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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ADILMA NUNES ROCHA
O TEXTO MACHADIANO
NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE CONTOS E REQUADROS.
Salvador
2012
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ADILMA NUNES ROCHA
O TEXTO MACHADIANO
NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE CONTOS E REQUADROS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da
Linha de Pesquisa I – Leitura, Literatura e
Identidades, como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela
Universidade do Estado da Bahia.
Orientador: Professor Dr. Carlos Augusto Magalhães
Salvador
2012
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FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Rocha, Adilma Nunes
O texto machadiano no trânsito dos objetos culturais na contemporaneidade: entre contos e
requadros San/ Adilma Nunes Rocha . - Salvador, 2012.
213f.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens. Campus I. 2012.
Contém referências.
1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura brasileira - História e crítica. 3. Cultura. 4.
Semiótica. 5. Histórias em quadrinhos. I. Magalhães, Carlos Augusto. II.Universidade do Estado da
Bahia, Departamento de Ciências Humanas .
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ADILMA NUNES ROCHA
O TEXTO MACHADIANO
NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE CONTOS E REQUADROS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito
da Linha de Pesquisa I – Leitura, Literatura e Identidades, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela Universidade do Estado da Bahia,
perante a banca examinadora composta pelos professores:
_____________________________________________________________________________________
Prof.º Dr. Carlos Augusto Magalhães - Orientador
Universidade do Estado da Bahia
_____________________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva
Universidade do Estado da Bahia
_____________________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Nancy Rita Vieira
Universidade Federal da Bahia
Salvador
2012
5
“Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes momentos de um mesmo dia, num
caso, buscando uma excitação de um tipo altamente especializada, no outro, uma forma
de entretenimento capaz de veicular uma categoria de valores específica.”
(ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 2008, p.58.)
“E onde esse sensorium se faz social e culturamente visível hoje é no entretempo dos
jovens, cujas enormes dificuldades de conversa com as outras gerações apontam para
tudo o que na mudança geracional há de mutação cultural.”
(MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo: tra-
vessias latino-americanas da comunicação na cultura,
2004, p.37.)
6
Dedico este trabalho
às minhas filhas
Aieska Rocha Assis, Nikole Rocha Assis e Bianka Rocha Assis;
ao esposo companheiro Otávio de Jesus Assis;
aos sobrinhos Matheus, André, Pietra, Geovane, Gabriel, Amanda e Heitor;
aos meus pais, Tuninho e Irene
e irmãos Karla, Arylene, Tone, Alex, Aldo , Adilson e Adailton –
alteridades que me completam
e me fazem acreditar na luta para que os sonhos e objetivos se realizem.
E a todos os meus alunos de ontem, de hoje e de sempre, partícipes das minhas aprendizagens.
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AGRADECIMENTOS
Neste mundo amplo,
ao mesmo tempo, próximo e distante,
no qual lutamos para representar
nossos sentimentos e eventos, sonhos e desejos
pelo frágil instrumento que é o signo,
vale tentar registrar
que nem tudo ele consegue abarcar.
Um exemplo desta indócil situação,
é a palavra AGRADECIMENTO.
Não cabe na palavra agradecimento,
a energia de Deus em nossas ações.
Não cabe na palavra agradecimento
a falta, a tristeza, a paciência vividas por Aieska, Nikole e Bianka.
Não cabe na palavra agradecimento,
o apoio, a cumplicidade de Otávio.
Não cabe na palavra agradecimento
a atenção do meu orientador Carlos Magalhães.
Não cabe na palavra agradecimento
o cuidado e a atenção de Karla para comigo e para com minhas filhas.
Não cabe na palavra agradecimento
a energia positiva dos meus pais e de minha sogra.
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Não cabe na palavra agradecimento
o encorajamento de Arylene, o desejo de meu êxito sempre renovado no olhar de Tone,
Alex, Aldo, Adilson e Adailton.
Não cabe na palavra agradecimento
o incentivo de Sayonara, Izabel, Arlete e Jussy, estímulo sempre renovado na pergunta
E como está lá? e na afirmativa Tudo vai dar certo.
Não cabe na palavra agradecimento
os variados momentos de aprendizagem propiciados pela turma de mestrando de 2008.
Não cabe na palavra agradecimento
a dedicação dos professores do PPGEL.
Não cabe na palavra agradecimento
a constante disposição em atender com um sorriso estampado no rosto e o
profissionalismo de Camila e Danilo.
Apesar desta incompletude do signo em relação ao evento,
agradeço de coração:
todo esse encontro e experiências de alteridades propiciadas,
toda alegria vivenciada,
todos as descobertas realizadas,
algumas decepções vividas,
o cansaço acumulado,
a sensação de esvaziamento para buscar mais conhecimento,
e a sempre presentes vontade e prazer de aprender sempre mais.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1, 3, 4 5, 6 – ALENCAR, José de. Ubirajara. Adaptação e desenhos André Le
Blanc; capa Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1976.
Figura 2,7,8 ,9, 10, 11, 12 – MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. Desenhos
do texto e capa Gutemberg Monteiro. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1976.
Figura 13, 14 – CAMÕES. Os Lusíadas. Adaptação, arte e capa Fido Nesti. São Paulo:
Peirópolis, 2006.
Figura 15, 16 – QUEIROZ, Eça de. A relíquia. Ilustrações Marcatti. São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2007.
Figura 17, 18 – SIMMONDS, Posy. Gemma Bovery. Tradução Ludimila Hashimoto.
São Paulo: Conrad Editora, 2006.
Figura 19 e 20 – HOSSEINI, Khaled. O caçador de pipas. Adaptação de: The kite
runner; ilustrado por Fábio Celoni e Mirka Andolfo; Tradução de Maria Helena
Rouanet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Figura 21 – SOUZA, Marcio. Galvez, o imperador do Acre. Roteiro de Miguel Ipiriba
e imagens de Domingos Demasi. Belém: Secretaria de Cultura do Pará, 2004.
Figura 22 – BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês. Roteiro, desenhos
Francisco S. Vilachã; cor Fernando A. Rodrigues e Francisco S. Vilachã. São Paulo:
Escala Educacional, 2006.
Figura 24 – MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina em quadrinhos.
Recife: Fundaj. Ed. Massagana, 2005.
Figura 25 – MACEDO, Joaquim Manuel de. A luneta mágica. Roteiro de Patari:
desenhos de Marcio de Castro. 1. Ed. São Paulo: Panda Books, 2009.
Figura 26 – GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Roteiro de Ivan Jaf; arte de
Guazzelli. São Paulo: Ática, 2010.
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Figura 27 – ALENCAR, José de. O guarani. Adaptação e roteiro Ivan Jaf; roteiro e
desenhos Luiz Gê. São Paulo: Ática, 2009.
Figura 28, 29 – ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de
milícias Roteiro Ivan Jaf; ilustrações Rodrigo Rosa. São Paulo: Ática, 2010.
Figuras 30, 31 – ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um Sargento de
milícias adaptação, roteiro e desenhos de Lailson de Holanda Cavalcante. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2008.
Figura 32, 34, 35 – AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Roteiro Ivan Jaf; ilustrações
Rodrigo Rosa. São Paulo: Ática, 2009.
Figura 33, 36, 37 – AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Roteiro e adaptação Ronaldo
Antonelli; desenhos Francisco S. Vilachã; cores Fernando A. Rodrigues. São Paulo:
Escala Educacional, 2007.
Figura 38, 39 – LOBATO, Monteiro. O minotauro. Roteiro Stil. São Paulo: Globo,
2009.
Figura 40, 41 – LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. Adaptação,
ilustrações de Cor e Imagem André Simas. 2ed. São Paulo: Globo, 2009.
Figura 42, 43 – LOBATO, Monteiro. As aventuras de Hans Staden. Adaptação e
roteiro Denise Ortega e Stil. Ilustrações Arcon. São Paulo: Globo, 2009.
Figura 44, 45, 46,47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 68, 69 – ASSIS, Machado de.
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Roteiro e ilustrações Sebastião Seabra. São
Paulo: Escala Educacional, 2008.
Figura 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73,74, 75, 76 – ASSIS,
Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Roteiro de Wellington Srbek e
ilustrações João Batista Melado. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010.
Figura 77, 78,79, 80, 81, 82 – ASSIS. Machado de. Dom Casmurro: em quadrinhos.
Ilustrações de Ruy Trindade. Salvador: Bureal Gráfica e editora, 2005.
11
Figura 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90,91, 92, 93, 94, 95, 96, 97 – ASSIS. Machado de.
Dom Casmurro de Machado de Assis. Roteiro de Wellington Srbek e ilustrações José
Aguiar. Belo Horizonte: Editora Nemo, 2011.
Figura 98, 99, 100, 101, 102, 103, 146, 147, 148, 154, 155, 173 – ASSIS. Machado de.
O alienista. Roteiro e ilustrações Francisco S. Vilachã e cores Fernando A. A.
Rodrigues. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
Figura 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 149, 156, 157 –
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. O alienista/Machado de Assis; adaptação de
Lailson de Holanda Cavalcanti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
Figura 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124,125, 126, 127, 128, 129, 130,
131, 132, 150, 158, 159, 160 – ASSIS. Machado de. O alienista. Adaptação e arte
Cesar Lobo e roteiro Luiz Antonio Aguiar. 1.ed. São Paulo: Ática, 2008.
Figura 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 151, 152, 153,
161, 162, 163 – MOON, Fábio. O alienista de Machado de Assis. Adaptação de Fábio
Moon e Gabriel Bá. Rio de Janeiro: agir, 2007.
Figura 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170 – ASSIS, Machado de. Contos de escola em
quadrinhos. Adaptado por Silvino. São Paulo: Peirópolis, 2010.
Figura 171 – ASSIS, Machado de. A cartomante. Roteiro, desenhos e arte final Jô
Fevereiro. Cores Jô e Ciça Sperl. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
Figura 172, 176, 177, 178, 179,180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187,188, 189, 190,
191,192, 193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207,
208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224,
225, 226, 227, 228, 229, 230 – ASSIS, Machado de. A causa secreta. Roteiro Francisco
S. Vilachã. Cores Fernando A. A. Rodrigues. São Paulo: Escala Educacional, s/d.
Figura 174 – ASSIS, Machado de. O enfermeiro. Roteiro, desenhos Francisco S.
Vilachã. Cor Fernando A. Rodrigues e Francisco S. Vilachã. São Paulo: Escala
Educacional, 2006.
Figura 175 – ASSIS, Machado de. Uns braços. Roteiro e desenhos Francisco S.
Vilachã. São Paulo: Escala Educacional. s/d.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15
1. O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM
QUADRINHOS
1.1 O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS ......................................................... 23
1.2 HISTÓRIA EM QUADRINHOS: DA GÊNESE À CONDIÇÃO DE ARTE
SEQUENCIAL E PRODUTO DE MASSA .................................................................. 28
1.3 A LITERATURA EM QUADRINHOS COMO TRADUÇÃO ............................... 41
1.4 EMERGÊNCIA E DIVERSIDADE DA LITERATURA EM QUADRINHOS ...... 45
2. A LITERATURA MACHADIANA ENTRE CONTOS E REQUADROS
2.1 A LITERATURA MACHADIANA ......................................................................... 68
2.1.1 LITERATURA MACHADIANA: ENTRE CONTOS ................................... 81
2.1.2 UM OLHAR SOBRE A CAUSA SECRETA ................................................ 88
2.2 A LITERATURA MACHADIANA: ENTRE REQUADROS ................................. 92
2.2.1 UM OLHAR SOBRE A QUADRINIZAÇÃO DE “A CAUSA SECRETA”142
3. OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA APRECIAÇÃO DO LEITOR
CONTEMPORÂNEO
3.1 O LEITOR CONTEMPORÂNEO ......................................................................... 160
3.2 O CONTEXTO DA ATIVIDADE INVESTIGATIVA ENTRE CONTOS E
REQUADROS: A RECEPÇÃO DO TEXTO MACHADIANO NA
CONTEMPORANEIDADE .......................................................................................... 167
3.3 O LEITOR CONTEMPORÂNEO ENTRE CONTOS E REQUADROS:
RELATOS DE RECEPÇÃO ......................................................................................... 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 202
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RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo uma análise de como ocorre na contemporaneidade
o diálogo entre produtos culturais distintos, prática que se concretiza nos textos híbridos
que democratizam o acesso às variadas produções das culturas. Tais diálogos são
motivados por um mercado que passa a investir em novas sensibilidades identificadas
com as tramas comunicativas que rompem fronteiras geográficas, sociais e culturais.
Neste contexto, procuramos estabelecer a relação entre a literatura de Machado de Assis
na versão tradicional e a literatura em quadrinhos machadiana, por intermédio da
tradução intersemiótica observando como os jovens percebem estes textos. As
quadrinizações literárias tornam-se objeto de atenção tanto pela nova linguagem
engendrada no encontro do verbal (clássico) e o icônico, como pela recepção que
provocam, no sentido de que propiciam ao público leitor o conhecimento e apreciação
das experiências de outros tempos-lugares. Em consonância com este intento, realizou-
se pesquisa bibliográfica na qual foram fundamentais as discussão de Jésus Martin-
Barbero, Nestor García Canclini, Umberto Eco, Walter Benjamin, Moacy Cirne, Will
Eisner, Júlio Plaza, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, entre outros. Outra vertente do
trabalho foi pesquisação, atividade que se centrou na leitura, análise e discussão do
conto A causa secreta na versão tradicional e na quadrinizada. A experiência
desenvolveu-se mediante círculos de leitura, em que se envolveu uma escola da rede
pública de Jequié-Ba.
Palavras-chave:
Cultura; literatura em quadrinhos; tradução intersemiótica; Machado de Assis.
14
ABSTRACT
This study aims to analyze how one occurs in the contemporary dialogue between
different cultural products, a practice that is realized in hybrid texts that democratize
access to varied crop yields. Such dialogues are driven by a market that is investing in
new sensitivities identified with the communicative frames that break geographical
boundaries, social and cultural. In this context, we establish the relationship between
literature Machado de Assis in the traditional version and literature in comics
Machadiana, intersemiotic translation through observing how young people perceive
these texts. The literary quadrinizações become the object of much attention
engendered by the new language in the meeting of verbal (classic) and iconic, like the
reception that cause, in the sense that the readers provide the knowledge and
appreciation of the experiences of other time-places. In line with this intent, there was
literature in which the discussions were critical of Jesus Martin-Barbero, Nestor
García Canclini, Umberto Eco, Walter Benjamin, Moacy Cirne, Will Eisner, Jules
Plaza, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, among other. Other work wertwente was
pesquisação, activity which focused on reading, analyzing and discussing the story
The secret cause in the traditional version and quadrinizada. The experience developed
through reading circles, which involved public school of the Jequié –Ba.
keywords:
Culture; literature in comics; intersemiotic translation; Machado de Assis.
15
INTRODUÇÃO
A segunda metade do século XX e o início do século XXI foram marcados pelo
signo das grandes transformações sócioeconômicas e culturais, as quais se apresentam
impregnadas pela velocidade da tecnologia. À mercê do poder do mercado globalizado,
tais transformações descentralizam paradigmas e aproximam espaços e culturas e
promovem a possibilidade de formação de novas sensibilidades.
A descentralização do modelo eurocêntrico elitista, elemento caracterizador das
produções culturais e identitárias, é resultante da expansão do mercado e das relações de
mundialização. O olhar antes focado na Europa e nas potências mundiais volta-se para a
periferia, espaço onde o diálogo dominador X dominado, elite X povo é ressignificado
nos mais variados produtos, a partir da ideia do entrelugar. As margens sociais e as
massas consumidoras tornam-se também alvos de expectativas, o que possibilita novos
espaços e olhares diferenciados para seus produtos culturais.
Nessas circunstâncias, os frutos da cultura elitista do centro passam a dialogar
com os produtos culturais das margens, os quais se tornam espaços de trânsito por se
apresentarem como adequados para a aproximação e hibridização das linguagens em
constante revisionismo, no que concerne à adoção de propósitos identificados com uma
melhor compreensão do presente.
A literatura, entre tantos produtos da cultura, está exposta a este revisionismo, no
qual se inserem também as novas linguagens como os quadrinhos, o cinema, as
minisséries, as novelas. É neste contexto que surge o nosso questionamento: que causas
remetem a literatura, produto da elite, a estágios de diálogos com os produtos culturais
considerados antes como das margens, como no caso específico da interação da
literatura com os quadrinhos, fruto da cultura de massa? Como se processa o diálogo
entre a literatura e os quadrinhos nas quadrinizações literárias?
A literatura em quadrinhos ou as quadrinizações literárias (como costuma ser
denominado este novo produto cultural) traz em si um caráter híbrido. Refletindo sobre
a hibridização, assim se expressa García Canclini (2008, p.14-15):
Parto de uma definição: entendo por hibridação processos sócio-
culturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de
16
forma separada, se combinam para formar novas estruturas, objetos e
práticas. [...] Uma forma de descrever esse trânsito do discreto ao
híbrido, e as novas formas discretas, é a fórmula “ciclos de
hibridação” proposta por Brian Stross, segundo a qual, na história,
passamos de formas mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e
depois a uma relativamente mais heterogênea, sem que nenhuma seja
pura ou plenamente homogênea.
Ganha relevo nesta discussão a literatura em quadrinhos, como produto híbrido,
formatação resultante da junção de um texto mais ou menos homogêneo – o literário
canônico – e de outro de natureza heterogênea – a história em quadrinhos. O último
assume o formato de um texto que traz, no próprio bojo, marcas e traços de linguagens
outras (fotografia, cinema, teatro, a da própria literatura). Por ostentar, na origem, a
condição híbrida, tal produto desperta olhares curiosos e faz surgir posições
controversas e questionadoras no que se refere à discussão se, efetivamente, ele
apresenta a legitimidade de texto artístico identificado com propósitos específicos. Da
confluência dos dois textos surge um novo objeto cultural, um entrelugar, enfim uma
linguagem outra, na verdade, um produto outro com especificidades e códigos próprios.
A literatura em quadrinhos seria uma espécie de entrelugar, pois é fruto da
confluência da história em quadrinhos com a literatura clássica, ambas apresentando
linguagens próprias, distintas. O encontro dos dois produtos faz nascer o icônico, por
sua vez produto com natureza própria e diversa da história em quadrinhos e da literatura
clássica, isto é, se cada uma delas é olhada isoladamente. O produto cultural híbrido
(texto em quadrinho) carrega o estigma do preconceito por se apresentar como texto
pronto, desprovido de elementos que funcionariam como desafios ao leitor, e também
por não se enquadrar na proposta de erudição, em termos da exibição de aspectos
característicos de uma linguagem tradicionalmente elaborada, valores normalmente
atribuídos à literatura.
Assim, numa proposta de identificação com certos traços dos estudos culturais,
esboça-se a neutralização de determinados aspectos da literatura tradicional. Nesta
direção, criam-se espaços para a adoção de gêneros de natureza heterogênea,
responsáveis pelo desvendamento de olhares novos identificados com a cultura de
massa e, que não raras vezes, se apresentam atrelados à indústria cultural. Tal
redimensionamento também trilha as discussões de Lucia Santaella, pesquisadora que
nomeia esta nova instância como a cultura das mídias.
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Trata-se de processo cultural diferente do que se denominava de cultura de
massa, visto que “[...] a cultura das mídias inaugurava uma dinâmica que, tecendo-se e
se alastrando nas relações das mídias entre si, começava a possibilitar aos seus
consumidores a escolha de produtos simbólicos alternativos” (SANTAELLA, 2008,
p.53). Neste trabalho, entendem-se como mídias os variados suportes de leitura que
fazem transitar a informação, e a cultura, as quais passam a circular a partir da
passagem e da adaptação de aspectos de um veículo que assimilam feições de outro
veículo. É o que se observa no caso do livro que se torna disponível na feição do filme,
do quadrinho na feição do filme, do livro no cinema, do livro na minissérie, da
minissérie no livro. Também faz parte desta nova dinâmica cultural a literatura em
quadrinhos – trânsito da obra literária para as revistas em quadrinhos.
Tal objeto cultural identifica-se com novas concepções da comunicação voltadas
para a ressignificação e a apreensão de objetos e práticas em que se interligam aspectos
da esfera culta, popular e de massa. Tradicionalmente, a comunicação é descrita como
uma estrutura polarizada, cristalizada a partir da enunciação da mensagem, cujo emissor
assume a função primordial na estruturação do processo comunicativo. Caberia ao
receptor a função de apenas receber a mensagem, isto é, resta-lhe o papel de receptáculo
do processo, uma vez que apenas decodificaria o conteúdo previamente determinado.
A partir da segunda metade do século XX, diante dos processos de fragmentação
da identidade e das novas concepções e vivências da instância espaço-temporal, as
discussões acerca do processo de comunicação ganham nova dinâmica. O emissor e o
receptor têm seus papéis revistos e, nesta direção, vão participar de um processo
interativo cuja meta é a construção do sentido.
Neste contexto, os objetos e as práticas culturais passam a ser focados
considerando-se as novas sensibilidades, produtos das novas relações espaciais e
temporais, múltiplas e heterogêneas. Tais sensibilidades mostram-se atentas às
condições definidas pela globalização, instância em que se configuram espaços de
encontros, misturas e assimilações culturais e que ressignificam continuamente os
processos de comunicação, agora não apenas interpessoais, mas também intertemporais,
interespacias e interculturais. É no seio deste processo interativo que se situam a
literatura, os quadrinhos e o leitor.
O estudo que aqui se inicia nasceu da curiosidade em compreender como a
literatura machadiana é transportada para os quadrinhos e como o leitor contemporâneo
18
interage com o conto de Machado de Assis, tanto em sua forma tradicional como na
quadrinizada. Pensar o deslocamento e a aceitação deste texto não se resume a
confirmar e referendar o autor no cânone da literatura. A propósito, a literatura é
compreendida aqui como uma instituição que, a partir da perspectiva da sociologia das
emergências, conforme explicitações de Boaventura Souza Santos (2004) tende a
aglutinar todas as formas de literatura e de linguagens que dialogam e corroboram com
a ecologia dos saberes. Pensa-se, sobretudo, na valorização de todas as experiências de
vida e de leitura, atentando-se para o risco iminente de desperdício de oportunidades,
etapas com que costuma se envolver um elitismo excludente e empobrecedor.
O instigante e desafiador texto machadiano constitui o norte das abordagens que
se pretendem aqui, numa proposta que busca repensar as seriações da historiografia
literária. As análises terão como operadores empíricos dois produtos culturais
específicos – o conto A Causa Secreta (1884) e a quadrinização do referido conto,
construída pela Editora Escala Educacional.
Dentro do universo literário machadiano, a escolha do conto, dentre os variados
gêneros textuais, dá-se pela possibilidade de leitura rápida, tendo em vista a proposta
temporal de investigação. O romance demandaria mais tempo, pensando-se em um
leitor sem muita prática de leitura. Não obstante, é reconhecida a grande importância do
conto, gênero com que se ilustra o caráter de singularidade da obra machadiana, tida
como inigualável.
O conto aqui analisado, A Causa Secreta (1884), é um texto pinçado entre os
mais encontrados nos manuais didáticos, além de ser bastante estudado por teóricos e
críticos acadêmicos. A narrativa em si é denominada, neste trabalho, texto-base, pois
serviu de motivo para filmes, minisséries, animações, novelas e histórias em
quadrinhos, produtos que são considerados traduções intersemióticas.
Produzido na segunda metade do século XIX, o conto machadiano traz em sua
temática discussões atuais. Tal narrativa surge no Brasil num contexto histórico
entremeado pela desgastada monarquia conservadora e oligárquica e pela recém-
chegada República, com foros de modernidade tardia e influenciada pela visão burguesa
eurocêntrica, cujo paradigma tem raízes na França.
Trazer estas experiências de vida deste período histórico, metaforizadas na
literatura clássica, para uma melhor compreensão das instâncias passado-presente-futuro
da trajetória humana, por meio de uma linguagem mais acessível na
19
contemporaneidade, é o que rege o processo de tradução intersemiótica, base da
literatura em quadrinhos. Adotaremos o termo tradução pelo fato de ele expressar a
transmutação dos textos literários machadianos isto é, a transubstanciação do signo
verbal para o icônico (HQ), técnica chancelada pela ressignificação do leitor
quadrinista. Muito mais que adaptar uma linguagem à outra, num processo estrutural
semiótico, trata-se de constatar que a literatura em quadrinhos é um instrumento de
acesso à leitura da relação passado-presente.
Sendo os quadrinhos um produto de massa, o interesse aqui é compreender como
a quadrinização literária, objeto híbrido, consegue fundir o clássico e o massivo e que
efeitos provocam no leitor. Foram observadas, inicialmente, quadrinizações de textos
literários de diversos autores (José de Alencar, Manuel Antonio de Almeida, Bernardo
Guimarães, Eça de Queirós, Luis Vaz de Camões, Monteiro Lobato...) de variadas editoras
(Agir, Ática, Top Books, Panda Books, Cortez, Desiderata, Companhia Editora Educacional,
Globo, Peirópolis, Companhia das Letras, Pallas, Nemo). Neste levantamento, destacamos as
primeiras quadrinizações e analisamos o boom de publicações nos últimos dez anos.
Por fim, focou-se na literatura machadiana quadrinizada que circula no mercado
editorial, por ter Machado de Assis um texto inquietante. Dentre a vasta produção do
referido autor foi escolhida a quadrinização A causa secreta feita pela Escala
Educacional, editora paulista que tem muitos títulos nesta tendência contemporânea.
Esta é uma das editoras que se debruçam sobre a leitura dos clássicos com o argumento
da facilitação da leitura por meio de uma tradução/adaptação em textos de quadrinhos.
Há o intuito de observar mais atentamente essa ressignificação, visto que não se
trata apenas de mera mudança de linguagem, da literária tida como “superior”, para o
iconográfico, produto da cultura de massa. Os interesses implícitos nesta nova produção
cultural e a identidade do leitor envolvido neste processo merecem atenção especial.
Assentar um pouco nossas reflexões na cultura de massa e nos objetos culturais híbridos
pode nos conceder luz para enxergarmos o que vem a ser este novo produto da cultura.
O texto aqui desenvolvido apresenta, em seu Capítulo 1 – O TRÂNSITO DOS
OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM QUADRINHOS – uma exposição
acerca da produção cultural em momento de intersecção mediada pelo mercado
globalizado. São apresentadas as transformações das concepções de cultura que alargam
a percepção, na contemporaneidade, dos objetos culturais, reconfigurados na
hibridização pelo diálogo de culturas antes distanciadas e restritas a grupos
sócioeconômicos determinados.
20
A crítica cultural, como tendência teórica que abre espaços para a percepção dos
diálogos culturais de produtos da margem, que descentram práticas culturais da elite,
torna-se o embasamento que sustenta nossa discussão. A aplicação de aspectos da
crítica cultural se embasa em princípios explicitados e elaborados em textos de Eneida
Maria de Souza, Eneida Leal Cunha e Heloísa Buarque de Holanda.
Focaliza-se a literatura em quadrinhos, objeto de atenção desta pesquisa, na
perspectiva de objeto artístico cultural híbrido e descentralizador, resultado de uma nova
sensibilidade na cultura e na comunicação, e adotam-se como suporte as discussões de
Umberto Eco sobre o produto cultural das massas, Jesus Martín-Barbero, no
concernente à comunicação cultural no cenário da sociedade tecnológica e globalizada,
Néstor García Canclini, nas considerações sobre o texto híbrido na socialização da arte,
Mario Feijó, no que diz respeito ao histórico dos quadrinhos, Will Eisner, Paulo Ramos
e Moacyr Cirne, olhando-se as considerações acerca da linguagem quadrinística.
A literatura em quadrinhos é destacada como produto cultural resultante da
congruência dos dois olhares. Vale salientar também a leitura do quadrinho sob a ótica
da reprodução técnica da obra de arte, conforme explicitações de Walter Benjamin.
Interessa aqui destacar os poucos estudos existentes encontrados em textos, inclusive os
que circulam na mídia (internet), e apresentar os aspectos característicos de
quadrinizações antigas e atuais que circulam no mercado. Por fim, a literatura em
quadrinhos é discutida na perspectiva do processo de tradução intersemiótica pela
transmutação de códigos, conforme os estudos de Júlio Plaza, e discutida criticamente
nas perspectivas de leituras da História, que se consolidam nas traduções, segundo
Walter Benjamin.
O Capítulo 2 – A LITERATURA MACHADIANA: ENTRE CONTOS E
REQUADROS – apresenta a literatura machadiana em dois objetos culturais distintos:
na literatura e nas quadrinizações.
Na literatura, afunilando para o gênero conto, buscam-se nos posicionamentos
de críticos e especialistas como Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes, Valentin Facioli,
Sônia Brayner e Antonio Candido, as diversas percepções sobre o texto machadiano.
Igual busca há também na leitura crítica difundida em algumas revistas produzidas nos
últimos vinte anos, textos que vinculam posicionamentos de críticos renomados e de
estudiosos da atualidade do meio acadêmico e da crítica jornalística. Tais leituras se
aproximam e guardam certa semelhança com o que é conhecido como crítica de rodapé.
21
A aproximação se concretiza a partir da produção de textos críticos por parte de
intelectuais não especialistas em literatura, dotados de uma linguagem menos rebuscada
e de construções argumentativas mais diretas.
Também são expostos levantamentos e leituras de algumas quadrinizações da
literatura machadiana disponíveis no mercado editorial para discutir alguns elementos
da transmutação semiótica nelas percebidas. Por fim, desembocamos na leitura
intersemiótica da quadrinização A Causa Secreta de Francisco Vilachã, utilizada na
atividade investigativa, por meio de comparação com o conto (texto-base). Foi
observado como se constituem as releituras dos contos primeiros realizadas pelo
quadrinista por meio da materialização do verbal-literário para o não-verbal imagético
da linguagem dos quadrinhos.
No Capítulo 3 – OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA
APRECIAÇÃO DO LEITOR CONTEMPORÂNEO – tem-se por meta a observação
e análise de como o leitor contemporâneo acolhe e constrói a leitura do texto
machadiano em gêneros textuais distintos (o texto literário e o texto quadrinístico). Os
dados colhidos foram analisados sob a ótica da estética da recepção, a partir das
discussões relacionadas com o conceito de “prazer estético”, de Hans Robert Jauss.
Busca-se observar o desmembramento da fruição estética e da reflexão estética; tal
intento se faz presente também no “jogo do texto”, marcado pelas indeterminações e
hiatos a serem complementados pelo leitor conforme Wolfganger Iser.
O presente capítulo está organizado em duas etapas: a primeira situa o leitor do
texto literário na contemporaneidade, na visão da academia e do que os PCNs afirmam
sobre a leitura literária na escola. Na segunda, são apresentadas a descrição da atividade
investigativa e a análise dos resultados.
Tal atividade investigativa denominada Entre contos e requadros: a recepção do
texto machadiano na contemporaneidade concretizou-se por meio de círculos de leitura,
realizados no Colégio Polivalente Edivaldo Boaventura, escola pertencente à rede
estadual de Educação em Jequié, Bahia. O público-alvo foi constituído por alunos de 15
a 18 anos, da 2ª e 3ª séries do Ensino Médio, colaboradores voluntários, que
participaram de três círculos de leituras, nos quais fizeram a leitura do texto literário e
da quadrinização do conto A causa secreta. Eles apresentaram as leituras construídas,
situaram as percepções e as dificuldades acerca do texto machadiano, destacaram
22
detalhes do texto quadrinístico que favorecem uma melhor construção do sentido da
história e confrontaram o texto-base com a literatura em quadrinhos.
Neste trabalho, as discussões travadas e as análises construídas voltaram-se
para a percepção de como o leitor procede a leitura, em face a dois objetos culturais
distintos, os quais vão ganhando novas dimensões à medida que se vai desmistificando
a visão centralizadora do livro.
Este novo olhar é estimulado por um mercado editorial que torna o antigo livro
um dentre vários veículos de leitura e, neste sentido, torna-se necessário que se acerque
de aspectos outros, como observa Fischer (2006, p.288) ao comentar sobre circulação e
a pequena lucratividade editorial:
[...] Além disso, uma vez que o livro, como fonte principal de
informações gerais, foi obrigado a dividir espaço com o rádio, a
televisão, e, agora com o computador pessoal, é necessário que ele se
atenha em outros ingredientes para que consiga assegurar sua função
na sociedade: a evasão proporcionada por romances de amor e de
aventuras; o apoio aos recursos educacionais, referências e estudos; ou
a inspiração dos clássicos.
A literatura em quadrinhos talvez seja um novo ingrediente que possivelmente
venha atender às demandas do leitor na era imagética, tecnológica e intercultural. Fica
evidente que na quadrinização literária há o surgimento de um novo texto hibrido e
difundido em livros e revistas que talvez venha a facilitar a acessibilidade dos leitores,
independente da condição social e da erudição de que sejam eles dotados. Tem-se como
acréscimo uma leitura de maior poder de atração que socializa com grupos populares
produtos antes restritos à elite letrada. Este objeto cultural reflete condições de
entendimento de mundo e de vida, além de desfazer os guetos que a diferença social, de
certa forma, promove.
Tentar compreender os trâmites do processo de tradução intersemiótica do texto
machadiano, produto da cultura de elite, para os quadrinhos, elemento da cultura de
massa, e descrever como os leitores contemporâneos reagem a esta nova opção de
interação cultural são metas que norteiam esta pesquisa. As reflexões aqui construídas
não se pretendem únicas, mas buscam fomentar novos diálogos e futuros
questionamentos. Afinal o homem é este constante ir e vir dentro da História.
23
1- O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM
QUADRINHOS
1.1 O trânsito dos objetos culturais
No mundo globalizado, ganham cada vez mais espaço as redes informacionais
cujas ações interferem profundamente nas percepções e vivências do presente, passado e
futuro e influenciam também nas elaborações inusitadas do imaginário. É lógico que
todas estas transformações vão repercutir socialmente e possibilitarão o surgimento de
novos objetos culturais.
Como se sabe, o conceito de cultura abrange desde as produções básicas para a
sobrevivência humana, como as formas de interferência no mundo natural e biológico,
até as densas elaborações do mundo simbólico. Neste sentido, situam-se como
manifestações culturais, entre outras, a arte, a língua, a ciência, a religião. As próprias
discussões sobre tal conceito tornam-se produto de investigações e da própria trajetória
da cultura no mundo ocidental.
Segundo Eneida Leal Cunha (2009), entre os diversos debates sobre cultura se
destacam, nos dois últimos séculos, três concepções: a iluminista do século XVIII,
segundo a qual cultura equivale à noção de progresso, sobretudo o intelectual e o
material, responsáveis, de certa maneira, pelo bem-estar social. Neste sentido, ganha
vulto a questão urbana, uma vez que viver na cidade representa a interação com a
excelência e com a elegância das boas maneiras, qualidades que se contrapõem à vida
anterior nas pequenas comunidades, cujo acesso às benesses e aos padrões do mundo
moderno era limitado ou inexistente. Opondo-se aos valores metropolitanos, desenha-se
a barbárie, condição em que se encontram aqueles não integrados neste universo de
civilização e que, por isso mesmo, careciam, urgentemente, de um trabalho de
convencimento voltado para o propósito de adesão aos paradigmas europeus – o mundo
moderno e progressista. A força desses princípios com os quais o conceito de cultura foi
lido chega à contemporaneidade, momento em que não raramente o indivíduo, não
incluso neste universo de crenças, valores e modelos, costuma ser rotulado como
inculto.
Outro sentido de cultura se articula de maneira muito próxima com a noção de
Estado Nacional, proposta tão característica do século XIX e que se apresenta como
24
uma das grandes conquistas da modernidade. O Estado Nacional, prerrogativa de
evolução com que sonham os povos colonizados, se empenha com a construção ou com
o resgate da própria singularização em termos do engrandecimento dos costumes,
produções populares, crenças, passado mítico e histórico e, em especial, da língua –
elementos integrantes da identidade nacional e cultural de um povo e de um país,
segundo os modernos princípios nacionalistas do século XIX.
A terceira significação de cultura se apresenta, conforme Eneida Cunha, como a
mais restritiva. Interligada intimamente com as questões estéticas e da arte, esta acepção
contempla um número reduzido de indivíduos que detêm e dominam as produções
artísticas, condição que atribuiria àquele grupo uma suposta superioridade (século XIX).
Eneida Cunha conclui afirmando que, a despeito da diversidade e da mobilidade
conceitual, essas três concepções ainda ressoam na virada do século XX para o XXI e
não poucas vezes se constata o emprego da noção de cultura com este sentido tão
delimitador.
A partir do olhar que vê as concepções excludentes e conservadoras como
inadequadas, emerge a crítica cultural indiciadora de novos caminhos. A discussão desta
crítica se volta para uma tentativa de leitura que não priorize apenas um aspecto, isto é,
busca-se, sobretudo, o afastamento de dicotomias e polarizações, como a crença na
existência da superioridade de um povo ou classe social ou, ao contrário, a
desvalorização do homem tido como não letrado – o homem inculto.
É nas rasuras da discriminação e marginalização que ocorrem os
encaminhamentos das duas vertentes da crítica cultural, conforme explicitação de
Eneida Cunha (2009): a primeira, na legitimação das vozes das minorias silenciadas (o
negro, o índio, a mulher, o homossexual) e suas representações culturais; e a segunda,
na desconstrução do confinamento do valor cultural atribuído apenas à esfera letrada ou
erudita e na valorização das produções artísticas populares e das massas.
Conforme Heloísa Buarque de Holanda (2004), historicamente, os estudos
culturais credenciaram-se como uma área do conhecimento pensada em função do
contexto histórico, social e cultural. Neste campo, a produção de saber migra de uma
disciplina para outra, alterando prioridades e determinando discursos e práticas
estruturalmente diversificadas. É necessário subentender-se a ideia de deslocamento –
migração na trajetória das ideias e teorias para além do geográfico. Valendo-se do
pensamento de Bakhtin, assim se expressa a pesquisadora:
25
Bakhtin chama ainda a atenção para a flutuação histórica das
fronteiras das áreas de produção cultural e observa que sua vida mais
intensa e produtiva sempre ocorre nas fronteiras de suas áreas
individuais e não nos espaços onde estas áreas tornam-se encerradas
em sua própria especificidade. (HOLANDA, 2004, p.33).
Assim, poderia afirmar-se que a motivação dos estudos culturais residiria
também na ideia de deslocamento das fronteiras do saber, proposta esta relacionada com
certa neutralização do conceito de centro (elite), ideia tida, reconhecida e credenciada
socialmente como superior. O afastamento seguiria em direção ao universo das
produções e representações construídas pelas e para as margens [grifos nossos] -
grupos subalternos.
Heloísa Buarque de Holanda observa que a própria gênese dos estudos culturais
nos encaminhava para a abertura, para a busca de novas experiências e sensibilidades
antes ocultadas. Na Inglaterra1, as transformações da classe operária do pós-guerra
reclamaram novos sujeitos políticos construídos fora do modelo sociológico tradicional
de classe, pautados na historicidade e experiências próprias.
Nos Estados Unidos, o campo das Letras (especialmente a Literatura) foi o
espaço no qual as discussões e as disputas em torno dos direitos das minorias (mulher e
negro) e dos imigrantes ganharam foco. Desfraldando a bandeira do multiculturalismo,
as discussões encontraram afluência na preocupação com a análise das diversas
expressões culturais, inclusive as que não se balizavam pelas estratificações e
canonizações.
Na América Latina, a reinserção democrática dos países sufocados cultural e
economicamente pela condição histórica da colonização e a dicção dos regimes
ditatoriais tornaram o momento propício para a chegada dos estudos culturais. Abrem-
se espaços para as pesquisas emergenciais na área da sociologia e antropologia, com
foco na construção de novas políticas culturais, socialmente mais justas, realizadas por
teóricos2 que primaram pela análise dos objetos culturais da esfera da comunicação de
1 As obras inglesas inaugurais dos Estudos Culturais foram Usos da Leitura, de Hoggart, com as reflexões
sobre a vida de um cidadão antes e depois da alfabetização; Cultura e Sociedade, de Raymond Willians,
texto que traz o debate sobre a cultura dentro da estrutura social tradicional. Ambas pautam-se na
construção de um novo sujeito social. 2 Destacam-se os trabalhos de Néstor García Canclini, nas discussões das culturas híbridas e da
socialização da arte; de Jesús Martín-Barbero, com foco nos debates entre cultura e comunicação; e
Beatriz Sarlo, com as pesquisas acerca da recepção dos produtos culturais televisivos.
26
massa e mídia, em especial a televisão, como observa Heloísa Buarque de Holanda
(2004.).
É nesta condição de revisão do que se entende por cultura e das representações e
produtos culturais antes contestados pela elite social e econômica, que se constata o
crescimento da percepção e experimentação de novas sensibilidades. Nesse contexto,
abre-se espaço para o desenvolvimento das pesquisas relacionadas com objetos culturais
híbridos, produtos de uma sociedade que se estrutura para além das noções de nacional
e internacional, intentando chegar sempre ao transnacional, o que representa o
alargamento das próprias fronteiras. É o que constata Jesús Martín-Barbero (2004, p.
258):
Há nas transformações da sensibilidade que emergem na experiência
comunicacional um fermento de mudanças no próprio saber, o
reconhecimento de que por aí passam questões que atravessam por
inteiro o desordenamento da vida urbana, o desajuste entre
comportamento e crenças, a confusão entre realidade e simulacro. As
ciências sociais não podem ignorar então que os novos modos de
simbolização e ritualização do laço social se acham a cada dia mais
entrelaçados às redes comunicacionais e aos fluxos informacionais. O
despedaçar-se das fronteiras espaciais e temporais que eles introduzem
no campo cultural deslocaliza os saberes e deslegitima suas fronteiras
entre razão e imaginação, saber e informação, ciência e arte. Isso
modifica tanto o estatuto epistemológico como o institucional das
condições de saber e das figuras de razão, que constituem os traços de
mudança de época, em sua conexão com as novas formas de sentir e
as novas figuras da sociedade.
Amplia-se a visibilidade de objetos culturais, antes legada apenas aos produtos
da elite, como a música clássica, escultura, a pintura, a literatura, para os produtos não
seletos e não canônicos, como música popular, artesanato, grafite, quadrinhos. Com
essa transformação, fomenta-se, em nome da comunicabilidade e da acessibilidade, a
construção de diálogos entre objetos culturais tidos como de elite com os considerados
de massa (cinema, quadrinhos, música popular), o que fará surgir novas possibilidades
de comunicação, como a literatura em quadrinhos.
Martín-Barbero (2004) enfatiza a importância de se estar cauteloso para não se
permitir que a função do componente tecnológico restrinja-se à questão mercadológica,
o que faria com que a esfera cultural fosse reduzida a interesses econômicos. Torna-se
necessária a percepção de que a cultura está além deste patamar. Neste sentido, a
própria concepção de cultura seria ressignificada; ela se tornaria mais sólida, mais
27
espessa, cabendo-lhe o papel de expressar as novas sensibilidades e práticas do mundo
tecnológico que (devem evidenciar) evidenciam não apenas a excelência das máquinas.
Em observância a tais princípios, o sentido de cultura passaria a englobar novas
acepções, novas configurações. É o próprio Martín-Barbero (2004) quem afirma:
[é preciso contemplar-se] o novo lugar da cultura na sociedade
quando a mediação tecnológica deixa de ser puramente instrumental
para espessar-se, densificar-se e se converter em estrutural, pois a
tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a
novos modelos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e
escritas.
Em especial, chama-nos a atenção o modo como se renova a experiência do
leitor diante da literatura. A arte da palavra escrita, tradicionalmente expressa no suporte
livro, passa a circular em outros instrumentos. Neste sentido, o texto literário se integra
com outros meios de difusão e, com a utilização da imagem, ampliam-se as
possibilidades da linguagem, que agora dispõe de recursos de comunicação e de
expressão, além do livro e da palavra. O acesso ao texto de Machado de Assis, Luiz de
Camões, Eça de Queiroz, José de Alencar, Clarice Lispector, entre outros, torna-se
variado por intermédio da atuação de outros mecanismos e suportes técnicos, como o
livro digital, a televisão, o cinema, os quadrinhos. Ganham espaço novos elementos
culturais, produto das transformações socioeconômicas e culturais do último século,
reconhecido como tempo-espaço da modernidade e da globalização.
Nosso interesse repousa na abordagem destas tendências contemporâneas,
identificadas com a revisão dos objetos culturais resultantes da desterritorialização do
texto escrito culto. Nesta direção, a atenção se volta para as metamorfoses dos textos
literários em diálogo com produtos da cultura de massa, em seus variados suportes,
priorizando-se aqui as histórias em quadrinhos. Ganha terreno, o resgate da função da
imagem na comunicação, elemento presente e determinante desde a era das cavernas. A
imagem deixa de merecer certa credibilidade a partir da instauração do texto escrito,
potencializado e valorizado na era de Gutemberg entre as elites cultas. A partir da
segunda metade do século XX, com o crescimento da cultura de massa, o texto
imagético quadrinístico passa a ser observado com menos restrições pelo olhar elitista.
A literatura em quadrinhos configura-se, desta maneira, como objeto cultural
híbrido, uma vez que carrega em si a Literatura, arte sacralizada da palavra em sua
28
articulação polissêmica, e os quadrinhos, tidos como produto da cultura de massa que
busca sedimentação como objeto cultural artístico.
1.2- História em quadrinhos: da gênese à condição de arte sequencial e produto da
cultura de massa
Afinal, como surgiram no século XIX os quadrinhos, produto
predominantemente imagético, para uns, arte sequencial, para outros, produto da cultura
de massa? Como esse objeto cultural se configura?
A dinâmica de vida acelerada e condicionada pela produção em série, instaurada
a partir da Revolução Industrial e sedimentada pelo progresso tecnológico, faz com que
o homem moderno se depare com a circulação de uma grande diversidade de produtos
culturais. São objetos da cultura que não se restringem aos elaborados por e para [
grifos nossos] a elite socioeconômica, como acontecia antes do século XX, e que
ecoaram com exclusividade e relevância por muitos anos deste século. Refletindo sobre
cultura, aristocracia e burguesia, Feijó (2007, p.10) observa:
Lembre-se de que, até o século passado [séc. XIX], a ideia de cultura
era quase sempre associada a aristocratas e burgueses ricos e bem
educados. Normalmente, os artistas e intelectuais eram patrocinados
por parentes e amigos. Com sorte, arranjavam algum rei ou nobre para
ser seu mecenas.
É a partir do período de consolidação do capitalismo que as massas surgem
como protagonistas na vida associada3. Os elementos culturais passam a ser pensados
em nome dessa coletividade. Estas produções deveriam atender os trabalhadores
alijados das experiências de fruição dos objetos culturais, até então elaborados sob
medida para as aspirações e desejos das elites.
Eco (2008, p.24), por sua vez, aponta um descompasso na concepção dos objetos
culturais elaboradas por e para as massas visto que, “[...] paradoxalmente, o seu modo
de divertir-se, de pensar, de imaginar, não nasce de baixo: através das comunicações de
massa, ele [o produto de consumo] lhes [às classes populares] é proposto sob a forma de
mensagens formuladas segundo a classe hegemônica”. Temos, então, um proletariado
3 Conforme Feijó, a vida associada refere-se ao surgimento do proletariado em suas manifestações de vida
social: o trabalho, o lazer e a família na dinâmica da vida urbana.
29
que passa a consumir modelos culturais burgueses, mantendo-os em uma forma de
expressão autônoma. É neste contexto que aparecem novos produtos da cultura que, a
princípio, não herdam o status de arte devido à procedência não elitista. É o que ocorre
de início com a fotografia, a música popular, o cinema e os quadrinhos. Os quadrinhos,
objeto de atenção aqui, despontam com todo vigor neste ambiente social. Sobre esse
momento, afirma Feijó (2007, p.10):
[...] surgia uma nova sociedade, altamente urbana e industrial, com
muitos milhões de seres humanos anônimos circulando, trabalhando,
consumindo. Esta sociedade tão grande, formada por tantas pessoas,
tão heterogênea e complexa acabou gerando códigos e regras próprias.
Dentre essas regras, uma nova para os produtos de cultura chamada
mercado: muitos artistas e profissionais passariam a criar para vender
entretenimento para o grande público.
Os quadrinhos assemelham-se aos folhetins romanescos do século XIX, por
terem o jornal e a revista como veículos de disseminação. Os enredos folhetinescos
influenciaram, ou melhor, constituíram as matrizes das radionovelas e telenovelas do
século XX, tão apreciadas e de tão elevados índices de audiência. As narrativas de
folhetim eram produzidas em capítulos e publicadas em fragmentos nos jornais e
revistas da época. Posteriormente, tais obras eram editadas em livros, atentando-se para
o fato de que o sucesso dos romances era a garantia da comercialização em grande
escala dos jornais e revistas. Como já foi dito, era nesses veículos que os capítulos eram
publicados, semanal ou mensalmente, e aguardados com indisfarçável sofreguidão pelos
ansiosos leitores.
Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, no
continente europeu; A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, alguns romances de
Machado de Assis e O Ateneu, de Raul Pompéia são exemplos de narrativas de folhetim
que, no Brasil, passaram por aquele processo de divulgação. Ocorre que os efeitos são
díspares: na Europa, tais procedimentos de circulação eram rechaçados pelos críticos
que priorizavam a editoração em livros, no Brasil, a ausência de editoras determinava a
profícua circulação do romance através dos jornais, único instrumento por meio do qual
as obras se tornavam acessíveis para o pequeno grupo de alfabetizados.
Mesmo os quadrinhos não sendo considerados como um produto cultural nobre
como a literatura clássica, sua origem e a dos romances guardam semelhanças:
30
os quadrinhos aparecem em forma de tiras humorísticas ou de aventuras nos jornais que
circulavam no referido período. Tiveram como pioneiro o suíço Rodolph Topffer, que
produziu, ainda na primeira metade do século XIX, a literatura de estampas, numa
referência aos desenhos caricaturados. Na Alemanha, destacou-se Wilhelm Busch em
1865, com seus personagens Max e Moritz. No Brasil, o italiano naturalizado Ângelo
Agostini notabilizou-se, em 1859, com As aventuras de Nhô Quim. Na França, o
destaque é Georges Colomb, que em 1889, lança A Família Fernouillard.
Semelhantemente ao romance de folhetim, que, como já foi dito, se valia do
jornal e da revista como instrumentos de circulação, em 5 de maio de 1895, a história
em quadrinhos é publicada num jornal. Nasce também como gênero narrativo próprio
da cultura de massa, com a publicação de Yellow Kid, do americano Richard Outcaut. E
o sucesso tornou-se fato. É ainda Feijó (2007, p.19) quem relata:
Em páginas coloridas dominicais e depois em tiras diárias, as histórias
em quadrinhos se transformavam em fenômeno. Os grandes jornais
travavam uma disputa feroz para publicar as tiras mais populares, pois
elas ajudavam, e muito, a vender mais. Aos poucos o tema básico [...]
foi se ampliando. Das travessuras de crianças [...] evoluiu para
situações cômicas de famílias quase comuns. [...] A fórmula para fazer
sucesso foi inventar coisas absurdas e engraçadas, a partir de situações
típicas do cotidiano das famílias. A história começava e terminava na
mesma tira (ou página dominical). Prevalecia o desenho caricatural,
não havendo nenhum realismo estético [...].
Os quadrinhos não gozaram da aprovação da elite cultural por ser uma arte
sequencial, associada sempre à ideia de comunicação para um público inculto e, como
tal, privilegiava a linguagem iconográfica. A adoção do imagético acarreta, ainda hoje,
preconceitos nos leitores tradicionalistas que acreditam na superioridade da escrita em
detrimento de outros códigos de linguagem. Este pensamento elitista permeou os meios
intelectuais até o final do século XX, passando a ser rechaçado de modo mais veemente,
com o advento das tendências e ideias dos chamados Estudos Culturais.
Atualmente, além de serem defendidos como arte, os quadrinhos conquistam
espaço na escola, uma das instituições que tradicionalmente oficializam o saber, a arte e
a cultura. A princípio utilizados como material de ilustração das análises lingüísticas e
gramaticais nos manuais de língua portuguesa foram tratados, posteriormente, como
objeto de arte nas práticas reprodutoras da educação artística até serem estudados como
gênero textual em livros didáticos de redação.
31
No âmbito da academia, surgem alguns esforços para colocar os quadrinhos no
patamar de objeto de estudo, num trânsito entre a interação com a comunicação de
massa e as reflexões que timidamente buscam colocá-los no universo da cultura e da
linguagem. Ao se observar essa tentativa, torna-se importante elencar as marcas e
aspectos da linguagem com a qual os quadrinhos passariam a se qualificar como objeto
de cultura.
Paulo Ramos (2009) observa que, em sua constituição, os quadrinhos
apresentam-se como produto da cultura que dialoga com recursos inerentes a outros
resultados culturais. Valem-se da caricatura para a acentuação das formas; do desenho,
retira alguns predicados, que ajudam na caracterização da personagem; da fotografia,
observam como se realiza a retratação e a aproximação com o real; da pintura, exploram
o jogo com as cores, já que o cromatismo também pode ser utilizado na composição de
aspectos informacionais; do texto dramático, comungam com a base dialogal, elemento
importante na construção do enredo, sem se perder de vista que, assim como no texto
dramático, também aqui o narrador praticamente inexiste; do cinema tomam emprestada
a habilidade com o trabalho de angulações e perspectiva de cenas. Para o teórico, os
quadrinhos constituem uma forma de linguagem que há mais de um século ostenta
marcas próprias:
O ambiente quadrinístico já teria se “emancipado” e constituído [...]
possibilidades próprias de linguagem. [...] O espaço da ação é contido
no interior do quadrinho. O tempo da narrativa avança por meio da
comparação entre o quadrinho anterior e o seguinte ou condensado em
uma única cena. O personagem pode ser visualizado e o que ele fala é
lido em balões, que simulam o discurso direto. (RAMOS, 2009, p.18).
Moacy Cirne (2000, p.174) conceitua os quadrinhos destacando-lhes o corte –
espaço em branco entre cada quadro –, um dos elementos próprios da gramática desta
linguagem. Segundo esse teórico,
[...] as historietas em quadrinhos, com mais de um século de
existência, sempre se marcaram por uma textualidade gráfico-visual,
determinada por mecanismos narrativos impulsionados pelos cortes
que, como já vimos, são igualmente gráficos: cortes que, em última
instância, em sendo espaciais e/ou temporais, preenchem e alimentam
o imaginário da própria narrativa, aqui, nesta precisa articulação entre
o dito (as imagens) e o não-dito (as elipses provocadas pelos cortes),
se dá o lugar semiótico das “historietas seqüenciadas”.
32
Ramos destaca a riqueza de possibilidades das variantes dessa linguagem, o que
leva os estudiosos a considerar os quadrinhos um hipergênero que agrega outros, cada
um com suas peculiaridades. Em suma, trata-se de um rótulo abrangente com que se
nomeiam os diversos subgêneros, resguardando-se, é lógico, as especificidades com que
cada um se apresenta, como a charge, o cartum, a tira cômica, a tira seriada, a tira
seriada cômica e as histórias em quadrinhos.
Existem, conforme Ramos, tendências de abordagens que preferem sistematizar
as histórias em quadrinhos por temáticas, tais como super-heróis, terror, infantil,
faroeste, ficção científica, humor, mangá, erótica, as extintas fotonovelas, o jornalismo
em quadrinhos e a literatura em quadrinhos (esta última, foco desta pesquisa).
Nota-se a complexidade tipológica e a diversidade que não está fixada. Podem
surgir novas possibilidades, por se tratar de um produto cultural. Também é fato a
identificação dos quadrinhos como gênero que recebe dos estudiosos pelo menos três
tratamentos teóricos. Há os que consideram os quadrinhos como um grande rótulo que
congrega diferentes possibilidades de gêneros; há os que englobam as produções de
gênero cômico como um rótulo maior denominado de humor gráfico ou caricatura
(charge, cartum caricatura e tiras); e os que aproximam parte dos gêneros às charges e
tiras da linguagem jornalística.
Ramos (2009, p.24), de forma bem didática, assim explica esta incidência
tipológica dos quadrinhos e aponta para a complexidade deste assunto, que carece de
estudos mais aprofundados:
A diversidade de gêneros, neste caso, está atrelada a uma série de
fatores, como a intenção do autor, a forma como a história é rotulada
pela editora que a publica, a maneira como a trama será recebida pelo
leitor, o nome com o qual o gênero foi popularizado e que o tornou
mais conhecido junto ao público.
A discussão aqui travada se alinha aos estudos que percebem os quadrinhos
como uma grande denominação, à qual se aglutinam diferentes possibilidades de texto,
entre eles a história em quadrinhos. Em última análise, são elaborações, ora defendidas
como arte, ora como mero produto de massa. Independentemente do tratamento teórico,
trata-se de um objeto cultural cuja recepção apresenta patamares históricos dignos de
nota também na academia.
33
Como arte, os quadrinhos são uma forma de linguagem cuja textualidade se
materializa na associação entre imagem e palavra para o desvelamento de uma narrativa
e primam pela centralização no iconográfico. Ou seja, apesar da importância da palavra
e do discurso, a função tida como fundamental reside na manipulação da imagem, o que
permite ser o quadrinho rotulado também como arte.
Um dos defensores das histórias em quadrinhos como arte sequencial é Will
Eisner, quadrinista respeitado por construir peças em que se privilegiam a riqueza da
trama narrativa e as inovações gráficas dos trabalhos. Ele é o criador do personagem
mítico Espírito, da obra The Spirit, série de revistas cuja publicação inicial ocorreu em
março de 1947. O quadrinista elaborou um compêndio conhecido como Quadrinhos e
Arte Sequencial (1989). Neste trabalho, discorre sobre os postulados do produto
artístico, reflexões estas oriundas de cursos ministrados ao longo de vários anos na
School of Visual Arts de New York.
Eisner defende os quadrinhos como arte sequencial que requer um tratamento
mais sério e acadêmico. Tal comportamento deve advir tanto por parte dos profissionais
como da crítica, uma vez que “[...] desde a primeira aparição dos quadrinhos na
imprensa diária, na virada do século, essa forma popular de leitura encontrou um
público amplo e, em particular, passou a fazer parte da dieta literária inicial da maioria
dos jovens” (EISNER, 1999, p.7).
A arte sequencial é apresentada pelo pesquisador em questão como uma antiga
forma artística ou método de expressão com origem na pintura rupestre dos homens da
caverna na Pré-História. Esta arte está presente nos vasos egípcios e greco-romanos da
Antiguidade e nos afrescos das igrejas da Idade Média. Desenvolveu-se até chegar à
forma das tiras e histórias em quadrinhos nos jornais e revistas, a partir da disseminação
dos produtos da imprensa. É indubitável a conquista de uma posição de aceitabilidade
desta forma de arte na cultura popular do século XX.
Na academia, por motivo de preconceito em relação ao público-leitor,
circulação, uso e temática, tal arte tem sido ignorada como objeto de discussão. Apesar
de cada elemento constituinte desta forma artística (design, desenho, criação artística)
ter merecido consideração de forma isolada no campo da arte, esta combinação única
tem recebido um espaço ainda reduzido no meio artístico e literário.
Para serem considerados dignos de um exame intelectual sério, Eisner destaca
que os quadrinhos devem se ocupar de temas de maior importância, não se restringindo
34
apenas a trabalhos artísticos de boa qualidade. Há de se observar, também, a
necessidade de atenção da crítica e do profissional dos quadrinhos para o novo
momento da história do homem. Trata-se de uma época na qual o rápido avanço da
tecnologia gráfica e o grande enfoque na comunicação visual apontam para a
emergência de se reconsiderar a arte sequencial como objeto de cultura em franco
crescimento, no que concerne a sua receptividade entre o leitor moderno.
Eisner ressalta que a história em quadrinhos não é uma arte de comunicação
visual simples. Segundo ele, este objeto
[...] lida com dois importantes dispositivos de comunicação, palavra e
imagens. Decerto trata-se de uma separação arbitrária. Mas parece
válida, já que no mundo moderno da comunicação esses dispositivos
são tratados separadamente. Na verdade, eles derivam de uma mesma
origem, e no emprego habilidoso de palavras e imagens encontra-se o
potencial expressivo do veículo. (p. 13)
O referido pesquisador também observa que a tradicional produção instintiva,
liderada pelos profissionais da arte sequencial, possibilita uma leitura depreciativa dos
quadrinhos por parte dos apreciadores da arte clássica. Estes artistas contentam-se
apenas em concentrar esforços para desenvolver a técnica artística e perceber o público
e as exigências do mercado. Por se tratar, porém, de uma arte de comunicação visual e
não de uma simples aplicação de arte, torna-se necessário o desvendamento dos
componentes complexos dos elementos até então considerados instantâneos, com que se
procederá à explicação dos parâmetros desta forma artística.
Na constituição das histórias em quadrinhos, Eisner destaca os elementos
complexos, Ramos focaliza a linguagem específica e Eco (2008) fixa a semântica
própria desta arte. Trata-se de elementos constituintes do texto quadrinístico, nos quais
o leitor deve centralizar sua atenção com vistas à melhor leitura e compreensão da
história.
Entre os diversos elementos, o quadrinho ou requadro, é o elemento
caracterizador desta arte sequencial. Cada quadrinho reúne o fragmento da história em
que estão presentes o local, o momento e as personagens envolvidas. É como se o
instante fosse congelado e ocorresse, então, a encapsulação do fragmento da ação do
quadrinho, possuidor de diversas formas de contorno. Estas molduras trazem
informações semânticas específicas de acordo com o contexto. A sucessão de requadros
35
compõe uma forma de continuidade ideal, por meio de uma fatual descontinuidade.
Cabe ao leitor, com sua imaginação, soldar esses elementos, aparentemente disjungidos.
Assim, a leitura como continnum possibilitará a resolução de uma série de elementos
estáticos e tornará a história uma cadeia dinâmica.
Outro elemento importante é a expressão do tempo, decisiva para o sucesso da
narrativa visual. Para que a impressão de realidade se confirme, o tempo (ordenamento
e sequências de imagens) e o timming (cadência visualizada de uma ação em curto
espaço de tempo) tornam-se elementos ativos da criação.
Destaca-se também a primeira página da história em quadrinhos, que se
comporta como a introdução da história. Ela é o trampolim para a narrativa,
estabelecendo um quadro de referências do que transcorrerá no enredo.
Acresçam-se a postura do corpo e os gestos das personagens como elementos
desta linguagem que assumem papel preponderante, visto que a maneira como são
utilizados pode modificar e definir o significado que se pretende dar às palavras. Neste
sentido, Eisner (1999, p.100) observa:
Não se sabe muito sobre o local ou o modo de armazenamento no
cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam
compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio
que, quando uma imagem é habilidosamente retratada ao ser
apresentada, ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o
reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção. Trata-se aqui,
obviamente, da memória comum da experiência.
De igual importância, a perspectiva funciona como mecanismo artístico com que,
de certa forma, se instaura a questão do ponto de vista, assumindo função primordial na
leitura. Neste sentido, torna-se possível encaminhar o leitor a propósitos que estejam de
acordo com o plano narrativo do autor.
O discurso nos quadrinhos é o elemento que instaura a enunciação do narrador e
em maior grau das personagens, tornando-se fio condutor da narrativa. Está relacionado
com a disposição do balão e da legenda. O balão é um recurso gráfico de representação
da fala ou pensamento, apresentado geralmente por um signo de contorno, que busca
recriar um solilóquio, um monólogo ou uma situação de diálogo. A legenda, por sua
vez, representa a voz do narrador onisciente ou narrador-personagem. Aparece
envolvida por um contorno, geralmente no canto superior do quadrinho, por anteceder a
voz da personagem. Pode acontecer a legenda-zero, ou seja, a que se apresenta
36
desprovida da linha de contorno e também o recordatário, forma semelhante à legenda
usada nas tiras, a princípio utilizada como recurso de síntese da ação anterior, e que,
posteriormente, passou a indicar a simultaneidade de eventos.
O tipo de letra utilizado na composição das palavras assume uma expressividade
diferente. O formato da letra pode indicar a nacionalidade ou características da
personagem. Como afirma Eisner (1999, p.10), “[...] o letreiramento, tratado
“graficamente” e a serviço da história, funciona como a extensão da imagem. Neste
contexto, ele pode fornecer o clima emocional, uma ponte narrativa, ou a sugestão do
som”.
As estratégias de oralidade, por sua vez, são elementos que objetivam a simulação
da estrutura de uma conversação natural nas histórias em quadrinhos. Elas são efetivas
com o uso dos turnos conversacionais, dos assaltos de turno, dos recursos gráficos, da
presença de marcadores conversacionais, da representação da fala sem o uso de palavras
aceitas na ortografia da língua, das onomatopeias e de caracteres desconhecidos ou
signos icônicos como pregos, caveiras, estrelas para expressar termos de baixo calão,
por exemplo.
A cor nos quadrinhos, conforme propõe Ramos (2009, p.87), apresenta-se como
“[...] signos plásticos que contêm informação ora mais, ora menos relevante para
compreensão do texto narrativo, mas sempre com conteúdo informacional”.
Destacam-se também as metáforas visuais que são convenções gráficas – imagens
metafóricas – com que se expressa o estado psíquico dos personagens. Para Santos
(2009, p.112), elas ocorrem quando a imagem estabelece associação com um conceito
cuja explicitação se apresenta de modo diferente daquele apresentado pelo significado
previsível da expressão de base denotativa. Eco (2008, p.144) defende o ponto de vista
de que as metáforas visuais são instrumentos próprios do gênero, que se torna estatuto
iconológico, já canonizado.
Mesmo apresentando as formas de composição próprias acima pontuadas que as
qualificam como arte, as histórias em quadrinhos são, costumeiramente, colocadas em
circulação não como um fato estético de prestígio e de estrutura cada vez mais
elaborada. O texto quadrinístico é considerado muito mais como um modificador de
hábito, isto é, o quadrinho normalmente costuma ser visto, pejorativamente, apenas
37
como produto da cultura de massa, produto menor, de menos valia, que não merece
crédito e atenção, especialmente no ambiente escolar.
Como todo produto da cultura de massa, o quadrinho também interfere nos
padrões relacionados com o seleto universo dos objetos que apresentam uma linguagem
cuja fruição e recepção seriam privilégio apenas de um grupo igualmente privilegiado.
Como produto de massa dirigido a um público heterogêneo, a história em quadrinhos,
na verdade, circula como cultura homogênea no sentido de que, feita para consumo,
mostra-se como produto atento à média de gosto do público-alvo. A adequação do
objeto cultural ao gosto do consumidor é vista pelos apreciadores puristas e
identificados com os critérios do cânone como arte de mau gosto. De forma intolerante,
é entendida como de mau gosto aquela arte produzida em obediência às predileções do
grande público e que desconsidera os paradigmas ditados pela cultura erudita.
Assim, os quadrinhos, como todo produto da cultura de massa, também são
rotulados como arte menor, comprometida principalmente com o mercado e resultante
dos propósitos da indústria cultural4 da qual emergem frutos que
[...] tendem a provocar emoções intensas e não mediatas: [...] ao invés
de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na: ao
invés de a sugerirem, entregam-na já confeccionada [...] colocados
dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à “lei da oferta e da
procura” [...] seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e
sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o
que devem desejar. (ECO, 2008, p.70).
Para os apreciadores e consumidores dos quadrinhos, há nas histórias um objeto
cultural de massa que traz um acervo de informações e dados diversos acerca do mundo,
sem sugerir índices de discriminação próprios dos produtos dirigidos à elite. Além de
sensibilizar o homem contemporâneo, o texto quadrinístico torna o indivíduo mais
participante da vida social, visto que sua recepção, a princípio, não contempla apenas
um público restrito. Ao contrário, aquele texto assumiria aspectos democráticos, uma
4 Mecanismo criado pela sociedade capitalista que fabrica produtos adaptados ao consumo das “massas”,
os quais, geralmente, surgem como resultado do gosto destas massas que os consumem. Visa-se, antes de
tudo, ao mercado. Dentro dessa perspectiva, tudo o que é produzido pela indústria cultural é considerado
“mercadoria”, conceito aqui trazido tal como Marx o cunhou – unidade dotada de valor de uso e valor de
troca, destacando-se este último como mola-mestra do consumo (valor simbólico). (MACHADO, Rose
Marques, 2009. p.87).
38
vez que a abrangência de sua recepção atenuaria ou neutralizaria o sentido de diferença
de classes.
As histórias em quadrinhos – objeto originalmente elaborado para a cultura de
massa – não aspiram ao lugar de uma suposta cultura superior identificada com a das
elites. Tal classe social seria a princípio o público-alvo ao qual se destinaria o texto
literário. Tradicionalmente tida como produto da cultura letrada, a literatura primaria
pela ostentação de uma linguagem verbal específica e dotada de certa singularidade,
cuja riqueza inesgotável se renovaria por meio do contato com cada leitor.
Convém observar que a linguagem literária não seria um código acessível e
disponível a qualquer leitor, pois seus componentes e significados nem sempre são
decifrados e interpretados com facilidade. Em oposição a esses aspectos, os quadrinhos
dispõem de melhores possibilidades de inserção no universo maior de leitores. Em
refutação a tal argumento, os críticos defensores da arte sacralizada ou canônica
afirmam que o largo consumo promovido por tal acesso gera certo embotamento das
capacidades receptivas do consumidor, em razão de ser a cultura de massa portadora de
uma linguagem extremamente simplificada.
Não se perca de vista que, desde o final do século XIX, algumas posições vão-se
fazendo notar no que concerne à abertura e à democratização da obra de arte, isto é,
desenvolvem-se, agora, mecanismos identificados com propostas de disponibilização
das representações artísticas também ao grande público. Assim as novas relações
econômicas instauram sentidos, propostas, objetivos, abrangências inusitados e
revolucionários também no campo da arte.
Neste sentido, Walter Benjamin (1994, p.166) aponta para as tendências
evolutivas da arte já assinaladas nas condições produtivas do capitalismo. Ele
desenvolve discussões acerca da reprodutividade técnica, atividade intensificada pela
indústria cultural – mecanismo próprio deste sistema econômico – e assinala que “[...]
em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens”.
O referido filósofo situa a reprodutividade técnica como um acontecimento
natural e que gera exposições não costumeiras da arte, colocando em cheque o que,
habitual e tradicionalmente, chama-se de autenticidade e aura. A reprodução artística
rompe e desfaz sentidos identificados com “[...] o aqui e o agora do original [que]
constitui o conteúdo da autenticidade [da obra, da qual brotaria] [...] uma tradição que
39
identifica [o produto artístico] [...] até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre
igual e idêntico a si mesmo”, destaca o teórico (1994, p.167). Assim, o objeto
reproduzido torna-se outro objeto, normalmente visto de modo pejorativo e como de
menos valia artística.
É com base nessa perspectiva depreciativa que sempre se defendeu a aura do
objeto de arte como um elemento próprio de sua essência, inerente a sua estrutura e que
o sacraliza ante outras produções. A aura é defendida de modo abstrato como “[...] uma
figura singular, composta por elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma
coisa distante, por mais perto que esteja” (BENJAMIN, 1994, p.167). Conforme Walter
Benjamin (1994, p.168), a reprodutividade técnica passa a gerar a quebra da aura do
objeto de arte por aproximá-lo das massas, como ele explicita:
[...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte
é a sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito
além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da
reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido
[grifos do autor]. Na medida em que ela multiplica a reprodução,
substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na
medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do
espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.
Atualmente, no rastro das discussões de Benjamim, difunde-se uma nova visão
da cultura de massa e da indústria cultural: na sociedade globalizada, o grande alcance
dos produtos centrados na imagem e no audiovisual provoca uma ressignificação do
consumo e da própria sociedade que o promove. Este processo não se centra na visão da
produção desenfreada, que disponibiliza bens culturais desencadeadores da alienação da
massa. Cada consumidor-receptor, em sua subjetividade, ressignifica com a própria
experiência os bens disponíveis ao consumo. Neste sentido, desponta uma nova visão de
indústria cultural que possibilita ao receptor o status de sujeito e não de mero objeto
passivo na engrenagem do sistema capitalista. Desenha-se, desse modo, a ideia de
economia criativa.
Há na economia criativa o desvelamento de um novo olhar sobre os produtos da
indústria cultural, a qual redireciona a atenção do consumidor para detalhes que captam
a dinâmica da vida social. Numa leitura distanciada da condição de alienado, o
indivíduo é visto antes de tudo como ser que, além de pensar e agir, experimenta
40
sentimentos, ressignifica e transforma os bens culturais. Neste sentido, há o afastamento
da condição de consumidor passivo e acrítico que age impensada e aleatoriamente.
Sobre essa nova postura, assim se expressa Rosi Marques Machado (2009, p. 91):
[...] pode-se perceber o significado, ou re-significado, do próprio
consumo dos bens culturais que esse tipo de abordagem permite, ao
voltar-se para os “detalhes” e com isso captar a dinâmica da vida
social, onde os indivíduos não só pensam e agem de acordo com a
razão instrumental, mas também conferem significados distintos aos
mais diversos elementos que compõem a sua vida e que lhe dão um
sentido próprio. Se os bens materiais são também importantes nas
interações humanas para além de sua dimensão econômica,
certamente, ao contrário do que afirmaram os frankfurtianos, os bens
culturais não são exclusivamente mercadorias, sem qualquer valor
cultural. Afinal, eles são o “alimento subjetivo” dos indivíduos,
servindo-lhes de referência para constituírem suas identidades, para se
reconhecerem ou se estranharem neles, por isso mesmo a escolha
sobre aquilo que vai se “alimentar” não se alimenta por uma razão
instrumental somente. Assim como também esses bens culturais
“alimentam” as relações inter-individuais, incluindo a “forma lúdica
de socialização”, a sociabilidade.
Cirne (2000, p.23) é contundente ao afirmar que, na contemporaneidade, a falta
de informação é responsável pela leitura enviesada dos produtos da indústria cultural.
Observemos sua argumentação:
A desinformação criará falsas leituras, falsos questionamentos, falsas
perspectivas. Aliás, deixemos claro: a desinformação, seja em relação
aos bens estéticos da indústria cultural, seja em relação aos demais
discursos artísticos e literários, servirá apenas para gerar preconceito
e/ou desvios ideológicos. Dizer que a indústria cultural provoca
“atrofia da imaginação”, como fizeram Horkheimer e Adorno, é
simplesmente ignorar o que ela produziu de mais significativo em
nosso século.
Segundo este pesquisador, a percepção diferenciada para produtos da indústria
cultural dependerá da forma de olhar. Ela implica conhecimento, inventa novos modos
cada vez melhores de ver determinados discursos e projetos artísticos, reinventa a
leitura e repensa o próprio viver. Nas histórias em quadrinhos, constata-se não a
alienação e, sim, o desafio ao leitor, que conforme as argumentações de Cirne (2000,
p.25) exercitará habilidades específicas de leitura:
41
[...] que se dá, ao mesmo tempo, de forma múltipla e simultânea, que
constrói sua temporariedade específica no interior da narrativa que, se
de um lado, é a narrativa proposta pelo autor, do outro é a narrativa
mentalmente trabalhada pelos leitores.
Dessa forma, visualizamos as histórias em quadrinhos como um produto cultural
perpassado por duas perspectivas de recepção. A primeira vê o quadrinho como arte que
se destaca por ostentar uma linguagem rica e específica, conectada à comunidade
audiovisual das últimas décadas. A segunda visualiza o quadrinho como produto de
massa caracterizado pela significativa acessibilidade e pelas possibilidades de
ressignificação que estabelece, mas tradicionalmente visto como universo pleno de
carga pejorativa de que resulta o embotamento e depauperação dos estilemas 5.
Preconceitos à parte, esta arte sequencial/produto da cultura de massa deve ser
tomada no sentido proclamado por Alain Rey, para quem ela seria um “[...] fragmento
fértil de uma história do desejo social [...] que renova os caminhos do olhar, reinventa a
leitura, modifica a linguagem” (apud CIRNE, 2000, p.24). Neste patamar encontra-se a
modalidade dos quadrinhos que dialoga com a literatura e passa a ser denominada
quadrinizações literárias por uns e literatura em quadrinhos para outros.
1.3- A literatura em quadrinhos como tradução
Como todo objeto da cultura, a literatura em quadrinhos, perpassada por
linguagens, estabelece, por sua natureza sígnica, processos de diálogo e por esta
dimensão, requer um olhar mais crítico em relação ao processo que a instaura: a
transmutação entre o literário e o quadrinho. Aqui este processo recebe denominações
específicas de tradução e adaptação, que em si podem ser tomadas como sinônimas.
A tradução,processo comumente entendido como transformar uma língua em
outra para efetivar entendimentos entre culturas, sempre foi tomada como o transitar de
um código verbal para outro também verbal, utilizados para promover entendimento
entre comunidades cultural e linguisticamente distintas. Entre os diversos estudos
referentes à tradução, destaca-se o trabalho de Roman Jakobson que amplia a percepção
desta atividade em três possibilidades de realização: a intralingual como interpretação
5Segundo Eco (Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008), trata-se dos elementos de
caráter unitário que se identificam na obra enquanto estrutura e apresentam características que os
reassociam aos outros estilemas e estrutura original.
42
dos signos verbais por outros também verbais da mesma língua; a interlingual,
interpretação de signos verbais de uma língua para outra distinta; e a intersemiótica,
interpretação dos signos verbais através de signos não verbais, ou seja, a transposição
“de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a dança, o
cinema, a pintura” (apud PLAZA, Júlio.2008, p.26)
Desta forma, pode-se situar literatura em quadrinhos, ou quadrinização literária,
como um processo de tradução intersemiótica, no qual o signo verbal é transmutado
para o signo não-verbal, num processo de transposição criativa. Apesar de aparentar
erroneamente um simples processo de “cópia” do literário por meios de ilustrações, faz-
se necessário tecer algumas considerações que comprovarão o intrincado processo de
criação signíca que se dá neste objeto ainda muito mal compreendido.
Quatro pontos devem ser norteadores: o entendimento de signo icônico, a
relação entre signos estéticos distintos neste tipo de tradução, a questão da fidelidade ao
texto literário e os motivos de tradução intersemiótica entre literatura e quadrinho.
Conforme Plaza (2008), por ícone entende-se o signo que opera pela
semelhança entre suas qualidades, seu objeto e seu significado. Ele potencializa-se
porque propicia sentimentos (percepções subjetivas) e não a leitura objetiva própria da
remessa de comunicação fora dele. Tais signos são materializados em formas primárias
nas imagens, nas relações análogas dos diagramas e no paralelismo das metáforas,
diferente do índice, que opera na proximidade estabelecida com o objeto real
instaurando comunicação direta e distinta do símbolo, que se configura pela
proximidade instituída entre material e significado, e relacionando-se com o objeto real
pela convenção. Contudo, todo signo difere da coisa significada, pois não há identidade
nem função representativa. A função representativa se dá entre signo e pensamento. Os
três signos se interpenetram na semiose, processo este entendido como ação do signo de
transformar-se em outro signo numa cadeia ininterrupta com meta de estabelecimento da
comunicação. Na plenitude tricotômica dos processos de semiose ocorre porém, a
dominância do simbólico sobre o icônico e indicial.
Sendo o ícone o dominante no signo estético, observa-se que as qualidades estão
em seu objeto imediato (significado construído) e não se pretende à remessa fora dele,
como afirma Plaza: “O signo estético não quer comunicar algo que está fora dele, nem
“distrair-se de si” pela remessa a outro signo, mas colocar-se ele próprio como
objeto.”(p.25). Neste sentido, o signo estético que não tem aptidão para substituir outro
43
objeto, constitui-se como objeto real no mundo e em sua totalidade é visto como
fenômeno que se erige na dominância do icônico visto que, conforme Mukarovski
(apud.Plaza, Julio.p. 23)
[A produção] da linguagem em função estética significa, antes de mais
nada, uma reflexão sobre as suas próprias qualidades. É no âmago
destas qualidades que cria a diferença entre signo autônomo, auto-
referente e a linguagem funcional de uso comunicativo.
Neste patamar encontram-se as artes como a literatura, que por meio da
ambiguidade poética concede um tom de imprecisão à mensagem criando a tendência
para a auto-verberação. E daí surge a necessidade de recriá-la pela tradução poética.
Na tradução poética o que se pretende é a produção dos efeitos do texto-base,
utilizando, para isso, diferentes meios. É o que ocorre nas quadrinizações literárias: um
processo de tradução do símbolo estético (literatura) por meio de outro símbolo
igualmente estético-icônico (os quadrinhos), ao que Paz denomina “transmutação”,
também nominada de transcodificação criativa. Trata-se de um processo relacional,
promovido pelo trânsito de um código a outro, ambos estéticos e por conseqüência
icônicos, tendo como guia a criatividade. No produto final – a literatura em quadrinhos
– o verbal passa a ceder espaço à imagem. Procede-se, então, a ampliação dos efeitos do
texto literário na literatura em quadrinhos, visto que ela se torna mais compreendida
pela imagem.
Por conseguinte, segundo Plaza (2008, p.31-32), na tradução a relação entre
signos estéticos distintos se dá pela semelhança entre suas qualidades posto que:
[...] o signo estético, quando é traduzido por outro signo estético,
mantém com este uma conexão por similaridade e contigüidade por
referência. A tradução mantém uma relação íntima com seu original,
ao qual deve a sua existência, mas é nela que “a vida do original
alcança sua expressão póstuma mais vasta e sempre renovada”. A
tradução modifica o original, porque esta também é produto de uma
leitura e, ambos, original e tradução, estariam impossibilitados de
chegarem a completar sua intenção que é precisamente a de atingir “a
língua pura”.
Assim, entre literatura e quadrinização temos a conexão pela similaridade e
continuidade pela referenciação, pois a leitura da primeira provoca sentimentos que
terão continuidade e amplificação na expressão renovada da segunda.
44
É nesta conexão que se abrem as discussões sobre a fidelidade do texto traduzido
em relação ao texto-base. A criação na tradução intersemiótica caracteriza-se pelas
escolhas no sistema sígnico que determinam a dinâmica da criação e afastam a tradução
do traduzido. Mesmo relacionado ao texto-base, um novo texto é construído com outros
signos que tendem a propiciar novos objetos imediatos, novas estruturas que se
disvinculam do original. Assim,
[...] a tradução como signo enraizado no icônico tem no princípio da
similaridade a única responsabilidade de conexão. A cadeia signo-de-
signo, mesmo a nível icônico, comporta tempo, mudança e
transformação, onde a identidade está excluída de antemão,
comportando incompletude e diferença, intervalos que são
preenchidos pelo signo tradutor, pois o signo sugere, elide, aponta,
delimita, indica, mas sempre dentro do sistema de relações analógicas
de sua semiose.(PLAZA,2008,p.32).
A quadrinização literária tem com a literatura, seu texto-base, a relação de
similiridade, não de identidade. A representação icônica pela imagem não é igual ao
texto literário, pois o signo tradutor transforma o texto-base, fazendo surgir novas
possibilidades de complementação da incompletude do texto, via leitura do tradutor. A
fidelidade, neste caso, é “mais uma questão de ideologia, porque o signo não pode ser
“fiel” ou “infiel” ao objeto”, visto que ambos são em si, signicamente, diferentes. A
tradução é um substitutivo que aponta para o texto-base. A maior ou menor
proximidade da tradução em relação ao texto-base dependerá do potencial de criação e
referenciação do tradutor, que propiciará o aumento ou diminuição da informação
estética, o que nos fornecerá o nível e a qualidade da operação tradutora.
A tradução literária não pode se fechar na questão diminuta e ilusória da não
existente igualdade entre o texto-base e o texto traduzido. A questão maior está na
compreensão do motivo de traduzir objetos estéticos de outra época. A tradução
intersemiótica pode ser tomada de forma conservadora, uma recuperação do passado
como nos moldes de um fetiche a ser mantido nostalgicamente. Ou de forma crítica,
como modo de propiciar melhor compreensão do presente pela percepção das ações do
passado. É o protocolo de leitura instaurado sobre a tradução que determinará a função
deste novo objeto da cultura.
A tradução intersemiótica estará colaborando com a manutenção da exclusão, da
superioridade de um objeto cultural sacralizado enquanto mantiver uma política de
conservação apenas da forma estética da elite que se propaga por signos favoráveis à
45
democratização da arte letrada. Em contrapartida, se esta recuperação da história se der
pela aproximação de culturas antes distanciadas pelas linguagens distintas (aqui a verbal
da elite letrada e a icônica dos produtos quadrinísticos) e propiciar uma leitura crítica do
passado em confronto com o presente, isto torna o projeto poético da tradução também
político, no sentido de transformação de visão, de atuação e de possibilidades.
Neste sentido, torna-se crucial a discussão de Benjamin com relação à visão de
história como linguagem e linguagem como história, para compreender a tradução como
uma forma mais atenta de ler a história do homem. Nesta perspectiva, o passado é uma
constelação de possibilidades em potencial, não apagadas na escolha feita que se tornou
o presente. O passado pode ser recuperado na leitura crítica e iluminar outras
possibilidades, instaurando novos presentes.
E na literatura em quadrinho é possível este repensar o homem e suas
possibilidades históricas em meio à abertura de outras possíveis leituras
1.4- Emergência e diversidade da literatura em quadrinhos
A literatura, objeto da cultura letrada, a partir da segunda metade do século XX
passa a dispor no mercado de novas formas de visibilidade que vão ao encontro das
linguagens contemporâneas, no que diz respeito às adaptações/ressignificações de
produtos inicialmente destinados a um consumo massivo – novelas, minisséries, filmes
e histórias em quadrinhos. Tais ressignificações descentralizam a palavra escrita, antes
tomada como categoria superior integrante de mensagem e agora recuperada como
linguagem despojada, ampliada, identificada e articulada com os recursos da imagem e
do audiovisual.
A literatura em quadrinhos surge como objeto cultural que promove a
dessacralização da arte, dispondo, de certa forma, da neutralização da pecha de veículo
de alienação, como foram rotulados os produtos da cultura de massa pelos
frankfurtianos6. Ela é também entendida como objeto cultural híbrido cuja divulgação
pode se fundar na socialização da arte. Neste sentido, a socialização não deve ser
6 Estudiosos da Escola de Frankfurt, elaboradores da Teoria Crítica na qual Horkheimer e Adorno
analisam a cultura de massa e a indústria cultural como elaboradores de produtos culturais que reorientam
as massas, não permitindo evasão e impondo esquemas para um comportamento conformista, que
sustentam as metas do capitalismo ( MACHADO, 2009).
46
vislumbrada apenas como a popularização do objeto, mas também como meio de
produção que encaminha a multiculturalidade e a interculturalidade, como observa
García Canclini (2008, p.XXVI-XXVII):
A hibridação, como processo de intersecção e transações, é o que
torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação
e se converta em interculturalidade. As políticas de hibridação
serviriam para trabalhar democraticamente com as diferenças [...]
A esta altura, há que dizer que o conceito de hibridação é útil em
algumas pesquisas para abranger conjuntamente contatos
interculturais que costumam receber nomes diferentes: as fusões
raciais ou étnicas denominadas mestiçagem, o sincretismo de crenças
e também outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o
culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas.
[grifos nossos].
Nem unicamente literatura, nem especificamente quadrinhos, mas como outro
objeto cultural, a literatura em quadrinhos reelabora a literatura já estabelecida na
tradição como clássica e de elite, dotando-a de uma linguagem nova – a dos quadrinhos
–, produto da cultura de massa, de natureza popular e urbana. As polarizações – de um
lado, a narrativa da palavra-arte para a elite letrada e, de outro, a narrativa da imagem
para as massas – transformam-se num entrelugar, isto é, numa intersecção das
possibilidades antes segregadas.
Para Martín-Barbero (2004), a trama comunicativa da revolução tecnológica,
marca do processo de globalização, acaba por introduzir um novo modo de relação entre
os processos simbólicos e as formas de produção e distribuição dos bens e serviços.
Apresentam-se intrincadas a produção e a comunicação, pois há uma conversão do
conhecimento em força produtiva direta. Neste sentido, a novidade seria a capacidade
tecnológica de reelaboração dos elementos simbólicos, afirma Martín-Barbero. Segundo
esta abordagem, novas sensibilidades são instauradas e visivelmente percebidas,
especialmente “[...] no entre-tempo dos jovens, cujas enormes dificuldades de conversar
com as outras gerações apontam para tudo o que na mudança geracional há de mutação
cultural” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.36). Esta dificuldade é bastante vivenciada na
relação do jovem com a literatura clássica, que representaria a geração não afeita às
inovações.
A literatura em quadrinhos surge nessa trama comunicativa a partir de 1930,
como um veículo que atende às novas sensibilidades, resgatando dois objetos culturais
47
distanciados no espaço de produção e no de recepção cultural.
Há uma literatura tradicionalmente identificada com a elite e com o deleite dos
letrados na tradição da escrita. Em outra direção, despontam os quadrinhos, pensados
pelo mercado e adequados à circulação de textos icônicos. Quanto à recepção, a
literatura sacralizada circula predominantemente no espaço acadêmico e escolar. Os
quadrinhos eram vistos como vulgarizados, até por serem consumidos na rua, nas teias
do urbano.
A congruência dos dois objetos culturais na literatura em quadrinhos possibilita
um consumo mais intenso da produção literária, disponibilizada agora também em
quadrinizações. Tal modalidade encaminha propostas de leituras do texto sacralizado
numa perspectiva de contemporaneidade, o que vale dizer que esta forma de interação
com o texto torna-o menos distanciado no tempo. Neste sentido, o quadrinho se
apresenta como um dos mecanismos através do qual a interação com a literatura
referendada como de excelência continua ocupando espaços de recepção. O quadrinho
como veículo de preferência das camadas mais jovens contribui com tal acerto.
A trama comunicativa dos quadrinhos se processa através da transmutação de
linguagens, uma vez que eles não se resumem à simples passagem de um código para
outro, ou seja, apenas a transladação da palavra para a imagem. Faz-se presente, pois,
um sistema de mediações e ressignificações propiciadas pela e para a leitura.
De um lado, há a literatura, linguagem centrada em si mesma, potencializadora
das significações do verbal escrito e cuja percepção semântica nem sempre é assimilada
por todos. Em outra direção, vicejam os quadrinhos que na linguagem icônica se mostra
por inteiro, logo, imediatamente, aproximando-se do receptor. Nos quadrinhos, ambas
as características descritas e qualificadas se fazem presentes, uma colaborando para o
desvelamento da outra, ambas imbuídas do propósito de montagem da interpretação. Há
uma reelaboração em termos da transferência da linguagem escrita para o icônico de
que resulta um produto caracterizado como cultura de massa. Este texto híbrido
conserva os elementos originais e constituintes de cada um dos objetos culturais.
Este novo produto textual/cultural ambienta-se ricamente nas discussões com
que se envolvem a comunicação e a educação, uma vez que ele entrelaça dois espaços
de saberes antes distanciados pela ideia purista de separação entre cultura de elite/arte
(literatura) e cultura de massa (quadrinhos). O quadrinho parece apagar a ideia corrente
de cultura superior, cultura inferior e média, até porque a presença deste novo produto
48
ultrapassa a noção de cultura de elite de certa forma relacionada com classe social
privilegiada. Por assim dizer, o quadrinho empreenderia o desfazimento de tal barreira,
possibilitando a própria circulação entre os leitores, numa identificação com princípios e
práticas deste momento também de globalização cultural.
Cirne (2000, p.177), pesquisador do tema, apresenta um posicionamento mais
cético quanto à literatura em quadrinhos. Para ele, tal produção não seria um texto
literário, haja vista que apresenta grafia, especificidade e ritmo próprios. A novidade
seriam as adaptações, para ele não merecedoras de tanto crédito, pois elas afastam os
quadrinhos de linguagem e objetivos que lhes são específicos, o que certamente
dificulta o diálogo com outras linguagens:
Há, decerto, uma primeira aproximação, a que diz respeito às
adaptações. Só que, grosso modo, tomadas historicamente, são
adaptações medíocres, se não pelas adaptações em si, pelo resultado
quadrinizante das mesmas. Não nos esqueçamos: são linguagens e
discursos substancialmente diferentes, com propostas e objetivos
díspares.
A dificuldade maior para a quadrinização da literatura, segundo Cirne, reside na
questão da transposição da poeticidade7 do texto literário para as imagens. Assim como
há o encantamento com a magia do verbal, os quadrinhos devem ser contemplados a
partir da riqueza gráfico-visual, advinda da aura literária. Transportar esta poeticidade
da palavra para a imagem, que se apresentaria dotada de certa temperatura gráfica, não
constitui uma habilidade do mundo quadrinístico.
Ressalvas à parte, é fato que um dos espaços em que este objeto cultural híbrido
circularia de modo bem adequado seria o da escola, lugar tradicionalmente visto como
palco da leitura literária. Neste sentido, na recente virada do século, a literatura em
quadrinhos ilustra bem os desafios da comunicação no campo da educação. Como
observa Martín-Barbero, a nova proposta de educação não só aponta para uma mudança
de antigos conteúdos, mas também sugere uma transformação na natureza do processo.
Vive-se um mundo de múltiplas demandas, que decorrem das tão enfatizadas questões
sociais e também das solicitações de natureza cultural.
7 Para o estudioso, a poeticidade não reside apenas no tecido textual dos poemas e contos; encontra-se em
filmes e quadrinhos. Aqui, o termo não se refere aos conceitos aristotélicos de poética, mas aos derivados
dos formalistas russos e do poema-processo com um caráter subjetivo-emocional. Existe mais como
leitura do que propriamente como informação. (CIRNE, 2000).
49
Conforme Martín-Barbero, muitos são os descompassos que retardam a
aplicação desta nova visão cultural do processo de conhecimento na América Latina.
Como elementos típicos desta condição, ele destaca o não cumprimento da
universalização da escolaridade básica, a deteriorização da qualidade do ensino, que
produz o analfabetismo funcional, e a encarnação e o prolongamento do regime de
saber, que privilegiam o texto escrito e a leitura passiva.
Assim, o tradicional modelo da comunicação pedagógica balizada pelo texto
escrito ainda reina nas salas de aula. Mesmo sendo “[...] assediado pelos quatro cantos
[pelo audiovisual, este paradigma] não só segue vivo hoje como se reforça ao colocar-se
na defensiva, defasando-se aceleradamente dos processos de comunicação que hoje
dinamizam a sociedade” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.337). Esta posição encaminha
processos de resistência ao “descentramento cultural”, isto é, dificulta o afastamento ou
pelo menos a neutralização da ideia do livro como único instrumento de excelência. As
barreiras oriundas das dificuldades de aceitação das mudanças vão incidir nos modos de
utilização das linguagens visuais e audiovisuais, chegando-se até a negar suas
potencialidades textuais e intertextuais.
Neste descompasso, a literatura em quadrinhos – objeto cultural que privilegia
não apenas o texto escrito, mas também possibilita o diálogo deste com os saberes da
sociedade imagética – não encontra muito espaço no mundo escolar e acadêmico. A
maior parte dos tímidos estudos acerca deste objeto cultural circula muito mais em
textos na internet que nas pesquisas e publicações da academia, carecendo, portanto, de
aprofundamento.
Destacam-se neste campo alguns posicionamentos de estudiosos dos quadrinhos
da área da comunicação e quadrinistas que produzem quadrinizações literárias, como
Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos, professores da Escola de Arte da USP,
participantes do Núcleo de Pesquisa em Histórias em Quadrinhos, que sempre
apresentam textos na internet e blogs com observações acerca da literatura em
quadrinhos.
Em seu livro intitulado A literatura em quadrinhos (2009), Vergueiro situa esta
literatura em quadrinhos como uma antiga prática de transposição de importantes obras
da literatura para a linguagem gráfica seqüencial, cuja origem remontaria ao ano de
1941, a partir de um empreendimento do norte- americano Albert Kanter. O referido
empresário acreditava que os quadrinhos poderiam ter fins muito mais nobres que o
50
entretenimento e, neste sentido, denomina-os de classic-comics. Posteriormente, as
quadrinizações tornam-se mais Cult e denomina a coleção de Classic Illustrated.
No Brasil, a quadrinização das obras literárias tem início em 1947 com O
Guarani, de José de Alencar, na série Clássicos Ilustrados da Editora Brasil-América.
Perdura nos anos 1950 com as traduções da literatura quadrinizada norte-americana e
ganha certa posição de relevo na década de 1960 com obras de Machado de Assis, Jorge
Amado, Joaquim Manuel de Macedo, José Lins do Rego, Gastão Cruls e Raul Pompéia,
nesta mesma editora. As duas obras abaixo são exemplos deste projeto:
Figura 1 : Ubirajara Figura 2 : A Moreninha
Clássicos Ilustrados: capa da Clássicos Ilustrados:capa da
primeira quadrinização, 1952. primeira quadrinização, 1952.
Na figura 1 temos a capa da primeira quadrinizada de Ubirajara, de José de
Alencar, da Edição Maravilhosa, nº 57, de André Le Blanc, datada de 1952. A
utilização do preto, branco e variações de cinza indicam o trabalho inicial na
quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção.
A retratação da personagem principal no espaço onde ocorrerão os fatos era o chamariz
para a leitura do texto. Na figura 2 destaca-se a adaptação de 1952 de A Moreninha que
destaca, já na capa, as principais personagens da trama urbana romântica em traços
leves e bens juvenis, típicas do público a que se destinava. Notemos a obra Ubirajara:
Figura 3 : Ubirajara Figura 4: Ubirajara
Capa 1 Capa 2
51
Figura 5: Ubirajara Figura 6: Ubirajara
Editora Brasil-América, Pág.1 Editora Brasil-América, pág. 9
Nas figuras 3 e 4 temos a capa (1 e 2) da história Ubirajara ainda encontrada na
década de 70. Na capa 1, além de estampar título, autor e gênero textual (quadrinização
de romance), encontramos alguns requadros relacionados à história que funcionam
como um convite à leitura. Também na capa 2 outros requadros são dispostos,
antecedidos pelos títulos da coleção. Na parte superior inseriu-se a marca da editora
Brasil-América. Toda a disposição dos elementos funciona como propaganda da
coleção.
Na figura 5 destacamos a primeira página que apresenta a personagem-principal
(Ubirajara) no ambiente onde ocorre a história (a mata) em postura de busca (síntese da
temática da história que trata da busca da identidade do índio araguaia). Na figura 6 são
perceptíveis os traços bem delineados em cenas nas cores preto, branco e cinza, em
paisagens de mata sem enriquecimento de detalhes como se nota no terceiro requadro.
Observemos a quadrinização da obra A Moreninha, circulante na década de
1970, que traz ainda incipiente produção das adaptações literárias no Brasil:
Figura 7 : A Moreninha Figura 8: A Moreninha
Editora Brasil-América, Capa 1 Editora Brasil-América, Capa 2
52
As capas 1 e 2 (figuras 7 e 8) continuam seguindo o padrão adotado pela Editora
Brasil-América – apresentação de requadros com cenas das histórias. Destaque para o
título e autor da obra literária, em letras maiores e estilizadas, o que indica a
ressignificação como forma de divulgação da cultura de elite. Neste trabalho, a
estratégia de apresentação da história é diferenciada, como se pode perceber abaixo:
Figura 9: A Moreninha
Editora Brasil-América, pág. 1
Figura 10: A Moreninha Figura 11: A Moreninha Figura 12: A Moreninha
Editora Brasil-América, Editora Brasil-América, Editora Brasil-América,
Pág. 4 Pág.19 Pág. 24
Primeiro (figura 9) temos uma página com as personagens de destaque, sendo
colocado na parte superior o casal protagonista, com maior destaque para Carolina (a
moreninha). Posteriomente é apresentada a biografia do autor e sua prestigiada
53
produção literária. A história quadrinizada é iniciada com um texto-comentário da
temática da obra (figura 10), seguido pela ilustração da personagem principal em
primeiro plano, tendo como fundo imagens em marca d’agua da mesma personagem em
supostos movimentos que a caracterizam, em conformidade com o texto descritivo, na
parte inferior da página. Esta estratégia acaba por focalizar Carolina como centro da
história. Do lado esquerdo, estão sobrepostos, de cima para baixo, os quadrinhos que
dão início à história com a conversa entre quatro estudantes no Rio de Janeiro.
Na figura 11, temos a materialização imagética do momento do jantar, quando
os estudantes chegaram à ilha onde residia a avó de um deles. Os traços semelhantes a
esboços indica a frágil qualidade das quadrinizações, percebida nos vazios do requadro:
em boa parte apresenta as personagens e pouco se exploram as possibilidades dadas
pelo texto romântico, rico em descrições, para uma melhor composição das cenas –
ambiente e paisagem. Na figura 12 vemos como o quadrinista recria a rememoração de
infância de Augusto: desenhos tipos rascunho e traços mais infantis, emoldurados por
requadros curvilíneos, para enfatizar o ato de rememorização.
Nos anos posteriores, decrescem estas produções, só voltando a ganhar corpo na
primeira década dos anos 2000, em função do aquecimento do mercado editorial das
histórias em quadrinhos que foram incluídas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs). As obras quadrinísticas passaram a ser sugeridas como forma de
complementação didática do ensino formal. Destaca-se, nesse período, o Livro de
contos em quadros com adaptações dos contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis,
“O bebê de Taratana Rosa”, de João do Rio, e “O apólogo brasileiro sem véu de
alegoria”, de Alcântara Machado. Em 2004, surge a obra Galvez, o imperador do Acre,
obra patrocinada pela Secretaria de Cultura do Pará.
A literatura em quadrinhos não se limita apenas a obras da literatura brasileira. A
Editora Zahar avança na seara de livros quadrinizados, publicando Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust; a Peirópolis trouxe Dom Quixote, de Cervantes, e Os
Lusíadas, de Camões; a Conrad lança as quadrinizações de A Metamorfose, de Kafka, e
A Relíquia de Eça, de Queiróz. Atualmente, as editoras trazem trabalhos bem estilizados
e singulares, de acordo com roteirista responsável pelo texto escrito e o ilustrador das
imagens. Em boa parte dos trabalhos de tradução, é o quadrinista o detentor dessa dupla
atividade. Notemos algumas produções deste período:
54
Figura 13: Os Lusíadas Figura 14: Os Lusíadas
Peirópolis, Capa 1 Peirópolis, pág. 6
Na figura 13 temos a quadrinização de Os Lusíadas (2006), pela Peirópolis. Fido
Nesti é o responsável por este trabalho que na capa já traz traços marcantes: o título da
obra refere-se apenas aos quadrinhos sem reportar-se à literatura – o título Os Lusíadas
(em letras maiores) seguido pela especifícação do gênero textual (em quadrinhos), a
autoria (por Fido Nesti), uma cena de destaque da história e o especificativo da coleção
(série clássicos em quadrinhos). O texto traz um mapa sintetizado dos principais fatos
da narrativa resumidos, que de forma inusitada, tem como narrador o próprio autor da
obra literária (Luis de Camões). Na figura 14 temos uma página da quadrinização que
retrata muito bem o estilo do artista que oscila entre traços fortes e delicados, com cores
intensas.
Figura 15: A Relíquia Figura 16: A Relíquia
Conrad, Capa 1 Conrad, pág. 91
A figura 15 traz, da Conrad, a capa da quadrinização A Relíquia (2007),
pontuando o autor da obra literária (Eça de Queiroz) e o ressignificador nos quadrinho
(Marcati). Destaca-se a sombra da personagem principal a pensar (com o diagrama-
55
balão do pensamento circundado de várias situações da história em desenhos
minúsculos. Na figura 16 destacamos uma página da história na qual se percebem os
desenhos em linhas caricaturais, com a predominância do preto, branco e cinza, com
texto verbal num português mais abrasileirado.
Figura 17: Gema Bovary Figura 18: Gema Bovary
Conrad, Capa 1 Conrad, pág. 21
Na figura 17 temos também, da mesma editora, a quadrinização Gemma Bovary
(2006) que traz a atualização da história Madame Bovary, de Flaubert, em contexto
contemporâneo, século XX, com a preservação dos argumentos da obra literária. A capa
em cores escuras destaca a personagem com nome modificado para Gemma, visual
moderno e um leve toque de sensualidade. Na figura 18 destaca-se uma página da
história na qual se percebe a grande presença do texto verbal, acompanhada das
ilustrações em requadros dispostos de forma mais livre.
Figura 19: O caçador de pipas Figura 20: O caçador de pipas
Nova Fronteira, Capa 1 Nova Fronteira, pág. 13
Na figura 19 a capa da quadrinização de O caçador de pipas (2011), da Nova
Fronteira, em parceria dos ilustradores Fabio Celoni e Mirka Andolfo apresentando
56
alguns requadros como chamariz. Na figura 20 destacam-se os desenhos com traços
bem delineados e cores fortes e harmônicas, conforme o ambiente retratado.
O trabalho de quadrinização da literatura atualmente não se detém somente aos
romances, contos, poesias, peças teatrais considerados produtos da cultura da elite
letrada, como também alcança a literatura em cordel, produto da cultura popular. São
obras literárias de diferentes épocas e autores, que tornaram releituras pelas
transmutações sígnicas, como se percebe nas ilustrações abaixo:
Figura 21: Galvez, o imperador do Acre. Figura 22: O homem que sabia javanês.
Quadrinização do romance de Quadrinização do conto de Lima
Márcio Souza, patrocinado pela Barreto pela Escala Educacional
Secretaria Executiva de Cultura em 2004.
do Pará em 2004.
Figura 23: O Pavão Misterioso Figura 24: Morte e Vida Severina
Quadrinização do cordel de José Quadrinização do auto de João Cabral
Camelo pela co-edição da Luzeiro/ de Melo Neto pela Editora Massangana
Tupyniquim em 2010. em 2006.
A diversidade estilística nas produções quadrinizadas da literatura brasileira é
um capítulo à parte que merece destaque. Várias editoras contemplaram a proposta de
quadrinizar romances da literatura brasileira, como Ática, Agir, Escala Educacional,
57
Top Books, Panda Books, Desiderata, Cortez, Companhia Editora Nacional, Editora
Globo, Peirópolis, Companhia das Letras, Pallas, Nemo, todas embaladas pela adesão
ao governo federal, novo cliente. Como amostragem, temos:
Figura 25: A Luneta Mágica Figura 26: A escrava Isaura Figura27: O Guarani
Editora Banda Books, 2006 . Editora Ática, 2010. Editora Cortez, 2007.
As obras quadrinizadas passam a circular com o título seguido pelo
especificativo em quadrinhos, como na figuras 25 e 27, destacando logo o novo
produto cultural, ou o titulo acompanhado pela conjunção “por”, como indício de uma
releitura, uma ressignificação, destacando a presença do novo autor, a exemplo da
figura 26. As capas trazem as personagens principais em uma cena de destaque da
história. As obras quadrinizadas sempre são acompanhadas, no final, por uma sessão
que contextualiza a obra literária que é o texto-base, com informações biográficas sobre
o autor, o adaptador e/ou ilustrador (obras das figuras 25 e 27).
Algumas quadrinizações trazem informações de como se realiza o trabalho de
adaptação, caso da Ática (figura 26) em seção no final do livro. Tal processo pode ser
sinteticamente explicitado: inicia-se com leitura do texto base, em seguida cria-se o
roteiro, fracionando o texto em cenas nas quais predominam as falas das personagens ou
do narrador ( trechos narrativos também são convertidos em falas); por fim, são criados
os desenhos, que para chegar ao requadro final, passam por processos de composição
das ilustrações. As quadrinizações geralmente são acompanhadas de um encarte, famosa
ficha de leitura, com a predominância de questões que enfatizam a leitura do texto
verbal e muito pouco se explora da leitura do icônico.
58
Também ocorrem variadas quadrinizações de uma mesma obra literária por
diferentes editoras, o que pontua dois fatos: a crescente circulação da literatura em
quadrinhos no mercado de produtos culturais; e a prática de focalizar diferentes
sensibilidades e olhares sobre a obra literária, legado aos leitores-quadrinistas pela
possibilidade de diferentes leituras. Observemos as obras que se seguem:
Figura 28: Memórias de um Figura 29: Memórias de um
Sargento de Milícias Sargento de Milícias
Ática, capa 1 Ática, pág. 6
Figura 30: Memórias de um Figura 31: Memórias de um
Sargento de Milícias Sargento de Milícias
Companhia Nacional do Livro, capa 1 Companhia Nacional do Livro, pág. 9
Na figura 28, da Ática, os quadrinistas apresentam a capa de Memórias de um
sargento de milícias com uma cena-fundo do cotidiano, ao retratar uma via pública do
Rio de Janeiro do início do século XIX, ambientando a história nos meios populares.
59
Em primeiro plano temos a personagem principal, Leonardo Pataca filho em suas
variadas fases da vida, até a condição de jovem perseguido pelo major Vidigal. Já na
figura 30, o quadrinista Lailson de Holanda Cavalcante apresenta alguns requadros em
que foca algumas cenas importantes da história e centra o olhar nos dois personagens
principais, Leonardo Pataca pai e Leonardo Pataca filho.
As figuras 29 e 31 apresentam o episódio do primeiro encontro entre Leonardo
Pataca pai e Maria das Hortaliças. Rosa e Jaf (29) apresentam o momento do primeiro
contato com detalhes, desde o flerte, as trocas de carícias inusitadas (pisão no pé,
beliscão nas nádegas) em cadenciamento, até a chegada e o produto final deste contato
(viver juntos, Maria grávida). Lailson Cavalcante (31) apresenta o flerte de forma
aligeirada, trocando o beliscão nas nádegas pelo aplicado na mão direita e apresenta o
recém-nascido e a cena coletiva da festa do batizado.
Figura 32 : O Cortiço Figura 33 O Cortiço
Ática, capa 1 Escala Educacional, capa 1
A capa da Ática para O Cortiço (figura 32), a representação dos personagens em
traços grotescos para enfatiza-lhes a condição de populares. Apresenta em perspectiva
especial os personagens de maior foco na obra, apresentando uma cena do cotidiano do
lugar numa amostragem do coletivo. Na capa da Escala Educacional (figura 33) temos a
divisão em requadros de uma cena, o que ilustra a fragmentação da própria vida no
cotidiano do cortiço, focando a sensualidade de Rita Baiana em primeiro plano e a
observação apaixonada de Gerônimo em segundo plano, perspectiva esta de leitura
utilizada pelo roteirista e pelo ilustrador.
60
Figura 34: O Cortiço Figura 35: O Cortiço
Ática, pág. 37 Ática, pág. 38
Figura 36: O Cortiço Figura 37: O Cortiço
Escala Educacional, pág. 34 Escala Educacional, pág. 35
A cena da briga de Jerônimo e Firmo por Rita Baiana é apresentado em focos
distintos. Jaf e Rosa da Ática (34 e 35) exploram a luta em timming (cadenciando cada
golpe) e utilizando onomatopéias para enfatizar a brutalidade, com os personagens em
trajes que indicam a condição social e caracteres físicos que revelam a etnia. Antonelli e
Vilachã da Escala (36 e 37) sintetizam a briga em poucos requadros, guardando as
característas das personagens nas posturas corporais. As vestimentas e a ilustração do
ambiente revelam o cortiço como um lugar da malandragem, de aspecto boêmio.
Um trabalho bem específico é o realizado pela Editora Globo, com a obra de
Monteiro Lobato. Ele surge a partir da criação do Sítio do Picapau Amarelo, uma
61
minissérie criada no final da década de 70 e retomada no início dos anos 90 pela
emissora de televisão Globo, além de desenho animado, exibido na TV Bandeirantes em
2011/2012. A história em seriação de acontecimentos retrata o lugar onde vivem
Pedrinho, Narizinho, Emília, Visconde, Dona Benta, Tia Nastácia, em aventuras
adaptadas das obras literárias infantis do referido autor.
No final da década de 1990 o Sítio torna-se história em quadrinhos, nas quais a
turma passa a viver novas histórias com temas contemporâneos ou retornando no tempo
para revisionar fatos históricos, numa linguagem própria ao público infantil.
Na última década, acompanhando o momento das quadrinizações literárias, os
textos infantis lobateanos são adaptados para os quadrinhos, na dinâmica das aventuras
das personagens do sítio. Textos como O Minotauro, Dom Quixote e As aventuras de
Hans Staden são retomados nos quadrinhos com estratégias narrativas específicas e
ilustrações próximas ao universo infantil, como se nota nas figuras abaixo:
Figura 38: O Minotauro Figura 39: O Minotauro
Globo, capa 1 Globo, pág. 38
Figura 40: Dom Quixote das crianças Figura 41: Dom Quixote das crianças
Globo, capa 1 Globo, pág.19
62
Figura 42: Aventuras de Hans Figura 43: Aventuras de Hans
Staden Staden
Globo, capa 1 Globo, pág. 42
Nas capas dos textos quadrinizados do Sítio do Picapau Amarelo (figuras 38, 40
e 42) destacam-se as personagens principais das histórias revisitadas; ao lado, é disposto
em sentido vertical uma série de requadros nos quais as personagens do Sítio
presentificam as histórias. O diagrama de fala na parte superior indica o propósito dos
textos, ou seja, Monteiro Lobato (metonímia da obra literária do referido autor) em
quadrinhos.
As estratégias narrativas nestes textos são diversificadas. Na figura 39 as
personagens do Sítio viajam no tempo graças ao pó de pirlimpimpim e vivenciam fatos
do passado na Grécia Antiga; na figura 41 temos uma das personagens assumindo as
perspectivas do herói Dom Quixote e na figura 43 Dona Benta assume o papel de
contadora de história e os fatos expostos nos quadrinhos em dois planos - o da
enunciação (momento do ato de contar, mostrando as indagações dos ouvintes acerca da
história) e do enunciado (os fatos contados são ilustrados). A técnica quadrinistica
atende bem às expectativas do universo infantil: desenhos bem definidos com traços
mais infantis bem delineados, jogo de cores suaves e harmônicas e em conformidade
com o ambiente físico e psicológico que quer demonstrar, requadros traçados ou
sobrepostos segundo a intenção da mensagem do texto.
Apesar da diversidade de produção que atende a públicos variados, as
quadrinizações literárias ainda não conseguem amplos espaços, sendo, não raras vezes,
visualizadas apenas como objetos de leituras pedagógicas, pouco exploradas na escola.
Vergueiro (2010) afirma que, apesar da obrigatoriedade na sala de aula, as histórias em
63
quadrinhos continuam a ser vistas como um material infantil. Somente foram
incorporadas ao ensino médio no formato de literatura em quadrinhos em 2009, inclusão
que parece demonstrar a evolução do pensamento das autoridades governamentais, que
passaram a acreditar no alcance e na potência do diálogo deste objeto cultural com o
ensino formal. Tais autoridades acreditam que a leitura do texto em quadrinhos pode
funcionar, ao longo do tempo, como trampolim para os romances, obras do cinema e do
teatro.
Paulo Ramos8, autor dos livros Quadrinhos na educação: da rejeição à prática e
Como usar as histórias em quadrinho na sala de aula, apresenta uma série de
publicações literárias em quadrinhos. Esta ampliação das publicações traz como ponto
positivo o fato de a literatura se tornar mais atraente para o aluno. Ele destaca como
aspecto negativo o fato de tais produções afastarem os estudantes da obra inicial. O
pesquisador reitera que a adaptação não substitui a versão original e que pode haver
uma saturação do mercado com o aumento das publicações.
Em outro artigo9, Ramos confere relevância a este tipo de texto que também
exige habilidades do leitor e destaca que “se há dificuldades no uso de obras literárias,
imagine dos quadrinhos”.
Ramos e Vergueiro enxergam a inclusão dos quadrinhos na sala de aula como
um avanço, mas consideram insatisfatórios os resultados iniciais desta prática
emergente. Eles nutrem uma visão pessimista ante tal ação pedagógica, já que os
quadrinhos têm sido pouco usados no ensino. Esta constatação decorreria do
desconhecimento e da ausência de habilidade por parte do docente quanto à leitura da
linguagem icônica, o que atrofiaria o emprego deste objeto em sala de aula.
O Jornal Metodista da Universidade Metodista de São Paulo10
traz o
reconhecimento de que a literatura em quadrinhos tornou-se, nos últimos anos, um
nicho em crescimento no mercado dos gibis. Também afirma que as editoras “ganharam
um novo e poderoso cliente”, o que acentua a tônica mercadológica deste objeto cultural
hibrido, além de apresentar o posicionamento de pesquisadores acerca desta temática.
8 Cf. Aberta temporada 2009 de adaptações. Disponível em: <blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br >.
Acesso em: 26/mai/2010. 9 Cf. Obras em quadrinhos, sem super-heróis, são obrigatórias.. Ano. Disponível em: <jovem.ig.com.br
>.Acesso em: 26/mai/2010. 10
Cf. Literatura em quadrinhos . Disponível em:< www.metodista.br >. Acesso em: 28/jun/2009.
64
Dentre estes, Alexandre Linhares, da Boitempo Editora, um dos responsáveis
pela transposição do livro A Relíquia, de Eça de Queirós, para os quadrinhos, destaca
que o aumento destas publicações se deve a uma combinação de fatores e não apenas à
indicação ao Programa Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE). Acredita que as
adaptações ganharam atenção especial muito antes, pois “[...] seriam formas de ajudar
os quadrinistas brasileiros a melhorar os roteiros e, assim, ganhar prática e experiência
na roteirização de histórias” (2010).
Destaca-se também o posicionamento dos professores Lielson Zeni e de Elydio
dos Santos Neto, diretor da Faculdade de Educação e Letras da Universidade Metodista
de São Paulo. Para o primeiro, é fundamental saber o que se pretende com a adaptação,
isto é, se a quadrinização funciona como um auxílio ao texto original, buscando-se ser o
mais fiel possível a ele, ou é uma releitura que terá como ponto marcante a utilização
dos recursos da peculiar linguagem quadrinística. Nesta percepção, é centrado o
trabalho do quadrinista, o qual se destaca como o autor que recria o texto imagético a
partir do texto literário. No texto “Literatura em quadrinhos”, integrante da obra
Quadrinho na Educação: da prática á rejeição (2009, p. 127) ele defende a autonomia
das quadrinizações literárias, um novo texto, que muito pode contribuir para a leitura
literária:
As produções em quadrinhos baseadas em obras literárias devem ser
avaliadas por seu valor como arte autônoma, e não à sombra da
produção original. Podemos, entretanto, aproveitar a proximidade
dessas adaptações e do texto que lhe serviu de base para buscar uma
leitura diferenciada, uma outra visão da obra literária.
Para o professor Elydio, a qualidade da adaptação independe da história que a
motiva, posto que apenas a preocupação com a fidelidade ao texto-base pode tornar a
adaptação não interessante, sem força semântica na nova linguagem. Ressalta também a
possibilidade de o trabalho conjunto acontecer em sala de aula, o que enriquecerá o
aluno no referente ao domínio dos recursos que as diferentes linguagens possibilitam.
Ele observa que se torna indispensável a consciência do leitor ante as adaptações,
porque a história não será contada da mesma forma, e afirma:
[...] a adaptação é, já em si, uma leitura do artista que a adaptou para
os quadrinhos. Isso não é, a princípio, bom ou ruim. É importante que
quem esteja lendo uma adaptação saiba que não está lendo a própria
65
obra literária, mesmo quando a adaptação mantém-se fiel ao texto
literário.
O referido autor ainda ressalta que a leitura dos quadrinhos no ambiente escolar
pode estabelecer um desenvolvimento mais harmonioso entre a análise racional e a
leitura com sensibilidade. Também adverte para uma pedagogização das histórias em
quadrinhos, o que provoca o empobrecimento delas, uma vez que se trata somente da
exploração superficial desta linguagem, isto é, o potencial artístico e o comunicacional
não são verdadeiramente trabalhados. No rastro deste olhar raso, as histórias em
quadrinhos são tomadas apenas como pretextos para estudos linguísticos, técnicas de
cópia de arte ou mera facilitação de entendimento da linguagem literária ou de fatos
históricos.
Mesmo tendo sido tema da Bienal do Livro de Minas Gerais em agosto de 2010,
a literatura em quadrinhos convive com o rótulo de subliteratura, posicionamento
rechaçado pelo quadrinista Lelis11
. Ele é contundente em depoimento sobre a literatura
em quadrinhos: “Um país deve se orgulhar das formas de expressão e não rotulá-las
dando maior importância a uma em detrimento da outra. Ninguém questionou se era
literatura ou sub-literatura. É uma forma de expressão, uma das mais completas e só”
(2010).
Spacca, quadrinista paulista que adaptou Jubiabá, de Jorge Amado, destaca que
a arte literária utiliza a expressão verbal enquanto os quadrinhos usam imagens e
símbolos e nem sempre palavras. Isto confere à literatura em quadrinhos a
caracterização de extraliteratura. Ele explicita: “[...] a HQ utiliza o mesmo suporte físico
da literatura, o livro, as páginas impressas têm a mesma direção de leitura e organização
editorial de uma obra literária. Os novos formatos ainda não oferecem ao leitor a mesma
praticidade do formato clássico” (2010).
A editora da Coleção Clássicos em Quadrinhos da Peirópolis, em apresentação
da obra Os Lusíadas quadrinizada, caracteriza esta literatura como um rito de iniciação
para o leitor, que se depara com um nível de complexidade menor do que no texto
literário. O quadrinista, autor deste trabalho, Fito Nesti, observa que a quadrinização do
texto literário processa-se a partir da extração das passagens mais relevantes e populares
da obra para daí produzir as imagens. Utiliza-se também da estratégia do encontro entre
11
Cf. blog.com.br/quadrinhos. Acesso em: 26/mai/2010
66
o autor místico da obra literária com o autor-personagem da história em quadrinhos, o
que propicia um trânsito melhor da leitura do texto. Para ele, nasce uma nova história,
um novo livro, que inspira o leitor a olhar com humor para os eventos narrados (NESTI,
2006).
No livro em quadrinhos A Relíquia, da Conrad, o quadrinista Marcatti constrói
uma revisitação à obra literária homônima de forma bem criativa. Produz o novo objeto
cultural por meio de um processo de ressignificação da história: no texto quadrinizado
ocorre a junção de três personagens em um, são realizadas supressões de trechos vistos
como importantes pela leitura tradicional (a exemplo da visão maligna das personagens)
e mantém poucos trechos da linguagem original “abrasileirando” a língua de Portugal.
Independente da instabilidade de compreensão, de conceituação, da real
funcionalidade do texto quadrinístico e da falta de percepção da linguagem específica e
rica que tem, ou de como se dão as trocas e as mediações entre ela e os elementos que a
compõem (palavra e imagem), torna-se imprescindível vislumbrar a literatura em
quadrinhos como objeto cultural enriquecedor da construção das práticas de leitura, sem
estar-se preso a elitismos textuais e sociais. Para isso, é importante observar, como
afirma Michel de Certeau que “[...] a autonomia do leitor depende de uma
transformação das relações sociais que determinam sua interação com os textos. A
criatividade do leitor cresce na medida em que cai o peso da instituição que a controla”
(apud MARTÍN-BARBERO, 2004, p.337). Neste sentido, a escola deverá repensar as
práticas leitoras que promove e o discurso que as rege.
Nesse jogo de indefinições acerca da literatura em quadrinhos, há posições que
deslocam a preocupação com a acessibilidade do texto literário via mediação da
imagem. Tal prática pode desencadear leituras equivocadas, segundo as quais haveria a
mera substituição de um objeto cultural por outro que o simplifica. As interpretações
deturpadas provocam o desperdício das experiências do confronto, da interculturalidade,
da experimentação de novas sensibilidades.
Equívocos dessa natureza não raramente constituem práticas pedagógicas como
a do texto intitulado Precisa estudar literatura pro vestibular? Leia um gibi, ora bolas!
(2009). Este artigo chega a afirmar que deveria haver a substituição dos textos, uma vez
que o fato de clássicos da literatura fazerem parte das listas do vestibular não garante a
efetividade da leitura daquelas obras. As obras literárias são caracterizadas sempre
como dotadas de uma linguagem complicada e de vocabulário difícil. Assim, aponta-se
67
para a conveniência das versões em quadrinhos, uma vez que, por serem dotadas de
imagens e também por exibirem certo caráter de síntese, tornar-se-iam de leitura mais
fácil. Todos esses aspectos ofereceriam comodidade ao leitor, em detrimento da leitura
do texto literário, desprovido de todas aquelas essas facilidades. Esse procedimento
acaba por vulgarizar o objeto cultural híbrido e por provocar desconfiança quanto a seu
estatuto ontológico.
O duplo equívoco – a canonização da literatura e o desprestígio e mau uso dos
quadrinhos – deve ser repensado, sob pena do apagamento deste objeto cultural,
cabendo-lhe apenas o rótulo de mais um “lixo” da mídia circundante. Este processo
também fortalecerá o ostracismo crescente da literatura, que se fechará ainda mais como
texto intransitivo e identificado com uma tradição passada, pertencente apenas às
práticas de leituras acadêmicas. O texto literário é tido como fechado em si, distante do
mundo altamente tecnológico cada vez mais audiovisual e, em última análise, se
distancia-se, do tempo e do espaço de circulação e recepção contemporâneas.
Torna-se pertinente invocar o pensamento de Benjamin (1994) para situar a
literatura em quadrinhos num patamar que se assemelharia aos processos de
reprodutividade técnica da obra de arte. Neste sentido, o quadrinho, por assim dizer,
deslocaria a arte literária do nicho onde o cultivo de sua aura a colocou e a remeteria
para espaços outros, propícios e adequados a interações e ressonâncias, possibilitados
também pela atuação da imagem. Desta forma, a reprodutividade técnica se identificaria
com os estágios de repaginação assumidos pela arte literária, agora veiculada pela
linguagem icônica. É o próprio Benjamin (1994, p.168-169) quem afirma:
[...] a técnica da reprodutividade destaca do domínio da tradição o
objeto reproduzido. Na medida em que se multiplica a reprodução,
substitui a existência única da obra pela existência serial. E, na medida
em que esta técnica permite à reprodução vir ao encontro do
espectador, em todas as situações ela atualiza o objeto reproduzido.
Neste novo processo, a arte literária sacralizada pela aura do elitismo, afasta-se
de tal posição e, ao se apresentar refuncionalizada nas quadrinizações, empreende
diálogos entre o culto e o massivo, de que resulta possibilidade de interações com novas
sensibilidades.
68
2. A LITERATURA MACHADIANA ENTRE CONTOS E REQUADROS
2.1. A literatura machadiana nas leituras críticas
Autor de um texto que, em muitas situações, parece dizer o mesmo através de
títulos e gêneros variados, Machado de Assis é um escritor sobre quem, a princípio, se
poderia dizer que fala de uma posição e espaço de elite, sendo por isso tomado como
um dos melhores exemplos da literatura clássica. Entretanto ao mergulhar em seus
textos, nota-se que se trata de um ficcionista cuja profundidade instiga e provoca e se
apresenta como detentor de uma escrita que transcende o momento, o espaço, a etnia; do
jovem que faz o trajeto do arrabalde para o centro.
Ao se debruçar sobre as obras, muitos caminhos de leitura são anunciados e
muitos posicionamentos são construídos, tamanha a habilidade das estratégias de contar,
engendradas em rica sutileza e fina ironia. Destacaremos alguns posicionamentos da
crítica especializada que circulam na academia nos trabalhos de Afrânio Coutinho,
Eugênio Gomes, Sonia Brayner, Antonio Callado, Roberto Schwartz, Luiz Roncari,
Jonh Gledson e Antonio Candido.
Também trilharemos por algumas revistas especializadas, veículos
informacionais que primam pela linguagem mais acessível para professores, estudantes
e interessados na área, cotejando discussões acerca da literatura machadiana. Optamos
pela Entrelivros (2007), Proleitura (1999) e Nova Escola (2008) que circularam no
período de homenagem ao centenário da morte e dos cento e cinqüenta anos de
nascimento de Machado de Assis, respectivamente.
Entre os críticos especializados, Coutinho (1990), debuça-se sobre o estilo de
Machado de Assis e apresenta-o como resultado da lida de um escritor que muito
laborou ante o próprio texto. Nos cinquenta anos de produção, tal escritor vivencia as
marcas de uma evolução literária que o coloca desvinculado de qualquer manifestação
da historiografia literária. Por outro lado, ele se utiliza das possibilidades e matizes dos
variados estilos de época:
Não foi homem de escolas, no sentido estrito. Absorvia o que tinha de
válido, incorporando-o ao seu ideal estético, que era de cunho
clássico, no culto da medida, do equilíbrio, das verdades eternas e
universais. Reagia contra os exageros, pois sabia reconhecer as
virtudes de cada escola e se deixar impregnar por elas. (COUTINHO,
1990, p.31).
69
O referido crítico faz uma leitura da obra como culminância da maturação
estética que resulta, por sua vez, do amadurecimento existencial do próprio homem, que
não se diz claramente no texto. Nesta direção, trata-se de um escritor que não se
revelaria por inteiro na produção literária. Três marcas da escrita, vistas pelos críticos
como não gratas, merecem certo esclarecimento da parte de Afrânio Coutinho: a
questão das influências, a falta de conexão com a realidade em que vivia (classe e raça)
e o estilo elitista de escrita.
No tocante às influências, o texto machadiano é uma elaboração pessoal,
construída por meio da assimilação das várias leituras que o formaram (COUTINHO,
1990) A partir de Pascal, Machado elabora ideias identificadas com o descrédito no
homem, ser doente e corruptível, sempre incerto, flutuante e marcado pela condição de
miséria da própria existência e que traz de origem a propensão ao mal. De Montaigne,
capta a noção de consciência do homem como ser natural, que vê a vida como instância
nem má, nem boa. Esta percepção é construída por meio do conhecimento que
possibilita a descrição íntima do homem, isto é, fundada na penetração psicológica que
desvenda o universo humano. O homem é um ser extremamente preocupado com a
opinião alheia e dotado de incoerências e variabilidades. Machado se inspira em
Cervantes, Swift, Sterne, Dickens, para construir um humorismo que surpreende
qualquer leitor. Assim, Coutinho afirma que Machado de Assis toma essas posições
para construir certa concepção de mundo a partir de um modo muito próprio de dizê-lo.
No que diz respeito a uma suposta desconexão com a realidade do Brasil,
segundo o autor supracitado, Machado de Assis foge à tendência da unicidade enfática
no nacionalismo carregado de cor local – “Instinto de nacionalidade”. Ele prefere
mostrar o cotidiano com imagens e figuras do Rio de Janeiro do final do século XIX,
com seus dilemas sociais, políticos e econômicos, espaço onde transita um homem
entregue aos próprios impasses existenciais.
Para Coutinho, apontá-lo como um escritor elitista é não perceber naquele texto
a elaboração personalíssima, que preserva a tradição sim, mas acolhe também elementos
da cultura popular. Neste sentido, Machado “[transforma] com seu molho, a matéria-
prima proveniente de fontes das mais díspares – dos escritores lidos, do patrimônio
comum, do acervo popular, dos tesouros de frases feitas, da sabedoria anônima, dos
fatos da vida cotidiana” (COUTINHO, 1990, p.48).
70
Eugênio Gomes (1958) afirma que com Machado de Assis o romance brasileiro
atingiu o mais avançado grau de refinamento formal, produto do entrelaçamento das
habilidades do cronista, crítico e romancista. O texto torna-se um objeto híbrido, pois o
leitor é seduzido e deleitado não só pelos meandros da ficção em si, mas também pela
percepção do fazer textual marcante.
Na percepção de Gomes, Machado de Assis é o crítico dissimulado no
romancista, que vive a liberdade de criação responsável pela excessiva agudeza de
conhecimento e de malícia moral em suas recriações. O crítico é contundente ao afirmar
que o escritor não foi o frio praticante da arte pela arte. Em suas melhores produções
encontra-se, antes de tudo, o homem interessado pela vida.
Sonia Brayner (1982) vê Machado de Assis muito mais que um reformulador do
modelo literário do final do século XIX. O texto do escritor questiona não apenas o
modelo literário vigente, como também a própria racionalidade com que se faz a leitura
do real – a mimese documental tão em voga. Em outra direção, estabelece-se uma
técnica metafórica escudada num jogo de desnudamentos por meio de uma estratégia
sofisticada de assimilação e desassimilação dos conteúdos.
Segundo a crítica em foco, a obra machadiana instaura um desafio e uma
desestabilização do pensamento racional do Ocidente. Nela encontra-se a lógica da
ambivalência e do paradoxo que desnuda os apoios lógicos de classes e de propriedade,
recursos verbais não tão facilmente encontrados. Ainda segundo a crítica citada, o texto
machadiano traz dois aspectos que merecem atenção especial: um posicionamento
singular próprio de seu discurso intertextual, que tanto o legitima, e a manipulação do
universo ficcional por intermédio da apropriação de formas arcaizantes de humor,
características do século XIX. Desta forma, quebra-se a previsibilidade do bom senso do
texto, de que resulta a indagação profunda, própria da atribuição de sentido.
Em depoimento de sua vivência como leitora de tal obra, a crítica assim se
coloca:
[...] bom, pensando nas minhas vivências machadianas, talvez a coisa
que mais me tenha impressionado no texto do Machado tenha sido o
próprio jogo do texto [...] quer dizer, a capacidade que ele teve em
articular tantos elementos narrativos de forma tão complexa e variada.
[...] Em nenhum momento ele deixou de tentar uma forma através da
qual pudesse dizer o que tinha para dizer da melhor forma possível. E
a capacidade de mudança não arrefeceu até uma modificação, fruto
das tentativas deste percurso. [...] Há, entretanto, um segundo
Machado, que atrai e me desnorteia. Eu nunca cheguei a uma
71
conclusão definitiva sobre como Machado coloca a mulher dentro de
sua obra [...]. (BREYNER, 1982, p.326).
Antonio Callado tem Machado de Assis como a grande figura do mundo
ocidental. Para ele, Machado é um autor que também traz inquietações à crítica
ocidental, no que concerne inclusive à alegoria política e social que se debruça sobre o
Brasil. Nas narrativas, o Rio de Janeiro e os sujeitos que ali transitam, tornam-se
recorrentes, contudo o adensamento e a profundidade com que é apresentada cada
situação constituem algo que lhe é específico, vez que “[...] ele parte de dentro das
coisas e realmente toma conta da gente de uma forma absoluta, primeiro insinuante, a
gente nem sente” (CALLADO, 1982, p.324).
Roberto Schwarz, em seus estudos sobre a luta ideológica no Brasil a partir da
segunda metade do século XIX, percebe como elemento básico da obra machadiana a
presença do narrador volúvel. Tal narrador, a cada momento, mostra-se desidentificado
em relação a um posicionamento defendido anteriormente, o que faz com que o humor
ocupe papel-chave no desvendamento do texto. Segundo Schwarz (1982, p.318), “[...] é
como se a relativização das idéias dominantes de uma época no centro tivesse um peso
explosivo e a relativização dessas mesmas idéias na periferia tivesse uma dimensão
realista porque a sua relatividade é palpável”. A história brasileira, não raras vezes mal
contada e inexplorada, assume na obra machadiana uma elaboração sutil e aprofundada,
ainda que leituras desatentas vislumbrem nela um caráter a-histórico, conclusão
fundamentada na ausência da mimese documental. Para o crítico paulista, na
experiência leitora do texto machadiano, há um discurso sempre significativo, uma vez
que
Machado vai se impondo ao longo dos anos, e não é tanto pelo lado da
simpatia que ele dura. Os outros, com o passar do tempo, vão
parecendo ingênuos; comparados com ele, vão parecendo bobocas. E
o Machado, não, ele volta a se impor e vai durando... Os outros
somem, e ele sempre está ali. Isso tem a ver com o pessimismo, tem a
ver com a falta de entusiasmo, de que os contemporâneos têm raiva.
[...] Machado [...] não faz a menor diferença entre um rico e um pobre
quanto a sutileza. Para ele, pobre é gente como não é para nenhum
naturalista, inclusive de esquerda. [...] Há em Machado de Assis, com
toda a afinidade dele pela sociedade restrita, um sentimento da
pobreza que é uma coisa extremamente extraordinária. (SCHWARZ,
1982, p.325).
72
Luiz Roncari, identificado com a leitura cultural, por sua vez vê um Machado de
Assis afinado com a valorização da arte culta, da literatura e língua cultas. Nota que o
escritor apresenta uma percepção da cultura popular, do local, mas parece não saber
integrar as novas vozes emergentes na cultura brasileira. Segundo o crítico, o escritor
percebe a mudança que está por ser instaurada nos fins do século XIX, mas defende
com outros escritores e intelectuais da época a proposta de
[...] levar para o futuro o que merece sobreviver do passado, o que está
vivo ainda do passado. Buscava-se evitar a ruptura brusca, que
algumas vozes literárias, de certa forma, vinham afinando e que
diminuiria o espaço de encontro do velho com o novo, o espaço de
encontro também das diferentes regiões, do regional. (RONCARI,
1982, p.316).
Roncari acredita que a relação entre Machado de Assis e o leitor, inicialmente
seria marcada pela complicação e solidão, mas em momento posterior se chegaria à
intimidade e por fim ao prazer. Identificam-se escritor, leitor, narrador e personagens
que trazem uma espécie de doença na alma, da qual brota o encontro responsável pelo
prazer do texto.
Na obra Machado de Assis: ficção e história, John Gledson (2003) retoma o
debate da relação da literatura machadiana, tida e havida como realista na concepção
reducionista e documental do século XIX, e a reposiciona em sua singularidade de
construção da História, processo denominado de realismo enganoso. Este conceito se
volta para a desestabilização do entendimento do real, que, desta maneira, se torna
oculto e não imediato ao leitor. A percepção do sentido documental se faria notar
somente através da análise e leitura das entrelinhas da narrativa.
Através da alegoria política/histórica, Machado elege uma das interpretações da
trama – o adensamento histórico. Neste sentido, não se trata da “[...] dedução de uma
visão machadiana da História a partir de uma massa de detalhes; é uma exposição sobre
a maneira pela qual essa visão da história molda os próprios romances” (GLEDSON,
2003, p.32). Desta sorte, destacam-se a sutileza e a profundidade na forma de como o
texto espelha as condições locais, brasileiras, o que inaugura uma nova tradição de
leitura.
Uma leitura bastante sólida é apresentada por Antonio Candido (2004), em texto
intitulado “Esquema de Machado de Assis”, integrante da obra Vários escritos.
Negando toda a visão de homem marcado pelo sofrimento e pelo estigma da cor, da
73
origem humilde e da doença como elementos desencadeadores da condição de
genialidade, o crítico apresenta Machado como escritor que teve apoio e que recebeu
mais louros que críticas em vida. Se, por um lado, apresentou um texto muito bem
elaborado e digno de reconhecimento, também foi um homem com posições
conservadoras nas práticas sociais.
Negando o biografismo e o psicologismo da criação literária, prática comum nas
leituras críticas da década de 30 do século XX, Candido (2004, p.18) reclama para a
obra todos os holofotes, assim afirmando:
Podemos dizer, como Moisés Vellinho, que sua vida é sem relevo
comparada à grandeza de sua obra, e que interessa pouco, enquanto
esta interessa muito mais. Sob o rapaz alegre e mais tarde o burguês
comedido que procurava ajustar-se às manifestações exteriores, que
passou convencionalmente pela vida, respeitando para ser respeitado,
funcionava um escritor poderoso e atormentado, que recobria seus
livros com a cutícula do respeito humano e das boas maneiras para
poder, debaixo dela, desmascarar, investigar, experimentar, descobrir
o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes
mais esquisitas da personalidade. Na razão inversa da sua prosa
elegante e discreta, do seu tom humorístico e ao mesmo tempo
acadêmico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpresas.
Candido (2004, p.18) explicita como principal mérito da obra diante do leitor
“[...] a atualidade quase intemporal de seu estilo e desse universo oculto que sugere os
abismos”, que vai ser marca da literatura do século XX. O traço de modernidade de
Machado de Assis, apesar do seu arcaísmo de superfície, configura-se por meio da
técnica em sugerir as coisas mais descabidas de maneira suave; em estabelecer a
contradição entre a normalidade social dos fatos e sua anormalidade essencial; ou em
sugerir que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro, sob a
aparência do contraditório.
Pelo viés das revistas especializadas, destacamos a Entre Livros, produzida pela
Duetto Editorial, revista de circulação mensal, que traz na edição nº 30, de outubro de
2007, como reportagem de capa “O Machado desconhecido”, texto que sugere que há
muito do autor a ser pesquisado. Comenta-se o importante papel do escritor na literatura
e cultura brasileiras, reconhecendo-o como voz única, talento e criatividade
incontestáveis e singulares, mulato vitorioso numa sociedade escravocrata. A seção
dossiê traz o instigante artigo “O escritor de sete faces”, assinado por Cláudia Nina
74
(2007) que comenta as nuanças da obra machadiana, numa percepção bastante diferente
das postulações trazidas pela crítica acadêmica especializada tradicional. Ela apresenta
novos críticos que, na virada do século XX para o XXI, buscaram desvendar no arguto
texto temas antes inimagináveis, como feminismo, homossexualismo e discussões
voltadas para as questões da afrodescendência.
Uma das leituras indicadas nessa reportagem é “Machado de Assis
Afrodescendente”, de autoria de Eduardo de Assis Duarte, texto que aponta para sutis
posicionamentos políticos e étnicos do escritor mulato, integrado no sistema burguês
vigente, condição que, a princípio, o colocava numa posição de não envolvimento com
as questões raciais. Numa leitura em outra direção, Eduardo de Assis Duarte (2007,
p.24) advoga que “[...] o viés político se mostra no escritor-caramujo, protegido, no
jornal, pelo pseudônimo e, na ficção, pela ironia e por todo um conjunto de
procedimentos dissimuladores”.
Por não concordar com as acusações a Machado de Assis de oportunismo,
aburguesamento, absenteísmo e omissão na luta pelo fim da escravidão, o crítico buscou
nos estudos das crônicas um meio para a descoberta do sentido político na obra do
referido escritor. E aponta para um texto arguto que veicula
[...] uma literatura que não endossa o preconceito; que vai na
contramão do cientificismo hegemônico na época; que se posiciona,
sim. Contra a desigualdade e a injustiça; que rebaixa os heróis e dá à
mulher um papel substantivo; que faz a crítica da classe dominante de
um olhar externo, de baixo para cima, identificado ao subalterno; e
que retira deste, sobretudo do escravo, a lição de que a astúcia é a
grande arma do oprimido. (DUARTE, 2007, p.26).
Outro estudioso apresentado é Paulo Ubiratan, jornalista, escritor e tradutor,
autor não só da Bibliografia machadiana – 1959-2003, obra na qual copila escritos
diversos de jornais, revistas e livros, como também de Três vezes Machado de Assis,
obra em que são reunidos ensaios sobre o contexto histórico do Rio de Janeiro da época.
Em tais textos, Machado de Assis é caracterizado como escritor contemporâneo, visto
que “[...] num mundo de tanta desconfiança como o nosso, as histórias e as personagens
criadas por Machado permanecem absolutamente atuais. O gosto de duvidar de tudo, a
dificuldade e impossibilidade de ter certezas são também características do nosso
tempo” (UBIRATAN, 2007, p.27).
75
Hélio Guimarães, autor de Os leitores de Machado de Assis: o romance
machadiano e o público do século XIX, analisa o papel da figura do leitor na produção
ficcional romanesca machadiana no Brasil do final do século XIX e início do século
XX, momento em que somente 18% da população era alfabetizada e apenas 2% eram
capazes de ler livros. Em entrevista para a Entre Livros, n. 30, assim se expressa
Guimarães (2007, p.25):
Machado foi um escritor muito festejado em vida, o que não significa
que tinha sido compreendido. [...] O que houve certamente foi uma
enorme dificuldade de descrever e de classificar a obra dentro das
categorias críticas então disponíveis. Mesmo os melhores críticos em
atividade não sabiam onde encaixar aquilo. Daí uma visão inicial da
obra toda calcada em negativas e faltas.
Apesar de todos reconhecerem as habilidades e talentos de Machado
como escritor, ele foi visto como um escritor frio, de pouca
imaginação, pouco interessado no povo brasileiro e nas suas questões,
indiferente às questões políticas, etc. Para as expectativas da época,
Machado era um renomado capítulo de negativas: faltava emoção,
faltava paisagem [...].
O referido crítico afirma que pouco ou quase nada se sabe acerca da recepção
das obras machadianas naquele período, pois não há nenhuma carta de leitor a ele
destinada. Com relação aos leitores atuais, apesar do grande volume de estudos nestes
cem anos, Hélio Guimarães acredita que há muito ainda a ser dito, levando-se em conta,
principalmente, a poesia e o conto.
Alcides Villaça, no artigo “Os apuros de Machado de Assis”, traz a lume a
questão instigante de como é o trabalho com a literatura no interior da academia e no
processo de formação cultural, tradicionalmente pautada por valores humanos
universais, quando os autores que mais reverberam referem-se ao particular do “nefasto
das experiências humanas”. A obra de Machado de Assis é um exemplo claro da
contraposição, no qual a tão louvada intenção construtiva da ação pedagógica de
firmação de valores humanos passa por séria desestabilização. Villaça (2007, p.38)
observa:
A escola acolhe, honrada, um escritor, cujos sólidos princípios acabam
por erigir uma ponte pênsil sobre o abismo. É só chegarmos um
pouquinho mais perto de seus textos e sofreremos a ação dos ácidos
infiltrados na perspectiva do narrador, que destilam do fundo de sua
consciência e se infiltram na nossa, resultando no ganho de uma
76
estranha e alta lucidez que parece se alimentar de si mesma e
paralisar-se, gostosamente, em seu mirante privilegiado.
Para Villaça, segundo experiências advindas de curso ministrado a partir dos
contos de Machado de Assis, cujos participantes eram jovens leitores, três reações à
leitura foram observadas: desestabilização de valores já instáveis em si, numa fase da
vida em que o jovem procura assentar suas escolhas; reclamação de quem não admite a
contestação de princípios já definidos e cristalizados, especialmente no que se refere à
religião; estranhamento por parte de leitores puristas que não veem na prosa machadiana
uma poética estruturalmente definida. Em todos os casos, o crítico pontua como
motivador o modo como o Bruxo de Cosme Velho relativiza os valores pessoais, sociais
e literários. E assim comenta:
Ora, um evidente efeito de tamanha relativização é atiçar em nós a
emergência de um valor que se sustente altaneiro na prática da vida,
em resposta ao seu escandaloso rebaixamento. Se isso não é muito,
também não é pouco, e, aliás, é político. As situações narrativas de
Machado acusam a complexidade das contradições essenciais,
detectadas no plano da vivência íntima e na dinâmica da vida pública.
O que fazemos com ela é nosso problema.
Não estamos habituados a um confronto deste tipo, em que nos
sentimos cobrados não pela abstração de um elenco de virtudes
clássicas ou de princípios ideológicos, mas pela concreção de
experiências muito detalhadas, que expõem o processo de
mascaramento, escandalosamente familiar das violências grandes ou
pequenas, sobretudo nossas. (VILLAÇA, 2007, p.39).
Perceber o ganho pedagógico no trabalho com Machado de Assis no ambiente
escolar a partir da condição de desestabilizador e relativizador de valores é possível,
sim, para Alcides Villaça. O crítico pontua três vantagens: primeiro, não é perda
pedagógica trabalhar com as contradições que alvejam princípios alternativos, pois se
promovem questionamentos que fazem repensá-los; segundo, a violência da
relativização dos valores promove a relativização do leitor ao propor como resposta
interpretações diversas, visto que a narração machadiana, ao simular descompromisso,
acaba comprometendo a todos; e, por fim, a literatura tem como papel dar expressão ao
que não dispõe de tal, revelar disfarçadamente o que está disfarçado de fato, acusar
eficazmente a ineficácia de abstrações ingênuas, ou seja, revelar o mundo de forma a
provocar um repensar do próprio homem.
77
Milton Hatoum, no texto “Machado para o jovem leitor”, presente na seção
Norte da referida Revista, acredita que um dos problemas está na seleção das obras para
a leitura do aluno. Segundo ele, há um pressuposto de que o estudante seria incapaz de
realizar leituras de textos complexos. Texto complexo não necessariamente é pesado,
chato e difícil. Texto difícil é aquele que carrega na ênfase do vocabulário precioso e
não aquele que inova na estratégia narrativa e na linguagem inusitada.
Observa que há, como sempre, imposições curriculares não poucas vezes
equivocadas, pois terminam por promover o ódio pela literatura brasileira como um
todo no jovem e inexperiente leitor, ao insistir no trabalho com “textos ásperos, cuja
leitura é sinônimo de suplício” (HATOUM, 2007, p.47). A seleção deveria ter como
critério textos literários bem construídos, mesmo considerados complexos, pois
produzem prazer pela cognição (reflexão) e pela emotividade. E o crítico comenta a
respeito da ausência de recepção do texto machadiano no leitor-estudante:
É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler
“A causa secreta”, “O Enfermeiro”, “Missa do galo”, “O Espelho”,
“Uns braços” [...] e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da
narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus
contemporâneos europeus.
É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem
enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor
jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação ao espírito.
Claro que há textos intrincados e nada tediosos, que são
imprescindíveis para quem gosta de literatura. (HATOUM, 2007,
p.47).
Também merece atenção o periódico especializado Proleitura da UNESP/Assis,
publicado em parceria com a UEL (Universidade Estadual de Londrina) e com a UEM
(Universidade Estadual de Maringá) do Paraná, texto voltado para os professores de
Língua Portuguesa dos níveis fundamental e médio. Em sua edição n.21, de agosto de
2008, a Proleitura, intitulada Quem tem medo de Machado de Assis, apresenta no
editorial uma sugestão que indicaria caminhos para uma desmistificação do texto
machadiano. Destaca-se o potencial instigador daquele texto que, apesar de contar com
uma extensa fortuna crítica, continua a provocar novos e interessantes estudos, por parte
de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Vale ressaltar que Machado de Assis é causa
de inquietação do profissional de Letras ligado à Educação, que constantemente se
interroga até que ponto o interesse sobre o escritor encontraria eco também no jovem
78
leitor em formação. Questões como o papel da obra para o leitor em formação e o que
deve ser lido de e sobre Machado de Assis são aspectos motivadores das discussões
desta edição. Dois textos chamam atenção: “Por um Machado de Assis sem
medalhinhas”, de Marisa Lajolo, e “Como ler Machado de Assis”, de Valentim Facioli.
No texto “Por um Machado de Assis sem medalhinhas”, entrevista concedida
por Marisa Lajolo a Proleitura, n.21 (2008), a pesquisadora confessa-se leitora de
Machado de Assis, considerando-o um grande escritor, indispensável à bagagem de
qualquer leitor, especializado ou não. Ela contesta o endeusamento feito ao escritor e,
neste sentido, não compartilha com a política de exclusão do cânone, pois não acredita
na qualidade de um texto literário em detrimento de outros e, sim, no resultado de um
tipo de leitura.
Para Lajolo, o processo de promoção, de avivamento/aceitabilidade de uma obra
literária/escritor se dá processualmente, a partir de uma leitura espontânea, prazerosa,
que evolua para leituras outras, endossadas pela escola. Tais práticas devem contar com
a mediação de professores entusiasmados e que venham a contagiar os alunos. Ela
observa que a acessibilidade ao texto machadiano ocorre por várias vias, apesar da crise
que se torna vultosa na era da comunicação visual. Sobre a recepção da produção
machadiana, ela ressalta:
Machado é, por assim dizer, uma grife de leitura. O dele é um dos
nomes que primeiro ocorre à consciência quando se pensa em leitura,
em aperfeiçoamento cultural. Cai em concursos e em vestibulares, é
mencionado em situações culturalmente marcadas, é fonte de citações
eruditas [...] ele é um bom negócio para a indústria produtora de
objetos de leitura. [...] O que torna Machado mais vendável, mas não
necessariamente mais legível [...] creio que esse desencontro se
transforma num desafio para a escola mas sua aura, transbordando
dela, torna-o um produto sedutor para um ponto de venda tão sem
pedigree cultural quanto uma banca de jornal. (LAJOLO, 2008, p.4).
Já Valentim Facioli, no artigo “Como ler Machado de Assis”, busca situar o que
é ler este autor quase um século e meio depois da época da elaboração e publicação de
seus textos. Tido como escritor antigo e de texto difícil, a não visitação da obra
machadiana se deve também à crise de leitura, apesar da exagerada mercantilização do
livro. Não se pode esquecer de que a considerada pequena recepção do texto literário
79
estaria relacionada com sua substituição “[...] pela assepsia sórdida do lixo da indústria
cultural e pelas facilidades da imagem visual e eletrônica” (FACIOLI, 2008, p.4).
O referido estudioso aponta para a estrutura autoritária do aparelho escolar e da
própria sala de aula como elementos que dificultam a leitura dos textos de Machado de
Assis, já que a escolha raramente considera o ponto de vista do aluno. Acima de tudo, a
seleção é apoiada no fato de se tratar de autor consagrado e visto como “portador de
valores positivos e universais”. Tudo conflui para que o texto machadiano seja rotulado
como “leitura obrigatória”. Neste sistema de institucionalização conservadora, o texto
torna-se mero instrumento ideológico de reprodução de autoritarismo que se emparelha
com a prática alienante da indústria cultural, no concernente ao reducionismo de uma
leitura rasa e unilateral. Passa então a dizer o que já circula nas relações sociais, nos
meios de comunicação de massa, na própria sala de aula e em autores e meios cuja
intenção é torná-lo fácil e agradável, nada trazendo de desafiante para o leitor
contemporâneo.
Na opinião desse crítico, convém salvar Machado de Assis deste massacre
perpetrado pelo aparelho escolar, pela indústria cultural (TV, cinema), pelas edições
comerciais descuidadas, pela crítica incompetente, pelas médias dos livros didáticos. A
resolução desta problemática repousa na indicação de alguns caminhos para uma leitura
interessante com um progressivo esclarecimento das estratégias construtivas textuais
que engendram a força, a vitalidade e a permanência/atualidade da obra machadiana. Ou
seja, é necessário munir o leitor de elementos que possibilitem um encontro específico e
mais eficiente com o texto machadiano que se livraria de apreciações institucionalizadas
e predeterminadas.
A Nova Escola, publicação da Editora Abril, que circula com o propósito de
socializar modernas práticas pedagógicas em sala de aula, apresentou, na edição 215 de
setembro de 2008, sua parcela de exaltação do texto machadiano.
Com a reportagem de capa “Machado para todas as idades”, a Revista acena
com a possibilidade de tornar os textos machadianos – complexos, questionadores e
ricos em ironia – acessíveis para o leitor desde o 3º ano do ensino fundamental. Esta
discussão é detalhada na reportagem “Machado, um clássico para todos”, na qual o
jornalista Anderson Moço explora a necessidade de ler Machado/clássicos,
fundamentado em argumentos de Ítalo Calvino e nos pontos de vista da escritora Ana
80
Maria Machado e da especialista Heloisa Celli Ramos, oficineira de leitura da Fundação
Victor Civita.
O autor da referida reportagem considera equivocada a justificativa dos
professores segundo a qual o texto machadiano seria difícil, complexo e extremamente
refinado. Em posição oposta, assim ele se coloca:
É por meio de clássicos, como é o caso de Machado de Assis, que
crianças e adolescentes passam a compartilhar referenciais
lingüísticos, artísticos e culturais que permitem a eles estabelecerem
vínculos com gerações anteriores e se integrar à cultura.
[...]
A qualidade narrativa, a complexidade com que os conflitos são nela
expostos, a força das idéias que transmitam e os questionamentos que
suscitam dão esse status a muito dos escritos de Machado. O autor se
destaca por unir o erudito ao popular de forma única. Ele revolucionou
a cultura nacional. Mulato, gago e epilético, em pleno período
escravocrata, se tornou admirado e respeitado nos mais nobres salões
da corte, contando histórias que ajudaram a moldar a noção que temos
do que é ser brasileiro [...]. Se atualmente é considerado erudito, um
medalhão inalcançável, em sua época era popular. (MOÇO, 2008, p.
47; 48).
Para o crítico, o grande desafio é saber o modo de trabalhar o texto machadiano
em sala de aula, respeitando a fase do desenvolvimento do aluno. Para isso é de grande
valia outros meios de apresentação da obra de Machado, como as adaptações
cinematográficas que se tornam suporte para a leitura do texto literário. Contudo, é
imprescindível que o professor seja um leitor apaixonado, entusiasmado e muito bem
preparado e veja o leitor como copartícipe na construção do sentido do texto. Desta
forma, assim ele se expressa:
Os estudantes se encantam pelo amor que o mestre sente pelas
histórias e isso ajuda a mostrar que a leitura não é uma atividade
mecânica. Muito pelo contrário. “A participação do leitor na
construção do sentido do que está escrito é fundamental”, ressalta
Heloisa. Para Helena Weisz [...] o bom autor sempre deixa fios soltos.
“Cabe ao leitor uni-los, fazendo perguntas e criando respostas.” A
função do professor é dar meios para que essas pistas sejam
descobertas e, com elas, surjam significados. (MOÇO, 2008, p.48-49).
81
Nesse breve levantamento de leituras críticas sobre a produção de Machado de
Assis, textos especializadas pela academia ou acessível pelas revistas, fica patente a
variabilidade de tratamento interpretativo que a obra extremamente rica em significado
permite. Torna-se evidente a necessidade de um pacto de leitura entre leitores e obra
para o desvendamento desta produção literária. Neste sentido, os primeiros buscariam,
por meio de arsenais teóricos distintos, estabelecer um diálogo possível e a segunda
concederia estratégias específicas de sedução na dicotomia cognição/sensibilidade que
provoca a revelação não só do texto fechado/obra, mas do texto aberto/homem/mundo.
Enfim, é um convite sem medo a um Machado mostrado a partir de várias
nuanças, hábil contador de histórias e construtor de envolventes estratégias narrativas,
de escrita elegante e que abre espaços diversos para o leitor, num movimento constante
de contar, encantar e desencantar, sempre a mostrar a natureza do homem em suas
variadas possibilidades.
2.1.1- A literatura machadiana: entre contos
Da vasta produção machadiana, o conto recebe um tratamento estilístico que o
torna uma experiência ímpar de leitura em todos os tempos. Juntamente com a crônica,
tornou-se um espaço de experimentações do escritor, até o encontro com um estilo
ficcional inconfundível, que se expande nos romances a partir de 1880, conforme
pontua Sonia Brayner (1979, p.65):
Se a crônica permite a Machado um exercício variado e constante do
discurso na perspectiva de um narrador (no caso, reconhecidamente o
autor, que lhe imprime as características próprias do seu relatar), o
conto lhe dará a oportunidade de explorar outros ângulos e categorias
importantes nesta sua renovação da arte literária.
No ensaio de 1873, intitulado “Instinto de nacionalidade” o próprio Machado de
Assis situa o ponto de vista acerca dessa produção, caracterizando-a como “[...] gênero
difícil, a despeito da aparente facilidade, e [...] essa mesma aparência lhe faz mal,
afastando-se dele os escritores, e não dando-lhe, [...], o público toda a atenção de que
ele é muitas vezes credor” (ASSIS, 1997, p. 24)
Para Machado de Assis, muito mais que um laboratório de experimentação
literária, o conto delineia o contato com um gênero que conquistará mais espaço e
82
significação na modernidade. E para contribuir com o alcance desse propósito, Machado
de Assis destaca a necessidade da qualidade, pois se trata de um texto curto que não
deve ser enfadonho, ao contrário, deve se apresentar como sedutor e inquietante.
No encalço da experimentação, conforme Brayner (1981), as primeiras
recriações machadianas, publicadas até 1880 não vão constituir as produções tidas como
grandiosas, verdadeiras referências do gênero (Contos Fluminenses, de 1870, e
Histórias da meia-noite, de 1873). Tais produções constituem-se como narrativas
longas e subdivididas em partes, aproximando-se das novelas, gênero com bastante
aceitação popular. Não por acaso, constroem-se enredos carregados de teatralidade
romântica, com tramas amorosas convencionalizadas em que se entrançam histórias de
namoros, encontros, desencontros, noivados atados e desatados, adultérios possíveis,
enfim, envolvimentos condenados pelo olhar do Machado de Assis conservador e
moralista. Procede-se à ilustração de tipos sociais e perfis recorrentes na sociedade
aristocrático-burguesa da segunda metade do século XIX.
Para a pesquisadora (1981, p.9), nessas primeiras produções, Machado “[...] é o
retratista da sociedade carioca na segunda metade do século XIX [pois] a população de
seus contos é retirada de uma classe média urbana surpreendida na construção de sua
imagem”. Nesta, fica patente a desatinada, vazia e pretensiosa imitação estrangeira,
ridicularizada com o bom humor de um narrador sempre a conduzir a atenção do leitor.
Na produção inicial, nota-se a tendência de adesão a estratégias narrativas que
visam convidar o leitor a se envolver com a ideia de presentificação do ato de narrar,
isto é, o leitor é induzido a integrar a história no momento em que ele, como expectador,
passa a conhecer os fatos e com eles começa a interagir. Retomando-se as estratégias
anunciadas, delineiam-se aqui os três métodos: o dramático, o amplo uso do diálogo e o
ponto de vista em primeira pessoa.
Nesse momento, segundo Brayner (1981, p.11), uma atenção especial será
dispensada ao receptor, agora despertado e atiçado, pois “[...] ativar o leitor não
permitindo sua passividade é uma tarefa insistente na pretensão de trazer à tona um
questionamento central”, isto é, o leitor, mais do que nunca, se verá envolvido nas
indagações existenciais da trama. Esta estratégia que se identifica com a presença
determinante de nuanças, ganhará mais consistência e mais propriedade na medida em
que a maturação da escrita também se for configurando.
83
Alfredo Bosi (2003), no ensaio “A máscara e a fenda”, elabora um estudo
detalhado acerca da ideologia implícita no texto machadiano, o que se torna perceptível
já nestas produções iniciais. Para ele, Machado é o contista do mascaramento social:
Machado foi também um escritor afeito às práticas de estilo de
revistas familiares do tempo, principalmente nas décadas de 1860 e
70. O jovem contista exercia-se na convenção estilística das leitoras
de folhetins, em que os chavões idealizantes mascaravam uma conduta
de classe perfeitamente utilitária. (BOSI, 2003, p.75).
Segundo esse pesquisador, nos Contos fluminenses e Histórias da meia-noite,
“[...] a maior angústia oculta ou patente de certas personagens é determinada pelo
horizonte do status; horizonte que ora se aproxima, ora se furta à mira do sujeito que
vive uma condição fundamental de carência” (BOSI, 2003, p.75). O suprimento dela
ocorreria pela obtenção de um patrimônio em herança de parente próximo ou um
protetor ou pelo matrimônio com um parceiro mais abonado. Em ambos os casos, torna-
se evidente a máscara no desejante, a qual se concretizaria nas ações com vistas à
obtenção do benefício, apresentando-se as relações posteriores não raramente marcadas
pela ingratidão ou traição.
Esse mascaramento social identificado com o propósito de ascensão é retratado
nos contos e em alguns romances desta fase. O desejo de alçar posições tidas como
superiores costuma ser rotulado como um traço autobiográfico, sendo o escritor
comumente olhado como alguém que realiza a migração de classe social, na leitura
psicossocial empreendida por Lúcia Miguel Pereira. Com esse perfil, Bosi não vê
Machado como um romântico convicto, mas, sobretudo, como um autor que nutre um
gosto “sapiencial” pela fábula, construindo nas entrelinhas uma lição para o leitor. A
necessidade constante da máscara é uma relativa novidade para a ficção literária da
época, o que ocorre, talvez por intuição. A prática articulada com uma rendição franca à
consciência e à crítica só ocorrerá posteriormente, no momento do amadurecimento de
sua obra.
John Gledson, em “O machete e o violoncelo”, ensaio que compõe a obra Por
um novo Machado de Assis (2006), observa que a produção de contos de Machado de
Assis fez parte de toda a vida do escritor; desde o início, em 1858, até o ano anterior de
sua morte, 1907. O gênero é considerado espaço de constantes reelaborações de estilo e
de temáticas. Apesar de não gozar da mesma popularidade dos romances, é, conforme o
84
crítico, o gênero mais condizente com o gênio do escritor. Segundo Gledson (2006,
p.35):
Machado gosta muito de anedotas, e de focalizar detalhes
aparentemente triviais, mas que lançam uma luz inesperada sobre
assuntos “importantes”; orgulha-se até de sua miopia. Gosta de
autores que contam fábulas curtas, com uma moralidade irônica –
Esopo, La Fontaine, Swift –, ou que escolhe gêneros mistos, metade
ensaio, metade ficção, como Charles Lamb ou Tomas Carlyle. E os
próprios romances não seguem as convenções do realismo do século
XIX, contendo episódios que em si poderiam ser contos [...].
Para Gledson, os contos produzidos até 1880 se destacam mais pela
compreensão da evolução estilística do contista que pela qualidade. Ele observa que a
circulação de O Jornal das Famílias, veículo em que foi publicada a maioria dos contos
desta fase, tornou-se determinante para o tema e para a forma do texto nesse período.
Eram narrativas mais longas que a média, publicadas em fascículos, destinadas a um
público feminino de classe média, e abordavam temas como o amor e o casamento. Vale
ressaltar que a mulher, sua vida, desamores e frustrações continuariam no leque de
temáticas que se ampliariam, merecendo tratamento crítico.
No final da década de 70 do século XIX, vivendo a “crise dos quarenta anos”, o
autor já apresentava indícios de preocupação com a configuração da própria obra, no
que tange à atitude, ao tom e ao gênero a adotar. É o momento em que se aprofundam o
humor e a ironia chocantes, como se cada conto passasse a exibir uma forma própria:
[...] é que o poder de prosa de Machado ganha uma intensidade e uma
confiança inéditas. É como se, de fato, tivesse dominado uma série de
efeitos novos, uma música nova. Temos até a impressão de que esse
poder se enquadra menos sem limites de gênero [...] É como se ele
tivesse que criar uma forma própria para cada conto: diálogo, pastiche,
sátira, contos longos, médios, curtos. A prosa também se torna
multidimensional, em grande parte por conta do humor. (GLEDSON,
2006, p.47).
Assim, para os leitores especializados, os melhores contos de Machado de Assis
são os publicados nas coletâneas que, a partir de 1882, foram reunidas nas antologias
Papéis Avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias Histórias (1897), Páginas
Recolhidas (1899) e Relíquias da Casa Velha (1906).
Brayner vê a elaboração dos contos dessa fase como demonstração do alto nível
de experimentação de Machado de Assis, o qual acredita na autonomia e nas
85
possibilidades estéticas, retratadas na variedade de estratégias narrativas. Através delas
se constatam a mescla de tipos e hábitos socioculturais do Rio de Janeiro da época e
também as generalizações de conceitos e observações voltados para a natureza humana.
Enfim, tais textos desembocam no teatro do mundo “[...] no qual os homens passeiam
seus vícios mais do que suas possíveis virtudes” (BRAYNER, 2006, p.12).
Nessas produções, há uma tendência ao conto relato de observação e de caráter
psicológico, cuja personagem central narra as próprias percepções e justifica seus
comportamentos, ou ocorre a onisciência do ponto de vista que permite a perscrutação
dos recantos da alma humana por parte do Outro. Desenha-se um narrador que capta as
mínimas variações e se mostra sempre atento às transformações dos valores da
consciência.
Brayner percebe, nesse momento da produção machadiana, não só um traço
distintivo entre o ser e o parecer, como também o atrelamento do homem à opinião
como tema geral da relatividade, identificada com a presença da dupla face. É
perceptível a estratégia do mascaramento social nas atitudes convencionalizadas que
ostentam a identidade e a diferença em um mesmo indivíduo, experiência esta tomada
como faceta da mutabilidade interna e contraditória do ser humano.
Frente ao amadurecimento da escrita machadiana, Bosi continua a perceber o
mascaramento social como tema da maturação estilística, que se inscreve na forma
sinuosa dos contos, e que acaba por esconder a contradição entre a aparência e a
essência, entre a máscara e o desejo, entre o feito e o dito. Mesmo reconhecendo esse
antagonismo, o escritor parece conformar-se com a capitulação do sujeito à aparência
dominante na sociedade.
São as produções escritas a partir dos quarenta anos, rascunhos de teorias que
revelam o sentido das relações sociais mais comuns que atingem a estrutura profunda
das instituições. Denominado por Bosi de conto-teoria, por apresentar, através das
marcas de humor, a submissão do ser humano, “alma frouxa e veleitária” às formas
instituídas, aquelas narrativas têm como verdade fundante a relação de dependência do
mundo interior para com a conveniência do mais forte.
Essa postura se explica muito bem numa sociedade marcada pela desigualdade: a
necessidade de se proteger e vencer na vida – mola universal – só se torna saciada pela
alienação do sujeito ante a aparência dominante. Tece-se, no texto, uma crítica
silenciosa que tem como alvo o processo, devendo o leitor manter um olhar astuto para
86
percebê-la. São exemplos marcantes os contos “O alienista”, “A sereníssima república”,
“O segredo de Bonzo”, “O espelho”. Através da produção machadiana, Bosi (2003,
p.104) vê o homem com uma certeza:
As diferenças entre as pessoas, embora sensíveis a olho nu, afundam
raízes no solo comum dos instintos, que quer o prazer, e da sociedade,
que persegue o interesse. E prazer e interesse responderiam à
pergunta: o que está atrás da máscara? De qualquer modo, são tão
matizados os graus e os momentos do mascaramento e tão várias, se
não infinitas, as combinações tecidas pelo acaso, que o modo próprio
de ser de cada pessoa parecerá ainda e sempre um enigma.
E assim, nos contos-retratos como “D. Benedita”, “Verba Testamentária”,
“Cantigas de Esponsais”, Machado desperta no leitor a certeza de que “[...] só há
consistência no desempenho do papel social: aquém da cena pública a alma humana é
dúbia e veleitária” (BOSI, 2003, p.102), o que confirma a inconsistência do sujeito, que
experimenta a convivência da singularidade com o universal dos interesses e instintos.
Muito mais que um laboratório para aperfeiçoamento do estilo, Antonio Candido
(2002), vê na obra machadiana, especialmente nos contos, traços precursores de
tendências da contemporaneidade: discussões sobre identidade, fragilidades humanas,
mundo das aparências, tênues limites entre a realidade e a fantasia, processos de
manipulação e de uso do homem pelo homem
Paul Dixon, pesquisador norte-americano, em Os contos de Machado de Assis-
mais do que sonha a filosofia (1992), apresenta um trabalho mais organizado sobre os
contos do primeiro contista brasileiro, apontando para a necessidade de estudos deste
gênero literário, tão relegado ao esquecimento. O crítico justifica que tal ausência é
compreendida “[...] porque em muitos aspectos os contos machadianos são uma
glorificação do estranho e do inesperado – das singulares ocorrências, dos lapsos e das
excursões milagrosas [sendo que] [...] este reino maravilhoso está dentro de nós”
(DIXON, 1992, p.10).
O estudo de Dixon contempla as peças literárias que fazem parte do conjunto de
contos produzidos a partir de 1880 nos quais o autor posiciona-se contrariamente não só
ao realismo documental, mas também ao objetivismo e ao positivismo, princípios
cientificistas que dominavam o ambiente intelectual da época. O crítico norte-americano
(1992, p.14) observa que “[...] o discurso machadiano satirizará o pensamento
87
enciclopédico, destruirá as hierarquias, glorificará a alinearidade e o subjetivismo, e
proclamará as verdades relativas”.
Numa tentativa de ironizar o positivismo, o pesquisador nos indica “leis” e
padrões de interpretação dos contos machadianos. De imediato, ele afirma que uma
tentativa de estabelecimento de “leis” para interpretação da obra machadiana –
lembrança irônica dos postulados e paradigmas do positivismo – se torna inconcebível,
visto que Machado de Assis opera, na verdade com “antileis” e, neste sentido, a única
“lei” vigente em sua ficção é a dos “caminhos oblíquos” da ambiguidade.
Entretanto essas leituras críticas, lideradas por especialistas do mundo
acadêmico – Brayner, Bosi, Candido, Paul Dixon, Gledson e outros aqui não
trabalhados – tornam-se não apreciáveis por todo leitor. Ou por serem construídas numa
linguagem empolada, voltada principalmente para o mundo acadêmico, ou por só
reverberarem entre aqueles que abraçam as filiações teóricas dos especialistas. O fato é
que possibilidades de desvendamento dos contos não são exploradas como merecem.
Algumas revistas, uma variante mais acessível pela linguagem, também
apresentam leituras críticas dos contos nos quais são possíveis leituras mais perspicazes
da sociedade, além de possibilitarem mergulhos consistentes no caráter polivalente da
obra do escritor. Vicente Luís de Castro Pereira (s/d) observa:
Os contos papéis avulsos (1882) promovem uma revolução na
narrativa brasileira comparável à operada pelo romance Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881). Após os livros Contos Fluminenses
(1870) e Histórias da Meia-Noite (1873), o conto machadiano atinge o
grau máximo da sátira dos costumes, do desvelamento de aparências,
da crua exposição dos vínculos de exploração entre os homens e da
denúncia da precariedade dos comportamentos individuais que
espelham a hipocrisia da própria coletividade.
Na Nova Escola, Anderson Moço (2008, p.50) expressa que a iniciação do
pequeno leitor da contemporaneidade nos textos machadianos deve se dá pelos contos,
observando peculiaridades próprias da idade, como descreve:
Nos ciclos iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos
contos, compreensíveis por leitores de qualquer idade e com história
bem próxima da realidade infantil. “Para adquirir o gosto pela leitura é
fundamental que a escolha dos títulos seja adequada à fase do
desenvolvimento do aluno” recomenda Cláudio Bazzoni, selecionador
do Prêmio Victor Civita educador nota 10. O que não quer dizer que
88
devam ser apresentados exemplos simples. É saudável haver um certo
estranhamento e até um descontentamento com as leituras, pois um
pouco de dificuldade ajuda a formar a capacidade leitora. “Ao longo
do ano, opções mais fáceis são intercaladas às mais refinadas para que
cada um forme sua opinião sobre as histórias e com isso se posicione
criticamente frente a elas”, recomenda Ceccantini, da Unesp.
Percebe-se, nos depoimentos, o destaque tanto para o estilo como para o efeito
que este provoca nas mais variadas temáticas e leituras dos contos. No texto
machadiano, mesclam-se o cognoscível e a emotividade, sem deixar de provocar
alguma forma de crítica no leitor. Neste sentido, Antonio Candido (2004, p.32) observa:
[...] não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma
galeria de tipos singulares. Procuremos as situações ficcionais que ele
inventou. Tanto aquelas onde os destinos e acontecimentos se
organizam segundo uma espécie de encantamento gratuito, quanto as
outras, ricas de significado em sua aparente simplicidade,
manifestando com uma enganadora neutralidade de tom, os conflitos
essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens, com as
classes e os grupos. A visão resultante é poderosa [...].
Aqui, Candido acentua a necessidade de o leitor não se perder com o
afastamento que os excessos das teorias acadêmicas podem promover devido as suas
abordagens sofisticadas em relação ao texto machadiano. A condição primaz que o
referido pesquisador pontua como determinante para melhor se chegar à obra
machadiana, reside não numa leitura pedante e tecnicizada, mas naquela em que o
íntimo e as percepções do leitor possam dar vazão a tudo que esse texto desperta.
2.1.2- Um olhar sobre “A Causa secreta”
O conto “A causa secreta” tem foco específico por ser objeto de apreciação na
atividade investigativa realizada com um grupo de leitores. Tal escolha procedeu por se
tratar de um texto que circula nos manuais didáticos com muita frequência e ser
extremamente instigante muito mais pelo não dito. Torna-se importante continuar
situando os olhares provenientes da crítica acadêmica e das revistas de cunho didático
em relação a este conto.
89
“A Causa secreta” faz parte de Várias histórias, coletânea publicada em 1897.
Há certo amadurecimento do escritor diante do gênero literário, o que leva Gledson
(2006, p.68) a afirmar sobre este momento da escrita machadiana: “[...] não há dúvida
de que a tensão da prosa sofre um relaxamento. Um indício curioso, quer-me parecer, é
que esses contos quase não precisam de notas. Aqui tudo está claro como água”.
Essa coletânea é uma das mais volumosas como o próprio Machado de Assis
(1964, p.00) adverte na Apresentação, justificando que “[...] o tamanho não é o que faz
mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade”. Nessa antologia,
encontramos contos renomados e muito referendados, que também integram os livros
didáticos. São eles: “A Cartomante”, “Entre santos”, “Uns Braços”, “Um Homem
célebre”, “A Desejada das gentes”, “A Causa secreta”, “Trio em lá menor”, “O
enfermeiro”, “O Diplomático”, “Mariana”, “Conto da escola”, “Um apólogo”, “D.
Paula”, “Viver”.
O conto “A Causa Secreta” traz a história de Fortunato, empresário de quarenta
anos, casado com Maria Luiza, mulher frágil e discreta. O empresário desenvolve uma
relação de amizade e posteriormente vem a compor uma sociedade numa casa de saúde
com Garcia, jovem recém-formado em Medicina. O primeiro encontro de Garcia e
Fortunato ocorre quando o empresário acompanha, até a pensão onde mora o médico,
um homem atacado por capoeiras. Travam-se contatos de que resulta a sociedade na
clínica. Garcia vem a se apaixonar pela esposa do sócio e os contatos permanentes lhe
possibilitam perceber o comportamento estranho do esposo de sua amada.
Qual seria a causa secreta? A princípio, poderia ser o comportamento sádico de
Fortunato, o que se revela no prazer com que ele vê o sofrimento do outro – no caso, o
homem da pensão atacado pelos desordeiros. O narrador mostra também a satisfação de
Fortunato ao desferir chutes em animais nas ruas, bem como há certo gozo na sua
excessiva dedicação aos doentes da clínica. Há prazer mórbido nas experiências de
anatomia e fisiologia realizadas com animais na casa de saúde. É o que se observa
claramente na tortura perpetrada contra um rato na biblioteca e, por fim, o inconfundível
e excitante prazer ante a dor de Garcia diante da amada Maria Luiza morta.
Mas será essa a causa secreta do conto, investigação que o próprio título do texto
nos instiga realizar? Será que existe apenas uma causa secreta? Por que o interesse de
Garcia para com Fortunato, o que se observa mesmo antes de o médico conhecê-lo
pessoalmente e com ele passar a conviver, a ponto de já observá-lo demoradamente
90
quando o via por acaso? Por que o silêncio de Maria Luiza, o que aparece como indício
do terror que o marido lhe imprime? Como se explica o desconhecimento da esposa das
ações de bondade que todos viam nos atos de Fortunato?
Vale retomar uma citação de Afrânio Coutinho (1990, p.126) sobre Machado de
Assis, escritor que qualifica a desconfiança de modo muito próprio:
Para ele os homens só são capazes de vícios, ambições, sentimentos
contraditórios, perversidades, ingratidões, inconstância, e, na sua obra,
assistimos à procissão de todos os vícios e defeitos morais, más
qualidades e pecados, que inteiramente dominam os homens em sua
vida individual e social. Há sempre uma causa secreta, que é preciso
pesquisar, nos atos humanos, e esse é um trabalho constante do
romancista.
Deve-se acrescentar que Machado transfere também para o leitor a pesquisa e a
investigação dos atos humanos, quando o instiga a destrinchar o simples que não é tão
simples. E, nesta direção, é como se ele abrisse um grande leque de possibilidades de
leituras da condição humana.
Gledson (2006) vê em Machado uma tendência a construir personagens dotados
de satisfações sádicas diante da dor, aí disfarçadas pela obstinação científica ou pela
suposta generosidade do ato de caridade. O prazer de Fortunato diante da dor alheia
assemelha-se ao prazer estético vivenciado por uma pessoa defronte de um objeto
artístico. Assim, o melodrama que a personagem assiste “cozido a facadas”, a tortura do
rato, entre outros, provocam-lhe um prazer quieto e profundo, similar ao que a audição
de uma música ou a visão de uma bela estátua daria a um apreciador das artes. Para o
pesquisador, isso também pode ser traduzido como a desconfiança permanente em
relação à ciência e à objetividade, que podem camuflar motivos bastante sórdidos.
Candido (2004) vê em “A Causa Secreta” um paradigma da relação social
construída a partir de normas e padrões que disfarçam e escondem a ação devoradora do
homem pelo próprio homem. Assim se expressa o crítico (2004, p.31):
[...] é interessante comparar a anormalidade essencial de Fortunato
[...] com a sua perfeita normalidade social de proprietário abastado e
sóbrio, que vive de rendas e do respeito coletivo. O senso machadiano
dos sigilos da alma se articula em muitos casos com a compreensão
igualmente profunda das estruturas sociais.
91
Para Dixon (1992), o olhar do comportamento anormal não está apenas em
Fortunato, mas também em Garcia. O crítico os vê como duplos que existem numa
condição de implicação mútua, pois “[...] Garcia possui as mesmas qualidades de
Fortunato; a maneira com que suas qualidades são manifestadas é que aparece num
nível mais aceito para a sociedade. Fortunato disseca os corpos e Garcia disseca as
almas [...]” (DIXON, 1992, p.62). A descrição da cena no início da narrativa – os três
personagens em posições estáticas – juntamente com o título, de certa forma, já
indiciam a ambiguidade com que se apresentarão não só Fortunato, mas também Garcia
e Luiza.
Para Ariadne Olimpo (s/d) contos machadianos como A cartomante e A causa
secreta “[...] são exemplos de como os valores da consciência humana podem
modificar-se segundo seus interesses.” ( Discutindo Literatura Especial, p.43).
Em A causa secreta ocorre a relativização de valores pela consciência em vários
momentos, segundo Ariadne. Há a mobilização da consciência entre a ética e o interesse
quando Garcia, que já observava a fragilidade da saúde de Maria Luisa, converte a
possibilidade de amor por ela em certeza e passa a acompanhá-la mais de perto. Outro
momento ocorre na tortura do rato: mesmo com repugnância diante do ato executado
por Fortunato, o jovem médico sente prazer em observá-lo, mantendo-se como
espectador à distância para alimentar a sua curiosidade.
Trata-se de um conto inquietante, que não se revela como um todo, apesar da
aparente simplicidade. Há o convite a um mergulho na essência dos fatos e das
personagens, o que nos possibilitaria uma sondagem da natureza humana.
O escritor Machado de Assis convoca a participação do leitor que se aventura na
leitura do conto, dando-lhe uma posição ativa, mediante os questionamentos
provocados, as dúvidas suscitadas e as contradições promovidas. E faz essa convocação
não por meio de textos de leituras correntes, mas através de narrativas com estruturas
sofisticadas, o que desafia o leitor e o enreda nas arestas do próprio texto.
Ler Machado de Assis não representa o encontro com uma suposta mensagem
do texto ou com as conformações aderidas a filiações teóricas; trata-se, na verdade, de
um mergulho na condição do homem no tempo-espaço da sua trajetória. Entender esse
texto em diálogo constante requer a existência de um leitor habilidoso. Até que ponto os
leitores do século XXI, não familiarizados com teorias que provocam e desencadeiam
discussões sofisticadas, tão próprias da academia, podem também ter acesso ao
92
manancial do texto machadiano? As produções das revistas contemporâneas, de
linguagem mais direta, dão conta de expor tudo que estes textos podem oferecer?
É por meio do contato direto com a obra, o que vale dizer é por intermédio do
exercício da autonomia de leitura que o leitor consegue um encontro mais fecundo com
o texto machadiano. Na contemporaneidade, esse encontro se concretiza também pela
ação do diálogo da obra literária com as releituras adaptadas e empreendidas pelo
cinema, TV e quadrinhos.
Torna-se desafiador compreender como as quadrinizações trabalham o texto
machadiano, para muitos apenas possibilidade de maior acesso a obra machadiana, para
outros apenas mais um produto cultural de consumo rentável. E ainda: investigar como
o leitor reage ante estas novas possibilidades de texto e como interage com elas.
2.2. A literatura machadiana: entre requadros
A literatura, como também outras artes, na contemporaneidade vive num
momento no qual produtos culturais distintos dialogam, o que faz surgir novos espaços
de transmutação de signos, que vislumbra atingir novos apreciadores. A música, o
cinema, os quadrinhos, a minissérie, a novela, o desenho animado são artes/linguagens
que mais aderem a esta inter-relação de produtos culturais híbridos, típica do mundo
globalizado, no qual as culturas até para subsistir buscam romper fronteiras.
Dentro da perspectiva da literatura em quadrinhos como objeto cultural híbrido,
é preponderante averiguar de que forma se processa a tradução do texto literário
machadiano com sua linguagem específica e ambígua, aberta a diversas leituras, para
esta outra linguagem – dos quadrinhos.
É importante salientar que os textos que se entrecruzam para a composição da
literatura em quadrinho têm papel salutar no surgimento deste objeto cultural. São os
roteiristas e ilustradores, na condição de leitores com olhares mais direcionados à
recriação, quem seleciona e ressignifica o texto base em linguagem de quadrinhos,
produto da percepção e significação, isto é, da re-elaboração do texto literário.
A literatura machadiana foi alvo de diferentes olhares e tratamentos estilísticos
nas quadrinizações que se encontram no mercado. Os romances e contos aguçaram a
imaginação e a criatividade de vários ilustradores que, em parceria com roteiristas
93
(quando a dupla função é exercida por pessoas distintas), apresentaram leituras que
muito reverberaram o potencial da escrita machadiana.
Dentre os variados trabalhos destacam-se as duas traduções do romance que
definitivamente instauraram o estilo de escrita de Machado de Assis – Memórias
Póstumas de Brás Cubas de 1881. Trata-se da história do burguês Brás Cubas, que teve
uma vida ociosa, aos sabores de falidos projetos políticos, profissionais e amorosos,
fatos estes contados de forma irônica e sarcástica pelo próprio personagem após sua
morte, do além-vida. O livro é ressignificado tanto pela Editora Escala Educacional em
2008 e pela Desiderata em 2010.
A tradução da Escala Educacional, que recebe o mesmo título da obra, transmuta
as aproximadamente 200 páginas do texto-base em um texto quadrinístico de quarenta
páginas com roteiro e ilustração de Sebastião Seabra.
Figura 44: Memórias Póstumas Figura 45: Memórias Póstumas Figura 46: Memórias Póstumas
de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas
Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, pág. 1 Escala Educacional, pág. 5
A capa da quadrinização (figura 44) destaca uma série de requadros que
apresentam personagens de destaque (Quincas Borba, Marcela e Brás Cubas) e uma
cena da história (reencontro de Brás e Quincas já adultos). Observa-se que só traz a
inscrição do nome do autor da obra literária. Na primeira página (figura 45),
encontram-se os mesmos requadros (das personagens) na parte superior e as cenas do
94
pai levando Brás da casa de Marcela à força, a solidão da viagem para Europa e
novamente o encontro já retratado na capa. No centro, a especificação do trabalho, o
título da história, o nome do autor e por fim do artista responsável pelo trabalho,
Sebastião Seabra. A não-identificação do quadrinista na capa 1 pode ser vista como a
supremacia da obra literária no texto híbrido.
Tal percepção se fortalece quando se parte para a leitura da história, na qual a
roteirização preserva o texto-base que se apresenta mais sintético nas legendas e falas. O
início da história traz a marca da liberdade da recriação oferecida pelo signo estético: o
espírito de Brás Cubas desencarna no caixão, presencia seu velório e sepultamento, para
em seguida rememorar sua vida (figura 46).
O personagem-narrador alterna o lugar de onde conta: ora do além-vida, lugar
representado por requadros vazios em uma única cor, geralmente com a personagem
em perspectiva próxima, em close-up (fig. 47 e 49) ou meio-corpo (48) , dirigindo o
olhar para um suposto ouvinte como quem busca diálogo; ou voltando à cena do
passado, dela fazendo parte como espectro e indicando os acontecimentos como analista
cônscio de seus comentários (fig.50, 51 e 52).
Figura 47: Memórias Póstumas Figura 48: Memórias Póstumas Figura 49: Memórias Póstumas
de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas
Escala Educacional,pág. 13 Escala Educacional, pág. 36 Escala Educacional, pág. 36
95
Figura 50: Memórias Póstumas Figura 51: Memórias Póstumas Figura 52: Memórias Póstumas
de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas
Escala Educacional, pág. 11 Escala Educacional. pág. 19 Escala Educacional, pág. 29
Figura 53: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Escala Educacional, pág. 44
Apenas nos requadros finais (figura 53) fica clara a mudança de espaço. Do
ambiente noturno, com aspecto soturno de fantasma, Brás, por meio de pilérias de
feições jocosas, parte para o além-vida (representado em requadro negro) como se
tivesse quite com a vida, sem nada deixar para traz conforme mostram as expressões
faciais e posturas corporais.
Outro recurso usado pelo quadrinista é a bricolagem entre desenhos com traços
simples e marcantes (em cores e tons suaves) com fotos de ambientes em cena ao fundo,
o que dá à história uma nuança realista, como se percebe nas figuras que se seguem:
96
Figura 54: Memórias Póstumas Figura 55: Memórias Póstumas de Brás Cubas
de Brás Cubas
Escala Educacional, pág. 23 Escala Educacional, pág. 39
A Editora Desiderata, por sua vez, intitula a série de obras literárias
quadrinizadas de Grandes Clássicos da Graphic Novel, o que já indica certa autonomia
da obra produzida em relação ao texto base. Isto é firmado nas indicações das autorias
(figura 48): obra de Machado de Assis recriada por João Batista Melado & Wellinton
Srbek. Trata-se de uma quadrinização de 85 páginas em desenhos bem definidos, que
busca retratar a época de forma bem humorada.
Já na capa 1 (figura 56) e capa 2 (figura 57) são apresentadas as personagens
Brás Cubas, Virgília e Quincas Borba, com um destaque especial para Brás (capa-
frente) como um mago da criação com as palavras pois, de sua mão iluminada, brotam
letras que constituíram as palavras da história (referência à forma inusitada de contar –
um defunto em sua pós-vida, utilizando rememoração em enunciações ácidas sobre os
seus contemporâneos). É o que se pode observar nas figuras que se seguem:
97
Figura 56: Memórias Póstumas Figura 57: Memórias Póstumas
de Brás Cubas de Brás Cubas
Desiderata, capa 1 Desiderata, capa 2
O texto de apresentação da quadrinização, nas primeiras páginas, de autoria de
Moacyr Scliar, constitui um depoimento em defesa dos textos imagéticos, como a
literatura em quadrinhos. Para o escritor, todo leitor traduz o verbal em imagens e
destaca a tradução criativa dos ilustradores:
[...] todo leitor traduz, quase que automaticamente, as palavras que
está lendo no texto em imagens. Visualização é parte da fantasia,
como mostram os sonhos e devaneios. Mas os grandes ilustradores
vão mais além e, a partir da tarefa que lhe é delegada, criam obras de
arte... (p.7)
O referido escritor destaca que o aspecto inovador e revolucionário da obra
literária é uma petição para ser quadrinizada. Ele lembra que o trabalho imagético já
havia acontecido em três versões cinematográficas (com Fernando Cony – 1967, Julio
Bressane – 1985 e André Klotzel – 2001), o que indica o quanto fascinante é a obra.
Defende, em seu ponto de vista, o objetivo da literatura em quadrinhos, que é “colocar
ao público, sobretudo o jovem, a obra de Machado de forma atraente, acessível”(p.9).
A quadrinização em questão é iniciada com uma página negra, simulando o
vazio, o nada (figura 58) e na página seguinte a ilustração de raízes entrelaçadas com
vermes e a dedicatória da obra no centro da página, nos reporta a idéia da pós-morte
(figura 59).
98
Figura 58: Memórias Póstumas de Figura 59: Memórias Póstumas de
Brás Cubas Brás Cubas
Desiderata, pág. 8 Desiderata, pág. 9
Na página 10 (figura 60) a personagem-narradora explica a motivação e a
pretensão de sua narração, de forma direta, como se estivesse a dialogar com o leitor, o
que podemos perceber nas figuras da página seguinte:
Figura 60: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág.10
Na quadrinização, durante a enunciação, o além-vida é representado em
requadros em tom azul celeste (fig. 60), com pontos brancos, o que nos pode insinuar o
céu, o infinito. Braz mostra nas feições a segurança no que conta e um ar de certa
superioridade, por estar em lugar onde não pode ser atingindo por ninguém, diante das
revelações e avaliações das pessoas com quem conviveu.
99
A partir daí o texto quadrinístico é subdividido em capítulos, em conformidade
com o texto-base. Em tais capítulos se observa um trabalho de síntese acurada, efetuado
pelo roteirista que além de condensar muito bem cada parte, traveste o texto de uma
linguagem mais corrente na contemporaneidade.
O narrador passa a contar os fatos de forma distanciada, sem se apresentar
dentro da história, postando-se fora do alcance dos efeitos de sua narração irônica.
Assim, em vários momentos, interrompe-se a narrativa quadrinística e aparece o
narrador-personagem no plano da enunciação em posturas corporais de descontração e
descaso, o que enfatiza seu tom zombateiro, como no caso com Marcela (figura 61); em
posição de descanso e sonho (a possibilidade da paternidade, figura 62); em posição de
cabeça para baixo (sonhos desmoronados, figura 63).
Figura 61: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág. 31
Figura 62: Memórias Póstumas de Figura 63: Memórias Póstumas de
Brás Cubas Brás Cubas
Desiderata, pág . 71 Desiderata, pág . 74
Outra estratégia utilizada pelo quadrinista para materializar a qualidade do
signo estético literário é também metaforizar o signo icônico. As duas faces da ideia
100
citada no verbal (figura 58) são materializadas nos requadros com o rosto do próprio
narrador em posições opostas nos quadrinhos paralelos para insinuar o conteúdo
manifesto das ideias – filantropia e lucro.
Figura 64: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág. 13
Uma situação de habilidade narrativa na quadrinização ocorre quando Brás
pára o enunciado de apresentação de um amor adolescente e posta-se entre dois
requadros (figura 64) : no primeiro requadro, a legenda sugere uma situação de mistério
com as reticências, que é intensificado com a utilização do recurso da sombra da dama
para ocultá-la; em seguida aparece o narrador, no plano da enunciação (pós-vida), a
interromper a apresentação da identidade da dama com um comentário irônico; por fim
é revelada a imagem da dama. Nesta parte parece que o narrador-personagem brinca
com seu narratário.
Figura 65: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág. 29
Na parte 27 da quadrinização (figura 66) que se refere ao capítulo das negativas,
no qual o narrador faz a avaliação de sua vida, o quadrinista utiliza do recurso de não
mostrar o narrador por completo. Cada requadro apresenta uma parte do corpo ( e meio
corpo: metade do rosto, metade do torax), insinuando a incompletude de suas ações em
101
vida. É uma situação de transposição criativa da condição de inacabamento das ações da
personagem Brás Cubas, que teve uma vida mal aproveitada, por comodismo e falta de
objetivos.
Figura 66: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág.85
A última página da quadrinização materializa a última frase do romance “Não
tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” que é a máxima
do pessimismo humano. A materialização deste tom pessimista se dá na própria imagem
da personagem Brás, em meio corpo e ar de fracasso, desintegrando-se, desaparecendo
no nada, como se pode observar abaixo:
Figura 67: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág. 86
A forma de cada quadrinista traduzir a mesma obra revela como cada um percebe a
leitura e o que mais enfatiza no poético, preservando o máximo ou mínimo de informação
102
estética do original. Observemos como Sebastião Seabra (Escala Educacional) e João
Batista Melado & Wellinton Srbek (Desiderata) materializam o mesmo episódio da
história. Trata-se de “O delírio”, que corresponde a um dos capítulos mais
impressionantes da literatura brasileira pelo conjunto de livres associações de imagens
descritas em metáforas singulares, produtos do delírio de Brás Cubas no momento em
que a pneumonia já se encontrava em estado avançado.
A quadrinização da Escala Educacional:
Figura 68: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 69: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Escala Educacional, pág.9 Escala Educacional, pág.10
Na quadrinização acima, o capítulo O devaneio é traduzido em vinte e quatro
requadros, observando-se que algumas imagens sofrem o aumento da informação
estética como a referência ao diálogo com Pandora (figura 68) que ganha espaço em
nove quadrinhos, além da perspectiva de superioridade quando ela é gigante e Brás um
insignificante ponto preto no quinto quadrinho. O desfilar dos séculos é ressignificado
em doze requadros (figura 69) com ícones que representam as diferentes épocas
(homem das cavernas, hieróglifos, esfinge, cavaleiros, Cristo crucificado, As Cruzadas,
canhões, castelos, descobertas tecnológicas).
103
A quadrinização da Desiderata:
Figura 70: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 71: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág.16 Desiderata, pág.17
Figura 72: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 73 Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pág.18 Desiderata, pág.19
Figura 74: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 75: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pag. 20 Desiderata, pág.21
104
A tradução da Desiderata destaca-se por ilustrações maiores, em traços mais
definidos. Explora o capítulo O Devaneio em vinte e sete requadros, centrando-se na
viagem com o hipopótamo, ser de aspecto alucinante, à origem dos séculos, que é
iconizada em oito requadros (figuras 70 e 71); o encontro com Pandora, cuja imagem
apresenta-se feminina, altiva e superior, é apresentado em oito quadrinhos (figuras 72 e
73), neles Brás é apresentado em imagem minúscula, o que indica a própria
insignificância; e o desfile dos séculos em dois requadros (primeiro da figura 74 e
primeiro da figura 75) no qual a aglomeração das personagens marcantes da história
desfilam. O recobrar da consciência se dá na transformação da imagem do hipopótamo
(ser imaginário de sua angústia delirante) na figura do gato de estimação. Nota-se neste
trabalho a ampliação do signo estético literário no icônico, o que o faz reverbarar mais.
Destaca-se também nesta quadrinização o trabalho feito com o capítulo O velho
diálogo entre Adão e Eva que a editora Escala Educacional suprime no seu texto
quadrinístico. No texto base ele é constituído de pontilhados e sinais de pontuação. Na
tradução da Desiderata ele é concretizado nas imagens que sugerem o ato de despir-se
do casal, insinuando relações íntimas, como se percebe abaixo:
Figura 76: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Desiderata, pag. 55
Outro romance que foi ressignificado na íntegra foi Dom Casmurro. A
quadrinização a que aqui nos reportamos trata-se do trabalho de Ruy Trindade que faz
parte do projeto “Transcrever para quadrinhos romances inteiros”, iniciado em 1991,
105
com o objetivo de incentivar a (boa) leitura. No estilo de ilustração bem sugestiva, em
Dom Casmurro – em quadrinhos sem cortes (2005) o autor utiliza pontilhados e
tracejados para compor as imagens,o que já nos conduz a certa subjetividade de
percepção, favorecendo ao olhar global para melhor leitura da imagem. A própria
técnica escolhida evoca o clima que se estabelece na leitura do romance: nada se diz por
inteiro, trata-se de percepções isoladas nas reminiscências da vida da personagem
Bentinho que de convicto apaixonado, passa a descobrir-se marido traído. Para melhor
apreender os acontecimentos faz-se necessário um posicionamento imparcial do leitor,
ou seja, a leitura global para perceber todas as variantes possíveis da história, como são
variáveis os traços e pontilhados para a percepção com acuidade.
Já na capa (figura 77) a ilustração acaba por nos conduzir a situação mais
corriqueira de leitura de Dom Casmurro: as três personagens principais (Escobar, Capitu
e Bentinho) caminham juntas, a sugerir o triângulo amoroso. Na figura 78 o intróito da
quadrinização ilustra a designação do título do livro: a explicação para o apelido da
personagem Bento que em alguns traços faz lembrar a imagem do próprio escritor
Machado de Assis.
Figura 77: Dom Casmurro Figura 78: Dom Camurro
Bureal Gráfica e Editora, capa 1 Bureal Gráfica e Editora, pág. 1
106
Toda a quadrinização segue a ordem capitular da obra literária, que é traduzido
em requadros conforme a percepção do quadrinista. O capítulo A inscrição, um dos
mais belos da obra literária, por tratar-se da revelação dos sentimentos adolescentes,
ganha a tradução icônica em treze requadros (figura 79 e 80), nos quais do sexto ao
décimo terceiro explora-se a metáfora “Estávamos ali com o céu em nossas mãos,
unindo os nervos, faziam das duas criaturas, uma só, em uma só criatura seráfica.”, a
partir da utilização da perspectiva de cima, como se o casal fosse olhado do céu, e o
universo semelhante a uma câmara em perspectiva circular, centrasse nos dois.
Figura 79: Dom Casmurro Figura 80: Dom Casmurro
Bureal Gráfica e Editora, pág. 31 Bureal Gráfica e Editora, pág. 32
O capítulo No céu (figura 81) que nos reporta ao casamento de Bento, carregado
de metáfora e citações bíblicas referentes ao amor matrimonial foi tratado de forma
intensa pelo artista. Ele explora a perspectiva de cima para enfatizar a grandeza do
momento tão esperado do casamento (segundo requadro). A explosão dos sentimentos é
traduzido nas metáforas visuais nos requadros 3, 4, 5 e 6: contornos em formas de
nuvens para destacar o momento especial do casal nubente e as estrelas e os corações
enfatizando a paixão e a luz do encontro consumado dos amantes. São estas formas
idôneas, destacadas pelo narrador, que o quadrinista preservou para ilustrar momento tão
intenso.
107
Figura 81: Dom Casmurro
Bureal Gráfica e Editora, pág 214
No Capítulo Olhos de ressaca (figura 82), o quadrinista utilizou a mesma
contenção que o narrador supôs perceber na esposa, no momento da dor da morte do
amigo Escobar. Capitu é mostrada no conjunto dos participantes da cena, destacando-se
sutilmente como a portadora de um olhar de busca e apreensão. A sensação do narrador
é explorada na cena pela constituição da imagem discreta da esposa e a fixação do olhar
sobre o corpo de Escobar.
Figura 82: Dom Casmurro
Bureal Gráfica e Editora, pág. 250
108
O quadrinista, em sua tradução preserva a sua afinidade eletiva à obra, pois “
não se traduz qualquer coisa, mas aquilo que conosco sintoniza como eleição da
sensibilidade...” A mesma contenção das metáforas verbais da obra literária é percebida
nos signos icônicos escolhidos para traduzir a paixão, e a desconfiança que emana do
narrador-personagem do romance Dom Casmurro. Tanto Machado quanto o quadrinista
utilizam deste mesmo expediente de reserva,o que provoca no leitor a sensação da
dúvida em relação aos fatos.
O grupo editorial Autêntica lançou-se, em 2011,aos quadrinhos literários e
produziu quadrinizações de obras da literatura mundial, dentre elas Dom Casmurro de
Machado de Assis. A versão quadrinizada teve como roteirista Wellington Srbek e
desenhos do arte-educador José Aguiar, num trabalho com muitos qualificativos.
Nas capas encontramos a motivação da obra, síntese da história: a rememoração
da vida de Bentinho, por ele próprio. Na capa 1 (figura 83), o presente da enunciação,
Bento maduro, relembrando sua história e escrevendo-a em sua escrivaninha é
apresentado em tons mais escuros e cores frias, com exceção do amarelo sobre sua face
a qual apresenta expressão de tristeza e dúvida. Atrás de sua poltrona aparecem as
principais personagens de sua rememoração, os quais predominam na cena de fundo da
capa 1 e tem continuidade na capa 2 (figura 84): Capitu faceira, Bentinho adolescente
correndo afoito sobre os longos cabelos da companheira e mais atrás a figura do jovem
seminarista Escobar. Tudo em tons de vermelho, ora mais claro, ora mais escuro. Ao
fundo, o meio rosto de Capitu, com foco no olhar triste e decepcionado.
Figura 83: Dom Casmurro Figura 84: Dom Casmurro
de Machado de Assis de Machado de Assis
Nemo, capa 2 Nemo, capa 1
109
A quadrinização da Nemo destaca-se pelos traços retos, cores preta e branca e
texto condensado, que conserva os principais fatos da história, numa linguagem enxuta.
É dividida em vinte partes, em conformidade com os capítulos do romance. Alguns
aspectos da transmutação criativa neste trabalho merecem destaque.
Na parte dois – Do livro – a materialização da descrição da casa de Bentinho,
cópia da casa da mãe, se dá pelo ícone inacabado do prédio ( requadro 1) acompanhado
paralelamente pelo requadro 2 da casa concluída.O ato da mão que desenha a casa no
primeiro quadrinho é uma alusão à reconstrução da vida, metaforizada na casa materna,
pela memória do escritor. A rememoração é uma tentativa de preencher a lacuna que ele
próprio se tornou pela grande dúvida que passou a carregar. Esta dúvida afetiva e
existencial é concretizada por dois requadros paralelos (3 e 4) : no primeiro ele presente
em sua poltrona, no segundo o seu vazio representado pela silhueta branca.
Observemos:
Figura 85: Dom Casmurro
Nemo, pág. 5
A parte 4 – Capitu – trata-se da descoberta de Bentinho do amor pela vizinha. O
ilustrador materializa na corrida para o quintal de Capitu o processo de descoberta do
sentimento. A magnitude da distância não é física, mas do sentimento recém-descoberto
que parece ampliar o espaço percorrido, ora apresentado com requadros em perspectiva
110
distante, simbolização da sensação de liberdade que o sentimento amoroso proporciona,
ora em perspectiva próxima, demarcação da subjetivação dos sentimentos agora
conscientes pelo jovem, gerando-lhe reflexões, como se nota:
Figura 86: Dom Casmurro
Nemo, pág. 5
A materialização da descrição das personagens, apresentadas com posturas
físicas e feições que intensificam as características, merece atenção: José Dias, postura
ereta e imponente revelando certa autoridade; Capitu, expressões faciais de quem está a
maquinar ideias atrevidas, semblante de quem tem iniciativa; Dona Gloria, ar de pessoa
contrita e firme em seus propósitos.
Figura 87: Dom Casmurro Figura 88: Dom Casmurro Figura 89: Dom Casmurro
Nemo, pág. 10 Nemo, pág. 17 Nemo, pág. 9
111
A metáfora do olhar de Capitu, muito explorada no romance machadiano, ganha
também destaque nesta quadrinização. Ele é focado em muitos momentos e nuanças: na
desconfiança de José Dias diante do olhar “oblíquo e dissimulado” (figura 90), no olhar
doce, introspectivo e misterioso em busca de saídas para evitar o afastamento do jovem
Bentinho (figura 91), no olhar colérico, sofrido, vencido pela consumação da ida do
enamorado para o seminário (figura 92), no olhar enigmático e distante, guardado pela
lembrança do Casmurro Bento Santiago (figura 93). Muito ficou ocultado, porém
insinuado na forma de olhar de Capitu, o que foi bem reforçado pelo icônico.
Figura 90: Dom Casmurro Figura 91: Dom Casmurro
Nemo, pág. 20 Nemo, pág. 24
Figura 92: Dom Casmurro Figura 93: Dom Casmurro
Nemo, pág. 31 Nemo, pág. 77
112
A transposição criativa também merece destaque em outras passagens da
quadrinização. O primeiro beijo entre Bentinho e Capitu reverbera o jogo de sedução da
cena do penteado e todo o centramento no universo subjetivo dos adolescentes
apaixonados nos requadros esvaziados e negros, apenas figurando as faces em posições
opostas e o encontro dos lábios para o encaixe perfeito no beijo (figura 94).
Figura 94: Dom Casmurro
Nemo, pág. 26
A crise de ciúmes de Bentinho quando Capitu acompanha o olhar de um
estranho que a admira é materializada em um descontrole dantesco. Este momento é
marcado pela angústia e pela raiva do jovem, reforçadas na multiplicação sequenciada
de sua imagem, nas lágrimas e expressões de cólera e desespero, no close-up dos traços
que intensifica sua ira (boca, olhos e sobrancelhas):
Figura 95: Dom Casmurro
Nemo, pág. 43
113
A plenitude da realização amorosa dos jovens Bento e Capitu com o casamento é
uma página, ao mesmo tempo bela pelo sentimentalismo e sensualidade (casal destro do
coração consumando a relação amorosa) e sutil pela crítica subliminar aos interesses
que moviam a jovem (necessidade de Capitu de se mostrar aos outros como esposa –
casal caminhando pela rua):
Figura 96: Dom Casmurro
Nemo, pág. 58
Por fim, o recurso utilizado pelo quadrinista para mostrar a semelhança entre o
menino Ezequiel e o amigo Escobar: a sombra de um traz o perfil do outro – o menino
tinha a sombra de Escobar e Escobar tinha a sombra do menino, o que sugere a
semelhança entre ambos em idades diferentes. Tal semelhança encaminha para a
desconfiança sobre a paternidade de Ezequiel e suposta traição de Capitu. A partir deste
momento a decepção e indiferença domina a alma de Bento e provoca a destruição da
sua família:
Figura 97: Dom Casmurro
Nemo, pág. 70
114
Outra obra de Machado de Assis que merece menção é a novela, ou long short
story, O alienista. A história do ilustre médico Simão Bacamarte, seus estudos e teorias
sobre a mente humana, nas conjecturas sobre equilíbrio e desequilíbrio coadunando com
as conveniências sociais possui uma adaptação para o cinema como Azyllo muito louco
(1971), dirigido por Nelson Pereira dos Santos e uma para a TV, realizada pela Rede
Globo (1993) com título homônimo a obra literária. Atualmente, dispõe de quatro
quadrinizações. A Escala Educacional, a Companhia Editora Nacional, a Ática e a Agir
lançaram-se nesta empreitada de tradução intersemiótica desta história emblemática,
potencializando nas imagens, o signo estilístico machadiano, na literatura em
quadrinhos.
O trabalho da Escala Educacional com ilustração e roteiro de Francisco Vilachã
e cores de Fernando A. A. Rodrigues preservam todo o texto-base, tanto nas legendas
que contam a narração e dominam todo o texto como nos parcos discursos diretos. A
capa 1 da quadrinização (figura 98) traz cinco requadros: no centro a imagem do Dr.
Simão Bacamarte, destacando seu olhar desconfiado acompanhado diagonalmente da
esquerda para direita, por dois requadros que se refere à parte de paisagens; e dois da
direita para a esquerda que trazem as personagens da história.
A quadrinização já apresenta em sua primeira página um Simão Bacamarte
muito bem visto e considerado socialmente, relação materializada pelos olhares e
acenos do padre e escrivão da cidade. Ele é um homem que se dedica incansavelmente
ao estudo, numa Itaguai colonial com traços arquitetônicos e culturais ingleses, tanto no
casario, nas feições urbanas e na vestimenta das personagens (fig.99).
Figura 98: O alienista Figura 99: O alienista Figura 100: O alienista
Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, pág. 3 Escala Educacional, pág. 52
115
Destaca-se a exploração do signo icônico quando o artista amplia a imagem de
Simão materializando o aumento de poder e influência de Bacamarte que se torna maior
que a Casa Verde quando recolhe como insanos o amigo, vereador, secretário e
presidente da câmara (fig.100).
A crescente insatisfação contra Simão pelos populares da cidade é apresentada
pelas figuras em meio corpo, com expressões faciais de irritação, mostrada em
perspectiva de cima para baixo e a posição de circularidade, indicando o crescente
sentimento de insatisfação que percorre a todos (fig.101).
Na figura 102, o artista explora os requadros em linhas curvas com a
rememoração dos fatos ocorridos com a esposa os quais Simão utiliza para justificar ao
padre o motivo do recolhimento para a Casa Verde como desequilibrada. Ele sempre
apresentado em figura centralizada na página, com olhar desconfiado. No final da
história (figura 103), o alienista passa a definhar, sendo o objeto de suas especulações
científicas. Do olhar desconfiado para todos, a personagem passa a ostentar um olhar de
desencanto, produto da sua vida de estudos e pesquisas. E o mesmo padre que perscruta
Simão com feição de deferência no primeiro requadro da história, é o suposto
divulgador das qualidades que vitimaram Simão Bacamarte. No último requadro da
história a expressão facial do sacerdote é do típico estrategista, que defende a
tranqüilidade da pequena cidade.
Figura 101: O alienista Figura 102: O alienista Figura 103: O alienista
Escala Educacional, pág. 21 Escala Educacional, pág. 44 Escala Educacional, pág. 58
116
O Alienista de Lailson de Holanda Cavalcanti é uma quadrinização de cinqüenta
e oito páginas, muito bem articuladas no jogo imagem e palavras, como afirma o editor,
“ a imagem deve mostrar o que o texto literário não necessita escrever. Já o texto deve
apresentar o que a narrativa visual não pode mostrar.” (2008, p.59)
A capa (figura 104) traz requadros das personagens que produzem a urdidura da
trama: Simão Bacamarte aficcionado pelos estudos e elocubrando teorias sobre sanidade
e loucura, e a Casa Verde, um sanatório que funcionará como laboratório onde três
quartos da população de Itaguai passará, com o apoio de Crispim Duarte, o boticário;
ele enfrentará a oposição de populares, representado pelo barbeiro revolucionário
Porfírio. A imagem de Simão Bacamarte é explorada pelo quadrinista como um homem
veemente em seu discurso, ostentando traços de severidade em sua expressão facial
enérgica, com olhar atemorizante na terceira página, como prova a figura 105. Os gestos
contundentes destes já sugerem a radicalidade das ações e ideias que perpassarão toda a
história. Na sexta página, o artista expõe a galeria das principais personagens e funções
que conduziram as ações da história (figura 106).
Figura 104: O alienista Figura 105: O alienista Figura 106: O alienista
Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,
capa 1 pág. 1 pág. 6
No trabalho de Laerte, a mítica Itaguaí é caracterizada como uma típica cidade
do período colonial. São explorados o casario e as calçadas de pedras, elementos de
destaque da época (figura 107). Também os espaços interiores das casas e igreja trazem
a atmosfera colonial da época, tanto na arquitetura como nos móveis (figura 108 e 109).
117
Simão Bacamarte é apresentado de forma altiva, com olhar de constante determinação e
muitas vezes com semblante maquiavélico (figura 107).
O autor explora as elocubrações de Bacamarte a partir do jogo da perspectiva:
próxima e restrita (focalização na parte superior da face, nos olhos com ar alucinado)
para enfatizar a loucura como um objeto de estudo discreto ( metaforizada verbalmente
como ilha perdida no oceano da razão); e da perpectiva distante e ampliada para realçar
a dominação da ideia que a insanidade está em tudo ( metaforizada verbalmente como
um continente). (figura 108, dois últimos requadros).
Destaque especial para a tradução estilística da relação ciência e fé na figura
109. O encontro de Simão e do padre para apresentação da teoria do alienista, nesta
quadrinização se dá na igreja. A defesa de Bacamarte da loucura como uma onda
crescente feita pelo alienista e a contraposição do padre na afirmação de que entre
sanidade e loucura as fronteiras são perfeitamente delimitadas conclui-se com o aperto
de mão dos dois e o estabelecimento da dúvida na teologia. A saída de Simão remete a
idéia de que a Igreja (padre) vê a ciência abrir um novo caminho (porta aberta, mundo
sem fronteiras) para compreensão do mundo, dos homens, bem diferente da teologia
(igreja fechada, com cantos escuros e centro luminoso) com suas restrições.
Figura 107: O alienista Figura 108: O alienista Figura 109: O alienista
Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,
pág. 7 pág. 21 pág. 58
Podem ser constatados dois aspectos no texto verbal desta quadrinização:
enxugamento das expressões carregadas de erudição semântico-sintática, o que se dá
118
com a síntese de algumas passagens; e a substituição, em muitos trechos, do foco
narrativo constituído pelo narrador onisciente a contar os fatos ditos anônimos, pelas
falas de diversas personagens que fazem circular diversos fatos imputados ao alienista.
Esta segunda estratégia encena o anonimato das informações e fortalece a condição de
anônima à história contada, o que concede uma maior verossimilhança ao texto (figuras
110 e 111).
Figura 110: O alienista Figura 111: O alienista
Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,
pág. 20 pág. 21
O final da quadrinização centra-se na crise de Bacamarte, representada na
oscilação de luz no ambiente onde se encontra a personagem. Dá-se espaço ao
monólogo interior que aponta para as últimas conjecturas de seus pensamentos (figura
112). Na consulta às pessoas próximas o ambiente ganha claridade, na conclusão final
da personagem ele volta a escurecer, recurso utilizado pelo quadrinista para tornar mais
expressiva a ilustração da crise que o alienista vive até chegar a sua última conclusão:
ele é o alienado que merece estudos teóricos e práticos. Nas últimas imagens
Bacamarte é mostrado na posição lateral em metade da face, revelando o
desconhecimento de si e de costa em perspectiva distante, deixando-se vencer pela sua
nova teoria. (figura 113). Por fim, a última página não nos apresenta mais a figura do
ilustre alienista, apenas a Casa Verde, o cortejo de seu enterro e seu túmulo com um
busto: torna-se um homem enterrado pelas próprias concepções cientificas. (figura
114).
119
Figura 112: O alienista Figura 113: O alienista Figura 114: O alienista
Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional
pág. 51 pág. 53 pág. 54
Um dos trabalhos de tradução gráfico-imagético em quadrinhos mais criativo
de O Alienista, é o perpretado por Cesar Lobo (arte) e Luiz Antonio Aguiar (roteiro), da
Editora Ática. Nele ocorre o que Plaza chama “[...] tornar visível o concreto do original,
virá-lo pelo avesso [...] [pois] tradução e invenção se retroalimentam”. Nele é percebido
um aumento da informação estética fornecendo nível e qualidade a operação tradutora
que complementa o signo traduzido, visto que confirma o que Otávio Paz (Apud JULIO
PLAZA, 2008, p.40), pois
[...] o signo estético é um sistema de escolha irrepetível e, por isso
mesmo, congelado. Traduzir é colocar esse cristal em movimento,
para fixá-lo num sistema de escolhas outro, no entanto, análogo.
Traduzir é, nesta medida, repensar a configuração do original,
transmutando-a numa outra configuração seletiva e sintética.
Nesta quadrinização a ideia de terror que é o sentimento vivido na Vila de
Itaguaí, é desfraudada inicialmente por meio de dois signos já na capa ( figura 115): o
doutor Simão Bacamarte em imagem medonha (que lembra o conde Drácula na
tradução da obra de Bran Stock), recluso em seu gabinete de estudo e as sombras de
populares na fachada da casa.
Um dos elementos de criatividade introduzido pela tradução é o duplo de Simão
Bacamarte, o Alienista-Alienado. É o elemento novo que materializa em forma de
120
espírito fantasmagórico a loucura presente, desde o início no médico e na cidade inteira,
que vai ser descoberta por Simão no decorrer dos acontecimentos. O Alienista-
Alienado abre a história quadrinizada, em preto e branco, tece comentários sobre os
fatos durante a narrativa, o que dá maior dramaticidade ao texto. Ele, nas páginas
iniciais (figuras 116 e 117), se propõe revisar as crônicas que contam seu grande
empreendimento em Itaguaí – lugar onde predomina a insanidade, uma vez que até a
razão e a lógica são pura insânia.
Figura 115: O alienista Figura 116: O alienista Figura 117: O alienista
Ática, capa 1 Ática, pág.5 Ática, pág. 6
A quadrinização é marcada pelo grande teor de dramaticidade na materialização
das personagens, o que se faz perceptível nas posturais corporais. O corpo diz a
personagem: Simão Bacamarte em reverência mostra-se cordato com a autoridade, em
posição de relaxamento revela-se dedicado e ávido pelo estudo (figura 118) e o corpo
em posição de aceitação de louvores, coloca-se como empreendedor na ciência em
benefício da instituição pública (figura 119). A dramaticidade também é percebida na
contextualização da sociedade escravocrata, na qual a figura dos negros escravos
materializa as condições de exploração no trabalho (como pajem durante as refeições
dos senhores brancos ou em trabalhos pesados) e condições de subvida, alimentando-se
dos restos da mesa do homem branco (figura 120).
121
Figura 118: O alienista Figura 119: O alienista Figura 120: O alienista
Ática, pág.7 Ática, pág.11 Ática, pág.14
Dois processos criativos são evidentes para o alto tom de expressividade da
quadrinização. Primeiro, a constituição do desenho se aproximar das posturas
psicológicas e sociais das personagens: Crispim, de pequena estatura, bajulador e
asqueroso tem sua insignificância metaforizada no desenho em traços e expressões
faciais que o aproximou da imagem de um rato (figura 121). Segundo, apesar da praxe
de condensamento das adaptações, o artista amplifica em vários requadros alguns
acontecimento breves no texto-base, o que destaca ainda mais o terror e a dramaticidade
como na figura 122, o confinamento de uma ex-namorada que veio pedir pelo primo.
Figura 121: O alienista Figura 122: O alienista
Ática, pág.16 Ática, pág.20
122
As cenas da revolução decorrentes da insatisfação dos populares de Itaguaí com
relação ao clima de medo e terror, na política de recolhimento dos considerados
alienados, são marcadas de forte teatralidade. A entrada dos Canjicas na Câmara de
Vereadores em imagens nas cores cinza e vermelho e a imagem-signo da insurreição
popular francesa acima do líder, insinuando sua pretensão política, marcam o grotesco
da situação que é amplificada com o quebra-quebra e as agressões físicas entre
populares e vereadores (figuras 123 e 124).
A figura 125 apresenta a ínfima reação da criadagem e de Dona Evarista frente à
agitação que está em frente de sua casa; quando relacionada à comoção que toma os
populares, esta situação é materializada pelos artistas com o requadro menor do núcleo
familiar dentro do requadro maior, página inteira, para a percepção da agitação dos
populares.
Figura 123: O alienista Figura 124: O alienista Figura 125: O alienista
Ática, pág.26 Ática, pág.28 Ática, pág.30
As ações e reações de Bacamarte tornam-se capítulos à parte para a percepção de
sua situação psicológica. Em meio à agitação de sua casa e dos populares na rua, ele
reage com indiferença, guardando o livro que lia, e arrumando-o para que não
desconcertasse o alinhamento dos outros (figura 126). Em seguida ele tem a mesma
reação ao dirigir-se à sacada da casa e tentar travar uma conversa com os populares
agitados, numa postura de superioridade: ele parece querer alinhar e extirpar os ânimos
123
exaltados pela má interpretação das suas ações meramente científicas (figura 127). Por
fim, ao retirar-se da sacada o embate entre os populares e as forças de segurança pública
se intensificam. Bacamarte retorna para suas leituras e sua ciência e considera insanas as
cenas a que apenas assiste pela janela. (figura 128). Em todo momento, a sua
preocupação com a retidão das coisas e sua postura distante e descomprometida com os
fatos que o rodeiam são materializadas nas expressões faciais de alheamento e posturas
corporais descansadas (figura 128).
Figura 126: O alienista Figura 127 O alienista Figura 128: O alienista
Ática, pág.26 Ática, pág.28 Ática, pág.30
A mudança de posição teórica de Simão Bacamarte em relação à caracterização
dos insanos que passam a ser vistos como os que detêm o equilíbrio e a normalidade,
amplia a sua indiferença frente aos amigos em nome de uma impessoalidade científica.
A materialização desta passagem na quadrinização ganha um aspecto de terror e
crueldade pela condição subumana das celas de prisão, das pessoas vestidas com
farrapos de roupas e expressões faciais de terror frente à privação da liberdade. Tais
aspectos são notados nas pessoas íntimas do convívio particular do médico que também
são detidos, a exemplo do padre. Todo este caos humano é perpassado pelas variações
da cor cinza, o que dá maior intensidade a atmosfera insensível disseminada pela visão
científica do alienista que se mantém incólume ao desespero dos que enclausurou na
Casa Verde (figura 129).
124
Figura 129: O alienista
Ática, pág.30
Os requadros que indicam a derrocada da percepção científica de Bacamarte são
expressos em quadrinhos que tomam a páginas inteira, tornando-se a maior revelação da
história.
Primeiro, do alto de sua varanda em imagem em cores claras, o que indica
momento de paz (do alto de sua superioridade científica, parece analisar as intervenções
que promoveu nos pacientes, com as quais atacavam as belezas morais que disfarçavam
as conveniências e ações nada nobres ) ele questiona se realmente curou a todos. (figura
130).
Posteriormente, (figura 131) o médico se abate com uma crise moral, ao
perceber que não havia insanos na cidade (o ambiente é retratado em tons de vermelho e
preto) e desconfia que o melhor exemplo de sua teoria ainda não havia sido estudado.
Por fim (figura 132), após investigações descobre que ele é o melhor exemplo de
insânia, pois era o único normal e equilibrado da cidade; o que em última análise revela
que ele deva ser recolhido à Casa Verde. Assim, dirige-se nu para aquele local de
recolhimento. O ato de despir-se metaforiza a ação de mostrar-se, de revelar-se como
realmente é. Seu vulto caminhando em frente ao sanatório, com a lua coroando-lhe a
cabeça, insinua seu estado de lunático. Observemos isto nas figuras que se seguem:
125
Figura 130: O alienista Figura 131: O alienista Figura 132: O alienista
Ática, pág. 67 Ática, pág. 68 Ática, pág. 69
O Alienista da Editora Agir é uma quadrinização, que compõe a série Grandes
Clássicos em Graphic Novel, realizada pelos irmãos Fabio Moon e Gabriel Bá. Já traz
na primeira capa a temática dos estudos científicos que impregna as obras literárias da
época: a figura do cérebro domina boa parte da cena, com os livros na parte superior em
perspectiva próxima, e o homem, o estudioso em perspectiva distante. Nestas
sobreposições sígnicas da capa 1 (figura 133), percebe-se o maior valor dado ao
conhecimento. Assim como no texto base, nota-se a crítica à alucinação pelo
cientificismo, que é metaforizado na capa 2 (134) em negro, imagem em que se destaca
apenas a figura do cérebro e da personagem Simão, ou seja, o homem que apenas
enxerga a ciência em tudo e acaba por cegar-se ( a cor preta dominando a cena) para
outros possibilidades ao seu redor de se assimilar o conhecimento.
Figura 133: O alienista Figura 134: O alienista
Agir, capa 1 Agir, capa 2
126
Trata-se de uma tradução que conserva o texto-base, alterando alguns aspectos
da linguagem e da sequência narrativa. A narrativa gráfica preserva como fio condutor
as ações de Simão Bacamarte, cuja imagem e feitos são centralizados: estudo na
Europa, regresso a Itaguaí, dedicação aos estudos de psiquiatria (figura 135), construção
da Casa Verde (figura 136), constantes pesquisas, criação e comprovações de teorias
(figura 137). A história de Dona Evarista é deslocada na ordem da narrativa para um
momento posterior, e a referida personagem é apresentada com nuanças românticas.
Figura 135: O alienista Figura 136: O alienista Figura 137: O alienista
Agir, pág. 9 Agir, pág. 11 Agir, pág. 15
Na primeira página da novela gráfica Simão Bacamarte é materializado como
um homem modesto e empreendedor no encalço dos novos caminhos da medicina
frente aos mistérios da alma. Chega a ser metaforizado visualmente pelo destaque da luz
(último requadro da figura 135), símbolo de homem diferenciado numa Itaguaí
tradicional e conservadora
A Casa Verde (figura 136) é o espaço onde o médico se dedicará á caridade
(cuidar dos loucos que nunca tiveram tratamento e atenção particularizada) e ao
aprofundamento do estudo da loucura, seu principal objetivo. Nesta quadrinização a
casa dos alienados é retratada como um espaço aberto, cheio de luz, um mundo
diferenciado. Apenas as celas fechadas são apresentadas como quartos escuros (figura
137 – requadros 2 e 3), na verdade uma metáfora da mente humana ainda desconhecida
pelos estudos da época – século XIX.
127
Um aspecto estético que merece destaque é a ressignificação de Itaguaí próxima
ao modelo das cidades do velho oeste americano nos quadrinhos, observado na estrutura
das ruas, o meio de transporte, a vestimenta das personagens, tudo nas cores pastéis e
amarelas, em tom desértico, como se nota na figura abaixo:
Figura 138: O alienista
Agir, pág. 30
O momento da insurreição popular decorrente da insatisfação com relação aos
critérios de recolhimento dos considerados anormais é materializado com moderação,
no tradicional confronto entre representantes da elite e representantes do povo. O
encontro entre Bacamarte e os revoltosos retrata bem esta relação (figura 139).
Bacamarte, bem vestido, na sacada de seu sobrado, em porte imponente e superior é a
representação da elite; os populares, liderados por alguém que lhes determinam as
ações, reclamam, ouvem as justificativas, sempre prontos a agir.
Figura 139: O alienista
Agir, pág. 42
128
Um recurso bem diferenciado dos quadrinistas é o modo de compor a
rememoração dos fatos relacionados com Dona Evarista e que desencadearam seu
recolhimento para a Casa Verde (figuras 140 e 141). Bacamarte recebe a visita do padre
e passa a relatar as ações suspeitas da esposa, atitudes tais denunciaram certo
desequilíbrio mental. Até aí os requadros tem cores mais escuras. A sequência que
segue constitui um flashback dos atos suspeitos de Evarista, nos quais as imagens
correspondem a atos já acontecidos e retomados pela memória da personagem e para tal
assumem a forma de esboços com cor bastante clara, o que dá às cenas um tom fluído
para sugerir lembranças. Quando a história retoma o tempo presente da conversa com o
padre, os requadros voltam a ter linhas mais definidas e cores mais fortes.
Figura 140: O alienista Figura 141: O alienista
Agir, pág.56 Agir, pág.57
O signo da cor como recurso metafórico e informacional também é utilizado nos
requadros que remetem à liberação dos alienados que foram recolhidos por realizarem
ações baseadas na retidão da conduta (figura 142). Em dado momento, as teorias de
Bacamarte indicam que o equilíbrio não era “normal” e passaram a ser considerarados
“anormais” quem apresentasse esta conduta. Após intervenções que liberaram a
verdadeira natureza das ações nada virtuosas, as pessoas que estavam reclusas foram
liberadas.
A saída destes indivíduos da Casa Verde é transposta para a quadrinização como
um momento iluminado; as pessoas parecem não acreditar na liberdade. O momento da
liberação é ilustrado com grande incidência de luz (cor clara, embranquecimento da
imagem). Também a Casa Verde passa a ser vista com mais luminosidade.
129
. Figura 142: O alienista
Agir, pág.59
Na parte final da história, Bacamarte descobre, mediante pesquisa e observações
dos amigos e pessoas íntimas, ser ele o único insano da Itaguaí por ter ostentado desde
sempre uma “conduta virtuosa” (figura 143). Para estudo final da sua teoria ele se
recolhe à Casa Verde como objeto das especulações científicas (figura 144).
Figura 143: O alienista Figura 144: O alienista
Agir, pág.68 Agir, pág.69
Os passos do médico que o encaminham para a cela escura (figura 145)
metaforizam o adentramento no lado desconhecido da mente, o mergulho no universo
130
da insânia. A Casa Verde passou a ter uma única cela fechada, um único insano
prisioneiro nas ideias que Bacamarte acreditava.
Figura 145: O alienista
Agir, pág.70
Nos processos de traduções de O alienista realizados pelos diferentes artistas
observa-se que as “andanças do tradutor se dão na procura das semelhitudes e falas
adormecidas no original” (PLAZA, 2008), que se revelam mediante o ato da leitura
tomado como processo de cognição de um signo (texto-base) que é re-configurado na
transmutação em outro signo (aqui o verbal em icônico). O diálogo mediado pela ação
do signo, entre a mente que conhece e o objeto conhecível, reporta a experiências,
percepções e recriações singulares nas quadrinizações.
Esta transposição criativa de um código para outro resulta em um novo texto
híbrido nas linguagens que lhe dão suporte, não oculta o original nem lhe rouba a luz.
Na realidade, traz o desejo do tradutor de superação do texto-base que se dá na
complementaridade, pelo alargamento de seus sentidos e focalização do original em
pontos de seu significado ainda não percebido. Observemos como isso ocorre nas quatro
quadrinizações de O Alienista.
Destacamos duas passagens da história, que recebem tratamento bem
diferenciado pelos quadrinistas: O capítulo II, A torrente dos loucos; e o capítulo VII, O
inesperado.
O capítulo A torrente dos loucos traz a passagem da chegada dos alienados na
Casa Verde, e a recepção de Bacamarte. Ele mostra ao padre o ambiente e o histórico
131
que cada insano traz. Esta concretização é feita de modo específico em cada
quadrinização. Waldomiro Seabra transmuta este episódio para treze requadros: ilustra
os inúmeros alienados, em cenas individualizadas, como portadores de algum distúrbio,
tornando a moléstia mental perceptível a nível de discurso verbal e gestual dos
enfermos. O aspecto físico das vestimentas dos alienados nada denunciava, como se
nota nas figuras abaixo:
Figura 146: O alienista Figura 147: O alienista Figura 148: O alienista
Escala Educacional, pág. 8 Escala Educacional, pág. 9 Escala Educacional, pág. 10
O quadrinista Lailson apresenta coletivamente, no pátio, os insanos da Casa
Verde, em apenas dois requadros (figura 149). Lá, simultaneamente, cada um parece
estar em seu mundo, proferindo em discursos particulares suas histórias individuais, o
que sugere as crises. O aspecto físico (vestimentas, gestos, expressões fisionômicas) é
bem caricatural, o que denuncia a constante insanidade.
Figura 149: O alienista
Companhia Editora Nacional , pág. 11
132
Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar traduzem a rotina dos alienados (figura 150)
de forma bastante realista: nus, em autoflagelo, andrajosos, em crises assustadoras.
Todo isso é composto em um requadro de página inteira e enquadrado na perspectiva de
visão de Bacamarte. Detalhe especial para a retirada do padre deste episódio e a
presença de Bacamarte do alto da varanda, distante e superior, a anotar de forma
incólume, tudo o que observa.
Figura 150: O alienista
Ática, pág. 14
Fábio Moon e Gabriel Bá apresentam os convivas da Casa Verde (figuras 151,
152 e 153) em quinze requadros: primeiro, em panorâmica, visualiza todos para em
seguida particularizar sete casos, nos quais os trajes e os comportamentos incomuns e
repetitivos (conversas com parede, correr até o fim do mundo...) indicavam problemas
mentais. Nesta quadrinização, Bacamarte, modesto, caminha entre os insanos com o
padre.
Figura 151: O alienista Figura 152: O alienista Figura 153: O alienista
Agir, pág. 12 Agir, pág. 13 Agir, pág. 14
133
Um dos episódios de maior tensão no texto literário é o relato do confronto das
forças da segurança pública de Itaguaí ( os dragões) com os participantes da insurreição
popular, liderados por Porfílio, o barbeiro. Waldomiro Seabra apresenta o fato de
maneira contida (figuras 154 e 155): ultimato para dispersão, relutância liderada pelo
barbeiro, avanço dos dragões com arma em punho, adesão de alguns dragões à rebelião,
entrega das armas pelo capitão e caminhada de todos para a Câmara.
Figura 154: O alienista Figura 155: O alienista
Escala Educacional, pág.33 Escala Educacional, pág.34
Lailson de Holanda materializa o mesmo momento de tensão, não de forma tão
contida (figuras 156 e 157), explora o ar de desentendimento de forma mais
performática, explorando o embate corporal e a exaltação de ânimos no carregamento
da expressão facial dos dois grupos.
Figura 156: O alienista Figura 157: O alienista
Companhia Editora Nacional , pág.40 Companhia Editora Nacional , pág.41
134
A quadrinização de Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar intensifica com grande
dramaticidade o embate entre os populares e os dragões explorando as posições
corporais e expressões fisionômicas, além de utilizar o discurso direto em medida
adequada, deixando a imagem falar pelas palavras.
O primeiro requadro da página 36 (figura 158) traz a cena do início do confronto
de forma que nos faz recordar momentos históricos de batalhas em prol da liberdade,
tamanha expressividade na luta. No segundo requadro o barbeiro Porfílio encena com
maestria o papel do líder da rebelião. Na página 37 (figura 159) em requadro único,
ocorre o ápice do combate, um verdadeiro banho de sangue defronte à casa de Simão
Bacamarte. Da casa destaca-se a varanda com a luz acesa. É este o elemento novo nesta
tradução (figura 160): o alienista acompanha “de camarote” a carnificina, considera por
ele como insânia, preocupado apenas com seus estudos.
Figura 158: O alienista Figura 159: O alienista Figura 160: O alienista
Ática, pág. 36 Ática, pág. 37 Ática, pág. 38
A quadrinização de Fábio Moon e Gabriel Bá traz a cena da batalha de modo
mais estilizado. Ela se inicia com o disparo do capitão que exige que a multidão se
disperse. Ora um requadro focaliza os dragões, ora os revoltosos (figura 161), que em
cólera avançam sobre os dragões, apesar dos tiros (figura 162).
O trabalho com os gritos e as onomatopéias relacionadas com os tiros intensifica
a violência do combate. Os quadrinhos apresentam cenas nas quais os populares são
135
atingidos pelos tiros e a batalha parece fenecer com a vitória dos dragões. Percebe-se
que no último requadro, à distancia do lugar do combate, alguém vislumbra a vila de
uma varanda e ouve o estampir dos tiros. Este recurso é utilizado para aguçar a
curiosidade do leitor em relação à próxima página: quem é a pessoa que observa? Qual
o resultado do confronto?
Na página seguinte (figura 163) revela-se que os observadores são os
vereadores, que vêem, aos poucos o inusitado resultado do confronto: união dos
rebeldes com os dragões (imagem em perspectiva distante, silhuetas que se deslocam
irreconhecíveis no requadro 4 e 5, vão se aproximando e revelam a inesperada união de
forças no requadro 6).
Figura 161: O alienista Figura 162: O alienista Figura 163: O alienista
Agir, pág. 44 Agir, pág. 45 Agir, pág. 46
Observa-se que a tradução retoma o texto-base, sendo fiel a ele nas legendas,
mas confere ao quadrinista a liberdade de transmutar em ícones de acordo com a
interpretação e criatividade do tradutor, pois:
[...] o signo estético, quando traduzido por um outro signo estético,
mantém com este uma relação por similaridade e contigüidade por
referência. A tradução mantém uma relação íntima com seu original,
ao qual deve a sua existência, mas é nela que “a vida do original
alcança sua expansão póstuma mais vasta e sempre renovada”. A
tradução modifica o original porque este também é um produto de
uma leitura e, ambos, tradução e original, estariam possibilitados de
136
chegarem a completar sua intenção que é precisamente de se atingir “a
língua pura”. (PLAZA, 2008)
As quadrinizações literárias como um signo estético que se origina de outro
signo estético surgem como uma possibilidade de leitura entre outras. Trata-se de um
processo de semiose pelo icônico que comporta tempo, mudança e transformação e o
novo signo busca sempre preencher os intervalos do original pela transposição criativa,
com signos balizados na visão de mundo do artista que a compõe.
Além dos romances e da novela, também contos machadianos passaram pelo
processo de transposição criativa em quadrinizações. A Peirópolis traz o Conto da
escola traduzido por Laerte Silvino, na coleção Clássicos em Quadrinhos em HQ que
tem como mérito inquestionável, apontado na apresentação por Maurício Soares Filho
“[...] apresentar a leitores obras fundamentais para formação de um repertório
intelectual, sem facilitar os textos ou diminuir sua profundidade e grandeza” (p.3).
Nota-se desde já que o texto-base será preservado na íntegra como legenda ou diálogos
entre as personagens, estando aí, na opinião de Maurício, o desafio para o quadrinista. É
ele quem afirma:
As metáforas pouco convencionais são um aspecto muito significativo
do trabalho de Machado, e esta versão em quadrinhos, que traz o texto
na íntegra, não poderia eliminar o prazer do leitor em descobri-las.
Laerte Silvino contribui com a narrativa machadiana ao explicitar, por
meio de cores, alguns elementos fundamentais para a sua apreciação,
especialmente ao explorar a subjetividade do narrador, que conta a sua
história em primeira pessoa. Difícil tarefa para um quadrinista esta,
ficar em silêncio para deixar Machado falar. Silvino não só dá conta
do recado como aproxima o leitor do século XXI de um dos maiores
exploradores da alma humana que já existiram.
Ao reverberar o texto machadiano, o quadrinista se mostra num processo
criativo interessante, percebido desde a capa 1 (figura 164) e capa 2 (figura165), que
abertas se complementam trazendo a própria crítica do texto-base em questão: o menino
saindo do seu espaço de liberdade (lugar onde mora) e sente-se diminuindo, castrado
quando vai para a escola. Para demonstrar isso, Silvino utiliza a imagem gingante meio
corpo, cintura para baixo, que se reduz em uma sombra minúscula. Existe aqui a ideia
da perda de liberdade e consequentemente, de identidade, como se pode ver nas figuras
que se seguem:
137
Figura 164: Conto da escola Figura 165: Conto da escola
Peirópolis, capa 1 Peirópolis, capa 2
A quadrinização é realizada em técnica de ilustração infantil que metaforiza a
forma da criança olhar o mundo: o narrador adulto conta a partir das suas memórias da
infância, como via e sentia as situações. Além deste, outro recurso que torna coerente
esta perspectiva de narração é a materialização do temor que sentia pelo professor na
forma agigantada do mestre (figura 166); a perspectiva do requadro direto na ação
praticada (figura 167).
Figura 166: Conto da escola Figura 167: Conto da escola
Peirópolis, pág. 10 Peirópolis, pág. 26
138
A utilização da cor como forma de representar emoções fortes é uma estratégia
marcante nesta quadrinização: o branco indica sentimento de realização (figura168), o
vermelho enfatiza a dor (figura 169); o cinza, situação de desencanto; e o preto, a
condição de vergonha e medo (170).
Figura 168: Conto da escola Figura 169: Conto da escola Figura 170: Conto da escola
Peirópolis, pág. 27 Peirópolis, pág. 36 Peirópolis, pág. 37
A Escala Educacional é outra editora que vem explorando os contos
machadianos em seu projeto de acessibilidade da literatura clássica. Deteremo-nos em
análise mais específica da sua quadrinização pelo fato de seu trabalho com os contos
constituir um aspecto desta pesquisa nas vivências de leitura com alunos.
Já no texto de apresentação das quadrinizações, que é comum a todas as obras,
os editores destacam como condição precípua para a adaptação a presença dos
elementos descritivos no texto. Eles advertem que a nova linguagem não substitui a
forma original da obra a qual é indubitavelmente importante para uma boa formação do
leitor.
A capa da referida coleção apresenta em letras maiúsculas, pretas e brancas, o
título da coleção literatura brasileira em primeiro plano, centralizado, como referência
ao objeto cultural que é ponto de partida do trabalho. Em seguida tem-se o termo
especificativo em quadrinhos, mais à esquerda, também em letras maiúsculas,
139
proporcionalmente menor e de cor destacada, a indicar o novo processo, o novo suporte
– a literatura quadrinizada.
Esta forma de apresentar o título da coleção direciona para a transposição de um
leitura clássica e de tradição (sugerida no jogo das cores preta e branca) para uma leitura
marginalizada e mais criativa dos quadrinhos (percebida pelo colorido no termo
especificativo “em quadrinhos”, não centralizado).
O oposto ocorre nos elementos que se seguem: o título da obra literária é
apresentado em letras menores, dando-se maior destaque a um conjunto de requadros
que sintetizam a história em uma cena.
Neste jogo espacial e dimensional do título da coleção e cena-síntese pode-se
perceber a valoração dos objetos culturais envolvidos na composição do texto. Menor e
acima - a literatura brasileira. Maior e um pouco abaixo, mais tomando o centro e o
foco da folha - o requadro. Esta é a metáfora da situação social e de mercado dos
elementos formadores deste novo objeto cultural híbrido.
Observemos a disposição do título da coleção na capa 1 :
LITERATURA
BRASILEIRA
EM QUADRINHOS
A estrutura do título da coleção, acima transposto, pode ser reportado a uma
leitura crítica da origem dos objetos culturais que compõem o novo produto: situação de
prestígio (literatura) e desprestígio (quadrinhos) na origem dos objetos culturais que
formam a literatura em quadrinho.
Na continuidade, os elementos que também compõem a capa 1 – título da obra/
autor e requadro, metaforizam a situação atual das quadrinizações, na qual a imagem
ganha destaque em relação a palavra, percebidos na leitura subliminar e cultural.
Ao observar este jogo mais diretamente, percebe-se que a capa é uma metáfora
da relação dos objetos culturais (literatura e quadrinho) e o suposto ganho de espaço do
140
novo objeto cultural híbrido na sociedade imagética contemporânea, como se observa
abaixo:
Figura 171: A cartomante
Escala Educacional: capa 1
O mesmo processo de composição é percebido em outros títulos da mesma
coleção, especialmente nas ressignificações de textos machadianos, como se observa a
seguir:
LITERATURA BRASILEIRA: Titulo principal
centralizado, dominante, em cores clássicas, indicando
o prestigio, o centro para a literatura clássica.
EM QUADRINHO à esquerda, um pouco menor. Sugere
algo fora do centro, buscando o centro, o prestígio.
TÍTULO DA OBRA , em cor preta padrão, em caixa menor,
retirando o destaque da obra literária.
CENA-SÍNTESE DA HISTÓRIA, quadrinizada, maior e mais
colorida, ganha destaque na capa. A imagem ganha maior
visibilidade, caso se observe o título da obra.
NOME DO AUTOR da obra literária e ausência do
nome do autor da quadrinização revela ainda a
condição de maior prestígio social para a literatura.
141
Figura 172: A causa secreta Figura 173: O alienista
Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, capa 1
Figura 174: O enfermeiro Figura 175: Uns braços
Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, capa 1
Nota-se o jogo de paralelismo na capa que já apresenta a relação entre os dois
objetos culturais (literatura e quadrinhos) que apesar das linguagens específicas e do
prestígio que gozam ante os públicos delimitados a que se destinam, aglutinam-se em
um objeto cultural híbrido. Este novo produto cultural propicia a acessibilidade do leitor
142
para a literatura clássica, sem perder as marcas específicas de cada linguagem que o
compõe.
2.2.1- Um olhar sobre a quadrinização de “A Causa secreta”
A quadrinização de “A causa Secreta” é um trabalho de roteiro e desenhos de
Francisco Vilachã e cores de Fernando A. A. Rodrigues. Apresentada num formato de
livro composto por quarenta e oito páginas: as duas iniciais como contracapa e
apresentação do trabalho pelos editores e a denominação da equipe responsável pela
coleção; quarenta páginas repletas de requadros e legendas; e as seis últimas com uma
pequena biografia/bibliografia e uma ficha de leitura contendo quinze questões que
focam muito mais a linguagem verbal que a imagética.
O texto base que dá origem à literatura em quadrinho é constituído de setenta e
três (73) parágrafos. Ele é traduzido para a linguagem visual em 317 requadros,
acompanhados quase que totalmente por legendas narrativas e pouquíssimos diálogos.
Toda a parte verbal escrita nas legendas dos quadrinhos mantém-se literalmente fiel ao
conto machadiano do qual é originário, que foi segmentado conforme a interpretação do
artista para estruturar a quadrinização.
Como exemplo da liberdade de criação do artista no que se refere a estruturação
do texto verbal para transmutação ao icônico, observemos o fragmento do texto base.
Trata-se do parágrafo 19:
O pobre-diabo saiu mortificado de lá, humilhado, mastigando a custo
o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para
que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era
em vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora
o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar a
cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o
próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento de ingratidão.
(ASSIS, p.513)
O quadrinista fragmentou o parágrafo e o traduziu para a forma de sete
requadros, com imagens que retratam o contexto histórico e geográfico da época. Isto é
percebido pelos casarões, ruas, vestuário dos personagens, como se pode perceber a
seguir:
143
Figura 176: A causa secreta
Escala Educacional, pág.16
No trecho destacado do texto base, sentimentos são personificados poeticamente
(ressentimento torna-se hóspede da cabeça e refugia-se na idéia e ingratidão) e
sensações ganham força na metáfora (mastigando a custo o desdém). Na quadrinização,
a transmutação criativa da temperatura poética deste trecho em imagens se deu em
conformidade a subjetividade e liberdade da leitura do artista quadrinista, que traduz
estes sentimentos nas posturas de corpo, expressões faciais e formas de olhar da
personagem.
Gouveia, a personagem da trama em destaque nos requadros, é apresentada nas
imagens com postura corporal desanimada (cabeça baixa, olhar voltado para o chão)
para indicar o estado de espírito de decepção. Nos requadros 2, 3, 2 4, o homem é
144
focado em perspectiva distante, com as vistas baixas acentuando a condição de
humilhado. A partir do quinto requadro a centralização do olhar, em perspectiva frontal
e em aproximação gradativa, revela, aos poucos, o surgimento de uma expressão dura e
carregada. A aproximação contínua com foco no olhar sugere uma atividade mental de
introspecção, ou seja, o nascimento, de forma dolorosa, do sentimento de ingratidão,
provocada em Gouveia pela frieza de Fortunato.
Por outro lado, a liberdade de criação é delimitada pela preservação do texto
literário, transposto como legendas nos requadros, com as características da escrita da
época da produção. A ilustração torna acessível a enunciação verbal graças às imagens,
pois somente a primeira pode parecer difícil para compreensão de algum leitor não
afeito às construções subjetivas do texto literário machadiano.
Na totalidade da obra, poucas foram as reduções ocorridas no texto literário ao
ser transposto segmentado para as legendas. E quando isso ocorreu deu-se pela
eliminação de palavras que se tornaram elementos imagéticos constituindo a cena.
Mantê-las seria redundância desnecessária nesta transposição como se observa no
parágrafo 13 do conto que foi fragmentado para oito requadros. O trecho “[...] Durante o
curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela,
os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito”.
(ASSIS, Machado. Várias Histórias. A Causa Secreta, p.513) foi traduzido para os três
requadros que se seguem:
Figura 177: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 11
145
Naturalmente o trecho descritivo da ação da personagem Fortunato “segurando a
bacia, a vela, os panos” tornou-se imagem no primeiro requadro, o que dipensou as
palavras correspondentes na legenda.
Outra forma de redução do texto literário na legenda do quadrinho dá-se quando
a imagem contribuiu para a caracterização da personagem Fortunato, sendo suprimidos
os termos descritivos que não acrescentariam nenhuma informação, como se observa
nos fragmento abaixo:
Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter
as mãos na algibeira da calça, e fitar os olhos do ferido. Os olhos eram
claros, cor de chumbo, moviam-se devagar e tinham a expressão dura,
seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo
do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara.Teria quarenta
anos.
(ASSIS, p.513)
O referido fragmento, ao ser transmutado para as imagens, é transformado em
cinco requadros (figura 178), como se observa abaixo:
Figura 178: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 12
Na legenda do primeiro requadro, a expressão “sentar-se traquilamente” abarca
as informações semânticas consecutivas “estirar as pernas, meter as mãos na algibeira”,
presentes no conto, entretanto, eliminadas no quadrinho. O advérbio tranquilamente e a
146
imagem elaborada para ilustrar Fortunato supõem implicitamente esta postura corporal,
não havendo necessidade das palavras.
Também as expressões adjetivas “Cara magra e pálida; uma tira estreita de
barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara.” são
descartadas por já estarem concretizadas nas imagens do terceiro e quarto requadros.
Um dos trechos mais reveladores e detalhados em ações no conto, também sofre
redução nas legendas. Observemos o trecho, abaixo transcrito:
[...] Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e
qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava.
Entre o polegar e o indicador da mão esquerda segurava um barbante,
de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma
tesoura. [...]
No quadrinho eliminou-se a legenda e inicialmente apresenta a imagem do
objeto das torturas (figura 179) que passa a insinuar algo insólito:
Figura 179: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 29
Somente nas quatro páginas seguintes será apresentada cada etapa da tortura,
que é antecipada por dois requadros (figura 180): o primeiro com a imagem de Garcia,
em perspectiva próxima, em close-up com foco no olhar atônito; o que sugere a sua
chegada, e o segundo, ato que Garcia começou a presenciar – o início do ritual de
tortura do rato. A colocação de apenas uma legenda para os dois requadros indica a
importância do foco de observação na narrativa – de Garcia para com Fortunato. Nela a
omissão do verbo viu ocorre por esta ação já está materializada na imagem.
O segundo requadro não apresenta uma legenda com descrição do ocorrido, que
é bem detalhado no texto base (Entre o polegar e o indicador da mão esquerda
segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha
uma tesoura), pois a imagem por si só relatou todos os atos, evitando uma legenda que
seria redundante. Notemos as imagens:
147
Figura 180: A causa secreta Figura 181: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 30 Escala Educacional, pág. 31
Figura 182: A causa secreta Figura 183: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 32 Escala Educacional, pág. 33
Garcia assite ao início da tortura, mesmo incomodado com o que vê, supondo
uma ação única e rápida na queima do rato. Quando a tortura se torna mais atroz,
mutilação intermediada pela queima lenta, ele interfere solicitando o término (figura
180 – último quadrinho). Fortunato absorto no prazer da ação não nota a presença do
jovem médico que continua como espectador da cena.
148
A partir daí momentos de atrocidade com mutilações e queimas lentas do rato se
sucedem, alternando-se com requadros de Fortunato em meio busto, close-up da face e
meia face transbordando expressão de prazer (figuras 181 e 182). Para provocar o efeito
de terror nos quadrinhos, o artista utiliza-se de um olhar materializado de forma
enviezada e macabra, além do sombreado e as cores amarela e vermelha reluzindo no
rosto de Fortunato, como chama, a intensidade de seu prazer . Na figura 183 tem-se o
final da tortura na perceptível sensação de satisfação de Fortunato, que só então dá se
conta da presença de Garcia e tenta disfarçar o ocorrido.
Assim fica evidente que por mais que o quadrinista conserve o texto literário nas
legendas dos requadros, enquanto leitor ele processa uma recriação, uma reconstrução
do verbal no imagético. Também na condição de criador tem ele a liberdade de retirar
trechos que se tornariam redundantes no ato de confronto do verbal e visual. A
fidelidade ao texto existe até o momento em que o próprio texto não comprometa a
fruição e a leveza da interpretação imagética do artista.
E esta liberdade de recriação do quadrinista é contundente nas duas primeiras
páginas da quadrinização pela estratégia de ficcionalização do próprio escritor do texto
base. Tal estratégia torna-o narrador-personagem testemunha do novo texto. Ou seja,
enquanto no conto o escritor Machado de Assis é criador de uma entidade imaginária
para narrar o que viu e ouviu – narrador-personagem-testemunha, nesta quadrinização o
escritor é transformado em criatura – o próprio Machado de Assis é a personagem que
se dirige ao leitor para contar-lhe os fatos, como se nota nos requadros abaixo:
Figura 184: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3
149
Figura 185: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3
Figura 186: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4
Figura 187: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4
A materialização do narrador é reconhecida nas ilustrações que trazem o perfil
do escritor real: óculos pequenos, traje ao estilo inglês, gestos graves. Esta estratégia é
utilizada para diluir a complexidade que se dá nos dois parágrafos do conto, quando a
narração apresenta um fato já adiantado da história, o que dificulta ao leitor situar quem
são narrador, personagens e o que realmente aconteceu.
No texto base, o primeiro parágrafo apresenta uma montagem da cena com os
personagens para depois situar a voz que conta, o que desconserta o leitor menos
persistente, como se observa abaixo:
Garcia em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de
balanço, olhava para o tecto; Maria Luisa, perto da janela, concluía
um trabalho de agulha. Havia cinco minutos que nenhum deles dizia
150
nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi,
onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se
explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora
mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
(ASSIS, Machado de. Obras Completas: Contos. Várias
Histórias. A Cause Secreta, p.511)
Nos quadrinhos, a primeira página (figura 188) é uma das mais interessantes da
obra. Ela é o que preconiza Eisner (1999, p.64), “um trampolim para a narrativa, [...] Se
bem utilizada, ela prende a atenção do leitor e prepara a sua atitude para como os
eventos que se seguem.”. Nela tem-se como meta a centralização do leitor na instalação
da situação narrativa, na qual fica clara a criatividade do quadrinista e a percepção do
leitor arguto que ele demonstra ser. Observemos:
Figura 188: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3
Fica evidente a técnica quadrinística de apresentação sucinta do cerne da história
já nas posturas corporais e faciais das personagens: Garcia e Maria Luisa apresentados
151
em perspectiva próxima, em figura média, nos requadros 2 e 4, parecem decepcionados.
A imagem destas personagens são complementadas sintática e semanticamente em meio
corpo nos requadros 5 e 7, revelando gestos de tensão. Fortunato, em close-up no
quadrinho 3, complementado no requadro 6, transparece uma mistura de distanciamento
e deleite. As posturas das personagens revelam uma velada discordância entre eles.
Instaura-se um clima de tensão e mistério na suposta relação entre as três personagens.
No segundo parágrafo, o narrador foca o presente da narrativa para o mote de
desvendamento da cena instalada, ou seja, o flashback da história, como se nota:
Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três questões,
coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do
dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito
foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luisa parecem
ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de
severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de
tal natureza, que para fazê-lo entender, é preciso remontar a origem da
situação.
(ASSIS, p.511)
Por sua vez, na página da quadrinização (figura 189), o narrador-personagem
materializado insinua uma problemática para a história que está prestes a iniciar:
Figura 189: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4
152
É nos requadros 1, 2, 3, 4 que temos o momento de maior revelação do contador
dos fatos: o narrador-personagem retratado em diferentes ângulos, posições e
enquadramentos – perspectiva frontal, ora próxima, ora distante, em figura de corpo
inteiro, médio e close-up – estabelece sua posição na narrativa. Mediante os seus gestos
corporais, ele se mostra bem performático na ação de narrar, o que insinua uma
interlocução com o receptor. Esta é a forma que o quadrinista encontrou para
materializar a condição de diálogo que Machado de Assis cultiva com o leitor no texto
base.
No texto base, o escritor nos propicia um breve perfil das personagens
caracterizadas conforme suas reações (dedos trêmulos de Luísa, rosto com expressão de
severidade de Garcia); nos quadrinhos (figura 190) o quadrinista explora estas
informações também nos traços faciais que ganham através das marcas de
sombreamento e olhar declinado, um estado emocional de mistério, desengano e certa
tristeza. Acrescenta-se a imagem de Fortunato no requadro sem legenda, o que insinua
perversidade e alheamento no olhar distante.
Figura 190: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3
A cousa tão feia e grave que provocara o nervosismo de Maria Luísa e o ar
severo de Garcia nos quadrinhos da figura anterior é o estopim para a narrativa ser
153
retomada nas origens. Assim situa-se a história da relação entre os três personagens, o
foco das ações, passando à linearidade do ato narrativo. Têm-se desta maneira a
apresentação de uma situação de mistério na página 1 e a instauração do processo
narrativo na página 2, ambas entronizando a diegese para melhor explicitar a história ao
leitor. Isto não ocorre no conto, no qual apenas é apresentada a cena inicial, descrita
como um quadro por um narrador que não se revela para que o leitor o situe no processo
de enunciação.
As duas principais técnicas da arte dos quadrinhos, muito bem utilizadas nesta
quadrinização do texto machadiano para intensificar as informações semânticas do texto
base, é o uso do sombreado para indicar algo recôndito, que passa no íntimo das
personagens, que não se revelam com clareza; e a utilização do close-up no rosto,
realçando o olhar, oblíquo, enviesado que dá a impressão de ocultamento de algo que
não se mostra na aparência das ações das personagens.
Estes recursos trazem mais efeito às conotações que caracterizam as personagens
durante toda a narrativa. É nas ilustrações de Fortunato que mais se percebe a utilização
desta técnica intensificando suas características, como se pode notar:
Figura 191: A causa secreta Figura 192: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 6 Escala Educacional, pág. 7
154
Figura 193: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 28
Figura 194: A causa secreta Figura 195: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 16 Escala Educacional, pág. 34
Figura 196: A causa secreta Figura 197: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 25 Escala Educacional, pág. 42
O sombreamento é constante em parte, em meia ou na totalidade da face. O
olhar sempre de lado, enviesado, sempre distante, dando um ar muitas vezes
155
maquiavélico. O rosto sempre de perfil tanto em figura inteira, quanto em close up . São
marcas de quem não se revela por completo e sempre tem algo a ocultar.
Em Garcia, o sombreamento se dá de maneira mais leve (figuras 198, 199, 202),
exceto nos momentos de maior tensão (figuras 200 e 201). O rosto em close-up mostra-
se mais frontal ou ligeiramente em perfil. O olhar em diagonal, geralmente mais claro,
traz curiosidade, dúvida, busca, (figura 203) características típicas do observador.
Figura 198: A causa secreta Figura 199: A causa secreta Figura 200: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 21 Escala Educacional, pág. 23 Escala Educacional, pág. 32
Figura 201: A causa secreta Figura 202: A causa secreta
Escala Educacional, pág.36 Escala Educacional, pág. 6
Figura 203: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 17
156
Em Maria Luíza, o sombreamento é leve, em metade da face, indicativo de
temor. Os olhos sempre focados para baixo, mesmo quando de perfil, acentuam-lhe um
ar servil, de resignação. Quando focados para frente, mostram-se sofredores e
angustiados, como se quisessem revelar algo e faltasse coragem. Em muitas cenas o
olhar aparece extremamente voltado para baixo que os olhos parecem fechados, o que
evidencia o aspecto da solidão e decepção da jovem.
Figura 204: A causa secreta Figura 205: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 19 Escala Educacional, pág.
Figura 206: A causa secreta Figura 207: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 37 Escala Educacional, pág. 19
O artista também utiliza de outras estratégias próprias da linguagem dos
quadrinhos para dar mais vivacidade ao texto impondo-nos com clareza que não se trata
de simples ilustrações da obra literária, mas de um novo texto imagético, no qual o
quadrinista-leitor reverbera a obra literária. Assim, observa-se
Cena em requadros de continuidade, intensificando as emoções e
informações que quer passar ao leitor. Na figura abaixo a ausência da
legenda no último quadrinho associado a esta técnica dá expressividade
máxima à ação malévola de Fortunato.
157
Figura 208: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 8
A utilização de elementos icônicos de forma criativa para dar certo
sentido à cena, como na figura 206 quando o formato da fumaça e as
expressões das personagens sugerem o ar de descontração e familiaridade
no encontro entre Fortunato, Garcia e Maria Luíza.
Figura 209: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 19
Um pequeno fragmento do texto-base ganha uma série de requadros,
unificados em uma única legenda. Na figura 169, para indicar um clima
de desconfiança, dúvida e curiosidade, o fragmento do texto-base é
materializado em nove quadrinhos, com uma legenda sobreposta nos três
primeiros requadros, e os seis restantes buscando detalhar o
acontecimento a partir pontos de vistas diferenciados:
158
Figura 210: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 13
Utilização de imagens a mais do que sugere o texto-base, o que mostra a
visão do quadrinista enquanto leitor da obra. Na figura 208, a colocação
da imagem de Fortunato já impinge algum mistério a ser descoberto, o
que reforça ainda mais a atenção do leitor para sua figura um tanto
incomum. Na figura 209 a imagem de Fortunato a espreitar o homem ao
qual ajudara é criação do artista para intensificar ainda mais sua postura
de desdém em relação ao outro. São acréscimos que atestam a
transposição criativa do tradutor, o que potencializa o texto-base
enquanto signo estilístico.
Figura 211: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4
159
Figura 212: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 16
Desta maneira, a literatura em quadrinhos A Causa Secreta de Vilachã torna-se
um objeto cultural híbrido, ao assumir a proposta de aglutinar as distintas linguagens
dos objetos que antes pareciam atender a públicos distintos, mas que neste
entrecruzamento tende a alcançar um universo maior de leitores. A hibridez acaba se
efetivando via tradução intersemiótica, ou seja, há transposição criativa de signos
estéticos verbais para signos estéticos icônicos, o que origina um novo texto.
O quadrinista é um leitor/criador que, muito além de conservar ao máximo o
texto literário base, amplifica-lhe o sentido via ressignificação processada em sua
leitura. Aqui, traduzir é materializar em imagens o texto verbal machadiano, levando-se
em consideração a forma peculiar do quadrinista ler as suas metaforizações.
160
3. OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA APRECIAÇÃO DO
LEITOR CONTEMPORÂNEO
3.1 O leitor na contemporaneidade
No processo comunicacional literário, o leitor contemporâneo não é mero
elemento passivo que se porta como auscultador da cultura e do saber da literatura da
elite letrada, esta tomada como referência de formação do sujeito. Muitos e diversos são
os objetos culturais híbridos de leitura que dialogam com a literatura. Muitas são as
compreensões do ato de ler.
Nos dois últimos séculos, o leitor tornou-se uma figura bastante discutida frente
às transformações culturais. Compreender quem é este sujeito da leitura está atrelado ao
entendimento do processo que ele executa e dos objetos culturais que ele vasculha.
A visão da leitura como mero processo de decodificação da palavra escrita está
sendo ampliada. Não se trata apenas de decifrar os códigos verbais escritos como nos
textos pragmáticos cotidianos. Muito menos de assenhorear-se dos mecanismos das
obras literárias canônicas que requerem leitores iniciados, isto é, indivíduos dotados de
habilidades que facilitam e permitem o domínio dos estratagemas específicos daquelas
produções.
Ao lado da leitura meramente informativa, que inunda a vida cotidiana do
trabalho e das relações sociais, há outra proposta de leitura cuja interpretação carece de
habilidades linguísticas consideradas do padrão culto – a da literatura letrada. Tais
produções determinam por si só certo caráter de exclusão, por não serem de fácil acesso
a um grande público. Existe um descompasso, alimentado pela desconsideração dos
leitores das culturas periféricas, grupos desprivilegiados por não deterem poder
socioeconômico, mas que nem por isso deixam de ser olhados como consumidores em
potencial.
Neste universo de descompasso emergem práticas leitoras fomentadas pelo
mercado e favorecidas pela gama de textos que rompem a fronteira do código verbal
letrado e que se articulam com experiências e saberes antes relegados à marginalidade.
O texto literário culto passa a dividir espaços com a literatura popular, com os objetos
culturais antes considerados como pertencentes apenas à cultura de massa (cinema,
quadrinho...) e com produtos da tecnologia que negam a condição de exclusivismo ao
livro tradicional. Esta perspectiva é confirmada nas palavras de Martin-Barbero (2004)
161
quando este acena para novas tendências do conceito e domínio da cultura na sociedade
moderna, tecnológica e globalizada, que tende a “[...] densificar-se e se converter em
estrutural, pois a tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a
novos modelos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas.”.
Frente a esta gama de possibilidades, o sujeito leitor passa a ser visto como um
indivíduo cujas identificações em muito vai definir sua escolha de leitura. Esta atitude,
no entanto, não segrega a atividade leitora a um único gênero textual, visto que a grande
circulação dos textos híbridos amplifica a atividade leitora. Ler, neste contexto sócio-
histórico e na presente pesquisa, passa a ser um ato tradutor, de domínio de diferentes
códigos que dialogam e ressignificam práticas culturais diferenciadas, o que faz com
que se ampliem as fronteiras de apreciação.
É forçoso, entretanto, abrir espaço para um questionamento: num país onde o ato
de ler está atrelado ao domínio dos textos seletos da elite letrada e é quase que restrito
ao ambiente escolar, como o leitor literário contemporâneo tem acesso a este produto da
leitura?
A academia idealiza o leitor literário como um dos partícipes do percurso da
obra literária tradicionalmente estruturada na tríade autor/obra literária/leitor. As
abordagens teóricas de leitura variam conforme o foco, segundo Antoine Compagnon
(2001,p. 139):
[...] A abordagem objetiva, ou formal, da literatura se interessa pela
obra; a abordagem expressiva, pelo artista; a abordagem mimética,
pelo mundo; e a abordagem pragmática, enfim, pelo público, pela
audiência, pelos leitores. Os estudos literários dedicam um lugar
muito vulnerável ao leitor [...]
O lugar destinado ao leitor é delimitado pela contradição, segundo Compagnon.
Por um lado, nas correntes de leitura imanente ao texto, ele é ignorado, visto como um
mero receptor da obra-organismo autônomo ou simples elemento constituinte da obra-
estrutura sistêmica organizada. É visto como um apreciador da obra, produto social pela
sociologia da literatura. Em outras discussões o leitor é extremamente valorizado e o ato
de leitura da obra literária procede pela simpatia e reações deste leitor, que muitas vezes
confunde o processo de compreensão do texto literário com a leitura de si mesmo.
Assim, de acordo com o teórico, coexistem diferentes denominações
acadêmicas, com que se qualifica o leitor, conforme o papel que a teoria lega. Destaca-
se o leitor empírico, real, do cotidiano, isto é, aquele leitor que faz a leitura voltada para
162
aspectos pragmáticos. Geralmente só terá contato com o texto literário quando chega ao
mundo da escola.
Para o estruturalismo, corrente literária que prima pela leitura objetiva, a obra
literária é tomada como uma estrutura. Segundo Eagleton (2001), tal corrente trazia em
sua prática a separação do conteúdo real da história e concentrava-se na forma. O leitor
não é considerado como um sujeito histórico e social, o leitor ideal, “[...] apenas uma
espécie de espelho refletor da obra – alguém que a compreendia ‘tal como era’. [...]
perfeitamente equipado de todo o conhecimento técnico essencial para [decifrá-la].” ( p.
166). Assim o leitor, elemento sem subjetividade, tem a leitura regulada pelas
imposições textuais, realizando a descrição estrutural do texto e não a interpretação, o
que o torna uma espécie de elemento funcional do texto.
Para o new-criticism, o leitor-aprendiz é o indivíduo “[...] a quem é preciso
ensinar a ler mais cuidadosamente, a superar suas limitações individuais e culturais [...]”
(Compagnon, 2001, p. 142). A obra é tomada como unidade orgânica suficiente, da qual
deveria ser realizada uma leitura fechada, objetiva e descritiva.
Para Candido (2008), um dos representantes da crítica sociológica no Brasil, a
literatura é um sistema vivo de obras que agem umas sobre as outras e sobre os leitores.
Estes é que dão permanência à obra – produto fixo ante o público. Obra e público atuam
um sobre o outro. Contudo o leitor é denominado público, não um grupo social
específico, mas uma coleção de indivíduos organizados ou não, que trazem em comum
o interesse pelo fato que a obra literária veicula. O foco não se centra no leitor, mas no
contexto de produção e na representação social veiculada na obra.
Na estética da recepção, segundo Compagnon, “[...] o objeto literário não é o
texto objetivo, nem a experiência subjetiva, mas o esquema virtual (uma espécie de
programa ou partitura) feito de lacuna, de buracos e de indeterminações. Em outros
termos, o texto instrui e o leitor constrói. [...] (p.150)”. Nesta relação texto/leitor, Iser
defende o princípio do leitor implícito, calcado no autor implícito que, segundo Booth,
tratava-se de um substitutivo do autor na obra. Aqui, “[...] haveria, assim, em todo texto,
construído pelo autor [...] um lugar reservado para o leitor, o qual é livre para ocupar ou
não” (idem).
Apesar das diversas definições teórico-acadêmicas, o leitor que a escola
secularmente cultiva (ou imagina cultivar) ainda está extremamente relacionado ao
decodificador passivo frente à supremacia da obra literária, no processo de leitura que
163
produz apenas uma única possibilidade de entendimento do texto, tomada como correta.
A escola, por sua vez, busca ensinar ao aluno a literatura culta, o que é alcançado via
aprendizagem dos recursos de linguagem, da estrutura do texto, da contextualização do
momento de produção e da biografia do autor. Ocorre pouca ou quase nenhuma
experimentação do texto e as respostas aos questionamentos são condicionadas aos
manuais utilizados pelos professores.
Não obstante, a educação oferecida pelo aparelho estatal prevê a estética da
sensibilidade, além da igualdade e identidade como fundamentos para as experiências
de aprendizagens na escola, pressuposta na Constituição e na LDB. Tal estética
substitui, no ambiente escolar, a padronização e a repetição dos modos de agir e pensar,
instauradoras de ideologias homogêneas, pelo estímulo à criatividade, ao espírito
inventivo, à afetividade para facultar a construção da identidade numa sociedade na qual
o incerto, a inquietação, o imprevisível e o diferente tornam-se a tônica das relações e
produções. O leitor, neste contexto, passa a ser visto como um sujeito de ação e
integração no ato de leitura e com acessibilidade às diversas formas de textos
produzidos na cultura. Nos Parâmetros Curriculares: do Ensino Médio (1999, p. 76)
está previsto que:
A estética da sensibilidade não é um princípio inspirador apenas do
ensino de conteúdos ou atividades expressivas, mas uma atitude diante
de todas as formas de expressão [...]. Ela não se dissocia das
dimensões éticas e políticas da educação porque quer promover a
crítica à vulgarização da pessoa; às formas estereotipadas e
reducionistas de expressão da realidade; às manifestações que
banalizam e brutalizam as relações pessoais.
Neste contexto da estética da sensibilidade, o leitor enquanto sujeito histórico e
cultural teria a liberdade de elaboração de leituras e possibilidade de apreciação dos
diversos produtos da cultura, visto que ela “[...] não exclui outras estéticas, próprias de
outros tempos e lugares. Como forma mais avançada de expressão ela as subassume,
explica, entende, critica, contextualiza porque não convive com a exclusão, a
intolerância e a intransigência.”(PCN p. 76).
Muito diferente do previsto, a prática leitora promovida pela escola
autointitulada de democrática é, em muito, arcaica, autoritária e excludente. Quando
muito, privilegia apenas o domínio de textos interligados com as necessidades do
mundo referencial em que o sujeito é solicitado a agir de modo pragmático, uma vez
164
que ele se depara com a necessidade de atuações objetivas. A leitura literária é apenas
uma exigência do currículo para os exames vestibulares, pretexto para estudos
gramaticais e não uma prática comunicativa promotora do prazer estético, em tudo bem
distante, portanto, do que descreve Reis (1992, p.76):
O ato de leitura é um fenômeno altamente complexo e possui um
caráter eminentemente dialogal: na leitura não interagem não apenas o
leitor e o texto, mas, através do texto, o leitor entabula uma
conversação com o autor, com o contexto histórico e social, com uma
cultura, uma tradição literária, uma visão de mundo, um acervo
linguístico.
Neste sentido, a pretendida formação para a leitura literária orientada pela
estética da sensibilidade conduz a um posicionamento político de consciência individual
e social pelo respeito às diferentes produções e formas de expressões que estabeleçam a
percepção das realidades sócio-culturais e promovam trocas de experiências capazes de
tornar o sujeito crítico. Para isso, urge uma análise textual balizada em caminhos
teóricos que ofereçam uma prática leitora para além da mera percepção estrutural e da
reverberação do discurso elitista que permeiam a leitura dos clássicos na escola, como
comenta Reis (idem, p.86):
[...] a análise textual não é por si só bastante para dar conta do
fenômeno literário em toda a sua extensão e complexidade – em
particular se pensamos em surpreendê-lo em sua interseção com a
trama social – cabe acentuar que uma abordagem do texto, mesmo
daqueles canônicos, que esteja animada pelo mencionado paradigma e
que exponha a uma diferente maneira de ler já faz emergir um leque
de idéias fecundas para se pensar a literatura e a cultura brasileira, as
quais deveriam ser arrematadas, num outro simultâneo gesto de
leitura, pelo inventário das condições de circulação, reprodução,
legitimação e consumo deste mesmo texto no interior do campo e da
sociedade em que figurar.
Trata-se de possibilidades de ler que privilegiem a leitura da sociedade e da
cultura multifacetadas. Dois caminhos são recorrentes nos últimos anos: na teoria
literária, a estética da recepção; nas discussões culturais, o interculturalismo.
A estética da recepção, teoria da crítica literária discutida com mais fervor na
década de 60 e 70 do século XX, é retomada como uma nova atitude diante das práticas
de leituras contemporâneas. Segundo destaca Costa Lima (2002), a princípio a referida
teoria colocava o leitor como centro da pesquisa recepcional defendida com vigor por
Jauss. Com Iser, houve uma tendência para uma compreensão do texto enquanto
165
estrutura marcada por indeterminações que orientam o leitor e ativam a sua participação
nas variadas construções de sentido.
Posteriormente, Gumbrechet teoriza o deslocamento do foco para a compreensão
do processo realizado pelo leitor como construtor das diferentes exegeses de um texto,
abandonando a clássica ideia de uma única interpretação correta que erige a imagem do
leitor ideal.
Nesta recondução do papel do leitor no ato da leitura, enquanto sujeito social, ele
teria historicidade e identidade respeitadas dentro da escola, espaço destinado para as
práticas leitoras, especialmente as literárias, o que o faria caminhar ao encontro da
postulada estética da sensibilidade.
Vale salientar que, segundo Jauss12
a leitura literária que deveria então, como em
qualquer arte, promover no leitor o prazer estético, recebe, na atualidade, novas
compreensões. Tais compreensões são motivadas pela dissociação entre trabalho e
prazer e pelas constantes críticas à reação de prazer relacionada à espiritualização da
arte, em contraponto ao efeito de consumo promovido pelos produtos da cultura de
massa. Este contexto promove posições ideológicas distintas quanto ao entendimento do
tão discutido prazer estético, que para algumas reflexões marxistas, nada mais é que
uma forma burguesa de apreciação. Para este teórico o prazer estético:
[...] perdeu muito de seu sentido elevado. Outrora, o prazer justificava,
como um modo de domínio do mundo e de autoconhecimento e, a
seguir, como conceito da filosofia da história e da psicanálise, as
relações com a arte. Hoje, para muitos a experiência estética só é vista
como genuína quando se priva de todo o prazer e se eleva a um nível
de reflexão estética. (JAUSS, 2002)
Diante dos diferentes posicionamentos, interessa-nos observar que a
comunicação literária só preserva o caráter de experiência estética, de acordo com Jauss,
se a atividade da poiesis (técnica), da aistheses (visão de mundo) ou da katharsis
(comunicação) mantiver o caráter de prazer, afirmando a autonomia da ação humana,
aqui, ação do leitor. Desta maneira, a oscilação entre prazer sensorial e reflexão estética,
típica da moderna teoria da arte, confirma as diferentes abordagens do leitor frente ao
texto. Tais abordagens, ainda segundo Jauss, são muito bem definidas e reelaboradas
12
JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In LIMA, Luiz Costa (Org.). A
Literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de Janeiro: terra e Paz. 2002
166
por Goethe (Apud. JAUSS, Hans Robert in LIMA, Luiz Costa (Org.) p.103 ) na antecipada
inversão da aiesthesis em poesis, ao afirmar que “Há três classes de leitores: o primeiro,
o que goza sem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, o intermédio, que julga
gozando e goza julgando, é o que propriamente recria a obra de arte.”
As diferentes formas de apreciação do leitor acima observadas já nos
encaminham para uma postura recorrente do leitor contemporâneo: os textos literários
considerados por ele difíceis não provocam satisfação, uma vez que lhe dão trabalho
para a realização da leitura e interpretação. Esta postura provoca uma tendência à
preferência pelos textos híbridos icônicos, considerados facilitadores do entendimento
de obras literárias na contemporaneidade.
Neste sentido, produtos das diferentes culturas (da elite, da popular e da de
massa) são reelaborados e facilitam a percepção dessa variedade cultural. Diversidade
esta, própria do ambiente escolar por ser compostos de sujeitos de variadas realidades
culturais e que na vida cotidiana é seduzido por produtos multiculturais. Tais produtos
que ainda não circulam devidamente na escola, aparecem esporadicamente em práticas
dúbias.
O processo da multiculturalidade não se limita apenas à percepção da existência
da diversidade cultural. Ele avança para um posicionamento político segundo o qual, no
mundo globalizado, as culturas se confrontam e se aglutinam, produzindo textos
híbridos numa tendência à interculturalidade. Esta interculturalidade, compreendida
como a promoção de diálogos com as diferentes culturas, concretiza-se nos novos
produtos culturais descortinadores de novas sensibilidades, promotores da socialização
das artes e das diversas experiências de vida.
Neste contexto, a escola, para sobreviver, necessita tornar-se um espaço propício
para os diferentes produtos culturais em suas práticas de leitura, estas tomadas como
forma de comunicação de conhecimento. E para evitar o ostracismo e a repulsa do texto
literário, devido ao “trabalho” empreendido no ato de ler, precisa ser promovido o
diálogo dos diversos produtos, com vistas à possibilidade de prazer do leitor.
Tais produtos vêm ganhando visibilidade pela cultura das mídias que faz surgir
novos textos, transformados por intermédio da tradução intersemiótica. São textos
híbridos que circulam na sociedade contemporânea em variados suportes e promovem o
encontro da literatura na música, da música nos quadrinhos, dos quadrinhos no cinema,
da literatura nos quadrinhos, da literatura no cinema, do cordel nos quadrinhos, do
167
cordel na TV. Neste processo de linguagem intercultural, a estética da sensibilidade e o
senso crítico do sujeito leitor são privilegiados.
É neste contexto que nos interessa compreender como produtos distintos - o
conto literário e a quadrinização - são apreciados pelo leitor contemporâneo. A
interação deste leitor com o texto machadiano, produto da literatura clássica, e hoje,
também inscrito, na cultura das mídias pela via do filme, da minissérie, e neste caso
particular, da história em quadrinhos, torna-se objeto interessante para estudo.
3.2 – O contexto da atividade investigativa Entre contos e requadros: a recepção do
texto machadiano na contemporaneidade
Com esta percepção de distanciamento entre o que a academia imagina como
leitor nas teorias literárias clássicas e a realidade da(s) identidade(s) leitora(s) numa
sociedade multi e intercultural, associada à dificuldade da escola interagir com este
novo paradigma de cultura, buscamos construir uma análise de como age e interage o
leitor contemporâneo frente ao texto da literatura clássica machadiana e a literatura em
quadrinhos.
Neste intuito, foi realizada uma pesquisa mais pontual, uma atividade
investigativa, intitulada Entre contos e enquadramentos: a recepção do texto
machadiano na contemporaneidade, que teve como objetivo observar como o leitor
empírico reage e como fazia emergir a sua experiência estética diante do texto de
Machado de Assis (literatura clássica) e da obra quadrinizada do referido autor (produto
cultural híbrido). Descreveremos este processo em todos os seus constituintes: onde,
quando, como e quem. A análise dos dados se configurou em uma seção específica do
nosso texto.
O local da atividade investigativa foi o Colégio Polivalente Edvaldo Boaventura,
uma escola tradicional em Jequié. Ela traz um passado de glórias por ter sido um
colégio público que oferecia o ensino fundamental de 5ª a 8ª série, cujas vagas eram
disputadas por todas as classes sociais da cidade. Seu público discente era constituído
por estudantes, em sua maioria, oriundos da classe média-alta e que ocupavam boa parte
dessas vagas por terem alcançado as maiores nota na seleção. A forma de entrada na
escola na década de 1970 até meados dos anos 1980 era uma avaliação escrita das
168
disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Esta era a única escola pública de
Jequié que realizava processo de seleção, haja vista a grande procura por suas vagas, o
que comprova sua tendência elitista.
A partir de 1984, devido à política educacional de democratização do ensino, foi
eliminado o teste seletivo e ampliou-se o universo da escola, que passou a oferecer o
Ensino Médio, com o curso Propedêutico diurno, e implantou o ensino noturno nesta
mesma modalidade. Aos poucos a escola diminuiu a sua oferta de ensino fundamental,
que passou a ser de responsabilidade da rede municipal de ensino, concentrando-se no
Ensino Médio. Em 2009 instituiu a oferta do Ensino Médio Profissionalizante em
conformidade com as novas metas da educação básica no estado, que prevê também, a
preparação do jovem para o mundo do trabalho.
Tal escola vive ainda o saudosismo de seu período áureo, momento no qual
possuía o ensino fundamental, o qual para muitos professores, melhor preparava os
alunos que chegavam ao Ensino Médio, desenvolvendo suas habilidades de leitura,
escrita e cálculo. Houve tentativas de recolocação das séries finais do ensino
fundamental, de 2008 a 2010, com o objetivo de amainar este déficit de aprendizagem,
o que não surtiu o efeito desejado. Atualmente o colégio apresenta baixas médias no
IDEB, Prova Brasil, ENEM e exames vestibulares. Estes resultados insatisfatórios são
atribuídos pelos professores à entrada de alunos de diferentes escolas, geralmente dos
bairros periféricos e alguns oriundos da zona rural.
O espaço de leitura no colégio ainda é restrito, destinado quase que
especificamente às aulas de Língua Portuguesa, predominantemente gramaticalistas, nas
quais a literatura culta é trabalhada pontualmente com seminários sobre os estilos de
época, escolas literárias e biografias de autores consagrados. A leitura literária não é
estimulada, poucos alunos recorrem, por conta própria, à biblioteca que tem um espaço
e acervo diminutos. A leitura de produtos culturais diferenciados, quando realizada, dá-
se de forma mecânica, sem reflexão e estímulo à formação leitora: assiste-se a filmes
para responder algumas questões de sociologia, filosofia, história e ecologia, em
práticas disciplinares isoladas.
169
A atividade investigativa foi realizada no mês de setembro de 2010. O período
foi escolhido por se tratar de um mês do calendário escolar em que, pelo menos em tese,
70% dos conteúdos já estariam ministrados e as habilidades pretendidas já teriam sido
alcançadas.
Nesta altura, a escola já havia realizado boa parte dos projetos planejados.
Restavam ainda três semanas para o final da terceira unidade. Os alunos da 3ª série já
tinham realizado o ENEM e buscavam definir suas escolhas de curso para prestar o
vestibular.
A atividade foi executada em quatro dias, em período oposto às aulas, em salas
do próprio colégio; foram realizados quatro encontros com duração de quatro horas cada
um.
A chegada dos alunos não era marcada pela pontualidade, visto que eles saíam
do seu turno de aulas às 11h40 e teriam de estar de volta às14h para esta atividade
voluntária. Nenhum deles residia próximo à escola, e a participação na pesquisa já
indicava interesse incomum entre os alunos. Geralmente, estes só participavam das
atividades promovidas pela escola, caso estas objetivassem atribuição de notas para as
disciplinas do currículo.
A formação do grupo de leitores deu-se a partir de convite informal feito pela
assistente de direção do turno matutino, Leila Graciela, funcionária contratada na escola
sob Regime Especial de Direito Administrativo - REDA, com formação superior em
Pedagogia. Todo o projeto foi explicado à referida funcionária, destacando-se que o
gosto pela leitura era o requisito para participação nos encontros de leituras do texto de
Machado de Assis.
Ela contactou diversos alunos do 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio, que sempre
costumavam frequentar a biblioteca em momentos livres. Eram adolescentes que
constantemente buscavam a biblioteca para empréstimos de livros.
O primeiro encontro ocorreu no dia 02/09/2010, ao qual compareceram
dezessete adolescentes, sendo um rapaz e dezesseis moças, com idades entre quinze e
dezoito anos. Quando indagados sobre o porquê da aceitação do convite, eles quase que
unanimemente apontaram a curiosidade como motivação. Duas constatações já
poderiam ser feitas: primeira, a leitura literária é uma prática que atrai um número
170
reduzido de alunos; segunda, a falta de uma prática consistente deste tipo de leitura, o
que só ocorre em momentos mínimos no horário de aula.
O projeto da atividade investigativa foi apresentado em linhas gerais e foi
explicada a metodologia dos encontros. Apenas uma garota se apresentou como leitora
assídua do texto machadiano. Todos ficaram surpresos quando informados de como
procederiam nos círculos de leitura: eles falariam sobre o entendimento que teriam do
texto lido e o pesquisador se portaria como ouvinte. Alguns ficaram apreensivos e
esboçaram o receio de participar devido à timidez e ao medo de errar. Ficou claro que
os alunos traziam consigo experiências de aulas com leitura nas quais o professor era
quem sabia e falava do texto, cabendo a eles o silêncio pelo receio de errarem.
Foi explicitado ao grupo que todo leitor tem algo a dizer sobre o texto que lê,
com o que corrobora Reis (1992), ao afirmar que:
Um texto literário, escreve Jenaro Talens, não é uma presença, mas
um vazio, cuja semantização está para ser produzida pela práxis
historicamente determinada do leitor. É o ato de leitura que faz com
que o espaço vazio se transforme em uma obra literária, produzida
depois de ter sido transformada em algo dotado de um significado pela
apropriação do leitor.
Esclareceu-se que nada do que fosse falado por eles seria utilizado
indevidamente, de forma que os constrangessem. Foi solicitado que lessem e assinassem
o termo de aceite para participação na pesquisa e que levassem para os pais ou
responsáveis, para que estes tivessem ciência sobre a pesquisa e demonstrassem
aquiescência à participação dos filhos na atividade.
O grupo foi consultado a respeito do calendário dos encontros, sendo a princípio
agendados às segundas-feiras, durante três semanas. Este cronograma não funcionou,
pois o primeiro círculo de leitura antecedia a um feriado, o que fez com que fosse
reprogramado para três dias consecutivos: 13, 14 e 15 de setembro de 2010.
O primeiro círculo de leitura teve como texto o conto machadiano A causa
secreta. Inicialmente justificou-se aos alunos voluntários que o gênero conto foi
escolhido para a prática leitora por caber temporalmente na proposta do círculo e o texto
A causa secreta, porque além de instigante, era facilmente encontrado nos manuais
didáticos, e possivelmente já seria conhecido por eles.
171
Foi entregue o texto xerografado para a leitura individual estimada em quarenta
minutos. Antes de iniciarem, pediram folha de ofício e caneta para anotações. Nenhum
participante concluiu a leitura antes de cinquenta minutos, o que denotou um ritmo lento
de leitura, frente ao texto literário.
O segundo círculo de leitura foi realizado com a adaptação em quadrinhos de A
causa secreta, que foi recebida como uma novidade pelos voluntários. Foi explicado
que tipo de texto era e solicitado, em seguida, uma apreciação do texto quadrinizado,
destacando qual a novidade deste tipo de texto. Cada aluno recebeu uma quadrinização
colorida, evitando a xerografia (em preto e branco) pelo fato de anular as informações
pertinentes à linguagem das cores, próprias das histórias em quadrinhos.
O terceiro encontro foi destinado ao confronto dos dois textos e a avaliação dos
alunos sobre como perceberam cada texto, como interagiram e que efeito cada um lhes
causou, na condição de leitor.
Os registros dos círculos de leitura foram feitos de duas formas: a gravação dos
depoimentos e a compilação por escrito das principais impressões relatadas.
O público alvo da atividade investigativa Entre contos e enquadramentos: a
recepção do texto machadiano na contemporaneidade foi realizada, como já apontado,
com alunos do Ensino Médio, do turno matutino. A escolha deste turno se deu por
possuir um universo maior de alunos cursando a 2ª e a 3ª, séries, que já teriam travado
algum contato com o texto de Machado de Assis, considerando o currículo da escola.
Vale destacar que não foi destinado nenhum momento da pesquisa para descrever a obra
e o estilo do referido autor, isto porque interessou-nos observar o contato do aluno com
o texto, a partir do qual supostamente seriam utilizadas as habilidades para leitura
literária, em tese, trabalhadas nas aulas de Língua Portuguesa.
No encontro de apresentação da atividade, os dezessete alunos que se fizeram
presentes traziam um misto de curiosidade e a vontade de ter mais informações,
aspectos típicos dos jovens comprometidos com os exames vestibulares. Apenas oito
continuaram no processo, os outros desistiram porque seria um trabalho com leitura e
teriam um espaço maior para exposição de idéias, com pouca participação do mediador.
A timidez, a crença no conhecimento ditado pela autoridade do professor e não na
construção coletiva do grupo foram os elementos determinantes para a desistência.
172
Dos oito alunos participantes da atividade investigativa, dois cursavam a 3ª série
e seis a 2ª. Eram sete garotas e um garoto com idades diferenciadas: um tinha 15; dois,
dezesseis; três, dezessete; e dois, dezoito anos.
Os oito alunos expuseram de forma diferenciada o motivo de estar no grupo da
pesquisa: três disseram que queriam aprender para o vestibular, dois desejavam
conhecer mais literatura, dois justificaram não terem sido chamados, mas souberam da
proposta por meio dos colegas e vieram movidos pela curiosidade, e apenas uma aluna
confessava-se leitora de textos machadianos.
A maioria dos alunos disse que só lia textos literários quando o professor
solicitava na sala de aula para teste, trabalho em grupo ou prova. Uma aluna informou
que Machado de Assis foi trabalhado pelo seu professor de Língua Portuguesa mediante
a leitura em grupo de alguns contos (inclusive A causa secreta) com o objetivo de
responder algumas questões formuladas previamente; ela informou, também, que
muitos alunos sequer entenderam o texto.
O perfil de leituras preferido dos alunos era bem diversificado: revistas, jornais,
livros de auto-ajuda, literatura infanto-juvenil contemporânea (Crepúsculo, Eclipse,
Amanhecer, Coleção Harry Potter...), história em quadrinhos. Apenas uma aluna era
leitora da literatura “clássica” (Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego,
José de Alencar, José Saramago...). Podemos afirmar que tivemos leitores de textos
diversos, mas distantes da literatura clássica que era caracterizada como de difícil
compreensão devido à linguagem de “outra época”, sendo, na visão deles, melhor pegar
resumos da internet ou ver os filmes adaptados dos romances.
Pelo menos duas observações podem ser feitas referentes a esses jovens leitores,
a partir do diálogo inicial travado com o grupo de pesquisa: primeiro, o paradigma de
leitura imposto pela escola afasta os alunos da leitura literária clássica, visto que a
literatura é apresentada com uma única possibilidade de leitura, uma leitura correta (do
professor que impõe as respostas, tidas como certas, dos manuais didáticos, diante de
outras erradas, construídas pelos alunos); segundo, a linguagem dos textos clássicos traz
um repertório vocabular diferente do vivenciado pelos alunos, o que os afasta da
compreensão do texto.
173
3.3- O leitor entre contos e requadros: relatos de recepção
Numa proposta de leitura que ressoe a estética da sensibilidade e ao mesmo
tempo o faça confrontar com o interculturalismo dos meios de produção, circulação e
reprodução do texto literário, os alunos voluntários realizaram leituras do conto literário
machadiano e da quadrinização na atividade investigativa intitulada Entre contos e
enquadramentos: a recepção do texto machadiano na contemporaneidade.
O primeiro passo foi a realização do Círculo de Leitura Nº 01 intitulado O leitor
contemporâneo e o conto machadiano “A causa secreta”. A princípio os participantes
estavam tímidos, sendo necessária a mediação para serem instigados a posicionar-se
com sua leitura. Para isso contamos com a colaboração da Profª Adlene Karla Nunes
Rocha, pertencente ao quadro docente da escola, mas que não é professora dos
participantes da pesquisa. A participação da professora nos ajudou no sentido de termos
uma ação mediadora o mais imparcial possível, sem privilegiar aos alunos já
considerados leitores literários.
A leitura silenciosa prevista para cinqüenta minutos ampliou-se para mais de
uma hora. Quando confrontados com o conto literário, os leitores apresentaram
dificuldade em construir uma leitura seqüenciada, expondo as informações gerais, que
apareciam claras no texto, evitando as indeterminações.
A princípio, foi solicitado dos leitores que colocassem suas impressões sobre o
texto. Eles destacaram os fatos que julgaram marcantes e que estavam explícitos na
primeira leitura. O texto foi tomado, neste primeiro momento, muito mais como espaço
no qual se veiculam comportamentos individuais dignos de discussão e não como objeto
estruturado para apreciação estética, como se observa na fala de Leiliane:
Eu começaria com a personagem tipo Garcia (...) a frieza de uma
pessoa com animais que não apresentava nenhum tipo de risco para
ele... Ele faz questão de cutucar, no caso do cachorro... e a frieza parte
por parte de um rato. No caso, ainda chamava a mulher de medrosa
pelo fato de ela não assistir tal fato... E aí eu... por isso que eu acredito
na frieza dele com o que não apresentava nenhum risco para ele.
Como a sequência narrativa do conto era inversa e a narração iniciava com o
relato do episódio posterior ao clímax, houve confusões na identificação das
personagens por Leiliane, o que foi ratificado por Ana Carolina, em comentários que
174
progrediram na direção dos fatos e atos mais contundentes para a caracterização da
personagem Fortunato, tomada como referência na leitura do texto:
Fortunato, né? Que tinha essa frieza com os animais. Ele era frio
mesmo... No começo ele falava que o amigo dele, Garcia, como
estudante de medicina. Ele aí ... ele pede Fortunato para ajudar uma
tal pessoa que tinha sido agredida na rua. Depois que ele ajuda essa
pessoa, que vai na casa agradecer, quando essa pessoa sai, ele vai falar
para essa pessoa que o agressor era ele. E aí começa... ele ser uma
pessoa extremamente fria... e depois que começa a estudar anatomia,
fisiologia começa com os animais, como ela falou aí. Ele tem prazer
de torturar animais.
Raquel, uma leitora com prática de leitura maior, como se pôde perceber nos
comentários que teceu durante todo o trabalho, avançou da leitura intuitiva, de fruição,
para uma reflexão estética, quando avaliou o estilo do autor:
Ele faz... Ele descreve bem as características pessoais, o caráter de
cada um [com relação ao autor]. No caso de Fortunato, quando ela fala
da frieza, mas também salienta que no fundo ele gostava... do prazer
que ele tinha de ver o outro sofrer... O autor descreve bem as
características e sentimentos das pessoas.
Marília foi uma leitora que buscou ampliar a visão do texto, quando rompeu com
a imagem de Fortunato como o “frio da história”, em suas palavras, destacando a falta
de ação da esposa, Maria Luisa, como preponderante no comportamento do esposo,
apesar do foco permanecer em Fortunato:
No texto, Maria também é muito fria. Mostra ela cometendo o
adultério. Mostra que ela não tinha piedade. Ela não fez nada com as
crueldades dele [Fortunato]. Ela é muito fria. Na hora que Garcia beija
Maria Luiza, beija uma vez, volta a beijar... ele mostra o prazer com a
dor que ele tem com a dor das pessoas.
Toda leitura caminhou para a frieza de Fortunato ou para a história do amor
secreto de Garcia e Maria Luiza, já destacada na fala de Marília e tomada como tônica
nas observações que se seguiram, como “Eu achei muito bonito quando ele beijou.”, na
fala de Siérico e “Garcia beijou e chorou. Na verdade, entre beijar e chorar ele gosta de
Maria. Ele gostava dela. Ele amava Maria.” observação de Aiala.
Neste momento a tônica da leitura romântica e ingênua tornou-se dominante, ao
ponto de a figura feminina sofredora dominar o comentário de Liliane:
Eu vi como a representação até... de um sentimento no momento que
ele foi beijá-la. Ele chorou. Passou um ponto positivo. Mas eu...
175
discordando de Marília... Eu não considero ela tão fria. Por dentro ela
não queria, mas não fez nada para se opor. Ela sente na pele, não pelo
fato de assistir o rato.
Além da postura cortês romântica de Garcia, própria da burguesia, ser defendida
por Raquel: “Mas eu acho que Garcia, no caso dele foi questão de respeito. Era um
amigo dele. Guardou o sentimento por respeito. Porque era um amigo... Pelo fato de
respeitar a instituição casamento... No meu entender não houve adultério”. Percebeu-se,
nesta altura das discussões, a continuidade da tendência romântica, mas agora acrescida
do elemento maniqueísta. Três proposições foram observadas nos comentários do grupo
de leitores, que confirmam esta tendência: primeiro, Fortunato era extremamente frio,
cruel, próximo daquilo que a literatura tradicional chama de vilão; segundo, Garcia e
Maria Luiza viviam uma história de amor secreta, incentivada até pela frieza e falta de
atenção de Fortunato enquanto marido; e, por fim, Maria Luiza era a vítima, sofredora e
submissa às pressões oriundas do comportamento estranho e distante do marido.
Tal comportamento de Fortunato passa a ser notado como um desvio patológico
da personalidade, assim definido por Ana Carolina, uma das participantes do círculo:
Tem uma parte [episódio do rato] que fala que ele não sentia nem
raiva, nem ódio. Era isto prazer... uma sensação estranha. Ele tava
gostando daquilo e fingindo que não gostava. Para mim era uma
doença – o sadismo – que a pessoa faz o mal a pessoa ou animal e
sente prazer com aquilo.
Neste ponto, ficou claro que os leitores traziam consigo um arsenal de
proposições oriundas das suas impressões um tanto intuitivas, e de uma pequena
bagagem da leitura inocente da literatura do texto romântico oferecida pelo parco
trabalho com a literatura no Ensino Médio. Norteados por tais elementos, os leitores
voluntários demonstraram tentar cingir sua leitura a uma única interpretação, fugindo de
uma série de indeterminações13
que o texto machadiano oferece.
13
Por inderterminação entendamos os elementos que provocam diferentes efeitos nos leitores e
a leitura como a transformação dos signos do autor. Descrever a relação texto e leitor passa pela
pesquisa de três estágios, segundo Iser: primeiro a indicação das qualidades singulares do texto
literário; segundo, nomeação e análise dos elementos básicos dos efeitos que as obras literárias
produzem (as indeterminações); e terceiro, o esclarecimento do visível crescimento das
indeterminações na literatura a partir do séc. XVIII. (Cadernos do Centro de Pesquisas da
PUCRS, série Traduções, Porto Alegre, vol.3. n.2, março de 1999)
176
Quatro indeterminações puderam ser notadas nas estratégias utilizadas pelo autor
e que foram detectadas mais tarde durante as discussões entre os alunos nas tentativas
de reconstrução do texto lido. A primeira, a estrutura narrativa inversa, o que dificultou
o entendimento dos fatos e de quem os realizou. A segunda, a sutil parcialidade do
narrador para centralizar os fatos conforme o olhar da personagem Garcia, sem declarar
tal tendência, o que causou dificuldades para uma percepção mais acurada sobre as
personagens e ludibriou os leitores na avaliação das ações. A terceira, o título do texto
visto como “pegadinha”, posto que trazia notória ambigüidade por trás de uma história
de tônicas superficialmente maniqueístas. Por fim, a quarta, embutida nos comentários
do narrador.
Das quatro indeterminações, não expressas com consistência pelas leituras
construídas pelos alunos voluntários, o comentário do autor, aspecto próprio do
repertório de indeterminação do texto que pode direcionar a resposta do leitor, foi a
primeira percebida por uma das leitoras do grupo. Em linhas gerais esta estratégia é de
natureza avaliativa sobre o acontecimento e era utilizada de tal forma, que diminuía a
participação do leitor por remover as lacunas. Alguns romancistas do século XVIII e
XIX, a exemplo de Machado de Assis, souberam utilizar este artifício, criando lacunas
de modo que
[...] as observações do autor são feitas visando não a interpretar o
sentido dos eventos, mas a assumir uma posição exterior a eles – para
olhá-los como se fosse à distância. Os comentários, então, atingem
como meras hipóteses e parecem sugerir outras possibilidades de
avaliação diferente daquelas que surgem diretamente dos fatos
descritos. (ISER, 1999, p.16 )
No texto em questão esta estratégia foi utilizada e percebida por Franciele, que
não conseguiu expressar com clareza sua interpretação, assim externada: “Eu acho
assim... pelo fato de ele não sentir dor nenhuma, na parte do texto “A sensação de poder
de um homem é ver a dor alheia.” No fundo dele... ele tem um ser bom. Ao ver a mulher
assim... tocou no fundo... dentro dele tem ternura.” Contudo, notou-se que a referida
aluna voluntária divergia da visão de frieza total da personagem Fortunato dominante no
grupo, percebendo-o como portador de uma pequena centelha de sentimento, mesmo
tendo o espírito propenso a satisfazer-se com a dor alheia. Tal percepção destoou da
visão maniqueísta assumida pelo grupo e sugerida aparentemente pelo texto.
177
Quando a mediadora pedia que os leitores atentassem mais para os perfis e a
suposta relação entre as personagens, observando o lugar social de cada uma, as
opiniões passaram a ser revistas, como a de Raquel na conjectura de que “Eh... Não era
amizade. Era como uma conveniência para Garcia aquela relação de amizade. Ele
apenas freqüentava a casa. Não era amigo. Se fosse amigo, ele faria a interferência.”. Os
mesmos passos foram seguidos por Leiliane que reconfigura sua opinião sobre a esposa
de Fortunato, dizendo que “Maria também foi fria porque aceitou que ele fizesse aquela
casa lá... onde ele ia pegar as pessoas debilitadas... ela poderia evitar ‘não faça isso’.
Fazê-lo procurar um tratamento.”
A esta altura, boa parte dos leitores enveredou na tentativa de uma leitura mais
crítica, e passaram a construir uma série de proposições, que se misturam com posturas
românticas das personagens, como se nota nos comentários abaixo:
Liliane: “Garcia não tinha coragem de praticar os atos como Fortunato e sentir bem. Ele se põe
frio também naquela situação, mas não faz nada para interferir.”
Raquel: “O mesmo sofrimento do rato era o de Maria Luiza.”
Siérico: “Não era o mesmo sofrimento. Mas ela sentiu.”
Leiliane: “Não era conveniência para Maria Luiza aquilo... Ela não lucrava nada... Ela via
aquilo e sentia-se mal, cada vez mais...”
Raquel: “Para Garcia aquela relação era conveniente para ficar perto de Maria Luiza.”
No processo de reconstrução do texto durante o debate das opiniões, alguns
avançaram da fruição, o sentir o texto, para a reflexão estética, ou seja, o ato de pensar a
forma como o autor constrói o texto em suas minúncias. Esta postura de leitura requereu
mais atenção do leitor que passa a relativizar as interpretações.
Tal atitude vai ao encontro das observações do jornalista Alcides Vilaça no que
diz respeito à desestabilização provocada pelo texto machadiano nos jovens leitores,
tanto no que tange ao estranhamento provocado pela poética estrutural do texto como na
desestabilização dos valores humanos universais (rever p.76). Esta postura foi notada
Leiliane que fez a seguinte avaliação: “No caso, o romance está explícito no texto.
Houve algum detalhe que não conseguimos pegar. Estamos voltados ao sentimentalismo
e nos voltamos à frieza... e levamos o texto ao lado sentimental.”. Também Raquel
observou isso: “Ninguém nunca tem a mesma interpretação. O texto de Machado de
Assis sempre deixou reticências. Ninguém nunca interpreta do mesmo jeito.”
178
A discussão até aqui trouxe vários focos: perfil das personagens Fortunato,
Garcia, Maria Luiza; a intrincada relação entre as personagens com destaque para
Fortunato/sadismo; o amor entre Garcia/Maria Luiza; e daí para qual seria e de quem
seria a causa secreta.
O título, A causa secreta, passou a ser utilizado como fomento para inquietude
dos leitores. Cada um passou a repensar as personagens e possíveis causas secretas.
Assim tivemos variados posicionamentos pela lacuna provocada a partir do título:
Aiala: “Eu pensava, a primeira vista, a causa secreta era o amor de Garcia.”
Leiliane: “Poderia ser o amor de Maria Luiza por Garcia. Porém não relata com clareza como
relata o amor de Garcia por ela. É mais complicado.”
Raquel: “A causa secreta é de Fortunato. A frieza dele, o sofrimento por dentro dele.”
Leiliane: “Ele não tem amor. Ele desconta nos animais algo que fizeram com ele. Ele poderia ter
algum tipo de sentimento dentro de si, mas não demonstrava. Ele sentia prazer, de certa forma,
ou totalmente, em fazer aquilo.”
Ana Carolina: “[A causa secreta] É de Maria Luiza. Maria Luiza é assim... Ela sofre, porém não
expõe o que sente ao ver Fortunato fazer aquelas ações.”
Siérico: “[A causa secreta] é de Maria Luiza. Ela vivia o amor por Garcia e não podia viver o
amor com ele. Sentia vontade de ficar com ele, mas ela não podia – era casada.”
Neste momento, os leitores passaram a ser instigados a observar mais
atentamente as relações entre as personagens Garcia e Fortunato, e se havia algum tipo
de vantagem na relação. Ainda mais inquietude e construção de novos posicionamentos
críticos foram percebidos:
Raquel: “Para Fortunato que ele queria abrir uma Santa casa... um hospital. Garcia era o
passaporte... Por ser médico daria possibilidade para isso.”
Leiliane: “Havia uma troca de interesse. Fortunato iria usar o recém-formado.”
Raquel: “Garcia, recém-formado, iria ter possibilidade de atuar.”
Raquel: “Eu ainda vejo Fortunato. Ele ainda tinha um interesse maior: abrir uma Santa Casa.”
Leiliane: “Ele iria usar o recém-formado para isso. E Garcia?”
Franciele: “A causa secreta é de Fortunato e Garcia. De certa forma, um precisava do outro.”
A intrincada relação das personagens tornou-se, assim, alvo das especulações
dos leitores mais questionadores, como Raquel, Leiliane e Franciele. Outros
acompanhavam os posicionamentos dos colegas sem lançar opiniões.
179
Notou-se que os leitores voluntários, enquanto alunos, não estavam habituados a
serem instigados a construir suas leituras. Frente às provocações lançadas pela
mediadora, alguns se entusiasmavam a construir e reconstruir suas opiniões, outros se
impacientavam dizendo que não falariam mais nada, que era complicado, um trabalho
difícil. Uma aluna se exaltou a ponto de questionar se o escritor havia deixado escrito
qual era a causa secreta.
A percepção de outra indeterminação começou a despontar: toda a leitura
apresentada pelos alunos foi conduzida pelo olhar de Garcia, para o qual pende a visão
apresentada pelo narrador. Raquel chegou a tecer comentário que ia ao encontro dessa
percepção, sem contudo, notar claramente este estratagema do autor:
Fortunato é... Ele é mais visado. Quando a gente lê, visa
primeiramente ele, como se fosse a história dele. É como se você
fizesse a leitura ele como personagem principal e Maria Luiza parece
ser parte da história dele. Ele tem características mais fortes E Maria
Luiza não aparecem muitos traços da personalidade dela.
Quando questionados sobre Garcia, as observações passaram a ser mais incisivas
com uma visão mais crítica do texto:
Beatriz: “Ele era frio, apaixonado, traidor...”
Siérico: “Ele fica observando tudo de fora... Igual a Fortunato. Uma pessoa fria e calculista.”
Leiliane: “Ele não tinha a mesma audácia de Fortunato, de praticar os mesmos atos. Poderia ter
algo que ele queria, mas não tinha a mesma audácia.”
Ana Carolina: “A audácia é no final, quando ele beija Maria Luiza.”
Leiliane: ‘Isso é o que está explícito. E o que não está?”
As inquietudes agora observadas nos leitores passaram a coadunar-se com as
afirmações de Coutinho (1990,p.125-126), que assim descreve a percepção do ser
humano na ótica machadiana, retratada nas personagens construídas pelo escritor:
[...] Para ele os homens só são capazes de vícios, ambições,
dissimulações, sentimentos contraditórios, perversidades, ingratidões,
inconstância, e, na sua obra, assistimos à procissão de todos os vícios
e defeitos morais, más qualidades e pecados, que inteiramente
dominam homens na vida individual e social. Há sempre uma causa
secreta, que é preciso pesquisar, nos atos humanos [...]
O circulo nº 01 foi encerrado com os leitores tendo a sensação de que havia
questões em aberto sobre as personagens. Notou-se que, a princípio, os leitores frente ao
conto literário, limitavam-se ao dito de forma explícita no texto sem ater-se ao não dito,
180
às lacunas. Quando eram indagados pela mediadora, sentiam-se perdidos, descentrados
e até surpresos.
O segundo momento da pesquisa configurou-se no Círculo de Leitura Nº 02
intitulado O leitor contemporâneo e a quadrinização “A causa secreta” que se iniciou
num misto de satisfação e desconfiança diante da literatura em quadrinhos. Os leitores
adeptos dos quadrinhos mostraram-se mais motivados pelo texto quadrinizado, que,
conforme Siérico era mais fácil de ler.
Raquel, por sua vez, um tanto precavida, afirmou que “Os quadrinhos é bom.
Tem coisas que você deixa passar quando você lê só o texto... que às vezes até olhar
você presta mais atenção.Você vai olhar as personagens.”. Entretanto, manteve sua
preferência pelo texto literário, enfatizando que “[...] o conto sem as imagens deixa você
mais livre para imaginar tudo o que você quiser”. Notou-se que para ela, o texto icônico
explora potencialmente detalhes do texto verbal que passam despercebidos na leitura.
Contudo, o conto na forma literária clássica, não condiciona a uma só percepção do
texto, dando ao leitor a liberdade de recriação.
Ana Carolina, por sua vez, afirmou ter percebido que o texto icônico não castra a
imaginação, apenas a torna “mais possível”, de outra forma, defendendo que “É até
mais fácil. E mesmo nos quadrinhos a pessoa ainda tem imaginação. Eu mesmo tive
outra imaginação... até mesmo no quadrinho a imaginação é outra.”
De forma mais concreta, Aiala enfatizou a contribuição maior do texto
quadrinístico para compreensão da rede de enunciações, visto que “Dá pra entender
melhor quem falou tal fala. Porque ontem a gente ficava sem saber quem falou isso. Nos
quadrinhos dá pra ver mais quem, as personagens falou o que, o que foi que ela falou.
Dá pra entender mais a história.”
A quadrinização superou as expectativas de Raquel, leitora constante da
literatura clássica, que defendeu a integridade deste texto nos quadrinhos, como se pode
observar:
Ah! É por isso que eu digo que os quadrinhos superaram as
espectativas. Quando você ler outros quadrinhos que não é literatura
não há tanta narração. É mais centrado, eu achei que fosse assim
também, na ação, mais no momento...geralmente não há muito
flashback, é centrado naquilo... Eu achei que os quadrinhos fossem
181
cortar muitos pedaços, como se fossem aquelas adaptações que você
faz... que você acha muito fraca. Igual quando você resolve resumir
algum livro de literatura e você sente que falta aquela coisa... como se
fosse bem fraquinha. Mas aqui é diferente. Por aqui, os elementos da
narrativa [do texto base] estão todos aqui.
Em linhas gerais, os leitores do grupo perceberam o texto quadrinístico como
uma forma nova de leitura do texto literário, a qual melhora a interpretação, visto que,
conforme Raquel, “Os quadrinhos redobra a atenção pela leitura e também para as
imagens que você está associando. Você não pode ler assim, só por correr os olhos. Eu
acho que prende mais a atenção.”, quebrando um pouco da ideia de leitura supostamente
facilitada.
Além disso, a versão em quadrinhos não se distanciou do texto-base, mas
intensificou a mensagem do mesmo, como destaca Marília, ressaltando que “Ele mostra
os detalhes, aqui, os olhos. Também ele divide cada parte, a cada sensação, sabe, a cada
reação da personagem.”, referindo-se aos requadros a seguir:
Figura 213: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 7.
Os elementos da linguagem quadrinística como timming e perspectiva, são
destacados por Raquel de forma intuitiva: “Ele colocou vários quadrinhos. Às vezes é
como... tem quadrinho que você tem no lugar e daqui a pouco você já está em outro
totalmente diferente. E ele vai detalhadamente, mesmo que seja a mesma cena, aparece
duas, três vezes.”
182
Para Carol, os quadrinhos foram elucidativos ao ponto de afirmar que “Agora
que eu vi entender o conto, né. Mas ai eu encontrei no primeiro uma visão totalmente
diferente da história em quadrinhos.”, sem, contudo, explicitar como se deu a
contribuição da quadrinização para a sua compreensão do conto.
Raquel, por sua vez, confessou ter compreendido o conto só com o texto-base, e
percebeu a quadrinização como uma forma de ler do quadrinista, da qual nos
apossamos:
Eu consegui pegar só no conto, eu acho que consegui, a essência.
Porque quando a gente não tem recurso da imagem a gente dá asas a
imaginação... quando a gente vê as imagens, a gente muda um
pouquinho. Porque a gente tá vendo também a visão de quem ilustra.
A gente pega um pouquinho emprestado a visão de quem ta
ilustrando. Porque a pessoa pra ilustrar, primeiro ela tem que
interpretar porque o autor usa tal palavra ou porque tal pessoa tem tal
gesto, tal semblante. Então ele interpreta pra desenhar. Então a gente
rouba um pouquinho da interpretação da pessoa.
Tal percepção de Raquel dialoga muito bem com as análises do Professor Elydio
Neto (ver p.65) posto que a adaptação/tradução é a leitura do artista. Também
aproxima-se da discussão de Plaza em relação ao tradutor intersemiótico. Aqui ele é o
quadrinista, leitor que tem uma visão do texto-base pela empatia e simpatia, e através da
analogia materializa o sentido depreendido do verbal. Assim, ele “empresta sua leitura”
para o outro, leitor da sua recriação, pois:
Leitura para a tradução é um movimento hermenêutico onde o tradutor
escolhe e é escolhido. É evidente que tudo parece traduzível, mas não
é tudo que se traduz. Traduz aquilo que nos interessa dentro do projeto
criativo (tradução enquanto arte), aquilo que em nós suscita empatia e
simpatia como primeira qualidade do sentimento, presente à
consciência de modo instantâneo e inexaminável, no sentido de que
uma coisa está a outra conforme os princípios da analogia e da
ressonância.(PLAZA,2008,p.33-34)
Apesar do posicionamento diverso frente ao alcance do texto literário
quadrinizado, alguns alunos foram taxativos com relação à necessidade de se ler o conto
literário antes da quadrinização, como se nota a seguir:
Siérico: “Agora, assim: primeiro a gente lê o conto normal.”
Marília: “Eu acho que se ler os quadrinhos primeiro, a gente já vai ter essas imagens. Antes de
ter a imagem dos quadrinhos tem que, em primeiro lugar, ver o conto.”
183
Raquel: “Isso. É como no filme. Quando a gente vê o filme primeiro pra depois lê o livro, a
gente recorda da personagem que já sofria aquela dor. A gente traz as imagens para o livro,
como nos quadrinhos.”
Tais proposições dos alunos caminham para os posicionamentos de Plaza de que
“A tradução mantém uma relação íntima com seu original, ao qual deve a sua existência
[...]”. Ao relacionar o texto-base à tradução, de certa forma os leitores comungam da
ideia de que “a vida do original alcança sua expansão póstuma mais vasta e sempre
renovada” (BENJAMIN, apud PLAZA, p. 32.) na quadrinização, mas não elimina a
necessidade da leitura do texto literário.
Isto também pode ser interpretado como uma forma de o leitor, enquanto
tradutor, não deixar a imaginação ser condicionada unicamente pela leitura do
quadrinista, a qual pode castrar o exercício de criatividade e até de emotividade mais
ampla, promovido pelos signos do texto-base. Tal texto é extremamente rico de
informação estética, que é filtrada pelo quadrinista no processo de seleção e associação,
para proceder à recriação quadrinizada. E a leitura do original torna-se fundamental para
a apreensão do conteúdo, dando-lhe uma dinâmica afetiva sem similar, o que se pode
perceber no depoimento de Siérico sobre o episódio da tortura do rato:
No conto a cena do rato foi mais forte que agora [nos quadrinhos].
Não sei se foi a primeira vez [primeira leitura]... Eu achei assim...
começou com a primeira pata... a segunda... Eu fiquei olhando as
perninhas do rato. Ele só mostra lá quando arranca a última pata. O
impacto foi maior [ no conto].
E que tem a aquiescência de Raquel quando afirma que: “Também. Eu achei que
aqui o rato não parecia estar mais sofrendo. Talvez tenha sido o choque da primeira
leitura e depois é diferente também de quando a gente já conhece a história. A gente já
percorreu. Quando a gente faz a releitura não é mais pra conhecer.”
Também foi reconhecido pelos leitores que o quadrinista, via imagem, pode criar
novos estratagemas no texto para a composição das cenas como detalhamento de traços,
elementos antes não explorados pelo autor do conto e que passariam despercebidas na
imaginação do leitor. Estes novos elementos tornaram-se significativos para a leitura.
Como as imagens dos pacientes e do cão na experimentação, não tão explorados no
texto-base, como se pode notar:
184
Figura 214: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 25.
Figura 215: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 27.
As referidas cenas são destacadas na quadrinização pelo aluno Siérico da
seguinte forma: “Essa aqui foi mais forte pra mim no quadrinho que no conto: a parte
do velho com a boca aberta, o cão com a boca aberta agonizando de dor”...
Estas percepções e comentários de Siérico e Raquel caminham na direção do que
Plaza (2008) aponta sobre a tradução intersemiótica induzir à descoberta de novas
realidades no texto-base pela constituição sintática da nova linguagem. Tal observação
de Plaza sustenta-se na afirmação de Décio Pignatari (apud PLAZA, 2008, p.30): “[...]
na criação de uma nova linguagem não se visa simplesmente uma outra representação
de realidades ou conteúdos já pré-existentes em outras linguagens, mas a criação de
“novas realidades, de novas formas-conteúdos.”
Outra novidade foi percebida por Marília. No conto o narrador é testemunha,
conta o que viu ou ouviu. Ao transpor a história para os quadrinhos, Machado de Assis
tornou-se o narrador, assim descrito pela referida aluna: “E também nas duas páginas do
185
conto aparece aqui Machado de Assis. Eu acho que é Machado de Assis, né? Contando,
como se fosse ele o narrador. Ai mostra aqui o começo, como se fosse a introdução pra
a apresentação da história.”
Os leitores também ganharam novas tônicas para a percepção das personagens,
que para uns confirmaram o que o texto-base dizia e para outros impregnaram a
interpretação de novos contornos. Para Marília, a frieza de Fortunato tornou-se patente
até na variabilidade do olhar explorado pelo quadrinista, como ela descreve: “Fortunato
continua frio. As expressões dele, o rosto, os gestos, a reação dele diante do sofrimento,
no teatro... quando ele vê a parte das facadas lá... ele olhando assim... O olhar tem horas
que fica mais leve, tem horas mais forte... pra chamar atenção.”
Para Franciele, Fortunato transparece mais frieza no conto. Nas imagens, ele lhe
desperta compaixão, numa leitura bastante particularizada:
Já eu achei ele mais frio no conto. Aqui, assim... olhando, aqui eu tive
pena dele. Ele parece uma pessoa que não era normal. É sério, filha.
Parece que era um trauma que ele tinha... que algum tempo fazia isso.
No conto ele parecia mais frio. Aqui eu não achei ele tão frio assim.
Vai ver ele faz isso devido a alguma coisa que aconteceu com ele...
Que ele tem medo de ser bom.
Também Garcia teve (mereceu) apreciações diferenciadas a partir da imagem.
Para Siérico a referida personagem ficou aquém do conto, como ele mesmo diz:
Eu não via Garcia com essa cara de tristeza. No quadrinho tem cara de
gay. É demais. É sério. Eu não sei. Ele tem cara assim, de ... de meio
bestalhado. Não que ele seja sério, mas aquela coisa assim, mais séria,
mais séria de jovem, mas de um jovem mais sério, mais ativo...E aí ele
tem cara de besta, com esse cabelo enroladinho...
Já para Raquel ele ganha ainda mais ênfase em suas ações de observador e é o
foco que o narrador passa a dar na narração:
Eu vi ele no quadrinho... como mais observador. Eu achava que...
depois você vai olhar e vai ver... que ele a descrição toda é isso: ele
vai observando a vida de Fortunato. Eu vi ele mais como um narrador
vai da visão dele. É que sempre passa ele, a imagem dele observando.
Aí eu percebi melhor é que tudo aqui é como ele, a visão dele de
Fortunato e de Maria Luisa.
Também Marília percebeu maior ênfase das ações de Fortunato nos quadrinhos,
tornando mais intensas e claras as reações de Garcia, assim descritas: “Garcia espantado
com as coisas que ele faz [Fortunato]... A admiração dele. Aqui no conto ilustrado a
186
expressão dele já muda para mim. Fica mais clara a indignação dele com os atos de
Fortunato.”, referindo-se aos seguintes requadros:
Figura 216: A causa secreta Figura 217: A causa secreta Figura 218: A causa secreta
Escala Educacional, pág.31. Escala Educacional, pág.32. Escala Educacional, pág.33
A referida aluna também destaca a seguinte passagem:
Figura 219: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 16.
Ela teceu comentários que apontam para a percepção da intensidade dada na
quadrinização aos sentimentos da personagem Gouveia. Pela utilização da perspectiva
frontal do rosto em close-up e aproximação dos olhos, desvenda-se o novo sentimento
de ingratidão, marcado pela insatisfação e raiva percebidas nas feições do olhar, o que
amplia a probabilidade de leitura, como a aluna discorre:
Aqui na página 36 mesmo, do Gouveia, o cara que foi humilhado...
Ele fala do sentimento de ingratidão, a expressão do olhar dele como
de raiva de Fortunato e aí no conto sem ilustração não parece que ele
187
ficou tão, tão insatisfeito com aquilo. E já no quadrinho já dá pra ver a
expressão mais forte.
Outro episódio também destacado refere-se ao estado de terror de Maria Luiza,
que ganha uma nova tônica de sentimento na quadrinização, conforme Raquel, nos
requadros que se seguem:
Figura 220: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 27.
A aluna assim descreve a sua leitura:
Agora tem uma cena que parece diferente. Da página 27. É como se
ela tivesse com raiva. Desse quadrinho debaixo. É uma parte que... da
cena... como se ela estivesse com raiva. Pra mim o autor fez as
expressões parecer como se ela estivesse com raiva. Mas se você
observar a cena não era que ela estava com raiva... Ela estava fazendo
um pedido.
Mesmo defendendo o ponto de vista de que os quadrinhos propiciaram uma
leitura mais elucidativa, a subjetividade do leitor também foi observada diante da leitura
da imagem. Foi o que se pôde perceber na discussão da seguinte passagem:
Figura 221: A causa secreta Figura 222: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 41. Escala Educacional, pág. 42.
188
Para alguns alunos, o último fato traduzido iconicamente nas duas últimas
páginas da quadrinização, gerou variadas percepções que diferenciaram um pouco as
leituras como se pode perceber no debate abaixo transcrito:
Marília: “Uma coisa que eu não entendi foi esse final. De tortura...”
Siérico: “Acho que ele ficou meio intrigado e com raiva.”
Raquel: “Foi a expressão que colocou aqui. Está difícil um pouquinho pra decifrar. Pra mim é a
penúltima que você não sabe, é mais difícil. Você não consegue dizer o jeito... porque a
sombrancelha e a boca é que mais emoldura a expressão. E aí eu não sei dizer se é raiva, ou se é
tristeza, ou se foi prazer de o ver chorar.”
Franciele: “É tanto que quando eu li o conto que falou assim... esse negócio com certo rigozijo,
pra mim ele estava dando uma risada quando ele vê aquela cena de Garcia beijando a mulher.
Mas aqui não, ele mostra certa indignação vendo aquilo.”
Raquel: “Se você olhar... é como se fosse um sorriso. O prazer de...”
Franciele: “Mas, no caso como eu falei, como eu achei ele mais frio no conto, nunca achei que
ele dava risada. Entendeu? Pelo prazer de ser frio...”
Marília: “Uma risada tendenciosamente longa... como se... é... ele... fosse pra... a imagem de
Fortunato que pelo prazer de gostar de ver o sofrimento do outro.”
Aiala: “Pra mim esta expressão foi como se estivesse ... é ... descoberto alguma coisa... um
segredo que estivesse escondido. Pra mim foi isso: ter descoberto algo de Garcia.”
Siérico: “Porque eu acho que ele conteve a raiva dele em vê um cara ... Garcia... beijando a
mulher dele. Mas ele conteve a raiva e ao mesmo tempo teve satisfação, prazer, em saber que
ele tinha a mulher que Garcia tanto desejava e nunca pôde ter.”
Raquel: “É quando você vê o quadrinho, você confronta a visão de como o ilustrador viu a cena
e de como a gente viu a cena.”
Tais conjecturas de leitura confirmam a autonomia do leitor não só em relação
ao conto literário, como também frente à quadrinização, pois ele, ao buscar vencer as
dificuldades de leitura, avança na criatividade e cognicidade para a construção de seus
posicionamentos. Confirmou-se a proposição de Iser (1999,p.22), no texto literário
verbal e também quadrinizado, com relação a defesa de que :
[...] o texto oferece ao leitor nada mais que um conjunto de
posições as quais apresenta em uma variedade de
relacionamentos, sem nunca formular um ponto focal a que
convergem, pois este está na imaginação do leitor e, na verdade,
só pode ser criado através de sua leitura.
E assim encerrou-se a segunda etapa da pesquisa que se pautou na leitura e
apreciação das interpretações da quadrinização A causa secreta. Aqui ficou evidente a
aceitação deste texto híbrido, motivador de um arsenal de variantes de leituras, frente a
189
um leitor que, instigado, torna-se um caçador de possibilidades para uma interpretação
coerente.
O terceiro momento da pesquisa, concretizado no Círculo de Leitura Nº 03
intitulado O leitor contemporâneo entre conto e requadro, centrou-se no confronto
direto entre os dois textos, vislumbrando perceber o posicionamento dos leitores com
relação aos textos, em especial, a literatura em quadrinhos.
Leiliane, diante dos dois textos, relata diferentes sensações. Para ela, no texto
escrito o envolvimento subjetivo é maior, enquanto nos quadrinhos ela sente certo
distanciamento do fato, posturas assim descritas:
Eu me sinto, de certa forma, dentro do texto [conto]. Porque eu me
sinto como estivesse ali, vendo cada cena, vendo cada momento. E ...
quando saio para o ilustrado, de certa forma me sinto dentro, mas não
como se estivesse lá. É um fora que dá pra perceber bem. Agora a
ilustração, ela relata bem, dá pra relatar bem a época, a maneira das
roupas que as personagens estão muito bem usando que tá muito bem
colocado, os desenhos estão muito bem ilustrados, as calçadas, as
casas... Então, cada momento dá pra distinguir muito bem. Tá muito
bem definido um pro outro...
As imagens, se por um lado provocaram nela um olhar de “fora”, por outro
situaram bem o tempo e o espaço, dando-lhe clareza na contextualização do
acontecimento relatado. Neste processo de leitura do texto quadrinizado, a imaginação
apóia-se no real de uma época (aqui século XIX) materializada pelo signo, o que faz a
interpretação transcorrer de forma mais clara, posto que, segundo Franciele “apenas a
história [conto], a gente apenas lê... e imagina às vezes como é. Mas as figuras mostram
como era antigamente, as casas, as roupas, e dá pra vê como é realmente que a história
aconteceu.”.
Para Siérico a contribuição do texto quadrinístico ainda é maior, posto que
exterioriza de forma mais concreta as ações da personagem, visto que “Você sente cada
gesto da personagem, a maneira como ele se porta.”
Ao serem provocados com relação a como se deu a transposição do verbal para o
icônico, a surpresa dos alunos foi logo externada, uma vez que a quadrinização superou
as expectativas, como relata Raquel: “Foi isso que me surpreendeu. Eu esperava que
quem fizesse os quadrinhos resumisse. E aí eu já estava logo pensando que eu não fosse
190
gostar, certo? , enquanto que os quadrinhos fosse bem resumido. E isso me
surpreendeu.”
Mesma reação foi percebida em Leiliane que melhor detalhou a permanência dos
elementos do texto literário escrito na quadrinização, chegando a hipotetizar que a
manutenção do primeiro na transposição poderia tornar cansativo o segundo. Tal
sensação, todavia, não se confirmou, pois o que poderia ser propensão para o cansativo
no texto verbal tornou-se, em sua opinião, elementos de riqueza no conto quadrinizado,
assim descrito:
Hoje, quando eu e Raquel estava saindo, Leila tinha me dado e eu já
tinha lido. Eu li aqui na escola mesmo. Ai ela me comentou o que
surpreendeu foi isso; de não ter cortado nenhuma parte do texto. Ai eu
falei assim: É! Porque eu pensei assim... já que vão ter partes
ilustradas pra não ficar muito cansativo, porque... é... iria ficar
cansativo, que iria cortar. Foi o mesmo pensamento de Raquel. E ai vê
que... procurou guardar cada pedacinho sem cortar. E mesmo assim
não ficou algo cansativo. Ficou algo ilustrado e algo rico pelo fato de
estar todo o texto na história em quadrinho.
Apesar da recepção positiva para os quadrinhos, a preferência em relação aos
textos foi muito dividida e os argumentos bem definidores. Para Raquel, defensora da
interpretação criativa no ato de recriação do texto pelo leitor, nos quadrinhos:
Eu acho que a linguagem, ela facilita. Mas o meu favorito continua
sendo o texto escrito. Eu acho que eu me divirto mais criando as cenas
na minha cabeça do que ver as cenas prontas. Mas se for analisar as
linguagens, os quadrinhos ajudam, mas eu acho mais divertido ler o
texto puro.
Também para Leiliane, defensora da inserção do leitor no texto pela imaginação,
o texto puro – como ela denomina o texto literário verbal – permite um maior
envolvimento subjetivo, uma maior fruição estética, assim descrita:
Em relação ao texto puro, Quel, eu também gosto pelo fato de ...aqui
eu não tava lá dentro. Eu já tava vendo todo mundo no seu lugar. E
quando tá o texto vazio, sem as ilustrações, eu estou aqui. E em algum
momento, às vezes só em alguns momentos eu vejo a história inteira.
Não sei aonde eu estou, eu tô vendo cada cena...
Para Siérico, leitor assíduo de quadrinhos, seu posicionamento subjetivo frente
aos textos também é bem definido. Em seu ponto de vista ocorre a supremacia do
envolvimento maior do leitor no texto literário escrito, e destacou que: “No texto só de
191
palavras, eu me sinto como o narrador. No texto das imagens parece que eu estou
assistindo”...
Ana Carolina aponta que a diferença na percepção dos dois tipos de textos aqui
discutidos está na arbitrariedade interpretativa possível do texto literário escrito, posto
que “No texto em palavras a gente cria a cena do jeito que a gente quer. E aqui não, já
está criado, então pra gente é assim como se a gente estivesse mesmo recebendo.”
Foi destacado que a quadrinização, releitura-recriação do texto literário pelo
ilustrador, acabou esclarecendo outras indeterminações do texto não percebidas na
leitura do conto literário. Carol evidenciou isso na estratégia de narração. Para ela, foi
na leitura dos quadrinhos que começou a se esclarecer como se configurou a cena inicial
da história, como ele afirma:
Ó, professora, eu achei diferente. Muito diferente [no conto]. Esse
momento ajuda a gente a entender. Quando começa a falar de Garcia
em pé, Fortunato na cadeira, pra cada um estava separado, cada um
num canto ... Eu estava sem entender o início da história. E eu vim
perceber assim... que ele e Garcia já se conheciam e eram amigos. E aí
esta história de Casa de Saúde já vinha falando desde o começo. E no
momento que fala da Casa de Saúde já mostra que Maria Luiza não ia
gostar... Já fala que ela está com os dedos trêmulos. Realmente eu não
tinha entendido esta parte. Pra mim, cada um estava em seu canto...
mas eles já estavam juntos... E depois vem o encontro. Aquela parte
que Garcia entra na universidade.
O que vai ser confirmado por ela com a retomada das imagens em outro
momento da quadrinização, como destaca:
E na página 36, aqui, eu agora é que eu vim ver aqui o que ela
realmente falou do começo. É que a página 36 volta para o final. É a
mesma cena do início. É ...que é Fortunato sentado, o médico Garcia
em pé e na página 35 mostra Maria Luiza costurando. É a mesma cena
do começo.
Raquel foi quem explicitou todo o processo realizado na técnica do flashback,
por ela percebido desde a leitura do conto. Ela provou, em outra fala, seu ponto de vista
com passagens do texto literário escrito, o qual continuou a defender. Na sua exposição,
fica patente a ideia da quadrinização como uma releitura do conto por meio do signo
icônico, exatamente o que Plaza chama de tradução intersemiótica. Esta tradução que é
releitura/refeitura é confrontada com a sua leitura do conto, ocorrendo convergências e
divergências nas percepções da citada leitora:
192
Pra mim foi diferente. Eu entendi que ele estava fazendo um
flashback. Ele usou o recurso: diz uma parte mais adiante do que ele
conta a história. Ai ele volta atrás, quando eles não se conheciam pra
que a gente entenda aquele ponto que eles tinham chegado. Agora, eu
acho que, quando ...o ilustrador fazer isso ele tem que interpretar pra
colocar os desenhos, o que às vezes confrontam com a nossa forma de
ver. É uma expressão diferente, certas cenas imaginei diferente,
imaginei um sentimento diferente das personagens. Às vezes muda um
pouquinho, às vezes sai igualzinho como eu tinha imaginado.
..............................................
No fim da página 4 ele fala: “Pra fazê-lo entender é preciso remontar a
origem da situação.”.
Outra indeterminação do texto literário que perdurou até a leitura dos
quadrinhos, na opinião de Carol, foi a participação de Fortunato no episódio do
espancamento de Gouveia, visto que também a quadrinização preservou o ar enigmático
da referida personagem. A princípio, chegou-se a pensar que ele era o enfermeiro que
surgiu para socorrer a vítima dos capoeiras. Posteriormente Aiala cogitou que seria ele
(Fortunato) o autor da atrocidade, até que Raquel provou que ele era um observador,
acompanhante de todos os fatos de forma bastante estranha, como se nota no diálogo
travado:
Carol: “Ó, eu ainda continuo acreditando, pra mim, que Fortunato era enfermeiro. Porque aqui
nesta parte o homem está na cama, página 4, último quadrinhos. Ai fala assim, que depois de
pôr ele na cama, Garcia disse que era preciso chamar o médico. Ai um dos homens que tava na
casa falou “ai vem um”. É quando entra Fortunato, Então alguém chamou ele. Ele também age
como enfermeiro. Depois fala Garcia olhou e era o mesmo homem da Santa casa e do teatro.”
Raquel: “Mas na página 11 ele diz “não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos,
achei melhor trazê-lo. Ele presenciou e trouxe o homem.”
Aiala: “No conto, eu também pensei que fosse ele.”
A contribuição da quadrinização para melhor compreensão do conto foi
destacada pelos alunos ao indicarem os elementos da linguagem quadrinística que mais
acrescentaram informações à leitura. O detalhamento da ação da personagem utilizando
variadas posturas corporais, em diferentes requadros, foi o primeiro a ser citado. Um
exemplo indicado por Liliane diz respeito ao narrador, que durante a narração é
mostrado em diferentes focos frontais. Neste caso, o detalhamento ocorre para dar
ênfase à performance narrativa do enunciador (aqui, a representação do próprio
escritor), como se nota nos requadros abaixo:
193
Figura 223: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3.
Figura 224: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 3
Figura 225: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4.
Figura 226: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 4.
A aluna em questão assim explicita este processo, apresentando a leitura das
posturas e expressões do narrador no icônico:
194
O detalhamento da ação é maravilhoso. Porque assim... quando a
gente... É igual a visão que a gente faz de cada vez que a gente lê.
Nós não teríamos essa... acho que tanta criatividade de pôr cena por
cena. Aqui na página 04 aparece Fortunato três vezes num só
momento, um do lado do outro, se fosse eu não colocaria assim. Eu
colocaria uma vez só e sairia falando tudo o que fosse pra falar. Mas
quem teve a ideia de fazer os quadrinhos, foi bem rico nisso. Que teve
esse ponto de detalhe, de pôr cada em seu lugar. E cada detalhe mostra
ele com a feição diferente, a indicação, o rosto, o sorriso, em pé... É o
narrador? Desculpa. Se fosse eu, colocaria ele de uma vez só para
falar tudo.
O detalhamento com ênfase nas expressões faciais da personagem para narrar
como transcorre o fato foi destacado por Aiala como de grande importância visto que “O
quadrinho foi melhor, mas o conto deixa imaginar mais. [No quadrinho] A pessoa pode
não estar falando nada, as expressões dizem alguma coisa, se está alegre ou se está
triste”. Isto ocorre na descoberta da doença e definhamento de Maria Luiza, assim
explorada pelo quadrinista:
Figura 227: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 37.
Figura 228: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 38.
195
Também Leiliane teceu as seguintes observações sobre esta passagem, corroborando
com as impressões de Aiala:
Na morte de Maria Luiza, aos pouco eu fui acompanhando passo a
passo. Ela não estava no momento falando nada. Mas a expressão
facial via que ela estava definhando, definhando aos poucos. Aqui fala
assim: “Maria Luiza cismava e sofria.”. Ela não falava nada apenas
tossia. E ai foi:“Ela tossia e não passou muito tempo que a moléstia
não tirasse a máscara. Então só foi mostrando. Dá pra ver assim... A
expressão facial é algo que... nós temos a mania de querer as coisas
prontas. A princípio fomos fazendo cada imagem na cabeça e quando
pegamos um texto ilustrado que distorce um pouco daquilo que
imaginávamos acabamos gostando porque ele... neste texto ele mostra
os detalhes e põe Maria Luiza em várias cenas, porém cada uma vai
mostrando o detalhe do rosto diferente, vai deixando...aqui na página
37 dá pra ver isso bem.
As diferentes angulações da postura corporal para melhor detalhamento da ação e
percepção da pretensão da personagem no fato foi intuitivamente percebido por Aiala quando
destacou a seguinte passagem “Na página 20 mostra Garcia indo pra ... de frente... pra
faculdade. E antes dele, já mostra o lado dele. Aqui tá de costas, já cá mostra o lado
dele. O lado do rosto dele...”, assim materializado na imagem:
Figura 229: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 17.
Também Siérico fez menção à continuidade da mesma passagem “Do lado de uma
árvore, depois da árvore, de costas e depois subindo a escada, ao lado de ... Fortunato.
196
Por trás de Fortunato” que ganhou expressividade com a mesma técnica, como se pode
observar :
Figura 230: A causa secreta
Escala Educacional, pág. 18.
As referidas contribuições, destacadas pelos leitores, em dado momento foram
classificados como elementos facilitadores para a leitura do texto literário. Contudo, a
aluna Raquel observou as variantes no ato interpretativo do quadrinista e do leitor.
Neste jogo de percepções confrontadas, o leitor acresce para si a interpretação do
quadrinista, o que favorece uma melhor apreensão do texto literário. Assim ela
descreveu o processo:
Uma diferença que você nota é a seguinte: quando você lê o texto
puro, você faz a sua interpretação; mas quando você lê o quadrinho,
além de você fazer a sua, a visão de quem ilustrou passa para você. Eu
acabo pegando um pouquinho a visão da pessoa que ilustrou. Eu faço
a junção da minha ou, às vezes, eu mudo a percepção de tal cena
dependendo do que ele ilustra. Ele passa a interpretação dele para mim
também.
Neste momento das discussões, notaram-se duas posturas dos leitores, frente ao
texto quadrinístico: uma mais crítica, do leitor que confronta sua leitura com a do
ilustrador e ora concorda, ora discorda; a outra do leitor que acha o texto dos quadrinhos
perfeito, exatamente o que ele necessitava para compreender o conto, aceitando, na
íntegra, a leitura do ilustrador. Discutido o motivo da aparente facilidade das
quadrinizações, os posicionamentos se alinharam no argumento do mínimo esforço para
a imaginação, como se observou nas falas de Leiliane:
Sim. É algo que... são detalhes como Carol colocou aí. Três quadrinhos que estamos dando importância a mais detalhes e tal... e quando vê ilustrado a gente consegue captar detalhes que nós não
197
tínhamos conseguido captar. Então é algo que vem mais fácil... Eu acho...
.......................................................................................................
Assim... Eu e Raquel, eu acho que tu chegou a ler O primo Basílio,
não foi? Nós assistimos o filme e lemos o livro. O livro, ele também é
rico em detalhes como Siérico colocou, só que... quando vai assistir o
filme é algo que... é mais fácil de entender porque até então quando
estamos apenas lendo... lá começa também dizendo que o primo
Basílio estava em tal lugar e no filme a gente não precisa imaginar
assim... porque a gente já tá vendo tudo ali.
Siérico também não deixou de destacar a riqueza do texto literário, entretanto,
para ele “O quadrinho... é como se fosse o filme. É muito mais fácil você entender e
apreciar o filme do que ler o livro. O livro é rico em detalhes, mas o filme lhe dá tudo
pronto ali... cada expressão, cada coisa, cada gesto. E o livro não.”.
Ao focar o processo imaginativo no ato da interpretação, os leitores enfatizaram
que se dá de diferentes formas e intensidade em cada tipo de texto: literário escrito,
filme ou quadrinho. Contudo, para Raquel, o adaptador da obra literária percebe em sua
leitura a intensidade do conteúdo e o rearranja em novos elementos (signos icônicos)
para melhor expressá-la no novo texto que produz. Independente do texto, é o hábito de
leitura que vai ser determinante para a interpretação, a imaginação, que deverá vencer
os obstáculos, as indeterminações para a produção do sentido. Assim ela discorreu:
Eu acho assim que a diferença entre O primo Basílio - livro e filme:
quem adapta, olha o tempo que vai ter, se você vê o livro é denso, ele
tem que cortar, ele tem que resumir, às vezes ele muda coisa, então
fica mais fácil. Agora eu acho que o quadrinho ajuda, é importante,
mas tanto um quanto o outro se tornam difícil para as pessoas que não
tem hábito de leitura. Se eu pego uma pessoa que tem a mesma idade
que eu, mas ela não tem hábito de ler nenhum livro, revista, nem o
livro didático, vou dar um livro de Machado de Assis, a pessoa vai
ficar perdida como um cego em tiroteio. Mas quando você já tem o
hábito de leitura, quem já leu muito livro antigo... Aí tem termos que
os alunos ficam azuados. Quando fala “tílburi” e, no caso, que não
fala carroça nem carruagem. Quando fala tílburi e você já sabe o que é
, quando fala de doença, a bexiga, você vai habituando e não precisa
mais consultar dicionário embaixo. Mas o primeiro livro antigo assim,
de Machado de Assis, que eu li, que foi um fenômeno, só que o
primeiro diálogo dele eu falava “eu não vou conseguir ir adiante. Por
que é muito difícil e extremo, principalmente no livro daquela época
era um diálogo bem mais monótono e cansativo. A partir do momento
que você já tem um hábito de leitura, você vai se acostumando e se
torna uma coisa corriqueira.
198
A aluna Marília destacou a quadrinização como mecanismo de facilitação do
conto, e apesar de transparecer a leitura pejorativa dos quadrinhos, estes tomados como
causadores do empobrecimento do exercício mental, também defendida por Franciele,
percebeu que o leitor diante da leitura quadrinística tem a participação ativa da recriação
motivada pela presentificação do texto no ato de ler. Assim as alunas, respectivamente,
discorreram:
Eu escolho o quadrinho, pelo fato de facilitar a intepretação do conto.
Eu acho que a imagem, como se diz, reduz o nosso exercício com a
mente. Em vez da gente se esforçar mais em imaginar aquela cena, a
gente já recebe pronta e aí com base naquela figura a gente vai
recriando aquilo como se fosse um filme, acontecendo naquele
momento, como se fosse ao vivo.
......................................................................................................
É mais fácil porque... como a menina aí falou, porque exercita a
mente, né. E é mais interessante... você tá vendo aquela imagem é
melhor. Você tá vendo cada imagem, cada frase do texto. Basta só
interpretar porque quando a gente lê, não acontece como o texto
[escrito]. Eu mesmo, é mais fácil interpretar com imagens.
Posicionamento e adesão similares ao de Marília ocorreram com Ana Carolina,
que pode ser vista como uma típica leitora contemporânea, afeita às benesses da era
tecnológicae imagética. Ela reconheceu nas leituras das quadrinizações um momento de
fruição estética propiciado pelo icônico:
Pra mim também... a gente... parece que é uma aventura que a gente tá
vendo... Pra mim o quadrinho é a mesma coisa de tá assistindo um
filme. E a gente vê, a gente se emociona e é muito bom mesmo. Eu
gosto. Minha mãe mesmo reclama porque eu sou muito viciada em
computador, e eu sinceramente pra não ficar no computador disse pra
ela comprar um bocado de revista em quadrinho pra eu ler. Ela falou
que ia comprar mesmo. Eu amei que gosto. Isso aqui prende minha
atenção. Eu, assim que cheguei em casa, li esse negócio aqui três
vezes: duas vezes ontem e uma antes de vir pra cá. Porque eu
realmente gosto mesmo.
Aiala se mostrou mais ponderada em relação à suposta facilidade da leitura dos
quadrinhos e destacou a necessidade de percepção apurada para a linguagem deste tipo
de texto:
É... Eu já tenho minha opinião. Eu acho fácil e difícil. Porque assim...
no ilustrado você tem que olhar cada traço, cada pontinho... o rosto
mesmo, mostra sombra em Fortunato. Porque essa sombra? É mais
intrigante descobrir esta sombra. E no texto não, você vê e imagina
normal, tranquilo. Já nesse não.
199
E teve a corroboração na fala de Raquel, que foi mais contudente ao apontar para
a necessidade de dupla habilidade de leitura que o texto quadrinístico requer, similar aos
filmes:
“Deixa eu cortar aqui. Eu não acho mais fácil porque quando você lê
um texto, faz análise apenas do texto. Aqui, o mesmo texto e ainda
tem que fazer análise da imagem. Agora, o que muda é que pra muita
gente é mais prazeroso vendo a imagem. Ai quando você gosta mais
de ver imagem, pra você se torna mais fácil. É igual: pergunta aí quem
gosta mais de assistir filme legendado ou dublado? Filme dublado é
bem mais fácil. Agora quando você vai no legendado, tem que ler
aquela legenda e não perder o fio da meada da imagem. É o que muita
gente não gosta e aí fala: “eu não consigo acompanhar”, “eu não
consigo fazer a conexão”. Então acho que fica mais cômodo e
prazeroso para o leitor”.
Leiliane cogitou a necessidade de método de leitura para uma melhor apreensão
do texto literário ou da quadrinização, como tentou explicitar:
“Se me desse esse conto pra ler, eu não ia ter um apoio, um suporte
em nenhuma pessoa pra discutir. Ia achar a causa secreta qualquer
uma – o amor de Garcia por Luiza. E ali, para mim, ia ficar assim. E ia
dar vontade que outras pessoas lessem, mas para mim a causa secreta
era aquela. Eu não ia ficar me remoendo, procurando de quem seria a
causa secreta. Agora vem na cabeça: se estivesse só as imagens sem a
escrita, como é que nós iríamos narrar, se cada imagem (um homem
de frente, dedos estalando...), as imagens são muito ricas? A gente ia
ficar imaginando”...
Quando questionados se os quadrinhos são mera facilidade, economia de ato de
pensar ou uma possibilidade de interação com a alteridade ao se buscar confirmação da
leitura no texto iconográfico, Siérico buscou um consenso dos posicionamentos,
afirmando que “É facilidade e confirmação na leitura do ilustrador. “Um pouco dos
dois. É mais fácil você olhar, ler aqui e ver a imagem. Você olha, imagina ‘será isso
mesmo’? E aí você pega e olha a imagem e é isso mesmo.”
Ana Carolina, por sua vez, percebeu uma relação de interdependência entre o
verbal e o não-verbal, muito bem engendrada na quadrinização literária, uma vez que:
“A imagem, ela depende muito do texto. É como ela falou, se tivesse
só a imagem aqui, eu ia ficar perdida sem saber o que estava
acontecendo. Então no caso também do conto, só a escrita a gente
sempre imagina as imagens. E a imagem só a gente ficaria perdida.
Um depende do outro”.
Independente do conto literário ou da quadrinização, Aiala mostrou-se muito
motivada pela leitura do texto machadiano “A causa secreta”, muito instigante em suas
200
indeterminações, o que a levou a socializá-lo com o pai, a mãe e o namorado, dos quais
colheu as seguintes leituras:
“Ontem eu dei esse livro pro meu pai ler. E ai ontem foi uma
discussão! Ele disse que Maria Luiza parece que tinha uma doença e
Fortunato estaria pesquisando esta doença ou procurando um método
pra curar esta doença, que quando Garcia falou assim...que ele tinha
salvado um homem, mas ele não ficou feliz. Mas que Fortunato não
queria que descobrisse esse ato de bondade dele”.
..................................................................................................
“Ontem minha mãe leu e ela disse que a causa era Garcia que
gostava de Fortunato. Eu disse que não, não é. Tá aí um segredo,
mas não é”.
Conforme Iser, mesmo sabendo que o texto representa algo e o significado
daquilo que é representado existe independente de cada reação singular que desperte,
por outro lado, esse significado, independentemente de cada concretização, é mais uma
experiência de leitura individual identificada com o próprio texto. Observa-se que os
leitores, diante das indeterminações dos textos, sentem-se extremamente estimulados e
provocados, como também se observa no comentário de Leiliane ao afirmar que a causa
secreta do conto “Poderia ser um acordo dos três [personagens]. Cada um poderia ter
uma [causa secreta]. É algo que cada vez que a gente lê, cada vez que a gente discute,
aparece algo que ainda não foi discutido, aparece algo que ainda falta se descobrir.
Gente! É muita coisa!”.
Assim, muito mais que a elitização do texto literário, ou o acesso a ele
propiciado pelos textos híbridos como a quadrinização aqui estudada, a recepção do
texto machadiano ou de qualquer literatura dependerá da socialização destes textos com
o universo dos leitores. É o do método de leitura que torna um texto ou autor mais
apreciado conforme Marisa Lajolo (rever p.79). Este ponto de vista é manifestado, em
outras palavras, por Raquel:
O que tornou a leitura diferente é isso. Porque... é... quando a gente se
reúne para discutir tem sempre alguém instigando. Então agente tá
sempre buscando um elemento a mais dentro da leitura. Se eu pegasse
o conto para ler na biblioteca, eu não ia ficar pensando qual era a
causa secreta. Realmente ia terminar, conhecer a história e fechar o
livro. Ia ler ali e acabou. Ia comentar e iria morrer ali. Como tá todo
mundo instigando, ... a gente presta mais atenção, porque às vezes
não tem opinião, mas a gente quer mostrar opinião, e a gente tem que
conhecer o evento para dizer não é assim não. É assim,no texto de
201
Machado de Assis é isso. A gente vê de forma diferente. É igual a
Dom Casmurro, um dia a gente sentou pra discutir. Um dizia que
traiu, outro dizia que não. Cada um quer defender seu ponto de vista...
Desta maneira, foi observado no confronto estabelecido, que os leitores da
pesquisa, à princípio se portaram tímidos frente às indeterminações do texto literário,
não enfrentando a maioria delas. No máximo, em alguns momentos buscaram descrever
as dificuldades. Graças às provocações da mediadora e debates promovidos frente ao
texto é que as barreiras foram vencidas.
Já frente à quadrinização, os leitores mostraram-se mais receptivos, sem
desconsiderar a necessidade da leitura do texto literário e a percepção dos detalhes da
linguagem quadrinística.
202
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mundo contemporâneo apresenta-nos novas possibilidades de vivenciar as
variadas culturas por meio das re-elaborações dos objetos culturais. Tais possibilidades
vêm motivadas pelas aproximações espaciais, sociais e temporais promovidas pelo
mercado globalizado que reconfigura também a ideia de consumidor. As expressões das
culturas, produtos consumíveis, antes delimitadas pelas fronteiras geográficas,
cronológicas e sociais, passam por revisões na tradição que as redirecionam para um
diálogo com novas linguagens. Tal diálogo ocorre com o fito de intercambiar as
experiências diversas do presente-passado e fundamenta-se na busca da sobrevivência
de objetos culturais tradicionais frente às mais diversas criações tecnológicas.
Neste contexto, variados produtos culturais saem de suas redomas clássicas, das
margens populares e da subalternidade das massas e são traduzidos em novas
linguagens por meio do diálogo que possibilita e promove a hibridização dos textos.
Literatura, cinema, quadrinhos, música, telenovela, minisséries, desenho animado
tornam-se espaços artísticos e comunicacionais sem fronteiras para novas produções que
ampliam a recepção da arte e do conhecimento, antes fechados em castas, ou restritos
aos guetos populares e massificados.
Trata-se de um panorama lido em dois vieses: o do mercado avassalador e
seletivo, o qual, por meio dos recursos midiáticos e tecnológicos de que dispõe, amplia
seu poder econômico e ideológico derrubando as fronteiras culturais, impondo produtos
perpassados por valores típicos das classes dominantes, considerados como detentores
da qualidade; o outro viés é o do mercado ciente da diversidade cultural e que a utiliza
para ampliar seu raio de ação, apostando em novas sensibilidades e no resgate das
expressões marginalizadas para circular numa comunicação planetária que o dinamiza.
A literatura clássica, foco de atenção neste trabalho, caracterizada como
expressão restrita a determinados grupos, passa a dialogar com outras artes e saberes e
ganha nova roupagem para tornar-se mais atraente aos olhos de um leitor que busca e
encontra entretenimento gerado pelas facilitações e dinamismos oriundos do mercado
globalizado, tecnológico e cibernético. Dos variados diálogos construídos, nosso olhar
voltou-se para o estudo das quadrinizações literárias ou literatura em quadrinhos,
203
produções que no Brasil surgiram na década de 1940 do século XX e ganharam
propulsão no mercado editorial na primeira década deste século XXI. O romance, o
conto, autos, peças teatrais, poesia e até literatura de cordel são repaginados na
linguagem quadrinística, que promove um novo texto que prima pela iconicidade para
atender ao mercado multicultural.
Se de um lado, a literatura clássica se restringia ao livro acessível a uma pequena
parcela de leitores acadêmicos, de outro os quadrinhos eram objeto das massas em
busca de entretenimento rápido e direto, que não costuma se fixar nas delongas e
meandros das conotações verbais rebuscadas; a literatura em quadrinhos torna-se, desse
modo, um intermédio. Trata-se de um novo objeto cultural híbrido que utiliza o melhor
das duas linguagens, no sentido de instigar e atrair o leitor contemporâneo.
Determinar o que vem ser a literatura em quadrinhos torna-se uma ação
espinhosa. Porém, podemos embeber-nos dos diferentes teóricos aqui visitados para, em
diálogo com seus pensamentos, situar este objeto cultural. À luz das postulações de
Canclini, as quadrinizações literárias podem ser tomadas como textos híbridos, que se
prestam à socialização da arte, como forma de fazer circular trocas de experiências e
vivências de novas sensibilidades necessárias para a subsistência de culturas. Tomando
as lições de Martin-Barbero, a literatura em quadrinhos torna-se um novo texto, de
natureza híbrida, que vem inserir a literatura na trama da comunicação cultural, levando
em consideração o tempo-lugar das novas gerações ao dotar o texto visto como de “de
outra época” de uma linguagem mais próxima dos jovens. Observando as teorizações de
Walter Benjamin, os quadrinhos literários destacam-se como forma de reprodutibilidade
técnica que diminuiria os sentidos auráticos da literatura clássica enquanto produto da e
para uma elite e que muito serviu aos interesses de dominação cultural. Trata-se de um
novo produto cultural que ganha espaço por meio de releituras e ressignificações
próprias do processo de tradução intersemiótica que favorece a uma leitura crítica da
história via posicionamento poético-político, conforme Plaza.
Fica patente que as quadrinizações são resultado do processo de transmutação de
um texto para outro (da literatura para o quadrinho), novas produções que se
concretizam por ser o resultado da junção de códigos distintos (do verbal para o
icônico). Trata-se de um processo de semiose, no qual o signo verbal transita para o
204
signo icônico, sem que haja perdas nas linguagens ou prejuízo para a comunicação. Tal
processo é marcado pela subjetividade da leitura e é transformado pela criatividade
artística do quadrinista, que transubstancia as conotações do texto literário verbal para o
icônico dos quadrinhos.
A tradução intersemiótica, denominação deste processo, caracteriza-se como
geradora de novos produtos culturais para o mercado do entretenimento. Ela tem sua
razão ontológica na concepção da História como mônada, conceito teorizado por Walter
Benjamim para quem o passado é um conjunto de possibilidades que podem ser
revisitadas em outro momento. Neste sentido, a literatura em quadrinho pode ser
tomada como um veículo de revisitação histórica, que metaforiza o homem, as
ideologias, via texto hibrido, para melhor compreensão da cultura herdada com fim na
construção do homem do presente. Ler literatura numa linguagem mais próxima da
comunicação contemporânea favorece a este conhecimento, e também à percepção desta
sensibilidade, que extravasa a mera produção da indústria cultural alienante, como
alguns proclamam. O leitor deste texto não é um mero consumidor, mas o sujeito ativo
de uma recepção veiculadora de sensibilidades próprias e que por meio da empatia
entabula diálogos que conduzem à alteridade.
Os elementos diferenciadores destas produções podem ser resumidos no
tratamento dado ao texto-base (literatura), ora conservado, ora enxugado nas ações
centrais, ora atualizados nos argumentos. Neste sentido, a fidelidade, considerada
problema nas quadrinizações pelo fato destas serem relacionadas à cópia-preservação do
texto traduzido pelos leitores mais conservadores, tem status de invenção, de
transcodificação criativa, conforme Plaza (2008). Tal teórico afirma que o texto
adaptado “não pode ser fiel ou infiel ao objeto, pois como substituto só pode apontar
para ele” (p.32), uma vez que não oculta o texto-base e “se manifesta em termos de
complementação com ele, alargando seus sentidos e/ou tocando o original num ponto
tangencial de seu sentido [...]” . (p.30)
Ocorre, então, via tradução intersemiótica, a materialização das metáforas
verbais do literário que é tratado também esteticamente no signo icônico. Assim, os
elementos da linguagem icônica quadrinística como timmming, perspectiva, planos de
cena, postura corporal, expressões faciais, símbolos cinéticos, metáforas visuais, cores,
205
balões, montagem de requadros, vinhetas, entre outros, são utilizados no sentido de
potencializar o conteúdo do texto literário, que pode ser colocado ou não com cortes,
nas legendas e diálogos, ao tempo em que aponta para novas nuanças do conteúdo.
A literatura machadiana, por este caminho, ganha novos contornos que
intensificam a potencialidade do texto verbal. Reconhecido pela ironia e relativização de
valores, pelas metáforas genuínas, pela análise ácida da alma humana, o texto de
Machado de Assis, aclamado no cânone literário, porém marcado por indeterminações
que desconsertam a leitura comumente tomada como um ato de única mensagem e
torna-se distante para o leitor contemporâneo, seja por suas estratégias narrativas
complexas, seja pela linguagem dotada de elaborações para o leitor não iniciado. Muitas
são as tentativas de tornar este texto mais próximo, mais acessível: na televisão com
novelas e minisséries, no cinema com adaptações de filmes e nos quadrinhos com a
literatura quadrinizada. São as propostas de revisitação ora louvadas pelos leitores
abertos aos diálogos textuais, pelo potencial criativo-artístico destas reconstruções, ora
rechaçadas por leitores conservadores pela suposta alienação e massificação que são
atribuídas a estes textos.
A literatura em quadrinho, ou quadrinização literária, é um dos espaços de
revisitação do texto machadiano que vem ganhando espaço de destaque, havendo títulos
que passam por várias traduções, como também ocorreu no cinema. Atualmente, O
alienista ganhou quatro versões quadrinizadas. Memórias Póstumas de Brás Cubas é
encontrada em três e Dom Casmurro em duas versões. Muitos contos já são
disponibilizados no formato de literatura em quadrinhos e Machado de Assis é o escritor
brasileiro que mais tem merecido o olhar das quadrinizações, conforme constatamos ao
longo desta pesquisa.
Os processos de transmutação das obras machadianas para os quadrinhos
tornam-se experiências bem peculiares para os quadrinistas, artistas-autores que têm
com o texto-base experiências de leituras específicas, cada um com suas percepções.
O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas tem a linguagem original
mantida quase que integralmente na maioria dos trabalhos, ocorrendo diferença apenas
nas sínteses-roteiros. O diferencial se faz presente a partir da constatação dos recursos
utilizados criativamente por cada quadrinista.
206
Em O alienista, a singularidade de cada quadrinização se faz presente no
sentido de que o leitor vive a sensação da leitura de um novo texto, ao se deparar com
cada versão; seja a partir da percepção de traços mais caricaturais das personagens da
Companhia da Editora Nacional, ou da criação de uma atmosfera marcada por breve
tônica de terror na produção da Ática, ou pelo texto mais próximo ao texto-base em sua
caracterização geográfica e histórica da Escala Educacional, ou ainda no texto que
reflete a visão realista-naturalista da personagem em sua interrelação com as outras
personagens e interação com o meio da Agir. Cada texto quadrinizado deste conto
ganha uma tônica diferenciada de acordo com a leitura e a técnica artística do
quadrinista.
A quadrinização de O Conto da Escola, da Peirópolis traz como particularidade
a convergência da técnica narrativa do conto e o estilo do desenho, ambos apontando
para a percepção do mundo infantil, haja vista que se trata da rememoração de um
episódio da infância por parte de um menino.
A causa secreta, texto machadiano escolhido para ser apreciado pelo grupo de
leitores voluntários na pesquisação, destaca-se por se tratar de um texto extremamente
instigante e gerador de diferentes percepções de leitura. A caracterização das
personagens Fortunato, Maria Luiza e Garcia, muito mais do que a assimilação dos
aspectos naturalistas no concernente à análise comportamental, apresenta-se como o
retrato de uma época, no concernente às posturas individuais e sociais das personagens.
Mais que a causa secreta, talvez coubesse denominar a obra de as causas secretas,
devido às intrincadas relações e comportamentos que movem o enredo.
Na quadrinização, um texto que aparentemente não prima pelo desenho artístico,
traduz de forma direta e objetiva o universo dúbil das relações sociais, amorosas,
econômicas e científicas que contextualizam a sociedade brasileira da segunda metade
do século XIX. Luiz Vilaçhã, quadrinista da obra, explora uma das metáforas mais
discutidas na obra machadiana: o olhar. Em várias perspectivas, ângulos, expressões, os
olhares das personagens são sempre carregados de certo mistério. Isto possibilita uma
leitura de constantes suspeitas em relação às ações e pretensões das personagens, o que
desfoca o rumo da narrativa, à princípio dirigida unicamente pela dubiedade dos
comportamentos da personagem Fortunato.
207
O leitor contemporâneo, motivado pelas leituras de textos pragmáticos e
midiáticos, frente ao texto machadiano tradicional sente-se desmotivado. Geralmente
tomado como texto do ambiente escolar utilizado para mensurar os conhecimentos
sobre a cultura da elite de uma época distante, a literatura machadiana torna-se um
fetiche para uns, ou uma adaptação aos valores dominantes para outros, que ignoram a
cena multiculturalista que ganha primeiro plano neste novo século. E nesta paisagem de
relações marcadamente interculturais, nas quais as fronteiras sociais e culturais tornam-
se fluídas pela circulação de objetos híbridos que promovem a necessidade de
ressignificações das variadas manifestações culturais, o leitor encontra, nas
quadrinizações literárias machadianas, um espaço de diálogo mais próximo e mais
fecundo.
Frente ao texto quadrinizado A causa secreta, de Machado de Assis, um grupo
de estudantes do Colégio Polivalente Edivaldo Boaventura demonstrou como a leitura
de textos híbridos, em diálogo com o texto-base, pode tornar-se um encontro produtivo.
Apesar de demonstrarem que, para a maioria, a leitura literária não fazia parte das
atividades que realizam com prazer e constância, este leitor aceita desafios conforme a
proposta realizada.
No primeiro momento, diante do texto-base, o conto A causa secreta, os leitores
reagiram com certa relutância devido às indeterminações da narrativa, as quais foram
tomadas como dificuldades. No decorrer das discussões, mediante as relativizações dos
valores, aspectos possibilitados pelo texto machadiano, e os processos de
desestabilização a que foram remetidos, tais leitores foram instigados a se distanciar de
uma única interpretação. Neste sentido, os jovens passaram a vivenciar o processo
recepcional como uma reconstrução da história, a partir dos elementos oferecidos pelo
autor. Passaram a perceber que o texto machadiano solicita de cada leitor uma leitura
arguta que pode levar a vários caminhos no processo de construção de sentidos.
No segundo momento, em contato com a quadrinização A causa secreta, de
Francisco Vilachã e Fernando Rodrigues, os leitores mostraram-se mais afeitos à leitura
por acreditarem que o entendimento do texto se efetivaria com facilidade devido ao
elemento icônico, o qual viabilizaria o prazer estético, sem exaustão, num trabalho
interpretativo caracterizado mais por incógnitas do que por encontros. Defenderam que
208
ocorre o processo imaginativo frente ao texto imagético, de forma diferenciada, devido
às especificidades da linguagem quadrinística.
As indeterminações do texto-base no que diz respeito à percepção do flashback e
do estabelecimento das falas nos diálogos foram preenchidas com mais efetividade
pelos leitores na quadrinização por oferecer condições mais objetivas de percepção
graças às imagens.
Os leitores foram unânimes na avaliação de que a quadrinização reverbera o
texto-base, ampliando o potencial do signo estético por meio de elementos outros da
linguagem. Detalhes das ações das personagens são explorados pela apresentação e
recriação de outros detalhes que vão além da descrição oferecida pelo verbal, graças aos
processos de timming, focalização e perspectiva. Intensificam-se os sentimentos e
reações das personagens por meio do close-up em partes específicas do corpo (rosto,
olhar, mãos...), das expressões faciais, dos gestos e das posturas nem sempre oferecidas
no texto-base.
No terceiro momento, destinado ao confronto dos textos, houve consenso no que
tange à crença de que a quadrinização não substitui o texto-base, o qual é considerado
necessário para uma leitura mais eficiente da ressignificação. Mesmo que a criação do
texto quadrinizado esteja vinculada ao texto-base, cada leitor demonstrou percepções
muito próprias e específicas.
Alguns leitores sentiram-se como observadores que assistem às cenas, capazes
de avaliar fatos e situações de modo mais objetivo, efeito provocado pela imagem já
elaborada, o que comprova a afirmação de certa facilidade de compreensão. Frente ao
texto-base, eles se perceberam como uma personagem da história, envolvidos
subjetivamente nas situações engendradas na história, o que em muito pode tornar a
construção de sentido um processo mais complicado.
Apesar de o texto quadrinístico ostentar condição de texto apreendido sem
demandas de suposta complicação, o prazer estético não se torna menor, posto que
demanda certas habilidades de percepção e capacidade cognitiva para compreensão das
informações provenientes do signo icônico. Muitas vezes a quadrinização amplia o
conteúdo informacional em relação ao texto-base.
209
Pelo menos duas possibilidades de leitores foram estabelecidas frente à leitura
quadrinística: o leitor acomodado, que acredita nas quadrinizações como textos fáceis
por não exigirem esforço mental, e o leitor crítico que vê a literatura em quadrinhos
como um texto repleto de estratagemas para os quais a atenção deve ser redobrada.
Um aspecto que despontou de forma a provocar outras discussões é como se dá a
prática de diálogos que os textos instaurariam. Literatura, filme, novela, música,
quadrinhos com suas linguagens específicas para atender a grupos específicos,
segregados ou não, ou textos híbridos que articulam, problematizam, confrontam
culturas de forma crítica no sentido de favorecer e acessibilizar o conhecimento e a
sensibilidade, nada repercutirá no leitor se este encontro não for permeado pela
socialização.
Enfim, a literatura em quadrinhos desponta como um objeto cultural híbrido que
apresenta condição de interculturalidade, pela necessidade de socializar as diferentes
experiências de vida por meio de linguagens que propiciam uma maior circulação de
conhecimento, de saberes e de sensibilidades. Tal produto cultural é mais uma das
opções de trânsito destes saberes tão em voga na teia da comunicação global. Mas vale
salientar que é na alteridade que o encontro gera significação e se viabiliza. Muito mais
que o formato do texto, é a forma como dispomos ou intencionamos a prática de leitura
que tornará fecundas estas vivências.
210
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