real e a escola desejada, sendo esta ltima a escola

determinada pelas polticas educativas, no menos verdade que a primeira funo da

segunda19. Neste sentido, o estabelecimento das coleces de ensino s compreensvel

quando examinada a partir dos discursos concretos que definem o ensino das cincias e

tendo em conta o seu papel no contexto dos objectivos atribudos ao ensino liceal.

Appadurai chama a ateno, precisamente, para a importncia dos factores polticos na

circulao de objectos e na criao do seu valor, que determinante para essa

circulao20. As reformas de ensino so, assim, pelo seu poder normativo, cruciais para a

compreenso da constituio das coleces de ensino.

Por seu lado, a identificao e anlise macro das coleces nas escolas pretendeu

conhecer como era a escola real, que no corresponde, necessariamente, escola

desejada, expressa nos textos legislativos. Este conhecimento naturalmente

exploratrio, de malha grossa, possibilitando a identificao de padres gerais no

panorama nacional.

Por ltimo, a anlise ao nvel local teve por intuito desenvolver um estudo que inclusse

os objectos que compem uma coleco na sua articulao com os espaos em que se

encontravam, as pessoas que os utilizaram e a forma como os manusearam no contexto

do ensino.

18

Por exemplo: Josep SIMON, Jos Ramn BERTOMEU-SNCHEZ e Antonio GARCA-BELMAR, Nineteenth-century scientific instruments in Spanish secondary schools, in Marta C. LOURENO e Ana CARNEIRO (eds.), The Laboratorio Chimico Ouverture: Spaces and Collections in the History of Science, Lisbon (Lisboa: MCUL, 2009), pp. 167-184 e Josep SIMON e Mar CUENCA-LORENTE, Science Education and the Material Culture of the Nineteenth-Century Classroom: Physics and Chemistry in Spanish Secondary Schools, Science & Education 21 (2012): 227244. 19

Marta MACEDO, Projectar e construir a nao. Engenheiros e territrio em Portugal no sculo XIX (Lisboa: ICS, 2012), p. 71. 20

Arjun APPADURAI, Introduction: commodities and the politics of value, in Arjun APPADURAI (ed.), The Social Life of Things. Commodities in cultural perspective (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), pp. 3-63.

Os Museus Escolares de Histria Natural

8

Neste sentido, as fontes utilizadas nesta tese podem ser consideradas de dois tipos: i)

bibliogrficas (documentos de arquivo e legislao) e ii) materiais (coleces de histria

natural de antigos liceus).

Quanto ao primeiro tipo de fontes, este trabalho baseia-se principalmente em trs

arquivos portugueses: o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), onde se encontra o

fundo arquivstico do Ministrio do Reino (MR); o arquivo da Secretaria-geral do

Ministrio da Educao e Cincia (ASGME), que rene o fundo arquivstico da Direco

Geral do Ensino Liceal (DGEL); e o Arquivo Histrico do Colgio Militar (AHCM).

Como se explicou, a legislao foi tambm uma importante fonte, tendo-se realizado uma

anlise sistemtica dos textos legislativos sobre as coleces de histria natural no ensino

secundrio, publicados no perodo que compreende a durao dos liceus portugueses.

A pesquisa de outras fontes bibliogrficas, como os anurios dos liceus ou os jornais

pedaggicos como os Liceus de Portugal, Palestra, Labor, Revista dos liceus e Revista de

educao e ensino, embora extensa, foi bastante mais pontual limitando-se aos

exemplares disponveis na biblioteca do Colgio Militar e da Secretaria-geral do

Ministrio da Educao e Cincia.

Quanto s fontes materiais, esta tese fundamenta-se em visitas exploratrias de

prospeco a coleces de histria natural de nove antigos liceus Escola Secundria de

Cames (Lisboa), Escola Secundria de Pedro Nunes (Lisboa), Escola Secundria de Gil

Vicente (Lisboa), Escola Secundria S da Bandeira (Santarm), Escola Secundria

Mouzinho da Silveira (Portalegre), Escola Secundria Ferno Mendes Pinto (Almada),

Escola Secundria Infanta D. Maria (Coimbra), Escola Secundria de Jos Estvo (Aveiro)

e Escola Secundria Andr de Gouveia (vora) e a um colgio particular de ensino

secundrio (entretanto extinto), o Colgio Portuglia (Lisboa). Ademais, a coleco do

Colgio Militar foi estudada em maior profundidade, uma vez que foi a escola escolhida

para o estudo local.

Introduo

9

A principal limitao das fontes consultadas diz respeito, por um lado, s coleces das

escolas, nem sempre nas melhores condies de armazenamento, o que impede um

estudo aprofundado, e, por outro, aos arquivos escolares que, de uma forma geral, no

esto organizados e no so disponibilizados de forma a permitir o enquadramento

histrico dos materiais ainda existentes. Uma outra restrio diz respeito ao fundo

arquivstico do Ministrio da Instruo Pblica entre 1913 e 1928, que no est acessvel

para consulta, estando em curso a sua catalogao por parte da Secretaria-geral do

Ministrio da Educao e Cincia. Este facto impossibilita uma viso clara das polticas

educativas durante a Primeira Repblica. Contudo, a legislao publicada, assim como os

inventrios de material didctico enviados pelos liceus ao Ministrio, em 1928, ajudam a

colmatar as dificuldades encontradas.

A tese composta por duas partes: o texto principal e os anexos em formato digital. O

texto principal composto por cinco captulos. Os anexos so em nmero de XVI,

apresentando uma compilao e tratamento dos dados recolhidos.

No captulo 1 clarifica-se a problemtica, atravs da reviso da literatura e de um

conjunto de exemplos que elucidam o lugar e a relevncia do estudo das coleces de

ensino das cincias, em particular as de histria natural, no contexto da histria das

cincias.

O corpo central da tese est dividido em quatro captulos, organizados a partir das quatro

abordagens acima referidas. No captulo 2 feita uma descrio das coleces visitadas,

resumindo-se alguns projectos recentes para conservar e estudar as coleces das

escolas, assim como a bibliografia mais relevante. O captulo 3 apresenta a anlise macro

dos acontecimentos com impacto nas coleces a nvel nacional, analisando-se o

contexto poltico e legislativo que sustentou o surgimento, desenvolvimento e uso de

coleces de histria natural nos liceus nos sculos XIX e XX. O captulo 4 apresenta a

anlise macro das coleces de histria natural dos liceus nos sculos XIX e XX.

Os Museus Escolares de Histria Natural

10

Finalmente, no captulo 5 feito o estudo exploratrio de nvel local da coleco de

histria natural do Colgio Militar.

Os anexos so em nmero de XVI, organizados em trs partes. A primeira (Anexos I-II) diz

respeito ao patrimnio das cincias naturais actualmente existente nas escolas

secundrias (antigos liceus). So disponibilizadas as Fichas de Levantamento do

Patrimnio Cientifico preenchidas nas visitas exploratrias de campo realizadas no mbito

desta tese, assim como os dados recolhidos no levantamento do patrimnio museolgico

das escolas, realizado em 1996 pelo Ministrio da Educao. Estes ltimos no so

transcritos na ntegra. A informao proveniente desse levantamento foi organizada de

forma a permitir a sua comparao com os dados recolhidos ao longo desta investigao.

A segunda parte (Anexos III-IV) dedicada legislao relativa ao ensino das cincias

naturais. So apresentados os planos de estudo das cincias naturais e as referncias a

materiais e prticas associadas ao seu ensino, publicados ao longo do perodo em anlise.

Na ltima parte (Anexos V-XVI) apresentam-se os materiais e prticas de ensino das

cincias naturais. de realar que so disponibilizadas fontes nunca antes publicadas: i)

os materiais recomendados para o ensino das cincias naturais nas escolas, ii) os

materiais que chegaram, de facto, s escolas, oriundos das mais diversas provenincias, e

iii) os exerccios realizados nas aulas prticas. Em particular, destaca-se a disponibilizao

de inventrios das coleces de ensino das cincias naturais, realizados em vrios anos e

em diversas escolas. semelhana dos dados relativos ao levantamento realizado em

1996, os anexos contidos nesta ltima parte nem sempre so transcries dos

documentos consultados. Por vezes, os dados compilados a partir das fontes consultadas

so organizados de acordo com a metodologia proposta para a interpretao das

mesmas.

Neste trabalho no se seguiu o Acordo Ortogrfico de 1990 (AO 90). Nas citaes a grafia

original no foi mantida, excepto nos ttulos dos livros e quando so utilizadas edies

brasileiras. As citaes traduzidas so da minha autoria, apresentando-se em rodap o

texto original. Para facilitar a leitura, os liceus sero designados pelo nome da localidade

Introduo

11

onde se situavam (e.g. Liceu de Faro, Liceu de Guimares), excepto quando existiam mais

de um liceu na mesma cidade, uma vez que as suas designaes se foram alterando ao

longo dos anos (e.g. o Liceu de Faro denominava-se, originalmente, de Liceu Nacional de

Faro, mais tarde de Liceu Central de Faro e, finalmente, de Liceu de Joo de Deus).

Em suma, esta tese analisa, numa perspectiva histrica, as coleces de histria natural

dos antigos liceus (1836-1975) na sua relao com as prticas cientficas e de ensino das

cincias. Espera-se, desta forma, compreender o aparecimento e desenvolvimento das

coleces de histria natural dos liceus como um fenmeno coerente que, embora se

tenha generalizado na Europa ao longo do sculo XIX, foi necessariamente influenciado

pelas particularidades de cada pas. Ao mesmo tempo, pretende-se revelar algumas das

paisagens cientficas que edificaram o ensino liceal portugus durante mais de um

sculo a partir dos seus vestgios materiais. Para alm disso, e tendo em conta que o

estudo se debrua sobre um tema pouco estudado, partindo de actores e realidades

materiais geralmente subvalorizados, tem-se a expectativa de contribuir para um

incremento na preservao, acessibilidade e uso de fontes materiais na histria das

cincias em Portugal.

Os Museus Escolares de Histria Natural

12

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

13

Captulo 1

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

Estando as coleces e os museus escolares de histria natural na interseco de vrias

reas disciplinares histria das cincias, histria da educao, estudos de patrimnio

qualquer estudo que os tenha como objecto necessita de uma explicao que articule as

diferentes reas e, simultaneamente, esclarea, face a um enquadramento terico

necessariamente complexo, os conceitos que vo ser utlizados.

No mbito deste estudo, as coleces de histria natural do ensino secundrio so

simultaneamente i) janelas para o passado, isto , fontes para a histria, ii) janelas para o

presente, isto , fontes para a cincia contempornea, e iii) patrimnio cientfico e

cultural. Neste primeiro captulo, sero apenas abordadas as duas primeiras dimenses,

com foco na primeira, dando-se destaque aos estudos histricos sobre coleces de

histria natural portuguesas. A dimenso patrimonial ser abordada no captulo seguinte.

Aproveita-se, ao longo de todo o captulo, para rever a literatura relevante. Sero ainda

clarificados os conceitos-base subjacentes a esta tese.

1.1 Coleco, Museu e Patrimnio no contexto da Histria da Escola

Os conceitos de museu, coleco e patrimnio so problemticos21 e carecem de

clarificao no contexto desta tese. Nem a palavra museu tem o mesmo sentido ao

longo do largo perodo cronolgico coberto, nem o que os liceus designavam

especificamente de museu escolar o museu escolar de hoje. Do mesmo modo, o

conceito de patrimnio no era o mesmo no sculo XIX e no sculo XXI.

21

Nicholas JARDINE, Reflections on the preservation of recent scientific heritage in dispersed university collections, Studies in History and Philosophy of Science 44 (2013): 735-743; Marta C. LOURENO e Lydia WILSON, Scientific heritage: Reflections on its nature and new approach to preservation, study and access, Studies in History and Philosophy of Science 44 (2013): 744-753 e Marcus GRANATO e Marta C. LOURENO, Preservao do patrimnio cultural de cincia e tecnologia: Uma parceria luso-brasileira entre o Museu Nacional de Histria Natural e da Cincia (Portugal) e o Museu de Astronomia e Cincias Afins (Brasil), Cincia da Informao (no prelo).

Os Museus Escolares de Histria Natural

14

Desde o estabelecimento dos liceus que os termos utilizados por legisladores e

professores para se referirem aos seus museus foram variando e, muitas vezes,

coexistindo. Nvoa e Santa-Clara, por exemplo, do conta das instalaes previstas e

existentes em 1974 nos edifcios construdos para os liceus. Em todos havia pelo menos

um espao dedicado s cincias naturais, contudo, o termo usado variava de liceu para

liceu e.g. gabinete de cincias, gabinete de histria natural, sala de cincias, museu de

histria natural, museu de cincias, museu de cincias naturais, laboratrio de cincias,

laboratrio de cincias biolgicas22. Para alm da fluidez das designaes, a estrutura ou

espao especificamente designada museu no era uma instituio permanente e aberta

ao pblico, como consideramos hoje23, tendo como objectivo preservar e documentar

evidncias materiais, neste caso documentar a escola em pocas passadas ou as tcnicas

e metodologias associadas ao ensino de uma determinada disciplina. Um museu ou

gabinete na poca seria o que designamos hoje de coleco24, especificamente uma

coleco cientfica tal como ela definida pelo Portuguese Research Infrastructure of

Scientific Collections (PRISC), a infra-estrutura portuguesa de coleces cientficas:

Scientific Collections are organised assemblages of selected material evidence of the natural environment or scientific human activity, accompanied by the necessary associated information that makes them sources for science communication and for research and teaching in a wide range of cross-disciplinary fields25.

Nesta tese o termo museu usado tal como surge nas fontes primrias. Quando se

pretender utilizar o sentido contemporneo do termo, tal ser explicitamente

mencionado.

22

Antnio NVOA e Ana Teresa SANTA-CLARA (coords.), Liceus de Portugal: Histrias, Arquivos, Memrias (Porto: Asa, 2003), pp. 85, 105, 126-127, 157, 177, 199, 209, 229, 257, 289, 307, 335, 357, 377, 389, 411, 431, 455, 479, 495, 519, 541, 569, 589, 600-601, 623, 649, 677, 701, 721, 741, 759, 777 e 799. 23

Actualmente, de acordo com o International Council of Museums (ICOM) um museu uma instituio permanente sem fins lucrativos, ao servio da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao pblico, que adquire, conserva, investiga, comunica e expe o patrimnio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educao, estudo e deleite: Estatutos do ICOM, adoptados durante a 22. Conferncia Geral, em Viena, ustria, em 2007 - http://archives.icom.museum/statutes.html#2 (acedido em 23 de Junho de 2014). Esta definio existe, no essencial, desde 1946 e tem servido de base a legislao um pouco por todo o mundo, incluindo a lei-quadro dos museus portugueses (Lei n. 47/2004 de 19 de Agosto de 2004. Dirio da Repblica n. 195, I Srie-A, de 19 de Agosto de 2004). Ver por exemplo: Desenvolvimento do conceito de museu de acordo com os estatutos do ICOM - http://archives.icom.museum/hist_def_eng.html e Estatutos do ICOM - http://cool.conservation-us.org/icom/the-organisation/icom-statutes/3-definition-of-terms/index.html#sommairecontent (acedido em 23 de Junho de 2014). 24

Ou coleco visitvel para usar a terminologia exacta da lei-quadro dos museus portugueses. 25

PRISC, Portuguese Research Infrastructure of Scientific Collections - http://www.prisc.pt/ (acedido em 30 de Setembro de 2014).

http://archives.icom.museum/statutes.html#2http://archives.icom.museum/hist_def_eng.htmlhttp://cool.conservation-us.org/icom/the-organisation/icom-statutes/3-definition-of-terms/index.html#sommairecontenthttp://cool.conservation-us.org/icom/the-organisation/icom-statutes/3-definition-of-terms/index.html#sommairecontenthttp://www.prisc.pt/

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

15

Ainda existe um segundo nvel de complexidade a precisar de clarificao trata-se do

termo escolar associado a museu. A designao museu escolar aparece

frequentemente na literatura contempornea, quer de natureza museolgica, quer

histrica26. Tambm no existe uma estabilizao clara do conceito, sendo frequente a

utilizao de sinnimos como museus pedaggicos, museus de escola, museus de

educao, museus de histria da educao e coleces histricas escolares, entre

outros. Meneses, Loureno e Boyer examinam esta problemtica de forma

aprofundada27, mas frequentemente estes termos aparecem associados musealizao

integrada e abrangente de memorabilia diversa com provenincia na escola e.g.

carteiras, lousas, diplomas, cadernos, manuais, instrumentos, canetas, tinteiros. No

neste contexto contemporneo alargado que o termo museu escolar utilizado, mas

sim no seu conceito histrico restrito ao ensino das cincias, especificamente da zoologia,

geologia e botnica, como foi referido em cima e definido na Grande Enciclopdia

Portuguesa e Brasileira:

A designao de museu escolar poder-se- aplicar s coleces de qualquer natureza, organizadas pelo professor, no intuito de tornar o ensino vivo, objectivo e cientfico. () O museu escolar ope-se, de certo modo, ao conceito geral de museu, pois este o estabelecimento ou a instalao em que se catalogam e expem objectos representativos do que se conserva como demostrao histrica de uma evoluo, um conhecimento ou uma investigao, ao passo que ao museu escolar, mais que isso tudo, convm ser um elemento vivo e flexvel.28

26

e.g. Maria de Ftima MENESES, Museus e Ensino Uma anlise histrica sobre museus pedaggicos e escolares em Portugal (1836-1933), dissertao de mestrado em Museologia e Patrimnio (Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2003); Marilia Gabriela PETRY, Museu escolar: o que dizem os inventrios (Santa Catarina / 1941-1942), in Vera Lucia GASPAR da SILVA e Marilia Gabriela PETRY (orgs.), Objetos da escola: Espaos e lugares de constituio de uma cultura material escolar (Santa Catarina Sculos XIX e XX) (Florianpolis: Insular, 2012) e Henrique Coutinho GOUVEIA, Museus e museologia, in Manuel Braga da CRUZ e Natlia Correia GUEDES (coords.), A Igreja e a Cultura Contempornea em Portugal (Lisboa: Universidade Catlica editora, 2000), pp. 201-258, p. 203. 27

MENESES (2003), op. cit., pp. 7-23 ; Marta C. LOURENO, Between two worlds: The distinct nature and contemporary significance of university museums and collections in Europe, tese de doutoramento em Histoire des Techniques, Musologie (Paris: Conservatoire National des Arts et Mtiers, 2005), em particular o captulo 3, pp. 19-47 e Myriam BOYER, Les collections et les musographies des muses de lcole et de lducation en Europe: tude comparative partir dexemples significatifs, tese de doutoramento em Histoire des Techniques-Musologie (Paris: Conservatoire National des Arts et Mtiers, 2009), em particular a introduo, pp. 10-24. 28

Museu escolar, Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira (volume XVIII) (Lisboa e Rio de Janeiro: Editorial Enciclopdia, LDA., s.d.), pp. 275-278, p. 275.

Os Museus Escolares de Histria Natural

16

O termo patrimnio o nico que usado nesta tese com o seu significado

contemporneo, esparsamente e apenas no contexto apropriado, que o da discusso da

importncia destas coleces cientficas na actualidade. O conceito de patrimnio

cultural mais recente que o de museu ou coleco, mas consideravelmente

complexo, estando associado aos conceitos de identidade, memria e legado colectivo29.

Inicialmente tendo como mbito apenas o patrimnio artstico, arqueolgico e

arquitectnico, no incio do sculo XX, a partir do ps-guerra o conceito de patrimnio

cultural alargou-se consideravelmente para abranger o que por vezes designado novos

patrimnios (patrimnio natural, patrimnio industrial, patrimnio ferrovirio, entre

outros). O patrimnio da cincia, ou patrimnio cientfico, resulta deste movimento de

expanso do conceito, por vezes associado ao local onde se encontra (patrimnio

cientfico universitrio, patrimnio cientfico dos hospitais, patrimnio cientfico escolar,

etc.).30 A definio de patrimnio cientfico que utilizada ao longo desta tese a de

Loureno e Wilson:

Scientific heritage is the shared collective legacy of the scientific community, in other words what the scientific community as a whole perceives as its identity, worth being passed on to the next generation of scientists and to the general public as well. It includes what we know about life, nature and the universe, but also how we know it. Its media are both material and immaterial. It encompasses artefacts and specimens, but also laboratories, observatories, landscapes, gardens, collections, savoir faires, research and teaching practices and ethics, documents and books31.

1.2 O ensino cientfico no cruzamento entre histria das cincias e histria da educao

Nos ltimos anos, vrios autores tm vindo a chamar a ateno para a necessidade de

estudos cruzados entre a histria das cincias e a histria da educao. Belhoste, por

exemplo, encontra nesta dissociao uma limitao, defendendo que a histria da

29

Dominique POULOT (ed.), Patrimoine et Modernit (Paris: LHarmattan, 1998) e Dominique POULOT, Muse, nation, patrimoine (1789-1815) (Paris: Gallimard, 1997). 30

GRANATO e LOURENO explicam que, frequentemente, torna-se necessrio acrescentar o local ou uma sub-disciplina designao de patrimnio por razes eminentemente polticas, no sentido de sensibilizar as tutelas para a importncia da preservao. Do como exemplos o Conselho da Europa que, em 2005, publicou uma recomendao sobre o patrimnio universitrio e a UNESCO, que em 2009 lanou uma iniciativa de preservao do patrimnio da astronomia. Ver GRANATO e LOURENO (no prelo), op. cit. 31

LOURENO e WILSON (2003), op. cit., p. 746.

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

17

educao cientfica no , nem pode mais ser, exterior histria das cincias32 e

Rudolph enfatiza a natureza fragmentada dos estudos histricos sobre educao das

cincias33. Mais recentemente, os trabalhos de Bertomeu Snchez e Simon Castel vieram

sistematizar, de forma clara, a importncia da gradual aproximao entre as duas reas,

valorizando, de resto, o papel das fontes materiais como catalisador dessa dmarche34.

No campo da histria das cincias, o estudo das prticas e contextos de produo de

cincia tem sido privilegiado face ao estudo das prticas e contextos da educao e

disseminao. Por outro lado, na histria da educao, o estudo das disciplinas da rea

das cincias tem sido tradicionalmente preterido ao estudo das disciplinas da rea das

humanidades. Os trabalhos de Rudolph sobre a histria do ensino das cincias nos

Estados Unidos, assim como o de Belhoste, que fez um estudo semelhante para o ensino

secundrio francs, so bons exemplos de passos dados no sentido da aproximao entre

as duas reas35. Todavia, nos ltimos 30 anos, a investigao na rea da histria da

educao das cincias tem vindo a intensificar-se e a diversificar-se36. As abordagens

cronolgicas centradas nos planos de estudo e nas instituies de ensino deram lugar a

temas como as relaes entre os poderes poltico e econmico e a educao, a formao

das disciplinas, os manuais escolares, os professores, os alunos, as aulas, a formao da

persona cientfica e da comunidade cientfica, os instrumentos, a escola, a disciplina, os

exames, entre outros. David Kaiser trouxe, por exemplo, discusso o papel que o estudo

32

Bruno BELHOSTE, Das cincias institudas s cincias ensinadas, ou como levar em conta a atividade didtica na histria das cincias, Revista Brasileira de Histria da Educao 11 (2011): 47-61, p. 51. 33

John L. RUDOLPH, Historical writing on science education: a view of the landscape, Studies in Science Education 44 (2008): 63-82. 34

Jos Ramn BERTOMEU SNCHEZ e Josep SIMON CASTEL, Viejos objetos y nuevas perspectivas historiogrficas: la cultura material de la ciencia en las aulas del siglo XIX, in Leoncio LPEZ-OCN, Santiago ARAGN e Mario PEDRAZUELA (eds.), Aulas con memoria. Ciencia, educacin y patrimonio en los institutos histricos de Madrid (1837-1936) (Madrid: CEIMES / Doce Calles / Comunidad de Madrid, 2012), pp. 49-72 e Jos Ramn BERTOMEU-SNCHEZ e Antonio GARCA-BELMAR, Nineteenth-century scientific instruments in Spanish secondary schools, in Marta C. LOURENO e Ana CARNEIRO (eds.), The Laboratorio Chimico Overture: Spaces and Collections in the History of Science, Lisbon (Lisboa: MCUL, 2009), pp. 167-184. 35

John L. RUDOLPH, Scientists in the classroom: The Cold War reconstruction of American science education (New York: Palgrave Macmillan, 2002); John L. RUDOLPH, Turning Science to Account: Chicago and the General Science Movement in Secondary Education, 1905-1920, Isis 96 (2005): 353-389 e Bruno BELHOSTE, Les Caractres Gnraux de lEnseignement Secondaire Scientifique: de la fin de l'Ancien Rgime la Premire Guerre mondiale, Histoire de l'education 41 (1989): 3-45. 36

Brock, em 1975, e Rudolph, em 2008, fizeram uma reviso bibliogrfica da investigao desenvolvida na rea da histria da educao das cincias: W. H. BROCK, From Liebig to Nuffield. A bibliography of the history of science education, 1839-1974, Studies in Science Education 2 (1975): 67-99 e RUDOLPH (2008), op. cit.

Os Museus Escolares de Histria Natural

18

da educao cientfica pode ter para a histria, no seu sentido mais lato. Usando as suas

palavras:

Historians and sociologists of education have long emphasized that pedagogy is anything but a passive or neutral activity. What counts as appropriate or acceptable pedagogy in a given setting is always conditioned by decisions as to what skills students should acquire (and why), as well as related concerns about labor supplies and the flow of human capital into and beyond instructional settings. Educational institutions serve as crucibles for reproducing cultural, political, and moral values as well as for replicating skills among new generations of practitioners. Schools guide students (with varying shades of subtlety and effectiveness) to become good citizens and to forge appropriate identities and roles in society. Of course, what counts as good citizenship, just like what counts as appropriate skills, always reflects active decisions (and often fraught controversy and bitter negotiations) made in specific contexts37.

Outros trabalhos aprofundam esta ideia da relao entre a educao das cincias e um

determinado contexto poltico, social e cultural, bem como da interdependncia entre a

formao e a investigao. Rudolph, por exemplo, analisa o ambiente intelectual e

urbano-industrial de Chicago no incio do sculo XX no sentido de compreender as

alteraes na educao das cincias nas escolas secundrias38. Em 2002, o mesmo autor

tinha j estudado o impacto da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria nos currculos

das cincias, aproximando os seus contedos ao das disciplinas acadmicas e afastando-

os, consequentemente, de um ensino essencialmente baseado em experincias da vida

quotidiana39. Por seu lado, o livro de David Kaiser, Pedagogy and the practice of science:

historical and contemporary perspectives, d particular enfoque temtica da relao

entre a formao e investigao40. Os vrios estudos que compem este livro, vindos de

diferentes reas, de diferentes contextos nacionais e reportando-se a diferentes pocas,

37

David KAISER, Training the Generalists Vision in the History of Science, Isis 96 (2005a): 244-251, p. 251. 38

RUDOLPH (2005), op. cit. Ver tambm, por exemplo: Sally Gregory KOHLSTEDT, Curiosities and cabinets: natural history museums and education on the antebellum campus, Isis 79 (1988): 405-426; Sally Gregory KOHLSTEDT, Parlors, Primers, and Public Schooling: Education for Science in Nineteenth-Century America, Isis 81 (1990): 424-445 e Sally Gregory KOHLSTEDT, Nature, Not Books: Scientists and the Origins of the NatureStudy Movement in the 1890s, Isis 96 (2005): 324-352. 39

RUDOLPH (2002), op. cit. 40

David KAISER (ed.), Pedagogy and the practice of science: historical and contemporary perspectives (Cambridge: The MIT Press, 2005b). Simon considera este estudo emblemtico do novo aumento de interesse em pedagogia na histria da cincia: Josep SIMON, Communicating science and pedagogy, in Josep SIMON e Nstor HERRAN (eds.), Beyond Borders: fresh perspectives in history of science (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2008), pp. 101-112, p. 101. Citao original: a major flagship of the new rise of interest in pedagogy in history of science.

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

19

tentam compreender de que maneira a formao influencia a produo de conhecimento

cientfico, i.e. tentam perceber qual a ligao entre a formao dos cientistas e as

estratgias de investigao que adoptam41. Com uma abordagem diferente, Simon e

Herran enfatizam, tambm, o papel da educao cientfica na produo de

conhecimento42. Os autores partem do conceito de Knowledge in Transit de Secord43, que

entende a cincia como uma forma de comunicao44, considerando todos os

movimentos associados a essa comunicao, tais como a transmisso, a traduo, a

negociao, a apropriao, etc., como fundamentais para a compreenso histrica da

cincia. Neste sentido, Simon e Herran propem investigar as prticas de comunicao

onde englobam a educao cientfica como agente na comunicao internacional da

cincia45.

Apesar do crescente interesse em integrar de forma substantiva a educao cientfica na

narrativa histrica, a grande maioria dos estudos centra-se no ensino superior, onde

naturalmente existe maior sobreposio entre os contedos e prticas da formao e da

investigao46. Belhoste, todavia, discorda da menor importncia dada ao ensino das

cincias no ensino secundrio, notando que sem ele, o desenvolvimento de uma

actividade em larga escala, em vrias disciplinas, teria sido impossvel, pois no ensino

mdio que se desenvolvem as vocaes cientficas e para o ensino mdio que se

41

Ver tambm a este propsito: Andrew WARWICK, Masters of Theory: Cambridge and the rise of Mathematical Physics (Chicago: The University of Chicago Press, 2003). O trabalho de Kohler sobre a gentica da Drosophila, apesar de ser, nas palavras do autor, sobre a cultura material e a forma de vida dos cientistas experimentais, fornece, tambm, um bom exemplo de como o contexto acadmico influenciou a entrada da Drosophila no laboratrio e sua posterior utilizao: Robert E. KOHLER, Os Senhores da Mosca - A Gentica Drosophila e a Vida Experimental (Porto: Porto Editora, 2011), p. 1. 42

Josep SIMON e Nstor HERRAN (eds.), Beyond Borders: fresh perspectives in history of science (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2008). 43

James A. SECORD, Knowledge in transit, Isis 95 (2004): 654672. 44

Form of communication no original. 45

SIMON e HERRAN (2008), op. cit., p. 13. Citao original: () the role of pedagogy as driving agent of the international communication of science. 46

A grande utilidade destes estudos, no contexto desta tese, , contudo, inegvel. Para alm dos estudos j citados, de KAISER (2005b), WARWICK (2003) e KOHLER (2011), ver tambm: Robert E. KOHLER, Lab History: reflections, Isis 99 (2008): 761-768; Gerald L. GEISON, Scientific change, emerging specialties, and research schools, History of Science 19 (1981): 20-40 e Gerald L. GEISON e Frederic L. HOLMES (eds.), Research schools: historical reappraisals, Osiris 8 (1993).

Os Museus Escolares de Histria Natural

20

desenvolve, nos sculos XIX e XX, um grande corpo de professores de cincias, sobre o

qual repousa toda a estrutura institucional das comunidades cientficas47.

O ensino secundrio reveste-se, tambm, de grande significado por reflectir o papel social

atribudo cincia, uma vez que o seu objectivo transcende a preparao dos indivduos

para o ensino superior. Rudolph enfatiza tambm este ponto, apontando a importncia

de estudos sobre o ensino das cincias para um pblico mais vasto, que ele designou de

leigo e que inclui os alunos no universitrios, assinalando vrias investigaes nesta rea

e sublinhando o seu valor para a compreenso do papel social da cincia48. Nota o autor

que:

"() if we seek to consider questions of how scientific knowledge is taken up and circulated among ordinary citizens, we would be hard pressed to find a site that is more central than the school science classroom. The classroom is, after all, one of the few places where science has been deliberately crafted for public consumption. The whole institutional setting of formal schoolingwith its compulsory attendance laws, systematic instruction, and expectations for accountability in student learninggives school science a legitimacy that powerfully influences how the public understands the content and process of science49.

A relevncia do estudo do ensino secundrio no exclusivamente do ensino das cincias

foi, tambm, realada pela revista Paedagogica Historica que dedicou um nmero,

precisamente, histria institucional, cultural e social da educao secundria50.

Apesar da histria das cincias e a da educao terem, de uma maneira geral,

negligenciado o estudo do ensino das cincias, como explicitamente referem Heering e

Wittje51, a relevncia da histria da educao cientfica, nos diferentes nveis de ensino,

tem vindo a ser reconhecida, por um lado, como factor fundamental para compreender

47

BELHOSTE (1989), op. cit., p. 4. Citao original: Sans lui, le dveloppement dune activit grande chelle dans nombre de disciplines aurait t impossible. Cest dans lenseignement secondaire que se ralisent les vocations scientifiques; cest pour lui que se dveloppe, aux XIX

e et XX

e sicles, un corps nombreux de professeurs de sciences,

socle sur lequel repose tout ldifice institutionnel des communauts scientifiques. Ver tambm: KOHLSTEDT (2005), op.cit., p. 325. 48

RUDOLPH (2008), op. cit., pp. 69-75. 49

RUDOLPH (2005), op. cit., p. 357. 50

Paedagogica Historica 40 (2004): 9-227. 51

Peter HEERING e Roland WITTJE, Introduction: neglected uses of instruments and experiments, in Peter HEERING e Roland WITTJE (eds.), Learning by Doing: Experiments and Instruments in the History of Science Teaching (Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2011), pp. 7-13, p. 9.

Histria, Educao e Coleces de Histria Natural

21

os contornos da prtica cientfica, a formao da persona cientfica e a capacidade da

cincia, como empreendimento, para se reproduzir e sobreviver52 e, por outro, como

elemento essencial para compreender a importncia e o papel social e poltico atribudos

s cincias.

1.3 Cultura material: A problemtica das fontes materiais na histria

Ao mesmo tempo que se tem vindo a assistir a um crescente interesse no estudo do

ensino das cincias, quer na histria das cincias quer na histria da educao, tambm

se tem vindo a verificar uma aproximao entre os historiadores em geral e as fontes

materiais.

De uma forma geral, os historiadores privilegiam o uso de fontes documentais textuais53.

Existe, no entanto, uma tendncia recente a nvel internacional, derivada dos

movimentos referidos na introduo desta tese, para se reconhecer a importncia do

estudo de fontes materiais genericamente designadas cultura material, i.e. objectos,

coleces, espaos e museus para a histria e, em particular, para a histria das

cincias:

The role of instruments has changed, of course, as science has changed since the seventeenth century, both in methods and in its social organization. By studying instruments we can better understand how changes have taken place. () Because instruments determine what can be done, they also determine to some extent what can be thought54.

Os objectos, no seu sentido mais lato55, so evidncias materiais de uma determinada

comunidade ou sociedade que, quando interpretados, permitem a compreenso do

52

Kathryn M. OLESKO, Science Pedagogy as a Category of Historical Analysis: Past, Present, and Future, Science & Education 15 (2006): 863880, p. 363. Citao original: () science pedagogy () is in fact central to understanding the contours of scientific practice, the formation of scientific personae, and indeed the ability of science as an enterprise to reproduce and survive. Olesko aponta vrios estudos que clarificam, precisamente, o papel da educao na produo de conhecimento cientfico e a sua importncia para a histria da cincia. 53

Adam MOSLEY, Objects, texts and images in the history of science, Studies in History and Philosophy of Science 38 (2007): 289302. 54

Albert van HELDEN e Thomas L. HANKINS, Introduction: instruments in the history of science, Osiris 9 (1994): 1-6, p. 4. 55

HELDEN e HANKINS (1994), op. cit., p. 4 e Deborah Jean WARNER, What is a scientific instrument, when did it become one, and why?, British Journal of History of Science 23 (1990): 83-93.

Os Museus Escolares de Histria Natural

22

passado56. A materialidade associada produo e disseminao de conhecimento

cientfico corporiza importantes aspectos das prticas cientficas, do conhecimento tcito,

do desenvolvimento do inquiry experimental e da sua relao com a especulao terica,

da inovao e de mltiplas trading zones (cientistas, tcnicos, preparadores, professores,

estudantes, indstria, gestores, entre outros)57. Assim, o seu estudo possibilita o

enriquecimento da anlise histrica, sobretudo quando complementado com outros tipos

de fontes (textuais, iconogrficas), permitindo olhares e perspectivas que, sem a

materialidade, teriam sido ignorados58.

Da mesma forma, as mltiplas dimenses dos espaos e a sua relevncia na determinao

das prticas tem, tambm, vindo a ser assinalada, dando-se cada vez mais importncia

aos locais onde a cincia se desenvolve, produz e transmite. Os estudos de Hannaway ou

Shapin so alguns exemplos que deixam claro o poder identitrio dos espaos

cientficos59. O espao onde a cincia se produz influencia o conhecimento que

produzido60. Espaos e performances, i.e. espaos e prticas esto indelevelmente

ligados61 e, como afirma Forgan, de esperar que eles [os edifcios onde se desenvolvem

actividades cientficas] nos dem informaes valiosas sobre o desenvolvimento da

cincia, (...) bem como sobre a prtica real da cincia 62. Neste mbito, tambm a Teoria

Actor-Rede de Latour, apesar de controversa, veio salientar a importncia de diferentes