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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN CAMPUS AVANÇADO PROF.ª MARIA ELISA DE A. MAIA CAMEAM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS PAULA REGINA DA SILVA TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL PAU DOS FERROS 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

CAMPUS AVANÇADO PROF.ª MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

PAULA REGINA DA SILVA

TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA

FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

PAU DOS FERROS

2013

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PAULA REGINA DA SILVA

TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA

FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como

requisito exigido para a obtenção do grau de Mestre

em Letras.

Orientador: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo- Gomes

PAU DOS FERROS

2013

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Silva, Paula Regina da

Tendências do processo da coalescência em construções da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil. / Paula Regina da Silva . - Mossoró, RN, 2013. 111 f. Orientação: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo Gomes Monografia (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia. Programa de Pós-graduação em Letras.

1. Linguística Funcional Centrada no Uso. 2. Gramaticalização. 3. Coalescência. 4. Fala - Remanescentes Quilombolas. I. Gomes, João Bosco Figueiredo. II.Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.

UERN/BC CDD 418

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319

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A dissertação ‘‘Tendências do processo da coalescência em construções da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil’’, autoria de Paula Regina da Silva, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

Dissertação defendida e aprovada em 29 de maio de 2013.

BANCA EXAMINADORA

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Dedico ao meu Deus todo poderoso, pois durante todo meu

trajeto de vida, tenho plena convicção de que Ele sempre

esteve comigo. E cada vitória conquistada foi concedida não

por outro, mas segundo a Sua vontade e consentimento.

Portanto, toda honra e toda glória sejam dadas somente ao

Senhor.

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AGRADEÇO

Primeiramente a Deus, sem auxílio de quem, eu, certamente, não teria escalado mais esse

degrau de minha vida intelectual e profissional;

Ao meu esposo, Dariosmar de Souza Duarte, pela compreensão, apoio e amor durante essa

etapa da minha vida;

Ao meu filho, Ângelus Christian, a quem amo incondicionalmente, tendo sido gerado

nesse período meio atribulado de pesquisa e estudo intenso e suportou junto a mim as

difíceis provações;

À minha família, em especial, a minha MÃE, símbolo de força, dedicação e amor;

À minha família de fé, que orou por mim e pelo desenvolvimento desse trabalho;

À minha estimada amiga de mestrado, de fé e de viagens, Márcia Moraes, pelo amor,

carinho, atenção e, sobretudo, pelas palavras de encorajamento e afeto proferidas na hora

certa;

Às irmãs, Secleide e Ciclene Alves, que me incentivaram a participar do processo seletivo

do PPGL no Campus de Pau dos Ferros, e me acolheram em seu lar durante parte do

período em que me mantive nessa cidade;

À diretora e colegas de trabalho da Escola Estadual Dom João Costa, onde trabalho, por

terem me apoiado e colaborado significativamente para que eu pudesse realizar esta

pesquisa;

Ao prof. Dr. João Bosco Figueiredo-Gomes, por ter aberto um novo horizonte de

conhecimento em minha vida intelectual e profissional, pela dedicação, compreensão e

relevante orientação;

À profª. Drª. Maria Alice Tavares (UFRN), que tive o prazer de conhecer, e que me

proporcinou orientações importantes para a escrita desta dissertação;

Ao prof. Luciano Pontes, que sabiamente também contribuiu para a construção desse

trabalho;

Ao professor Wellington Mendes, pessoa extremamente generosa que, mesmo sem ter uma

relação tão próxima, sempre esteve disponível para atender meus pedidos;

À professora Socorro Maia, um exemplo de dedicação e compromisso para com a docência

e para com os discentes;

Ao professor Gilton Sampaio, pelo incentivo e pelos argumentos precisos, na hora precisa;

Ao professor Guilherme, por proporcionar discussões relevantes que engrandeceram minha

compreensão, especialmente, no campo metodológico;

A todos aqueles que de forma direta ou indiretamente torceram e torcem pelo meu êxito.

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RESUMO

Estudos mais recentes sobre gramaticalização têm-se preocupado com o desenvolvimento

não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais. Esta pesquisa objetiva

analisar construções gramaticais cujo processo de vinculação de sentido e forma se dá, via

gramaticalização, por meio do processo da coalescência. A fundamentação teórica deste

trabalho tem como suporte a abordagem da Linguística Funcional Centrada no Uso, que

reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas e que abriga, sobretudo, o

estudo da gramaticalização desse modo, a pesquisa se fundamenta nos estudos de Givón

(1995), Heine et al. (1991), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee

(2010) Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005),

Martelotta (2005) dentre outros. A noção de coalescência se baseia, principalmente, em

Lehmann ([1982] 2002). A pesquisa analisa, sincronicamente, dados amostrais do Corpus

A fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, organizado por Sousa;

Mendes e Fonseca (2011), e caracteriza-se como descritiva qualitativa, baseada em dados

quantitativos, uma vez que a frequência é um dos fortes indícios impulsionadores de

gramaticalização. Para tanto, utiliza o pacote estatístico do programa "Statistical Package

for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Os resultados empíricos da

pesquisa mostram uma certa regularidade no uso de coalescências fonético-fonológicas

pelos informantes estudados, porém apenas 43% dessas unidades se configuram como

construções gramaticais. Por motivações discursivo-pragmáticas, há uma forte tendência

de gramaticalização das formas coalescentes, demonstrada pela trajetória ESPAÇO >

DISCURSO. O processo de vinculação de sentido e forma que dá origem às novas

construções da comunidade estudada tende a desenvolver-se no continuum: significado

referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Conclui-

se que o processo de gramaticalização das construções coalescentes do grupo de indivíduos

estudados segue a regularidade das mudanças da língua portuguesa e, como não há ainda

um estudo das construções encontradas com as de outros grupos de fala similares (mas não

remanescentes dos quilombolas), não se pode afirmar que há construções coalescentes

características ou peculiares da fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.

Palavras-Chaves: Linguística Funcional Centrada no Uso. Gramaticalização. Coalescência.

Fala. Remanescentes Quilombolas.

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RESUMEN

Estudios recientes sobre gramaticalización están preocupados con el desarrollo no sólo de

los elementos lexicales, sino también con construcciones gramaticales. Esta pesquisa

objetiva analizar construcciones gramaticales cuyo proceso de vinculación de sentido y

forma se da, vía gramaticalización, por medio del proceso de la coalescencia. La

fundamentación teórica de este trabajo tiene como soporte el abordaje de la Lingüística

Funcional Centrada en el Uso, que reúne tanto presupuestos funcionalistas como

construccionistas y que abarca, sobretodo, el estudio de la gramaticalización de modo que

la pesquisa se funda en los estudios de Givón (1995), Heine et al. (1991), Traugott e

Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010) Langacker (1987), Goldberg (1995;

2006), Croft (2001), Tomasello (2005), Martelotta (2005) dentre outros. La noción de

coalescencia se basa, principalmente, en Lehmann ([1982] 2002). La pesquisa analiza,

sincrónicamente, datos de muestras de Corpus “A fala dos remanescentes quilombolas de

Portalegre do Brasil”, organizado por Sousa; Mendes y Fonseca (2011), y se caracteriza

como descriptiva cualitativa, basada en datos cuantitativos, una vez que la frecuencia es

uno de los fuertes indicios impulsores de gramaticalización. Para tanto, utiliza el dato

estatístico del programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al.

[1968] 2007). Los resultados empíricos de la pesquisa muestran una cierta regularidad en

el uso de coalescencias fonético fonológicas por los informantes estudiados, pero sólo 43%

de esas unidades se configuran como construcciones gramaticales. Por motivaciones

discursivo pragmáticas, hay una fuerte tendencia de gramaticalización de las formas

coalescentes, demostrada por la trayectoria ESPACIO > DISCURSO. El proceso de

vinculación de sentido y forma que da origen a las nuevas construcciones de la comunidad

estudiada tiende a desarrollarse en continuum: significado referencial > significado textual

discursivo > significado pragmático discursivo. Se concluye que el proceso de

gramaticalización de las construcciones coalescentes del grupo de individuos estudiados

sigue la regularidad de los cambios de la lengua portuguesa y, como no hay aún un estudio

de las construcciones encontradas con las de otros grupos de habla similares (pero no

remanecientes de los “quilombolas”), no se puede afirmar que hay construcciones

coalescentes características o peculiares del habla de los remanecientes “quilombolas” de

Portalegre/RN.

Palabras Claves: Lingüística Funcional Centrada en el Uso. Gramaticalización.

Coalescencia. Habla. Remanecientes “Quilombolas”.

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LISTA DE FIGURA E ESQUEMA

Figura 1 – Motivações em competição ................................................................................ 23

Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção ..................................... 40

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LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização ................................................. 46

Quadro 2 – Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático ........................................ 47

Quadro 3 – Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático ........................................... 47

Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente ....................................................................... 58

Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente ........................... 58

Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN

............................................................................................................................................. 65

Quadro 7 – Significados do verbo Deixar (FERREIRA, 2010) .......................................... 94

Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes quilombolas

de Portalegre/RN .............................................................................................. 66

Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes

quilombolas de Portalegre/RN .......................................................................... 67

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO ..................................................................................... 11

1.1 O objeto de pesquisa ...................................................................................................... 11

1.2 Background .................................................................................................................... 12

1.3 Fundamentação teórica .................................................................................................. 13

1.4 Objetivos ........................................................................................................................ 14

1.5 Metodologia ................................................................................................................... 14

1.5.1 Corpus ......................................................................................................................... 15

1.5.2 Etapas da pesquisa ...................................................................................................... 16

1.5.3 Tratamento dos dados ................................................................................................. 17

1.6 Relevância acadêmica e social ...................................................................................... 17

1.7 Organização da Dissertação........................................................................................... 18

CAPÍTULO 2 – A GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES NA

PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO ............. 20

2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso ............................................. 22

2.2 Gramaticalização ........................................................................................................... 25

2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade ....................................................................... 30

2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização ..................................................... 33

2.3 Construção gramatical numa perspectiva centrada no uso ............................................ 38

CAPÍTULO 3 – COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E

ESTUDOS .......................................................................................................................... 42

3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995) .......................... 45

3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa ......................................................... 50

3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no

Português Brasileiro ............................................................................................................ 57

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA

DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN ....................... 64

4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN ........... 64

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4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de

Portalegre/RN ............................................................................................................... 66

4.2.1 Né? / Nera? ................................................................................................................ 69

4.2.2 Quiném ...................................................................................................................... 72

4.2.3 Cumé qui / Qué qui .................................................................................................... 74

4.2.4 Praculá / Praqui praculá ............................................................................................. 77

4.2.5Puraí / Puraqui / Puraculá ............................................................................................ 80

4.2.6 Cumé? ......................................................................................................................... 86

4.2.7 Daculá ........................................................................................................................ 87

4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora .......................................................................... 89

4.2.9 (a)bombasta ................................................................................................................ 91

4.2.10 Peraí ......................................................................................................................... 92

4.2.11 Daqui praculá ............................................................................................................ 92

4.2.12 Xeu vê / Destá ......................................................................................................... 93

4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de remanescentes

quilombolas de Portalegre/RN ..................................................................................... 97

CAPÍTULO 5 – CONCLUSÃO......................................................................................99

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 102

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11 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os estudos sobre gramaticalização têm-se preocupado com o

desenvolvimento não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais.

Martelotta (2011) afirma que alguns autores vêm incorporando aspectos da teoria

cognitivista aos estudos do desenvolvimento de mudanças nas línguas, relacionando-os ao

surgimento das construções gramaticais. Nessa concepção, elas constituem a unidade

preliminar da gramática, que pode ser caracterizada por qualquer elemento formal

diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma

estrutura informacional. Assim, a noção de construção cobre desde morfemas simples,

palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado

composicional, até padrões sintáticos abstratos.

1.1 O objeto de pesquisa

Considerando que a gramaticalização vem estudando também construções

gramaticais e dado o objeto desta pesquisa que é: as construções coalescentes presentes na

fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, desenvolvemos esta pesquisa

seguindo a perspectiva da gramaticalização das construções gramaticais. Assim, a pesquisa

tem como interesse estudar a gramaticalização das construções coalescentes utilizadas na

modalidade oral de analfabetos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN.

Aliado ao interesse de estudar o processo de gramaticalização das construções

gramaticais na língua portuguesa, reside também a preocupação de verificar o processo da

coalescência que pode surgir no movimento de mudança dessas construções.

Esse interesse pelo estudo das construções, envolvendo o processo da coalescência,

surgiu a partir do contato com o Corpus A fala de remanescentes quilombolas de

Portalegre do Brasil, organizado por Souza; Mendes; Fonseca (2011), e a constatação da

abundante recorrência de construções coalescentes utilizadas na fala de indivíduos

descendentes quilombolas analfabetos, conforme os negritos de (1).

(1)

(...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas

casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui

fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/

eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é

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12 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a

mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-de-

puêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma.

(H61-05-036-IQ3-69-44)1

Na amostra (1), classificamos as formas pras, pros e quisso, como exemplos de

coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens

envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma

unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e

sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e

não + é = né? marcador discursivo).

Com base nessa constatação, optamos por investigar esse fenômeno na fala dos

remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, devido a alguns questionamentos que nos

instigaram a refletir, quais sejam: que funções/significados as formas resultantes da

coalescência linguística desempenham no uso da língua? Que processos/mecanismos

podem explicar o surgimento da coalescência na língua? Quais são os indícios/tendências

de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes

quilombolas de Portalegre/RN?

1.2 Background

Assim como são recentes os estudos sobre gramaticalização de construções

gramaticais realizados por pesquisadores brasileiros, também são escassos os estudos

recentes que investiguem especificamente o processo de coalescência e, ainda mais, se

atentarmos para a associação dessas duas temáticas.

Diante dessa incipiência, encontramos estudos, que têm se desenvolvido no Brasil,

cujos objetos de análise tratam-se do desenvolvimento da gramaticalização em certos itens

ao longo do tempo, contudo, notamos que esses itens ao se modoficarem fizeram uso do

processo de coalescência na gramaticalização das palavras analisadas. Entre esses

trabalhos, destacamos o de Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008).

Nunes (2003) realiza um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente,

reconstruindo o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português

contemporâneo. Analisa o grau de variação na fala oral entre formas sintética e perifrástica

1 As amostras estão codificadas na sequência: número da ocorrência, sexo(M/F), idade, número do

informante, identificação do inquérito, linha e página.

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13 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

na cidade de Pelotas e faz o confronto das formas encontradas ao longo do trajeto

do futuro do presente, identificando as mudanças e os elementos desencadeadores do

processo que determinam a sobrevivência de uma forma em detrimento de outra. Em linhas

gerais, trata das formas verbais formadas pelo futuro do presente, verbos estes que,

proferidos na forma sintética atual, passaram pelo processo de coalescência, havendo uma

fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal, tornando-se uma única palavra. É por isso

que enquadramos esse estudo como referente à coalescência mesmo sem a autora tê-lo

produzido com esse enfoque.

Rocha (2006) investiga a motivação conceptual que levou os itens mas, porém,

contudo, todavia, entretanto, no entanto a apresentarem traços de oposição que justifiquem

o fato de serem tradicionalmente classificados em português como conjunções

adversativas. A autora investiga a gramaticalização desses itens que, com exceção do mas,

se formaram pelo processo de coalescência. Embora a pesquisa de Rocha (2006) não

trabalhe especificamente com o fenômeno da coalescência, finda por analisar itens

oriundos do processo de união construcional.

Felício (2008) também trabalha com a gramaticalização da conjunção concessiva

embora. O item embora é formado pelo processo de coalescência das formas: em + boa +

hora que, em latim, corresponde à in bona hora e, no português, ao advérbio em boa hora.

Baseia-se, portanto, em dados sincrônicos e diacrônicos, investigando o processo de

mudança responsável pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de

significado) da já conjunção concessiva embora.

Essas pesquisas, embora não destaquem especificamente o processo da

coalescência tendem a tocar nesse processo para explicar o desenvolvimento de seus

objetos de estudo. Desse modo, as referidas pesquisas servem como aparato para

refletirmos sobre o estudo de construções que, normalmente, o falante comum não tem

consciência que se originaram da coalescência entre palavras diferentes, formando um

único vocábulo, como, por exemplo, as construções amarei, porém e embora, investigados

nos estudos citados.

1.3 Fundamentação teórica

A presente pesquisa toma como suporte teórico a Linguística Funcional Centrada

no Uso (LFCU), que reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas, pois

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14 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

essa abordagem considera haver uma estreita relação entre a estrutura das línguas e o uso

que os falantes fazem delas em contextos reais de comunicação. Reflete, portanto, as

pesquisas que abrigam, sobretudo, o estudo da gramaticalização, praticado por Givón

(1995), Hopper (1987), Heine et al. (1991), Traugott (1993;2003), Traugott e Dasher

(2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010), entre outros, destacando a noção de

coalescência baseada, sobretudo, em Lehmann ([1982] 1995); e os estudos de

representantes da Linguística Cognitiva que abrigam, principalmente, a gramática das

construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello

(2005), Martelotta (2005).

1.4 Objetivos

A pesquisa tem como objetivo geral analisar construções gramaticais cuja relação

de sentido e forma se dá por meio do processo da coalescência, como relativo aos estudos

de gramaticalização, a partir do uso oral de analfabetos remanescentes quilombolas de

Portalegre/RN. Mais especificamente, objetiva: a) levantar os usos das construções

coalescentes na fala dos descendentes quilombolas de Portalegre/RN; b) analisar as

construções coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e

morfossintática) e à dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva); c)

verificar os processos/mecanismos que podem descrever o modo como se dá o surgimento

desse processo linguístico; e d) buscar indícios de mudança linguística, aferidos qualitativa

e quantitativamente, que evidenciem o possível processo de gramaticalização dos

diferentes usos das construções coalescentes.

1.5 Metodologia

Nossa pesquisa caracteriza-se como descritiva/explicativa, de cunho qualitativo,

mas com base em dados quantitativos, já que a frequência é um forte indício de

gramaticalização.

A pesquisa é descritiva/explicativa porque descrevemos as construções coalescentes

detectadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN e explicamos suas

funções nos contextos em que foram utilizadas. Embora esta pesquisa seja de cunho

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15 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

qualitativo fez-se necessário utilizarmos o pacote estatístico do programa "Statistical

Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007).

Com base nos resultados obtidos, nos foi possível descrever as construções

coalescentes em seu contexto de uso e então, detectar o funcionamento das construções

coalescentes nas situações comunicativas em que ocorreram.

1.5.1 Corpus

A pesquisa tem como corpus A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre

do Brasil, obra resultante de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e

Literários de Pau dos Ferros/NELLP, do Departamento de Letras, do Campus Avançado

“Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia”/CAMEAM, da Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte/UERN. Essa obra constitui um banco de dados que contém eventos de

fala real dos moradores das comunidades Pêga, Arrojado e Engenho Novo do município de

Portalegre, no Estado do Rio Grande do Norte. Essas comunidades estão localizadas a

oeste da zona rural do município de Portalegre, possuem uma extensão de

aproximadamente dois mil metros quadrados e abrigam moradores predominantemente

negros e/ou pardos, cuja mestiçagem se deu através de brancos e índios.

Os informantes foram escolhidos de modo que o Banco de Dados possuísse

representantes de ambos os sexos e de faixa-etária mais velha, objetivando, em tempo

aparente, resgatar estágios mais antigos do desenvolvimento da língua dessas

comunidades.

Foram, então, realizadas trinta horas de entrevistas, do tipo Diálogos entre

Informantes e Documentador – DID, versando sobre experiências pessoais, religião e

política local. Na transcrição, aparecem apenas os dados relativos ao sexo e idade, na

tentativa de manter o anonimato, embora, no diário de pesquisa, encontram-se o nome

completo do informante, a idade, o sexo, a cor, o grau de instrução, a ocupação, o tempo de

residência na comunidade, data e hora da coleta. A transcrição do corpus é fiel à fala de

indivíduos de parte da referida comunidade, mas mantém, tanto quanto possível, as

convenções da ortografia padrão. A fala do entrevistador é transcrita conforme a variedade

padrão, embora tenham sido conservadas as inadequações gramaticais.

O corpus é constituído por seis inquéritos, cujos informantes estão aqui

codificados:

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16 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

IQ1 – Inquérito 01: Documentador e duas mulheres:

Informante 2:M50-02. 2

Informante 3: M56-01

IQ2 – Inquérito 02: Documentador e quatro homens:

Informante 7: H37-04

Informante 8:H39-03

Informante 9: H49-01

Informante 10:H55-02

IQ3 – Inquérito 03: Documentador e um homem:

Informante 12: H61-05

IQ4 – Inquérito 04: Documentador, um homem e duas mulheres:

Informante 14: H84-06

Informante 1: M(NS)-04

Informante 6: M81-03

IQ5 – Inquérito 05: Documentador e um homem e uma mulher:

Informante 4: M63-05

Informante 13: H64-07

IQ6 – Inquérito 06: Documentador e um homem e uma mulher:

Informante 11: H58-08

Informante 5: M63-06

Embora o corpus contemple variados fenômenos linguísticos passíveis de análise,

esta pesquisa se limitará à investigação especificamente das construções que envolvem a

coalescência, registradas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, como

relativas ao processo de gramaticalização.

1.5.2 Etapas da pesquisa

Subdividimos o nosso trabalho investigativo em duas etapas: na primeira,

realizamos o levantamento dos usos das construções coalescentes na fala dos descendentes

quilombolas de Portalegre/RN. Em seguida, passamos a analisar as construções

2 M= Mulher; H = Homem números idade-identificação. A ordem dos informantes está organizada segundo

sexo e idade constante da Tabela 2, do capítulo 4.

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17 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e à

dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva), constatadas em cada contexto

de uso comunicativo, observando as:

a) propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos elementos

linguísticos no contexto de uso;

b) propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos elementos

linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu enunciado e sua

preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte;

c) propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso dos

elementos linguísticos.

Enfim, analisamos as construções, observando a relação estreita entre a estrutura e

o uso que os falantes fazem delas no contexto real de comunicação, posto que sua

habilidade linguística seja vista como constituída das regularidades no processamento

mental da linguagem em situações de uso.

1.5.3 Tratamento dos dados

A análise dos dados se deu a partir de uma abordagem quantitativa e, com base

nela, fizemos uma análise qualitativa. Para a análise quantitativa, fizemos o cálculo da

frequência das coalescências fonético-fonológicas e das coalescências gramaticais.

Ressalvamos que as coalescências fonético-fonológicas são construções que não implicam

mudança de função, são apenas palavras colididas, enquanto que, as coalescências

gramaticais formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens

envolvidos. Depois, analisamos o cruzamentos dos dados. Para essa análise, utilizamos o

pacote estatístico do programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE

et al. [1968] 2007). Salientamos que partimos da análise da frequência, por ser um dado

indicador do processo de gramaticalização para, assim, descrever as construções

coalescentes em seus contextos de uso.

1.6 Relevância acadêmica e social

Trabalhar com a fala de remanescentes quilombolas culmina na relevância histórica

e social que esse povo representa no país, posto que comungamos com o ponto de vista de

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18 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Mattos e Silva (2004) de que os africanos e afro-descentes foram e são agentes principais

da difusão do português no território brasileiro, na sua face majoritária, a popular ou

vernácula.

Por esse motivo, cremos que trabalhos dessa natureza proporcionam um diálogo

com temáticas ainda pouco valorizadas e exploradas no meio acadêmico e social. Assim,

acreditamos que os frutos deste estudo contribuirão tanto para a compreensão dos

fenômenos linguísticos na perspectiva funcionalista e construcionista, quanto para as

questões relativas às diferenças numa visão social/histórica não discriminatória dos usos

linguísticos.

Além disso, a pesquisa pode trazer contribuições no tocante ao plano pedagógico,

visando à melhor orientação dos alunos na compreensão do funcionamento e na

conscientização docente e discente sobre a existência de outras variedades linguísticas,

assim como o acesso ao conhecimento do processo de mudança linguística.

1.7 Organização da Dissertação

A dissertação está organizada em cinco capítulos. O primeiro capítulo traz a

introdução, que apresenta uma visão panorâmica a cerca dos procedimentos e

desenvolvimento da pesquisa.

No segundo capítulo, expusemos o fundamento teórico em que esta pesquisa se

sustenta, ou seja, a Linguística Funcional Centrada no Uso, cuja abordagem une a

perspectiva funcionalista e cognitiva.

No capítulo três, caracterizamos e conceituamos a coalescência. Expusemos, nele,

os parâmetros e os processos de Lehmann ([1982] 1995), dentre os processos exibidos pelo

autor destacamos o processo de coalescência. Além disso, apresentamos a coalescência

segundo a história da Língua Portuguesa e estudos recentes sobre a gramaticalização de

alguns itens do português brasileiro que ao longo de seu desenvolvimento utilizaram o

processo de coalescência.

No quarto capítulo, partindo da frequência de usos das coalescências encontradas

no corpus, analisamos os aspectos formais e funcionais característicos de cada construção

coalescente. Realizada a análise dos agrupamentos das construções coalescentes,

apresentamos tendências de trajetórias de gramaticalização das construções coalescentes

em uso na fala dos remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN.

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19 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Por fim, vem a conclusão como quinto capítulo, apresentando a síntese dos achados

da pesquisa, bem como sugestão de estudos futuros.

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20 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

2 A GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES NA PERSPECTIVA DA

LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO

Este capítulo apresenta a fundamentação teórica em que esta pesquisa se insere, ou

seja, os pressupostos da Linguística Funcional Centrada no Uso. Nessa perspectiva,

apresentamos as concepções sobre gramaticalização, mostrando que ela não se dá de modo

aleatório, mas sim apresenta regularidade, pois os eventos de uso dirigem a formação e o

funcionamento do sistema linguístico interno do falante, cuja estrutura não se separa do

processamento mental que ocorre no uso que faz da língua. Assim, a regularidade do

sisitema se desenvolve a partir da repetição ou ritualização desses eventos. Além disso,

mostraremos que subjaz à gramaticalização a hipótese de unidirecionalidade, segundo o

qual os elementos envolvidos tendem a desenvolver, com o uso, valores mais subjetivos e

abstratos, e, no caso das construções, os itens tornam-se internamente menos

composicionais, formando uma unidade mais integral.

A Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), a qual é uma tradução do termo

usage-based model utilizado inicialmente por Langacker (1987) e aqui, no Brasil, para

designar essa tendência alguns autores como Tomassello (2005) e Martelotta (2008)

preferem o termo Linguística Cognitivo-Funcional. Embora haja variação quanto ao termo,

aclaramos que em nossa pesquisa adotamos o termo Linguística Funcional Centrada no

Uso (LFCU) devido à objetividade do termo, o qual (como os demais termos apresentados)

privilegia o uso da língua. Esses pesquisadores utilizam o termo para abalizar as análises

que refletem a junção das tradições das pesquisas funcionalistas que abrigam,

especialmente, o estudo da gramaticalização, praticadas por Givón (1995), Hopper (1987),

Heine et al. (1991), Traugott (1993), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007),

Bybee (2010), Furtado da Cunha (2003), Gonçalves et al. (2007), Martelotta (2011), entre

outros; e os estudos de representantes da Linguística Cognitiva que abrigam,

principalmente, a gramática das construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995;

2006), Croft (2001), Tomasello (2005) e Martelotta (2008).

De modo sintético, a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) é um tipo de

abordagem:

a) resultante dos estudos que analisam as línguas, observando a relação estreita entre a

estrutura e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação;

b) que, em sua análise, abrange tanto a observação de aspectos formais como dados

relativos ao contexto comunicativo, ou seja, os semânticos, pragmáticos e discursivos.

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21 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Assim, há o interesse pela dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e a

dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva);

b.1 propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos

elementos linguísticos no contexto de uso.

b.2 propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos

elementos linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu

enunciado e sua preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte.

b.3 propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso

dos elementos linguísticos. Ex.: o fato de a informação já ter sido mencionada

anteriormente (dada) ou não (nova) no enunciado produzido pelo falante.

c) que, em sua análise, leva em conta aspectos relacionados a restrições cognitivas que

incluem a percepção de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na

memória.

d) que, em sua análise, leva em conta aspectos associados à capacidade de organização,

acesso, conexão, utilização e transmissão coerente dos dados da experiência.

Nessa perspectiva, a habilidade linguística do falante é vista como constituída das

regularidades no processamento mental da linguagem em situações de uso. É no contexto

interativo que os eventos de uso são cruciais para o desenvolvimento da estruturação do

sistema linguístico do falante, pois fornecem o input para os sistemas de outros falantes,

através, por exemplo, de reanálises, analogias e outros processos que implicam alterações e

extensões no emprego das expressões linguísticas. Os novos usos resultantes desses

processos, caso se tornem habituais ou rotineiros, podem transcender o contexto

comunicativo em que são empregados e incorporarem-se ao sistema. Resumindo, a partir

da repetição ou ritualização desses eventos, o sistema linguístico, por ser dinâmico e

emergente, desenvolve-se, adaptando certos contextos comunicativos a eventos de

comunicação específicos.

Então, essa abordagem teórica visa explicar a língua por meio do uso que se faz

dela. Isso significa atribuir ao falante, ao ouvinte, a seus papéis adquiridos

socioculturalmente e ao contexto situacional uma integração tamanha que a ausência de um

desses componentes pode comprometer todo o funcionamento linguístico. A linguagem é

vista, pois, como um instrumento de interação social, ou seja, é por meio das relações

sociais e pela necessidade comunicativa do ser humano que a linguagem aflora e se

desenvolve.

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22 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Assim, essa perspectiva se preocupa em refletir a relação entre as estruturas

gramaticais das línguas e os diferentes contextos comunicativos nos quais essas estruturas

estão sendo utilizadas. Ultrapassa a mera preocupação em estudar apenas a forma ou

estrutura gramatical e passa a se preocupar com o uso dessas estruturas inseridas em

situações comunicativas reais, levando em conta os interlocutores, seus propósitos

comunicativos e o contexto em que ocorre a interação.

Assim, a abordagem centrada no uso busca, para seu objeto de estudo, dados reais

de fala ou escrita captados em verdadeiras situações sociocomunicativas para, desse modo,

explicar as funções que os enunciados e textos desempenham nas situações interativas

reais.

2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso

O termo gramática, atualmente, pode nos levar a diversas concepções, pois os

estudos linguísticos vêm expondo vários tipos de gramáticas (normativa, descritiva,

gerativista, funcionalista...) e trabalhar com uma delas significa se posicionar a favor de

uma dada concepção teórica. Por exemplo, o uso da gramática normativa remete a uma

concepção estruturalista, pois nessa concepção de gramática são prescritas as normas,

regras de uma língua, não admitindo, portanto, as variações linguísticas nem o uso real

cotidiano, ou seja, nesse modelo, todos os falantes devem usar a língua de forma

homogênea.

A abordagem centrada no uso se distingue dessa proposta no sentido de que adota

uma concepção de gramática que admite a diversidade linguística, a mudança linguística,

os sujeitos que fazem uso dela e o contexto em que estão inseridos. Tem-se com esse

modelo uma proximidade mais ampla do real funcionamento linguístico. Assim, a

gramática é constituída de regularidades da língua, levando em conta a situação

comunicativa como um todo, ou seja, o locutor, sua intenção comunicativa, o interlocutor,

e o contexto em que se dá a comunicação, a interação sociocultural.

Du Bois (1985, 1987) descreve a gramática como um sistema adaptativo em que

forças motivadoras dos fenômenos externos interagem com o sistema interno da língua,

confrontando, e harmonizando-se sistematicamente entre si. A Figura 1 representa essas

motivações em competição:

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23 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Figura 1 – Motivações em competição

Fenômenos externos

Forças internas

Fonte: (DU BOIS, 1985, p. 361)

Sendo a gramática susceptível às pressões do uso, ela se resolve no equilíbrio entre

forças internas e forças externas ao sistema. Esse modelo dá conta do fenômeno da

gramaticalização, que reconhece a presença de construções relativamente livres no

discurso que, devido às necessidades comunicativas, passam por um processo de evolução

e se tornam construções relativamente fixas na gramática. Segundo Du Bois (1993, p.11), a

gramática molda o discurso e o discurso molda a gramática.

Nesse sentido, Langacker (1987) afirma que a gramática de uma língua constitui

um conjunto de princípios dinâmicos que se associam a rotinas cognitivas que são

moldadas, mantidas e modificadas pelo uso. Desse modo, não há uma gramática

inteiramente pronta.

Essa concepção também é vista em Hopper (1987), quando defende que a

gramática das línguas é compreendida como constituída de partes cujo estatuto vai sendo

constantemente negociado durante o processo da fala, não podendo ser separado das

estratégias de construção do discurso. Desse modo, a língua é entendida como atividade

em tempo real, o que por sua vez o leva a crer que não existe gramática como produto

acabado, mas sim numa contínua gramaticalização.

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24 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Para Givón (1995), é impossível compreender e descrever a língua a partir de um

sistema autônomo. Segundo o autor, a gramática só pode ser entendida se relacionada à

cognição e comunicação, ao processamento mental, à interação social e cultural, à

mudança e variação, à aquisição e evolução.

Assim, o autor defende a não autonomia do sistema linguístico e que a gramática

faz parte de um processo emergente, que surge de necessidades comunicativas. Em outras

palavras, a gramática deve ser entendida como instruções de processamento mental do

falante para o ouvinte, o conjunto de estratégias empregadas para se produzir uma

comunicação coerente no contexto discursivo.

No mesmo texto, Givón acrescenta que a contribuição mais relevante da gramática

está no fato de o processamento da informação ocorrer por meio das funções básicas da

linguagem humana, que residem na representação e na comunicação do conhecimento. O

sistema de representação cognitivo, nesse caso, envolve três níveis: o nível léxico-

conceptual (mapa cognitivo de nossas experiências físicas, sócio-culturais e mentais – em

que atua a memória semântica permanente); o nível da informação proposicional

(conceitos, palavras, orações – em que atua a memória episódica); e o discurso

multiproposicional (combinações de orações num discurso coerente – em que atua a

memória episódica). Já o sistema de codificação comunicativo envolve o código sensório-

motor periférico (compete à fonética, à fonologia e à neurologia) e o código gramatical que

desempenha simultaneamente funções dos níveis oracionais e discursivos.

A concepção givoniana de gramática se apoia em princípios como: i) a linguagem é

uma atividade sociocultural, ou seja, é o uso da língua na comunicação; portanto, a

estrutura é maleável, não rígida, modelada por pressões externas (do contexto

extralinguístico – sociocultural, situacional e discursivo) e por pressões internas (do

contexto, sistema propriamente linguístico); ii) é não-arbitrária, motivada, icônica e serve a

uma função cognitiva (processamento mental) ou comunicativa (interação) – há uma

relação de dupla via, forma e função; iii) as categorias não são discretas, há um continuum

que sugere uma perspectiva escalar; iv) a mudança e a variação estão sempre presentes,

portanto, as gramáticas são emergentes (GIVÓN, 1995).

Logo, percebemos que Givón (1995) reconhece a relação entre a sintaxe e as

propriedades semânticas e discursivo-pragmáticas, inclusive concorda com o

posicionamento, defendido por Du Bois (1987), de que o discurso molda a gramática e de

que a gramática molda o discurso.

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25 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Traugott (1995; 1997) também defende que, além de a gramática considerar os

aspectos fonológicos, morfossintáticos e semânticos, há que se levar em conta também as

inferências que surgem fora da forma linguística (discursivo-pragmáticas). Sobre a noção

de gramaticalização, enfatiza principalmente os aspectos semântico-pragmáticos da

mudança. A autora analisa o componente pragmático nos estágios iniciais da

gramaticalização, que pode ser fortalecido no momento em que há acréscimo do

envolvimento e da expressividade subjetiva do falante no tocante a atitudes e crenças.

Martelotta et al. (1994) defendem a gramática como um sistema construído a partir

das regularidades resultantes das pressões de uso que estão relacionadas a interesses e

necessidades discursivas/pragmáticas. Para eles, a concepção de gramática se associa a

uma estrutura que pode ser definida como maleável e emergente, reconhecem também a

validade da gramaticalização em seus estudos, ou seja, os processos especiais de mudança

linguística.

Embora cada autor apresente sua concepção a respeito da gramática, podemos

encontrar pontos comuns entre os conceitos de gramática apresentados. Nessa perspectiva,

é notório o consenso entre esses autores sobre a não autonomia da sintaxe e sobre a defesa

de uma gramática maleável e emergente.

Por fim, acrescentamos que atrelada/sobreposta a essas concepções de gramática,

apresentadas pelos teóricos, estão inclusos os pontos de vista e definições sobre a

gramaticalização, pauta de discussão a seguir.

2.2 Gramaticalização

A gramaticalização se refere a processos especiais de mudanças linguísticas, o

processo de gramaticalização se instaura no momento em que uma unidade linguística

começa a adquirir propriedades de formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical,

tem sua gramaticalidade alterada. Superficialmente a gramaticalização parece ser um

processo recente, porém, levando em conta sua trajetória, notamos que nem o interesse por

este processo nem sua ocorrência são recentes.

Assim sendo, os primeiros estudos sobre gramaticalização datam do século X na

China e, posteriormente, passam a se desenvolver no século XVII, com Condillac e

Rosseau, na França e Tooke, na Inglaterra. No século seguinte, é a vez de Bopp, Schlegel,

Humboldt, Gabelentz, na Alemanha, e Whitney nos Estados Unidos. Porém, é somente no

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26 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

século XX (especificamente em 1912) que a gramaticalização é nomeada como tal, sendo

Meillet (na França) considerado o fundador dos estudos modernos de gramaticalização,

inclusive, o primeiro a utilizar o termo gramaticalização.

Contudo, antes de adentrarmos na complexidade da definição acerca da

gramaticalização, salientamos que, assim como acontece com a concepção de gramática

anteriormente descrita, a gramaticalização também não apresenta uma definição uniforme

entre os estudiosos desse assunto, por isso muitas são as discussões em torno desse termo.

Para uns, a gramaticalização é vista como processo, outros a veem como

paradigma, e há aqueles que a concebem como fenômeno diacrônico ou sincrônico.

Segundo Gonçalves et al. (2007, p. 16), a gramaticalização é um paradigma quando é

observada num estudo da língua que se preocupe em focalizar a maneira como formas

gramaticais e construções surgem e como são usadas. É considerada processo quando há a

preocupação com a identificação e análise de itens que se tornam mais gramaticais.

Conforme os autores, a gramaticalização pode ser estudada sob duas perspectivas: a)

diacrônica, quando a preocupação do estudo se voltar para a explicação de como as formas

gramaticais surgem e desenvolvem-se na língua; b) ou sincrônica, quando a preocupação

se voltar para a identificação de graus de gramaticalidade que uma forma linguística

desenvolve conforme os deslizamentos funcionais a ela conferidos pelos padrões fluidos de

uso da língua num dado recorte de tempo.

Embora haja controvérsias em torno do caráter metodológico do estudo da

gramaticalização como, por exemplo, a relação diacronia/sincronia que, numa visão mais

tradicional, representam perspectivas divergentes, Traugott & Heine (1991) rompem esse

paradigma, quando afirmam que o termo gramaticalização remete a um processo

linguístico tanto diacrônico quanto sincrônico, ainda que, numa época remota, tenha sido

visto apenas por uma perspectiva diacrônica.

Assim sendo, esclarecemos que o presente trabalho segue por um enfoque

sincrônico (recorte de um dado momento da língua), pois tomamos como corpus de análise

o livro: A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, que contém dados

coletados da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, no ano de 2001.

Conforme já afirmamos, muitas são as reflexões em torno da definição sobre a

gramaticalização, por isso expomos, a seguir, algumas definições sobre esse termo.

Começamos com a definição de Meillet (1912), fundador dos estudos modernos da

gramaticalização. Para ele, a gramaticalização é definida como “(...) passagem de uma

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27 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

palavra autônoma à função de elemento gramatical” (MEILLET, 1912, p. 131). Nesse

sentido, o conceito de gramaticalização, proposto por Meillet pode ser simplificado pela

trajetória: [item lexical] > [item gramatical] (item sintático > item morfológico).

O autor trabalha inicialmente com a gramaticalização numa perspectiva histórica,

visando compreender a origem e as mudanças típicas envolvendo morfemas gramaticais, o

que complementava o campo da etimologia e da evolução histórica das palavras. Porém,

através da distinção de três classes de palavras: as principais, as acessórias e as

gramaticais, as quais remetem gradualidade, Meilet passa a adquirir uma percepção de

gramaticalização como um processo sincrônico.

Kurilowicz (1964) amplia o conceito de gramaticalização proposto por Meillet,

corroborando que a gramaticalização, além de considerar a mudança de um item lexical a

um item gramatical, considera também itens/construções que partem do menos para o mais

gramatical.

Já para Heine et al. (1991, p. 21), “Gramaticalização é um processo que pode ser

encontrado e pode envolver qualquer tipo de função gramatical; ocorre quando uma

unidade gramatical assume uma função mais gramatical ainda”.

Entendamos, então, como compreendemos as noções item lexical e item gramatical.

O primeiro refere-se a palavras de uma categoria lexical plena como: nomes, sentimentos,

ações, qualidades... (substantivos, adjetivos e verbos), cujas propriedades fazem referência

a dados do universo bio-psíquico-social; já o item gramatical são as palavras que

apresentam funções tradicionalmente definidas como gramaticais, funcionais ou

interacionais (preposições, advérbios, auxiliares...), cujas propriedades cuidam de

organizar, no discurso, os elementos de conteúdo, por ligarem palavras, orações e partes do

texto, marcando estratégias interativas na codificação de noções como tempo, aspecto,

modo, modalidade etc.

Uma vez esclarecidas essas noções, passemos à definição de gramaticalização

segundo Traugott (2001). Para ela, gramaticalização pode ser definida como a mudança

pela qual itens e construções lexicais vêm em certos contextos linguísticos servir a funções

gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções. Ainda conforme a autora,

as mudanças não têm que ocorrer. Elas também não têm que chegar ao término; em outras

palavras, elas não têm que fazer todo o percurso ao longo do aclive [=cadeia], ou mesmo

prosseguir, uma vez que já tenha começado.

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28 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Martelotta (2011) amplia a definição de Traugott (2001), afirmando que

gramaticalização é um processo de mudança linguística unidirecional em que itens lexicais

e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais

e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Como

podemos ver, a trajetória de gramaticalização do item logo3 que Martelotta (2011, p.97-8)

ilustra nas amostras apresentadas em (2):

(2) a. A primeira natureza da poonba he que en logo de cantar geme. (Livro das Aves, 1965)

b. A Serra estava totalmente deserta, e os pingos de chuva que começavam a cair, logo se se transformaram

em um verdadeiro temporal. (Corpus D&G)

c. ... e sentei-me na cama afim de vesti-la, mas acontece que havia um ferro de

passar roupa usado a poucos instantes e logo quente ainda, sente-me sobre ele e foi uma dor enorme. (Corpus

D&G)

d. Falar do quarto! Logo do meu quarto! bem o meu quarto é uma verdadeira bagunça. É roupa pra lá e roupa

pra cá. Você sabe como é quarto de menino. (Corpus D&G)

O uso do item logo em (2a), um uso do português antigo, demonstra a origem

espacial dos usos atuais presente na locução em lugar de, com origem latina loco, locu-

(abl.), que significa no lugar, no momento, logo (MACHADO, 1997). A amostra (2b)

apresenta o valor temporal do item logo e a (2c) demonstra o valor textual como conjunção

conclusiva. Por último, a amostra (2d) ilustra um uso enfático de logo, indicando a atitude

do falante em relação ao que fala. Dessa maneira, temos a trajetória advérbio > conjunção,

que segue, como veremos adiante, um processo metafórico ESPAÇO > (TEMPO) >

TEXTO (HEINE et al.1991), caracterizando uma tendência translinguística que leva

elementos de valor espacial a assumirem funções típicas das conjunções.

Baseado nas funções da linguagem (cf. HALLIDAY, 1985), Martelotta (2011)

acrescenta também que o processo de gramaticalização ocorre no momento em que um

elemento deixa de atuar no nível representacional, quando os itens ou expressões que

fazem referência a dados do universo biossocial (objetos, entidades, sentimentos, ações e

qualidades), para atuar no nível interpessoal, que abrange as expressões de valor

processual, como ocorre no uso do item logo em (2d), isto é, expressões “cujas funções se

relacionam aos processos através dos quais o falante elabora seu enunciado para um

determinado ouvinte em um contexto específico de uso. (MARTELOTTA, 2011, p.92)

3 Mais adiante, ilustramos, bem como analisamos a trajetória de construções, nosso objeto de estudo.

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29 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Bybee (2010) também apresenta um relevante conceito sobre gramaticalização,

segundo a autora funções pragmático-discursivas são entendidas como integrantes da

trajetória de gramatialização, como pontos mais avançados de uma escala. Desse modo, as

mudanças linguísticas decorrentes de monitoramento textual e interacional são vistas como

fenômenos de gramaticalização, situadas em ponto mais avançado de uma dada trajetória.

Salientamos que, embora muitos concordem que a gramaticalização se caracteriza

como processo, autores como Campbell (2001), Joseph (2001), Newmeyer (1992) criticam

fortemente a concepção de gramaticalização concebida como processo. É seguindo por este

viés que Newmeyer (1992) afirma que a gramaticalização, para ser tratada como processo,

necessitaria de um conjunto próprio de leis, o que, de fato, não é perceptível em

gramaticalização. Assim, sugere que ao invés de processo a gramaticalização deveria ser

caracterizada como um “fenômeno a ser explicado”.

Traugott (2001), empenhada em definir gramaticalização, abstém-se da palavra

processo, embora defenda que o termo processo não deva ser abandonado tão facilmente e

explica que o termo tem sido mal compreendido, pois a linguagem é uma capacidade

humana e social, e não há uma maneira única pela qual se possa guiar.

Comungamos com os estudiosos da abordagem centrada no uso que consideram a

gramaticalização como processo, pois partimos do pressuposto de que o termo processo

possibilita levar em conta o dinamismo do sistema linguístico, seu caráter evolutivo e as

regularidades constatadas nas mudanças que colocam a língua e a gramática em estágios de

algum modo diferenciado. Assim, entendemos que, no processo de gramaticalização, os

padrões gramaticais já instituídos servem de modelo para os novos usos comunicativos e, à

medida que esses usos passam a circular com constância no meio social, tornam-se fortes

candidatos a se gramaticalizarem.

Aliado à concepção da gramaticalização como processo, está a noção de

unidirecionalidade (continuum na mudança), a qual consideramos como hipótese. Isso

porque se consideramos a unidirecinalidade como um princípio da gramaticalização,

poderiam surgir deduções de que defendemos a gramaticalização como uma teoria em si.

Assim, na próxima seção, exploramos, de modo mais amplo, a relação entre

gramaticalização e unidirecionalidade.

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30 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade

A unidirecionalidade tem sido associada à gramaticalização há muito tempo, tanto é

que tem sido usada como teste para validar se determinadas mudanças são ou não um caso

de gramaticalização. No entanto, considerar a unidirecionalidade como princípio da

gramaticalização parece querer rotulá-la como teoria, questão essa, conforme discutido

anteriormente, não é consensual. Sendo assim, é mais coerente considerar a

unidirecionalidade como uma hipótese associada ao processo de gramaticalização.

Essa posição de considerar o princípio de unidirecionalidade como hipótese se dá

também pelo fato de a unidirecionalidade ser alvo de críticas quanto a sua eficiência

metodológica, o que gera contradições e falta de consenso entre os estudiosos que se

dedicam à gramaticalização.

Desse modo, mencionamos alguns pontos de vista sobre a unidirecionalidade

propostos por pesquisadores como Hopper & Traugott (1993), por exemplo, que veem a

unidirecionalidade como uma hipótese passível de verificação empírica. Já Heine et al.

(1991) defendem a unidirecionalidade como propriedade definidora do processo. Ziegeler

(2004), por sua vez, propõe que a unidirecionalidade é um fenômeno colateral da

gramaticalidade, uma entidade manifestada independente do viés analítico.

Além disso, alguns autores utilizam o rótulo continuum (unidirecionalidade) para se

referir às transformações entre classes de palavras; outros usam continuum para mostrar os

deslizamentos empreendidos por categorias semânticas.

Embora haja diversas discussões em meio à eficácia da unidirecionalidade, o

presente trabalho faz uso dessa hipótese devido a dois motivos: primeiro por ser uma

hipótese amplamente utilizada, de modo empírico em diversas línguas e segundo, porque o

número de contra exemplos é consideravelmente mínimo e alguns deles conforme

menciona Figueiredo-Gomes (2008), são casos de estabilidade.

Considerando a relação entre unidirecionalidade e gramaticalização, levamos em

conta que a gramaticalização remete a um processo tanto diacrônico como sincrônico.

Traugott & Heine (1991) observam que, embora num determinado momento se encontre

uma estrutura substituindo completamente outra, as duas formas coexistiram durante um

momento no tempo, ou seja, a forma nova e a forma velha passaram a entrar num processo

de variação. Como observa Neves (1997, p. 118), “essa variação encontrada nada mais é

do que o reflexo do caráter gradual da mudança linguística”. Enfatizando o aspecto

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31 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

gradativo da mudança linguística, Heine & Heh (1984, p. 15) corroboram que “a

gramaticalização é um continuum evolutivo e que qualquer tentativa de segmentação de

unidades discretas é arbitrária”.

Desse modo, podemos compreender a unidirecionalidade como uma trajetória que

acaba por evidenciar o percurso pelo qual um elemento lexical passa para a condição de

item gramatical ou um elemento gramatical torna-se um elemento ainda mais gramatical.

Em outras palavras, as mudanças que se caracterizam como gramaticalização se

implementam sempre de maneira gradual, numa escala unidirecional e contínua de

aumento de gramaticalização/abstratização.

O próprio Meillet (1912), considerado o fundador dos estudos modernos de

gramaticalização, ao propor a existência de três classes de palavras: as palavras principais,

as palavras acessórias e as palavras gramaticais, indica que há entre elas uma transição

gradual. Ou seja, essa relação gradual remete a uma cadeia evolutiva pela qual certos itens

e construções linguísticas passam ao longo do tempo. Portanto, ao reconhecer o caráter

gradativo da língua, Meillet parece reconhecer também o caráter gradual da

unidirecionalidade.

Seguindo a hipótese da unidirecionalidade, percebemos que, ao longo do

desenvolvimento e exploração desse raciocínio por parte de diversos pesquisadores que

investigam o processo de gramaticalização, tem-se notado o surgimento de diversas

trajetórias contínuas. Essa diversidade pode ser explicada pelo fato de que os

pesquisadores, por um interesse próprio de estudar um dado objeto, findam por formular

trajetos que melhor explicam seus objetos. Como exemplo disso, podemos mencionar

trajetórias como: Local > temporal > lógico > ilocutivo > discursivo (ABRAHAM, 1991);

Proposicional/ideacional > textual > interpessoal/expressivo (TRAUGOTT; KÖNIG,

1991); Pessoa > objeto > espaço > tempo > qualidade (HEINE et al., 1991).

Além dessas trajetórias, há outras que lidam com objetos mais específicos.

Contudo, o surgimento de tantas trajetórias não implica fragilidade a noção da

unidirecionalidade. Ao contrário, desde que apresentem regularidades capazes de explicar

a passagem de um dado elemento lexical à categoria gramatical ou um elemento gramatical

a uma elevação de mais gramatical ainda, isso apenas comprova que a unidirecionalidade

vem sendo constatada em diversos fatos empíricos analisados e explicados sob o prisma

dessa hipótese.

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32 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Nessa perspectiva, Heine & Reh (1984) mostram que os três níveis da estrutura

afetados pela gramaticalização – o funcional, o morfossintático e o fonético – em geral se

arranjam, na gramaticalização, nessa mesma ordem: os processos funcionais (como

dessemantização, expansão, simplificação) precedem os morfossintáticos (como

permutação, composição, cliticização, afixação), que precedem os fonéticos (como

adaptação, fusão, perda).

Dessa maneira, caracterizam a gramaticalização como, inicialmente, havendo uma

perda na complexidade semântica, na significação funcional, no valor expressivo; perda

pragmática com ganho na significação sintática; diminuição de membros num mesmo

paradigma sintático; diminuição na variabilidade sintática, com maior fixidez na ordem;

obrigatoriedade de uso em determinados contextos, com exceção de uso em outros;

coalescência semântica, morfossintática e fonética com outra(s) unidade(s), (é o caso do

nosso objeto de investigação) e a perda de substância fonética.

Já Heine et al. (1991) enumeram como características gerais da unidirecionalidade:

i) a precedência do desvio funcional (conceptual ou semântico), sobre o formal

(morfossintático e fonológico); ii) a descategorização de categorias lexicais prototípicas;

iii) a possibilidade de recategorização, com restabelecimento da iconicidade entre forma e

significado; iv) a perda de autonomia de um elemento (uma palavra autônoma passa a

clítica, um clítico passa a afixo); e v) a erosão ou enfraquecimento formal.

Embora a unidirecionalidade seja representada por meio de escalas para melhor

refletir os estágios de mudanças linguísticas via gramaticalização, lembramos que a

mudança pode ser esgotada seguindo todo um percurso, mas também pode ser

interrompida em um dado ponto do seu trajeto, tendo em conta que as mudanças não têm

que ocorrer, nem têm que chegar ao término (TRAUGOTT, 2001). Pelo fato de a

linguagem ser uma capacidade humana e social, não existe uma maneira exata pela qual se

pode predizer precisamente como se darão as mudanças ao longo do tempo.

Portanto, partindo do pressuposto de que a unidirecionalidade indica o trajeto pelo

qual a mudança linguística percorre, seguindo o rastro contínuo da evolução é possível

entender que toda gramaticalização, necessariamente, pressupõe estágios de mudanças,

mas nem toda mudança pode ser identificada como gramaticalização. Essa máxima pode

ser exemplificada com a diferença encontrada no nosso corpus entre coalescência fonético-

fonológica e coalescência gramatical. Assim, as formas pras, pros e quisso, são exemplos

de coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens

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33 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma

unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e

sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e

não + é = né? marcador discursivo).

Ressalvamos que a unidirecionalidade por si mesma não dá conta de explicar o

processo de gramaticalização, por isso, atrelada a hipótese de unidirecionalidade, seguem

os mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização dentre os quais

destacamos: a metáfora e a metonímia; e a analogia e a reanálise – tema sobre o que versa

a próxima seção.

2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização

Os mecanismos motivadores da gramaticalização nos auxiliam a compreender de

forma mais ampla as mudanças que ocorrem no uso linguístico, entre os diversos

mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização como, por exemplo,

a reanálise, a analogia, a erosão fonética, a metáfora, a metonímia, dentre outros.

Destacamos especificamente para essa discussão, quatro desses mecanismos:

metáfora e analogia; metonímia e reanálise.

Heine (1994) corrobora que, para se chegar à gênese e ao desenvolvimento de

categorias gramaticais, é necessário considerar a análise de manipulação cognitiva e

pragmática, de modo que a transferência conceptual e os contextos que favorecem uma

reinterpretação devem ser observados. O autor destaca que o processo de mudanças

gramaticais envolve dois mecanismos: a) a transferência conceptual (metáfora), que

aproxima domínios cognitivos diferentes; b) a motivação pragmática, que envolve a

reinterpretação induzida pelo contexto (metonímia).

Partindo para uma compreensão mais vasta sobre a metáfora na perspectiva da

gramaticalização, a presente pesquisa se apoia no modelo cognitivo do realismo

experiencialista, defendido por Lakoff (1987) e Sweetser (1990).

O primeiro acredita que os sistemas de conceitos da língua surgem a partir do

contato físico-social dos falantes com o mundo real. Assim, para traduzir esse mundo, o

falante fez e faz uso de metáforas fundantes.

O falante passa a significar o mundo a partir de suas experiências no mundo do qual

faz parte. Johnson (1987) relata que o pensamento trabalha com conceitos apreendidos por

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34 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

meio do contato com o mundo concreto e, através dessas experiências, o indivíduo passa a

construir uma realidade mais abstrata que se revela como o mundo das idéias. Portanto é a

metáfora que permite que as pessoas compreendam o mundo das ideias a partir do mundo

concreto.

Daí a noção de que as línguas possuem um sistema cognitivo real experiencialista.

Podemos compreender, então, que a metáfora em gramaticalização envolve a abstratização

de significados, de forma que os domínios lexicais e menos gramaticais sofrem uma

extensão metafórica, elevando-se a domínios gramaticais ou mais gramaticais, ou seja, há

uma transferência do domínio do mundo real para domínios do mundo mais abstrato,

seguindo, portanto, o percurso concreto > abstrato.

Segundo Sweetser (1990), a transferência de domínios mediada pela metáfora

ocorre de maneira estável, regular e motivada. Segue uma trajetória unidirecional por meio

das seguintes etapas: a fase concreta (realidade físico-social), depois a fase abstrata

(experiência) e, por fim, a fase discursiva. Assim, o significado mais abstrato deriva-se

sempre de um significado mais concreto.

É por meio da transferência metafórica que os conceitos ancorados na concretude

passam a conceitos mais abstratos. Então os conceitos que estão mais próximos da

experiência humana são utilizados para expressar outros que são mais abstratos, de modo

que a experiência não-fisica é entendida em termos da experiência física.

Dessa maneira, as metáforas não formam novas expressões, porém predicações

preexistentes são introduzidas a novos contextos ou aplicadas a novas situações por meio

da extensão de significados, propiciando a gramaticalização. Nesse sentido, o

desenvolvimento das estruturas gramaticais pode ser descrito em termos de certas

categorias cognitivas, partindo sempre, unidirecionalmente, do elemento mais concreto

rumo a um mais abstrato. Nessa perspectiva, vejamos a escala proposta por Heine et al.

(1991):

Pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade

Nessa escala, cada categoria refere-se a uma variedade de conceitos, ou seja,

transformações pelas quais uma dada forma passou e tais processos de mudanças compõem

um domínio de conceptualização importante da experiência humana.

Associado ao processo de metáfora está um mecanismo conhecido como analogia.

A analogia pode ser definida como um mecanismo que atrai formas preexistentes por

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35 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

outras construções já existentes no sistema, envolvendo assim, inovações ao longo do eixo

paradigmático, ou seja, a analogia é um mecanismo que não causa exatamente a mudança

linguística, mas a expansão da língua.

Sobre a analogia Bybee (2010, p. 57) a define como: “the process by which a

speaker comes to use a novel item in a construction”. A analogia atua a partir da

comparação de um item novo com membros mais antigos, já armazenados no sistema

mental do falante. De modo que, os itens mais frequentes ou as frases mais

convecionalizadas servem como base para a formação analógica.

Já Kiparsky (1968) na tentativa de redefinir a analogia na mudança fonológica

como extensão de regra, conseguiu dar conta formalmente do fato de que a analogia não se

trata de uma mudança linguística, mas sim, trata-se especificamente de uma generalização

ou otimização de uma regra, de um domínio relativamente limitado para um domínio mais

amplo.

Desse modo, a analogia visa, por meio de regras existentes, igualar itens similares a

essas regras. Trata-se, portanto, da extensão de um uso mais geral para substituir usos

menos gerais. A analogia em sua atuação é representada por uma fórmula do tipo: A : B ::

C : D, em que D equivale a forma surgida por analogia.

Assim sendo, a analogia pode ser considerada sob duas dimensões, segundo Hopper

& Traugott (1993): (i) da generalização dos tipos de estruturas linguísticas, e (ii) da

generalização por meio do padrão, que, por sua vez, é baseada na frequência com que as

estruturas em questão podem ocorrer no tempo.

Expostos os mecanismos de metáfora e analogia, destacamos também no processo

de gramaticalização, numa discussão mais profunda, os mecanismos de metonímia e de

reanálise.

Conforme Traugott e König (1991), a metonímia refere-se à especificação de um

significado em termos de outro que se apresenta no contexto, ou seja, representa uma

transferência semântica. Para esses autores, a metonímia está intrinsecamente ligada a um

mecanismo denominado de inferência por pressão de informatividade, o qual considera que

um item linguístico passa a assumir um valor novo, pressuposto do original, graças à

convencionalização de implicaturas conversacionais por meio de pressões do contexto de

uso. Assim, quando uma implicação naturalmente surge como forma linguística, pode ser

tomada como parte do significado desta, podendo até mesmo chegar a substituí-la.

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36 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Para Lakoff & Johnson (1980), a metonímia possui uma função referencial a qual

permite usar uma forma em substituição da outra.

Assim como a metáfora se associa à analogia, o mesmo acontece entre a metonímia

e a renálise, porém, ao contrário da analogia, que representa uma expansão de mudança

linguística e, portanto, não causa propriamente a mudança na língua, a reanálise é capaz de

criar novas estruturas gramaticais.

Langacker (1977, p. 58) define a reanálise como “mudança na estrutura de uma

expressão ou classe de expressões que não envolve qualquer modificação imediata ou

intrínseca em sua manifestação de superfície”. Em outras palavras, a reanálise pode ser

compreendida como reestruturação de itens ou construções, que, por sua vez, resulta em

uma reinterpretação das relações entre eles. O mecanismo de reanálise envolve a

reorganização e mudança nesses itens ou construções situados no eixo sintagmático, porém

essas mudanças não ocorrem necessariamente de forma imediata na superfície da

construção reanalisada.

A reanálise, portanto, compreende fatos linguísticos em que os falantes mudam a

construção de determinadas formas de sua língua, por meio da abdução, a qual tem a

propriedade de apagar os limites entre certas formas, estabelecendo, assim, novos “cortes”.

Um dos principais tipos de reanálise presentes na gramaticalização é a eliminação das

fronteiras entre duas ou mais formas morfológicas no processo de desenvolvimento de

novas categorias gramaticais.

Por isso, embora a reanálise não altere imediatamente a unidade sobre a qual se está

operando, certamente apresentará consequências futuras mesmo no eixo sintagmático,

visto que uma nova categoria está prestes a surgir.

Para finalizar o capítulo, traçamos um paralelo entre os mecanismos abordados;

primeiramente entre metáfora e metonímia e, em seguida, entre analogia e reanálise, visto

que esses mecanismos têm sido válidos, no tocante a compreensão das mudanças

linguísticas em geral, especialmente nas mudanças morfossintáticas.

Assim, sobre a metáfora e a metonímia, Gonçalves et al. (2007) comentam que as

inferências metafóricas e metonímicas podem ser percebidas como processos

complementares. A respeito desses dois mecanismos, Martelotta et al. (1996, p. 54)

expõem que:

A metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo

qual conceitos que estão próximos da experiência humana são utilizados para

expressar aquilo que é mais abstrato e, consequentemente, mais difícil de ser

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37 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança ou mudanças por

contiguidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático.

Entretanto, existem conflitos entre os teóricos no tocante ao modo como veem os

mecanismos de metáfora e metonímia em relação ao processo de gramaticalização, pois há

aqueles que defendem tanto a transferência metafórica quanto a transferência metonímica

como atuantes do processo de gramaticalização, enquanto outros teóricos aceitam um

mecanismo e excluem o outro. Apesar dos diferentes posicionamentos, todos concordam

num ponto em relação aos resultados da atuação desses mecanismos: a previsão de um

percurso de abstração crescente.

Quanto ao paralelo entre analogia e reanálise, Hopper e Traugott (1993) afirmam

que a reanálise modifica as propriedades gramaticais – morfológicas e sintáticas – e as

propriedades semânticas, que se referem às mudanças na reinterpretação, na classificação

sintática e no significado e, portanto, implica mudança de regra; embora o efeito da regra

estenda-se no próprio sistema linguístico ou na comunidade linguística em que o dado uso

linguístico se realiza. Contudo, taxam a reanálise como o mecanismo mais importante para

a gramaticalização, posto que somente ela pode criar novas estruturas gramaticais.

Já Figueiredo-Gomes (2008) defende uma postura complementar entre os dois

mecanismos. Essa complementaridade ocorre no processo de gramaticalização, pelo fato

de a analogia provocar a mudança por reanálise ou, em muitos casos, pelo fato de a

analogia ser a primeira evidência de que os falantes de uma língua detectam que a

mudança ocorreu.

Considerando o que a reanálise representa para o processo de gramaticalização,

acrescentamos que, embora a reanálise pareça ter uma relação intrinsecamente dependente

com a gramaticalização, temos que levar em conta a advertência realizada por Heine et al.

(1991), quando afirmam que há motivos para manter a reanálise e a gramaticalização

estritamente separadas e duas evidências podem justificar tais alegações: a) a

gramaticalização é essencialmente um processo unidirecional, a reanálise não o é; b) a

gramaticalização não precisa de ser acompanha pela reanálise.

Mesmo não havendo uma dependência total entre a gramaticalização e os

mecanismos abordados, tanto a reanálise quanto a analogia são relevantes abordagens no

tocante a uma compreensão mais ampla sobre certos casos de gramaticalização. A

reanálise implica a reorganização linear, sintagmática, local e uma mudança de regra, que

não é diretamente observável. Por outro lado, a analogia essencialmente implica a

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38 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

organização paradigmática, mudanças nas colocações de superfície e nos padrões de uso.

Logo, a analogia faz as mudanças inobserváveis da reanálise observável.

Em suma, os mecanismos metonímicos e metafóricos findam por se completarem.

Enquanto o primeiro resulta da contiguidade de significações, devido à proximidade de

formas linguísticas, havendo, por isso, uma associação entre processo cognitivo de

metonímia e o mecanismo de reanálise, o segundo possibilita a transferência de um

domínio a outro, ocorrendo também uma associação entre o processo cognitivo de

metáfora e o mecanismo da analogia.

Sintetizando, podemos afirmar que a abordagem centrada no uso considera que, na

gramaticalização, o elemento ou expressão que originalmente apresenta sentido

representacional, fazendo referência ao nosso mundo biossocial, passa a ser utilizado para

expressar noções gramaticais e veicular estratégias comunicativas e atitudes subjetivas dos

usuários. Assim, na mudança por gramaticalização, os elementos envolvidos tendem a se

tornar mais idiomáticos, perdendo o valor literal e, em termos morfossintáticos, tornando-

se mais fundidos entre si, como acontece com as construções.

Hopper e Traugott (1993) enfatizam a especificidade dos contextos discursivos que

propiciam a gramaticalização e afirmam que a passagem de [lexical] > [gramatical] não é

direta. Esse processo se dá de modo gradual, em que os elementos vão mudando de

sentido, perdendo características morfossintáticas, na medida em que seu uso vai sendo

estendido para novos contextos. Do ponto de vista semântico e discursivo-pragmático,

podemos compreender que essa tendência de gramaticalização parte de valores mais

concretos para mais abstratos, ocorrendo uma mudança em direção a uma subjetivação

(com o aumento da expressividade consequente da perspectiva do emissor) e/ou a uma

intersubjetivação (em função de essa expressividade estar voltada para as expectativas do

receptor).

2.3 Construção gramatical numa perspectica centrada no uso

A gramática das construções é uma linha de investigação teórica em franca

ascensão, no sentido de que diversos estudiosos têm se debruçado sobre ela. Segundo esta

proposta, a unidade preliminar da gramática é a construção gramatical.

Conforme Goldberg (1995, p. 1), as sentenças básicas da língua são exemplos de

construções – “correspondências de forma-significado”, que passam a funcionar, nessa

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39 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

teoria, como unidades básicas e centrais da língua, ou, nos termos de Trousdale (2008, p.

6), como unidades simbólicas convencionais, visto que operam em diferentes níveis da

gramática. Assim, a construção pode ser caracterizada por qualquer elemento formal

diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma

estrutura informacional. Logo, a noção de construção cobre desde morfemas simples,

palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado

composicional, até padrões sintáticos abstratos.

Traugott (2008, p. 5) e Goldberg e Jackendoff (2004, p. 532-3) caracterizam a

Gramática das Construções como uma abordagem sincrônica em que:

a) forma e sentido são pareados como iguais;

b) a gramática é concebida de forma holística, ou seja, nenhum nível é central;

c) a gramática é baseada no uso, isto é, está baseada nos falantes e nas expressões;

d) construções individuais são independentes, mas relacionadas em um sistema

hierárquico com vários níveis de esquematicidade que podem interseccionar;

e) existe um cline de fenômenos gramaticais, desde o totalmente geral ao

totalmente idiossincrático.

Estas características são corroboradas por Croft (2001, p.18), para quem a

construção consiste em um pareamento de forma e sentido, cujo significado não se

restringe à soma dos sentidos dos membros da construção. Nesse sentido, a forma

compreende as propriedades sintáticas, morfológicas e fonológicas; e na dimensão do

sentido, situam-se as propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcionais, numa

correspondência simbólica interna à construção.

Croft (2001, p.18) propõe um modelo de estrutura simbólica para uma construção,

como podemos visualizar no Esquema 1:

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40 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção

_____________________________________________________________________

Propriedades sintáticas

Propriedades morfológicas FORMA

Propriedades fonológicas

← ELO DE CORRESPONDÊNCIA

SIMBÓLICA

Propriedades semânticas

Propriedades pragmáticas SENTIDO

Propriedades discursivo-funcionais

_____________________________________________________________________ Fonte: (CROFT, 2001, p. 18, adaptado)

Conforme o Esquema 1, o termo sentido está ligado a todos os aspectos funcionais

da construção. O sentido pode incluir não somente propriedades específicas da situação

descrita pelo enunciado, como também propriedades da situação pragmática dos

interlocutores e do âmbito discursivo maior de articulação.

Martelotta (2011) exemplifica essa relação entre gramaticalização e construção

gramatical por meio da análise do processo de mudança que envolve o uso da construção

um bocado de. Segundo Cunha (2010, p. 93), o uso da palavra bocado data no português

do séc. XIII. Originalmente, o termo bocado significa uma porção que cabe na boca,

formado da união boca + o sufixo –ado. Vejamos, a seguir, as amostras (3), (4), (5) e (6)

que ilustram o desenvolvimento da construção um bocado de.

(3) E nunca o rei come huu bocado seguramente, com temor de peçonha...(Boosco deleitos – séc.XIV, de

MAGNE, 1950)

(4) Ca nom he dace nenhuũa cousa aaqueles que esperam em engolir mui grave bocado que nom pode ser

escusado ...(Boosco deleitoso - séc.XIV, de MAGNE, 1950)

(5) Levem 7 litros de mel ao fogo, e assim que levantar fervura ponham no tacho 15 gramas de pimenta-do-

reino. Deixem ferver um pouco mais, e comecem a pôr no mel fervente bocados de farinha dos biscoitos,

alternados com 450 gramas de erva-doce, também lançada aos bocados. (Um tratado da cozinha portuguesa

do século XV, de GOMES FILHO, 1994)

(6) Em todos este trinta anos nao pôs pé no chao e tao pouco em muitos deles nao comeu coisa alguma tirando

um bocado de pao molhado ou parte de uma maça assada ou tâmara... (corpus do Português. Disponível

em:http://www.corpusdoportugues.org/)

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41 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Podemos observar, em (3) e (4), o sentido original que predomina no séc. XIV. Em

(5), o item bocado já vem empregado como uma medida de quantidade “bocados da

farinha”. Em (6), a expressão “um bocado de pao” já parece indicar a construção um

bocado de N, que, segundo Martelotta (2011), começa a ser empregada no séc. XVI, mas

com o sentido aproximado do original, relativo à boca.

Conforme o autor, somente a partir do século XVIII é que se encontram a

expressões um bocado de terra, um bocado de paciência, em que bocado na construção

quantifica algo que não se relaciona a alimentos. Assim, o item bocado passa a instanciar

uma construção mais ampla e mais generalizada na língua, por meio da estrutura (forma):

Det (determinante) + N1 (nome) + de (preposição) + N2 (nome), que semanticamente

indica quantidade, como podemos ver nas construções “um monte de gente”,“ um pouco

de açúcar”,“ uma pitada de sal”, entre outras, cujo elemento N1 passa a expressar a noção

de quantidade como termos designativos de coisas que podem funcionar como recipientes:

um punhado de, um bocado de; termos designativos de parte ou fração de um todo: uma

porção de, uma gama de; termos designativos de quantidade coletiva: um bando de, uma

cambada de; termos designativos de grandeza: um monte de, um montão de; e termos

designativos do ato de bater: uma paulada de, uma cacetada de.

Observando o desenvolvimento dessa construção, podemos desenhar a trajetória

gradual que caracteriza as alterações no uso de item bocado que passa a funcionar na

construção Det + N1 + de + N2. Na mudança gradual, o item começa a dessemantizar e

passa a ter características semânticas compatíveis com a construção como um todo. Além

disso, podemos observar que essa estrutura funciona como padrão para novas formações

que designem o sentido de quantidade da construção.

Cremos que essas informações básicas nos permitam analisar construções

coalescentes praqui praculá, vô mimbora, xeu vê, destá, em uso por parte da comunidade

dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.

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42 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

3 COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E ESTUDOS

Neste capítulo, conceituamos o fenômeno da coalescência, salientando desde já,

que é um processo linguístico ainda pouco explorado em nossa literatura. Além disso,

expomos e discutimos os parâmetros do Lehmann ([1982] 1995), que direciona um olhar

mais focado sobre o processo da coalescência, ao incluí-la como um processo da

gramaticalização. E discorremos também sobre gramaticalização de determinados itens

(logo mais expostos) que envolvem o processo de coalescências no português brasileiro.

Desse modo, introduzimos o capítulo estabelecendo a noção de coalescência, qual

seja: palavra de origem latina proveniente da forma coalecere, junção do prefixo co-

(junto) com o verbo alecere (crescer), significando, assim, o crescimento de duas partes em

uma única por mútua assimilação.

O termo coalescência possui acepções diferentes a depender das várias áreas de

conhecimento em que pode ser utilizado. A título de informação, esse termo pode ser

encontrado em áreas como a Linguística, a Psicologia, a Botânica, a Genética, a Medicina,

a Astronomia, a Meteorologia, a Física, a Química etc. Para este trabalho, portanto, atemo-

nos ao termo com seu uso corrente na área da Linguística.

Nessa perspectiva, como sua própria origem latina expressa, a coalescência consiste

na junção (crescimento ou acréscimo) de duas, e até mais palavras, formando uma única

construção. Martelotta (2011) chama esse mecanismo de univerbação. Na Língua

Portuguesa, há casos de junções de verbos bem como a junção de palavras pertencentes a

classes gramaticais diferentes e, até mesmo, sentenças inteiras que se transformaram em

palavras, quando não se reduziram a locuções gramaticais. Como exemplos, podemos citar

o caso das formas atuais: embora, amarei, portanto, entretanto, todavia, você, entre outras.

Mais adiante, discorreremos de modo mais específico sobre algumas dessas e de outras

formações coalescentes na história da nossa língua.

A formação coalescente é um fenômeno linguístico que ocorre há muito tempo em

nossa língua, como é o caso da contração da preposição de que perde fonema /i/ ao se unir

com artigos, pronomes e advérbios, como em do, dele e daqui.

Neste ponto, é importante registrar que a coalescência não é um fenômeno

específico da Língua Portuguesa usada no Brasil, mas ocorre em diversas outras línguas,

conforme atesta Bagno (2011, p. 184-5):

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43 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Em francês os pronomes indefinidos n‟importe quoi, n‟importe qui, n‟importe

où, n‟importe comment etc. se formaram com base no verbo importer e devem

ser traduzidos por „qualquer coisa‟, „qualquer um‟, „qualquer lugar‟, de „qualquer

forma‟ etc. (...) O francês peut-être, literalmente „pode ser‟, mas com o sentido

do nosso „talvez‟, é em tudo semelhante ao inglês maybe (de may „poder‟, e be,

„ser‟) e ao catalão potser, „talvez‟. Em inglês também são muitas as palavras

gramaticais provenientes de aglutinação: whenever, whoever, wherever, forever,

whatsoever, notwinthstanding, tonight, today, together, everyday, nowadays,

afternoon, however, anyhow, none, someone, sometimes, somewhere, alone (de

all, „todo‟ e one, „um‟: sozinho, que em francês se traduz exatamente por tout

Seul, literalmente „todo só‟) etc. A palavra „coisa‟ também aparece com

frequência em palavras gramaticais: quelque chose, em francês, com sentido de

„algo‟; cosa, em italiano, como interrogativo com o sentido de „o quê?‟;

qualcosa, também em italiano, „algo‟; anything, everything, nothing, something

em inglês, todos formados com base em thing, coisa‟ etc. (grifos do autor)

Apesar de a fusão entre palavras ser um processo que acontece no desenvolvimento

de diversas línguas, o termo coalescência empregado na perspectiva da gramaticalização

tornou-se mais usual a partir da proposta do funcionalista alemão Winfred P. Lehmann

([1982] 1995). Ele, com atenção ao processo gradual de mudança linguística e

considerando os diferentes níveis que um item pode atingir no processo de

gramaticalização, propôs parâmetros e processos que permitem aferir o estatuto gramatical

de uma forma linguística em níveis mais ou menos avançados de gramaticalização, a saber:

integridade, paradigmaticidade, variabilidade paradigmática, escopo, conexidade e

variabilidade sintagmática.

Dentre esses parâmetros, a conexidade corresponde ao grau de coesão de um item

com outros no sintagma. Segundo o autor, o aumento de coesão é chamado de

coalescência, e vai da justaposição à fusão (aglutinação), que é quando o item se torna, por

exemplo, afixo. Assim, quanto maior a coesão, mais gramaticalizado está o item.

Destacamos que o processo de coalescência não se dá de forma abrupta, mas passa

por fases. Inicialmente, há a aproximação de certos itens no uso linguístico de uma dada

comunidade, a justaposição, ou seja, não há perda ou acréscimo na junção entre as formas,

e só com o decorrer da alta frequência de uso dessas formas, ocorre a fusão ou aglutinação,

que consiste na junção das duas ou mais formas aproximadas. Nesses casos, porém, já

ocorre a perda de material fonológico, atingindo, portanto, o processo de coalescência.

Lembramos que esse fenômeno, assim como a maior parte das mudanças linguísticas,

ocorre num trajeto evolutivo ao longo de muito tempo.

Além disso, para que um termo se torne gramaticalizado, é preciso que faça parte

do uso linguístico de pelo menos um grupo (não apenas de um único falante) e, a partir de

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44 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

sua alta frequência pela comunidade de falantes, o termo passa a integrar o sistema

linguístico.

Na tentativa de compreendermos as razões que levam determinados itens a se

fundirem ou coalidirem, acreditamos que a concepção de gramaticalização proposta por

Bybee (2003) pode contribuir para um entendimento mais amplo de como ocorre o

processo de coalescência.

Para ela, a repetição tem um relevante papel no processo de gramaticalização,

porque uma sequência de morfemas ou palavras frequentemente usadas se torna

automatizada como uma única unidade no processamento linguístico do falante. Por essa

proposição, inferimos que o mesmo se dá com a formação e o uso dos itens coalescentes.

Bybee (2003) enumera cinco propriedades que explicitam as consequências

causadas pela repetição: (i) a frequência de uso leva ao enfraquecimento semântico por

habituação – processo pelo qual um organismo cessa de responder no mesmo nível a um

estímulo repetido; (ii) mudanças fonológicas – redução e fusão de construções – que estão

passando por gramaticalização são condicionadas pela sua frequência alta; (iii) o aumento

da frequência condicionada, um aumento da autonomia da construção, ou seja, os

elementos que compõem a construção enfraquecem semanticamente ou perdem a sua

associação com outros exemplos do mesmo item; (iv) a perda da transferência semântica

de construções em gramaticalização leva a ampliação do contexto de uso, estendendo a

possibilidade de novas associações pragmáticas; e (v) a autonomia de uma expressão

frequentemente cristalizada na língua condiciona a preservação de características

morfossintáticas obsoletas.

Tais propriedades parecem relacionar-se com a trajetória que o processo de

coalescência segue. Partindo do pressuposto de que o processo de coalescência pode se

fazer presente no decorrer da gramaticalização de determinados itens, Freitag (2010, p.

150) faz um comentário que justifica como se dá a relação gramaticalização e coalescência.

As mudanças fonológicas que ocorrem em construções que estão passando por

gramaticalização, como a fusão e a redução, são impulsionadas pela sua alta

frequência de uso. Morfemas ou construções com alta frequência de uso sofrem

mudança de som a uma velocidade mais rápida do que palavras ou construções

com baixa frequência de uso. (...) A perda da clareza semântica das construções

que estão passando por gramaticalização leva à ampliação do seu contexto de

uso. Um dos mecanismos mais atuantes no processo de gramaticalização é o

esbranqueamento semântico ou generalização, por meio do qual características

específicas do sentido vão sendo perdidas.

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45 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Nas proposições de Bybee (2003) e Freitag (2010), fica evidente o ponto de vista

aproximado sobre as mudanças que um item que está em processo de gramaticalização

pode comportar.

Na seção que segue, apresentamos mais detalhadamente os parâmetros de Lehmann

([1982] 1995), o que deve possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do processo de

coalescência.

3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995)

Para definir a gramaticalização, Lehmann ([1982] 1995) apoia-se em Meillet

([1912] 1948) e Kurylowicz ([1965] 1975), afirmando que a gramaticalização é um

processo que transforma lexemas em formativos gramaticais, e formativos gramaticais em

mais gramaticais ainda.

Visando aferir o grau de autonomia de um item e, consequentemente, o grau de

gramaticalidade, pois a autonomia de um signo é inversamente contrária ao seu estatuto

gramatical, Lehmann ([1982] 1995) propõe parâmetros, apoiando-se, em parte, numa das

dicotomias saussureanas: o sintagma e o paradigma.

Dessa forma, Lehmann ([1982] 1995) une a visão saussureana de sistema interno da

língua (formalista) ao usar a dicotomia paradigma/sintagma e as forças externas

(funcionalistas) ao usar critérios como: o peso, a coesão e a variabilidade. O autor visa,

com esse modelo de parâmetros, à identificação não do fenômeno da gramaticalização,

mas da autonomia de um signo. Contudo, o critério de autonomia implica a

gramaticalização, uma vez que quanto mais autônomo um item, menos gramaticalizado é,

e quanto mais dependente, mais gramaticalizado.

Gonçalves et al. (2007, p. 70-1), esclarecendo a questão da autonomia e da

gramaticalização a partir dos parâmetros de Lehmann, propõe que:

Paradigmática e sintagmaticamente, essa autonomia diminui à medida que o item

contrai certas relações de coesão (paradigmaticidade vs escopo) com outros

signos, e aumenta quanto maior sua variabilidade, mobilidade ou alternabilidade

com outros itens (variabilidade paradigmática vs variabilidade sintagmática).

Com o propósito de facilitar a compreensão acerca do que está sendo exposto,

apresentamos, a seguir, o quadro que contempla os seis parâmetros de Lehmann:

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46 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização

Parâmetros GR4 incipiente Processo GR avançada

Integridade

(peso)

Item possivelmente

polissilábico com muitos

traços semânticos

Atrição Item geralmente

monossilábico, com

poucos traços semânticos

Paradigmaticidade

(coesão)

Participação “frouxa” do

item em um campo

semântico

Paradigmatização Item integra paradigma

pequeno, altamente

integrado

Variabilidade

Paradigmática

(variabilidade)

Escolha livre dos itens,

segundo as intenções

comunicativas

Obrigatoriedade Escolhas

sistematicamente

restritas, uso obrigatório

Escopo

(peso)

Relações do item com

constituintes de

complexidade arbitrária

Condensação Item modifica a palavra

ou a raiz

Conexidade

(coesão)

Justaposição do item

independentemente

Coalescência

(união)

Item é afixo ou traço

fonológico

Variabilidade

Sintagmática

(variabilidade)

Liberdade de movimento do

item

Fixação O item ocupa uma

posição fixa

Fonte: (LEHMANN, [1982] 1995, p. 164, adaptado)

Segundo Lehmann ([1982] 1995), esses seis parâmetros podem ser estudados de

forma isolada quanto às funções envolvidas no processo de gramaticalização. Porém,

quanto à sua correlação, o autor indica que eles são teoricamente dependentes um do outro,

devido a sua base constitutiva.

Conforme já comentado, o autor divide seus parâmetros em dois eixos: o

paradigmático e o sintagmático, pretendendo, com isso, mostrar que, no eixo

paradigmático (integridade, paradigmaticidade e variabilidade paradigmática), observa-se a

integração dos traços semânticos do item, o grau de participação no domínio funcional das

formas de expressão do quadro de que ele faz parte e a possibilidade de sua escolha,

considerando outros itens de mesmo valor semântico-pragmático.

Já no eixo sintagmático (escopo, conexidade e variabilidade sintagmática),

observam-se as relações que o item estabelece com outros constituintes das diferentes

construções de que ele participa, sua colocação e seu grau de mobilidade na construção.

Caetano (2011) reproduz o quadro da obra original de Lehmann, porém o apresenta

em dois momentos distintos, isto é, divide-os de acordo com os eixos propostos por este,

com adaptações realizadas de sua parte, conforme podemos verificar nos Quadros 2 e 3.

_____________________________ 4 A sigla GR utilizada no quadro 1 refere-se ao termo gramaticalização.

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47 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

A fim de didatizar um pouco mais os parâmetros de Lehmann, apresentamos

também a proposta de Caetano (2011, p. 72):

Quadro 2 - Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático

Parâmetros

(aspectos)

GRAMATICALIZAÇÃO

(Gr) iniciante Processo ou curso de

gramaticalização GRAMATICALIZAÇÃO

(Gr) avançada PESO

(Integridade) Item provavelmente

polissilábico, com

proeminência de traços

semânticos

Atrição fonológica ou

erosão fonética por

causa da

dessemantização ou

bleaching semântico

Item provavelmente

dissilábico >

monossilábico, com raros

traços semânticos ou

extralinguísticos COESÃO

(Paradigmaticidade) Correlação e participação

“frouxa” do item em dado

campo semântico

Paradigmatização Item integra paradigma

pouco vasto e muito inter-

relacionado a outros do

mesmo paradigma VARIABILIDADE

(Variabilidade

Paradigmática)

Liberdade de escolha dos

itens, segundo as intenções

pragmáticas de

comunicação

Obrigatorização ou

Obrigatoriedade Escolhas cada vez mais

sistematicamente restritas

> uso cada vez mais

obrigatório Fonte: (CAETANO, 2011, p. 72 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164)

Caetano (2011, p. 73) destaca, no Quadro 2, que, no eixo paradigmático, os três

aspectos centrais da teoria de Lehmann apontam para baixa gramaticalização, uma vez que

esse eixo remete ao eixo das possibilidades, os usos linguísticos têm maior liberdade. Ao

passo que, inversamente, quanto ao eixo sintagmático, os parâmetros do mesmo autor

revelam graus mais elevados de gramaticalização, pois no eixo sintagmático os itens

estabelecem um posicionamento mais definido nas situações comunicativas de uso,

conforme podemos notar no Quadro 3 a seguir.

Quadro 3 - Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático

Parâmetros

(aspectos GRAMATICALIZAÇÃO

(Gr) iniciante Processo ou curso de

gramaticalização GRAMATICALIZAÇÃO

(Gr) avançada PESO

(Escopo, objetivo ou

meta)

Relações do item com

constituintes de

complexidade arbitrária

Condensação Item modifica a palavra >

o radical > a raiz

COESÃO

(Conexão ou

conexidade)

Independência de

Justaposição do item União ou coalescência Item é afixo ou morfema

redundante (geralmente

traço fonológico) VARIABILIDADE

(Variabilidade

Sintagmática)

Liberdade de movimento

do item Fixação O item passa a ocupar

posições cada vez mais

fixas Fonte: (CAETANO, 2011, p.73 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164)

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48 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

De modo sintético, a apresentação de cada parâmetro pode ser assim descrita:

(I) Integridade – refere-se ao tamanho substancial de um signo considerando seu caráter

semântico e fonológico. Segundo o autor, esse parâmetro diferencia um signo dos demais

membros de sua classe e dá-lhe certa proeminência no contraste com outros signos.

(II) Paradigmaticidade – diz respeito ao grau de coesão de um item com outros em um

paradigma, ou seja, relaciona-se a “classes abertas”, as das formas nocionais, e “classes

fechadas”, as das formas gramaticais. Desse modo, para aferir esse parâmetro, há que se

levar em conta a integração formal e semântica do item em análise dentro desse paradigma.

(III) Variabilidade paradigmática – possibilidade de escolha de um signo dentro de um

paradigma, sendo possível até a escolha pelo “zero”. É nesse momento que uma forma

pode passar a competir com outra, tornando-se a preferida em um dado contexto. Em

outras palavras, esse parâmetro refere-se à liberdade com a qual o indivíduo escolhe um

signo dentre aqueles pertencentes a um mesmo paradigma (ou não escolhe nenhum deles),

deixando que essa seleção ocorra pelo contexto de uso. Devido a essa possibilidade de

escolha, tanto a Sociolinguística quanto a Estilística podem servir como aparatos

explicativos relevantes.

(IV) Escopo – refere-se à extensão da construção de um item. Assim, quanto mais

gramaticalizado um item, menor é seu escopo. Um item gramaticalizado passa a

relacionar-se com uma palavra ou com um radical (sua extensão é limitada).

(V) Conexidade – trata-se da coesão de um item com outro, ou seja, trata-se do grau com

que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Esse critério aplica-se mais

em casos de morfologização, porém sua aplicação também é possível em outros casos.

(VI) Variabilidade sintagmática – esse critério tem tendência à ordem fixa dos

constituintes. A posição fixa do item dentro do sintagma é indício de aumento de

gramaticalidade como, por exemplo, quando um item lexical atinge um alto grau de

morfologização.

Para compreendermos a transição entre gramaticalização incipiente ou inicial e a

gramaticalização avançada, temos que compreender os parâmetros propostos por Lehmann

([1982] 1995) e os processos responsáveis por essa transição. Conforme os Quadros 1, 2 e

3, apresentamos, a seguir, os seis processos indicados por ele: atrição, paradigmatização,

obrigatoriedade, condensação, coalescência e fixação. Passemos, portanto, a cada um

deles:

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49 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

1º) Atrição – esse processo está diretamente relacionado ao desgaste fônico e inclusive à

perda semântica. Daí a afirmação de que esse processo pode ser analisado sob duas

perspectivas: a da atrição fonológica (ou erosão fonética, nos termos de Heine et al., 1991)

e a da dessemantização ou bleaching semântico. Esse processo ocorre devido à alta

frequência de uso.

2º) Paradigmatização – nesse processo, verifica-se o tamanho e a homogeneidade do

paradigma, ou seja, a quantidade de similaridades entre seus membros integrantes e a

regularidade nas diferenças entre eles. Embora seja complexo precisar o tamanho do

paradigma que o item em gramaticalização passa a integrar, Lehmann alerta para o fato de

que paradigmas altamente gramaticalizados tendem a ser menores do que os menos

gramaticalizados.

3º) Obrigatoriedade – esse processo representa mais uma tendência de a forma opcional

tornar-se obrigatória, porque nesse processo está contida a liberdade com a qual o sujeito

escolhe ou não um signo para um dado contexto de uso. Contudo, a obrigatoriedade se

impõe quando há de fato escolhas sistematicamente restritas.

4º) Condensação – refere-se à redução das formas e isso ocorre quando, na transferência

(por meio da condensação) de um estado da língua para outro, o item passa da relação com

constituintes de complexidade arbitrária para a relação com palavra ou com radical.

5º) Coalescência – trata-se da coesão de um item com outro, isto é, refere-se ao grau com

que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Assim, a coalescência é

compreendida como uma união ou fusão entre itens ou tendência de aglutinação de formas

adjacentes.

6º) Fixação – diz respeito à posição fixa do item dentro de um sintagma (indício de seu

aumento de gramaticalidade), como ocorre quando um item lexical atinge um grau alto de

morfologização. Em outras palavras, por esse processo, pode-se entender que a ordem,

antes livre, torna-se fixa.

Apresentado cada processo contido nos parâmetros de Lehmann ([1982] 1995),

observamos, portanto, que, de fato, há uma correlação entre eles. Um item pode ser

analisado sob a perspectiva dos seis processos, como se um processo condicionasse

diretamente o outro. Isso ocorre pelo fato de eles serem teoricamente dependentes um do

outro, tendo em conta a base dedutiva comum da sua constituição.

Depois dessa exposição, que serve ao propósito de aferir o grau de autonomia de

um item e, consequentemente, o grau de gramaticalidade, na seção seguinte passamos a

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50 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

refletir sobre formas linguísticas utilizadas na Língua Portuguesa atual que, no entanto, são

originadas pelo processo coalescente. Ressalvamos que, devido ao uso atual e às novas

funções atribuídas a essas palavras, o falante comum finda por não saber ou não perceber o

enlace de palavras que deu origem à forma coalescente, que utilizamos comumente sem a

consciência de tal processo formador.

3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa

Nesta seção, expomos alguns casos em que palavras hoje consideradas

gramaticalizadas são provenientes de um longo percurso histórico que envolve o processo

de coalescência. Uma vez gramaticalizadas, essas palavras passaram por diversas etapas,

como: o enfraquecimento semântico atenuado; fixação em lugares precisos na

morfossintaxe e a perda de material sonoro ou erosão fonética. Contudo, muitas delas,

cristalizaram-se de tal maneira que sua forma original não é reconhecida pelos usuários

comuns da língua.

Conforme mencionamos anteriormente, a coalescência não é um processo surgido

recentemente. Ao contrário, diversas gramáticas históricas trazem registros desse processo,

por isso apresentamos também algumas formas do latim (origens etimológicas) que se

fundiram, visto que a Língua Portuguesa é originária do latim.

A título de ilustração de formas provenientes de uma junção de palavras e que

sofreram gramaticalização, podemos mencionar a palavra embora, que provém da locução

adverbial em boa hora (in + bona + hora). Conforme Coutinho (1976), os advérbios

portugueses derivam-se do latim, especialmente do latim vulgar e nessa modalidade era

comum e mais frequente o uso de locuções com valor adverbial.

O latim clássico tinha várias terminações para formar os advérbios de modo.

Eram elas: -im, -ter, -tus, -e, -o,-um: sensim, firmiter, radicitus, romanice, certo,

multum. Tais advérbios de modo não passaram ao latim vulgar. Dos terminados

em –e, entretanto, podem ser citados: tarde > tarde, bene > bem, male > mal.

Para compensar esta perda, usou longamente o latim vulgar duma locução que

consistia em se ajuntar a um adjetivo qualquer no feminino a palavra mens, tis

(espírito) no caso ablativo (...)

Desta locução surgiu o novo processo de formação de advérbios de modo que se

radicou nas línguas românicas. (COUTINHO, 1976, p. 264, grifos do autor)

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51 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Além do embora, o mesmo autor apresenta uma lista de outros advérbios

portugueses que têm sua origem no latim e, assim como aconteceu com a palavra embora,

que se formou a partir da aglutinação de palavras diferentes, o mesmo aconteceu com

outros advérbios: avante < ab+ ante, atrás < ad +trans, após < ad + post, jamais < Jam +

magis, quiçá < quid + sapit entre muitos outros.

Bagno (2011, p. 184) também expõe alguns advérbios que foram criados a partir de

locuções adverbiais latinas: “Nosso advérbio hoje provém de hodie, que já era uma

gramaticalização em latim de hoc die „este dia‟, enquanto ontem provém de ad noctem, „ à

noite‟.”

No caso da palavra embora, Said Ali (2001) menciona que a locução em boa hora,

presente em frases optativas/ imperativas, era usada para expressar sinceridade ou por mera

cortesia, tal expressão começou a ser proferida em razão da crença de que o êxito dos atos

humanos dependia da hora em que eram empreendidos.

Com o uso frequente, o autor relata que as três palavras fundiram-se em uma só.

Contudo, a palavra aglutinada embora continuou a ser usada nos contextos como advérbio

temporal, mas, com o passar do tempo, essa forma passou a figurar em certos contextos

como concessão, como possibilidade de um fato. A partir disso, o uso de embora veio a

transformar-se em conjunção concessiva.

Coutinho (1976) registra a mudança de função do embora, de advérbio para

conjunção concessiva, ou seja, o processo de gramaticalização na palavra embora já

apresentava o seguinte trajeto: ADVÉRBIO > CONJUNÇÃO. Assim sendo, durante um

período do tempo, a forma embora admitia dois usos funcionais diferentes, ou seja, o item

tanto era usado para desejar boa sorte no momento de determinada ação, como era usado

para indicar concessão, isto é, funcionava tanto como advérbio temporal como conjunção

concessiva, e o contexto se encarregava de indicar tal diferença.

Além do embora, outras conjunções, como porém e contudo, são casos típicos de

formações coalescentes. Para evidenciarmos o caráter coalescente dessas formas,

recorreremos também as suas origens etimológicas.

Sobre as conjunções, Coutinho (1976, p. 269) relata que:

Ao contrário das preposições, poucas foram as conjunções que o português

herdou do latim.

Para suprir tal deficiência, recorreu a língua às outras classes de palavras,

sobretudo aos advérbios e às preposições, dando-lhes função conjuncional:

todavia, também, para que, depois que, etc. (grifos do autor)

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52 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Pelas observações do autor, já podemos identificar o processo de gramaticalização

comum a muitas palavras que são empregadas na sincronia atual como conjunções.

Em consonância com Coutinho (1976), Mattos e Silva (2001) relata que, entre as

coordenativas, apenas e, ou e nem já se encontravam entre as conjunções coordenativas

latinas; as demais se originam do português arcaico. Ainda segundo Mattos e Silva (1996),

o período correspondente ao português arcaico começa no século XIII e vai até o século

XV (momento histórico que ficou conhecido também por período ou fase medieval).

Ainda sobre o período medieval, o português, assim como as demais línguas

românicas em geral, passou por grandes mudanças, entre as quais as conjunções ganham

destaque. Meillet ([1912] 1948), ao observar a formação das conjunções em geral, conclui

que elas são elementos susceptíveis à renovação constante, processo esse comum às

línguas em geral.

Embora as conjunções, até aqui mencionadas, não remontem ao latim com tal

função (até porque poucas foram as conjunções herdadas do latim), é relevante termos em

mente que as línguas românicas surgem do latim popular (língua amplamente usada pelo

povo daquela época), de modo que a origem epistemológica no que se refere à formação

dessas palavras ─ porém e contudo ─ traz à tona referências do latim, bem como marcas

do latim popular como, por exemplo, a preferência por formas analíticas em detrimento do

sintetismo peculiar do latim clássico. Daí porque, a priori, as formas porém e contudo se

originaram, respectivamente, das formas por ende, co tudo.

Ainda sobre essas conjunções, Barreto (1999) apresenta, em glossário, as origens

etimológicas das duas conjunções adversativas. Em seu glossário, porém se origina da

preposição latina per + em, forma que sofreu apócope do advérbio latino ende, que

funcionava como pronome.

Cunha (2000, p. 623) também descreve as origens etimológicas do porém da

seguinte forma: “porém conj. „contudo, todavia‟ǀ XIV, porende XIII, poren XIV etcǀ De

por + ende (<lat. Ǐnde), frequente no port. Med., desde o séc. XIII”.

Já o contudo formou-se da preposição com (do latim cum) + indefinido tudo (do

latim totu-).

Como já afirmamos com Coutinho (1976), foi necessário usar outras classes de

palavras como advérbios e preposições para originar novas conjunções. Por isso,

acreditamos que, para a formação dessas novas conjunções, fez necessário o uso do

processo de aglutinação, ocorrendo também a gramaticalização desses termos.

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53 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Segundo Meillet ([1912] 1948), as conjunções adversativas se enquadram em suas

propostas, já que, de uma classe acessória (a dos advérbios, elementos sem autonomia

plena), chegou-se a uma classe gramatical, a das conjunções. Salientamos que, nessa fase

de transição entre as categorias, ocorre o que Meillet denomina de “esvaziamento de

sentido”. Tanto o é que a função adverbial é determinada por suas propriedades

pronominais.

Logo, para o autor referido, o desaparecimento das formas latinas e a formação de

conjunções empreendidas no português medieval nada mais são do que a gramaticalização

em plena atividade.

Sobre as conjunções adversativas de um modo geral, é mister mencionarmos a

existência de um conflito entre estudiosos no que se refere à classificação desses itens, de

modo que há aqueles que defendem esses itens como pertencentes à categoria dos

advérbios e há os que os definem como conjunções adversativas. A esse respeito, Bagno

(2011, p. 891) afirma que:

Embora a TGP continue a dizer que entre as conjunções adversativas se incluem

as formas porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto, os estudiosos

contemporâneos rejeitam essa classificação e incluem esse itens, como fizemos,

na classe dos advérbios. Assim procedem, por exemplo, Perini (1996:45),

Bechara (1999:322), Neves (2001:241), Azeredo (2008:306) e Castilho

(2010:354). Ao contrário de mas esses itens, por serem advérbios , admitem uma

ampla mobilidade no interior da sentença (...).

Outra característica dos advérbios, além da mobilidade dentro da sentença, é

poderem vir antecedidos da conjunção aditiva e, como no exemplo acima ─ e no

entanto o homem está sujeito ─ , o que é impossível para a conjunção

adversativa: e mas eu sei que a Bernadete.. (grifos do autor)

Em contrapartida, trabalhos recentes (cf. ROCHA, 2006) defendem a ideia de que

palavras como mas, porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto podem ser

classificadas como conjunções adversativas.

Lembramos que o interesse pelos termos porém e contudo, nesta pesquisa, está no

fato de sua formação provir do processo de coalescência, entendendo este como um

processo que faz parte do trajeto histórico de nossa língua.

Ainda para exemplificar as formas coalescentes presentes na história da Língua

Portuguesa, não poderíamos deixar de citar a gramaticalização ocorrida com o pronome

você que, ao longo do tempo, passou pelo processo de coalescência.

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54 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Etimologicamente, o pronome você provém da expressão Vossa Mercê, formada

por pronome possessivo (Vossa) mais um nome abstrato (Mercê). Através do processo de

mudança linguística, essa forma composta sofreu erosão fonética do seguinte tipo: Vossa

Mercê > Vossemecê > Vosmecê > Vosmicê > Você.

Atualmente, podemos notar que a palavra você tem sofrido outras reduções como:

ocê > cê. Desse modo, por meio da evolução em evidência, percebemos que uma

construção usada a priori como pronome possessivo + um nome abstrato se colidiu e, no

momento presente, é usada como uma única palavra.

Sobre essas transformações, Coutinho (1976, p.133) faz o seguinte comentário: “Os

tratamentos Vossa excelência e Vossa Mercê deram, respectivamente, vossência e você.

Variantes populares desta última forma, no Brasil, são vossemecê, vosmicê, vomecê,

vamencê, vamincê, vancê, mecê, ocê”. (grifos do autor)

Além do desgaste fonético, o pronome de tratamento Vossa Mercê também sofreu

enfraquecimento ou “desbotamento” semântico e extensão pragmática, generalizando-se

como pronome pessoal recorrente da segunda pessoa do singular. Assim, podemos

ressaltar que a alta frequência de uso desgastou o propósito comunicativo inicial de

cortesia, respeito, distanciamento, indiretividade, características dos pronomes de

tratamento.

Estudos diacrônicos, segundo Lopes (2010), têm mostrado que a expressão de

tratamento “Vossa Mercê” e suas variantes como: vosmecê, mecêa, vosse... já chegaram ao

Brasil sem a força cortês dos primeiros tempos ─ século XIII a XIV ─ quando era

empregada para se dirigir ao rei com deferência. Mas foi por volta da metade do século

XVIII que o emprego de Vossa Mercê e você tornaram-se funcional e discursivamente

divergentes.

A partir daí, a forma popular você tornou-se produtiva nas relações assimétricas de

superior para inferior, isso porque a forma Vossa Mercê ainda se fazia presente nas

relações assimétricas de prestígio, ao passo que o uso da forma você expandia seu contexto

de uso. É justamente devido a essa expansão pragmática do termo você que, no século

XIX, aqui no Brasil, a forma você passou a concorrer com o pronome pessoal tu em

relações solidárias mais íntimas e de confiança.

Acerca disso, Lopes (2010, p. 13) relata que:

(...) a implantação de você não ocorreu da mesma forma em todos os subtipos de

pronomes (pessoais, possessivos, demonstrativos, oblíquos, etc.), gerando um

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55 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

paradigma pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a terceira

pessoa do singular. Você e tu coexistem no singular e vocês é praticamente

categórico no plural na posição de sujeito, nas demais posições, contudo, nem o

pronome complemento o/a/os/as nem o possessivo vosso se mantiveram

produtivos, em seu lugar se empregam com maior freqüência te variando com

você, lhe e objeto nulo; teu/tua variando com seu/sua, de você(s) e o uso do

imperativo formado a partir do presente do indicativo (imperativo de 2ª pessoa)

variando com o de subjuntivo (imperativo de 3ªpessoa). (grifos do autor)

Diante de todo esse processo de mudança linguística, que ocorreu e que ainda vem

ocorrendo com a forma você, podemos dizer que o que, de fato, inseriu a forma você no

quadro de pronome pessoal de segunda pessoa do singular, substituindo diversas vezes o

pronome tu, foi a posição de sujeito pleno que a forma pronominal você adquiriu.

A forma você apresenta reduções como ocê e cê no uso linguístico de algumas

comunidades de falantes do Brasil. Sobre isso, Vitral e Ramos (2006) constataram que a

redução fonética cê só ocorre na posição de sujeito, enquanto ocê se combina a formas

preposicionadas (e.g. isso é procê). Nesse último caso, podemos observar que a forma

reduzida do pronome você vem apresentando, no momento presente, novas coalescências

(a união do pronome ocê com preposições), especialmente, nas variedades populares,

como, por exemplo, nocê, procê, docê.

Bagno (2011, p. 184) também faz menção ao processo de gramaticalização do

pronome você:

No PB, esse pronome já alcançou o estágio da cliticização: quando exerce a

função de sujeito, e somente nessa função, se reduziu a cê, que ocorre

exclusivamente em próclise ao verbo: cê viu, cê sabe, cê quer?

Em algumas variedades, com destaque para Minas Gerais, é muito corrente a

forma ocê, que contrai com as preposições formando docê, nocê, concê, procê.

Na função de sujeito, ocê concorre com cê. Tendo se tornado um verdadeiro

clítico-sujeito, não tem nenhuma justificativa a persistência da gramática

normativa em classificar você como “pronome de tratamento”, já que ele é, de

fato, o índice de segunda pessoa mais empregado em todo Brasil. (grifos do

autor)

É na posição de sujeito que a gramaticalização do pronome você está mais

avançada, pois esse pronome passou a funcionar como clítico. No caso em questão, o

pronome de tratamento Vossa Mercê sofreu enfraquecimento semântico, extensão

pragmática, erosão fonética e fixação pragmática até se transformar na forma que usamos

atualmente, você.

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56 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Mesmo tendo passado por todas essas etapas de mudanças, o pronome você

continua a trazer marcas que lembram sua forma original como a indiretividade, o que, por

sua vez, estaria relacionado a um processo de abstratização do sema de cortesia. Além

disso, outra evidência que relembra a origem do termo você provindo de um pronome de

tratamento se encontra no fato de que, mesmo substituindo a segunda pessoa do singular

tu, a concordância verbal mantém a especificação formal de terceira pessoa, característica

típica de sua forma inicial.

Essas marcas da forma origem vão ao encontro do princípio de persistência,

proposto por Hopper (1991), segundo o qual certos itens e construções findam por deixar

vestígios de sua história evidenciados em sua forma e/ou em seu significado, em qualquer

momento temporal. Por esse princípio, é possível investigar a linha evolutiva de um

determinado item ou construção para melhor compreender o modo pelo qual essa forma é

utilizada no tempo contemporaneamente.

Diante dos casos até aqui apresentados, percebemos que o processo de mudança

linguística tem uma motivação pragmático-discursiva. Em outras palavras, os casos de

construções coalescentes seriam utilizadas a priori casualmente no discurso com uma

função comunicativa e, embora tivessem funções gramaticais, seus usos não eram

necessariamente sistemáticos e fixos. Somente com o aumento da frequência desses usos é

que essas formas se enrijeceram e tornaram-se totalmente gramaticais.

Portanto, de modo geral, a coadunação entre palavras é um processo de longa data

que se dá no discurso, no uso não necessariamente sistemático, mas com o aumento da

frequência, essas palavras aglutinadas findam por tornarem convenções, ou seja,

gramaticalizam-se.

O trajeto histórico da língua apenas reforça o fato de que a coalescência não é um

processo linguístico novo na história da Língua Portuguesa.

Na seção que segue, discorremos sobre os estudos recentemente desenvolvidos no

Brasil sobre a gramaticalização, cujos objetos de estudo são palavras formadas por

processo de coalescência.

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57 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no

Português Brasileiro

Muitos são os estudos que têm se desenvolvido no Brasil com o objetivo de

compreender e explicar a ocorrência da gramaticalização, entre os quais destacamos os de

Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008) e, embora haja outros, daremos ênfase a

esses, pelo fato de apresentarem, em seus objetos de análise, o processo de coalescência.

Nunes (2003) apresenta um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente,

com o objetivo de reconstruir o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português

contemporâneo, analisando o grau de variação na fala oral entre formas sintética e

perifrástica na cidade de Pelotas/RS, a fim de confrontar as formas encontradas ao longo

do trajeto do futuro do presente para identificar as mudanças e apontar os elementos

desencadeadores do processo que determinam a sobrevivência de uma forma em

detrimento de outra.

Para dar conta do primeiro objetivo da pesquisa, Nunes aponta a heterogeneidade

existente na língua latina bem como o sistema verbal empregado na época. Assim, observa

que o latim clássico empregava a forma sintética, no tocante ao uso verbal (imperabo;

legam). Já o latim popular (chamado de vulgar pela autora) optava pelo uso de perífrase

verbal (imperare habeo; legere habeo).

Nunes (2003) explica que o povo passou a usar a perífrase verbal devido ao futuro

do presente apresentar formas semelhantes em algumas das pessoas da conjugação do

pretérito perfeito (educavit), do presente do indicativo (legis) e do presente do subjuntivo

(legam). Essas formas “parecidas” incitaram o uso de uma forma simples constituída de

Infinitivo do verbo principal + presente do indicativo do verbo auxiliar.

Para a construção de sua trajetória, a autora observa que o processo evolutivo da

perífrase do futuro do presente continuou. Tanto é que, no período arcaico da Língua

Portuguesa, o verbo auxiliar apresentou uma forma sincopada, evoluída do verbo auxiliar

(habeo > hei), que constituiu uma nova expressão de futuro “estudar hei”. Em pouco

tempo, o verbo “hei” tornou-se uma desinência verbal para o verbo no infinitivo

(estudarei), completando temporariamente o processo de gramaticalização.

Diacronicamente, Nunes (2003) remontou à seguinte trajetória do futuro do

presente:

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58 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente

Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei

Forma analítica Forma sintética

do passado do presente

Fonte: (NUNES, 2003, p. 18)

Como no processo evolutivo da língua não é obrigatória a paralisação, podendo

apenas ocorrer a estabilização temporária, a pesquisa de Nunes (2003) apresenta a

evolução do futuro do presente, até o português contemporâneo. Para isso, a autora

analisou amostras que permitiram avaliar o grau de variação entre a forma sintética e a

perifrástica, na cidade de Pelotas/RS.

Conforme vai construindo sua análise, a autora reconstitui o trajeto do futuro do

presente, incluindo uma nova forma recorrente, sobretudo na linguagem oral dos

pelotenses:

Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente

Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei ~ vou amar

Forma analítica Forma sintética Forma analítica

do passado do presente inovadora

Fonte: (NUNES, 2003, p. 89)

Desse modo, a autora aponta o processo de gramaticalização como sendo

responsável pelas mudanças formais no verbo, que são tidas como variantes, mas que

depois constituíram mudanças na língua e foram incorporadas às normas gramaticais,

indicando que o processo de aceitação das novas formas linguísticas é lento e gradativo.

A pesquisa de Nunes (2003), em linhas gerais, trata das formas verbais formadas

pelo futuro do presente e que, na forma sintética atual, passaram por processo de

coalescência, já que houve uma fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal tornando-

se uma única palavra.

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59 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Nessa mesma perspectiva, o trabalho de Rocha (2006) tem como objetivo investigar

a motivação conceptual que levou os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no

entanto a apresentarem traços comuns capazes de justificar o fato de serem

tradicionalmente englobados sob o mesmo rótulo em português: o das conjunções

adversativas.

Inicialmente, Rocha (2006) apresenta uma lista de autores (BECHARA, 1999;

NEVES, 2001; ROCHA LIMA, 1994, dentre outros) que classificam os itens referidos não

como conjunções adversativas, mas como pertencentes à categoria dos advérbios, com

exceção de mas, que é por eles considerada uma conjunção adversativa.

De encontro ao ponto de vista desses autores, Rocha (2006) indica que os que

discordam de que os itens porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto sejam

classificados como conjunções adversativas, o fazem por acreditar que a falta de fixação

das conjunções está no fato de funcionarem, no português medieval, como advérbio. Além

disso, apegam-se à ordem sintática e acabam por excluir a relação semântica presente nos

contextos em que esses itens são usados.

Por meio de sua análise, Rocha (2006) defende a motivação metafórica como

condição possível para que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto

apresentem traços comuns capazes de justificar o fato de serem englobados sob o mesmo

rótulo em português: o de conjunções adversativas.

A autora justifica a motivação metafórica pelo fato de a palavra mas, por exemplo,

ter guardado, em sua origem etimológica o sentido de comparação (herança do sentido de

inclusão). Assim, ao longo do tempo, vem se especializando em contextos contrajuntivos,

opacificando os seus sentidos originais, ou seja, gramaticalizando-se e passando a ligar-se,

para o falante, à própria ideia de contrajunção.

Rocha (2006) conclui que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no

entanto servem para sinalizar relações contrajuntivas existentes entre unidades do texto

que devem também ser analisadas segundo o sentido global do texto em que se inserem.

Por mais polissêmica que seja a relação contrajuntiva, ela se assenta sobre o sentido

básico da diferença, do choque existente não entre dois segmentos, mas entre duas ideias

que, quando não expressas linguisticamente, podem ser apreendidas por uma análise que

compreenda os domínios epistêmicos e conversacional da língua e considere o

subentendido que permeia a linguagem como um todo.

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60 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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A presença da coalescência é também observada em estudo realizado por Barreto

(1999), que apresenta um glossário para explicar a formação dessas mesmas conjunções.

Segundo a autora, o porém origina-se da preposição latina per + em, forma apocopada do

advérbio latino ende; contudo forma-se da preposição com (do latim cum) + indefinido

tudo (do latim totu-); todavia constitui-se de toda (do latim tuta-) + via (do latim via);

entretanto forma-se da preposição entre (do latim inter) + tanto (do latim tantu); entanto

forma-se da preposição em + indefinido tanto (do indefinido latim tantu).

Assim, embora a pesquisa de Rocha (2006) não trabalhe o processo da coalescência

propriamente dito, finda por analisar itens que se formaram por meio do processo

coalescente.

Felício (2008) é outra autora que também trabalha a gramaticalização de um item

formado pelo processo de coalescência. Nesse caso, a autora trabalha com a

gramaticalização de embora, que, conforme já mencionado, forma-se a partir do processo

coalescente entre as formas: em + boa + hora que, em latim, correspondia a in bona hora.

O trabalho de Felício (2008) se baseia em dados sincrônicos e diacrônicos do

português e tem como principal objetivo investigar o processo de mudança responsável

pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de significado) da conjunção

concessiva embora.

Para isso, a autora segue o trajeto da forma embora do século XV ao XIX,

indicando que, no século XV, usava-se a expressão em boa hora e, conforme descrito por

Said Ali (2001), a expressão era usada para desejar boa sorte no momento de determinada

ação (a expressão funcionava como locução adverbial temporal), como é exemplificada por

Felício (2008, p.10):

(07) Vaamos em boa hora nosso caminho. (Zurara, Guiné 337)

Pelo trajeto histórico, Felício (2008) relata que é a partir do século XVI que

começam a surgir os primeiros indícios da aglutinação da expressão em boa hora com a

perda do /a/ do adjetivo boa, passando a ser usada assim: em bo‟ hora. Contudo, nesse

mesmo século, era possível notar o uso das seguintes formas: em boa hora, em bo‟ hora e

embora. Nesse período, as três formas citadas exerciam a função de advérbio, podendo

indicar circunstâncias como tempo, espaço ou ainda tempo/concessão.

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61 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

As formas em boa hora, em bo‟hora e embora eram compreendidas como advérbio

temporal quando denotavam um bom momento. Além disso, o acompanhamento de verbos

como: nascer, ficar e ser, usados no pretérito do indicativo, no imperativo e/ou no

subjuntivo eram evidências que as caracterizavam como locução/ advérbio temporal.

Assim, Felício (2008, p.139) evidencia o uso do embora com essa conotação no

exemplo (08):

(08)

Eu quero-o ir avisar

Ca lhe cumpre de rezar,

E tornar-se a seu serviço.

Por sua cruz, manas minhas,

Qu‟ella está dele assanhada

Oh virgem nossa avogada

Que os gados encaminhas!

Quem m‟a vira!

Quem lá fora!

Tu, prima, nasceste embora

Se viras o cachopinho,

Tão formoso e sesudinho,

Filho de nossa Senhora!

Tudo eu hei de dizer

Ao nosso cura tá ó cabo,

E o prol (16 APP,36)

Porém, se essas formas viessem precedidas junto a um verbo de movimento, como

“vir” ou “ir”, com ou sem a presença de vocativo, as mesmas passavam a ser

caracterizadas como advérbio espacial. Felício (2008, p.141) exemplifica esse uso com o

exemplo (09):

(09) Venhas embora, Fernando!

Eu t‟esperarei á portella.

Parece cá MAdanella? (16APP,30)

Com a alta frequência de uso, o embora passou a refletir, em certos contextos, um

uso ambíguo, possibilitando duas leituras: uma referente ao tempo outra referente a

concessão. A leitura concessiva era possível devido à presença de contextos adversativos e

negativos, o que não impedia que o significado temporal também fosse recuperado.

Sobre esse momento de ambiguidade da forma embora num mesmo contexto,

Felício (2008, p. 144) relata que:

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62 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

(...) no século XVI, esse contexto ambíguo pode ser chamado de contexto

bridging. Vale lembrar que conforme Heine (2002) esse contexto é aquele que

possibilita uma interpretação concessiva, uma vez que o contraste entre as partes

do enunciado implica essa nova leitura, mas, por outro lado, a leitura temporal

não é totalmente excluída. O contexto bridging também foi verificado nos dados

do século XVII.

No século XVII, o uso da forma aglutinada embora se tornou predominante e

passou a exercer a função de advérbio espacial ou advérbio temporal/concessivo em

contextos há pouco mencionados. Contudo, no mesmo período em que o embora ainda era

usado com essa função, no decorrer do tempo, o uso começou a ser organizado e

reanalisado para ser interpretado como conjunção.

Felício (2008) destaca ser possível encontrar o embora funcionando como

preposição com valor concessivo. Isso ocorre porque o embora aparece unindo termos

dentro das orações, estabelecendo um valor concessivo entre esses termos. Tais

características, portanto, remetem ao conceito clássico das preposições. Para demostrar o

embora funcionando como preposição Felício (2008, p.148) expõe o exemplo (10):

(10) Mas faça ifto embóra o Mundo cego, venho a Deos no prefebio, que alfim o pagará com o não vêr o Ceo:

nos, quem ele por fua Bondade abrio os olhos, que faremos?(17SN, 68).

Quanto ao século XVIII, o uso do embora seguiu sem grandes variações em relação

ao século anterior. No século XIX, o embora já totalmente aglutinado apresenta uma

variedade grande de funções a depender do contexto: advérbio espacial, advérbio

concessivo, conjunção concessiva e ainda preposição concessiva. Segundo Felício (2008),

nesse período o sentido concessivo tornou-se habitual entre os falantes do português em

contexto apropriados.

Ademais, o item passou por vários mecanismos de gramaticalização, como

automatização, redução fonética, generalização de significado por metáfora e

pragmatização de significado por metonímia.

Pela descrição sincrônica, foi possível verificar que devido à alta frequência do

advérbio embora acompanhado do verbo ir, o item ganhou um significado mais abstrato do

que o espacial, a saber, de avanço/rapidez, que talvez tenha se especializado em textos de

relato de procedimento.

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63 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Já os dados diacrônicos permitiram sinalizar a evolução de seus usos ao longo dos

séculos, apurar as frequências token e type, apontar contextos que favorecem as leituras de

tempo, concessão e de ambiguidade, o que permitiu visualizar trajetória de mudança

responsável pelo surgimento da concessiva embora e, sobretudo seu ganho de

expressividade.

Quanto à implicação do novo significado, a investigação histórica permitiu verificar

que, no século XVI, diferentemente do que afirmam as gramáticas históricas, embora já

implica concessão, em contextos de negação. O período de transição, entre o valor

temporal e o concessivo, provavelmente, se deu no século XVII, em que o item começa a

ser utilizado em contextos não só de adversidade e negação, mas também de condição,

possibilidade e desejo.

Diante das pesquisas expostas, observamos que, o falante comum não tem

consciência que certas construções como embora, porém, amarei, entre outas, originaram-

se da coalescência entre palavras gramaticalmente diferentes, formando um único

vocábulo. Com isso, percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações

em sua estrutura, sofrem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se a gramaticalização, via

processo de coalescência.

As pesquisas expostas, embora não tratem do processo de coalescência em si,

tratam da gramaticalização de itens, que durante seu processo de construção até adquirir a

forma e função atual, fizeram uso da coalescência ao longo de seu desenvolvimento.

Lembramos que esses mesmos itens continuam sujeitos a gramaticalização e ao uso do

processo coalescente, posto que a gramaticalização não necessita ser finita.

Em outras palavras, as pesquisas expostas subsidiam nosso trabalho no sentido de

que percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações em sua estrutura,

tendem a sofrerem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se à gramaticalização, via

processo de coalescência.

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64 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

4 ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN

Neste capítulo, descrevemos os mecanismos e propriedades formais e funcionais

que caracterizam o processo da coalescência como relativos aos estudos de

gramaticalização, a partir de construções linguísticas utilizadas na modalidade oral de

analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN.

Primeiramente, apresentamos o levantamento dos usos da coalescência, tanto

fonético-fonológica quanto gramaticais, presentes na fala dos remanescentes quilombolas

de Portalegre/RN e sua frequência. Depois, delimitamos, para análise, apenas as

coalescências que resultaram em construções gramaticais. A seguir, com base na análise,

apresentamos as tendências de gramaticalização das construções coalescentes na fala dos

quilombolas.

4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN

Numa primeira etapa da nossa pesquisa, fizemos o levantamento das ocorrências

de coalescência, extraindo-as do corpus e conservando o seu contexto de uso em um

excerto significativo de fala, como mostramos em (1) e retomamos em (11).

(11) (...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas

casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui

fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/

eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é

isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a

mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-de-

puêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma.(H61036-IQ3-69-44)

Na amostra (11), em que o informante mostra como se faz a farinha, classificamos

as formas pras, pros e quisso, como exemplos de coalescência fonético-fonológica, cuja

junção não implica mudança de função dos itens envolvidos (preposição e artigo,

conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma unidade fonológica; já as formas

quiném e né? formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens

envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e não + é = né? marcador

discursivo).

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65 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Esse levantamento resultou em 58 (cinquenta e oito) formas, que apresentamos, no

Quadro 6, segundo a ordem alfabética das ocorrências.

Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de

Portalegre/RN Coalescências

1. Abombasta (ah, bom, basta!) 30 . Presse (Para esse)

2. Armaria (Ave Maria!) 31. Preu (Para eu)

3. Cumé? (Como é?) 32. Pros (Para os)

4. Cumé qui...? (Como é que...?) 33. Prum (Para um)

5. Daculá (De + acolá) 34. Pruma (Para uma)

6. Daqui praculá (De + aqui para acolá) 35. Pu (Para o)

7. Decá (Dê cá) 36. Puraculá (Por acolá)

8. Destá (Deixe estar) 37. Puraí (Por aí)

9. Deu (De + eu) 38. Puraqui (Por aqui)

10. Dôtu (De outro) 39. Pureu (Por eu)

11. Eraqui (Era aqui) 40. Purisso (Por isso)

12. Ir mimbora (Ir me em boa hora) 41. Qué qui ...? ((O) Que é que ...?)

13. Ir simbora (Ir se em boa hora 42. Quela (Que ela)

14. Marréra (Mas era) 43. Quelas (Que elas)

15. Né? ( Não é?) 44. Quele (Quele)

16. Nera? ( Não era?) 45. Queles (Queles)

17. Neu (Em + eu) 46. Quenum (Que num)

18. Nôtu (Em + outro) 47. Quera (Que era)

19. Nouto (Em + outro) 48. Quessa (Que essa)

20. Peraí (Espera aí) 49. Quesse (Que esse)

21. Peu (Para eu) 50. Quesses(Quesses)

22. Praculá (Para acolá) 51. Queu (Que eu)

23. Praqueles (Para aqueles) 52. Quiném (Que nem)

24. Praqui Praculá (Para aqui para acolá) 53.Quisso (Que isso)

25. Pras (Para as) 54.Sela ( Se ela)

26. Precê (Para você) 55. Seu (Se eu)

27. Prela (Para ela) 56.Umeno (Ao menos)

28. Prele (Para ele) 57.Vir simbora (Vir se em boa hora)

29. Pressas (Para essas) 58. Xêu Vê (Deixe eu ver)

Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)

Separamos as formas coalescentes flexionadas em número e em gênero para

verificarmos a frequência de uso, constante da Tabela 1, mas selecionamos apenas as

construções para a análise de suas propriedades formais e significativas, como veremos na

seção 4.2.

Vejamos, então, a Tabela 1 que demonstra as construções coalescentes detectadas

no corpus, seguidas de sua frequência individual de cada uso e a frequência geral das

ocorrências.

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66 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes

quilombolas de Portalegre/RN

Coalescências

Frequência

Individual

Total

Geral de Ocorrências

Absoluta Relativa

Né 213 28,9% 213

Queu 146 19,8% 146

Quele 51 6,9% 51

Quera 32 4,3% 32

Pro 26 3,5% 26

Deu 25 3,4% 25

Qué 24 3,3% 24

Quela 19 2,6% 19

Purisso 16 2,2% 16

Nera, Quiném 14 1,9% 28*

Preu 9 1,2% 9

Praculá, Cumé qui...? Puraí, Quesse 7 1% 28

Cumé?, Peu, Puraculá, Puraqui, Qué qui...? 6 0,8% 30

Pras 5 0,6% 5

Armaria, Daculá, Dôtu, Presse, Quessa, Vir

simbora

4 0,5% 24

Abombasta, Pros, Prum, Pureu, Queles 3 0,4% 15

Daqui Praculá, Ir simbora, Neu, Peraí,

Praqueles, Praqui Praculá, Prele, Quesses,

Sela, Umeno

2 0,3% 20

Decá, Destá, Dum, Eraqui, Marréra, Nôtu,

Nouto, Precê, Prela, Pressas, Pruma, Pu,

Quelas, Quenum, Quisso, Seu, Xêu vê

1 0,1% 17

Total 721

Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)

*soma dos tipos de coalescência presentes na primeira coluna.

Da Tabela 1, extraímos as 20 (vinte) construções coalescentes para análise. As

demais formas coalescentes, como ainda não se gramaticalizaram, pois não identificamos

qualquer alteração em suas propriedades significativas nos diferentes contextos em que se

apresentam, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial de mudança, que

pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser constatada em

momentos futuros. Passemos, então, à análise das construções coalescentes na seção 4.2.

4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de

Portalegre/RN

Nesta seção, a análise parte do processo de vinculação de sentido e forma que dá

origem a novas expressões, no caso, da fala de parte da comunidade de remanescentes

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67 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

quilombolas, interpretando, assim, as suas motivações discursivo-pragmáticas como

também as tendências de trajetória de mudança do processo de coalescência mais

frequentes na fala dos quilombolas.

Vejamos, na Tabela 2, a frequência e uso das 20 (vinte) formas coalescentes,

presentes no corpus em estudo, conforme a faixa etária e sexo.

Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes

quilombolas de Portalegre/RN

Coalescência

Informante Total

Mulher Homem

F

%

Faixa etária Faixa etária

I II III I II III

1 2 3 4 6 8 9 10 11 12 13 14

Né? 6 2 3 15 - - 2 2 73 53 5 52 213 68,1%

Quiném - - - 2 - - 2 - 1 8 - 1 14 4,5%

Nera? - 2 2 1 - - 1 - - 2 1 5 14 4,5%

Praculá - - 4 1 - - - - 1 - - 1 7 2,2%

Puraí - - 3 - 2 - - - 1 - - 1 7 2,2%

Cumé qui - - 1 - - - - - 1 2 1 2 7 2,2%

Cumé? - - - 1 - - - - 1 4 - - 6 1,9%

Puraculá - - - - - - - - 6 - - - 6 1,9%

Puraqui - - - - 1 - - - 3 - 1 1 6 1,9%

Qué qui - - 2 - - - - - 4 - - - 6 1,9%

Praqui praculá - - 2 1 - - - - 1 - - 1 5 1,6%

Daculá - - - - 2 - 1 - 1 - - - 4 1,3%

Vir simbora - - - - - - - - - - - 4 4 1,3%

(a)bombasta - - - - - 2 - - - - - 1 3 1%

Ir mimbora - - - - - - 1 - - 2 - - 3 1%

Peraí - - 1 - - - - - 1 - - - 2 0,6%

Daqui praculá - - - 1 - - - - - - - 1 2 0,6%

Ir simbora - - - 1 1 - - - - - - - 2 0,6%

Destá - - - - - - - - 1 - - - 1 0,3%

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68 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Xeu vê - - - - - - - - - - - 1 1 0,3%

Total

6 4 18 23 6 2 7 2 95 71 8 71

313

100% 10 41 6 9 176 71

57 (18,2%) 256 (81,8%)

Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)

Frequência individual de cada construção coalescente exposta.

Segundo os dados da Tabela 2, os informantes usam 20 diferentes construções

coalescentes, distribuídas em 313 ocorrências. Dentre elas, registramos as maiores

ocorrências da construção Né?, com o total de 213 (68,1%), seguidas de 14 (4,5%)

ocorrências tanto da construção Nera como da construção Quiném?.

Quanto aos informantes e aos respectivos usos, os dados mostram também que o

Né? e o Nera? são as construções mais usadas por diferentes falantes. Seguem-se os usos

das construções Quiném e Cumé qui ...? com cinco usuários diferentes e das construções

Praculá, Puraí, Puraqui, Praqui praculá, com quatro falantes diferentes. Se juntarmos as

ocorrências das construções com “Vir simbora , Ir simbora e Ir mimbora”, resultaria no

total de cinco falantes que se valem dessa construção de deslocamento5. Acreditamos que

as construções usadas por diversos informantes possam caracterizar a fala dos

remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN, porém não podemos afirmar que

sejam específicas, posto não termos feito ainda um estudo comparativo com comunidades

de fala vizinhas ou regionais.

Ainda sobre os informantes, os quais ao todo consta a participação de 14 (catorze)

para composição do corpus, ressaltamos que não houve registro de nenhuma das 20

construções coalescentes, constantes da Tabela 2, na fala dos informantes 5(M6Q63) e

7(H2Q37). Além disso, a diferença de usos entre homem (81,8%) e mulher (18,2%) não foi

levada em conta para efeito de comparação, devido à assimetria dos volumes textuais do

corpus. Justificamos que o referido corpus não teve o controle dessas variáveis, mas que

nos foi útil para a consecução dos demais objetivos propostos nesta investigação.

_______________________

5 As contruções estão ilustradas e comentadas nas subseções 4.2.1 a 4.2.12

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69 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Com base nas frequências observadas na Tabela 2, passamos, a seguir, na ordem

decrescente, à análise das construções, em cuja formação ocorre o processo da

coalescência, presentes no corpus da comunidade de fala em estudo.

4.2.1 Né? / Nera?

Conforme podemos notar na Tabela 2, Né? foi a construção mais usada. Das 313

(trezentas e treze) ocorrências de coalescências gramaticalizadas que foram coletadas no

corpus, 210 (68,1%) foram apenas ocorrências da construção Né?, seguidas da alta

frequência de uso da sua construção variante, ainda em desenvolvimento, Nera?, com 14

(4,5%) ocorrências. Salientamos que a construção coalescente Né? se manifesta na fala de

10 (dez) informantes dos 14 (catorze) que participaram do corpus, o que representa um uso

significativo. Acreditamos que isso ocorra pelo fato de essa já ser uma construção

coalescente cristalizada e de uso comum, não só em parte dessa comunidade como também

no português do Brasil como um todo, que pode ser evidenciado, em diversos estudos

sobre o Né?.

As construções coalescentes Né? e Nera? apresentam como formas originais: não

(advérbio de negação) + é, era (verbo ser). Com a alta frequência de uso, essas

construções foram sendo formadas a partir da perda de massa fônica da negação, bem

como seu significado inicial foi sendo gradativamente alterado, desempenhando

atualmente a função de Marcador discursivo.

Sobre Marcador discursivo, Lyra (2007) relata que os marcadores discursivos

frequentemente aparecem na fala quando os falantes precisam reformular suas ideias,

processar mentalmente informações, atuar no monitoramento da conversação e reorganizar

o discurso.

O Né? como marcador discursivo, desempenha três funções: é um elemento de

contato que solicita a aquiescência e a atenção do ouvinte, mantém o fluxo da conversa;

além disso atua como marcador rítmico e perde sua modulação interrogativa.

Sobre a perda da modulação interrogativa sofrida pelo Né?, Martlotta; Votre;

Cezario (1996) apontam uma trajetória que evidencia o percurso realizado por marcadores

discursivos dessa natureza, o qual pode ser apresentado da seguinte forma:

Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica

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70 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Seguindo esse trajeto, uma pergunta plena é aquela que o falante espera e deseja

uma resposta do ouvinte. Assim, falante e ouvinte devem compartilhar de conhecimentos

afins no contexto de interação. Já a pergunta semirretórica é aquela que o falante faz e ele

próprio responde, esta é uma estratégia que visa focar alguma parte do texto e, ao mesmo

tempo, manter a atenção do ouvinte. Por fim, a pergunta retórica é aquela que é realizada

pelo falante, mas não requer uma resposta. Fávero (2000, p.95) diz que a “pergunta retórica

ocorre quando o falante elabora a pergunta, mas já conhece a resposta; usada como recurso

para manter o turno ou para estabelecer contato (função fática)”.

Marcuschi (1986) considera que o uso de palavras, como o Né? presente na

oralidade, orienta o turno, preenche pausas, organiza o pensamento e monitora o ouvinte.

A forma Né? tem como funções especialmente em contextos orais: chamar a

atenção do ouvinte como forma de interação e inclusão do mesmo na conversa; chamar a

atenção para determinado trecho como objetivo pragmático de ativar a informação na

memória do interlocutor, checar a compreensão do que foi dito, destacar certas

informações em relação a outras e inclusive desempenham funções textuais, pois

organizam o texto e ordenam segmentos textuais.

Podemos observar todas essas característica da construção coalescente Né? bem

como flagrarmos, sincronicamente, os diferentes estágios por que passou a construção Né?,

na amostra (12):

(12) H61-05: Era bem diferente, né?

((RISOS))

E: Porquê? Qual é a diferença?

H61-05: Porque o povo farrea muito, é direto, né? Agora nesse nesse São João e nesse são Pedo/ faiz uma

festa só/ direto sem pará aqui im Portalegre passô ...forum oito dia... parece, num foi? de festa só de uma

festa pra ôta e quando se acabava num canto era nouto, né? O povo de hoje só qué vive o tempo todo de

brincadera, num é não? ((PAUSA)) no meu tempo... no meu tempo... tinha, vô dizê qui num tinha não... mas

era um bailezim aqui ôtu aculá... DEMORAVA... num era desse jeito qui é hoje não/ mas também no meu

tempo as coisa era mais difici... assim num tinha/ eu num já disse? Num tinha as facilidade de hoje, né não?

(H61-05- 194/195/196-IQ3-46 -140a149)

A amostra (12) apresenta três usos da construção já cristalizada. Entretanto,

encontramos, na linha 144 (cento e quarenta e quatro), a forma num foi? , que ainda se

encontra em desenvolvimento igual a Nera?, que apresenta as formas de tempo passado,

além do flagrante enfraquecimento do “não”, que passa para num antes da coalescência

com a forma fixa do verbo ser no presente é e o apagamento do não tônico que intenta

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71 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

intensificar, ao lado de né, a negação da oração, em “né não”?, na última linha. Dessa

maneira, os dados sincrônicos indiciam o desenvolvimento do cline: NUM FOI [ERA] >

NUM É NÃO > NÉ NÃO > NÉ.

Analisemos, então, a função dos usos das construções coalescentes Né? e Nera?

presentes nas amostras (13) e (14)

(13) H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muito nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere í tudo pra

rua também, né?! O síto/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente

tem, mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem

futuro aqui qui indo simbora fica inté milhó, né? (H61-05-52/53/54 -IQ3-46-131/132/133)

(14) H49-01: ele só quer branca, rapais... só qué canara branca...

H39-03: uma canara pra pra pra pintassilga só tira um canaro bunito é uma canara é é é se fô é salsa, rapais...

uma salsazinha se for... um dia eu arrumei uma aparei o rabo dela um poquim aquele pintassilgo lá cruzava

cum ela direto lá im casa, rapais, inda chegô inté a pô... aí discasô... num sei se era ele qui num tava incheno

qui num tava forte, nera? Ou era ela... (H36-03- 117-IQ2-35-356)

Na amostra (13), o informante expõe, nesse contexto, sua opinião sobre a realidade

do sítio onde mora. Percebemos que o informante faz uso três vezes da construção

coalescente Né? e, embora essa construção venha seguida de uma interrogação, em ambas

as situações em que foram usadas, o emissor não requer uma resposta de seu ouvinte, mas

apenas sua atenção, o apoio discursivo, e, assim, mantém o fluxo da conversa. Assim, a

construção Né? desempenha em contextos dessa natureza a função de marcador discursivo

ou conforme Figueiredo-Gomes (2008) Requisito de Apoio Discursivo - RAD. Desse

modo, o Né? não se confunde com “não é”, negação do verbo ser, não só pela pronúncia

sem a nasalidade e abreviada, bem como pelo contorno menos interrogativo e ainda por

seu posicionamento em final de enunciado.

A mesma função é desempenhada por Nera?, em (14), que apresenta como formas

originais: não (advérbio de negação) + era (verbo ser), em que a forma era carrega ainda

restrições gramaticais da categoria verbal tempo (pretérito imperfeito). Na amostra (14), o

informante relata sua experiência com pássaros, especialmente com um canário (fêmea). O

falante usa a coalescência Nera? em busca de apoio discursivo, pois ele, mal “interroga”,

já insere outra fala, o que nos evidencia que a interrogação apenas monitora a interação,

em que o falante quer saber se está sendo compreendido. Dessa maneira, perde a

modulação interrogativa. E mantém o fluxo da conversa.

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72 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Reconhecemos nessa pesquisa que as construções coalescentes Né? e Nera?

desempenham a função de marcadores discursivos, e que desse modo, essas formas se

distanciaram de seu significado inicial, contudo reconhecemos também que o processo de

coalescência contribuiu para que essa nova função surgisse.

Como já anunciamos, existem vários trabalhos sobre a gramaticalização da

construção coalescente Né?”, embora não sob o enfoque da coalescência, conforme

objetivo nesta pesquisa, mas sim, sob o enfoque dos marcadores discursivos. A título de

informação entre os autores que apontam o Né? como marcador discursivo, podemos

mencionar: Castilho (1989), Marcuschi (1989), Martelotta (1996, 1997, 1998, 2004),

Risso; Silva, Urbano (1996), Votre; Martelotta (1998), Risso (1999), Freitag (2010),

dentre outros.

4.2.2 Quiném

A forma coalescente quiném aparece 14 (catorze) vezes na fala dos informantes

descendentes de quilombolas. Esse número corresponde a (1,9%) das construções

coalescentes encontradas no corpus.

A forma quiném é aqui compreendida como uma construção coalescente, visto que,

no próprio corpus, ela se apresenta conectada, inclusive, há estudos que refletem sobre a

expressão “que nem” sob a ótica de perífrase, considerando, assim, a construção “que

nem” como uma única palavra, especialmente no tocante à pronúncia.

Em nossa análise, constatamos que a coalescência quiném surge da junção entre a

conjunção “que” e a conjunção “nem”. Como não há ganho nem perda fonética na junção

entre essas duas palavras, a coalescência quiném se forma por justaposição. Apesar disso,

ocorre uma transformação no fonema /e/ da conjunção “que” o qual passa a ser

pronunciado como fonema /i/, mudança essa caracterizada como transformação por

assimilação parcial.

Sobre o termo “que”, é importante mencionar que se trata de um termo

multifuncional e pode indicar diversas funções a depender do contexto: pronome relativo,

conjunção coordenativa, conjunção subordinativa, pronome interrogativo, pronome

indefinido, substantivo, advérbio e até preposição.

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73 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

O “nem” já não apresenta tantas multifuncionalidades e, geralmente, é classificado

como uma conjunção coordenativa aditiva, podendo em alguns contextos funcionar como

advérbio de negação.

Quanto ao aspecto sintático, o quiném se correlaciona à função de conectivo

comparativo ou introdutor de exemplificação. Em todas as ocorrências, a construção

quiném esteve presente em frases declarativas, com oscilação entre a posição inicial e

medial.

Vejamos nas amostras (15) e (16) situações em que a forma coalescente quiném é

usada pelos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. O primeiro contexto apresenta

uma conversa informal sobre pássaros entre o entrevistador e três informantes, e, no

segundo contexto, o informante de 58 anos relata a vivência de uma experiência espiritual:

sua confissão com Frei Damião:

(15) H39-03: ela pôs im quê?

E: pôs na niêra...

H39-03: dos canaru?

E: não! Na niêra grande dela...

H39-03: ah! Na niêra grande...

H49-01: naquele tempo elas tinha quebrado os ovos, num fui?

E: foi... rapais, ela pôs mais eu ainda num tive condições de olha quantos ovos foi purque quando ela sai do

nim o macho entra...

H55-02: é danado...

E: é... quano ela num tá chocando/ sai pra cume... pra bebê água... pra discançá... aí o macho vai pra cima dos

ovos...

H49-01: sim é quiném pombo. (H49-01-118-IQ2-35-373)

(16) H58-08:confessô logo foi duas palavra a confissão quele fez cumigo só fez assim, butô a mão na minha

cabeça, incaicô, chore... precisa chora não, meu fii tá perduado, aí eu peguei uma pratazinha butei no

((incomp.)) agora quano eu saí dela, eu ia manero, num sabe? Quiném assim um capucho de aigudão, bem

manerim, cum aquela alegria e cum aquela ainimação e me arrpendendo de tudo queu fiz, acredita?

(H58-08- 597-IQ6-85-302)

Analisando as ocorrências, acreditamos que a união dos itens “que” e “nem”

configura um caso de gramaticalização, a estrutura passa a codificar uma circunstância

linguística mais abstrata e gramatical, em relação às multifunções que esses itens,

utilizados de forma independente podem desempenhar em diversos contextos já

cristalizados.

Ressalvamos que o “que” e o “nem”, tendo suas fronteiras estreitadas perdem a

variedade de funções e passam a funcionar como uma palavra única quiném, que

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74 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

desempenha novas funções, como a de conectivo comparativo e introdutor de

exemplificação. Assim, constatamos que, em quase todas as amostras em que o quiném se

fez presente, ele funciona como conector de dois componentes informacionais e estabelece

entre eles um vínculo comparativo. Essa compreensão está também evidente na amostra

(15), em que o informante compara um pássaro chamado Salsa com um pombo, e, em (16),

em que o informante de 58 anos compara seu estado de espírito (leve) com uma lã

(capucho) de algodão, após confessar-se ao Frei Damião.

Além da função de conectivo comparativo, que idenitifcamos que, em dois casos, o

quiném pode funcionar como introdutor de exemplificação, função esta destacada por

Cordeiro (2012), segundo a qual, em certos contextos a construção “que nem” (quiném)

passa a integrar uma estrutura discursiva de exemplificação. Vejamos essa função nas

amostras (17) e (18):

(17)

H58-08:Eu vô dizê uma coisa, graças a Deus e a Nossa Siôra eu sô uma pessoa/ cê veja as pessoa chama inté

eu, os negui da minha qualidade, intendeu? Chama eu de aduladô, mar eu num sô adulado não siô, eu sô é

respeitadô... se uma pessoa chegá aqui na minha casa eu trato ele quiném uma pessoa bem tratadozim qui um

dia eu tô lá na casa dele, né meu cumpade?

(H58-08-523-IQ6-80-19)

(18) H58-08:Quano ocê vê um quiném esse daí pobe dos pobe esses daí(...)

(H58-08-702-IQ6-90-559)

Nas amostras (17) e (18) o quiném não exerce função comparativa, mas o falante

deseja expressar uma exemplificação. No primeiro caso, o informante exemplifica o modo

como trata as pessoas que chegam a sua casa; já no segundo, o informante usa o exemplo

de uma pessoa pobre, a fim de tornar claro o assunto sobre o qual fala para o seu

interlocutor. Embora haja outras funções para o que nem ou quiném, é importante deixar

claro que a função mais comum do que nem ou quiném é de conector comparativo,

conforme atesta a maior parte das ocorrências registradas no corpus analisado.

4.2.3 Cumé qui / Qué qui

Registramos a coalescência, embora fonético-fonológica, nas construções Cumé

qui...? / Qué qui...? que parecem sinalizar uma tendência de desenvolvimento do

modalizador epistêmico enfático interrogativo “é que”, que também acumula a função de

modalizador epistêmico de asseveração, em construções oracionais interrogativas

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75 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

(FIGUEIREDO-GOMES, 2008). O “é que”, que o autor denomina como marcador

enfático-interrogativo (MEI), consiste de uma construção já cristalizada, que funciona,

segundo ele, como um operador que enfatiza a busca da certeza epistêmica do argumento

como resposta à informação desconhecida, como podemos ver nas amostras (19) e (20),

nas seções a e b, que seguem.

a) Cumé qui...?

O uso da construção “Cumé qui ...?” ocorre na fala de cinco informantes diferentes,

que ilustramos na amostra (19), em que um homem de 61 anos utiliza a forma coalescente

“cumé”.

(19) Que de premero a rente trabaiava e via um resultado muito grande, num sabe? Né? e hoje a rente trabaia que

nem nesse ano eu butei ali um roçado ali pra baxu trabaei e num tirá nada de futuro/ a rente fica pensando:

cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente? Cumé qui vai se astrevê a brocá pra quando dá-se fé num

havê inverno de novo aí perto? Cumé inconstá im dois ano sem sem sem/ ficá ruim pro lado da rente, né?!

Quanto tempo, né? E só assim mesmo essas coisas assim, cumo se diz, da natureza de Deus qui num tá mais

cumo era intigamente, né?

E: E o que qui tinha antigamente que hoje num tem? (H61-05-039/040- IQ3-46-109)

Na amostra (19), o trabalhador, refletindo acerca dos prejuízos da falta de inverno,

questiona um problema coletivo dos trabalhadores quanto ao futuro, que se incluindo com

o sintagma “a rente”, busca, por meio da forma “é que” uma certeza para um futuro

incerto/desconhecido, marcando a atitude do falante em querer buscar uma solução, em:

“cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente?” “Cumé qui vai se astrevê a brocá pra

quando dá-se fé num havê inverno de novo aí perto?. A forma “cumé” posiciona-se no

início das construções: COMO (Advérbio interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV ...?, em

que une “como” + o “é” da construção modalizadora. Além de ter uma explicação

fonético-fonológica, uma sinalefa das vogais (inicial e final) de vocábulos vizinhos, parece

ser ser rotineiro e específico com o uso do é”(verbo ser), pois mais adiante isso não

acontece com as formas sublinhadas “Cumé incostá” e “cumo se diz”.

Assim, podemos pôr em evidência, através dos dados sincrônicos do próprio corpus

o desenvolvimento do cline: COMO É QUE > CUMÉ QUI > CUMÉ.

Se isso é uma tendência de gramaticalização, parece continuar esse processo,

quando nos deparamos com (20), que traz a construção “é que” na oração: “cumé qui vai

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76 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

meu corené?”, em que a construção não tem a mesma função de modalizador epistêmico e

figura como uma pergunta meramente retórica:

(20) E: diga aí, meu chefe...

H58-08: cumé qui vai meu coroné? Venho chegano quais agora da cidadade...

E: tá fazeno? Tá ocupado? (H58-sd-IQ6- 80-007) 6

Na amostra (20), a pergunta já se cristalizou como “como é que vai” e tornou-se

retórica como apenas um cumprimento inicial de pessoas no contato de chegada, não

exigindo, pois, uma certeza de resposta à uma informação desconhecida. Cumpre apenas a

função fática.

b) Qué qui ...?

A construção “Qué qui ...?” é utilizada por apenas um homem e uma mulher da

faixa 2, em que o modalizador epistêmico se realiza na macroconstrução: (O)QUE

(Pronome interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV...?, cujos elementos iniciais apresentam a

forma “Qué qui”, resultante da aglutinação de “que” + “é” , como podemos ver em (21):

(21) M56-01: purque o finado Juaquim de Paiva ele era desse homi carrasco, se ele dixesse qui pau era pau ERA

PAU, ele era homi quele, quele era mũto... MALINO...

“Aí, é Juaquim de Paiva, tanto qui nóis gostava de Juaquim de Paiva, o home morreu? Vamu levá ele” quano

chegô na subida, eles procuraro “vamo todo mundo um dum lado ôtu dôtu, vamo” quano chegô nũa subida

quera mêi imprensado “não, rapaz, dêxi nóis dois aqui levá... qui o canto é mũto ruim um pega num canto e

ôtu nôtu”... aí os homr desce e sobe, desce e sobe e toca o povo corrê atrais e nada e toca o povo e cadê o

homi, cadê o home?... Quano chegô mũto adiante só incontraro a rede... cadê Juaquim de Paiva? Aí “vala,

mĩa nossa siôra, um home rico cumo é ele, qué qui a gente vai fazê? Fazê pra interrá no cimitéro, qué qui

nóis vamo fazê?” aí

teve um home quera chéi das idéia, aí disse assim “sabe qué qui nóis vamo fazê? Nóis vamu passá lá naquela

baxa qui tem mũta banenêra, nóis procura um tronco de bananêra bem grosso, bota dento da rede” e assim

fizêro, assim fez. Chegô na bananêra, tirô, inrolô bem inrolado “quem é? Quem é? Quem morreu?” “foi

Juaquim de Paiva” “abra aí preu vê...” “Não rapaz, o home já tá mũto ruim, nũa situação ruim, qui num dá

pra gente vê não, PUXA! LEVA! (M56-01-011/012/013-IQ1-343-017)

Em (21), temos a ocorrência de três construções “qué qui”, em que a contadora do

sumiço do morto busca uma resposta certa dos demais para solução do problema.

Formalmente, ocorre com essa construção o mesmo fenômeno da construção “cumé qui”,

cuja função de modalizador se repete, porém na forma coalescente “qué”. Flagramos

também um outro desenvolvimento do MEI, que parece ter uma tendência de apagamento

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77 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

do “é” da forma coalescente passando a “que”, descrita na possível trajetória É QUE >

QUE, apresentada na forma sublinhada em (22).

(22) (...) Que qui nós vamo jantá agora? Nada, puique nós num truxemo nada... é purai... rapais, quanto é essas

quatro párea de pêxe? Seu Dó é dois mirréis... munto bem, tome o dĩero... minha cumade, essas tainha ...

essas ... me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse

cumê aí pá esse povo todim aí, (H58- sd-IQ6- 85-286)

Na pergunta do falante aos interlocutores, o “povo todim”: “Que qui nós vamo jantá

agora?”, há o fechamento do [] na forma coalescente [k] > [k], persistindo apenas o

“que” da outrora forma “é que”. É uma tendência que deve ser constatada em um estudo

específico.

Em suma, como desenvolvimento da construção coalescente “qué qui...?”

destacamos o seguinte cline: O QUE É QUE > O QUE QUI > QUÉ QUI (> QUE QUI).

4.2.4 Praculá / Praqui praculá

As construções Praculá e Praqui praculá tem em comum na forma original os

elementos para e acolá. A preposição para provém da aglutinação das formas latinas per e

ad e que, inicialmente, para/pera marcava “um percurso em direção definida”. Entretanto,

segundo Câmara Jr. (1976, p. 177), a indicação de direção se torna mais complexa, que

pode também indicar “chegada” e “permanência”. Originalmente, o elemento Acolá,

conforme Cunha (2010, p.9), vem do latim eccum illac (= eis ali), e seu registro data do

séc. XIII na língua portuguesa como advérbio significando lá, mais além.

Vejamos, nos dados do corpus, que sentidos apresentam as construções

coalescentes Praculá e Praqui praculá.

a) Praculá

A construção coalescente Praculá aparece sete vezes no corpus, o que equivale a

2,2% de todas as construções coalescentes em análise.

A construção coalescente Praculá se forma a partir da aglutinação das palavras

Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), ou seja, PREP + LOC. No uso em

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78 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

que há a junção desses dois elementos, ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da

sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas.

A preposição para isoladamente pode indicar diversos sentidos a depender do

contexto de uso em que esteja inserida como, por exemplo: “Olhe para frente!” nesse

contexto a preposição indica direção, já no contexto: “Trabalho para viver”, a preposição

para indica finalidade, a preposição para pode indicar também destino, como em: “Vou

para universidade”.

Já o advérbio acolá é originalmente locativo, ou seja, indica lugar. Como, por

exemplo: “Minha casa fica acolá”. Ele, como advérbio, pode, inclusive, ser substituído

pelo advérbio Ali.

Porém, em nossa análise, notamos que, com a coalescência das palavras Para +

Acolá = Praculá, há uma nova forma e um novo sentido e, como construção coalescente

Praculá continua com a noção de sentido locativo, mas, diferentemente dos sentidos

originais, passam a significar um indicador de direção indefinida, marcadamente, na

amostra (23), por se tratar de uma história do mundo fantástico.

(23) M56-01: Antõim de Anania, é Antõim do Rêgo num tem um sítu praculá pra baxo num tĩa? E eu acho qui

ainda tẽim e num sei quem é qui hoje im dia toma conta que a gente toda a vida ia lavá rôpa, lá tĩa uma pedra

incantada. Quano a gente tava assim/ é, é, a merma pedra e o povo tava acustumado a í pra lá porque os galo

cantava, os guiné... (M56-01-003-IQ1-13-151)

Na amostra (23), a informante comenta sobre um lugar onde supostamente há uma

pedra encantada (fantástica). Percebemos que, para indicar o local do sítio, a informante

faz uso da construção coalescente Praculá, de modo a não indicar o local preciso,

desviando a atenção do ouvinte quanto não só à direção do sítio como à existência dele

nesse mundo fantasioso da história. Isso pode ser uma forma de preservação de face da

falante para que a “mentira” seja contada como verdadeira, uma história de vida, para o

entrevistador (ouvinte), e não mera ficção.

Vejamos a confirmação desse uso, na amostra (24), em que o falante se

compromete com a confirmação da verdade, mesmo mentindo.

(24) E: e quem disincanta fica rico?

M56-01: fica! Rico! E é, fica rico! E dêxa que uma... uma vai contá, uma históra qui lá no Sêi de Abrão... no

Sêi de Abrão aqui no sertão aqui ((APONTANDO)) praculá pra lá. (...)

(M56-01-008-IQ1-15-223)

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79 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Percebemos, assim, que a construção coalescente Praculá apresenta uma mudança

semântica-pragmática-discursiva, em relação à indefinição locativa, portanto, da perda de

sentido de direção da construção para acolá que é geralmente usada em outros contextos

que, por exemplo, exigem clareza e objetividade.

b) Praqui praculá

A construção coalescente Praqui praculá ocorre cinco vezes no corpus analisado,

de modo que representa 1,6% de todas as construções coalescentes analisadas.

A construção em análise surge de duas construções coalescentes. A primeira é

Praqui, que se origina da aglutinação entre a preposição para e o advérbio locativo aqui.

Com a aglutinação entre esses vocábulos ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da

sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas, do mesmo

modo como se passou com a segunda construção coalescente, Praculá, a qual descrevemos

na subseção “a” e que gradativamente passou a desempenhar a função de indicador de

direção indefinida para o que, originalmente, indicava direção para locais definidos, certos.

Assim, em contextos quando as construções coalescentes são usadas, lado a lado,

notamos que a nova construção coalescente Praqui praculá perde seus significados

primeiros de direção e lugares definidos e fixos (praqui seria perto do falante e praculá

seria distante do falante e ouvinte), passando a representar a noção de deslocamento no

espaço (delimitado). Essa nova função pode ser identificada na amostra (25):

(25)

M50-01: tem! Tem! Aí, bem! Carlim, ôtu dia... aconteceu... qui o minino tomô uma cachaça, aí toda vida qui

tomava essa cachaça tĩa aquele sentido de í pra esse canto, aí desceu, quano desceu presse canto aí a criatura

ia buscá ele.

E: era como se fosse uma coisa qui chamasse, num era?

M56-01: pra buscá ele e levô, levô inté lá e intão o povo procurô, procurô, e cadê Vaval? Cadê Vaval?,

praqui, praculá, praqui praculá e nada, e nada, e nada de incontrá. Aí, quano foi mũto, mũto, mũto tarde/

aí sei qui a criatura vẽi dêxá ele até no terreiro de casa. (M50-02-01/04 /05- IQ1-14-202)

Na amostra (25), a falante narra fatos lendários, em que uma suposta criatura teria

raptado Vaval, um conhecido da informante. No decorrer desse acontecimento, várias

pessoas se mobilizam à procura de Vaval e, nesse momento, a informante faz uso

repetidamente da construção praqui praculá, praqui praculá, indicando, dessa forma, o

deslocamento das pessoas num espaço não preciso, que, certamente, deixa a inferência que

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80 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

seria aos arredores onde Vaval teria sido visto num último momento, mesmo sem a

exatidão do local.

Além de a construção coalescente praqui praculá, indicar deslocamento de espaço

inexato, detectamos outro contexto que essa construção pode indicar também duração no

tempo, como mostra (26)

(26) E: e o racionamento chegô puraqui?

M63-05: de luz?

E: sim...

M63-05: chegô... sim qui aqui num tem nem o qui cunumiza puiqué cumu o siô pode vê só tem essa

televisão... mar im da véi muntu puique no mês passado veio doze e agora nesse mês agora vei seis num vei

munto ainda? Puiqué só dos mininu ficá praqui praculá assisitino televisão vei...

E: a sinhora a sinhora tem direito a gastar quanto?

M63-05: é quatro Toim? Direito de gastar?

E: aí faz o pavi de algodão...

M63-05: aí faz o pavi do aigudão ((incomp.)) nam eu sô uma pessoa queu num gosto munto de pidi não...

(M63-05-185- IQ5-75-223)

Na amostra (26), a informante conversa sobre o racionamento e o seu baixo

consumo de sua energia elétrica. Nessa amostra, o uso da construção Praqui praculá, não

indica, nesse contexto, um deslocamento de espaço, pois é difícil imaginarmos a

informante afirmar que os meninos assistiam à televisão saindo de um lugar para outro.

Desse modo, podemos inferir que o contexto indica que os meninos ficavam quase o tempo

todo, com intervalos de tempo, assistindo à televisão, o que caracteriza o gasto maior de

energia elétrica.

Assim sendo, percebemos que a construção Praqui praculá, seguindo o princípio

da unidirecionalidade, vem gradativamente apresentando modificações estruturais e novos

significados, tanto de suas partes como do todo, desde sua forma fonte até a construção

coalescente dupla.

Nesse sentido, podemos apontar o seguinte cline para a construção Praqui praculá

por meio da metáfora: ESPAÇO > TEMPO, partindo da noção de espaço concreto para a

noção mais abstrata de tempo.

4.2.5 Puraí / Puraqui / Puraculá

Embora as construções Puraí, Puraqui e Puraculá, fora do corpus, ainda não

tenham sofrido a coalescência morfológica (junção de palavras já cristalizada,

dicionarizada), têm tido, como há no corpus, a coalescência fonético-fonológica (junção de

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81 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

palavras que ocorre apenas na oralidade) e mudanças semântico-pragmático-discursivas.

As três construções têm em comum o fato de possuírem, no primeiro elemento das formas

fontes, a preposição locativa Por, que significa lugar por onde, e o fato de terem um

advérbio (aí, aqui e acolá) como segundo elemento da forma original.

a) Puraí

A construção coalescente Puraí é usada sete vezes em todo o corpus e corresponde

a 2,2% das construções em análise.

A forma Puraí apresenta como forma fonte por + aí, ou seja, por (preposição

locativa lugar por onde) + aí (advérbio locativo). Essa união de palavras se deu por

justaposição, já que não houve ganho nem perda fonética, embora houvesse a alteração do

fonema /o/ da preposição “por” em /u/, resultando a forma “pur”.

Destacamos que, embora, no corpus, a construção por + aí se apresente de forma

justaposta, a coalescência entre esses termos, no uso geral da língua portuguesa, é apenas

fonético-fonológica, ou seja, ocorre na própria pronúncia.

Como flagramos mais de uma função do Puraí no corpus, passamos a analisá-lo a

partir da função que desempenha em cada contexto exposto nas amostras.

Em primeiro lugar, apresentamos a função da construção Puraí, como locativo, ou

seja, a construção refere-se a um lugar específico. Essa função está em consonância com a

forma fonte que compõe a construção Por + aí, visto que tanto a preposição quanto o

advérbio indicam inicialmente uma ideia de lugar. Vejamos essa função na amostra (27):

(27) M81-03: mar meus neto ainda bem qui intendero... adoraro... um dia chegaro aqui “vovó...” eu digo “pronto”

“viemo pra duimi, dá certo?” eu digo dá pode incostá o cavalo puraí, arrebolaro as bicicreta aí, incostaro

puraí, quano acabaro foro ((incomp.)) eu sei qui, quano foi de mãianzinha, se levantaro, tumaro café... foro

simbora... quano eu cuidei qui não, fui lavá ropa no Riacho da Areia, quano eu cuidei qui não... cheguei aqui,

tava um bucado... vêi logo a tropa, logo quatro, ((incomp.)) chegaro aqui bebero logo um bucado de leite qui

tinha aí ((incomp.)) aí no dia queu fui casá/

(M81-03-154 e 155-IQ-68-891 e 892)

Na amostra (27), a informante narra sobre o dia em que seus netos chegaram a sua

casa, de surpresa. Notamos que, nessa amostra, o Por aí (puraí) foi usado desempenhando

a função de locativo, pois, em sua fala, o Puraí, indica o local onde os netos deveriam

guardar as bicicletas, inclusive, a falante reforça essa função, quando usa apenas o

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82 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

advérbio de lugar aí, evidenciado no trecho: “arrebolaro as bicicreta aí”, um local

próximo ao ouvinte.

A segunda função que identificamos no uso da construção Puraí foi a de dêitico,

pois, nesse caso, a construção Puraí só é compreendida segundo a situação comunicativa,

ou seja, o uso da construção Puraí ganha um significado mais amplo e o contexto é

primordial para a construção e compreensão desse significado. Vejamos essa função na

amostra (28):

(28) M56-01: era bom mermo, mas como cê sabe tudo acaba, meno a graça de Deus, né? Qui vĩa mũta gente de

fora... esse povo aqui de Portalegre ... esses maiore puraí, esses mais ô meno, vĩa tudim...

M50-02: num tĩa Dudu Germano?

M56-01: quano tĩa assim um lelão no dia de santo Antõim, uma galĩa, uma galĩa assada, nesse, nessa época...

ERA MIL/ qui nem hoje, mil era mil real, era mil real, nera? Nessa época, na época qui nóis tamo é o qui é

qui é, valia isso, num é? Ave Maria qui todo mundo arrematava, ave Maria, era só lelão, desses lelão mesmo

de inganchá mermos.

(M56-01-018 -IQ1-19-476)

Na amostra (28), a informante relata as comemorações típicas de Portalegre/RN.

Notamos que a informante, ao usar a construção Puraí, não a utiliza com a intenção de

indicar um local, mas sim a intenção de indicar as pessoas de fora que tinham dinheiro

“esses maiores puraí, esses mais ô memo...” que vêm participar dos leilões que a cidade

oferece. Compreendemos, assim, a construção Puraí com a função identificadora, embora

ambígua. A construção, nesse contexto, ganha novo sentido, que é só compreendido se se

considerar a situação discursiva.

Detectamos também que a construção Puraí desempenha ainda a função de

marcador discursivo. Entendemos marcadores discursivos como elementos presentes, no

caso, no discurso oral, que têm a função de participar da organização textual das

informações ao longo da fala e dar pista ao interlocutor do assunto a que o falante se refere,

além de orientar o turno, preencher pausas, organizar o pensamento e monitorar o ouvinte.

A amostra (29) exemplifica mais essa função da construção Puraí:

(29) E: era de pés?

H58-08: de PÉS, rapais, meu fii dos ôtu, era pá saí daqui im pinitença, im missão lá pá Frei Damião, aí, cumu

o ditado, dá um pernoite no Riacho da Cruz pá no ôtu dia balançá pu pa pa pa pu pu pa cidadizinha, né? Meu

cumpade quane eu cheguei na fila, quano eu cheguei no camim mermo, eu já fui já me arrependeno daguma

coisa. Aí quano eu cheguei já fui dizeno “minino, vocês têm algum dĩero no bolso aí?” Não tem não tem

alguma a a a um inxemplo... cês num vão jantá? Que qui nós vamo jantá agora? Nada puique nós num

truxemo nada... é puraí... rapais, quanto é essas quatro parêa de pexe? - Seu Dó, é dois mirréis... - munto

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83 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

bem, tome o diero... minha cumade, essas painha essas me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô

butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse cumê aí pá esse povo todim aí,

(H58-08-250-IQ6-85-286)

Em (29), o informante relata as longas viagens que, quando mais jovem fazia, em

busca de emprego. Observamos que a construção Puraí, nesse contexto, não funciona

como locativo, e vai além da função dêitica, pois serve para orientar o interlocutor sobre o

assunto e, ao mesmo tempo, é uma forma de organizar o pensamento resumidamente do

locutor; sendo, portanto, caracterizado como marcador discursivo orientado para o ouvinte.

Assim, percebemos, pelas amostras, que a construção Puraí segue a tendência de

uma trajetória gradual que desempenha as seguintes funções: Por aí (locativo) > Por aí

(dêitico) > Por aí (marcador discursivo). Por meio dessa trajetória, notamos que a

construção Puraí (por + aí), em um primeiro momento, apresenta um sentido mais

referencial e vai sofrendo mudanças até chegar a um sentido mais abstrato. Essa construção

é, portanto, uma forma já gramaticalizada.

b) Puraqui

A forma coalescente Puraqui aparece na fala dos informantes seis vezes e

corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise.

A construção Puraqui se constitui a partir da forma fonte Por (preposição locativa

lugar por onde) + aqui (advérbio locativo). Essa união de palavras se dá por justaposição,

já que não há ganho nem perda fonética, como já comentamos na subseção “a”.

Observamos que a construção Puraqui é indicativa das cercanias do lugar próximo

ao falante. Vejamos, então, esse uso na amostra (30).

(30) H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele

não... chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonia ((incomp.)) entrô de cabeça a dento, arrastô um

tamburete se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só

no coração, num sabe? “Meu amigo, o siô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei

o que. - sô daculá. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? - Quero sim

siô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o siô vai pra onde?” “vô pá Tabulêro... uma hora dessa, meu

cumpade?” “É... vamo Paulo, vá dexá o rapais lá aculá no camim, quele num sabe do camim, é puraqui pu

perto”. Aí fumo lá e fumo cá ... fumo lá e fumo cá... aí fui insiná o camim a ele. Os caba dissero “homi,

ninguém cũiece aquele home, não, cê é doido?

(H58-08-223-IQ6-80-041)

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84 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

No contexto de (30), o informante conta sobre o dia em que um estranho apareceu

na sua casa e, ao invés de se afastar do desconhecido, ele o tratou bem e o acolheu. Nesse

contexto, o sentido do Puraqui é usado como indicador de arredores de um dado lugar,

inclusive, o informante ao usar o advérbio locativo “perto” no trecho “(...) é puraqui pu

perto”, reforça o sentido apontado.

Contudo, percebemos que a construção Puraqui apresenta uma mudança em seu

significado, passando a desempenhar uma função textual-discursiva, como podemos ver na

amostra (31).

(31) H58-08: rapais, o problema de de de de de da confusão o problema da cunfunsão eu num dô tempo nem vê...

puque quano eu vejo um trisquim , pá tiro o time, fora da brincadera, oxe! Quero não! Eu num espero não,

fora da brincadeira. Os caba manga é munto deu, mar eu tô inscapano EU INSTOU INSCAPANO, né? Num

inspero não... ah, aconteceu isso assim assim, aconteceu, cadê Dó? Eu digo “Já tá im casa! Já tá im casa é...

eu tô dançano e tô cum oi nas nas... eu tô cum oi ... tô cum oi... quano eu vejo um cumeço pá é puraqui,

agora sim, vamo ciscá pra casa...

(H58-08-242-IQ6-84-024)

Na amostra (31), o informante expõe o receio que sente quando está próximo de

uma confusão, preferindo se resguardar de situações como essas. Tanto é que ele profere o

seguinte: “(...) quano eu vejo um cumeço pá é puraqui agora sim, vamo ciscá pra casa...”.

Observamos que, nesse caso, a construção Puraqui tem função textual discursiva, que

significa a direção de uma escolha, uma saída, ainda que seja ambígua, por parte do

locutor. Há, portanto, uma mudança de sentido que segue a escala CONCRETO >

ABSTRATO.

c) Puraculá

A forma coalescente Puraculá também aparece na fala dos informantes seis vezes e

corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise.

Essa construção também equivale a uma coalescência do tipo fonético-fonólógica

no corpus, as palavras contíguas se juntam com uma função pragmática. O processo de

acomodação fonética se dá igual às construções Puraí e Puraculá.

A construção coalescente Puraculá se forma a partir da forma fonte Por (preposição

locativa lugar por onde) + acolá (advérbio locativo). Assim, como já comentamos sobre os

dois componentes da construção, a forma Puraculá também originalmente aponta um lugar

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85 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

ou lugares distantes do falante e do ouvinte. Contudo, em nossas amostras, coletamos a

construção Puraculá com um sentido ambíguo na amostra (32):

(32) H58-08: o primero gole é o qui distrói, aí eu invito... essa daqui, eu me juntei cum ela. Ela bibia mais o

marido dela... Era de vez im quano ...Era um buneco puraculá, tá veno? Aí eu cunvidei ela “vamo, mia fia,

ocê vivia sofreno, judiada, apanhada. ele açoitano mia fia, butava você pá bebê à força, ocê bibia à força, ocê

qué vim pá minha companhia? Agora eu vô dizê uma coisa, batê im você não... agora eu li dô carinho, mas

batimento, não...

(H58-08-252-IQ6-85-317)

Na amostra (32), o falante relata sua aventura amorosa, cuja mulher vivia mal com

o marido devido a problemas com bebida alcoólica. Nesse contexto, a forma Praculá

apresenta um sentido ambíguo, pois tanto parece apontar um lugar longínquo dos dois

interlocutores, embora a vista pudesse alcançá-lo, intensificado por “tá veno?”, quanto

também parece indicar a proporção, a intensidade do “buneco” (=a briga do casal

embriagado), e a expressão “tá veno?” poderia indicar a pergunta: está imaginando? está

percebendo?, posto que o verbo ver, no caso, pode estar funcionando como um estágio

mais avançado do verbo perceptivo.

Já na amostra (33), a construção Puraculá apresenta função textual-discursiva sem

ambiguidade. Vejamos esse uso em (33)

(33)

H58-08: Não, seu Dó... num tenha veigõia, é sua mulé... veigõia de quê? Veigõia é você dexá ela e pegá ôta

aculá... mas sua mulé? O quê? Você vai mais eu... eu já vino lá da mulé... não, Dó chegue aqui me acuda, não

deixe cumigo... queu vô dexá ele... chego lá, cumpade, dexo ele lá, é cumu diz o ditado, Dó e os

agradicimento, não só é isso... Repare, Chico Preto, meu irmão... ele num é home pá juntá um casal, quele

chega gritano... mais véi, Chico preto né assim não... é, rapais... não é não, é devagazim, cunveisano,

ajeitano, tudo bem puraculá e é assim... é... apois é... rapais, mais foi uma cunvessa amarrada num foi? Mar

mininu! ((RINDO))

(H58-08-734 -IQ6-92-655)

Na amostra (33), o informante exalta a sua capacidade de reconciliar casais.

Percebemos que o uso da construção Puraculá, no referido contexto, desempenha a função

de marcador discursivo resumidor, pois, usando a construção Puraculá, o falante resume a

cena ou encobre os detalhes, fazendo com que o ouvinte a infira.

Assim, a construção coalescente Puraculá também apresenta nuanças de mudança

de sentido e função, ou seja, a motivação pragmática gera mais uma tendência de

construção gramaticalizada.

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86 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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4.2.6 Cumé?

A construção coalescente Cumé? se faz presente 06 (seis) vezes na fala de alguns

informantes que compuseram o corpus. Essa quantidade equivale a 1,9% das coalescências

analisadas.

A construção coalescente Cumé? apresenta como forma original a aglutinação entre

o Como (advérbio interrogativo) + É (verbo ser estativo identificador). Na aglutinação

entre os dois termos, ocorre a sinalefa do fonema átono final /u/ de Como com o fonema

tônico // da forma verbal é.

Ao juntar-se, a construção Cumé? já perde suas características originais, pois o

advérbio interrogativo já não desempenha mais uma indagação propriamente dita e o

verbo estativo já não desempenha a função de identificador de um estado. A forma Cumé?

desempenha a função de marcador discursivo. Podemos observar o uso dessa construção

na amostra (34):

(34) E: você teve vinte e quatro filho com a primeira mulher?

H58-08: vinte e quatro filho... pode acreditá... vinte e quatro fii, agora nós dava uma farriada mêa grande. Eu

mais a véia dava uma farriada mêa grande queu adimito teve uma vez/ eu vô contá uma historinha aqui... o

sĩô aceita eu contá uma históra? Qué? Munto bem, tá certo! Eu vô contá uma históra do pilão... intendeu? A

históra do pilão... o o o aquele minino do do da cigarrera, cumé?... aquele minino, cumu é? Filó, ele tem uma

fita lá gravada lá no pilão... é... eu me casei novim... o o o cum cum uns cinco ano de casado, né? Eu num

tinha só Mocinha de Dó na relação de se vivê, era duas... três, né?

(H58-08-232-IQ6- 82-139)

Na amostra (34), o informante fala sobre família e relacionamentos amorosos

pessoais. Nessa amostra, percebemos que, ao usar a forma Cumé?, o informante pausa para

refazer o lapso de memória, um esquecimento temporário, por esse motivo a construção

coalescente Cumé? funciona como um marcador discursivo de hesitação/reformulação do

pensamento.

É nesse sentido que Lyra (2007) afirma que os marcadores discursivos comumente

aparecem na fala, quando os falantes precisam reformular suas ideias, processar

mentalmente informações e reorganizar o discurso.

Como foi dito e também é perceptível na amostra (34), a construção coalescente

Cumé? vem, assim como as construções Né? e Nera?, perdendo sua modulação

interrogativa. Retomemos, pois, a trajetória exposta por Martlotta; Votre; Cezário (1996)

que indica essa perda gradual.

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87 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica

Assim, esse trajeto parece descrever o percurso pelo qual a forma Cumé? surgiu e

foi-se desenvolvendo até se tornar essa construção coalescente. Curiosamente,

encontramos na fala dos próprios remanescentes quilombolas pistas sincrônicas dos

estágios por que passou a construção Cumé?, tanto da construção sublinhada “cumu é”?

em (34), quanto na amostra (35), a seguir:

(35) E: E farinha boa.

H61-05: BOA! E essa de fora qui tá vino ela é é é, cumo é qui se diz?, mais doce mais fina, parece qué feita

de ôta coisa e parece queles faze dum jeito diferente qui faz mais barato. Seu pai inda num aprendeu a fazê

dela não? Sim, causo qui do jeito quele é, daqui uns dia vai aprendê pra fazê do mermo jeito... ((RI))

(H61-05-sd-IQ-47-197)

Na amostra (35), o informante fala com o entrevistador sobre a qualidade de uma

certa farinha comprada fora da região. Nessa amostra, o informante usa a forma analítica

Cumo é que se diz?, que cremos ser a origem da construção coalescente em análise. Desse

modo, é possível sugerir o seguinte cline:

cumo é qui se diz? > cumu é? > cumé?

Com isso, notamos que a expressão primeira foi se reduzindo, isto é, perdendo

material fonético até tornar-se uma construção coalescente, apresentando um único

formato. Além disso, a forma analítica parece corresponder a uma pergunta plena, ao passo

que a forma Cumu é? já apresenta perda da modulação interrogativa (pergunta

semirretórica), até se tornar uma pergunta retórica representada pela construção Cumé?

Todos esses fatores tendem a evidenciar a gramaticalização do Cumé? como uma

construção.

4.2.7 Daculá

A Construção Daculá se faz presente quatro vezes no corpus analisado, de modo

que equivale a 1,3% de todas as coalescências sob análise.

A forma Daculá se origina da aglutinação entre a preposição de origem De e o

advérbio locativo Acolá. Com a aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do

fonema final /e/ da preposição De com o fonema inicial /a/ do locativo Acolá.

Lembramos que a forma Daculá já constitui uma coalescência dicionarizada em

Ferreira (2010) como uma forma de contração da preposição de com o advérbio acolá,

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88 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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porém no dicionário etimológico de Cunha (2010) só há o verbete Acolá, que informa a sua

origem latina eccum illac (= eis ali), que data do séc. XIII como advérbio significando lá,

mais além.

Contudo, percebemos que, no corpus, a construção Daculá vem apresentando um

significado mais amplo, em relação ao sentido de lugar distante e certo, vejamos as

amostras (36) e (37):

(36) M81-03: o queu sei dizê dessa dança de São Gonçalo... é qui os negro inscravo... os mais véi... a festejá a

libeidade qui arrumaru... uns daculá de Mossoró... quano acharu uns puraqui pur dentu inventaru/ aí o São

Gonçalo, meu fi, São Gonçalo era um homi farrista ele era munto farrista, num sabe?

(H81-03-137-IQ5-66-764)

(37) H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele

não... Chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonĩa ((incomp.)) ... entrô de cabeça a dento, arrastô um

tamburete, se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só

no coração, num sabe? “Meu amigo, o sĩô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei

o que “sô daculá”. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? “Quero

sim, sĩô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o sĩô vai pra onde?” Vô pá Tabulêro...

(H58-08-222-IQ6-80-039)

Na amostra (36), a informante relata sobre o surgimento da dança de São Gonçalo,

dança tradicional de Portalegre e de valor histórico/cultural. E na amostra (37) o

informante H58-08 rememora a chegada de um estranho em sua residência. Em ambas as

amostras, a construção Daculá deixa de indicar um lugar distante e certo e passa a

funcionar em contextos dessa natureza como locativo indefinido, ou seja, expressa um

significado mais pragmático de lugar afastado ou desconhecido dos interlocutores.

Desse modo, notamos que a construção Daculá tem seu sentido metaforicamente

expandido. Sendo assim, a construção coalescente Daculá, que já é gramaticalizada,

constante do dicionário Aurélio, de Ferreira (2010), que sinaliza a tendência de a forma

Acolá desenvolver-se em construção, como também registramos os usos em 4.2.4, 4.2.5c e

4.2.11.

4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora

Nessa subseção, analisamos três construções coalescentes que envolvem a forma

embora em Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora. A primeira forma foi usada quatro vezes

no corpus, o que equivale a 1,3% das coalescências sob análise; a segunda construção se

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89 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

fez presente duas vezes, equivalendo a 0,6% das coalescências gerais e a última construção

foi usada três vezes, o que corresponde a 1% das coalescências selecionadas para análise.

Embora representa uma já forma gramaticalizada que, ao longo do tempo, sofreu

reanálise na passagem em boa hora > embora. A reanálise é um mecanismo de mudança

em que o falante reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o

compõem, devido à pressão de informatividade. Desse modo, podemos dizer que a palavra

embora é, por si só, uma construção coalescente.

Além da forma embora, temos as formas ir e vir que, nas construções em estudo,

carregam ainda o seu sentido pleno de movimento físico. Os clíticos se e me, pela própria

natureza de serem átonos e de incorporarem-se ao vocábulo tônico vizinho, tendem à

coalescência.

Assim, a construção Vir simbora apresenta como forma fonte Vir (verbo de

movimento) + Se (clítico) +Em boa hora (locução advérbial). Já a construção Ir simbora

apresenta como forma fonte Ir (verbo de movimento) + Se (clítico) + Em boa hora (

locução advérbial). E a construção Ir mimbora apresenta como forma fonte Ir (verbo de

movimento) + Me (clítico) + Em boa hora (locução advérbial).

Assim, percebemos que as construções Vir simbora e Ir simbora desempenham, no

contexto das amostras do corpus da pesquisa, a função de deslocamento espacial incerto.

Vejamos tais constatações nas amostras (38) e (39):

(38) H58-08: (...) Aí quano cuida Mane dizia assim/ aí vai o velho caiu duente lá... num teve nem um irmã, nium

filo qui chegasse perto do véio, a véa pegô, arrastô tudo quele tinha, pegô foi simbora, intendeu?

(H58-08-253-IQ6-86-363)

(39) H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muitu nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere i tudo pra

rua também, né?! O sítu/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente

tem mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem

futuro aqui qui indo simbora. Fica inté milhó, né?

(H61-05- 185-IQ3-46-135)

Na amostra (38), o falante relata a frieza com que sua mãe tratou seu pai no

momento que este caiu doente. Já na amostra (39), o falante faz uma comparação entre o

sítio de antigamente e o sítio atual, concluindo que as pessoas estão preferindo a cidade ao

sítio. Em ambas as amostras, notamos que os informantes, quando usam as construções foi

simbora, indo simbora, ao usarem o clítico se, parecem não definir com precisão o destino

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90 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

das pessoas as quais se referem, por isso essas construções ganham, nesse contexto, a

função de deslocamento espacial incerto ou ignorado.

Já a construção Ir mimbora, diferentemente das construções de (38) e (39),

desempenha a função de deslocamento espacial preciso, porque o pronome clítico me, se

refere a primeira do singular. Assim, quando essa construção coalescente é utilizada pelo

próprio emissor do discurso este parece usá-la com consciência sobre o lugar aonde

pretende ir (chegar). Vejamos esse uso na amostra (40):

(40) H61-07: rapais, eu cumecei uma bebedera mais Césa aqui no Pega ali e cumecemo as seis da manhã e fuma

as seis dôtu dia e bebeno e fumano e joganu e fazeno tudo em sem cumê e qui cume qui nada... só bebeno...

passemo o dia cum a noite bebeno, (...)daí quano ele isbarrô eu dixe “tô sintino nada cumpade Antõi” aí ele

dixe “Cumade Teresa, o homi tá milhó e tá dizeno qui num tá sintinu nada, eu vô mimbora pra casa se

precisá de mim, mande mim buscá que eu levo ele pá rua” daí amainceu o dia era choro pu todo canto e a

muié chorano e eu digo “ô Teresa puiqui é qui você tá chorano” aí ela contô a históra, né? Aí eu digo “nam

num vi nada disso, num vi nada disso...

(H61-07-115-IQ5-78-413)

Na amostra (40), o falante relembra o momento de sua vida em que abusou do

álcool sendo preciso o auxílio de amigos. Então, um dos participantes da história,

Compadre Antônio, depois de prestar auxílio ao informante diz: “eu vô mimbora pra casa”.

Percebemos obviamente que, nessa situação, o emissor usa a construção com a função de

deslocamento espacial preciso, inclusive explicita o local para o qual para onde intenciona

se dirigir.

Com isso, constatamos que as formas fontes utilizadas de forma individual têm um

sentido, porém quando aglutinadas findam multiplicando outros sentidos em contextos

como os expostos nesta subseção. Assim, essas construções vêm se gramaticalizando, por

meio da reanálise, processo que envolve a organização e mudança em itens ou construções

situados no eixo sintagmático.

4.2.9 (a)bombasta

A construção em epígrafe apresenta duas formas: Abombasta, produzida duas vezes

pelo informante da faixa I, cuja forma original é AH (Interjeição) + BOM (adjetivo) +

BASTA (verbo bastar), e bombasta, produzida pelo informante da Faixa III, que, sem a

interjeição fica: BOM (adjetivo) + BASTA (verbo bastar), como podemos ver em (41) e

(42).

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91 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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(41) E: que cunversa é essa de passá asma pra cancão?

H55-02: não! Agora aí é certeza...

H39-03: cê num sabia não véi?

E: nam... cumo é?

H39-03: Abombasta! O caba qui tivé asmaito pode criá um cancão. O cancão fica seco im vida e quem quem

tivé cum a asma im casa fica bom ... ABOMBASTA!...

(H39-03-031-IQ2-38-522 e 523)

(42) H84-06: apois é, véi, meu nome é munto deferente... tem o subrinome, que cê sabe, é preciso o subrinome pra

diferenciá um dôtu, né? Mas aqui, bombasta! Ficô pu Manéu Calixto mermo... agora pra fora, não! Pra fora

é preciso os documento, né? Pra o camarada cũincê, pricisa do nome todo, né?

(H84-06-143-IQ4- 067-850)

Em (41) e (42), podemos observar (a)bombasta! com a função pragmático-

discursiva de marcador em que o falante faz uma avaliação e utiliza a construção para

determinar o término de um argumento de contraexpectativa. Os elementos “Ah” e “Bom”

têm seu significado alterado e figuram, na construção, na mesma posição que geralmente

ocupam como iniciadores de resposta e, como tais, funcionam como uma forma atenuadora

na interação.

Essa atenuação parece não ser a intenção do sexto informante, ao usar apenas o

marcador discursivo Basta! em (43) e (44).

(43) H84-06: pois bem... pois bem... é seu Joãzim, basta! Eu cũinci demais e seu Vardete, adepois quele tumô de

conta do sinicato, véi/ passei munto tempo pagano o sinicato e nunca me atrasei... ((EM TOM DE

SÚPLICA)) ô, véi, eu vim me atrasá agora a pôco num sei o qui foi qui hove/ nunca atrase [o meu

sinicato.../]

(H84-06-143-IQ4-061-494)

(44) H84-06: não... tem?... basta! Tem demais, véi... mar graças a Deus se atemo bem cum ela... morreu... Finado,

meu pai faleceu, ele faleceu, e nós num tivemo o qui dizê dela... se atô cum nós quais cumo mãe, acredita?

Quais cumo mãe, GRAÇAS A DEUS... mar desse jeito, véi, é muito pocas, né? E DESSE jeito, véi, É

MUITO POCA, acredita? Poca...

(H84-06-143-IQ4-068-878)

Nas duas outras situações, em (43) e (44), o mesmo falante que usou “bombasta!

em (42) se mostra mais incisivo com o ouvinte, utilizando a forma simples basta!, no final

da sua avaliação mental, demonstrando estar convicto de sua opinião.

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92 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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4.2.10 Peraí

A construção coalescente peraí tem, em sua forma original, dois elementos:

ESPERA (verbo esperar) + AÍ (advérbio/dêitico). Em (45), essa forma se apresenta com

um uso ambíguo (TRAUGOTT: DASHER, 2005), que parece cumprir a função nova, em

posição de marcador inicial, mas também mostra o sentido original se observarmos a

continuidade do discurso em que o falante usa a forma e os sentidos originais do verbo

“esperar”: “Peraí queu vô já acumpanhá ele..., inspere pu eu, gente boa, inspere pu eu”,

porém a aglutinação com o aí mostra-nos um estágio mais avançado de gramaticalização.

(45) H58-08: (...) É seu João Gaiana? Peraí queu vô já acumpanhá ele... ei, meu cumpade, inspere pu eu, gente

boa, inspere pu eu queu vô mais o siô, qué pá quano eu saí lá fora, os caba dizê “Dó, ocê vei mais quem?” eu

dizê “Nam rapais, ar Maria mais o rapais de seu João Gaiana”.

(H58-08-307- IQ6-091-626)

Já em (46), é um marcador discursivo que tem a função de monitorar o ouvinte,

sinalizando uma atitude de cautela, é um marcador de contra-expectativa, que indica

contraste.

(46) M56-01: Peraí, mas ela num sabe, ela num sabe contá, olhe, aquela bichinha, Margarida, ela tem umas

históras também boa, ela tá aqui no ingẽi...

(M56-01- 010-IQ1- 016-275)

Por meio da construção peraí , o falante de (46) toma o turno e inicia sua avaliação

de contraste ao discurso do ouvinte.

4.2.11 Daqui praculá

A construção coalescente Daqui praculá ocorre apenas duas vezes no corpus

analisado, o que, por sua vez, corresponde a 0,6% de todas as coalescências selecionadas

para análise.

A construção coalescente Daqui praculá surge de duas construções que já vêm de

um processo coalescente. Assim, dividindo-as, a primeira coalescência é o Daqui, que se

origina da aglutinação entre a preposição de origem de e o advérbio locativo aqui. Com a

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93 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do fonema final /e/ da preposição De

com o fonema inicial /a/ do locativo aqui.

A segunda construção coalescente é o Praculá, a qual se forma a partir da

aglutinação das palavras Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), já

comentada em 4.2.4.

Em certos contextos, as duas construções coalescentes Daqui + Praculá são usadas

lado a lado, surgindo a terceira coalescência. Desse modo, a forma fonte da nova

construção é: De (preposição origem) + aqui (advérbio locativo) + Para (preposição

direção) + acolá (advérbio locativo).

Assim, a construção coalescente Daqui, que tem a função de indicar um lugar

preciso e próximo ao falante, e a construção coalescente Praculá, que desempenha a

função de indentificador de direção, perdem essas funções e adquirem uma nova função no

contexto, passa a funcionar como indicador de espaço delimitado, entre o falante e o local

de limite. Podemos constatar a construção Daqui Praculá com essa função na amostra

(47).

(47) E: casa véia, mal-assombrada, aqui tem?

M63-05: tem não... essas queu digo... é três casa num aliamento é essa do finado ((incomp.)) tudo numa linha

só mar eu nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui praculá... que num vô minti...

(M63-05- 457-IQ5-73-140)

Na amostra (47), a informante confirma a existência de casa mal-assombrada na

região, porém desconhece o relato de quem tenha se assombrado no local indicado por ela

mesma. E é justamente quando afirma: “nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui

praculá...” que percebemos que a falante, ao usar a construção Daqui Praculá, tem apenas

a intenção de delimitar o espaço e não mais a ideia de deslocamento espacial. Com isso,

podemos dizer que a construção coalescente Daqui Praculá mudou por pressão de

informatividade, pois a construção em análise assumiu novo valor, graças à

convencionalização de implicaturas conversacionais, por meio de pressões do contexto de

uso.

4.2.12 Xeu vê / Destá

As construções Xeu vê e Destá tem em comum o fato de um dos elementos

originais, antes do processo de desenvolvimento construcional, ser o verbo “deixar”.

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94 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

Temos, na primeira construção, as formas deixar + eu + ver e, na segunda, as formas

deixar + estar. Segundo os dicionários etimológicos (CUNHA, 1982; MACHADO, 2003),

a origem do verbo “deixar” é duvidosa e apresenta como forma do português medieval

“leixar”, proveniente do latim laxāre, cujo significado era estender, alargar, diminuir,

atenuar; prolongar o tempo; distender, relaxar; dar repouso. No português atual, a

entrada do dicionário Aurélio apresenta 38 acepções e 11 locuções, constantes do Quadro

7:

Quadro 7 – Significados do verbo Deixar

1. Sair de; afastar-se, retirar-se; 2. Separar-se, apartar-se de; 3. Ausentar-se; 4. Sair de; desviar-se de; 5. Não

continuar a reter; não conservar mais; largar, soltar; 6. Abandonar, desprezar; 7. Desistir de; renunciar a; 8.

Pôr de parte; não considerar; esquecer, abstrair; 9. Afastar, arredar, desviar, repelir; 10. Não obstar; permitir,

consentir; 11. Adiar, delongar; 12. Dar (como lucro ou proveito); render; 13. Largar, abandonar; exonerar-se,

demitir-se; 14. Não referir; omitir; 15. Desabituar-se de; 16. Ser despojado de; perder; 17. Desertar de;

abandonar, abjurar; 18. Transmitir, comunicar; imprimir, infundir; 19. Causar, ou transmitir, ao ausentar-se

ou morrer; 20. Transmitir como legado, ou (caso não haja testamento) como natural consequência da morte,

automaticamente; 21. Transmitir como legado; 22. Tornar possível; facultar; 23. Ser a causa ou motivo de;

causar, provocar; 24. Adiar, pospor; 25. Suspender, parar; 26. Pôr, colocar; 27. Fazer que fique (em certo

lugar); 28. Fazer que fique (em certo estado ou condição); tornar; 29. Instituir, constituir, nomear; 30. Deixar

só, abandonar, desamparar; 31. Cessar, desistir; 32. Fugir a; evitar; 33. Transferir, legar; 34. Por à disposição;

ceder; 35. Não privar, não despojar (de alguém ou de algo); 36. Cessar, desistir; abster-se; 37. Separar-se,

apartar-se; 38. Não obstar ou resistir; consentir, permitir. E as locuções: 1. Deixar a desejar (Não

corresponder ao que se esperava, ou ao que seria de esperar); 2. Deixar atrás. (1. Não mencionar, omitir. 2.

Exceder, superar, suplantar.); 3. Deixar cair.( Bras. V. deixar correr.); 4. Deixar correr. (1. Deixar que

aconteça. 2. Não fazer caso de. [Sin. ger.: deixar cair, deixar ir, deixar rolar.] ); 5. Deixar de fora. (Não dar

oportunidade de participar; excluir.); 6. Deixar ir.(V. deixar correr); 7. Deixar para lá. (Não fazer caso de;

não se incomodar com); 8. Deixar passar. (1. Não impedir que passe. 2. Admitir, tolerar); 9. Deixar

perceber. (Dar a entender); 10. Deixar rolar. (V. deixar correr.); 11. Deixar ver. (Mostrar, apresentar;

demonstrar).

Fonte: (FERREIRA, 2010)

Diante da riqueza polissêmica do verbo “deixar”, podemos inferir quão diversas

devem ser as possibilidades de dessemantização do sentido pleno até chegar ao uso de

“deixar” como auxiliar como nas construções deixar ver (locução 11, em FERREIRA,

2010), que assumiu, no corpus em estudo, a forma xeu vê, e a construção deixa estar (não

registrada no referido dicionário) usada como destá.

Cesário; Gomes; Pinto (1996) fizeram um estudo do verbo “deixar” para verificar a

gramaticalização de verbos emotivos e efetivos em locuções resultantes da integração

semântico-sintática entre orações. Entendem verbos emotivos como os que exprimem um

julgamento de ordem pessoal ou cujos sujeitos exercem (ou tentam exercer) uma

manipulação sobre o sujeito da oração subordinada, como querer, deixar e desejar; e

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95 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

verbos efetivos como os que, concretamente, efetuam os processos contidos no verbo

principal, sendo conhecido como auxiliares lato sensu, como estar, ficar e poder.

Segundo os autores, o verbo “deixar” é um verbo duplo que tem usos como

emotivos-efetivos e sua trajetória de gramaticalização começa como um verbo emotivo,

presente em: i) “Minha mãe não deixa eu namorar...”(p.108) e (ii) e “Olha colega, ...

deixe-nos ir.” (p.108), que passam a efetivos (ver p 79) e depois continuam o processo

cristalizando o seu uso ao lado de determinados verbos, como em: iii) “Entrevistador –

qual o prato que você mais gosta de fazer? ... Informante – Eh, deixa ver, macarrão ... não

arroz. (p.108). Assim, em iii, o verbo “deixar” é um auxiliar e seu emprego se cristalizou

ao lado do verbo ver, descrito na subseção “a” como xeu vê, e ao lado do verbo estar, que

derivou a forma destá, descrita na subseção “b”.

a) Xeu vê

No corpus, flagramos uma ocorrência da construção coalescente xeu vê em (48)

(48) H84-06: pois bem... im quarenta e dois nós tava aqui... qué dizê im quarenta e dois eu era casado já im trinta

e dois não, eu era sortero ainda fui mais papai, agora im quarenta e dois eu já era casado... cheguei aqui eu

num tava aqui munto aperriado demais não, mar chegô aquela rodage qui hoje é de frente pá Pau do Serro...

Antõi... é Antõi Filipe, meu Deus? É... xeu vê... chamavam Antõi Suare...

(H84-06-126 -IQ4-063-641)

Como anunciamos, a construção xeu vê, nesse caso, resulta da forma original:

DEIXAR (verbo emotivo) + EU (pronome) + VER (verbo perceptivo), mas, em (48), o

“deixar” tem outro uso, passando a funcionar como verbo efetivo, auxiliar. E como tal,

cristalizou-se ao lado de “ver”, em que o falante não está pedindo permissão ao ouvinte,

mas usa a construção xeu vê para preencher o tempo em que está pensando, o que é

reforçado pelo fato de vir entre pausas, que também marca o momento de reflexão em

busca (= saber) do nome da “rodagem”, no sentido de dar maior clareza ao discurso.

Segundo Martelotta; Votre; Cezario (1996), verbos de percepção como “ver” e “perceber”,

entre outros, tendem a ser usados metaforicamente com o sentido de saber, como

percebeu?, você vê ou deixar ver.

Na amostra, portanto, o xeu vê funciona como um marcador de

hesitação/reformulação. Há a coalescência do “deixar”, em que há a braquissemia (por

desgaste fonético) dexa > xa e a junção com sujeito da oração subordinada eu, que resulta

no xeu. Como podemos ver, a construção deixar ver já não tem o sentido da locução que,

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96 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

segundo Ferreira (2010), seria “11. mostrar, apresentar; demonstrar”, como mostramos no

Quadro 7.

Enfim, a trajetória da construção seria: DEIXAR (verbo emotivo > efetivo) + EU

(pronome) + VER (verbo perceptivo) > XEU VÊ (Marcador de esclarecimento).

Parece que a forma xeu ainda assume outra forma, pois, conforme Cesário; Gomes;

Pinto (1996, p.109), o desgaste fonético pode ser constatado na piada:

“- Deixa eu ver (= xô vê [‟ ]).

– Se chover vai molhar,”

Esse desgaste parece ser mais forte na forma destá, presente na subseção “b”.

b) Destá

Também flagramos uma ocorrência da construção coalescente destá em (49)

(49) H58-08: (...) se uma pessoa dissé, rapais aquele mininu de Joãozim Gaiana aquilo num presta aquilo é um

amaidiciado aquilo num sei o que... destá tem probrema não.. qué dizê qui aquela pessoa tá dizeno aquilo

dali puique ele num tá se lembrando qui tem o furo da aguia, ele já tá perdido, ele já tá perdido ele num tá

sabeno ele tanto faz jogá cumo perder, ele tanto faz jogá cumo perdê a vida dele já tá já tá certa aí vai o siô,

um home de bem, home de bem cumo é, aí chega o siô diz assim “sabe duma coisa, ((incomp.))”

(H58-08-305 -IQ7-91-614)

Apesar de o percurso de gramaticalização de “deixar‟ ser quase o mesmo descrito

na subseção “a”, o desgaste fonético, na construção como um todo, deu-se diferente: ou

houve a fusão dos sons semelhantes na coalescência [„de] (= deixe) + [e‟ta] (=está) ou a

junção de [„de] + tá, que é a forma bastante usual na linguagem informal de estar.

Em destá, o verbo “estar” não tem a função de auxiliar lato sensu como afirmamos

em “a”, mas sim como um verbo de conteúdo pleno. O verbo “estar” com o sentido pleno

vem do latim stare, que significava, entre outros sentidos, o de „estar de pé‟, „conservar-se

do lado de‟, „estar imóvel‟ e „manter-se parado‟. Tinha, portanto, um sentido de

permanência, de continuidade física num local. (CESÁRIO; GOMES; PINTO,1996)

Assim, em (49), a construção coalescente destá interrompe a linha de pensamento,

marcado também pelas pausas antes e depois, para funcionar como um elemento de

aviso/chamamento para ele e/ou para o ouvinte sobre sua tomada de posição ou avaliação

quanto ao assunto, como uma promessa velada.

A trajetória de gramaticalização de destá seria:

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97 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

DEIXAR (verbo emotivo) + ESTAR (verbo estativo) > DESTÁ (Marcador de avaliação)

Concluída a análise das vinte construções coalescentes, que as dispomos em 12

grupos, passemos a reagrupá-las em tendências de trajetórias de gramaticalização na seção

4.3.

4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de

remanescentes quilombolas de Portalegre/RN

A partir da análise da gramaticalização das construções coalescentes em 4.2,

resumimos, nesta seção, as tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, todas

são unidirecionais e seguem a tendência translinguística de gramaticalização bem como a

escala de abstratização:

ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO

Destacamos, para representar essa escala metafórica, o desenvolvimento das

construções coalescentes Praculá; Praqui praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí;

Puraculá; Puraqui, expostas na seção 4.2, que partem da formação original Preposição +

advérbio locativo, portanto indicam a noção espacial, especialmente, pela presença de

advérbios acolá, aqui e aí. Depois, as referidas construções vão, a partir de contextos mais

amplos e abstratos, que se realizam no discurso, ou seja, numa dada situação real de uso,

atingindo um estágio mais avançado de gramaticalização. Nas construções analisadas,

somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, porém em um

uso pragmático-discursivo.

Partindo dessa noção mais geral, apresentamos as tendências de gramaticalização

por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual acreditamos que as demais

construções coalescentes tenham evoluído:

significado referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-

discursivo

Conforme o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os

pontos focais de início e do estágio registrado na amostra.

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98 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

a) Significado referencial > Significado pragmático-discursivo

Incluímos nessa escala as construções coalescentes:

Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora

b) Significado semântico-sintático > significado textual-discursivo

Destacamos, nesse trajeto, o desenvolvimento do uso da construção

Quiném.

c) Significado textual-discursivo > Significado pragmático- discursivo

Com base, em Heine (1991), dividimos essa tendência em dois blocos:

c.1 Marcador discursivo orientado para a avaliação do falante: refere-se ao que o falante

tem sua mente: suas atitudes, julgamentos, crenças, etc., como as construções coalescentes:

Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...?

c.2 Marcador discursivo orientado para o ouvinte: refere-se à adequação do uso aos

propósitos tanto do falante quanto do ouvinte. As construções que funcionam como

requisitos de apoio discursivo são:

Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê

Apesar da forma concisa e objetiva, cremos que esse é o resultado das construções

gramaticalizadas presentes no corpus estudado, porém não podemos assegurar que são

formas específicas de parte do grupo, posto não termos estudos do resto da comunidade

(escolarizada, por exemplo) ou de regiões vizinhas para efeito de comparação. Entretanto,

essas construções coalescentes representam as maiores frequências de uso, portanto

indícios tanto de início como de final do processo de gramaticalização.

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99 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

5 CONCLUSÃO

Esta pesquisa teve como objetivo principal descrever os mecanismos e propriedades

formais e funcionais que caracterizam o processo da coalescência correlacionado aos

estudos de gramaticalização, a partir de construções linguísticas garimpadas na modalidade

oral de analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN. Esse

objetivo se relaciona a perguntas específicas, às quais, por meio de uma análise sincrônica,

procuramos responder: que funções/significados as formas resultantes da coalescência

linguística desempenham no uso linguístico? Que processos/mecanismos podem explicar o

surgimento das formas coalescentes? Quais são os indícios/tendências de mudança

linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes quilombolas de

Portalegre/RN?

Para respondermos a essas perguntas, realizamos o levantamento de todas as

construções coalescentes existentes no corpus: “A fala de remanescentes quilombolas de

Portalegre do Brasil”, no qual detectamos a presença de 58 (cinquenta e oito) tipos de

formas coalescentes com 721 (setecentos e vinte uma) ocorrências. Desse total, extraímos

20 (vinte) construções coalescentes para análise, as quais se encontram em processo de

gramaticalização. As demais formas coalescentes se caracterizam como construções

coalescentes fonético-fonológicas, formas essas que, por enquanto, não apresentam

qualquer mudança relacionada à gramaticalização.

Nossa análise se baseou na noção de construção para verificarmos o processo de

vinculação de sentido e forma que dá origem a novas expressões, no caso, da fala de parte

da comunidade de remanescentes quilombolas, interpretando, assim, suas motivações

discursivo-pragmáticas, assim como também as tendências de trajetória de mudança dos

fenômenos de coalescência mais frequentes na fala dos quilombolas, como resultantes do

processo de gramaticalização.

Destacamos, a seguir, os principais tópicos que respondem às perguntas, bem como

os achados que têm a contribuir com o estudo da gramaticalização e o fenômeno da

coalescência associada à gramática das construções.

Julgamos estas serem as contribuições de maior relevância deste trabalho:

a) processos/mecanismos relacionados ao surgimento de construções coalescentes

Quanto aos processos e mecanismos envolvidos na coalescência, cremos que a

metonímia atua na reanálise, ou seja, na reinterpretação de vocábulos contíguos.

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100 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

b) tendências de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos

remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.

As tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, são todas

unidirecionais e seguem a via translinguística de gramaticalização, seguindo a escala de

abstratização: ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO. Destacamos, para representar essa

escala metafórica, o desenvolvimento das construções coalescentes Praculá; Praqui

praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí; Puraculá; Puraqui. Nas construções analisadas,

somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, em um uso

pragmático-discursivo.

Partindo dessa tendência mais geral, apresentamos as tendências de

gramaticalização por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual

acreditamos que as demais construções coalescentes tenham evoluído: significado

referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Conforme

o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os pontos focais de

início e do estágio registrado na amostra: a) significado referencial > significado

pragmático-discursivo: Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora; b) Significado semântico-

sintático > significado textual-discursivo; Quiném; e c) Significado textual-discursivo >

Significado pragmático- discursivo: dividimos essa tendência em dois blocos: Marcador

discursivo orientado para a avaliação do falante: Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...?; e

Marcador discursivo orientado para o ouvinte: Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê.

Então, seguindo o critério da frequência de uso mencionado por Bybee (2003) e

nessas características constatadas, percebemos que as construções coalescentes analisadas

são processos linguísticos bastante frequentes na fala dos remanescentes de quilombolas,

sendo mais frequentes as formas: Né? Nera? e Quiném.

Atentamos ainda para o fato de que as construções coalescentes, em sua grande

maioria, apresentaram perda fonética no momento em que as palavras estreitam suas

fronteiras. Assim, concordamos com a colocação de Bybee (2003) e Bybee & Hopper

(2001) quando afirmam que a “erosão” fonética liga-se também a frequência relativa de

uso, uma vez que quanto mais presente no discurso, maior a possibilidade de desgaste de

um item, devido sua previsibilidade em contextos discursivos apropriados.

Desse modo, partimos do pressuposto de que as coalescências no corpus surgiram a

partir de uma repetição frequente das formas contíguas, as quais foram tendo seus limites

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101 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL

cada vez mais aproximados. De foma que as construções coalescentes se unem por

justaposição e, por fim, aglutinam-se, formando uma só palavra, com forma e sentido

novos.

No percurso desta investigação, há alguns pontos que abrem perspectivas de

explorações complementares em trabalhos futuros. Dentre outros, mostramos como mais

saliente o estudo das demais formas coalescentes (as fonético-fonológicas) que, como

ainda não se gramaticalizaram, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial

de mudança, que pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser

constatada em momentos futuros.

Aproveitamos o ensejo para ressalvar que muitas das construções coalescentes

encontradas na fala dos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN podem ser

detectadas na fala de outras comunidades. Assim sendo, esperamos que esta pesquisa sirva

como um instrumento reflexivo para que outros pesquisadores reflitam sobre o fenômeno

da coalescência e possam, assim, desbravar novos horizontes sobre o assunto, gerando

novas produções, uma vez que, conforme já mencionado, são escassos trabalhos sobre este

aspecto linguístico.

É nosso desejo também que esta pesquisa traga contribuições para a área do

Funcionalismo Linguístico, bem como para o trabalho pedagógico. Esperamos que a

pesquisa contribua na luta contra o preconceito linguístico, uma vez que, por se tratar de

uma comunidade de negros, analfabetos e descendentes de escravos, muitos usam tais

características para propagar o preconceito. Ao contrário disso, a pesquisa pode ser usada

para apresentar outra variedade linguística do português aos discentes, expondo

explicações reais do funcionamento linguístico, bem como o processo de gramaticalização.

É nosso dever enquanto linguistas e professores refletirmos sobre os usos linguísticos e

propagarmos o fato de que a língua está susceptível à mudanças, ela não é estática e

imutável. Ela é viva como os seres humanos que a falam.

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102 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE

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