UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações...

127
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA – CMU INICIAÇÃO CIENTÍFICA (IC) RELATÓRIO FINAL ASPECTOS ESTILÍSTICOS E TRANSFORMAÇÕES DO SAMBA-ENREDO SOB O PONTO DE VISTA MELÓDICO PESQUISADOR: YURI PRADO BRANDÃO DE SOUZA ORIENTADOR: PROF. DR. ROGÉRIO LUIZ MORAES COSTA AGÊNCIA FINANCIADORA: FAPESP Contato: [email protected] São Paulo 2009

Transcript of UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações...

Page 1: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

DEPARTAMENTO DE MÚSICA – CMU

INICIAÇÃO CIENTÍFICA (IC)

RELATÓRIO FINAL

ASPECTOS ESTILÍSTICOS E TRANSFORMAÇÕES

DO SAMBA-ENREDO SOB O PONTO DE VISTA MELÓDICO

PESQUISADOR: YURI PRADO BRANDÃO DE SOUZA

ORIENTADOR: PROF. DR. ROGÉRIO LUIZ MORAES COSTA

AGÊNCIA FINANCIADORA: FAPESP

Contato: [email protected]

São Paulo

2009

Page 2: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

Este trabalho é dedicado a todos os apaixonados pelo carnaval.

Viva às escolas de samba!

Page 3: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Conceição, e ao meu irmão, Danilo, pelo apoio incondicional em

todos os momentos e pela paciência com que ouviram “por tabela” um número

incontável de sambas-enredo.

À Maitê, Maria, Nona e ao João por estarem sempre por perto quando

precisamos (eu e minha família) e por toda a ajuda que jamais esqueceremos.

Ao meu tio, Lourival Prado, por incentivar o estudo de música por todos da

família.

Aos meus amigos de infância (P.L’s), Bolacha, Felipe, Henrique, Naoki,

Leandrinho, Ovo, Fabinho, Gustavo e Ana, pelo companheirismo de sempre e para

sempre.

À Carol pelos sorrisos e pelas horas sempre tão boas ao seu lado...

Aos meus colegas de faculdade, Marcos, Luana, Ivan, Ivana, Álvaro, Carla e

Bob, por tornarem meu cotidiano tão divertido. E um agradecimento especial a este

último por me acompanhar nas caminhadas pelas ruas de Madureira.

À Ju e ao Mau pela verdadeira amizade e ajuda na revisão.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Rogério Costa, pela solicitude desde o primeiro

momento e pelos valiosos apontamentos.

Ao jovem sambista Gutemberg Rio-Sampa por me apresentar ao mundo das

escolas de samba de São Paulo.

À família Fellows pela acolhida durante minha estadia no Rio.

Aos, em minha opinião, mais criativos compositores de samba-enredo da

atualidade, Eduardo Medrado, Kléber Rodrigues e parceiros, pela disposição em me

ajudar e coragem em inovar. Continuem firmes em suas convicções.

Aos também grandes compositores João Borba, Marcinho Keleque, e Gusttavo

Clarão por todas as dúvidas esclarecidas.

Aos pesquisadores Márcio Coelho e Acácio Tadeu de Camargo Piedade por

permitirem o diálogo entre nossos trabalhos.

A todos aqueles que ajudam a manter viva a história do carnaval

disponibilizando os discos de sambas-enredo na Internet, sem os quais esta pesquisa

não teria sido possível.

À Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pela

concessão da bolsa de estudos.

Page 4: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................6

1 – ORIGENS...................................................................................................................8

2 – UM NOVO SAMBA

2.1 Paradigma do Estácio..............................................................................................11

2.2 Análises.....................................................................................................................14

3 – O SAMBA-ENREDO

3.1 Transição..................................................................................................................24

3.2 O samba-lençol.........................................................................................................26

3.3 Análises.....................................................................................................................28

3.4 Modulações...............................................................................................................36

3.5 Refrões e Lirismo.....................................................................................................38

3.6 Dissonâncias.............................................................................................................40

4 – NOVOS TEMPOS

4.1 Martinho da Vila.....................................................................................................43

4.2 Repercussão..............................................................................................................49

4.3 Pega no ganzê...........................................................................................................53

4.4 Refrões......................................................................................................................56

4.5 Frases compartilhadas............................................................................................63

5 – ESTRUTURAS CARACTERÍSTICAS

5.1 Padrão harmônico característico...........................................................................67

5.2 Transposição fraseológica.......................................................................................69

5.3 Frase característica..................................................................................................76

6 – TEMPOS RECENTES

6.1 Marcha-enredo.........................................................................................................84

Page 5: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

6.2 Figuras de preenchimento.......................................................................................90

6.3 Tons homônimos......................................................................................................95

6.4 Refrões responsoriais..............................................................................................99

6.5 Padrão formal........................................................................................................101

7 – “SAMBISTA MODERNO EU SOU...”

7.1 Um mouro no quilombo........................................................................................107

7.2 Outros sambas........................................................................................................113

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................122

ENTREVISTAS...........................................................................................................123

DISCOGRAFIA...........................................................................................................124

SITES............................................................................................................................124

ANEXO.........................................................................................................................125

Page 6: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

6

INTRODUÇÃO

O fenômeno das escolas de samba, por sua importância para o entendimento da

cultura popular brasileira e pela complexidade dos aspectos ligados à sua manifestação,

é um tema de grande relevância para a pesquisa científica. São bastante conhecidos os

trabalhos que tratam do assunto sob os pontos de vista histórico, sociológico

(mercantilização e descaracterização das escolas de samba), antropológico (estudo das

relações entre os componentes), estético-visual (gigantismo e transformação das

alegorias e fantasias) e lingüístico (temática e letra dos sambas-enredo).

Esta pesquisa tem a intenção de se tornar mais um instrumento para a

compreensão do universo das escolas ao estudar o samba-enredo sob o ponto de vista

melódico. Julgamos que a linha melódica desse gênero carrega uma quantidade de

informações estilísticas suficiente para que a analisemos separada do plano poético. De

qualquer forma, como estamos tratando de um gênero de canção, este último será

sempre chamado quando a análise musical se revelar insuficiente.

Através do levantamento e catalogação das estruturas melódicas mais

recorrentes, assim como dos padrões harmônicos e formais (e nesse sentido, poderíamos

trocar o termo melódico presente no título desta pesquisa por musical, mais abrangente),

procuraremos apontar de forma detalhada os aspectos estilísticos e as principais

transformações da música praticada pelas escolas de samba do Rio de Janeiro desde as

primeiras décadas do século XX até os dias atuais. Veremos, portanto, a decisiva

contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de

formação do samba-enredo como gênero; a sua transformação em música de massa; as

consequências da aceleração do andamento e da padronização excessiva; e, finalmente,

a reação ao atual modelo de samba-enredo.

Page 7: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

7

Os sambas analisados foram escolhidos dentre as obras das escolas que

desfilaram no grupo principal de cada carnaval. A razão dessa escolha se encontra no

fato de as maiores escolas pertencerem a esse grupo, as quais são justamente as

responsáveis pela maior parte das mudanças ocorridas não somente no samba-enredo,

mas em todos os aspectos que envolvem essa manifestação cultural. Exceções a essa

regra só serão apresentadas no último capítulo, quando trataremos de sambas que não

chegaram a ir à avenida.

Por último, devemos dizer que pretendemos dar embasamento teórico a uma

polêmica, a qual foi um dos principais motivos para a realização desta pesquisa: por

muito tempo considerado um gênero propenso à renovação, o samba-enredo atualmente

movimenta debates sobre sua possível decadência ou estagnação.

Page 8: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

8

1 - ORIGENS

“A primeira escola de samba / Surgiu no Estácio de Sá / Eu digo isso e afirmo /

E posso provar”1, dizem em versos Pereira Mattos e Joel de Almeida no samba

Primeira escola. De fato, o modelo daquilo que é considerado uma das mais

importantes manifestações culturais populares do país se originou nas ruas do bairro

carioca do Estácio de Sá na década de 1920, embora suas origens remontem aos

ranchos formados por baianos estabelecidos no Rio de Janeiro no final do século XIX.

A ascendência dos ranchos na estrutura das escolas de samba se revela inegável ao

observarmos a descrição da estrutura dos primeiros:

Os ranchos já possuíam uma organização fixa, e seu desfile incluía: “abre-alas, comissão de frente, figurantes, alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e porta-estandarte, primeiro mestre de canto, coro feminino, segunda baliza e porta-estandarte, segundo mestre de canto, corpo coral masculino e orquestra” (RIOTUR, 1991 apud AUGRAS, 1998: 21).

Inicialmente ligados à tradição religiosa dos ternos de reis2 nordestinos (os

desfiles eram realizados no dia 6 de janeiro, Dia de Reis), os ranchos passaram a

desfilar no carnaval a partir de 1893, por iniciativa do Rei de Ouro, rancho fundado pelo

tenente pernambucano criado na Bahia e chegado ao Rio de Janeiro em 1872, Hilário

Jovino Ferreira. Dessa forma, “iniciando no carnaval de rua carioca a tradição dos

desfiles organizados em molde de espetáculo para o público [...], os ranchos tiveram

necessidade de criar um tipo de música coerente com o espírito de seus desfiles”

(TINHORÃO, s/d: 134).

A presença de instrumentistas de sopro nos ranchos, oriundos das bandas

militares e dos grupos de choro, fez com que a música dessas organizações se

distanciasse da produzida pelos antigos cordões. José Ramos Tinhorão explica que

integrados por negros e mestiços, e logo pelos brancos das camadas mais humildes da cidade, os cordões apresentavam-se como uma massa mais ou menos compacta de fantasiados, que ao som de instrumentos de percussão, avançavam pelas ruas de forma mais ou

1 Mattos, Pereira; Almeida, Joel de. Primeira escola. Intérprete: Os Cinco Crioulos. In: Samba no duro. [S.l.]: Emi-Odeon, 1968. 1 CD (25 min.). Remasterizado em digital, 2003. Faixa 1. 2 Também chamados de folia de reis.

Page 9: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

9

menos anárquica, uma vez que cada folião dançava criando livremente os passos que a música lhe sugeria (TINHORÃO, s/d: 114).

Um texto publicado no ano de 1910, no jornal interno do Ameno Resedá, um

dos ranchos mais famosos da época, evidencia o distanciamento entre a música dos

ranchos e cordões:

O Mário Cardoso, depois de meditar, com os olhos fitos em um espesso sabugueiro engrinaldo de flores, alvas e amorosas, externou o desejo de fundar-se um grêmio carnavalesco, cheio de originalidade, diferente dos grupos barulhentos de batuque e terreiro [referindo-se aos cordões]. [...] Um grêmio onde a beleza e elegância das vestes se harmonizasse com a sublimidade de cantares impecáveis, cuja música fosse da lavra de verdadeiros musicistas. [...] O batuque, a pandeirada e os urros seriam banidos por anti-estéticos (EFEGÊ, 1965: 35, citado por TINHORÃO, s/d: 134-5).

Segundo Tinhorão, “os ranchos da década de 20 não se preocupavam em fixar

um gênero próprio” (TINHORÃO, s/d: 135). Tal fato é confirmado ao verificarmos no

site do Instituto Moreira Salles (IMS)3 as indicações dos gêneros que acompanham os

títulos das músicas gravadas pelo Ameno Resedá na década de 1910: marcha (Viúva

Alegre, Brasil-Portugal, Saudação à águia, Odalisca); barcarola (Sobre as ondas);

schottish (Salve!); e dobrado (Carnaval de 1906, Severino Marques, Nunes Leite).

De qualquer forma, o gênero que ficou associado ao rancho é a marcha. Tanto é

que, já no final da década de 1920, quando essa começou a ser lançada comercialmente

como música de carnaval, bastasse que ela se aproximasse do caráter dolente das

canções executadas pelos ranchos para que a indicação de gênero presente nas etiquetas

dos discos fosse anotada como marcha de rancho ou marcha-rancho4.

Se os ranchos eram já bastante próximos das escolas de samba em sua estrutura

e no aspecto visual, é no âmbito musical que se encontra a diferença fundamental entre

as duas manifestações. De acordo com Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de

Oliveira Filho,

3 http://ims.uol.com.br/ims/ 4 José Ramos Tinhorão aponta o disco Odeon número 123208 (78 rpm), de 1927, contendo a música Moreninha, de Eduardo Souto e interpretada por Frederico Rocha, como um exemplo da indicação marcha de rancho. Em nossa pesquisa, constatamos que tal expressão deve ter começado a ser utilizada por volta dessa época, já que no site do IMS foi encontrada somente uma gravação anterior a essa com a mesma indicação de gênero: Mimosas margaridas, de Freire Júnior, interpretada pela Companhia Garridos, disco Odeon número122854 (78 rpm), 1926.

Page 10: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

10

para acentuar bastante a diferença entre rancho e escola de samba, basta esclarecer que estas jamais permitiram instrumentos [sic] de sopro em seus conjuntos, ao passo que os ranchos ostentavam pequenas orquestras de sopro e cordas, onde tocaram Irineu Batina, Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveira e outros monstros sagrados da música popular brasileira (SILVA& OLIVEIRA Fo, 1981: 30).

Tão importantes quanto os ranchos para a formação das escolas de samba, foram

os blocos. Menos organizados do que os primeiros, os blocos eram “grupos pobremente

fantasiados com apetrechos improvisados” (AUGRAS, 1998: 17) que costumavam agir,

ao menos no início, de forma violenta. . Progressivamente, passaram a adotar estrutura

próxima à dos ranchos. Monique Augras considera que “foi na junção dos ranchos [...]

com os blocos e cordões das ruas do Rio que se deu a criação daquilo que viria a ser as

escolas de samba” (AUGRAS, 1998: 17).

Sobre a prática musical dos blocos, Carlos Sandroni explica que alguns deles “se

limitavam a cantar as músicas de sucesso daquele ano, mas outros cantavam canções

feitas por seus participantes” (SANDRONI, 2001: 143). Naturalmente, deviam fazer

parte do repertório desses grupos as marchas, “em virtude de os blocos serem na ocasião

embriões de ranchos, assim como hoje cada bloco é um projeto de escola de samba”

(SILVA & OLIVEIRA Fo, 1981: 30), e os sambas de apenas uma parte, sendo a

segunda improvisada.

Foi justamente a atuação decisiva de um desses blocos, o Deixa Falar, fundado

no bairro do Estácio de Sá em 1928 por Ismael Silva, Bide, Marçal, Nílton Bastos e

outros, a responsável pelo surgimento e fixação não só de um novo tipo de organização

carnavalesca, mas também de uma nova maneira de compor o samba. É o que veremos

a seguir.

Page 11: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

11

2 – UM NOVO SAMBA

2.1 O paradigma do Estácio

Adiantamos que o surgimento das escolas de samba veio acompanhado de uma

transformação musical importante no samba produzido pelos compositores cariocas nas

primeiras décadas do século XX. Antes de nos atermos exclusivamente ao gênero

musical praticado pelas escolas, o qual é objeto da presente pesquisa, convém explicar

brevemente a qual modelo de samba este novo fazia oposição.

O gênero conhecido pelo grande público como samba desde o lançamento, no

ano de 1917, de Pelo Telefone - composição de autoria polêmica registrada por Ernesto

dos Santos, o Donga5 - era um dos vários cultivados pelos frequentadores da casa de Tia

Ciata, baiana nascida em 1854 e chegada ao Rio de Janeiro em 1876. A partir da prática

restrita por, em sua maioria, baianos migrados ao Rio de Janeiro no final do século XIX

e descendentes destes6, tal gênero foi popularizado no decorrer da década de 1920 pelo

carioca José Barbosa da Silva, o Sinhô, a ponto de este ter sido nomeado O Rei do

Samba.

De acordo com o estudo realizado por Carlos Sandroni em seu livro Feitiço

decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (SANDRONI, 2001),

a estrutura rítmica do samba produzido no Rio de Janeiro antes da transformação

promovida pelos compositores do Estácio era baseada no padrão conhecido como

tresillo:

Ou em variantes deste, como na chamada “síncope característica” (expressão

cunhada por Mário de Andrade):

5 A questão autoral de “Pelo telefone” já foi discutida por diversos estudiosos da música brasileira. Em SANDRONI (2001), um capítulo inteiro é dedicado à análise formal e, obviamente, à polêmica que envolve a autoria desse samba. 6 Embora tivessem sido peças importantes na permissividade para com a prática do samba, não incluímos aqui os membros da elite carioca que costumavam frequentar tais festas, por se situarem na posição de espectadores. Os detalhes das relações do samba com os diversos setores da sociedade podem ser conferidos no livro de Hermano Vianna, O mistério do samba (1995).

Page 12: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

12

Termo criado por musicólogos cubanos, o tresillo, de acordo com Sandroni,

“aparece na música de muitos outros pontos das Américas onde houve importação de

escravos, inclusive, é claro, no Brasil” (SANDRONI, 2001: 28). E prossegue:

O padrão rítmico 3+3+2 pode ser encontrado hoje na música brasileira de tradição oral, por exemplo nas palmas que acompanham o samba-de-roda baiano, o coco nordestino e o partido-alto carioca; e também nos gonguês dos maracatus pernambucanos, em vários tipos de toques para divindades afro-brasileiras e assim por diante (2001: 28).

O maxixe, gênero musical surgido nas últimas décadas do século XIX e

considerado por Tinhorão “a primeira grande contribuição das camadas populares do

Rio de Janeiro à música do Brasil” (TINHORÃO, s/d: 59), também faz uso do tresillo e

suas variantes na divisão rítmica da melodia e do acompanhamento. E é desse gênero

que o samba do estilo antigo (em oposição ao samba do estilo novo, do Estácio) mais se

aproxima ou com o qual chega mesmo a ser confundido. Tal fato, assinalado por vários

pesquisadores de música brasileira, é confirmado pelo próprio Donga, quando fala a

respeito de Pelo Telefone: “[...] fiz o samba, não procurando me afastar muito do

maxixe, música que estava bastante em voga” (DONGA, PIXINGUINHA E JOÃO DA

BAIANA, 1970 apud SANDRONI, 2001: 133).

A mudança de contexto coreográfico ocorrida após o sucesso de Pelo Telefone,

com a qual o samba deixa de ser executado exclusivamente em rodas para também fazer

parte do repertório dos blocos carnavalescos, provocou um problema de

compatibilidade entre música e desfile. Ismael Silva, em entrevista concedida a Sérgio

Cabral explica:

Quando comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na rua, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava pra andar. Eu comecei a notar essa coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar

Page 13: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

13

na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum (CABRAL, 1996: 242).

O que fizeram, pois, os sambistas do Deixa Falar foi adaptar a música cantada à

sua forma de desfile. Assim, da mesma forma que os sambas da geração anterior eram

baseados no tresillo, os sambas do Estácio eram agora caracterizados por uma nova

estrutura subjacente ao seu fluxo rítmico-melódico. Chamada por Sandroni de

“paradigma do Estácio”, é esta estrutura que está por trás da explicação dada por Ismael

Silva sobre a diferença entre os sambas do Estácio e os da geração anterior:

Paradigma do Estácio

Assim, nos últimos anos da década de 1920 passaram a coexistir dois tipos de

samba na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com João Máximo e Carlos Didier, “um

é aquele que se faz, toca e dança nas casas de ‘Ciata’ e outras tias baianas” (MÁXIMO

& DIDIER, 1990: 138), que “vem do começo do começo da década passada e é produto

da Cidade Nova [bairro do Rio de Janeiro onde surgiu o maxixe]” (1990: 118). O outro

[...] surgiu há poucos anos [o ano de referência é 1929] no Estácio de Sá, bairro situado entre o Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue. Dali se espalhou pelas vizinhanças, galgou as encostas da Saúde, Salgueiro, Mangueira, seguiu as linhas de trem até Ramos, Engenho de Dentro, Penha, Madureira... (1990: 118).

Convém lembrar que a denominação escola de samba dada por Ismael Silva ao

Deixa Falar, segundo ele mesmo, “por causa da escola normal que havia no Estácio de

Sá” (CABRAL, 1996: 241), era antes uma forma de exaltação das qualidades de seu

bloco do que uma ruptura radical com a estrutura dos ranchos, visto que deles “adotou-

se o modo de deslocamento processional [...], provadamente correto” (VALENÇA,

1982: 7). No entanto, tal termo acabou por resumir de maneira perfeita uma das

importantes ações do Deixa Falar: a de divulgar, por meio de frequentes visitas a outros

Page 14: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

14

bairros, o novo modelo de samba, o qual foi rapidamente “aprendido” pelos outros

blocos. Progressivamente, muitos desses também passaram a se autodenominar escolas

de samba.

No entanto, não foi somente nos redutos de samba que o novo estilo lançado

pelo Estácio encontrou acolhida. Sua trajetória de sucesso, até o ponto de ser eleito o

símbolo da música nacional, foi construída paralelamente à crescente importância do

rádio, meio pelo qual foi divulgado a todo o país tendo como vozes alguns dos maiores

cantores da época.

2.2 Análises

Nesta pesquisa, procuramos verificar se o paradigma encontrado por Carlos

Sandroni está presente também nos sambas de escola. Dessa forma, seria possível

avaliar qual o grau de influência dos compositores estacianos na produção dos demais

compositores de escolas de samba, e se havia diferença entre os sambas do Estácio, que

quando gravados e lançados por cantores como Francisco Alves e Mário Reis passavam

a visar ao sucesso radiofônico e à vendagem de discos no crescente mercado

fonográfico brasileiro, e os sambas que tinham como único ou principal incentivador o

próprio desfile.

Sandroni, em suas análises, demonstra que a maioria das articulações rítmicas

das linhas melódicas dos sambas do Estácio coincide com o paradigma. Como exemplo,

citamos O que será de mim (SANDRONI, 2001: 207), de Ismael Silva, Nílton Bastos e

Francisco Alves, gravado pelo último com Mário Reis em 1931:

Page 15: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

15

Podemos observar, de fato, coincidências perfeitas entre linha melódica e

paradigma. Do 1o ao 6o compasso, todas as notas da melodia, com exceção das duas

primeiras, encontram correspondência na estrutura escrita na pauta inferior. No 7o

compasso, a síncopa entre o 1o e 2o tempos difere-se do ritmo do paradigma, mas a

última nota, também em síncopa, acaba por retomá-lo. As exceções (marcadas com o

símbolo “x”) são justificadas por Sandroni, quando diz que “a cometricidade

[ocorrência de articulação rítmica na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia

do 2/4] tende a substituir a contrametricidade [articulação nas posições restantes, nos

casos em que não é seguida por articulação na posição seguinte, ao menos que seja

acentuada] nos inícios ou após pausas prolongadas” (SANDRONI, 2001: 206), e

quando menciona as dificuldades encontradas pelos cantores do rádio em se adaptarem

ao novo estilo.

A propósito, a presença do nome de Francisco Alves na autoria desse e outros

sambas da dupla Ismael Silva/Nílton Bastos explica-se pela prática da venda de sambas,

comum a partir do final dos anos 1920 e que tinha no famoso cantor um de seus maiores

adeptos. Para efeito de ilustração, transcrevemos a passagem encontrada na obra de

Máximo e Didier (1990):

Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro. Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas, das vantagens de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom que Ismael fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos discos. Em troca, Ismael entregaria a Francisco Alves tudo que fosse compondo. Os sambas gravados e editados, naturalmente, levariam a assinatura dos dois [...] [Ismael então explica que já havia feito um trato de parceria com seu amigo Nílton Bastos]

Para Francisco Alves não havia o menor problema: - Então a gente inclui ele na parceria (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 210-1).

Sandroni propõe o nome de parceria “nominal” para o tipo ocorrido acima, ou

seja, “quando ela era dada ou vendida na circulação comercial de sambas; e de parceria

‘real’ quando os parceiros participavam, mesmo que nem sempre em igual medida, na

composição do samba” (SANDRONI, 2001: 148).

Page 16: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

16

Retornando ao assunto que nos diz respeito, o primeiro samba de escola no qual

procuramos verificar a coincidência entre paradigma e melodia foi Chega de Demanda,

de autoria de Cartola e cantado pelos integrantes da Mangueira por volta de 19297:

Nesse samba são percebidas coincidências rítmicas significativas: o par de

colcheias presente no 2o tempo do 2o compasso do paradigma é perfeitamente

preenchido pelas colcheias dos compassos 5 e 9, assim como no segundo tempo do

compasso 13, quando só a segunda colcheia é atacada; e a contrametricidade

característica do paradigma, na última semicolcheia do segundo compasso, nunca é

quebrada pela presença de uma figura no tempo forte do compasso seguinte.

Na parte A de outro samba, Eu quero nota, de autoria de Arthurzinho,

apresentado pela Mangueira na primeira competição entre escolas de samba, promovida

por José Espinguela em 19298, são encontradas as mesmas características: 7 Na gravação de Chega de demanda presente na série de quatro discos História das Escolas de Samba, lançada pela gravadora Marcus Pereira em 1975, Cartola afirma que “em 1928 começamos [a Estação Primeira de Mangueira] a desfilar como escola de samba”. Entretanto, no livro de Sérgio Cabral As escolas de samba do Rio de Janeiro (CABRAL,1996), há uma reprodução em fac-símile de um papel timbrado da escola em que consta a inscrição “Fundado em 28 de abril de 1929”. Embora o samba de Cartola já fosse, sem nenhuma dúvida, cantado pelos mangueirenses antes dessa data (Cartola chega mesmo a afirmar, na mesma gravação, que o “nome ‘Estação Primeira’ foi tirado dele”), incluiremos a mesma data indicada no site oficial da Mangueira (www.mangueira.com.br), 1929.

Page 17: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

17

Nesse caso, destacamos o contratempo do segundo tempo do 1o compasso sendo

executado de acordo com o paradigma; as colcheias do 5o compasso, também em

conformidade; e a compatibilidade perfeita entre melodia e paradigma no 13o compasso.

Além disso, percebe-se, mais uma vez, que em todos os momentos em que a última

semicolcheia do compasso é ligada a uma nota do compasso seguinte (síncopa), ritmo

similar é encontrado no paradigma.

Cabe aqui retomar o que foi dito apenas de passagem, no primeiro capítulo, a

respeito da forma dos sambas dos blocos e escolas. Os sambas dos primeiros anos de

desfile não tinham a letra da segunda parte fixa. Isso significa que os sambas escolhidos

para o desfile (nessa época, as escolas costumavam desfilar com mais de um samba9)

eram na verdade refrões, estando a segunda parte a cargo de improvisadores.

8 No já citado site oficial da Mangueira o samba é datado como sendo de 1930. No entanto, o próprio José Espinguela, em entrevista concedida ao jornal A Nação, em 1935, explica como se deu o concurso: “Foi em 1929. Realizei no Engenho de Dentro. Sagrou-se vencedora a Portela, sabiamente dirigida por Paulo. Mangueira também apresentou-se pujante, tendo os seus sambistas Cartola e Arthurzinho apresentado dois sambas monumentais. Foram Beijos e Eu quero nota” (SILVA & OLIVEIRA Fo, 1981: 31). Por conta da força do depoimento, frequentemente citado por pesquisadores de escolas de samba, incluiremos somente a data nele mencionada. 9 A Mangueira, por exemplo, desfilava no ano de 1932 com três sambas, apresentados em momentos específicos: “o primeiro [...] é para entrar no desfile [...]. O segundo é para passar em frente ao palanque [dos jurados]. O terceiro, para as despedidas” (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 203).

Page 18: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

18

Os sambas radiofônicos, pelo contrário, não podiam permitir a presença de uma

segunda parte “aberta”, em que os versos poderiam ser criados no calor do momento de

um desfile ou de uma roda de samba. De acordo com Sandroni,

a gravação, a publicação, os direitos autorais, tudo isso exigia a presença, ao lado do estribilho, de uma segunda parte, que fosse, tanto quanto ele, ‘propriedade’ de um samba dado. Ela precisava ser ‘exclusiva’, em dois sentidos: primeiro, seus versos não podiam aparecer em outro samba; segundo, seus versos deviam ser só aqueles, com a exclusão de quaisquer outros, negando a abertura da improvisação onde novos versos eram sempre bem-vindos (SANDRONI, 2001: 152-3).

Dessa forma, quando um samba de escola entrava em processo de gravação, a

letra da segunda parte deveria ser fixada. Esse é o caso de dois sambas da Mangueira:

Não faz, amor, de autoria de Cartola, gravado por Francisco Alves, e Sorrindo sempre,

de Gradim, gravado por João Petra de Barros, ambos cantados no desfile de 193210.

Nos dois sambas, quem compôs a segunda parte definitiva para o ingresso no

rádio foi Noel Rosa11. O compositor foi escolhido por dois motivos: sua presença no

meio profissional do rádio, o que levou Francisco Alves a lhe confiar a segunda parte do

samba de Cartola (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 203); e seu costume de colocar

segundas partes em refrões de compositores com os quais mantinha bom

relacionamento, como é o caso de Gradim, ou, simplesmente, naqueles sambas que lhe

despertavam a atenção.

Não podemos afirmar se os improvisadores das escolas de samba seguiam um

modelo melódico fixo, mudando somente os versos. Ora, se esse fosse o caso, enquanto

do ponto de vista da canção (em que envolvemos, portanto, a letra) esses sambas com os

versos da segunda parte improvisados seriam considerados incompletos ou “abertos”,

do ponto de vista exclusivamente melódico os mesmos poderiam ser considerados

10 Mais uma vez encontramos divergência entre datas. No site da Mangueira consta que o samba “Não faz, amor” foi cantado no desfile de 1931; já o livro de Máximo e Didier, Noel Rosa, uma biografia, aponta-o como sendo de 1932. Buscamos no site do IMS e, felizmente, encontramos a data da gravação feita por Francisco Alves: 07/07/1932. Como Máximo e Didier (1990: 202) escrevem que, após assistir ao desfile da Mangueira no carnaval de 1932, “Francisco Alves fica entusiasmado [com o samba], pensa em gravá-lo e vai atrás de Cartola para que ele faça a segunda parte”, nos parece lógico supor que o cantor não demoraria muito tempo para gravá-lo, fazendo-o, portanto, em julho do mesmo ano para lançá-lo como samba de meio-de-ano. 11 De acordo com Máximo e Didier (1990:204), na partitura impressa de “Sorrindo sempre” aparecem, além dos nomes de Gradim e Noel, os de Francisco Alves e Ismael Silva. Logo, esse parece ser mais um dos muitos casos de parcerias nominais envolvendo os sambistas da década de 1930.

Page 19: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

19

dentro da forma binária (A-B), já que bastaria que possuíssem melodias distintas e

definitivas para cada parte, não importando a variação do conteúdo da letra.

De qualquer forma, é muito provável que os improvisadores não se afastassem

muito do modelo do partido-alto carioca, bastante praticado por muitos dos antigos

compositores de escolas de samba. O partido-alto, na definição de Nei Lopes citada por

Carlos Sandroni, é uma

espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores e que se compõe de uma parte coral... e uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão (LOPES, 1992 apud SANDRONI, 2001: 104).

Sandroni ainda esclarece que

o partido alto não é nunca cantado em desfile, mas sempre em roda. A distinção é importante porque houve sambas cantados em desfile que correspondiam à descrição citada, mas estes não foram nunca considerados como pertencentes ao domínio do partido-alto (2001: 104).

Quanto às melodias das improvisações, essas costumam adequar-se a um

esquema harmônico já estabelecido. No entanto, a cada vez que são apresentadas por

um novo ou pelo mesmo versador, podem ser submetidas a modificações de altura e

ritmo necessárias para uma boa adequação entre letra e música, ou mesmo decorrentes

das vontades expressivas individuais.

Assim, retomando a discussão entre sambas de escola e sambas radiofônicos,

apresentaremos somente a parte A dos dois sambas citados acima, já que o que nos

interessa são as melodias cantadas pela Mangueira naquele desfile de 193212:

12Da mesma forma, o site da Mangueira inclui somente os versos da parte A de “Não faz, amor”, excluindo a segunda parte de Noel que não foi cantada em desfile.

Page 20: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

20

Do mesmo modo que os anteriores, o samba em questão segue de modo nítido o

paradigma. A divisão rítmica dos compassos 6, 12 e 16, ligeiramente deslocada do

paradigma, é a mesma assinalada no 7o compasso de O que será de mim.

No samba seguinte, a interpretação feita João Petra de Barros nos compassos 4 a

8 faz parecer que houve uma quebra no paradigma:

Page 21: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

21

No entanto, o recurso de acentuar a contrametricidade pelo uso de síncopas

praticamente constantes (só interrompidas, mas logo retomadas, no 1o tempo do 6o

compasso) é bastante comum, demonstrando, inclusive, o grau de familiaridade do

intérprete com a linguagem do samba. Da mesma forma, a prosódia textual em nada

seria prejudicada se o ritmo estivesse de acordo com o paradigma:

O caso do samba Na floresta, de autoria de Cartola e Carlos Cachaça, também

apresentado pela Mangueira em 1932, é mais um que envolve polêmica autoral. Vale a

pena reproduzir um trecho da entrevista dada por Cartola ao pesquisador Sérgio Cabral:

SÉRGIO CABRAL – E aquela história confusa do “Na floresta”, como é que foi? CARTOLA – Foi o seguinte: o Bucy Moreira tinha um samba que o Chico [Francisco Alves] gostava da letra mas não gostava da música. E a música do meu samba “Na floresta” encaixava direitinho na letra do Bucy. Aí ele comprou minha música pra botar na letra do samba do Bucy, que se chamava “Foi em sonho”. A letra era assim: “Foi em sonho Que te amei E risonho Te abracei”.

Page 22: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

22

Isso era do Bucy, não me lembro o resto. Em cima daquela letra, ele botou a música do meu “Na floresta Dei-te um ninho E mostrei o bom caminho”. Aí minha letra ficou jogada fora. O Sílvio Caldas conhecia a letra e um dia resolveu botar uma música. E gravou. O Chico saltou, quis interditar o disco, coisa e tal. Mas o Sílvio convenceu o Chico que ele só tinha comprado a melodia: “Você deixou a letra de lado e o Cartola precisa ganhar dinheiro, pô”. Aí o Chico resolveu deixar pra lá (CABRAL, 1996: 273).

Através do site do Instituto Moreira Salles, conseguimos ter acesso aos dois

sambas citados: Foi em sonho, com melodia de Cartola e letra de Bucy Moreira,

atribuída somente a este último; e Na floresta, com letra de Cartola e melodia de Sílvio

Caldas. Embora Cartola tenha dito que sua melodia se encaixou “direitinho” na letra de

Bucy, fazendo-nos entender que não foi necessária nenhuma adaptação melódica para a

nova letra, não vamos aqui tentar associar a melodia de Foi em sonho com a letra de Na

floresta, por conta do risco de cometermos algum equívoco métrico. Portanto,

apresentamos somente a linha melódica da parte A de Foi em sonho cantada pela

Mangueira em seu desfile:

Page 23: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

23

Nesse samba damos destaque aos ataques de colcheia pontuada nos compassos 1

e 5, e ao par de colcheias no segundo tempo seguidas por semínima no 1o tempo,

presentes nos compassos 9-10, 11-12 e 13-14.

Desse modo, concluímos que se podemos fazer uma diferenciação entre os

primeiros sambas de escola e os radiofônicos sob o ponto de vista formal (isso se

considerarmos a existência de variação na melodia da segunda parte dos sambas de

escola), não o podemos sob o ponto de vista rítmico-melódico. E nem poderia ser

diferente: basta lembrarmos que alguns dos maiores compositores do rádio no período

compreendido entre o final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 eram oriundos das

escolas de samba ou intimamente ligados a elas. Esse é o caso dos já citados Ismael

Silva e Cartola, de Bide, Marçal e Nílton Bastos (da Deixa Falar), e de Heitor dos

Prazeres, “autor de muitos sucessos e, sem dúvida, uma figura muito importante na

fundação da Portela” (Viola, 1970). Além, é claro, do caso especial de Noel Rosa, que

se não era ligado a nenhuma escola de samba em especial, foi parceiro em diversas

composições desses mesmos compositores de escola, os quais o tinham em grande

estima.

Assim, fornecendo a matéria-prima para a música de rádio, a escola de samba

adquiriu uma importância que ultrapassou o âmbito estritamente carnavalesco, sendo

hoje considerada a criadora do modelo de samba que é “sinônimo de samba moderno,

de samba tal qual o reconhecemos hoje em dia” (SANDRONI, 2001: 131).

Page 24: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

24

3 – O SAMBA-ENREDO

3.1 Transição

No capítulo anterior, utilizamos a denominação samba de escola para os sambas

compreendidos no período de 1929 a 1932, ao invés do comumente empregado samba-

enredo ou samba de enredo. Fizemos essa opção por julgarmos necessário salientar a

diferença entre os sambas até agora analisados e o samba-enredo propriamente dito, que

será abordado de agora em diante.

De acordo com José Ramos Tinhorão, o samba-enredo “surgiu a partir da década

de 40 como contrapartida musical da progressiva estruturação das escolas no sentido de

encenar dramaticamente seus enredos, sob a forma de uma ópera-balé ambulante”

(Tinhorão, s/d., 173). Portanto, verificaremos que sua formação como gênero musical,

assim como sua transformação ao longo das décadas, será sempre norteada pelos

diversos fatores ligados ao desfile das escolas de samba.

Ao contrário do que pode parecer, a composição de sambas com letra baseada no

enredo tardou a se tornar prática generalizada. A apresentação, pela Unidos da Tijuca

em 1933, do hoje considerado o primeiro samba-enredo da história13 não encontrou eco

imediato nas demais escolas. Foram necessários quase vinte anos, no desfile de 1952,

para que o gênero fosse oficializado em regulamento, embora Monique Augras ressalte

que já “numa data situada entre 1946 e 1948, o samba-enredo se tornara unanimidade”

(AUGRAS, 1998: 79).

Se o samba da Unidos da Tijuca não desencadeou nenhuma mudança no tipo de

samba de que vínhamos nos ocupando, o regulamento do desfile de 1935 traria em suas

linhas uma importante tomada de posição com relação à questão formal. Nesse ano,

atendendo ao pedido da escola Vizinha Faladeira, foi determinado o fim do quesito

versadores. Desse modo, sem os versos improvisados na segunda parte e,

consequentemente, sem as possíveis variações melódicas decorrentes dessas

improvisações, o samba feito pelas escolas assumiu definitivamente a forma binária.

É importante notar que mesmo quando o samba comportava duas letras para a

segunda parte, o desenho melódico era mantido. Esse é o caso de Não quero mais amar

13 O enredo era “O mundo no samba”.

Page 25: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

25

a ninguém, de Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda, apresentado pela Mangueira em

193614:

Assim, a diferença entre os sambas de desfile e os radiofônicos agora não mais

existia. O que vai ao encontro da afirmação de Silva & Santos: “os argumentos da

escola de samba Vizinha Faladeira foram aceitos, porque se adequavam às necessidades

do consumo, do público estranho, das gravadoras, dos horários rígidos das autoridades”

(SILVA & SANTOS, 1980: 83).

Mesmo nos sambas hoje considerados “de enredo”, não é possível verificar

nenhuma mudança no padrão formal vigente. Um exemplo é Teste ao samba, de Paulo

da Portela, cantado por sua escola em 1939:

14 Na etiqueta do disco Victor no 34125, de 1936, que contém a gravação desse samba por Araci de Almeida (intitulado somente “Não quero mais”), constam apenas os nomes de Carlos Cachaça (Carlos Moreira da Silva) e Zé da Zilda (José Gonçalves). De acordo com Silva & Oliveira Fo (1983: 50), as duas segundas partes que foram cantadas no desfile, originalmente compostas por Cartola, foram substituídas na gravação por uma de autoria do mangueirense Zé da Zilda (também conhecido como Zé com Fome). Dessa forma, assim como antes, incluiremos somente a melodia apresentada pela escola, que, a propósito, atualmente é a mais conhecida.

Page 26: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

26

O conteúdo dos versos ainda não era, portanto, um fator que pudesse atuar como

modificador formal.

3.2 O samba-lençol

Daremos um salto de alguns anos a fim de vermos em que estado se encontra o

samba-enredo em seu período de “unanimidade”. Procuraremos saber de que forma sua

Page 27: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

27

singularidade no plano poético - a de contar em versos um enredo proposto - encontra

correspondência nos planos melódico e formal.

No regulamento do desfile de 1947 foi especificada pela primeira vez a

obrigatoriedade do motivo nacional nos enredos de escolas de samba (SILVA &

OLIVEIRA Fo, 1981: 73). Embora estas já desenvolvessem enredos nesse sentido15, a

exigência de enredos que exaltassem a história e as qualidades do Brasil atuaria de

maneira decisiva no formato do samba-enredo das duas décadas seguintes.

De acordo com Tinhorão (s/d: 179), “a necessidade de reduzir a poema

complicadas passagens da história do Brasil originou [...] os sambas de longas letras

com quarenta e cinquenta versos e até mais (os chamados lençóis)16”. Tal fato

demonstra que o samba-enredo tinha, enfim, um terreno fértil para seu

desenvolvimento.

Como consequência do aumento do número de versos, importantes mudanças

estruturais puderam ser verificadas. A primeira delas, naturalmente, é o aumento do

tamanho da linha melódica. Enquanto os primeiros sambas de escola contam, em sua

maioria, com apenas trinta e dois compassos divididos igualmente entre as duas partes,

os sambas-lençol ultrapassam facilmente o número de cem compassos.

A segunda mudança, em grande parte decorrente da primeira, é a flexibilização

da forma. Embora a estrutura binária não deixe de ser utilizada, podemos agora

encontrar sambas que chegam a ser de difícil classificação formal. E isso porque, de

acordo com Tatit (2000: 3), “o samba-enredo17 é um ‘gênero-fluxo’, com melodia que

sai ao encalço da letra, suplantando toda a sorte de entraves silábicos para garantir a

evolução de uma história preestabelecida”. Além disso, “a partir de um ritmo

cadenciado e ajustado pelo surdo e pela pulsação geral da bateria, o canto segue rotas

melódicas pouco previsíveis, que escapam ao controle perceptivo do ouvinte”. Em

suma: enquanto nos sambas dos primeiros anos de desfile o conteúdo tende a se adequar

à forma, nos sambas-lençol a forma se adéqua ao conteúdo.

O samba-lençol foi o gênero preferido dos compositores de escolas de samba até

o final da década de 1960, quando seu modelo começou a ser substituído por outro de

15 Destacamos o carnaval de 1946, chamado por Augras de “carnaval da vitória” (1996: 57), no qual todas as escolas apresentaram enredos alusivos à vitória dos Aliados e à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. 16 Tinhorão, entretanto, adverte que havia exceções, como é o caso do antológico “Exaltação a Tiradentes”, samba de apenas treze versos apresentado pelo Império Serrano em 1949. 17 Tatit se refere ao samba-enredo de uma maneira geral, mas sua definição nos parece melhor adequada ao samba-lençol de que estamos tratando.

Page 28: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

28

mais fácil aprendizado pelo público presente ao desfile e, consequentemente, mais

adequado à execução nas rádios. Falaremos desse samba mais tarde.

No período de predominância do samba-lençol, reinou em absoluto o nome de

Silas de Oliveira (1916-1972), considerado o maior compositor de samba-enredo de

todos os tempos. Entre os seus quatorze sambas escolhidos para representar o Império

Serrano em desfile, destaca-se a sequência formada por Aquarela Brasileira (1964), Os

Cinco Bailes da História do Rio (1965), Glória e Graças da Bahia (1966), São Paulo,

Chapadão de glórias (1967), Pernambuco, Leão do Norte (1968) e Heróis da

Liberdade (1969). Sua obra foi fundamental para a consolidação do gênero e é tida

como referência na junção de perfeição formal a um alto nível de elaboração poética e

melódica.

3.3 Análises

A partir deste ponto, deixaremos de lado o paradigma rítmico proposto por

Sandroni. Julgamos que sua importância como ferramenta distintiva entre o samba

amaxixado e o samba do Estácio já não é relevante ao tratarmos do samba-lençol.

Portanto, concentraremos nossos esforços sob os aspectos mais precisamente formais e

melódicos desse novo gênero.

Escolhemos como primeiro objeto de análise o samba de 1951 do Império

Serrano, de autoria de Silas de Oliveira. Considerado um dos mais característicos

exemplos de samba-lençol, os versos procuram contar em detalhes os fatos mais

importantes dos então “sessenta e um anos de República”, o enredo apresentado.

Page 29: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

29

Page 30: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

30

A divisão formal aqui apresentada procurou levar em conta a progressão

harmônica, os pontos de relaxamento rítmico e/ou melódico e a ocorrência de elementos

que pudessem dar unidade a um determinado trecho. Conseguimos distinguir seis

partes18, número que contrasta fortemente com a forma dos sambas vistos

anteriormente. Os comentários sobre cada uma delas estão aqui relacionados:

18 Cabe lembrar que essa não pretende ser a única divisão formal possível. Um maior ou menor grau de detalhamento na análise poderia nos levar a outra visão da mesma composição.

Page 31: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

31

Parte A (cc. 1-20): O material melódico dos compassos 5 e 6 é transposto tonalmente19

3a abaixo nos compassos 13 e 14. A ligeira modificação no segundo tempo do 14o

compasso adapta a melodia ao acorde de Bm do compasso seguinte.

Parte B (cc. 21-36): Sua unidade é percebida na transposição 3a acima (não

rigorosamente exata) do material dos compassos 20 a 25 nos compassos 28 a 33.

Parte C (cc. 37-72): É caracterizada pela breve modulação para a tonalidade relativa

maior (Ré maior) nos compassos 37 a 44. A repetição da frase dos compassos 64 a 67

nos quatro compassos seguintes, sugerindo um breve refrão, é o único momento em que

há interrupção do “fluxo” melódico.

Parte D (cc.73-88) O perfil intervalar do compasso 73 (2m desc./ 5J desc./ 3m asc./ 4J

asc.) é levemente modificado no compasso 77 (2m desc./ 6m desc./ 3m asc./ 4a asc.)

para se adaptar ao acorde de B7. A progressão harmônica de seus oito primeiros

compassos é idêntica à da parte A, o mesmo ocorrendo com os pontos de apoio

melódico: o uso da nota “Fa#” no compasso 75 e da nota “Si” no compasso 79 encontra

correspondência nos compassos 3 e 8. Isso faz com que esta parte possa ser considerada

um A’.

Parte E (cc. 89-104): De perfil bastante irregular, sua intensa movimentação rítmica (de

difícil respiração) fez com que considerássemos o trecho como sendo uma única parte.

Parte F (cc. 105-119): Apresenta quatro frases em que o relaxamento rítmico é sempre

feito no quarto compasso (compassos 107, 111, 115, 119). É importante notar que a

primeira frase começa antes da barra dupla que indica o início da parte F.

Como já adiantado pela explicação de Tatit, um dos aspectos mais notáveis do

samba-lençol é sua tendência de evitar a repetição em favor do fluxo contínuo. Está em

jogo uma preocupação do compositor em impulsionar, através da variação ou oposição

de elementos melódicos, o desenvolvimento da história a ser contada. No entanto, se

lembrarmos que, de acordo com Schoenberg, a “variação é uma repetição em que

alguns elementos são mudados e o restante é preservado” (SCHOENBERG, 1991: 37),

veremos que a repetição não está totalmente excluída desse gênero. Aliás, a necessidade

da repetição para uma boa compreensão do discurso já foi abordada pelo próprio

Schoenberg:

19 Na transposição tonal o padrão intervalar é mantido, mas adaptado às notas da tonalidade.

Page 32: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

32

“A inteligibilidade musical parece ser algo impossível de se obter sem o recurso da repetição. Enquanto a repetição sem variação pode facilmente engendrar monotonia, a justaposição de elementos com pouca afinidade pode, com facilidade, resultar em absurdo, especialmente se os elementos unificadores forem omitidos” (SCHOENBERG, 1991: 5).

Assim, a retomada de materiais melódicos previamente apresentados, quando

ocorre, atua em favor do próprio fluxo, servindo como ponto de “retomada de fôlego”

para novos “devaneios”.

De qualquer forma, o evitamento da repetição está presente e acaba por se

refletir na diminuição da importância do refrão, visto que este atua como ponto de

“refreamento” do fluxo melódico da canção20. Desse modo, podemos encontrar sambas

com completa ausência de refrões (Sessenta e um anos de República, Império Serrano,

1951; Dona Beja, a feiticeira de Araxá, Salgueiro, 1968) e outros em que a melodia

atinge um refrão, mas “é como se o encontrasse por acaso ao final de longa jornada”

(Tatit, 2000: 3). Esse é o caso dos sambas-lençol que destinam os seus últimos

compassos à apresentação do refrão21, como, citando somente sambas de Silas de

Oliveira para o Império Serrano, Os cinco bailes da história do Rio (1965),

Pernambuco, Leão do Norte (1968) e Aquarela Brasileira (1964), este último

frequentemente encabeçando as listas de maiores sambas-enredo de todos os tempos:

20 De acordo com Márcio Coelho (COELHO, 3: em fase de pré-publicação, nota de rodapé), Luiz Tatit tem desenvolvido, em seus estudos sobre a canção, a ideia de “refreamento” imposto pelo refrão, embora ressalte que não tenha encontrado essa acepção na raiz etimológica da palavra “refrão”. Coelho, entretanto, verifica que, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “reprimir” (um dos significados de “refránher”, origem de “refrahn”, que significa estribilho) é sinônimo de “refrear”, o que confirma a ideia proposta por Tatit. 21 Isso não significa, evidentemente, que não houvesse sambas em que o refrão está situado entre estrofes.

Page 33: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

33

Page 34: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

34

Nesse samba, chegamos ao número de sete seções, incluindo o refrão. Algumas

delas, entretanto, poderiam ser desmembradas, tamanha a variedade do material

melódico apresentado. Alguns apontamentos22:

22 Durante a pesquisa, nos perguntamos diversas vezes se deveríamos lançar mão de termos demasiadamente técnicos para a análise de um gênero de música popular em que a grande maioria dos compositores não teve educação musical formal. Acabamos por julgar que a observação e classificação dos fenômenos de acordo com o que nos oferece a teoria musical clássica se faziam necessárias, ainda

Page 35: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

35

Parte A (cc. 1-28): Nos compassos 1 a 17, a repetição variada das frases a e b confere

simetria e unidade melódica ao início do samba. A cadência perfeita nos compassos 16

e 17 sugere um final de seção, o que poderia levar o trecho compreendido entre os

compassos 19 a 28 a ser considerado uma nova parte. Ainda que sensíveis mudanças

melódicas possam ser notadas, sua curta duração, aliada a uma breve polarização em Dó

maior nos compassos 19 a 21 para logo em seguida ser retomada a progressão em

direção à tonalidade de Lá menor (c. 23), fez com que este último trecho fosse analisado

como pertencente à primeira parte.

Parte B (cc. 29-44): A frase a é retomada de maneira levemente modificada no início

desta parte. Novamente há uma breve polarização para Dó maior (cc. 37-39), mas a

modulação não se concretiza.

Parte C (cc. 45-64): O acorde dominante (E7) dos dois últimos compassos da parte B

não atinge o 1o grau23 (I) da tonalidade de Lá menor, mas sim o dominante secundário

(A7) do IV (D) da tonalidade homônima maior (Lá maior). É interessante notar que a

tonalidade de Lá menor retorna no compasso 53 (com o IV menor) antes que o I de Lá

maior (A) seja atingido.

Parte D (cc. 65-88): A tonalidade de Lá menor é afirmada. Os compassos finais da

seção (85 e 86) são responsáveis pela modulação para Lá maior, tonalidade que será

afirmada pela progressão I – VIm – IIm – V7 nos compassos 87 e 88.

Parte E (cc. 89-104): Esta parte é caracterizada pelo aproveitamento do material

melódico de c. Com algumas pequenas variações, seu perfil é mantido durante todo o

trecho: o salto inicial de 6a (“Mi-Dó#”) em c é transformado em salto de 4a (“Mi-Lá”)

em c’, além de ser feita uma pequena mudança rítmica decorrente do verso cantado; nos

compassos 96 a 99, c é transposto uma 2a acima (adaptado ao IIm da tonalidade, Bm); e,

finalmente, o cromatismo atua como elemento de variação presente em c’’.

Parte F (cc. 105-136): A progressão harmônica em direção ao IIm e a relativa demora

para sua resolução faz com que o samba ganhe em tensão nos primeiros compassos

desta parte (cc. 105-111). Progressivamente, a melodia tende a assumir um caráter

que certos procedimentos composicionais realizados pelos sambistas tenham sido, quase sempre, resultado de um aprendizado exclusivamente auditivo. De qualquer forma, esse tipo de análise serve para demonstrar quão sofisticada pode ser a elaboração melódica no samba-lençol, especialmente quando se trata de uma obra de Silas de Oliveira. 23 A partir de agora, cada grau da tonalidade será aqui apresentado somente em numerais romanos.

Page 36: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

36

conclusivo, com os últimos quatro compassos (cc. 133-136) sendo destinados para a

modulação para Lá menor, tonalidade do Refrão (G) (cc. 137-144).

3.4 Modulações

As modulações entre tonalidades homônimas24, como as assinaladas em

Aquarela Brasileira e tão comuns, como veremos, nos sambas-enredo de épocas

posteriores, começam a ser percebidas, na música das escolas, a partir dos sambas-

lençol, embora ainda não fossem prática generalizada. A modulação por meio do acorde

dominante25 é a mais empregada pelos compositores de escola de samba, possivelmente

por sua facilidade de execução, embora modulações diretas26 também possam ser

encontradas.

A utilização de um recurso composicional como a modulação é favorecida pela

própria extensão da linha melódica, a qual necessita constantemente de elementos de

variação para evitar a monotonia. Dessa forma, mais um elemento de diferenciação

entre os sambas das primeiras décadas e os sambas-lençol é agora identificado, visto

que os primeiros costumam apresentar unidade tonal entre as partes A e B.

24 Tonalidades de modos diferentes que possuem a mesma tônica (Ex: Dó maior/Dó menor). 25 Lembrando que tonalidades homônimas compartilham o mesmo acorde dominante (em Dó maior ou menor, o acorde de G7), basta substituir, após este acorde, o 1o grau da tonalidade inicial pelo 1o grau da tonalidade homônima (por exemplo, partindo da tonalidade de Dó maior atinge-se o acorde de Cm; partindo da tonalidade de Dó Menor atinge-se o acorde de C). 26 Por exemplo, estando em Dó maior, iniciar uma cadência plagal (subdominante-tônica) já em Dó menor (Fm – Cm).

Page 37: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

37

Page 38: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

38

3.5 Refrões e Lirismo

Um procedimento bastante comum nos refrões de sambas-lençol é o canto sem

versos. Este pode ser feito com duas sílabas (geralmente lá e ia ou lá e rá) ou apenas

com vogais. Essa prática de composição evidencia antes uma utilização do refrão como

apoteose de toda uma construção melódica do que como auxílio à compreensão do

enredo27. Além disso, os refrões evidenciam o acentuado caráter cantabile desse sub-

gênero, resultado da utilização de figuras de longa duração.

27 Convém dizer que nem todos os sambas das décadas de 1950 e 1960 eram lençóis. No entanto, os procedimentos de composição aqui assinalados (com exceção da modulação entre tons homônimos, mais presentes em sambas de longa duração) são os mesmos para quase toda a produção dessas duas décadas, o que nos permite incluir refrões de sambas de duração mais curta. De qualquer modo, somente incluiremos trechos que poderiam facilmente figurar no interior de “autênticos” lençóis.

Page 39: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

39

Já este refrão faz referência ao enredo, mas somente em seu final:

Page 40: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

40

3.6 Dissonâncias

A partir do ano de 1959, o Acadêmicos do Salgueiro passou a contar com

profissionais ligados às artes plásticas para confeccionar seu carnaval. O casal de

artistas plásticos Dirceu e Marie-Louise Nery foi chamado para desenvolver o enredo

Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, baseado na obra de Debret. No ano seguinte,

juntaram-se a eles Nilton Sá, Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, oriundos da

Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Pamplona propôs enredos que

valorizassem a figura do negro, até então raramente abordados pelas escolas de samba,

o que gerou carnavais como Quilombo dos Palmares (1960), Chica da Silva (1963) e

Chico Rei (1964). Era o surgimento28 e consolidação da figura do carnavalesco,

elemento que pensa no enredo, desenha os figurinos para as fantasias, desenha os complementos, indica os tecidos que devem ser usados, as cores, distribui entre os presidentes de ala ou diretamente entre os componentes, desenha as alegorias, os adereços de mão, acompanha sua montagem [...] e, mais recentemente [a referência é de 1984], interfere nas letras de escolas de samba (RODRIGUES, 1984: 43).

Se pessoas estranhas à escola, geralmente da classe média, passaram a atuar no

aspecto “plástico” do desfile, não podemos encontrar algo equivalente no samba-enredo

da mesma época. Embora composições de autores ligados a escolas de samba, como Zé

28 Fernando Pamplona afirma em entrevista ao site O Batuque que antes de fazer o enredo para o Salgueiro, teve conhecimento de uma “francesa [possivelmente Ded Bourbonois, citada em CABRAL, 1996: 187] que chegou ao Brasil com o Teatro Montpellier da Universidade de Paris [...]” e “fez a Portela umas três vezes”, e de “Julinho [...] que fabricava alegoria para dez escolas de sambas do Brasil” (Pamplona, 2004). Podemos citar ainda como importantes figuras no desenvolvimento de enredos os nomes de Lino Manuel dos Reis e Djalma Vogue, da Portela, e Hildebrando Moura, do Salgueiro. Entretanto, deve-se ao trabalho do grupo de artistas que atuou no Salgueiro a partir de 1959 a atual importância do “carnavalesco” na concepção de um desfile.

Page 41: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

41

Kéti (Portela e União de Vaz Lobo), Élton Medeiros (Unidos de Lucas), Cartola e

Nélson Cavaquinho (Mangueira), passassem a ser valorizadas por artistas da Bossa-

Nova29 (símbolo musical da classe média carioca desse período), o caminho inverso não

foi feito: compositores ligados à estética da Bossa-Nova nunca participaram do processo

de escolha de um samba-enredo. De todo modo, mesmo que as escolas fizessem parte

das aspirações dos bossa-novistas, o rígido acesso às alas de compositores impediria a

participação de não-membros30.

Assim, se a valorização de intervalos de 9a, 11a ou 13a é parte essencial da

construção melódica na Bossa-Nova, não o é no samba-enredo do período abordado. O

uso da 7M como ponto de apoio31 no 1o grau da tonalidade (marcado com um “x”)

também não é usual, mas pode ser encontrado em alguns exemplares do gênero:

29 Particularmente por Nara Leão, que incluiu em seu primeiro disco, Nara (1964), Diz que fui por aí (Zé Kéti/Hortênsio Rocha), Luz Negra (Nélson Cavaquinho/Amâncio Cardoso) e O sol nascerá (Cartola/Elton Medeiros). 30 Atualmente, a maioria das escolas de samba admite que indivíduos não pertencentes à sua ala de compositores participem da disputa de sambas-enredo. Um bom exemplo de um rigoroso processo de admissão para essa ala pode ser encontrado no estudo de Maria Julia Goldwasser sobre a Estação Primeira de Mangueira, O Palácio do Samba (GOLDWASSER: 1975). 31 Consideramos como pontos de apoio notas de longa duração ou com caráter de resolução.

Page 42: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

42

Entretanto, seu aparecimento, como provam as datas de alguns dos exemplos

acima listados, anteriores a 195832, nada tem a ver com alguma possível influência da

Bossa-Nova.

32 Ano de lançamento do LP Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso, considerado o marco inicial da Bossa-Nova.

Page 43: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

43

4 – NOVOS TEMPOS

4.1 Martinho da Vila

Considerado um dos mais belos sambas-enredo de todos os tempos, Heróis da

Liberdade, de 1969, foi o último samba de Silas de Oliveira escolhido para ser cantado

em desfile pelo Império Serrano. Ao mesmo tempo em que Silas atingia o completo

domínio na feitura do samba-lençol, um novo modelo de samba vinha sendo proposto

por Martinho da Vila na Unidos de Vila Isabel. Iniciada dois anos antes, a trilogia

formada por Carnaval de Ilusões (1967), Quatro séculos de modas e costumes (1968) e

Yayá do Cais Dourado (1969) seria responsável pela renovação do samba-enredo e

influenciaria fortemente a produção da década seguinte.

A transformação feita por Martinho no samba-enredo está intimamente ligada ao

seu modo de tratar o partido-alto. De acordo com Tárik de Souza,

Martinho apanhou o aleatório partido-alto, sempre complementado no ato por versos improvisados (o que é obviamente impossível numa reprodução gravada), e cristalizou-o, dando-lhe estrutura definida e formato identificável, tal como Luiz Gonzaga fez com o difuso baião nordestino (SOUZA, 1982: 2).

Já no caso do samba-enredo, o próprio Martinho da Vila explica:

O samba-enredo antes era didático, só servia para cantar com a escola. Havia muitos compassos vazios, sem letras. Dei uma dinâmica, tapei os buraquinhos, tirei a didática. O pessoal das escolas pensou que era fazer um samba curto, quando era fazer um samba dinâmico (citado por SOUZA, 1982: 1).

Carnaval de Ilusões, o primeiro samba de Martinho para a Vila Isabel, não

apresenta uma ruptura radical com o formato do samba-lençol. Sua duração é longa

(mais de 150 compassos) e um de seus refrões chega mesmo a apresentar o lirismo

característico dos lençóis:

Page 44: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

44

No entanto, a novidade desse samba estava em seu refrão final, baseado em uma

conhecida cantiga popular:

O “dinamismo” objetivado por Martinho da Vila é ainda mais claramente

percebido em Quatro séculos de modas e costumes. Suas três estrofes são de tamanho

consideravelmente menor do que as encontradas nos lençóis e já se pode observar nos

refrões, em especial no segundo, uma maior movimentação rítmica e simplificação

melódica, decorrente do uso de estruturas repetitivas:

Page 45: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

45

A intensificação de todos esses procedimentos pode ser vista em Yayá do Cais

Dourado. Nele, a influência do partido-alto se faz mais nitidamente presente, ou, antes,

é a matéria-prima para a construção melódica e formal.

Page 46: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

46

Page 47: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

47

Vimos na definição de Nei Lopes que o partido-alto é composto de uma “parte

coral [com versos já estabelecidos] e uma parte solada com versos improvisados ou do

repertório tradicional” (LOPES, 1992 apud SANDRONI, 2001: 104). Devemos lembrar

também que a parte coral (refrão) é melodicamente fixa e a parte solada pode ser

submetida a modificações de altura e ritmo.

Em Yayá..., Martinho elege uma curta frase musical como o refrão principal da

composição:

No entanto, diferentemente do partido-alto, os versos são modificados para

darem conta da história apresentada.

Page 48: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

48

A linha melódica do outro refrão também é retomada mais adiante, mas, desta

vez, com semelhanças entre o que é cantado:

Rompendo com um dos alicerces do samba-lençol, o fluxo contínuo, Martinho

concede à repetição papel fundamental nesse samba. Os primeiros compassos são

flagrantes dessa importância: a linha melódica dos três primeiros versos (“No cais

dourado da velha Bahia / Onde estava o capoeira / A Yayá também se via”) é fielmente

reproduzida nos três versos seguintes (“Juntos na feira ou na romaria / No banho de

Page 49: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

49

cachoeira / E também na pescaria”), procedimento que, se levado em conta apenas o

aspecto melódico, poderia caracterizar esse trecho como um refrão.

Até mesmo trechos não-pertencentes a refrões são repetidos em outro contexto:

A repetição atinge até mesmo o plano harmônico, visto que a progressão de

acordes é a mesma em praticamente todo o samba.

4.2 Repercussão

As inovações feitas por Martinho33, frutos de uma necessidade de tornar o

samba-enredo mais leve, não tardaram a encontrar eco nas outras escolas. No carnaval

de 1969, Yayá do Cais Dourado já não era o único samba que se distanciava dos

aspectos estilísticos do samba-lençol. A influência de Martinho podia nitidamente

33 O compositor, aliás, jamais deixaria de questionar as estruturas do gênero. Sambas-enredo como Sonho de um sonho (1980), Raízes (1987) e Gbalá – viagem ao templo da criação (1993), todos para a Vila Isabel, mereceriam ser estudados detalhadamente, tamanha a sua originalidade.

Page 50: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

50

sentida nos refrões dos sambas da Unidos de Lucas e do Salgueiro, este último com

grande sucesso de público:

E como bem observou José Ramos Tinhorão, no carnaval do ano seguinte (1970),

tal como havia sido feito em Carnaval de Ilusões, “seis das grandes escolas de samba

do Rio [de um total de dez que desfilaram no 1o grupo] transformavam motivos

tradicionais em atração de seus sambas” (TINHORÃO, s/d: 181), incluindo, é claro, a

Vila Isabel de Martinho da Vila. As estruturas repetitivas, características das cantigas

tradicionais, podem ser identificadas na maioria deles:

Page 51: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

51

Page 52: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

52

As consequências dessas inovações não se limitavam a uma mudança estética no

interior do samba-enredo; em um curto espaço de tempo o gênero se tornava cada vez

mais apto para ingressar na indústria do consumo que há algum tempo assediava

determinados aspectos do carnaval carioca34.

No final de 1967 havia sido lançado o primeiro LP35 com os sambas-enredo das

escolas do primeiro grupo (hoje chamado de grupo especial) para o carnaval do ano

seguinte, dando início a uma prática que nunca mais seria abandonada.

A gravação e lançamento dos sambas-enredo alguns meses antes do carnaval

trouxe mudanças importantes na maneira com que a música era entendida no desfile. De

acordo com Ana Maria Rodrigues,

até o início da transformação do samba-enredo em ‘samba-comercial’, na década de 70, os compositores não se haviam ainda preocupado com o fato de o público assistente cantar ou não o samba da escola, uma vez que o samba era feito ludicamente, para diversão dos integrantes do desfile. Para um bom desempenho na avenida, o que era uma questão de honra, o samba se ocupava em contar mais detalhadamente o enredo. Isso, aliado à preocupação em situar o tema nos feitos históricos, tornava os sambas difíceis de serem apreendidos em pouco tempo. Como ainda não havia grande divulgação, somente os assistentes que tivessem tido um contato anterior com a música cantavam junto (RODRIGUES, 1984: 65).

34 Como, por exemplo, o início da cobrança de ingressos para assistir ao desfile, em1962. 35 “Festival de Samba – Gravado Ao Vivo”, lançado pela gravadora DiscNews.

Page 53: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

53

Pela primeira vez o público que não frequentava os ensaios das escolas podia

chegar ao desfile sabendo cantar todos os sambas. Além disso, o samba-enredo

despertava cada vez mais o interesse das rádios. De acordo com Monique Augras,

os sambas-enredo de maior sucesso passaram a ser os de mais fácil memorização. O grande público, submetido ao constante assédio das emissoras de rádio, tornava-se juiz da excelência dos sambas já divulgados antes do carnaval. Consagrava-se um processo circular, pelo qual o melhor samba-enredo era na verdade o mais divulgado, e vice-versa (AUGRAS, 1998: 85).

O espectador que não houvesse sido exposto ao disco ou às rádios não deveria,

entretanto, se preocupar: as feições que o samba-enredo vinha tomando contribuíam

para o fácil aprendizado das letras e melodias no próprio momento do desfile. A

repetição atuava como uma valiosa ferramenta para a memorização.

4.3 Pega no ganzê

O ponto culminante do processo de renovação e massificação do samba-enredo

foi atingido pelo samba do Salgueiro de 1971, Festa para um rei negro (popularmente

conhecido como Pega no ganzê), de autoria de Zuzuca. Sérgio Cabral nos dá uma ideia

do sucesso desse samba:

Descoberto pelos veículos de comunicação bem antes do carnaval, a gravação do samba Festa para um rei negro passou a ser executada pelas emissoras de rádio e o seu autor foi convocado para cantá-lo na Discoteca do Chacrinha, o programa mais popular da televisão brasileira. Dos bailes pré-carnavalescos ao carnaval propriamente dito, passando pela banda de Ipanema e por outras bandas de rua, o samba do Salgueiro foi a música mais cantada no verão carioca de 1971 (CABRAL, 1996: 196-7).

Com Pega no ganzê, o samba-enredo assumia definitivamente o status de

música de carnaval por excelência. Para isso, entretanto, precisou tomar emprestado

características da antiga dona do carnaval carioca, a marchinha carnavalesca, que

“desde os primeiros anos da década de 60 enfrentava um inexorável processo de

decadência” (CABRAL, 1996: 196).

Page 54: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

54

De acordo com a definição de Luiz Tatit, as marchinhas “eram velozes e, ao

mesmo tempo, concentradíssimas: só refrão e segunda parte” (TATIT, 2000: 3). E é

exatamente essa a estrutura de Pega no ganzê 36. Com a simplicidade de sua forma

binária, e com seu reduzido número de compassos, o samba de Zuzuca golpeava

profundamente a tradição do samba-lençol ao acabar com o que ele tinha de excesso.

Tal golpe não se atinha apenas à questão formal. Se observarmos a parte A,

veremos que ela está inteiramente baseada no motivo rítmico-melódico aqui assinalado:

36 A segunda parte apresenta três letras distintas. As alterações melódicas decorrentes das diferenças entre os versos são mínimas, o que mantém a forma binária.

Page 55: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

55

O mesmo ocorre com a parte B: a frequência com que a primeira frase é

retomada revela que nesse samba a repetição é o elemento a ser valorizado.

A estrutura rítmica de Pega no ganzê admitia ainda mais simplificações. A

famosa interpretação de Jair Rodrigues37, que retira o caráter sincopado presente na

gravação oficial da escola, revela a estreita ligação desse samba com a marcha.

37 No LP “Acadêmicos do Salgueiro apresenta: Os maiores sambas-enredo de todos os tempos”. Rio de Janeiro: Philips, 1971.

Page 56: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

56

4.4 Refrões

Os refrões, de uma maneira geral, seriam bastante valorizados na década de

197038. São bastante comuns os sambas construídos com mais de dois deles; alguns,

como o exemplo abaixo, chegam mesmo a apresentar um refrão imediatamente após

outro, sem o intermédio de estrofes:

38 Raríssimos sambas, nessa década, não faziam uso de refrões. Esse é o caso de Mangueira em tempo de folclore (Mangueira, 1974) e Parapanã, o segredo do amor (Mangueira, 1977).

Page 57: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

57

Cabe notar, igualmente, o menor número de compassos desse samba em

comparação com os lençóis.

Seriam justamente os refrões os principais atingidos pelas transformações

iniciadas por Martinho da Vila e radicalizadas pelo samba de Zuzuca. O grande sucesso

deste último não passou despercebido pelos compositores das outras escolas: no

carnaval do ano seguinte o Império Serrano já não tinha receio de desfilar com um

samba curtíssimo e de refrão bastante simples, mostrando que a era do samba-lençol,

gênero que seu maior compositor ajudou a consagrar, havia acabado39:

39 Isso não significa que sambas mais ou menos próximos do samba-lençol tenham desaparecido dos desfiles. Sua presença, no entanto, jamais voltaria ao nível das duas décadas anteriores.

Page 58: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

58

E se olharmos alguns sambas dos anos 1970, veremos que simplicidade e

animação haviam se tornado as palavras-chave para um bom refrão40:

40 Fizemos questão de incluir nesses exemplos sambas anteriores ou do mesmo carnaval de Pega no Ganzê (1971) para mostrar claramente que, antes do aparecimento desse samba, refrões “simples e animados” já haviam caído na predileção de grande parte dos compositores. Assim, ao contrário do que prega o senso comum, Pega no Ganzê é uma consequência das rápidas transformações que passava o samba-enredo, e não uma ruptura radical com o que estava sendo feito.

Page 59: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

59

A necessidade do fácil canto e memorização fez com que em pouco tempo os

compositores encontrassem as estruturas mais adequadas para sua realização. Entre

essas estruturas, chamou-nos a atenção uma bastante utilizada durante toda a década de

Page 60: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

60

1970, a ponto de ter se tornado uma das marcas registradas do samba-enredo desse

período.

Ela é constituída de três partes: 1) apresentação de uma pequena célula rítmico-

melódica (proposição); 2) repetição rítmica dessa célula, geralmente com adaptações de

altura decorrentes da mudança harmônica 3) frase conclusiva de maior tamanho e

caráter contrastante (resolução).

PROPOSIÇÃO – REPETIÇÃO – RESOLUÇÃO

No exemplo acima, a diferença rítmica entre a proposição e a repetição só existe

por conta do melisma41 nesta última (sílaba lá entre o 2o e 3o compassos após a barra de

repetição).

Já no exemplo abaixo se dá o inverso: a proposição possui melisma e a

repetição o retira.

41 Canto de mais de uma nota em uma mesma sílaba.

Page 61: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

61

Ainda outros exemplos:

Page 62: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

62

A influência de Pega no Ganzê é inegável: expressões como “Oleolê, oleolá” (Em

cima da hora, 1975; Portela 1978), “Arerê, arerá” (Mocidade, 1976) e “Chuê, chuá”

(Vila Isabel, 1978) são herdeiras do famoso “Olelê, olalá” do samba do Salgueiro. E,

obviamente, a similaridade no plano poético é correspondida no plano melódico, ainda

que Pega no Ganzê tenha utilizado utilize somente proposição e repetição.

Sambas com o esquema de refrão acima mencionado ainda podiam ser

encontrados nos anos 1980, embora sua presença tenha diminuído consideravelmente a

partir da segunda metade dessa década:

Page 63: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

63

O que não impediu seu aparecimento em alguns sambas dos anos 1990 e 2000:

4.5 Frases compartilhadas

Semelhanças rítmicas, melódicas e harmônicas, como as vistas nos sambas

acima citados, não são de exclusividade dos refrões e tampouco são restritas ao período

estudado. Antes, podemos afirmar que o compartilhamento de materiais melódicos por

Page 64: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

64

diferentes sambas pode ser encontrado em todos os subgêneros do samba e - é

importante salientar - nas mais diversas épocas.

Durante a confecção desta pesquisa, conseguimos catalogar um grande número

de frases compartilhadas. Julgamos que não cabe aqui apresentá-las; sua leitura seria

exaustiva e, ainda assim, não daria conta de todas as situações existentes no gênero.

Além disso, oportunidades não faltarão para reconhecê-las, já que poderão ser vistas

quando tratarmos de estruturas de grande relevância para o entendimento do samba-

enredo.

De qualquer forma, durante a análise dos sambas da década de 1970, chamou-

nos a atenção uma prática, no mínimo, curiosa: o aproveitamento do material melódico

de um determinado samba por um ou mais sambas do ano imediatamente seguinte.

Algumas das situações mais relevantes estão relacionadas a seguir:

Exemplo 1

Exemplo 2

Page 65: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

65

Exemplo 3

Exemplo 4

Exemplo 5

Page 66: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

66

Exemplo 6

Para a maioria dos sambistas, o compartilhamento melódico não é considerado

uma prática de má-fé, sendo antes enxergado como vocabulário melódico característico

do gênero. Tendemos para essa mesma visão, amparados pelas descobertas que serão

apresentadas no próximo capítulo. Ainda assim, não podemos deixar de pensar, sem a

intenção de causar polêmica, que tal compartilhamento em sambas de carnavais

consecutivos, como os acima mencionados, pode ser um sintoma que fatores

extramusicais (a busca pelo sucesso, por exemplo, que, teoricamente, poderia ser mais

facilmente alcançado por meio do “empréstimo” de material melódico relevante de um

samba do ano anterior) poderiam estar influenciando a composição do samba-enredo.

Page 67: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

67

5 – ESTRUTURAS CARACTERÍSTICAS

5.1 Padrão harmônico característico

Neste capítulo, faremos uma pausa na nossa cronologia das transformações do

samba-enredo para tratarmos de estruturas que, por atravessarem fronteiras temporais e

estilísticas, merecem ser observadas de modo atento.

A primeira delas diz respeito ao aspecto harmônico. O método de análise aqui

utilizado é o mesmo do livro “Harmonia e Improvisação” de Almir Chediak

(CHEDIAK, 1986), que enfoca a harmonia da música popular. Essa escolha foi feita por

conta da proximidade desse tipo de análise com a cifragem utilizada pelos músicos que

atuam nessa área.

A análise harmônica dos sambas-enredo de todas as décadas revelou-nos a

existência de um mapa harmônico que serve como base para grande parte das obras

pertencentes a esse gênero. Dizemos base porque geralmente esse mapa corresponde

aos primeiros compassos do samba, servindo como ponto de partida para o restante da

composição42. Sua estrutura está demonstrada logo abaixo:

Padrão harmônico característico

42 Ainda que o mapa harmônico possa estar inserido em outras partes do samba, sua presença só será considerada quando estiver em seu início. Isso servirá para comprovar a força de sua utilização na sua função principal, a de ponto de partida. Quando essa função é claramente exercida por um refrão (como é o caso de Pega no Ganzê), o mapa somente será considerado se for apresentado imediatamente após ele.

Page 68: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

68

Nos quatro primeiros compassos, os acordes V colocados entre parênteses

podem ou não ser tocados, sendo encontradas nas gravações as duas possibilidades. Nos

compassos 5 e 6 a escolha do acorde vai depender da linha melódica. O uso, por

exemplo, na tonalidade de Do maior, das notas “Mib” ou “Fá#” é característico do

movimento descendente do acorde diminuto ao IIm. Nesse caso, o acorde bIII° é o

utilizado. Já o acorde V7 do último compasso pode ser substituído por um movimento

em direção a outro grau da escala.

Nesse mapa harmônico, os quatro primeiros compassos são destinados à

afirmação do I. Os compassos 5 a 8 preparam a polarização para o IIm, que será

afirmado no 9o compasso. E, por fim, a progressão a partir do 13o compasso garante o

retorno ao I. Cabe notar que essa estrutura de dezesseis compassos pode ser ainda

reduzida (menor número de compassos) ou expandida (maior número) sem que a

trajetória harmônica aqui descrita seja alterada. Sambas que se comportam dessa

maneira serão apresentados oportunamente.

A utilização desse mapa harmônico parece estar intimamente ligada ao

surgimento do samba-enredo, já que começa a ser mais claramente percebida a partir

dos anos 1950. Entretanto, é somente a partir dos anos 1970 que sua presença adquire

grande notabilidade, a ponto de tornar-se característica essencial do gênero. É por essa

razão que o denominamos padrão harmônico característico43.

Para se ter uma idéia da crescente importância desse padrão à medida que a

década de 1970 avançava, basta dizermos que em 1968, por exemplo, somente um (O

tronco do Ipê, da Portela) dos dez sambas apresentados pelas escolas pertencentes ao

antigo Grupo 1 (atual Grupo Especial) se utilizava dele. Três anos depois, em 1971, já

eram três44 dos dez sambas (Pega no Ganzê, Salgueiro; Lapa em três tempos, Portela;

Ouro mascavo, Vila Isabel). Em 1975, cinco dos doze sambas compartilhavam o

mesmo esquema (Imagens poéticas de Jorge de Lima, Mangueira; Macunaíma, herói de

nossa gente, Portela; Nos confins de Vila Monte, União da Ilha; O grande decênio,

Beija-Flor; Personagens marcantes do carnaval carioca, Em cima da hora) e outros três

eram variações (O mundo fantástico do Uirapuru, Mocidade Independente; Cidades

feitas de memórias, Unidos de Lucas; Quatro séculos de paixão, Vila Isabel). E em 43 É evidente que a utilização desse padrão é feita de maneira espontânea pelos compositores, e não por uma seleção a partir de uma possível lista de progressões harmônicas. 44 E isso porque não estamos considerando o samba da Imperatriz Leopoldinense (Barra de ouro, barra de rio, barra de saia), que tem o final expandido e o do Império Serrano (Nordeste, seu povo, seu canto e sua glória), que não segue rigorosamente a harmonia do padrão, embora os acordes utilizados tenham as mesmas funções.

Page 69: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

69

1978, a maior proporção: sete dos dez sambas se valiam do padrão (O Amanhã, União

da Ilha; A criação do mundo na tradição nagô, Beija-Flor; Dos carroceiros do

imperador ao Palácio do Samba, Mangueira; Dique, um mar de amor, Vila Isabel;

Mulher à brasileira, Portela; Sonho infantil, Arranco do Engenho de Dentro; Talaque,

talaque, o romance da Maria-Fumaça, Arrastão de Cascadura).

Desde essa época, o padrão harmônico característico jamais deixou de ser

utilizado. E ainda que sua presença não tenha sido tão grande em alguns carnavais,

nunca deixou de dar sinais de força: em 1987, por exemplo, somente seis sambas

(Estrela Dalva, Imperatriz Leopoldinense; Tupinicópolis, Mocidade Independente;

Capitães do Asfalto, São Clemente; Raízes, Vila Isabel; O reino das palavras – Carlos

Drummond de Andrade, Mangueira; Com a boca no mundo, quem não se comunica se

trumbica, Império Serrano) dos dezesseis apresentados não seguiam o padrão. Se

levarmos em conta que os três primeiros são construídos em tons menores, e não

poderiam, de qualquer forma, estar de acordo com ele, o número torna-se ainda mais

impressionante.

E para demonstrarmos o quanto seu uso ainda é frequente, no carnaval do ano de

encerramento desta pesquisa (2009) cinco dos doze sambas fizeram uso do padrão de

maneira rigorosa (Tambor, Salgueiro; E por falar em amor, onde anda você?, Portela;

Vira-Bahia, pura energia, Viradouro; Mocidade apresenta: Clube Literário Machado

de Assis e Guimarães Rosa, estrelas em poesia!, Mocidade Independente; Não me

proíbam criar. Pois preciso curiar! Sou o país do futuro e tenho muito a inventar!,

Porto da Pedra) e um de maneira expandida (Tijuca 2009: uma odisséia sobre o espaço,

Unidos da Tijuca).

O fato de os compositores de samba-enredo preferirem essa progressão

harmônica a tantas outras possíveis intrigava-nos a cada vez que confirmávamos seu

constante e abundante uso. Qual seria a razão dessa supremacia? Algumas conclusões

podem ser tiradas a partir da análise do comportamento da melodia no interior do

padrão. É o que será visto nos próximos tópicos.

5.2 Transposição fraseológica

Uma das razões para a grande força do padrão harmônico característico pode

estar relacionada com a tradição de transposição fraseológica existente na música

Page 70: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

70

popular brasileira, herdada, em parte, das técnicas de composição da música erudita

europeia45. O choro, por exemplo, faz bastante uso desse procedimento:

Schoenberg, em seu célebre Fundamentos da Composição Musical

(SCHOENBERG, 1991), ao tratar dos temas do repertório do período clássico,

argumenta que a transposição na forma dominante (transposição de uma frase no I para

o V), “através de sua formulação ligeiramente contrastante, gera variedade na unidade”

(1991: 49, grifo nosso). Obviamente, transposições para outros graus da escala também

favorecem o alcance desse objetivo.

No samba-enredo, a quase totalidade das transposições fraseológicas é feita no

IIm. E é nesse ponto que o padrão harmônico atua de maneira decisiva.

Se observarmos novamente sua estrutura, lembraremos que o IIm é pela primeira

vez atingido no 7o compasso, mas somente é afirmado no 9o, quando é mantido por

ainda mais um compasso:

45 Notadamente do Barroco (início do século XVII até a metade do século XVIII) e Classicismo (segunda metade do século XVIII até o início do século XIX).

Page 71: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

71

A primeira frase (a), no I, costuma ser apresentada entre o 1o e 4o compassos.

Sua transposição (a’), no IIm, é feita quando este é afirmado, ou seja, a partir do 9o

compasso até, aproximadamente, o 12o.

A distância relativamente grande entre a frase original e sua transposição deve

ser preenchida de alguma maneira. Para isso, é utilizada uma frase entre o 5o e 8o

compassos (geralmente antecedida por anacruse) que atua como elemento contrastante

(b), fazendo com que a transposição apareça de forma bastante destacada. A partir do

13o compasso, o elemento de contraste é repetido de forma variada (b’) ou faz uso de

novo material (c), ambos com a finalidade de conclusão do padrão harmônico

característico46.

Essa maneira de organização do material melódico no interior do padrão é

bastante próxima da ideia de período formulada por Schoenberg. Nessa estrutura,

“a primeira frase [ou membro de frase] não é repetida imediatamente, mas unida a formas-motivo mais remotas (contrastantes), perfazendo assim, a primeira metade do período: o antecedente. Após esse

46 Embora tenhamos denominado os materiais melódicos apresentados a cada quatro compassos do padrão como frases, talvez fosse melhor classificá-los como membros de frase. De acordo com Benward & Saker (2003: 113), “a frase é uma idéia musical sólida geralmente finalizada por uma cadência harmônica, melódica e rítmica” que pode, conforme adiantamos, ser dividida em membros. Estes são, ainda segundo os mesmos autores, “geralmente separados por uma nota de longa duração ou pausa, e de maneira suficiente para que possamos distingui-los como unidades individuais”, sendo que “o segundo membro de frase é, por vezes, uma repetição ou sequência do primeiro”, ou, mais frequentemente, “um elemento contrastante” (2003: 113). Como em vários sambas que seguem o padrão harmônico característico só podemos perceber um repouso melódico mais claro por volta do 7o e 8o compassos, podemos considerar os oito primeiros compassos como uma frase dividida em dois membros (a cada quatro compassos), agindo da mesma maneira os oito compassos seguintes.

Page 72: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

72

elemento de contraste, a repetição não pode ser muito adiada, a fim de não colocar em risco a compreensibilidade47; daí o fato de a segunda metade, o consequente, ser construída como uma espécie de repetição do antecedente” (SCHOENBERG, 1991: 51).

A maioria dos consequentes do repertório clássico começa no I, repetindo o

perfil melódico do início do antecedente. Entretanto, Schoenberg acrescenta que o

“consequente pode, inclusive, iniciar em um grau diferente” (1991: 52). É exatamente

isso o que ocorre no padrão harmônico característico do samba-enredo, já que, como

vimos, a repetição (consequente) da frase inicial (antecedente) é apresentada transposta

no IIm.

Finalmente, apresentaremos exemplos de sambas construídos a partir do padrão

e que utilizam a transposição fraseológica48. Neste primeiro, cabe assinalar que os

elementos contrastantes b e c são antecipados, aparecendo nos compassos 4 e 12,

respectivamente, ao invés dos compassos 5 e 13, como é o de costume.

47 Conceito que é bastante caro ao famoso compositor e teórico, ao ponto de ter afirmado que “o real propósito da construção musical não é a beleza, mas a inteligibilidade [ou compreensibilidade]” (SCHOENBERG, 1991: 51; nota de rodapé). 48 O leitor deverá notar as semelhanças rítmicas de a e sua transposição (a’) entre os exemplos 1, 2 e 3, assim como entre os exemplos 5 e 6. Isso demonstra que semelhanças de qualquer espécie podem ser encontradas até mesmo em sambas separados por décadas de distância.

Page 73: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

73

Exemplo 1

Bastante interessante é o samba da Portela de 1971, Lapa em três tempos, no

qual seus compositores (Ary do Cavaco e Rubens) aproveitam o material melódico do

samba Abre a Janela, de autoria de Arlindo Marques Júnior e Roberto Riberti e lançado

com sucesso por Orlando Silva no carnaval de 193849, e transpõe-no de acordo com o

mapa harmônico:

Exemplo 2

No exemplo seguinte, o elemento contrastante praticamente não existe, visto que

é quase uma inversão perfeita do sentido melódico de a:

49 Disco Victor número 34279 (78 rpm).

Page 74: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

74

Exemplo 3

O próximo samba utiliza, nos compassos 12 e 13, o próprio material de a’ antes

de apresentar o elemento contrastante conclusivo (c), se enquadrando nos casos em que

o segundo membro de frase é “uma repetição ou sequência do primeiro” (BENWARD

& SAKER, 2003: 113).

Exemplo 4

Page 75: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

75

Já os sambas abaixo seguem a organização fraseológica habitual:

Exemplo 5

Exemplo 6

Page 76: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

76

O fato de a transposição fraseológica ser, consagradamente, um dos recursos

mais eficazes para um bom desenvolvimento do discurso musical explica em parte a

grande utilização do padrão harmônico característico, visto que este, por sua própria

estrutura, fornece as condições ideais para sua realização.

5.3 Frase característica

A importância do padrão não se limita ao favorecimento da técnica de

transposição fraseológica. O estudo fraseológico do samba-enredo nos revelou algo

ainda mais surpreendente: a existência de uma frase musical atrelada a esse mapa

harmônico.

Antes de qualquer análise, observemos os primeiros compassos de dois sambas

que seguem o padrão harmônico característico. Todos os exemplos aqui citados estarão

na tonalidade de Dó maior com o objetivo de facilitar a comparação.

Page 77: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

77

Podemos perceber nos dois casos, a utilização, entre os compassos 9 e 11, da

mesma frase musical. Essa frase, conforme já assinalado nos colchetes, será denominada

frase característica:

Frase característica

A frase característica está quase tão presente no samba-enredo quanto o padrão

harmônico característico, ainda que este último não implique o uso da primeira. Essa

correspondência é tão grande que pode ser notada mesmo nos sambas em que o padrão

harmônico não aparece nos primeiros compassos:

Page 78: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

78

Na realidade, a frase característica não tem um perfil melódico fixo, admitindo

inúmeras variações em seu contorno. Optamos por escolher uma dessas possibilidades

por conta de seu grande uso, embora outras igualmente frequentes pudessem ser eleitas

para ilustração. De qualquer maneira, a frase característica deve obrigatoriamente seguir

os seguintes requisitos:

• estar posicionada na afirmação do IIm (mais comumente no 9o compasso,

embora, como veremos, possa ser antecipada ou atrasada);

• ser concluída com uma suspensão 4-3 (4a justa resolvendo na 3a maior) no

acorde dominante do 11o compasso, frequentemente precedida por um salto

ascendente de 3a (portanto, em Dó maior, as últimas notas serão lá-dó-si).

Alguns exemplos de sambas que apresentam a frase característica com perfil

melódico distinto do que foi aqui apresentado ou com posicionamento diferente do

usual estão abaixo relacionados:

Page 79: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

79

Nesse samba são mantidos os saltos, no 10o compasso, de 4a justa descendente

(ré-la) e 3a menor ascendente (lá-do), e no 11o compasso o movimento por grau

conjunto próprio da suspensão 4-3.

No exemplo acima, o tamanho da primeira frase, maior que o usual, fez com que

o padrão harmônico característico fosse expandido em dois compassos (a harmonia dos

compassos 3 e 4 é repetida nos compassos 5 e 6), deslocando a frase característica para

o compasso 11. No que concerne a essa, são mantidos os mesmos desenhos melódicos

Page 80: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

80

assinalados no exemplo anterior. A suspensão no acorde dominante (c. 13) apresenta

ritmo mais curto, mas ainda se faz presente.

Nesse caso, percebe-se que ocorreu o inverso: enquanto no anterior o mapa

harmônico foi expandido em dois compassos, neste são suprimidos os compassos 3 e 4

do padrão característico. Dessa vez, portanto, a frase característica é adiantada dois

compassos, aparecendo no 7o compasso.

No início deste capítulo, dissemos que no ano de 1978 foi encontrada uma das

maiores porcentagens de sambas construídos sobre o padrão harmônico característico:

sete entre os dez sambas. Para se ter uma ideia da importância da frase característica,

basta dizer que desses sete, apenas três (O amanhã, da União da Ilha, Mulher à

Brasileira, da Portela, e Dique, um mar de amor, da Vila Isabel) não se valem dela.

Vejamos como a frase se comporta nos outros quatro sambas:

Page 81: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

81

Neste último, o padrão harmônico aparece em dois momentos distintos, sempre

com a frase característica:

E veremos que, tal como o padrão harmônico, a frase atravessa décadas:

Page 82: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

82

A frase característica é o exemplo máximo de compartilhamento de material

melódico no samba-enredo. Podemos mesmo considerá-la como o mais expressivo

elemento identificador desse gênero, sua marca sonora50. Não é à toa que o cantor e

50 Acácio Tadeu de Camargo Piedade tem desenvolvido pesquisas acerca da aplicação da teoria das tópicas na música brasileira. As tópicas são figuras “de retórica musical que portam significado cultural e historicamente marcado”, sendo que “sua plenitude significativa se dá não apenas por sua feição interna, mas também pela posição de sua articulação no discurso musical” (Piedade, 2006). Assim, gestos musicais característicos da música brasileira como, usando as classificações de Piedade, o “nordestino”, o

Page 83: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

83

compositor João Bosco se vale dela em seu samba Plataforma51, no qual faz referência

ao universo das agremiações carnavalescas:

“brejeiro” ou “época de ouro”, quando usados no momento correto, carregariam em si uma mensagem que poderia ser apreendida pelo público. Dessa forma, poderíamos considerar a frase característica do samba-enredo como uma tópica dotada, ao mesmo tempo, de máximo e neutro potencial retórico: máximo quando em uma situação fora de seu contexto de origem, como, por exemplo, em uma improvisação livre, sua utilização poderia remeter o ouvinte treinado a esse gênero; e neutro quando levamos em conta que, já tratando do samba-enredo propriamente dito, a linha melódica da frase característica é vestida em versos adequados aos mais diferentes enredos, o que nos impede de afirmar com segurança a existência de uma expressão extramusical em seu interior. De qualquer maneira, estudos sobre a retórica musical do samba-enredo já estão sendo desenvolvidos pelo autor da presente pesquisa, e parecem nos indicar um diálogo ainda maior do que imaginávamos entre a melodia do samba e os outros elementos do desfile. 51 Presente no disco Tiro de Misericórdia (1977).

Page 84: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

84

6 – TEMPOS RECENTES

6.1 Marcha-enredo

A partir do início década de 1980, começam a aparecer os primeiros sinais do

fenômeno que mais tem causado polêmica nos debates acerca do samba-enredo.

Apontada por pesquisadores e sambistas como elemento central da descaracterização do

gênero, a cometricidade ganha espaço nas linhas melódicas a partir do período

mencionado, a ponto de ter sido criada uma nova classificação (pejorativa, ressalta-se),

marcha-enredo, para os casos em que há seu uso excessivo.

Tal classificação tem razão de existir, pois se lembrarmos de qualquer

marchinha carnavalesca, veremos que a cometricidade é um de seus elementos

característicos52:

52 Cabe notar no exemplo de Lamartine Babo (Hino do Carnaval Brasileiro) a mesma sequência de acordes do padrão harmônico característico, assim como a utilização da técnica de transposição fraseológica, o que nos faz pensar que esse padrão pode ter uma importância ainda maior para o estudo da música popular brasileira.

Page 85: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

85

No samba-enredo, a cometricidade se manifestou com mais força inicialmente

nos refrões, muito provavelmente por conta da necessidade, nesses lugares, de um

momento de explosão e comunhão entre todos os componentes da escola:

O caráter cométrico parecia querer invadir até mesmo o famoso samba do

Império Serrano que criticava os rumos do carnaval carioca, Bumbum Paticumbum

Prugurundum:

Page 86: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

86

Não demoraria, entretanto, para que as estrofes também fossem atingidas:

A tendência de cometricidade ganhou tal força no gênero que, já na segunda

metade da década de 1980, podemos encontrar “sambas” com linha melódica quase

inteiramente marcheada. Este é o caso do exemplo abaixo:

Page 87: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

87

Page 88: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

88

A explicação mais aceita para esse fenômeno é aquela que o relaciona ao

processo de “gigantismo” que acometeu as escolas a partir da década de 1970. Como o

número de desfilantes crescia enormemente (desfiles com mais de 4000 pessoas

tornaram-se comuns) e o tempo de desfile não aumentava na mesma proporção, tornou-

se necessário acelerar o andamento do samba para garantir a passagem de todos os

componentes pela avenida no tempo especificado pelo regulamento53.

Márcio Coelho, em seu artigo Frevo-enredo: de como o samba-enredo tende a se

tornar marchinha de carnaval, explica que “quando antecipamos um acento [síncopa], já

estamos imprimindo velocidade a um arranjo rítmico” e que “ao acelerar[mos] o

andamento de uma música, os pulsos ficam [ainda] mais próximos e, no limite, tendem

a se conjungir, ou se fundir” (COELHO: 4, em fase pré-publicação). Ou seja, com a

diminuição do espaço sonoro, decorrente da aceleração excessiva, a execução da

síncopa, elemento considerado essencial ao samba, torna-se dificultada. É por essa razão

que, no samba-enredo acelerado, cada tempo do compasso acaba sendo preenchido por

duas colcheias, visto que essas, por sua própria estrutura simples (tempo forte e sua

metade, contratempo), podem admitir andamentos extremamente velozes sem prejuízo

de sua execução.

53 Graças à Internet, pudemos ter acesso a trechos dos desfiles do carnaval das mais diversas épocas. Em 1972, por exemplo, verificamos que o andamento imposto pelas escolas girava em torno de 115 a 120 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=4xkF9-8RKsI). Quinze anos depois, no carnaval de 1987, o andamento do exemplo aqui citado, O Tititi do Sapoti (Estácio de Sá), já ultrapassava 130 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=aCQ6zjwLEK4). E no desfile de 2004, Breazail, da Imperatriz Leopoldinense, chega a ultrapassar a impressionante marca dos 150 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=-5zGOTGXXv4&feature=related).

Page 89: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

89

É importante dizer que o andamento rápido facilita o aparecimento de marchas-

enredo, mas não, necessariamente, as implica. A reedição54, por exemplo, de Aquarela

Brasileira pelo Império Serrano em 2004 foi executada em andamento bastante rápido

(acima de 140 bpm), mas ainda suficiente para que as síncopas fossem preservadas.

O Manual do Julgador do Carnaval 2008, publicado pela Liga Independente das

Escolas de Samba (LIESA)55, orienta os jurados do quesito samba-enredo a observarem,

no sub-quesito melodia, “as características rítmicas próprias do samba” (LIESA, s/d:

26). Essas talvez sejam as mesmas recomendadas pela Carta ao Samba, documento

aprovado no I Congresso Nacional do Samba, realizado no Rio de Janeiro em 1962, no

qual consta que “[...] o samba caracteriza-se pelo emprego da síncopa. Preservar as

características tradicionais do samba significa, portanto, em resumo, valorizar a

síncopa” (CARNEIRO, 1974 apud SANDRONI, 2001: 19). De qualquer maneira,

sambas-enredo marcheados nunca foram punidos rigorosamente pelos jurados, fato que

pode ter estimulado sua permanência nos desfiles até os dias de hoje56.

Por fim, mostraremos alguns sambas que chamam atenção pela acentuada

cometricidade:

54 A partir de 2004, as escolas passaram a poder reapresentar enredos e sambas de carnavais passados. 55 Disponível em http://liesa.globo.com/2008/por/03-carnaval08/manual/Manual_Julgador_2008.pdf 56 Cabe dizer que essa permanência deve-se ainda ao apelo irresistível que o andamento frenético e a melodia marcheada podem causar no folião, em especial no turista estrangeiro, que se sente mais à vontade com divisões rítmicas de mais fácil decodificação.

Page 90: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

90

6.2 Figuras de preenchimento

Pudemos verificar, no samba-enredo do período agora abordado, o aparecimento

de estruturas musicais que se tornaram bastante utilizadas durante anos, mas que,

progressivamente, acabaram deixando de despertar interesse nos compositores.

Estamos nos referindo às figuras de preenchimento, células rítmicas que têm

como função preencher o espaço, antes ocupado por pausas, entre duas frases musicais.

Não devemos confundi-las com os preenchimentos realizados pelos intérpretes (também

chamados de cacos): estes geralmente têm caráter improvisatório e não são

acompanhados pelo canto dos componentes e integrantes do corpo coral da escola. As

Page 91: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

91

figuras de preenchimento, por seu lado, são consideradas pertencentes à linha melódica

do samba e, por isso, cantadas por todos. Além disso, até mesmo a bateria da escola

costuma, nesses casos, acompanhar sua divisão rítmica. De qualquer maneira, a origem

dessas figuras parece estar na necessidade dos compositores de integrarem o que

somente era privilégio dos intérpretes ao plano melódico fixo.

Embora tenham se tornado prática corrente em meados da década de 1980, as

figuras de preenchimento podem ser vistas já no final da década de 1970, como é o caso

do samba da Mocidade Independente de 197957:

As primeiras figuras desse tipo que apareceram no gênero quase sempre

apresentavam a mesma divisão rítmica:

É evidente que o aparecimento dessa divisão não implica sua classificação como

figura de preenchimento. Para que seja considerada como tal, a letra que a reveste deve

ser uma repetição da(s) última(s) palavra(s) do verso que a antecede ou, pelo menos,

fazer referência a ele. Isso evidencia sua função como preenchimento e não como um

novo elemento para a compreensão do enredo58.

57

Na gravação oficial desse samba-enredo podemos ter uma indicação da ligação dessas estruturas com a figura do intérprete, já que na repetição do samba (onde, tradicionalmente o corpo coral acompanha o intérprete) o corpo coral se abstém de cantá-las. No vídeo do desfile, entretanto, podemos ver claramente a sua execução por todos os componentes da escola, demonstrando que elas já eram entendidas como parte da linha melódica (http://www.youtube.com/watch?v=4V29SPmkElQ). 58 Embora este trabalho tenha se comprometido a abordar apenas o aspecto musical, o reconhecimento de um elemento tão importante como as figuras de preenchimento não teria sido possível se não

Page 92: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

92

Como podemos ver nos sambas a seguir, a divisão rítmica é sempre fixa, mas a

melodia pode ser alterada:

estivéssemos atentos também ao aspecto poético, o que é fundamental quando se estuda, em qualquer ângulo, um gênero de canção.

Page 93: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

93

Não demorou muito, entretanto, para que os compositores encontrassem novas

maneiras de preenchimento. A partir do final dos anos 1980 já podemos perceber uma

maior agilidade rítmica nessas figuras:

Page 94: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

94

Neste samba, por exemplo, um dos preenchimentos é feito da maneira

“tradicional” e o outro tem divisão mais “arrojada”:

A utilização dessa técnica diminuiu consideravelmente no final dos anos 1990,

estando hoje em dia praticamente em desuso. O exemplo abaixo foi um dos últimos

catalogados em nossa pesquisa que ainda se valiam dela:

Page 95: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

95

6.3 Tons homônimos

A prática de modulação entre tonalidades homônimas, que havia sido iniciada no

samba-lençol de maneira relativamente tímida, cresceu enormemente no samba-enredo

das últimas três décadas. Atualmente, são raros os sambas construídos em apenas um

modo (maior ou menor): no ano de 2008, por exemplo, todos os sambas das escolas do

Grupo Especial fizeram uso dessa forma de modulação, o que faz com que a

consideremos um dos pilares do samba-enredo contemporâneo.

Não é difícil entender as razões de sua larga utilização: sua execução é

relativamente simples e, assim como ocorria no samba-lençol, garante a tão almejada

diversidade à linha melódica.

Alguns sambas-enredo destacam-se pela maneira com que utilizam esse recurso.

Nos exemplos abaixo, a tonalidade inicial se sustenta por apenas alguns compassos para

logo ser transformada em seu homônimo:

Page 96: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

96

Evidentemente, procedimentos como esses não são muito comuns, mas ilustram

bem a que ponto essa prática pode atingir.

A partir da década de 1990, os refrões também passam a ser alvos da modulação

homônima. Os sambas a seguir são bons exemplos disso:

Page 97: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

97

Esse recurso, aliás, está atualmente bastante em voga: no carnaval de 2009, por

exemplo, cinco (No chuveiro da alegria, quem banha o corpo lava a alma na folia,

Beija-Flor; E por falar em amor, onde anda você?, Portela; Vira-Bahia, pura energia,

Viradouro; Neste palco da folia, é minha Vila que anuncia: Theatro Municipal, a

centenária maravilha, Vila Isabel; Não me proíbam criar. Pois preciso curiar! Sou o

país do futuro e tenho muito a inventar!, Porto da Pedra) dos doze sambas-enredo

apresentados pelas escolas do Grupo Especial possuem um refrão composto nesses

moldes.

A propósito, a importância da modulação pôde ser observada no fato ocorrido

com o samba da Portela acima citado. Os primeiros compassos de seu refrão central,

Page 98: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

98

originalmente construído em tonalidade menor e apresentado dessa maneira durante

todo o período de eliminatórias, foram alterados, na gravação oficial, para a tonalidade

homônima maior59. A mudança, causadora de bastante polêmica em fóruns de discussão

na Internet e atribuída por muitos à diretoria da escola, elevou consideravelmente a

tessitura melódica desses compassos, o que parece ser indício, mais uma vez, da quase-

obrigatoriedade de um elemento de empolgação no refrão. As duas versões,

apresentadas aqui na mesma tonalidade, estão logo abaixo:

59 A primeira versão desse samba, composto por Ciraninho, Wanderley Monteiro, Diogo Nogueira, L.C. Máximo e Júnior Escafura pode ser encontrada na sessão de fonogramas do site Galeria do Samba (http://fonogramas.galeriadosamba.com.br/).

Page 99: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

99

6.4 Refrões responsoriais

Assim como as figuras de preenchimento, a estrutura de que trataremos agora

apareceu inicialmente de maneira discreta e, comprovada sua funcionalidade, foi

adotada pelo samba-enredo como mais uma ferramenta de composição.

Os refrões responsoriais, assim chamados por conta de seu formato de

“pergunta e resposta”, começaram a ser percebidos em grande escala a partir da década

de 1990 (e para isso muito contribuiu o imenso sucesso de Peguei um Ita no Norte,

samba do Salgueiro de 1993 popularmente conhecido como Explode coração) e

seguem, nos dias de hoje, sendo bastante utilizados pelos compositores. Sua

organização interna é feita da seguinte maneira:

a) apresentação de uma frase musical composta por dois membros: pergunta (o

maior deles) e resposta (sempre de curta duração). Estes são separados por

pausa ou nota de longa duração pertencente à pergunta;

b) uma ou duas repetições variadas dessa frase;

c) frase intermediária(em alguns casos) frequentemente sugerindo o elemento

responsorial;

d) frase conclusiva (resolução).

Refrões como esses estão abaixo citados. Cabe notar que todos eles

compartilham, com algumas poucas alterações, a mesma sequência harmônica:

Page 100: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

100

Page 101: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

101

6.5 Padrão formal

Em nosso trabalho, tivemos a oportunidade de constatar a versatilidade do

samba-enredo quanto à questão formal. Vimos que o gênero já esteve moldado em

estruturas simples como a forma binária, em outras mais complexas como as dos

lençóis, e se valeu, em cada período estudado, de um maior ou menor número de

refrões.

Diante dessa pluralidade de formas, chamou-nos a atenção, nos “tempos

recentes” abordados neste capítulo, a preferência cada vez maior dos compositores por

um único padrão formal. Seu esquema está aqui descrito:

PRIMEIRA PARTE

REFRÃO CENTRAL

SEGUNDA PARTE

REFRÃO PRINCIPAL (OU DE CABEÇA)

Padrão formal

Na verdade, essa estrutura é antes uma forma poética do que uma forma musical,

já que cada uma dessas quatro divisões corresponde a uma estrofe. Isso não significa

que cada estrofe corresponda a apenas uma parte musical60; duas ou mais partes

musicais podem estar contidas na primeira e segunda partes poéticas. Os refrões, por

sua vez, sempre apresentam somente uma parte musical cada um.

Para ficar mais claro, mostraremos como o samba-enredo com o padrão formal

poético poderia ser organizado:

Exemplo 1:

FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)

FORMA MUSICAL: A B C D

Exemplo2:

FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)

FORMA MUSICAL: A, B (...) C D, E (...) F

60 Como dissemos anteriormente, a divisão de partes aqui apresentada procura levar em conta a progressão harmônica, os pontos de relaxamento rítmico e/ou melódico e a ocorrência de elementos que possam dar unidade a um determinado trecho.

Page 102: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

102

Em resumo, a forma poética é sempre fixa; já a forma musical apresenta dois

refrões e, teoricamente, um número ilimitado de materiais melódicos entre eles.

Podemos ver tudo isso que acabamos de dizer no samba da Viradouro de 2000,

Brasil: visões de paraísos e infernos. Sua letra integral é a seguinte:

Brasil: visões de paraísos e infernos

(Gilberto Gomes, R. Mocotó, Gustavo, P.C. Portugal, Dadinho)

Na era medieval começa o meu carnaval

No paraíso eu me vesti de branco

E no "martírio eterno", o vermelho é meu manto

Navegando ao Oriente, "seu" Cabral

O "Jardim das Delícias" descobriu

"Seu" Caminha escreveu o que ele viu (PRIMEIRA PARTE)

Maravilhas do Brasil

Bordunas, tacapes e Ajarés

Na dança o índio põe aos seus pés

Mas nascem ideias diversas, são mentes perversas

Não foi essa a lição dos pajés

Irê, irê, pra agba yê

O negro canta, o negro dança em liberdade (REFRÃO CENTRAL)

Irê, irê, pra agba yê

Pra agba yê, felicidade

Bem longe daqui, na festa da coroação

O negro africano, nos seus desenganos

Desfaz-se dos planos, pro branco explorar

Preso nas correntes da vida (SEGUNDA PARTE)

São marcas que jamais esquecerá

Mas o tempo passou e a felicidade eu vejo brotar

Na luz da esperança, há paz e alegria

Pro rei do universo abençoar

O dia vai raiar, amor, amor

Com a Viradouro eu vou, eu vou, eu vou (bis) (REFRÃO PRINCIPAL)

Meu canto de amor se espalha no ar

Quinhentos anos vamos festejar

Page 103: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

103

Já sua divisão melódico-formal é feita desta maneira:

Page 104: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

104

Page 105: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

105

Portanto, as formas poética e musical desse samba se comportam assim:

FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)

FORMA MUSICAL: A, B, C D E, F G

De qualquer maneira, a construção da forma e do discurso musical é orientada

pela forma poética, isto é, cada uma das partes desta última é correspondida no plano

melódico de maneira mais ou menos pré-definida. Por exemplo, o refrão principal (“D”

na forma poética), conforme nos disse em entrevista um dos compositores do samba

acima citado, Gusttavo Clarão61, “normalmente é o auge, é a parte que deve marcar para

cair na boca do povo” (CLARÃO, 2009, entrevista)62. O refrão central, por sua vez,

geralmente é menos explosivo que o principal, assumindo, em muitos casos, um caráter

lírico.

Já a primeira e segunda partes (“A e “C” da forma poética), por contarem

frequentemente com farto material melódico, o que diminui a unidade, são mais difíceis

de serem definidas de maneira generalizada. Com relação à segunda parte, entretanto,

ainda podemos ver o que tem a dizer Gusttavo Clarão: “acredito que atualmente é usada

essa forma [a padrão] por causa da caída da bateria para segunda [parte], o que

chamamos de dinâmica no samba” (CLARÃO, 2009, entrevista). Além do decaimento

dinâmico, observamos que frequentemente a melodia dessa parte é iniciada em uma

região mais grave, o que salienta seu contraste com o refrão. É o que pode ser observado

no samba do Salgueiro de 1995, Ocaso do por acaso:

61 Gusttavo Clarão, 39 anos, músico, é um dos mais destacados compositores de samba-enredo da atualidade. Já foi vencedor da disputa de sambas na Estácio de Sá, na Viradouro (8 vezes) e Mangueira. 62 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 06 de fevereiro de 2009.

Page 106: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

106

Nos dias de hoje, a questão formal parece estar enterrada no gênero: poucos

compositores se atrevem a quebrar o formato de dois refrões e duas estrofes aqui

apresentado. No Carnaval de 2009, por exemplo, todos os sambas das escolas do Grupo

Especial estavam de acordo com ele (incluindo a reedição feita pelo Império Serrano de

seu samba de 1976, A lenda das sereias e os mistérios do mar).

Acreditamos que a grande utilização dessa forma resida no equilíbrio entre o

legado do samba-lençol, representado na primeira e segunda partes pelo fluxo contínuo

e extenso, e o do samba dos anos 1970, representado pelos refrões de empolgação de

grande parte dos sambas-enredo contemporâneos63. Julgamos, entretanto, que a

utilização excessiva de padrões melódicos, harmônicos e formais no período aqui

abordado, embora tenham dado coesão ao gênero e o tenham tornado reconhecível

estilisticamente, acabou por dar origem a uma cristalização excessiva que colocou em

risco sua própria capacidade de renovação.

63 É interessante pensarmos que a forma do samba está intimamente ligada ao comportamento do componente. Um samba com muitos refrões poderia ser exaustivo para quem o canta por muito tempo, como ocorre na situação do desfile; um samba sem refrões, por sua vez, poderia ser fastidioso. A alternância entre refrões e estrofes na forma padrão garante o equilíbrio ideal, tão necessário ao folião, entre momentos de maior ou menor empolgação.

Page 107: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

107

7 – “SAMBISTA MODERNO EU SOU...”64

7.1 Um mouro no quilombo

No ano de 2001, a escola Paraíso do Tuiuti levou para a Marquês de Sapucaí, em

sua primeira participação no Grupo Especial, um samba que chamou a atenção de boa

parte dos sambistas e especialistas em carnaval. Com linha melódica bastante incomum

e progressões harmônicas ousadas, o samba da escola de São Cristóvão, Um mouro no

quilombo. Isto a história registra!, assinado por Kleber Rodrigues, César Som Livre,

David Lima e Cláudio Martins, parecia ser uma viva reação ao modelo de samba-enredo

vigente.

Procuramos saber mais sobre esse grupo de compositores. Através da sessão de

fonogramas do site Galeria do Samba65, verificamos que suas raízes estavam na

parceria que desde meados da década de 1990 concorria na disputa de sambas-enredo da

Imperatriz Leopoldinense, tendo, inclusive, a vencido em dois anos, 1995 (Mais vale

um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube... lá no Ceará) e 1999

(Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae). Além do já

citado César Som Livre, faziam parte dela Eduardo Medrado, João Estevam e Waltinho

Honorato.

Em todos os fóruns de discussão na Internet consultados, o nome de Eduardo

Medrado parece ocupar uma posição de destaque nesse grupo. O próprio João

Estevam66, em entrevista ao site O Batuque (ESTEVAM, s/d, entrevista), ao ser

perguntado sobre seu compositor de preferência, indica “Eduardo Medrado. Um amigo

e parceiro. Motivo de muita honra”. Em entrevista ao autor da presente pesquisa,

Medrado esclarece que, na verdade, “eu [Medrado] sou da parceria aquele que gosta de

falar; o cara que em anos recentes mais perambulou pelas rodas de samba da vida e por

isso talvez tenha essa equivocada imagem de "posição de destaque" no grupo. Em

termos musicais, e, sobretudo, no foco de seu trabalho, se tivermos que destacar alguém

64 Trecho do refrão central do samba concorrente de Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues, João Estevam e Marcinho para o carnaval de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, Goitacazes... Tupi or not Tupi in a South American Way. 65 http://www.galeriadosamba.com.br 66 João Estevam, 43 anos, radialista.

Page 108: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

108

o nome seria o de Kleber [Rodrigues]. Ele traz o real diferencial melódico em nosso

grupo” (MEDRADO, 2009a, entrevista)67.

Sobre a formação da parceria, Medrado explica que “eu e Kleber somos

parceiros para além do samba-enredo. Fazemos sambas de meio-de-ano, para blocos

[...]. Para as escolas de sambas tem o João Estevam , que forma o núcleo da nossa

parceria junto com o César Som Livre [...]. Recentemente, tem havido a inclusão de

novos elementos, sempre alguém de grande afinidade pessoal ou musical”

(MEDRADO, 2009a, entrevista).

Eduardo Medrado nos conta ainda que mantém amizade bastante estreita com

Kleber, e que, de alguma forma, “estão juntos em todos os sambas-enredo que um dos

dois assine” (MEDRADO, 2009b, entrevista)68. O compositor, portanto, confirma sua

participação em Um mouro no quilombo, dizendo que, nesse samba, “é de

conhecimento generalizado o fato de que estávamos juntos69” (MEDRADO, 2009b,

entrevista). João Estevam também nos confirmou em entrevista sua contribuição “na

confecção da letra e melodia” (ESTEVAM, 2008, entrevista)70.

Observemos o samba. Como dissemos, sua singularidade reside em sua melodia

e harmonia incomuns. Seus primeiros compassos chamam logo a atenção do ouvinte por

sua complexidade:

No quinto compasso, a linha melódica se alterna entre a 3m (Sib) e a 7M (Fa#)

do acorde diminuto (G°). Esta última nota, criadora de bastante tensão, não é resolvida, 67 Eduardo Medrado, 45 anos, psicólogo. Entrevista concedida ao autor no dia 20 de fevereiro de 2009, Rio de Janeiro. 68 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 05 de março de 2009. 69 Nesse ano (2001), Medrado estava concorrendo com um samba na Imperatriz Leopoldinense. Como é negado aos compositores o direito de assinarem obras de duas ou mais escolas pertencentes ao mesmo grupo, seu nome foi omitido do samba do Tuiuti. 70 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 14 de outubro de 2008.

Page 109: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

109

como se poderia esperar; quem exerce essa função é o “Sib”, que resolve

cromaticamente na nota “Lá” do 7o compasso. A partir desse ponto, tem início uma

sucessão cromática descendente de acordes dominantes, procedimento inédito no

gênero. Destacamos também o salto de 7M no 8o compasso, de difícil canto. Por fim, a

frase a partir do 11o compasso garante o retorno ao I. O samba continua:

No compasso 15, tem início um trecho na tonalidade homônima menor,

procedimento, como vimos, comum no gênero. O que há de original é o retorno a Sol

maior: este é feito pelo movimento cromático ascendente na linha melódica, a partir do

segundo tempo do 23o compasso. E no compasso 33, o acorde de E7 não resolve no IIm,

como é o comum; este é omitido e o dominante do I (D7) é antecipado. Além disso, a

melodia desses compassos não prepara a entrada do refrão central. Sobre esse aspecto,

cabe aqui abrirmos parênteses sobre mais uma prática bastante comum no samba-

enredo.

Page 110: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

110

Se nos lembrarmos de alguns sambas, veremos que os refrões são quase sempre

antecedidos por uma frase na cadência perfeita (movimento V-I ou V-Im com resolução

melódica na fundamental da tonalidade):

Page 111: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

111

Essa é a chamada preparação para o refrão, a qual demonstra claramente a

conclusão do material melódico da estrofe. Sua importância parece ser tão grande que,

no carnaval de 2007, a jurada Alice Serrano chegou a tirar pontos do samba Ser

diferente é normal: o Império faz a diferença no Carnaval, do Império Serrano,

justificando que a “entrada do refrão não é antecedida por uma preparação”71 (LIESA,

2007: 3)72. Provavelmente, a jurada se referia à transição da primeira parte para o

primeiro refrão, onde não ocorre a resolução habitual na fundamental do I:

71 O que nos faz refletir sobre alguma possível influência dos jurados no formato do samba-enredo atual. 72 Disponível na seção “Outros Carnavais” do site da Liga Independente das Escolas de Samba - LIESA (http://liesa.globo.com/).

Page 112: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

112

Retornando ao samba de Medrado e seus parceiros, observamos que sua segunda

parte tende a retomar elementos mais tradicionais do gênero. Destacamos, entre esses, o

movimento cromático de quintas na harmonia dos compassos 59 a 63 e a cadência

perfeita que encerra essa parte, nos compassos 72 e 73. O refrão principal, por sua vez, é

caracterizado pela divisão entre lirismo (semínimas em seu início) e movimentação

(figuras sincopadas a partir da metade do compasso 84).

Eduardo Medrado nos falou sobre a recepção desse samba no Paraíso do Tuiuti:

“Fiquei preocupado com o impacto que ele teria, por ser inusual. Falei pro carnavalesco

[Paulo Menezes]: ‘essa é a nossa linha. Não sei se é a linha do Tuiuti, porque ele é um

samba diferente...’. Aí ele disse: ‘A Tuiuti está no Grupo Especial agora. Ela não tem

linha’. E hoje o samba é considerado o hino da escola” (MEDRADO, 2009a,

entrevista).

Page 113: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

113

O impacto entre os compositores também foi grande. Medrado conta que

Arlindo Cruz, vencedor do Estandarte de Ouro73 naquele ano, “deu uma entrevista

dizendo: ‘o melhor samba-enredo deste ano é o do Tuiuti. É um divisor de águas na

história do samba-enredo’” (MEDRADO, 2009a, entrevista).

Em contrapartida, o samba não foi tão bem recebido pelos jurados. No mapa de

notas desse carnaval, disponível no site Galeria do Samba74, verificamos que lhe foram

atribuídas uma nota 10, e duas notas 9.0. Infelizmente, não tivemos acesso às

justificativas para as duas notas baixas.

Ainda que seja o de maior destaque, Um mouro no quilombo não é o único

samba-enredo da parceria que propõe novas soluções ao gênero. No tópico a seguir,

serão observadas outras de suas composições, menos conhecidas, mas igualmente

importantes para a compreensão do projeto estético dos compositores.

7.2 Outros sambas

Embora sejam reconhecidos, no meio do samba, como “inovadores”, os

compositores de que estamos tratando começaram sua trajetória de maneira

relativamente tradicional. O primeiro samba da parceria escolhido para representar a

Imperatriz Leopoldinense, o famoso Jegue (1995), assinado por Eduardo Medrado, João

Estevam, César Som Livre e Waltinho Honorato75, é iniciado, inclusive, com o padrão

harmônico característico visto nesta pesquisa:

73 Troféu concedido desde 1972 pelo jornal O Globo aos destaques de cada ano. Dividido em várias categorias, é a mais prestigiosa premiação do carnaval carioca. 74 Seção Carnavais > 2001. 75 Devemos lembrar que, de acordo com Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues participou de todos os sambas compostos pela parceria, ainda que não tenha assinado muitos deles. Para evitar qualquer equívoco, incluiremos somente os autores oficiais. Os casos em que não houve participação de algum dos dois compositores serão devidamente mencionados.

Page 114: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

114

No entanto, segundo Medrado, a necessidade de contestação já estava presente

nesses primeiros dias: “Quando a gente ganhou o Jegue [...] falei para os meus

parceiros: ‘Ah é? Ganhamos? Então vamos fazer um samba como se fazia antigamente

[...], vamos fazer um nariz de cera76, aquelas entradas, pode ser um samba grande’[...]. E

fizemos um samba que até hoje eu adoro [concorrente para o enredo Imperatriz

Leopoldinense honrosamente apresenta: "Leopoldina, a Imperatriz do Brasil”, de

1996], mas que não chegou nem na final” (MEDRADO, 2009a, entrevista).

De qualquer maneira, os sambas da década de 1990 ainda não tinham as

inovações melódico-harmônicas dos sambas da década seguinte. Nesse sentido, Um

mouro no quilombo parece ter sido um “divisor de águas” não somente para o samba-

enredo, como disse Arlindo Cruz, mas para a própria parceria: a partir dele,

praticamente todos os seus sambas trariam procedimentos de composição incomuns no

gênero. Falaremos sucintamente de alguns deles, já advertindo que uma análise mais

profunda nos levaria a muitas outras conclusões.

O primeiro está no concorrente para o Carnaval de 2002 da Imperatriz

Goytacazes... Tupi or not Tupi in a South American Way (Eduardo Medrado, Kleber

Rodrigues, João Estevam e Marcinho):

76 Abertura de um texto de maneira rebuscada ou vaga, sem ir direto ao assunto principal, tal como ocorria em muitos sambas-lençol.

Page 115: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

115

Os quatorze primeiros compassos desse samba se mantém estáveis na tonalidade

de Lá maior. No 15o, tem início um ciclo de quintas justas a partir do acorde de Dm

(IVm) até o acorde de Bb (bII), o que deixa a tonalidade temporariamente suspensa77.

No entanto, ela é imediatamente retomada pela cadência perfeita nos compassos 21 a

23.

O cromatismo também tem lugar de destaque nos sambas da parceria. Podemos

encontrá-lo na segunda parte Goytacazes...:

No samba composto para concorrer no Salgueiro no ano seguinte, Salgueiro,

Minha Paixão, Minha Raiz - 50 Anos de Glória (Eduardo Medrado, João Estevam,

Marcinho, Duda Ferreira), a progressão harmônica e, consequentemente, a linha

melódica dos primeiros compassos são baseadas nele:

77 Ciclos de quintas justas seguindo o campo harmônico (por exemplo, IIIm – V/IIm – IIm – V7 – I) são, obviamente, comuns no repertório; entretanto, ciclos similares ao ocorrido no samba acima citado nunca haviam sido antes vistos.

Page 116: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

116

Frases cromáticas ainda podem ser vistas no samba concorrente para a

Imperatriz em 2007, Teresinhaaa, uhuhuuu!!! Vocês querem bacalhau?(Eduardo

Medrado, Kleber Rodrigues, Diego Moura, Seu Nelson):

E no samba concorrente para o Carnaval de 2009 da União da Ilha, Viajar é

preciso - viagens extraordinárias através de mundos conhecidos e desconhecidos

(Kleber Rodrigues, Almir da Ilha, João Brizola, Aurinho da Ilha) 78:

Breves polarizações na mediante cromática79 do I da tonalidade principal

também foram vistas nos sambas concorrentes de 2005, Uma Delirante Confusão

Fabulística (Eduardo Medrado, João Estevam, César Som Livre, Diego Moura e

78 Eduardo Medrado nos explicou em entrevista (MEDRADO, 2009b, entrevista) que não participou da composição de nenhum samba feito por Kleber Rodrigues para a União da Ilha. 79 Na verdade, a relação cromática mediante se dá quando duas tríades da mesma qualidade (maior ou menor), com fundamentais separadas por intervalo de terça, são tocadas sucessivamente. Embora não seja isso que ocorra no caso aqui apresentado, nomeamos dessa forma a tríade maior situada terça acima da fundamental da tonalidade porque ela não está agindo como dominante do VIm, e sim como um breve ponto de chegada.

Page 117: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

117

Marcinho), e 2006, Um por todos e todos por um (Eduardo Medrado, João Estevam,

César “Som Livre” e André Bonatte), para a Imperatriz:

E, por fim, até mesmo uma sonoridade modal (mixolídio) pôde ser encontrada

no refrão central do já citado samba de 2007 para a Imperatriz:

O uso de procedimentos de composição complexos como esses poderia sugerir

que estamos tratando de compositores com educação musical formal.

Surpreendentemente, o próprio Medrado explica que “[Kleber Rodrigues é] o único da

Page 118: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

118

parceria que toca algum instrumento” (MEDRADO, 2008, e-mail)80. Kleber Rodrigues

completa: “Faço uso do violão e do cavaquinho de maneira intuitiva sem conhecimentos

aprofundados de música” (RODRIGUES, 2009, entrevista)81.

Em todos esses sambas, o único aspecto do samba-enredo atual a não ter sido

questionado foi o padrão formal. Com relação a isso, Eduardo Medrado argumenta que

“nós [a parceria] já tivemos sambas que quase resultaram nisso [quebra do padrão]. [...]

A manutenção dessa forma, pra gente, ainda é necessária, porque seria mais complicado

ainda [vencer a disputa de sambas-enredo]” (MEDRADO, 2009a, entrevista).

Esta última fala de Medrado revela um dado que o leitor atento já deve ter

apreendido: todos os sambas da década de 2000 foram somente concorrentes, ou seja,

não chegaram a ser escolhidos pelas escolas a que foram destinados. Isso significa que,

até o ano de encerramento desta pesquisa, os compositores nunca mais conseguiram

vencer nenhuma disputa de samba-enredo desde Um mouro no quilombo. E cabe dizer

que embora tenha sido considerado, na época de seu lançamento, um “divisor de águas”,

o samba do Paraíso do Tuiuti não deixou seguidores, permanecendo isolado, no que diz

respeito à estética melódico-harmônica, no rol dos sambas já apresentados na Sapucaí.

Sobre esse fato, Medrado argumenta:

[...] nós formamos uma parceria que definiu para si uma espécie de identidade de estilo [...] que, aparentemente, segue na contramão do que hoje se faz (ou do que hoje vence nas disputas nas escolas de samba) em termos de sambas de enredo. [...] Eu costumo dizer que temos ainda grandes compositores nas escolas de samba (muitos já as abandonaram, é verdade) e que poderiam estar produzindo obras de qualidade superior. Mas boa parte desses autores ficaram reféns dessa "camisa de força monocórdica", sabendo que fugir desse padrão de composição os deixaria fora de quaisquer chances nas disputas nas escolas (MEDRADO, 2008, e-mail).

Kleber Rodrigues pensa a mesma coisa:

[Trabalhamos] com fortes doses de exigências para não cairmos no lugar comum. O lugar comum que nos referimos é o modelo único de melodia atualmente utilizado, um copiando o outro, e de forma [ainda] mais acentuada no que tange aos refrões. Isso vem confundindo os

80 E-mail enviado por Eduardo Medrado no dia 16 de dezembro de 2008. A íntegra desse texto está no Anexo I desta pesquisa. 81 Kleber Rodrigues, 57 anos, contabilista. Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 04 de março de 2009.

Page 119: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

119

nossos carnavais. [...] Abriram-se espaços para todos, o que é bom, entretanto a vaidade de ser compositor trouxe ao cenário do samba gente que nunca viveu a criação musical, e agora incentivados por esse modelo único de melodia se sentiram encorajados a fazê-lo. [...] Também o fato das competições nas quadras passarem a ser alavancadas por gastos elevados, [fez com que] mais ainda o poder de criação fosse substituído pelo poder econômico, ou seja, em muitas parcerias o cara da grana passou a ser a voz mais forte na construção do samba. Em resumo, como diz meu parceiro Eduardo Medrado, o esmero, o uso de melodias diferenciadas, passaram a ser singularidades que as escolas entendem como erros [...]. [Estas acabaram] jogando para baixo o gosto popular, institucionalizando padrões empobrecidos de linhas melódicas (RODRIGUES, 2009, entrevista).

Medrado conclui:

[...] O que mais ouvimos é que fazemos ‘obras belíssimas, mas difíceis’ ou que fazemos ‘sambas lindos, mas que não servem para os desfiles’, etc. Ou seja, somos "emparedados" por uma série de preconceitos que visam a justificar o fato de que a qualidade melódica e poética dos sambas está sendo colocada em segundo plano (MEDRADO, 2008, e-mail).

Page 120: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a fase de elaboração do projeto desta pesquisa, me impus (e agora o seu

autor fala em primeira pessoa) a obrigação de manter a imparcialidade em face de cada

transformação sofrida pelo samba-enredo. Tarefa bem difícil, essa, visto que qualquer

pessoa que se envolve com esse gênero cria um sentimento passional para com ele. No

entanto, acredito que cumpri esse objetivo.

“Samba-enredo é tudo igual”. Essa foi a frase que mais ouvi de pessoas que não

têm contato com o universo das escolas. Intrigava-me saber por que um gênero de tanta

pluralidade estética era tratado de maneira tão generalizada. Creio que essa questão foi

em parte respondida ao vermos que o samba-enredo, assim como qualquer gênero

popular, tem uma tendência de padronização inerente a ele.

No entanto, há ainda outras coisas a serem ditas. O samba-enredo, que na década

de 1980 chegava a vender milhões de seus discos anuais, se distanciou do ouvinte

comum. Muitos sambistas e pesquisadores relacionam a vertiginosa queda da vendagem

dos discos dos últimos anos à queda de qualidade dos sambas-enredo atuais em

comparação com os mais antigos. Gusttavo Clarão, entretanto, discorda desse

pensamento:

O que acontecia antigamente era uma grande mídia. Em novembro já se escutavam os sambas nas rádios, as pessoas acabavam se acostumando, mas isso não quer dizer que não existiam sambas ruins. O carnaval não tem mais tanto peso como antes, mas a qualidade é a mesma (CLARÃO, 2009, entrevista).

Questionado sobre o assunto, Eduardo Medrado vai mais além:

A diminuição da penetração do samba-enredo na classe média ou na grande massa, para mim não é derivada somente da queda de qualidade [...], e sim porque foi a música baiana que se sobrepôs, como música de carnaval, ao samba-enredo. [...] E não podemos dizer que ela se sobrepôs porque tem melhor qualidade. [...] [Portanto,] a queda de vendagem dos Cds é um fenômeno mais complexo do que a justificativa da queda de qualidade. Esta contribuiu, mas não a justifica plenamente (MEDRADO, 2009a, entrevista).

Page 121: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

121

Medrado concorda com Clarão quando diz que “de fato, sempre houve sambas

bons e ruins”. Mas completa: “o que não havia é essa padronização” (MEDRADO,

2009a, entrevista).

A padronização de que fala Medrado não é a sua natural, de afirmação como

gênero. É a que está ligada ao abuso de clichês melódicos pelos compositores (sem falar

nos clichês literários, não abordados nesta pesquisa), ao engessamento formal (o qual

nunca ocorreu com tanta força como atualmente), e, já em outras esferas, à má vontade

das diretorias das escolas em arriscar, já que desfilar com um samba-enredo fora dos

padrões poderia descontar décimos preciosos à escola, caso este não fosse devidamente

compreendido pelos jurados.

A necessidade de corresponder às expectativas estéticas de milhões de pessoas

pelo país afora, além dos turistas estrangeiros, os quais muitas vezes não têm referência

de samba de qualidade, fez mal ao gênero. Por essa razão, acredito que poderá ser o

afastamento entre o samba-enredo e o ouvinte comum, refletido na queda da vendagem

de discos e na quase hostilidade com que os novos sambas são recebidos pelo público

distante do dia-a-dia das escolas, o fator de mudança do atual estado de crise. Voltando

seus olhos para seu lugar de origem, o samba-enredo poderá, mais uma vez, se

reinventar. É o que desejam todos aqueles que, assim como eu, esperam ansiosamente a

chegada de cada fevereiro.

Page 122: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGRAS, Monique. O Brasil do samba-enredo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio

Vargas, 1998. BENWARD, Bruce & SAKER, Marilyn. Music in theory and practice (Volume I). 7.

ed. Boston: McGraw-Hill, 2003. CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar,

1996. CHEDIAK, Almir. Harmonia e improvisação. 12a edição. Rio de Janeiro: Lumiar

Editora, 1986. COELHO, Márcio. Frevo-enredo: de como o samba-enredo tende a se tornar

marchinha de carnaval. [S.l.]. [s.d.]. Em fase de pré-publicação. GOLDWASSER, Maria Julia. O Palácio do samba: estudo antropológico da Estação

Primeira da Mangueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. LIESA. Mapa de notas do Carnaval 2007 – Domingo 18/02/2007 – Alice Serrano.

Disponível em < http://liesa.globo.com >. __________. Manual do Julgador – Carnaval 2008. Disponível em <

http://liesa.globo.com/2008/por/03-carnaval08/manual/Manual_Julgador_2008.pdf >.

MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília: Editora

Universidade de Brasília; Linha Gráfica Editora, 1990. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Análise musical e música popular brasileira: em

busca de tópicas. In: II JORNADA DE PESQUISA E XV SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – CENTRO DE ARTES – UDESC, 2006, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UDESC, 2006. CD-ROM.

RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Editora

Hucitec, 1984. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro

(1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. UFRJ, 2001. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. Tradução de Eduardo Seincman. São Paulo: Edusp, 1991. SILVA, Marília T. Barboza da & SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união

entre duas culturas. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. __________ & OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Silas de Oliveira: do jongo ao

samba-enredo. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.

Page 123: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

123

__________ & OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Cartola: os tempos idos. Rio de

Janeiro: Funarte, 1983. SOUZA, Tárik de. Veículo das questões da maioria sem voz. In: História da Música

Popular Brasileira – Grandes compositores – Martinho da Vila. São Paulo: Abril, 1982. 1 disco 33 1/3 rpm: 12 pol.

TATIT, Luiz. Marchinha e samba-enredo. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 mar. 2000.

Caderno Opinião, Tendências/Debates, p. 3. TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Círculo

do Livro, [s.d.]. VALENÇA, Suetônio Soares. Do terreiro à passarela, três glórias do samba. In:

História da Música Popular Brasileira – Grandes compositores – Bide, Marçal e Paulo da Portela. São Paulo: Abril, 1982. 1 disco 33 1/3 rpm: 12 pol.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; UFRJ, 1995. VIOLA, Paulinho da. [s.t.]. In: VELHA GUARDA DA PORTELA. Portela Passado

de Glória. Rio de Janeiro: Som Livre, 1970. 1 CD (37 min. aprox.). Remasterizado em digital, 2002.

ENTREVISTAS CLARÃO, Gusttavo. Gusttavo Clarão. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta

pesquisa no dia 06 de fevereiro de 2009. ESTEVAM, João. João Estevam. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta

pesquisa no dia 10 de outubro de 2008. __________. João Estevam. O Batuque.com. <

http://www.obatuque.com/Radio%2094/enjoaoestevam.htm >. Entrevista concedida ao site O Batuque.com [s.d.].

MEDRADO, Eduardo. Eduardo Medrado. E-mail enviado ao autor desta pesquisa no

dia 18 de dezembro de 2008. __________. Eduardo Medrado. Entrevista concedida ao autor desta pesquisa no dia

20 de fevereiro de 2009. Rio de Janeiro: 2009a. __________. Eduardo Medrado. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta

pesquisa no dia 05 de março de 2009. 2009b.

Page 124: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

124

PAMPLONA, Fernando. Fernando Pamplona. OBatuque.com. < http://obatuque.com/baluartes_da_midia/fernando_pamplona/fernando_pamplona.htm >. Entrevista concedida ao site O Batuque.com publicada no dia 23/11/2004.

RODRIGUES, Kleber. Kleber Rodrigues. Entrevista concedida por e-mail ao autor

desta pesquisa no dia 04 de março de 2009.

DISCOGRAFIA OS CINCO CRIOULOS. Samba no duro. [S.l.]: Emi-Odeon, 1968. 1 CD (25 min.).

Remasterizado em digital, 2003. VELHA GUARDA DA PORTELA. Portela Passado de Glória. Rio de Janeiro: Som

Livre, 1970. 1 CD (37 min. aprox.). Remasterizado em digital, 2002.

SITES GALERIA DO SAMBA. < http://www.galeriadosamba.com.br >. Acesso em 4 de maio

de 2009. IMS. < http://ims.uol.com.br/ims >. Acesso em 4 de maio de 2009. LIESA. < http://liesa.globo.com >. Acesso em 4 de maio de 2009. MANGUEIRA. < www.mangueira.com.br >. Acesso em 4 de maio de 2009. O BATUQUE. < http://www.obatuque.com >. Acesso em 4 de maio de 2009. YOUTUBE. < http://www.youtube.com >. Acesso em 4 de maio de 2009.

Page 125: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

125

ANEXO

Disponibilizamos abaixo a íntegra do primeiro e-mail enviado por Eduardo

Medrado ao autor desta pesquisa. Por se tratar de um depoimento de um personagem

que vive o problema abordado nesta pesquisa e, principalmente, por conta da lucidez

com que o assunto é abordado, julgamos imprescindível anexá-lo ao trabalho.

Yuri,

Será um prazer ajudá-lo em sua pesquisa sobre samba-enredo.

De fato, nós formamos uma parceria que definiu para si uma espécie de

identidade de estilo e que, aparentemente, segue na contramão do que hoje

se faz (ou do que hoje vence nas disputas nas escolas de samba) em termos

de sambas de enredo. E, concordo com você, o nosso esforço é a busca de

caminhos singulares, ou a fuga ao que você denominou como "...o uso de

clichês melódicos e harmônicos".

Tenho insistido em dizer que os sambas têm se "padronizado", têm se

emoldurado numa "fórmula" e isso, penso eu, é o inverso da pretensão

artística. Um dos fundamentos da Arte é justamente a criatividade, a fuga

das fórmulas; é a busca da expressão de uma diferença singular. Em suma,

concordo com sua tese, de que a estagnação do gênero está em muito

associada a essa circunstância de banalização. Em verdade, há um caminho

investigativo bem interessante (que talvez não seja o foco do seu trabalho) que é o de

traçar as condições que levaram a essa padronização.

Eu costumo dizer que temos ainda grandes compositores nas escolas de samba

(muitos já as abandonaram , é verdade) e que poderiam estar produzindo obras

de qualidade superior. Mas boa parte desses autores ficaram reféns dessa

"camisa de força monocórdica", sabendo que fugir desse padrão de composição

os deixaria fora de quaisquer chances nas disputas nas escolas.

Nossa parceria é fiel ao seu estilo, somos insistentes, porém parece que

somos o exemplo do que declarei acima: nos últimos anos sequer conseguimos

chegar às disputas finais nas escolas em que participamos dos certames.

Page 126: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

126

O que mais ouvimos é que fazemos "obras belíssimas, mas difíceis" ou que

fazemos "sambas lindos, mas que não servem para os desfiles", etc. Ou seja,

somos "emparedados" por uma série de preconceitos que visam a justificar o

fato de que a qualidade melódica e poética dos sambas está sendo colocada

em segundo plano.

Em verdade, estão matando a "galinha dos ovos de ouro". A tradição do

carnaval carioca foi fortemente sedimentada em cima das obras musicais dos

autores das escolas de samba. Os desfiles eram a culminância dessa forma de

manifestação musical; em contraposição a um conceito, que alguns defendem

hoje, de que os sambas de enredo são apenas o "fundo musical" de um

espetáculo essencialmente "estético-visual". Tratam os sambas de enredo

como uma obra de encomenda e com sua vida útil limitada aos poucos minutos

do desfile (ou alguns eventuais momentos pré e pós-desfile). Não! Samba-enredo não é

um jingle à disposição dos carnavalescos. Os sambas de enredo (e seus autores) eram

representativos de uma linhagem fundamental do estilo musical chamado samba.

Muitos autores das escolas eram (ou se tornaram) compositores reconhecidos na

música brasileira. Hoje os compositores vencedores nas escolas formam quase um

grupo à parte: vivenciando um universo de reconhecimento restrito ao ambiente dos

apaixonados pelas escolas. Poucos desses compositores gozam de fama ou

reconhecimento fora desse contexto (evidentemente há outros aspectos a

serem considerados para explicar esse fato).

Um exemplo típico disso: na chamada retomada do "samba de raiz" - que teve

como força propulsora os bares da "Nova Lapa" - praticamente se deu de forma alheia

ao universo das escolas de samba. Nesses bares, sobretudo no início do movimento,

quase não havia representação dos compositores da nova geração das escolas e os

sambas executados, até hoje, são os "clássicos" das décadas 50-80.

Por ter vivenciado de perto essa retomada, sei que os novos autores e os

sambas mais recentes eram recebidos com certo desprestígio. E me orgulho em

dizer que, nesse aspecto, a nossa linha melódica foi um fator de aprovação

de reconhecimento dos méritos de nossa parceria. Eu de alguma forma fiz

parte desse movimento e me orgulho disso.

Desculpe o "desabafo", mas é que o tema me toca de forma apaixonada.

Ressalto, então, estar à disposição para ajudá-lo: sei que falo em meu nome

e de meus parceiros. É claro, essa ajuda se dará no limite das nossas possibilidades e

Page 127: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ... - Galeria do … · contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de formação do samba-enredo como

127

dos nossos conhecimentos. Talvez você se surpreenda em saber, mas nenhum de nós

tem formação musical formal. Um interlocutor importante nessa “conversa” é meu

parceiro Kleber Rodrigues: o único da parceria que toca algum instrumento (cavaco) e

que certamente traz um grande diferencial para nossa linha melódica. Repassarei

essa mensagem para ele e tentaremos responder conjuntamente às suas

indagações.

Enfim, nos sentimos honrados por estarmos sendo colocados no foco de uma reflexão

que nos parece tão necessária.

Saudações,

Eduardo Medrado