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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO Alexandre Hideto Matubara CARTEL E PROGRAMA DE LENIÊNCIA À LUZ DA TEORIA DOS JOGOS Orientadora: Prof.ª Dr.ª Juliana Oliveira Domingues Ribeirão Preto 2015

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

Alexandre Hideto Matubara

CARTEL E PROGRAMA DE LENIÊNCIA

À LUZ DA TEORIA DOS JOGOS

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Juliana Oliveira Domingues

Ribeirão Preto

2015

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ALEXANDRE HIDETO MATUBARA

CARTEL E PROGRAMA DE LENIÊNCIA

À LUZ DA TEORIA DOS JOGOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca

examinadora da Faculdade de Direito de Ribeirão

Preto da Universidade de São Paulo como requisito

parcial para a obtenção de título de Bacharel em

Direito.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Juliana Oliveira Domingues

Departamento de Direito Público

Ribeirão Preto

2015

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Matubara, Alexandre Hideto

Cartel e Programa de Leniência à luz da Teoria dos Jogos.

Ribeirão Preto, 2015.

83 p.; 30 cm

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentada à Faculdade de Direito

de Ribeirão Preto/USP.

Orientadora: Domingues, Juliana Oliveira.

1. Mercado. 2. Firma. 3. Custos de transação. 4. Concorrência. 5.

Direito antitruste. 6. Teoria dos jogos. 7.Cartel. 8. Programa de

leniência. I. Cartel e Programa de Leniência à Luz da Teoria dos Jogos.

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MATUBARA, Alexandre Hideto

Cartel e Programa de Leniência à luz da Teoria dos Jogos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca

examinadora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo como requisito parcial para a

obtenção de título de Bacharel em Direito.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________

Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________

Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________

Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________

Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________

Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________

Ribeirão Preto, _____ de _____________________ de 2015.

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À minha família, que delineou meu caráter.

Aos meus amigos, que o coloriram.

À Marina, que o preencheu com amor.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, por ter sido

palco de momentos maravilhosos e inesquecíveis da minha vida.

Agradeço à Prof. Juliana, pelos sucessivos votos de confiança e paciência.

Agradeço ao querido Prof. Luciano, por ter me emprestado um mapa e uma bússola.

Não pude devolvê-los a tempo, então os guardarei com muito carinho.

Agradeço ao Fernando Amorim, pelas preciosíssimas indicações.

Agradeço à minha família, fonte de amor e apoio incondicionais.

Agradeço a todos os amigos, pelos incontáveis momentos de verdadeira alegria.

Agradeço à República Naverrussa, por ter sido um lar longe de casa.

Agradeço ao Ricardo Salles, pela amizade e por ter me acolhido em sua casa.

Agradeço à Marina, companheira de todas as horas,

(Inclusive neste momento!)

e que assim continue...

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RESUMO

Os programas de leniência têm sido amplamente utilizados no combate aos carteis,

porém, também têm suscitado várias dúvidas e incertezas, tanto sobre sua legitimidade quanto

sua efetividade. O presente trabalho tem o objetivo de analisar os carteis e os programas de

leniência sob a perspectiva da teoria dos jogos, para que se possa afirmar ao final a real

efetividade do programa de leniência. Para tanto, analisa-se, primeiramente, as características

e interações que ocorrem no mercado, seus riscos e custos, instituições imprescindíveis, bem

como as condições e estruturas que favorecem a formação de carteis. Depois, passar-se-á para

a análise estratégica dos agentes econômicos e sua relação com a cooperação, vistos sob a

perspectiva dos jogos iterados finitos e infinitos, da teoria dos jogos. Por fim, serão analisados

os programas de leniências, suas peculiaridades e diferentes modelos, incluindo o brasileiro,

bem como o clássico jogo do Dilema do Prisioneiro, sua relação com a leniência, e as

conclusões sobre o objetivo inicial.

Palavras-chave: Mercado. Firma. Custos de transação. Concorrência. Direito antitruste. Teoria

dos jogos. Cartel. Programa de leniência.

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ABSTRACT

Leniency programs have been widely used in the fight against cartels, however, they

have also raised serious doubts and uncertainties, about their legitimacy and also effectiveness.

This study aims to analyze the cartels and leniency programs from the perspective of the game

theory, so that we can say in the conclusion the real effectiveness of the leniency program. In

order to do that, we analyze, first, the characteristics and interactions that occur in the market,

its risks and costs, essential institutions and the conditions and structures that contribute for the

formation of cartels. Then, will be moving to the strategic analysis of the economic agents and

their relation to cooperation, seen from the perspective of finite and infinite iterated games,

from the game theory. Finally, we will study leniency programs, its peculiarities and different

models, including the Brazilian, as well as the classic Prisoner's Dilemma game, its relationship

with leniency, and the conclusions on the initial goal.

Keywords: Market. Firm. Transactional costs. Competition. Competition law. Game Theory.

Cartel. Leniency program.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Jogo das lâmpadas representado na forma normal.

Figura 2 – Análise dos payoffs da empresa: incentivo a fornecer produtos de baixa qualidade.

Figura 3 – Análise dos payoffs do comitê organizador: incentivo a renegociar preço.

Figura 4 – Ponto de equilíbrio no mês 5: dupla não-cooperação.

Figura 5 – Jogo do cartel dos diamantes representado na forma normal.

Figura 6 – Análise dos payoffs dos jogadores nas estratégias de cooperar e não cooperar.

Figura 7 – Comparativo dos payoffs das estratégias de cooperar e não cooperar: fórmula com

probabilidade p de haver cooperação na próxima rodada.

Figura 8 – Jogo do dilema do prisioneiro representado na forma normal.

Figura 9 – Jogo do dilema do prisioneiro, situação de ausência de poder de barganha.

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 17

2 FUNCIONAMENTO DO MERCADO ........................................................................ 18

2.1 Linhas gerais e introdução aos princípios básicos de economia .......................... 18

2.1.1 As necessidades humanas ........................................................................................ 18

2.1.2 Escassez dos recursos .............................................................................................. 19

2.1.3 Escolha individual ................................................................................................... 20

2.1.4 Interação das escolhas individuais e funcionamento do mercado ........................... 21

2.2 O mercado ................................................................................................................ 22

2.2.1 Mercado e instituições ............................................................................................. 23

2.2.2 Direito de propriedade e custos de transação .......................................................... 24

2.2.3 Os contratos ............................................................................................................. 28

3 AGENTES ECONÔMICOS, CONDUTAS E ESTRATÉGIAS ..................................... 33

3.1 As empresas ................................................................................................................... 33

3.2 Concorrência e estruturas de mercado ....................................................................... 35

3.2.1 Concorrência Perfeita .............................................................................................. 36

3.2.2 Monopólio ............................................................................................................... 37

3.2.3 Oligopólio ................................................................................................................ 38

3.3 As condutas anticoncorrenciais ................................................................................... 40

3.3.1 Condutas anticoncorrenciais unilaterais .................................................................. 43

3.3.2 Condutas anticoncorrenciais colusivas .................................................................... 43

3.3.2.1 Condutas anticoncorrenciais colusivas verticais .................................................. 45

3.3.2.2 Condutas anticoncorrenciais colusivas horizontais: carteis.................................. 46

3.4 Estratégia cooperativa e cartel sob perspectiva da teoria dos jogos ........................ 47

3.4.1 Introdução ................................................................................................................ 47

3.4.2 Jogos iterados finitos ............................................................................................... 49

3.4.3 Jogos iterados infinitos ............................................................................................ 55

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4 ALTERANDO AS REGRAS E PAYOFFS DO JOGO ................................................... 60

4.1 Programas de Leniência .............................................................................................. 60

4.2 Modelo brasileiro ......................................................................................................... 63

4.2.1 Requisitos ................................................................................................................ 64

4.2.2 Julgamento e efeitos administrativos da leniência .................................................. 67

4.2.3 Efeitos à pessoa física ............................................................................................. 68

4.2.4 Responsabilização no âmbito criminal ................................................................... 70

4.2.5 Responsabilidade em demais esferas ...................................................................... 71

4.3 Programas de leniência sob perspectiva da teoria dos jogos ................................... 72

4.3.1 Dilema do prisioneiro .............................................................................................. 72

4.3.2 Dilema do prisioneiro x programa de leniência ...................................................... 75

4.3.3 Agências antitruste promovendo instabilidade em carteis ...................................... 76

5 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 81

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1 INTRODUÇÃO

Os carteis são considerados a mais grave lesão à concorrência por gerarem efeitos

extremamente danosos a coletividade. Se já era extremamente difícil combatê-los, com os

avanços verificados nas últimas décadas, sobretudo na tecnologia nos meios de comunicação,

o contexto de um mercado globalizado, sem falar do suporte técnico e jurídico que gozam os

agentes econômicos, a tarefa das agências antitruste de detecção e combate se tornou tarefa

quase impossível. Nesse contexto de fraqueza surgiram os primeiros programas de leniência,

uma ferramenta que tem se demonstrado muito útil na detecção e penalização de carteis e que

vem se popularizando e se aperfeiçoando em curto espaço de tempo. No entanto, a leniência

suscita muitas dúvidas: a concessão de benefícios e imunizações a infratores confessos é

justificável? Quais são os fundamentos legais para que se firmem os acordos de leniência?

Seriam eles realmente úteis para a defesa da concorrência? Qual seria o melhor modelo de

programa?

O presente trabalho propõe-se a analisar o comportamento e as estratégias tanto dos

agentes econômicos quanto das agências antitruste, sobretudo em relação a fatores que

possibilitam a cooperação que resulta na formação de cartel e a resposta dada pelas agências no

sentido de promover a instabilidade destes acordos danosos à concorrência. As ações e os

comportamentos inseridos nesse contexto passarão por análise fundamentada na teoria dos

jogos, que demonstra ser importante ferramenta para análise dos comportamentos e estratégias

tanto dos agentes econômicos quanto das agências antitruste.

Para tanto, o trabalho divide-se em três principais partes: a primeira, que analisa as

interações econômicas e estratégicas tanto no plano individual quanto no coletivo, bem como o

funcionamento do mercado e suas instituições; a segunda, que analisa os agentes econômicos

como jogadores, levando em conta também suas condutas e estratégias de maximizar ganhos;

e a terceira, que analisa o programa de leniência como tentativa de desestabilizar o cartel e

promover a delação.

Ao final, conclui-se acerca da efetividade dos programas de leniência.

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2 FUNCIONAMENTO DO MERCADO

Tendo em vista a futura análise do funcionamento de um cartel e a lógica empregada

nos programas de leniência pela perspectiva da teoria dos jogos, que leva em conta o

comportamento dos jogadores, nos parece relevante, primeiro, analisar o comportamento dos

indivíduos na realização de transações econômicas, bem como o funcionamento do mercado.

2.1 Linhas gerais e introdução aos princípios básicos de economia

O termo economia vem da expressão grega oikonomos. Oikos pode ser entendido como

casa, lar e até mesmo família. Já o termo nomos significa norma ou normatização. Dessa forma,

a economia como atividade pode ser entendida como a administração de um lar1, e logo revela

sua a íntima relação com escolhas e renúncias individuais e seus reflexos no âmbito coletivo.

A economia, como ciência social, pressupõe a escassez em nível social e analisa a consequência

dessa limitação estrutural de recursos no comportamento dos seres humanos. Assim, pode ser

entendida como o estudo da administração da escassez2, ou mesmo, a ciência da escolha

humana3.

Duas constatações feitas a partir do cotidiano, intrínsecas da noção de oikonomos, são

de extrema importância para análise do funcionamento de uma economia. A primeira delas é a

impossibilidade de estabelecer-se um limite para as necessidades e desejos humanos. A segunda

é a realidade incontornável da limitação e escassez dos recursos.

2.1.1 As necessidades humanas

Acerca do tema, Nusdeo lembra que embora seja mais notável hoje, não significa que

a multiplicação das necessidades não tenha existido em épocas passadas. A diferença estaria

tão somente no ritmo e na intensidade em que se experimentam novas necessidades, ou mesmo

em como são descobertas formas diferentes de atender necessidades antigas4. Anteriormente, o

processo de aumento artificial das necessidades decorrentes do contato de diferentes

1 MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 03. 2 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao estudo do direito econômico. 2. Ed., São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2014. p.30. 3 COASE, Ronald. The firm, the Market, and the law. Chicago: University of Chicago Press, 1988. p.

02. 4 NUSDEO, Op. Cit., p.26.

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comunidades, realizado por motivos bélicos ou comerciais, era mais lento e dificilmente

percebido. Agora, com as inovações tecnológicas e informacionais, sobretudo as verificadas

nas últimas décadas, o ritmo em que são criadas e propagadas novas necessidades é

extremamente veloz e de fácil percepção.

Para fins de análise econômica, as necessidades humanas são consideradas como

tendentes ao infinito. Em um primeiro momento, tal constatação pode soar absurda, já que certa

parcela da população tem pleno acesso aos bens que deseja adquirir, podendo até mesmo gozar

de certos caprichos e excentricidades inimagináveis a tantos outros que não possuem sequer o

mínimo para sua subsistência5. Assim, alguns indivíduos, aparentemente, teriam chegado ao

limite do seu consumo.

No entanto, o termo “necessidade” aqui empregado não indica somente o

mínimo ou o básico para a sobrevivência, mas também o que um indivíduo passa a desejar, já

que é constantemente instigado a consumir. No termo são abarcados tanto a necessidade de

adquirir bens de primeira necessidade quanto o desejo artificialmente implantado, e este último

é o que se considera ilimitado. Portanto, mais correto seria dizer que o consumo humano pode

ser considerado como tendente ao infinito.

O consumo, sob o ponto de vista psicológico6, não deve ser entendido como mera

obtenção de algo devido a sua utilidade ou necessidade na acepção estrita. Também deve ser

levado em consideração o desejo de bens supérfluos, por vezes totalmente fúteis. O contexto

globalizado, altamente interdependente e interligado, aliado ao sistema pautado na produção e

no consumo, permitiu o aumento exponencial do consumismo, principalmente porque o ato de

consumir é intencionalmente associado ao bem-estar e à realização pessoal. As ações

publicitárias comumente vendem esta ideia, criando uma noção deturpada do que é felicidade

e o que é necessário para consegui-la. Como não poderia ser diferente, a promoção de uma

cultura baseada no poder de consumo, a qual enaltece valores como a ostentação de bens

invejáveis e felicidade via consumo, possui reflexos diretos no consumismo. Dessa forma, as

necessidades humanas, entendidas como sinônimo de ânsia por consumo, são infinitas e não

coadunam com um fato incontornável: os recursos são escassos.

2.1.2 Escassez dos recursos

5 NUSDEO, Op. Cit., p. 25. 6 PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Editora Boitempo,

2006. p. 85.

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Ao contrário das necessidades humanas infinitas, os recursos à disposição dos

indivíduos são insuperavelmente limitados. É impossível ter tudo que se quer. Ainda, uma renda

limitada não é o único fator de impedimento, já que até mesmo o tempo tem oferta limitada de

24 horas por dia. Em outras palavras, até uma simples escolha em realizar uma atividade,

implica na renúncia de outra.

Embora a sociedade do consumo aparentemente tenha contornado a escassez dos

recursos, verificada pela sua capacidade produtiva e abundante oferta de bens dos mais variados

tipos, certo é que ela simplesmente consegue, ao menos por enquanto, manter a produção em

nível superior ao consumo geral. Embora a tecnologia tenha, de certo modo, conseguido lidar

bem com o desabastecimento de bens essenciais, fato é que os recursos são, em maior ou menor

grau, sempre escassos7.

Diante da impossibilidade de suprir suas necessidades, por serem os recursos escassos,

fica evidente o incontornável dilema enfrentado por qualquer indivíduo em uma decisão

econômica.

2.1.3 Escolha individual

Da incompatibilidade dos fatores “necessidades infinitas” e “escassez de recursos”

surge a necessidade de um indivíduo realizar uma decisão. É esta escolha individual o ponto de

partida da análise econômica, motivo pelo qual é considerado o cerne da economia8. Em relação

às escolhas individuais alguns princípios econômicos básicos devem ser mencionados. As

pessoas enfrentam tradeoffs9, que é o termo usado na economia que define a situação de escolha

conflitante, sendo uma análise de custos e benefício. Em outras palavras, diante da

impossibilidade de satisfazer todas as suas necessidades devido à escassez de recursos, os

indivíduos enfrentam situações em que para decidir obter um bem, necessariamente terão que

abrir mão de outro.

A partir do conceito de tradeoff, é possível falar do custo de oportunidade. Como o

custo de obter um item é, necessariamente, não obter outros, é possível afirmar que o custo de

algo é igual a tudo aquilo que se renuncia para sua obtenção10. Dessa forma, todos os custos

acabam sendo custos de oportunidade, e não se trata somente de custos medidos em dinheiro,

7 NUSDEO, Op. Cit., p. 27. 8 KRUGMAN, P.; WELLS, R. Introdução à economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 05. 9 MANKIW, Op. Cit., p. 05 10 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 06.

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já que muitas vezes nos vemos abrindo mão de atividades prazerosas, de lazer e bem-estar em

detrimento de uma atividade menos atrativa.

Para fins de análise econômica e início de exposição dos elementos básicos, pressupõe-

se que as pessoas são racionais, ou seja, considera-se que elas planejam a situação e as

oportunidades disponíveis para alcançar seus objetivos de maneira mais satisfatória. Tais

indivíduos sabem que suas decisões não são sempre absolutas e binárias, do tipo sim ou não.

Por exemplo, ao longo do dia, um estudante pode se dedicar a duas disciplinas distintas,

variando seu foco conforme suas necessidades e interesses. Embora seja evidente que não possa

estudar duas disciplinas ao mesmo tempo, é perfeitamente possível que ele estude ambas ao

longo do dia, em horários distintos. Essa é a ideia de decisão marginal, onde compara-se custos

e benefícios, de dedicar um pouco mais ou menos em uma atividade, levando em consideração

perdas e ganhos11. Assim, um indivíduo racional sempre analisa na margem os custos e os

benefícios que alguma escolha lhe traz, comparando esta informação com custos e benefícios

de uma outra atividade.

Por enfrentarem tradeoffs, e tomarem suas decisões marginais, diz-se que os

indivíduos reagem a estímulos. Estímulos são cruciais nas tomadas de decisões, já que sua

modificação pode e geralmente irá afetar uma decisão individual. Assim, quando o custo de

oportunidade de um bem aumenta, por exemplo, os indivíduos podem ter seu interesse nele

diminuído, podendo inclusive buscar outras formas de substituição ou mesmo abrir mão do

bem.

2.1.4 Interação das escolhas individuais e funcionamento do mercado

Após breve introdução sobre escolhas e comportamento em nível individual, passa-se

agora à análise da interação destas diversas escolhas, ou seja, como se relacionam as diversas

decisões individuais, e como funciona o mercado.

Apesar de partirem do nível individual, as escolhas não estão totalmente descoladas

do contexto de decisões da coletividade. Na verdade, as decisões individuais e coletivas são

interdependentes e têm influência direta uma sobre a outra, já que uma escolha de um indivíduo

influencia e é influenciado de volta pelo conjunto de escolhas de outros12. Um importante

princípio relacionado à interação entre escolhas individuais é que o comércio gera ganhos. Sem

comércio ou troca, um indivíduo necessitaria produzir todos os bens de que necessita. Nesse

11 Ibidem, p. 07. 12 KRUGMAN; WELLS, 2007, p. 09.

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cenário, ficaria inviabilizado qualquer tipo de progresso ou crescimento econômico. O ganho

possibilitado pelo comércio está relacionado à divisão e especialização de tarefas, responsável

por produzir bens e riqueza de forma mais eficiente13. Além disso, o ganho coletivo do comércio

incentiva fortemente os indivíduos a se especializarem em uma tarefa, já que por produzirem

mais, poderão, potencialmente, obter outros bens diversos, trocados no mercado. Assim, fica

clara a importância tanto da especialização, que garante maior eficiência na produção de bens

e serviços, quanto da existência do mercado, que possibilita a troca do que foi produzido por

cada um.

2.2 O mercado

Como visto anteriormente, é vantajoso que os indivíduos se especializem, já que a

autossuficiência demanda muito tempo e energia, sendo extremamente custosa e, por vezes,

inviável. No entanto, isso só faz sentido se indivíduos puderem transacionar entre si seus frutos

da atividade e é no mercado que eles se encontram e podem tornar mais eficientes suas trocas

e promover maiores ganhos econômicos. O mercado é o ambiente propício para que se

encontrem vendedores e compradores, prestadores de serviços e clientes, ou seja, onde a oferta

encontra a demanda. Um dos grandes benefícios do mercado é a possibilidade de aproximação

de muitas pessoas ao mesmo tempo, fato que potencializa o número de operações e trocas

econômicas14.

O mercado tem grande importância na economia na medida em que colabora não só

para alocar bens e recursos de forma mais eficiente, mas também na tarefa de sinalizar aos

indivíduos acerca de suas trocas. O chamado sinal econômico é importante instrumento para os

indivíduos no auxílio de tomada de decisões, já que informa a relevância da transação efetuada

e seus termos. O preço é o sinal mais importante, já que nele se transmite a informação essencial

sobre custos e o quanto outros estão dispostos a pagar15. Sinais econômicos são extremamente

relevantes no sentido de colaborar com a produção de bens na quantidade e qualidade

condizentes com a demanda16 e tornar o ambiente de trocas mais previsível. Indivíduos são

incentivados a transacionar mais quando verificam ambiente suficientemente seguro e com

potencial de ganhos econômicos. Assim, eficiência, previsibilidade e segurança são cruciais

13 Ibidem, p. 10. 14 SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas,

2004. p. 36. 15 KRUGMAN; WELLS, Op. cit., p. 273. 16 SZTAJN, Op. Cit., p. 23.

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para promoção de futuras transações e sucesso de um mercado, já que além de vislumbrar

possíveis ganhos, os indivíduos necessitam dispor de instrumentos de salvaguarda para

negociar.

Nesse sentido, duas instituições são imprescindíveis para a eficiência e bom

funcionamento do mercado: a propriedade privada e o contrato. Antes de se encontrarem no

mercado, é necessário que haja para os indivíduos garantias em relação a sua propriedade, por

meio delas é que se coíbem apropriações indevidas e se garante o direito de dispor do bem. Em

outras palavras, é necessária a atribuição inicial da propriedade sobre bens, sendo acrescida a

este direito de propriedade a possibilidade do indivíduo, caso queira, transferir sua

titularidade17. Acerca do contrato, sua importância está relacionada, basicamente, à

exteriorização da vontade dos indivíduos, limitação dos termos e a obrigatoriedade do acordado.

Os contratos possibilitam trocas econômicas mais eficientes18, satisfazendo melhor as

necessidades humanas e promovendo transferências de propriedade mais precisas. Também

regulam a realocação dos direitos de propriedade, definindo os termos da troca econômica, tanto

nas condições do uso do recurso quanto na divisão dos resultados19.

O mercado não tem a função de atribuir a propriedade sobre bens, tampouco regular

os contratos ou o modo em que são negociadas as transações20, ele é tão somente a realidade

onde se permitem as trocas econômicas. Evidente, assim, a importância do Direito para o

desenvolvimento mais eficaz tanto do próprio mercado, quanto seus reflexos, na medida em

que, além de tutelar e definir os direitos de propriedade, também, garante sua transferência de

forma precisa e segura. No mercado confluem diversos interesses, por vezes conflituosos, daí

a necessidade de haver normas balizadoras de comportamento e regramento de condutas. Não

obstante, também possui importância fundamental o Direito no sentido de intervir no mercado,

para se evitar ou corrigir falhas inerentes a ele.

2.2.1 Mercado e instituições

Instituições são as regras do jogo em uma sociedade, os mecanismos sociais que

moldam o comportamento e as interações humanas. Em consequência disso, as instituições têm

forte influência sobre as interações humanas, sejam elas políticas, sociais ou econômicas. As

17 Ibidem, p. 30. 18 Ibidem, p. 30. 19 ZYLBERSZTAJN, D.; SZTAJN, R. Direito & Economia. Rio de Janeiro: Campus, 2005. p. 87. 20 SZTAJN, Op. Cit., p. 34.

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instituições possuem importância fundamental ao reduzir incertezas e fornecer informações

acerca do que é esperado em determinada situação, revelando-se importante ferramenta para a

vida cotidiana. Elas são um verdadeiro guia para as interações humanas, já que estabelecem

padrões às condutas individuais21.Assim, da mesma forma que um indivíduo é influenciado a

tomar decisões dentro de um quadro de possibilidades institucionalmente preestabelecidas, esse

mesmo indivíduo espera que outros também tomem decisões pautadas dentro desse rol limitado.

As instituições, portanto, tem papel importantíssimo na sociedade, na medida em que

estabelecem um norteamento aos seus participantes de como devem agir para viver socialmente.

De acordo com North, as instituições podem ser tanto formais quanto informais. As

instituições informais são convenções e regras de condutas que surgem de informações geradas

e transmitidas pelas reiteradas interações humanas22. Ao longo do tempo, elas vão se

incorporando e fazendo parte da cultura de uma sociedade, por mais simples e primitiva que ela

seja.

A diferença entre uma instituição informal e formal é o maior grau de complexidade

da última. Enquanto a primeira trata de tradições, costumes e tabus, a segunda é a formalização

de regras que delimitam os comportamentos. Esse processo de formalização dá maior

divulgação e publicidade à sociedade e foi possível pelo desenvolvimento da escrita. As

instituições e regras formais têm profunda relevância no desenvolvimento da sociedade, na

medida em que possibilita o aumento de sua complexidade, contribui para avanços tecnológicos

e tornam as interações humanas menos custosas23. Nas regras formais incluem-se normas

jurídicas, políticas, econômicas e por isso, também, os contratos. As instituições formais tratam

da limitação do comportamento humano desde as regras mais gerais básicas até as mais

específicas, ou seja, elas abarcam desde a própria Constituição, passando por leis gerais,

específicas, até um contrato em particular. Em relação aos contratos, North defende que a

principal função das normas formais é a facilitação da interação e das trocas econômicas, sendo

que a estrutura preexistente de garantias de direitos define os possíveis ganhos aos indivíduos,

que terão um ambiente propício para realizarem as transações que desejarem24.

2.2.2 Direito de propriedade e custos de transação

21 NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge:

Cambridge University Press, 1990. p. 03. 22 NORTH, Op. Cit., p. 04. 23 Ibidem, p. 46. 24 Ibidem, p. 47.

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25

O direito de propriedade, tanto no Direito quanto na Economia, pode ser entendido

como um conjunto ou feixe de direitos sobre um recurso, em que o proprietário está livre para

exercer e este exercício é protegido contra a ação de terceiros. Portanto, pode-se dizer que nessa

definição, a propriedade consiste em um feixe de relações entre os indivíduos, envolvendo

somente de forma incidental uma coisa ou um bem25. Como defendem Zylbersztajn e Sztajn, o

direito de propriedade é “como um feixe que engloba os direitos de uso, usufruto e abuso, e que

confere o exercício da exclusão sobre a coisa, que permite afastar terceiros que dela pretendam

se apropriar, usar ou gozar”26.

A introdução da ideia de propriedade privada possibilitou esclarecer, em relação a

bens, o que cabe a cada um. Definiu-se o espaço onde a liberdade de um indivíduo pode ser

exercida, que não pode ser invadida por outrem. A regra do jogo criada é que deve haver certa

proteção de uma propriedade, pois é extremamente custosa e seria infinita a disputa contínua

pela posse de um bem. Em outras palavras, o bem-estar da sociedade é maior com a instituição

da propriedade privada, motivo fortíssimo para estabelecer mecanismos para sua defesa.

Ademais, com a garantia de proteção da propriedade privada, os indivíduos podem focar suas

atividades em produzir e obter ganhos econômicos, em vez de se preocuparem integralmente

em defender seus bens27.

Na Teoria Econômica Neoclássica, os direitos de propriedade são perfeitamente

definidos e seguros. Assim, não há custo na obtenção e defesa dos direitos de propriedade, já

que eles seriam sempre considerados e respeitados. Estaríamos, segundo os neoclássicos, diante

de um ambiente em que não seria necessário considerar os direitos de propriedade, já que os

bens acabariam automaticamente alocados da melhor forma, em que se verificaria a

maximização do bem-estar social28. Mueller lembra que em alguns casos e para certos bens, a

hipótese neoclássica é razoável29. Haveria, portanto, para essas hipóteses, direitos de

propriedade suficientemente seguros e respeitados. Porém, para outros casos, os direitos de

propriedade são custosos e inseguros, podendo comprometer as conclusões dos agentes

econômicos e afetar negativamente as trocas econômicas deles.

Nas últimas décadas, cresceu vertiginosamente o número de estudos acerca da

influência que os direitos de propriedade têm sobre o comportamento dos agentes econômicos,

25 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 92. 26 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 85. 27 PINHEIRO, A. C.; SADDI, J. Direito, Economia e Mercados. São Paulo: Editora Campus, 2005. p.

95. 28 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 91. 29 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 91

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26

sobretudo por influência de Ronald Coase, que inova na abordagem dos direitos de propriedade

e seus reflexos. O autor britânico defende que, diferentemente do que propõe a teoria

neoclássica, o mundo real apresenta fricções, denominadas como “custos de transação”. Estas

fricções seriam causadas por assimetrias de informação, fato que dificulta ou até mesmo impede

que os direitos de propriedade sejam negociados a um custo zero.

O crescente interesse para o estudo dos custos de transação é o entendimento de que a

Teoria Neoclássica apresenta pouca utilidade na análise mais apurada das trocas econômicas,

sobretudo quando falamos de instituições, contratos, organizações e suas formas de interagir,

pois suas hipóteses seriam simplificadoras e ignoram realidades trazidas por Coase30. O autor

britânico critica o cenário de economistas preocupados somente com a lógica de escolhas

racionais, como se o consumidor não fosse um ser humano, mas um conjunto de preferências,

a firma como um gráfico de curvas de oferta e demanda, e a teoria econômica como a lógica de

verificação de preços e trocas econômicas eficientes. Por isso diz Coase que, na Teoria

Neoclássica, “Temos consumidores sem humanidade, empresas sem organização, e até mesmo

trocas econômicas sem mercados”31.

As simplificações dos neoclássicos são comumente comparadas aos modelos

utilizados na física, que desconsideram o atrito. De fato, as simplificações podem não condizer

com a realidade, mas permitem elaborar importantes conclusões. Guardadas as devidas

proporções, os custos de transação seriam, como descrevem Pinheiro e Saddi, “a contrapartida

do atrito na economia”32. O problema surge quando a relevância do estudo do custo de transação

é tão grande que este não pode mais ser ignorado. Daí a importância dos trabalhos de Coase,

que foram fundamentais para o desenvolvimento da Economia dos Custos de Transação e da

Análise Econômica do Direito e das Organizações.

Custos de transação podem ser entendidos como sendo os custos de viabilizar uma

transação. Este custo abarca, basicamente, cinco atividades33. Primeiro, a busca de informação.

Tal busca é extremamente importante para um indivíduo que deseja transacionar, já que ela

revela sinais econômicos como o preço, também a qualidade dos bens, a busca por possíveis

compradores, vendedores e seus comportamentos no mercado. Assim, o processo de busca de

informação é considerado pois representa uma atividade que demandou tempo e recursos do

indivíduo. Decorrente da primeira, também deve ser considerada a segunda atividade: a

30 PINHEIRO; SADDI. Op. Cit., p. 61. 31 COASE, Op. Cit., p. 03. 32 PINHEIRO; SADDI. Op. Cit, p. 61. 33 Ibidem, p. 62.

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negociação. Por meio desta atividade os indivíduos barganham considerando seus interesses

em contraposição do outro, buscando saber o limite do interesse da outra parte, a fim de tornar

mais eficiente a troca. Finalizada a negociação, entra a terceira atividade, que é a formalização

dos contratos, incluindo-se o cumprimento de regras formais de registros de propriedade, dos

requisitos legais e custos típicos da confecção de um contrato. Depois, a quarta atividade, de

monitoramento dos parceiros contratuais, que tem por objetivo investigar a forma de

cumprimento do acordado, se está sendo devidamente cumprido ou não, além da proteção dos

direitos de propriedade contra terceiros ou o primeiro setor. Por fim, a última atividade é a

correta aplicação do contrato e eventual necessidade de execução do contrato, ou enforcement

contratual. Nela, há o esforço para recuperar os direitos de propriedade que tenham sido parcial

ou totalmente expropriados34.

Sobre a diferença entre a abordagem utilizada pela Teoria Neoclássica e do estudo dos

custos de transação, é importante ressaltar que este relaxa duas importantes suposições daquela:

a racionalidade ilimitada e o comportamento individual pautado no interesse próprio, mas

sempre de acordo com regras e leis, em outras palavras, o comportamento não oportunístico.

Os neoclássicos consideram que as pessoas gozam de racionalidade ilimitada, ou seja,

têm a capacidade de absorver e processar todas as informações possíveis. Por outro lado, a

Teoria dos Custos de Transação utiliza-se do conceito de racionalidade limitada, que considera

que as pessoas buscam maximizar sua utilidade, mas estão sujeitas a dificuldades e restrições

cognitivas, que transformam essa capacidade de processamento mental em um importante

ativo35. Assim, por ser a racionalidade limitada, a informação possui papel chave nas

negociações e passa a ser extremamente importante para os indivíduos que a detém.

Pela Teoria dos Custos de Transação, o comportamento individual continua pautado

no interesse próprio, mas não se pode mais esperar que o indivíduo aja conforme as regras do

jogo, porque o comportamento humano seria marcado pelo oportunismo. Nesse sentido,

entende-se que o indivíduo poderá agir de forma desonesta, respeitando as regras e leis somente

quando lhe convier36. Assim, relacionando a suposição anterior, o oportunismo pode levar os

indivíduos a esconder informações, ou distorcê-las a fim de obter maiores ganhos, já que a

informação é agora um ativo relevante. Caso não houvesse oportunismo, não seriam necessários

consideráveis dispêndios na solução de hipóteses não previstas no contrato, ou mesmo formas

de executar contratos parcial ou totalmente descumpridos. Mas como a racionalidade limitada

34 PINHEIRO; SADDI. Op. Cit, p. 62. 35 Ibidem, p. 65. 36 Ibidem, p. 65.

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e o oportunismo são possibilidade comportamental dos agentes, a confecção de um bom

contrato revela-se importante instrumento de segurança para aqueles que tem interesse em

transacionar.

Para North, o custo de se obter uma informação é peça chave para os custos de

transação, já que estes consistem em custos de mensuração dos atributos que estão sendo

transacionados, o custo de proteger direitos de propriedade, de investigação e eventual

enforcement. A teoria do autor é construída com base em teorias do comportamento humano

combinado com a teoria dos custos de transação. Segundo ele, com estes alicerces é que se

compreende o motivo das instituições existirem e qual o seu papel no funcionamento da

sociedade37.

2.2.3 Os contratos

Não só no ambiente de trocas econômicas, mas em diversos outros contextos, os seres

humanos utilizam-se e necessitam de promessas. Prometer significa obrigar-se a agir de

determinada forma, jurar que se realizará uma ação. Assim, num ambiente em que se pressupõe

que os indivíduos possuem racionalidade limitada e podem ser guiados pelo oportunismo, a

promessa tem fundamental importância. Por isso se diz que a essência econômica do contrato

é a promessa38.

Antes dos trabalhos de Coase, a Teoria Econômica praticamente ignorava a

importância dos contratos. Ela supunha que as trocas econômicas eram realizadas por

indivíduos dotados de racionalidade ilimitada e estes poderiam recorrer ao Judiciário sem custos

extras, sendo os termos contratuais sempre cumpridos e não havia custos adicionais em compra

e venda ou no próprio desenho de um contrato39. Agora os economistas e cientistas das

organizações consideram estes custos como peça chave para estudar o mercado, sobretudo o

para análise do funcionamento e comportamento das empresas, vistas agora como um feixe de

contratos, inseridos numa lógica organizacional e influenciadas por imposições de um ambiente

institucional40.

Aos poucos, sobretudo no final da década de 60, elementos que encarecem as

transações foram sendo estudados e inseridos no estudo da Economia. Basicamente, ocorre que

37 NORTH, Op. Cit., p. 27 38 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 103. 39 Ibidem, p. 114. 40 ZYLBERSZTAJN; SZTAJN. Op. Cit., p. 103.

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com a suposição de uma racionalidade limitada e a importância de uma informação, uma das

partes pode deter conhecimento que a outra não possui, passando a existir uma assimetria de

informação entre elas. Dessa assimetria, surge a possibilidade das relações econômicas não se

concretizarem como inicialmente desejavam e previam os interessados, o que se denomina

seleção adversa. Além disso, é possível que haja resultados indesejáveis em relação às práticas

das partes, acarretando no descumprimento da promessa, a alma do contrato. O desacordo das

partes é o que se denomina risco moral ou moral hazard41.

Apesar de haver inúmeros motivos para que os indivíduos se utilizem de contratos para

realizar trocas econômicas, como a definição segura dos bens e delimitação dos termos

acordados, alguns elementos dificultam o que seria uma simples realização de troca. A

execução do contrato, ou enforcement é um dos principais elementos que afetam o desenho

contratual42. Ou seja, além dos elementos básicos do contrato, há que se acordar a respeito de

coerções sobre os indivíduos, no sentido de incentivar e forçar o cumprimento do contrato.

Acerca do enforcement e as condições para que os contratos sejam cumpridos

automaticamente, ou como denomina North, um ambiente de self-enforcing43, diz o autor que

é mais fácil imaginá-las num mundo em que não há oportunismo, já que as partes optariam por

cumprir os contratos simplesmente porque o ganho compensa o custo e é interessante a eles que

as trocas econômicas se concretizem. Nesse sentido, bastaria que os ganhos com a troca

excedessem os custos de transação. A situação mais provável em que as trocas ocorreriam é

aquela em que uma parte possui conhecimento do comportamento e reputação da outra parte,

ou seja, o ambiente possui uma densa interação social que permite a mensuração dos custos de

transação, que tenderiam a ser relativamente baixos. No outro extremo, num ambiente de trocas

caracterizada pela alta interdependência especializada e impessoalidade44, os custos de

transação passam a ser consideráveis e relevantes, com potencial de inviabilizar determinadas

trocas econômicas. Nesse ambiente, os ganhos em não cooperar ou trapacear passam a ser

considerados pelos agentes, motivo suficiente para certos indivíduos a não cumprirem acordos.

O fato acarretará em insegurança para a coletividade e aumentos dos custos de transação. Os

ambientes acima mencionados, de maior ou menor informação acerca do comportamento e

reputação dos players, terão grande relevância em tópico futuro sobre a Teoria dos Jogos, já

41 Ibidem, p. 114. 42 Ibidem, p. 120. 43 NORTH, Op. Cit., p. 55. 44 NORTH, Op. Cit., p. 55.

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que estão ligados aos estudos dos jogos iterados, promoção da cooperação e estratégias

utilizadas pelos jogadores, considerando seus payoffs.

É importante que se analise outro aspecto dos contratos, além daqueles que o abordam

apenas pela assimetria de informação ou do risco moral, que é a incompletude do contrato. Tal

incompletude acaba tornando os contratos imperfeitos e passíveis de alteração por eventos e

circunstâncias imprevistas. Podem ser alterados também na sua execução, pela mudança

repentina da vontade das partes, proposital ou não, por assimetria de informação ou por algum

impedimento novo45.

Acerca do tema, Penteado diz que:

Os contratos incompletos não correspondem a um tipo contratual, nem a uma técnica

de obtenção de declaração negocial da contraparte. São um modelo observável na

realidade das operações econômicas, passível de descrição e que, juridicamente,

corresponde a uma estrutura, no sentido de específica maneira de modelagem do

clausulado. Como tal, admitem graus, da maior a menor incompletude, porque

estruturas são plásticas, diferentemente de conceitos e institutos.46

Ainda, segundo ele, a incompletude dos contratos pode ser intencional ou não

intencional47. Os contratos são incompletos não só porque a racionalidade das partes é limitada,

impossibilitando na prática os indivíduos a preverem exaustivamente todas as possibilidades,

mas também porque a incompletude gera diminuição de custos.

O desenho de um contrato, ou como Penteado chama de arquitetura da

contratualidade48, é necessariamente incompleta, embora o contrato seja completável, já que

existem técnicas para sua integração. Assim, o contrato é considerado incompleto porque aquele

que abarque todas as possibilidades e circunstâncias só pode existir em modelos teóricos.

Primeiro, por limitações reais, é impossível que sejam previstas em cláusulas todos os possíveis

acontecimentos concernentes ao contrato. Segundo, caso fosse desenhado um contrato dotado

de completude, este seria absurdamente custoso, podendo inviabilizar a transação até mesmo

porque seu custo poderia superar eventuais ganhos com a troca econômica. Por isso é que o

autor diz que os contratos incompletos são necessários para maior eficiência nas relações

econômicas e a dificuldade de se obter um bom contrato é “atingir o ponto ótimo de equilíbrio

45 PINHEIRO; SADDI, Op. Cit., p. 117. 46 PENTEADO, Luciano de Camargo. Integração de contratos incompletos. 2013. Tese de Livre

Docência – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2013. p. 261. 47 Ibidem, p. 263. 48 Ibidem, p. 269.

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entre o que regular e o que não regular em cláusulas” 49. Sobre a incompletude do contrato e

interesse das partes em mantê-la, assevera que:

Por isso, se as partes quisessem tornar um sem número de dados condições, o custo

da operação contratual, apenas para sua formalização instrumental seria enorme.

Como formar o contrato é apenas o início da fase que economicamente é mais

relevante para as partes, que é a de execução, não, portanto, a de negociação, esse

custo de condicionar todos os eventos futuros, atingindo um contrato modelarmente

completo, como primeira melhor opção (first best), teria de ser confrontado com o

interesse que cada uma delas tem no contrato, assim como o ganho na operação.

Provavelmente, haveria desinteresse na contratação se houvesse de se atingir o

primeiro melhor, um contrato com design supostamente perfeito. Bem por isso, há

uma razão prática também no contrato incompleto, justificada sobretudo pela

incondicionabilidade de toda contingência do real e pelo custo de transação elevado

de condicionar grande parte dela. Bem por isso, tendencialmente, se houver contrato,

será feita minuta incompleta e, ainda assim, satisfatória para as partes contratantes 50.

Assim, o contrato mantém-se incompleto porque tem impacto direto na eficiência das

trocas econômicas, já que um contrato tendente a completude aumentaria não somente em os

seus custos, mas também sua rigidez, que poderia inviabilizar a relação econômica. As partes

determinam apenas aquilo que é relevante e necessário ex ante, porque podem ex post, caso

necessário, integrar da forma mais eficiente51.

Como bem lembra o autor, a assimetria de informação não é o único motivo da

incompletude do contrato. Por isso, embora pareçam necessariamente ligados, os dois conceitos

não se confundem. A afirmação é verificável na hipótese de haver incompletude de contrato

concomitante com simetria de informação, sobretudo quando as partes desejam manter a

incompletude com o objetivo de diminuição de custos e confeccionam o contrato

deliberadamente incompleto. Ademais, sendo a informação e conhecimento relevantes para o

desenho de um contrato, estes são considerados nos custos da transação, e não é interessante

que sejam revelados a outra parte, pois acarretaria numa diminuição de ganhos. Os indivíduos

que pretendem pactuar, então, ficam em uma situação em que, estrategicamente, não revelam

informações relevantes ou indícios que possam levar a sinalizações de reais expectativas, com

o intuito de maximizar seus ganhos, realizando concessões na negociação somente quando

necessário para possibilitar a transação econômica, já que algumas revelações podem operar

como um convite a abrir os olhos52. Nesse sentido, o trecho destacado:

49 Ibidem, p. 265. 50 Ibidem, p. 264. 51 Ibidem, p. 270. 52 Ibidem, p. 287.

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Há custos de concepção, planejamento e produção que a parte conhece, mas não quer

ou não pode desvelar à outra parte. Aquele com quem negocia, por sua vez, sabe quanto está

disposto a pagar como máximo pelo bem, mas também não lhe é interessante divulgar esta

informação, porque correria o risco de que o preço atingisse esse patamar e pode ter interesse

no ganho representado por um contrato em que o preço fosse inferior ao máximo. Este é o

argumento que permite que as partes detalhem um segundo melhor contrato, pois o primeiro

melhor empregaria todas as informações de que estão municiadas. Compartilhá-las pode ser

custoso ou irracional.53

Desse modo, conclui-se que a informação e o tratamento que se dá a ela têm impactos

diretos na eficiência de uma troca econômica, sendo importante ferramenta para a estratégia

dos indivíduos, tanto ex ante, como ex post. Ainda, é importante ressaltar que a incompletude

está intimamente ligada com o grau de probabilidade da alteração do contrato ex post, sendo

maior a possibilidade quanto maior for a incompletude. Nesse sentido e sob as perspectivas da

Teoria dos Jogos, sobretudo em relação aos contratos de longa duração, é possível analisar o

comportamento dos indivíduos como a de players em um jogo, em que estes podem explorar

ganhos por ações oportunísticas no desenrolar do iter do jogo. Há a possibilidade de exploração

oportunística sobretudo quando a assimetria de informação é proveniente de maior pesquisa e

conhecimento adquirido por especialização profissional de uma das partes, que garante

vantagem não só no desenho contratual, como na eventual modificação ex post. Como exemplo

desta, o conhecimento que uma parte pode ter sobre o posicionamento do Poder Judiciário

acerca de determinado fato imprevisto no contrato54. Nesse caso, no momento da modificação

ex post e integração do contrato incompleto pelo Judiciário, o desequilíbrio informacional afeta

a relação das partes e altera os payoffs inicialmente imaginados no desenho contratual,

prejudicando a parte que desconhecia a informação. Por isso considera-se que o Poder

Judiciário tem importante papel tanto na integração de contratos incompletos quanto na

determinação de payoffs.55

53 Ibidem, p. 283. 54 Ibidem, p. 288. 55 Ibidem, p. 290.

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3 AGENTES ECONÔMICOS, CONDUTAS E ESTRATÉGIAS

A partir das conclusões dos trabalhos de Coase, abordados no primeiro capítulo, e com

base nas afirmações da teoria econômica moderna, é possível dizer que existem custos de

transação enormes nas relações verticais do mercado56. Em decorrência disso, também se

conclui que, por conveniência, os agentes econômicos são incentivados e tendem a eliminar tais

custos por meio de acordos. Por isso, faz-se necessário que o direito concorrencial analise o

comportamento dos agentes para sancionar ou admitir tais condutas.

Dessa forma, o presente capítulo tem como objetivo analisar o comportamento dos

agentes econômicos inseridos num contexto de oligopólio, abordando seus interesses,

estratégias e as interações decorrentes destes comportamentos, não só com o viés do Direito

Antitruste, mas também sob a ótica da Teoria dos Jogos.

3.1 As empresas

Um modelo de mercado atomizado, concorrencial e eficiente tem como pressupostos:

a pluralidade de pessoas nos dois polos da relação de troca econômica; incapacidade de

indivíduo ou grupo alterar as condições do funcionamento do mercado; informação perfeita e

simétrica; e produtos fungíveis ou relativamente substituíveis57. Nesse modelo, não haveria

motivo para o surgimento de estruturas intermediárias, já que a clássica teoria do preço seria

suficiente para alocar os recursos da forma mais eficiente. Assim, sob esta perspectiva, o

mercado funcionaria sozinho, coordenado pelo mecanismo de preço, ajustando oferta e

demanda, produção e consumo, sem a necessidade de organizações intermediárias.

As condições para a existência de um mercado de concorrência perfeita, em que as

interações entre empresas e consumidores são suficientes para estabelecer um equilíbrio onde

o bem-estar é maximizado, são dificilmente encontradas no mundo real. Mesmo assim, o

modelo de concorrência perfeita é extremamente útil para nortear importantes conclusões e

análises econômicas58. No entanto, em determinados casos, principalmente quando trata-se da

análise de instituições legais, contratos, organizações e o modo em que estes se relacionam, é

necessário que haja o relaxamento de suposições que apresentam falhas59.

56 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as condutas. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.

p. 260. 57 SZTAJN, Op. Cit., p. 60. 58 PINHEIRO; SADDI, Op. Cit., p. 60. 59 Ibidem, p. 61.

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Antes dos trabalhos de Coase acerca das empresas, a teoria econômica só se ocupava

em definir a empresa como sendo uma organização que transforma insumos em bens, sem se

interessar ou investigar outros pontos como o motivo de sua existência ou seu papel na

economia. O autor julgava esta falta de interesse como sendo extraordinária, já que as empresas

fazem parte de boa parte da população, além de ter papel de destaque no funcionamento da

economia dos países60. A fim de explicar a razão das empresas existirem e quais atividades elas

realizam, é que Coase introduz a ideia de custos de transação. Estes são, para o autor, peça

chave para entender o porquê de existirem organizações que intermedeiam produção e

consumo. Como visto anteriormente, o mercado demonstra ser um ambiente em que há

assimetria de informação, insegurança e oportunismos. Por isso, ao realizarem trocas

econômicas, os agentes consideram riscos e custos, como os de verificação de informação,

barganha, desenho contratual, monitoramento de comportamento e enforcement. A partir da

constatação da existência destes custos, por parte dos agentes econômicos, é que surgem as

empresas, que funcionam como uma forma eficaz de adotar medidas que impliquem na

diminuição dos custos de transação.

O agente econômico que visa oferecer bens ou serviços e participar do mercado tem a

opção de recorrer ao mercado sempre que necessitar adquirir matérias-primas e contratar mão-

de-obra, assim como outros meios de produção ou de organizar a produção, criando vínculos

com fornecedores e trabalhadores sob a estrutura organizada de uma empresa. Evidente que a

primeira opção é mais arriscada, já que nesta alternativa não há garantia de estabilidade,

regularidade e qualidade dos fatores produtivos61. Além disso, sendo mais custoso recorrer ao

mercado sem a estrutura empresarial, aumentam-se os custos para o agente econômico,

impactando diretamente e de forma negativa na obtenção de eventuais lucros. Portanto, os

agentes econômicos encontram-se em uma situação de optar entre organizar uma estrutura

empresarial hierárquica, que implica em certa rigidez, ou depender diretamente dos mercados,

com maior flexibilidade, porém, correndo mais riscos62.

Empresas têm o importante papel de diminuir custos para o empreendedor, estes

advindos de imperfeições ou falhas de mercado. Sem a estrutura empresarial, os empresários

necessitariam recorrer pontual e reiteradamente aos mercados, sempre buscando o melhor

fornecedor, com menor preço, com insumo a pronta entrega; recorrer a prestadores de serviços

capacitados a executar determinada tarefa, pelo menor preço; e encontrar um consumidor

60 COASE, Op. Cit., p. 06. 61 SZTAJN, Op. Cit., p. 188. 62 SZTAJN, Op. Cit., p. 188.

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disposto a consumir o bem, pagando o maior preço possível63. No momento em que todos estes

processos são internalizados na organização empresarial, por meio de contratos de maior prazo,

atinge-se maior eficiência em relação a produção de bens ou serviços. Quando os custos

internos forem maiores, pode ainda o empresário recorrer novamente ao mercado.

Assim, as empresas podem ser entendidas como feixes de contratos, pelos quais são

organizados a produção e a distribuição de bens no mercado, com um controle e comando

centralizado na figura do empresário, com quem não se confunde. Empresário é o

empreendedor, aquele que exerce atividade econômica organizada na empresa

profissionalmente, sendo a empresa a atividade desenvolvida por ele64. A empresa é

extremamente importante na medida em que diminuem custos de transação para o empresário

e potencialmente para os mercados e a economia como um todo, colaborando para seu

crescimento e desenvolvimento. Portanto, a existência de custos de transação são a base para a

existência de empresas. Por isso, Coase diz que as empresas são talvez a mais importante

adaptação e resposta à existência de custos de transação65.

3.2 Concorrência e estruturas de mercado

Este recorte dará foco nos três principais modelos de estruturas, ou regimes, de

mercado, no polo dos fornecedores: concorrência perfeita, monopólio e oligopólio. Apesar de

existirem diversas outras classificações, como concorrência monopolística, firma dominante e

monopólio natural, estes modelos não serão abordados individualmente pelo fato de serem

gradações e decorrências dos extremos monopólio e concorrência perfeita, além de não

apresentarem relevante utilidade para o objetivo principal do trabalho.

É possível notar que, no mundo real, existem diversas variações de comportamento

que advém dos diferentes números e tipos de agentes dentro dos mercados. Em alguns existem

produtores altamente competitivos; em outros o mercado é dominado por poucos que parecem

utilizar-se de estratégias cooperativas em detrimento dos consumidores; e em alguns não existe

qualquer tipo de competição. Nesse sentido é que foram criados modelos de análise do mercado

com base no comportamento dos agentes. A análise baseia-se, principalmente, em duas

63 SZTAJN, Op. Cit., p. 189. 64 BERTOLDI, M. M.; RIBEIRO, M. C. P. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2011. p. 49. 65 COASE, Op. Cit., p. 07.

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dimensões: o número de produtores no mercado, se eles são muitos, poucos ou somente há um

produtor; e o tipo dos produtos oferecidos, se idênticos ou diferenciados66.

3.2.1 Concorrência Perfeita

O modelo de concorrência perfeita, como bem lembra Nusdeo, representa muito mais

uma abstração do que uma realidade, mas revela-se extremamente útil enquanto apresenta as

condições perfeitas de competição e trocas econômicas67. Neste modelo de estrutura de

mercado, em relação ao número de produtores, assume-se que existam muitos deles, assim

como consumidores, sendo que nenhum indivíduo tem, sozinho, a capacidade de influenciar os

demais. Além disso, também se supõe que todos dispõem de informação perfeita acerca dos

preços praticados e não há qualquer cooperação explícita ou tácita68. Sendo assim, pode-se dizer

que um mercado perfeitamente competitivo é aquele em que todos os participantes do mercado

são tomadores de preços.

Entende-se que um indivíduo é tomador de preço quando suas decisões não têm o

poder de afetar o preço do mercado e, consequentemente, não tem influência direta na tomada

de decisões de outros agentes69. Dessa forma, por exemplo, caso um produtor aumente o preço

de um bem que produz, a ação não afetará o preço dos demais e outros produtores continuarão

transacionando com o preço inicial. Na verdade, o produtor que aumentar o preço será

prejudicado porque não irá realizar qualquer transação, na medida em que se pressupõe que

existe informação perfeita no mercado e os compradores realizarão negócios com aqueles que

oferecerem o preço mais interessante, já que optam pelos preços mais baixos.

Em relação ao produto, este é padronizado. Na concorrência perfeita os compradores

não se importam com quem realizarão trocas e consideram os bens de diferentes produtores

como sendo equivalentes, ou seja, os bens ofertados são considerados idênticos pelos

compradores.

Na concorrência perfeita, há livre entrada e saída de produtores, significa dizer que

não há barreiras ou obstáculos, como regulação ou dificuldade de acesso a recursos bases do

negócio, nem altos custos com abandono e saída do setor70. É possível que haja entrada de

novos players no mercado sem grandes dificuldades.

66 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 290. 67 NUSDEO, Op. Cit., p. 271 68 PINHEIRO; SADDI, Op. Cit., p. 55. 69 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 180. 70 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 181.

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3.2.2 Monopólio

O monopólio é o modelo de estrutura de mercado que representa o extremo oposto da

concorrência perfeita. Nesse modelo, o bem ofertado pode ser homogêneo ou diferenciado71 e,

como o próprio nome sugere, existe apenas um produtor.

No monopólio há uma situação peculiar em que as circunstâncias permitem a

existência de apenas um agente econômico dominando o mercado, sendo ele o único ou o

detentor de parcela substancial do mercado com todos os demais concorrentes atomizados. Isso

se dá pelo fato da existência de certas barreiras à entrada de novos concorrentes, como exemplo,

o controle de um recurso ou insumo escasso, por economias de escala, diferenças tecnológicas

e barreiras criadas por regulações72. Por consequência, ao contrário do mercado de concorrência

perfeita em que os indivíduos não têm o poder de influência sobre preço e comportamento dos

outros agentes, o monopolista pode alterar o preço e aumentar seu lucro por meio da redução

da quantidade produzida, não sendo ele um tomador de preços.

Ocorre que a diminuição da quantidade produzida pelo monopolista afeta o mecanismo

de preço, este é aumentado em decorrência de maior escassez do produto. Pelo fato de ser o

único produtor no mercado, o monopolista tem o poder de diminuir sua produção com a

segurança de não sofrer qualquer prejuízo. Assim, o monopolista pode produzir uma quantidade

determinada, manipular os preços e transacionar com o preço máximo que o mercado está

disposto a pagar73, possibilitando-o a auferir vultuosos lucros provenientes do aumento artificial

que causou no preço. Os altos ganhos até poderiam incentivar empresas a participar do mercado,

no entanto, estas são impedidas de participar devido às altas barreiras de entrada.

Salomão Filho elenca três consequências advindas dos monopólios que são relevantes

ao direito concorrencial74. Primeiro, o aumento artificial do preço, realizado pelo monopolista,

impede certos consumidores de adquirir o produto. O chamado dead-weight loss é esta perda

de utilidade para tais consumidores, uma perda social que consiste no montante de recursos

totalmente desperdiçado, já que não é transferido à empresa nem fica com os consumidores.

Segundo, a destinação dos recursos transferidos. Na medida em que cresce o faturamento dos

monopólios, cresce o valor da posição que estes ocupam no mercado. Assim, com mais recursos

71 OLIVEIRA, G.; RODAS, J. G. Direito e economia da concorrência. São Paulo, Revista dos Tribunais,

2013. p. 169. 72 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 292. 73 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 169. 74 SALOMÃO FILHO, Op. Cit., p. 145.

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e mais importância, os monopólios estariam mais dispostos a alocar esse faturamento em formas

e instrumentos de manutenção deste poder, como por exemplo a corrupção das instituições

públicas, financiamento de campanhas políticas e lobbies de maneira geral. O fato de

monopólios não apresentarem grandes lucros nos balanços oficiais é explicado, muitas vezes,

por altos gastos nas práticas a pouco mencionadas75. Terceiro e último, os monopólios

desestimulam inovações e maior eficiência. Embora, para alguns teóricos, sobretudo

neoclássicos, o monopólio traga maior eficiência decorrente de economia de escala em um

primeiro momento, em momento posterior há forte tendência à acomodação e desincentivo à

inovação, já que desaparece a preocupação com concorrentes.

3.2.3 Oligopólio

A análise do oligopólio é a mais relevante para o presente trabalho, no sentido de que

as interações estratégicas possíveis nesse modelo, que serão analisadas posteriormente sob a

ótica da Teoria dos Jogos, podem ter reflexos no âmbito do Direito Antitruste, caso os agentes

ajam em conluio.

O oligopólio se caracteriza como um mercado com altas barreiras à entrada de novos

concorrentes e um número reduzido de firmas que ofertam produtos homogêneos ou

diferenciados76. Dessa forma, as poucas firmas existentes possuem grande poder de mercado,

que lhes permite afetar os preços praticados. Nessa situação, apesar da possibilidade de haver

competição, o poder de mercado das firmas faz com que elas possam afetar os preços do

mercado. Então, pode-se afirmar que nesse caso a competição é imperfeita. A título de

exemplificação, outra forma de competição imperfeita é a competição monopolística. Nessa

forma, há grande número de produtores competindo, os produtos são diferenciados e a entrada

de novos agentes é livre no longo prazo. Muito comum na indústria de serviços como postos de

gasolina, restaurantes e franquias. O agente tem certa capacidade de fixar preço do seu bem

diferenciado, mas há uma limitação porque há grande número de competidores que produzem

bens próximos77.

A lucratividade e os efeitos finais verificados no mercado, se mais próximo de um

modelo de competição perfeita ou de monopólio, dependerão das interações estratégicas dos

agentes. Assim, se as firmas optarem por agir competitivamente, o resultado da lucratividade e

75 Ibidem, p. 146. 76 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 168. 77 KRUGMAN; WELLS, Op. Cit., p. 337 e OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 167.

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suas características serão semelhantes à de competição perfeita. Caso as empresas ajam

cooperativamente, manipulando preços para maximização dos lucros, em detrimento dos

compradores, o resultado da análise se assemelhará a de um monopólio78. Dessa situação de

diferentes estratégias possíveis de serem tomadas pelos agentes é que se diz que o oligopólio é

um modelo extremamente volátil. É muito comum que os oligopolistas tendam a se unir,

coordenando suas atividades e atuando como unidade, mas em momentos de crise do setor, eles

podem ser incentivados a competir, em busca de fatias maiores do mercado e aumento de poder

econômico79.

É necessário que haja critérios e cuidados na abordagem dos oligopólios para que não

haja conclusões precipitadas e puramente baseadas na análise de monopólios. Salomão Filho

defende que o problema central é “verificar se existe um ‘comportamento típico oligopolista’,

ou seja, verificar se é possível identificar um comportamento ‘racional’ do oligopolista que

possa justificar uma presunção idêntica à que foi feita para os monopólios”80. Na década de

1960, por influência da Escola Estruturalista de Harvard, predominava o pensamento que este

comportamento típico não só existia como era objetivamente identificável, na medida em que

a racionalidade oligopolista consistiria em adotar comportamentos paralelos em relação aos

preços. O comportamento paralelo seria um desdobramento do poder recíproco dos

participantes, já que não haveria incentivos para um membro reduzir seu preço, pois este saberia

que seu comportamento seria acompanhado pelos demais participantes do mercado. Sem obter

ganhos ou espaço no mercado, a única consequência seria a perda de lucratividade para todos

os oligopolistas81.

A Escola Neoclássico de Chicago contestou dois pressupostos fundamentais

defendidos pela Escola de Harvard: a informação perfeita e a reação imediata dos agentes

econômicos. Em relação a suposta informação perfeita, lembra-se que frequentemente os

oligopolistas dissimulam seu próprio comportamento com o intuito de impedir que seus

concorrentes obtenham conhecimentos ou informações relevantes relacionadas a suas

atividades, dando-se como exemplo a prática de concessão de benefícios indiretos aos

consumidores, em alternativa a praticar preços mais baixos. Já em relação a imediata reação

agentes econômicos, afirma que mesmo que obtenha informações acerca de seus concorrentes,

em certos casos, o agente econômico pode estar impedido de tomar medidas de efeito imediato,

78 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 168. 79 NUSDEO, Op. Cit., p. 275. 80 SALOMÃO FILHO, Op. Cit., p. 147. 81 Ibidem, Op. Cit., p. 148.

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como no caso de uma empresa que estiver operando em sua capacidade máxima. Nesta

circunstância, a curto prazo será impossível, por exemplo, aumentar sua produção para

adequação à demanda82.

Portanto, em relação ao problema central, de haver ou não um comportamento

tipicamente oligopolista, parece-nos que a resposta é negativa. No mundo real, é possível

verificar a existência de alto grau de competição entre empresas com elevado grau de

participação no mercado. Além disso, o desenvolvimento da Teoria dos Jogos aplicada aos

oligopólios demonstra que o comportamento e estratégia adotados pelos oligopolistas é

complexo, não sendo totalmente previsíveis suas decisões83.

3.3 As condutas anticoncorrenciais

O presente tópico tem por objetivo estudar as condutas tendentes à dominação dos

mercados, sobretudo as condutas colusivas. Importante ressaltar que não é o objetivo abordar

exaustivamente todos os comportamentos e condutas concorrenciais, mas tão somente uma

visão geral que será importante para a análise do cartel.

Como visto até o momento, não verificamos mercados perfeitamente competitivos ou

agentes econômicos apresentando comportamentos de retidão e idoneidade exemplar. Pelo

contrário, os mercados demonstram ser extremamente complexos e arriscados, repletos de

falhas e imperfeiçoes, sendo regra geral a presença de oportunismos e abusos de poder

econômico.

O poder econômico em si não é razão de preocupação da concorrência, já que ele é

inerente aos mercados. Os agentes econômicos têm diferentes vantagens competitivas,

estratégias e tantos outros fatores que causam discrepância em suas relações com o mercado e

acabam por determinar diferentes níveis de lucratividade, eficiência e poder econômico. O

problema surge na medida em que certos agentes, detentores de significante poder econômico,

influenciam o mercado de forma abusiva e prejudicam a concorrência.

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 (CF) apresenta um

capítulo dedicado aos Princípios Gerais da Atividade Econômica, onde insere no art. 170, inciso

IV, a livre concorrência como um dos fundamentos basilares, determinando a repressão ao

abuso do poder econômico. Também dispõe no art. 173, § 4º que a “lei reprimirá o abuso do

82 Ibidem, p. 149. 83 SALOMÃO FILHO, p. 149.

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poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao

aumento arbitrário dos lucros”84.

Com o objetivo de cumprir as regras constitucionais, através de uma estrutura

institucional capaz de fiscalizar a ordem econômica e impedir práticas anticoncorrenciais ou

abusivas85, entrou em vigor em 2012 a Lei nº 12.529 de 30 de novembro de 2011, que estrutura

o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), dispõe sobre a prevenção e repressão

às infrações contra a ordem econômica e define as práticas passíveis de punição no Brasil. Estas

práticas restritivas, que segundo Oliveira e Rodas são “condutas empresariais que têm por

objeto ou possam produzir, independentemente de culpa, efeitos anticoncorrenciais”86, são

definidas no artigo 36.

Embora a lei nº 12.529/11 apresente uma série de práticas, não se excluem outras

condutas, sendo o rol puramente exemplificativo. No entanto, importante ressaltar que qualquer

prática só poderá ser considerada infração antitruste se preenchidos os requisitos apresentados

ao longo do art. 36. Assim, se um acordo não restringir a livre concorrência, não há que se falar

em conduta anticoncorrencial87.

Conhecida também como Lei de Defesa da Concorrência (LDC) ou Nova Lei

Antitruste Brasileira (NLAB), a lei pouco se alterou no ponto de vista do direito material88.

Também manteve o enfoque híbrido de atuação verificados anteriormente, dividido em controle

de condutas e controle de estruturas89. Em relação ao tema, Salomão Filho defende a ideia de

que, para uma proteção concorrencial mais eficaz, é necessário que sejam aplicados simultânea

e conjuntamente estes dois subsistemas de controle, especialmente quando se trata de carteis,

em que há grande dificuldade em determinar qual é a sede mais adequada a se tratar90. O autor

lembra o caso dos Estados Unidos, que tradicionalmente disciplinava os carteis entre os

comportamentos anticoncorrenciais, estando estes sujeitos durante muito tempo a rígida

disciplina de ilícitos per se. Em situação oposta seguia a Europa, com evidente influência da

tradição germânica, onde a tendência era analisar os carteis como estruturas que deveriam ser

previamente controladas91.

84 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 85 CADE. Guia prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. São Paulo: CIEE, 2007. p. 11. 86 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 48. 87 GABAN, E. M.; DOMINGUES, J. O. Direito Antitruste. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 132. 88 FORGIONI, Op. Cit., p. 123. 89 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 131. 90 SALOMÃO FILHO, Op. Cit., p. 18. 91 Ibidem, p. 20.

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A regra per se determina que ao se configurarem certas práticas o ato já poderá ser

julgado como ilegal, sem a necessidade de investigações mais aprofundadas92, desobrigando a

autoridade antitruste de realizar análise mais detalhadas do ato e seus reflexos93. Na opinião de

Gaban e Domingues, a ilicitude per se guarda semelhanças com o chamado tipo penal de mera

conduta, em que não é “necessário avaliar-se o resultado da prática para aferir-se seus efeitos

deletérios à sociedade94”. O motivo pelo qual é incluída esta modalidade de ilicitude é a

baixíssima probabilidade de que tais práticas venham a produzir efeitos positivos à sociedade e

à concorrência95.

A regra da razão considera ilegais apenas as práticas que restrinjam a concorrência de

forma não razoável, diferindo, portanto, com a regra per se na quantidade de informações

necessárias para respaldar uma decisão96. Esta regra foi originariamente elaborada nos Estados

Unidos, com objetivo de tornar viável a aplicação do direito concorrencial97. Isso porque o

Sherman Act, devido a sua abrangência e não diferenciação das práticas de efeitos negativos

ou positivos, permitia em tese que fossem declarados ilícitos grande parte dos contratos

comerciais. A regra da razão estabeleceu um novo parâmetro ao restringir a aplicação da lei

apenas aos contratos que causassem uma desarrazoada restrição ao comércio. Embora tenha

enfrentado certa resistência inicial, acabou se firmando de maneira relativamente rápida98.

Por causa dessa restrição de aplicação da lei é que Forgioni considera ser a regra da

razão uma “válvula de escape”, que seria uma técnica destinada “a viabilizar a realização de

determinada prática, ainda que restritiva da concorrência99”, segundo a autora:

A aplicação literal do texto normativo, sem qualquer flexibilização, pode gerar efeitos

opostos àqueles desejados. É necessário que a Lei Antitruste contenha meios técnicos

que permitam à realidade permear o processo de interpretação/aplicação das normas

nela contidas. A estes meios técnicos denominados “válvulas de escape”.100

Dentro das condutas anticoncorrenciais, ou práticas restritivas, estas podem ser

divididas em unilaterais ou colusivas. As condutas unilaterais são aquelas executadas

92 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 83. 93 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

p. 199. 94 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 84. 95 Ibidem, p. 84. 96 Ibidem, p. 83. 97 SALOMÃO FILHO, Op. Cit., p. 173. 98 Ibidem, p. 173. 99 FORGIONI, Op. Cit., p. 194. 100 Ibidem, Op. Cit., p. 194.

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individualmente pelos agentes econômicos. Por sua vez, as condutas colusivas são executadas

conjuntamente, de forma concertada, e são comumente referidas como casos de carteis101.

3.3.1 Condutas anticoncorrenciais unilaterais

As condutas anticoncorrenciais unilaterais são mais conhecidas pela doutrina e

jurisprudência, tanto nacional quanto internacional, como casos de abuso de posição

dominante, ou também abuso de poder de mercado. Estes abusos podem ser considerados como

condutas unilaterais que tem como objetivo a eliminação da concorrência. Entre alguns

exemplos, temos: aumento abusivo de preços, discriminação de rivais, preços predatórios,

políticas promocionais, venda casada, acordos de exclusividade, aumento de custos dos rivais

(price-squeeze), recusa de venda, fixação de preço de revenda etc.

3.3.2 Condutas anticoncorrenciais colusivas

As condutas colusivas são preocupantes pois podem levar à dominação de mercado102.

Os agentes econômicos envolvidos podem reproduzir condições monopolísticas, gozando de

posição de indiferença e independência em relação a outras empresas, diminuindo

oportunidades de negócios para não participantes, e por isso são tradicionalmente

regulamentados pelas legislações antitruste103.

Os acordos realizados entre os agentes econômicos não são sempre ilegais ou

proibidos, alguns deles são aceitos, como no caso de gerar eficiências ao mercado sem

prejudicar a livre concorrência104. Assim, é de extrema importância e cabe aos órgãos de defesa

da concorrência distinguir os efeitos causados por esses acordos, já que suas decisões causam

grande impacto no desempenho de um mercado. Em relação ao tema, Gaban e Oliveira

observam que:

Os órgãos de defesa da concorrência precisam saber distinguir, dentre esses acordos,

os que reduzem a concorrência dos que a promovem, ou pelo menos distinguir

daqueles que são neutros em termos de concorrência daqueles que são prejudiciais,

uma vez que uma atuação muito restritiva por parte do Estado pode inviabilizar

arranjos comportamentais benéficos à concorrência e até mesmo, via de consequência,

inviabilizar mercados com dinâmicas revestidas de certas peculiaridades, como é o

101 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 139. 102 SALOMÃO FILHO, 2007a, p. 260. 103 FORGIONI, Op. Cit., p. 335. 104 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 158.

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caso de mercados oligopolizados, plasmados de poder de monopólio e/ou de

monopsônio105

Assim, dentro das condutas colusivas, levando em consideração os mercados

relevantes em que atuam os agentes, temos ainda a divisão entre acordos horizontais e acordos

verticais.

Os acordos verticais são aqueles firmados entre agentes econômicos que desenvolvem

suas atividades em mercados relevantes diversos, mas por vezes complementares106. Os acordos

horizontais, por sua vez, são aqueles firmados entre agentes econômicos inseridos num mesmo

mercado relevante, que estão em relação direta de concorrência.

A respeito do mercado relevante, este é considerado como “aquele em que se travam

as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo

analisado”107. A verificação do mercado relevante é fundamental para nossa análise, já que é

pressuposto de incidência da Lei Antitruste108.

Evidentemente, a delimitação do mercado relevante é metodológica, já que inexistem

modelos definitivos ou critérios de fácil verificação e precisão. Para se analisar o mercado

relevante devem ser levados em consideração dois aspectos, segundo Forgioni

“complementares e indissociáveis”, que são: o mercado relevante geográfico e o mercado

relevante do produto ou serviço.

O mercado relevante geográfico é a área física onde ocorrem as relações de

concorrência, ou a parcela territorial em que um agente pode aumentar o preço sem que: os

consumidores busquem fontes alternativas em outra área, ou os fornecedores de outras áreas

ofereçam bens e serviços na área em questão109. Em outras palavras, é a área de influência de

um agente, na qual a subida do preço não provoca grandes impactos no comportamento dos

consumidores no sentido de buscar fornecedores alternativos em outras áreas, tampouco

interfere na ação dos fornecedores de bens substitutos de outras áreas a respeito de oferecê-los

na área referida. Já o mercado relevante do produto ou serviço, também chamado de mercado

relevante material, é “aquele em que o agente econômico enfrenta a concorrência, considerado

o bem ou serviço que oferece”110. Neste, consideram-se os bens ou serviços e sua relação como

produtos que guardem alguma similaridade ou fungibilidade.

105 Ibidem, p. 159. 106 FORGIONI, Op. Cit., p. 336. 107 Ibidem, p. 212. 108 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 93. 109 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 96. 110 FORGIONI, Op. Cit., p. 219.

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3.3.2.1 Condutas anticoncorrenciais colusivas verticais

Este tipo de conduta envolve agentes que atuam em mercados relevantes diversos,

muitas vezes complementares111. Como visto, a empresa pode, para exercer sua atividade, obter

seus insumos por meio de setor internalizado ou pode recorrer ao mercado para obter ou

fornecer bens ou serviços. Nesse sentido, para obter melhores resultados, poderá a empresa se

beneficiar de acordos verticais. Dentro desses acordos verticais, é possível que os agentes

econômicos, no momento da confecção do contrato, insiram cláusulas conhecidas como

restrições verticais, que são “estipulações contratuais geralmente inseridas nos acordos

verticais que restringem a liberdade de atuação do distribuidor ou do fornecedor112.

As restrições verticais mais comuns são: exclusividade, divisão territorial, restrições

sobre preços de recenda, vendas casadas e concessão de descontos de fidelidade e incentivos

diversos, podendo causar impactos competitivos relevantes113.

Os acordos verticais nem sempre são prejudiciais. De fato, é necessário que se faça

uma análise acurada de cada situação, sobretudo porque esta ponderação é indispensável à

caracterização do art. 36, caput, da lei 12.529/11114.

Como efeitos pró-concorrenciais dos acordos verticais, Forgioni cita: economias de

escala e diminuição dos custos de transação; facilitação da entrada de novos agentes

econômicos no mercado; coibição de free riders; inibição da concentração dos distribuidores;

e preservação da imagem do produto115.

Já os efeitos anticoncorrenciais que poderiam ser provocados por restrições verticais

seriam: fechamento do mercado por perda de canais de escoamento de produção; aumento dos

custos de alguns dos concorrentes; exploração de falhas de informação dos consumidores;

aumento dos preços aos consumidores; e o mais importante para nosso estudo, que é a

facilitação de carteis, já que pode haver diminuição do poder dos compradores de forçar

fabricantes a concorrerem entre si116.

111 Ibidem, Op. Cit., p. 336. 112 Ibidem, Op. Cit., p. 359. 113 FORGIONI, Op. Cit., p. 359. 114 Ibidem, p. 360. 115 Ibidem, p. 362. 116 Ibidem, p.369 e ss.

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3.3.2.2 Condutas anticoncorrenciais colusivas horizontais: carteis

As práticas colusivas horizontais são consideradas como tendo o maior potencial de

dano ao mercado e motivo é muito simples: as empresas que deveriam competir entre si

cooperam em detrimento do bem-estar coletivo117.

O cartel é um acordo firmado entre concorrentes, que tem como objetivo aumentar o

lucro conjunto destes. Para a Secretaria de Direito Econômico (SDE), o cartel “é um acordo

entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou quotas de produção, divisão de

clientes e de mercados de atuação”118. Nas lições de Gaban e Oliveira:

Em sentido amplo, cartel representa a restrição e até a eliminação da concorrência

entre um conjunto de empresas, com a finalidade de auferir lucros maiores. A estrutura

de oferta vigente é fixada e as participações do mercado são mantidas. Com a ação

coordenada, cada empresa tem condições de praticar preços e conseguir lucros

maiores119

Assim, os participantes do cartel arquitetam suas ações desconsiderando a

concorrência e prejudicando o bem-estar econômico, transferindo renda da sociedade para os

integrantes do conluio, promovendo controle e lucratividade do mercado semelhantes aos

verificados em situação de monopólio120.

Não se confundem cartel e oligopólio, já que este último apenas constitui um regime

ou estrutura de mercado em que há poucas empresas participantes. No entanto, é verdade que

o pequeno número de participantes em um mercado pode facilitar a existência de um cartel.

Além desse caso, outros fatores podem tornar mais provável a ocorrência de carteis. Forgioni

cita, por exemplo: a homogeneidade do produto, já que quanto mais uniformes os bens ou

serviços, mais difícil de se quebrar o cartel pela introdução de diferenciações; baixa elasticidade

da procura em relação ao preço, pois se a quantidade de produtos vendidos se mantem estável

mesmo com aumento de preço, as empresas podem elevar os preços com maior facilidade e

auferir maiores lucros; existência de barreiras de entrada, pois o cartel é mais provável e

estável com número reduzido de agentes, já que novos competidores podem ter incentivos a

não colaborar com o cartel; mercado em retração, pois os agentes que se encontram em situação

de crise e maior fragilidade são mais suscetíveis a participação de carteis; estrutura do mercado

dos adquirentes do produto, na existência de poucos compradores, os possíveis

117 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 53. 118 SDE. Cartilha de combate aos carteis e programa de leniência. Brasília: SDE, 2009. p. 06. 119 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 160. 120 Ibidem, p. 160.

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descumprimentos do cartel são mais facilmente detectáveis, fato que desestimula traições entre

os membros e aumenta a possibilidade de sucesso do cartel121. Importante ressaltar que as

condições acima elencadas são tão somente facilitadoras do cartel, sendo a verificação de

algumas destas insuficientes para demonstrar a existência do mesmo122.

Atualmente, é o art. 36, §3º, I, da NLAB, transcrito acima, que remete à eventual

ilicitude das práticas de “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente” sob as

formas de fixação de preços, produção, divisão do mercado, fraudes em licitações etc. Trazendo

a tradicional definição de cartel para o contexto da lei e o que foi desenvolvido a respeito das

condutas dos agentes econômicos e seus reflexos, é necessário ressaltar que se um acordo não

restringe a livre concorrência ou não incide nas hipóteses do art. 36, não há que se falar na

existência de cartel123.

3.4 Estratégia cooperativa e cartel sob perspectiva da teoria dos jogos

Passa-se, agora, a análise do comportamento estratégico dos players e os fatores que

favorecem ou dificultam a cooperação, que influi diretamente na possibilidade de existência de

cartel.

3.4.1 Introdução

A teoria dos jogos é considerada uma das teorias econômicas de maior potencial

transformador da análise de condutas dos agentes econômicos. O motivo é que ela oferece

instrumental muito útil para a análise de dois elementos-chave para a análise das condutas, que

são: resultado e motivação. O resultado decorre diretamente da teoria; e a motivação,

indiretamente, a partir de sua crítica124.

Nesse sentido, analisaremos o comportamento dos agentes econômicos com base nos

estudos da teoria dos jogos, estudando os reflexos trazidos pelas interações estratégicas, tanto

no tocante aos carteis quanto na negociação dos acordos de leniência, que serão abordados

posteriormente.

121 FORGIONI, Op. Cit., p. 347. 122 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit, p. 56. 123 FORGIONI, Op. Cit., p. 341. 124 SALOMÃO FILHO, Op. Cit., p. 25.

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Primeiramente, é necessário definir os tipos de jogos que serão estudados. A teoria dos

jogos trata somente dos jogos envolvendo decisões estratégicas, mais precisamente as decisões

em que não só se contemplam objetivos individuais e possibilidades de escolha, mas também

os objetivos e possibilidades de escolha de outros jogadores. Dessa forma, estão excluídos da

análise jogos que não apresentam decisões estratégicas. Jogos de pura sorte, como apostas em

roleta de cassino, ou jogos de pura habilidade, como uma disputa de 100 metros de atletismo,

por exemplo, não são nosso objeto de estudo125.

Também é necessário delimitar o que pode ser considerado um jogo. Segundo Fiani,

um jogo é “uma representação formal que permite a análise das situações em que agentes

interagem entre si, agindo racionalmente”126. Da definição devemos fazer as seguintes

considerações: um jogo é dito como modelo formal porque a teoria dos jogos envolve técnicas

de descrição e análise preestabelecidas. O agente é denominado jogador, podendo este

representar um indivíduo, por exemplo um empresário, ou um grupo de indivíduos, por exemplo

empregados da empresa. O jogo deve ter interações, ou seja, as ações de cada jogador,

consideradas individualmente, afetam as ações dos demais. Assume-se que os jogadores são

racionais e empregam os meios mais adequados na busca de seus objetivos, e também levam

em consideração a escolha e o processo estratégico da tomada de decisão dos outros jogadores.

Um modelo é a representação simplificada de uma situação de interação estratégica

infinitamente mais complexa. Assim, é importante que o modelo incorpore os elementos

realmente significativos e relevantes para possibilitar uma análise coerente e útil127. Existem

algumas formas muito conhecidas e utilizadas para a apresentação de um jogo, como a forma

estendida e a forma normal, também denominada forma estratégica. A forma normal oferece

todas as informações básicas do jogo, como os jogadores, suas opções estratégicas e suas

recompensas. É considerada a modelagem mais conveniente para casos de jogos simultâneos

com apenas dois jogadores, como o clássico dilema do prisioneiro, além de ser estruturada com

linhas e colunas que permitem uma fácil visualização do jogo128.

Os processos de interação estratégica em que os jogadores decidem ser conhecer as

decisões dos demais, como ocorre no jogo do dilema do prisioneiro, podem ser tratados como

jogos simultâneos. Já os processos de interação estratégica em que os jogadores decidem em

uma ordem predeterminada e conhecem o que foi decidido na etapa anterior, podem ser

125 FIANI, Ronaldo. Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 14. 126 Ibidem, p. 12. 127 FIANI, Op. Cit., p. 43. 128 Ibidem, p. 50.

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analisados como jogos sequenciais. Além desses dois tipos de jogos, ainda existem os jogos

iterados. Estes últimos, também conhecidos como jogos repetidos, são processos de interação

estratégica que se desenrolam no tempo, ou seja, possuem ou vão construindo uma história129,

como no caso do primeiro jogo, logo abaixo. Como veremos, ações coordenadas não são

facilmente executáveis, sobretudo quando os jogos têm rodada única, como no dilema do

prisioneiro. Veremos que uma das possibilidades de se aumentar as chances de cooperação é a

repetição dos jogos, que possibilita a construção de: um histórico, uma reputação, um vínculo

relacional e eventuais represálias quando há traição de um jogador.

Serão apresentados neste capítulo dois jogos, baseados em um curso130 disponível

online do professor Tobias Kretschmer da Universidade de Munique. Tratam-se de aulas

extremamente didáticas que abordam os conceitos fundamentais da teoria dos jogos e seus

reflexos Estratégia Competitiva. O primeiro jogo é um jogo iterado de rodadas finitas, que

ilustra as estratégias de uma empresa fornecedora de lâmpadas e do Comitê Organizador dos

Jogos Olímpicos. O segundo jogo é um jogo iterado de rodadas infinitas, que ilustra as

estratégias de duas produtoras de diamantes, simulando as interações encontradas em um

oligopólio e sua relação com cartel.

3.4.2 Jogos iterados finitos

Imaginemos a seguinte situação: tendo em vista a preparação para os Jogos Olímpicos

no Rio de Janeiro em 2016, o Comitê Organizador das Olimpíadas deverá realizar a compra de

500 lâmpadas para iluminar a Cidade Olímpica. A empresa escolhida e contratada para o

fornecimento dos produtos consegue produzir e instalar 100 lâmpadas por mês, portanto, serão

necessários 5 meses para a execução completa.

Evidentemente, até a abertura dos jogos, todas as lâmpadas deverão estar devidamente

instaladas. Portanto, podemos dizer que o modelo de análise será de jogos iterados finitos,

representados por 5 rodadas idênticas e bem definidas, uma a cada mês. Tais informações são

conhecidas tanto pela empresa quanto pelo comitê organizador.

Em relação as estratégias, todo mês, a empresa deverá decidir acerca da entrega dos

produtos, podendo optar por (a) oferecer lâmpadas de alta qualidade, com valor de mercado de

R$ 45.000,00 e custo de produção de R$ 15.000,00; ou (b) oferecer lâmpadas de baixa

129 Ibidem, p. 259. 130 KRETSCHMER, Tobias. Competitive Strategy. Disponível em:

https://www.coursera.org/learn/competitivestrategy. Acesso em: 05 de jul. 2015.

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qualidade, com valor de mercado de R$ 30.000 e custo de produção de R$ 12.000,00. Já o

comitê organizador deverá decidir se (a) pagará o preço inicialmente acordado de R$ 30.000,00

ou (b) se recusará a pagar o valor combinado, renegociando e pagando R$20.000,00.

Assim, temos o jogo disposto da seguinte maneira:

Figura 1 – Jogo das lâmpadas representado na forma normal.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Os jogadores estão descritos com letras maiores, à extrema esquerda e no canto

superior, sendo a empresa e o comitê organizador, respectivamente. As opções estratégicas da

empresa estão representadas em linhas, sendo (a) fornecer lâmpadas de alta qualidade e (b)

fornecer lâmpadas de baixa qualidade. As opções do comitê organizador estão representadas

nas colunas, sendo (a) aceitar o preço inicialmente estabelecido e (b) renegociar preço e pagar

valor menor. A tabela interna apresenta quatro células, sendo cada uma delas a representação

de uma combinação das opções dos jogadores. Por exemplo, a célula superior à esquerda

representa a interação em que a empresa opta por fornecer lâmpadas de alta qualidade e o comitê

organizador aceita pagar o preço preestabelecido. Dentro de cada célula, informa-se os payoffs

dos jogadores, sendo o da esquerda referente ao jogador alocado à esquerda, no caso a empresa,

e o segundo payoff referente ao jogador alocado acima da tabela, no caso o comitê organizador.

Por exemplo, na célula inferior à direita, o payoff da empresa será de R$8.000,00 e o do comitê

organizador será de R$10.000,00.

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Analisando cada um dos payoffs, observamos que na primeira célula, em que a

empresa fornece lâmpadas de alta qualidade e o comitê aceita pagar o preço inicial, temos que:

a empresa, fornecendo produtos com custo de R$15.000,00, recebendo o valor de R$30.000,00

do comitê, tem resultado positivo de R$15.000,00; e o comitê, ao receber produtos com valor

de mercado de R$45.000,00 e pagando o preço de R$30.000,00, tem resultado positivo de uma

economia de R$15.000,00.

Na segunda célula, em que a empresa fornece lâmpadas de alta qualidade, mas o

comitê renegocia seu preço, temos que: a empresa, fornecendo produtos com custo de

R$15.000,00, recebendo o valor de R$20.000,00 do comitê, tem resultado positivo de

R$5.000,00; e o comitê, ao receber produtos com valor de mercado de R$45.000,00 e pagando

o preço de R$20.000,00, tem resultado positivo de uma economia de R$25.000,00.

Na terceira célula, em que a empresa fornece lâmpadas de baixa qualidade, mas o

comitê aceita pagar o preço inicial, temos que: a empresa, fornecendo produtos com custo de

R$12.000,00, recebendo o valor de R$30.000,00 do comitê, tem resultado positivo de

R$18.000,00; e o comitê, ao receber produtos com valor de mercado de R$30.000,00 e pagando

o preço de R$30.000,00, tem resultado de R$0, sem nenhuma economia.

Na quarta célula, em que a empresa fornece lâmpadas de baixa qualidade e o comitê

renegocia seu preço, temos que: a empresa, fornecendo produtos com custo de R$12.000,00,

recebendo o valor de R$20.000 do comitê, tem resultado positivo de R$8.000,00; e o comitê,

ao receber produtos com valor de mercado de R$30.000 e pagando o preço de R$20.000, tem

resultado de uma economia de R$10.000,00.

Dispondo dessas informações, verificamos que a situação ideal e mais justa seria

aquela representada na primeira célula, em que ambos os jogadores cumprem suas promessas,

onde a empresa fornece produtos de melhor qualidade e o comitê paga o preço inicialmente

acordado. No entanto, também é possível verificar que há forte incentivo para os dois jogadores

não cumprirem o acordo a fim de maximizar seus ganhos. Vejamos os motivos para cada

jogador.

Sob o ponto de vista da empresa, conforme verificamos na figura abaixo, ela

maximizará seus ganhos sempre que fornecer lâmpadas de baixa qualidade. Isto porque na

hipótese de o comitê aceitar pagar o preço inicial, haverá ganho de R$3.000 caso sejam

fornecidos produtos de baixa qualidade, pois o payoff possível sobe de R$15.000,00 para

R$18.000,00. Também, na hipótese de o comitê renegociar o preço, haverá ganho de R$3.000

caso sejam fornecidos produtos de baixa qualidade, pois o payoff possível passa de R$5.000,00

para R$8.000,00.

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Figura 2 – Análise dos payoffs da empresa: incentivo a fornecer produtos de baixa qualidade.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Sob o ponto de vista do comitê, em qualquer situação, este também maximizará seus

ganhos sempre que renegociar o preço. Isto porque na hipótese de a empresa fornecer lâmpadas

de alta qualidade, haverá ganho de R$10.000,00 caso seja renegociado o preço, pois o payoff

possível sobe de R$15.000,00 para R$25.000,00. Da mesma forma, na hipótese de a empresa

fornecer lâmpadas de baixa qualidade, haverá ganho de R$10.000 caso seja renegociado o

preço, pois o payoff possível sobre de R$0,00 para R$10.000,00.

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Figura 3 – Análise dos payoffs do comitê organizador: incentivo a renegociar preço.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Portanto, é possível concluir que, caso esse jogo se desse em uma única rodada, os

indivíduos tenderiam a optar pela alternativa que lhes garantisse maior retorno, ou seja, a

empresa forneceria lâmpadas de baixa qualidade e o comitê renegociaria o preço, situação

representada na última célula.

Em jogos iterados é muito comum que os jogadores se utilizem de ameaças, com o

objetivo de tentar promover a cooperação e evitar a traição. Nessa situação, por exemplo,

imaginemos que a empresa ameace o comitê, dizendo que caso o comitê negocie o preço em

qualquer dos meses, a empresa fornecerá lâmpadas de baixa qualidade em todos os outros meses

subsequentes. Por sua vez, o comitê ameaça a empresa dizendo que caso a empresa forneça

lâmpadas de baixa qualidade, o comitê negociará o preço em todos os outros meses

subsequentes. Seriam estas ameaças suficientes para garantir a cooperação entre os jogadores?

Responderemos esta pergunta utilizando o método da indução reversa, ou backward induction.

A indução reversa é um método muito eficaz utilizado na análise de jogos iterados

finitos. A ideia principal deste método é analisar o jogo de trás para a frente, indo das

recompensas dos jogadores na última rodada até a primeira131, procurando-se identificar sempre

as melhores opções para cada jogador. Dessa maneira, primeiramente se considera a melhor

131 FIANI, Op. Cit., p. 231.

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ação a ser tomada na última rodada, depois na penúltima, e assim sucessivamente até a chegada

à primeira rodada, encontrando em todas elas a melhor alternativa para o jogador.

No último mês as ameaças são totalmente inúteis, já que não existe uma rodada

posterior que possibilite executar a punição ao jogador traidor. Tendo isso em mente e levando

em consideração o forte incentivo dos jogadores de maximizar seus ganhos e não cooperar, é

possível afirmar que o equilíbrio do jogo está na célula inferior à direita, marcada com uma seta

na figura abaixo.

Figura 4 – Ponto de equilíbrio no mês 5: dupla não-cooperação.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Sabendo que no mês 5 definitivamente não haverá cooperação, não é interessante

cooperar no mês 4, pois não faz sentido considerar a ameaça de punição do outro jogador se

não haverá, de qualquer forma, cooperação na próxima rodada. A estratégia de cooperar no mês

não é interessante pois muito provavelmente implicará em perdas. Assim, no mês 4, o equilíbrio

também estará na célula de dupla não-cooperação. Pelo mesmo raciocínio, de não haver

cooperação no mês 4, também não é interessante cooperar no mês 3, e assim sucessivamente

até o primeiro mês. Dessa forma, em todas as rodadas, os jogadores tenderão a não cooperar.

Portanto, na última rodada, nenhum dos jogadores se preocupará com as

consequências que sua escolha trará em jogadas futuras pelo simples fato do jogo terminar

depois desta interação. Os players se comportarão como se estivesses num jogo de rodada única,

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optando sempre pela estratégia dominante132. Esse é o chamado endgame effect, ou efeito fim

de jogo. Assume-se que mesmo em jogos finitos muito longos, o fato de haver um final de jogo,

e consequentemente uma impossibilidade de retaliação após a última rodada, torna a

cooperação improvável. Em jogos iterados finitos semelhantes, os jogadores tenderão a utilizar

a estratégia não-cooperativa adotada na última rodada, assim como em todas as outras,

independentemente da quantidade de rodadas, ou seja, não importa se o jogo se repetirá 2 ou

1000 vezes, pela análise da indução reversa, o endgame effect faz com que os jogadores não

cooperem em nenhuma rodada.

3.4.3 Jogos iterados infinitos

Nos jogos iterados infinitos não há certeza sobre o fim do jogo ou o número de rodadas

existentes. Apesar do nome, esse tipo jogo não precisa ser interminável, mas apenas ter efeitos

de um jogo infinito, ou seja, os jogadores não possuem informação sobre o número de rodadas

e, consequentemente, não sabem quando e se haverá uma última rodada. Este efeito se dá

exatamente pela ausência do endgame effect verificado nos jogos iterados finitos e, portanto,

impossibilita a aplicação do método de indução reversa.

Para ilustrar um jogo iterado infinito, imaginemos a situação de um cartel de

diamantes: uma empresa da África do Sul e outra da Austrália controlam o mercado de

diamantes utilizados em joias. Cada empresa possui recursos e capacidade produtiva para suprir

a demanda mundial dos diamantes vendidos cada ano. Todo mês de janeiro, as duas se reúnem

para decidir acerca do preço que praticarão. Este jogo é repetido todo ano, com a probabilidade

p de ocorrer no próximo ano.

Em relação as estratégias, as duas empresas têm as mesmas alternativas: (a) agir

cooperativamente, aplicando o preço combinado pelo cartel, dividindo igualmente os ganhos;

ou (b) trair a outra empresa, aplicando um preço menor que o fixado e tomando quase todos os

ganhos para si.

Em relação às ações combinadas e seus payoffs, temos que: na primeira célula, onde

ambas aplicam o preço combinado, o mercado e os ganhos são igualmente divididos. Supondo-

se que o lucro total seja de R$50 milhões, cada player receberá exatamente a metade, ou seja,

R$25 milhões.

132 BAIRD, D. G.; GERTNER, R. H.; PICKER, R. C. Game Theory and the law. Cambridge: Harvard

University Press, 1994. p. 167.

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Na segunda e terceira célula, superior à direita e inferior à esquerda, temos a situação

em que um dos players descumpre o acordo e pratica preço menor do que o preço combinado.

Nessa situação, aquele que traiu o acordo se beneficia substancialmente ao suprir sozinho a

demanda do mercado mundial, tendo um payoff de R$ 49 milhões. Aquele que foi traído não

obtém lucro, ficando com payoff zerado.

Na quarta e última célula, os dois players descumprem o acordo, entrando em uma

competição feroz de guerra de preços, iniciando uma reação em cadeia de diminuição de preços

onde, ao final, ambos têm payoffs zerados.

Assim, temos o jogo disposto da seguinte maneira:

Figura 5 – Jogo do cartel dos diamantes representado na forma normal.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Se o jogo fosse de rodada única, utilizando o mesmo raciocínio semelhante ao do jogo

anterior, observamos que o equilíbrio se encontraria na quarta célula, onde os dois países

descumprem o acordo, já que há forte incentivo para os dois jogadores traírem seu concorrente.

Mas, por se tratar de um oligopólio, e sabendo que os jogadores procuram viabilizar o cartel,

vamos supor que eles firmem o seguinte acordo: quando estabelecido um preço, os jogadores

são obrigados a praticá-lo; caso um deles descumpra o acordo, o outro não cooperará em

nenhuma rodada futura, eliminando qualquer possibilidade de existência de cartel e futuros

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ganhos conjuntos. Então, fazemos a mesma pergunta do jogo anterior, mas agora para um jogo

iterado infinito: seria esse acordo suficiente para assegurar a cooperação?

Para responder a essa pergunta, precisamos analisar os payoffs dos jogadores,

comparando as duas alternativas que possuem. A figura abaixo ilustra os resultados possíveis e

são iguais para os dois jogadores.

Figura 6 – Análise dos payoffs dos jogadores nas estratégias de cooperar e não cooperar.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Cada jogador tem a opção de cooperar (praticar o preço combinado) ou não cooperar

(trair o acordo). Caso os dois jogadores escolham cooperar, ambos dividem os ganhos,

garantindo R$25 milhões cada. Caso um jogador escolha não cooperar e o outro coopere, o

primeiro garantirá um ganho substancial no ano, porém, não haverá mais lucros nos anos

seguintes porque isso fará com que não exista mais. Esta é a chamada estratégia do gatilho, o

jogador coopera até o momento em que o outro “puxa o gatilho”, ou seja, descumpre o acordo.

A partir deste momento, o jogador muda sua estratégia e não mais colabora com o outro.

Parece, então, que a cooperação é a melhor alternativa porque garante ganhos de R$25

milhões a cada ano, e os ganhos de dois anos cooperando já ultrapassam o valor de uma traição

no primeiro ano. No entanto, como ficou destacado na figura 6, não há garantia de que sempre

haverá cooperação. Os payoffs são incertos e dependem da colaboração alheia. Esta incerteza

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provém da probabilidade p citada no enunciado, pois não há certeza absoluta da continuidade

do cartel e os jogadores consideram essa informação. Então, na verdade, o payoff esperado se

dá da seguinte maneira:

Figura 7 – Comparativo dos payoffs das estratégias de cooperar e não cooperar: fórmula com probabilidade p de

haver cooperação na próxima rodada.

Fonte: Adaptado de Kretschmer (2015)

Considerando que o outro jogador irá cooperar, o payoff esperado na opção de cooperar

no primeiro ano se dá pela expressão da figura 7, que é o valor de R$25 milhões multiplicado

por 1 dividido por (1 – p).

A probabilidade de haver cooperação no ano seguinte, representada pela incógnita p,

tem valor entre 0 e 1 (0 > p > 1), sendo maior a probabilidade de haver cooperação quanto mais

próximo p for de 1, e consequentemente, menor a probabilidade quanto mais próximo p for de

0.

Para ilustrar, imaginemos que seja alta a probabilidade de haver cooperação no ano

seguinte: com p aproximando-se de 1, o valor do payoff esperado para cooperação aumenta

porque o fator que multiplica os R$25 milhões terá um divisor de valor baixo, que ao ser

dividido por 1 representará um valor alto, que ao ser multiplicado por R$25 milhões

representará payoff maior que o da estratégia de traição. Na situação inversa, caso seja

baixíssima a probabilidade de cooperação no ano seguinte: com p aproximando de zero, o

divisor tenderá a 1, que dividido por 1 e multiplicado por R$25 milhões aproximará aos mesmos

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R$25 milhões, representando um payoff substancialmente menor que o da estratégia não

cooperativa, de R$49 milhões. Assim, haverá forte incentivo para: cooperar e cumprir o acordo,

caso o jogador acredite que o outro jogador também irá cooperar; e de descumprir o acordo,

caso o jogador acredite que pode ser traído.

Obviamente, este modelo é muito simplificado se comparado à realidade. Como

ressalta North133, apesar da teoria dos jogos abordar os problemas da cooperação e diferentes

estratégias que alteram os payoffs dos jogadores, existe grande lacuna entre o mundo preciso e

simples da teoria dos jogos e a complexa realidade das interações humanas. Modelos que

assumem jogadores que buscam maximização dos ganhos são claramente simplificadores e não

conseguem abarcar situações mais realistas e complexas. No entanto, são bons referenciais e

nos trazem informações pertinentes acerca dos comportamentos estratégicos dos agentes

econômicos. Com estes modelos, podemos concluir que a cooperação em jogos iterados finitos

é improvável porque o efeito fim de jogo promove forte incentivo a não cooperação,

principalmente quando tomamos como suposição agentes que sempre buscam maximizar seus

ganhos. Em jogos iterados infinitos, como no caso do cartel dos diamantes, a ausência do efeito

fim de jogo possibilita a cooperação entre os jogadores. Porém, essa cooperação só é possível:

quando as expectativas de ganhos na opção de cooperar são superiores à estratégia de não

cooperar, pois a traição implica no sacrifício de perder ganhos futuros e de longo prazo para se

obter outro de curto prazo; e quando houver relativa confiança entre os jogadores. Assim, são

determinantes para a ocorrência da cooperação: os payoffs cooperativos e de longo prazo serem

maiores que os da traição, e a probabilidade de futuras cooperações se concretizarem.

A inerente instabilidade dos carteis decorre desta dúvida dos jogadores quanto à

continuidade e rentabilidade do acordo. Apesar de garantir lucros enquanto funciona, não se

sabe ao certo quando será a última rodada do cartel. Por isso é que se analisa a interação dos

agentes econômicos participantes de carteis por modelos de jogos iterados infinitos. É nesse

ponto que buscam as agências antitruste combater acordos anticoncorrenciais. O acordo de

leniência tem demonstrado ser eficiente e uma das melhores formas de desmantelar um cartel

porque promove maior instabilidade entre os participantes, por meio de criação de crises de

confiança e estímulo a delação.

133 NORTH, Op. Cit., p. 15.

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60

4 ALTERANDO AS REGRAS E PAYOFFS DO JOGO

Feita a análise da cooperação entre os jogadores e do cartel sob perspectiva da teoria

dos jogos, este capítulo pretende apontar os programas de leniência como importantes

instrumentos de investigação e combate aos carteis, os quais significaram verdadeira mudança

nas regras do jogo tanto para os agentes econômicos quanto para o próprio Poder Público. Os

agentes econômicos tiveram seus payoffs significativamente alterados, havendo aumento no

incentivo a não-cooperação e na instabilidade dos carteis. Às agências foi garantido maior poder

investigativo, com processos mais céleres, eficientes e instruídos com provas robustas.

Analisaremos a lógica e os motivos dos programas de leniência para discutir em

seguida, o acordo de leniência sob perspectiva da teoria dos jogos, bem como seus reflexos.

4.1 Programas de Leniência

Pode-se dizer que os programas de leniência ainda são uma experiência relativamente

nova no combate aos carteis. Por isso, sua utilização ainda gera intensos debates e não há

consenso em relação ao modelo ideal a ser utilizado pelas agências antitruste. No entanto, é

inegável que sua utilização colaborou significativamente na detecção e extinção de carteis em

todo o mundo, já que os instrumentos até então utilizados eram inexpressivos e extremamente

limitados.

Como visto anteriormente, os carteis têm o potencial de acarretar enormes prejuízos à

economia, a concorrência e ao bem-estar social. Por isso, o seu combate tem sido uma das

maiores prioridades das agências antitruste de todo o mundo. Mas o grande problema que

enfrentam as agências, em relação a investigação e combate aos carteis, é que estes são

extremamente difíceis de serem detectados. Nesse contexto é que se inserem os programas de

leniência, como uma forma de contornar a difícil missão de detectar os acordos secretos danosos

à concorrência.

A palavra leniência significa suavidade ou brandura. Assim, entende-se por programas

de leniência as políticas de regimes de sanções de agências antitruste, em que se garantem certos

benefícios a coautores de carteis que delatam e fornecem informações acerca de suas

atividades134, fato que, para Marrara, reflete uma “suavização do poder sancionador em relação

134 NEYRINCK, N. Granting incentives, deterring collusion: The leniency policy. Working Paper

Institut D’Etudes Juridiques Européennes, Bruxelas, n.2, p.3, 2009.

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61

àquele que assume a infração e coopera com o Estado no exercício de suas funções

regulatórias”135.

O acordo de leniência, então, seria o instrumento pró-consensual do direito

administrativo concorrencial pelo qual

[...] um ou mais particulares, desde que figurem como coautores de uma infração

concorrencial, propõem-se a colaborar com o Estado no exercício do controle

repressivo para, em compensação, beneficiarem-se ou da extinção de sanções que lhes

seriam aplicadas ou da sua mitigação.136

Para Oliveira e Rodas, o acordo de leniência é uma

[…] transação entre o Estado e o delator, que em troca de informações viabilizadoras

da instauração, da celeridade e da melhor fundamentação do processo, possibilita um

abrandamento ou extinção da sanção em que este incorreria, em virtude de haver

também participado na conduta ilegal denunciada.137

Marrara destaca que no jargão concorrencial muitas vezes utiliza-se o termo “leniente” para

tratar do agente delator. No entanto, este seria um uso incorreto da palavra já que quem age de

forma leniente é o Estado. Portanto, leniente é o Estado, não o delator138.

Podemos observar, das lições de Oliveira e Rodas, várias vantagens da utilização do

acordo de leniência, como a viabilização da instauração, a maior rapidez com que o processo

será conduzido e a melhor fundamentação diante da entrega de provas robustas acerca do cartel.

O programa de leniência é muito criticado pelo fato do Estado negociar e conceder

benefícios a criminosos confessos. Ainda que, num primeiro momento, pareça desarrazoado

que o Poder Público feche acordos com participantes de cartel, de fato, existem motivos

justificáveis e pertinentes para que este o faça.

Os carteis têm evoluído muito no sentido de se manterem secretos e ocultos. Se em

determinado momento da história, alguns deles tinham encontros de participantes explícitos e

periódicos, até mesmo com a confecção de atas de reunião e acordo de vontades manifestadas

em documentos, essas condutas não são mais verificadas. A situação atual é totalmente oposta.

As trocas de informações são dificilmente detectáveis, sobretudo por avanço tecnológico dos

meios de comunicação e muitas dessas infrações são altamente dissimuladas e informalizadas,

dificultando as técnicas clássicas de produção de provas, exigindo-se novas abordagens, como

135 MARRARA, Thiago. Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência: organização, processos e

acordos administrativos. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 331. 136 Ibidem, p. 331. 137 OLIVEIRA; RODAS. Op. Cit., p.244. 138 Ibidem, p. 332.

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escutas e acompanhamento de agentes econômicos, que são muito caras ou juridicamente

polêmicas139.

Os programas de leniência, também, podem ter importante efeito preventivo, já que

com a inserção destes os agentes econômicos sentem a maior instabilidade do cartel criada pelo

incentivo à delação140. Então, teriam os programas de leniência efeito de coibir a formação de

novos carteis por representarem real ameaça de sanção por parte do Poder Público,

desmotivando os agentes econômicos a se organizarem em grupos com objetivo de obter ganhos

às custas do bem-estar da sociedade. Esta estratégia de desestabilização é uma das justificativas

da racionalidade da leniência.141

Nos ordenamentos jurídicos ligados à commom law, é prática comum a concessão de

benefícios processuais a infratores que colaboram nas investigações feitas pelo Poder

Público142. O primeiro programa oficial de leniência se deu em 1978 nos Estados Unidos, sendo

batizado de “Amnesty Program”143. Nesse modelo os infratores que confessassem a prática

ilícita antes do início das investigações teriam a possibilidade de receber o perdão judicial no

âmbito criminal. Não havia garantia alguma de diminuição ou imunização de sanções, já que

ficava a critério do governo americano a eventual concessão após as investigações. O modelo

não obteve sucesso devido ao alto grau de insegurança e risco que corriam os agentes

econômicos, que não tinham nenhuma garantia de possíveis benefícios.

Em 1993 houve relevante mudança com objetivo de ampliar os resultados do

programa, com a edição da Corporate Leniency Program. Diferentemente do modelo anterior,

o novo modelo concedeu imunização automática para a leniência pré-processual, ou seja, de

casos de cartel ainda desconhecidos, e abriu possibilidade de cooperação nas investigações

mesmo depois delas já terem sido iniciadas. Um ano mais tarde, editou-se o Individual Leniency

Program, que possibilitava a leniência para funcionários de empresas infratoras144. Antes destas

modificações, a média de propostas recebidas pelo governo americano era de uma por ano.

Logo depois, a média subiu para mais de uma por mês145.

Na Europa, não havia um programa formalmente previsto até 1990, embora já tivessem

sido concedidos incentivos e reduções de multas administrativas. Foi em 1996 que a Comissão

139 MARRARA, Op. Cit., p. 337. 140 THÉPOT, Florence. Leniency and Individual Liability: Opening the black box of the cartel. The

competition law review, Londres, v.7, n. 2, p. 221-240, 2011. 141 Ibidem, p. 338. 142 OLIVEIRA; RODAS, Op. Cit., p. 245. 143 MARRARA, Op. Cit., p. 332. 144 MARRARA, Op. Cit., p. 332. 145 ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN BAR ASSOCIATION SECTION OF ANTITRUST

LAW, 2003, São Francisco. The modern leniency program after ten years. 10 p.

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Europeia disciplinou a imunidade administrativa e a redução de multas. No entanto, a concessão

dos benefícios dependida da discricionariedade da Comissão. A falta de transparência e

insegurança jurídica deste modelo limitou muito o sucesso do programa, tal qual o primeiro

modelo americano, que precisou de um aprimoramento, realizado em 2006. Após as mudanças,

houve aumento significativo no número de investigações e atualmente grande parte das

investigações europeias são decorrentes de pedidos de leniência146.

4.2 Modelo brasileiro

No Brasil, a leniência foi inserida com a edição da Medida Provisória nº 2.055, de 11

de agosto de 2000, regulamentada pela Portaria do Ministério da Justiça nº 849, de 22 de

setembro de 2000147, depois, disciplinada pelos artigos 35-B e 35-C da Lei nº 8.884 de 11 de

junho de 1991, incluídos pela Lei nº 10.149 de 21 de dezembro de 2000. 148

O primeiro acordo de leniência foi celebrado em 2003, no caso conhecido como cartel

dos vigilantes, que ocorria no Rio Grande do Sul. Com as informações fornecidas pelos

delatores, foi possível investigar e comprovar a ocorrência de reuniões semanais em que eram

planejadas as fraudes às licitações, cobrança de altas taxas para a filiação ao sindicato para

compensações futuras com os lucros do cartel, realização de “palestras” para demonstrar

parâmetros referentes aos cálculos de custos, represálias impostas pelos membros àqueles que

não estavam alinhados, entre outras práticas149. Ao final, o Conselho Administrativo de Defesa

da Concorrência (CADE), impôs multas de 15 a 20% do faturamento bruto do ano anterior a

16 empresas pela prática de cartel, além de condenar administradores das empresas e três

associações de classe. Os delatores tiveram imunidade administrativa e benefícios penais

estabelecidos no acordo150.

Entre 2003 e 2011, foram firmados no Brasil 23 acordos de leniência151. Este número

se mostra relativamente baixo comparado com dados norte-americanos e europeus. Segundo

Marrara152, talvez tenha sido esse um dos motivos para que se tenha alterado o programa de

leniência brasileiro, com a edição da Lei nº 12.529 de 2011. Sob ponto de vista estrutural, o

146 MARRARA, Op. Cit., p. 334. 147 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 259. 148 MARRARA, Op. Cit., p. 334. 149 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 392. 150 MARRARA, Op. Cit., p. 335. 151 CADE. Programa de Leniência. Disponível em:

<http://www.cade.gov.br/Default.aspx?7ebe41cf5cba7ddd6aeb43>. Acesso em: 17 ago. 2015. 152 MARRARA, Op. Cit., p. 335.

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programa continua prevendo as três modalidades de leniência, que são: a pré-processual,

realizada antes do conhecimento da infração pelo CADE; a superveniente, ou concomitante,

que ocorre no curso do processo administrativo; e a leniência plus, que se inicia no âmbito de

um processo administrativo, mas se estende a um outro153. O autor atenta para três modificações

realizadas pela nova lei: a extensão dos benefícios da leniência na esfera penal; exclusão da

vedação de leniência com líderes do cartel; e criação da regra de impedimento de novo acordo,

no prazo de três anos, caso haja descumprimento de um acordo firmado154. Ao todo, entre 2003

a julho de 2015, foram firmados 46 acordos de leniência. Ainda é cedo e, portanto, não é

possível afirmar com certeza até que ponto as últimas mudanças legislativas influenciaram no

número de acordos, já que a procura no Brasil sempre foi e continua relativamente baixa.

4.2.1 Requisitos

O programa de leniência é tratado na Lei 12.529 de 2011, em seu artigo 86. Nele,

estabelece-se que pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração podem celebrar o

acordo de leniência com o CADE, por meio da Superintendência-Geral (SG), tendo a

possibilidade de extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois

terços da penalidade aplicável, desde que haja colaboração efetiva155. A colaboração deve

resultar na identificação dos demais envolvidos na infração (art. 86, I) e na obtenção de

informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação (art. 86,

II). Essas duas exigências são obrigatórias e constituem o denominado conteúdo mínimo do

acordo de leniência. Caso o proponente não possa assumir essas obrigações, a celebração estará

impossibilitada156.

Diferentemente do Termo de Compromisso de Cessação e acordo em concentração,

que têm caráter substitutivo do processo, o Acordo de Leniência é integrativo, sendo impossível

que a Administração Pública proponha a leniência. Já que uma proposta por parte do Estado

contrariaria a finalidade do acordo e a cooperação induzida violaria princípios administrativos

e poderia significar a concessão indevida de privilégios a agentes econômicos infratores157.

Assim, o acordo só pode ser proposto por pessoa jurídica ou física diretamente envolvido em

prática considerada infração anticoncorrencial, e que confessa estar envolvido em tal prática.

153 Ibidem, p. 335. 154 BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Lei de Defesa da Concorrência. Art. 86, §12. 155 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC. Art. 86. 156 MARRARA, Op. Cit., p. 349. 157 Ibidem, p. 341.

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Por sua vez, o CADE deve reconhecer a confissão e sua competência para julgar a prática, caso

contrário, não há preenchimento do requisito pessoal para a celebração do acordo.158

Ainda sobre o requisito pessoal, importante discorrer sobre a questão da possibilidade

de celebração de acordo de leniência por parte de líder de cartel. Anteriormente, no art. 35 – B,

§1° da Lei 8.884 de 1994, havia vedação expressa às pessoas físicas ou jurídicas que “tenham

estado à frente da conduta tida como infracionária” celebrarem acordo de leniência. A regra

não foi recepcionada na nova lei, que não impede que estas pessoas celebrem a transação com

o Estado. O tema é extremamente controverso, já que a verificação de quem esteve à frente da

conduta pode ser extremamente difícil, e comumente há mais de um agente exercendo liderança

na infração. Também, é possível assumir que o líder do cartel pode ser o participante que mais

possui informações relevantes para as investigações, além de que, como bem lembra Marrara,

“a má-fé do líder não exclui a culpabilidade dos outros infratores, que devem ter conhecimento

das regras de comportamento pró-concorrencial”, devendo prevalecer o argumento do benefício

à instrução, aceitando um líder de cartel como colaborador.159

O acordo possui alguns requisitos, elencados no §1° do art. 86, que devem ser

preenchidos cumulativamente. Assim, é necessário que: a empresa seja a primeira a se

qualificar (inciso I); a empresa deve cessar completamente seu envolvimento na infração (inciso

II); a SG não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação (inciso III); e a

empresa confesse participação no ilícito e coopere nas investigações, comparecendo a todos os

atos processuais, sob suas próprias expensas (inciso IV).160 As pessoas físicas poderão celebrar

acordo desde que cumpridos os três últimos requisitos mencionados, como previsto no art. 86,

§2°.

É necessário que se façam algumas considerações acerca destes requisitos. A

expressão “primeira a se qualificar”, do inciso I, não deve ser entendida como a primeira

empresa a realizar uma proposta, mas sim a primeira empresa a ter sua proposta analisada e

aceita. Assim, é possível que uma empresa apresente proposta após outras concorrentes, mas

seja qualificada primeiro, por exemplo, quando a primeira proposta apresentada por outro

candidato não preencheu todos os requisitos. No Brasil, é utilizado um sistema de senhas, tal

qual o marker system verificado nos Estados Unidos e União Europeia, onde se aplica a regra

conhecida como first come, first serve. Nesse sistema, a autoridade pode aceitar o acordo com

base em um mínimo necessário de informações, que deverão ser complementadas dentro de

158 Ibidem, p. 341. 159 MARRARA, Op. Cit., p. 343. 160 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC. Art. 86, §1°.

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prazo estabelecido, geralmente de 30 dias161. Caso não o faça, o candidato ao acordo perde seu

lugar na fila, abrindo possibilidade de um coautor firmar acordo em seu lugar. Este sistema é

utilizado com o objetivo de estimular corrida à delação e, ao mesmo tempo, desencorajar

propostas sem conteúdo. Como dito anteriormente, as pessoas físicas poderão celebrar acordo

desde que cumpram os requisitos dos incisos II, III e IV do §2°, não necessitando ser a primeira

a se qualificar, isso significa que a regra do first come, first serve não se aplica a elas162. Essa

flexibilização possibilita a celebração de diversos acordos com várias pessoas físicas, como

forma de incentivar a delação destas pessoas.

A empresa deve cessar seu envolvimento na infração para ter proposta de leniência

admitida, conforme requisito disposto inciso II do art. 86. No entanto, em alguns casos, a

cessação por parte do candidato a leniência poderá levantar suspeitas dos outros participantes

do cartel, que por precaução, poderão destruir ou alterar as provas, prejudicando a investigação

do conluio. Nesse sentido, podem o CADE e o colaborador combinar a manutenção da prática

com o objetivo de viabilizar a instrução do processo163.

O inciso III, do mesmo artigo, estabelece como requisito que a SG não disponha de

provas suficientes para assegurar a condenação do delator. O requisito é importante porque caso

a SG já tenha as provas necessárias para a condenação, é evidente que a colaboração do delator

será totalmente desnecessária, não implicando em ajuda que justifique a leniência por parte do

Poder Público. Do contrário, seria concedido benefício ao infrator sem qualquer contrapartida,

sendo essa uma hipótese flagrantemente inadmissível.

Se os requisitos não forem cumpridos, a Administração Pública está vinculada a negar

a proposta. No entanto, se a proposta cumpre devidamente os requisitos para a celebração do

acordo, não resta discricionariedade de ação do CADE. Para Marrara, haveria vinculação

quanto à abertura da negociação da leniência, porque os requisitos de admissibilidade estão

especificados na lei164. Segundo ele, “a legalidade repele a possibilidade de se excluir a via pró-

consensual, ou melhor, de se fecharem as portas de um programa de leniência que tem previsão

no ordenamento e requisitos claramente definidos 165.

O §10 do art. 86 prescreve que, caso a proposta seja rejeitada, não importará em

confissão quanto à matéria de fato, tampouco reconhecimento de ilicitude da conduta analisada.

161 MARRARA, Op. Cit., p. 342. 162 TAUFICK, Roberto Domingos. Nova lei antitruste brasileira: a Lei 12.529/2011 comentada e a

Análise Prévia no Direito da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 400. 163 MARRARA, Op. Cit., p.344. 164 Ibidem, p. 346. 165 Ibidem, p. 346.

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Também, não é feita qualquer divulgação sobre o teor da proposta166. No entanto, há questão

sensível quanto a utilização pelas autoridades administrativas dos documentos entregues na

proposta: poderiam esses documentos serem utilizados para fins de investigação futura? O

problema surge porque o mesmo órgão administrativo sancionador que negocia o acordo é o

mesmo que realiza a instrução no processo, e poderia desejar reobter as provas por meio de

investigação, havendo descumprimento do que prescreve o art. 86, §10. Especialistas, incluindo

Marrara, defendem que, a fim de solucionar essa questão, o órgão responsável pela celebração

da leniência não deveria ser o mesmo responsável pela instrução. Assim, embora enquadrados

no CADE, seria criada uma barreira administrativa para afastar o problema de busca de provas

devolvidas, criando-se a blindagem comumente chamada de chinese wall, e como

consequência, daria maior atratividade ao programa por vislumbrarem os delatores mais

previsibilidade. 167

4.2.2 Julgamento e efeitos administrativos da leniência

O §4° do art. 86 estabelece que compete ao Tribunal Administrativo de Defesa da

Concorrência (TADE) verificar o cumprimento do acordo, podendo: decretar a extinção da ação

punitiva da administração pública em favor do infrator, nas hipóteses em que a proposta foi

apresentada sem que houvesse conhecimento prévio168, tratando, então, da leniência prévia ou

pré-processual (inciso I, do §4°); e nas demais hipóteses, reduzir de um a dois terços as penas

aplicáveis, levando em consideração a efetividade da colaboração prestada e boa-fé do infrator

no cumprimento do acordo169, tratando, portanto, da leniência superveniente, ou concomitante

(inciso II, do §4°).

Outra hipótese de pena reduzida é na terceira modalidade de acordo, a chamada

leniência plus. Embora não descrita expressamente dessa maneira, é estabelecida no § 7° do art.

86. A pessoa física ou jurídica que não obtiver habilitação para a celebração do acordo, no curso

do inquérito ou processo administrativo, poderá celebrar com a CG, até a remessa do processo

para julgamento, acordo de leniência relacionado a outra infração, desconhecida pelo CADE170.

Neste caso, o infrator terá redução de 1/3 da pena aplicável no processo em que não obteve

habilitação e os efeitos de uma leniência prévia (inciso I do §4º) em relação à nova infração,

166 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC. Art. 86, §10. 167 MARRARA, Op. Cit., p. 348. 168 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 86, §4º, I. 169 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 86, §4º, II. 170 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 86, §7º.

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desconhecida pelo CADE171. O objetivo desse mecanismo é estimular o efeito dominó, numa

verdadeira reação em cadeia de delações, incentivando os agentes a trazerem novas denúncias

de outros carteis, na tentativa de minimizar suas perdas com eventual condenação.

Ainda sobre a redução, importante mencionar regra do §5° do art. 86, onde se

estabelece que na hipótese de redução de pena em leniência superveniente, do inciso II do §4°,

a multa aplicada ao colaborador não pode ser maior que a menor multa fixada aos demais

infratores. Evidentemente, a regra não se estende ao delator da modalidade de leniência plus,

pois nesse caso não é colaborador, mas um infrator. Nesse caso, terá sua multa imposta

normalmente e depois abatida de 1/3172.

4.2.3 Efeitos à pessoa física

No §6° do art. 86, a lei diz que os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às

empresas do mesmo grupo, bem como seus dirigentes, administradores e empregados

envolvidos na infração, desde que o firmem em conjunto, respeitadas as condições impostas173.

Importante ressaltar que o benefício não é automático174, ou seja, é necessário que as pessoas

físicas firmem acordo conjuntamente com a pessoa jurídica.

Marrara vislumbra três motivos para essa condição. Primeiro, por se tratar a pessoa

jurídica uma ficção, evidente que a cooperação dependerá e se realizará por meio de pessoas

físicas. Assim, a lei desestimula que o acordo seja celebrado pela pessoa jurídica sem apoio das

pessoas físicas. Com a vedação às pessoas físicas a celebrar acordo em momento posterior, elas

são motivadas a ingressar no acordo com a pessoa jurídica, acarretando em obrigações perante

a Administração Pública e reforçando a viabilidade da cooperação. Segundo, com uma eventual

grande quantidade de funcionários, a proposta e celebração de modo dissociado implicaria em

problemas práticos na condução das leniências. Nesse sentido, a celebração conjunta é um

simplificador importante na operacionalização e gestão do programa. Terceiro, a celebração em

separado, da pessoa jurídica e das pessoas físicas, poderia ocasionar conflitos de interesse,

colocando a empresa em contraposição aos seus funcionários, que poderia prejudicar a própria

eficiência e atratividade do programa.175

171 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 86, §8º. 172 MARRARA, Op. Cit., p. 356. 173 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 86, §6º 174 TAUFICK, Op. Cit., p. 407. 175 MARRARA, Op. Cit., p. 360.

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A leniência para funcionários considera todos os funcionários da empresa, não

somente o administrador. O mais importante é que a pessoa tenha atuado em nome da infratora.

Nessas condições, até mesmo um ex-funcionário está apto a firmar o acordo de leniência.

Outro fato importante é que não há nada que impeça um funcionário, ou até mesmo

um ex-funcionário, de celebrar o acordo de leniência antes da empresa, já que seus requisitos

para sua celebração estão bem claros no art. 86. Nessa situação, caso a proposta de acordo por

parte da pessoa física seja aceita, a pessoa jurídica não terá os efeitos deste acordo estendidos a

ela, porque há aplicação da regra do first come, first serve.176

Há ainda, mais um tratamento diferenciado em relação às pessoas físicas. Trata-se das

pessoas físicas autônomas. Em certas práticas, como no caso de carteis em licitação, pode haver

a participação de pessoas físicas que não são os funcionários de uma empresa, como

funcionários públicos ou indivíduos não vinculados a qualquer pessoa jurídica. Elas podem

realizar tanto a leniência prévia quanto a posterior, já que a regra do fist come, first serve, não

se aplica as pessoas físicas. A diferença, no entanto, está no fundamento legal do poder

sancionatório do CADE sobre a pessoa física177. Diferentemente do administrador, que será

penalizado sob fundamento do inciso III, do art. 37 da LCD, à pessoa física autônoma será

aplicado o inciso II, do mesmo artigo, abaixo explicitado:

Art. 37. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às

seguintes penas:

I - no caso de empresa, multa de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento)

do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no último

exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade

empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida,

quando for possível sua estimação;

II - no caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem

como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito,

ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam

atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento

bruto, a multa será entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00

(dois bilhões de reais);

III - no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração

cometida, quando comprovada a sua culpa ou dolo, multa de 1% (um por cento) a

20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa, no caso previsto no inciso I

do caput deste artigo, ou às pessoas jurídicas ou entidades, nos casos previstos no

inciso II do caput deste artigo.

176 Ibidem, Op. Cit., p. 361. 177 Ibidem, Op. Cit., p. 361.

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4.2.4 Responsabilização no âmbito criminal

O art. 87 da LDC estabelece que, nos crimes contra a ordem econômica, e demais

crimes diretamente relacionados à pratica do cartel a celebração do acordo de leniência acarreta

em suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação

ao agente beneficiário. No parágrafo único do mesmo artigo, fica estabelecido que no caso de

cumprimento do acordo de leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes

que trata o caput do art. 87.178

Em comparação com a lei anterior, houve significativa mudanças na nova lei, que

ampliou benefícios ao colaborador com o objetivo de promover maior atratividade ao programa

de leniência. O modelo antigo abria margens a persecuções penais com base nos crimes

licitatórios ou em crime de quadrilha. Agora, a leniência também atinge a persecução penal

quanto a crimes de cartel em licitações, práticas coletivas de boicote, ameaças contra licitantes

concorrentes em contratações públicas, crime de quadrilha ou bando do Código Penal e

qualquer crime enquadrada como infração administrativa contra a ordem econômica179.

Questão mais polêmica em relação aos efeitos no âmbito penal é a suposta

inconstitucionalidade do acordo de leniência, rechaçada de pronto por Marrara. Para tanto, o

autor aponta quatro fortes argumentos, a saber: primeiro, o princípio da supremacia do interesse

público; segundo, a relação da acessoriedade dos efeitos penais aos efeitos administrativos;

terceiro, a reserva legal prevista constitucionalmente em relação a competência do Ministério

Público (MP); e quarto, a permeabilidade do processo administrativo empregado no controle

de condutas e participação do MP.

A supremacia do interesse público está relacionada ao interesse maior em se combater

uma prática extremamente difícil de ser descoberta, em compensação ao alegado prejuízo em

agir de forma leniente contra um infrator. Como discutido, há extrema dificuldade em detectar

carteis, sendo a mais eficiente forma o programa de leniência. É verdade que há

disponibilização parcial do interesse público quando se concede benefícios ao infrator, mas

ressalta-se a utilização de instrumento fundamental, legalmente autorizado, no combate a

prática extremamente gravosa e danosa à coletividade. 180

O segundo argumento, da acessoriedade dos efeitos penais aos efeitos administrativos,

vai no sentido de que o efeito no âmbito penal está condicionado a efetiva cooperação do

178 BRASIL. Lei nº 12.529, LDC, Art. 87. 179 MARRARA, Op. Cit., p. 364. 180 MARRARA, Op. Cit., p. 366.

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delator, que será objeto de análise do CADE. Assim, não há possibilidade de oportunismos por

parte dos infratores, que não poderão se utilizar de falsas acusações com o simples objetivo de

garantir benefícios penais. Ao contrário, os efeitos penais só serão concedidos caso haja

cumprimento das obrigações do acordo, que deverão ser aplicados por parte da Administração

Pública para a manutenção da atratividade do programa.

O terceiro, acerca das competências do MP, diz respeito a legitimidade deste em

propor ação penal pública, em especial as ações penais por crimes afastados pelo acordo de

leniência. Marrara defende que o art. 129, inciso I, da CF prevê expressamente uma reserva

legal quando preconiza que a legitimidade do MP será modulada de acordo com a lei.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;181

Assim, ficaria a cargo do legislador ampliar ou reduzir a competência do parquet, já que a CF

não define especificamente seus limites. O fato da LDC excluir a propositura da ação penal,

estabelecendo reserva legal, portanto, não afronta a CF. Haveria, no entanto,

inconstitucionalidade caso os efeitos penais da leniência fossem abarcados por mero ato

normativo da Administração182.

O quarto e último argumento diz respeito a permeabilidade do processo administrativo

e a participação do MP. A participação de terceiros, via de regra, não é cabível e faz sentido em

razão da natureza do acordo. No entanto, a participação do MP não deve ser negada porque o

acordo tem importantes reflexos na competência do parquet183. A solução ideal seria a

cooperação do CADE com o MP, que garantiria maior previsibilidade e segurança jurídica aos

delatores e colaboraria para o sucesso do programa184.

4.2.5 Responsabilidade em demais esferas

Não obstante todos os cuidados que devem tomar, analisando minunciosamente as

possíveis consequências de uma proposta de acordo de leniência, os delatores enfrentam ainda

um desincentivo extremamente forte: a responsabilização nas demais esferas. Isso porque o que

181 BRASIL. Constituição Federal, Art. 129, I. 182 MARRARA, Op. Cit., p. 367. 183 GABAN; DOMINGUES, Op. Cit., p. 260. 184 MARRARA, Op. Cit., p. 367

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o infrator recebe como benefício é tão somente a extinção ou diminuição da punibilidade, não

da culpabilidade e ilicitude da conduta, fato que possibilita a punição nos demais âmbitos não

abarcados pelo acordo de leniência185.

Assim, os delatores podem sofrer: responsabilizações em âmbito civil, por meio de

ações indenizatórias; ações civis e até mesmo penais em outras jurisdições, como ocorre em

casos de carteis internacionais; acusações por improbidade administrativa ou com base na Lei

Anticorrupção.

Todas essas gravosas consequências devem e são consideradas pelos delatores para

decidir sobre a viabilidade ou não da proposição de um acordo, e provavelmente, acabam muitas

vezes desestimulando e acarretando na desistência da celebração.

4.3 Programas de leniência sob perspectiva da teoria dos jogos

Os diferentes programas de leniência ao redor do mundo, apesar de divergirem quanto

a certas estratégias, guardam um fundamento comum. A estratégia é, basicamente, promover a

instabilidade do cartel por meio de concessão de benefícios, incentivando a traição por parte

dos participantes de um cartel. Nesse sentido, um importante jogo é apresentado para auxiliar

a análise da não-cooperação, o clássico jogo do Dilema do prisioneiro, por possuir relativa

semelhança com as estratégias utilizadas pelas agências antitruste com objetivo de combater os

carteis.

4.3.1 Dilema do prisioneiro

O jogo do Dilema do Prisioneiro (DP) é tão corriqueiro e amplamente utilizado que,

na literatura da teoria dos jogos, seu nome representa não só o modelo clássico do jogo, como

também remete a situação conhecida como equilíbrio de Nash, que é basicamente a situação

em que nenhum dos jogadores têm payoffs superiores se mudarem suas estratégias de forma

unilateral (quando se tratar de uma situação, e não o nome do jogo, a fim de evitar confusões,

o presente trabalho utilizará o termo dilema de prisioneiro). Esse equilíbrio, em outras palavras,

é uma combinação de estratégias que cada uma é a melhor resposta para estratégia do outro186,

como ocorreu no caso do jogo das lâmpadas e no jogo do cartel de diamantes. Segundo Fiani,

185 MARRARA, Op. Cit., p. 368. 186 BAIRD; GERTNER; PICKER, Op. Cit., p. 22.

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“uma combinação de estratégias constitui um equilíbrio de Nash quando cada estratégia é a

melhor resposta possível às estratégias dos demais jogadores, e isso é verdade para todos os

jogadores”187. O equilíbrio de Nash, então, traz à tona o dilema entre cooperação versus

interesse próprio, e o dilema do prisioneiro é um dos melhores exemplos de que em

determinados processos de interação estratégica, o fato de cada jogador buscar o melhor para

si não é a solução que seria melhor para todos188.

Quando falamos em dilema, tratamos de um problema de difícil abordagem, porque

não existe uma única solução. Como descrevem Pinheiro e Saddi:

Na verdade, o dilema não tem uma única solução, tampouco respostas precisas, mas

desafia o raciocínio numa equação difícil de múltiplas escolhas. O dilema do

prisioneiro é o exemplo acabado do que pode acontecer em diversas outras áreas,

como biologia, física, economia e direito, porque demonstra com clareza uma situação

de conflito extremamente comum.189

Antes de descrever o jogo um detalhe deve ser levado em consideração: existem

inúmeras versões para a descrição do jogo do dilema do prisioneiro, que geralmente variam em

pequenos detalhes como o contexto ou os payoffs. Independentemente das variações,

importante é analisar a linha de raciocínio estratégico dos jogadores e as circunstâncias que

incidem em um equilíbrio de Nash. Feita essa ressalva, passaremos a descrever o jogo do dilema

do prisioneiro.

Dois criminosos cometeram em conjunto dois crimes: um de maior e outro de menor

gravidade. A polícia colheu provas suficientes para a condenação dos dois indivíduos pelo

cometimento do crime de menor gravidade, porém não conseguiram provas suficientes para a

condenação do crime mais gravoso. Tendo detido os criminosos, a polícia interroga os dois na

tentativa de conseguir provas suficientes para condenação destes pelo cometimento do segundo

crime. Cada preso está isolado em uma sala, sem a possibilidade de comunicação entre eles.

Nenhum dos presos confessou sua participação, mas a confissão de qualquer um deles seria

suficiente para a condenação do outro. A polícia deseja que pelo menos um deles seja

condenado pelo crime maior, e se possível os dois. Para tanto, faz a mesma proposta de delação

premiada para os dois criminosos: aquele que confessar ter participado do crime mais grave, e

fornecer provas, cooperando com as investigações, será beneficiado e não responderá por

nenhum dos crimes, e o outro, se permanecer calado, será condenado por 3 anos de reclusão;

187 FIANI, Op. Cit., p. 93. 188 Ibidem, Op. Cit., p. 112. 189 SADDI; PINHEIRO, Op. Cit., p. 172.

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se os dois confessarem o crime, acusando um ao outro, ambos serão condenados por 2 anos; e

se ninguém confessar, ambos serão condenados a 1 ano de reclusão, pelo cometimento do crime

menos grave.

O jogo fica disposto da seguinte maneira:

Figura 8 – Jogo do dilema do prisioneiro representado na forma normal.

Fonte: Adaptado de Leslie (2006).

Diferentemente dos outros casos, os ganhos são indiretamente proporcionais ao

número que representa o payoff, ou seja, por representar número de anos na prisão, há mais

ganhos quanto menor for o número do payoff.

Nestas condições, verifica-se o forte incentivo a confessar o crime e delatar o outro

prisioneiro, pois como exemplo, para o prisioneiro A: caso o prisioneiro B opte por não

confessar, a melhor resposta em termos estratégicos é confessar e delatar, pois aquele se livra

da prisão e este cumpre pena de 3 anos; caso o prisioneiro B opte por confessar e delatar o

prisioneiro A, a melhor estratégia também é confessar e delatar o outro, já que se não o fizer

será preso por 3 anos, vendo o outro criminoso livre da prisão. Confessando, há redução de 1

ano do pior cenário. O worst case scenario para o prisioneiro está na hipótese de manter-se

calado enquanto o outro confessa o crime e o acusa do crime mais gravoso, ou em outras

palavras, no caso de agir cooperativamente com o outro criminoso e ser traído.

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É errado imaginar que a cooperação pode não ocorrer pelo simples fato de os

prisioneiros estarem impossibilitados de se comunicar. A comunicação não é o fator

determinante para que o ponto de equilíbrio não seja de colaboração mútua, já que é possível

imaginar que os prisioneiros conversem e combinem que tomarão a estratégia de nenhum deles

confessar, e no momento do acordo um deles, motivado pela oportunidade de se ver livre da

prisão, descumpra o acordo e traia o outro prisioneiro.

Da mesma forma, é errado afirmar categoricamente que, em eventos do mundo real

que se assemelham ao dilema do prisioneiro, os jogadores sempre vão optar por não cooperar,

por causa do equilíbrio de Nash. Na verdade, há tão somente uma suposição de que os

indivíduos são motivados a agir de determinada maneira, mas não é possível prever com certeza

os resultados pois fatores como grau de confiança entre os jogadores e outros detalhes não

considerados ou imaginados podem ser determinantes para uma opção estratégica e resultado

do jogo diferente ocorra.

4.3.2 Dilema do prisioneiro x programa de leniência

Como dito anteriormente, o jogo do dilema do prisioneiro é amplamente utilizado, e

muitas vezes com imprecisões nos detalhes jurídico-procedimentais. Isto ocorre porque,

geralmente, o que se busca é a análise comportamental do problema, não propriamente os

mecanismos e detalhes de uma delação premiada. Mas, de qualquer maneira, mesmo uma

descrição descuidada possibilitaria que a teoria dos jogos revelasse valiosas informações no

âmbito dos interesses individuais. Nesse sentido, ressalta-se o papel fundamental que tem o

agente público em promover decisões não-cooperativas, tendo em vista o objetivo de garantir

a colheita de provas fundamentais para uma condenação. Essa é a lógica das agências antitruste

quando se utilizam dos programas de leniência.

Da análise entre o modelo teórico do dilema do prisioneiro e a realidade verificamos,

infelizmente, uma considerável diferença: as agências antitruste, ao contrário da polícia do caso,

não têm o mesmo poder de influência sobre os criminosos por não possuírem provas que

assegurem a condenação destes190. Falta, portanto, o poder de barganha necessário para

influenciar de maneira significativa o comportamento dos criminosos e tornar a opção de

denunciar o cúmplice mais provável.

190 LESLIE, Christopher R., Antitrust amnesty, game theory, and cartel stability. Journal of Corporation

Law, v. 31, pp. 453-488, 2006. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=924376>. Acesso em: 20 set. 2015.

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Sem a existência do poder de barganha, não há incentivos suficientes para que se

promova a delação, pois as empresas participantes de cartel vislumbram continuar lucrando

com a manutenção dele e não têm motivo algum para revelá-lo. Na ausência do poder de

barganha, os payoffs são alterados, ficando da seguinte maneira:

Figura 9 – Jogo do dilema do prisioneiro, situação de ausência de poder de barganha.

Fonte: Adaptado de Leslie (2006).

Analisando a figura 9, fica evidente que sem o poder de barganha, tal qual ocorre

quando as agências antitruste não possuem provas ou conhecimento de um cartel, não há

incentivo à delação, e como consequência, o cartel mantem-se estável.

4.3.3 Agências antitruste promovendo instabilidade em carteis

Para que se possa desestabilizar carteis, é necessário que as agências antitruste tenham

sucesso na tarefa de criar um dilema do prisioneiro (termo tratado agora como situação, não

propriamente o nome do jogo), ou melhor, dilema de prisioneiro, situação onde a estratégia

dominante e melhor opção para ambos jogadores é a delação.

Criar um dilema de prisioneiro é uma tarefa complexa, já que é evidente que quando

um jogador confessa e delata, como resposta, a melhor estratégia é fazer o mesmo. Uma forma

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de tentar aproximar situação de dilema é a introdução de um elemento temporal ao jogo191. É o

que as agências antitruste fazem quando concedem benefícios somente ao primeiro delator,

utilizando a regra do first come, first serve. Dessa forma, com a aplicação dessa regra, não basta

somente delatar em resposta a uma ação do outro jogador, é preciso ser a primeira pessoa a

fazer isso para gozar dos benefícios da leniência.

Outra forma de tentar criar a situação de dilema é oferecer um acordo mais atrativo,

que garanta benefícios suficientes para, pelo menos, causar preocupação entre os infratores192.

O objetivo principal dessa estratégia é convencer um infrator, ou leva-lo a acreditar, que sua

melhor opção é delatar, porque essa também é a melhor estratégia de seus cúmplices, e é

necessário tomar essa opção antes de todos os outros. Essa estratégia é verificada quando o

Poder Público tenta tornar os acordos mais atrativos por meio de edição de novas leis que

definem claramente ou ampliam imunidades aos delatores, como é o caso da LDC de 2011,

especificamente com a ampliação verificada no seu art. 87. Como já comentamos, houve

mudança significativa quanto aos efeitos penais, já que agora a leniência atinge a persecução

penal quanto a crimes de cartel em licitações, crime de quadrilha ou bando, entre outros

anteriormente citados.

191 LESLIE, Op. Cit., p. 467. 192 Ibidem, Op. Cit., p. 474.

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5 CONCLUSÃO

Fica evidente que o programa de leniência é uma relevante ferramenta para a detecção,

investigação e punição dos carteis, mas isso porque, como dito ao longo do trabalho, sem a

delação por parte de um dos participantes de um cartel qualquer tentativa de combate-los, via

métodos tradicionais de investigação, muito provavelmente será infrutífera. Em outras palavras,

comparando-se os períodos anterior e posterior à sua criação, é óbvia a contribuição do

programa, pois qualquer resultado, por menor que fosse, implicaria em algum avanço no

combate aos carteis.

Todavia, sua efetividade parece ser baixa, já que, aparentemente, os programas de

leniência estão limitados a desvelar somente carteis mais frágeis. No último tópico, inclusive,

verificamos que a tentativa de criar uma situação tal qual a verificada no Dilema do Prisioneiro,

por meio de introdução do elemento temporal, da regra do first come, first serve, ou ampliação

das imunizações são válidas, e surtem efeitos, mas somente em carteis com baixa probabilidade

de continuação (tal qual a probabilidade p descrita no jogo do cartel dos diamantes).

O sucesso do programa de leniência limita-se: aos carteis que já estão numa situação

de instabilidade e com alto risco de dissolução; e aos carteis que são mais suscetíveis a

instabilidade provocada por ações por parte do Poder Público, na tentativa de criar um dilema

de prisioneiro.

Os carteis instáveis por alto risco de dissolução, nos remetem ao conceito da teoria dos

jogos do efeito fim de jogo. Como visto, quanto mais próximo do fim do jogo, maiores são os

incentivos para que os jogadores parem de cooperar, e busquem obter ganhos provenientes de

estratégias não-cooperativas, porque o fim de jogo representa a impossibilidade de ganhos

coletivos futuros. Temos os claríssimos exemplos dos recentes acordos de leniência celebrados

por empreiteiras investigadas na operação “lava-jato”. Evidentemente, após concluírem que

estão correndo alto risco de serem descobertas e condenadas, procuram minimizar suas perdas

por meio de celebração de acordos que lhes garantirão benefícios. Não é difícil concluir que

essas empreiteiras infratoras não cogitariam propor acordo de leniência caso sentissem que seus

carteis estivessem suficientemente seguros.

Os carteis mais frágeis e suscetíveis aos programas de leniência são aqueles que não

conseguem gerenciar bem a questão da confiança. Nesse sentido, alguns fatores colaboram para

que a tarefa de cooperação seja ainda mais difícil. Por exemplo, o número de participantes de

um cartel, como abordado no desenvolvimento, é crítico para a longa duração do conluio. Outro

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exemplo, carteis liderados por agentes que se utilizam de força ou ameaças são muito mais

suscetíveis a delação. Não se espanta que o primeiro acordo de leniência tenha sido celebrado

nesse contexto, em que eram cobradas altas taxas para a filiação, eram impostas realizadas pelos

membros àqueles que não se alinhavam ao conluio. Na verdade, esse cartel revelava verdadeiro

amadorismo, já que organizava reuniões semanais, realizando “palestras” para demonstração

de cálculos de custos preços, tinha número alto de participantes (29 condenadas das 55

representadas) e o mais grave, não gozava de confiança entre os participantes, pois se utilizavam

de métodos coativos.

Em sentido totalmente oposto, estão os carteis estabilizados, blindados contra os

efeitos dos programas de leniência, e à prova de traições. Sua característica marcante é o

gerenciamento ótimo da questão da confiança entre os cúmplices. Sua verificação só é possível

em teoria, mas não é errado imaginar que realmente possam existir, principalmente quando o

número de participantes for extremamente baixo. Aqui se aplica o que foi descrito no jogo do

cartel dos diamantes, sobre os payoffs relativos. Se as poucas empresas do cartel mantiverem

seus lucros ilícitos, sem sentir incentivo de trair ou sentir a ameaça da possibilidade de um dos

cúmplices trair, o cartel se manterá com grande facilidade. Nesse caso não há poder de barganha

do Poder Público, nem há possibilidade de tentar promover situação de dilema. Isso em grande

parte porque os riscos de uma eventual delação não compensam, nem são minimamente

atrativos. Lembremos que, caso uma empresa participante de um cartel estabilizado delate seus

cúmplices, estará abrindo mão de vultuosos payoffs de ganhos futuros ao desmanchar o

lucrativo cartel, pode sofrer sérias consequências e responsabilizações no âmbito civil, já que

não está imune a elas, pode sofrer responsabilizações em outras jurisdições, não só civis, como

também criminais, sem falar da perda de reputação, tempo e recursos alocados na colaboração

com as agências. É impensável que uma empresa faça isso. Os carteis estabilizados iniciaram-

se, como todos, com objetivo de obtenção de lucros, a diferença é que vão ganhando força à

medida que constroem entre si uma reputação que garante a segurança e estabilidade do cartel.

Nesse tipo de cartel o programa de leniência parece não surtir efeitos.

Portanto, conclui-se que a efetividade dos programas de leniência é relativa. É

razoavelmente efetiva em relação aos carteis mais frágeis ou com alto risco de dissolução,

sendo, portanto, relevantes no combate de carteis com essas características. No entanto, parece

ser totalmente inerte em relação a carteis estabilizados, pois não há incentivos suficientes a

serem dados às pessoas jurídicas para que abandonem um cartel lucrativo e estável em troca de

leniência, que implicaria em dissolução do lucrativo cartel e riscos de responsabilização em

outras searas, inclusive de outras jurisdições.

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