UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA,...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GABRIELE CORNELLI Em busca do pitagorismo: o pitagorismo como categoria historiográfica São Paulo 2010

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

GABRIELE CORNELLI

Em busca do pitagorismo:

o pitagorismo como categoria historiogrfica

So Paulo

2010

2

Gabriele Cornelli

Em busca do pitagorismo:

o pitagorismo como categoria historiogrfica

Texto para Defesa de Tese de Doutorado, apre-sentado ao programa de Ps-Graduao em Fi-losofia do Departamento de Filosofia da Facul-dade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia. Linha de Pesquisa: Histria da Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho.

So Paulo

2010

3

Cornelli, Gabriele. Em busca do pitagorismo: o pitagorismo como categoria historiogrfica / Gabriele Cor-

nelli; orientador: Roberto Bolzani Filho So Paulo, 2010. 276 f Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Filosofia. rea de Concentrao:

Histria da Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

1. Histria da Filosofia Antiga. 2. Pr-socrticos. 3. Pitagorismo. 4. Tradio pitagrica.

5. Pitgoras.

4

Pittagora volse che tutte fossero d'una nobilitate, non solamente le umane, ma con le umane quelle de li animali bruti e de le piante, e le forme de le minere; e disse che tutta la differenza de le corpora e de le forme. Dante Alighieri. Convivio IV xxi.3

5

para Monique, metade,

uma medida que se supera

6

AGRADECIMENTOS

generosa e delicada orientao do Prof. Roberto Bolzani Filho.

pacincia e ao abrao de quem todo dia divide o mamo e a cama comigo,

Monique e Brigitte.

A Marcelo Carvalho, mais que companheiro de tanta filosofia, parceiro de mui-

tas vidas.

Aos colegas que das mais variadas formas contriburam para o aprimoramento

desta tese. De maneira especial aos amigos Gianni Casertano (spero di averti convinto!)

e Andr Chevitarese; como tambm a Fernando Santoro, Tom Robinson, Laura Gemelli

Marciano, Bruno Centrone, Carl Huffman, Christoph Riedweg, Alberto Bernab, Livio

Rossetti, Andr Laks, Luc Brisson, Rachel Gazolla, Macris Constantin, Thomas Szle-

zk, Franco Trabattoni, Anastcio Borges de Araujo, Hector Benoit, Pedro Paulo Funa-

ri, Marcelo Perine, Miriam Campolina Peixoto, Fernando Rey Puente, Emmanuele Vi-

mercati, Edrisi Fernandes, Walter Neto, Jos Gabriel Trindade Santos, Gerson Brea,

Dennys Garcia Xavier, que tiveram a gentileza de discutir comigo partes da pesquisa

que originou esta tese.

Aos alunos do Archai, que com sua dedicao e entusiasmo ainda me surpreen-

dem e confirmam as razes de minha paixo pela filosofia antiga.

Ao Departamento de Filosofia da Universidade de Braslia, que me concedeu o

tempo necessrio para concluir este projeto, e um lugar onde poder compartilh-lo.

CAPES e ao CNPq, que me permitiram ter acesso a quase toda a bibliografia

relevante sobre o tema, alm de realizar alguns estgios de pesquisa e participar de se-

minrios e congressos.

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RESUMO

CORNELLI, G. Em busca do pitagorismo: o pitagorismo como categoria historiogrfi-

ca. 2010. 276 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas.

Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

A presente tese explora, como soluo para o controvertido quadro geral da moderna

histria da crtica sobre Pitgoras e seu movimento, a definio do pitagorismo como

categoria historiogrfica. Superando tanto o dilema entre ceticismo e confiana nas fon-

tes, como a pretenso de alcanar uma nica chave hermenutica que permita resolver a

questo pitagrica, procura percorrer a histria da tradio em busca de uma imagem

suficientemente plural a ponto de possibilitar a compreenso do pitagorismo em sua

irredutvel articulao de bos e theora e no apesar dela. A configurao da comunida-

de e de seu bos percebida como elemento central de identificao do pitagorismo. A

anlise das duas teorias que mais decididamente contriburam para a definio do pita-

gorismo ao longo da histria, a transmigrao da alma imortal e a doutrina dos nmeros,

procura definir as condies de possibilidade de atribu-las ao pitagorismo mais antigo e

as formas pelas quais ambas teriam contribudo, ao longo da histria, para a definio

do pitagorismo como categoria historiogrfica. As fontes pr-socrticas, a platonizao

do pitagorismo, o testemunho aristotlico sobre os assim chamados pitagricos, a

literatura pseudoepigrfica helenstica e o pitagorismo de poca imperial so entendidos

como momentos de um percurso histrico que resulta em uma imagem polidrica de um

dos maiores fenmenos intelectuais da histria ocidental.

Palavras-chave: Histria da Filosofia Antiga, Pr-socrticos, Pitagorismo, Tradio pi-

tagrica, Pitgoras.

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ABSTRACT

CORNELLI, G. In Search of Pythagoreanism: Pythagoreanism as historiographical Cat-

egory. 2010. 276 f. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Hu-

manas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

This thesis explores the definition of Pythagoreanism as historiographical category, seen

as solution for the controversial general framework of modern history of criticism about

Pythagoras and his movement. Overcoming both the dilemma between skepticism and

faith in the sources and the claim to achieve a single hermeneutical key to solve the Py-

thagorean question, in it searches are made throughout the history of tradition looking

for an image sufficiently plural in order to understand Pythagoreanism in accordance

with its irreducible articulation of bos and theora, not despite it. The setting of the

community and its bos is understood as central element for Pythagorean identification.

An analysis of the two theories that more decisively contributed to the definition of Py-

thagoreanism throughout history, the transmigration of the immortal soul and the doc-

trine of numbers, attempts to define the conditions of possibility to assign them to the

earlier Pythagoreanism and the ways in which these have contributed throughout history

to the definition of Pythagoreanism as historiographical category. Presocratic sources,

the platonization of Pythagoreanism, Aristotle's testimony about the "so-called" Pytha-

goreans, the hellenistic Pseudoepigrapha and Pythagoreanism in imperial age are un-

derstood as moments of an historical route resulting in a polyhedral image of one of the

greatest intellectual phenomena in Western history.

Key Words: History of Ancient Philosophy, Presocratics, Pythagoreanism, Pythagorean

Tradition, Pythagoras.

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SUMRIO

Lista de Abreviaes 12

INTRODUO 14

Em busca do pitagorismo 14

Esta tese 18

1 HISTRIA DA CRTICA: DE ZELLER A KINGSLEY 21

1.1 Zeller: o ceticismo dos comeos 23

1.2 Diels: uma coleo zelleriana 28

1.3 Rohde: a reao ao ceticismo 30

1.4 Burnet: o duplo ensinamento dos acusmticos e matemticos 32

1.5 Cornford e Guthrie: em busca da unidade entre cincia e religio 35

1.6 De Delatte a De Vogel: pitagorismo e poltica 40

1.7 O testemunho nico de Aristteles e a incerta tradio acadmica 51

1.8 De Burkert a kingsley: terceira-via e misticismo na tradio pitagrica 58

1.9 Concluso 69

2 O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRFICA 72

2.1 Interpretar interpretaes: dimenso diacrnica e sincrnica 72

2.2 Identidade pitagrica 76

2.3 A koinona pitagrica 83

2.4 Acusmticos e matemticos 103

2.5 Concluso 111

3 IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE 114

3.1 a alma? (Xenfanes) 117

3.2 Sbio mais do que todos (Herclito e on de Quios) 124

3.3 Dez ou vinte geraes humanas (Empdocles) 128

10

3.4 Plato e orfismo 130

3.4.1 Compreender o lgos de seu ministrio 132

3.4.2 Hierarquia das encarnaes 138

3.4.3 Sma-sma 140

3.4.4 Mediao pitagrica 150

3.5 Herdoto, Iscrates e o Egito 156

3.6 Lendas sobre a imortalidade 159

3.7 Demcrito pitagrico? 163

3.8 Aristteles e os mitos pitagricos 165

3.9 Concluso 171

4 NMEROS 174

4.1 Tudo nmero? 176

4.1.1 Trs verses da doutrina pitagrica dos nmeros 176

4.1.2 Duas solues 186

4.1.3 A soluo filolaica 190

4.1.3.1 Um livro ou trs livros? 191

4.1.3.2 Autenticidade dos fragmentos de Filolau 194

4.1.3.3 A tradio pseudoepigrfica drica 196

4.1.4 A exceo aristotlica (Metafsica A 6, 987b) 200

4.1.5 O testemunho platnico (Filebo 16c-23c) 210

4.2. Os fragmentos de Filolau 216

4.2.1 Ilimitados/limitantes 216

4.2.2 O papel dos nmeros em Filolau 223

4.3 Concluso 231

CONCLUSO 237

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 246

11

A) Fontes Primrias 246

B) Fontes Secundrias 250

ANEXOS 270

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LISTA DE ABREVIAES

Ael. = Aeliano

aEC = antes da Era Comum (= a.C.)

Aesch. = squilo

Anon. Phot. = Annimo de Fcio. Thesleff

Arist. = Aristteles

Crat. = Plato. Crtilo

D. L. = Digenes Larcio

De Abst.= Porfrio. A abstinncia dos animais

De an. = Aristteles. De anima

De Comm. Mathem. = Jmblico. De communi mathematica scientia

Diod. Sic. = Diodoro Sculo

DK = Diels-Kranz

EC = Era Comum (= d.C.)

EN = Aristteles. tica Nicomaqueia

FGrHist = Die Fragmente der Griechishen Historiker. Jacoby

Herodt.= Herdoto

Iambl. = Jmblico

Il. = Homero. Ilada

In Metaph. = Alexandre de Afrodsia. Comentrios sobre a Metafsica de Aristteles

Leg. = Plato. Leis

lit. = literalmente

Men. = Plato. Mnon

Met. = Aristteles. Metafsica

Metam. = Ovdio. Metamorfoses

Mete. = Aristteles. Metereologica

n = nota

Od. = Homero. Odissia

Orig. = No original

P. Derv. = Papiro Derveni

Phaed. = Plato. Fdon

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Phaedr. = Plato. Fedro

Phlb. = Plato. Filebo

Phot. Bibl.= Fcio. Biblioteca

Phys. = Aristteles. Fsica

PL = Patrologia Latina. Migne

Porph. = Porfrio

Procl. In Tim. = Proclo. Comentrio ao Timeu

Prom. = squilo. Prometeu

Resp. = Plato. Repblica

Retr. = Agostinho. Retractationes

Schol. In Phaedr. = Esclios sobre o Fedro. Greene

Schol. In Soph. = Esclios sobre Sfocles. Elmsley

Soph. El. = Sfocles. Electra

Speusip. = Espeusipo

Stob. = Estobeu. Anthologium

Syrian. In Met. = Proclo. Comentrio Metafsica de Aristteles

Theophr. Met. = Teofrasto. Metafsica

VH = Aeliano. Varia Historia

Vitae = Digenes Larcio. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres

VP = Porfrio: Vida de Pitgoras ou Jmblico: Vida Pitagrica

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INTRODUO

Em busca do pitagorismo

Segundo Kahn (1974: 163), no so necessrias, em nossos dias, novas teses so-

bre o pitagorismo.

Interpretaes muito dspares acabaram, de fato, ao longo da histria da crtica,

por resultar em concluses diversas e incompatveis, ao ponto de Kahn sugerir que, no

lugar de mais uma tese sobre o pitagorismo, deveria ser preferido um trabalho de avali-

ao das tradies que pudesse resultar em uma boa apresentao historiogrfica.1 Essa

velha tese de Kahn, formulada h mais de trinta anos, orienta a presente opo por uma

tese de marca fundamentalmente historiogrfica e no filolgica, isto , que no se de-

dique exclusivamente exegese de fontes como Filolau, Arquitas ou mesmo de uma das

Vidas helensticas, por exemplo; ou, ainda, abordagem teortica de uma das temticas

que receberam a especfica contribuio do pitagorismo, como matemtica, cosmologia,

poltica, teoria da alma. Assim, a presente tese prope-se a reconstituir a maneira como

a tradio estabeleceu a imagem do pitagorismo.

No que uma apresentao historiogrfica no tenha em suas bases uma herme-

nutica ou uma precompreenso teortica da filosofia pitagrica a partir de suas fontes.

Todavia, a opo pela historiografia possui ao menos duas vantagens incontestveis. A

primeira delas diz respeito postura necessariamente crtica e, at certo ponto, relativis-

ta que o trabalho historiogrfico pressupe. Esta postura est bem expressa por Luciano

Canfora:

1 A oportunidade de voltar tese de Kahn foi sugerida por Casertano, que se referiu a ela em seu mais recente livro sobre os pr-socrticos (Casertano 2009: 56). Cf. Kahn (1974: 163 n6): Its hard enough to satisfy minimal standards of historical rigor in discussing the Pythagoreans, without introducing arbi-trary guesswork of this sort where no two students can come to the same conclusion on the basis of the same evidence. In fact, the direct testimony for Pythagorean doctrines is all too abundant. The task for serious scholarship is not to enrich these data by inventing new theories or unattested stages of develop-ment but to sift the evidence so as to determine which items are most worthy (or least unworthy) of be-lief . O contexto prprio da observao de Kahn aquele da crtica ao apriorismo, na reconstruo do pitagorismo a partir de evidncias circunstanciais, de autores como Guthrie, conforme ser discutido adiante (1.5).

15

Trata-se de ter noo da constante e consubstancial relatividade do tra-balho do historiador. Dependendo da distncia do evento tratado, os his-toriadores fornecem um perfil e revelam faces cada vez diferentes: todas no fundo, de alguma maneira, verdadeiras e muitas vezes complementa-res entre elas: nenhuma exaustiva, como no seria exaustiva a soma mecnica de todas elas (Canfora 2002: 8-9).2

A primeira vantagem da abordagem historiogrfica ao pitagorismo , portanto,

aquela da tomada de conscincia inicial do fato de que nenhuma das teses sobre o pita-

gorismo poder ser exaustiva nas palavras de Canfora , deixando assim, de certo

modo, as mos livres para uma articulao historiogrfica que possa apresentar o pita-

gorismo em sua complexa diversidade. Talvez seja este o maior problema da monogra-

fia mais recente sobre o pitagorismo, escrita por Riedweg (2002), e justamente criticada,

nesse sentido, por Huffman (2008a): trata-se de uma abordagem geral ao pitagorismo

que se alinha a uma ou outra interpretao global do movimento. Pode seguir, em senti-

do mais mstico-religioso, por exemplo, Detienne (1962; 1963), Burkert (1972) e Kings-

ley (1995) ou, em perspectiva mais poltica, Von Fritz (1940) e Minar (1942). Contudo,

se esquece de dar conta daquela que talvez a questo fundamental: a presena de uma

histria da interpretao que, j na antiguidade basta ver o prlogo da Vida Pitagri-

ca, de Jmblico , quis reunir experincias e doutrinas totalmente diversas (quando no

mesmo contraditrias) na categoria historiogrfica do pitagorismo. Dessa forma, pensar

o pitagorismo como categoria historiogrfica significa, antes de tudo, superar metodo-

logicamente a iluso da possibilidade de alcanar a coisa em si, a histria verdadeira,

aceitando confrontar-se conscientemente com a necessria mediao representada por

quem a escreve a cada momento.

A segunda vantagem comparativa de uma abordagem historiogrfica, no lugar

do desenvolvimento de mais uma interpretao dessa filosofia, diz respeito a um dos

problemas centrais que caracterizam o pitagorismo quando comparado com outros mo-

vimentos filosficos do mundo antigo: aquele do terreno especialmente movedio da

crtica das fontes. certamente o caso de enfrentar, ao longo da tese, com renovado

esforo interpretativo e filolgico, a questo central da expanso da tradio, de zelleri-

ana memria, e a deriva ctica que esta impe normalmente aos comentadores.

2 Orig.: Si tratta di prendere nozione della costante e consustanziale relativit del mestiere dello storico. A seconda della distanza dallevento trattato, gli storici ne danno um profilo e ne rileveranno delle facce volta a volta differenti: tutte in fondo in qualche modo vere, e spesso tra loro complementari: nessuna esaustiva, come esaustiva non sarebbe neanche la meccanica somma di tutte queste facce.

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A vantagem de uma abordagem historiogrfica aquela, portanto, de tentar a-

braar o pitagorismo em sua totalidade, isto , abordando a problemtica de suas fontes

para poder compreend-lo por meio de e no apesar de sua complexa articulao ao

longo de mais de um milnio de histria da filosofia antiga. Ainda que essa perspectiva

tenha sido de fato inaugurada por Burnet (1908), e depois reafirmada por Cornford

(1922; 1923) e Guthrie (1962), possvel encontrar uma abordagem especialmente

compreensiva sobretudo na tradio historiogrfica italiana sobre o pitagorismo, inau-

gurada por autores clssicos como Rostagni (1922) e Mondolfo (na edio revista e co-

mentada de Zeller, 1938). O problema das fontes pr-socrticas (mas no somente delas,

veja-se o caso da traditio dos prprios textos de Plato e Aristteles, nesse sentido), que

se baseia em sua elaborao tardia, assume, diante da expanso da tradio pitagrica,

conotao de especial dramaticidade. Se verdade como demonstra, de forma convin-

cente, Burkert (1972: 15-96) que a existncia de uma filosofia pitagrica depende em

larga medida da inveno de uma vulgata pitagrica (pesadamente transfigurada) por

parte dos acadmicos; e, ainda, se provvel que os assim chamados pitagricos de

Aristteles sejam fundamentalmente filsofos como Filolau, ou seja, uma segunda (ou

terceira) gerao do movimento; , ento, certamente o caso de perguntar-se o que as

fontes mais tardias teriam para nos dizer de historicamente confivel sobre o protopita-

gorismo, isto , sobre aquele momento inaugural do desenvolvimento da tradio do

pitagorismo que corresponde a Pitgoras e seus primeiros discpulos.3 Contudo, , ain-

da, o caso de perguntar-se se seria possvel falar algo deste sem as trs Vidas (bem pos-

teriores, com quase um milnio de diferena) de Digenes Larcio, Porfrio e Jmblico.

Procedem, nesse sentido, as dvidas de Zhmud:

Por que as diferenas doutrinrias so to grandes no pitagorismo? Primeiramente, porque ele no surgiu como uma escola filosfica, e, portanto, no foi jamais fundamental o seguir a totalidade de determi-nadas doutrinas (Zhmud 1989: 289).4

3 Introduz-se, aqui, de forma indita, o termo protopitagorismo, por considerar necessria uma distino entre esse primeiro momento, fundador do pitagorismo, e um segundo momento, de elaborao do pitago-rismo ao longo do V sculo aEC, ainda pr-socrtico, que se utiliza da escrita e corresponde ao estgio das fontes imediatas de Plato e Aristteles. Para os modos de utilizao e o sentido do uso do termo anlogo protofilosofia, cf. Boas (1948: 673-684). 4 Orig.: Why are the doctrinal differences so great in Pythagoreanism? First of all, because it had not arisen as a philosophic school, and belonging to it had never been determined by following the sum of certain doctrines.

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Como tambm possvel concluir, com Centrone (1996: 91), que o pitagorismo

antigo seria uma associao fundada sobre particular estilo de vida, seguindo as regras

de um bos especfico, expressas por akosmata, fundamentalmente escatolgicos.

No entanto, esta koinonia de vida foi reconhecida pela filosofia j antiga (veja-se

Xenfanes e Herclito) como referncia de uma maneira de fazer filosofia e identificada

por uma complexa srie (ainda que nem sempre coerente, como ser visto) de persona-

gens e ensinamentos que passaram a ser chamados de pitagricos; isto , o termo pita-

gorismo foi associado a uma filosofia tambm, no apenas a um estilo de vida.

sobretudo esta identificao da categoria pitagrico que atrai a ateno do his-

toriador da filosofia. Por esses motivos, portanto, uma discusso historiogrfica ser o

objetivo da presente tese.

O esforo por traar um perfil inclusivo e compreensivo das condies e das

possibilidades de definir-se o que seja pitagorismo ou pitagrico, no interior de um mo-

vimento filosfico de tamanha amplido histrica e teortica, acaba por confundir-se

com a inteno de contribuir metodologicamente para uma reviso historiogrfica da

filosofia antiga em geral; pois compreender esse movimento determinante para a com-

preenso das origens da filosofia e, de forma mais geral, do pensamento ocidental. Os

elementos sensveis da historiografia do pitagorismo tornam-no um locus privilegiado

para um exerccio que almeja alcance historiogrfico maior e que se encontra nas entre-

linhas da presente tese.

Permito-me, neste momento, uma nota pessoal, visto que toda tese, ao que pare-

ce, est vinculada a um projeto intelectual mais geral, tanto de pesquisa quanto de vida:

apesar de uma formao voltada tanto para a filologia (especialmente grega e hebraica)

quanto para a historiografia (da religio e da filosofia antiga), para esta segunda que

dediquei mais aprofundadamente minhas reflexes nos ltimos dez anos. Uma nova

edio e traduo da literatura pitagrica est ainda em minhas atribuies atuais. E,

todavia, estou convencido de que uma tese sobre o pitagorismo merea, antes de tudo,

uma arrumao da casa historiogrfica, ou seja, a definio do status quaestionis e de

meu posicionamento no interior dele. Nessa escolha, encontro-me bem acompanhado

por autores clssicos sobre o pitagorismo, como o caso do Thesleff, comentador e edi-

tor da literatura (pseudo)pitagrica helenstica: em 1961, publicou uma Introduo

edio dos textos pseudoepigrficos, que sairiam publicados somente quatro anos de-

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pois, em 1965. A edio dos textos, ou mesmo somente sua traduo, diretamente in-

formada pela lectio hermenutica do autor, obviamente. A ordem, ento, se no da pu-

blicao, ao menos do trabalho, dificilmente intercambivel.

esta mesma sequncia que orienta a definio da presente tese: primeiro o tra-

balho historiogrfico.

Esta tese

Uma boa apresentao historiogrfica tratar de fazer emergir dos arquivos da

histria da interpretao do pitagorismo os pontos sensveis que contriburam para a

formao de tantas e diversas lectiones sobre o pitagorismo. mister concordar com

Huffman quando afirma que o pitagorismo uma rea de estudo repleta de tpicos

controvertidos (Huffman 2008b: 225).5 Ao mesmo tempo, todavia, no correto con-

jecturar que a imagem multifacetada do pitagorismo, conforme se apresenta ao longo da

histria da tradio, possa derivar simplesmente de uma srie de acidentes de percurso,

que teriam transformado uma imagem pretensamente homognea em suas origens em

um conjunto polidrico de doutrinas e personagens.

O prprio Burkert afirma isso no Prefcio edio alem de sua obra funda-

mental sobre o pitagorismo, Lore and Science in Ancient Pythagoreanism:

Se Pitgoras no se apresenta s nossas mentes como uma figura bem delineada, em p na luz brilhante da histria, isto no simplesmente o resultado de acidentes ao longo do percurso da tradio histrica (Burkert 1972: Prefcio edio alem).6

Ao contrrio, essa imagem o resultado de escolhas historiogrficas bem preci-

sas e que obedecem, a cada momento, compreenso do que era a filosofia em suas

origens (em perspectiva genealgica) e, por consequncia, do que a filosofia desde

suas origens (em perspectiva histrica). Desde o prlogo da Vida Pitagrica, de Jmbli-

5 Orig.: Pythagoreanism is an area of study that is full of controversial issues. 6 Orig.: If Pythagoras does not present himself to our minds as a sharply outlined figure, standing in the bright light of history, this is not merely the result of accidents in the course of historical transmission.

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co (Iambl. VP: 1), at s Lies sobre histria da filosofia, de Hegel, e s recentes inter-

pretaes de Kingsley (1995), possvel confrontar-se com as precompreenses que

levaram a privilegiar esta ou aquela imagem e a resolver de uma ou outra forma a ques-

to pitagrica (Burkert 1972: I).

Esta tese pretende, portanto, acompanhar o percurso dessas escolhas, verificando

onde for possvel seus pressupostos e revelando as consequncias destas para a interpre-

tao, no somente de algumas temticas centrais, mas especialmente da prpria cons-

truo do pitagorismo como categoria.

O Captulo Primeiro ser, portanto, dedicado compreenso das linhas mestras

que definiram, durante especialmente os ltimos dois sculos, o quadro geral da moder-

na histria da crtica sobre o pitagorismo. A imagem da cincia que deste resultar a

de uma intricada sucesso de controvrsias e refutaes, na alternncia entre ceticismo e

confiana nas fontes que marca a crtica da tradio sobre a filosofia antiga como tal. A

dificuldade fundamental, que emerge ao longo da histria das interpretaes, da polie-

dricidade do fenmeno estudado, indicar a necessidade de cuidados metodolgicos que

conscientemente permitam descrev-lo como tal, em sua irreduzvel diversidade.

O Captulo Segundo, com a inteno de resolver as dificuldades acima indica-

das, explorar as modalidades da definio do pitagorismo como uma categoria histori-

ogrfica. Comeando pela definio de duas dimenses, uma sincrnica e outra diacr-

nica, que, imbricadas entre elas, permitam descrever um fenmeno de outra forma in-

compreensvel em sua diversidade, chega-se discusso dos critrios de identificao

do pitagrico e da comunidade pitagrica. Ainda que com a conscincia de que o que-

bra-cabea hermenutico das tradies sobre o pitagorismo ficar sempre inacabado,

ser proposto um caminho por meio das duas temticas que mais decididamente contri-

buram para a definio da categoria pitagorismo ao longo da histria da tradio: me-

tempsicose e matemtica. A inteno desta anlise ser, por um lado, verificar a possibi-

lidade de atribuio da origem das duas temticas para o protopitagorismo e o pitago-

rismo do sculo V aEC; por outro, a de sinalizar de que maneira essas temticas colabo-

raram para a categorizao do pitagorismo ao longo da histria da tradio.

O Captulo Terceiro, portanto, enfrentar as tradies sobre a imortalidade da

alma e sua transmigrao. A anlise considerar tanto testemunhos filosficos pr-

socrticos, platnicos e aristotlicos como outras tipologias de fontes antigas: entre elas,

Herdoto, a literatura rfica, recentes documentos arqueolgicos e a tradio das lendas

20

sobre as viagens ao alm-tmulo. A tradio pitagrica ser encontrada em um lugar

intermedirio entre as teorias da imortalidade rficas e a reelaborao que destas faz a

filosofia dos sculos V e IV aEC, notadamente Plato. Na referncia de Aristteles aos

mitos pitagricos, ser reconhecido o testemunho mais slido da existncia de uma teo-

ria protopitagrica da imortalidade da alma.

O Captulo Quarto, partindo da constatao de que comumente a matemtica e o

interesse pelos nmeros tm sido atribudos como caractersticas fundamentais da filo-

sofia pitagrica, submeter tais tradies a uma reviso historiogrfica. Como no captu-

lo terceiro, a anlise do testemunho de Aristteles ser decisiva. A afirmao dele pela

qual para os pitagricos tudo nmero ser considerada como, ao mesmo tempo, fon-

te da matemtica do pitagorismo antigo e testemunho do amplo processo de recepo

desta em mbito acadmico. Novamente aparecer decisiva, portanto, a reelaborao

acadmica das doutrinas pitagricas. Todavia, Aristteles demonstrar certa indepen-

dncia desta ltima, fundamentalmente graas ao fato de ele poder atingir as fontes pr-

socrticas independentes, pois as nomeia enigmaticamente como os assim chamados

pitagricos. Ser demonstrado que essas fontes correspondem fundamentalmente aos

fragmentos de Filolau. A questo filolaica, portanto, ser enfrentada a partir da anli-

se comparativa entre uma clebre pgina de Metafsica A, algumas pginas do Filebo e

o prprio livro de Filolau. Resultar dessa uma confirmao, por um lado, da possibili-

dade de atribuio de uma teoria numrica, seno ao protopitagorismo, ao menos ao

pitagorismo do sculo V aEC; por outro lado, mais uma vez, da influncia determinante

da (quase) onipresente mediao acadmica sobre a categorizao da filosofia pitagri-

ca.

Antes de adentrar propriamente na tese, fazem-se necessrias algumas observa-

es sobre sua apresentao. Optou-se por sempre transliterar, no corpo do texto, os

termos gregos, conforme o padro internacional ISO 843:1997; utiliza-se o alfabeto

grego somente nas notas de rodap. Assim como, nas mesmas notas, mantm-se as cita-

es de autores modernos em lngua original. A grafia de nomes gregos e romanos se-

gue, sempre que possvel, o Vocabulrio Onomstico de Caldas Aulete (1958). Todas as

tradues so minhas, salvo explcitas indicaes em contrrio. As normas de refern-

cias bibliogrficas utilizadas so as da ABNT (NBR 6023 e NBR 10520). O texto foi

revisado e est em conformidade com o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

(2009).

21

CAPTULO PRIMEIRO

HISTRIA DA CRTICA: DE ZELLER A KINGSLEY

Na labirntica confuso da tradio da sabedoria pitagrica e da socie-dade pitagrica que, em grande parte, nos foi transmitida por escrito-res e compiladores tardios e ingnuos, como que encoberta por uma sagrada escurido, os fragmentos de Filolau sempre representaram pa-ra mim como um ponto cintilante (Boeckh 1819: 3).7

Assim principia Boeckh, em 1819, a obra que marca a pr-histria da crtica

moderna sobre o pitagorismo. Um incipit altamente significativo, especialmente quando

considerado, em perspectiva, luz dos dois sculos de interpretao que a ele se sucede-

ram e que desenham o sinuoso percurso da histria da tradio moderna sobre o pitago-

rismo. Um incio que revela com preciso dois dos maiores loci hermenuticos da crti-

ca: de um lado, pela expresso labyrintischen Gewirre, a significar inconfudivelmente a

opinio comum da grande dificuldade de assimilao da literatura pitagrica; por outro

lado, pela imediata individuao de um lichter Punkt, um ponto cintilante em alguma

parte desta (e que corresponde geralmente a um autor ou uma temtica especfica) que

possa iluminar a escurido do labirinto historiogrfico: um fio de Ariadne, que permita

sair da confuso com a qual o historiador do pitagorismo tradicionalmente levado a

confrontar-se.

A percepo dessa mesma dificuldade no exclusiva da crtica moderna: Jm-

blico, tambm logo no incio de sua Vida Pitagrica, apelava para os deuses, com o

objetivo expresso de solicitar que o assistissem na difcil empreitada de superar dois

obstculos para o desenvolvimento de sua biografia histrica: de um lado, a estranheza

das doutrinas e a obscuridade dos smbolos; do outro, a quantidade de escritos esprios

e mentirosos sobre a filosofia pitagrica que circularam at ento:

No comeo de toda filosofia, costume dos sbios apelar para um deus; isso vale ainda mais para aquela filosofia que, pelo que parece,

7 Orig.: Im dem labyrinthishen Gewirre der Uberlieferungen ber die Pythagorische Weisheit und Py-thagorische Gesellschaft, welehe grofsentheils durch spate und urtheilslose Schriftsteller und Zusam-mentrger wie in heiliges Dunkel gehllt zu uns herbergekommen sind, haben des Philolaos Brchstke sich mir immer als ein lichter Punkt dargestellt (Boeckh 1819: 3).

22

leva justamente o nome do divino Pitgoras. Esta de fato foi concedi-da desde o incio pelos deuses e no possvel compreend-la se no com a ajuda deles. Alm disso, sua beleza e sua grandeza superam as capacidades humanas, de maneira que impossvel abra-la imedia-tamente e com um nico olhar. Portanto, somente se um deus benigno nos guiar ser possvel aproximar-se lentamente dela e gradativamente apropriar-se de alguma parte. Por todas estas razes, aps ter invocado os deuses como nossos guias e confiado a eles ns mesmos e nosso discurso, vamos segui-los aonde eles nos queiram conduzir. No de-vemos dar importncia ao fato de que esta escola de pensamento, h algum tempo, encontra-se abandonada, nem da estranheza das doutri-nas e da obscuridade dos smbolos nos quais ela est envolvida, nem dos muitos escritos falsos e apcrifos que lanaram sombras sobre ela, nem das muitas dificuldades que tornam o acesso a ela rduo.8

Uma sensao de pnico labirntico parece acompanhar, portanto, desde os albo-

res dessa histria, o encontro do historiador com o pitagorismo. A ela segue, da mesma

forma, uma imediata tentativa de sair do labirinto, de achar uma ordem no caos, de indi-

viduar uma constante que permita ao discurso historiogrfico alcanar certa estabilidade

hermenutica.

Os dois sculos que se seguiram obra inaugural de Boeckh sobre Filolau cons-

tituem o objeto principal das pginas a seguir.9 A inteno a de acompanhar o proce-

der nem sempre calmo e arrazoado da crtica, sabendo de antemo que resultar des-

te uma histria em que cada fato e cada testemunho sero colocados em discusso,

exceo, provavelmente, da prpria existncia dos assim chamados pitagricos: na

controvrsia acadmica que seguiu dificilmente um nico fato permaneceu indisputado,

com a exceo de que nos dias de Plato e, mais tarde, no primeiro sculo aEC, existi-

ram Pythagoreioi (Burkert 1972: 2).10

8 Iambl. VP: 1. Orig.: -, -. - , . , , . 9 preciso notar que a maioria dos comentadores (Thesleff 1961: 31; De Vogel 1966: 8; Burkert 1972: 2; Centrone 1996: 193) no considera a obra de Boeckh (1819) como inaugural da histria da crtica do pitagorismo, preferindo faz-la comear mais tradicionalmente com a obra de Zeller (1855; esta obra ser citada daqui para frente na edio italiana complementada e anotada por Mondolfo, em 1938). 10 Orig.: In the scholarly controversy that followed scarcely a single fact remained undisputed, save that in Platos day and then later, in the first century B.C., there were Pythagoreioi.

23

Apesar disso, ser possvel revelar sinais de continuidade de uma lectio do pita-

gorismo que o entregar histria com as caractersticas de um movimento especial,

complexo e de difcil interpretao no interior do panorama dos estudos normais (no

sentido kuhniano) da filosofia pr-socrtica.

Obviamente, o pitagorismo compartilha o ponto de partida da moderna histria

de sua crtica com o restante da filosofia grega antiga. Nesse caso, o precursor certa-

mente Zeller, que, em sua Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Ent-

wicklung (1855), traa as bases para a moderna historiografia da filosofia antiga.

1.1 Zeller: o ceticismo dos comeos

Significativamente, a primeira pgina do captulo de Zeller dedicada ao pitago-

rismo pe-se em continuidade com os textos de Jmblico e Boeckh anteriormente cita-

dos, indicando especial dificuldade para o estudo do pitagorismo na mistura de fbulas

e poesias que teria encoberto a doutrina filosfica:

Entre todas as escolas filosficas das quais temos conhecimento no h nenhuma cuja histria no tenha sido frequentemente envolvida e quase encoberta por fbulas e poesias, e cuja doutrina no tenha sido mesclada na tradio com uma quantidade enorme de elementos pos-teriores, como foi aquela dos pitagricos (Zeller e Mondolfo 1938: 288).11

Zeller enfrenta o problema, por assim dizer, de peito, perguntando-se imedia-

tamente sobre a prpria possibilidade de existncia de um sistema filosfico pitagri-

co: poderia se levantar a questo se seja o caso de falar em geral do sistema pitagri-

co como de um complexo cientfico e histrico (Zeller e Mondolfo 1938: 597).12

A dvida potencialmente paralizadora, pois coloca em cheque a prpria pos-

sibilidade de abordagem do pitagorismo no interior daquelas que se convm conside-

rar Histrias da Filosofia. O risco, a dizer do Zeller, que o pitagorismo, a bem ver,

no seja outra coisa seno uma selva de mitos e ritos estranhos, sem alguma relevn-

11 Orig.: Fra tutte le scuole filosofiche che noi conosciamo non ve n alcuna, la cui storia non sia stata tanto spesso avvolta e quasi coperta di favole e poesie, e la cui dottrina sia stata mescolata nella tradizione con una tal massa di elementi posteriori, quanto quella dei Pitagorici. 12 Orig.: Si potrebbe sollevare la questione se sia il caso di parlare in genere del sistema pitagorico come di un complesso scientifico e storico.

24

cia para a filosofia. Por sorte, a resposta de Zeller positiva: tudo aquilo que nos

transmitido com relao filosofia pitagrica, ainda que entre todas as divergncias

de determinaes subordinadas, ainda coincide nos tratos fundamentais (1938:

599).13 Isto , h, no pitagorismo, algo de filosfico que poder ser salvo para futura

sistematizao.

Para realizar essa salvao in principio do pitagorismo, todavia, Zeller precisa

operar historiograficamente de forma decididamente desenvolvimentista, para no dizer

positivista, aplicando sobre esse movimento, com a preciso cirrgica do erudito alemo

do sculo XIX, um rgido esquema historicista. Para que esse esquema possa funcionar,

Zeller precisa criar diversos gaps hermenuticos, vrias fraturas controladas com preci-

so e bem demarcadas. De maneira especial, possvel observar, no interior da estrat-

gia zelleriana de salvao do pitagorismo, a operacionalizao de trs fraturas, realiza-

das: a) entre a maioria das fontes e dos testemunhos do pitagorismo, que so tardios,

notadamente neopitagricos, de um lado, e as origens da filosofia pitagrica do outro; b)

entre a doutrina filosfico-cientfica e outras formas de expresso mtico-religiosas; c)

entre cultura grega e cultura oriental, para que o pitagorismo possa resultar como um

movimento genuinamente grego.

Dessa forma, para resolver a questo das fontes, Zeller elabora a clebre teoria

da expanso da tradio, a qual observa como, com o passar do tempo, as fontes sobre

o pitagorismo, em vez de diminuir como era de se esperar , aumentam:

Dessa forma, a tradio relativa ao pitagorismo e ao seu fundador con-segue nos dizer tanto mais quanto mais se encontre distante no tempo dos respectivos fatos histricos, e, ao contrrio, ela se encontra na mesma proporo tanto mais silenciosa na medida em que nos apro-ximamos cronologicamente a seu mesmo objeto (Zeller e Mondolfo 1938: 299).14

Zeller pode assim concluir que a pretensa doutrina pitagrica que no recebi-

da pelos testemunhos mais antigos, neopitagrica (1938: 300).15 Isto , utilizando-se

de um argumento, de certa forma circular, e recusando-se a uma distino mais cuida-

13 Orig.: Tutto ci che ci riferito della filosofia pitagorica, pur fra tutte le divergenze di determinazioni subordinate, coincide tuttavia nei tratti fondamentali. 14 Orig.: Cos dunque la tradizione riguardante il Pitagorismo ed il suo fondatore ci sa dire tanto di pi quanto pi si trovi lontana nel tempo dai relativi fatti storici, e per contro essa nella stessa proporzione tanto pi taciturna a misura che ci avviciniamo cronologicamente al suo oggetto medesimo. 15 Orig.: la pretesa dottrina pitagorica, che non conosciuta dai testimoni pi antichi, neopitagorica.

25

dosa do material relevante no interior da literatura pitagrica tardia, pretende fundar o

que pitagrico exclusivamente sobre os testemunhos por ele considerados como os

mais antigos. Entre eles, Zeller privilegiar Aristteles e os fragmentos de Filolau, que,

na esteira do Boeckh considera, em bloco, como autnticos.16

Por consequncia da escolha acima, o material mais relevante para a histria do

pitagorismo aquele que o aproxima e o identifica com os outros sistemas pr-

socrticos e que diz respeito filosofia da natureza:

O objeto da cincia pitagrica, na base de tudo o que foi dito at este momento, resulta aquele mesmo do qual se ocupavam todos os outros sistemas da filosofia pr-socrtica, isto os fenmenos naturais e seus princpios (Zeller e Mondolfo 1938: 585).17

Com base nesses critrios temticos, portanto, Zeller, em argumento circular,

acaba por definir quais sejam os testemunhos vlidos para uma histria do pitagorismo

em suas origens. Da mesma maneira, excluindo por parti pris a considerao das dou-

trinas mticas do pitagorismo, Zeller no pode seno declarar adeso irrestrita a Arist-

teles e seu juzo sobre os pitagricos:

No podem ser aqui tomadas em considerao s doutrinas mticas da transmigrao das almas e da viso da vida fundada sobre esta: so es-tes dogmas religiosos, que alm do mais no eram exclusivos da esco-la pitagrica, e no proposies cientficas. Por aquilo que diz respeito filosofia pitagrica, eu posso somente concordar com o juzo de A-ristteles, que ela tenha se consagrado inteiramente pesquisa natural (Zeller e Mondolfo 1938: 585-587).18

Mais especificamente, se no for possvel verificar com preciso quanto do pita-

gorismo do sculo V (Filolau, Arquitas) possa ser referido ao prprio Pitgoras, Zeller

16 Cf. a ampla discusso da nota 2 da p. 304. Na mesma nota, todavia (p. 307), Zeller afasta-se de Boeckh em relao autenticidade do fragmento sobre a alma-mundo (44 B21 DK), por considerar estranha a Filolau uma teoria da alma dividida em diversas partes, como aquela expressa na tradio platnico-aristotlica. Com ele concordaro em seguida Burkert (1972: 242-243) e Huffman (1993: 343). Cf. Cor-nelli (2002) para mais ampla discusso da teoria zelleriana da expanso da tradio. 17 Orig.: Loggetto della scienza pitagorica, in base a tutto ci che si detto fin qui, risulta quel medesimo di cui si occupavano tutti gli altri sistemi della filosofia presocratica, vale a dire i fenomeni naturali e i loro principi. 18 Orig.: Non possono essere qui prese in considerazione le dottrine mitiche della transmigrazione delle anime e della visione della vita fondata sopra di essa: questi sono dogmi religiosi, che oltre tutto non eran limitati alla scuola pitagorica, e non sono proposizioni scientifiche. Per ci che riguarda la filosofia pitagorica, io posso soltanto associarmi al giudizio di Aristotele, che essa sia stata consacrata tutta quanta alla ricerca naturale.

26

sugere, contudo, que as principais doutrinas devam derivar diretamente dele: in primis a

doutrina de tudo nmero, que constitui o carter diferencial mais geral da filosofia

pitagrica e que pode se resumir na afirmao pela qual o nmero a essncia de to-

das as coisas, ou seja, que tudo, em sua essncia, seja nmero (Zeller e Mondolfo

1938: 435).19 Da mesma forma, devem ser atribudas a Pitgoras as doutrinas da harmo-

nia, do fogo central e a teoria das esferas: todas elas presentes nos fragmentos de Filo-

lau, que como vimos eram considerados autnticos por Zeller.

Na mesma linha, Zeller, apesar de demonstrar conhecer bem tanto os testemu-

nhos antigos quanto os estudos orientalistas alemes a ele contemporneos, os mesmos

que aproximam a filosofia grega em geral, e o pitagorismo em especial, s tradies de

pensamento egpcias, persas e indianas, ainda assim, intitula o captulo dedicado a este

tema, de maneira incontrovertida, Contra a Origem Oriental. Zeller declara imediata-

mente a improbabilidade de uma origem oriental das doutrinas (Zeller e Mondolfo

1938: 602-606) e aposta, ao contrrio, nas origens gregas do pitagorismo e na possibili-

dade de compreend-lo perfeitamente com base nas caracterstias prprias e nas condi-

es de cultura do povo grego no sculo VI aEC. (Zeller e Mondolfo 1938: 607).20 O

pitagorismo ser, portanto, compreendido como parte de um movimento maior de re-

forma moral e religiosa, do qual fazem parte figuras como Epimnides, os poetas gn-

micos, os sete sbios; ainda que se eleve acima destes outros pela poliedricidade e a

potncia com a qual ele abraou dentro de si a inteira substncia da cultura de seu tem-

po, o elemento religioso, o tico-poltico, e o cientfico (1938: 607).21

O esforo do Zeller no sentido de separar o pitagorismo de possveis relaes pe-

rigosas com o Oriente obriga-o a fazer derivar a matemtica pitagrica de Anaximan-

dro: aos estudos matemticos, dificilmente podia ter sido introduzido naquele tempo

por alguma outra pessoa (1938: 609);22 assim como a negar qualquer influncia dos

povos itlicos autctones, anteriores colonizao drica, que sem nenhum pudor cha-

19 Orig.: che constituisce il carattere differenziale pi generale della filosofia pitagrica e il numero sia lessenza di tutte le cose, ossia che tutto di sua essenza sia numero. 20 Orig.: comprender[lo] perfettamente sulla base delle caratteristiche proprie e delle condizioni di cultura del popolo greco nel VI secolo a. C.. 21 Orig.: poliedricit e la potenza, con cui esso ha abbracciato entro di s tutta quanta la sostanza della cultura del suo tempo, lelemento religioso, quello etico-politico, e quello scientifico. 22 Orig.: agli studi matematici, difficilmente poteva a quel tempo essere introdotto da qualcun altro.

27

ma de brbaros (1938: 610-611).23 Insere-se neste mesmo projeto a insistncia na pro-

funda relao da Magna Grcia com aquele que Zeller chama de carter prprio da

estirpe drica, do qual dependeriam as instituies das cidades drico-aqueias que fo-

ram palco da atividade de Pitgoras (1938: 607). Como exemplos desse carter, Zeller

enumera, entre outros: a poltica aristocrtica, a msica tica, a sabedoria enigmtica, a

participao das mulheres na educao e na sociedade, a firme doutrina moral toda ba-

seada na medida e que no conhece nada de mais alto do que a subordinao dos indiv-

duos ao todo, o respeito pelos genitores, pela autoridade e pela velhice (1938: 608-

609).24 Com uma impostao historiogrfica como esta, marcadamente hegeliana (ve-

jam-se deste, nesse sentido, as Lices sobre a Histria da Filosofia), a concluso no

poderia ser outra seno aquela de um argumento circular e a posteriori da supremacia

grega (e pitagrica): a prova da superioridade do carter dos povos da Magna Grcia

que ali surgiu a filosofia: o terreno que a filosofia encontrou para si nas colnias da

Magna Grcia era a tal ponto favorvel. A flor qual ela pde chegar a prova disso

(1938: 611).25

Vale, portanto, tambm para Zeller, aquilo pelo que, mais recentemente, Centro-

ne chamava a ateno de Zhmud e que, de certa forma, um leitmotiv de toda histria

da crtica filosfica, no somente pr-socrtica: tem-se sempre a impresso de que o

historiador acha no autor clssico estudado a figura de si mesmo ou de suas afinidades

eletivas:

Tem-se a impresso que, por uma feliz coincidncia, a imagem de Pi-tgoras reconstruda por Zhmud, o mais possvel depurada das com-ponentes religiosas e restituda dignidade filosfico-cientfica, seja tambm aquela que ele prprio prefere (Centrone 1999: 426).26

23 E, todavia, j Mondolfo, em sua nota, lembra-se da figura de Mamerco e de um possvel centro de cul-tura matemtica na Itlia antes de Pitgoras (Zeller e Mondolfo 1938: 359). 24 Ainda que a primeira formulao desta distino tenha sido aquela de Boeckh, que distinguia entre a Sinnlichkeit jnica, cujo espelho seria o materialismo filosfico, e o Volk drico, que remete para a busca da ordem (1819: 39-42). No deve ser esquecido, alm do mais, que Boeckh era discpulo de Schleierma-cher, que por primeiro havia postulado este modelo de diviso tnica da filosofia em diversas tendncias geopolticas, e com modalidades evolucionistas, em suas aulas de 1812 publicadas postumamente sob o ttulo de Ethik 1812/3 (Schleiermacher 1990). 25 Orig.: tanto pi favorevole era il terreno che la filosofia trov per s nelle colonie della Magna Grecia. Il fiore al quale essa vi pot pervenire ne la prova. 26 Orig.: Si ha limpressione che, per felice coincidenza, limmagine di Pitagora ricostruita da Zhmud, depurata il pi possibile dalle componenti religiose e restituita a dignit filosofico-scientifica, sia anche quella che egli predilige.

28

O privilgio concedido por Zeller lectio aristotlica sobre os pitagricos tor-

nou-se, ao longo da histria da crtica moderna, um trpos historiogrfico predominan-

te, contribuindo para definir a filosofia pitagrica sobretudo a partir da tese tudo n-

mero.27 Da mesma forma, tanto a clara fratura entre o pitagorismo antigo e o neopita-

gorismo como o quase absoluto desprezo pela dimenso poltica da koinona pitagrica

influenciaram decididamente os estudos posteriores.

Exemplo da influncia do ceticismo zelleriano so certamente as lies sobre os

filsofos pr-platnicos que o amigo Nietzsche ministra em Basileia a partir do ano de

1872. signifitiva a tese que Nietzsche defende em sua aula sobre Pitgoras:

Aquilo que se denomina filosofia pitagrica algo de muito posterior, que possvel colocar somente na segunda metade do sculo V. Por-tanto, ele no tem nenhuma relao com os filsofos mais antigos, pois no foi filsofo, mas algo diferente. A rigor, se poderia exclu-lo de uma histria da filosofia mais antiga. Todavia, ele produziu um ti-po de vida filosfica: e isso os gregos lhe devem. Esta imagem exerce uma notvel influncia, no sobre a filosofia, mas sobre os filsofos (Parmnides, Empdocles). Somente nestes termos deve-se falar dele (Nietzsche 1994: 47).

A prpria possibilidade de falar de Pitgoras no interior da histria da filosofia

colocada em srias dvidas, pois sua contribuio para ela minimizada nos termos de

uma influncia sobre um genrico estilo de vida filosfico, privo de contedos. A posi-

o de Nietzsche revela um ceticismo bastante radical, portanto.28

1.2 Diels: uma coleo zelleriana

Sobre a premissa aristotlico-zelleriana de que o pitagrico seria algum que fala

dos nmeros, Diels organiza sua seleo de fragmentos e testemunhos nos Vorsokrati-

ker (Diels 1903; Diels-Kranz 1951):

27 Ao menos at os estudos de Zhmud (1989: 272ss. ; 1997: 261ss. ), conforme ser visto com mais deta-lhes, no captulo quarto. 28 Com a pergunta Pithagoras Philosophus?, Bechtle (2003) entitula, de forma indita para um trabalho manualstico, seu captulo sobre Pitgoras.

29

Foi exatamente este o critrio que H. Diels usou para selecionar quem representaria a escola pitagrica em sua edio dos fragmentos dos pr-socrticos. A fonte primria (ainda que no nica) foi o celebre catlogo dos pitagricos encontrado em Jmblico (VP: 267). Diels a-creditava que este catlogo remontasse ao peripattico Aristoxeno (Zhmud 1989: 273).29

A anotao inicial ao captulo XIV sobre Pitgoras no pode ser mais esclarece-

dora da dependncia de Zeller:

Antes da poca de Filolau no existia qualquer escrito de Pitgoras e havia somente uma tradio oral da escola mesma; por consequncia no havia uma doxografia segura. [...] Cf. os testemunhos de Xenfa-nes, Herclito, Empdocles, on sobre Pitgoras em correspondncia dos prprios autores (Diels 1903: 22).30

A influncia da coleo dielsiana para todos os estudos sobre o pitagorismo in-

discutvel.31 De Vogel (1964: 9) mostra com razo que Diels recolhe da tradio mais

tardia sobre Pitgoras e os pitagricos somente o que diz respeito diretamente a Arist-

xeno e suas Pythagorikai apophaseis (D), os Acusmata e Symbola (C), os testemunhos

aristotlicos e de escola peripattica (B) e alguma pouca referncia aos pitagoristas da

Comdia tica de Meio (E). Com isso, exclui praticamente qualquer referncia ativi-

dade poltica de Pitgoras. Mesmo a reviso da coleo feita por Kranz para a sexta edi-

o dessa obra (1951) mantm a impostao inicial do Diels: Kranz decide sim inserir,

no captulo sobre Pitgoras, o testemunho (A8a) sobre os discursos polticos de Pitgo-

ras em Crotona de Porfrio (VP: 18-19). No entanto anota De Vogel difcil que o

leve a srio (1964: 9: hardly took it seriously), como demonstraria o fato que a res-

pectiva redao dos discursos em Jmblico (VP: 37-57), como os paralelos de Pompeu

29 Orig.: It was just this criterion which H. Diels used for selecting representatives of the Pythagorean school in his edition of the fragments of the presocratics. The main source (but not the only one) he had relied on was the well-known catalogue of Pythagoreans found in Iamblichus (Vit. Pyth. 267). Diels be-lieved that this catalogue went back to the Peripatetic Aristoxenus. 30 Da es keine Schriften des Pythagoras gab und berhaupt vor Philolaos' Zeit nur mndliche Tradition der eigentlichen Schule bestand, so gibt es hier keine Doxographie. [...] Die Zeugnisse des Xenophanes [11 B7], Heraklit [12 B40.129(?)], Empedokles [21 B129], Ion [25 B4(?)] ber P. s. bei diesen! Na VI Edio revista, Kranz (1951) qualificar como entscheidend wichtigen, importantes e decisivos, Die Zeugnisse dos outros presocrticos acima citados. Ser preciso notar tambm que contrariamente ao que afirma na nota introdutria acima citada Diels acaba inserindo arbitrariamente, no fim, dois testemu-nhos doxogrficos (A 20 e 21) sobre a descoberta da identidade entre os astros Espero e Lucfero e sobre o fato de ter chamado t lon de ksmos. Cf. para isso Burkert (1972: 77 e 307). 31 Para uma resenha exaustiva do processo de elaborao da coleo, cf. Calogero (1941).

30

Trogo, continua no encontrando lugar na coleo. Os poucos testemunhos, nesse senti-

do, que Diels-Kranz coleta A13 sobre matrimnio de Pitgoras, A16 sobre a crise da

comunidade pitagrica (Iambl. VP: 248-257) so inseridos na seo Leben. Por outro

lado, Kranz no muda nada no captulo sobre a Pythagoreische Schule (58): o material

aqui citado, que diria respeito diretamente a Pitgoras, mantido com todos os cuidados

bastante separado dele, a significar uma lectio que quer afastar os contedos deste mate-

rial da autntica filosofia pitagrica.32

mister lembrar que a arbitrariedade das escolhas de Diels-Kranz ser objeto de

todos os estudos que revisaro, ao longo do sculo XX, pontualmente, essa coleo.33

1.3 Rohde: a reao ao ceticismo

A primeira reao ao franco ceticismo de Zeller em relao s fontes pitagricas

no demora a aparecer: seu ponto de partida so certamente os dois artigos que Rohde

publica, j na segunda metade do sculo XIX, na Rheinisches Museum, sobre as fontes

da Vida Pitagrica, de Jmblico (Rohde 1871; 1872). exatamente nesse campo de

trabalho da obra de Jmblico que surgem os primeiros questionamentos relativos pre-

tensa verdade absoluta da equao entre fontes tardias e sua confiabilidade. Rohde mos-

tra, com uma anlise minuciosa, as dependncias do texto de Jmblico, no da vida pa-

ralela de Porfrio, como era opinio comum at ento (Nauck 1884: x), e, sim, de fontes

neoplatnicas datadas dos sculos I e II EC, portanto, anteriores quela: notadamente

Nicmaco e Apolnio. Rohde procura fundamentar essa teoria mecnica das duas fon-

tes (Burkert 1972: 100) partindo da ideia de que tanto Porfrio quanto Jmblico escre-

veram seus textos em exerccio nem sempre bem-sucedido do ponto de vista estilstico

32 Chama ateno, todavia, que em um artigo de 1890, Diels havia sugerido atribuir ao prprio Pitgoras alguns textos pitagricos do perodo helenstico, entre eles especialmente o Kopdes, um escrito retrico reconstrudo a partir de uma referncia em Herclito, e o Paideutikn, Politikn, Physikn, na realidade escrito no sculo II aEC , em dialeto inico, para parecer mais antigo que o drico Per Physios, de Filo-lau. Para os textos, veja-se agora a coleo de Thesleff (1965). De certa forma, portanto, ainda que inici-almente propenso a dar algum valor histrico literatura pitagrica mais tardia, Diels parece mudar de ideia logo em seguida publicao da obra de Zeller, em 1855. 33 Philip (1966: 38) categoricamente fatalista em afirmar que a parte dedicada ao pitagorismo certa-mente a pior da coleo: the fragments of Pythagoras and the Pythagoreans are, perhaps inevitably, the least satisfactory part of the Vorsokratiker. No escapa da mordacidade de Philip nem sequer a coleo da Timpanaro Cardini (1958-1962): Miss Cardini is as ready as Iamblichus to baptize as a Pythagorean anyone having the remotest connection with that brotherhood.

31

de corte e colagem. A confiana em sua teoria estende-se at o ponto de ironizar o di-

vino Jmblico por sua pobreza mental e alma malemolente (Rohde 1872: 60); em

outro passo de seu segundo artigo (1872), volta a acusar Jmblico por:

Demonstrar significativa independncia em nvel to vergonhoso, ao ponto de preparar uma mistura multicolorida arrumada a partir de re-cortes de suas leituras, enquanto a sequncia desordenada e as impro-visadas passagens conectivas seriam sua prpria contribuio obra (Rohde 1872: 48).34

Apesar de no resistir s sucessivas crticas que se queixavam da impiedosa arbi-

trariedade da compreenso do processo de confeco do trabalho de Jmblico, de fato, o

trabalho de Rohde abriu o caminho para uma longa Quellenforshung: as edies da Vida

Pitagrica, de Jmblico, de Bertermann (1913) e de Deubner (1937), dependem am-

plamente das pesquisas de Rohde, assim como os estudos de Corrsen (1912), Lvy

(1926) e Frank (1923).35 Da mesma forma, os comentadores que o acompanharam neste

caminho puderam, em seguida, detectar no texto referncias a autores do sculo IV aEC,

como Aristoxeno, Dicearco, Herclide Pntico e Timeu.36 Entre eles, certamente deve-

mos considerar, in primis, Delatte, que, em seu trabalho sobre a literatura pitagrica,

antes (1915), e sobre a Vida de Pitgoras, de Digenes Larcio, depois (1922b), recolhe

em amplo espectro cronolgico e interdisciplinar as mais diferentes fontes desta obra,

inspirado exatamente na metodologia de trabalho inaugurada por Rohde. Na mesma

linha metodolgica, situa-se o trabalho sobre a poltica pitagrica de Von Fritz (1940),

que procura identificar material que possa ser referido a Aristoxeno, Timeu e Dicearco.

Assim, ao lado de Aristteles, comeam a aparecer, na literatura crtica moderna,

nomes de autores quase to antigos como referenciais para os estudos do pitagorismo

34 Orig.: Hier zeigt Jamblich eine bei einem so elenden Stoppler schon bemerkenswerthe Selbstndig-keit, indem er meist aus Brocken seiner Lektre ein bunter Allerlei herstellt, an dem wenigstens die unru-hige Unordnung der Reihenfolge und die das Einzelne nothdrftig verknpfenden Betrachtungen sein eigenes Werk sind. 35 significativo notar que somente quatro anos antes da publicao do primeiro artigo de Rohde, na mesma Rheinisches Museum fr Philologie de 1868, Friedrich Nietzsche havia publicado um artigo (1868) dedicado ao mesmo tema das fontes das biografias tardias, desta vez em Digenes Larcio. Ni-etzsche identifica, da mesma maneira que far logo mais Rohde, em autores do I sculo aEC (Favorino e Docles de Magnsia) as fontes das notcias biogrficas esparsas na obra de Digenes. O trabalho de Roh-de, portanto, deve ser compreendido, ao lado daquele de ilustres colegas, como parte de amplo esforo de validao das fontes tardias por meio do estudo da Tradition Geshichte de suas obras. 36 Cf. Burkert 1972: 4. Para uma crtica da articulao dos argumentos de Rohde nos dois artigos citados, cf. Norden (1913) e depois Philip (1959).

32

em seu nascer. Deve-se notar, nesse sentido, que j os Doxographi Graeci, de Diels

(1879), indicam Teofrasto como a fonte ltima do amplo material doxogrfico reportado

pela tradio: dessa forma, quela que Diels chama de antiga tradio peripattica (58

B DK), ser atribudo um papel central daqui para frente para a reconstruo do pitago-

rismo.

1.4 Burnet: o duplo ensinamento dos acusmticos e matemticos

Iniciador de uma brilhante tradio de scholars anglo-saxes que se dedicaram

aos estudos sobre as origens da filosofia antiga, Burnet, em sua obra Early Greek Philo-

sophy (1908), ainda devedor da lectio inaugural operada por Zeller: com efeito, de-

senvolve sua teoria tendo como pressuposto a clara separao entre a dimenso religiosa

de Pitgoras e o desenvolvimento sucessivo do movimento, assim como certa distncia

entre as preocupaes polticas e aquelas cientficas das koinonai pitagricas. Sobre

esse piso comum, Burnet elabora uma lectio prpria que no desdenha as recentes posi-

es menos cticas, como aquela de Rohde (Burnet 1908: 91 n1), inaugurando uma li-

nha interpretativa, baseada na clebre distino no interior do movimento pitagrico,

entre os acusmticos e os matemticos. Distino esta que se tornar tradicional na his-

tria da crtica e distingue, de um lado, o interesse por parte de alguns nos tabus tradi-

cionais de uma religiosidade arcaica (os akosmata e smbola) e, do outro, a franca de-

dicao pesquisa de princpios cientficos, notadamente matemticos. Distino, en-

fim, j presente nas fontes relacionadas meno didaskala dtton, ao duplo ensina-

mento de Pitgoras em Porfrio e distino entre os Pitagorus e os Pitagristas (estes

ltimos imitadores dos primeiros, e que corresponderiam aos acusmticos) em Jmblico

(Porph. VP: 37, Iambl. VP: 80).37 preciso notar que, apesar de os usos sucessivos des-

sa distino inicial tenderem a sublinhar o gap entre os dois grupos, a bem ver, essa

mesma distino no pressupe, nas intenes iniciais de Burnet assim como nas Vi-

das anteriormente citadas , alguma separao definitiva entre dois lados no interior do

mesmo pitagorismo das origens. Ao contrrio, o mesmo Burnet identifica em dois luga-

res pontos de contato: a) na complexa figura do prprio Pitgoras, que estaria na origem

37 Cf. para uma discusso sobre as fontes da distino entre acusmticos e matemticos a seo 1.2, a seguir.

33

de ambas as didaskalai (Burnet 1908: 107); b) no conceito de kathrsis, de purificao,

que conecta o aspecto religioso e aquele cientfico, uma vez que cincia tambm se tor-

na, ela prpria, um instrumento de purificao:

Precisamos considerar que h aqui um reavivamento da filosofia reli-giosa, principalmente porque se sugere a ideia de que a filosofia seja acima de tudo um estilo de vida. Mesmo a cincia era uma purifica-o, uma maneira de fugir da roda. Esta a viso expressada to fortemente no Fdon de Plato, o qual foi escrito sob a influncia das doutrinas pitagricas (Burnet 1908: 89).38

Assim, no possvel concordar com a acusao um tanto sumria de De Vogel,

pela qual Burnet no presta ateno para o carter tico-religioso do bos fundado por

Pitgoras e para a conexo essencial deste aspecto com os assim chamados princpios

cientficos (1964: 11).39 Ao contrrio, exatamente pelo conceito de purificao que

essa conexo afirmada e compreendida em sua profundidade terica, para alm da

realidade histrica concreta do movimento.40

Contudo, certamente merecedora de crticas, em Burnet, uma abordagem for-

malmente apriorstica da questo das fontes: por ela, tudo o que arcaico seria religioso,

enquanto tudo o que mais recente seria cientfico. Assim, o pitagorismo das origens

estaria ligado a modos de pensamento primitivos, facilmente detectveis na tradio dos

akosmata e smbola:

Seria fcil multiplicar as provas de uma conexo prxima entre o pita-gorismo e os modos de pensamento primitivos, mas o que foi dito j suficiente para nosso propsito. O parentesco de homens e animais, a abstinncia da carne e a doutrina da transmigrao esto todas juntas e formam um conjunto perfeitamente inteligvel (Burnet 1908: 106).41

38 Orig.: We have to take account of the religious Philosophy as revival here, chiefly because it sug-gested the view that a philosophy was above all a way of life . Science too was a purification , a means of escape from the wheel . This is the view expressed so strongly in Platos Phaedo, which was written under the influence of Pythagorean ideas. 39 Orig.: Burnet had no eye for the ethico-religious character of the bos founded by Pythagoras and for the essencial connection of this aspect with the so-called scientific principles. 40 Burnet cita (1908: 98 n3) e desenvolve aqui a intuio sobre a unidade entre cincia e religio pela kathrsis que j havia sido de Dring (1892). 41 Orig.: It would be easy to multiply proofs of the close connexion between Pythagoreanism and primi-tive modes of thought, but what has been said is really sufficient for our purpose. The kinship of men and beasts, the abstinence from flesh, and the doctrine of transmigration all hang together and form a perfect-ly intelligible whole.

34

O divisor de guas da questo das fontes torna-se, em Burnet, o matemtico A-

ristoxeno, que inaugura esta distino entre o grupo mais iluminado da escola e a parte

supersticiosa e daqui para frente hertica do pitagorismo. Nas palavras do prprio

Burnet:

poca deles, a parte simplesmente supersticiosa do pitagorismo foi abandonada, com a exceo de alguns zelotas que a direo da Socie-dade recusava-se a reconhecer. Eis porque ele apresenta o prprio Pi-tagras em luz to diferente seja das tradies mais antigas como das mais recentes; porque ele nos concedeu o ponto de vista da seita mais iluminada da Ordem. Aqueles que colaram fielmente s velhas prticas eram agora considerados herticos, e todo tipo de teorias era colocado na situao de ter de dar razo de sua existncia (Burnet 1908: 106).42

A maior purificao a cincia desinteressada (disinterested science), e, portan-

to, o ser humano que a ela se dedicar devotamente, isto , o filsofo, poder se livrar do

ciclo da gerao (1908: 107). Contudo, no foge obviamente a Burnet que a grande

questo quanto dessa viso ps-aristoxnica atribuvel ao prprio Pitgoras:

Seria imprudente afirmar que Pitgoras havia se expressado exata-mente desta maneira; mas todas essas ideias so genuinamente pitag-ricas, e somente dessa forma que podemos cobrir a distncia que se-para Pitgoras, o homem da cincia, do Pitgoras, o mestre religioso (1908: 107-108).43

A ponte que pretende separar os dois Pitgoras, o homem da cincia e o mestre

religioso, o problema central que acompanha, daqui para frente, a histria da crtica do

espinhoso problema da complexidade multifacetada do pitagorismo.

Ao mesmo tempo em que Burnet declara a necessidade de super-la, para encon-

trar em Pitgoras a origem das duas vertentes, est de fato pressupondo a existncia

delas: pois que haja uma distncia a ser superada entre pensamento cientfico e pensa-

mento religioso, tanto na antiguidade quanto hoje, esta mesma uma afirmao a ser 42 Orig.: in their time, the merely superstitious part of Pythagoreanism had been dropped, except by some zealots whom the heads of the Society refused to acknowledge. That is why he represents Pythago-ras himself in so different a light from both the older and the later traditions; it is because he gives us the view of the more enlightened sect of the Order. Those who clung faithfully to the old practices were now regarded as heretics, and all manner of theories were set on foot to account for their existence. 43 Orig.: It would be rash to say that Pythagoras expressed himself exactly in this manner; but all these ideas are genuinely Pythagorean, and it is only in some such way that we can bridge the gulf which separates Pythagoras the man of science from Pythagoras the religious teacher.

35

provada e, certamente, um preconceito hermenutico, tanto amplamente em uso quan-

to indemonstrado.

Assim, em concluso ao seu captulo dedicado ao pitagorismo, Burnet reconhece

ter elaborado sua reconstruo da figura de Pitgoras simplesmente atribuindo a ele

aquelas pores do sistema pitagrico que parecem ser as mais antigas (1908: 123).44

Todavia, a definio do que o mais antigo corresponde quase totalidade do problema

a ser enfrentado, e no pode ser resolvida sucintamente com uma cronografia positivis-

ta, como Burnet parece querer.

Ainda assim, o caso de voltar a anotar aqui: o esforo de Burnet para manter

juntas as diversas tradies sobre Pitgoras fundamental para compreender as sucessi-

vas intervenes hermenuticas sobre a literatura pitagrica, que, de Cornford a Guthrie,

desenham lentamente o caminho da composio da diversidade de tradies em que

tanto a figura de Pitgoras quanto o imediato desenvolvimento do movimento encon-

tram-se mergulhados.

1.5 Cornford e Guthrie: em busca da unidade entre cincia e religio

Em um artigo, publicado em duas partes sucessivas, na Classical Quarterly (em

1922 e 1923), intitulado significativamente Mysticism and Science in the Pythagorean

Tradition, Cornford aborda a questo, de certa forma deixada em aberto por Burnet, da

correta abordagem das relaes entre religiosidade e interesses cientficos no pitagoris-

mo, evitando reducionismos e anacronismos de matriz positivista que este ltimo apa-

rentemente no teria conseguido evitar. Os dois artigos seguem de perto a j consolida-

da perspectiva historiogrfica do autor ingls: em sua obra inaugural sobre as complexas

relaes entre mito e histria em Tucdides, Thucydides Mythistoricus (1907), o objeti-

vo o de afastar-se das tendncias da histria moderna, que seria vtima da tpica fal-

cia modernista, por projetar na obra do historiador ateniense noes de cientificidade

derivadas em seus fundamentos da biologia darwiniana e da fsica contempornea.45

44 Orig.: simply assigned to him those portions of the Pythagorean system which appear to be the old-est. 45 Para uma anlise mais ampla desta obra, assim como da posio historiogrfica de Cornford, cf. Murari (2002).

36

Sobre esse pano de fundo terico, Cornford enfrenta a vexata quaestio da pre-

sena, nos sculos VI e V aEC, de dois sistemas de pensamento diferentes e radical-

mente opostos elaborados no interior da escola pitagrica. Eles podem ser chamados

respectivamente de sistema mstico e sistema cientfico (Cornford 1922: 137).46 En-

quanto todas as tentativas hermenuticas a ele contemporneas procuram articular os

dois sistemas em uma imagem coerente do movimento, Cornford reconhece haver certa

confuso entre os dois sistemas. Essa confuso j perceptvel nas obras de Aristteles

e precisar ser desvendada. A soluo proposta por Cornford a de distinguir, no interi-

or do pitagorismo, dois momentos histricos diferentes e sucessivos, cujo divisor de

guas no comeo do sculo V aEC seria a polmica eletica contra a derivao da

multiplicidade da realidade de uma nica arch. Cornford resume da seguinte forma a

imagem do pitagorismo que resulta dividido por essa polmica:

Podemos, em uma palavra, distinguir entre (1) o sistema original de Pitgoras, datado no sculo VI, criticado por Parmnides o sistema mstico e (2) o pluralismo datado no sculo V, construdo para con-frontar as objees de Parmnides, e por sua vez criticado por Zeno o sistema cientfico, que pode ser chamado de atomismo numrico (Cornford 1922: 137).47

Essa diviso entre misticismo e cincia no pitagorismo encontra-se apenas apa-

rentemente em continuidade com a separao entre religio e cincia proposta por Bur-

net. De fato, imediatamente aps indicar a separao acima descrita, Cornford anota que

h um terceiro momento do pitagorismo, aquele de Filolau, que tambm pertence

margem mstica, mas que se coloca cronologicamente mais tarde:

H tambm (3) o sistema de Filolau, que pertence ao lado mstico da tradio, e procura acomodar a teoria dos elementos empedocleia. Es-te, para nossos atuais propsitos, pode ser deixado de lado (Cornford 1922: 137).48

46 Orig.: different and radically opposed systems of thought elaborated within the Pythagorean school. They may be called respectively the mystical system and the scientific. 47 Orig.: We can, in a word, distinguish between (1) the original sixth-century system of Pythagoras, criticized by Parmenides the mystical system, and (2) the fifth-century pluralism constructed to meet Parmenides objections, and criticized in turn by Zeno the scientific system, which may be called Num-ber-atomism. 48 Orig.: There is also (3) the system of Philolaus, which belongs to the mystical side of the tradition, and seeks to accommodate the Empedoclean theory of elements. This may, for our present purpose, be neglected.

37

O ponto mais significativo aqui a sutil mudana de perspectiva no interior da

histria da crtica que esta diviso de Cornford representa: colocando a nfase da dis-

tino entre as duas margens do pitagorismo no debate histrico com o eleatismo, retira-

se o apriorismo acima citado que postula uma anterioridade da religiosidade cin-

cia. Com efeito, ao descrever o lado mstico do movimento, Cornford afirma britanica-

mente mesmo o caso de dizer sua no evidente inconsistncia com a filosofia:

Toda tentativa de resgatar o sistema original do fundador dever, eu diria necessariamente, basear-se no pressuposto pelo qual sua filosofia e cosmologia no estariam evidentemente inconsistentes com sua reli-gio (Cornford 1922: 138).49

Com um argumento francamente antievolucionista, Cornford afirma, portanto,

que, diferentemente da primeira fase jnica da filosofia em suas origens, em que o ele-

mento religioso havia sido deixado de lado, nesse segundo momento itlico recupera-se

a dimenso religiosa da vida filosfica:

bvio que a tradio filosfica itlica difere radicamente daquela j-nica com respeito sua relao com a crena religiosa. Diferentemen-te dos Jnicos, ela comea no pela eliminao dos fatores que uma vez possuam significado religioso, mas ao contrrio com uma recons-truo da vida relgiosa. Para Pitgoras, conforme admisso geral, o amor pela sabedoria, a filosofia, era um estilo de vida. Pitgoras foi tanto um grande reformador religioso, o profeta de uma sociedade congregada pela reverncia sua memria e pela observncia de uma regra monstica, e tambm um homem de excepcionais poderes inte-lectuais, em destaque entre os fundadores da cincia matemtica (Cornford 1922: 138-139).50

Assim, a figura de Pitgoras poder ser ao mesmo tempo compreendida como a

de um reformador religioso e de um homem de cincia. A distino final dessas duas

margens acontecer s em seguida, em ocasio da polmica eleata, notadamente zeno-

49 Orig.: Any attempt to reconstruct the original system of the founder must, I would urge, be based on the presupposition that his philosophy and cosmology were not openly inconsistent with his religion. 50 Orig.: It is obvious that the Italian tradition in philosophy differs radically from the Ionian in respect of its relation to religious belief. Unlike the Ionian, it begins, not with the elimination of factors that had once had a religious significance, but actually with a re-construction of the religious life. To Pythagoras, as all admit, the love of wisdom, philosophy, was a way of life. Pythagoras was both a great religious reformer, the prophet of a society united by reverence for his memory and the observance of a monastic rule, and also a man of commanding intellectual powers, eminent among the founders of mathematical science.

38

niana; ainda que no de forma to definida, se for considerada a terceira margem filolai-

ca por ele prprio indicada (ainda que no discutida).

Raven (1948) bem compreendeu a novidade da posio de Cornford, ao afirmar

em seu Pythagoreans and Eleatics: uma das razes pelas quais a reconstruo de Corn-

ford do pitagorismo mais antiga to atrativa que ela imagina poder reconciliar o mo-

tivo religioso com aquele cientfico (Raven 1948: 9).51

Seguindo de perto os argumentos de Cornford e a imagem coerente e plausvel

que deles resulta, Raven, todavia, prope-se precisa tarefa de verificar se as conclu-

ses s quais Cornford chega sejam de fato as nicas possveis. Pois a questo no

tanto segundo Raven aquela de ter uma viso coerente do movimento, e, sim, o

quanto esta condiz com todas as nossas evidncias disponveis (tallies with all our

avaliable evidence), a comear pelos testemunhos aristotlicos, sem os quais qualquer

tentativa de construo de um discurso histrico sobre o pitagorismo , em seu dizer,

uma casa construda sobre areia (house built upon sand Raven 1948: 6).52

exatamente essa a leitura que prope Guthrie (1962), provavelmente o ltimo

grande comentador pertencente tradio de intrpretes ingleses que tem suas origens

em Burnet. No por acaso, Guthrie refere-se diretamente aos estudos citados de Corn-

ford (1922; 1923) e, depois, aos de seu discpulo Raven (1948), para exemplificar aque-

le que chama de mtodo a priori da histria da filosofia pr-socrtica. O mtodo con-

siste fundamentalmente em deixar de lado, por um instante, os testemunhos diretos ou

indiretos e procurar imaginar aquilo que os referidos filsofos teriam provavelmente

(likely) dito ou no, dadas as circunstncias histricas em que se achavam. Guthrie co-

menta assim os pressupostos tericos do mtodo:

Parte do pressuposto de que possumos certa familiaridade geral com outras escolas contemporneas e filsofos individuais e com o ambi-ente de pensamento no qual os pitagricos trabalharam. Este conheci-mento geral da evoluo da filosofia grega d a algum o que aqui se reivindica o direito de fazer julgamentos pelos quais os pitagri-cos, vamos dizer, antes de Parmnides, devem provavelmente ter sus-

51 Orig.: One of the reasons why Cornfords reconstruction of early Pythagoreanism is so attractive is that is contrives to reconcile the religious with the scientific motive. 52 certamente o caso de sublinhar que Cherniss (1977), apoiando o esforo de Raven, chega a dimi-nuir polemicamente o impacto da diviso proposta por Cornford sobre os estudiosos fora de Cam-bridge: Raven was justified in feeling that the evidence does not support Cornfords interpretation, which incidentally has never been so widely accepted outside of Cambridge as he appears to believe (1977: 376).

39

tentado a doutrina A, e impossvel que tenham, naquele estgio do pensamento em que se encontravam, j terem desenvolvido doutrina B (Guthrie 1962: 172).53

Esses pressupostos levam, assim, a postular a existncia de duas correntes da fi-

losofia em seu nascer: a jnica e a itlica.54 Todos os autores, de certa forma, sero as-

sim posicionados teoreticamente de um ou outro lado. O apriorismo do mtodo evi-

dente: talvez por isso, ainda que simpatizando por ele, Guthrie sugere a mxima caute-

la possvel em seu uso (1962: 172). E, com esta admoestao, encerra-se a preocupa-

o metodolgica tendente a controlar o evidente risco de circularidade das conclu-

ses.55

Nessa linha metodolgica, com a inteno declarada de querer compreender o

pitagorismo pr-platnico, sob pena de, caso contrrio, no entender Plato, Guthrie

afirma em geral a unidade do primeiro:

Este pitagorismo pr-platnico pode ser considerado em larga parte como uma unidade. Poderemos verificar desenvolvimentos e dife-renas como e quando quisermos, mas seria pouco sbio esperar que estes, diante do estado fragmentrio de nosso conhecimento, sejam suficientemente distinguveis ao ponto de permitir um trata-mento separado entre fases mais recentes e outras mais tardias (1962: 147).56

53 Orig.: It starts from the assumption that we possess a certain general familiarity with other contempo-rary schools and individual philosophers, and with the climate of thought in which the Pythagoreans worked. This general knowledge of the evolution of Greek philosophy gives one, it is claimed, the right to make judgments of the sort that the Pythagoreans, let us say, before the time of Parmenides are likely to have held doctrine A, and that it is impossible for them at that stage of thought to have already evolved doctrine B. 54 mesmo o caso de notar que essa diviso remonta j clssica diviso entre filosofia jnica e filosofia itlica em Digenes Larcio (Vitae I. 13). As , os dois comeos da filosofia, so identificados por Digenes Larcio, de um lado em Anaximandro para a vertente jnica, da qual faro parte Anaxme-nes, Anaxgoras, Arquelau e, enfim, Scrates; do outro lado, em Pitgoras, inventor do termo , para a outra vertente, aquela itlica, sendo este seguido pelo filho Telauge, depois Xenfanes, Parmni-des, Zeno, Leucipo, Democrito at Epicuro (D. L. Vitae I. 13-14). Para uma discusso historiogrfica mais aprofundada dos modelos historiogrficos das origens da filosofia antiga, cf. Sassi (1994) e Cornelli (no prelo). 55 Para uma crtica veemente a este apriorismo metodolgico no interior dos estudos sobre o pitagorismo, cf. Kahn (1974: 163 n6). 56 Orig.: This pre-Platonic Pythagoreanism can to a large extent be regarded as a unity. We shall note developments and differences as and when we can, but it would be unwise to hope that these, in the fragmentary state of our knowledge, are sufficiently distinguishable chronologically to allow the separate treatment of earlier and later phases.

40

Novamente, como no caso de Cornford, a distino dever ser definida, no inte-

rior do pitagorismo pr-platnico, exclusivamente em termos cronolgicos. Porm, des-

sa forma, a unidade terico-doutrinria do movimento, ao menos no interior de suas

diferentes fases histricas, garantida.

Ao mesmo tempo em que, provavelmente influenciados pelos esforos da escrita

das grandes Histrias da Filosofia do sculo XX, os estudiosos preocupavam-se em

compreender essa mesma unidade e, portanto, procurar dar conta da filosofia pitagrica

como um todo; comearam a surgir, no panorama da crtica, obras dedicadas ao estudo

de algumas reas particulares e alguns problemas especficos da Quelleforshung do pi-

tagorismo: o caso certamente dos estudos sobre a poltica, das relaes entre pitago-

rismo e Plato e da compreenso das relaes entre o pitagorismo e o mundo religioso

em sua volta. Infelizmente mesmo o caso de dizer , aps a Segunda Guerra, os dois

tipos de literatura dificilmente voltaro a dialogar entre si: os manuais de Histria da

Filosofia continuaro seguindo, em sua grande maioria, a impostao zelleriana, en-

quanto os estudos monogrficos sobre o pitagorismo revelaro complexidades at hoje

de maneira geral desconhecidas aos primeiros.

1.6 De Delatte a De Vogel: pitagorismo e poltica

Uma especial ateno na histria da crtica foi dedicada dimenso poltica do

pitagorismo, desde que, em 1830, a monografia de Krische afirmou, peremptoriamente,

o carter eminentemente poltico da societas pitagrica: o escopo da Sociedade foi

meramente poltico, no somente para restituir inicialmente o poder decado dos aristo-

crticos, mas para consolid-lo e amplific-lo (Krische 1830: 101).57

Estudos arqueolgicos das evidncias numismticas j revelavam, no comeo do

sculo XX, uma dominao das cidades pitagricas sobre todo o territrio da Magna

Grcia, o que foi comprovado pelos estudos de Kahrstedt sobre as moedas cunhadas por

Crotona e espalhadas por todo o territrio, especialmente aps a derrota de Sbaris em

510 aEC (Kahrstedt 1918, 186).58 A dominao de Crotona sobre o restante das cidades-

57 Orig.: Societatis scopus fuit mere politicus, ut lapsam optimatum potestatem non modo in pristinum restitueret, sed firmaret amplificaretque. 58 Cf. tambm Seltman (1933), De Vogel (1957: 323) e May (1966).

41

colnias dricas da Magna Grcia confirmaria as notcias da influncia poltica pitag-

rica: de fato, grande parte dessas moedas apresenta smbolos pitagricos.59

E, todavia, conforme j foi dito, as primeiras abordagens historiogrfico-

filosficas poltica pitagrica dependem fortemente da influncia do ceticismo de Zel-

ler, que, por sua vez, orientou a coleo de Diels dos Vorsokratiker: ambos concorriam

para levar a maioria dos comentadores a considerar o tema da poltica pitagrica como

simplesmente acidental (Centrone 1996: 196).

mister concordar com a opinio de que a relao entre pensamento filosfico e

prtica poltica (reformista ou menos) na histria do pitagorismo desafiou a ingenuidade

dos classicistas (D. S. M. 1943: 79): ingenuidade esta que tenderia se deixada sua

sorte a rejeitar as conexes polticas com base no argumento apriorstico pela qual um

homem como Pitgoras no poderia estar envolvido nesse tipo de atividade (Minar

1942: 15).

Portanto, o problema do envolvimento poltico dos pitagricos apresenta um

quadro de questes multifacetado: no somente por causa das relaes imbricadas entre

fontes antigas e mais recentes, pela incerta cronologia da dominao (e da derrota) dos

pitagricos na Magna Grcia e pela pouco clara influncia de Pitgoras sobre sua forma;

mas tambm, qui principalmente, pela dificuldade terica dos comentadores em arti-

cularem uma relao entre filosofia e poltica que, j a partir de Aristteles, comea a

ser vista como um tanto inapropriada.

Nesse sulco hermenutico, insere-se certamente a obra fundamental de Delatte

(1922a), Essai sur la politique pythagoricienne. Este, ao mesmo tempo em que realiza

um exaustivo estudo das fontes para a poltica pitagrica, que o leva a confiar na plausi-

bilidade de efetiva ao poltica protopitagrica em Crotona, remete para um perodo

sucessivo, notadamente para o sculo IV aEC, sculo de Arquitas e dos testemunhos de

Aristoxeno, a imbricao dessa atividade com as linhas fundamentais do pensamento

filosfico: at l, sustenta Delatte, as primeiras koinonai pitagricas procuravam, mais

diretamente, a paz interior, abstendo-se de uma ao reformista ou mais em geral

muito envolvida nas instituies polticas de suas cidades: a Sociedade deseja somente

59 Cf. as moedas em Seltman (1933: 76-80, 100, 118, 144) e May (1966: 157, 167). De maneira especial, a moeda n. 28 (Seltman 1933: 144), representando um homem barbado com a inscrio PUTHAGORES poderia ser um retrato do prpr