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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 | 1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
ISABEL CRISTINA MICHELAN DE AZEVEDO
A argumentação no Exame Nacional do Ensino Médio/2004: percursos
discursivos seguidos por jovens em processo de formação
v.1
São Paulo
2009
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 | 2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
A argumentação no Exame Nacional do Ensino Médio/2004:
percursos discursivos seguidos por jovens em processo de formação
ISABEL CRISTINA MICHELAN DE AZEVEDO
Orientador: Profª Drª Lineide do Lago Salvador Mosca
v.1
São Paulo
2009
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Departamento de Filologia e Língua Portuguesa, para obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Estudos do Discurso em Língua Portuguesa – Retórica e Argumentação
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta tese por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que citada a fonte.
Ficha Catalográfica
Azevedo, Isabel Cristina Michelan.
A argumentação no Exame Nacional do Ensino Médio: percursos discursivos seguidos por jovens em processo de formação / Isabel Cristina Michelan Azevedo. - 2009.
2 v. ; 30 cm Tese (doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH), 2009. “Orientação: Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca”. 1. Retórica. 2. Análise do discurso. 3. Filologia e Língua Portuguesa - Tese. I.
Mosca, Lineide do Lago Salvador. II. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. III. Título.
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Nome: AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de
Título: A argumentação no Exame Nacional do Ensino Médio/2004: percursos discursivos
seguidos por jovens em processo de formação
Aprovado em:
Banca Examinadora
Profª. Drª. Lineide do Lago Salvador Mosca – Orientadora
Instituição: _________________ Assinatura:________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: _________________ Assinatura:________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: _________________ Assinatura:________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: _________________ Assinatura:________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: _________________ Assinatura:________________________________
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Departamento de Filologia e Língua Portuguesa, para obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Estudos do Discurso em Língua Portuguesa – Retórica e Argumentação
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DEDICATÓRIA
À minha família, com amor, gratidão e carinho pelo apoio
incondicional aos meus projetos de vida.
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AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª Lineide do Lago Salvador Mosca por sua orientação pelas inúmeras
veredas da Retórica, pela visão aberta do processo discursivo e, sobretudo, pela confiança em
meu trabalho.
A todos os professores das disciplinas que cursei no doutorado, pois todos
influenciaram de maneira especial, mas cada um de uma maneira muito própria, minha
compreensão acerca dos fenômenos linguísticos.
À amiga Kelley Cristine Gasque pelo apoio incondicional e pelo auxílio na obtenção
dos dados junto ao INEP.
Ao INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira –
por disponibilizar os dados que serviram de base para este trabalho.
A Jacqueline Contijo, Hélder Bueno Leal e Diogo Tozetto pelo interesse em auxiliar-
me no trabalho de análise e tratamento dos dados fornecidos pelo INEP.
Aos Irmãos maristas e aos colegas de trabalho que estão sempre contribuindo com
meu desenvolvimento pessoal e profissional.
À minha mãe, Helena Michelan, por estar sempre ao meu lado, em todos os
momentos, bons e ruins, e por nunca medir esforços para que eu possa aprimorar minhas
capacidades.
Ao meu filho e marido pela compreensão, ajuda e paciência nos momentos mais
difíceis da árdua caminhada de escrever uma tese de doutorado.
Enfim, a todos que contribuíram, de alguma forma, com este estudo e, principalmente,
a Deus, pelas oportunidades de vida que estão sempre sendo colocadas à minha frente.
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(...)
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que o sonho de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
Fernando Pessoa
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RESUMO
AZEVEDO, I. C. M. de. A argumentação no Exame Nacional do Ensino Médio: os múltiplos percursos discursivos seguidos por jovens em processo de formação. 2009. 224 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Esta pesquisa tem por objetivo mais amplo investigar os recursos discursivo-argumentativos presentes nos textos produzidos no ENEM/2004, para identificar como as práticas discursivas se manifestam nas produções de jovens brasileiros que participam da última etapa da educação básica. Como o trabalho está baseado em uma teoria geral do discurso, o discurso é concebido como um produto subjetivo e também sócio-histórico, o que possibilita a integração de perspectivas teóricas diferentes, porém, a nosso ver, complementares. Pelo fato de o corpus ser constituído por textos produzidos em situação de exame, optamos por utilizar os estudos de Foucault (1969/2004a, 2004b, 1987, 1970/1996) para interpretar a situação de produção dos textos, bem como para entender os processos de subjetivação aos quais os participantes da prova estão submetidos. Para analisar as estratégias argumentativas e persuasivas presentes nos textos, como também as formas de organização e articulação das ideias apresentadas, recorremos aos estudos da Nova Retórica, segundo Perelman (1997, 1993), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), de Meyer (2007, 1998, 1992), de Maingueneau (1997, 2001, 2005, 1995/2008), de Charolles (1978/2002) e de Koch (2002, 1993, 1992). As análises dos elementos de coerência e coesão possibilitaram mapear os recursos linguísticos utilizados, associar grupos de textos à avaliação realizada pelo INEP e definir o perfil do conjunto de textos que foi analisado sob perspectivas diversificadas. A análise discursivo-argumentativa mostrou que, ao final do ensino médio, a maioria dos jovens domina os mesmos recursos já identificados em pesquisa anterior com textos infantis (AZEVEDO, 2002), revelando assim não haver evolução significativa na qualidade das produções textuais mesmo após um longo período de permanência em sala de aula. Palavras-Chave: Produção textual. Prática discursiva. Argumentação. Processos de subjetivação.
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ABSTRACT
AZEVEDO, I. C. M. de. Argumentation in the National Medium Level Exam (ENEM): multiple reasoning paths chosen by undergraduate youths. 2009. 224 f. Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. The wider goal of this paper is to investigate the discursive-argumentative resources present in the texts produced for the ENEM 2004, in order to identify the discursive practices used in the texts written by Brazilian youths that take part in this last stage of basic education. As this paper is based on the general theory of discourse, discourse is seen as both a subjective and a social-historical outcome, which allows the integration of different theoretical perspectives that in our view are complementary. Due to the fact that the corpus is a set of texts produced in the situation of an exam, we chose to use Foucault’s work (1969/2004a, 2004b, 1987, 1970/1996) to interpret the situation in which the texts were produced, and also to understand the subjectivation process that students taking the exam are going through. In order to analyze argumentative and persuasive strategies present in the texts, as well as the form in which the ideas presented are organized and articulated, we have resorted to the New Rethoric of Perelman (1997, 1993), according to Perelman and Olbrechts-Tyteca (1996), Meyer (2007, 1998, 1992), Maingueneau (1997, 2001, 2005, 1995/2008), Charolles (1978/2002), and Koch (2002, 1993, 1992). The analysis of elements indicating coherence and cohesion have allowed us to map the linguistic resources employed, to associate groups of texts to the evaluation conducted by INEP, and to define the profile of the group of texts that were analyzed under different perspectives. The analysis of discourse/argumentation has revealed that by the end of the 9th grade most youths master the resources previously identified in a former study of texts produced by children (AZEVEDO, 2002), thus revealing that there was no significant evolution in the quality of text production, even after several additional years of schooling. Keywords: Text production. Discursive practice. Argumentation. Subjectivation processes.
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RÉSUMÉ
AZEVEDO, I. C. M. de. L'argumentation dans l'examen national brésilien ENEM: les parcours discursifs suivis par des jeunes en voie de formation. 2009. 224 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Cette recherche a pour but l'étude des procédés discursifs-argumentatifs présents dans les textes de l'examen brésilien ENEM de l' année 2004, qui vise à identifier comment les pratiques de l'apprentissage se manifestent dans les rédactions des jeunes brésiliens qui participent de la derniére étape de l'éducation de base. Etant donné que ce travail est fondé sur une théorie générale du discours, conçu comme produit subjectif, aussi bien que sous une préoccupation socio-historique, il rend possible l'intégration des perspectives théoriques assez diversifiées, à notre avis complémentaires. Du fait que le corpus est constitué par des textes conçus et rédigés dans la tension d'examen, on a préféré suivre les études de Foucault (1969/2004a, 2004, 1987, 1970/1996), en ce que concerne l'interprétation des textes des éléves et également le processus de subjectivation auquel les participants de l'examen ont été assujettis. Pour l'analyse des stratégies et arguments de persuasion présents dans les textes, ainsi que pour les formes d'organisation et d' articulation des idées, on a eu recours aux études de la Nouvelle Rhétorique selon Perelman (1997, 1993), Perelman et Olbrechts-Tyteca (1958/1996), Meyer (2007, 1998, 1992), Maingueneau (1997, 2001, 2005, 1998/2008), Charolles (1998/2002) et Koch (2002, 1993, 1992). Les analyses des éléments de cohérence et cohésion ont permis de repérer les ressources linguistiques et d'associer des ensembles de textes l'évaluation menée par l'INEP, de définir le profil de l'ensemble des textes sous une perspective diversifiée. L'analyse discursive-argumentative a montré que, à la fin de l'enseignement secondaire, la majorité des étudiants maîtrise les mêmes procédés déjà identifiés dans la recherche antérieure à propos des textes enfantins (AZEVEDO, 2002), ce qui revèle qu' il n'y a pas eu d' évolution significative dans la qualités des textes, tout de même après une longue période de permanence en classe. Mots-clés: Production textuelle. Pratique discursive. Argumentation. Procédés de subjectivation.
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ..................................................................... 14
1. PROBLEMATIZAÇÃO ........................................................................................... 17
2. HIPÓTESE E OBJETIVOS DE PESQUISA ......................................................... 20
3. JUSTIFICATIVA DO CORPUS ............................................................................ 22
Capítulo I
1 A ARGUMENTAÇÃO NA EDUCAÇÃO : uma visão geral do trabalho com
textos dissertativos na educação de jovens ...............................................................
25
1.1 ORIGENS DA ARGUMENTAÇÃO ....................................................................... 25
1.2 SURGIMENTO DA DISSERTAÇÃO COMO DISCIPLINA ESCOLAR A
PARTIR DO SÉCULO XVIII NA FRANÇA ..........................................................
35
1.3 PRESENÇA TARDIA DA DISSERTAÇÃO NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA 46
1.4 PAPEL DA ARGUMENTAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE ....................... 57
1.5 PRESENÇA DA DISSERTAÇÃO NAS PROVAS DO EXAME NACIONAL
DO ENSINO MÉDIO – ENEM................................................................................
62
Capítulo II
2 BASES CONCEITUAIS PARA COMPREENSÃO DAS PRÁTICAS DE
ESCRITA COMO MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS ...................................
75
2.1 TEORIA GERAL DO DISCURSO .......................................................................... 75
2.1.1 Teoria da Argumentação à luz da Nova Retórica ............................................. 80
2.1.1.1 Operadores argumentativos ............................................................................... 94
2.2 FOUCAULT E OUTROS ANALISTAS DO DISCURSO DISCUTEM OS ATOS
DE LINGUAGEM E AS INTERAÇÕES VERBAIS ....................................................
98
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2.3 CONSTRUÇÃO DE COMPETÊNCIAS DISCURSIVO-ARGUMENTATIVAS
NAS PRÁTICAS ESCOLARES DE ARGUMENTAÇÃO........................................
114
2.4 EXERCÍCIO DA AUTORIA NO (USO) COTIDIANO DAS LINGUAGENS ........ 130
2.5 INTERFACES ENTRE O LETRAMENTO DO EDUCANDO/DO EDUCADOR
E A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES .......................................................
147
Capítulo III
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS SELECIONADOS PARA O
TRABALHO .............................................................................................................
153
3.1 OS PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE ............................................... 153
3.2 O QUADRO GERAL DA ANÁLISE SEGUNDO A LINGUÍSTICA TEXTUAL.. 160
3.3 ANÁLISE DO CORPUS ........................................................................................... 161
3.3.1 Características dos textos em relação à coesão e à coerência, segundo
Charolles.....................................................................................................................
161
3.3.2 Análise discursivo-argumentativa dos textos ...................................................... 177
3.3.2.1 Características do jogo discursivo de uma identidade marcada pela forma da
repetição .....................................................................................................................
177
3.3.2.2 Elementos linguístico-discursivos que contribuem para a organização da
argumentação ..............................................................................................................
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 208
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 215
APÊNDICES ................................................................................................................... 225
ANEXOS .......................................................................................................................... 240
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Lista de Tabelas
Tabela 1 Participação no ENEM .............................................................................. 15
Tabela 2 Média Geral do desempenho dos participantes/ano de aplicação do ENEM ........................................................................................................
16
Tabela 3 Frequencia e percentual de alunos nos estágios de construção de compe-tências – Língua Portuguesa – 3ª série do Ensino Médio – Brasil - 2001
17
Tabela 4 Distribuição dos inscritos, segundo região e ano de realização do ENEM/ 2004 ........................................................................................................................
62
Tabela 5 Distribuição dos participantes, segundo notas de redação – geral – ENEM/ 2004 ........................................................................................................................
67
Tabela 6 Número de Redações apresentadas e consideradas na análise – geral – ENEM/ 2004 ..........................................................................................................
68
Tabela 7 Distribuição dos participantes, por faixa de desempenho, segundo a nota geral e a competência .....................................................................................................
69
Tabela 8 Distribuição dos alunos que estudaram a maior parte do ensino médio em escola particular, segundo o gênero .....................................................................
72
Tabela 9 Distribuição dos alunos que estudaram a maior parte do ensino médio em escola particular, segundo a escolaridade do pai .................................................
72
Tabela 10 Distribuição dos alunos que estudaram a maior parte do ensino médio em escola particular, segundo a escolaridade da mãe ...............................................
72
Tabela 11 Distribuição dos alunos que estudaram a maior parte do ensino médio em escola particular, segundo a renda familiar ..........................................................
73
Tabela 12 Distribuição dos alunos por ano de conclusão do EM e gênero (%) ......... 171
Tabela 13 Distribuição dos alunos por regiões do Brasil (%) .................................... 173
Lista de Ilustrações
Figura 1 – Quadrado Semiótico – liberdade vs. Submissão ..................................... 179
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Lista de Quadros
Quadro 1 Aspectos considerados na avaliação de cada competência ................................ 66
Quadro 2 Sinopse dos procedimentos argumentativos .............................................. 86
Quadro 3 Letramento e Alfabetização ....................................................................... 148
Lista de Gráficos
Gráfico 1 Notas do ENEM – grupo 1 (%) ................................................................. 171
Gráfico 2 Notas do ENEM – grupo 2 (%) ................................................................. 171
Gráfico 3 Notas do ENEM – grupo 3 (%) ................................................................. 171
Gráfico 4 Notas do ENEM – grupo 4 (%) ................................................................. 171
Gráfico 5 Distribuição do conjunto dos alunos por tipo de escola (%) ..................... 172
Gráfico 6 Tipo de Escola – Grupo 1 (%) ................................................................... 172
Gráfico 7 Tipo de Escola – Grupo 2 (%) ................................................................... 173
Gráfico 8 Tipo de Escola – Grupo 3 (%) ................................................................... 172
Gráfico 9 Tipo de Escola – Grupo 4 (%) ................................................................... 173
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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir.
Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta
minha alma falando e cantando, às vezes, chorando...
Clarice Lispector
Avaliações internacionais e nacionais das quais os jovens brasileiros têm participado
mostram-nos que muitos deles não apresentam o domínio de várias capacidades de
linguagem. Quando são observados os resultados obtidos nas provas organizadas pelo
Programme for International Student Assessment1 (PISA), realizadas em 2000 e cujo foco foi
a leitura, notamos que os 4,8 mil alunos de 7ª e 8ª séries do ensino fundamental e do 1ª e 2ª
séries do ensino médio, que alcançaram média de 396 pontos numa escala que pode
ultrapassar 626, foram classificados no nível 1, o mais elementar, pelo fato de, em geral, não
conseguirem comparar diferentes ideias, interpretar diferentes sentidos, avaliar criticamente
uma hipótese, entre outros aspectos.
Em 20032, data da segunda aplicação do exame, que é realizado a cada três anos, os
alunos demonstraram poucas diferenças em relação aos resultados de 2000. Em Leitura e
Ciências, embora tenha sido registrada uma ligeira melhora de desempenho, impressiona
perceber a dificuldade de nossos jovens em operacionalizar esquemas cognitivos e em realizar
tarefas com diferentes tipos de textos que exigem não apenas recuperação de informação
específica, mas também demonstração de compreensão geral, interpretação de texto e reflexão
1 PISA é um programa de avaliação comparada cuja principal finalidade é avaliar o desempenho de alunos de 15
anos de idade para produzir indicadores sobre a efetividade dos sistemas educacionais. É desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
2 O resultado do exame aplicado em 2006 será publicado no segundo semestre deste ano.
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sobre seus conteúdos e características, com vistas à construção de argumentações que
possibilitam defender um ponto de vista.
De maneira similar, o SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica)
formula testes de habilidades e competências, construídos por especialistas em Língua
Portuguesa e Matemática, e utiliza as mais avançadas técnicas estatísticas para diagnosticar o
nível educacional de determinadas séries. O objetivo é avaliar a qualidade, equidade e
eficiência do ensino-aprendizagem nos ensinos fundamental e médio. O SAEB, por meio de
sua série histórica de seis anos, evidenciou quedas nas médias gerais de proficiência nas duas
áreas de conhecimento avaliadas, nos resultados gerais para o Brasil, as regiões e as unidades
da Federação.
Os dados indicam que 42% dos alunos da 3ª série do ensino médio estão nos estágios
“muito crítico” e “crítico” de desenvolvimento de habilidades e competências em língua
portuguesa. São estudantes com dificuldades em leitura e interpretação de textos de gêneros
variados. Não são leitores competentes e estão muito aquém do esperado para o final do
ensino médio. Os denominados “adequados” somam 5%. São os que demonstram habilidades
de leitura de textos argumentativos mais complexos. Relacionam tese e argumentos em textos
longos, estabelecem relação de causa e consequência, identificam efeitos de ironia ou humor
em textos variados, efeitos de sentidos decorrentes do uso de uma palavra, expressão e da
pontuação, além de reconhecerem marcas linguísticas do código de um grupo social.
Entre 1995 e 2001, a média nacional de desempenho em língua portuguesa apresentou
quedas constantes, caindo 10% em todo o período. No primeiro ano referido, as cinco regiões
brasileiras estavam no estágio “intermediário”, segundo a leitura das médias dos estudantes.
No último ano pesquisado, Norte e Nordeste caem para o estágio “crítico”, justamente as
regiões mais pobres do país. As demais estavam próximas do estágio “adequado”, em 1995,
mas em 2001, ficaram próximas do estágio “crítico”. Ressalta-se que nenhum Estado
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brasileiro apresentava média de desempenho “adequada”; 17 encontravam-se no estágio
“intermediário” e 10 estavam no “crítico”.
Também no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em 1998, para ser aplicado
anualmente aos alunos concluintes e aos egressos desse nível de ensino, com o objetivo
fundamental de avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir
o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania, os
resultados não são animadores.
Ao longo da aplicação do ENEM, observa-se um crescimento significativo na
participação dos jovens que concluíram o ensino médio (Tabela 1), principalmente após o fato
de os resultados começarem a ser utilizados por instituições de ensino superior vinculadas ao
Programa Universidade para Todos (ProUni), em 2005, mas com resultados bem abaixo do
esperado para alunos concluintes da educação básica, uma vez que, pelos próprios critérios do
Governo Federal, atribui-se o conceito de insuficiente a regular para as notas entre 0 e 40;
regular a bom, entre 40 e 70; bom a excelente, de 70 a 100 (Tabela 2).
Tabela 1 - Participação no ENEM
Ano n° participantes
2000 332.551
2001 1.200.883
2002 1.211.005
2003 1.322.644
2004 1.035.642
2005 2.199.214
2006 2.783.968
2007 2.738.610
Fonte: Inep/MEC
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Tabela 2 - Média Geral do desempenho dos participantes/ano de aplicação do ENEM
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Redação
60,87 52,58 54,31 55,36 48,95 55,96 52,08 55,99
Fonte: Inep/MEC
Por concordar com Guedes (1994, p. 11) ao afirmar que, por meio do ensino de língua
portuguesa, o aluno deveria ser levado a escrever para equacionar problemas, buscar
esclarecimentos, organizar ideias, dar opiniões, reordenar conjunto de ideias numa linguagem
própria, pessoal, capaz de expressar com clareza e precisão o seu depoimento a respeito da
realidade observada, quando analisamos os resultados supracitados, muitos de nós,
especialmente os que trabalham no Brasil com o ensino da língua materna, entendem que é
preciso haver um esforço conjunto por parte de membros da sociedade e, sobretudo, da
academia para tentar compreender o quadro vigente e apontar caminhos que possam
contribuir para a reversão de tal situação.
1. PROBLEMATIZAÇÃO
Sabemos que, de acordo com as Diretrizes Nacionais para o Ensino Médio, Parecer
CEB nº 15/98, ao final da educação básica, o aluno deve estar preparado para enfrentar dois
grandes desafios, a saber: dar continuidade aos estudos no ensino superior e/ou exercer uma
profissão. Assim sendo, o perfil pedagógico do ensino médio tem como ponto de partida a
LDB 9394/96 e deverá continuar o processo de desenvolvimento da capacidade de aprender,
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 18
com destaque para o aperfeiçoamento do uso das linguagens como meios de constituição dos
conhecimentos, da compreensão e da formação de atitudes e valores.
Essa meta exige, portanto, uma preocupação especial com o trabalho realizado na área
de códigos e linguagens, uma vez que o projeto atual de formação do aluno de ensino médio
visa ao desenvolvimento da capacidade de comunicação que possibilita acessar
conhecimentos variados, relacionar informações e intervir na realidade em que se encontra
inserido para vivenciar o exercício da cidadania.
Contudo, o que se observa em diferentes avaliações, desde a década de 90, em relação
à língua portuguesa, é uma realidade bem distinta e distante desse objetivo, cuja análise revela
um panorama preocupante – como pode ser visto na Tabela 3, a seguir3 –, que requer
intervenções urgentes e de diversos grupos da sociedade.
Fonte: Daeb/Inep/ MEC
3 Dados retirados do documento Qualidade Educação Básica, Saeb, 2004. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2008.
Tabela 3 – Frequência e percentual de alunos nos estágios de construção de competências – Língua Portuguesa – 3ª Série do Ensino Médio – Brasil – 2001
Estágio População %
Muito Crítico 101.654 4,92
Crítico 768.903 37,20
Intermediário 1.086.109 52,54
Adequado 110.482 5,34
Total 2.067.147 100,00
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 19
Diante de todo o quadro apresentado neste trabalho, o problema de pesquisa está
circunscrito à dificuldade de os jovens brasileiros conseguirem expressar informações e
conceitos em produções escritas, a partir de materiais verbais e visuais, oferecidos como um
contexto específico que os textos deveriam discutir ao evidenciarem um certo ponto de vista.
Para organizar melhor o percurso da pesquisa, tal problema foi subdividido em dois
ângulos, como pode ser visto abaixo:
a) Que competências discursivo-argumentativas podem ser identificadas nos textos
produzidos por jovens brasileiros ao final da educação básica?
b) De que maneira as etapas de formação relativas ao aprendizado da língua portuguesa
se relacionam aos processos de subjetivação da juventude brasileira?
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2. HIPÓTESE E OBJETIVOS DA PESQUISA
A preocupação com a produção e o ensino de textos argumentativos pode ser
observada em diversos estudos que foram orientados em diferentes instituições acadêmicas,
pois vários educadores ligados ao ensino da língua portuguesa têm se preocupado com a
qualidade da produção dos alunos concluintes do ensino médio.
Se observadas em conjunto, as dissertações e teses defendidas até agora apontam
questões inseridas na área da aquisição da linguagem, das práticas pedagógicas, da literatura,
etc., que nos parecem extremamente pertinentes e sugestivas.
No entanto, a oportunidade de lidar com a problemática a partir de textos produzidos
em avaliações do ENEM4, em uma perspectiva discursivo-argumentativa, parece ter também
um importante papel a cumprir.
Se partimos da hipótese de que deveria haver um percurso evolutivo ao longo das
séries do ensino fundamental e médio, pensamos que seria possível identificar as
características desse processo e encontrar algumas estratégias que pudessem contribuir com a
transformação de uma realidade educacional que, certamente, inquieta muitos brasileiros,
ligados diretamente ou não ao trabalho realizado nas escolas.
Assim sendo, o objetivo geral da pesquisa está centrado na perspectiva discursivo-
argumentativa que pretende analisar as características referentes à organização das partes do
texto, à tipologia de argumentos, ao uso de operadores argumentativos e à constituição e
manifestação dos sujeitos por meio das posições que revelam em relação a determinados
4 ENEM é um exame nacional organizado para oferecer uma referência a cada cidadão para que este possa
proceder à sua autoavaliação com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mundo de trabalho quanto em relação à continuidade dos estudos; para estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de seleção nos diferentes setores do mundo de trabalho; para possibilitar a participação e criar condições de acesso a programas governamentais.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 21
assuntos, uma vez que os discursos são práticas descontínuas que se cruzam5 nas informações
valorizadas e compartilhadas na sociedade.
Diante da observação das dificuldades de muitos jovens na explicitação e justificação
de sua posição diante de um fato controverso, estabelecemos os seguintes objetivos
específicos:
a) analisar e descrever a forma como as partes do discurso são apresentadas e, em
particular, como a dispositio, isto é, a planificação dos textos preponderantemente
argumentativos se configura;
b) identificar a variedade de argumentos e de recursos linguísticos utilizados nos textos –
considerando a classificação de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) e de
Maingueneau (1997, 2001, 2005) –, que foram elaborados com a intenção de
apresentar uma posição enunciativa;
c) discutir o quanto as práticas pedagógicas têm influenciado os processos pelos quais a
subjetividade dos alunos vem sendo produzida, ou seja, buscar-se-á apontar como as
relações de poder e com o saber interferem na constituição dos sujeitos.
Em síntese, pretende-se investigar se para argumentar os estudantes são capazes de
antecipar as possíveis intenções, interesses, conhecimentos, pontos de vista do outro, para
construir um discurso adaptado às condições de produção e às propriedades da argumentação.
5 Mas também, por vezes, se ignoram e excluem.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 22
3. JUSTIFICATIVA DO CORPUS
A sociedade contemporânea impõe às crianças a necessidade de aprenderem a
justificar suas opiniões e a persuadir seus interlocutores desde muito cedo, por isso nos
últimos tempos observa-se uma maior preocupação com a organização do trabalho dos
professores, como vemos registrada nos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa:
os aspectos polêmicos inerentes aos temas sociais, por exemplo, abrem possibilidades para o trabalho com a argumentação – capacidade relevante para o exercício da cidadania –, através da análise das formas de convencimento empregadas nos textos, da percepção da orientação argumentativa que sugerem, da identificação dos preconceitos que possam veicular no tratamento de questões sociais, etc. (BRASIL, 1988)
Por outro lado, reconhecemos que os meios de comunicação de massa – em particular
a mídia televisiva – influenciam sobremaneira a formação social e cultural dos indivíduos,
concorrendo para uma certa massificação da linguagem – por meio do uso excessivo de
lugares-comuns, de chavões, de estruturas sintáticas simples demais, de posicionamentos
parcamente justificados – e para uma diminuição do senso crítico sobre a manifestação dos
fatos e dos signos.
Ao elaborar um texto de caráter opinativo, então, crianças e jovens precisarão
transmitir uma imagem de confiabilidade que deverá estar associada a argumentos coerentes,
ligados à realidade na qual estão inseridos ou a estudos realizados ao longo da vida escolar e
social, o que se configura numa atividade complexa e interdisciplinar bastante exigente.
Em função disso, resolvemos adotar como corpus da pesquisa de doutorado textos
produzidos em uma das avaliações do ENEM, uma vez que por meio desse instrumento há a
intenção de avaliar o desempenho dos alunos brasileiros ao término da escolaridade básica,
para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 23
Além disso, embora esse seja um exame nacional aplicado desde 1998, e os textos dos
participantes sejam digitalizados ano a ano, poucos trabalhos foram realizados a partir de um
material tão representativo. Como em cada edição do exame é constituída uma nova prova,
não haverá condições para compararmos os resultados, mas poderemos apresentar um quadro
detalhado que poderá servir de referência para outros trabalhos que avaliem a performance de
alunos concluintes da educação básica.
Após vários contatos com o INEP, ao longo de oito meses, tivemos acesso a uma
parcela significativa dos textos utilizados em 2004, ano em que cerca de 1,5 milhão de
estudantes e egressos do ensino médio se inscreveram, dos quais 67,8% (N) realizaram a
prova. Por termos optado por uma amostragem probabilística, os resultados provenientes
deste estudo poderão ser generalizados estatisticamente para a população em questão. O CD
fornecido pelo Instituto contém a cópia de 2581 redações (n), totalizando 0,25% do total de
textos corrigidos, o que constituirá a população de estudo deste trabalho.
Como a intenção do INEP é oferecer uma referência para que cada cidadão possa
proceder à sua autoavaliação com vistas às suas escolhas futuras, as redações são numeradas
sequencialmente e não há distinção entre a procedência do aluno ou o tipo de escola onde
estuda. Foram necessários novos contatos para obtermos, muito tempo depois, os dados do
perfil dos alunos, solicitados na banca de qualificação.
Decidimos utilizar tanto no relatório de qualificação quanto na tese uma amostragem
aleatória simples (AAS)6. Na tese 249, como acordado na qualificação, trabalhamos com textos,
selecionamos como corpus, também escolhidos aleatoriamente, com a intenção de apresentar
uma modalidade de análise que pudesse contribuir com as reflexões acerca das características
de escrita do jovem brasileiro ao final do ensino médio.
6 Vale destacar que a AAS é um processo de amostragem em que qualquer subconjunto de n elementos
diferentes de uma população de N elementos tem a mesma probabilidade de ser sorteado.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 24
O trabalho está dividido em três partes fundamentais, estruturadas de maneira a
apresentar os pressupostos teóricos que fundamentam nossa pesquisa e para desenvolver a
análise previamente anunciada.
No primeiro capítulo, realizamos uma breve retomada das origens da argumentação
para justificar o aparecimento da dissertação-argumentativa como gênero escolar na França e,
posteriormente, no Brasil, para entendermos o contexto em que a proposta de produção
textual do ENEM se insere. Também enfatizamos que a argumentação assume hoje, na
sociedade contemporânea, um papel de destaque que justifica um olhar mais aprofundado
sobre as estratégias de escrita de gêneros preponderantemente argumentativos.
No segundo capítulo, apresentamos as bases da Nova Retórica que servirão de
referência para a análise do corpus no que se refere ao uso dos elementos argumentativos,
assim como às concepções da Análise do Discurso, especialmente na perspectiva
foucaultiana, que possibilitarão entender os modos de constituição do sujeito em fase de
formação.
No terceiro capítulo, realizamos a análise textual propriamente dita sob duas
perspectivas: 1) a análise baseada na linguística textual, segundo Charolles (1978/2002),
permitirá entender os mecanismos de coesão e coerência presentes nos textos, para que
possamos identificar as regularidades que nos permitirão entender o conjunto de textos como
um totus, segundo define Discini (2004); 2) a análise principal desta pesquisa procura mapear
os recursos discursivo-argumentativos presentes no corpus, para que possamos identificar um
perfil comum entre os textos produzidos por jovens ao final da educação básica.
Nas considerações finais, teremos a oportunidade de fazer uma retrospectiva geral das
análises empreendidas, visando entender melhor a situação em que se encontra o ensino da
argumentação em território nacional, uma vez que a amostra utilizada nos permite
generalizações quanto aos elementos identificados nas produções textuais.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 25
Capítulo I
1 ARGUMENTAÇÃO NA EDUCAÇÃO: uma visão geral do trabalho com textos
dissertativos na educação de jovens
1.1 ORIGENS DA ARGUMENTAÇÃO
Os mais profundos pensamentos filosóficos acham-se já preparados na linguagem.
Friedrich Nietzsche
Por sabermos que a concepção atual de argumentação está identificada com a
concepção da Antiguidade Clássica de retórica e de dialética, o conceito que iremos utilizar
neste trabalho retoma o pensamento de Aristóteles (385-322 a.C.), mas procura integrá-lo a
outros estudos contemporâneos que permitam compreender melhor a participação dos sujeitos
no jogo discursivo que se estabelece quando duas (ou mais) afirmações pessoais ou alegações
são apresentadas acerca de um mesmo assunto7 em uma perspectiva persuasiva.
Constatamos que, desde o século V a.C, quando não se tratava de lidar com aquilo que
pudesse ser considerado verdadeiro (absoluto), mas se pretendia tratar de temas ligados ao
âmbito do provável e do verossímil, sobretudo em situações práticas, na maior parte das vezes
jurídicas, buscava-se o apoio da dialética e da retórica, respectivamente, para organizar o
pensamento e apresentar as ideias (REBOUL, 1998, p. 2).
Na mesma época, na Sicília, Córax e Tísias, autores do primeiro manual de retórica já
explicavam que o argumento não tinha, necessariamente, compromisso com a verdade dos
fatos, pois estavam preocupados em fornecer aos seus concidadãos os meios de defesa de seus
direitos diante de juízes, no momento histórico da passagem da tirania para a democracia, 7 Segundo a etimologia da palavra dissertação, temos a seguinte composição: prefixo latino di + raízes
vernáculas aglutinadas entre si (sert + ção) = duas + asserções, afirmações, alegações.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 26
quando numerosos processos surgiram diante dos tribunais (FONSECA, 1999, p. 101ss.). Tal
necessidade inspirou a criação de uma arte que rapidamente pudesse ser ensinada nas escolas8
e que habilitasse os cidadãos a lutarem por suas causas (ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p.
19).
Se no universo das ocupações humanas não existem verdades absolutas, seguras,
unívocas, mas sim argumentos mais ou menos convincentes que podem ser mais competitivos
quando se tornam melhores que outros, a arte de persuadir necessita se apoiar em um quadro
teórico amplo o suficiente para distinguir e organizar as variadas opiniões (doxa) e para
explicitar posições assumidas pelos sujeitos na/pela linguagem.
Em A Retórica, de Aristóteles, vemos que tal preocupação se fazia presente, o que
gerou a análise de várias questões técnicas, relativas aos conteúdos lógicos, psíquicos e
sociais que fazem parte da capacidade argumentativa.
Para tratar do caráter lógico (logos), recorre basicamente à dialética, que permite
entender o jogo constituído a partir de premissas possíveis, prováveis – do que parece ser
verdadeiro a todos ou a maioria das pessoas –, em relação às opiniões contrárias, que se
colocam inevitavelmente, assim que uma afirmação se concretiza. A retórica utiliza as provas
de ordem intelectual, os argumentos pertinentes a um determinado contexto,9 para conseguir
que os ouvintes cheguem a uma mesma noção (juízo), isto é, aceitem o ponto de vista que está
sendo defendido pelo orador.
Aristóteles esclarece ainda que persuadir não é um objetivo que seja alcançado apenas
a partir de provas lógicas, dignas de crédito, a retórica deve utilizar-se também do ethos e do
pathos para construir provas que poderão agir sobre as pessoas.
8 Como os sofistas foram os responsáveis por levar a Teoria Retórica para Atenas, desde o início houve maior
preocupação com o estudo da gramática, dos sinônimos, das frases bem elaboradas, das figuras retóricas, etc. que permitissem a construção de um discurso bem elaborado, capaz de sustentar uma disputa oral pela comparação de argumentos verossimilhantes, pelo uso de argumentos ilusórios, enganosos para criar a persuasão (FONSECA, 1999, p. 101-102).
9 Aristóteles, II, 1396b (apud ARISTÓTELES, 2005).
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A forma como o orador se apresenta e como dá a entender suas posições determina o
estado de espírito com que se recebe uma ideia, assim como os sentimentos que perpassam os
ouvintes durante a interação, posto que as emoções alteram significativamente os seres
humanos e modificam suas disposições e pensamentos10.
A partir dessas considerações, Aristóteles elaborou um sistema retórico que leva em
conta os três aspectos concernentes aos discursos: a origem das ideias e provas, as partes que
os organizam e os elementos relativos à expressão enunciativa.
Segundo Mosca (1999, p. 20-31), Aristóteles reconhecia a Retórica não como um
mero exercício intelectual, mas como uma atividade humana em que o estoque material
cultural do qual se tiram os argumentos, as provas e outros meios de persuasão (inventio), o
arranjo das partes do texto (dispositio), os recursos de expressão (elocutio) e, na oralidade,
também os elementos suprassegmentais (ritmo, pausa, entonação, timbre de voz), a
gestualidade (actio) e a memória (memoria) devem estar a serviço da defesa de pontos de
vista de relevância social.
Como atualmente é consenso admitir que a argumentação eficaz depende tanto da
escolha dos argumentos quanto da maneira de articulá-los e mobilizá-los de forma adequada,
vemos que a descrição feita por Aristóteles ainda pode orientar aqueles que estejam
envolvidos em um jogo interacional em que um necessite persuadir ao outro (MOSCA, 2004,
p. 132).
Contudo, ao pensar sobre os elementos que constituem a inventio, é preciso considerar
que a escolha do repertório de temas e tópicos não é mais visto como um ato isolado,
particular, único, pois desde os trabalhos de Foucault (1971/2004c) admitimos que, no interior
de um discurso, o sujeito, historicamente constituído, está submetido a coerções diversas –
como o interdito, que determina o que pode ou não ser dito para que possa ser aceito; os
10 Aristóteles, I e II, 1377b; 1378a (apud ARISTÓTELES, 2005).
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 28
parâmetros reconhecidos pelo senso comum como razoáveis; as restrições definidas pelas
áreas de conhecimento; os conteúdos que podem ser considerados verdadeiros, válidos ou
não, de acordo com a tradição do pensamento humano, entre outras –, está vinculado aos
textos, acompanhados de suas respectivas interpretações, produzidos por outros sujeitos em
diferentes tempos e lugares, participa de um jogo de identidade que reatualiza
permanentemente variadas regras linguísticas e sociais, enfim não podemos deixar de levar
em conta todas as condições que delimitam a produção discursiva.
Também diz respeito à inventio a adaptação da matéria ao gênero do discurso, o que
requer uma preocupação com a adequação do dizer às esferas de atividades humanas. Em A
Retórica, de Aristóteles, vemos que os três gêneros da retórica foram definidos de acordo com
o tipo de ouvinte que se tinha pela frente e com os fins que foram estabelecidos previamente
pelo orador. Nesse sentido, vê-se que o conhecimento era situado, isto é, os assuntos
abordados e os modos de dizer estavam vinculados à situação de produção. Tal concepção
aproxima-se bastante do conceito de gênero do discurso proposto por Bakhtin em 1952/53,
que tem sido utilizado por diferentes correntes linguísticas.
No entanto, ao longo da história da teoria dos gêneros literários e retóricos, embora
Aristóteles não separasse as formas de escrita de suas funções, bem como das respectivas
atividades sociais em que ocorriam, os gêneros foram interpretados muito mais na perspectiva
dos produtos do que na dos processos, tornando-se mais formal e distanciando-se dessa
perspectiva mais contextualizada (FARACO, 2006, p. 109).
O gênero jurídico foi chamado assim por Aristóteles, pelo fato de estar direcionado
para as questões discutidas principalmente nos tribunais ou em discussões públicas (religiosas
ou sociais) que pretendessem acusar ou defender argumentos, diante de um juiz ou de jurados.
Como tais argumentos deveriam estar apoiados na realidade, partia-se de pontos de vista
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 29
apresentados previamente com o objetivo de chegar, por dedução, a determinar o justo ou
injusto.
Já o gênero deliberativo possuía um caráter prospectivo, principalmente por estar
ligado às questões de interesse público para a vida na polis (recursos financeiros; guerra e paz;
defesa do território; importações e exportações; legislação), que precisavam ser solucionadas
de alguma maneira. Como o auditório era constituído por toda a assembleia, era importante
definir critérios e aconselhar os ouvintes acerca do que era útil ou prejudicial a todos,
considerando os diferentes exemplos identificados na sociedade.
Por fim, o gênero epidítico visava elogiar ou censurar alguém ou alguma situação de
interesse social, o que lhe atribui um caráter ao mesmo tempo funcional e estético. A partir da
apresentação de qualidades positivas ou negativas, que deveriam ser amplificadas, era
possível manifestar em detalhes os motivos que tornavam os comportamentos belos ou feios.
Aristóteles estava tratando fundamentalmente dos discursos orais que eram expressos
pelos cidadãos atenienses durante as reuniões públicas que aconteciam na ágora. Hoje, os
espaços em que se pode apresentar uma argumentação foram profundamente transformados,
não só em relação às variadas situações comunicativas que surgiram ao longo da história da
humanidade, mas, principalmente, em relação aos diversos grupos sociais que passaram a
interagir por meio dos discursos orais e escritos, a qual podem chegar às pessoas por inúmeras
formas.
Em função disso, em uma perspectiva bakhtiniana, precisamos considerar que se
tornou mais difícil dominar os modos de dizer peculiares às situações comunicativas, por isso
é possível alguém dominar um repertório de gêneros, mas ser totalmente inexperiente em
relação a outros.
Como os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, cujas funções são
estabelecidas pelas interações socioverbais, que ocorrem nas diferentes esferas da atividade
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 30
humana, a argumentação é uma ação que combina estabilidade/reiteração e mudança/abertura
para o novo.
Vimos que a dispositio relaciona-se aos aspectos formais que estruturam internamente
os discursos, ou seja, está ligada à exposição clara das ideias que são apresentadas e às provas
que irão sustentá-las. Diz respeito aos aspectos comuns que caracterizam a estrutura dos
gêneros, indicando assim as partes que tinham sido identificadas por Aristóteles
(1414b/2005): o proêmio (exórdio), a exposição (proposição), as provas (argumentação),
incluindo a refutação, e o epílogo (peroração). É possível existir ao longo da argumentação
um trecho de narração, mas essa não é uma parte imprescindível. O filósofo alerta-nos ainda
que, nos discursos orais, as duas principais são a exposição e as provas, pois possibilitam um
discurso breve, de fácil assimilação.
O proêmio (exórdio) é o início do discurso, que cria um contexto para a exposição do
tema a ser discutido, preparando assim o público para as ideias que serão defendidas.
Aristóteles (1415a/2005) afirma que a função mais específica do proêmio é por em evidência
qual a finalidade daquilo sobre o qual se desenvolve o discurso.
A exposição (proposição) apresenta o tema em questão de maneira a familiarizar o
público acerca do assunto escolhido para o discurso. Para atrair a atenção do auditório, é
possível utilizar diferentes estratégias na fase inicial do texto. Se a estratégia for de contar
com a benevolência (captatio benevolentia) do interlocutor em relação às ideias iniciais, é
possível inquietá-lo com questões, impactá-lo com alguma surpresa, criar uma situação que o
faça rir ou se emocionar, etc. Mas, vale a pena destacar que tais recursos serão efetivos se o
conteúdo for relevante, pertinente, adequado à situação e se for bem fundamentado na
sequência.
A confirmação ou a refutação são partes que compõem a argumentação propriamente
dita, por isso precisam ser bem trabalhadas, exigindo o uso de diferentes estratégias. As
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 31
provas precisam ser demonstrativas, bem organizadas e explorar por ângulos diversos todas as
características pertinentes ao tema. Geralmente, é o trecho mais longo, que deve contar com
exemplos e análises sobre as consequências dos fatos, sobretudo nos textos ligados ao gênero
deliberativo. Aristóteles (1418b/2005) orienta quanto ao uso de entimemas específicos na
refutação, ou seja, recomenda o exercício de busca e construção de meios para anular passo a
passo as provas apresentadas pelo interlocutor.
O epílogo (peroração) pode ser composto de modo diferenciado em função das
intenções comunicativas. Nessa parte, podemos recapitular, ampliar ou sintetizar o que foi
dito, comparar os argumentos favoráveis frente aos desfavoráveis, utilizar ironias, tudo para
tornar o interlocutor emocionalmente favorável à tese apresentada.
A organização do texto argumentativo em quatro partes principais é o que mais tem
sido ensinado nos cursos de língua portuguesa, contudo, trabalhar a estrutura sem levar em
conta a temática e as figurações discursivas, a cenografia e a movimentação da atividade
discursiva, os elementos suprassegmentais, enfim a linguagem enquanto ação sobre o mundo
e sobre os sujeitos, o que permite incluir o dinamismo das relações humanas nos discursos,
não tem possibilitado obter resultados muito satisfatórios na formação de crianças e jovens.
Não podemos esquecer, então, que para persuadir alguém os enunciadores11 precisam
envolver integralmente os ouvintes a ponto de obter sua total adesão. Ao estudar essa questão,
Aristóteles percebeu que os discursos devem cumprir três funções básicas: a de instruir
(docere), a de comover (movere) e a de agradar (delectare), para que se obtenha as reações
esperadas dos ouvintes.
11 Segundo Ducrot (1987, p. 198 ss.), o enunciador é a figura considerada a origem do ponto de vista expresso
na enunciação, entendida como a ação de um sujeito falante e também a imagem que o enunciado atribui a ela. É aquele que vê, é o lugar do qual se olha sem que lhe sejam atribuídas palavras precisas, pois expressa sua maneira de pensar, isto é, sua posição, sua atitude.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 32
Quando o discurso permite manifestar um estilo de escrita com clareza, concisão e
elegância (elementos que se vinculam à elocutio), revela as escolhas feitas para expressar as
relações entre forma e conteúdo.
A partir dos trabalhos do Círculo de Bakhtin, passamos a considerar a elaboração
estilística da enunciação uma atividade de seleção, de escolha individual, mas também de
natureza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de uma orientação social de caráter
apreciativo: as seleções e escolhas são, primordialmente, tomadas de posição axiológicas
frente à realidade linguística, incluindo o vasto universo de vozes sociais.
Assim sendo, quanto maior for a capacidade de diálogo com as inúmeras vozes sociais
e mais próprias as escolhas realizadas, mais característico será o estilo adotado para compor
uma argumentação.
Até este ponto fica evidente que a escolha é uma atividade fundamental na construção
da argumentação. Desde a fase da inventio, quando são investigados lugares dos quais serão
retirados os argumentos para a construção do texto, até a seleção de termos apropriados a cada
auditório ou situação comunicativa, a escolha possui um papel primordial.
É importante destacar que os argumentos a serem utilizados podem ser retirados do
estoque material existente na sociedade, onde encontramos os lugares (topoi), definidos pelo
menos em três sentidos:
a) representam as estruturas fixas às quais se pode sempre recorrer, ou seja, são
constituídas por argumentos-tipo, cujo alcance varia segundo as culturas;
b) tratam de tipos de argumentos, ou seja, de lugares-comuns, de esquemas que podem
conter diferentes conteúdos e que, portanto, são pertinentes a qualquer tipo de
discurso;
c) referem-se, em um sentido mais técnico, a questões típicas que possibilitam encontrar
argumentos e contra-argumentos (REBOUL, 1998, p. 51-52).
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O conceito de topoi nunca foi muito preciso e ainda se alterou bastante ao longo do
tempo. Na Grécia Antiga, diferenciavam-se os lugares-comuns, mais gerais, que serviriam a
todas as ciências, dos lugares específicos, próprios de uma ciência particular. Na Idade Média,
por exemplo, topoi chegou a representar certas fórmulas esperadas e até mesmo obrigatórias
em algumas situações. Mais recentemente, a partir dos trabalhos de Ducrot (1989), topoi
passou a ser definido como um instrumento linguístico que conecta algumas palavras para
organizar os discursos, e define em uma comunidade os discursos coerentes e passíveis de
aceitação, organizados em uma certa ordem, segundo os valores sociais e culturais de uma
determinada época.
Esses estudos definem a argumentação como um fato linguístico, mais precisamente
semântico ou semântico-pragmático, que procura descrever as frases por suas possibilidades
de encadeamentos argumentativos com outras frases.
Inspirando-se nos topoi de aristotélicos, mas também no trabalho de Toulmin [...], definem os topoi como princípios gerais que servem de base a um raciocínio e que, embora nem sempre sejam explicitados, constituem “um objeto de um consenso no seio de uma comunidade mais ou menos vasta”. (BANKS-LEITE, 2007, p. 114-115).
Nesse sentido, estão ligados aos pré-construídos12 que existem na sociedade. Então, ao
assumir uma posição, realizar escolhas, adotar crenças e valores, participar do confronto de
opiniões e ideias, o sujeito situa-se em um espaço de controvérsia, da negociação da
intersubjetividade (MOSCA, 2002, p. 10ss), evidenciando, assim, suas marcas históricas, suas
experiências em práticas sociais, a filiação a certas formações discursivas, que delimitam
grupos de enunciados pertencentes a redes de formulações. Isso quer dizer que, para participar
12 A noção de pré-construído, elaborada por Henry, em 1975 e desenvolvida posteriormente por Pêcheux, em
1975, é entendida como a marca, no enunciado, de um discurso anterior. “Um sentimento de evidência se associa ao pré-construído porque ele foi ‘já-dito’ e porque esquecemos quem foi enunciador” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 401).
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de discussões, de lutas pelas palavras, o sujeito realiza ações que responde ao outro, assume
atitudes necessárias, muda comportamentos, por possuir uma subjetividade heterogênea13.
Por tudo que vimos até aqui, poderíamos considerar a retórica como uma dimensão de
qualquer ato de significação, não apenas por tratar das figuras, mas por possibilitar que o dito,
representante do plano da expressão, evidencie elementos de uma estrutura profunda que dá
acesso ao sistema de conotações dos significados, ou seja, recupera aspectos referentes ao
plano do conteúdo do dizer (MOSCA, 2002, p. 17).
Argumentar, assim, é uma atividade complexa, cuja materialidade, seja oral ou escrita,
coloca-nos no âmbito da negociação de sentidos e das razões que levam um sujeito a tomar a
palavra de uma determinada forma.
13 Desde os trabalhos de Bakhtin, sabemos que a heterogeneidade é constitutiva da linguagem e dos sujeitos e é
uma condição de existência dos discursos e dos sujeitos, uma vez que ambos resultam do entrelaçamento de diferentes pessoas e dizeres dispersos no meio social (FERNANDES, 2007a, p. 38-46).
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1. 2. SURGIMENTO DA DISSERTAÇÃO COMO DISCIPLINA ESCOLAR A PARTIR DO
SÉCULO XVIII NA FRANÇA
Os nomes não se aprendem sozinhos, apreendem-se alojados em pequenas histórias.
Jean-François Lyotard
A dissertação é uma prática discursiva exigente que requer o uso das capacidades de
julgamento, abstração e generalização para apresentar e justificar um determinado ponto de
vista. Embora esteja ligada à argumentação e, portanto, à retórica, seu exercício tem algumas
especificidades que pretendemos explorar brevemente a seguir.
Segundo Chaves (1999, p. 5-6), é muito difícil acompanhar a evolução da história da
escrita argumentativa entre os clássicos, pois a retórica incorporou-se à literatura latina,
assumindo, então, inúmeros formatos.
Sabemos, contudo, que, na Grécia Antiga, a educação, sobretudo no período clássico
(séc. V e IV a.C.) e na helenística (a partir do séc. IV a.C.), era refinada e elitizada e
valorizava a memorização e a repetição dos conhecimentos vividos (LIBÂNEO, 1992, p. 57-
71). Como a escrita alfabética favoreceu o surgimento de mestres gramáticos e de escolas de
letras (grámmata), aos poucos, o uso da palavra valorizou-se em relação aos exercícios físicos
e às artes da guerra em geral. E, ainda, com a democratização política, o homem grego
necessitava participar de assembleias, o que exigia falar bem e persuadir, por isso as
exercitações intelectuais começaram a prevalecer. A escola formal (dos 6/7 anos aos 18 ou até
30 anos), então, transformou-se e passou a ensinar lógica, gramática e retórica.
A ênfase no ensino da expressão oral permaneceu relevante na educação latina, mas
também era cultivada a leitura de textos da tradição literária e não de manuais didáticos. O
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 36
domínio da palavra manteve-se, por isso a permanência do ensino da retórica, que deveria ser
iniciado por volta dos 14 anos, segundo um programa de atividades bem definido.
Os dois exercícios principais são: a) as narrações, resumos e análises de argumentos narrativos, de acontecimentos históricos, panegíricos, elementares, paralelos, ampliações de lugares-comuns (tese), discursos conforme um plano estabelecido (preformata matéria); b) as declamationes, ou discursos sobre casos hipotéticos; é o exercício do racional fictício (portanto, a declamatio já está mais próxima da obra). Vê-se como tal pedagogia força a palavra. Esta, cercada por todos os lados, é expulsa do corpo do aluno, como se houvesse uma inibição inata para falar e fosse necessária toda uma técnica e educação para levá-lo a sair do silêncio. Enfim, como se esta palavra assim aprendida, conquistada, representasse uma relação “objetal” com o mundo, um bom controle do mundo e dos outros. (BARTHES, 1975, p. 159-160, grifos do autor).
Vale a pena destacar, neste momento, as observações de Varrão (116 a.C) que
destacam o fato de a disputatio14 ser seguida pela dissertatio, ou seja, após o debate oral de
ideias controversas, organizava-se uma exposição escrita para que o debate não se perdesse.
Cícero (106 a.C.) confirma a aproximação entre a disputatio e a dissertatio e, evidenciando a
semelhança com a estrutura retórica organizada por Aristóteles, destaca a estrutura que tal
escrita apresentava: invenção, disposição, elocução, ação e memória, sendo as duas últimas
importantes apenas nos debates orais.
Durante a Idade Média, as transformações políticas e culturais ocorridas, modificaram
significativamente a evolução da dissertação. Apenas os religiosos tinham acesso à educação,
e mesmo entre os homens de igreja verificou-se um processo de empobrecimento cultural, a
ponto de alguns eclesiásticos não dominarem a escrita (MANACORDA, 1996, p. 112). Isso
acontecia porque interessava ao alto clero que os religiosos e, ainda mais, o povo tivessem
uma cultura empobrecida; por isso eram proibidos de ler as obras clássicas. Assim, evitava-se
qualquer pensamento que pudesse ameaçar a supremacia divina (MARIANO, 2007, p. 34).
Com o surgimento das universidades, por volta do ano 1000, as disputationes voltaram
e serviam para colocar à prova a capacidade de mestre e alunos. Nesse nível de ensino, o latim
14 Intriga organizada a partir de dois pensamentos radicalmente opostos, dramatizados por serem radicais,
ridículos e contestáveis, o que provocava o riso fácil.
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A argumentação no E xame Nac iona l do Ens ino Médio /2004 37
funcionava como língua internacional e servia de veículo de comunicação da Filosofia, das
Letras e das Ciências.
Contudo, as ideias do humanismo, no século XIV, particularmente o
antropocentrismo, passaram a reforçar as Ciências Biológicas e Exatas, provocando,
consequentemente, o enfraquecimento do estudo das letras. Além disso, as necessidades
comerciais do Renascimento (1300-1650) incentivaram uma reformulação da educação no
sentido de tornar o ensino profissionalizante e as convicções da Reforma (1400-1500)
estabeleceram uma educação que visava garantir a vinculação entre instrução e trabalho.
Esses movimentos todos contribuíram sobremaneira para o afastamento da educação no que
toca ao ensino da retórica em todas as suas dimensões.
A obra de Comenius, em 1600, buscou sistematizar os saberes a serem transmitidos
por meio de métodos didáticos e oportunos aos objetivos de cada escola. Com isso, as escolas
inglesas, por exemplo, organizavam o ensino de modo a formar alunos para as novas
profissões e para os novos modos de produção. As escolas cristãs, por sua vez,
proporcionavam o estudo do latim, e o francês, pouco a pouco, é estabelecido como matéria
nas escolas do mundo ocidental. Em função disso, ler e escrever recuperam importância e são
desenvolvidos métodos próprios, sobretudo para o ensino da escrita.
Sabemos que nesse período e, por mais cem anos, pelo menos a retórica era
identificada com um imenso armazém de soluções codificadas, isto é, de “fórmulas”
adquiridas, dificultando ainda mais acompanhar o desenvolvimento da dissertação.
No entanto, em maio de 1990, a revista Pratiques organizou uma mesa-redonda com
quatro pesquisadores de História da Educação15 para investigarem as origens francesas da
dissertação, e assim pudemos conhecer alguns dos elementos que influenciaram o tardio
ensino da dissertação nas escolas.
15 Participaram da mesa redonda da revista Pratiques, n. 68, Alain Viala e Bernard Sarrazin, ambos da
Universidade de Paris III; André Chervel, do INRP e Jean Rohou, da Universidade de Rennes 2.
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Alain Viala (1990, p. 108-109), iniciando a discussão, identifica que os primeiros
registros acerca do nascimento do gênero dissertação são do século XVII, mas estava
integralmente ligada à crítica literária e não fazia parte do ensino francês, era um gênero
mundano esnobe.
Interessante observar que tanto na Roma antiga, como na França moderna, a dissertação nasce de um certo “ócio” entre intelectuais e homens mundanos e de bem, como se a ociosidade fosse uma das condições necessárias para a elaboração do pensamento e do discurso, encarada como atividade lúdica, prazerosa e, ao mesmo tempo, lúcida e intelectualizante (CHAVES, 1999, p. 8).
A dissertação, com características próximas ao gênero que utilizamos hoje, começa a
se tornar pertinente nas práticas de ensino somente a partir do século XVIII, quando a retórica
e os exercícios latinos de caráter dissertativo começaram a ser estudados. Tais exercícios eram
decompostos em três partes:
1) praelectio (preleção) – explicação dos textos;
2) eruditio (erudição) – análise de textos históricos;
3) disputatio (disputa) – exercício de argumentação, herança da retórica clássica.
Contudo, a dissertação propriamente dita era prática da Filosofia, evidenciando que é
ao lado da latinidade que se encontra o modelo escolar stricto sensu da dissertação.
Chama-nos a atenção, no entanto, o fato de já no século XVII a dissertação ser da
prática corrente na ordem das Letras Francesas, fato que possibilitou a construção de
exemplos muito familiares que influenciaram a definição desse gênero na escola. Em 1660,
um conjunto de dissertações literárias surgiu para o uso dos homens de bem. Foram as
dissertações de D’Aubignac, sobre as obras de Corneille, de Santo Evremond, sobre o
Alexandre, de Racine, e sobre a palavra “vasta”. Assim, a dissertação francesa deixa a cultura
oral, passa a fazer parte da cultura geral escrita (contida em bibliotecas que crescem nesse
período), insere-se no livre domínio e começa a compor a formação do homem comum.
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Ao analisar um pequeno corpus datado daquele período, Viala identifica traços
reveladores da dissertação:
• nos séculos XVIII e XIX, a dissertação era um exercício de reflexão crítica,
argumentada, aplicada a um objeto literário (autor, obra, questão estética...), muito
semelhante ao moderno ensaio literário e aos modelos canônicos de dissertação16;
• um traço revelador do caráter mundano desse gênero está ligado aos destinatários,
indicados nos cabeçalhos dessas reflexões: as senhoras (“uma senhora de qualidade”:
D’Aubignac ou “um burguesa cultivada”: Mme. Bourneau), o que era profundamente
inovador, uma vez que as mulheres não tinham acesso à cultura e representavam um
auditório pouco sábio;
• um traço estético distintivo diz respeito à valorização da lógica do gosto e das opiniões
em detrimento da lógica do saber, ocorrendo uma transferência do modelo de saber e
tornando o gênero ainda mais polêmico.
O segundo a escrever é André Chervel (apud VIALA, 1990, p. 110-113), que
pesquisou o aparecimento da dissertação como disciplina escolar nos séculos XVIII e XIX, a
partir de fontes variadas (textos oficiais, manuais escolares, literatura pedagógica da época,
estudos históricos e pesquisas em arquivos). Os dados identificados foram divididos por
século, como mostramos a seguir.
Apenas por volta de 1770/1780 temos os primeiros registros da presença da
composição francesa, composta pelo discurso e pela narração latinos. Há registros de que a
École de Ponts-et-Chaussées promovia, todos os anos, um concurso de estilo cujas provas são
verdadeiras dissertações.
Contudo, não se observava continuidade pedagógica por meio de exercícios
específicos, visto que a composição francesa só era ensinada nas últimas classes de retórica, 16 A passagem do latim para o francês coincidiu com a passagem da escola para a mundanidade e da língua oral
para a escrita.
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quando o aluno era preparado, em latim, a escrever versos, narrações, cartas e discursos e a
composição retórica. No século XVIII, os liceus, colégios reais, propunham três exercícios de
composição em francês: o discurso, a análise e a redação; a dissertação era um gênero que
fazia parte do trabalho de redação.
Antes dessa data, houve apenas duas exceções no ensino da dissertação, como
exercício escolar: 1) em 1726, Rollin reconheceu que os jovens tinham condições de produzir
por eles mesmos a composição francesa, começando do mais fácil e adequado, como as
fábulas e as narrações históricas, para depois iniciar as descrições, pequenas dissertações e
discursos curtos; 2) em 1766, criou-se a l’agrégation de philosophie que comportava duas
dissertações em língua latina: uma sobre um tema de lógica, metafísica ou moral e outra sobre
física e matemática.
Mudanças significativas ocorreram no século XIX, quando a dissertação tornou-se um
gênero literário, cultivado entre autores, como o abade d’Aubignac, Boileau, Saint-Evremond
e Condillac. Nesse período, esse gênero passou a ser um exercício universitário exigido em
exames de professores de Filosofia e de Letras.
A dissertação filosófica se instala nos cursos na primeira metade do século XIX, mas
passa a fazer parte das classes de retórica apenas a partir de 1880. Por estar ligada à Filosofia,
é latina antes de ser francesa e não segue modelos.
Ao longo do século, a dissertação francesa e literária se desenvolve lentamente, em um
processo complexo e gradativo, que respeita os níveis de estudo. É escolhida como condição
para a diplomação nas etapas mais prestigiadas: doutorado, licença e agrégation17.
A introdução da dissertação nas instituições universitárias de Filosofia – o que
permitiu consolidar o gênero no nível universitário –, acontece em 1821, tanto em latim
quanto em francês, trinta anos antes de ser identificada a primeira menção lexicográfica do
17 L’agrégation era uma exigência para as classes superiores de letras, regidas pelo estatuto de 6/2/1821.
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termo dissertação, que ignora a literária, no La Châtre, Dictionnaire universel (1852). Era um
tipo de exercício ou dever que os professores de Filosofia passavam a seus alunos: um
discurso de algumas páginas sobre uma questão metafísica ou moral.
Em 1872, a dissertação integrou definitivamente as aulas de retórica e, em 1880, a
composição francesa substituiu, pela primeira vez, o discurso latino no programa de
bacharelado.
Após 1870, sobretudo em 1880, a dissertação associou-se à grande corrente da história
literária que se desenvolvia na universidade francesa. Isso possibilitou que, de 1880 a 1900,
fossem oferecidos cursos de dissertação da história literária aos professores de letras do nível
secundário, o que favoreceu significativamente o progresso desse gênero.
Com o desenvolvimento do novo gênero explicação de textos, ao final do século XIX
e início do século XX, ocorreu uma simbiose com a dissertação literária, tornando-a um
exercício supremo do ensino literário francês. Tal fato estabeleceu as características próprias
do gênero que serão mantidas tanto nos exercícios escolares quanto nos novos modelos
literários, substituindo os antigos gêneros.
Vimos, então, que a evolução da dissertação acontece desde os níveis intelectuais mais
altos e seguiu o apogeu do ensino da retórica. Inicialmente estava vinculada à dissertação
geral, consagrada aos gêneros literários e aos problemas gerais da literatura, da crítica e do
gosto, tornando-se, em alguns anos, exigência para se obter a certificação de l’agrégacion.
Vale a pena destacar também que a dissertação literária, como novo exercício escolar
para os mais jovens, foi implantada na metade do século XIX e seguiu um processo complexo
de adaptação e superação dos gêneros existentes:
• surge em oposição ao discurso francês;
• criou-se a partir de exercícios que existiam, em especial a análise literária;
• reúne novas práticas (explicação literária e história literária);
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• destaca-se pelo conjunto de exercícios de composição em francês, que passaram a ser
incluídos nos programas de todas as classes do ensino secundário a partir de 1880.
Na sequência, Bernard Sarrazin (apud VIALA, 1990, p. 110-113) analisou, em
detalhes, as características da dissertação, como exercício escolar, na França. Após confirmar
as informações anteriores, ou seja, o fato de a dissertação provir da composição francesa, que
substituiu o discurso tradicional, o autor, apoiando os comentários de Genette, passa a
questionar até que ponto houve ruptura ou continuidade em relação à retórica, uma vez que os
belos discursos (elocutio) deram lugar à retórica escolar, preocupada com a organização dos
textos (dispositio), mas em detrimento da inventio.
Nota-se que, em 1880, reformadores do ensino identificaram problemas importantes
no exercício da dissertação, pois os objetivos preconizados com a introdução desse gênero
não foram plenamente atingidos, isto é:
● esperava-se: um texto científico, comum a todos; o pensamento comandando a forma
e o fim do plágio;
● obteve-se: um texto eminentemente literário e elitista; uma estrutura formalista e a
compilação de outros textos.
Ao analisar as obras de quatro autores, Charles Rollin (séc. XVIII), Gustave Lanson e
Édouard Buisson (séc. XIX) e G. Rudler (séc. XX), Sarrazin reuniu relevantes informações
acerca das práticas pedagógicas vigentes em cada época.
• A dissertação, considerada um exercício de composição, entre outros, era uma
estratégia pedagógica que, segundo Rollin, partia de informações e do plano de escrita
oferecidos pelo professor para serem desenvolvidos pelos alunos, pois a intenção era
acostumar, pouco a pouco, os jovens a caminhar sozinhos e sem auxílio externo.
• Gradativamente, os alunos poderiam encontrar, por eles mesmos, o que deveriam dizer
oralmente ou por escrito. Esse esforço era acompanhado de leituras e de tarefas
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escritas em casa e, só ao final do curso, havia confrontação dos textos escolhidos pelo
professor. Chervel chamou essa metodologia de pedagogia da paciência.
• As composições retóricas francesas muitas vezes se restringiam a temas literários,
como ocorria nas narrações, cartas e nos discursos. Era apregoado o rigor metódico
pela busca das ideias e não mais pela forma: em primeiro lugar a inventio, ligada à
dispositio, sem tanta preocupação com a elocutio, uma vez que “escrever é acabar de
pensar”, ou melhor, “o pensamento só nasce verdadeiramente quando é expresso”.
• A divergência de posições entre os autores pesquisados mostra que de um lado havia
os defensores da composição francesa como exercício literário, de arte; de outro,
encontram-se os que defendiam a retórica como exercício do pensar, mais do que de
estilo.
Ao término do estudo Sarrazin tenta justificar por que o projeto de neorretórica,
voltada à inventio, fracassou. Diz que a utopia positivista ligada à história literária se perdeu
ao tentar tornar o aluno um pesquisador ou um historiador. Além disso, a aversão dos jesuítas
à retórica e o sentimento de inferioridade das letras frente às ciências ocasionou a negligência
da reflexão que propicia escrever bem.
Por fim, Jean Rohou (apud VIALA, 1990, p. 117-118) também investigou o
desenvolvimento da composição e dissertação francesa de 1872 a 1930 e revelou que, ao
longo dos últimos 30 anos do século XIX, a composição tornou-se o principal exercício
escolar do 1º e 2º ciclos, com destaque para os exercícios retóricos que privilegiavam o
ornamento com figuras de estilo e lugares-comuns.
A partir de 1880, as composições tornaram-se obrigatórias para obter o bacharelado,
substituindo o discurso latino e francês, embora continuassem sendo exercícios mais poéticos
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que críticos18. A dissertação era um desses exercícios que se incluía, entre outros, aos da
chamada composição francesa.
Em 1906, M. Roustan publica uma série de sete obras: Conselhos gerais, A descrição
e o retrato, A narração, O diálogo, A carta e o discurso, A dissertação literária e A
dissertação moral, nas quais, principalmente nas três últimas, o verossímil e os lugares-
comuns (efeitos elocucionais) importavam mais do que a argumentação competente e precisa.
Foi o desenvolvimento do espírito científico que provocou e estimulou a importância
da dissertação objetiva, o que provocou uma contínua oscilação entre a retórica e a
argumentação científica, preconizada por racionalistas e democratas.
A narração, os retratos, os discursos, os diálogos, os breves assuntos literários e morais
eram praticados em diferentes situações, indicando que a tradição no ensino da retórica já se
tornara convenção, além de ser muito sedutora aos jovens pela variedade de tons e pelo
interesse dramático.
A insistência sobre o raciocínio, o espírito, o cuidado com a veracidade dos fatos, o
método e o plano justificava-se pela busca de clareza de composição e de expressão e pela
sinceridade de pensamento e de sentimento. O objetivo maior era mostrar aos estudantes
iniciantes que o essencial era a unidade, a simplicidade do plano e a lógica, não o manejo das
figuras de retórica, por isso se recomendava fazer um plano, antes de proceder ao
desenvolvimento. Era preciso, também, delimitar o assunto, sabendo o que seria preciso dizer,
o que seria dito e em que ordem seria dito.
Os jovens que não atendiam a esses aspectos e sentiam dificuldade em tratar os temas,
considerados inconvenientes à idade e cultura da maioria deles, não con