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TARRAFARevista Científica
Universidade do Estado da Bahia
TARRAFARevista do NUPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão)
do DEDC I / UNEB
Salvador2017
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EXPEDIENTE
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitor: José Bites de Carvalho
Vice-Reitora: Carla Liane Nascimento dos Santos
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretor: Valdelio Silva
NUCLEO DE PESQUISA E EXTENSÃO DO DEDC I - NUPECoordenadora: Ana Cláudia Lemos Pacheco
COMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditor Geral: Luciano Sérgio Ventin Bomfim
Vice-editora Geral: Cecília Conceição Moreira Soares
Editor Executivo: Marcos Aurélio dos Santos Souza
REVISÃO: Marcos Aurélio dos Santos Souza
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Antonio Amorim - UNEB/Brasil
Prof. Dr. Alex Sandro Leite – UNEB/Brasil
Prof. Dr. Braulino Pereira de Santana - UESB/Brasil
Profa. Dra. Carla Liane Nascimento dos Santos - UNEB/Brasil
Profa. Dra.Cecília Conceição Moreira Soares - UNEB/Brasil
Prof. Dr. Gaudencio Frigotto – UERJ/Brasil
Prof. Dr. José Galisi Filho – Universidade de Hannover/Alemanha - Universidade de Viena/Aústria Prof. Dr. José
Henrique Freitas Júnior - UFBA/Brasil
Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim - UNEB/Brasil
Prof. Dr. Marcos Aurélio dos Santos Souza - UNEB/Brasil
Profa. Dra. Valquíria Borba - UNEB/Brasil
Prof. Dr. Vilson Caetano de Sousa Júnior – UFBA/Brasil
Prof. Dr. Wolfdietrich Schmied-Kowarzik – Universidade de Viena/Aústria
EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO: Adriano Reis
CAPA: Adriano Reis
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Revista financiada com recursos da UNEB
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Editorial
As identidades estão na berlinda. Um dos temas que mais mobiliza discussões, entre as
diversas disciplinas no campo das ciencias sociais e humanas, é o das identidades. Identidades e
não identidade, porque o termo no plural já se constitui uma problematização do mesmo. Se antes
e durante o século XIX, era possível construir um pensamento que estabelecia sentidos únicos
para identidades de genero, racial, sexual, nacional, de classe e poder (e, então, era possível,
falar de mulher/homem, branco/negro, heterossexual/homossexual, nacional/estrangeiro, como
unidades dicotomicas essenciais da natureza humana e social) nos séculos XX e, sobretudo, no XXI,
problematizar a identidade é pluralizá-la e descentrá-la, mostrando que sua construção unificadora
de outrora era uma fantasia.
Talvez uma das leituras mais emblemáticas acerca das identidades contemporâneas seja a
realizada por Stuart Hall em toda a sua obra. Essa perspectiva plural e descentrada, em relação às
identidades, marca para Hall, em seu livro Identidade cultural na pós-modernidade1, a produção de
um sujeito pós-moderno, conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.
O sujeito pós-moderno se contraporia ao sujeito do Iluminismo, centrado, unificado, consciente e
usualmente descrito como masculino. Contrapor-se-ia também ao sujeito sociológico, predizível ou
determinado pelo mundo em sociedade e pelos valores culturais.
Movido por identidades contraditórias, que o empurra em direções diversas, o sujeito
pós-moderno se constitui por identificações continuamente deslocadas. A identidade no singular,
para Hall, é uma comoda história sobre nós mesmos, uma confortadora “narrativa do eu”. Na
contemporaneidade, por outro lado, somos confrontados por uma pluralidade desconcertante de
identidades, com as quais podemos nos identificar temporariamente, o que o intelectual jamaicano
chamou de jogo de identidades.
Hall exemplifica sua teoria, narrando o famoso caso do juiz negro Clarence Thomas de
visões políticas conservadoras, acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-
colega de Thomas. O caso provocou um dos maiores escândalos na justiça dos Estados Unidos por
polarizar toda sociedade americana, mostrando um complicadíssimo jogo de identidades, que não
repousa apenas nos artifícios e improcedencias da questão da cor ou da raça. As mulheres negras
1 HALL, Stuar t. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
Revista Tarrafa – Revista do NUPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão) do DEDC I/UNEB
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Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
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Index: ISSN 2317-4226
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ficaram dividas, dependendo de sua identificação como negra ou como mulher. Os homens negros e
brancos estavam divididos também, dependendo de sua postura política ou como se posicionavam
em relação ao racismo, ao sexismo e ao liberalismo. As mulheres brancas apoiavam Thomas, por
causa de sua postura antifeminista. E as feministas se opunha ao juiz, tendo como base a questão
sexual.
Esse jogo de identidades, mostra que não podemos pensar identidades como negro/negra,
branco/branca, mulher/homem, como entidades fixas, e que a realidade contemporânea coloca em
cheque posturas que tentam essencializar grupos étnicos e de genero, como se fossem forças
permanentes e inexoráveis de coesão social. Essas identidades se constituem como forças solidárias
em momentos de resistencia política ou de produção de poder, mas isso não significa que são
centradas e permanentes.
Canclini, intelectual argentino, estudando em Culturas Híbridas (estratégias para entrar e sair
da modernidade)2, os choques temporais e as divisões de poder, chama a situação de deslocamentos
culturais, produtora de clivagens identitárias, de hibridação. O autor argentino discute teoricamente
as diferentes manifestações culturais e artísticas, muitas delas anonimas (passeatas reivindicatórias,
pintura, arquitetura, música, grafite e histórias em quadrinhos até a simbologia dos monumentos)
para refletir sobre o que chama migrações multidirecionais, relativizadoras do paradigma binário
subalterno/hegemonico, tradicional/moderno, que tanto balizou a concepção de cultura, poder e
identidade na modernidade.
Enfatiza o papel das tecnologias na construção de mundos flexíveis e de manejo mais livre
e fragmentário do saber. Tal processo tecnológico, chamado desterritorialização, constitui-se como
o mais radical significado de entrada e saída da modernidade, na qual emergiria o sujeito pós-
moderno, a partir de perdas de identificações, de poder e pertencimento. Este processo confunde as
fronteiras entre colonizador e colonizado, regionalista, nacionalista e cosmopolita.
As migrações multidirecionais e a desterritorialização se tornaram cada vez mais presente
nas realidades diaspóricas dos dias de hoje. Realidade muito bem ilustrada por Canclini, através
de seu estudo sobre os conflitos interculturais em Tijuana, fronteira entre o México e os Estados
Unidos, cidade considerada por ele como um dos maiores laboratórios da pós-modernidade. O
caráter multicultural desse local não se expressa apenas no uso do espanhol e do ingles, ou seja, na
2 CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1998. 392p
multiplicidade das línguas nacionais, mas nas relações divergentes e convergentes que se dão entre
a cultura americana e mexicana. Ao mesmo tempo em que há uma tentativa de retorno ao tradicional,
ou pelo menos, uma tentativa de reinventá-lo. Em Tijuana, a busca pelo autentico atende também
aos interesses do mercado turístico e lógica do capitalismo americano, desconstruindo os limites
entre a tradição e bens de consumo contemporâneos. Visitantes tiram fotos em cima de burros
pintados que imitam zebra, ao fundo imagens de várias regiões do México: vulcões, figuras astecas,
cactos etc.
Canclini se detém ainda no papel da arte no entendimento da hibridação na América Latina.
Cita o manifesto antropófago no Brasil e o grupo Martín Fierro na Argentina, como interpretações das
identidades conflitantes na América Latina, realizadas, muitas vezes, a partir de elementos estéticos
e sociais de lugares distantes - Oswald Andrade, famoso escritor brasileiro, ve o Brasil no alto do
atelier da Place Clichy, em Paris.
Sobre o cosmopolitismo e localismo desses artistas, Canclini afirma que o lugar em que
vários artistas latino-americanos produzem sua arte não é mais a cidade da infância, nem tampouco
é essa na qual vivem há alguns anos, mas um lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente
vividos.
Termos como jogo de identidades nas obras de Stuart Hall, desterritorialização na de Canclini,
assim como entre-lugar do intelectual indo-britânico Homi Bhabha e performatividade da americana
Judith Butler, intelectuais competentes que se debruçaram sobre o tema das identidades, tentam
dar conta de um mundo em que não é possível pensar singularidade de fronteiras e pertencimentos
raciais ou de genero, sem se abrir a uma pluralidade cada vez mais presente, que seduz e instiga.
Revista Tarrafa
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Apresentação
Esta é a segunda edição da revista Tarrafa. A revista pertencente ao NUPE, Núcleo de Pesquisa
e Extensão do DEDCI, Departamento de Educação do Campus I da UNEB, Universidade do Estado
da Bahia, foi criada há 3 anos, inicialmente, com o objetivo, dentre outros, de estimular a autoria e a
autonomia intelectual dos discentes, encarando-os como verdadeiros produtores de conhecimento,
incentivando, assim, o uso dessas produções no processo de formação permanente de profissionais
da educação, nas redes pública, comunitária e particular de ensino. Hoje, a revista também atende
a um público de intelectuais, professores e funcionários, que também queiram compartilhar suas
produções academicas.
Resultado do empenho e compromisso profissional de vários educadores do Departamento
de Educação do Campus I da UNEB (DEDC-I), a intenção da Revista Tarrafa é priorizar temáticas das
áreas das ciencias humanas e ciencias sociais, cuja abordagem exige uma perspectiva interdisciplinar.
Haja vista que o Departamento de Educação, campus I da UNEB, tem ampliado nos últimos anos sua
abrangencia disciplinar, com a criação dos cursos de Psicologia, Ciencias Sociais e Filosofia.
Esta edição cujo tema é Identidades está composta por oito artigos e um ensaio. Todos eles
discutem construção de identidades, seja no campo da Educação, da Psicologia, ou da Antropologia,
com enfase na discussão das Relações Étnico-Raciais.
O primeiro artigo intitulado “Aluno(a), mostra a sua cara! o jogo teatral para a valorização
da identidade”, de Larissa Reis, reflete sobre a utilização do jogo teatral na sala de aula, como
ferramenta propagadora da valorização da identidade dos sujeitos. A expressão corporal, a partir dos
jogos teatrais permite o desenvolvimento de questões relacionadas ao aprendizado e possibilita o
exercício de se colocar no lugar do outro, o que é fundamental para o desenvolvimento de propostas
educadoras que envolvem a temática das identidades.
Com o título “Genero, raça e etnografia nas comunidades tradicionais religiosas”, o segundo
artigo de nossa revista investiga o papel das mulheres nas irmandades negras e mistas da Bahia,
observando as funções femininas nos espaços religiosos e o enfrentamento da invisibilidade social
e racista por essas mesmas mulheres. Para isso, a autora Joanice Conceição aborda a história da
Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira/Ba, que há séculos, através dos seus preceitos e dos seus
momentos festivos, agrega mulheres negras, ressignificando o catolicismo em sua fusão com as
religiões de matrizes africanas.
No terceiro artigo, Cecília Soares relaciona memória e identidade, ao tematizar a importância
da memória afro-baiana no contexto das comunidades religiosas afro e a formação de memoriais
em seus espaços como estratégia para educação étnico-racial. Seu principal alvo de pesquisa foi o
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Terreiro Ile Axé Maroketu, no qual observa a maneira grave e irreverente com que as pessoas lidam
com as coisas sagradas, mostrando como a memória representa para as comunidades terreiros o
principal elemento de religação com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Coloca a
oralidade como processo que propõe direções para os memoriais afro, reforçando ideias projetadas
materialmente e indicando como a memória deve ser apropriada.
No artigo “Adolescentes homossexuais e os conflitos em assumir publicamente a orientação
sexual: uma análise de discurso”, seus autores Joanna Mendonça Carvalho, Anísia Gonçalves Dias
Neta, Jeyslane Magalhães da Silva e Leonardo Santos de Oliveira analisam questões de identificação
de genero, no âmbito dos conflitos e dificuldades apresentadas por adolescentes com orientações
sexuais não heteronormativas. Percebem que a não assunção dos jovens de suas identidades sexuais
aos seus familiares confirma a forte presença ainda da imposição de uma educação heteronormativa
em diversas instâncias sociais. A pesquisa foi realizada em Catu, cidade do reconcavo baiano, por
meio de dez entrevistas semiabertas com adolescentes/jovens de 15 a 18 anos, todos estudantes
de Ensino Médio.
O quinto artigo, de Marcos Aurélio dos Santos Souza, aborda a relação entre a obra literária
de Jorge Amado, Jubiabá, escrita na década de 30 do século XX, e as narrativas de grupos do
rap brasileiro, Racionais MC’s e Facção Central, produzidas no final desse mesmo século. Mostra
como a construção de personagens jovens e negros, que tentam construir atitudes afirmativas
nas narrativas literárias e musicais, diante do racismo presente nos diversos espaços urbanos,
constitui uma importante representação do negro, diante de sua inferiorização histórica, legada pelo
colonialismo e pela escravidão.
O artigo “Raízes persistentes da homofobia no Brasil”, de Luiz Mott, resgata a etno história
do preconceito e discriminação anti-homossexual no Brasil e desenvolve os dez axiomas por que
os homossexuais (LGBT), dentre todas as minorias sociais, são as principais vítimas da intolerância
em nossa sociedade contemporânea. Historiciza os crimes homofóbicos no Brasil de 1980 a 2003,
enfatizando o importante trabalho do Grupo Gay da Bahia na coleta e denúncia desses crimes.
O sétimo e último artigo de Ana Rita Santiago, “Vozes Literárias de Escritoras Negras
Baianas: Identidades, Escrita, Cuidado e Memórias de Si em Cena”, trata de identidades, autoria,
memórias, escrita e cuidado de si/nós na literatura afrofeminina da Bahia. Empenha-se em entender
essa literatura como diferenciadora, emancipada e transgressora, através da qual as mulheres se
assenhoram da escrita para forjar uma estética textual, em que se (re) inventem a si e a outros/
as. Suscita ainda questionamentos acerca de novos agenciamentos literários, compreendendo o
prazer estético literário em seus múltiplos movimentos pulsantes e (des) contínuos de rupturas e
ressignificações da arte da palavra.
O primeiro ensaio dessa revista, “Introduzindo o intelectual gay”, de Braulino Pereira de
Santana”, discute a produção dos intelectuais gays, refletindo sobre o que eles fazem e quem
são eles. Tenta ainda acompanhar como conseguem instituir concepções, práticas, significados e
identidades do intelectual gay no universo do debate intelectual público brasileiro. O artigo divide o
trabalho intelectual gay no Brasil em duas fases: a primeira fase se inicia com o surgimento, na cena
intelectual brasileira, do escritor carioca João do Rio, no começo do século XX, e a segunda fase
iniciada em 1959 com o trabalho de José Fábio Babosa da Silva, que publica um artigo intitulado
“Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo”. Esses e outros trabalhos rompem,
segundo o autor, com a apropriação das identidades homossexuais pelos discursos heterocentricos
da psicologia, da medicina, da moral e da justiça no meio academico
O último ensaio, intitulado “Da obrigatoriedade da prova de habilidade específica em processos
seletivos para cursos de design: elementos para a reflexão da crise de identidade do design”, Serafim
da Silva Nossa Junior aborda o estatuto do design e a natureza do seu objeto. O texto ressalta a
falta de precisão ou confusão acerca do que seja enfim o design, discorrendo teoricamente sobre
a crise de identidade desse campo e a pertinencia da prova de habilidade específica em processos
seletivos.
Esperamos boas leituras desses artigos e ensaios que compõem a segunda edição
da Revista Tarrafa e contribuem, de forma singular, para o debate acerca das identidades no mundo
contemporâneo.
Marcos Aurélio Souza
Editor Executivo da Revista Tarrafa
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SUMÁRIO
ARTI
GOS
1. Aluno(a), mostra a sua cara! o jogo teatral para a valorização da identidade - Larissa Reis. PÁG. 232. Genero, raça e etnografia nas comunidades tradicionais religiosas - Joanice Conceição PÁG. 633. Os espaços da memória na perspectiva das discussões sobre identidade em comunidade afro - Cecília Soares PÁG. 974. Adolescentes homossexuais e os conflitos em assumir publicamente a orientação sexual: uma análise de discurso - Joanna Mendonça Carvalho, Anísia Gonçalves Dias Neta et al.
PÁG. 158
5. O jovem negro na literatura e no rap: violencia e protagonismo - Marcos Aurélio dos Santos Souza.
6. Raízes persistentes da homofobia no Brasil - Luiz Mott
7. Vozes Literárias de Escritoras Negras Baianas - Ana Rita Santiago
ENSA
IOS 1. Introduzindo o intelectual gay - Braulino Pereira de Santana PÁG. 23
2. Da obrigatoriedade da prova de habilidade específica em processos seletivos para cursos de design: elementos para a reflexão da crise de identidade do design - Serafim da Silva Nossa Junior
PÁG. 63
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ALUNO(A), MOSTRA A SUA CARA! O JOGO TEATRAL PARA A VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
(STUDENT, SHOW YOUR FACE! THE THEATRICAL GAME FOR THE INCREASE IN VALUE BY
IDENTITY)
Larissa Reis1*
RESUMO
O presente artigo expõe os resultados da pesquisa monográfica “Jogos Teatrais de Improviso
na Educação”, realizada no ano de 2012, em uma escola municipal de Salvador. A pesquisa, de
cunho qualitativo, identificou de que maneira os jogos teatrais de improviso podem contribuir para
o processo educativo dos aprendizes. Desse modo, observou-se as atuações dos alunos para
detectar aspectos de seus cotidianos e a maneira com que as expressões culturais dos mesmos
influenciaram em seus processos de aprendizagem. Os instrumentos de coleta de dados utilizados
foram: a observação não participante, o diário de bordo, a observação participante, o protocolo de
atividades, as conversas informais e a entrevista semiestruturada. As intervenções pedagógicas
desenvolvidas partiram dos procedimentos teatrais de Spolin (2003), Koudela (1990), Boal (2011),
Japiassu (2001) e Novelly (1994). Os resultados da pesquisa destacaram que o processo educativo
dos alunos traz uma referencia essencial ao educador: os conhecimentos apreendidos durante a
vida, seja na escola, seja no cotidiano das ruas. Assim, esse texto apresenta a análise das práticas
teatrais realizadas pelos sujeitos, a fim de tecer ponderações acerca da importância da valorização
da identidade dos/pelos educandos.
Palavras-chave: Jogo Teatral. Improviso. Identidade
ABSTRACT
The present article exposes the monographic research results “Theatrical Games of
Improvisation in Education”, achieved in the year 2012, in a county school of Salvador. This research
is qualitative and identified how the theatrical games of improvisation can contribute to educational
process of apprentices. Thereby, the performance of the students has been watched for: detect
everyday aspects of the students and how their cultural expressions influenced into the learning
1 Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Tel: (71) 9922-6061/(71) 8747-2959. E-mail: [email protected]
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process. The instruments of data collection used were: the non-participant observation, the logbook,
the participant observation, the protocol activities, the informal conversation and the semi structured
interview. The pedagogical interventions developed based on theater procedures of Spolin (2003),
Koudela (1990), Boal (2011), Japiassu (2001) e Novelly (1994). The research results highlighted
that the educational process of students brings an essential reference to the educator: the knowledge
acquired during life, whether at school, whether in everyday streets. Thereby, this text presents the
analysis of theatrical practices performed by the subject in order to weave considerations about the
importance of appreciation of the identity of/by the learners.
Keywords: Theatrical Game.Improvisation.Identity
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo traz reflexões em torno dos resultados da pesquisa monográfica “Jogos
Teatrais de Improviso na Educação”, realizada no ano de 2012, em uma escola municipal de
Salvador, com alunos do 4° ano do ensino fundamental. O objetivo da investigação foi identificar
de que maneira os jogos teatrais de improviso puderam contribuir para o processo educativo dos
sujeitos envolvidos. Para isso, priorizou-se os assuntos relacionados aos cotidianos dos educandos
e a maneira com que os mesmos revelaram suas expressões culturais durante as experimentações
teatrais.
O processo de análise dos resultados da pesquisa teve como base: o diário de bordo,
instrumento de registro contínuo do pesquisador; as cenas observadas na turma; a elaboração do
protocolo de atividades2 pelos alunos: orientou-se que os aprendizes registrassem – por meio de
desenhos e/ou frases – aspectos importantes sobre as aulas anteriores; as conversas informais
com a regente da turma e com a gestão da escola; a entrevista semiestruturada com a educadora da
turma e a reflexão em torno das questões lançadas pelos autores pesquisados.
As observações das microcenas realizadas na turma apontou a relevância da sala de aula
como espaço enriquecedor da coleta de dados pelo pesquisador. Para Dayrell (1996, p. 149) essa
sala é: “[...] um espaço de encontro, mas com características próprias. É a convivencia rotineira de
pessoas com trajetórias, culturas, interesses diferentes, que passam a dividir um mesmo território”.
O planejamento das aulas foi elaborado processualmente: a coleta das lacunas apresentadas
nas primeiras intervenções serviu como referencia para as aulas seguintes. As intervenções
2 Japiassu(2001, 60) sugere esse instrumento para coletar a opinião dos jogadores a respeito das atuações teatrais, de modo que a leitura desse é realizada coletivamente, no início das aulas.
pedagógicas envolveram 12 atividades: 6 jogos e 6 exercícios teatrais. Os temas transversais
selecionados abordaram questões a respeito do conhecimento de mundo e a da observação do
meio cotidiano pelos alunos.
A proposta desse artigo é ponderar sobre a utilização do jogo teatral como ferramenta
propagadora da valorização da identidade dos sujeitos, haja vista que os resultados da investigação
indicaram como as expressões culturais dos educandos influenciaram em seus processos educativos.
Esse texto apresenta quatro divisões: inicialmente, apresenta-se os conceitos e as propostas do
jogo teatral. Em seguida, indica-se os sujeitos da pesquisa. A terceira parte, por sua vez, aponta
o desvelamento do jogo teatral de improviso, a fim de se lançar um olhar para a construção da
identidade dos educandos durante as práticas realizadas. Por fim, conclui-se a respeito das propostas
apresentadas ao longo do texto e da pesquisa realizada.
2. O JOGO TEATRAL: ENTRELAÇANDO CONCEITOS E PROPOSTAS
Koudela e Santana (2006) apontam que o jogo teatral foi o termo criado pela norte-americana
Viola Spolin (1906-1994), a fim de elaborar o método teatral conhecido como Spolin Games. Esse
método envolve experimentações teatrais voltadas para atividades em solo ou em grupo, de modo
que o educador lança uma situação-problema para ser desenvolvida pelos jogadores. Dessa forma, o
jogo indicado possui influencia do jogo de regras: o trabalho em grupo e a cooperatividade resultante
deste promove a discussão coletiva acerca da resolução dos problemas lançados no jogo.
A improvisação é o aspecto determinante dos jogos teatrais. Por meio dela, os jogadores
praticam o teatro com improviso, de maneira criativa, autentica e espontânea, desenvolvendo com
isso a ação-reflexão-ação: os jogadores desenvolvem a atividade e no final das cenas realizam a
avaliação coletiva acerca do jogo. O aspecto da autoria também é destacado nesse jogo, haja vista
que a ação improvisacional requer a construção da expressividade, gestualidade e desenvolvimento
das cenas pelo próprio ator. Nessa perspectiva, esses jogos são considerados como:
[...] atividades pedagógicas para aquisição, leitura, domínio e fluencia da comunicação por meio do teatro, de uma perspectiva improvisacional (sem roteiros nem combinações apriorísticas de como será a atuação na área de jogo e sem textos de sustentação à representação teatral previamente elaborados) (JAPIASSU, 2001, p. 66).
Nesse sentido, pondera-se que o jogo em questão é pedagógico, por possibilitar o
desenvolvimento de atividades que visem o favorecimento da aprendizagem dos sujeitos. A
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característica improvisacional dessa metodologia teatral permite ao aprendiz a contextualização e
a reconstrução das questões aprendidas, haja vista que valoriza os conhecimentos de mundo dos
jogadores por meio da expressão corporal. A proposta do jogo teatral é improvisar as cenas, sem que
o jogador possa explicar como o processo será realizado. Isso porque a gestualidade é desenvolvida
na ação teatral, de modo que:
[...] durante o jogo o jogador é livre para alcançar seu objetivo da maneira que escolher. Desde que obedeça as regras do jogo ele pode balançar, ficar de ponta-cabeça, ou até voar. De fato, toda maneira nova ou extraordinária de jogar é aceita e aplaudida por seus companheiros de jogo (SPOLIN, 2003, p. 5).
A esse respeito, Boal (2011, p. 89) aponta a importância da gestualidade no processo do jogo
teatral: o corpo se apresenta como elemento essencial na atuação, haja vista que “[...] na batalha
contra o mundo, os sentidos sofrem, e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a
escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos”. Com esse
intuito, Boal (2011, p. 87) propõe a prática dos joguexercícios no teatro, intitulando os jogos como
“diálogos corporais” e os exercícios como “monólogos corporais”. Dessa forma, estimulou-se a
expressão corporal dos alunos durante a experimentação da linguagem teatral, considerando que
a corporeidade faz parte da comunicação dos jogadores no processo de atuação improvisacional.
Desse modo, lança-se a questão: jogos teatrais, para que? A pertinencia desses jogos ao
aluno se reflete na possibilidade de o educador observar o que o educando compreende acerca de
determinado assunto, sem precisar decorar dos livros didáticos e/ou de outras referencias. A prática
do questionamento é aprimorada na atuação teatral, haja vista que o aprendiz interage com os pares
de forma reflexiva e improvisacional, o que acarreta em um movimento de contramão: o processo
de aprendizagem parte da improvisação e contrasta com a prática tradicional que requer ensaios e
memorizações preestabelecidas.
Japiassu (2001) retrata que o jogo teatral envolve o revezamento entre os sujeitos participantes,
haja vista que o jogo se processa a partir da troca de papéis entre os observadores – a plateia – e
os observados (os atores). Reflete-se que a alternância de posições entre os jogadores possibilita
a ação de se colocar no lugar do outro, o que contribui ao processo avaliativo das atividades e
propõe experimentações das diferentes ocupações realizadas pelos sujeitos, seja no teatro, seja
no cotidiano das ruas. Nesse viés, pondera-se que os aspectos da identidade e da diferença são
lançados: ora o sujeito atua, ora ele observa o outro.
3. COM VOCÊS, OS SUJEITOS EM QUESTÃO!
A pesquisa envolveu alunos do 4° ano do ensino fundamental, com idades entre 9 a 14 anos,
moradores do bairro de Tancredo Neves e redondezas. A turma pesquisada apresentou sujeitos
com interesses, afinidades, necessidades e sonhos diferenciados. A proposta das intervenções
pedagógicas por meio dos jogos teatrais priorizou o posicionamento dos educandos em questão.
Nessa perspectiva, deu-se voz aos aprendizes: quem eram eles? O que eles estavam buscando
naquele espaço de aprendizagem? Como eles se viam no futuro? Como eles se diferenciavam dos
outros colegas? Calvino (1994) aponta que o conhecimento sobre o outro é essencial para o sujeito,
uma vez que possibilita ao mesmo o conhecimento sobre si mesmo. Os questionamentos lançados
aos alunos foram relevantes porque as respostas dos mesmos trouxeram um leque de possibilidades
para o planejamento das intervenções pedagógicas. O quadro 1 apresenta a diversidade de interesses
expressados pelos sujeitos durante a primeira aula:
Quadro 1: Interesses dos alunos da turma pesquisada
N.° DEALUNOS INTERESSES
01 Desenhar
01 Cozinhar
02 Jogar futebol
01 Arrumar a casa em silencio
01 Praticar teatro e capoeira
01 Brincar com animais e ser Veterinária quando crescer
02 Cantar
01 Comer, estudar e cuidar da família
01 Ser atriz quando crescer
01 Ser uma médica legista
01 Ser uma cabeleleira
01 Estudar
02 Desenhar e cantar Fonte: Elaborado pela autora da pesquisa apresentada
A coleta dos interesses dos alunos indicou as bases para a elaboração da segunda aula.
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Ilustra-se no quadro acima que os interesses dos sujeitos da pesquisa envolveram desde ações
“habituais”, como estudar, arrumar a casa e cozinhar, até questões voltadas para planos do futuro:
a possível escolha por uma profissão. Além disso, destaca-se a afinidade por atividades artísticas,
como desenhar, cantar e praticar teatro e capoeira.
Dayrell (1996, p. 153) expõe que “na construção do papel de aluno, entra em jogo a
identidade que cada um veio construindo, até aquele momento, em diálogo com a tradição familiar”.
Considera-se que o universo do cotidiano escolar é constituído por uma diversidade sociocultural
de sujeitos que se deparam com regras preestabelecidas. Nesse processo, a escola enxerga os
aprendizes de uma mesma forma: todos são alunos. No entanto, existe um fator determinante: cada
aprendiz possui uma identidade própria. Como valorizar a identidade de cada um deles? Durante a
pesquisa realizada, convidou-se os alunos a mostrarem-se para os colegas, para a escola e para
a sociedade, valorizando-os: permitindo que eles refletissem e questionassem sobre a sociedade a
qual eles faziam parte e provocando-os à atuação social por meio da prática dos jogos teatrais.
4. DESVELANDO O JOGO IMPROVISACIONAL À CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Defende-se a pertinencia dos jogos teatrais de improviso na educação, considerando a
valorização de aspectos do cotidiano e das expressões culturais dos sujeitos, além do estímulo a:
espontaneidade, criatividade, autenticidade e autoria. A prática teatral envolve relações humanas e
nesse processo o aluno pode ser impulsionado ao encontro com a sua identidade. Sawaia (2002,
p. 119) pondera sobre a importância da busca da identidade na contemporaneidade, devido a: “[...]
representação e construção do eu como sujeito único e igual a si mesmo e o uso desta como
referencia de liberdade, felicidade e cidadania, tanto nas relações interpessoais como intergrupais e
internacionais”.
As atuações dos alunos durante os jogos e exercícios teatrais revelaram a importância da
subjetividade e da expressividade humana na educação. No entanto, as práticas artísticas apontaram
influencias de mazelas sociais, o que direcionou o planejamento das intervenções. Dessa forma,
tornou-se necessário um direcionamento para a:
elaboração de estratégias individuais que se desenvolvem em resposta a determinados desafios. Esse enfoque permite que se explique a aparente volatilidade das identidades, sua pluralidade, sua sensibilidade aos acontecimentos e, sobretudo, os inúmeros modos de manipulação e articulação que podem manifestar-se (TEDESCO, 2001, 72).
Com esse intuito, as experimentações teatrais foram analisadas sob a ótica processual:
a partir da interação entre os pares pode-se observar as necessidades, afinidades e desejos dos
educandos, reforçando-se o dilema: o que a escola quer ensinar ao aluno x o que o aluno quer aprender
na escola. Além disso, quem é o sujeito aluno? Qual a sua identidade? Qual(is) representação(ões)
identitária(s) a escola tem dele? De que maneira ele quer ser visto no espaço escolar e na sociedade
em geral? Esses e outros questionamentos puderam ser explorados durante as práticas teatrais,
não como ponto de partida, mas como resposta dos educando às problematizações lançadas nas
atividades. Com esse viés, construiu-se o espaço para o aluno se expressar e ser ouvido, o que
estimulou a prática da identificação, devido ao fato de que:
ela está sujeita ao “jogo” da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2012, p. 106).
Dessa maneira, notou-se no jogo “O oposto de mim mesmo”3 a opinião dos aprendizes a
respeito de suas identidades culturais. Os resultados apontaram questões variadas: o interesse por
uma profissão, o desejo pela melhoria socioeconomica, o sonho de reverter fatores da personalidade
que os incomodava e questões relacionadas aos modelos propagados pela mídia, conforme o quadro
2 apresenta:
Quadro 2 – Respostas dos participantes do jogo “O oposto de mim mesmo”
N.° DE ALUNOS
Sexo O que o aluno gostaria de ser/ter?
1 Masculino Gostaria de ter cabelos grandes2 Feminino Gostaria de ser médica para cuidar das pessoas3 Feminino Gostaria de ter cabelos grandes4 Feminino Gostaria de ter cabelos grandes5 Feminino Gostaria de ser rica, ter o cabelo mais liso do mundo e ter um filhote
de tigre6 Feminino Gostaria de ser médica, ter um papagaio e ser mais paciente7 Feminino Gostaria de ter cabelos lisos e longos8 Masculino Gostaria de ter um computador9 Feminino Gostaria de falar mais. Não fala muito porque sua voz é muito alta.
3 Como regra do jogo, o aluno registra em um papel o oposto de si mesmo e o que ele realmente é. Em seguida, convida-se o educando para a representação teatral dos aspectos escolhidos.
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10 Feminino Gostaria de ter um computador, de ter cabelos lisos e de ser profes-sora
11 Feminino Gostaria de ter um computador, de ser linda e ter cabelos lisos12 Masculino Gostaria de ser jogador de futebol13 Feminino Gostaria de ser linda e famosa14 Feminino Gostaria de ter cabelos longos, iguais aos da colega de sala15 Feminino Gostaria de ser extrovertida porque é tímida e calma16 Masculino Gostaria de ser um desenhista17 Não se
identificouGostaria de ter um notebook
18 Feminino Gostaria de ser professora19 Masculino O aluno escreveu apenas seu nome20 Feminino Gostaria de ser desenhista21 Feminino Gostaria de ser linda, rica e famosa
Fonte: elaborado pela autora da pesquisa apresentada
Constata-se no quadro apresentado a predominância de respostas relacionadas à estética
feminina. Presenciou-se alunas argumentarem que não se consideravam belas. Perguntou-se a
essas educandas o(s) motivo(s) que as levaram a acreditar nisso: para elas, ser bonita era ter
cabelos lisos e longos. De onde vem essa exigencia a respeito do padrão de beleza? Silva (2012,
p. 83) alerta que: “A força homogeneizadora da identidade normal é diretamente proporcional à
sua invisibilidade”. Dessa forma, pondera-se que como resultado dessa exclusão, o sujeito fere
a si mesmo, negando sua própria identidade. Diante dessa problemática, lança-se ao educador o
desafio de planejar intervenções de combate ao preconceito racial no ambiente escolar e ao mesmo
trabalhar com a não aceitação dos traços identitários do sujeito por ele mesmo. Até quando a escola
se submeterá aos comandos violentos da elite?
A esse respeito, Fischimann (2002, p. 95-96) lança uma reflexão: “[...] Haveria um
reconhecimento da identidade, ou simplesmente um tratamento estereotipado?”. Nesse sentido,
lança-se o dilema ao educador: ser passivo aos comandos de exclusão dos aspectos identitários
dos sujeitos ou combater a violencia sofrida cotidianamente nas novelas e propagandas? A lacuna
da escola quanto a essa questão é imensurável quando observa-se a corrosão da autoestima dos
educandos, ao se reconhecerem como feios porque não se identificam na televisão.
De acordo com Tedesco (2001, p. 72), “[...] o que há de peculiar no atual período histórico
é, precisamente, a importância que assume a atividade do sujeito na construção de sua identidade”.
Considera-se que o processo histórico da educação tem sofrido transformações quanto ao perfil
identitário do aluno: se antes o sujeito estudava sobre o processo civilizatório por meio das
constatações rasas dos livros didáticos – oriundas de uma elite segregadora e preconceituosa –,
hoje o sujeito transformador precisa questionar e combater as distorções lançadas no processo de
construção de uma identidade que é dele.
Sawaia (2002, p. 120-121) apresenta que: “[...] o enfraquecimento da tradição pode
favorecer a autonomia das escolhas, quando acompanhado de atitude reflexiva, mas, quando a
reflexão é impedida, pode gerar sofrimento de diversas ordens e mecanismos”. Desse modo,
acredita-se na pertinencia de a escola reconhecer os processos históricos e identitários dos sujeitos
do espaço escolar, a fim de que os mesmos possam alcançar a liberdade de serem atores de seus
espaços sociais e reconhecedores de suas origens. Nesse viés, defende-se que a liberdade de
escolha precisa ser concretizada com a autonomia do aluno, haja vista que as opções não podem
ser lançadas de maneira impositiva.
Fischimann (2002, p. 101) questiona: “Como trabalhar a questão dos limites entre o indivíduo
e o social dentro da escola, de maneira a respeitar individualidades em sua singularidade, sem
resvalar para o individualismo?”. Torna-se relevante o conhecimento da identidade cultural do aluno
por ele mesmo, a fim de se alcançar o entendimento acerca de suas histórias de vida e dos saberes
apreendidos em seus contextos socioculturais, além da valorização da autoestima em relação aos seus traços estéticos. No entanto, reconhece-se que a busca pela identificação provoca a ação de olhar para os outros sujeitos – desconhecidos e diferentes – o que impulsiona a prática da diferenciação por parte dos atores da escola.
De acordo com Silva (2012, p. 82): “Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras,
significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada
a uma forte separação entre “nós” e “eles”. Com esse intuito, planejou-se os jogos teatrais sob a
ótica da territorialidade, haja vista que ao conhecer e respeitar o vizinho, o educando é impulsionado
à liberdade de ser: sujeito e autentico por escolha, porque construiu uma identidade que é dele, não
do outro.
Investiu-se nesse propósito na quarta intervenção realizada: convidou-se os educandos a
falarem sobre suas relações de vizinhança e os problemas enfrentados por eles nas ruas do bairro.
Para isso, apresentou-se o jogo “Sua Rua tem um Problema?” 4 e ouviu-se dos alunos alguns
aspectos da realidade cotidiana dos mesmos: a violencia e a fofoca entre os vizinhos. A esse respeito,
a construção da identidade implica a identificação de um “diferente”, de uma fronteira. A identificação de uma fronteira, em momentos em que a globalização de todos os âmbitos da vida social se generaliza, pode parecer um contra-senso ou uma aspiração regressiva, contrária ao ideal
4 Os par ticipantes se dividem em dois grupos: o primeiro grupo escolhe um problema de rua para o outro grupo solucionar e vice-versa.
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educacional de entendimento internacional e de tolerância. Entretanto, o ideal de tolerância e compreensão supõe não tanto o desaparecimento das fronteiras mas o desaparecimento da concepção do “diferente” como um inimigo (TEDESCO, 2001, p. 79-80).
Hall (2012, p. 110) afirma que as identidades apontam “[...] o reconhecimento radicalmente
perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com
precisamente aquilo que falta [...]”. O exercício “Massagem nas Costas” 5 apontou microcenas de
exclusão quando alguns alunos se recusaram a participar da atividade com determinados colegas:
porque não queriam massagear outro menino/menina ou um aluno mais novo etc. Diante da questão,
precisou-se interromper a atividade para propor desconstruções acerca da diferença: cada qual
apresentou uma identidade que precisava ser respeitada.
A esse respeito, Santos (2008, p. 135) reforça que é “[...] crucial conhecer quem pergunta
pela identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que resultados”. Reconhece-se a presença de situações preconceituosas no cotidiano escolar, em relação aos
aspectos sociais, culturais, raciais e de genero. Os educadores, nesse sentido, precisam promover
ações de combate a essas mazelas sociais, de maneira a realizar projetos que teçam propostas de
diálogos e questionamentos acerca dessas questões.
Identificou-se a diversidade cultural dos alunos no exercício “Improvisação” 6: para realizar a
atividade, a turma escolheu uma reportagem acerca de um jovem estudante que foi baleado quando
voltava da igreja e se aproximava de casa. No meio do caminho, policiais o abordaram e, sem direito
de resposta, a vítima foi baleada e sofreu violencia verbal pelos agentes.
O clamor pela identidade, quer para negá-la, reforçá-la ou construí-la, é parte do confronto de poder na dialética da inclusão/exclusão e sua construção ocorre pela negação dos direitos e pela afirmação de privilégios. Ela exclui e inclui parcelas da população dos direitos de cidadania, sem prejuízo à ordem e harmonia social (SAWAIA, 2002, p. 124).
Retomando-se ao exercício “Improvisação”, notou-se as maneiras com que os alunos
escolheram os personagens, as roupas, as expressividades e os lugares das cenas: a vítima
escolhida pela turma era uma menina; na igreja, um padre e um pastor mediaram a missa, onde
os fiéis revezaram as orações com músicas evangélicas e católicas, momento em que ouviu-se
frases comumente pronunciadas nesses ambientes de oração. Além disso, após o acidente, os
5 Os jogadores formam duplas para que, de costas, massageiem o colega.
6 Apresenta-se repor tagens de jornal para que os alunos escolham uma temática, a fim de improvisá-la utilizando o mesmo problema, em busca da resolução do mesmo.
fiéis ajudaram a vítima: ligaram para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgencia (SAMU) e ao
perceberem que os médicos não conseguiam salvar a vítima, eles fizeram uma corrente de oração e
estimularam uma possível sobrevivencia. O espetáculo criado pelos jogadores da turma pesquisada
emocionou a todos: os atores, os observadores, a pesquisadora e a regente da turma, a qual assistia
sem interferencias.
Na experimentação do jogo “Se-fosse-do-meu-jeito”7, os alunos utilizaram temáticas
observadas na contemporaneidade: relações familiares, a adolescencia, a pobreza e a profissão de
doméstica. Para a realização da atividade, a turma se dividiu em grupos para improvisar cenas no
espaço indicado – a casa –, com os personagens da família nuclear. Na cena inicial, o primeiro grupo
representou uma família carente, sustentada por uma matriarca que apesar de não possuir boas
condições economicas, valorizava os estudos das filhas, mas acreditava que os homens deveriam
pagar a conta das mulheres; em seguida, o mesmo grupo protagonizou uma família formada por
mulheres que trabalhavam – uma delas encenou uma manicure, representada por uma aluna que
expressou nas primeiras aulas o interesse por essa profissão – , estudavam, tinham empregada e,
no entanto, a profissional era maltratada: não deixavam que a mesma fosse visitar a família, além
de proibirem que comesse da mesma comida da casa. O segundo grupo abordou o universo dos
adolescentes em relação às regras impostas pelos pais, de modo que na primeira cena havia um
patriarca rigoroso com suas filhas, enquanto na segunda atuação as jovens se mostraram mais
espontâneas e questionadoras em relação às imposições dos pais. Os grupos 3 e 4 se uniram por
conta do tempo e apresentaram uma família em que o patriarca – representado por um aluno que
nas primeiras aulas expressou que gostava mais de comer, estudar e cuidar da família – era aberto
ao diálogo, auxiliava a mulher nas atribuições do lar e tinha filhos mais disciplinados com as regras
impostas pela família. Na segunda cena, esse grupo representou uma família formada por pai e
filhas, mais questionadoras do que as da família anterior. Desse modo, a construção da identidade
envolve fatores relacionados com:
a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (HALL, 2012, p. 109).
Analisa-se que as experimentações teatrais trouxeram reflexões acerca das possibilidades
de (re) construção das identidades que tem sido afetadas pelas práticas de exclusão social. As
atuações dos alunos direcionaram o que os mesmos desejavam aprender no espaço escolar: mais
7 Em grupo, os jogadores encenam uma situação cotidiana para que, em seguida, improvisem outra cena com a mesma temática, porém, da forma que eles gostariam que acontecesse na vida real.
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questões sobre o que eles queriam ser e menos imposições acerca ao que eles “deveriam ser”.
Nessa perspectiva, Silva (2012, 76) argumenta que a relação entre identidade e diferença envolvem
aspectos relevantes, considerando que: “Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações
culturais e sociais”.
5. NOTAS CONCLUSIVAS E SUAS PROVOCAÇÕES
Nota-se que os jogos desenvolvidos comprovaram a diversidade sociocultural dos aprendizes
da pesquisa e destacaram a relevância da linguagem teatral para a valorização do processo educativo
dos jogadores. Reflete-se que as práticas improvisacionais dos sujeitos apresentaram como suas
expressões culturais carregavam identidades próprias, haja vista que os mesmos apresentaram
questões voltadas para seus interesses, planos, sonhos, inquietações e relatos de situações
observadas e/ou vivenciadas.
Pode-se constatar a pertinencia de o educador estimular a discussão acerca de temáticas
sociais que envolvem o cotidiano dos sujeitos envolvidos, provocando com isso a necessidade
de os mesmos revisarem seus conhecimentos prévios e questionarem sobre as microcenas que
eles observaram e/ou vivenciaram no meio social. Dessa forma, torna-se relevante que o educador
construa pontes para que o aluno possa dialogar com os fatores que interferem na construção de
sua identidade.
Acredita-se que o impacto causado pelas microcenas de discriminação – ocorridas durante
as intervenções pedagógicas – provocou questionamentos acerca das possibilidades de o educador
desenvolver uma pesquisa-ação, disposta a combater as práticas de exclusão presenciadas no
espaço escolar. Dessa maneira, questiona-se: de que maneira esse jogo teatral – que contribuiu
ao processo de aprendizagem dos alunos – pode combater as mazelas sociais detectadas em
microcenas processadas no espaço escolar?
Pondera-se que as práticas de discriminação presenciadas apontaram aspectos voltados
tanto para a identidade – por exemplo, a negação dos traços estéticos do aluno por ele mesmo –
como para a diferença: o tratamento de discriminação em relação ao colega de sala. Dessa forma,
questiona-se: de que maneira pode-se estimular o reconhecimento da identidade pelo sujeito, uma
vez que o mesmo não vem sendo respeitado pelo sistema segregador que é a sociedade? Torna-
se essencial que os educadores invistam em pesquisas voltadas à (re) construção identitária do
aluno, como forma de combate ao tratamento discriminatório que muitas vezes é silenciado nas
microcenas sociais.
A importância do presente artigo reafirma a urgencia de se resgatar o aluno do norteamento
segregador que permeia a contemporaneidade. Isso porque, libertar o sujeito para a busca da sua
identidade é permitir ao mesmo o encontro com suas origens e o questionamento acerca do sistema
pelo qual ele faz parte. Dessa maneira, o dever do professor é contribuir para a evolução do aluno
no combate às práticas de discriminação. Contudo, isso precisa contemplar as ações do educador
em sala de aula, no sentido de orientar o aprendiz a não aceitar as formas de modelação do sistema
midiático. Nessa perspectiva, não basta que o aluno identifique as práticas de exclusão: é preciso
encorajá-lo a se mostrar para a sociedade, reafirmando e preservando sua verdadeira identidade.
Assim, os jogos teatrais de improviso apresentados serviram como uma possibilidade para se
mediar a prática de reconhecimento dos aspectos identitários dos sujeitos: por eles mesmos, pela
escola e pela sociedade em geral.
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TEDESCO, Juan Carlos. O Novo Pacto Educativo: educação, competitividade e cidadania na
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GÊNERO, RAÇA E ETNOGRAFIA NAS COMUNIDADES TRADICIONAIS RELIGIOSAS8 (GENDER , RACE AND ETHNOGRAPHY IN TRADITIONAL RELIGIOUS COMMUNITIES)
Joanice Conceição*
RESUMO
Em meio a tantas irmandades negras e mistas existente nas terras baianas foi em meados do século XVIII, em Salvador que se dera fundação da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Desde lá a instituição vem reafirmando os compromissos firmados pelas primeiras fundadoras e, principalmente suas integrantes legam a sociedade brasileira valores africanos, ainda que relaborados e reinterpretados. Para além da singularidade feminina, da pertença ao catolicismo e candomblé a Boa Morte pode ser entendida como um lócus de resistencia contra o sexismo e o racismo que perpassaram e perpassam todos os setores sociais. Neste sentido, o texto que ora apresento busca refletir sobre o papel das mulheres nas irmandades negras e mistas da Bahia, a partir do enfrentamento da invisibilidade dada às funções femininas no seio dos espaços religiosos; situações muitas vezes veladas. Para concretização de tal emprendimento tomarei como base a Irmandades da Boa Morte e a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Porta do Carmo, ao tempo em que procuro dialogar com autoras Bel Hook, Leila Gonzales e autores como G. Balandier, E. Goffman, dentre outros.
Palavras-chave: Genero. Masculinidade. Subalternidade. Raça. Etnografia.
ABSTRACT
Amid so many black and mixed brotherhoods existing in Bahia land, it was founded in the mid-eighteenth century in Salvador the Brotherhood of Our Lady of the Good Death. Since then, the institution has reaffirmed the commitments made by the first founders. Its members bequeath Brazilian society African values, although reinvented and reinterpreted. Besides, the female uniqueness of belonging to Catholicism and Candomblé the Good Death can be understood as a resistance locus against sexism and racism that permeate and cut across all social sectors. In this sense, the text we present seeks to reflect on the role of women in black and mixed brotherhoods of Bahia, in face
8 Este texto é par te integrante da palestra por mim proferida na mesa-redonda intitulada Gênero, Raça∕Etnia e Etnografia em Comunidades Tradicionais e Religiosas, no I Ciclo de debates sobre Genero, Raça e Questões Contemporâneas, no período de 26 a 28 de março de 2014, na UNEB, Salvador Bahia. *Pós-Doutrora pelo Programa Nacional de Pó-Doutorado da CAPES, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB; Doutora e Mestre em Antropologia pela PUCSP; Membro do Grupo de Pesquisa Ritual, Festa e Performance.
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of invisibility given to women’s roles within the religious spaces; situations often veiled. To achieve this goal, I will discuss about the Brotherhood of the Good Death and the Brotherhood of the Rosary of Black Men of Carmo door. For this, I try to talk to Bel Hook, Leila Gonzales and authors as G. Balandier, E. Goffman, among others intellectuals.
Keyword: Genre. Masculinity. Subalternity. Race. Ethnography
INTRODUÇÃO
Gostaria de dedicar esta comunicação a duas mulheres da Irmandade da Boa Morte. A
primeira delas, no aiye –espaço semelhante a terra, Dagmar dos Santos Barbosa, conhecida como
Daddy, que na sua trajetória de vida luta para engendrar nas pessoas, em especial, nas crianças
e adolescentes os princípios africanos, os modos de vida e os ensinamentos retidos na memória
que lhe foram transmitidos por Iyá Teófila, sua mãe, seu irmão carnal Sergio Barbosa e parentes
africanos, com os quais conviveu.
A segunda mulher é a Iya Narcisa Cândida da Conceição, conhecida e chamada
carinhosamente por Dona Filhinha, que nos deixou no último dia 18 de janeiro de 2014, rumo ao orun,
com aproximadamente 110 anos. Essa última experimentou de perto as amarras da discriminação
do regime escravista, mas nem por isso tornou-se indiferente, ao contrário, sua presença e altivez
nos dão a certeza da sua contribuição para libertar a sociedade do sexismo e do racismo. Ambas
são símbolo de resistencia em defesa da cultura de matriz africana, sobretudo, lutam para colocar
a mulher num lugar de relevância social. Por tudo que elas fizeram e faz acho oportuno fazer essa
singela homenagem.
Tradicionalmente, a grande maioria dos estudos vem ocultando histórico e antropologicamente
a participação efetiva das mulheres nos diversos segmentos sociais, sobretudo, nos processos
religiosos. Contudo, a constatação de tal fato motivou a minha inserção nesta área de estudo –
religião e genero. Segundo Geertz, (1989, p. 104) a “religião é um sistema de símbolos que atua
para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens”,
conferindo-lhes sentido à vida. Entretanto, as investigações e publicações sobre as religiões de matriz
africana, nomeadamente as realizadas por mulheres, não apenas preocupam-se em tornar visível a
presença da mulher nesses espaços, como buscam evidenciar sua participação em ambientes ditos
masculinos.
A comunicação objetiva refletir sobre as discriminações que mulheres e homens negros
sofriam nas irmandades negras. Para tal empreendimento tomarei como base a Irmandade da Boa
Morte, por entender que nesses espaços onde se teciam solidariedade muitas vezes serviam para
segregar, porém as integrantes da Boa Morte utilizaram e utilizam o espaço por ela criado para
ressignificar papéis antes considerados masculinos, de modo a reverter a ordem hegemonica dos
papéis de genero. Além disso, estabelecem relações com as novas gerações para a manutenção de
valores africanos em contexto diaspórico. Convém apresentar brevemente este grupo de mulheres.
1. SOBRE A IRMANDADE DA BOA MORTE
Fundada supostamente no início do século XVIII, em Salvador, a Irmandade de Nossa Senhora
da Boa Morte9, ou simplesmente Boa Morte, é uma organização formada por mulheres negras,
cujos princípios religiosos orientadores são o catolicismo e o candomblé. Em situação oportuna
retornarei a esse ponto.
Suas integrantes rendem homenagens mortuárias às antigas irmãs falecidas. Tais rituais
públicos são, em sua maioria, católico, não fossem suas integrantes pertencentes às casas
tradicionais de candomblé de Cachoeira e arredores, portanto os rituais católicos misturam-se aos
rituais africanos, definindo a singularidade da irmandade. Embora publicamente a simbologia católica
seja mais perceptível, a saber: procissões, missas, vigília e cânticos, o estilo que verdadeiramente
orienta a vida das componentes é o africano, ainda que os rituais estejam reelaborados e
ressignificados, elas preservam marcas fulcrais trazidas pelas primeiras mulheres negras que aqui
chegaram forçadamente. Tem-se, assim, a união de duas diferentes formas de conceber a morte e
a vida – a ocidental e a africana –, o que aqui denomino como dupla pertença10.
A Boa Morte possui uma estrutura formada pela Juíza Perpétua e duas irmãs auxiliares;
juntas, formam um conselho responsável pelas decisões tomadas pela Irmandade. Estes cargos são
vitalícios, ocupados respectivamente pela pessoa com mais tempo de organização e a mulher com
maior idade cronológica. As demais compõem o corpo da institucional. Anualmente, cerca de cinco
integrantes formam a comissão da festa; isso ocorre após a eleição entre elas, embora atualmente
este e outros fatos tenham sofrido significativas modificações, devido à influencia de pessoas que
9 Para uma análise mais aprofundada sobre vários aspectos da Irmandade da Boa Morte, ver, dentre outros, CONCEIÇÃO, Joanice S. Mulheres do par tido alto: elegância, fé e poder –um estudo de caso sobre a Irmandade da Boa Morte, 2004, p. 78. 10 Este tema foi amplamente discutido por CONSORTE, Josideth (2000) em um texto intitulado Sincretismo e africanidade em terreiros jeje nagô de Salvador. Aqui não me deterei no tema, pois a reflexão maior são os elementos concernentes ao sexismo e o racismo sofridos pelas integrantes da Boa Morte e Babá.
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não fazem parte do corpo institucional, pessoas que se aproveitam da influencia que goza junto
aos meios governamentais e midiáticos acabam por determinar e transformar processos rituais
seculares.
Quanto à entrada na irmandade, esta se dá por meio de um convite feito por uma das irmãs
e julgado pelo conselho. Quando aprovado, a pretendente passa a ser denominada irmã de bolsa.
Como no candomblé, dentre outras coisas, a irmã de bolsa passa por rituais de iniciação, os quais
não nos foram revelados. Como as Iyawos, ela usa roupas brancas e não participa de algumas
reuniões reservadas às irmãs mais antigas. Nas procissões coloca-se sempre nos últimos lugares,
não usa roupa de gala, o que facilita identificá-la, uma vez que, no ápice da festa, a noviça conserva
as roupas brancas e joias de menor expressão. Nota-se, por meio de entrevistas realizadas junto aos
membros da irmandade, que a entrada de novas integrantes requer uma preparação que nem sempre
é revelada a quem se deseja convidar; elas são observadas na sua vida cotidiana e depois lhe é
dirigido o convite. Para não cair no suicídio cultural, após um longo período sem admissão de novas
integrantes nos últimos anos observa-se a presença de novas irmãs de bolsa. Tal atitude indica que
o tradicional está sendo tocado pela modernidade, o suposto segredo é passado moderadamente,
por fim, a dinâmica cultural garante a continuidade do grupo.
A tradição mantém e transmite procedimentos técnicos e seus instrumentos; vai além ao associá-los a sistemas simbólicos, mitos, mistérios e ritualizações pelas quais os artesãos compõem uma determinada sociedade no interior da grande sociedade. Esta tradição restrita a um corpo apresenta, contudo, características consideradas próprias à tradição comum da qual participam os membros de uma coletividade: requer mestres que a conheçam, que a mantenham viva e a comuniquem aos que nela se iniciam; recebe sua autoridade e sua eficácia por sua antiguidade, pelas ideias, pelos valores e modelos dos quais é herdeira, pelo segredo que a diferencia dos saberes comuns. É por esses últimos aspectos que a tradição encerra um elemento de caráter sobre-humano, que remete aos deuses, aos heróis e aos fundadores, e que se torna o depósito sagrado daqueles que se apresentam como seus vicários ou seus mandatários no presente.11 (BALANDIER, 1997, p 95)
Como bem ilustra o excerto acima atesta que a cultura e∕ou os conhecimentos de um
determinando povo ou grupo social devem ser transmitidos aos mais jovens para a própria
sobrevivencia.
11 Ibidem, p. 95.
2. ETNOGRAFAR A BOA MORTE
A Boa Morte esteve ligada ao candomblé da Barroquinha e fazia parte de seus objetivos o
resgate de africanas que tivessem exercido função sacerdotal importante em África, isto é, mulheres
conhecedoras da religião africana, que pudessem contribuir para o fortalecimento desta na Bahia.
A Barroquinha, no início do século XVIII, não era apenas um bairro comercial como acontece hoje
(Silveira, 2006, p. 403); havia uma parte residencial que concentrava grande número de negras e
negros originários de várias etnias, moradores que comercializavam suas mercadorias, praticavam
suas danças e também se reuniam para discutir assuntos religiosos; portanto, aos olhos das
autoridades, o local era considerado marginal.
Como referido em outros textos, no início, a Irmandade esteve atrelada a um grupo masculino
denominado Irmandade de Bom Jesus dos Martírios, porém essa união não durou muito, devido a
pouca visibilidade dada às tarefas desempenhadas pelas mulheres, assim como a pouca ou quase
nenhuma valorização da mulher enquanto membro ativo. Essas atitudes praticadas pelos homens
impunham à ala feminina um descontentamento o que provocou uma divisão do grupo, resultando
na criação de um outro, formado apenas por mulheres negras, que se autodenominavam como irmãs
e tinham como protetora Nossa Senhora da Boa Morte e Obaluaiye como patrono. retornaremos a
este assunto em momento oportuno. A imagem de Nossa Senhora ocupava o altar lateral na Igreja
de Bom Jesus dos Martírios. Após a divisão a referida imagem passou a ocupar lugar central na
então Igreja da Barroquinha que se tornara sua sede até aproximadamente 1820, quando o grupo, já
consolidado transferiu-se para as ruas coloniais da cidade de Cachoeira, no Reconcavo Baiano12.
A Boa Morte como assim é conhecida o grupo de mulheres que ainda no período escravista
criaram um espaço a revelia de uma sociedade machista e sexista. Pois bem, os africanos que
chegaram à Bahia no final do século XVIII e final do século XIX, sobretudo, no último contigente,
possivelmente, eram iorubanos advindos da Costa Mina e Golfo do Benim. Há ainda um forte indício
que entre os africanos destes países tenham chegado as primeiras mulheres que dariam um tom
todo especial ao “Bairro da Lama”, conhecido hoje como Barroquinha. Mais tarde grande parte
daquelas mulheres se juntaria para formar a referida irmandade.
Na Irmandade da Boa Morte as mulheres contestam a participação dos homens na estrutura
da organização, mas percebemos que estas buscam combater a discriminação sofrida ao longo dos
anos nas irmandades negras em todo Brasil, por isso a Irmandade da Boa Morte desponta como
um espaço em que a feminilidade é exercida na sua plenitude, mas nem por isso os homens estão
12 Especula-se que a mudança da Irmandade para a cidade de Cachoeira se deu graças ao crescimento imobiliário que jogara os negros paras regiões periféricas da cidade ou para as cidades próximas a capital baiana.
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ausentes dos rituais realizados por elas. Deste modo, as integrantes da Irmandade engendram nas
crianças e adolescentes suas ideologias a respeito da divisão sexual das tarefas, legam, portanto,
valores de uma sociedade masculinizada.
3. SOBRE A FESTA13
Falar da festa da Irmandade da Boa Morte nos obrigar a pensá-la de forma ampliada,
como Mauss (2003), na medida em que as celebrações da Boa Morte envolvem dois universos
religiosos com tantas especificidades: candomblé e catolicismo. As festividades nos remetem a
tempos de sacralidade, mas também há tempos profanos, portanto, a festa é o lugar simbólico
onde cerimonialmente “separa-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silencio não-
festejado” e aquilo que “deve ser resgatado de tempos em tempos”... (BRANDÃO,1989:8). Assim
as festas públicas tem, dentre outras funções, explicitar o resgate de uma história, da memória, do
passado para melhor compreender o presente.
Oficialmente a festividade da Boa Morte transcorre entre os dias 13 e 15 de agosto. O
primeiro dia começa com a procissão de anunciação da morte de Nossa Senhora, logo após há
uma missa dedicada á memória das integrantes falecidas; em seguida é servida a “ceia branca”,
composta basicamente, de peixe, vinho, arroz branco, já que é interditado o uso de azeite.
O segundo dia, por volta das 19 horas ocorre a missa e em segunda há mais uma procissão
denominada, “Procissão de enterro”. Logo após a procissão, todas as integrantes, com exceção
das irmãs de bolsa, ficam em vigília, com as portas fechadas; tal fato suscita várias especulações,
o que legou à irmandade o título Irmandade do Segredo, mas nada pude saber a esse respeito, já
que as integrantes quando entrevistadas não revelam o que elas fazem às portas fechadas, limitam
a dizer que ficam tão somente rezando e vigiando o sono de Nossa Senhora.
4. PROCISSÃO DO ENTERRO
O terceiro e oficialmente, o último dia da festa, começa com uma alvorada de fogos de
artifícios, missa festiva pela Assunção de Nossa Senhora, em seguida, procissão de Nossa Senhora
da Glória, ou Boa Morte. A referida procissão é muito pomposa, faz-se acompanhar por centenas
de pessoas, povo de santo de várias localidades baianas, inclusive da capital, turistas nacionais e
internacionais e pelas filarmonicas da cidade, percorrendo as principais ruas da pequena Cachoeira.
Na referida procissão as roupas brancas usadas pelas irmãs dão lugar ao seu traje mais famoso: a
13 As informações e fotos contidas na etnografia deste texto referem-se à festa do ano de 2011.
roupa de gala é composta de saia preta plissada, camizú branco ricamente bordado, pano da costa
nas cores preta e vermelha, sendo que neste dia elas deixam à mostra o vermelho, representando a
alegria pela glorificação de Maria; os famosos correntões e fios de contas e muito cordões dourado,
compõem as joias e substituem o ouro exibidos pelas antigas irmãs. A cabeça é coberta por um
lenço bordado ao modo richelieu, tal qual o lenço que adorna a cintura; nas mãos levam flores de
cores variadas que causam um lindo efeito plástico.
Ao retornar, no salão de festa, as integrantes dançam a valsa e pontos de candomblé.
Encerra-se a festa com um samba de roda, presidido pelas integrantes. Entretanto, ressalva-se
que a festa prolonga-se por mais alguns dias quando são oferecidos, mugunzá, cozido e o caruru.
Infelizmente, por uma questão de limitação do tema, não há uma descrição aprofundada sobre os
alimentos servidos ao longo do período festivo. Ressalva-se que a culminância das festas de agosto
é antecedida e precedida por várias etapas festivas que ficam fora da grande mídia, a saber: o
traslado de Nossa Senhora, que geralmente ocorre em maio, a esmola geral, o cozido, o mugunzá,
o caruru, sem contar toda preparação que se transforma em momentos de confraternização para as
irmãs.
5. Gênero, raça∕etnia e classe na reliGião na Boa Morte
Não poderia deixar de abordar as experiencias etnográficas vivenciadas na Irmandade da Boa
Morte sem toca no ponto das discriminações vividas no interior das irmandades negras, pois foi a partir
da invisibilidade das mulheres que o grupo se formou. Os estudos sobre a sacralização das territorialidades
negras pouco apontam para a discriminação vivida no interior das irmandades. Assim reconhecemos que as
irmandades eram espaços onde negros e negras podiam trocar experiencias, sociabilidades e solidariedade.
Contudo, nem por isso eram espaços que estavam brindados contra o racismo, classismo e o sexismo.
Esses indícios foram encontrados nos próprios Estatutos e Compromissos de diversas Irmandades e Ordem
terceira de todo Brasil. Portanto, as categorias supracitadas perpassam toda estrutura social, em especial nas
irmandades, como nos informa Reis:
As irmandades negras via de regra tinham uma mesa composta de mulheres e outra de homens. O compromisso de 1820 do Rosário das Portas do Carmo rezava: “se elegerão as Juízas que forem suficientes de uma e outra nação” quer dizer angolas e crioulas. Mas esta e outras irmandades de pretos e de brancos discriminavam politicamente a ala feminina. A regra dos irmãos do Rosário que proibia a escravos de serem juízes, procuradores e mordomos, fazia exceção às mulheres escravas, porque “pela qualidade do sexo não exercitam ato de mesa”. (REIS, 1991, p.58).
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De igual modo o Compromisso de 1788 da Irmandade dos Homens Pretos do Rosário de Camamu,
que designava às mulheres trabalhos de acordo com seu sexo: “lavar as roupas brancas, coser, refazendo-as
e consertando-as para o uso das missas”. Além disso, dividiriam com os homens o trabalho de coletar ou dar
do próprio bolso esmolas para o “aumento da irmandade”.
O exposto deixa entrever que os homens entendiam que havia certa incapacidade nas mulheres
para o exercício de qualquer atividade que não estivesse de acordo com a visão hegemonica do ser mulher.
Note que as atividades relegadas às mulheres dizem respeito às tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico.
Portanto, as categorias raça, genero, classe e religião, de modo geral, modelavam a imagem do que é ser
mulher nos espaços religiosos, particularmente entre as mulheres e os homens negros nas irmandades
mistas e negras da Bahia.
Os estatutos das irmandades, de certo modo, naturalizam o sexismo nas regras impostas às mulheres.
Embora no candomblé as grandes figuras fossem femininas, esse fato não era tido como algo relevante, já
que tudo que dizia respeito à população negra era e é, em certa medida, desprezado. Vale ressaltar que as
religiões de matriz africana sequer eram reconhecidas como tal até bem pouco tempo. No final do século
XVIII, enquanto as intelectuais feministas brigavam pelo reconhecimento social, as mulheres negras galgavam
sua participação na vida das irmandades e enfrentavam, por outro lado, a segregação espacial, não do ponto
vista geográfico, mas da forma desigual da divisão sexual das tarefas.
A dominação masculina perpetrada contra as mulheres, de modo especial, contra as negras, fazia
parte de um conjunto de atitudes vivenciadas na época. Embora fosse e ainda o é uma pratica corrente em
todo mundo nem por isso as negras aceitavam passivamente tais imposições. A esse respeito, L. Gonzales
salienta:
Fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio Movimento Negro), era justamente o da atuação das mulheres negras que, ao que parece, antes mesmo da existencia de organizações do Movimento de Mulheres, reuniam-se para discutir o seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros. [...] Nesse sentido, o feminismo negro possui sua diferença específica em face do ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiencia histórica comum. (GONZALES, 1984, Apud GARCIA, 2012, p. 36).
Não obstante o contexto moderno apresente um quadro no qual a mulher apareça como chefe de
família, mais escolarizada, em postos de relevância social, mesmo com o salário inferior ao do homem no
mesmo cargo e com igual escolaridade, nos faz ainda hoje perguntar: por que após anos de luta as mulheres
ainda são vitimas do sexismo tal qual experimentaram as negras desde que aqui aportaram? A indagação
só pode ser respondida se levarmos em conta alguns fatores: a sociedade mentalmente ainda opera com
arranjos da égide da dominação-exploração14, isto é, arranjos masculinizados. Na religião, tais arranjos
ganham novos contornos já que os símbolos reforçam a ideia de uma sociedade falocentrica, ocultando
político e sistematicamente a participação feminina na história das associações mundiais, em especial, no
Brasil. Essas constatações coadunam com a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres, ou
seja, a maneira como essas mulheres representam seus papéis no cotidiano da cidade ecoa a noção de ator
sincero, elaborado por Goffman (1985, p.25).
Em uma sociedade multirracial como o Brasil é possível encontrar o par da diferença como assimétrica
e desigual. Dito de outro modo, na sociedade brasileira, a masculinidade não possui o mesmo peso para
todos os homens. Ao fazer tal afirmação estou a dizer que o homem negro possui um valor menor no
mercado racializado; esse fato está presente desde os tempos que remontam à invasão das terras brasileiras,
focalizando o homem no período colonial, no advento das irmandades negras, brancas e mistas. Com o
nascimento de tais organizações, poderiam até pensar não haver tratamentos diferenciados, já que, perante
os dogmas religiosos cristãos, todo ser humano é filho de Deus. Mas não é bem assim: a realidade que se
deslindou vem recheada de conflitos raciais, conflitos que ora se apresenta implícitos, outras vezes revelados.
Entretanto a base desses conflitos está fundamentada no racismo religioso, no sexismo e no classismo que
sempre contou com uma forte aliada –a Igreja.
O homem negro também sofreu o seu revés. Dentro da visão hegemonica, o homem negro sempre
foi considerado o viril, o bem dotado e outras adjetivações que negam o negro como um sujeito, no sentido
mais amplo do termo. No entanto, quando colocamos este mesmo homem dentro da política de genero, em
particular no processo escravista, percebemos que sua atuação foi negada, por não fazer parte do modelo
normativo, isto é, o modelo branco, heterossexual e rico (HOOKS, 1995). A constatação da negação da
masculinidade ou da masculinidade subalterna do homem negro e as constantes interiorizações negativas
sofridas ao longo da história criaram uma imagem negativa do homem negro frente a outros homens, ainda
que os aspectos inferiorizantes não fossem levados em conta no momento da avaliação do seu progresso material. “Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças∕etniaseminteração e de classe sociais, o pensamento, reflete as subestruturas antagonicas”. Observada a maneira
desigual dentro das territorialidades religiosas, existia, por um lado, a ideia de homogeneização das pessoas,
mas, paradoxalmente, havia indivíduos tratados de forma diferenciada, por conseguinte o poder era exercido
de maneira velada, porém eficiente, quando era permitida a entrada de negros e negras nas organizações, não
obstante a atuação destes não tinham a mesma extensão dos demais membros. Deste modo, poder-se-ia
dizer que o homem negro, quando observado de uma estrutura mais ampla, era empoderado, entretanto, visto
das relações internas, era destituído de poder.
No caso das irmandades negras, a mulher era levada para um lugar socialmente sem prestígio;
tudo aparentava uma falsa harmonia à medida que eram aceitas sem restrições, entretanto, havia um longo
caminho para que elas pudessem ocupar um lugar de relevância social. Para Saffioti (2004), os avanços feitos
14 A expressão dominação-exploração é emprestada de Saffiotti, na obra Gênero e Patriarcado, 2001.
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nos estudos sobre a questão da mulher, principalmente nos anos 60 e 70, não condizem com a frequente
inferioridade atribuída a ela como marca natural. Para Scott (1990) é preciso identificar as estruturas basilares
da discriminação, a fim de combate-las, ainda que se saiba que tais estruturas estejam fortemente ancoradas
na produção, reprodução, socialização e sexualidade. Saffioti acrescenta-lhe ainda o androcentrismo ou
falogocentrismo, posto que permite compreender a genese do exercício da dominação sobre as mulheres, em
que, segundo o modelo vigente, coloca o homem na esfera do poder, da força e a mulher, na secundariedade,
isto é, do lado da submissão e da fragilidade.
Assim, a dissensão da Boa Morte mostra ruptura da clássica masculinidade hegemonica uma vez
que todas as decisões eram tomadas por elas, ainda que os irmãos dos Martírios as representassem junto às
autoridades eclesiásticas e governamentais.
Quando consideramos o ser humano como múltiplo, colocamos desde logo a contraditoriedade
potencializada em todo humano e, como consequencia disso, aparecem as divisões e atribuições
assimétricas entre os sexos, seja na família, no espaço religioso, no ambiente de trabalho. Podemos
dizer que as discriminações de raça\etnia, classe e genero constatados na Irmandade da Boa Morte
refletem a extensão daquilo que ocorre na esfera do poder de toda a sociedade.
Devemos atentar para os trabalhos etnográficos que realizamos, muitas vezes encontramos
nas entrelinhas os conflitos, as amarras e algo para além das aparencias. No campo influenciamos
e somos influenciados. É preciso estar atentos às histórias bem arrumadas, bem justificadas, pois
muitas vezes nas entrelinhas elas podem revelar para além do visível.
Assim como fizeram as integrantes da Boa Morte, é preciso ter em mente que transpor a
barreira da indiferença é acima de tudo se colocar à disposição de uma causa, onde o desejo de
vencer deve falar mais alto que a dor das dificuldades a serem enfrentadas (CONCEIÇÃO, 2004).
REFERENCIAS
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SCOTT, Joan. Genero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 2, n. 16, p. 5-22, 1990.
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APENDICEFotos da festa da Boa Morte feita pela autora.
Figura 1: Irmã Daddy
Figura 5: A ceia branca
Figura 6: Procissão do enterro
Figura 7: Irmã Dalva do sambaFigura 3: Fachada da sede da Irmandade da Boa Morte
Figura 2: Irmã Filhinha
Figura 4: Anunciação da Nossa Senhora da Boa Morte
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Figura 8: Irmãs da Boa Morte em seus trajes de gala
Figura 9: Procissão da Nossa Senhora da Boa Morte
Figura 10: Valsa da Boa Morte
Figura 11: Irmãs sambam no encerramento da festa
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OS ESPAÇOS DA MEMÓRIA NA PERSPECTIVA DAS DISCUSSÕES SOBRE IDENTIDADE EM COMUNIDADE AFRO (MEMORY SPACE, IN PERSEPCTIVE OF DISCUSSION ABOUT AFRO
COMUNITY IDENTITY)
Cecilia C. Moreira Soares15*
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar alguns conceitos sobre memória, identidade e
territorialidade afro-baiana, para que possamos refletir sobre a importância da memória afro-
baiana no contexto das comunidades religiosas afro, a formação de memoriais em seus espaços
como estratégia para educação étnico-racial, preservação e dinamismo da memória referendada.
Utilizaremos, também, as informações colhidas na comunidade lócus da pesquisa Terreiro Ile Axé
Maroketu, em Salvador-Bahia.
Palavras-chave: Memória. Identidade. Territorialidade afro-baiana.
ABSTRACT
The goal of this work is to present some concepts about memory, identity and afro-baiana
territoriality. We want to think about afro-baiana memory in the context of afro religious comunities,
formation of memories in its spaces, like strategy tp etno-racial education, memory preservation and
memory dynamism. We use research informations of Terreiro Ilé Axé Maroketu, in Salvador/Bahia/
Brazil.
Key words: Memory. Identity. Afro-baiana territoriality.
A escolha de um grupo social para análise e de forma paradigmática demonstrar as ações
da memória individual e coletiva, a interpretação de identidade e a importância do espaço formal
para reviver a memória, sugere um desafio para romper com a memória social, com pretensão
de hegemonia. Ao lembrar do jargão que tomou a cidade de Salvador nos dias carnavalescos em
fevereiro de 2015: “É tudo nosso, nada deles”, corrijo dizendo que embora as memórias sejam
15 *
nossas, são “eles” que a utilizam dentro de um esquema hierárquico, classificatório e de invisibilidade
das nuances da cultura negra, materializado por negros e negras no cotidiano da cidade. Condenam
os espaços da memória à imutabilidade e ao aprisionamento histórico. Com base nessas premissas
tentarei ao recortar este grande tema, provocar reflexões.
Neste artigo algumas palavras - chave permearão toda a discussão e análises das informações
que são os conceitos de memória e oralidade, identidade e territorialidade. Utilizaremos, também, as
informações colhidas na comunidade lócus da pesquisa, o Terreiro Maroketu, em Salvador-Bahia.
IMPORTâNCIA DA MEMÓRIA NO CANDOMBLé
Por reiteradas vezes observei o esforço da lembrança nos rituais e diálogos entre os adeptos
da religião afro-brasileira na Bahia. E no Terreiro Ile Axé Maroketu, que selecionei como principal
alvo de minhas investigações que originaram este artigo, as lembranças representavam a maior
herança em relação a sua fundadora e todos aqueles que por ali passaram. Muitas vezes, no
desenrolar dos rituais, as trocas de olhares, riso sutil, gestos só decifrados por aqueles que circulam
nesse universo vinha à tona a lembrança de alguém cuja participação tinha sido importante. Essa
recordação coletiva estava associada à maneira irreverente ou grave com que as pessoas lidavam
com as coisas sagradas, entonações e declinações nos cânticos, esquecimentos e reelaborações
da práxis, trejeitos, sinuosidades que singularizavam suas presenças nos rituais. Isto não é particular
e exclusivo desse Terreiro, pois a memória representa para as comunidades - terreiros o principal
elemento de religação com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Rememora-
se, através dos ritos e práticas no cotidiano desses espaços e com certa espontaneidade se ingressa
na privacidade dos acontecimentos corriqueiros, mas capazes, se pedagogicamente lembrados, de
elevar a autoestima do grupo, preservar costumes, ou mesmo, justificar mudanças.
Assim, a memória assume um lugar de extrema importância, ao ser responsável pela
continuidade e, de forma paradoxal, explicar descontinuidade na tradição. “No meu tempo era
assim... hoje, minha filha, tenho que fazer dessa forma... eles me entendem”, justifica uma de nossas
entrevistadas, quando interpelada sobre as alterações no ritual das Águas de Oxalá no Maroketu16.
A lembrança de uma memória pessoal é também a memória social do grupo, que se regozija
ao estabelecer uma ponte entre passado-presente, cujo fator tempo é uma demarcação tenue e até
imperceptível. Todas as vezes que, em circunstâncias bem determinadas, lembra-se de alguém ou
de suas ações, afloram outras lembranças de sua presença, refletida nas falas de todos aqueles
Professora Adjunta B da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.16
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que compartilharam com essa pessoa algum momento. Vem à tona a recordação das cantigas
que personalizadas pela pessoa ou mesmo eternizadas pela enfase e entonação dadas às palavras
sagradas, os gestos e a maneira de dançar, gosto e estilo no vestir-se e logo também alguém se
põe a teatralizar sua presença e, por inúmeras e incontáveis vezes, recorrerão aos gestos e palavras
que tornaram a presença-viva e constante daqueles que não compartilham mais do mesmo espaço
ou comunidade. São essas ações que garantem a passagem de informações importantes para a
manutenção da tradição.
A eloquencia dessas narrativas e o cabedal de informações rituais enobrecem o grupo,
estimula a memória ameaçada pelo esquecimento, forma a nova geração que se compraz no riso,
que também será sensibilizada pelas histórias que enaltecem a sabedoria ritualística e o segredo
religioso. Por outro lado, é comum o estabelecimento de uma espécie de jogo sobre a detenção
do conhecimento religioso ou mesmo da memória de alguém ilustre. Certa vez, ávida por uma
informação sobre a existencia de memorável membro do candomblé em Salvador, corre-se alguns
riscos, como o de deparar-me com um informante, como no caso vivenciado e aqui relatado. O
suposto informante que, por vezes insinuava para mim que possuía informações importantes e que
iria disponibilizá-las, também aguçava mais e mais a minha curiosidade, ao lançar-me perguntas
sobre a pessoa do meu interesse, invertendo a situação de depoente.
Durante uma cerimonia religiosa tive a oportunidade de entrevistá-lo; por diversas vezes
lembrou-me das informações que possuía, com frequencia punha-se do meu lado, gesticulava,
informava-me que determinado cântico lembrava a pessoa, isso e aquilo outro era do seu tempo e
do seu modo.
Esse comportamento, aparentemente impertinente, deve ser interpretado dentro da lógica
do jogo contínuo da memória religiosa, através da representação dos vivos e dos mortos que ainda
detinham assento na estrutura litúrgica dos rituais. São práticas que rememoravam a descontinuidade
do tempo e a vontade da tradição ser perenizada; diluía-se o impacto da dinâmica social celebrando
a imutabilidade dessas referencias.
Toda comunidade que se sustenta na tradição da presença contínua dos indivíduos, celebra
uma lembrança que é reativada pelos espaços na comunidade, seus objetos e práticas rituais.
Eternizam os cânticos, uma cadeira, um canto da casa, um objeto de decoração. Para o tema em
questão, o interesse recai sobre a importância da organização de memorias no espaço do terreiro
para lembrar e perpetuar a história e memória do grupo.
Entrevista concedida à Autora por Mãe Pastora, líder espiritual da comunidade, 2005. Águas de Oxalá, cerimonia ritualística em homenagem à divindade Oxalá.
MEMÓRIA, IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE
Segundo Bérgson (1990), decorrido algum tempo presume-se que as lembranças consistem
em adquirir percepção dos fatos, permanencias e releituras simbólicas das representações. O
ambiente social e sua interação como aprendizado natural, absorção simples das interpretações das
experiencias africanas, pode exercer influencia nas lembranças que “impregna as representações.”
(Bossi, 1994). Nos depoimentos realizados em nossa pesquisa, são perceptíveis as acomodações
e reorganizações dos eventos passados para um presente, onde os símbolos e representações
respondem às convicções momentâneas, à autonomia da memória em evocar imagens e reconstruí-
las através da narrativa.
Bérgson (1990), a partir do método introspectivo, sugere que é o fato da conservação dos
estados psíquicos já vividos que nos permitem escolher entre as alternativas que um novo estímulo
pode oferecer. A memória teria como função prática, delimitar a indeterminação (do pensamento e
da ação) e de levar o sujeito a reproduzir formas de comportamentos que foram consolidados. À
compreensão do autor, se devem buscar também as motivações na realidade social experimentada
- novos contextos sugerem comportamentos que tendem a forçar as lembranças, alterá-las ou
mesmo suprimi-las, enquanto defesa e proteção de princípios tão caros ao grupo. O desafio para
nós está em agregar os dois estímulos que se distanciam e, ao mesmo tempo, se integram em
diferentes tempos. O que diferencia o alcance da memória na comunidade – terreiro é o fato de que
os conhecimentos que reconstituem a imagem do passado e evocam espontaneidade não ficam
restritos apenas às repetições, enquadramentos singulares.
A grande preocupação de Bérgson foi entender as relações entre conservação do passado
e sua articulação com o presente, a confluencia da memória e percepção. É esse aspecto que
interessa à pesquisa, ao analisar a importância e o significado da memória religiosa na comunidade
Candomblé, como um referencial social ou mesmo cultural, que estabelece fronteiras entre este e os
outros.
A memória-hábito, adquirida pelo esforço da repetição, segundo Bérgson (1990), se dá no
processo de sociabilização. Assim, devem se pensar os rituais iniciativos, ou a busca da história
mítica entrelaçada a uma realidade, com o objetivo de mudança nos comportamentos, que ocorre
na medida em que se ritualizam os mitos, servindo de referencia para o cotidiano no universo das
pessoas no Candomblé. Do outro lado, reside o que Bérgson (Ibidem) denominou de lembrança
pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, em termos evocativos e oníricos, por exemplo. A
imagem-lembrança é individualizada. Refere-se a alguém em algum momento de sua vida.
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Halbwachs (1990) relativizou a teoria sobre a lembrança pura, ao relacioná-la com a história
e, dessa forma, transpos os limites das análises bergsonianas. O importante era trazer à tona o
sujeito que lembra e fazer uma conexão entre o que era lembrado e quem era o sujeito que projetava
essa lembrança.
Ao estudo de Halbwachs interessa os quadros sociais da memória e não exatamente a
memória, ou seja, suas representações, permanencias. A memória deve ser apreendida no seu
conjunto e inter-relação com as diferentes sociabilidades. Cabe à inferencia sobre em que momento
as pessoas são provocadas a lembrar, como organizam e narram essa lembrança, selecionam fatos,
alteram as imagens. A memória se processa o tempo todo, culminando com novos cenários e
redefinindo o papel dos sujeitos.
Quando se fala em identidade negra, procura-se definir a conjunção de ideologias e aspectos
visíveis daquilo que designamos genuinamente de origem africana. A leitura de identidade que
queremos relatar é aquela construída e em processos contínuos de acabamento, redefinições que
somente a recusa por processos culturais acabados, poderá compreender a singularidade de grupos
tão específicos quanto às comunidades culturais e religiosas afro-baiana. As antigas tradições que se
reprocessaram no contexto das comunidades estão atreladas aos movimentos sociais relacionados
com a negritude e a inserção social, movimentos públicos e demonstração da dinâmica cultural em
aceitarem e incorporarem novos conteúdos mágico-religiosos para compor a liturgia.
Os lapsos da memória foram preenchidos com elementos colhidos no território cultural e
sofreram a influencia dos grupos sociais que tinham experimentado ou experimentavam a política
asfixiante de um ocidente com pretensão de hegemonia.
Entende-se que os recortes estabelecidos pela memória seletiva cumprem a função ideológica
de diferenciação dos ritos que irão legitimar identidades, através da permanencia de valores afixados
como exclusivos, mas, passíveis das vulnerabilidades e aquisições que contribuíram com os sinais
diacronicos e sincronicos valorizados pelos grupos.
Sem dúvida, a africanidade dessas composições é multiétnica e referendada no território
cultural brasileiro. O pertencimento é reafirmado como resultante de um hibridismo cultural,
transposto para o campo das práticas ritualísticas e sentimentos de pertença, alicerçado numa
memória individual e coletiva das diversas matrizes que compuseram a tradição.
As histórias individuais são, assim, exemplos de “autoconstrução de identidade referendada na
África e imbricada num processo de resistencia cultural religiosa brasileira”. (PINHO, 2004.) Analisar
essas representações sobre o ser afro descendente, como a noção de identidade étnica - religiosa é
também compreender seus sentidos políticos e a necessidade de inclusão que evidenciavam dentro
das comunidades o fortalecimento com uma grafia diversificada, mas que só a partir dos anos 70,
ganhou dimensão nacional.
Segundo Jaques D’Adesky (2005, p. 118), o Território deve ser entendido enquanto espaço
que se constitui por meio da relação de grupos sociais que se encontram e se reconhecem, em
um local segundo uma forma de comunicação que gera relações permeadas por significados
hierarquizados, valorizados e polarizados. A leitura do autor corrobora perfeitamente com os
significados intrínsecos representados no Terreiro de Candomblé, este se sobrepõe à importância da
“materialização do território”.
O espaço do Terreiro representa as construções culturais que estão inscritas em cada corpo,
em cada elemento, em diferentes ambientes e na própria natureza. Configura uma rede “relacional de
representações coletivas” reconhecidas por todo grupo social. Dessa forma, o espaço se transforma
e é transformado em “loteamentos territoriais”, segundo os quais se dividem até mesmo as nações
de candomblés no mesmo terreiro.
O espaço do Terreiro deve ser interpretado também enquanto local de diferenças e conflitos
expressivos de uma identidade que está em constante processo de reconstrução: espaço que poderá
ser alterado, ressignificado, inclusão ou omissão de inscrições culturais, polarizações e rupturas,
em que pesem os interesses circunstanciais dos sujeitos envolvidos.
Se, de alguma forma, a visualização do espaço do Terreiro indicar uma “aparente desordem”
devemos pensar, exatamente o contrário, pois esses sinais de desordem: Traduzem projetos,
intenções que levam para além de sua dimensão espacial um significado temporal e simbólico que
influi na formação da identidade. (D’ Adesky, 2005, p. 122).
Appiah, ao pensar as identidades africanas (1997, p. 248) salienta tres grandes aspectos que
poderão ser estendidos às identidades religiosas afro-brasileiras. Primeiro, que “as identidades
são complexas e múltiplas, e brotam de uma história de respostas mutáveis às forças economicas,
políticas e culturais, quase sempre em oposição a outras identidades”. Segundo, que elas florescem
a despeito do que antes o autor chamou de “desconhecimento” de suas origens, ou seja, suas
bases estão assentadas em mitos e mentiras. E, por último, que não há muito espaço para razão na
construção das identidades, politicamente é interessante exaltar identidades que parecem oferecer
esperanças a objetivos futuros e silenciar o passado complexo. Para Ferreira (2000, p. 46), identidade é um constructo que reflete um processo em
constante transformação, cujas mudanças vem sempre associadas a mudanças referenciais e a
novas construções de realidade por parte dos indivíduos, determinadas por sua participação em
certos processos provocadores de impacto existencial.
E ainda (2000, p. 47):
Talvez fosse mais correto denominá-la dinâmica de identificação, sempre submetida à dinâmica do processo de viver. A identidade refere-se à representação
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que o indivíduo tem de si próprio que sofre mudanças ao longo do tempo e das relações de sociabilidade que dão sentido e particularizam a sua existencia.
Segundo Haesbaert (1999, p. 174-175), a identidade não deve ser encarada como algo
estático, mas, como em constante movimento. “Trata-se sempre de uma identidade em curso, e
por estar sempre em processo/relação ela nunca é uma, mas múltipla”. Ela se “define em relação a
outras identidades numa relação complexa de escalas territoriais e valorações negativas e positivas”.
Para as comunidades – terreiros, a identidade se concretiza a partir da inserção ritualística
no grupo, se for o caso, fundação de um novo núcleo onde a questão do espaço é condição sine
qua non de sua consolidação e reconhecimento (Haesbaert 1999:178):
Trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para a sua estruturação está na alusão por referencias a um território tanto no sentido simbólico quanto concreto.
Da mesma tese compartilha Stuart Hall (1997, p. 76):
Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólico. Elas tem aquilo que Edward Said chama de geografias imaginárias: suas paisagens, características, seu senso de lugar, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no tempo.
O grupo religioso constitui espaço privilegiado para difusão da memória e cultura africanas.
Segundo a autora Salete Joaquim (2001), ao construir uma identidade afro-brasileira no Candomblé,
ela em determinados aspectos se diferencia de uma identidade negra, uma vez que esta possui uma
conotação mais militante política, segundo a ótica do Movimento Negro Unificado.
O Candomblé desenvolve atitudes e padrões de comportamentos independentes, que preservam
a identidade própria, contribuindo tanto para a identidade afro-brasileira, como para a identidade
negra, através da busca das tradições culturais e da criação de novos símbolos e valores da ação
social, na tentativa de contribuir com novas atitudes de grupos (Joaquim, 2001).
Partindo-se do pressuposto de que a identidade pode ser edificada a partir dos interesses
individuais e ou de um grupo, pode-se afirmar que isto se dá porque, segundo Baumam (2005,
p.19):
As identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente.
Assim, conclui esse autor que a “identidade”, só nos é revelada como algo a ser inventado, e não
descoberto; como alvo de um esforço que visa construí-la a partir do nada ou mesmo optar entre
várias alternativas. A identidade interpretada dessa forma aparece inconclusa e da sua condição de
precariedade busca ocultar-se (Baumam, 2005, p. 21-22).
A identidade deve ser compreendida enquanto processo contraditório e dinâmico, como nos
advertiu Stuart Hall (2006, p. 13): “Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”.
Para Bauman (2005, p. 19), estar deslocado é:
Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiencia desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar.
O deslocamento ou processo de desterritorialização implica na proximidade e convivencia com
outras culturas e, por isso, inevitavelmente haverá apropriações ou mesmo redefinições de elementos
que poderão ser assimilados pelo grupo. Dessa forma, a construção de uma identidade deve ser
interpretada como reflexo de uma idealização social centralizada, portanto:
Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma comoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (Hall, 2006, p.13).
Ferreira, (2000, p. 46) também recomenda a compreensão da identidade refletindo um processo
em contínua transformação ao longo da vida, “cujas mudanças vem sempre associadas a mudanças
de referencias e a novas construções de realidade por parte dos indivíduos, determinadas por
sua participação em certos processos provocadores de impacto existencial”. Assim, há que se
concordar mais uma vez com Ferreira, ao conceituar identidade como “uma referencia em torno do
qual a pessoa se constitui” (Ferreira, 2000, p. 47).
Observando que a categoria identidade sugerida nesse trabalho é algo fluído, construído
e edificado com base nas experiencias individuais e grupais, caracteriza-se enquanto processos
múltiplos, mas, ao mesmo tempo, simultâneos e diferenciados.
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MEMORIAS EM COMUNIDADES AFRO
A memória representa para as comunidades - terreiros o principal elemento de religação
com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Rememoram-se acontecimentos que, se
pedagogicamente lembrados, são capazes de elevar a autoestima do grupo, preservar costumes, ou
mesmo, justificar mudanças. Embora as comunidades-terreiros não sejam exclusivas para negros-
mestiços, estas pessoas nesses espaços culturais, a partir da memória referendada, reconstroem
sua identidade religiosa sociocultural, reforçando pertencimentos valorativos do ser negro em sua
totalidade.
Dessa forma, a memória assume um lugar de extrema importância, ao ser responsável
pela continuidade e, de forma paradoxal, desmistificar a negação da história de negros e negras na
formação da sociedade baiana.
A partir dessas reflexões teóricas, voltamos nosso olhar para as concepções aos memoriais
afro. Reiteramos a importância política desses espaços de cultura, mas criticamos o imobilismo da
coleção em museus tradicionais. Particularmente, os memoriais edificados dentro de comunidades-
terreiros, reeducam, ao transcender as limitações dos escritos academicos cuja visão epistemica,
permeada pelo racismo e preconceito obscurecem, confundem, simplificam sistematização das
complexas memórias em comunidades negras. Não se trata apenas de preservar o passado
reunindo peças, mobiliários, vestimentas, busca propor uma nova linguagem visual estabelecendo
a comunicação passado-presente, o sentido da existencia física e ideológica do grupo. A instalação
de memoriais em comunidades terreiros politicamente aproxima as pessoas desse passado em
um ambiente não opressivo, a memória centralizada evoca o passado onírico e de resistencia
aos padrões culturais, mas nem por isso desatrelado dos processos de reconstruções culturais,
inovações, apesar dos discursos da tradição com o forte desejo de ser imutável.
Contrariando o pensamento de Neurath, segundo MENDES (2013), de que “a padronização da
cultura poderia ajudar a trazer senso e racionalidade às massas ao mesmo tempo em que promoveria
o entendimento global”, o movimento de criação dos memoriais afro em comunidades reforça a tese
das identidades culturais que se movem na contramão dos sistemas sociais, cuja pretensão de
hegemonia depara-se com a apropriação do discurso multiculturalista e do reconhecimento das
“teias de culturas” que fortalece as culturas populares, e particularmente as aqui abordadas.
Ao pensar a história de homens e mulheres negros na sociedade, devemos pressupor que
de uma forma ou outra houveram movimentos de resistencia individual e coletiva. Embora alguns
livros didáticos já reflitam as novas tendencias da historiografia sobre o negro, a imposição das Leis
10639/03 e 11. 655/08, reforçaram a exigencia de um olhar específico para ao história de negros e
negras e as relações étnicos raciais. De fato, a partir de então alguns cuidados foram tomados pela
sociedade marcada pelos estereótipos e racismo, contudo, permanecem os negros em lugares de
invisibilidade social ou simplesmente atendem ao apelo daqueles que estando em Salvador idealizam
uma cidade adormecida no século XIX. Exemplifico esta situação, tomando como referencia no
campo da cultura os sujeitos que são aprisionados nas lentes dos fotógrafos e na mídia, as imagens
reproduzidas são do negro feliz, alheio aos problemas de classe, a política a economia.
Outros estão em estado de vulnerabilidade social, beirando a marginalidade, jinga e vocabulário
entremeado de expressões metafóricas, construções livres, cujo código de linguagem não é estranho
aos grupos que pertencem. Se apreendidos por essas câmeras no campo da religião, o registro
imagético reforça uma visão de práticas culturais presas a um passado longínquo, celebrando em
espaços e tempos bem definidos cuja visão excentrica só se confunde com a ingenuidade de pensar
que são todos despolitizados e com baixo grau de escolaridade.
Conforme nos advertiu PINHO (2004) a reinvenção da África atende particularmente a um
grupo, impossibilitado de enxergar os processos históricos constituídos, resultado dos hibridismos
culturais, das escolhas e do que acham conveniente ser negado ou exaltado. Estes sujeitos, quando
não insuflados pelas políticas para a cultura afro, procedem na prática a dinâmica das continuidades,
descontinuidades e reelaborações de traços culturais significativos ao grupo. Asfixiados, procuram
emergir, burlando os pactos culturais, apropriando-se e em constante movimento. Poderão ser
vítimas dos rearranjos, estratégias desesperadas para sobreviverem, ou poderão desaparecer de tão
fluidas que se tornaram.
Porém, subjaz a memória, só estimuladas pelas lembranças, que produzem ecos na memória
individual, reforçada pelo exercício de rememorarem coletivamente em ambiente demarcado pela
cronologia do tempo e do relógio. Esgueirando-se no enfrentamento com as novas ideologias, cuja
finalidade também é diluir por completo referencias culturais que reforçam o direito de ser múltiplo
e a escolha de pertencimentos culturais. As memórias afro, só pontualmente são interessantes
aos poderes públicos, ascendem ao lugar de importância político-cultural atrelada a concepção de
bens simbólicos onde podem ser meramente comercializados. Na contramão desses processos,
realinham-se politicamente nos próprios espaços religiosos, instrumentalizam-se juridicamente, mas
ainda assim continuam muitas vezes reféns dos agenciadores de cultura. Nem sempre a barganha é
bom negócio.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Análise inconclusa, fica posto o desafio da conclusão das histórias de homens e mulheres
negras que possam transcender a visão histórica tradicional, as narrativas excentricas ou
excessivamente romantizadas. Que seja evidenciado outros papéis, pertencimentos sociais que
inspirem poder e importância. Que a apreensão da memória revele superação, desconstrução
ideológica e prática militante, cuja trajetória vislumbre liberdade e a possibilidade da quebra dos
estigmas que aprisiona a memória negra no espaço da domesticidade e da subalternidade.
Exemplificando este processo, a comunidade do terreiro Ile Axé Maroketu em Cosme de
Farias, Salvador-Bahia, esforça-se em criar no espaço da domesticidade dentro do terreiro, a partir
da disposição de objetos, mobiliário, móveis, utensílios e quadros, as referencias étnico-religiosas
e territorial de sua fundação. A oralidade reforça as ideias projetadas materialmente, mas também
já indicam a memória e como ela deve ser apropriada. Preserva-se rememorando a mitologia e
liturgia que fundamentam a coesão do grupo, suas afinidades, escolhas míticas. Na contramão dos
essencialismos culturais, tomam como referencia a condução do discurso político e apaziguador
das contribuições inter- étnicas e das tradições religiosas, todas resultados dos processos religiosos
e influxos sofridos pela fundadora da comunidade. O conceito de velho e a prática de refutar qualquer
elemento que possa evidenciar a longevidade, as crises e superações que perpassam a existencia
da casa e das pessoas, é ciosamente preservado. Ainda, que todo trabalho de preservação e
recuperação física da memória esteja em processo, garimpar e fazer emergir do esquecimento e
do porão (depósito), espaços dos enjeitados e pré - destinados a serem transformados em pó, se
tornou uma atitude política sensata e de orgulho ao pertencimento religioso.
Ou como bem definiu uma senhora, figura ilustre na composição do grupo: “A casa toda é um
“tisouro” (tesouro)...por isso que guardo, mandam jogar fora e guardo, eu sei que vai servir, é tradição,
ne?!17”. Embora talvez esta senhora nunca tenha ouvido falar sistematicamente sobre patrimonio
cultural, já esboça o sentimento da preservação de itens que possam contribuir na descrição da
história do grupo, que lembre a passagem de alguém, acontecimentos no cotidiano, disputas... Para
reativar a memória do grupo, seu passado, e reforçar a ideia de permanencia e continuidade, qualquer
elemento, objeto, servirá para detonar a memória que individual ou coletivamente, reproduzirá o vivido
e apreendido, meticulosamente organizando as palavras, coordenando as omissões, esquecimentos.
E rapidamente poderá processar estruturas mentais para preenchimento dos lapsos, das perdas,
todas resultados de situações bem definidas, de ameaças dos de fora da casa e daqueles que
mesmo no interior de seus espaços não resistiram simplesmente as incursões das informações
trazidas pelos de fora. O dinamismo do grupo, pode refletir na memória que deseja preservar,
17
desenhar esta memória pela casa toda foi o caminho encontrado pelo Maroketu. Os memoriais afro
inscrevem a memória que se deseja ser preservada, seus interregnos, entrelaçamentos, exclusões
e apropriações. Se existe um risco para o imobilismo, a estrutura de funcionamento refém do tempo
e dos relógios se incubarão de propor as direções para uma nova memória, cabe a oralidade iniciar
primeiro o processo.
Entrevista realizada com D. Olga Marinalva, Equede (cargo honorífico na estrutura religiosa), em 2005.
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REFERÊNCIAS
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D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio
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FERREIRA, Ricardo Franklin. Afrodescendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de
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HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro, 1550 - 1800: ensaio de interpretação a
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MENDES, Luciana Corts. Transformações na percepção do museu no contexto do Movimento
Bibliográfico: as concepções de museu de Paul Otlet e Otto Neurath. In Revista Perspectivas em
Ciencia da Informação,v.18,n.4,p. 185-199, out./dez. 2013.
PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.
ADOLESCENTES HOMOSSEXUAIS E OS CONFLITOS EM ASSUMIR PUBLICAMENTE A ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA ANÁLISE DE DISCURSO (GAYS TEENAGES AND TROUBLE
ACCEPTING THEIR SEXUALITY: A SPEECH ANALYSIS)
Joanna Mendonça Carvalho18*
Anísia Gonçalves Dias Neta19**
Jeyslane Magalhães da Silva20***,
Leonardo Santos de Oliveira21****.
RESUMO
Este trabalho trata de questões de genero, no âmbito dos conflitos e dificuldades
apresentadas por adolescentes e jovens com orientações sexuais não heteronormativas. Para tal,
foram realizadas dez entrevistas semiabertas com adolescentes/jovens de 15 a 18 anos, todos
estudantes de Ensino Médio em escolas na cidade de Catu, tendo como participantes cinco
meninas e cinco meninos. Analisando os discursos presentes nas entrevistas e cruzando com os
estudos bibliográficos, percebemos que boa parte dos adolescentes entrevistados não “tiveram
coragem” de declarar a orientação sexual para suas famílias, não encontrando “espaço” para tal
ou apresentando medo das possíveis reações. Os poucos que assumiram a orientação sexual
revelam que, mesmo respeitando (mas “não aceitando”) a orientação sexual do/a filho/a, a questão
ainda gera “incomodo”, “constrangimento”, não tendo abertura para o convívio natural com seus
companheiros/companheiras. Aceitações parciais, não aceitações e “piadinhas” e/ou “apelidinhos”
sobre orientação sexual nos levam a concluir que, mesmo não havendo casos de violencia física
no universo pesquisado, a violencia simbólica, verbal, psicológica, moral e emocional se mostra
presente nas vidas desses adolescentes e jovens, o que afirma a forte presença ainda da imposição
de uma educação heteronormativa em diversas instâncias sociais.
Palavras-chave: Adolescentes. Orientação Sexual. Homofobia.
This work discusses gender issues in the context of conflicts and difficulties of young people
with sexual orientations not heteronormative. To this end, we make ten semi open interviews with
18 * Professora do IfBaiano Catu/BA. Orientadora do artigo19 * * Professora do IfBaiano Catu/BA. Orientadora do artigo20 * ** Aluna orientanda do Ifbaiano Catu/Ba21 * *** Aluno orientando do Ifbaiano Catu/Ba
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teens (15-18 years old of age). All students are from Secundary School, at city of Catu/Bahia/
Brasil. We interviewed five girls and five boys. Analyzing the discourse present in the interviews and
crossing with bibliographical studies, we realized that most of the teenagers did not “have courage”
to declare sexual orientation to their families. They did not find “space” for this or they are feeling fear
of possible bad reactions. Few teenages who took sexual orientation before the family reveal that,
even respecting (but “not accepting”) then sexual orientation, the issue still generates “nuisance”,
“embarrassment”. They don’t have no opening for socializing natural with your mates/companions.
Acceptances partial, acceptances and “jokes” about sexual orientation, alow us to conclude that,
even without physical violence in the group studied, the symbolic, verbal, psychological, moral and
emotional violence shown strong presence of a heteronormative education in various social levels.
Keywords: Teenage. Sexual Orientation. Homophobia
INTRODUÇÃO
A sexualidade é vista como um assunto privado, algo do qual não se pode falar publicamente,
que é íntimo e reservado, presente, no máximo, entre um grupo pequeno de amigos. Viver plenamente
a sexualidade no contexto sociocultural ocidental, sobretudo até meados do século passado com os
primórdios do movimento beatnik e movimento hippie, em princípio, era uma prerrogativa da vida
adulta, a ser partilhada apenas com o sexo oposto. Assim, a educação dos adolescentes é voltada
para uma preparação para viver a sexualidade futuramente.
Nos estudos de LOURO (2010) sobre sexualidade e comportamentos, aprendemos que essa
educação é exatamente um modelo heteronormativo, no qual educam as crianças e adolescentes
para uma vida dentro de padrões estabelecidos. Assim, assumir uma orientação sexual diferente
destes padrões torna-se uma tensão, uma questão a ser enfrentada, a ser vencida. Em se tratando
de adolescentes, a questão torna-se ainda mais emblemática, pois é uma fase de transição e
conflitos que contribuem para aumentar os obstáculos a serem enfrentados. Adolescentes que
resolvem assumir a sua orientação sexual, ou mesmo não assumindo, ainda vivem uma realidade de
preconceito existente na nossa sociedade.
Mesmo com leis que punem preconceitos e crimes contra a homofobia, eles ainda são
bastante frequentes em nossa sociedade brasileira, chegando a altíssimos índices. Dentre a divisão
destes índices por estado, a Bahia ficou em primeiro lugar, o que mostra como a homofobia faz
vítimas de diversos tipos, desde homossexuais que sofrem agressões e muitas vezes tão violentas
que levam à morte, até pais que agridem os filhos de forma verbal, psicológica ou física por serem
homossexuais. O preconceito homofóbico é tão violento que vitimiza até heterossexuais que externam
alguma afetividade com outra pessoa do mesmo sexo. Essa situação é ainda mais agravante quando
se trata de adolescentes, pois os pais e a sociedade costumam agir de forma a normatizá-los e
educa-los, conforme padrões que não acolhem suas orientações sexuais ou suas expressões da
sexualidade.
Diante desta triste realidade, torna-se fundamental analisar os processos e as dificuldades
pelos quais adolescentes homossexuais passam. É necessário que haja a quebra de paradigmas
postos pela sociedade para que homossexuais possam ter direitos igualitários, possam trabalhar e
caminhar normalmente sem sofrer preconceitos.
Para pensar essas questões, analisamos neste trabalho discursos de adolescentes/jovens
homossexuais de escolas do ensino médio do município baiano de Catu sobre as interações e
conflitos acerca de suas orientações sexuais perante a família e a sociedade, observando as questões
que estes encontram nesse processo de ir contra uma normatização da sexualidade que aprenderam
tanto na família, quanto na escola e na sociedade em geral.
Assim, nossa pesquisa tem como objetivo conhecer sobre a diversidade sexual, diálogo
e acolhimento familiar, bem como as discriminações e preconceitos referentes à aceitação
de adolescentes homossexuais e o aceitamento dos mesmos na família e sociedade em geral.
Levantando essa discussão estaremos promovendo também um combate aos preconceitos acerca
das orientações homoafetivas para que o adolescente se sinta protegido e possa se expressar com a
família, tendo o seu apoio para enfrentar os desafios aos quais estão expostos em nossa sociedade.
1. GÊNERO, ADOLESCENCIA E SEXUALIDADE
Os processos de construções de genero são tema de inúmeros estudos das mais diversas
áreas. Contudo, mesmo diante de sua complexidade e abrangencia, notamos em ciencias humanas
uma tendencia em abordá-los como processos socioculturais, não determinados pela genética e
pela biologia, portanto, não devendo ser naturalizados. Segundo FÁVERO (apud D’ABREU, 2012) o ponto central da construção da subjetividade e da identidade dos generos reside na emoção, na
maneira como essa é entendida e atribuída a significados ditos “femininos” ou “masculinos”, ou
seja, “o núcleo central da socialização do genero é a socialização das diferenças nas expressões
emocionais” (p. 127) (como apego, medo, raiva,culpa), que mantem a dicotomia dos papéis de
genero e das relações de poder.
Com os adolescentes não ocorre de forma diferente: mesmo com o modelo heteronormativo
e tradicionalista que prega a vida sexual plena apenas para o universo adulto e a ser partilhada
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somente com um parceiro do sexo oposto, os processos de construções de genero e sexualidade
são parte constituintes da vida das crianças e, sobretudo, dos adolescentes, o que mostra a
importância de seus estudos e interlocuções.
Para CLERGET (2004), a adolescencia é uma época difícil para a família, e pode ser ainda
mais difícil para os garotos e as garotas. Destinada a auxiliar as famílias em situação de conflitos
com adolescentes, em sua obra o autor busca separar o que faz parte da crise da adolescencia
comum e o que representa sofrimento, impasse na evolução ou risco vital. Por isso fala sobre a
dificuldade de impor limites nesse período, sentida por muitos pais de adolescentes, como uma fase
difícil da vida.
Ao analisar a trajetória e as condições de um adolescente homossexual que passa por crises
devido ao preconceito e à ausencia de suporte familiar, SILVA (2012, p.1) observa que “(...) a
passagem da vida adulta demarca inquietações, e o jovem com uma orientação sexual divergente
potencializa essa situação.” Para autor, “a adolescencia consiste num rito de passagem entre
o universo infantojuvenil e a vida adulta, de um ser que ainda não está pronto para assumir as
responsabilidades pelos seus atos.” (SILVA, 2012, p.2). Por isso mesmo é a idade dos conflitos
(enfaticamente internos), dos dilemas e contrastes, recheada de preocupações sobre o futuro, a
escolha profissional, a exposição a estímulos encontrados na sociedade, tais como as drogas, lícitas
e ilícitas-, construções identitárias e das sexualidades, enfim, um rol de pressões e incertezas em
plena festa hormonal.
Segundo Silva, tudo isso se acentua “(...) quando se trata da sexualidade dita desviante,
porque diverge da maioria, portanto, se torna bem mais inquietante ou angustiante adolescer com
esse tipo de orientação sexual. Quando o adolescente manifesta um comportamento sexual voltado
para a heterossexualidade, é mais um motivo facilitador para sua entrada no mundo adulto, os pais
ficam orgulhosos e isso parece atestar que, pelo menos no campo da sexualidade “acertaram na
educação”. (...) Mas no caso do adolescente que se descobre com tendencia homossexual ou gay,
ele se sente desamparado em decorrencia da intolerância social e falta de apoio familiar.” (SILVA,
2012, p.4).
Observamos assim que, levando em consideração as dificuldades da fase da adolescencia,-
quando as crianças vão se preparando para a fase adulta e apresentam conflitos próprios desta
fase, o que inclui descobertas afetivas, amorosas e sexuais, além de choques geracionais com
adultos- a situação se agrava ainda mais paras os pais e as famílias em geral quando a construção
da sexualidade foge do padrão heteronormativo.
Louro (2010) vai justamente tratar dos modelos impostos sobre os corpos ao estudar as
pedagogias da sexualidade. Ela alerta para uma educação heteronormativa em que existem “(...)
referencias e critérios para discernir e decidir o quanto cada menino e menina, cada adolescente
e jovem está se aproximando ou se afastando da ‘norma’ desejada.” (LOURO, 2010, p.18) Nesse
contexto, “(...) a sociedade busca, intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas,
‘fixar’ uma identidade masculina ou feminina ‘normal’ e duradoura. Esse intento articula, então, as
identidades de genero ‘normais’ a um único modelo de identidade heterossexual.” (LOURO, 2010,
p.25/26) .
Ainda, segundo Louro:
Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política. As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alternativas: o silencio, a dissimulação ou a segregação. A produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Um rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia. (LOURO, 2010, p.27)
Percebe-se, assim, que o processo impositivo da heteronormatividade tem consequencias
nefastas na sociedade, que confunde questões socioculturais e políticas- além de éticas e humanas-
com o âmbito do privado, gerando exclusões, violencia simbólica e física.
2. PERFIL DOS ENTREVISTADOS
Idades, histórias e sexualidades
Figura 01: Idade dos adolescentes/jovens entrevistados
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No universo pesquisado 50% são mulheres e 50% homens, com idades entre 15 e 18
anos, todos estudantes de Ensino Médio em escolas da cidade de Catu/BA, e naturais de cidades
de pequeno a médio porte. Dentre os dez entrevistados alguns revelaram ter começado a sentir
atrações por pessoas do mesmo sexo por volta dos 12 e 13 anos. Apenas uma delas demonstrou ter
parceiros fixos: um namorado há cinco anos e uma namorada há tres anos, sendo que o namorado
não sabe da existencia da namorada, mas a namorada sabe da relação com o namorado. Outra
entrevistada comentou sobre uma companheira, mas não mencionou temporalidade alguma. Os
demais não tocaram no assunto.
Identidades sexuais: “Homossexual” e “Bissexual”
Figura 02: Identidades sexuais dos adolescentes/jovens entrevistados
Entre os entrevistados, 50% se identificaram como homossexuais e 50% como bissexuais.
Coincidentemente, os que responderam ser “homossexual” são homens e as que se declararam
“bissexual” são mulheres. Algumas questões surgem desse resultado: Por que as meninas não
se julgam homossexuais, mas sim bissexuais? Por que os dados estão separados por sexo? As
mulheres “ousam experimentar” as possibilidades de sua sexualidade mais do que os homens?
Ou as mulheres tem mais experiencias “gays” devido a facilidade de estar com meninas justamente
porque são castradas e vigiadas em relação à sua sexualidade heterossexual?
E mais, uma delas chama a atenção para a identidade, para a questão de não se rotular, não
se definir. E aqui é importante lembrar que, segundo Butler (apud LOURO, 2010), as sexualidades,
assim como os generos, são construídas de maneira muito fluida e as identificações são mais
pedagógicas, tentando facilitar o entendimento das questões, do que rótulos e fixações. Entrevistada
C ao ser perguntada sobre sua orientação sexual: “(pausa longa) Eu sou bissexual. Considerada
bissexual. (...) Não tenho besteira comigo e não tenho rótulo, nem nada do tipo. Minha opção sexual
é o amor...”
3. ACEITAÇÃO FAMILIAR QUANTO À ORIENTAÇÃO SEXUAL
Tratando justamente da juventude e homossexualidade, e os conflitos familiares e outros advindos
desta orientação, BOZON (2004) observa que, em termos de práticas sexuais, a homossexualidade ainda
aparece relacionada à dificuldade da aceitação institucional e os conflitos internos / privados, como a família;
e os externos/públicos, como os amigos, escola e trabalho.
Não aceitação da família: não sabem, não aceitam ou “não aceitam, mas respeitam”
Figura 03: Aceitação familiar quanto à orientação sexual de seus/suas filhos/filhas
Pudemos observar em nossa pesquisa uma maciça falta de aceitação familiar (0% aceita),
pois, entre os entrevistados que disseram que a família não aceita, percebe-se na verdade uma
indiferença por parte da família para a questão, como se ao não comentar o assunto, o resultado
seria a sua inexistencia.
Dos entrevistados que ainda não contaram para a família, todos relatam que o motivo é o de
saberem que não serão aceitos. Comentam que não querem ter discussões ou problemas de rejeição
na família, já que tem certeza de que não serão acolhidos por seus familiares. Entrevistada A:
“Não, eu não tive coragem de contar para eles. (...) Eu sou assumida em público, só não tive
coragem de me assumir para minha família porque minha mãe é tipo super preconceituosa. (...) No
mínimo ela vai querer me botar pra fora de casa, vai querer me deserdar. (...) Ela não vai aceitar de
jeito nenhum. Ela já falou que prefere ter um filho ladrão bandido do que um filho homossexual”.
Entrevistado E: “Tenho medo que eles não me aceitem do jeito que eu na verdade sou, do jeito que
eu escolhi viver”. Mesmo dentre as poucas famílias para as quais os adolescentes se assumiram, notamos
uma rejeição e a permanencia do ideal heteronormativo nos relatos dos entrevistados.
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Entrevistado C: “Em relação a família, ééé, no começo minha mãe não aceitava, assim, não aceitava
muito minha opção sexual. Agora, quer dizer, não aceita ainda, mas releva mais um pouco, me
respeita e tudo, só não posso levar, assim, minha companheira pra casa.”
Outra entrevista aponta para uma possível criação de espaço de diálogo familiar,- o que
é bastante positivo e até foi fundamental para a sobrevivencia do Entrevistado I,- não afirmando,
contudo, uma aceitação completa a ponto de reconhecer o companheiro ou ver o filho em expressões
de afetividades com o mesmo: “Rapaz, desde os meus 14 anos sou assumido para minha família.
Eles não aceitam, mas respeitam. No começo foi muito difícil eu me assumir pra ela pois tinha
medo, só que teve um ponto que eu não aguentava mais, ficava doente com frequencia. Aí eu
cheguei e resolvi contar pra minha família toda. No começo ninguém aceitou, mas com o decorrer
dos dias começara, a ,e respeitar, entender meu lado e começara, a me dar mais espaço pra poder
conversar com eles sobre isso.”
Boa parte dos relatos confirmam a situação colocada por LOURO:
De acordo com a concepção liberal de que a sexualidade é uma questão absolutamente privada, alguns se permitem aceitar ‘outras’ identidades ou práticas sexuais desde que permaneçam no segredo e sejam vividas apenas na intimidade. O que efetivamente incomoda é a manifestação aberta e pública de sujeitos e práticas não heterossexuais.(LOURO, 2010, p.29)
Assim, mesmo com o discurso da aceitação as manifestações afetivas não-heteronormativas
ainda “constrangem” e “incomodam” socialmente, devendo permanecer no âmbito privado, enquanto
que as afetividades heteronormativas são aceitas e, por vezes, até estimuladas.
4. FAMÍLIAS E RELIGIÕES
Com base nos discursos analisados um dos principais motivos para a não aceitação familiar
quanto à orientação sexual dos entrevistados foi o fator religioso. Das dez entrevistas realizadas, seis
mencionaram o fator religião como um dos principais empecilhos ao combate ao preconceito sobre
a homossexualidade. Das religiões citadas encontram-se majoritariamente a católica e a evangélica,
passando pelo espiritismo e por entidades filosóficas como a maçonaria.
Entrevistada A: “Minha família é uma mistura de várias religiões. Minha mãe é católica, minha
vó espírita, etc. São várias religiões, e todas são contra o homossexualismo e o bissexualismo. (...)
Pregam que o homossexualismo é pecado, que o homem nasceu para a mulher e a mulher para o
homem, tal e tal, e que vai pro inferno [quem não for assim].”
Para o Entrevistado J, cuja família é toda evangélica, a possibilidade de se assumir perante
a mesma é bem remota: “Minha família é por inteira evangélica, não aceitam o homossexualismo.
Por esse motivos e outros não me assumo para eles e nem pretendo me assumir tão cedo.”
Ainda, segundo o relato do ENTREVISTADO H “Minha família uma parte é católica,outra
evangélica, outra espírita e outra maçom. Todas ela de certa maneira proíbem o ato de relacionamento
de pessoas do mesmo sexo.”
5. “é FASE, VAI PASSAR”
Como uma forma de lidar com o fato da possibilidade em ter um/a filho/a homossexual
algumas famílias, mesmo não sabendo da boca de seus filhos as suas orientações sexuais, ao
demonstrar desconfiança acerca do assunto parecem reforçar o discurso de que “é fase, e vai
passar”, atrelando a um futuro abandono da homossexualidade por parte de seus/suas filhos/filhas.
A entrevistada D revela que: “Quanto à família, a família desconfia, mas não sabe, então fica aquela
coisa meio ‘Eu sei que você apronta’, entendeu? (...) Já comentaram, já falaram que viram uma
coisa, sei lá, uma relação muito íntima minha com uma pessoa, aí disseram pra eu ‘olhar minha
vida’. Aí foi isso, que eu não devia ficar dando em cima das pessoas assim.”
Os pais da entrevistada D parecem não querer abordar o assunto com a filha apegando-se
ao discurso da “fase”. O mesmo é reproduzido em parte por ela quando afirma que “A pessoa tá
começando a sentir essas coisas [atração por indivíduos do mesmo sexo] e tudo, mas ela tem a
opção de entender, viver essa fase, passar,e, depois, sei lá, seguir a vida seguindo.” Ao mesmo
tempo afirma que “tem pessoas que vivem mesmo nesse mundo (...) pode ser uma fase ou pode
ser pra sempre”, o que nos leva a pensar também sobre a ideia de experimentação passageira da
sexualidade X estado de permanencia presentes no discurso da entrevistada.
6. ORIENTAÇÃO OU ESCOLHA/ OPÇÃO?
Com um pequeno direcionamento acerca dessa questão por parte dos entrevistadores,
cerca de 50% dos entrevistados responderam que a pessoa nasce com uma orientação sexual e que
não é uma opção. Outros opinaram que é uma escolha e outros ainda afirmaram que o assunto é
complexo, havendo pessoas que já nascem com um orientação sexual X e outras que se descobrem.
A Entrevistada F declara: “Na minha opinião, a pessoa nasce. Nasce porque eu acho que, tipo
assim, , um exemplo, o fato de eu andar com outras meninas não quer dizer que eu vou influenciar
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as outras a serem o que eu sou. Eu acho que a pessoa já nasce com aquilo.” O entrevistado J
afirma: “Eu acho que esse questionamento não é muito verdadeiro, pois eu nasci homossexual e
não é uma fase. Foi o que eu escolhi pra mim desde o início.”
7. SEGURANÇA E AFIRMAÇÃO X MEDO E CONFLITOS
Grande parte dos entrevistados demonstraram uma certa segurança sobre suas orientações
sexuais, sendo “bem resolvidos” e sem muito receio, por vezes com algumas pausas, risos e
timidez, mas em sua maioria e, sobretudo perante os amigos, mostraram ter confiança e se revelar.
Quando se trata da segurança e afirmação diante das famílias o quadro não se mostra o mesmo.
Analisando a idade dos adolescentes entrevistados com relação à revelação da orientação sexual
para as famílias observou-se que, de muitos dos que já assumiram publicamente sua orientação
sexual, a maior parte já possuía a sua maioridade. Desta maneira surge uma inquietação: mesmo
os mais decididos, já tendo completado os 18 anos, ainda assim tem medo e/ou receio de contar
para sua família.Uma segurança mais ampla, e, sobretudo para muitos jovens do sexo masculino,
parece recair assim sobre uma independencia financeira, o que explicaria porque alguns jovens com
18 anos ainda não assumiram sua orientação sexual perante a família.
A entrevistada D expõe: “Meu emocional é bem (pausa de 10 segundos). Meu emocional,
assim, eu acho que eu sou bem resolvida quanto a isso [sobre sua orientação sexual].” A entrevistada
A diz: “Sou assumida para alguns amigos e pra pessoas de extrema confiança, sabendo que essa
história nunca vai chegar ao ouvido de minha família.” A entrevistada C demonstra segurança em
si mesma ao falar da relação com os amigos: “É isso, eu me aceito, eu tenho garantia de mim e as
pessoas ao meu redor acabam se afetando por isso também, porque que não deixo que ninguém
se intrometa, entendeu?”
Já os entrevistados H e J dizem ter medo de se afirmarem homossexuais perante suas
famílias. Entrevistado H: “Minha família não sabe, tenho medo de contar e acabar sofrendo rejeição
por causa de motivos meio que homofóbicos que percebi quando estou perto deles. Minha família
é muito desestruturada, não consigo achar em nenhum lugar dela coragem pra me assumir pra
eles.” Entrevistado J: “Minha família é por inteira evangélica, (...), por esse motivos e outros
não me assumo para eles e nem pretendo assumir tão cedo, talvez quando eu conquistar minha
independência financeira.”
8. VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: VERBAL, PSICOLÓGICA, EMOCIONAL E MORAL
Na obra de Bourdieu e Passeron (BOURDIEU e PASSERON, 1975) é desenvolvida a “teoria da
reprodução” baseada no conceito de violência simbólica. Para estes autores, toda ação pedagógica
é objetivamente uma violencia simbólica uma vez que é imposição de um poder arbitrário. Entende-
se por arbitrariedade a tomada por um determinado grupo de um valor como padrão a ser seguido
por todos, ou seja, constitui-se na apresentação da cultura dominante como cultura geral. Assim,
o “poder arbitrário” é baseado na divisão da sociedade em classes, que, por sua vez, afeta todas as
instâncias sociais, tais como os espaços educativos. Nesse contexto, a ação pedagógica tende à
reprodução cultural e social simultaneamente.
Para Bourdieu o processo educacional apresenta dois mecanismos destinados à consolidação
da sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução da estruturas de classes. O primeiro
dos mecanismos se manifesta no mundo das “representações simbólicas ou ideologia”, e o outro
atua na própria realidade social.
Assim, a “violencia simbólica”, ou seja, o desprezo da cultura popular e a interiorização da
expressão cultural de um grupo mais poderoso economicamente ou politicamente por outro lado
dominado, faz com que esses percam sua identidade pessoal e suas referencias, tornando-se assim
fracos, inseguros e mais sujeitos à dominação que sofrem na própria sociedade.
Embora o sociólogo trate do caráter simbólico da violencia centrado nas características
fundamentais da estrutura de classes da sociedade capitalista, decorrente da divisão social do
trabalho, podemos pensar na heteronormatividade como mais um imposição da classe dominante
em sociedades capitalistas, o que se reflete na própria educação, incluindo a educação doméstica.
O caso dos adolescentes/jovens homossexuais e suas relações com as famílias revelam
justamente o caráter sorrateiro da violencia simbólica, que atua de forma sutil: a família “não aceita,
mas respeita”, mas extremamente segregadora e conflitante: mesmo, respeitando, as famílias não
aceitam os namorados e namoradas dos/as filhos/as. Todos relataram rejeição por parte da família,
quer seja depois de dizerem sua opção sexual, quer seja por ser exatamente esse o motivo de
não dizerem. Por mais que os adolescentes entrevistados não entendam ou não percebam, eles
sentem essa violencia, tanto que verbalizam em outros momentos, conforme já analisado. Portanto,
entende-se que 100% dos entrevistados sofrem violencia simbólica, compreendendo-a, conforme
Bourdieu, em todos os seu âmbitos que implicam o poder simbólico, aparecendo sutilmente como
violencia verbal, moral, psicológica e emocional.
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9. HOMOSSEXUALISMO E ACEITAÇÃO NA SOCIEDADEAceitação entre amigos íntimos
Todos os relatos apontam para uma aceitação dos círculos de amizades íntimas. Relatos
como “As pessoas que sabem da minha opção [orientação sexual] me tratam da melhor forma
possível”, ou “Sou assumida pra alguns amigos e pessoas de extrema confiança.”, ou ainda “Meus
amigos, eles não têm preconceito nenhum com a minha orientação sexual, eles aceitam, não tem
problema nenhum, eles são ‘mente aberta’, e é o que todo mundo deveria ser, na verdade.”, e “Meus
amigos e amigas me aceitaram da melhor forma possível, me deram força pra eu me assumir pra
minha família.” somado a “ Meus amigos me aceitam, me respeitam, me defendem e me ajudam
muito em varias situações.” e “ O apoio que eu não achei em casa achei com meus amigos.” nos
mostram que, nos discursos de muitos entrevistados os amigos íntimos são o grupo de maior
confiança, representando um grupo de apoio dos adolescentes/jovens para com suas famílias e o
público em geral.
Por um outro lado, uma entrevistada expressou um discurso contraditório de aceitação, mas
com limitações para evitar “constrangimentos”: “Meus amigos me aceitam normal, me respeitam e
eu também procuro ser o máximo discreta, assim, pra não deixarem eles também constrangidos.”
Outra entrevistada demonstrou precisar de “retaguarda” inclusive com amigos: “Amigos. Cara, é
isso, eu me aceito, eu tenho garantia de mim e as pessoas ao meu redor acabam se afetando por
isso também. Eu não deixo que ninguém se intrometa [em sua identidade sexual], entendeu?” Mas
em sua maioria os círculos de amizades parecem ser uma fonte de apoio dos adolescentes/jovens
entrevistados.
10. ACEITAÇÃO DO PÚBLICO EM GERAL: “APELIDINHOS”, “PIADINHAS” E COMENTÁRIOS, A PRESENTE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
Enquanto em sua maior parte os círculos de amizades se revelam como pontos de apoio
ao universo pesquisado, o mesmo não podemos dizer sobre a aceitação pública geral acerca das
orientações sexuais não heteronormativas apresentadas pelo adolescentes/jovens entrevistados.
Piadas, apelidos, segregação são, infelizmente comum nas ruas e corredores escolares, dentre
outros espaços sociais. LOURO aponta para o fato de que “Meninos e meninas aprendem, também
desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não
se ajustam aos padrões de genero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem.” (LOURO,
2010, p.28)
Sobre comentários infelizes acerca da orientação sexual, a entrevistada D relata que são
feitos por “Pessoas do dia-a-dia, colegas mesmo, que às vezes usam termos pejorativos, pra ficar
falando sobre a vida íntima”. Ao ser perguntado se já sofreu algum tipo de violencia o entrevistado
H afirma: “De certo modo não [deve estar se referindo à violência física], apenas aqueles apelidos
bobos que estressam, mas aí a calma é mantida e o foco continua.” e a entrevistada C revela: “(...)
a gente sempre ouve aquelas piadinhas, aqueles comentários preconceituoso que dá vontade de
você em cima, mas se controla.”
Em muitos casos esses adolescentes e jovens encontram em seus círculo de amizades
parceiros para combater o preconceito social que muito ainda ronda por aí: “meus amigos e amigas
(...) me dão força até hoje em momentos de fraqueza, em momentos de estresse, em casos de eu
estar passando e ouvir piadinhas soltadas pra mim, mas não demonstro medo e sim atitude pelo
fato de que, por certo lado, um homossexual acaba sendo mais homem do que um hetero, porque
tê que aturá preconceito, violência dessa sociedade preconceituosa, não é fácil.”
Entrevistado I.
E aqui cabe retomar o conceito de poder simbólico para Bourdieu.O poder simbólico consiste
em um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica, ou seja,
o sentido do mundo supõe um conformismo lógico, uma concepção homogenea que torna possível
a concordância entre as inteligencias. Destarte, os símbolos são instrumentos de integração social.
Enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação eles tornam possível o consenso acerca
do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social.
O poder simbólico é assim exercido nas diversas relações, seja nas relações de trabalho, nas
relações afetivas, político-partidárias, religiosas, seja nas relações intelectuais, seja em ocasiões
formais e informais, grosseira e/ou suavemente postas, aí pode vir a ter uma manifestação de
hierarquização, dominação, acomodação e produção de consenso, na expressão do poder simbólico
em pauta. Bourdieu toma isso como sendo uma constante e sem exceção, nas relações, variando
apenas na qualidade e no tipo da manifestação.
Ele considera que as relações de comunicação são sempre relações de poder que dependem
do capital material ou simbólico acumulado pelos agentes. Os sistemas simbólicos, enquanto
instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e conhecimento, cumprem sua função
política de imposição e de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra, agindo como
uma forma de violencia simbólica. Para Bourdieu, o poder simbólico é um poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física ou economica e só se exerce se
for reconhecido, o que significa que ele acaba sendo ignorado, passa despercebido. Assim, o poder
simbólico é uma forma irreconhecível e legitimada:
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(...) como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou economica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que e produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competencia
das palavras. (BOURDIEU, 1989, p. 14-15)
O perigo reside justamente na sutileza e no silenciamento do poder simbólico em sua atuação.
No universo pesquisado todos sofrem violencia simbólica, seja no interior das próprias famílias seja
na sociedade em geral. A violencia simbólica expressa pelo “poder das palavras” de que Bourdieu
fala é também violencia moral, inscrita inclusive na Lei Maria da Penha. Isso porque é uma conduta
que configura injúria, ou seja, ofensa à dignidade de alguém. Quando “apenas aqueles apelidos
bobos que estressam” não forem vistos de forma minimizada, natural, menor, estaremos iniciando
um combate de fato à violencia simbólica e preconceitos de diversas naturezas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O adolescente homossexual que quer se assumir para a família e sociedade enfrenta muitos
conflitos, conforme já imaginávamos no início do trabalho. Assim, com base nos dados analisados e
textos lidos como referencia, obtivemos resultados que nos indicam que a diversidade sexual se faz
presente no universo desse adolescente, mas que essa experiencia da sexualidade não é partilhada
com os pais, vindo à público, na maioria das vezes, depois da maioridade juntamente a uma
conquista e independencia financeira, ou seja, o sonho da independencia financeira carrega consigo
o sonho da independencia sexual, identitária e moral. A falta de apoio familiar foi um dos problemas
mais sofridos por esses adolescentes, eles se sentem rejeitados e oprimidos por não conseguirem
se assumir para a família, apesar de decididos em se assumirem publicamente. Um dos motivos
apresentados de forma declarada pelos entrevistados foi o fator religioso, além dos tradicionalismos
familiares (isso caberia um gráfico também, é possível?). Também foi verificado que a violencia está
sempre presente na vida desses adolescentes, especialmente a violencia simbólica desdobrada em
violencia verbal, moral, afetiva e psicológica. O trabalho não se encerra aqui.
A partir desses dados podemos questionar e levantar possibilidades de soluções para
aproximar esses adolescentes de suas famílias, bem como, de combater a violencia contra
homossexuais em nossa sociedade, a começar pelas nossas relações mais próximas.
REFERENCIAS
BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 1989.
BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
CLERGET, Stéphan. Adolescência: a crise necessária. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
D’ABREU, Lylla Cysne Frota. “A construção social do genero”. In: Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012.
LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. 3ª. Edição. Belo
Horizonte: Autentica Editora, 2010.
SILVA, Valdeci Gonçalves da. “O adolescente gay e a capacidade de resiliencia da família (Estudo
de um texto biográfico)”. In: Psicologia. Pt, o portal dos psicólogos, João Pessoa, 24/06/2012.
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O JOVEM NEGRO NA LITERATURA E NO RAP: VIOLÊNCIA E PROTAGONISMO(THE YOUNG BLACK IN THE LITERATURE AND RAP: VIOLENCE AND PROTAGONISM)
RESUMO
Este artigo aborda a relação entre a obra literária de Jorge Amado Jubiabá, escrita na década de
30 do século XX, e as narrativas de grupos do rap brasileiro, Racionais MC’s e Facção Central,
produzidas no final desse mesmo século. O objetivo é mostrar a construção de personagens, jovens
e negros, que tentam construir atitudes afirmativas, diante do racismo presente nos diversos espaços
urbanos, traduzindo assim um “direito” de representação e significado, negado historicamente pelo
poder colonial e pela escravidão.
Palavras-chave: Protagonismo negro. Literatura brasileira. Rap brasileiro.
ABSTRACT
This work discusses the relationship between the Jorge Amado’s book, Jubiabá , written in the 30s
of the twentieth century, and the narratives of Brazilian rap groups, Racional MCs and Facção Central,
produced at the end of that century. The goal is to show the construction of characters, young and
black men, who try to build affirmative attitudes, before the present racism in many urban areas, thus
representing a right of representation and meaning, historically denied by colonial power and slavery.
Keywords: Black protagonism. Brazilian Literature. Brazilian Rap.
Marcos Aurélio dos Santos Souza22*
“Vim pra sabotar seu raciocínio
Racionais M’C. “Capítulo 4 versículo 3”.
“Se eu não fosse suicida, meio Talibã,
o Brasil tirava o direito de eu sonhar com o amanhã”
Facção Central. “Dias melhores não virão”.
“O endosso que me vem de indivíduos
e lugares marginalizados me fortalece e inspira.”
Bell Hooks, “Intelectuais Negras”.
22 Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA e professor Adjunto do Depar tamento de Educação, UNEB, Campus I.
Jubiabá é um romance brasileiro, escrito no início do século XX, que narra a vida de um jovem
protagonista negro, vivendo numa realidade urbana e excludente. Essa temática que já possuía força
inicial na literatura de Lima Barreto nas Recordações do escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos,
assume contornos pungentes na obra de Jorge Amado e na letras de grupos do rap brasileiro, como
Racionais MC (RMe Facção Central (FC, doravante), no final desse mesmo século e início do século
XXI.
A relação entre o romance de Jorge Amado e as narrativas contadas e cantadas pelos rappers
compõe um painel significativo para a compreensão de estratégias de produção do significado
do jovem negro no espaço citadino. A história de personagens que driblam o poder repressivo e
racista na grande cidade, movendo-se da periferia para o centro e dominando o labiríntico e minado
espaço urbano, traduz um “direito de significar”, adaptando aqui Homi Bhabha (1998), negado
historicamente pelo poder colonial e pela escravidão.
O que aproxima aqui uma produção narrativa da década de 30, o terceiro romance de Jorge
Amado (uma de suas publicações da juventude), a um estilo musical e performático do final do
século XX, é exatamente a exposição direta dos problemas enfrentados pela população negra num
espaço em que sua presença é tida como estranha, em que sua condição é de marginalidade ou sua
imagem sempre relacionada ao “lado fracassado” da chamada civilização moderna.
O que aproxima esses textos, ainda, é um enfrentamento direto desses problemas, por
indivíduos negros conscientes, que lançam mão de estratégias discursivas e comportamentais
consideradas subversivas para imporem uma força e uma potencia histórica, expondo e sabotando
o pensamento segregacionista.
Diferente do caminho trágico de personagens negros e mulatos dos romances de Lima
Barreto: um Isaías Caminha ou uma Clara dos Anjos, ou até de um Amaro do romance Bom Crioulo
do escritor cearense Adolfo Caminha, publicado no final do século XIX, Balduíno do romance Jubiabá
caminha na contramão do determinismo fatalista, inventa modelos, busca referencias históricas que
lhe inspiram altivez, num ambiente inóspito, de pobreza, tristeza e loucura.
Este tipo de atitude afirmativa e atualizadora da história, observada aqui na construção do
personagem de Jorge Amado, agencia saberes ligados ao conhecimento de “algumas das maneiras
pelas quais a proximidade dos terrores inefáveis da escravidão foi mantida viva – cuidadosamente
cultivada – em formas ritualizadas, sociais”(GILROY, 2001, p. 158).
Constitui, ainda, para adaptar novamente Homi Bhabha (1998, p. 239), uma perspectiva
pós-colonial, questionadora dos “discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma
‘normalidade’ hegemonica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações,
raças, comunidades, povos”.
O que será aqui abordado em relação a essa perspectiva é também sua negação a uma
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estrutura constituída do status do saber e de formação do intelectual, ligada à acepção burguesa e
academica. Trata-se da articulação e consciencia subalterna de um conhecimento vivenciado por
parte de uma juventude periférica e pobre, destituída de educação formal, mas também ciente dos
caminhos perigosos do seu aburguesamento, pois isso significaria, não raramente, sua esperada
docilidade e submissão às instituições historicamente dominada por uma elite branca.
Segundo Cornel West (1991), o intelectual negro, inserido nessas instituições, vive um
sentimento constante de defensiva, como se necessitasse para o exercício de sua significação e
de seu direito de existir, demonstrar que merece e pode gozar das benesses do poder hegemonico.
Ou seja, como se urgisse “resgatar o pecado original do nascimento humilde, amaciar o suplício
premente, cruciante e omnímodo da cor” adaptando a lancinante declaração de Isaías Caminha
(BARRETO, 1956, p.53). West em um texto, intitulado “The dilema of the Black Intellectual” (1999,
307), esclarece as implicações dessa concessão para jovens estudantes negros no mundo
academico e intelectual:
The weight of this inescapable burden for black students in the white academy has often determined the content and character of black intellectual activity. In fact, black intellectual life remains largely preoccupied with such defensiveness, with “success” black intellectuals often proud of their white
approval and “unsuccessful” ones usually scornful of their white rejection23
Sem esquecer a situação especifica da realidade estadunidense, sua história política de uma
segregação mais declarada, à qual West se reporta, essa necessidade de aceitação, que coloca o
negro numa espécie de constante defensiva, caracteriza ainda a realidade daqueles que não se sentem
inseridos no “direito natural” de gozo dos bens advindos do conhecimento formal e academico
(aquele mesmo que assegura prisão especial, como recorda, sintomaticamente, Isaías Caminha).
Inclui-se aí também o direito aos bens simbólicos e de consumo, colados, ideologicamente, a essa
formação, os quais representam, consciente ou inconscientemente, não só sobrevivencia material
e digna, mas também formas de “amaciar” o “pecado original”, dirimir o preconceito, fruto dessa
carga negativa e degradante de “ser negro”.
Optando não por essa defensiva, com seu modo de operar o esquecimento das diferenças
raciais, mas pela ofensiva ao poder racista e hegemonico, historicamente estabelecido, Balduíno
23 “O peso de um inevitável fardo para estudantes negros na academia branca determina o conteúdo e o caráter de sua atividade intelectual. Na realidade, a vida intelectual do negro permanece, em grande par te, preocupada com essa defensiva, com o sucesso de intelectuais negros, sempre orgulhosos da sua aprovação entre os brancos, e alguns insucessos, normalmente desdenhosos, de uma rejeição entre os mesmos” (tradução minha).
escolhe a clandestinidade, fugindo das possibilidades de uma adaptação à vida burguesa, dependente
nessa história pela denegação racial. Após receber uma aula de história de Jubiabá, pai de santo
e também uma espécie de guru, sobre a vida de Zumbi dos Palmares, ele resolve fugir da casa
dos senhores brancos, onde passara a morar após o enlouquecimento da tia. Não queria viver
ali constantemente vigiado e sempre sob suspeita, mesmo tendo a garantia da educação formal
(repressora e racista) e um emprego garantido na casa comercial do senhor que lhe dava abrigo.
A rejeição de uma “inclusão vigiada”, optando por uma vida bandoleira, configura via
declarada do rap brasileiro, suas letras enfatizam a necessidade de expor um diferenciado caminho
de enfrentamento intelectual, mais próximo das reais condições da grande maioria dos homens e
das mulheres negras nos grandes centros urbanos brasileiros.
Essa ofensiva, presente também no rap, toma aqui caráter de inteligente subversão discursiva,
como na letra do grupo Facção Central (daqui por diante FC), “Sei que os porcos querem o meu
caixão” do álbum A marcha fúnebre prossegue de 2004, em que o narrador personagem, reconhece
seu “estereótipo de ladrão” e, rejeitando ser domesticado, como um bom selvagem, declara: “não
vendi minha ideologia, não trai a minha história, minha raiz no cortiço”. Na música “Capítulo 4
versículo 3”, em Sobrevivendo no Inferno (1998) dos Racionais (RM, daqui por diante), Mano Brown,
um “QI pós-graduado”, constituído nas ruas de São Paulo, como ele próprio se classifica, vocifera:
“seu comercial de tv não me engana/eu não preciso de status nem fama/ seu carro e sua grana já
não me seduz”.
Essa consciencia de não poder e não querer usufruir do status burgues do negro “adaptado”
e “bem educado”, que é também a negação do conhecimento diletante, e sua afirmação como
estratégia de sobrevivencia, tem como base uma consciencia histórica individual e coletiva, retirada
e retratada cruamente de situações factuais e/ou verossímeis. Balduíno cresce no Morro do Capa
Negro, sua infância é semelhante a de milhares de meninos pobres da periferia soteropolitana.
Sem mãe e sem pai, é criado pela tia negra que enlouquece de tanto trabalhar, para sustentá-lo
precariamente.
Sua escola era a rua, porque provinha dela a única linguagem que precisava conhecer para
permanecer vivo e vivo com alguma dignidade. Nas ruas, sob a constante vigilância e repressão da
polícia, precisava apenas se esquivar de uma surra e lutar bravamente. A luta e a força corporal não é
nenhuma demonstração atávica de uma selvageria negra, como algumas teses racistas apregoavam,
mas o resultado de uma necessidade histórica de sobrevivencia. Por isso, a sensação de inutilidade
do conhecimento formal e escolar:
- Voce precisa é de ir para a escola – diziam.Ele perguntava a si mesmo para que. Nunca ouvira dizer que jagunço soubesse ler. Sabiam ler os doutores e os doutores eram uns sujeitos
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moles. Ele conhecia o doutor Olympio, médico sem clientela que de vez em quando subia o morro à procura de clientes que não existiam, e o doutor Olympio era um sujeito fraco, magro, que não aguentava um tabefe bem
dado. (2006, p. 12)24.
As referencias de força física e astúcia saíam das histórias contadas no morro por Jubiabá,
sobre negros rebelados e jagunços, como a de Lucas da Feira e a de Antonio Silvino25. O pequeno
negro Baldo encontra nas histórias contadas pelo pai de santo, os elementos que comporão a sua
saga, fornecerão sobrevivencia:
Antonio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandro, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a escravidão das fábricas, do campo, dos ofícios proletários. (p. 21)
Eduardo e Dum Dum, os dois rappers do polemico FC, estreante no cenário do hip hop
em 2000, com o clipe “Isso Aqui é Uma Guerra” (que chegou a ter sua exibição proibida na MTV,
sob a alegação de fazer apologia ao crime) narra em suas letras o caminho corriqueiro em que
uma criança pobre se torna um “fora da lei”. A subversão e a criminalidade para o rap é uma via
compreensível, mas não inevitável; os que conseguem escapar dela tem o compromisso de narrar
como escapou. “O rap é compromisso”, como cantava Sabotage. Considerando-se “Ph.Ds. em
vida”, os dois músicos do FC contam um pouco das suas infâncias, na introdução da primeira faixa
“Chico Xavier do Gueto”, do CD Direto do Campo de Extermínio (2006):
Aí tinha dois moleques no cortiço do centro, que ninguém dava uma
24 As citações do romance no corpo desse ar tigo terá como referencia, a par tir dessa citação, apenas o número de página25 Lucas da Feira, segundo a literatura popular com base em evidentes referencias históricas, foi um filho de escravos em Feira de Santana, que fugiu da situação de cativo aos 15 anos, formando um grupo de cangaceiros e espalhando terror entre os senhores de engenho no final do século XIX. Antonio Silvino, “pernambucano, nascido na localidade de Afogados da Ingazeira, entrou no bando do [cangaceiro] Silvino Aires [no final do século XIX] para vingar-se do assassino do seu pai, crime este cometido por inimigos políticos. O nome Silvino foi uma forma de homenagear o antigo chefe. Após a morte de Silvino Aires, assumiu a liderança do grupo. Tanto no ser tão como no agreste e até bem próximo do litoral, assaltava fazendas, roubava, assassinava adversários políticos, chantageava comerciantes ricos, poupava as mulheres de agressões físicas e sexuais, tinha fama de bom ladrão, tornando-se um mito” (Cardoso, Tânia Maria de Sousa. Origem e instituição do Cangaço. Disponível em: http://www.camarabrasileira.com/cordel43.htm. Acesso em: 30 de julho de 2006). Ambos foram presos e executados pela força militar da época.
moeda. E mesmo assim eles derrubaram as portas, sobreviveram ao teste, às coronhadas da polícia, a fome. E hoje, acredita se quiser, tão aqui tirando seu sono. Passaram de 5ª série de escolaridade a Ph.D. em vida. Eduardo e Dum Dum, doença que contagia as almas sem voz. Certificado de atitude, concedido pela favela [...] Se voce tem periferia no peito, voce é parte de nossa história.
Em “O menino do morro virou Deus” do mesmo álbum, o grupo apresenta um outro lado
da história, o de uma criança que encontrou o crime como saída fulgurante. Na letra, esta opção,
entretanto, longe de imputar-lhe exclusividade, é compartilhada com muitos outros “bandidos”: o
político e o pastor, por exemplo. O menino pardo, nascido na zona sul da cidade de São Paulo, filho
de mãe solteira, finaliza sua história, narrando sua condição gloriosa:
Sou traficante intocavel pro tribunal/ Que no foguete da Nasa faz safári sideral,/To na lista vip do cassino clandestino,/ Quer ser presidente? traz a campanha que eu financio,/ Sou poderoso chefão mais invisível como aço,/ Igual o pastor da universal atrás do altar,/ O apresentador que te dá casa com mobília,/O sertanejo de cd de platina,/Vai ve seu time tem meu “logo” na camiseta/Voce compra no meu shopping, voa pela minha empresa,/ Eu sou uma história de sucesso tipo Aristóteles Onassis/Só que subi uma escada de sangue pra primeira classe./ O menino do morro virou deus,/ o poderoso chefão, a majestade,/ o teste da guerra ele venceu/Subiu uma
escada de sangue pra primeira classe (FC, 2006).
As referencias a personagens heróicos por esses rappers possuem, não raramente, demandas
goradas, pois como afirma Mano Brown dos Racionais na música “Jesus chorou” (2002): “gente
que acredito,/ gosto e admiro,/brigava por justiça e paz, levou tiro:/ Malcom X, Ghandi, Lennon,
Marvin Gaye,/ Che Guevara, 2Pac, Bob Marley/ e o evangélico Martin Luther King”26. Nas letras dos
Racionais, essa “infância perdida” afeita a uma vida criminosa, é um tópico constante. Os heróis
da infância e da adolescencia: músicos, artistas em geral, ativistas, justiceiros da periferia, também
prezados por Balduíno, são os poucos exemplos de exito, gorado mas exemplar, duma vida fora do
crime.
Esta opção, apesar de ser uma possibilidade cruel e triste, configura-se no rap também
como resposta à opressão de um sistema economico selvagem e desigual, e, por isso mesmo,
26 Poderíamos acrescentar nessa lista a presença de Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, ícone do rap brasileiro, morto com quatro tiros em São Paulo.
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como atitude altiva e heróica. O jovem da periferia de uma grande cidade, personagem principal
dessas histórias, mesmo não sendo um subversivo ou bandido, vivencia com freqüencias ações
violentas, seja como alvo contínuo de suspeição e abuso policial, seja como joguete das disputas
políticas entre traficantes de drogas, que ditam ordens aos moradores, inscritos nas suas áreas de
domínio, como também, paradoxalmente, o protege da polícia.
A thug life, lema tatuado no corpo do rapper 2Pac, não aparece apenas como uma
possibilidade de envolvimento, mas como cotidiano brutal, desde os primeiros anos de um jovem,
que se ve sempre diante de possibilidades exíguas de sucesso na vida. Como lembra Brown em
“Negro Drama”, uma das músicas mais conhecidas do grupo, do aclamado álbum Nada como um
dia após o outro dia (2002): “Crime, futebol, música, ‘caraio’,/eu também não consegui fugir disso
aí,/ Eu sou mais um./ Forrest Gump é ‘mato’,/ Eu prefiro contar uma história real,/ Vou contar a
minha....”.
A música assume contornos cinematográficos: “daria um filme,/uma negra,/e uma criança
nos braços,/ solitária na floresta,/ de concreto e aço [...]/ famíla brasileira,/dois contra o mundo,/
mãe solteira, de um promissor vagabundo,/ luz, câmera e ação,/ gravando a cena vai,/ um bastardo,/
mais um filho pardo,/sem pai”.
Essa cena corriqueira de desolamento infantil, marcada sempre pela presença forte de uma
mulher, uma “mãe solteira”, cuja representação literária mais conhecida provém da personagem
Clara dos Anjos de Lima Barreto, tem no rap sempre papel destacado, são as vítimas de uma
história reencenada de sedução ou de abuso sexual do “senhor do engenho”, um homem, não
necessariamente branco, que a abandona na “selva de concreto e aço”. Brown desabafa em relação
à mãe, “aí Dona Ana, sem palavras, a senhora é uma rainha” (2002), Dum Dum e Eduardo, criam um
personagem violento que, reconhecendo sua ingratidão com a mãe pede desculpa: “por te impedir
de sorrir/ por tantas noites em claro triste sem dormir/pra te pedir perdão infelizmente é tarde”; “a
heroína que pediu esmola no busão com a receita/deu comida na boca/, comprou todos remédios/
sonhou com emprego/ mas o diabo me quis descarregando ferro” (“Desculpa mãe”, 2004).
E o menino Balduíno reconhece a fibra de sua tia/mãe Luiza: “não sabia ler, e no entanto era
respeitadíssima no morro, ninguém tirava prosa (p. 12).” No romance de Jorge Amado, assim como
nas letras do FC e dos RM, a condição da mulher e especialmente a da mulher negra e pobre, é
exposta, objetiva e cruamente. Sua história sucumbe quase sempre à loucura e ao suicídio, seja no
desfile terrível das misérias do romance - a tia de Baldo que vai parar no hospício, a avó decrépita e
sofrida do Gordo, a mulher grávida, desiludida, viajando clandestinamente num insalubre vagão de
trem, ou a jovem negra, prostituta e suicida -, seja na mãe que espera seu filho na cadeia, na letra
do FC: “vinha de madrugada sacola pesada/ pra ser revistada pelos porcos na entrada,/ na rebelião
voce no portão,/ temendo minha morte/ sendo pisoteada pelos cavalos do choque” (idem).
Esta enfase na figura feminina e materna, suscita também um dos mais polemicos assuntos,
referentes àquilo que Gilroy chama tendencia masculinista do rap (idem, p. 176). Tal polemica mais
borbulhante nos Estados Unidos27, em discursos até sensatos de alguma crítica a determinadas
manifestações da cultura hip hop (incluíndo o rap, o grafite e break), não pode adquirir status
generalizador, nem também operar uma condenação simplista de toda uma cultura de inclusão e
denúncia dos problemas que inclusive acometem brutalmente, as mulheres negras.
É preciso entender um contexto de imposição de força construída pelo rap como poder
paralelo à força policial e repressiva, masculina e simbolicamente viril, onde a educação do
homem imprime sempre uma necessidade de reafirmação sexual. Contexto em que a mãe,
praticamente única referencia familiar de educação desse jovem negro, não raramente, repete
a idéia, ao filho em prantos, “não chore, seja homem!”. Por outro lado, adaptando Henry Louis
Gates Jr, um dos mais conhecidos academico e crítico americano da cultura negra, citado por
Gilroy (idem, p. 177), o rap opera também como código satírico específico, aprendido nas ruas,
onde a misoginia de um homem se torna paródia de outro homem. Essa idéia pode ser entendida
no emblemático e “contro-verso” palavreado de Mano Brown: “mas a dona Ana fez de mim um
homem, e não uma puta! (“Jesus chorou”, 2002). Uma educação, exclusivamente feminina, por
essas condições específicas, constitui valor na periferia de uma grande cidade, à medida que
se insere também na linguagem das ruas vigiadas, da opressão machista policial, dos termos
populares que insultam e rebaixam qualquer homem, à condição de sujeitos compráveis e traidores.
Como o rap não é um genero acabado, mas em constante construção, há nele um esforço
cada vez maior em se abarcar níveis mais amplos da exclusão social, haja vista uma crescente
participação de brancos pobres e mulheres em todo movimento hip hop, espaço, até pouco tempo atrás,
exclusivamente masculino e negro. Não acreditamos, entretanto, que esse movimento possa ou deva
adquirir aquela dimensão privada e caseira, que Bell Hooks (1996, p. 33) julgava necessária ao rap para
atender e entender o espaço doméstico feminino, primeiro porque temos cada vez menos, na mecânica
do trabalho moderno, uma realidade feminina doméstica, segundo porque o rap é um movimento de rua
e possui os códigos do espaço público vigiado. Inverter isso seria descaracteriza-lo completamente.
É nesse locus, entre os arranha-céus e o barro bruto da periferia, que a vida de Balduíno
se desenrola. A cidade de Salvador que se agiganta aos seus olhos, no alto do Morro Capa-Negro,
pode ser possuída a princípio em sua sede bandoleira, instigada pelas histórias do cangaço e dos
quilombos, aos poucos a metrópole lhe parece estranha, injusta, um campo minado, que deve ser,
27 Gilroy lembra do episódio envolvendo o 2 Live Crew, um grupo de rap sediado na Flórida, liderado por Luther Campbell, “um americano negro de origem jamaicana e mentalidade comercial. Este episódio não é notável, porque as formas de misoginia que chamaram a atenção da polícia e dos promotores distritais eram novas” (2001, p. 176) e, por tanto, não contou, nem poderia contar, com a defesa do movimento hip hop nos Estados Unidos.
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primeiramente, conhecido pra depois ser dominado. A subversão criminosa é uma forma de dominar
a “ferro”, a metrópole. A vida de Baldo, em sua vontade de ser livre, assume um impasse instigante:
sua história no morro do Capa-Negro poderia, a princípio, ser ampliada nas ruas do centro, nas
esquinas e becos da cidade, entretanto é também no momento de vivencia desses espaços, que
sua vontade vai lhe sendo cerceada e reduzidos os lugares, onde poderia andar tranquilamente. Ele
“vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corre-la. O filho
do morro pobre é hoje o dono da cidade [...] é o imperador da cidade negra da Bahia (p. 53/54)”,
entretanto:
De repente, no meio de toda aquela gente, Antonio Balduíno se sentiu só [...]. Um medo doido.
Focou tremendo, batendo os queixos. Se lembrou de todo mundo: sua tia Luiza que enlouquecera,
Leopoldo que fora assassinado, Rozendo doente gritando pela mãe, Felipe, o Belo, debaixo do
automóvel, o velho Salustiano se suicidando no cais, o corpo de Viriato, o Anão cheio de siris que
chocalhavam (p.88)
A Bahia já não era a Bahia e ele não era mais o negro Antonio Balduíno, Baldo, o boxeur, que
ia às macumbas de Jubiabá [...]. Que cidade seria aquela e ele quem seria? Para onde teria ido toda
gente conhecida? (p.119)
A cidade de São Paulo aparece em “Negro Drama” dos RM como monstruosa, onde o
pequeno Brown vivencia duramente as dores de ser “um filho pardo, sem pai”: “veja, olha outra
vez,/ o rosto na multidão,/ a multidão é um monstro,/sem rosto e coração, Hey, São Paulo,/ terra
de arranha-céu, a garoa rasga a carne, é a torre de babel”. Nas letras do FC, a única forma de se
controlar a cidade é através do poder paralelo e criminoso, que torna a cidade de São Paulo campos
delimitados, “alcatrazes de ouro”, demarcados pela paz das cercas elétricas: “não adianta chorar,
não adianta gritar; A cidade é nossa, ra-ta-ta-ta-tá” (“A cidade é nossa”, 2005) . As ruas de São
Paulo, essa metonímia de uma realidade bruta do próprio Brasil, passa se constituir, friamente, uma
urbe das cifras, seja as cifras da cidade capitalista: “Na selva onde a nota vale mais que o amor” (FC,
“Aqui ela não pode voar”, 2006), “Em São Paulo, Deus é uma nota de 100” (RM, “Vida loka”, 2002),
ou as cifras dos dados estatísticos: “25% é a chance de eu ser assassinado” (FC, “Dias melhores
não virão”, 2006) “pra cada jovem europeu morto/- puta que pariu!-/ morre duzentos de nós,/ sem
voz, no Brasil” (FC, “O homem estragou tudo”, 2006), “27 anos contrariando a estatística”(RM,
“Capítulo 4, versículo 3”, 1998).
O mudo do rap é também o mundo das chacinas e dos genocídios, que torna os episódios
de Vigário Geral, Candelária e Carandiru, absurdamente, corriqueiros e naturais. Conforme José
Manuel Arce em seu livro Vida de Barro Duro – cultura popular juvenil e grafite (1999: p. 66):
A intolerância social frente às crianças e aos mendigos que perambulam pela cidade também aumenta. A lógica crua da exclusão adquire maior
presença e converte-se em frases pré-construídas, mediante as quais o cidadão repete: ‘Quanto mais rápido eles forem mortos, menos deliqüentes adultos haverá’, ou na observação de um periódico brasileiro que afirmou que as crianças de rua eram como ratos. Por trás dessa concepção sobre as crianças e os adolescentes, encontra-se um mundo muito mais complexo que não remete unicamente aos problemas economicos, mas também alude a problemas fundamentais nas organizações familiares e na formação dos imaginários coletivos.
Essa exclusão que torna o Brasil o país que mais mata jovens do mundo, desconcerta
a famosa proposição foucaultiana que identifica no Estado moderno o papel precípuo do “deixar
morrer” (Foucault, 2002), aqui o biopoder do Estado, ainda medieval, nesse sentido, não só deixa
como “faz morrer”. A oposição de Foucault deixar/fazer, um tanto dispensável para a nossa realidade,
não deixa, entretanto, de ser conveniente em sua compreensão da modernidade e da globalização e
em sua afirmação sobre o racismo que “é indispensável como condição para poder tirar a vida de
alguém, para poder tirar a vida dos outros, a função assassina do Estado só pode ser assegurada
desde que o Estado funcione, no modo do biopoder, pelo racismo” (idem, p. 306). Esse tipo de
poder, norteado ainda pela idéia de eliminar a “raça ruim”, aparece nas estatísticas, retratadas na
voz do Primo Preto em “Capítulo 4, versículo 3”: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes
criminais já sofreram violencia policial; a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras; nas
universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a cada 4 horas um jovem negro morre
violentamente em São Paulo”.
O sistema prisional constitui, nesse sentido, espaço onde o Estado biopoderoso exerce a
sua precedencia assassina do deixar/fazer morrer. Atento, aos mecanismos repressores da macro e
da microfísica do poder, Jorge Amado em Jubiabá, não esquece esse cenário de uma nova senzala
macabra. Baldo e seus amigos, “capitães” da areia e do gueto, experimentam essa realidade, com
direito aos caprichos de um pelourinho moderno:
Eles ouviram a voz dos presos que cantavam. Vieram soldados e traziam chibatas de borracha. E
eles foram espancados sem saber porque, pois nada lhe disseram. Ganharam assim sua primeira
tatuagem. Felipe, o Belo, ficou marcado na cara. O mulato que os prendera ria, puxando fumaça de
um cigarro. Os presos cantavam lá embaixo, ou lá em cima, ninguém sabia onde. Diziam na sua
canção que lá fora havia liberdade e sol. E a borracha zunia nas costas dos moleques. O Sem Dentes
gritava e xingava todo mundo. Antonio Balduíno tentava dar pontapés e Viriato, o Anão, mordia os
lábios com raiva [...] Passaram oito dias na cadeia, foram fichados e enfim soltos numa manhã clara
de muito sol. Votaram para a vagabundagem da cidade (p.75).
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“Contagem regressiva/ pra bomba explodir/ tic-tac tic-tac um dia eu vou sair/ aqui é o
rotweiller que criaram dando soco/ um monstro pronto pra voar no seu pescoço”. Essa é a voz de
um presidiário, fornecida pelo FC, na música “Quando eu sair daqui” (2006). São os pontapés de
Balduíno, a mordida no pescoço de um rotweiller humano ou de um humano rotweiller, esperando
para atacar o pescoço de quem o prendeu, representações da força paralela que grassa hoje
nos recentes episódios de demonstração de fogo dos presídios brasileiros, principalmente nos
superlotados sistemas do Sudeste. Esta reversão constitui o nível de uma exclusão histórica, que no
Brasil tem raízes no processo violento da escravidão e do sistema colonial, por isso a ressignificação,
o símbolo do chicote de borracha em Jubiabá, ou da consciencia de um dilema: “Ou vou ser escravo
do patrão ou número no presídio” (FC, “Estrada da dor”, 2006).
A mais emblemática expressão do mundo prisional se encontra numa verdadeira poesia
da música popular brasileira (com a licença da rasura), “Diário de um detento” (2001). Nela Mano
Brown constitui o diário de um cativo que viveu e presenciou o genocídio (sem rasura) na cadeia
paulista do Carandiru, dia 2 de outubro de 1992, quando a invasão da Polícia Militar no pavilhão
9 resultou na morte de 111 detentos, formando um país obscuro das “calças beges”. A música,
que se transformou também num mini-documentário premiado pela MTV, foi inspirada no relato de
um preso conhecido apenas como Jocenir e nas cartas enviadas por outros detentos, entregues a
Brown durante um jogo de futebol nesse presídio. O relato foi transformando em livro, lançado em
2001, na Bienal do Rio de Janeiro, quando ficou conhecido o nome próprio Jocenir José Fernandes
Prado. A música tem momentos lancinantes, que valem apenas ser transcritos e lembrados:
O ser humano é descartável no Brasil,/ como modess usado ou bombril./ Cadeia? Claro que o
sistema não quis,/ esconde o que a novela não diz!/ Ratatatá, sangue jorra como água,/ do ouvido,
da boca e nariz./ O Senhor é meu pastor,/ perdoe o que seu filho fez./ Morreu de bruços no Salmo
23!/ Sem padre sem repórter/, sem arma, sem socorro/. Vai pegar HIV, na boca do cachorro!/
Cadáveres no poço,/ no pátio interno/. Adolf Hitler sorri no inferno!/ O Robocop do governo é frio,/
não sente pena, só ódio, e ri como a hiena/. Ratatatá, Fleury e sua gangue/ vão nadar numa piscina
de sangue!/ (Mas quem vai acreditar no meu depoimento?/ Dia 3 de outubro. Diário de um Detento.)
Ao contrário da ideologia comum e cruel do esquecimento e da deturpação, que produz atos
assépticos e estrambóticos, seja na ação política recente da destruição do Carandiru, palco desse
genocídio, ou seja na condenação de um texto literário, como Jubiabá, pela história da literatura de
Alfredo Bosi, que lhe impõe o caráter de uma obra cujo foco principal são “os amores marinheiros”28,
28 Conforme SOUZA (2006): “As tradicionais crítica e história da literatura brasileira costumam considerar os romances de Jorge Amado como integrantes exóticos e populistas de uma construção totemica: o cânone literário brasileiro”. O livro de Alfredo Bosi História Concisa da Literatura repete, há mais de 40 edições, noções preconceituosas sobre esse romancista. “escritor populista”, “romântico sensual”, “autor sem profundidade crítica”. A sua leitura de duas obras de caráter crítico social de Jorge Amado, como Capitães de Areia e Jubiabá, impondo-lhe uma tonica sensual, é grosseira e deturpada.
o estilo rap opera pela memória mais dura, sempre numa exposição da história recalcada, que grita
verbosamente em suas letras e atitudes. Esse grito presente também na obra de Jorge Amado,
expresso, inclusive, na obsessão de Balduíno em ter sua história contada em um ABC29, atualiza
na contemporaneidade, por exemplo, aquela situação de dispersão e fuga dos escravos, após a
abolição. A escravidão no Brasil, politicamente extinta há quase 120 anos, permanece gerando,
continuamente, para utilizar uma expressão, lembrada e abordada por Célia Maria de Azevedo (2004),
uma “onda negra” e um conseqüente “medo branco”. Essa onda amedrontadora transborda hoje
nos presídios brasileiros, onde, recordando a letra de Gil, são “quase todos pretos, de tão pobres”.
Entretanto ela já estava lá, muito antes e pouco depois do beneplácito da princesa Isabel, como
registra Azevedo, reportando-se a episódios paulistas (2004, p. 176/177):
Após a fuga das fazendas, os negros tentavam solucionar seu destino como homens livres
de formas variadas. Havia os que ficavam pelos matos reunidos em grupos e que para sobreviver
saqueavam as cidades e vilas [...] Outros insistiam em ficar nas próprias imediações das fazendas
de onde haviam se retirado, exigindo sua carta de liberdade e direito de trabalho com salário. E
enquanto não conseguiam seus intentos, rondavam-nas ameaçadoramente [...] Mas eram tantos
os pontos de revolta ou de ameaças de ataques que o chefe de polícia, ao chegar na noite de 11
de dezembro em um trem especial em Indaiatuba, teve de dividir tropas, deixando uma parte delas
naquele local a fim de aguardar a passagem dos escravos do Barão da Serra Negra.
Negros em fuga, negros dispersos, deslocados no grande cenário citadino, formando guetos,
favelando o mundo, ou tentando, desesperadamente, adaptar-se á um atavismo inventado fora da
cidade, no meio do mato, constituem a reedição de uma realidade de exclusão histórica que faz
Mano Brown lamentar: “às vezes eu acho que todo preto como eu/ só quer um terreno no mato só
seu/ sem luxo descalço nadar num riacho/ sem fome, pegando as fruta do cacho,/ ai truta é o que eu
acho e o que eu quero também/ mas em São Paulo Deus é uma nota de cem/ vida loca” (“Vida loka”,
2002). Balduíno, perseguido no mato, pensando em retornar a Salvador, revive o mesmo drama do
“negro fugido”:
Quando fugir para onde irá? Poderá entrar pelo sertão, se açoitar numa fazenda, tratar de
bois. Tem tanto assassino por aí... Se o perseguissem muito entraria num bando de cangaceiros e
iria viver aquela vida que ele sempre admirou. O pior é que agora está sentindo fome. Talvez encontre
alguma furta como encontrou água (176).
Esta busca, em Jubiabá, pelo western nordestino do cangaço, um recuo da cidade para
depois assalta-la, constitui juntamente com todo o glamour de uma bandidagem social, das letras
29 O ABC é um genero popular e biográfico com rimas e metro determinados que narram os feitos e as peripécias de personagens consagrados pela tradição oral e escrita.
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de rap, aquela faceta bandoleira dos excluídos, sobre a qual Hobsbawn discute em seu texto
“Rebeldes primitivos”. Conforme o autor da Breve história do século XX, o bandido social realiza
atos considerados delituosos pelo Estado e pela classe dominante, mas goza de respeito por alguns
setores populares. Ele manipula as mesmas armas com as quais é direta e violentamente atingido,
por isso sua situação limiar entre a defesa da violencia física e do discurso que desconcerta: “Uma
disposição pro mal e pro bem” (RM, “Capítulo 4, versículo 3”, 1998), “Um rap venenoso ou uma
rajada de PT” (idem), “Discurso ou Revólver, está na hora da revolução” (FC, “Discurso ou revólver”,
2004) “Acredito na palavra ou na metralhadora, Revolução verbal ou aterrorizadora” (idem). Balduíno,
mesmo depois de adquirir o status de aclamado orador sindicalista, não esquece ainda a necessidade
da força. Ele continuava a ser uma “estrela vermelha com uma navalha na mão”.
São esses bandidos sociais, estigmatizados pela cor e pela origem, que expõem em seu
discurso aquele racismo por denegação, tipicamente brasileiro, ao qual Lélia Gonzáles (1988),
atribui às ideologias do branqueamento e da democracia racial, responsabilidade principal por sua
construção. A denegação cria a imagem de que no Brasil a experiencia da miscigenação apagou
as diferenças raciais, criando uma convivencia pacífica entre negros, brancos e índios. A letra dos
Racionais é incisiva:
O sistema é racista cruel/ Levam cada vez mais/ Irmãos aos bancos dos réus/ Os sociólogos preferem ser imparciais/ E dizem ser financeiro o nosso dilema/ Mas se analizarmos bem mais voce descobre/ Que negro e branco pobre se parecem/ Mas não são iguais/ Crianças vão nascendo/ Em condições bem precárias/ Se desenvolvendo sem a paz necessária/ São filhos de pais sofridos/ E por esse mesmo motivo/ Nível de informação é um tanto reduzido. (“Racistas otários”, 2000)
Emerge daí uma necessidade de uma contínua revisitação do passado. Um trabalho
constante de reedição da história colonial, cujo momento histórico permanece vigoroso no atual
contexto do capitalismo tardio, o espaço novo, multinacional, da velha experiencia diaspórica. Nesse
ambiente surgem fantasmagoricamente figuras de um passado recente: “Hitler, FHC, capitão do
mato, bacharéis de carnificina, mestrado em holocausto” (FC, “Discurso ou revólver”, 2004); “Hei
Senhor do Engenho,/ sozinho voce não guenta,/ sozinho voce não guenta” (RM, “Negro drama”,
2002); “o mundo é o corpo e ele é tumor maligno, descende de quem,/ roubou a terra dos índios”
(“Alcatraz”, 2006). E a voz potente de Jubiabá, consciencia histórica, merecedora do título de uma
obra, vaticina: “no tempo do carro de boi tinha negro com fome. Hoje também tem. Pra negro é a
mesma coisa” (p. 237).
Essa consciencia, que não é ressentimento estéril, constitui vitalidade, poder de discernir
e capacidade de expressão. Aquilo que, segundo Fanon, caracteriza como ações de intelectuais
(1979, p. 175):
alimentadas ou pelo menos orientadas pela secreta esperança de descobrir além das misérias de hoje, do desprezo por nós mesmos, dessa demissão e dessa renúncia, alguma era extraordinariamente bela e resplandecente que nos reabilite ao mesmo tempo aos nossos próprios olhos e aos olhos dos outros... [Estes intelectuais] não podendo enamora-se da história atual de seu povo oprimido, não podendo admirar sua presente barbárie, deliberaram ir mais longe, mais fundo, e foi com alegria excepcional que descobriram que o passado não era de vergonha mas de dignidade, de glória e de solenidade.
O que encontramos, enfim, tanto na caracterização do protagonista Balduíno e no rap, são
histórias de negros e negras, vivendo dramas específicos em espaços delimitados e perigosos,
porque repressivos, entrincheirando-se nas mínimas possibilidades reativas, as quais adquirem
força, na medida em que são narradas. Essas narrativas, longe de apresentarem uma visão heróica,
definitiva e vencedora do negro, expõem o discurso de uma história falível, sujeita às revisões
constantes, devido às emergencias de forças desestabilizadoras e imprevisíveis.
São recortes trágicos da realidade, mais evidentes em centros metropolitanos, onde o poder
é assegurado através do terror violento, dos mecanismos opressivos do status quo. Envolvido no
jogo sujo de uma nova e terrível aristocracia urbana, o personagem/ser negro impõe sua significação
através de atitudes de força, que vão desde o discurso violento até a reflexão fina sobre a história da
colonização e da escravatura, ressignificada nos fatos e situações íntimas e explícitas do nosso mais
obscuro cotidiano.
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REFERÊNCIAS
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FACÇÃO CENTRAL. Versos sangrentos. São Paulo: Sky Blue Music, 2005, ASIN: 7897454752639.
FACÇÃO CENTRAL. Direto do Campo de Extermínio. São Paulo: Unimar Music 2006, ASIN: 7898329810591 (CD duplo).
RACIONAIS MC’S. Holocausto urbano. São Paulo: Zâmbia, 2000, ASIN: 7898056350124.RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Vibrato, 2002, ASIN: 7898056350124.
RACIONAIS MC’S. Racionais ao vivo. São Paulo: Zambia, 2001, ASIN: 7898073390370.
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Zambia, 1998, ASIN: 7898073390011. (CD duplo)
1 “O peso de um inevitável fardo para estudantes negros na academia branca determina o
conteúdo e o caráter de sua atividade intelectual. Na realidade, a vida intelectual do negro
permanece, em grande parte, preocupada com essa defensiva, com o sucesso de intelectuais
negros, sempre orgulhosos da sua aprovação entre os brancos, e alguns insucessos, normalmente
desdenhosos, de uma rejeição entre os mesmos” (tradução minha).
3 Lucas da Feira, segundo a literatura popular com base em evidentes referencias históricas, foi
um filho de escravos em Feira de Santana, que fugiu da situação de cativo aos 15 anos, formando
um grupo de cangaceiros e espalhando terror entre os senhores de engenho no final do século XIX.
Antonio Silvino, “pernambucano, nascido na localidade de Afogados da Ingazeira, entrou no bando
do [cangaceiro] Silvino Aires [no final do século XIX] para vingar-se do assassino do seu pai, crime
este cometido por inimigos políticos. O nome Silvino foi uma forma de homenagear o antigo chefe.
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Após a morte de Silvino Aires, assumiu a liderança do grupo. Tanto no sertão como no agreste
e até bem próximo do litoral, assaltava fazendas, roubava, assassinava adversários políticos,
chantageava comerciantes ricos, poupava as mulheres de agressões físicas e sexuais, tinha fama
de bom ladrão, tornando-se um mito” (Cardoso, Tânia Maria de Sousa. Origem e instituição do
Cangaço. Disponível em: http://www.camarabrasileira.com/cordel43.htm. Acesso em: 30 de julho
de 2006). Ambos foram presos e executados pela força militar da época.
4 Poderíamos acrescentar nessa lista a presença de Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, ícone
do rap brasileiro, morto com quatro tiros em São Paulo.
5 Gilroy lembra do episódio envolvendo o 2 Live Crew, um grupo de rap sediado na Flórida,
liderado por Luther Campbell, “um americano negro de origem jamaicana e mentalidade comercial.
Este episódio não é notável, porque as formas de misoginia que chamaram a atenção da polícia e
dos promotores distritais eram novas” (2001, p. 176) e, portanto, não contou, nem poderia contar,
com a defesa do movimento hip hop nos Estados Unidos.
6 Conforme SOUZA (2006): “As tradicionais crítica e história da literatura brasileira costumam
considerar os romances de Jorge Amado como integrantes exóticos e populistas de uma
construção totemica: o cânone literário brasileiro”. O livro de Alfredo Bosi História Concisa da
Literatura repete, há mais de 40 edições, noções preconceituosas sobre esse romancista. “escritor
populista”, “romântico sensual”, “autor sem profundidade crítica”. A sua leitura de duas obras de
caráter crítico social de Jorge Amado, como Capitães de Areia e Jubiabá, impondo-lhe uma tonica
sensual, é grosseira e deturpada.
7 O ABC é um genero popular e biográfico com rimas e metro determinados que narram os feitos e
as peripécias de personagens consagrados pela tradição oral e escrita.
RAÍZES PERSISTENTES DA HOMOFOBIA NO BRASIL
(PERSISTENT ROOTS OF HOMOPHOBIA IN BRAZIL)
Luiz Mott30*
RESUMO
Neste artigo, “Raízes persistentes da homofobia no Brasil” resgata-se a etno-história
do preconceito e discriminação anti-homossexual no Brasil, elencando as principais áreas de
manifestação da homofobia, com enfase nos homicídios, uma verdadeira epidemia social que faz de
nosso país o campeão mundial de crimes homofóbicos. Discutem-se a seguir dez axiomas porque
os homossexuais (LGBT), dentre todas as minorias sociais, são as principais vítimas da intolerância
em nossa sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Homossexualidade. Homofobia. LGBT. Gay.
ABSTRACT
In this work, “Persistent Roots of homophobia in Brazil” rescues the ethno-history of anti-gay prejudice and
discrimination in Brazil, listing the main areas of manifestation of homophobia, with emphasis on homicide, a true
social epidemic, that makes our country world champion of homophobic crimes. We discuss ten axioms why
homosexuals (LGBT) among all social minorities, are the main victims of intolerance in our contemporary society.
Keywords: Homosexuality. Homophobia. LGBT. Gay.
30 * Professor Titular de Antropologia da UFBa e Decano do Movimento Homossexual Brasileiro
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1. HISTÓRIA DA HOMOFOBIA NO BRASIL
“A homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade”, costumava dizer pensador
Goethe (+1832)1. Parafraseando o poeta, podemos dizer que “a homofobia é tão antiga quanto o
próprio Brasil”, pois desde os primórdios de nossa história, com a criação das Capitanias Hereditárias
(1534), outorgou-se aos Capitães Mores o poder extraordinário de condenar à morte os “sodomitas”
sem necessidade de consulta e confirmação real2. A partir da fundação do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição Portuguesa (1536), o amor entre pessoas do mesmo sexo tornou-se crime punível com a
morte na fogueira, passando a homossexualidade a ser equiparada aos crimes de lesa majestade e
traição nacional. Institucionalizava-se, assim, para todo o império portugues, a mesma abominação
do Levítico, velha de quatro mil anos: “o homem que dormir com outro homem como se fosse
mulher, deve ser apedrejado”3.
Tres tribunais puniam os homoeróticos: a Santa Inquisição, a Justiça Real e o Bispado. A
partir de 1591, com a 1ª Visitação do Santo Ofício à Bahia e Pernambuco, até 1769, quando da
última Visitação ao Grão-Pará, 283 colonos portugueses e brasileiros, brancos e mestiços em sua
maior parte, foram denunciados à Inquisição, inculpados no “mau pecado”. Legalizava-se, assim a
homofobia institucional também na América Portuguesa, punindo-se não apenas os praticantes do
abominável crime de sodomia, como seus parentes e demais pessoas que não os denunciassem
às autoridades constituídas4. Ter um filho ou parente homossexual constituía grave risco para toda a
família, daí a repressão homofóbica começar dentro do próprio lar.
Ao todo a Inquisição prendeu e processou 34 sodomitas do Brasil e malgrado nenhum
destes réus ter sido efetivamente queimado na fogueira, mas punidos com degredo, galés perpétuas,
seqüestro de bens e açoites, registraram-se aqui, quando menos, duas execuções de “sodomitas”
no período colonial: em 1613, em São Luís do Maranhão, os missionários capuchinhos condenaram
à morte um índio Tupinambá, publicamente infamado e reconhecido como tibira (sodomita paciente):
foi amarrado na boca de um canhão, sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do morteiro,
“para purificar a terra de suas maldades”. Em 1678, um segundo mártir homossexual é executado,
agora na Capitania de Sergipe: um jovem escravo negro, “foi morto de açoites por seu senhor por
ter cometido o pecado de sodomia” 5. A Inquisição institui em nossa terra a pedagogia do medo,
demonizando os “fanchonos” e “somítigos”, fazendo de todo cristão um potencial colaborador deste
monstro sagrado, cujos descendentes dos famigerados “familiares do Santo Ofício” ainda hoje,
sobretudo no Nordeste e na Bahia em particular, ocupam destacado status em nossa sociedade
contemporânea.
Com certeza muitos outros assassinatos de homossexuais devem ter sido perpetrados
nos séculos passados no território brasileiro, mas infelizmente são raros os registros de tais sinistros.
Dispomos, sim, de evidencias históricas registradas no processos inquisitoriais de como os
colonizadores mais velhos ensinavam às novas gerações como apartar e maltratar os homossexuais.
Fazia parte da socialização dos jovens no Brasil Antigo, como no hodierno, aprender a temer e
afastar qualquer solicitação para atos sodomíticos, sobretudo as relações passivas. Nos meados
do século XVII, em Salvador, os mais velhos ensinaram a um jovem baiano de 16 anos “que não
aceitasse coisa alguma de um violeiro fachono Luiz Delgado, porque era sodomítico”, recebendo o
adolescente muitas pancadas por ter mantido conversação com o mesmo. Outro mancebo, 17 anos,
ao saber que o dito violeiro era homossexual, “não quis mais falar com ele, nem tirou-lhe o chapéu”.
Outro caso: um menino de 11 anos, sabedor da má fama do tal gay, após ter sido convidado pelo
mesmo para se encontrarem numa área despovoada, “seu pai lhe dera uma faca para trazer consigo,
dizendo-lhe que se acaso Luiz Delgado tornasse a falar em semelhantes cousas, lhe desse com a
faca”. E de fato, este homossexual, assim como outros registrados nos manuscritos inquisitoriais,
trazia em seu corpo várias cicatrizes desferidas como castigo à sua homossexualidade6. Digna de
nota foi a observação feita por um morador da Bahia, percebendo já no século XVII o que apenas
recentes pesquisas sociológicas ratificaram: que via de regra, a homofobia tende a ser mais intensa
em áreas rurais mais isoladas, do que nos centros urbanos mais heterogeneos 7. Disse tal informante
que ouviu murmúrios em Salvador de que o citado Luiz Delgado era fanchono “e muito mais pelo
sertão, donde então morava, que o dito violeiro era sodomítico, pois lá no sertão se fala muito mais
largamente nesta matéria que aqui na cidade, tanto em galhofas e zombaria de passatempo, como
fora dela”. O sertão, terra de cabra macho, reduto da homofobia mais violenta: em 1683, outro
sodomita notório, o escravo Jeronimo, já beirando os setenta anos, levou uma facada na testa,
ferindo-lhe um olho, e outros negros o tinham ferido e maltratado, dando-lhe uma bordoada com
um pau em sua cabeça, fazendo-lhe uma grande ferida”. Sua fama era tão espalhada – nos limites
da Bahia com Sergipe, que “os moradores costumavam desempulhar-se com falar no Jeronimo e
outros diziam: guarda-te do Jeronimo do Morato”8.
Malgrado a existencia de severa homofobia institucional no período colonial, sancionada
por leis civis e religiosas, revitalizada no dia a dia por onipresente homofobia cultural assentada no
machismo e no patriarcado, com a instalação do regime imperial, a homossexualidade é legalmente
descriminalizada, deixando de constar no Código Penal (1830), muito embora a homofobia cultural
persista sem solução de continuidade, consubstanciada agora nas opiniões e ações de delegados
de polícia, médicos, advogados, juízes e religiosos, que tratam os “pederastas” como doentes e
marginais.9 Nossa literatura da Belle Epoque, seja “científica”, seja ficcional, registra inúmeros casos
de violencia, suicídio e homocídios desta minoria sexual, destacando-se as obras o Bom Crioulo,
de Adolfo Caminha (1895), onde um marinheiro negro ciumento mata seu loiro grumete infiel, e A
libertinagem no Rio de Janeiro, do Dr. Pires de Almeida (1906). Prisões arbitrárias, espancamentos e
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agressões contra “invertidos” e “invertidas” são igualmente documentados nos periódicos desde os
meados do século XIX.: “Encontrado com vários ferimentos o incorrigível João Paulo, africano livre,
vestindo camisa de algodão e saia de mulher, nas matas próximas do Barbalho, Salvador (1870)”;
José Ferreira Pacheco, (1853), foi preso por estar “vestido de mulher”; no domingo, no Largo dos
Aflitos, (Salvador, 1870) “apareceu um homem vestido de mulher. Um gaiato, vendo aquela mulher
e supondo ser alguma menina feliz, foi baculeá-la [sic] e encontrou-se com o rigoroso insano.
Descobriu porem o engano em que estava e viu que a suposta mulher era um ex-voluntário do 54.
Reuniram-se diversos rapazes e puseram a roupa do efeminado em tiras, sendo a saia levada feito
bandeira por um dos sujeitos, que o esbordoaram. Eis por fim apresentou-se a polícia, e por sua vez
espancou também o povo. Que terra, meu Deus!” 10
Data de 1885 a referencia mais antiga, até agora encontrada, relativamente ao assassinato
de um homossexual em nosso país: “Cândido S., portugues, 26 anos, viúvo, comerciante, morador
no 1º andar da Rua da Candelária nº 38, no Rio de Janeiro, viviam com seu caixeiro Albérico, 22
anos, a quem sustentava e protegia. No dia 15 de abril de 1885, enquanto calçava sua botina,
Albérico desfechou diversas marteladas na cabeça do pederasta Cândido, acabando de matá-lo com
um braço de prensa de fumo. O assassino foi condenado a galés perpétuas e depois reduzida a pena
para 30 anos de prisão com trabalho”11. Um triste episódio de violencia doméstica homossexual
onde a vulnerabilidade social do “pederasta” certamente pesou na execução do homicídio.
Já nos inícios do século XX, dispomos de registros de internação compulsória de
homossexuais em manicomios de São Paulo12 e a prisão de 195 “frescos” pela Polícia Civil do Rio
de Janeiro (1932) para serem objeto de estudo do Dr. Leonídio Ribeiro, do Instituto de Identificação
da Capital Federal13.
Foi contudo somente em 1980, com o movimento homossexual brasileiro, especificamente
com a fundação do Grupo Gay da Bahia (GGB), que tem início no Brasil a coleta sistemática de
informações sobre a violencia letal e não-letal contra a comunidade homossexual, hoje referida
como LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Inexistindo no país estatísticas
oficiais sobre crimes de ódio, coube ao GGB, nestas tres últimas décadas, documentar e divulgar
anualmente o rol das principais violações dos direitos humanos do segmento LGBT, redundando, até
o presente na publicação de sete livros e diversos artigos sobre este tema 14.
Foi portanto com o intuito de dar um tratamento mais amplo e sofisticado cronológica e
teoricamente ao estudo das violações dos direitos humanos da comunidade lgbt no Brasil que uma
equipe de cientistas sociais da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual da Bahia
realizaram esta pesquisa, com apoio do Ministério da Saúde, tendo como título “Crimes homofóbicos
no Brasil: Panorama e erradicação de assassinatos e violencia contra LGBT, 2000-2007”.
2. CRIMES HOMOFOBICOS NO BRASIL: 1980-2013
O Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) tem início no Brasil em 1978, com a publicação
do jornal O Lampião da Esquina e no ano seguinte com a fundação da primeira associação, o
Somos: Grupo de Afirmação homossexual (São Paulo, 1979). Em 1980 o antropólogo Luiz Mott
funda o Grupo Gay da Bahia, que já no primeiro número do Boletim do GGB, em agosto de 1981,
inicia o levantamento sobre os crimes homofóbicos, em matéria intitulada Pesquisa: Homossexuais
assassinados no Brasil15. Assim é justificada tal iniciativa: “Não nos deixam em paz: fiu-fiu na rua,
bosta na Geni, discriminação em toda parte, violencia. Há milenios que nos matam: a pedrada na
Judéia, na fogueira na Europa medieval, nos campos de concentração na Alemanha nazista, no
paredón no Irã, em nossas casas aqui no Brasil. 16 homossexuais brasileiros foram barbaramente
assassinados só nos últimos dois anos (1979-1981). Fora os que não ficamos sabendo. A última
bicha assassinada foi em São Paulo: um baiano, Evaldo Reis Borges, não faz ainda um mes. O GGB
dá início a seu BOLETIM divulgando os nomes de nossos irmãos homossexuais assassinados nos
últimos anos. Nosso levantamento certamente deve estar incompleto: começamos no ano de 1969,
com as informações mais antigas retiradas do jornal O Lampião:
1. Padre Antonio Carneiro van der Linden (+21/9/1969, RJ) Causa mortis: crânio esmagado a
pauladas.
2. Fred Feldman (+9/11/1970, RJ) Causa mortis: pauladas
3. Juarez Viana Bezerra (+11/10/1971, RJ) Causa mortis: 22 facadas
4. Manon - travesti - (+?/4/1978, RJ) causa mortis: desconhecida
5. Décio Frota Escobar (+19/4/1979, RJ) Causa Mortis: estrangulado
6. Alfonsus Manuel de Barros (+?/5/1979, RJ) Causa mortis: degolado
7. Jorge Borges de Oliveira (+?/12/1979 - Uberlândia, MG) Causa Mortis: desconhecida
8. Cremilda - travesti - (+?/1/1980, Ituiutaba, MG) Causa Mortis: desconhecida
9. Toni Vieira (+/3/1980, Recife) Causa Mortis: duas balas no peito e na cabeça
10. Luiz Luzardo Correa, vulgo Luiza Felpuda (+30/4/1980, Porto Alegre) Causa mortis: golpes de
enxada e castrado
11. Luidoro Luzardo Correa (+30/4/1980, Porto Alegre, RGS) Causa Mortis: golpes de enxada
12. Evar Lemoine Silva, Bamba (+6/5/1980, Recife) Causa mortis: pancada na cabeça e cravado
de facas, garfos
13. Geni - travesti - (+?/4/1980, RJ) Causa mortis: raptado, seviciado e abandonado morto na praia
14. Marcos José Morra (+4/8/1980, Recife) Causa mortis: cacetadas no crânio
15. Roberto Rocha Leal (+29/9/1980, RJ) Causa mortis: injeções de tranqüilizante numa clínica
psiquiátrica
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16. Antonio Santos das Flores (?/?/1980, Salvador) Causa mortis: golpes de machado.
17. Paloma - travesti - (?/1/1981, Itabuna, Bahia) Causa mortis: facadas
18. Angelo Walter Bronze (+13/3/1981, RJ) Causa Mortis: facada no peito
19. Pedro dos Santos Pereira (+19/3/1981, Brasília) Causa mortis: tiro no peito
20. Evaldo Reis Borges (+16/7/1981, SP) Causa mortis: cabeça esmagada com botijão de gás
Quando nos deixarão em paz? Quando os marcos da história do MHB deixarão de ser as
ocasiões em que fomos desrespeitados, violentados, assassinados? Chega de mártires! Enquanto
este dia não chega, temos nós mesmos de revelar a verdade sobre o modo violento como nos
tratam. A verdade sobre os homossexuais quem sabe somos nós. Caso voce tenha conhecimento
de outras bichas e lésbicas que foram assassinadas ou sofreram qualquer outra forma de violencia,
mande-nos a informação completa. Não deixe de denunciar a violencia contra os oprimidos. Só
quando todos os oprimidos nos unirmos é que conseguiremos liberdade e igualdade de direitos.
Nenhum oprimido se liberta sozinho. Temos de seguir o exemplo das feministas quando do último
assassinato de uma mulher em São Paulo: sair pelas ruas com cartazes ensangüentados, com os
nomes e datas do assassínio de nossos mártires gays. Se a gente não se cuida, se distrai, aí então
o bicho pega. Vejam que mesmo nos States, com toda a mobilização do movimento gay americano,
recentemente ocorreu um massacre em “Ramrod”, saindo dois gays mortos e tres feridos (Gai
Pied, nº 28). Chega de violencia! Entre nesta luta. E não se esqueça o ditado popular: quem cala,
consente!” 16.
Assim começou esta sangrenta pesquisa sobre os assassinatos de LGBT no Brasil,
com a descrição sumária de 20 homicídios, sete dos quais anteriores à fundação do Grupo Gay
da Bahia. A partir de então, agosto de 1981 a finais de 2005, em todos os demais 44 números
do Boletim do GGB, continuamos a divulgação da violação dos direitos humanos e da lista dos
LGBT assassinados no Brasil, perfazendo até o presente ano, setembro de 201a, um total de 3510
“homocídios”, assim distribuídos:
ANO TOTAL 1963 – 1969 301970 – 1979 411980 -1989 5031990 – 1999 1.2562000-2009 12482010-2013 1177
Total 4255
Cumpre notar que nos primeiros anos do levantamento da criminalidade letal contra
homossexuais, as principais fontes de informação eram os jornais e revistas, e em todos os Boletins
do GGB solicitávamos aos leitores que nos enviassem recortes da imprensa com notícias sobre
homofobia. Época pioneira aquela, que dependia dos correios para a socialização de notícias, posto
que só nos últimos quinze anos que passamos a contar com as facilidades do xérox, fax, internet
e sobretudo dos sites de pesquisa e dos próprios jornais on line – hoje nossa principal fonte de
levantamento de dados sobre homofobia.
Convém insistir que já em setembro de 1982, no Boletim do GGB n.4, utilizamos pela
primeira vez em portugues o conceito “homofobia” – cunhado pelo psicólogo Dr. George Weimberg
em 197117 e até então praticamente desconhecido inclusive pela militância brasileira.
Assim sendo, nos últimos 35 anos, religiosamente, cotidianamente, praticadamente todos
os dias do ano, o fundador do GGB continua recebendo recortes de jornal e localizando na internet,
notícias de gays, travestis e lésbicas que foram violentamente assassinados de norte a sul do país.
Tres assassinatos por ano na década de sessenta, quatro na década de setenta, cinqüenta por ano
na década de oitenta, um a cada tres dias na década de 90, repetindo-se o mesmo índice nos dez
primeiros anos do terceiro milenio. Nos últimos cinco anos, registrou-se um aumento de 113% no
numero de “homocídios”, sendo que em 2012 atingimos cifra nunca antes atingida nessa macabra
estatística, 338 assassinatos, perfazendo uma média de um LGBT executado a cada 26 horas!
Nos primeiros tres meses de 2014, a situação se agravou ainda mais: um homocídio a cadaa 21
horas! Informações detalhadas sobre tais assassinatos podem ser consusltados no site “Quem a
homotransfobia matou hoje” http://homofobiamata.wordpress.com/
Nunca é demais lembrar que tais números não passam de débeis estimativas, e somos
quem primeiro reconhece a incompletude desses dados e a inerente limitação das fontes, já que
grande parte dos homicídios contra as minorias sexuais não teve testemunhas, acrescido do fato
que parentes e vizinhos tentam frequentemente esconder a orientação sexual da vítima, sem falar nos
jornalistas e policiais que revelam eles próprios opiniões machistas e homofóbicas, prejudicando a
reconstituição objetiva do crime.
Insistimos: mesmo crimes que aparentemente não revelam nítido componente de ódio
homofóbico, devem ser computados, seguindo assim a mesma sistemática operacional dos
estudos feministas ou sobre índios e negros, que incluem em suas estatísticas todas as vítimas
das respectivas categorias, sem especificar obrigatoriamente se o crime teve ou não conotação
machista ou racista. Acrescente-se que mesmo naqueles crimes em que o gay foi vítima de
latrocínio, ou a travesti de pista baleada por um cliente ou traficante de drogas, e mesmo quando a
lésbica esfaqueia sua companheira, por traz de todos estes crimes aparentemente “comuns”, está
onipresente a homofobia cultural, às vezes também a homofobia institucional, que fragiliza os gays
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face aos rapazes de programa; que estigmatiza as transexuais e travestis, obrigadas à prostituição
por falta de alternativas profissionais; que embebe de machismo e violencia doméstica as relações
lesbianas. Há anos o Grupo Gay da Bahia vem insistindo junto às autoridades policiais, de segurança
pública e direitos humanos, em nível estadual e federal, que instituam no país a pesquisa sistemática
e exaustiva sobre crimes de ódio – por raça, identidade de genero, orientação sexual, religião –
tarefa hercúlea por nós realizada há tres décadas, no mais das vezes sem qualquer financiamento
governamental. Enquanto tal urgencia não se concretiza, o GGB continua seu trabalho beneditino,
que malgrado todas as limitações e lacunas, constitui a principal fonte documental do mundo sobre
crimes letais contra homossexuais e cujos relatórios anuais são citados pelo próprio Secretário
Nacional de Direitos Humanos e anualmente divulgados pelo State Departmanent dos Estados
Unidos em seu Report on Human Rights 18.
Além do levantamento dos assassinatos de LGBT, o Grupo Gay da Bahia vem sistematicamente
coletando e divulgando informações sobre a violencia não-letal motivadas pela homofobia,
documentando um continuum de agressões que vão do insulto, difamação, discriminação e
ameaças, aos golpes, violencia física e tortura. Para este tipo de homofobia não letal, alem das fontes
jornalísticas e da internet, contamos com os “Registros de Queixa de Homofobia” disponibilizados
na sede do Grupo Gay da Bahia, onde a própria vítima descreve a violencia sofrida, seguindo o
mesmo procedimento dos “boletins de ocorrencia” das delegacias policiais.
3 PORQUE OS HOMOSSEXUAIS SÃO OS MAIS ODIADOS DE TODAS AS MINORIAS SOCIAIS
Quando se fala em discriminação, via de regra, cada minoria procura puxar o quanto pode a
brasa para mais perto de sua sardinha. Falar em brasa, porem, lembra fogueira e como por séculos
seguidos os homossexuais foram queimados nas fogueiras da Santa Inquisição, prefiro não brincar
com fogo e mostrarei, com dez argumentos, que de fato, mais do que as minorias raciais, étnicas
e de genero, são os gays, lésbicas, travestis e transexuais, as principais vítimas do preconceito e
discriminação dentro de nossa sociedade. Considero que exatamente por esta situação de maior
vulnerabilidade, carecem os homossexuais de maior e mais urgente atenção por parte do poder
público e da sociedade em geral, na implementação de medidas efetivas que garantam a salvaguarda
de seus direitos humanos e da plena cidadania.
I. CRIME HEDIONDO
Na nossa tradição ocidental, herdeira da moral judaico-cristã, o amor entre pessoas do mesmo
sexo foi considerado e tratado como crime dos mais graves, equiparado ao regicídio e à traição
nacional. O sexo entre dois homens era considerado tão horroroso, que os réus deste crime hediondo
deviam ser punidos com a pena de morte: a pedradas entre os antigos judeus e até hoje nos países
islâmicos fundamentalistas; decapitados, no tempo das primeiros imperadores cristãos; enforcados
ou afogados na Idade Média; queimados pela Santa Inquisição; condenados à prisão com trabalhos
forçados no tempo de Oscar Wilde e na Alemanha nazista 19.
Ser negro, índio ou mulher jamais foi crime. Mesmo ser judeu ou protestante, nos reinos
católicos, era tolerado dentro de certos limites e desde que não houvesse apostasia. Ser sodomita,
porém, sempre foi crime gravíssimo, tanto que tres alçadas, a justiça real, o tribunal do Santo Ofício
e a justiça episcopal se articulavam para descobrir, perseguir, prender, seqüestrar os bens, açoitar,
degredar e executar os réus deste crime abominável.
Só em 1821 é abolida a Inquisição Portuguesa e em 1823, por influencia modernizante
do Código de Napoleão, a sodomia deixou de ser crime também no Brasil. Apesar de terem sido
descriminalizados há quase dois séculos, gays, lésbicas e travestis continuam sendo tratados como
criminosos: nas delegacias, nas batidas policiais, os homossexuais são sempre visto e tratados
como delinqüentes. Mesmo quando vítimas, são tratados como réus.20
II. PECADO ABOMINÁVEL
“De todos os pecados, o mais sujo, torpe e desonesto é a sodomia. Por causa dele, Deus
envia à terra todas as calamidade: secas, inundações, terremotos. Só em ter seu nome pronunciado,
o ar já fica poluído”21.
Tal foi o ensinamento repetido por rabinos, felás, padres e pastores ao longo dos últimos
quatro mil anos. O amor entre dois homens foi considerado pecado tão abominável que não deve
sequer ser pronunciado: “nefando” ou “nefário” significa exatamente isso: impronunciável, o pecado
cujo nome não se pode dizer.
De acordo com a teologia moral cristã, um homem amar o outro, era pecado mais grave
do que matar a própria mãe, escravizar outro ser humano, a violencia sexual contra crianças. “Por
causa da sodomia, Deus arrasou com Sodoma e Gomorra e destruiu a Ordem dos Templários num
só dia!”22.
Negros e índios eram pagãos que deviam ser convertidos à “verdadeira” fé, mas não havia
pena de morte ipso facto contra os pagão, nem mesmo contra os judeus e protestantes nascidos
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nestas religiões. Contra os praticantes do abominável e nefando pecado de sodomia, a Igreja sempre
foi e continua sendo absolutamente intolerante: “a homossexualidade é intrinsecamente má” ratificou
o último catecismo de João Paulo II23.
Na tradição ocidental, cabe ao Judaísmo a culpa principal pela legitimação da intolerância
anti-homossexual, posto ter sido a Bíblia que forneceu as mesmas premissas homofóbicas para o
cristianismo e islamismo. Foi Javé quem primeiro mandou apedrejar “o homem que dormir com
outro homem como se fosse mulher”, cabendo ao apóstolo Paulo a argumentação teológica para
excluir os sodomitas do Reino dos Céus 24.
Ainda hoje vigora a pena de morte contra os amantes do mesmo sexo nos países
fundamentalistas islâmicos. Malgrado a homossexualidade ser chamada durante a Idade Média,
com justiça, de “vício dos clérigos”, e ainda hoje gays e lésbicas representarem significativo
papel quantitativo e qualitativo sobretudo dentro do catolicismo, o Papa polaco tem-se destacado
pela intolerância anti-homossexual, e segundo o atual Catecismo Romano o homossexualismo é
“intrinsecamente mau”25.
Enquanto a Igreja vem pedindo perdão a todos os grupos sociais por ela perseguidos
ou maltratados – judeus, negros, índios, protestantes, etc – a hierarquia católica e sobretudo as
novas seitas protestantes fundamentalistas radicalizaram seus discursos e ações contra os direitos
humanos e dignidade das minorias sexuais. Mesmo as religiões afro-brasileiras, cujo panteão é
povoado por diversas divindades transexuais e cujos pais, mães e filhos de santo sano, em número
significativo, são praticantes do homoerotismo, mesmo o candomblé e umbanda ainda não
articularam um discurso politicamente coerente em defesa da visibilidade e afirmação das minorias
sexuais.
Assim, enquanto as igrejas cada vez mais defendem e abrem espaço para negros,
índios, sem terra, oferecendo pastorais específicas até para mulheres prostituídas e portadores de
HIV/Aids, as portas da igrejas continuam fechadas aos homossexuais.
III. HOMOFOBIA INTERNALIZADA
Durante centenas de gerações, nossos antepassados ouviram nos púlpitos e
confessionários, que a homossexualidade era o pecado que mais provoca a ira divina. Ainda
recentemente o Cardeal do Rio de Janeiro e muitos pastores proclamam que a Aids, por eles
chamada de “peste gay”, é um castigo divino contra os homossexuais. 26 Durante séculos nossos
antepassados reprimiram seus filhos homossexuais, pois toda a família perdia os direitos civis por
tres gerações seguidas, caso um seu membro fosse condenado pelo crime de sodomia. No tempo
de nossos pais e avós os donos do saber médico proclamaram que os “pederastas” eram doentes,
desviados, neuróticos, anormais, etc. submetendo-os a tratamento cruéis e inócuos. 27
Desde Freud, contudo, comprovou-se que todos somos perversos polimorfos, com
forte presença da bissexualidade em nossa libido. Kinsey descobriu já em l948 que 37% dos homens
ocidentais tinham experimentado na idade adulta, ao menos dois orgasmos com o mesmo sexo.
Quer dizer: uma sociedade tão fortemente marcada pela homofobia - o ódio à homossexualidade
– onde ao mesmo tempo a quase totalidade das pessoas sentem desejos unissexuais e número
significativo de indivíduos já experimentou secretamente as delícias do homoerotismo28 – tal
contradição profunda provoca um ódio doentio contra o próprio desejo homoerótico, e sobretudo
contra aqueles que ousam transgredir a ditadura heterossexista.
A este ódio mórbido contra a homossexualidade a Psicologia chama de homofobia
internalizada, provocando nestes doentes, sintomas diversos, (além de mau humor, espinhas e prisão
de ventre), incluindo neurose de frustração sexual, suicídio e atos de violencia, como agressões e
assassinato sádico de homossexuais.
IV. OPRESSÃO FAMILIAR
Enquanto para os membros das demais minorias sociais, a família constitui a principal
grupo de apoio no enfrentamento da discriminação praticada pela sociedade global, no caso dos
homossexuais , é no próprio lar onde a opressão e a intolerância fazem-se sentir mais fortes 29.
A mãe negra, o pai judeu, a família indígena reforçam a auto-estima étnica ou racial de
seus filhos, estimulando a afirmação dos traços culturais diacríticos que auxiliarão vitalmente a
estas crianças e adolescentes a desenvolverem sua auto-estima, identidade, orgulho e afirmação
enquanto grupo étnico, racial ou religioso diferenciado.
Com os jovens gays, lésbicas e transgeneros a realidade é tragicamente oposta: pais e mães
repetem o refrão popular – “prefiro um filho morto do que viado!”, ou “antes uma filha puta do que
sapatão!”. Muitos são os registros de jovens homossexuais que sofreram graves constrangimentos
e violencia psíquica e física dentro do próprio lar quando foram descobertos: insultos, agressões,
tratamentos compulsórios destinados à “cura” da sua orientação sexual, expulsão de casa e até
casos extremos de execução. Recentemente, num bairro periférico de Salvador, um avo espancou
seu neto negro até à morte quando descobriu que era gay, e um pai baiano de classe média ao
ser informado que seu filho era homossexual, deu-lhe um revólver determinando: “Se mate! Pois na
nossa família nunca teve viado!” 30.
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V. CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO
Durante os últimos quatro mil anos, a homossexualidade foi chamada de “pecado nefando”,
o que não pode ser pronunciado. E de fato, as principais instituições donas do poder, da família às
igrejas, da escola à polícia, se uniram para impedir que os praticantes do amor proibido divulgassem
a verdade: que é bom ser gay, que é gostoso o erotismo entre pessoas do mesmo sexo, que duas
mulheres podem perfeitamente se amar de forma tão intensa e romântica como os casais do sexo
oposto, que a própria natureza humana pode ser alterada, e uma pessoa transexual tem o direito de
adaptar sua anatomia e genitália à sua identidade de genero 31.
Esta ardilosa conspiração do silencio incluiu também entre suas estratégias, não só a
destruição das fontes documentais comprobatórias da homossexualidade de personagens célebres,
como também a heterossexualização dos amores destas celebridades, numa tentativa maquiavélica
de cumprir o mandato inquisitorial: “que os sodomitas sejam queimados e reduzidos a pó, para que
deles não se tenha memória!” 32.
Contemporaneamente a mídia, a academia, os jornais diários, perpetuam este diabólico
complo do silencio, censurando artigos que abordam o amor homossexual de forma positiva,
sonegando informação sobre a orientação sexual de gays e lésbicas destacados, ou ridicularizando
e divulgando preconceitos contra as minorias sexuais.
VI. LUTA MENOR
Durante décadas seguidas, intelectuais e políticos de esquerda relegaram ao status de “luta
menor” os estudos e militância em favor dos direitos humanos das minorias sexuais. Sob o pretexto
de que primeiro se devia derrubar o capitalismo e garantir o pão e trabalho às classes subalternas,
transferia-se para um futuro remoto discutir e lutar pelos direitos sexuais e de genero. Gays e lésbicas
foram taxados de agentes da burguesia, e o homoerotismo como sintoma da decadencia capitalista 33.
Líderes negros e indígenas, dando as costas às evidencias etno-históricas que comprovam a
presença da homossexualidade na maior parte das sociedades tribais, acusaram o amor unissexual
de ser vício colonialista34. A duras penas os partidos de esquerda aceitaram conviver com militantes
homossexuais assumidos e incluir em seus estatutos e agenda política, a defesa da cidadania plena
dos gays, lésbicas e transgeneros, do mesmo modo com costumam defender os direitos humanos
dos negros, índios e demais minorias sociais. O recente infeliz comentário de Lula ridicularizando
Pelotas como “pólo exportador de viados” reflete a homofobia generalizada de nossos políticos,
inclusive os de esquerda.
Obviamente que a luta racial, pela igualdade de genero e de orientação sexual é tão
revolucionária e primordial quanto a luta do proletariado, posto que direitos humanos e cidadania
não podem ser limitados apenas a certos grupos e a seus projetos particulares, mas a todos os
segmentos que formam a sociedade, e que sofrem e são discriminados exatamente por ostentarem
tais peculiaridades raciais, étnicas, sexuais, etc. 35
VII. HOMOFOBIA ACADÊMICA
As Ciencias, particularmente as Humanidades, tem a missão crucial de realizar pesquisas
e divulgar conhecimentos sólidos visando destruir as prenoções, derrubar os preconceitos e impedir
as discriminações baseadas em tais equívocos. Lastimavelmente, no entanto, raríssimas são as
universidades brasileiras que dispõem de áreas de pesquisa e programas voltados aos estudos da
(homo)sexualidade em geral e da homossexualidade em particular36. O amor homoerótico continua
ainda tema nefando no meio academico: professores e pesquisadores gays e lésbicas se veem
forçados a permanecer na gaveta a fim de não sofrerem discriminações funcionais; muitos são os
docentes que ainda usam a cátedra para divulgar opiniões negativas em relação à homossexualidade;
alunos e alunas homossexuais são discriminados por seus professores, vendo-se impedidos de
assumir sua verdadeira identidade existencial; pesquisadores são desestimulados ou mesmo
barrados a investigar temas relativos à sexualidade humana. Muitos academicos continuam agindo
como “cães de guarda da moral hegemonica”37.
VIII. OMISSÃO GOVERNAMENTAL
Tradicionalmente, a máquina estatal foi sempre utilizada para reprimir os amantes do mesmo sexo.
Embora desde o fim da Inquisição a homossexualidade tenha deixado de ser crime, a Polícia e a
Justiça passaram a ocupar a função dos antigos inquisidores, perseguindo, punindo, torturando os
“pederastas”38.
A partir da revolução de Stonewall (Nova York, 1969), marco inicial do moderno movimento
de defesa dos direitos humanos dos homossexuais, os países mais civilizados do mundo passaram
a incluir os gays, lésbicas e transgeneros na agenda de grupos minoritários que deviam ser
beneficiados por políticas garantidoras de sua visibilidade social e igualdade de cidadania.
No Brasil, lastimavelmente, as ações governamentais em favor da defesa dos direitos
humanos dos homossexuais são ainda praticamente inexistentes: data de 1996 o primeiro
documento do governo federal a mencionar o termo “homossexual”, e mesmo aí, no Plano Nacional
de Direitos Humanos, enquanto são 22 as propostas de ações oficiais de superação do racismo,
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os homossexuais não mereceram sequer uma medida propositiva 39.
Chega a ser criminoso o descaso e a omissão do poder executivo, legislativo e judiciário
em reconhecer a urgencia de propor medidas afirmativas que reduzam a violencia homofóbica no
país, viabilizando uma inadiável revolução nas mentalidades dos formadores de opinião, a fim de
superar o preconceito e discriminação presentes em todas as esferas públicas de nossa sociedade.
Do mesmo modo como existe Funai, Fundação Palmares, Secretaria Nacional da Mulher, urge que
seja criada uma Secretaria da Cidadania Homossexual, com vistas a erradicar a homofobia em
nosso meio.
IX. HOMOFOBIA ENTRE OS DEFENSORES DO DIREITOS HUMANOS
Mais grave do que o preconceito encontrado entre os líderes religiosos e academicos, é
a homofobia observada entre as lideranças das instituições voltadas à defesa dos direitos humanos.
Hélio Bicudo, D. Aloísio Lorschaider, Rabino Henry Sobel, por exemplo, grandes defensores
dos direitos humanos, várias vezes divulgaram na mídia opiniões discriminatórias contra os
homossexuais, opondo-se radicalmente ao reconhecimento legal da união civil entre pessoas do
mesmo sexo 40.
O complo do silencio, evitação e apartheid social continuam presentes no discurso
e prática de grande parte das lideranças dos movimentos de direitos humanos. Não raramente,
chegam alguns a argumentar que não existe paralelo nem equiparação entre a discriminação por raça
ou genero, e a discriminação baseada na orientação sexual. Infelizmente, os argumentos utilizados
pelos que excluem os homossexuais da agenda dos direitos humanos inspiram-se em dogmas
religiosos, que insistem em demonizar o amor entre pessoas do mesmo sexo.
É fundamental que as entidades e lideranças engajadas na luta pela cidadania reconheçam
que direitos sexuais também são direitos humanos 41.
X. ALIENAÇÃO DOS HOMOSSEXUAIS
Os gays, lésbicas e transgeneros devem representar quando menos 10% da população
brasileira. 16 milhões de seres humanos presentes em todas as raças, grupos étnicos, classes
sociais, profissões, idades. Os homossexuais constituem a única minoria que se faz presente
em todas as demais minorias sociais. Não é por menos que um dos slogans mais queridos do
movimento homossexual internacional é : “somos milhões e estamos em toda parte!”
Não obstante tal onipresença, 99% dos homossexuais continuam presos dentro do armário,
vivendo clandestinamente o que para todo ser humano é motivo de grande satisfação, reconhecimento
público e orgulho: o amor. São tão fortes o preconceito, opressão e discriminação contra este
grupo, que a quase totalidade dos gays e lésbicas introjetaram a homofobia dominante em nossa
ideologia heterossexista, tornando-se homossexuais egodistonicos, não assumidos. Devido a esta
invisibilidade, deixam de fornecer modelos positivos para os jovens com orientação homófila. 42.
Alienação é o melhor conceito para definir essa multidão de enrustidos, esses praticantes do
homoerotismo que não chegam a desenvolver sua consciencia, identidade e afirmação homossexual.
Enquanto negros, índios, mulheres, judeus, protestantes, etc, cada vez mais afirmam
publicamente e com orgulho suas identidades diferenciadas, gays e lésbicas clandestinos
argumentam que sexualidade é coisa íntima, que não querem levantar bandeira, alguns militando
em outros grupos minoritários ou votando em candidatos que levantam outras bandeiras, sem se
identificar com aqueles que abertamente defendem a cidadania e visibilidade das minorias sexuais 43.
EPÍLOGO
Para que gays, lésbicas e transgeneros brasileiros deixem de ser sub-humanos e cidadãos de
vigésima quarta categoria, consideramosente a adoção das seguintes medidas emergenciais:
1. descriminalizar de vez a homossexualidade no mal trato que a polícia e a justiça dão às minorias
sexuais, aprovando-se leis que condenem a discriminação sexual com o mesmo rigor que o
crime de racismo e garantam aos LGBT igualdade absoluta nas garantias legais;
2. desconstruir e aniquilar os tabus religiosos que diabolizam o amor entre pessoas do mesmo
sexo, propondo às diferentes igrejas a promoção de pastorais específicas voltadas para as
minorias sexuais;
3. tratar a homofobia internalizada que impede à sociedade heterossexista reconhecer os direitos
humanos e a diversidade das minorias sexuais, criando sentimentos de tolerância dentro das
famílias para que respeitem a livre orientação de seus filhos e parentes homossexuais;
4. quebrar o complo do silencio e divulgar informações corretas e positivas a respeito do
“amor que não ousava dizer o nome”, desmascarando as falsas teorias que patologizam a
homossexualidade, ampliando na academia as pesquisas que resgatem a história e dignidade
das minorias sexuais;
5. substituir a homofobia reinante nos partidos e grupos políticos que tratam a cidadania homossexual
como luta menor, erradicando dos grupos que defendem os direitos humanos, qualquer tipo de
manifestação de preconceito que viole a dignidade e cidadania dos homossexuais;
6. estimular aos gays, lésbicas, travestis e transexuais a assumirem publicamente sua identidade
homossexual, lutando pela construção de uma sociedade onde todos tenhamos reconhecidos
nossos direitos humanos e cidadania plena.
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UMA POLÍTICA-CULTURAL DE RESISTÊNCIA E (RE) INVENÇÕESNA LITERATURA AFROFEMININA (A CULTURAL POLITICS AND RESISTANCE (RE) INVENTION IN
AFRICAN-FEMININE LITERATURE)
RESUMO
Este texto advém da tese de doutoramento, Vozes Literárias de Escritoras Negras Baianas:
Identidades, Escrita, Cuidado e Memórias de Si em Cena, que trata de identidades, autoria,
memórias, escrita e cuidado de si/nós na literatura afrofeminina da Bahia. Resulta da constatação
de que torna imprescindível evidenciar alguns caminhos significativos que escritoras negras baianas
tem percorrido para banir práticas de apagamento de sua escritura e promover representações e
discursos literários antipatriarcais e antidiscriminatórios. Embora ausentes de circuitos editoriais
e literários instituídos, elas escrevem, publicam e tensionam interdições de suas vozes, abalando
traços depreciativos sobre si e suas africanidades. Além disso, sucede do empenho de entender a
literatura por elas produzida que se quer diferenciadora, emancipada e transgressora, que desfilam
longe de estigmas e de apagamentos e próximas de marcas de alteridades. Para isso, assenhoram-
se da escrita para forjar uma estética textual, em que se (re) inventem a si e a outros/as. Ademais as
provocações deste texto podem suscitar outros questionamentos acerca de novos agenciamentos
literários, visto que é preciso compreender o prazer estético literário, não tão somente pela sua
tradição, mas também pelos múltiplos movimentos pulsantes e (des) contínuos de rupturas e
ressignificações da arte da palavra.
PALAVRAS-CHAVE: Autoria. Literatura Afrofeminina. Resistencia.
ABSTRACT
This text comes from the doctoral thesis, Literary Voices of Black Writers Baianas: Identities, Writing
, and Memory Care of Himself on Stage, which deals with identity, authorship, memories, writing and
caring for yourself / us in african-feminine literature of Bahia. Stems from the fact that necessitates
show some significant ways that baianas black women writers have traveled to ban practices of
writing and erasure of its representations and promote anti-patriarchal, anti-discriminatory and
literary discourses. Although absent from established editorial and literary circuits, they write,
publish and tighten closures of their voices, shaking derogatory traits about themselves and their
Africanities. Moreover, the case of commitment to understand the literature they produce what you
want distinctive, emancipated and transgressive, parading away from stigmas and deletions and
upcoming brands of otherness. For this, assenhoram writing to forge a textual aesthetics, in which
(re) invent yourself and others. Furthermore the provocations of this text may raise other questions
about new literary assemblages, since it is necessary to understand the literary aesthetic pleasure,
so not only for its tradition, but also by multiple pulsating movements and (dis) continuous ruptures
and reinterpretation of art word.
KEY WORDS: Authorship. Literature African feminine. Resistance.
Ana Rita Santiago31*
Algumas Palavras Iniciais[...] Confesso meu pânico, a minha demencia cega.
Sou poeta! Eis minha pena, meu punhal, meu álibi.
Minha balança (SANTANA, 2006, p. 37
Falsamente, considerou-se que a ausencia de autoras negras na historiografia literária e em circuitos
literários e academicos deveu-se tão somente a sua inexistencia. “Naturalizou-se” a idéia de que elas
não existem apenas porque não escrevem. Essa formação discursiva foi suficiente para justificar o
silenciamento da escrita e nomes de inúmeras autoras negras. Desfilam, no entanto, à margem de
instâncias literárias, nomes32de escritoras negras que, entre os séculos XVII e XX, fizeram relevantes
rupturas no cenário da literatura, escrevendo e publicando, e ainda hoje suas obras provocam
estranhamentos.
Diante disso torna-se pertinente, como se propõe este texto, tecer algumas considerações sobre alguns
caminhos significativos que escritoras negras tem percorrido para banir práticas de apagamento de
sua escritura. Embora fora de cenários editoriais e culturais, pela palavra literária, elas tensionam
interdições de suas vozes,abalandodiscursos depreciativos sobre si e suas africanidades33. Com o
31 * Professora Adjunta e Pró-Reitora de Extensão da UFRB32 Há biografias e informações sobre algumas mulheres negras escritoras no Brasil em SCHUMAHER e BRAZIL (2000; 2006); LOBO (1993; 2006); BEZERRA (2007); SALGUEIRO (2005); CASHMORE (2000); SILVA (2007; 2012) etc.33 A expressão africanidades, segundo a estudiosa Petronilha B. da Silva (2003, p. 26), “[...] refere-se às raízes da cultura brasileira que tem origem africana. Dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que,
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ofício da escrita literária,reinventam-se, criando outras escritas de si/nós pautadas em sonhos de
emancipação, de liberdade e autonomia. Assim, pela e com a escrita, elas imprimem uma política
cultural e, mais especificamente, literária, de resistencia e exercício de alteridade.
1. Literatura Negra Feminina: Jogos de Escrita de Si/Nós e Resistência
A produção literária de mulheres negras no Brasil tem se constituído, qualitativamente, como uma
relevante dimensão cultural, de militância e até academico-científica em prol de políticas de equidade
e de escritas de si/nós. Ela é uma prática discursiva de reinvenções não apenas do outro, mas
também de auto-constituição. Essa auto-formação, entretanto, não se configura em fixar verdades
sobre si nem em buscar significações definitivas de si mesmas. Consiste, pois, em práticas que
mulheres negras se instituem autoras de uma escrita de si (FOUCAULT, 1997), pois, através de
poéticas e narrativas, cosem fiapos de memórias.
A escrita de si, como a arte de si mesmo, consiste em um exercício de instituição como autor/a
de uma escrita que se desdobra ao mesmo tempo em formação de si e em des-hierarquização
de saberes e já ditos de si. Além disso, significa construir processos de subjetivação, garantindo
soberania (FOUCAULT, 1997), para ter poder e saber como um ato político e para criar outros modos
de constituição. A escrita de si, portanto, não é apenas uma elaboração sobre si, mas é também
(des) ditos de saberes apreendidos, adquiridos, memorizados, externos e não originários como
insinua a voz poética de Ser poeta, de Jocélia Fonseca:
Ser poeta
É tomar um gole
De brasas acesas
E não beber água em seguida
Esse ventre há de parir
Tochas de palavras
E ações em chamas
Revertendo todo o processo
De um mundo caduco. (FONSECA, 2012, p. 57)
Escrever é, neste sentido, indubitavelmente, reescrever-se/nos e, a um só tempo, inscrever-se/
nos em novos lugares, discursos, imaginários, papeis sociais e vivencias que demarcam práticas
independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia [...]”.
discursivas inter-seccionadas por lirismos, afirmações, desconstruções e múltiplas formas de
empoderamentos. É, em verdade, um permanente reinventar-se/nós.
A autoria feminina negra (re) inventa, neste ínterim, vozes, memórias e prosas poéticas que
instigam políticas culturais que contemplem escritoras negras com suas historicidades, memórias,
auto-ficcionalização e, acima de tudo, com suas vicissitudes e tramas do hodierno, do vivido e
do por vir sem espetacularização e idealizações que distanciam o real do ficcional. A escrita de
mulheres negras, neste sentido, torna-se efetivos exercícios culturais de auto-representação, auto-
governabilidade, auto-formação e auto-interpretação, logo de jogos de resistencia e reversão, os
quais não se esbarram em meros discursos individualizados e, quiçá, intimistas, mas, ao contrário,
espalham-se e se estendem em e com outras tantas vozes (di) sonantes.
Por conta disso, a Literatura afrofeminina, como escrita de si/nós, é uma produção que se reveste
e traveste de múltiplas vozes, universos, imaginários e temas. Esses, por vezes, aparecem
acompanhados e comprometidos com estratégias políticas culturais emancipatórias e de alteridades.
Por ela, como demonstra o poema Oração, de Cléa Barbosa, circunscrevem-se narrações de
negritudes femininas/feministas por elementos e segmentos de memórias, de tradições e culturas
africano-brasileiras, do passado histórico e de experiencias vividas, positiva e negativamente, como
mulheres negras.
Se posso falar de Nossa senhora
O que impede-me de falar de Oiá?
Oiá Matamba dança canta no corpo meu
Minha força minha luta
História da minha raiz
Labuta do meu dia a dia
Avermelhado de vida
Sou filha sou mãe
Sou neta da lama sagrada
Do barro da terra que me benzeu
Oiá matamba Vanju
Bamburucema teu ilá
Ecoa a liberdade da minha alma femea
Guerreira
O brilho da tu a beleza conduz os meus
Passos
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Mãe sou tua filha concebida pelo amor
Que trago de tempos outros
Que nem mesmo atinjo em palavras
O estrelato do universo me confirma
A força de Olorum sobre toda a natureza
Axé!!! (BARBOSA, 2012, p. 21)
Por esse projeto literário, figuram-se discursos estéticos inovadores em que vozes literárias negras
e femininas, destituídas de submissão, forjam uma estética textual em que (re) elaboram a si e
aos outros e cantam repertórios e eventos histórico-culturais negros. Criam, então, uma literatura
em que a autora se inscreve e se impõe como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de
subjetividades e vivencias peculiares às mulheres negras na sociedade brasileira. Nesta perspectiva,
o seu fazer literário, além de um sentido estético, atribui significados pessoais e coletivos de marcas
identitárias. Toma-se, em verdade, o lugar da escrita, como uma instância efetiva de (des) tecer
possibilidades de existencias e de se (re) pensar e (re) criar a vida e destinos pessoais e coletivos.
A literatura afrofeminina também faz críticas ao silenciamento, a que está submetida a escrita de
mulheres negras, além de questionar a cultura ocidental e tradicional, que se figura como um discurso
falocentrico afirmando-se como escritoras, uma vez que suas representações tornam-se múltiplos
modos de reconhecimento e redefinição de si mesmas. Ela destaca-se pelas enunciadoras, ou seja,
por quem escreve: são sujeitos que vivem em situações as mais adversas por serem mulheres
negras e vislumbram outros mundos, outras vidas e outros homens e mulheres através da estética
textual. Elas autorizam-se a escrever como sujeitos que enunciam dizeres e contradizeres de si/nós
como se figura no poema Ser Mulher, de Jocélia da Fonseca.
Ser inteiramente mulher
De flores
Espada na mão
E um espelho à frente.
Na consciencia a sabedoria das matriarcas
Negras
Na bagagem a herança da atitude
Bom mesmo é ser mulher
Na plenitude da femea forte e bela
Com um pisar firme mesmo que de salto
Pois no salto vai-se rompendo barreiras
E esse sangue quente nas veias
É o auto-amor
Anti-capitão da selva de pedras. (FONSECA, 2012, p. 59)
Assim, através de narrativas e poéticas, um eu ficcional, afirmado pelo eu autoral, torna-se possível
expressar dilemas constituídos entre a mulher negra literária e a mulher estereotipada pela cultura
androcentrica que lhe reduzira à serviçal e objeto desejos, já que a arte literária, em muitos momentos,
movida pela tradição patriarcal, incumbiu-se de reforçar uma suposta natureza feminina negra,
pautada em subserviencias, subjugações, virilidade exacerbada e pouca racionalidade. A escritura
feminina negra, por conta disso, se dimensiona pelas narrativas e textos poéticos com marcas
de jogos de resistencia, de suas experiencias, afetos e desafetos, sonhos, angústias e histórias.
Neste sentido, a literatura afrofeminina se justifica pelo rompimento com a hegemonia e supremacia
masculina branca, visto que, por meio dela, podem-se desenhar e reconhecer existencias e práticas
sociais diferenciadas, tal como se desenha nesse poema.
Nessa perspectiva, Conceição Evaristo, em A noite não adormece nos olhos das mulheres, desenha
um eu feminino negro, em permanente vigilância, lança-se ao enfrentamento das intempéries,
em busca de tessituras que fortaleçam a resistencia e as estratégias de superação de lágrimas e
sofrimentos:
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua femea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
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vaginas abertas
retem e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das femeas
pois do nosso sangue-mulher
do nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tonico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistencia. (EVARISTO, 1998, p. 42)
A estética afrofeminina, dessa maneira, põe-se em um lugar de criação de uma textualidade
em interação com histórias, desejos, resistencias e insurgencias, com memórias pessoais e
coletivas e identidades negras e de genero. Coloca-se ainda em um território discursivo e imaginário
desconstrutor de marcas identitárias amparadas em representações que inferiorizam universos
e repertórios culturais negros e de genero e construtor de tessituras que os valorizam e abalam
significantes que os estigmatizam, como se (auto) representa a voz desse poema.
Desse modo, autoras negras, ao criarem contradizeres que desestabilizam discursos que recalcam
sua escrita, as relações de poder nas tramas do racismo e do sexismo, por exemplo, imbricadas com
outras relações, universos e sujeitos, tornam-se protagonistas de outras narrativas da escrita literária.
Ademais, recriam remendos de recordações que elas querem lembradas e desfazem trapos de ditos
que desejam esquecidos, quanto aos fios de memórias, compreendendo-as como uma escrita de si/
nós que se estabelece como um entrecruzamento entre eu (s) referencial e ficcional, já que enquanto
escritoras, elas podem se travestir de vozes poéticas e narradoras a fim de inventar formações de
si/nós. Além disso, seguem provocando políticas culturais que possibilitem a visibilidade de suas
vozes, escrevendo, formando públicos leitores e divulgando sua produção criativamente e de modo
diverso.
2. Fios de Identidades Etnico-culturais na Literatura Afrofeminina
Autoras negras, além de constituírem a escrita literária como estratégias de autoconstituição,
em seus versos e prosas, tecem elementos identitários que colaborem com a elevação do nível de
auto-estima de si/nós e, sobretudo, com a construção afirmativa de suas identidades negras e de
genero, bem como de seus/as leitores/as. Assim fios poéticos e de prosas se entrelaçam para coser
uma escritura performática em que se desenham possibilidades de tornar-se e entrecruzem traços
identitários marcados por fixidez e sentidos pejorativos.
No poema Asé, de Lívia Natália, a Água é a voz poética, haja vista que, além de autodeclarar árvore
negra de raiz nodosa, seta, ferro das armas, sal das águas, é também água e tempestade.
Sou uma árvore de tronco grosso.
Minha raiz é forte, nodosa,
originária,
betumosa como a noite.
O sangue,
ejé que corre caudaloso,
lava o mundo e alimenta
o ventre poderoso de meus Orixás.
A cada um deles dou de comer,
um grânulo vivo do que sou
com uma fé escura,
(borrão na escrita do deus de olhos docemente azuis).
Minha fé é negra,
e minha alma enegrece a terra
no ilá
que de minha boca escapa.
Sou uma árvore negra de raiz nodosa.
Sou um rio de profundidade limosa e calma.
Sou a seta e seu alcance antes do grito.
E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade
e o ferro das armas.
E ainda luto em horas de sol obtuso
nas encruzilhadas. (SOUZA, 2012, p. 33)
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Reconhecer-se Água é muito mais que um eu metafórico, inventado pela linguagem. Auto-afirmar
como um rio feito de limo e calmaria, em um ato performático, é mostrar-se forte, insolente, única e
perseguir o projeto de autoconstituição que se (des) faz em cada cena cotidiana e se renova com fios
e fiapos de lembranças e recordações que criam memórias. Neste sentido, o sujeito poético, como
projeto identitário, torna-se uma construção em que se narra como afirma Nestor Canclini (2006),
ao referir-se à identidade.
A autoapresentação da Água, que se descreve destemida, vigorosa, forte e guerreira, é perfilhada
como uma árvore cor da noite e do betume. Esse traço identitário marcante e quase visceral é o
principal nutriente que alimenta e sustenta a terra e o que lhe circunda. Mais ainda é pela e com
a própria negrura que cumpre a sua função social: enegrecer a terra. Uma voz de múltiplas faces
desfila nesses versos: além de rio e árvore, é também seta, fogo, sal, tempestade e ferro. De todas
essas identidades, emanam ações específicas e relevantes, as quais garantem e justificam o seu
existir que com elas se tece. Como um ser único, mostra-se diversa em seus vários papeis, os quais
remetem e lembram divindades do panteão africano- brasileiro.
A Água identifica-se com o egé de Água Negra: é vigorosa e forte. Surpreendente e solenemente
ocupa os espaços. Além de banhar o mundo, banindo as impurezas, é fonte de vida, nutre e promove
a vida em sua plenitude e unidade, sem apartes entre o divino e o humano. Contudo, elas também se
diferem: enquanto a primeira alimenta o ventre onde habita os orisàs, a segunda morde as estruturas
e devora tudo. Assim se constrói na e com as diferenças e diversidades.
Construir identidades, neste ínterim, com rastros de repertórios culturais negros sao marcas de
poéticas e narrativas afrofemininas. Longe de estereótipos, estigmas e papeis que subjugam
histórias, culturas e personalidades negras, elas desfilam como uma política cultural de resistencia
e de constituição de outros olhares e dizeres sobre esses. Assim se recontam histórias e mitos
africanos e afro-brasileiros, forjam-se versos em que se cantam e (re)apresentam fios identitários
que promovam o auto-reconhecimento, uma valoração positiva de corpos e patrimonios culturais
negros.
A escritora Fátima Trinchão, em Zumbi de Palmares, utiliza a linguagem literária para reverter um
passado histórico, marcado pela escravidão e subalternidade, e desenhar um presente com traços
de lutas, resistencias, autonomia, liberdade, emancipação e conquistas.
Está de pé, alerta,
posição de sentido, verdade!
Brandindo no espaço a espada,
Instrumento compasso, preciso, sagrado.
Mirando o alvo maior: liberdade.
Zumbi vive!
Zumbi vive em cada rosto de um povo livre,
Em cada riso, em cada parte.
Por vezes, muitas vezes, humanas
Insensatezes curvaram as palmeiras ao redor de Palmares,
Mas Palmares não se curvou
Tambores soaram chamando à luta.
Palmares vive! [...]
Palmares vive em cada doce arrebol;
Palmares vive em cada raio de sol;
Palmares vive em cada gota de orvalho;
Na noite, que a cada estrela dá briho,
Palmares vive no suor e no trabalho;
Palmares vive,
Em cada dor de saudade
Palmares vive,
Em cada sim e em cada não;
Palmares vive no passo rítmico-cadenciado do ile aiye;
Palmares vive no penteado arte-afro das mulheres daqui;
Palmares vive em nós:
Em voce e em mim
Palmares vive! [...] (TRINCHÃO, 2010, p. 27)
Neste poema, entoa-se um canto ao Quilombo de Palamares e ao seu ilustre líder quilombola
Zumbi. A voz poética enaltece os ideiais palmarinos, tornando-os contemporâneos. A palavra literária
apresenta-se à disposição de um discurso em que traços identitários, que indiquem passividade
e submissão, sejam constestados e negociados (BHABHA, 2003) e se possibilitem adesão e
pertencimento, permitindo construções afirmativas de identidades negras e apagamento de vozes,
imagens e discursividades em que predominem significados depreciativos de africanidades e
afrobrasilidades.
Identidades indivíduais e coletivas são tecidas e, se necessário, destecidas, para que se afirmem
narrativas propositivas e provocadoras de exercícios de alteridades. Em busca do direito à diferença
e à vida em diversidade, a literatura afrofeminina, como parte da literatura brasileira, apresenta-se
comprometida com o banimento de estigmas, servilismo e de práticas que ameacem a liberdade
e com discursividades que exaltem, construam e reconheçam, positivamente, identidades negras.
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Em Autoestima, de Jocélia Fonseca, também uma voz apresenta-se bela, firme em seus propósitos e
decidida em defender-se de práticas de racismo e sexismo. Ao auto (re) apresentar, afirma seu corpo
também feminino e negro. Sua voz só aparenta ser individual e íntima; no mais profundo, expressa-
se coletiva. É, a um só tempo, singular e plural e, assim, desnuda-se.
A beleza que nos conduz para a luta
É a mesma que nos mantém no dia a dia
Como feras de presas saudáveis
A agarrar o que nos é direito.
Tomemos o lugar que é nosso
Que nos tomaram sem licença.
Minha licença agora,
Será apenas por uma questão de educação ancestral.
Mas olharei na tua cara, através dos teus olhos e direi:
Não mais conduzirás meus anseios, meu
amor, minha sorte!
Sou dona dos meus belos cachos,
Da minha pele cor de noite
E do meu nariz.
Esse nariz.
Esse nariz que não passa nos moldes que
Inventaram padrão.
Vá se chatear voce!
Quando me vir passar com um belo sorriso
Largo
Nos meus lábios largos.
Senhores opressores e preconceituosos da minha vida
Vá voce se inferiorizar!
Vá voce se deprimir!
Porque eu vou passar as ruas como se
Fossem passarelas,
A receber esta rainha negra! (FONSECA, 2012, p. 71)
Ao se despir, traveste-se de ousadia e resistencia para demarcar seus repertórios culturais e traços
fenotípicos que denotam sua origem étnico-racial. Contudo, esses não são lidos tão somente
como marcos biológicos. Em verdade, por eles e com eles são realizadas leituras, produzidas
inferencias e juízo de valor que geram eventos discriminatórios. A voz poética, em contraposição a
tais interpretações e ações, desfila nos versos tecendo fios identitários sinalizados e permeados de
reações e práticas antirracistas e antisexistas, determinação, consciencia e pertencimento étnico-
racial.
Assim a produção literária de mulheres negras agencia uma estética em favor da mobilização de
identidades fixas (HALL, 2000; 2006), estereótipos e de rígidos papeis sociais, auferidos às figuras
femininas negras, bem como de processos de desvalorização de universos culturais africanos e afro-
brasileiros. Apresenta-se, ainda, como uma oportunidade relevante de e pela palavra, em um tom
poético, mas denunciativo, se se fizer necessário, inscrever rastros (DERRIDA, 2004) identitários
afirmativos e jogos de resistencia
AINDA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A reflexão, aqui apresentada, possivelmente aponta alguns desafios que se desenham em percursos
de formação da identidade autoral de escritoras negras, posto que preconizar escrituras literárias
deslocadas de discursos, narratividades e representações fixos em relação às populações negras
diaspóricas, às civilizações africanas e às memórias e histórias africano-brasileiras é uma invenção
complexa e quase sempre tensionada. Construir uma autoria com esses traços também lhes exige
movimentar jogos de significações já impostos as suas obras, sem excluí-los ou colocá-los em
oposição, mas sob rasura, isto é, descentralizá-los com o reconhecimento de que um significado é
flutuante e, de modo imperceptível, pela linguagem, apóia-se e se transforma em outros.
Elas se instituem (e não nascem) escritoras por meio de um jogo de relações, que se concretiza
no devir, ora tenso, ora dialogado e negociado, distante de apelos e posições naturalizantes ou
vocacionais. Esse jogo, assim sendo, transita do ser para o se tornar e o devir, ou seja, compreende
a mobilização delas em migrar suas vozes silenciadas para escrituras autorizadas e instituídas,
provocando desestabilização de possíveis limites estabelecidos pelo cânone, bem como abalos em
seus critérios e prática de eleição, controle e valoração da palavra literária. Esse jogo, portanto,
consiste em promover movimentos de reversões de significações atribuídas as suas obras, na medida
em que a sua escritura, como encadeamento de rastros, é tecida em um jogo de referencialidades,
isto é, não se organiza a partir de uma suposta origem, de um significado transcendental, conforme
Derrida (2004), mas de múltiplas possibilidades de imputação de significados de seus mundos e
histórias, memórias e imaginação e de exercícios de suas tessituras.
Como vimos, a construção de identidades autoral, negra e de genero intersecionam-se na literatura
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afrofeminina. Nessa escritura, a um só tempo, rasuram-se e contestam sentidos que lhes são
atribuídos que pouco a reconhecem e promovem discursos que destinam uma valoração positiva de
marcas identitárias negras femininas.
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INTRODUZINDO O INTELECTUAL GAY (INTRODUCING THE GAY INTELLECTUAL)
Braulino Pereira de Santana34*
RESUMO
A proposta deste ensaio é discorrer sobre concepções, práticas, significados e identidades do
intelectual gay no universo do debate intelectual público brasileiro.
Palavras-chave: Intelectual. Intelectual Gay.
ABSTRACT
The purpose of this essay is to discuss concepts, practices, meanings and identities of gay intellectual
in universe of public intellectual debate in Brazil.
Keywords: Intellectual. Gay Intellectual.
Estamos novamente às voltas com os intelectuais, com o que eles fazem, quem são eles. É
como se estivéssemos sempre passeando por um campo minado, em dúvida constante a respeito
de como a atividade intelectual enfrenta a história, o que se configura como “atividade” de pessoas
ditas intelectuais, quais suas funções, e quais tipos de discurso se instituem como discursos
intelectuais, mas, sobretudo, sempre a desconfiar dos intelectuais. Dizemos assim, mas sabemos
o quanto já se pensou e se escreveu sobre isso: uma literatura vasta que apresenta classificações
estéticas, sociais, ideológicas e culturais sobre a figura do intelectual. Não vamos resenhar, nem
exaustivamente mapeá-las aqui, mas tres delas nos interessam mais de perto.
1) Intelectuais como uma profissão: “Especializado em reduzir idéias a frases curtas, o
intelectual se converteu em ‘mais um profissional’”. O modelo de intelectual aqui defendido talvez
seja um dos mais recentes. Esse fragmento foi recortado de um artigo de Luís Costa Lima, “Sob o
domínio da imagem”, publicado na Folha de São Paulo, em 2007. Costa Lima é nostálgico: “Quem
pesquisar as coleções dos jornais mais importantes do país verificará que os chamados suplementos
de cultura tem, cada vez mais, menos páginas e deixado de contar com muitos nomes que ainda há
pouco os freqüentavam”. A atividade intelectual parece ser exercida nos suplementos de cultura dos
34 Doutor em Linguistica pela UFBA
jornais, que, com “cada vez menos página”, teriam reduzido a participação dos intelectuais na mídia
escrita, e pelo que podemos deduzir, menos espaço, menos ideias a circular e mais frases curtas e
de efeito.
2) Há propostas, digamos, mais pragmáticas a respeito da atividade intelectual: observando
que “das funções principais dos intelectuais, senão a principal é a de escrever”, Bobbio (1997) não
acredita que culturas iletradas, ou outras formas de expressão do pensamento que não somente pela
língua escrita, não possam revelar atividade intelectual.
3) Num longo ensaio escrito no começo do anos 90, Said também se aventura no que ele
chamou de “Representações do intelectual”. Também elege “tipos de intelectuais relevantes”, que
são, “sobretudo dois: que denomino ideólogos e expertos”. Ele continua, dizendo que ideólogos
fornecem princípios-guia (valores, ideais, princípios) e os expertos, conhecimentos técnicos.
A proposta deste artigo parece um pouco mais “delicada”, sem duplo sentido, pois
pretendemos delinear algumas expressões dos que talvez venham a ser os últimos intelectuais
da história: os intelectuais gays, e tento acompanhar como essas expressões conseguem instituir
concepções, práticas, significados e identidades do intelectual gay no universo do debate intelectual
público brasileiro.
O intelectual gay necessita lidar com desejos secularmente estigmatizados como de segunda
classe, ao mesmo tempo em que necessita lidar com a coragem de vivenciá-los publicamente para
além de seu universo de vizinhos e amigos, e a expressão de sua vivencia pública como intelectual
gay nada mais é que a expressão pública de seus desejos e afetos, a sua própria vida se confunde
com a sua atividade intelectual.
Nesses termos, é uma voz que também “sai de um armário”, pois “assumir-se” intelectual
gay é uma espécie de outing. As funções dos intelectuais mais difundidas são, digamos, escrever,
escrever em suplementos de jornais, militância academica, ou fora da academia, atividade
“profissional”, participar de debates públicos, e vamos dizer que essas funções também compõem o
universo de atividades e filiações dos intelectuais gays. Mas há filiações mais “marginais”, no sentido
de estar à margem do modelo clássico à Said, Bobbio ou Costa Lima: a atividade intelectual não
é um registro exclusivo das sociedades letradas, com seus filtros vazados pela cultura escrita. Em
todas as sociedades na história, o trabalho que convém a quem escreve, assim como os objetivos-
alvo a ser alcançados pela escrita, também pode ser feito por quem não escreve, ou exercidos por
sociedades que nem escrita possuem. Se o trabalho de quem escreve é deslocar ideias de um
lugar para outro, levantar questões, enfrentar demandas sociais, postar-se como vanguarda, ou
usar a linguagem para determinados fins, como orientação, defesa de pontos de vista, formação e
manutenção de redes de relações sociais, quem não escreve também pode fazer a mesma coisa.
Se sociedades letradas industriais complexas criam personagens como psicanalistas e psicólogos,
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intelectuais, portanto, para investir em soluções para “problemas da alma”, sociedades ágrafas
não industriais, em contrapartida, também criam seus mecanismos intelectuais para investir em
soluções para problemas da alma: as mães de santo nos terreiros de candomblé, as rezadeiras
tradicionais, “curadores” e tantas outras personagens e atividades que são muito parecidas com
atividades e personagens tais como psicólogos e psicanalistas, para ficar num exemplo elementar.
A noção de intelectual aos moldes desses autores é oriunda de uma concepção beletrista
do fazer intelectual. Se pesquisadores das ciencias naturais, médicos e cientistas são autoridades
intelectuais diplomadas em instituições, as conhecedoras de ervas das zonas rurais são a
contrapartida popular para esse mesmo tipo de atividade, portanto intelectuais avant la lètre. E no
espaço onde circulam exercem um certo tipo de autoridade com seus rituais orais de conselhos e
de receitas.
Vamos admitir como atividade intelectual gay aqueles discursos de variados matizes,
tematizando identidades e práticas do universo homossexual, feita por homens e mulheres que,
ao mesmo tempo em que tematizam sobre isso, são identificados publicamente com a cultura
homossexual.
Vamos admitir, por duas razões, delineadas abaixo, que a atividade intelectual homossexual,
feita por homossexuais, no Brasil, pode ser dividida em duas fases: a primeira fase se inicia com o
surgimento, na cena intelectual brasileira, do escritor carioca João do Rio, no começo do século,
e a sua intervenção no debate público sobre o universo homossexual, assemelhando-se a uma
militância política; e vai até o final dos anos cinquenta, quando tem início a segunda fase, época
(1959) em que José Fábio Babosa da Silva publica, na revista Sociologia, da Fundação Escola de
Sociologia Política de São Paulo, um artigo intitulado “Aspectos sociológicos do homossexualismo
em São Paulo”. Com o trabalho academico desse sociólogo, rompe-se com a apropriação das
identidades homossexuais pelos discursos heterocentricos da psicologia, da medicina, da moral e
da justiça no meio academico. E os expoentes contemporâneos de maior destaque da cena atual são
o escritor João Silvério Trevisan, o escritor e professor universitário Denílson Lopes e o antropólogo
e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Luís Mott.
A figura do escritor João do Rio é um marco e emblemática daquele que talvez tenha
“inaugurado” aos moldes clássicos algo que poderíamos chamar hoje em dia de intelectual gay
brasileiro.
João Paulo Coelho Barreto, carioca nascido em Agosto de 1881, conhecido como João
do Rio, começou a sua carreira como jornalista aos dezesseis anos, e aos dezoito já fazia parte
da equipe de cronistas do jornal de maior tiragem e de maior circulação do Brasil no período, o
jornal Cidade do Rio. Foi um pioneiro nas técnicas de trabalho jornalístico que fazem escola até
hoje: percorrendo a cidade em busca de material para as suas histórias, entrevistando pessoas e
flagrando costumes, demandas e carencias sociais. As margens entre os generos cronicas, contos
e reportagens ainda eram meio obscuras no período, e João do Rio produzia textos fronteiriços entre
esses generos.
Entre janeiro e março de 1904, foram publicados na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro
artigos de João do Rio intitulados As religiões no Rio. Numa série de longas reportagens, o autor
faz um mapeamento das manifestações religiosas mais populares no Rio de Janeiro, abordando,
dentre outras questões, o tema do homossexualismo em terreiros de candomblé. Numa dessas
reportagens, Missa negra, João do Rio narra as investidas sexuais do mestre de cerimonia, que
comandava as atividades da missa, revelando a forma como a homossexualidade é concebida nos
terreiros, contrastando com visões judaico-cristãs sobre essa forma de amar. Não seria temerário
afirmar que a figura do babalorixá seja uma espécie de primeiro intelectual gay de que se tem notícia.
João do Rio enfrentou resistencia de grande parte da intelectualidade letrada da época, que
se manifestava publicamente de forma moralista contra a maneira de ele lidar com essa temática.
Green (2003) demonstra que os insultos e a resistencia partiam de figuras do estabilishment letrado,
como Machado de Assis e Monteiro Lobato. Lima Barreto escreveu uma série de artigos debochando
dos jeitos “afeminados” e pouco “afeitos à decencia” de João do Rio.
Só a partir do final dos anos cinquenta, com José Fábio da Silva, os homossexuais vão
começar a enfrentar de maneira sistematizada e articulada uma rede de intrigas e malversações
pseudo-científicas a respeito de suas identidades e de sua forma de amar. O próprio João do Rio foi
alvo de um estudo desse tipo em 1926. Escrito pelo psiquiatra Inaldo de Lira Neves-Manta, o estudo
pretendia associar o talento da escrita de João do Rio a seu excesso de sensibilidade “artístico-
afeminada”.
João do Rio teve uma vida relativamente curta, morreu em 1921, aos quarenta anos, deixando
um legado literário e artístico somente valorizado e recebido de maneira destituída de preconceitos a
partir dos anos setenta, quando explode o que hoje é conhecido como estudos sobre genero. Entre
as obras que escreveu, estão As religiões no Rio e A alma encantadora das ruas.
João do Rio é um marco por reunir prestígio literário, fama e uma incipiente militância em
torno de temas como homossexualidade e religiões de preto. A sua escrita é vazada numa linguagem
conhecida como decadentista, e o seu estilo, tanto dentro como fora das letras, é impregnado
de uma inventividade, tanto na criação de neologismos como em uma maneira de se portar e de
se vestir em público. Nas palavras de João Silvério Trevisan, “(...) o real é por ele captado numa
linguagem sinuosa, distorcida, defasada; e vertido ficcionalmente de uma maneira labiríntica, o
resultado é uma literatura em dissonância, a caminho do desvio”.
Desvio. Talvez essa seja a palavra ideal para uma verdadeira mudança de paradigma em
relação aos intelectuais homossexuais sobre homossexualidade, com o trabalho pioneiro e inovador
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de José Fábio Barbosa da Silva no final dos anos 1950.
Trata-se de uma pesquisa que estudou a comunidade gay paulistana nos anos 1950,
apresentada como monografia de especialização no curso de pós-graduação em Sociologia da USP,
orientada por Florestan Fernandes, e defendida numa banca composta por Fernando Henrique Cardoso
e pelo sociólogo Octavio Ianni. Essa pesquisa é praticamente a entrada do tema homossexualidade
no debate academico da sociologia brasileira, feita por um intelectual homossexual. Abriu um campo
de estudos a partir de um viés sociológico e academico.
O objetivo principal da pesquisa, apontado logo no prefácio do trabalho, foi a “análise do
homossexualismo masculino”, reconhecendo que, na maioria das sociedades contemporâneas,
estudos sobre homossexualidades, “na maior parte dos casos”, estabelecem “uma problemática
parcial, que, a nosso ver, só diminui as possibilidades de entendimento do fenômeno”.
O texto é dividido em sete capítulos, e versa sobre, dentre outros pontos, o estabelecimento
de uma metodologia científica a respeito do tema, a socialização do homossexual, aspectos da vida
homossexual, relações amorosas e afetivas, e aspectos socioeconomicos e de personalidade do
grupo estudado.
O trabalho é pioneiro e inovador em vários aspectos, dentre os quais, podemos destacar:
Sugere um verdadeiro outing do tema, e de um homossexual lidando com o tema, no até
então fechado e homofóbico mundo academico brasileiro.
Inova, pois retira das “mãos” das correntes pseudo-científicas da área da psicologia e da
psiquiatria vigentes então a autoridade para lidar com o fenomeno da homossexualidade.
Usa métodos das pesquisas sociais para lidar com o tema, além do que trata os homossexuais
como um grupo concorrendo e vivendo com outros grupos sociais, e não mais agora como um
subgrupo marginal.
Abre fronteiras até então inexploradas para a realidade brasileira sobre homossexualidade,
que já começavam a se firmar nos EUA e na Europa do período.
Associa o comportamento e as atitudes gays a formas de resistencia e coesão de grupo.
Contribui para que o tema seja tratado de uma forma científica e isenta de preconceitos.
Faz um estudo comparativo do comportamento e das atitudes gays em relação ao Rio de
Janeiro e São Paulo, argumentando que no Rio a vida dos homossexuais do período era muito mais
aberta.
É um primeiro e incipiente levantamento a respeito da violencia que se abate sobre a
comunidade gay, que mais tarde daria uma contribuição importante na criação de grupos pela luta
dos direitos humanos homossexuais, como o grupo Somos, nos anos setenta, e o GGB nos anos
oitenta.
José Fábio da Silva mora atualmente nos EUA, para onde se mudou ainda nos anos 1960,
fugindo das perseguições da ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1964, é professor
emérito da Universidade de Notre Dame nos EUA.
Oriundo da militância em torno dos direitos dos homossexuais, com passagens por
movimentos homossexuais nos EUA do final dos anos sessenta até meados dos anos setenta, o
escritor João Silvério Trevisan talvez seja hoje o mais proeminente dos intelectuais brasileiros gays
contemporâneos. Publicou em meados dos anos 1980 um monumental estudo histórico, “Devassos
no paraíso, a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade”, revisto, revisado e atualizado
em 2002.
O livro, um marco no Brasil, traça a trajetória da temática homoafetiva desde o Brasil colonia
e se impõe como obra de referencia que ultrapassa os limites do tema da homossexualidade para
pensar o Brasil como uma sociedade colonizada paternalista, autoritária, afeita ao silenciamento das
minorias.
Escrito aos moldes de “Casa Grande e Senzala”, com a articulação de uma série de
documentos, histórias, interpretações apaixonadas e sistematizadas, o livro demarca uma outra
fronteira, ao consolidar de uma vez os homossexuais como intelectuais que pensam a sociedade
brasileira por um viés particular: como intelectuais gays, de fato.
O trabalho faz uma reconstituição dos modos de pensar e de conceber a homossexualidade
na história do Brasil, demarcando o papel da Igreja, do Estado, da Justiça e de como as ciencias
academicas sempre lidaram com o tema, ao associar a homossexualidade a um desvio aberrante de
comportamento. Reconstitui também os pioneiros movimentos de resistencia, que se desencadearam
a partir de São Paulo, com a criação do primeiro jornal gay brasileiro, o jornal Lampião da Esquina,
até as avassaladoras paradas gays a partir de meados dos anos 1990.
Trevisan é um tipo clássico de intelectual aos moldes propostos por Said: postura de
amador diante das questões relacionadas à comunidade gay. Tem uma produção de autor de ficção
respeitada, assim como escreve esporadicamente para periódicos voltados ao público gay.
Durante o período que data do surgimento na cena intelectual de João do Rio, passando por
José Fábio, desembocando na militância e na produção academica de Luís Mott, e nos trabalhos de
Denílson Lopes e João Silvério Trevisan, mudou-se a maneira como as relações homoeróticas eram
percebidas pelos seus sujeitos e pela sociedade.
Os intelectuais gays surgem no cenário do debate público como intelectuais realizando
um movimento que ultrapassa os limites de intelectuais gays pensando a homossexualidade para
intelectuais gays pensando o Brasil, a partir de suas experiencias homoeróticas, academicas e
militantes.
A qualidade da produção dos intelectuais gays brasileiros associa uma vivencia homossexual,
individual e íntima, a seu papel social como intelectuais na sociedade. O levantamento de dados
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de origens as mais diversas, de teses médicas a publicações humorísticas e pornográficas, não
deixando de fora letras de músicas de Carnaval ou palavras de ordem de manifestações de rua,
compõe um vasto painel das preocupações dos intelectuais gays brasileiros na contemporaneidade,
que hoje elastece a temática intelectual a partir de um termo herdado da comunidade gay americana:
a cultura queer. A cultura queer descreve gestos ou modelos analíticos que dramatizam as vivencias,
incoerencias e filiações dos gays na modernidade.
Como indivíduos relacionados a um modo particular de pensar a sociedade, os intelectuais
gays tem saído do seu armário cultural particular e ganhado visibilidade na sociedade brasileira.
Em jogo, o que temos é a formação da moderna identidade homossexual, resgatando a diversidade
das práticas homossexuais e das identidades sociais construídas. Os intelectuais gays brasileiros
modernos abrem um amplo espectro temático no debate público.
Tem havido a denúncia do golpe da virilidade e das formas de pensar a homossexualidade a
partir do olhar homocentrado sobre a homoafetividade, que começou a ser vista a partir de um olhar
gay sobre gays.
Diferentes espaços foram sendo invadidos e é como se a homossexualidade dos intelectuais
gays começasse a se apropriar das formas de inserção, reprodução e circulação do saber
homossexual sobre os vários campos de atuação e conhecimento da sociedade brasileira. Assim,
os homossexuais se aproveitam da ambiguidade proporcionada pela sua posição e pelo seu papel
na sociedade para desconstruir uma maneira de ser visto de forma secular. O que havia começado
como uma invasão homossexual de espaços decididamente heterossexuais, como os espaços
academicos, torna-se então um aspecto emblemático de uma maneira de pensar a sociedade
brasileira.
Em suas reflexões sobre a formação das várias identidades sociais construídas em torno
das vivencias homossexuais, a linguagem e as formas usadas em diferentes momentos e contextos
sociais para descrever as relações eróticas masculinas são alvo constante desses intelectuais, vide
o trabalho de Denílson Lopes.
Ao concluir, registramos a intenção de observar como identidades intelectuais gays
masculinas foram sendo erigidas na sociedade brasileira, tendo como ponto de partida a figura
emblemática de João do Rio e os atuais movimentos homossexuais de massa, construídos num
trabalho que alia militância política ao trabalho intelectual feito por e para homossexuais.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo, UNESP, 1997.
GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
COSTA LIMA , Luiz . Sob o domínio da imagem. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 mai. 2007, p. 8.
LOPES, Denílson. O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007
SAID, Edward W. Representações do intelectual - As Conferencias Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. Editora Companhia das Letras, 2005
SILVA, José Fábio Babosa. Aspectos Sociológicos do Homossexualismo em São Paulo. Sociologia 21. Número 4, outubro de 1959.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2000.
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DA OBRIGATORIEDADE DA PROVA DE HABILIDADE ESPECÍFICA EM PROCESSOS SELETIVOS PARA CURSOS DE DESIGN: ELEMENTOS PARA A REFLEXÃO DA CRISE DE IDENTIDADE DO DESIGN (ON THE REQUIREMENT OF TEST OF SPECIFIC ABILITY IN SELECTION PROCESSES
FOR DESIGN COURSES: ELEMENTS FOR A REFLECTION OF THE CRISIS OF DESIGN IDENTITY)
Serafim da Silva Nossa Junior35*
RESUMO
Mediante a análise de alguns argumentos que buscam sustentar a necessidade de aplicação de
provas de habilidade específica em processos seletivos para cursos de design, levantamos, neste
nosso texto, algumas questões e argumentos que permitem pensar tal ideia de necessidade como
requisito artificial, senão ideológico. Ao cabo do texto, indicaremos que a existencia de provas de
habilidade constitui, em nossa opinião, um importante indício material de uma questão conceitual
maior: a crise de identidade do design.
Palavras-chave: Design. Arte. Crise de Identidade. Prova de habilidade específica.
ABSTRACT
Through the analysis of some arguments that seek to sustain the necessity of application of specific
ability tests for the selection process design courses, we raise, this our text, some questions and
arguments for considering this idea of necessity as requirement artificial and ideological. At the end
of the text, which will indicate the existence of evidence of skill is, in our opinion, an important clue
material from a larger conceptual issue: the crisis of design identity.
Keywords: Design. Art. Crise of Identity. Test of specific ability.
35 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA
O rabisco não é nada, o risco – o traço – é
tudo. O risco tem carga, é desenho com
determinada intenção – é o “design”. [...]
Trêmulo ou firme, esta carga é o que importa.
Lucio Costa
I
Para Lucio Costa (1940), o desenho deveria ser reconhecido enquanto disciplina fundamental
e propedeutica, na mesma medida em que seriam reconhecidas a matemática, os estudos da língua
portuguesa e os demais componentes que compõem o currículo mínimo do ensino, sobretudo da
educação básica. Para ele, ainda que seja evidente que alguns alunos manifestem maior habilidade
com o lápis em punho do que outros, e que alguns outros tantos tenham grande dificuldade em
representar bidimensionalmente, e à mão livre, objetos e idéias – mesmo as mais elementares –,
todos os alunos deveriam ser iniciados nos fundamentos e técnicas, ao menos as mais triviais, do
desenho geométrico e artístico. Sendo assim, o objetivo do ensino do desenho, em sua opinião,
consistiria em não só beneficiar, principalmente,
os mais dotados. [...] é, também permitir que, ao terminarem o curso [os
alunos], indistintamente, tenham, senão a perfeita consciencia, – o que só
a experiencia, depois, poderá trazer –, ao menos noção suficientemente
clara do que venha a ser uma obra de arte plástica, não como simples
cópia, mais ou menos imperfeita, da natureza, mas como criação à parte,
autonoma, que dispõe dos elementos naturais livremente e os recria a seu
modo e de acordo com suas próprias leis (COSTA, 1940, p. 02).
Nessa medida, seria possível para qualquer aluno, ainda que não manifeste a devida vocação,
dom ou habilidade para o desenho, ter plena noção de sua importância, enquanto ferramenta de
comunicação cotidiana (KOELLREUTTER, 1999, p.256); assim como poderia ele expressar-se,
razoavelmente, através dessa linguagem e, desse modo, em sentido estrito, se fazer desenhista ou
designer – aquele que risca ou traça. É neste exato ponto que logo podemos compreender a dimensão
propedeutica do desenho, realçada por Lucio Costa: os desenhos geométrico e artístico36 devem
36 Na verdade, Lucio Costa distingue as seguintes modalidades do desenho: técnico, de observação, de ilustração, de ornamentação e de criação.
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ser assimilados, ainda que em suas noções mais elementares, pois integram o rol de linguagens
corriqueiramente mobilizadas pelo aluno ante a necessidade de resposta frente a um problema da
vida ou do trabalho como, por exemplo, faz um simples cálculo matemático ou a redação de um
breve recado. Desenhar um mapa rudimentar, representar a disposição dos móveis arrumados em
um determinado ambiente, ou ainda desenhar as posições iniciais de veículos que se envolveram em
um acidente de trânsito, consistem ocasiões em que o desenho permite a representação de objetos
e a expressão de idéias, por vezes, de difícil verbalização.
Para além de visar desenvolver “o hábito da observação, o espírito da análise, o gosto
pela precisão”, o desenho forneceria, aos alunos em geral, meios para tradução de suas idéias,
predispondo-os “para tarefas da vida prática” e também “uma melhor compreensão do mundo das
formas que nos cerca, do que resultará necessariamente, uma identificação maior com ele” (1940,
p. 02). Desse modo, o aprendizado do desenho cumpriria a importante função de
reavivar por fim a imaginação, o dom de criar37, o lirismo próprios da
infância, qualidades, geralmente amortecidas quando se ingressa no
curso secundário, e isto, tanto devido à orientação defeituosa do ensino do
desenho no curso primário, como devido mesmo à crise da idade, porque,
então, esses novos adolescentes, atormentados pelas críticas inoportunas
e inábeis dos mais velhos, já perderam a confiança neles mesmos e naquele
seu mundo imaginário onde tudo era possível e tinha explicação: sentem-se
inseguros, acham os desenhos que fazem ridículos, tem medo de “errar”
(COSTA, p. 02).
II
Considerando que (I) a expressão artística é senão algo que todos nós podemos produzir
(OSTROWER, 1977), mesmo para aqueles que não manifestam o que, de circunstância, chamamos
de dom ou vocação artística; e (II) levando-se em conta que a expressão própria do desenho é
puro manifesto ou conseqüencia de uma intenção ou desígnio que todo indivíduo pode experenciar,
em que medida ou sob quais condições podemos afirmar que certo indivíduo pode não alcançar,
ainda que sob tutoria e devidamente instruído, patamares razoáveis de expressão nesta arte? Em
outras palavras, se um indivíduo compreende a natureza e a finalidade de uma determinada arte ou
37 Aqui, para nós, a idéia de dom é mobilizada, pelo autor, como imanencia, sendo por tanto um traço natural e comum a todo e qualquer indivíduo, não necessariamente presente entre aqueles que pareçam possuir uma habilidade extraordinária que, corriqueiramente, e sem muito rigor, chamamos dom ou vocação.
das artes em geral, domina satisfatoriamente seus signos e seu código, ao passo que também se
expressa por meio dele, não seria ele capaz, com independencia da qualidade do seu traço, produzir
algo genuinamente artístico? Se a arte – sua produção – senão define o próprio homem enquanto
ser criativo e o distingue dos outros animais (OSTROWER, idem), sob uso de quais argumentos
podemos, de alguma sorte, dizer que este ou aquele sujeito – de acordo com critérios de fundo
culturais e de valores, o que é importante salientar – não se expressa adequadamente através daquilo
que dá sentido à sua própria condição, portanto o define e o constitui?
É nesse sentido que este nosso ensaio busca então advogar em causa da seguinte tese:
ainda que sejamos nós distintos, seja por conformações diversas da carne ou distinções da alma;
ainda que portemos vocações, dons ou habilidades diversas, todo e qualquer indivíduo pode, a
seu modo, desenvolver sua vocação artística, sendo tal possibilidade suficiente para justificar seu
acesso e livre trânsito mesmo em cursos que requeiram o porte de habilidades refinadas e num certo
grau de desenvolvimento, senão sofisticados conhecimentos do desenho e das artes de modo geral.
Em outros termos, sendo o desenho a realização material de uma intenção – causa – e a expressão
artística algo que constitui nossa própria condição de sujeito da produção, da inventividade, e sendo
possível fomentar, no sujeito, tais propensões, como poderíamos privar um de nós da emancipação
de suas faculdades naturais, ao dispor do uso de testes que visam identificar a presença de
determinada habilidade; habilidade que, em verdade, todos nós naturalmente portamos?
Se é verdade que portamos tais habilidades em maior ou menor grau de desenvolvimento, não
seria razoável também afirmar que tal sofisticação pode ser fomentada pela cultura e por estímulos
de ordem social? Se a vida ou a sorte de bem nascer acompanha um determinado indivíduo,
permitindo que ele tenha acesso a uma educação qualificada e erudita, e assim suas habilidades
se emancipam mais que as de outros, não seria correto afirmar que aqueles menos agraciados ou
de menor poder de compra, partem em condição de desigualdade ao se submeterem a provas que
mensuram, invariavelmente, o desenvolvimento e a sofisticação de uma habilidade que, em muitos
casos, é determinada pelo ambiente sócio-economico em que vive o indivíduo?
III
Analisemos tais questões, agora, sob ângulo diverso. Parece desejável que os alunos,
que ingressam em cursos de design, sejam razoáveis conhecedores da representação fidedigna e
também dos meios que levam à representação – ou expressão – da extrapolação formal do objeto
que nos serve de modelo. Sendo assim, são comumente aplicadas provas que logo permitem aferir
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a habilidade de retratar fielmente as formas do objeto, a luz que incide sobre ele, as relações entre
o claro e o escuro em seu contexto, sua proporção com o espaço ocupado; por outro lado, é
medido também a capacidade que o indivíduo tem de extrapolar o que percebe, acrescentando,
à representação, elementos novos, reconfigurando o objeto, desvirtuando-o, recriando-o sob
motivação de um tema, música ou mesmo de um estímulo poético. Sendo tais as condições mais
gerais de aplicação e avaliação das provas de habilidade específica em vestibulares para cursos
de design, não seria adequado observar que os critérios mobilizados para avaliação, bem como
a escolha do objeto, a ser mote para a prova, poderiam, de algum modo, ser motivados por uma
compreensão particular da arte – juízos de valor – que consolidariam certa idéia do que seja a
técnica e a estética necessárias para a boa representação e expressão do artístico?
Acreditamos que esta nossa pergunta seja importante na medida em que, caso coloquemos
em revista a história da arte, notaremos que os critérios técnicos e estéticos que opõem o artístico
ao não-artístico mais estariam sujeitos há uma visão de mundo particular e histórica do que sejam
tais critérios modelados à luz de uma idéia universal do que seja a arte e dos caminhos que levam à
sua produção. Desse modo, o aluno que se submete à provas de habilidade específica, em verdade,
deve exibir uma técnica e expressar uma estética capaz de satisfazer as expectativas do corpo
julgador; expectativas que, no fundo, mais pendem para juízos de valor particulares do que para o
julgamento pautado na liberdade de expressão artística em suas mais diversas escolas e estéticas,
desde as mais elementares e pueris até as de técnica considerada mais elevada. Por “pueris” e
“elementares”, ora tem-se em mente os desenhos infantis de Miró, as realidades fragmentadas do
cubismo de Picasso, os vários abstracionismos pintados por Kandinsky, Mondrian, Pollock e muitos
outros.
Se o artista é aquele que não só ve o campo visual como também aquele que ve seu próprio
olho; se o artista é aquele que, de golpe, pode transcender a percepção ordinária e tomar consciencia
ou intuir a real essencia das coisas; e se pode também ele transgredir as formas aparentes das
coisas e representar suas essencias em suas reais cores e mazelas, não seria o resultado de sua
produção por vezes a antítese da realidade que o vulgo percebe? Tal capacidade, que comumente
se atribui ao artista, poderia ser medida nas provas em questão? Sua renúncia frente ao que vela o
real sentido da vida, expressa em uma arte negativa, rebelde, inexata, desproporcional e vertiginosa,
seria compreendida ou “decodificada”? Ou mais além: poderia ser ela aceita como resposta possível
e adequada às provas de habilidade específica?
Há quem diga que a prova de desenho de expressão, uma das etapas que usualmente
compõem o teste de habilidade específica, permitiria ao candidato transcender formalmente o
modelo em questão, representando-o de sorte outra ou reconfigurado. Em tais circunstâncias, o
aluno daria vazão à sua vontade de transgredir o real, manifestaria sua predileção pelas formas
soltas e desregradas e, assim, ao encontrar expediente favorável, expressaria livremente sua vocação
ou habilidade. Pelo menos em parte, não concordarmos com tal opinião. Mesmo o desenho de
expressão se mantém fixado e sujeito a certos limites do aceitável em termos de desconstrução
do objeto representado. Desse modo, uma arte que seja adepta a um desconstrucionismo formal
intenso e radical – que beirasse o sintetismo absoluto, por exemplo – passaria ao largo de tais limites
– ou, de novo, expectativas – do corpo julgador. No caso de uma sintetização radical, tanto da forma
como da semântica do objeto, reduzindo-o a duas ou tres retas – traços – em simples preto sobre o
branco, certamente ultrapassaria os limites do aceitável do que se entende por extrapolação formal
ou transcendencia do sentido.
Se a arte é uma atitude singular frente à vida e também uma atitude muito particular do
artista, o candidato que desenharia simples e “pueris” linhas e curvas, desconexas e primárias,
diante de vasos barrocos e garrafas transparentes, não seria ele também apto ao curso de design?
Esta atitude de contestação dos valores da sociedade e do próprio real, sendo fortemente desejável
e encorajada no artista, senão o traço de distinção e definição de seu estatuto e condição, poderia
ser aferida com a devida importância? Ou ainda, para ser mais preciso, sua atitude frente à vida seria
finamente entendida e valorizada? Tal indivíduo não seria, em sentido estrito, o mais puro artista, a
saber: o sujeito da revolução e do extraordinário?
IV
Gostaríamos de passar ao exame de outro argumento, bastante comum quando se defende
que o aluno de design deve portar certas habilidades específicas para bem atender às exigencias de
sua profissão. Aqui, tentaremos mostrar que tal argumento se ampara, em verdade, em uma visão
romântica da produção artística, segundo a qual o artista ou projetista deve ensaiar sua criação
em rascunhos ou ensaios de formas e cores, de preferencia, sobre um cavalete ou uma prancheta.
Segundo este argumento, ainda que estejamos em plena era dos processos informatizados, o artista
– e, em nosso caso específico, o aluno de design – deve poder prescindir do uso da máquina
computacional, quando talvez em sua falta, para bem representar seja uma idéia inicial ou ainda fazer
uso do desenho ou pintura como rendering, por exemplo. Tais conhecimentos técnicos – por exemplo,
o uso de compasso, curvas francesas, aquarelas, carvão, nanquim e outras tecnologias – são por
certo relevantes e legítimas, entretanto, a nosso ver, eles constituem apenas possibilidades dentre
as muitas formas de conceber e representar um produto ou obra – que incluem ainda computador
como recurso mais recente.
136 137
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Não obstante saibamos a importância do uso do papel, do lápis, das tintas e outros materiais
para diversas técnicas de criação e representação, a profissão do designer, atualmente, já comporta
atividades que sequer solicitam um simples traço ou esboço no papel para que sejam realizadas.
É o caso, por exemplo, da atuação do designer enquanto gestor da produção ou da inovação. No
primeiro caso, o designer lida com a infraestrutura para a produção em manufaturas ou produção
fabril, sendo necessário que este tenha ampla noção dos sistemas de fabrico, desde a entrada
dos insumos, passando pelos processos vários de fabricação, até mesmo o acondicionamento e a
distribuição da produção. O desenho parece não ser recurso ou habilidade específica para o bom
desempenho desta função, bastando, para exerce-la, habilidades de outra ordem como a clarividencia
em relação ao funcionamento de sistemas, que por sua vez são atravessados por outros sistemas de
natureza secundária, como é comum nas linhas de produção.
Além de atuar como gestor da produção, o designer pode, atualmente, ainda exercer a
função de consultor ou gestor da inovação. Tal atividade, muito valorizada hoje em dia, ampliou o
campo de atuação do designer e também mudou o modo como sua atividade, via de regra, era então
exercida. O designer que lida com inovação compreende o mercado, o funcionamento do setor fabril
e de serviços, tem uma visão empresarial dos muitos negócios e atividades da sociedade comercial
e industrial. Tal profissional tem à sua frente problemas de produção, sejam as próprias linhas de
produção, seja um problema ligado a um produto específico, e busca, para eles, soluções inovadoras
e, se possível, a criação de novas necessidades – não quero aqui discutir se tais necessidades são
postiças ou naturais – materializadas em novos produtos disponíveis para consumo. A gestão da
inovação como atividade do designer coincide, portanto, com aquela dimensão já conhecida do
desenho industrial muitas vezes reforçada pelos docentes: o design segue um importante diferencial
na produção de bens de consumo.
Nos dois casos, o designer pode atuar prescindindo da técnica, seja elementar ou apurada,
do desenho. Seus objetos de projetação são sistemas e idéias que tenham em si o componente da
inovação. Tal designer lida eminentemente com conceitos e relações, não com este ou aquele tipo
de lápis ou tinta, não com aquele ou este software de modelagem ou pintura específico. Tabelas e
softwares voltados para a gestão da produção são seus recursos, são suas ferramentas de trabalho.
Nesse sentido, pouco importa que este profissional seja aprovado em um exame de habilidade
específica voltado para as artes plásticas, mas é importante, senão muito grave, que este indivíduo
seja privado de cursar a graduação mais adequada à sua habilidade singular.
Atualmente, as provas de habilidade específica não aprovam tal candidato. Não aprovam,
pois não são pensadas à luz dos novos setores de atuação do designer; são pensadas de acordo
com certo romantismo ou passadismo que ainda prevalece, sobretudo entre aqueles docentes,
profissionais e formadores de opinião que ainda buscam, a todo custo, manter a atualidade e a
eficácia de seus conhecimentos. Tais conhecimentos, é claro, se fazem mais do que importantes,
entretanto uma visão nostálgica ou passadista do design não deve se interpor ante o reconhecimento
de novas áreas de atuação e o aproveitamento de novos talentos e habilidades. As regras ou réguas
atuais, se apostas sobre tal candidato, sequer conseguiriam diferenciá-lo ou, mais além, avaliar, com
critérios extra-usuais, seu brilhantismo e sua promessa.
V
Se tudo que levantamos aponta para uma ineficácia da prova de habilidade específica para a
seleção de indivíduos aptos para bem compreender os conteúdos dos componentes curriculares, dar
conta das atividades e avaliações do curso e, no futuro, poderem atender às demandas da profissão,
parece existir ainda um problema maior, a saber: uma inexatidão ou mesmo uma compreensão
parcial do que seja afinal o objeto – de estudo e pesquisa – do design; mais além, uma falta de
discernimento no tocante ao estatuto do design enquanto atividade: se científico ou se artístico.
Parece-nos que se o design é entendido mais como arte do que como uma ciencia, é natural
que as provas de habilidade específica exijam habilidades de fundo artístico ou uma espécie de
intuição particular, assim como nos parece claro que se o design for essencialmente uma atividade
de natureza científica, toda resposta estética será resultado de medidas e previsões através das quais
se busca obter um maior controle sobre o objeto projetado. Se por uma terceira via, definimos o
design como algo que se funda e se resolve no limite epistemológico entre as artes e as ciencias, os
conceitos de design carecem então de maiores reflexões, uma vez que situar-se tanto aqui como lá,
ficando pés ao mesmo tempo em campos que operam de modos diferentes, que tem preocupações
diametralmente opostas, soa, no mínimo, extravagante. Caso seja o design uma ciencia, embora se
ressalve que seja social e aplicada, sua matriz científica ainda opera como importante mecanismo
limitador de sua atividade – não que isso seja bom ou ruim, mas apenas circunscreve o design
em um âmbito particular – impedindo que, no design, por exemplo, a criação seja regida por
propostas estritamente pessoais, motivadas por questões de foro privado do artista ou designer,
sem necessariamente haver uma propensão clara de comunicação entre a significação da obra e
seus expectadores ou consumidores.
De modo diferente, se o design é arte, que sejam aceitas também as obras de artes plásticas
como espécimes de sua produção uma vez que, como nos alertara Koellreutter, a peça de arte
também visa comunicar-se com seu expectador, visa o cumprimento de funções pragmáticas na
sociedade. Nesses termos, a arte contribuiria decisivamente para “a tomada de consciencia do novo,
ou do desconhecido” (KOELLREUTTER, 1999, pp.251-260). Apesar do cumprimento de funções
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tanto pragmáticas quanto estéticas – lembremo-nos do exemplo da Capela Sistina, mencionado
por Dondis (1991, p. 10) – muitos se empenham em diferenciar radicalmente arte e design. A
linha divisória seria traçada mediante a idéia de que se a criação própria da atividade do design
é co-gestada por necessidades de mercado; a arte, dada sua imanente liberdade de código e de
mensagem, não poderia coincidir com um regime de criação limitado por exigencias mercantis.
Se, por outro lado, o design não é arte – pois, essencialmente, uma ciencia –, seus produtos
devem cega obediencia às exigencias da sociedade de consumo, sendo suas propostas de inovação
estritamente voltadas ao azeitamento da máquina do comércio, criando assim novas necessidades
e resolvendo problemas que atormentam o dia-dia da população. Nesse último sentido, o designer
não teria muito a contribuir para a tomada de consciencia do novo, negando-se à tarefa de crítica
da sociedade e do comportamento, qualidades distintivas – acredita-se – da produção própria das
belas-artes.
Por fim, eis que nos sobra duas questões de difícil solução: o estatuto do design e a natureza
do seu objeto. É claro que este ensaio não se prestará a alongar tal reflexão, entretanto, apenas
gostaríamos de ressaltar como a falta de precisão ou confusão acerca do que seja, enfim, o design
tem afetado seu ensino e, sendo o que nos interessa momentaneamente, tem ajudado a sustentar,
como efeito colateral, a necessidade de se impor provas de habilidade específica aos candidatos que
se inscrevem em processos de seleção para cursos de design. Ademais, pensamos que ainda outros
pontos poderiam ser levantados para a discussão da validade de exames dessa natureza, argumentos
que exigiriam um ensaio maior e a exploração de temas, sobretudo, ligados à antropologia. Talvez
a trilha aberta pelo exame da história do homem possa, afinal, nos ajudar na custosa definição da
natureza do objeto do design e também do estatuto ocupado por sua atividade.
REFERÊNCIAS
COSTA, Lucio. O ensino do desenho: Programa para a reformulação do ensino de desenho no curso
secundário, 1940. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ip000001.
pdf>. Acesso em 10 jun. 2013.
DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Sobre o valor e o desvalor da obra de arte. Estudos Avançados,
vol.13, n.37, 1999, pp.251-260.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.