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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAI - UNIVALI ROBERTA BORBA RODRIGUES INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO DE FETOS ANENCEFÁLICOS: Considerações sobre a legalidade do aborto BIGUAÇU 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAI - UNIVALI

ROBERTA BORBA RODRIGUES

INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO DE FETOS ANENCEFÁLICOS:

Considerações sobre a legalidade do aborto

BIGUAÇU 2008

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ROBERTA BORBA RODRIGUES

INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETOS ANENCEFÁLICOS:

Considerações sobre a legalidade do aborto

Monografia apresentada à Universidade do

Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial

a obtenção do grau em Bacharel em Direito.

Orientadora: Profº MSc Eunice Anisete de

Souza Trajano

Biguaçu 2008

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ROBERTA BORBA RODRIGUES

INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO DE FETOS ANENCEFÁLICO:

Considerações sobre a legalidade do aborto

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Direito Penal

Biguaçu, 12 de novembro de 2008.

Prof. MSc. Eunice Anisete de Souza Trajano UNIVALI – Campus de Biguaçu

Prof.Esp. Alessandra de Souza Trajano UNIVALI – Membro

Prof. Esp. Marilene do Espírito Santo UNIVALI – Membro

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Dedico este trabalho primeiramente a Deus, que me deu discernimento e a

oportunidade de estar aqui presente para realização de mais um objetivo na minha vida, e a todos aqueles que diretamente ou indiretamente de alguma forma me

ajudaram a consolidá-lo. À minha família, em especial às minhas filhas, que compreenderam minha ausência.

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AGRADECIMENTO

Primeiramente a Deus, que sempre esteve presente em minha vida, me deu

forças e ânimo para realizar este projeto, agradeço aos meus pais que foram

compreensíveis e me deram suporte;

Agradeço a uma pessoa muito especial que imparcialmente me incentivou a

ingressar na faculdade e principalmente ao grande amor da minha vida, meu marido,

pelo amor, carinho e compreensão, e pelas horas de atenção que lhe foram negadas

em função deste trabalho;

Às minhas filhas, pelo amor incondicional, pela paciência e compreensão em

entender a falta que fiz em determinados momentos;

Sem dúvida não poderia deixar de agradecer e demonstrar minha admiração

a minha orientadora, que com paciência e dedicação conduziu-me com muita

sabedoria;

Aos professores do curso, alguns deles mestres na arte de lecionar;

Gostaria de encerrar este agradecimento destacando as amizades que

foram construídas ao decorrer do curso e consolidadas através da convivência

dentro e fora da Universidade.

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“A vida e a morte, dois extremos, dois opostos, dois fenômenos em cuja seqüência se desenvolve todo o destino do homem, do ser humano considerado como pessoa pelo direito”.

D. Gogliano

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade

pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acera do mesmo.

Biguaçu, 12 de novembro de 2008.

Roberta Borba Rodrigues

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RESUMO

O presente trabalho pretende examinar com detalhe a argumentação das causas

justificativas do aborto anencefálico. A interrupção de gestação de anencéfalos, gera

intensa polêmica em todo país, por trazer a tona questões jurídicas, implicações

morais, sociológicas e de outras ordens. É destacado neste trabalho duas premissas

básicas, são estas: a aflição psicológica que a gestante sofre gerando um feto

anencefálico, a mesma torna-se cada vez mais traumática a medida que se

aproxima o final da gestação e a segunda a adoção, de um regime democrático, de

um Direito Penal, onde questiona-se a efetiva ofensa jurídica, tipicidade material, na

vedação da interrupção da gestação. A ADPF (Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental) nº 54, protocolada pela Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Saúde junto ao Supremo Tribunal Federal, põe em questão de

juízo a interrupção da gestação de feto anencéfalo, nesta referida ação, reconhece-

se o direito da gestante de interromper uma gestação com natureza desse tipo,

levanta-se junto à ação as causas de justificação para o aborto especificadas no

Código Penal. Ao final desta monografia defende-se a interrupção da gestação,

como medida terapêutica argumentando sobre o sofrimento psicológico na qual a

mãe é submetida mantendo a gestação durante os nove meses.

Palavras-chave: Aborto. Anencefalia. Direito Penal. Tipicidade material.

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ABSTRACT

This study aims to examine in detail the arguments supporting the causes of abortion

anencephaly. The interruption of pregnancy of anencephaly, generating intense

controversy in any country by bringing forth the legal, moral implications, sociological

and other orders. It is posted in this basic work two premises, these are: the

psychological distress that the pregnant woman suffers generating an anencephalic

fetus, it becomes even more traumatic for you as you approach the end of the

second pregnancy and the adoption of a democratic regime, a criminal law, where

questions to effective legal offense, typical material, to seal the interruption of

pregnancy. The ADPF (accusation of breach of fundamental precept) No. 54,

protocols by the National Confederation of Health Workers in near the Supreme

Court, calls into question the break-away of the pregnancy of anencephalic fetus,

said this action, recognizes the right of pregnant women to interrupt a management

with such nature, there is close to the action causes a justification for abortion

specified in the Penal Code. At the end of this work, argues that kind of interruption

of pregnancy, arguing about the psychological suffering in which the mother is

subject to maintaining pregnancy during the nine months.

Key-words: Abortion. Anencephaly. Criminal Law. Typical material.

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ROL DE ABREVIATURAS OU DE SIGLAS

ACR Acórdão

ADPF Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Ampl. Ampliada

Art. Artigo

Atual Atualizada

CNTS Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde

CP Código Penal

CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Ed Edição

IEG Interrupção Eugênica da Gestação

ISG Interrupção Seletiva da Gestação

ITG Interrupção Terapêutica da Gestação

IVG Interrupção Voluntária da Gestação

Min. Ministro (a)

N Número

P. Página

Rel. Relator

Rev. Revisto

RT Revista dos Tribunais

STJ Superior Tribunal de Justiça

STF Supremo Tribunal Federal

T. Turma

USP Universidade de São Paulo

§ Parágrafo

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ROL DE CATEGORIAS

Aborto

“Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É

morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três

meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O

produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou

até mumificado, ou, pode a gestante morrer antes de sua expulsão. Não deixará de

haver, no caso, o aborto”.1

Anencéfalo

“[...] pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita,

não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os

hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano,

ponte e pedúnculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação

sanguínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o

anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas

depois”.2

Crime

“[...] Resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se

infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o

seu conteúdo. Considerar a existência de um crime sem levar em conta sua

essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade

humana”.3

Morte

1 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 20. ed. São Paulo: Atlas: 2003. p. 93. 2 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 281. 3 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. v. 1. 9 .ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 112.

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Morte, juridicamente falando, é, pois, a ausência de vida, representada esta pela

atividade cerebral da qual depende a realização de todas as funções do encéfalo

(tronco mais cérebro) e, por conseguinte, de todo o corpo humano.4

4 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01

1 - ABORTO: CONCEITOS E CONCEPÇÕES ........................................ 04

1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS .................................................................. 04

1.2 CONCEITO DE ABORTO ............................................................................... 07

1.3 FORMAS DE ABORTO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ............................... 09

2 – ABORTO EUGÊNICO E O ABORTO SELETIVO............................. 16

2.1 UTILIZAÇÃO INADEQUADA DA EXPRESSÃO ABORTO EUGÊNICO EM

RELAÇÃO ÁS ANOMALIAS FETAIS INCOMPATÍVEIS COM A VIDA ................. 17

2.2 A QUESTÃO MÉDICA DA GESTAÇÃO DO FETO ANENCÉFALO................ 21

2.3 ASPECTOS RELIGIOSOS.............................................................................. 24

2.4 A VIDA COMO BEM JURÍDICO PENALMENTE RELEVANTE ...................... 26

2.5 BREVES ASPECTOS ACERCA DO CONCEITO DE VIDA E DA MORTE

ENCEFÁLICA........................................................................................................ 31

3 A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETO ANENCÉFALO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEGALIDADE DO ABORTO .............. 35

3.1 O ABORTO SELETIVO E O CÓDIGO PENAL................................................ 35

3.2 ANTEPROJETO DO CÓDIGO PENAL ........................................................... 36

3.3 AUSÊNCIA DE TIPICIDADE DO ABORTO SELETIVO .................................. 39

3.4 O ABORTO E SUA ANTIJURICIDADE .......................................................... 41

3.5 ALVARÁS JUDICIAIS...................................................................................... 44

3.6 O PRIMEIRO CASO DE INTERVENÇÃO JUDICIAL PARA A PRÁTICA DE

ABORTO NA JUSTIÇA BRSILEIRA...................................................................... 50

3.7 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF)

Nº 54 ..................................................................................................................... 52

3.8 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO.. 55

3.9 ASPECTOS JURÍDICOS PENAIS DA AUTORIZAÇÃO PARA O ABORTO DO

FETO ANENCÉFALO ........................................................................................... 57

3.10 O CASO MARCELA DE JESUS.................................................................... 58

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CONCLUSÃO ....................................................................................................... 60

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .............................................................. 63

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INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como objetivo trazer à tona um tema que tem se

tornado polêmico nos últimos dias, a interrupção da gestação, mais especificamente

quando se trata de feto portador da anencefalia, tendo em vista ser uma criança sem

perspectiva de vida extra-uterina visando à interrupção da gestação como medida

terapêutica.

Trata-se de uma gestação de um feto sem cérebro, ou seja, destituído de

qualquer possibilidade de vida extra-uterina, visto que, a falta de atividade cerebral é

considerada para fins jurídicos, o conceito de morte. Diante deste caso, a conduta

típica não encontra respaldo no capítulo dos crimes contra a vida. Sendo assim, a

interrupção da gestação do feto anencéfalo é conduta que não atinge o bem jurídico

tutelado pelo Direito Penal, não se devendo falar em aborto.

Retornando a polêmica do tema, o mesmo se dá pelo cenário nacional que

as discussões vêm gerando devido à divulgação na mídia de uma Ação por

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF Nº 54) ajuizada perante o

Supremo Tribunal Federal, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da

Saúde.

Será examinada essa tese abortista à luz da referida Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental, sua importância, até por ter chego aos

tribunais superiores pedidos de autorização para abortamento, embora já exista o

abortamento logicamente que de forma clandestinamente.

O objetivo com a presente monografia consiste em analisar especificamente

o aborto em casos de anencefalia, primando por uma abordagem puramente

jurídico-científica, concernente à temática ética e penal. Não se questiona neste

trabalho solucionar o problema, visto a complexidade da discussão, que envolvem

muito mais do que questões jurídicas, mas dentro disso, questões sociais, éticas,

religiosas e psíquicas. Busca-se, entretanto, dar contornos mais objetivos e práticos

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ao tema, quanto à aprovação da do Projeto de Lei que visa inserir no Código Penal

Brasileiro, em sua parte especial quando constata-se casos de anomalias fetais em

que não existe a sobrevida do feto fora do útero materno, e, ainda, a aflição

psicológica na qual a gestante é submetida até o fim da gestação.

Dessa forma, para melhor entendimento do tema abordado, tem-se: No

primeiro capítulo uma abordagem sobre aborto – considerações históricas e a

tipificação das condutas incriminadoras na legislação penal brasileira.

No segundo capítulo aborda-se a existência ou não do aborto “legal” no

direito positivo brasileiro, a inadequação da utilização do termo aborto eugênico

frente ao aborto seletivo, em relação às anomalias fetais sem existência de

sobrevida do feto fora do útero materno, à questão médica, os aspectos jurídicos,

conseqüentemente a vida como bem jurídico penalmente relevante, e por fim os

aspectos do conceito de vida e da morte encefálica. Será questionada a

constitucionalidade da interpretação abortista do artigo 128 do Código Penal e serão

apreciadas as diversas tentativas, ao longo da história legislativa, de se mudar a

redação do referido dispositivo de crime ou não.

No terceiro capítulo, levanta-se os pontos principais deste trabalho, a

interrupção da gestação dos fetos anencéfalos e sua legalização, o aborto seletivo e

o Código Penal, apontando as formas de excludentes de ilicitude perante a presente

questão, o primeiro caso de intervenção da gestação de feto portador de anomalia

fetal incompatível com a vida nos superiores tribunais, e por conseqüência a

discussão sobre a ADPF nº 54, e os aspectos jurídico-penais frente a esta anomalia.

Com o presente trabalho busca-se demonstrar que a Interrupção da

Gestação do Feto Anencéfalo não atinge o bem jurídico protegido pelo Direito Penal,

haja vista que a mãe gesta uma criança sem perspectiva de vida extra-uterina,

sendo que a interrupção da gestação visa uma medida terapêutica em que os pais

não podem ser obrigados a levar a gravidez até o fim, com a certeza de um final

triste e lamentável.

Assim, a gestação de um feto sem cérebro, ou seja, destituído de qualquer

possibilidade de vida extra-uterina, visto que, a falta de atividade cerebral é

considerada para fins jurídicos, o conceito de morte. Diante deste caso, a conduta

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típica não encontra respaldo no capítulo dos crimes contra vida, não se devendo

falar em aborto.

Neste sentido, a presente monografia consiste em analisar especificamente

o aborto em casos de anencefalia, primando por uma abordagem puramente

jurídico-científica, concernente à temática ética e penal. Não se questiona neste

trabalho solucionar o problema, visto a complexidade da discussão, que envolvem

muito mais que questões jurídicas, mas dentro disso, questões sociais, éticas,

religiosas e psíquicas. Busca-se, entretanto, dar contornos mais objetivos e práticos

ao tema, quanto à aprovação da do Projeto de Lei que visa inserir no Código Penal

Brasileiro, em sua parte especial quando constata-se casos de anomalias fetais em

que não existe a sobrevida do feto fora do útero materno, e, ainda, a aflição

psicológica na qual a gestante é submetida até o fim da gestação.

Quanto à metodologia empregada registra-se que, na presente monografia a

base lógica utilizada foi a dedutiva.

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1 - ABORTO: CONCEITOS E CONCEPÇÕES

Inicialmente será versado neste primeiro capítulo sobre a origem do aborto

com a sua evolução histórica, apontando as formas de sua tipificação na legislação

brasileira, trazendo, por conseqüência, os conceitos, bem como as indicações para

interromper a gestação nos países estrangeiros.

Assim sendo, convém salientar que o ato de abortar ainda é um tema muito

discutido em todas as sociedades, eis que sempre houve indagações quanto ao

direito de a mãe em interromper a gestação, e ainda hoje, surgem inúmeros

questionamentos sobre considerá-lo crime.5

1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

“A prática do aborto é descrita desde as civilizações antigas. Porém, em

cada época, foi encarada de maneira diferente, de acordo com a cultura e os

interesses político-econômicos vigentes na civilização em questão”.6

Segundo Belo: “O feto era considerado como simples anexo ocasional do

organismo materno (pars mulieris), de cujo destino a mulher podia livremente decidir,

salvo quando casada, devido à proeminência do direito marital”. 7

O Código de Hammurabi, 1700 a.C, considerava o aborto um crime contra

os interesses do pai e do marido, e também uma lesão contra a mulher.8

“Na civilização hebraica, só era punido o aborto ocasionado, ainda que

involuntariamente, mediante violência, mas a partir da Lei Mosaica passou a se

considerar ilícita a interrupção”.9

5 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 16. 6 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 15. 7 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 21. 8 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 21 9 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 15.

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A Lei de Mileto previa pena de morte caso a mulher abortasse sem o

consentimento do marido, sendo que os filhos eram considerados propriedade

privada do pai que poderia dispor do direito a sua vida e morte.10

Aspásia, originária de Mileto, no entanto pôde praticar o aborto, deixando um

livro escrito a respeito, um dos documentos mais antigos redigidos por uma

mulher.11

Hipócrates, 400 a.C, apesar de seu juramento no qual promete “não dar a

nenhuma mulher grávida nenhum medicamento que possa fazê-la abortar, não

hesitava em aconselhar às parteiras métodos tanto anticoncepcionais como

abortivos.12

Sócrates, seu contemporâneo, era partidário de, “facilitar o aborto quando a

mulher desejasse”, e seu discípulo Platão, preconizava o aborto em relação a toda

mulher que concebesse depois dos quarenta anos. 13

Na antiga Grécia, Aristóteles, aconselhava o aborto (desde que o feto ainda

não tivesse adquirido alma) para manter o equilíbrio da população e os meios de

subsistência. 14

A cidade de Esparta proibia o aborto juridicamente, pois sua preocupação

era atingir o maior número de atletas e guerreiros, reservando ao Estado a decisão

sobre a vida ou a morte dos recém-nascidos, eliminando os mal formados.15

Em Roma, a Lei das XII Tábuas e as Leis da República não cuidavam do

aborto, pois consideravam o produto da concepção como parte do corpo da gestante

10 PRADO, Danda. O que é Aborto. 4ª ed. Editora Brasiliense. 1991, p. 43. 11 PRADO, Danda. O que é Aborto. 4ª ed. Editora Brasiliense. 1991. p. 43. 12 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 22. 13 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 23. 14 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material Aborto e Anencefalia. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí. v. 10, n. 2. p. 581. jul/dez 2005. 15 PRADO, Danda. O que é Aborto. 4ª ed. Editora Brasiliense. 1991, p. 44.

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e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia do

que dispor do próprio corpo.16

Em um segundo momento da história de Roma, o aborto voluntário não era

ainda criminalizado, mas passou-se a vincular-se às decisões do marido, o qual

possuía direito de vida e morte sobre a família. 17

A prática abortiva era utilizada pelas mulheres como arma de agressão e

vingança em face de seus maridos, mesmo correndo o risco de lhe ser aplicada

pena de morte.18

Santo Agostinho condenava tanto a contracepção quanto o aborto (quer de

feto formado, quer não formado) como pecados contra o matrimônio. 19

Porém, foi com o cristianismo que se consolidou a reprovação social do

aborto. Sob seu influxo, os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio

reformaram o antigo direito e assimilaram o aborto criminoso ao homicídio.20

Nesse contexto, houve uma mudança significativa de mentalidade e

costumes, considerando o aborto totalmente contrário à soberania de Deus sobre a

vida humana. 21

No Brasil, com o Código Criminal do Império de 1830, não criminalizava o

aborto praticado pela própria gestante, punia-se somente o aborto provocado por

terceiros que interviessem no abortamento, mas não à gestante. 22

O Código Penal de 1890 já criminalizava o aborto praticado pela própria

gestante, no entanto, o aborto era autorizado nos casos de salvar a vida da mesma,

16 CAPEZ, Fernado. Curso de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (art. 121 a 212). 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110. 17 VERDADO, Maria Tereza. Aborto: um direito ou um crime? 2ª ed. São Paulo: Moderna. 1987, p. 81. 18 VERDADO, Maria Tereza. Aborto: um direito ou um crime? 2ª ed. São Paulo: Moderna. 1987. 19 MORI, Maurizio. A moralidade do Aborto: sacralidade da vida e novo papel da mulher. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. 20 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. V. 5, arts. 121 a 136/ por/ Nélson Hungria /e/ Heleno Fragoso, 5 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 271. 21 MORI, Maurizio. A moralidade do Aborto: sacralidade da vida e novo papel da mulher. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 18. 22 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 155.

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punindo-se o médico ou parteira que, culposamente, ocasionasse a morte da

mulher. 23

Finalmente, o Código Penal de 1940, por sua vez, tipifica três figuras de

aborto: aborto provocado (art.124), aborto sofrido (art. 125) e o aborto consentido

(art. 126), estando vigente atualmente.

1.2 CONCEITO DE ABORTO

O crime de aborto está capitulado no Título “Dos Crimes Contra a Pessoa” e

no capítulo “Dos crimes Contra a Vida”. O bem tutelado é a vida do feto o produto da

concepção vive.24

No sentido etimológico, aborto quer dizer privação do nascimento. Advém de

ab, que significa privação, e ortus, nascimento.25

Sobre o tema, entende o doutrinador Nelson Hungria ser necessário para se

caracterizar o aborto a interrupção da gravidez. “[...] É este, alias o critério médico-

legal, a que deve afeiçoar-se a noção jurídico-penal: “aborto é a interrupção da

gravidez seguida ou não da expulsão do feto, antes da época da sua maturidade””.26

Neste sentido o Doutrinador Fernando Capez entende:

Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. [...] A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o

23 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157. 24 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte especial; dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. v. 2. 27.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 120. 25 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte especial; dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. v. 2. 27.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 119. 26 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. v. V, arts. 121 a 136/ por/ Nélson Hungria /e/ Heleno Fragoso, 5 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1979. p. 287.

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início do parto, pois após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.27

Conforme explanado, o tempo de perecimento do embrião ou feto pode ter

importância na definição da existência de crime. De qualquer forma, ocorrendo até a

vigésima semana desde a concepção, diz-se precoce; entre a vigésima e a vigésima

oitava, intermediário; depois desse prazo, chama-se tardio.28

E ainda, Cezar Roberto Bitencourt conceitua o aborto nas mesmas palavras

acima, porém com a ressalva de que tenha atingido o limite fisiológico (concepção e

o início do parto – marco final da vida uterina). 29

Mesmo não sendo o feto em formação (vida fetal/intra-uterina), merece igual

respeito e proteção normativa.30

1.3 FORMAS DE ABORTO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Com o avanço das legislações ocorreram diversos posicionamentos ligados

à cultura, sendo um deles a defesa do aborto como um direito da mulher, bem como

a sua condenação em determinadas situações específicas ou ainda a permissão da

prática de aborto. 31

Por conseguinte, a norma vigente acerca do tema em questão encontra-se

prevista nos arts. 124, 125, 126, e 127 do Código Penal de 1940, com a finalidade

de preservar a vida humana.

Convém transcorrer os mencionados artigos adotados pela legislação

brasileira (Código Penal de 1940), o art. 124, assim dispõe: “Provocar aborto em si

27 CAPEZ, Fernado. Curso de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (art. 121 a 212). 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 110. 28 MATIELO, Fabricio Zamprogna. Aborto e direito penal. Porto Alegre: Agra DC Luzzatto, 1994. 29 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. 2. 5. ed., rev. e atual São Paulo: Saraiva, 2006. p. 169 30 COSTA JR, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2003, p. 379. 31 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p.13.

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mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três)

anos”.

Desta forma há tipificação de duas modalidades de interrupção da gestação

e que causam a morte do feto. Na primeira, a gestante provoca o auto-aborto,

interrompendo sua própria gestação. Na segunda há provocação de uma terceira

pessoa, neste caso há de se observar dois elementos necessários, o consentimento

da gestante e a execução do aborto pelo terceiro. 32

Verifica-se a lição de Cezar Roberto Bitencourt:

Trata-se, nas duas modalidades, de crime de mão própria, isto é, que somente a gestante pode realizar. Mas, como qualquer crime de mão própria, admite a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar, induzir, ou auxiliar a gestante a praticar o auto-aborto como a consentir que terceiro lho provoque. Contudo, se o terceiro for além dessa mera atividade assessória, intervindo na realização propriamente dos atos executórios, responderá como co-autor, que a natureza do crime não permite, mas como autor do crime do art. 126.33

Entretanto, nos casos em que a gestante contribui, colabora ou facilita a

prática delitiva de aborto, com o intuito de por fim à gestação pode configurar-se

uma conduta meramente omissiva por parte desta, sendo então responsabilizada

como autora do crime, uma vez que consentiu a prática do aborto, e não como

partícipe do crime, como previsto no art. 126.34

A lei prevê que tanto a gestante quanto o terceiro serão punidos, entretanto

ela responderá pelo delito do art. 124 do Código Penal e o terceiro pelo delito do art.

126, em que a pena cominada é mais severa.

Ademais, o art. 125, prevê: “Provocar aborto, sem o consentimento da

gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos”.

32 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 133-134. 33 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v. 2. 5. ed., rev. e atual São Paulo: Saraiva, 2006. p. 35. 34 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 134.

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Observa-se que no presente caso a pena cominada é mais grave e a

gestante passa a ser a própria vítima.35

Para configurar o crime previsto no artigo 126 do Código Penal, basta que a

gestante desconheça que o aborto está sendo realizado, conforme prevê:

Art. 126 - Provocar o aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único – aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Salienta Damásio, quanto ao consentimento do aborto:

É necessário que a gestante tenha capacidade para consentir, não se tratando de capacidade civil. Neste campo, o Direito Penal é menos formal e mais realístico, não se aplicando as normas do Direito Privado. Leva-se em conta a vontade real da gestante, desde que juridicamente relevante. Se, ao contrário, a gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o seu consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça, ou violência, o fato é atípico diante da norma que descreve o aborto consensual, adequando-se à definição do crime do art. 125 do CP, nos termos do que preceitua o art. 126, parágrafo único. Se o terceiro pratica o fato incidindo em erro sobre o consentimento, sendo a hipótese plenamente justificada pelas circunstâncias, a conduta deve repurtar-se cometida com o consenso da gestante.36

É necessário que o consentimento seja válido, consentido pela própria

gestante, prevendo o resultado da interrupção da gestação, devendo o agente agir

de forma consciente a alcançar o resultado.37

O consentimento da gestante deve perdurar durante toda a execução do

aborto, no entanto, se em algum momento houver revogação do consentimento da

gestante e o agente prosseguir com a prática delitiva, responderá pelo disposto no

art. 125 do Código Penal.38

A teor do art. 127, do Código Penal:

35 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial, art. 212 a 234 do CP. v 2. 25 ed. rev.e atual. São Paulo: Atlas, 2007. p. 66. 36 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte especial; dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. v. 2. 27.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 125. 37 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 135. 38 CAPEZ, Fernado. Curso de Direito Penal: parte especial. 7 ed. p. 122.

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As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

O aumento de pena previsto no art. 127, aplicam-se apenas aos delitos

tipificados nos artigos 125 e 126 do Código Penal.39

Por outro lado, tem-se o aborto legal ou permitido por lei, na qual é

explicitado no artigo 128 do mesmo estatuto, determina a não punição do aborto

praticado por médico, quando necessário, se não tiver outro meio de salvar a vida da

gestante e no caso de gravidez resultante de estupro, na qual o aborto deve ser

consentido pela gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 40

Conforme adverte o Doutrinador Luiz Régis Prado:

A primeira das indicações é de natureza terapêutica. O aborto necessário consiste na intervenção cirúrgica realizada com o propósito de salvar a vida da gestante. Baseia-se no estado de necessidade, excludente da ilicitude da conduta, quando não houver outro meio apto a afastar o risco de vida. Este último pode advir de anemias profundas, diabete grave, leucemia, cardiopatias, trombose, hemorragia etc. [...] E essa assertiva resulta da própria valoração feita pelo Código Penal brasileiro, que confere maior valor à vida humana extra-uterina que à intra-uterina [...]41

O perigo não precisa ser atual, basta que desta gravidez possa resultar a

morte da gestante, cabendo ao médico preservar a vida da mesma.42

No entanto, para salvar a vida da gestante, outra pessoa que não seja

médico, praticar o aborto, esta poderá alegar o estado de necessidade, de acordo

com art. 24 do Código Penal43, tratando-se de perigo atual para gestante.44

Por outro lado, a teor do artigo 128, inciso II, do Código Penal, no tocante a

gravidez decorrente do crime de estupro, Leciona Ney Moura Teles: 39 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte especial: arts. 121 a 183. v. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 99. 40 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 24. 41 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. vol. 2: parte especial: arts. 121 a 183. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 101. 42 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. v 2. 25 ed. p. 68. 43 Vide art. 24, do Código Penal: “Considera-se estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo o sacrifício, nas circunstâncias, exigir-se.” 44 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. v 2. 25 ed. p. 69.

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A norma do inciso II do art. 128 referiu-se ao delito de estupro, sem excluir a hipótese de sua tipicidade ser verificada a partir da incidência da norma do art. 224 do Código Penal. Não tendo a norma permissiva restringindo sua incidência, não pode o interprete faze-lo. Assim sua vontade é a de permitir o aborto em qualquer hipótese de gravidez resultante de estupro, em qualquer de suas modalidades, com violência real ou sem violência real.45

Justifica-se a norma permissiva porque a mulher não deve ficar obrigada a

cuidar de um filho não desejado46, circunstância esta em que o aborto for praticado

por médico e com o consentimento da gestante ou de seu representante legal, é

plenamente justificável.47

Assim sendo, considera-se lícito o aborto decorrente de estupro, desde que

esta seja à vontade da gestante, pois deve prevalecer o direito da mulher violentada

decidir gerar uma vida ou não.48

Desta forma, o mencionado art. 128, inciso I e II prevê causas de exclusão

da antijuricidade, pois se o Código Penal dispõe que “não se pune o aborto”, não

ocorrendo crime.49

Nesse passo, em alguns países de primeiro e segundo mundo há

possibilidade de interromper a gestação, estando ou não vinculado a um prazo, ou

seja, a quantidade de semanas da gestação. As indicações coincidem com

recomendações médicas, psicológicas, sociais ou econômicas, dependendo das leis

vigentes no país, em relação ao aborto. 50

45 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 143. 46 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. v 2. 25 ed. p. 69. 47 FRANCO, Alberto Silva; JÚNIOR, José Silva; BETANHO, Luiz Carlos; STOCO Rui; FELTRIN, Sebastião Oscar; GUASTINI, Vicente Celso da Rocha; NINNO, Wilson. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. v. 2. parte especial/coordenação:Alberto Silva Franco, Rui Stoco; prefácio Paulo José da Costa Júnior. 7 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 2233. 48 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 142. 49 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte especial; dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. v. 2. 27.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 129. 50 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 41/42.

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Assim, cabe analisar o procedimento da interrupção da gestação voluntária

da gestação adotada por alguns países, segundo Tessaro:

Alemanha: após a decisão da mãe e do médico, a gestante será submetida a um acompanhamento psicológico, sendo que a interrupção da gestação deverá ocorrer num prazo mínimo de três dias após o aconselhamento. Esta intervenção não deverá ser realizada pelo médico que decidiu, juntamente com a mãe, pela interrupção da gravidez. Quando for motivada pela malformação do feto, deverá ser realizada nas primeiras 22 semanas. [...] Dinamarca: se a gestante for menor de 18 anos, exige-se o consentimento de seus pais para realização de tal procedimento. Será decidida por quatro profissionais de saúde. Quando for requerida pela mulher, o prazo para execução é de doze semanas. Os hospitais ficam obrigados a realizar a interrupção quando procurados nas 12 primeiras semanas, sendo reembolsados pelo próprio Estado. França: se a gestante contar com menos de 18 anos, exige-se o prévio consentimento dos pais. O prazo máximo para sua realização é de seis meses. Quando se tratar de malformação fetal e risco à saúde ou vida da mulher, é necessário um certificado médico, reconhecido por um tribunal administrativo. O Estado custeia 80% das despesas hospitalares, assegurando ao médico o direito à objeção de consciência. Grã-Bretanha: a interrupção da gestação deverá ser precedida pelo consentimento de dois médicos e da autorização dos pais, se a gestante for menor de 16 anos. Deverá ocorrer em 28 semanas. Quando realizada em hospital público, não haverá custo para a paciente. Grécia: quando este procedimento ocorrer em virtude de razões médico-psicológicas, deverá ser executado nas 20 primeiras semanas. Se for motivado pela malformação do feto, nas primeiras 24 semanas. Exige-se o consentimento dos pais se a mãe for menor. Holanda: para as menores de 18 anos, exige-se a autorização dos pais, e cinco dias de carência entre a decisão e a interrupção. Esta intervenção poderá ser realizada até a 24ª semana de gestação, sendo que o médico deverá assegurar que a decisão foi tomada livremente. O Estado reembolsa totalmente os custos da operação. Itália: há a necessidade de um certificado do médico e da carência de sete dias. As menores de 18 anos necessitam do consentimento dos pais, que poderá ser suprimido judicialmente. Todas as gestantes que se encontram nesta situação passam por um acompanhamento psicológico. A Lei estabelece que as interrupções motivadas por fatores sociais e econômicos deverão ocorrer nos 90 dias de gestação. Para os demais casos (dano à saúde física ou psíquica da mãe, malformação fetal, risco de vida materno), a IVG poderá ocorrer além deste prazo. Portugal: com a reforma do Código Penal, em 1997, o prazo para interromper a gestação, quando o nascituro padecer de doença ou malformação congênita, foi alterado para 24 semanas de gestação. Quando for indicada para preservar a vida ou saúde física ou psíquica da mãe, deverá ocorrer nas 12 primeiras semanas de gravidez. Em se tratando de fetos inviáveis, este procedimento poderá ser praticado a qualquer tempo. O médico que indicar a

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interrupção, por meio de prévio atestado, não deverá conduzir a operação. O consentimento materno deverá ser obtido com antecedência mínima de três dias da data da intervenção. Se for menor de 16 anos, exige-se a autorização dos pais. Se for impossível obter a autorização, e a realização da interrupção for de caráter urgente, o médico decidirá, e quando possível, auxiliado por parecer de outro médico.51

Percebe-se que existem outros países em que suas legislações permitem a

realização do aborto, vejamos:

África do Sul: permite o aborto necessário, eugênico, humanitário. Não permite o econômico, por solicitação. Espanha: legal em casos de estupro, incesto, risco de vida da gestante, anomalia do feto, saúde da gestante, saúde mental da gestante. Não permite o aborto econômico e por solicitação. Índia: permite quando há risco de vida para a mulher, risco para saúde física da mulher, risco para a saúde mental da mulher, risco à saúde ou lesão do feto, gravidez não desejada, por estupro ou outros crimes sexuais, situação socioeconômica. Não permite por solicitação. Israel: permitido se a gravidez representar um risco psicológico ou físico para a mãe, aborto eugênico, humanitário. Não permite: econômico, por solicitação. Os abortos devem ser aprovados por dois médicos e um trabalhador social. Japão: legal até a vigésima primeira semana em casos de deformações, enfermidades mentais ou retardamento da mulher ou de seu cônjuge, risco de vida para mulher, estupro, incesto.52

Conclui-se, portanto, que em alguns países interrupção da gestação está

regulamentada, a diferença de um país para outro se dá em relação ao prazo para

interrupção, e as indicações por serem mais abrangentes, restritivas ou totalmente

liberais, tendo em vista, como princípio fundamental, o direito de a mulher escolher

se leva a termo a gestação, ou não. 53

Feitas tais reflexões, encerra-se o primeiro capítulo com o pretenso

cumprimento do seu intento, qual seja, o de fazer um retrospecto acerca da evolução

histórica do aborto, trazendo os principais conceitos para se intensificar o estudo em

questão.

51 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p 41-42. 52 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 74-75 53 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 46.

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Analisou-se a tipicidade do aborto, destacando-se os artigos previstos no

Código Penal Brasileiro, extraindo idéias de doutrinadores acerca destes

dispositivos, bem como a indicação do aborto nos países estrangeiros.

Nesta ótica, foi elucidado de forma geral o presente tema com o objetivo de

alcançar um melhor entendimento para melhor analisar as formas de aborto

aplicáveis à espécie, na qual será abordado no próximo capítulo.

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2 - ABORTO EUGÊNICO E O ABORTO SELETIVO

Posteriormente às considerações realizadas no Capítulo 1, no qual foi

abordado o direito material do aborto, será tratado no presente capítulo a

diferenciação adotada para o aborto eugênico e o aborto seletivo, posto que no

primeiro seja realizado através de suspeitas de que o feto virá ao mundo com

anomalias graves, por herança dos pais e no segundo não há existência de vida

extra-uterina do feto.

Por este motivo, pode-se dizer que o aborto seletivo é efetivado pela

malformação fetal, antecipando um fato certo, que é o óbito do feto, uma vez que

estão presentes anormalidades que inviabilizam sua vida extra-uterina.54

Trata-se, assim, de uma antecipação terapêutica do parto, ao contrário do

aborto eugênico, em que existe expectativa de vida extra-uterina, no entanto, no

aborto seletivo não há qualquer implicação em nível de população mundial, no

sentido de uma adequação a certos padrões estabelecidos como desejáveis, pois

não há nenhuma expectativa de vida para um ser que padece de tais anomalias.

Através de exames durante a gestação, em que se detecta uma afecção

fetal grave, estabelece-se uma situação angustiante para a família, uma vez que o

diagnóstico no pré-natal de malformações fetais tem permitido ao casal a opção de

continuidade da gestação, eis que é incompatível com a vida extra-uterina. 55

No Brasil, as leis que tratam desse assunto não se coadunam com a

situação da sociedade e o apoio financeiro do Governo frente aos diagnósticos de

anomalias fetais é precário. Assim, diante da situação diagnosticada, a

responsabilidade pela continuidade ou não da gestação transmite-se à família, que

se deseja a interrupção da gestação deve buscar autorização específica, sendo este

seu desejo.56

54 DINIZ, Débora, ALMEIDA, Marcos de. Bioética e Aborto. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/PerteIIIaborto.htm>. Acesso em 02/09/2008, p. 3. 55 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 42. 56 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 43.

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Eis a lição de Débora Diniz:

[...] A interrupção seletiva da gravidez caracteriza-se por um procedimento clínico de expulsão provocada do feto, em nome de suas limitações físicas e/ou mentais. Em geral, fala-se da “incompatibilidade do feto com a vida, ou de sua reduzida expectativa de vida extra-uterina”, como razões que fornecem as razoabilidades moral e técnica ao procedimento.57

A interrupção da gestação nos casos de malformações fetais, não tem

previsão legal, haja vista somente nos casos em que o Código Penal permite em que

envolve risco de vida para gestante, entretanto, tal procedimento tem logrado êxito

mediante autorização judicial.58

2.1 A UTILIZAÇÃO INADEQUADA DA EXPRESSÃO ABORTO EUGÊNICO EM

RELAÇÃO ÀS ANOMALIAS FETAIS INCOMPATÍVEIS COM A VIDA

O Doutrinador Nelson Hungria, compreende que o aborto eugênico decorre

de uma gravidez de caráter mórbido, eis que não admite a intervenção cirúrgica de

modo a salvar a vida do feto. Assim, não se cogita o aborto, quando há presunção

de que o feto irá sobreviver.59

Aduz o Doutrinador Magalhães Noronha sobre o aborto eugênico foi

“largamente debatido na imprensa, devido o uso da droga talidomide, pela mulher

grávida, que ocasionava o nascimento de crianças disformes (em regra, sem os

membros superiores e inferiores)”.60

Neste sentido, Julio Fabbrini Mirabete entende que:

O aborto eugênico é o executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais. Há décadas, surgiu o problema do nascimento de crianças com graves

57 DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html>. Acesso em: 10.10.2008. 58 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 43. 59 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. v. 5, arts. 121 a 136/ por/ Nélson Hungria /e/ Heleno Fragoso, 5 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 298. 60 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Dos crimes contra a pessoa. Dos crimes contra o patrimônio. v. 2. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 73.

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deformações em virtude da utilização pela mãe, durante a gestação, da substância conhecida como thalidomide.61

Frise-se também, o que ensina E. Magalhães Noronha:

Ocorre esta espécie quando há sério e grave perigo para o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja por doença da mãe, durante a gravidez, seja ainda por efeito de drogas por ela tomadas, durante esse período, tudo podendo acarretar para aquele enfermidades psíquicas, corporais, deformidades, etc... 62

Eis a lição do Doutrinador Rui Stoco:

Eugenia é um dos vocábulos capazes de gerar, além de restrições a respeito de seu significado descritivo, um nível extremamente alto de rejeição emocional e tal reação está vinculada ao uso que dele foi feito, na Alemanha, durante o período nacional-socialista. A Lei para purificação da raça introduziu, por motivos da chamada saúde do povo,a justificação dos casos de indicação eugênica (esterilização, interrupção da gravidez, extirpação de glândulas sexuais).63

Neste sentido, verifica-se que a palavra eugenia e qualquer expressão que

se relaciona a ela carrega um sentimento de reprovação moral, remetendo às

práticas nazistas do século XX.64

Discorrendo sobre o assunto Warley Rodrigues Belo explica que nesta

época, os nazistas impossibilitavam a proliferação de qualquer tipo de

“degenerados” (exemplos: “débeis mentais, alcoólatras, criminosos, ou seja, de

todas as pessoas indesejadas na sociedade ariana”). Assim, nomearam tal prática

como o “princípio da eliminação dos indesejáveis”, posto que alegavam que caberia

ao Estado proibir o nascimento de pessoas com problemas genéticos e esterilizar a

reprodução dessas raças.65

61 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. v 2. 25 ed. p. 70. 62 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Dos crimes contra a pessoa. Dos crimes contra o patrimônio. 1982. p. 73. 63 FRANCO, Alberto Silva; JÚNIOR, José Silva; BETANHO, Luiz Carlos; STOCO Rui; FELTRIN, Sebastião Oscar; GUASTINI, Vicente Celso da Rocha; NINNO, Wilson. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. v. 2. parte especial. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 2234. 64 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 48. 65 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 79.

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A propósito, Antônio Chaves, aduz que o aborto eugênico foi totalmente

depreciado e desconsiderado pelos nazistas ao desejarem usá-lo como forma de

‘higiene racial’, com o intuito de conservar imaculada a raça ariana.66

Elucidando a questão, vale mencionar a forma errônea com a qual se

denominou o aborto eugênico. O termo “eugênico” foi usado pela primeira vez

durante a 1ª Guerra Mundial, como forma de estancar a vergonha social originada

pela invasão bélica, para que a população através de seus filhos não propagasse os

vícios e doenças cometidos durante o conflito.67

Ademais, há uma grande contradição das correntes doutrinárias, negando o

avanço da medicina no diagnóstico pré-natal, sustentando que por meio do aborto

eugênico, far-se-á uma seleção dos que vão sobreviver, por suas aptidões físicas e

mentais.68

É relevante também o entendimento de Warley Rodrigues Belo:

O aborto eugênico ou eugenésico é a interrupção do processo de gravidez com conseqüente morte do feto, por ter sido detectado nesse, através de métodos científicos, a existência de anomalias graves, irreversíveis e incompatíveis com a vida extra-uterina.69

Por outro lado, o aborto seletivo nas informações de Débora Diniz e Marcos

de Almeida discorre:

É aquele feto que, devido à malformação fetal, faz com que a gestante não deseje o prosseguimento da gestação. Houve, é claro, uma seleção, só que em nome da possibilidade da vida extra-uterina ou da qualidade de vida do feto após o nascimento.70

66 CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplante. 2 ed. ver. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 32. 67 BAHIA, Cláudio José Amaral, PANHOZZI, Aline. A ADPF e a Possibilidade de Antecipação Terapêutica do Parto: Um Estudo Jurídico-Constitucional sobre a anencefalia fetal. Revista dos Tribunais. v. 843. Ano 95. Editora Revista dos Tribunais. Janeiro de 2006. p. 417. 68 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 52. 69 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 79. 70 DINIZ, Débora, ALMEIDA, Marcos de. Bioética e Aborto. Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/PerteIIIaborto.htm>. Acesso em 02/09/2008.

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A presente discussão não envolve somente a vida do feto, mas outros bens

jurídicos, a proteção do direito à vida da gestante, sua saúde e integridade física

e/ou psíquica.71

A respeito do aborto seletivo, a pretensão é a possibilidade de a mãe, ao

diagnosticar que está a gerando um filho com má-formação genética grave,

irreversível, inevitável possa interromper a gestação desprovida de sua finalidade:

gerar uma vida.72

Consoante o entendimento de Débora Diniz e Marcos Almeida, conceituam e

distinguem as várias formas de interrupção da gestação:

Interrupção eugênica da gestação: decorrente de valores racistas, sexistas, éticos etc. Exemplo de IEG, quando mulheres por serem judias, eram obrigadas a abortar, regra geral, esta interrupção ocorria contra vontade da gestante. Interrupção terapêutica da gestante (ITG): ocorre em situações em que a interrupção é necessária para salvar a vida da gestante, preservando sua saúde. Interrupção Seletiva da Gestação (ISG): abortos decorrentes de anomalias fetais justificam-se pela incompatibilidade com a vida extra-uterina, exemplo clássico de anencefalia. Interrupção voluntária da gestação (IVG): é a interrupção da gestação em que a mulher ou o casal não desejam a gestação, podendo ser fruto de um estupro ou de comum acordo.73

Por conseguinte, o procedimento de interrupção da gestação poderá ser um

procedimento terapêutico para gestante, a fim de minimizar seu sofrimento, na

medida em que restou comprovada a impossibilidade de sobrevida do filho que

carrega em seu ventre.74

Nesse sentido, a interrupção seletiva refere-se em casos em que não é

possível a sobrevida do feto fora do útero materno.75

71 BAHIA, Cláudio José Amaral, PANHOZZI, Aline. A ADPF e a Possibilidade de Antecipação Terapêutica do Parto: Um Estudo Jurídico-Constitucional sobre a anencefalia fetal. vol. 843. Ano 95. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jan. 2006, p. 424. 72 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 80. 73 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p.49/50. 74 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p.49/50. 75 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 49

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O aborto não deve ser confundido com a interrupção da gestação por

anomalia fetal em que não existe a vida extra-uterina do feto, devendo-se

modificar/alterar a norma, tendo em vista que o direito penal objetiva resguardar a

vida do nascituro, ao passo que diante da situação de incompatibilidade de vida

extra-uterina não há vida a ser tutelada com o nascimento do feto.76

Débora Diniz esclarece: “A diferença fundamental entre a prática do aborto

seletivo e a do aborto eugênico é que não há a obrigatoriedade de se interromper a

gestação em nome de uma ideologia de extermínio de indesejáveis”.77

2.2 A QUESTÃO MÉDICA DA GESTAÇÃO DO FETO ANENCÉFALO

Com o atual avanço da medicina tem sido possibilitada em alguns casos a

reversão de determinados quadros clínicos.78

Tendo em vista que diante do exame pré-natal é possível diagnosticar as

anomalias fetais, através dos avanços tecnológicos, o que resultou numa nova área

de atuação denominada Medicina Fetal, que incorpora técnicas de diagnóstico a

possibilidades de terapêuticas intra-uterinas.79

Assim, os diagnósticos da área médica permitem uma considerável redução

de riscos, ao passo que, o diagnóstico de anencefalia se realiza no útero com alto

grau de certeza, inexistindo vida extra-uterina, decorrente da falta de atividade

cerebral.80

Veja-se a orientação extraída do Conselho Nacional de Medicina do Estado

da Bahia:

76 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. 2004. p. 49. 77 DINIZ, Débora, ALMEIDA, Marcos de. Bioética e Aborto. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/PerteIIIaborto.htm>. Acesso em 02/09/2008. 78 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 588. 79 MORON, A. Medicina fetal na prática obstétrica. 2003, p. 173. 80 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 588.

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A anencefalia é definida na literatura médica como má-formação fetal congênita por defeito do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto apresenta hemisférios cerebrais e o cótex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitivo a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não Há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica.81

Assim, pondera Anelise Tessaro:

Diante de um diagnóstico que revele ser o feto portador de uma anomalia congênita incompatível com a vida, o médico não pode oferecer mãe o direito de escolha entre interromper ou não a gestação. Apesar de possuir a comprovação científica do prognóstico morte para o feto e concordar sobre os danos psicológicos e físicos que esta gestante enfrentará se levar a gravidez a termo, nada pode fazer para minimizar a aflição desta pacienta, pois, a lei penal define como crime de aborto esta conduta.82

Diante da imperatividade da nossa legislação, muitas mulheres obrigam-se

ao aborto clandestino, motivadas pela falta de sobrevida do filho, decorrente da

anomalia fetal. Isso se dá em razão da não previsão legal na atual legislação para a

interrupção da gestação decorrente de anomalia fetal.83

Interessante complementar com as palavras de Moisés:

As leis que tratam desse assunto não estão atualizadas à situação da sociedade e o apoio financeiro do Governo para programas de diagnóstico pré-natal de anomalias fetais é precário. E quando o diagnóstico é realizado, a responsabilidade pelo desfecho da gestação é transmitida para a família, que deve buscar suporte jurídico através de autorização específica de interrupção da gestação, quando este é o desejo.84

81 CONSELHO NACIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. v. 2. Brasília: Letras Livres, 2004. p. 74-75. 82 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 57-58. 83 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 56. 84 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 43.

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Expendidas tais observações, convém ressaltar que não seria viável a

geração de crianças anencénfalas, pois não existe um tratamento para anencefalia,

haja vista que aproximadamente 75% dos bebês nascem mortos e 25 % sobrevive

poucas horas, dias ou semanas.85

Portanto, o aborto nos casos de anomalias fetais não seria o meio para a

gestante adotar este procedimento, pois cabe a mesma poder optar, visto que nossa

atual legislação não permite a referida prática de aborto, mas apenas nos casos

previstos (art. 128 do Código Penal).86

Para uma melhor análise do assunto é importante saber a diferenciação

entre feto mal-formado e feto inviável, conforme Anelise Tessaro:

[...] a malformação de um feto, dependendo de sua gravidade, não provoca a morte após o nascimento, permitindo que ele sobreviva com suas limitações, neste caso a anomalia fetal é compatível com a vida. Ao revés, tratando-se de feto inviável, em que tal malformação tem como diagnóstico a morte, irreversível logo após o nascimento, quando o feto nasce com vida.87

A interrupção da gestação do feto anencéfalo verifica-se frente à evolução

da ciência médica que a diagnostica com cem por cento de segurança, uma vez que

o produto da concepção não viabiliza a sobrevida após o nascimento.88

2.3 BREVES ASPECTOS DA IGREJA CATÓLICA FRENTE AO ABORTO

Nota-se que vivemos em um Estado Laico de maneira em que as convicções

religiosas não devem e nem podem influenciar as decisões do Poder Judiciário, com

85 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 588. 86 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 60/61. 87 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 25. 88 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 587.

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o intuito de intervir acerca da discussão sobre interrupção da gestação nos casos de

fetos portadores de anencefalia.89

Toma-se como referência o ponto de vista do Ministro Marco Aurélio de

Mello:

“O dogmatismo religioso revela-se tão opressivo à liberdade das pessoas quanto a intolerância do Estado, pois ambos constituem meio de autoritária restrição à esfera de livre arbítrio e de auto-determinação das pessoas, que hão de ser essencialmente livres na avaliação de questões pertinentes ao âmbito de seu foro íntimo, notadamente em temas do direito que assiste à mulher [...]90

No entendimento de Maurizio Mori:

A posição católica, que afirma claramente a “condenação moral de qualquer tipo de aborto procurado.” Essa intervenção nunca é admitida, nem quando necessária para salvar a vida da mulher, nem quando a gravidez é conseqüência de estupro, nem quando o feto apresenta graves malformações.91

A veemente proibição do aborto advém do argumento que, desde o

momento da concepção já existe um ser humano dotado de vida, assim

considerando o embrião como pessoa em aperfeiçoamento físico, mesmo que a vida

da mãe esteja em risco.92

Diante de algumas divergências, em que teólogos católicos que consideram

o embrião como pessoa desde a concepção (posição católica oficial) e o magistério

não firma posicionamento de que feto é pessoa, a Igreja deixa claro seu

posicionamento de que o embrião deve ser tratado como pessoa.93

89 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p. 36. 90 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p. 37. 91 MORI, Maurizio. A Moralidade do Aborto: sacralidade da vida e novo papel da mulher; 1997. p. 30. 92 MATIELO, Fabrício Zamprogna. Abotto e Direito Penal. 1994. p 16 93 MORI, Maurizio. A Moralidade do Aborto: sacralidade da vida e novo papel da mulher. Brasília: EDITORA Universidade de Brasília, 1997. p. 30.

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Ademais, o aborto nada mais é do que matar alguém, na visão da Igreja

Católica, sendo então vedada a qualquer pessoa e principalmente aos católicos esta

prática delitiva, considerando infração à Lei Divina.94

A Igreja Católica pretende uma proibição moral, não necessariamente legal,

eis que de um posicionamento moral não gera uma obrigação jurídica.95

Ressalta-se a importância de apresentar algumas entrevistas de gestantes

após realizar a interrupção da gestação de malformação fetal na Divisão de Clínica

Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de

São Paulo (HCFMUSP), apresentando-se na primeira a influência positiva, e, em

seguida a influência negativa :96

“A religião me ajudou muito. Pedi para Deus me ajudar a decidir, me ajudar a passar por tudo isso, que tudo desse certo. Só Deus para me dar força mesmo. Conversei com o padre e ele me falou que a decisão era só minha, já que não tinha solução eu que deveria decidir. Me deu conforto, abriu a minha mente e me fez ver que eu tava fazendo a coisa certa. A religião crente me atrapalhou, eu não podia fazer, mas a católica me ajudou muito. Já para mim,tanto o pastor como o padre me ajudaram muito. Sempre peço a Deus que se tiver outro filho que dê tudo certo”.97

Em outro aspecto:

“Atrapalhou porque eles ficavam comentando sobre tirar a criança, ficam julgando. Só fez aumentar mais o meu sofrimento, pois falavam que era argumento de um médico que não entendia, mandavam deixar até o fim, se colocando contra a interrupção. Diziam que era pecado. Se fosse pela religião eu não teria feito. Conversei muito com Deus e pedi para ele me perdoar”.98

94 MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e Direito Penal. Porto Alegre: Sagra: DC Luzzato, 1994. p 17. 95 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 90. 96 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 506. 96COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p. 37. 97 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 506. 98 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á

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Ao que parece a decisão de interromper a gravidez visa minimizar o

sofrimento diante da situação, uma escolha consciente, através de reflexões,

crenças.99

Tendo em vista tais posicionamentos, não podemos deixar nossos

julgadores embasarem suas decisões em dogmas religiosos, a contenda da

inviabilidade de sobrevida do feto com anencefalia cuja matéria é de competência

médica. Assim, quando uma gestante optar pela intervenção cirúrgica diante da

anomalia fetal, não está abdicando sua fé em Deus, mas sim, sua liberdade para

escolher o caminho de sua vida, exercendo seus direitos e liberdades

fundamentais.100

“A postura radical da Igreja Católica e de outras religiões parece não

influenciar na decisão pela interrupção ou manutenção da gravidez. Quando o

processo é bem elaborado, encontra-se, na religiosidade, na relação interna com

Deus, força, coragem e alívio”.101

2.4 A VIDA COMO BEM JURÍDICO PENALMENTE RELEVANTE

O aborto está capitulado entre os crimes contra a vida, sendo uma discussão

bastante controvertida em saber qual o momento do desenvolvimento da vida

uterina deve recair a tutela penal.

No entanto, nas palavras de Alberto Silva Franco citado por Ney Moura

Teles, aduz que a maioria dos doutrinadores tem se posicionado que o começo da

vida ocorre no momento da nidação ou nidificação, eis que ocorre no décimo quarto

decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 506. 99 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 507. 100 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p. 37. 101 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 507.

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dia após a fecundação aparecendo o primeiro tecido nervoso com a crista neural

coincidindo com o final da implantação, a qual a partir deste momento há informação

da presença do embrião no endométrio com a conseqüente disfunção do ciclo

menstrual e a elaboração do período gestacional. 102

Vale enfatizar, que devido ao avanço tecnológico dos dias atuais, a lei

tornou-se omissa a respeito da interrupção da gestação por anomalia fetal grave,

pois na década de 1940, os conhecimentos científicos nessa área eram poucos e

restritos.103

Assim, Pierangeli trata que: “a vida biológica, controlada principalmente pelo

tronco cerebral, não é tecnicamente humana, porque comparte suas características

com os não-humanos”.104

O processo de intervenções ou antecipação da gestação, não visa à morte

do feto ou embrião, mas sim, diminuir o sofrimento da mãe, para não agravar sua

saúde psíquica.105

Nas palavras de Débora Diz:

“É sobre sofrimento humano frente à inevitabilidade da morte o que estamos, hoje, discutindo. Esqueçam o tema aborto. Nosso compromisso é com um dos princípios humanos mais sublimes, o do respeito e proteção dignidade humana, um valor ameaçado pela intensa experiência de sofrimento com a certeza do luto do filho ainda por nascer. A dignidade é o pressuposto de nossa humanidade partilhada. O desafio é reconhecer situações onde a dignidade se vê ameaçada pelo sofrimento. A certeza da inevitabilidade da morte precoce do futuro filho é um desses casos. E na impossibilidade de reverter o acaso, o único responsável pelo azar, só nos restam medidas paliativas ao sofrimento físico e moral das pessoas

102 FRANCO, Alberto Silva. Aborto por indicação eugênica. São Paulo: RT. 1992 apud TELES, Ney Moura. Direito Penal: Parte Especial arts. 121 a 212. p. 130/131. 103 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 69. 104 PIERANGELI, José Henrique. Anencefalia. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Síntese, V.1, nº 1, abril/maio, 2000. Publicação Periódica Bimestral. V. 8, nº 47, dez/jan. 2008. p. 45. 105 FRANCO, Alberto Silva; JÚNIOR, José Silva; BETANHO, Luiz Carlos; STOCO Rui; FELTRIN, Sebastião Oscar; GUASTINI, Vicente Celso da Rocha; NINNO, Wilson. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. v. 2. parte especial/coordenação:Alberto Silva Franco, Rui Stoco; 2001, p. 416. 105 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 69.

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envolvidas e a antecipação terapêutica do parto é uma dessas tentativas.106

Não se aceita que o Direito Penal seja um recurso de penúria, e de

preconceito, particularidades principais de um Estado de fanatismo, na idéia de

respeito a uma idéia, para constranger e punir quem não segue suas normas.107

Conforme Moisés: “Mesmo não estando prevista nas possibilidades legais

do Código Penal Brasileiro, tem sido possível a interrupção da gestação mediante

autorização judicial”.108

Percebe-se, então que muitos juizes frente à situação de casos de

incompatibilidade de sobrevida do feto têm deferido alvarás concedendo ordem para

a interrupção de feto inviável baseados aos princípios constitucionais de que

ninguém deverá ser submetido a tratamento desumano tendo em vista o principio da

dignidade humana.109

Diante das considerações se tem informação, de que o primeiro alvará

expedido no Brasil, autorizando a interrupção da gestação de feto anancéfalo, foi

expedido em Ariquemes, Rondônia, no ano de 1989. Posteriormente, na Comarca

de Rio Verde no Mato Grosso do Sul, ocorreu a permissão ante a mesma situação

(diagnóstico de anencefalia).110

Referidas permissões foram contrárias à prática do aborto, tendo em vista

que o aborto tutela o princípio de proteção à vida, e nas referidas concessões estes

106 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 49 107 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 490. 108 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 43. 109 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. 2004. p. 54 110 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. Revista dos Tribunais. v. 859. 2007. p. 490

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preceitos não estariam sendo desrespeitado, haja vista a incompatibilidade de

sobrevida do feto com anencefalia.111

Relacionado a esta diretriz:

“O Estado – o Promotor de Justiça e o Juiz – tem o dever de exercer suas funções sem invocar princípios teleológicos, religiosos ou filosóficos. O Promotor e o Juiz não podem argumentar com valores de sua consciência enquanto indivíduos. Num Estado Democrático de Direito, respeitador e guardião das liberdades e dos direitos fundamentais, e institucionalmente separado de qualquer igreja, todos são, ou têm o dever de ser laicos. Laicos no sentido de preservar a separação entre o que é valor pessoal e o efetivo exercício do Direito, em relação ao direito do outro. Traduzindo, isto significa não deixar que o domínio dos direitos e da comunidade política seja colonizado pelas ortodoxias religiosas hegemônicas. Problemas como a interrupção voluntária da gravidez com antecipação de feto inviável não se resolvem invocando os desígnios de Deus ou da natureza, mas argumentando com os textos legislativos em primeiro lugar com a Constituição.112

Não restam dúvidas de que a interrupção da gestação deva ser utilizada

como procedimento terapêutico para minimizar o sofrimento da gestante, haja vista a

impossibilidade de sobrevida do feto.113

O Boletim do IBCCRIM nº 145, de dezembro de 2004, traz um relato de uma

juíza de direito, que merece ser transcrito:

Sou mãe (ou fui) de um bebê com esta deformidade. Soube disso no terceiro mês de gravidez (vinte anos atrás) e meu primeiro pensamento foi a interrupção. Consultei sobre o assunto o médico que acompanhava a gestação e ele me deu uma resposta desconcertante: Se v. quiser abortar, indico-lhe um abortadeiro porque sou um parteiro. Isto me deu uma enorme sensação de culpa; me senti uma assassina e levei a gravidez a termo. Foram os piores anos da minha vida, pois uma das coisas mais importantes deste período é o vínculo de amor e carinho que nós estabelecemos com o ser que está ali dentro de nós. Só a mãe sabe como é esse sentimento. Durante os sete meses restantes, vivi brigando com tal sentimento que teimava em não ser indiferente, pois imaginava que, se conseguisse não estabelecer vínculo sofreria menos. Foi uma experiência que nenhuma mãe deseja viver [...] Minha filha tinha um

111 111 BENUTE, Gláucia Rosana Gerra, NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto, KASAI, Keila Endo, LUCIA, Mara Cristina Souza de, ZUGAIB, Marcelo. O Aborto por Anomalia Fetal Letal: do diagnóstico á decisão entre solicitar ou não alvará judicial para interrupção da gravidez. 2007. p. 490. 112 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 50. 113 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 54.

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rosto lindo, mas faltava-lhe o osso que reveste o cérebro, a anencefalia. Os pediatras aconselharam não alimenta-la para que o tempo de vida não se pronlogasse [...] Não tive condições psicológicas de cuidar de minha filha; ela viveu cinco dias porque minha sogra desobedeceu a recomendação médica e a alimentava. Entretanto, segundo me informou, era visível o desconforto da criança que não tinha ânimo nem para chorar, esboçava uma gesticulação intermitente e desconexa. Aí se foram as duas primeiras oportunidades de ter um filho. Insisti numa terceira gravidez [...] e nesta não conseguia acreditar que tudo estava bem e, novamente, me esforcei para não amar tanto o meu filho. Não comprei uma fralda; não fiz o enxoval e nunca me dirigi ao feto com medo de mais uma perda. Eu sabia que não suportaria. Graças a Deus , tudo certo [...] Por tudo isso que acabo de testemunhar – e é a primeira vez que tenho coragem de fazer isso – peço que ajudem muitas mulheres a se darem a si próprias a oportunidade de ter um filho saudável – com vida – pois não se pode falar em vida do anencéfalo. Que vida? Somente intra-uterina.114

A atual legislação brasileira alega que deve ser protegido o direito à vida

desde a concepção, proibindo e punindo o aborto voluntário ou provocado. Porém,

quando ocorre um conflito entre o direito à vida do feto e da gestante, deve-se

priorizar a vida da progenitora. Também se entende que o direito à honra, a

integridade física e psíquica da mãe e à segurança social devem ser valorizados, o

que permite o aborto em situações nas quais as gestantes são lesadas, como no

caso do estupro. 115

Sendo assim, a interrupção da gestação de feto inviável confirma um fato

certo, seu óbito, inviabilizando sua vida extra-uterina.116

2.5 BREVES ASPECTOS ACERCA DO CONCEITO DE VIDA E DA MORTE

ENCEFÁLICA

É notório que o direito, em especial o Direito Penal se ocupa com a proteção

do bem jurídico que é a vida, por isso a importância de entender-se primeiramente, o

que é vida para o direito e, em especial para o Direito Penal.117 114 PIERANGELI, José Henrique. Anencefalia. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Síntese, v.1, nº 1, abril/maio, 2000. p 45. Publicação Periódica Bimestral. v. 8, nº 47, dez/jan. 2008. 115 MOISES, Elaine Christine Dantas, et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. FUNPEC: Editora, 2005, p. 64. 116 TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 53

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A Constituição Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 5º assegura o

direito à vida, como sendo um dos direitos fundamentais do ser humano, nesse

sentido, “vida” envolve dignidade, privacidade, integridade físico-corporal e,

principalmente, direito à existência.118

Neste sentido: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade [...]”.119

A vida do nascituro é um bem jurídico protegido pelo art. 5º da Magna Carta,

mas isto não significa que tal bem jurídico não possa entrar em conflito com ‘ direitos

relativos a valores constitucionais, como a vida e a dignidade da mulher’, pois diante

da possibilidade de uma gestação sem possibilidade vida extra-uterina, a gestante

deve ter a opção de interromper a gravidez, evitando um dano psicológico, bem

como o sofrimento natural que chega a ser comparado a um processo de tortura.120

No entanto, há situações excepcionais de que o direito à vida não seja

absoluto, como por exemplo, a possibilidade de aplicação da pena de morte em

casos de guerra, de abortamento quando a gravidez colocar em risco a vida da

gestante ou for fruto de estupro, dentre outras.121

Nesse passo, ao que concerne ao ser humano, como começo, meio e fim do

Estado, não basta assegurar-se o direito à existência, deve-se garantir a vida com

dignidade, em conformidade com o inciso III, do artigo 1º da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988, in verbis:122

117 BUSATO, Paulo César. p. 590. 118 MATIELO, Fabricio Zamprogna. Aborto e direito penal. Porto Alegre: Agra DC Luzzatto, 1994, p. 69. 119 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 14 de outubro de 2008. 120TESSARO, Anelise. A Anomalia Fetal Incompatível com a vida como causa de justificação para o Abortamento. Revista AJURIS. v. 31, n. 93. Porto Alegre. 2004. p. 51 121 BAHIA, Cláudio José Amaral, PANHOZZI, Aline. A ADPF e a Possibilidade de Antecipação Terapêutica do Parto: Um Estudo Jurídico-Constitucional sobre a anencefalia fetal. Vol. 843. Ano 95. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, janeiro de 2006, p. 420. 122 BAHIA, Cláudio José Amaral, PANHOZZI, Aline. A ADPF e a Possibilidade de Antecipação Terapêutica do Parto: Um Estudo Jurídico-Constitucional sobre a anencefalia fetal. Vol. 843. Ano 95. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, janeiro de 2006, p. 420

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Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]

III – a dignidade da pessoa humana;123

Apesar da expressão “dignidade da pessoa humana” ser de cunho moral, o

que se buscou enfatizar foi os meios objetivos do Estado proporcionar uma vida

digna as pessoas resguardando os direitos e garantias fundamentais.124

No âmbito jurídico não há um conceito preciso de vida, mas sim conceitos

relacionados, pelo que dispõe o art. 2º do Código Civil 125 em sua primeira parte que

o produto da concepção que nascer com vida viabiliza a sua condição de pessoa, ou

seja, com vida biológica jurídica, e será sujeito de direitos e obrigações.126

Segundo Spolidoro: “No âmbito do jurídico, a vida civil deve ser entendida

como a soma de atividade que possa ser exercida pela pessoa, consoante preceitos

e princípios, que se instituem nas leis vigentes.”127

No entanto, se não há precisão conceitual concernente à vida, pode-se

alcançar o conceito jurídico por exclusão, matéria regulamentada pela Resolução nº

1.480/97 do Conselho Nacional de Medicina, estabelecendo critérios para

diagnosticar morte encefálica, logo à constatação de inatividade cerebral,

vejamos:128

Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. [...]

123 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 14 de outubro de 2008. 124 BAHIA, Cláudio José Amaral, PANHOZZI, Aline. A ADPF e a Possibilidade de Antecipação Terapêutica do Parto: Um Estudo Jurídico-Constitucional sobre a anencefalia fetal. Vol. 843. Ano 95. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, janeiro de 2006, p. 421. 125 Vide art. 2°, do Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. 126 SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. O Aborto e sua Antijuricidade. São Paulo: LEJUS, 1997. p. 72. 127 SPOLIDORO, Luiz Cláudio amerise. O Aborto e sua Antijuricidade. São Paulo: LEJUS, 1997. p. 74. 128 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 590.

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Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. [...] Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação da morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: - ausência de atividade elétrica cerebral ou. - ausência de atividade metabólica cerebral ou. - ausência de perfusão sangüínea cerebral.129

No entanto, a Lei nº 9.434/97130, regulamenta matéria de transplante de

órgãos, na qual estabelece certas exigências para este procedimento, devendo-se,

observar o que dispõem o artigo 16 da referida lei que exige:

Art. 16. A retirada de tecidos, órgãos e partes poderá ser efetuada no corpo de pessoas com morte encefálica. §1º O diagnóstico de morte encefálica será confirmado, segundo os critérios clínicos e tecnológicos definidos em Resolução do Conselho Federal de Medicina, por dois médicos, no mínimo, um dos quais com título de especialista em neurologia, reconhecido no País.131

Logo, o conceito clínico é albergado juridicamente ao permitir o transplante

de órgãos, onde se constata sua impossibilidade de sobrevivência de um a pessoa,

perdendo assim, o direito sobre seu próprio corpo. 132

Nas palavras de Busatto:

Morte, juridicamente falando, é, pois a ausência de vida, representada esta pela atividade cerebral da qual depende a realização de todas as funções do encéfalo (tronco mais cérebro) e por conseguinte, de todo corpo humano. Havendo conceito jurídico de morte, é possível, por exclusão, denominar-se juridicamente vida, ainda que não haja uma absoluta coincidência entre o conceito médico de morte encefálica e a situação neurológica da anencefalia.133

Ante as situações acima expostas, percebe-se que a morte do anencéfalo

justifica-se pela falta de atividade cerebral, bem como do doador de órgãos, assim,

129RESOLUÇÃO1480/97.Disponívelem:<http://www.saude.df.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=22504>. Acesso em 25/06/2008. 130 LEI N. 9434 DE 1997. Regula matéria relativa ao transplante de órgãos estabelecendo exigências para doação de órgãos. 131 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 590. 132 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 591. 133 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 591.

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entendendo-se por morte a cessação completa de atividade cerebral, e a vida como

a existência da respectiva atividade.134

Encerra-se este capítulo sopesando as questões pertinentes à interrupção da

gestação de feto anencefálo, ou seja, discorrendo acerca das diferenças utilizadas

pelos doutrinadores do aborto eugênico para o aborto seletivo, bem como a questão

médica nos casos de anomalias incompatíveis com a vida, tendo em vista a tutela

penal ante a referida situação, e por fim a exclusão de vida ante o conceito de morte

encefálica situação esta que será abordada com maior aprofundamento no capítulo

terceiro, em virtude de ser o tema central do presente trabalho monográfico, tendo

em vista as discussões e divergências acerca da interrupção da gestação de feto

anencefálo.

134 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 592.

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3 A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEGALIDADE DO ABORTO

Consoante a divergência existente quanto ao conceito entre o aborto

eugênico e o aborto seletivo no tocante a interrupção da gestação de feto

anencéfalo, conforme foi abordado no capítulo anterior, surgem polêmicas na

doutrina, porém, diante das mencionadas polêmicas será abordado com maior

consistência neste último capítulo acerca da legalidade de ser possibilitado ou não o

aborto de feto anencéfalo.

3.1 O ABORTO SELETIVO E O CÓDIGO PENAL

O tema relativo ao aborto necessário encontra amparo no artigo 128 do

Código Penal brasileiro de 1940. O inciso II do referido artigo disciplina a conduta

resultante de estupro e, também, alargado pelo entendimento doutrinário e

jurisprudencial ao atentado violento ao pudor. Em contra partida a estas condutas

incriminadas na Lei, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em

seu artigo 5°, aborda os direitos e a dignidade da pessoa humana, conforme já

explanado nos capítulos anteriores.

Como se pode observar, o Código Penal e a Constituição Federal, não

dispõem acerca do aborto seletivo, ou o aborto do anencéfalo matéria esta que está

sendo estudado nesta monografia.

Elucida Anelise Tessaro que para revelar-se que um feto é portador de uma

anomalia congênita incompatível com a vida, por meio de comprovação científica

que não haverá vida extra-uterina, o médico não poderá dar a opção à mãe de

escolha acerca de interromper ou não a sua gestação, tendo em vista que a atual

legislação penal prevê tal prática como crime, nada poderá fazer para minimizar

o sofrimento da gestante. 135

135 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: descriminação & avanços tecnológicos da medicina contemporânea. p. 56.

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Desta forma, estando a liberdade individual acima de toda a sociedade sob a

égide da constitucionalidade, neste caso, a liberdade da mulher grávida levar a

termo a sua gestação ou interrompê-la, há impossibilidade jurídica de que seja a

mesma interrompida, salvo nos casos expressos em lei. 136

Por outro lado, encontram-se ainda positivado na Carta Magna o direito à

vida e o direito à vida digna. 137

Assim sendo, formas diversas as tentativas de alteração da legislação

vigente, através de anteprojetos de lei, para modificar a parte especial do Código

Penal, visando ampliar os casos de não antijuridicidade ali presentes.

3.2 ANTEPROJETO DO CÓDIGO PENAL

O anteprojeto que visa à reforma da parte especial do Código Penal teve o

aborto como um dos temas tratados, situando-o na parte referente aos crimes contra

a vida. Desta forma, impõe discorrer acerca da Cartilha do Ministério da Saúde, mais

especificamente em seu art.128:

Quando uma gestante demanda interrupção de gravidez ao ser diagnosticada uma patologia fetal grave ou que caracteriza incompatibilidade com a vida, para que o pedido seja atendido, é necessária a autorização judicial. A assistente social ou outro membro da equipe deverá orientar a gestante, seu companheiro e/ou familiares a procurarem o Ministério Público no município, solicitando autorização para realização do procedimento. É necessário ainda que a equipe forneça um laudo médico, explicando as condições da gravidez que justifiquem sua interrupção, assim como possíveis danos para a saúde física e mental da mulher em caso de evolução até o final da gestação. Os procedimentos para interrupção serão determinados pelo tempo de gestação.138

O anteprojeto de 1997/1999 do Código Penal vem proporcionar ao legislador

a ampliação de conceitos de aborto ético e necessário, ao passo da evolução da

136 LEIRIA, Maria Lúcia Luz. O direito à liberdade e à vida e a interrupção da gravidez por malformação fetal. 56. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. v. 1. n. 1. Porto Alegre: O Tribunal, 1990. p. 35-39. 137 LEIRIA, Maria Lúcia Luz. O direito à liberdade e à vida e a interrupção da gravidez por malformação fetal. 56. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. v. 1. n. 1. Porto Alegre: O Tribunal, 1990. p. 35-39. 138 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas da Saúde. Área técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. p. 155.

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medicina traz à baila um conhecimento mais rebuscado, da má formação genética

do feto que não tem perspectiva de vida extra-uterina ou que esta gestação

comprometa a saúde da gestante. Diante de tal situação propôs-se a inclusão de

uma nova excludente de ilicitude, podendo ser considerada aborto por indicação

embriopática ou fetopática. Eis a proposta do artigo 128 do Código Penal:

Não constitui crime o aborto provocado por médico, se I – não há outro meio de salvar a vida ou preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante; II - a gravidez resulta da prática de crime contra a liberdade sexual; III– há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias que o tornem inviável. § 1º Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do incido I, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante ou, se menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou companheiro.139

Não se pode olvidar que em todas as hipóteses mencionadas do

Anteprojeto, a interrupção da gestação diante desses casos depende do

consentimento da gestante ou de quem lhe represente.140

Diante do Código Penal, sancionado nos anos 40, em que os diagnósticos

médicos não retratam a realidade do avanço tecnológico da medicina dos dias

atuais, especificamente a medicina fetal, em que situações podem ser

diagnosticadas com alto grau de precisão.

Sobre o assunto, Anelise Tessaro assinala:

Importa ressaltar que o Código Penal, que incrimina a interrupção da gestação por anomalia fetal incompatível com a vida, consagra duas excludentes de ilicitude para o crime de aborto, independentemente das condições físicas do feto: são os casos em que a gravidez cause perigo de vida para a gestante ou se a gestação é decorrente de estupro.141

Como ressalta Warley Rodrigues Belo:

Cabe à gestante decidir se quer ou não quer o filho que não proverá extra-útero. Se quer ou não quer gerar um ser desprovido de valor vital e cerceado, mesmo, de condição humana. É a gestante quem

139 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 145. 140 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 145. 141 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 83.

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vai sentir hora a hora, dia a dia, semana a semana o desenvolvimento de um filho natimorto.142

Convém ao legislador abrandar a lei tornando-a mais eficaz, pois o que se

busca não é a perfeição do ser humano, mas sim proporcionar à mãe a viabilidade

de sobrevida de um ser que é portador de má formação congênita incurável. São

exemplos a acrania e a anencefalia, em que o feto não tem crânio ou cérebro.143

Todavia é preciso discutir essas excludentes protegidas pelo estado de

necessidade, prevista no artigo 24 do Código Penal, que assim dispõe: “Art. 24 -

Considera-se em estado de necessidade quem prática o fato para salvar de perigo

atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito

próprio ou alheio, cujo sacrifício nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”144

Importante esclarecer, que a “característica fundamental do estado de

necessidade é que o perigo seja inevitável, bem como seja imprescindível, para

escapar da situação perigosa, a lesão a bem jurídico de outrem”.145

Do exposto, mesmo não estando presente o risco de vida iminente verifica-

se que a continuidade da gestação condiz um abalo profundo, mexendo com a

saúde mental da gestante, devendo ela ter o direito ou não de interromper a

gestação, protegendo sua integridade física e moral, uma vez que é ela quem

carrega o feto, deve ter a responsabilidade de decidir.146

142 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 72. 143 TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212. v. 2. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 145. 144 BRASIL. LEIS, DECRETOS, ETC.; PINTO, Antonio Luiz de Toledo; WINDT, Marcia Cristina Vaz dos Santos. Código penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 145 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 238. 146 ANENCEFALIA. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/1101/1/o-aborto-defetos-anencefalos/pagina1.html>. Acesso em 03/09/2008.

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3.3 AUSÊNCIA DE TIPICIDADE DO ABORTO SELETIVO

Necessário se faz para uma melhor compreensão do tema em questão

trazer o conceito de crime, na qual não se encontra definição no atual Código Penal,

encarregando-se a doutrina para fazer.

O Doutrinador Julio Fabbrini Mirabete ensina que crime é toda ação ou

omissão não permitida em lei, com a efetiva ameaça de sofrer uma coerção; “crime é

uma conduta (ação ou omissão) contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena”. 147

Para o Doutrinador Fernando Capez crime:

[...] resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando seu conteúdo. Considera a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da pessoa humana.148

De outro norte, analisando-se a tipicidade, entende o autor

supramencionado ser o enquadramento de uma prática no mundo real, ou seja,

descrito na lei como tipo penal. Para a caracterização do crime basta o ajustamento

do tipo legal. “Temos, pois, de um lado, uma conduta da vida real e, de outro lado, o

tipo legal de crime constante da lei penal. A tipicidade consiste na correspondência

entre ambos”.149

Julio Fabbrini Mirabete menciona que a tipicidade é a exata correspondência

do fato contido na lei, com seus elementos objetivos e subjetivos, porém, [...] é

indispensável para a existência da tipicidade que não só o fato, objetivamente

considerado, mas também sua antijuricidade e os elementos subjetivos se

subsumam a ele”.150

Desta forma, no aborto seletivo (ISG) há necessidade de se distinguir e

possibilitar um tratamento diferenciado nos casos em que o feto vai se tornar uma 147 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direto Penal: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 24 ed. rev. e atual. São Paulo : Atlas, 2007. p. 81 148 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral: (arts. 1º a 120) v. 1. 11 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1. p. 113. 149 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral: (arts. 1º a 120) v. 1. 11 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p 188. 150 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direto Penal: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 24 ed. rev. e atual. 2 reipr. São Paulo : Atlas, 2007. p 102.

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criança portadora de deficiência daqueles casos no qual o feto não possuirá

qualquer viabilidade para vida extra-uterina. O nascimento de uma pessoa portadora

de deficiência é merecedor de proteção legal plena, posto que se trata aqui de

viabilidade plena para a vida, mesmo que possa haver alguma limitação. A questão

que se debate é com relação às anomalias plenamente incompatíveis com a vida,

onde a gestação é conduzida com a certeza absoluta da não sobrevivência151.

Definindo melhor a vida extra-uterina, Manuel Sabino Pontes:

A viabilidade para a vida extra-uterina depende do suporte tecnológico disponível (oxigênio, assistência respiratória mecânica, assistência vasomotora, nutrição, hidratação). Há 20 anos, um feto era considerado viável quando completava 28 semanas, enquanto que hoje, bastam 24 semanas ou menos. Faz 10 anos que um neonato de 1 kg estava em um peso limite, mas hoje sobrevivem fetos com 600 gramas. A viabilidade não é, pois, um conceito absoluto, mas variável em cada continente, cada país, cada cidade e cada grupo sociocultural. Entretanto, em todos os casos, a viabilidade resulta concebível em relação a fetos intrinsecamente sãos ou potencialmente sãos. O feto anencéfalo, ao contrário, é intrinsecamente inviável. Dentro e um quadro de morte neocortical, carece de toda lógica aplicar o conceito de viabilidade em relação ao tempo de gestação. O feto será inviável qualquer que seja a data do parto152.

Dessa forma, conforme explica Fernando Capez;

Nosso Código Penal diz que: a) quando o fato é atípico, não existe crime (‘Não há crime sem lei anterior que o defina’ – CP, art. 1º); b) quando a ilicitude é excluída, não existe crime (‘Não há crime quando o agente pratica o fato’ – CP, art. 23 e incisos). Isso é claro sinal de que o fato típico e a ilicitude são meus elementos. Agora, quando a culpabilidade é excluída, nosso Código empresa terminologia diversa: ‘É isento de pena o agente que [...]’ (CP, art. 26, caput).153

Para El Tasse, o aborto de feto com anencefalia não é considerado crime,

visto que não preenche as hipóteses típicas de criminalização da prática abortiva,

151 PONTES, Manoel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7538>. Acesso em: 20/10/2008. 152 PONTES, Manoel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7538>. Acesso em: 20/10/2008. 153 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 9. ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v 4. p. 114.

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dessa forma, não há fundamento que torna válida a necessidade de consulta

jurídica. 154

Nesse sentido, Fernando de Almeida Pedroso entende que sendo uma

gravidez fatal, em razão da anencefalia (ausência de cérebro quando da concepção)

(ovo, embrião e feto), poderá a gestante ter a sua interrupção, livre de qualquer

embaraço, ante a subsunção de permissividade.155

Segundo Luiz Flávio Gomes, no caso da anencefalia, também de acordo

com os defensores da ausência de tipicidade:

[...] o risco criado (contra o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. [...]. Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente. No aborto anencefálico, não existe uma morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada, mas isso é feito para a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade, etc). Não se trata, então, de uma morte arbitrária. Por isso que o fato é atípico.156

Dessa forma, estando morto, excluída está a “adequação típica”, e

consequentemente a tipicidade, conforme o art. 17 do Código Penal157, não poderá

ser considerado crime quando o material é impróprio.158

3.4 O ABORTO E SUA ANTIJURIDICIDADE

“A antijuricidade é um conceito comum a todos os ramos do direito, sendo,

pois, na essência, de âmbito geral; o especial a ela referido, diz respeito à natureza

da sanção”.159

154 El TASSE, Adel. Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Síntese, v. 1, n. 1, Abr/Mai/2000, p. 27/28. 155 PEDROSO, Fernando de Almeida. Homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto. Rio de Janeiro: Aide, 1995. p. 298. 156 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefalia e imputação objetiva: Exclusão da tipicidade. n.33. Revista sínteses de direito penal e processo penal. p. 6. 157 Vide art. 17, do Código Penal: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta imprpriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. 158 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa. A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista IOB de direito penal e processo pena. Porto Alegre. n. 40. Out/Nov/2006. p.75.

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Ainda Spolidoro:

[...] a ação mostra-se ilícita e, portanto, quando é contrária ao direito, exprimindo uma relação de oposição entre o fato e o direito. Reduz-se, desta forma, a um juízo, uma estimativa do comportamento humano, uma vez que o Direito Penal outra coisa não é que um complexo de normas que tutelam e protegem as exigências ético-sociais. Delito, assim, é a violação de uma dessas normas.160

A proposta da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF

N. 54, que será tratada no item 3.7, considera o aborto anencefálico um fato atípico,

pela não possibilidade de sobrevida do feto.

De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, a antijuridicidade é a contradição

acerca de uma conduta com o ordenamento jurídico, posto que o fato típico, a

princípio é um fato que ajusta-se com um tipo penal. Porém, existem causas

excludentes da antijuridicidade de fato típico.161

Segundo Guilherme Souza Nucci, a antujuricidade está relacionada ao

conceito de ilicitude162, qual seja, a contrariedade de uma conduta com o direito, de

forma a causar lesão a um bem jurídico tutelado.163

Conforme relembra Paulo César Busato:

O Código Penal de 1940, cuja parte especial vige até hoje, estabelece, como causas de exclusão da antijuricidade, o aborto para salvar a vida da gestante (que pode ser considerado uma especialidade do estado de necessidade) e os casos onde a gravidez é resultante de estupro. Esta última forma de exclusão da antijuricidade é reveladora de uma evidência: que o critério moral permeia a seleção das condutas justificadas relacionadas especificamente ao tema.164

159 SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuricidade. São Paulo: LEJUS, 1997. p. 122. 160 SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuricidade. São Paulo: LEJUS, 1997. p. 123. 161 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direto Penal: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007. p 167. 162 Vide art. 23 do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; [...]” 163 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado: estudo integrado com processo e execução panal, apresentação esquemáticas da matéria. 6 ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006. p. 222. 164 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005. p. 582.

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Para os que sustentam o respeito à vida do feto deve-se estar atentos ao

jogo que está à vida ou à qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o

feto mal formado. Até mesmo em caso de estupro, quando o feto está bem formado,

o Direito autoriza o aborto, portanto, dessa forma, nada justifica que a mesma regra

não possa ser aplicada para o aborto anencefálico.165

Conforme explana Eduardo Gomes Queiroz:

As condições que envolvem o abortamento de feto com anencefalia são totalmente anormais, de maneira que anormal também é o ato volitivo. Não se pode exigir do agente uma conduta determinada quando as circunstâncias concomitantes pressionam em sentido contrário. Se, em razão de determinada situação fática, há um vício de vontade, não pode o autor de uma infração penal ser considerado culpado, pois não agiu com vontade livre e desimpedida. Todas as vezes que o processo psíquico de motivação estiver contaminado pelas condições anormais do meio, deixa de haver vontade livre, e o agente não será considerado culpado por sua conduta. ’É inexigível outra conduta’, não incidindo o juízo de reprovação.166

A conduta conservadora do Código Penal, com relação ao aborto, deve-se

muito à influência que existe sobre o legislador acerca de setores religiosos. O

processo de secularização (a separação entre direito e religião) ainda persiste.

Confundindo religião com Direito.167

Conforme explana Paulo César Busato: “[...] o fundamento pelo qual nosso

Código não abriga a possibilidade de exclusão da antijuridicidade nas hipóteses de

anencefalia deriva simplesmente da época de sua edição, quando a ciência médica

ainda não avançava a ponto de oferecer um diagnóstico seguro sobre a inviabilidade

fetal em casos de anencefalia”.168

Ainda conforme o autor:

A determinação legislativa taxativa de hipóteses de exclusão de antijuricidade do aborto, contida no art. 128, com certeza já não reflete do mesmo modo que à época de sua edição (1940) as aspirações da sociedade brasileira, nem a realidade do avanço

165 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p.40. 166 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p. 91 167 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefalia e imputação objetiva: Exclusão da tipicidade. n.33. Revista sínteses de direito penal e processo penal. p. 37.. 168 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 583.

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científico. As hipóteses em questão que implica em risco de vida para a gestante. Ao tratar-se de uma causa especial de exclusão da antijuricidade, e interpretação, em princípio, seria restritiva e não comportaria ampliação.169

Dessa forma, o juiz que deve integrar a norma jurídica, diante das evidentes

lacunas existentes no direito e que surgem a cada dia, com a evolução dos tempos.

A realidade exige ao juiz valer-se de outros elementos do sistema, além do texto

positivo, nasce justamente dos casos não corriqueiros, que certos jus-filósofos

chamam de hard cases na qual se cita o aborto encéfalo.170

Diante do posicionamento para qual seja a adoção da tese da inexigibilidade

de Conduta Diversa, como causa de exclusão da culpabilidade nas hipóteses de

aborto anencefálico, afirma-se que se encontra com a parte da doutrina que admite

a exclusão da culpabilidade nesta hipótese, pois nesses casos há dúvida de que a

previsão legal deveria ser favorável ao abortamento. Não é justo submeter a

gestante ao intenso sofrimento de carregar durante nove meses consigo o feto sem

a menor perspectiva de vida futura.171

3.5 ALVARÁS JUDICIAIS

Os alvarás são frutos de um processo dialógico que tem início na relação

médico-paciente ou médico-casal, que diante de uma gestação em que o feto é

portador de anomalia fetal incompatível com a vida, recorrem ao Poder Judiciário em

busca de autorização judicial para minimizar o sofrimento de ter que levar a

gestação a termo. Dessa forma, os alvarás se materializam em um processo

argumentativo, no qual se consideram vários pontos de vista concernentes à

questão. É comum encontrar entre os textos que acompanham as decisões legais a

posição religiosa do juiz, sobre os limites eugênicos do procedimento, a política de

autonomia reprodutiva no país, entre outros. Como resultado obtém-se documentos

que acreditam fundamentar moralmente a ilicitude do ato. Isto é possível, já que os

169 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005, p. 584. 170 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9. p.38. 171 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9.. p. 41-44.

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alvarás correspondem ao instante da reflexão sobre a ação, ou seja, por ser um

momento anterior à ação, os alvarás são a ponderação moral da Interrupção

Seletiva da Gestação. 172

Vale ressaltar que poucos são os casos de quadro clínico fetal extremo em

que há recusa judicial da Interrupção Seletiva da Gestação. Para melhor

exemplificar, verificou-se que na Comarca de Palhoça, a concessão de alvará

judicial, no ano de 2007, quando o magistrado assim fundamentou a sua decisão:

Trata-se de pedido de autorização judicial para realização de aborto de feto anencefálico formulado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina da gestante Rosângela Fernanda de Souza. A principal dificuldade encontrada para se discutir as questões relativas ao aborto e à antecipação terapêutica do parto é que estas estão diretamente ligadas à religião e a crença pessoal de cada indivíduo, suscitando paixões, posicionamentos contrários ou favoráveis não fundados na razão ou em estudos da medicina e da bioética, mas sim envoltos em dogmas difíceis de serem rebatidos. O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 128, autoriza a prática de aborto apenas em dois casos: para assegurar a vida da mãe (gestante) em gravidez que cause risco para sua vida, denominado aborto necessário ou terapêutico, e em casos de gravidez resultante de estupro, denominado aborto sentimental. Frise-se que essas situações de interrupção de vida são legais. Colhe-se dos autos que Rosângela e seu companheiro, pai do seu filho, tomaram conhecimento no sexto mês de gestação, que o feto é anencéfalo, não apresentando chances de sobrevivência fora do útero, sendo que, independentemente da anomalia, optaram por levar a gravidez adiante. Porém, vieram a tomar conhecimento, através dos médicos, de que a continuidade da gravidez representaria risco para a vida da gestante, o que levou o casal a optar por sua interrupção, ingressando, portanto, com o presente pedido. O atestado médico acostado à fl. 12 atesta que o feto é anencéfalo, bem como de que a gravidez é de alto risco. Determinado contato com o médico subscritor de referido atestado, a fim de saber em que consiste o risco de vida da gestante por ele informado (fl. 20), este afirmou que "a Sra. Rosângela Fernanda de Souza já passou por uma cesariana recente, não soube precisar a data, que segundo ele não cicatrizou e por este motivo necessita de uma nova cesariana para que não haja, em parto normal, devido às contrações, uma ruptura de útero seguida de hemorragia o que poderia levá-la a óbito, caso não fosse atendida de imediato, à tempo Observo, no entanto, que o presente caso encaixa-se na previsão do artigo 128, inciso I, do Código Penal, qual seja, no aborto necessário. Referido dispositivo é evidente no sentido de prestigiar o direito à vida da mãe na colisão do direito à vida do feto.

172 DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html> Acesso em: 11 de outubro de 2008.

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Ambos têm dimensão constitucional-fundamental, todavia, diante do quadro desordenado, com submissão da mãe a risco da vida, o legislador teve de tomar uma difícil decisão: optar por uma das duas vidas e o fez nos termos do artigo acima citado. Na doutrina, prevalece a tese de que a autorização supracitada é uma espécie de estado de necessidade, só que com requisitos menos rígidos. Damásio de Jesus elenca os requisitos do estado de necessidade geral: a) situação de perigo (ou situação de necessidade); b) conduta lesiva (ou fato necessitado). A situação de perigo, por sua vez, elenca seus requisitos: a) perigo atual; b) ameaça a direito próprio ou alheio; c) situação não causa voluntariamente pelo sujeito; d) inexistência de dever legal de arrostar perigo. A realização da conduta lesiva exige: a) inevitabilidade do comportamento lesivo; b) inexigibilidade de conduta diversa; c) conhecimento da situação de fato justificante (Código Penal Anotado, 5ª ed. Saraiva, 1995, p. 30). Quanto ao aborto necessário ou terapêutico, leciona Júlio Fabbrini Mirabete: "O dispositivo é necessário porque, na hipótese, é dispensada a necessidade da atualidade do perito. Havendo perigo para a vida da gestante, o aborto está autorizado." (Código Penal Interpretado. Atlas, 2000, p. 697). Isto quer dizer, que não é necessário que o perigo esteja presente já, mas pode estar no futuro (no parto ou no desenvolvimento da gestação, por exemplo). Destarte, na colidência entre dois direitos fundamentais, a Lei optou por privilegiar a mãe, num critério plenamente razoável ante a dificuldade da escolha. Cabe, agora, analisar se há prova documental do risco de vida que corre a gestante. É importante consignar que a Lei se conforma com o perigo, o risco de vida, para a gestante. A autorização é conferida fundada num juízo de probabilidade, aqui não há como se ter certeza plena, até porque a medicina efetivamente não é uma ciência exata. In casu, é determinante o atestado médico subscrito pelo Dr. Jaime Hadlisc: "Declaro que a Sra. Rosangela Fernanda de Souza apresenta gestação de alto risco com feto anencefálico (...)". Da mesma forma é a informação da Assistente Social já transcrita Inobstante o risco de vida que corre a gestante, importa destacar que o presente caso diz respeito à uma gestação de 08 (oito) meses de feto anencéfalo, devidamente diagnosticado por médico habilitado. Ora, se a lei penal permite o aborto de fetos normais, sem anomalia alguma, e por isso com condições de sobrevida e provavelmente de desenvolvimento físico e mental normais, diante do risco causado à vida da mãe (gestante), no caso de feto anencéfalo, anomalia que inviabiliza inarredavelmente a vida extra-uterina, que diante do caso concreto pode levar à morte da gestante, há de ser admitida a sua aplicação. Assim, já decidiu o Juiz Vilson Fontana: "Vistos etc. E. A. W. R e A. R. , brasileiros, casados entre si, residentes nesta cidade, formulam o presente PEDIDO DE ABORTO, alegando, em síntese, que o casal contraiu núpcias em data de 12 de novembro de 1994 e desde então sonham com a possibilidade de gerar um filho, sendo que no mês de janeiro geraram o primogênito esperado.

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Ocorre que a requerente passou a ter muitas dores e o fato despertou a atenção dos médicos, os quais constataram que a gravidez é anormal, sendo que o feto apresenta má-formação: ausência da abóbada craniana, herniação de estruturas intra-abdominais para a base do cordão umbilical (o intestino do feto está fora do corpo), coluna cervical visualizando apenas sua porção cervical, aumento do líquido amniótico, má formação fetal completa (anencefalia e onfalocele) e polihidramia, conforme extrai-se dos atestados juntados, sendo que o parecer médico é no sentido de que “o feto apresenta múltiplas malformações que são incompatíveis com a vida humana”. Aos autos foi juntada prova do casamento dos requerentes, resultado da ultra-sonografia obstétrica e atestados assinados por três médicos. Com vista dos autos o Ministério Público se manifestou pelo deferimento do pleito. Singelo relato. DECIDO. A ecografia obstétrica a que se submeteu a requerente Elizandre (fl.7) demonstra a gravidez alegada, sendo que o feto apresenta: - ausência de abóbada craniana, observando-se, porém, tecido acima das órbitas (exencefalia? Tecido agiomatoso?) - Herniação de estruturas intra-abdominais para a base do cordão umbilical através de defeito na linha média abdominal, - coluna vertebral visualizada apenas em sua porção cervical, - aumento do líquido amniótico para a atual fase da gestação, e conclui - malformação fetal complexa (anencefalia, ongfalocele) e - polihidramnia. Aos autos foram juntados três atestados médicos que concluem que “o feto apresenta múltiplas malformações que são incompatíveis com a vida humana”( Dra. Rita M. Leão Ribas), “feto apresentando malformações incompatíveis com a sobrevivência extra uterina, recomendando a interrupção da atual gestação” ( Dr. Luiz Antonio Manfroni) e “feto com malformação incompatível com a vida” (Dr.Ricardo F. da Silva). Assim colocados os fatos, passo a fazer a análise jurídica do pedido. O Código Penal somente autoriza o aborto ou interrupção da gravidez em casos de risco para a vida da gestante (não do feto) – aborto necessário ou terapêutico - e estupro - aborto sentimental. Não há exclusão da tipicidade na prática do chamado aborto eugênico, o qual se executa “ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais”(RT 324/9) ou para obtenção de uma super-raça, pregação do nacional-socialismo alemão de então. Aqui estamos diante de uma hipótese singela, direta e objetiva, conforme bem colocou o nobre Promotor de Justiça: “o feto não tem cérebro nem os ossos do crânio e da coluna cervical, estando a estrutura intestinal exposta, próxima à base do cordão umbilical e a sua vida extra-uterina é inviável, além do que a gestante vivencia uma gravidez, senão de alto risco, mas de desincompatibilidade emocional que poderá levar à situação extrema”. Ora, o pedido de aborto é efetuado não porque os pais transmitiram anomalias para o feto ou pelo mero deleite de conservação da pureza de uma raça, mas porque, faltando cinco meses para o

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nascimento, torna-se complexa levar a gravidez até o final e, atingindo êxito, o ser gerado não terá condições de viver fora do útero materno, conforme bem demonstrado pelos atestados fornecidos por médicos especialistas no assunto (ginecologistas e obstetras). Há, pois, base científica na prova produzida, sendo o diagnóstico preciso, exato e conclusivo. Oportuna transcrever a lição de Jorge de Rezende, trazida aos autos pelo representante do “Parquet”: “ não há na literatura médica relato de sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência de tecidos cerebrais (grifei). De outro lado, é bem conhecido que as condições associadas a hiperplacentose e freqüentemente polihidrâmnio predispõe a maior incidência de pré-eclâmpsia, patologia de prognóstico grave para o interesse materno. O polihidrâmnio, patologia gestacional de mau prognóstico complica 50% dos casos de anencefalia. Os prejuízos impostos ao organismo materno são significativos, o que autoriza a interrupção. A indução do parto é, nestas condições, a conduta habitual e recomendável” (Ostetrícia Rezende. Jorge Rezende, ed. Guanabara Koogan, 1987, cp. 42, pp. 748). Em síntese, a vida extra-uterina do feto é inviável e os malefícios para a mãe são enormes, correndo perigo a sua vida, sendo que os dois fatores conjugados são suficientes para interromper a gravidez nos termos do art. 128, I, do CP, não se exigindo esforço sobre-humano da gestante e o risco possível de perda da própria vida. A própria Bíblia Sagrada, no Livro do Eclesiático (30-14), assevera que a saúde é a maior riqueza do ser humano: “ Não há riqueza maior que a saúde do corpo, nem maior satisfação que um coração contente. É melhor a morte do que viver com amargura, e o descanso eterno vale mais do que a doença crônica” E, quanto ao uso da ciência médica, remata (38-1 e 6): “Honre os médicos por seus serviços, pois também o médico foi criado pelo Senhor...O Senhor deu aos homens a ciência para que pudessem glorificá-lo por causa das maravilhas dele”. É certo que Deus não deu ao homem o poder de decidir sobre a vida e a morte; a vida em sociedade e a fraqueza humana, entretanto, criaram regras para possibilitar um convívio pacífico, harmônico e reto dos homens, onde o bom senso e a busca do bem devem nortear todas as nossas ações. Neste caso a lei, o bom-senso e o próprio espírito de preservação da vida humana indicam que a interrupção da gravidez é o melhor caminho e que Deus, na sua sabedoria e grandeza, tenha compaixão da nossa ignorância e falibilidade. Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido e determino a expedição de autorização para a realização do aborto." (Processo nº 201/98, de Porto União. Julgado em 19/05/1998). E mais: "ABORTO. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DE GESTAÇÃO. INDEFERIMENTO DO PEDIDO PELO JUIZ CRIMINAL, EM PRIMEIRO GRAU. INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO CRIMINAL E, CONCOMITANTE, DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, VISANDO A OBTENÇÃO DA MEDIDA ANTES DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO, DEFERIDA PELO RELATOR E CONFIRMADA PELA CÂMARA. O processo não é um fim em si mesmo, é instrumento à realização do direito, aliando-

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se a situação exposta, que é realmente gravíssima e não pode esperar o procedimento atinente a apelação criminal. Se, do ponto de vista médico, não há outra alternativa, senão a interrupção terapêutica de gestação, cabe ao juiz equacionar diante das circunstancias únicas do caso e, juridicamente, encontrar solução, tanto para conhecimento do recurso, a falta de recurso adequado, como para seu julgamento, uma e outra vinculadas, no caso concreto, ao valor prevalecente da saúde e da vida da gestante. Estudos médicos, que demonstram a procedência do pedido e enfatizam a existência de sério risco a vida da gestante, além do estado do concepto, cuja saúde não se pode cientificamente estabelecer devido às múltiplas malformações, nem sua vida salvar, lamentavelmente. A existência de perigo atual a saúde da gestante e, para mais disso, de risco iminente a sua vida, em maior ou menor grau, são bastantes em si a caracterização da necessidade do aborto, como único meio seguro para resguardo da pessoa da gestante, caso não haja interrupção natural da gestação. Em medida ou proporção adequada, deve-se exigir a existência de perigo serio a vida da gestante, entretanto, não a ponto de exigir que lhe seja iminente ou quase atual a própria morte, porque já então poderá ser tardia qualquer intervenção médica. Conhecimento e provimento do recurso. (15 fls.) (AGRAVO REGIMENTAL Nº 70002099836, CÂMARA DE FÉRIAS CRIMINAL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DES. CARLOS CINI MARCHIONATTI, JULGADO EM 09/03/01). “MANDADO DE SEGURANÇA. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DA GRAVIDEZ (fetotomia). É de se deferir tal autorização, ainda que o caso não se enquadre nas hipóteses previstas pelo artigo 128, do CP. A vida da gestante corre sério risco, levando a gravidez a termo, além do que é nula a possibilidade do concepto sobreviver, tendo em vista a anencefalia diagnosticada. SEGURANÇA CONCEDIDA." (Mandado de Segurança Nº 70005577424, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Cidade Pitrez, Julgado em 20/02/2003) Destarte, diante do quadro clínico apresentado pela gestante, a qual corre sério risco de vida, JULGO PROCEDENTE o pedido e determino a expedição de autorização para a realização do aborto.173

No mesmo norte, o Tribunal do Rio Grande do Sul deu provimento a um

recurso interposto pela defesa em que o pedido de autorização judicial para a

intervenção da gestação foi indeferido pelo magistrado de primeiro grau. Assim,

colaciona-se o voto da desembargadora Elba Aparecido Nicolli Bastos:

Convém deixar claro que ao abordar a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não se está preconizando a legalização do aborto, nem defendendo que fique a critério subjetivo do Juiz, a extensão das excludentes de ilicitude do art. 128, I e II do CP a fetos que por apresentarem deformações e anomalias limitem a qualidade de vida (aborto eugênico), mas enfrentando o tema, por ora, como causa

173 BRASIL. Disponível em: < http://palhoca.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoResultadoPG.jsp#>. Acesso: 28/10/2008.

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supra-legal de inexigibilidade de outra conduta ante a ausência de disposição expressa na legislação codificada. [...] A meu ver não haveria verdadeira afronta à lei penal vigente, não sendo justo considerar-se a interrupção da gravidez nestes caso como um crime que exija do Estado a movimentação do aparato judicial e a condenação da mulher e do médico a condenação dentro dos preceitos dos arts. 124 a 127 do CP.174

Em outra decisão, o mesmo tribunal assim se manifestou:

APELAÇÃO CRIME. ABORTO EUGENÉSICO. ANENCEFALIA. Inviabilizada a vida do feto, prenunciada sua morte por malformação – anencefalia comprovada –, hão de volver-se, os cuidados, àquela que o gera, então permitindo-se a interrupção da gravidez, que nestes casos a faz exposta a risco. Inteligência do artigo 128, do Código Penal. PROVIDO O RECURSO. 175 (grifo original)

Diante das decisões supracitadas, passemos agora a analisar o primeiro

caso polemizado no Brasil.

3.6 O PRIMEIRO CASO DE INTERVENÇÃO JUDICIAL PARA A PRÁTICA DE

ABORTO POLEMIZADO NA JUSTIÇA BRASILEIRA

A polêmica acerca da interrupção da gestação de feto anencéfalo surgiu em

conformidade com o caso da gestante Gabriela Oliveira Cordeiro, na qual ingressou

junto à Vara Criminal da Comarca de Teresópolis/RJ com o pedido de autorização

para a interrupção da sua gestação, ante a inviabilidade de vida extra-uterina do

feto. Foram realizados exames pré–natais, no qual constatou-se que o feto

apresentava anencefalia (incompatibilidade de sobrevida fora do útero materno). 176

Mesmo diante da situação, o magistrado de primeiro grau indeferiu o pedido

por não encontrar respaldo de exclusão de ilicitude no art. 128 do Código Penal.177

174 BRASIL. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php>. Acesso em: 28/10/2008. 175 BRASIL. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php>. Acesso em: 28/10/2008. 176 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008 177 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008.

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Assim, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro interpôs recurso de

apelação em que a Desembargadora Gisela Leitão Teixeira concedeu liminar de

autorização para intervenção cirúrgica. 178

Porém, Carlos Brazil e Paulo Silveira Martins Leão Junior, ambos na

qualidade de advogados, interpuseram agravo regimental na Câmara competente,

que após processado veio a ser desprovido, mantendo-se a decisão da

Desembargadora. 179

O Padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente da Associação Pró-Vida,

impetrou ao Tribunal de Justiça Carioca um habeas corpus, com o intuito de

desconstituir a decisão da Desembargadora Gisela. No entanto, após nova

distribuição, a Ministra Laurita Vaz concedeu liminar para sustar a realização do

aborto, até apreciação pela Egrégia Corte. 180

Finalmente julgado o habeas corpus pelo Superior Tribunal de Justiça, este

restou inexitoso, indeferindo o pedido em defesa da vida do nascituro,

desautorizando o aborto concedido pelo Tribunal a quo. 181

Inconformada com a decisão, a diretora da ANIS: Instituto de Boética,

Direitos Humanos e Gênero impetrou junto ao Supremo Tribunal Federal um habeas

corpus aduzindo a coação da liberdade por proibição de antecipação do parto pela

inocorrência do crime de aborto; a necessidade de tutela à saúde física e mental da

paciente e o desrespeito ao princípio da dignidade humana, no sentido de autorizar

a realização da antecipação do parto. 182

Quando foi julgado pelo STF, o recurso foi julgado prejudicado, tendo em

vista a realização do parto, sendo que o feto sobreviveu apenas alguns minutos.183

178BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008. 179 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008. 180 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008. 181 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008. 182 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008. 183 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp.> Acesso em : 21/10/2008

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Quando do julgamento da liminar em questão, o Ministro Marco Aurélio de

Mello deferiu o pedido invocando os princípios constitucionais da dignidade da

pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da vontade.184

3.7 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) Nº 54

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma

ferramenta jurídica constitucional, inserida no artigo 102, § 1º da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988. Assim, para melhor entendimento do

assunto abordado neste tema, convém esclarecer o que é uma ADPF.

“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: [...] § 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.185

Para o doutrinador José Afonso da Silva:

“ A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição será apreciada pelo Superior Tribunal Federal, na forma da lei”. “Preceitos Fundamentais” não é expressão sinônima de “princípios fundamentais”. É mais ampla, abrange estes e todas as prescrições que dão o sentido basco do regime constitucional, como são, por exemplo, a que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais”.186

A ADPF foi formalizada em 2004 pela Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Saúde (CNTS) com assessoria técnica da ANIS: Instituto de

Bioética, Direitos Humanos e Gênero, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF),

após constatar que apesar da concessão de mais de 3000 alvarás judiciais desde

1989, de mulheres que pediam autorização para antecipação de parto anencefálico ,

184 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id =181767&tipo= TP&descricao=ADPF%2F54>. Aceso em 21/10/2008. 185 BRASIL. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 29/10/2008. 186 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª ed. revista e atualizada (até a EC nº 52 de 8.3.2006), Editores Malheiros. p. 562.

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alguns juizes e promotores por convicções puramente religiosas, desautorizam

gestantes nessa situação. 187

Fundamentou tal argüição, nos preceitos dos arts. 1º, IV – dignidade da

pessoa humana, 5º, II - princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade,

196 - direto à saúde, ambos da Constituição Federal de 1988.188

A ADPF foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio que concedeu liminarmente

entendendo que a permanência do feto mostra-se perigosa à saúde e à vida da

gestante. O fato se deu em decorrência de não haver tempo suficiente para sua

apreciação, o pedido já havia sido apresentado ao STF no dia 17 de Junho de 2004

e teve duas vezes para votação no plenário.189

Em 01 de julho de 2004, o Ministro Relator Marco Aurélio concedeu a liminar

em decisão monocrática declarando190:

Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo. Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razões em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só

187 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: LetrasLivres, 2004. p. 10 188 BRASIL Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base= ADPF&s1=54&processo=54>. Acesso em 05/10/2008. 189 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: LetrasLivres, 2004. p. 10. 190 BRASIL. Disponível em: < http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/doc.asp?s1=000030711 &p=1&d=DESP&f=i > Acesso em 26.10. 2008.

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o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie. 3. Ao Plenário para o crivo pertinente. 4. Publique-se. Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas. Ministro MARCO AURÉLIO Relator.191

O Ministro Marco Aurélio, Relator da ADPF N. 54, concedeu a liminar no

sentido de que, não só fossem sobrestados os processos e as decisões sem trânsito

em julgado, como também fosse reconhecido o direito constitucional das mulheres,

que assim o desejassem, a se submeter à interrupção seletiva de gravidez no caso

de anencefalia192.

O Ministro, ao conceder a liminar disse; “[...] a lógica irrefutável da

conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher

grávida ao ver-se compelida a carregar no ventre, durante nove meses, um feto que

sabe, com plenitude de certeza, que não sobreviverá”.193

A qualidade de vida da mãe durante a gravidez trará um dano psíquico

incomparável, um sofrimento permanente advindo da imposição de que este leve a

gravidez de um filho que certamente não sobreviverá até o termo final da gravidez.

Lembrando Paulo Cesar Busato:

[...] a argüição proposta ao STF tem por escopo justamente a distensão das hipóteses de justificação para a conduta que realiza a interrupção da gestação, já admitida, por exemplo, em casos de gravidez resultante de estupro, de modo a alcançar os casos em que há diagnóstico de anencefalia do feto.194

191 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base= ADPF& s1=54 &processo=54>. Acesso em 05/10/2008. 192 BRASIL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp? Base =ADPF&s1=54&processo=54>. Acesso em 05/10/2008. 193 BRASIL. Dispoível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?Base =ADPF&s1=54&processo=54. Acesso em 05/10/2008. 194 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos estudos jurídicos. Ijuá. v. 10. n. 2. Jul/Dez 2005. p. 583.

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3.8 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO

Percebe-se que atualmente essa situação vem se modificando,

principalmente pelo aumento do número de alvarás concedidos pelo Poder Judiciário

e que se apresentam como uma forma legal de realizar o abortamento quando o feto

apresenta má-formação ou deformidade que inviabiliza sua vida após o

nascimento.195

Importante salientar que nos dias 26 e 28 de agosto e no dia 04 de setembro

foram realizadas audiências públicas no Superior Tribunal Federal para discutir a

interrupção terapêutica da gestação de fetos anencéfalos. Tema este abordado pela

Argüição de Descumprimento Preceito Fundamental (ADPF) Nº 54, defendendo a

dignidade humana da gestante, a teor do que dispõem o artigo 5º da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988.196

Em entrevista à Revista Veja, o Ministro Marco Aurélio de Mello prevê para o

mês de novembro a aprovação do aborto nos casos de incompatibilidade de

sobrevida do feto, questão polêmica e muito discutida, na qual o relator acredita ter

certeza da aprovação da interrupção terapêutica nos casos de gestação de fetos

anencéfalos.197

Nas palavras do Ministro Marco Aurélio:

O Código Penal viabiliza a interrupção terapêutica da gravidez quando há risco de vida para a mulher. No meu entender, o risco de vida não é apenas uma questão relacionada à integridade física, mas à saúde num sentido muito mais amplo. Estou me referindo aqui à saúde psicológica da gestante. A gravidez de um feto anencéfalo traz danos irreversíveis à mulher tanto do ponto de vista físico quanto do psicológico. E digo mais: quando o Código Penal foi elaborado, em 1940, não havia tecnologia médica para detectar malformações fetais. Se esse tipo de diagnóstico fosse possível naquele tempo,

195 DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html Acesso em: 20/10/2008>. 196 http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/doc.asp?s1=000030711&p=1&d=DESP&f=i > Acesso em 26/10/ 2008. 197 REVISTA VEJA ON LINE. Pelo fim da hipocrisia. Brasil, 2008. Disponível em: <http://veja.abril. com.br/030908/p_074.shtml>. Acesso em 21/10/2008.

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muito provavelmente a interrupção da gestação de fetos anencéfalos já estaria prevista no Código Penal.198

E ainda discorrendo sobre o assunto:

O debate atual é um passo importante para que nós, os ministros do Supremo, selecionemos elementos que, no futuro, possam respaldar o julgamento do aborto de forma mais ampla. O sistema atual está capenga. Por que a prática de aborto de fetos potencialmente saudáveis no caso de estupro é permitida? Esse tema é cercado por incongruências. Temos 1 milhão de abortos clandestinos por ano no Brasil. Isso implica um risco enorme de vida para a mulher. Na maioria das vezes, o aborto é feito em condições inexistentes de assepsia, sem um apoio médico de primeira grandeza. Há uma hipocrisia aí. O aborto é punido por normas penais, mas é feito de forma escamoteada. Nosso sistema é laico. Não somos regidos pelo sistema canônico, mas por leis. A sociedade precisa deixar em segundo plano as paixões condenáveis.199

Na opinião de Luiz Augusto Coutinho:

Uma vez constatada a hipóteses de que a vida seria inviável por grave anomalia acometida ao feto, poderia a lei autorizar o abortamento, ou seja, a interrupção daquele processo de gravidez, já que a nada conduziria prosseguir com ela, porém se o legislador assim não se posicionou, e, portanto, tal situação não está ainda enrolada na lei, mas nem por isso pode deixar de ser admitida.200

Ocorre que o Estado, ainda que laico, tem entre sua população vínculos aos

dogmas religiosos, em especial ao catolicismo. A interrupção da gestação é tratada

pela religião de forma bem rígida. A expressão legislativa relacionada ao aborto é

fruto desta influência, por esta razão, vem a tona, a repercussão quanto à liminar,

relacionada ao aborto.201

Vale ressaltar que em um Estado Democrático de Direito não há lugar para

confundir questões jurídicas com questões morais, quando está em discussão a

198 REVISTA VEJA ON LINE. Pelo fim da hipocrisia. Brasil, 2008. Disponível em: <http://veja.abril. com.br/030908/p_074.shtml>. Acesso em 21/10/2008. 199 REVISTA VEJA ON LINE. Pelo fim da hipocrisia. Brasil, 2008. Disponível em: <http://veja.abril. com.br/030908/p_074.shtml>. Acesso em 21/10/2008. 200 COUTINHO, Luiz Augusto. Anencefalia: Novos rumos para a ciência jurídica. Revista IOB de direito penal e processo penal. Porto Alegre. v. 5. n. 9.p.44. 201 BUSATO, Paulo César. Tipicidade Material, Aborto e Anencefalia. v. 10. n. 2. 577. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí.Jul/Dez 2005.

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dignidade da pessoa humana, a qualidade de vida da gestante, no caso do aborto

anencefálico.

3.9 ASPECTOS JURÍDICO-PENAIS DA AUTORIZAÇÃO PARA O ABORTO DO

FETO ANENCEFÁLICO

Para o atual estágio do direito positivo, não existe comando legislativo que

ampare, seja qual for, o ângulo que examina a questão, uma autorização para a

prática do abortamento nos casos de anencefalia. O juiz que autoriza, não pratica

ato à prestação jurisdicional, pela razão de inexistir prestação jurisdicional a ser

exercida. 202

Conforme explana Siqueira e Siqueira:

O aborto necessário, aborto terapêutico, bem como o aborto sentimental, aborto ético, quando a gravidez resultar de estupro, além da ocorrência de anencefalia, envolvendo o fenômeno fisiológico da gravidez, de sorte a produzir a morte encefálica do feto, origem em condutas que se inserem no âmbito das permissões legais. Embora formas abortivas provocadas, sobre elas estende-se, cobrindo-as, o manto protetor da admissibilidade legal.203

As recusas de pedido judicial não se dão por argumentos jurídicos

consistentes, mas por apelo a moralidades privadas do julgador, o que caracteriza

um risco para a democracia e para o pluralismo moral, típico da sociedade

brasileira.204

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54 assegura a

garantia do livre exercício da profissão e os princípios constitucionais da liberdade,

202 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa. A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista IOB de direito penal e processo pena. Porto Alegre. N. 40. Out/Nov/2006. p. 89. 203 SIQUEIRA, Geraldo Batsita de; SIQUEIRA, Marina da Silva. Aborto, anencefalia: Autorização judicial ou consentimento da gestante. Revista JOB de Direito Penal e Processo Penal. Porto Alegre. v. 6. n.32. Jun/jul/2005. p. 10. 204 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: LetrasLivres, 2004. p. 10.

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dignidade e do direito à saúde, respeitados quando comprovado a antecipação

terapêutica do parto. Dessa forma não qualifica o aborto como crime.205

Conforme Eduardo Gomes de Queiroz:

A ausência de culpabilidade ante a inexigibilidade de conduta diversa nasce com a conduta, ou seja, é ‘congênita’. Não é necessário que o magistrado atue no exercício da atividade jurisdicional para que a conduta do agente deixe de ser censurável. ‘A ação ou omissão não é culpável frente à prévia inexigibilidade de outra conduta’. Portanto, desnecessário é se recorrer ao Estado-juiz para a prática do abortamento nos casos de anencefalia. ‘Não há respaldo jurídico para a figura da autorização judicial’.206

Segundo Luiz Flávio Gomes:

Não se pede ao STF que reconheça mais uma hipótese de aborto no Brasil (além das duas já previstas na lei: CP, art. 128). O que se deseja é que o STF admita que esse aborto não é antinormativo (não contraria nenhuma norma, materialmente falando). Ele não é, portanto, nem moralmente nem juridicamente contra o Direito. Ao contrário, é por respeito à dignidade da gestante que ele deve ser admitido. O aborto anencefálico, quando se trata de uma verdadeira anencefalia, não conflita com as normas jurídicas dos arts. 124 e ss. do CP. Esse é o fundamento jurídico para sua exclusão do Direito penal (exclusão da tipicidade material).207

O Brasil, conforme elucida o relatório da OMS - Organização Mundial da

Saúde, “[...] será um dos últimos países que irá reconhecer a possibilidade de aborto

anencefálico, que é autorizado nos países estrangeiros”, conforme mencionado no

primeiro capítulo.208

3.10 CASO MARCELA DE JESUS

No caso Marcela de Jesus, uma junta médica especialistas em anatomia e

neurologia pediátrica, concluiu que a menina, sobreviveu por um ano e oito meses

205 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: LetrasLivres, 2004. p. 10. 206 QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Abortamento de feto anencefálico e a inexigibilidade de conduta diversa. A influência das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista IOB de direito penal e processo pena. Porto Alegre. N. 40. Out/Nov/2006. p. 91. 207 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: Direito não é religião. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11752>. Acesso em: 20/10/2008. 208 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: Direito não é religião. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11752>. Acesso em: 20/10/2008.

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no interior de São Paulo, porque seu caso não se tratava de anencefalia. Pela

primeira vez, um grupo de médicos se reuniu com os exames em mãos para analisar

e esclarecer o diagnóstico. O caso da criança tem sido utilizado por grupos religiosos

como argumento no debate no Supremo Tribunal Federal, que decidirá até o fim do

corrente ano se a interrupção da gravidez deve ser permitida em casos de

anencefalia.209

Marcela tinha merocrania, afirma Thomaz Gollop, especialista em medicina

fetal e professor da Universidade de São Paulo (USP). A mesma, tinha um defeito

menos grave na formação do crânio e o resquício de cérebro presente, ao contrário

dos anencéfalos que não têm nada, coberto com uma membrana chamada

cerebrovasculosa.210

Gollop afirmou que existem dez casos descritos de merocrania na literatura

médica. A doença caracteriza-se por morte cerebral, causando ao feto uma

sobrevida vegetativa. Por se tratar de uma raridade e por ter o mesmo prognóstico

entre essas doenças, levando também à morte, o médico reconheceu que chegou a

dizer, antes de analisar profundamente o caso, que ela tinha anencefalia. 211

Depois do diagnóstico confirmado, o médico teve de se apresentar ao

Supremo Tribunal Federal para prestar esclarecimentos acerca de sua conclusão.

No caso Marcela, a menina que sobreviveu por um ano e oito meses,

verificou-se que não se tratava de um caso de anecefalia. Desse modo, não pode

ser invocado como um "milagre divino", que falaria "por si só" contra o aborto

anencefálico.212

209 MÉDICOS afirmam que Marcela não sofria de anencefalia. Yahoo Notícias. Disponível em: <http://br.news.yahoo.com/s/28082008/25/manchetes-medicos-afirmam-marcela-nao-sofria-anencefalia.html&printer=1>. Acesso em: 01 out. 2008 210 MÉDICOS afirmam que Marcela não sofria de anencefalia. Yahoo Notícias. Disponível em: <http://br.news.yahoo.com/s/28082008/25/manchetes-medicos-afirmam-marcela-nao-sofria-anencefalia.html&printer=1>. Acesso em: 01 out. 2008. 211 MÉDICOS afirmam que Marcela não sofria de anencefalia. Yahoo Notícias. Disponível em: <http://br.news.yahoo.com/s/28082008/25/manchetes-medicos-afirmam-marcela-nao-sofria-anencefalia.html&printer=1>. Acesso em: 01 out. 2008. 212 MÉDICOS afirmam que Marcela não sofria de anencefalia. Yahoo Notícias. Disponível em: <http://br.news.yahoo.com/s/28082008/25/manchetes-medicos-afirmam-marcela-nao-sofria-anencefalia.html&printer=1>. Acesso em: 01 out. 2008.

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CONCLUSÃO

Viver em uma sociedade implica diferentes discussões éticas de acordo com

cada cultura vigente. A partir daí, gera-se a necessidade da criação de legislações

que norteiam a conduta da comunidade. Com a evolução das culturas e com os

avanços tecnológicos ressurgem discussões importantes em relação à revisão das

leis. O aborto anencefálico é um exemplo disso, pois trata-se de um tema polêmico

que difere inúmeras discussões, seja em aspectos técnicos, éticos, morais, jurídicos,

religiosos e/ou ideológicos.

Discussões éticas e jurídicas acerca desse polêmico e importante assunto

devem ser estimuladas e realizadas com o intuito de se definir um caminho legal que

a sociedade brasileira deva seguir.

Conforme elucidado na presente monografia, o Código Penal de 1940,

publicado segundo a cultura, os costumes e hábitos dominantes na década de 30,

não podem ser mais aceitos aos critérios sociais e científicos da época atual. De lá

pra cá já se passaram 60 anos. Não só os valores culturais se modificaram, mas

também grandes foram os avanços científicos e tecnológicos que produziram uma

revolução na medicina. Hoje há precisão frente aos diagnósticos clínicos, permitindo

uma certeza absoluta ao detectar eventuais anomalias do feto, e consequentemente,

a inviabilidade da vida extra-uterina.

Dessa forma, ressalta-se a continuidade de sua discussão, porém, visto

acima de tudo a aprovação da Argüição Descumprimento de Preceito Fundamental

Nº 54, a mesma será de fundamental importância, visto a exclusão da culpabilidade

na ação da gestante e do médico na interrupção da gravidez quando diagnosticada

a anencefalia.

Visto que estamos frente à evolução da ciência médica, na qual é permitido

um diagnóstico com 100% de segurança a respeito da inviabilidade da sobrevivência

do produto da concepção, é possível evitar futuros problemas ou traumas

psicológicos à gestante.

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Um ponto alto da argumentação da presente monografia é que mesmo

frente a todos esses avanços, a medicina afirma que não há nada que a ciência

médica possa fazer quanto ao feto inviável. No entanto, algo pode ser feito em apelo

ao quadro clínico da gestante, visto que a permanência do feto anencefálico é

potencialmente perigosa para a saúde e até para a vida das gestantes.

Importante considerar que nos casos de anencefalia do feto a saúde

psíquica da gestante também passa por graves transtornos. O diagnóstico da

inviabilidade da vida do feto deixa a mãe com uma perturbação emocional, idônea,

que além de contagiar a si própria, contagia a família toda. Evidentes são os

sintomas de depressão, frustração, tristeza e de angústia, na qual a gestante tem

que suportar, quando obrigada à torturante espera do parto de seu filho já

condenado à morte.

O aborto anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, não ofende o

princípio da dignidade humana do feto. Ofensa à dignidade da gestante existe

quando o aborto neste caso não é permitido. Visto dessa forma, elucida-se a

necessidade de proteção à dignidade das gestantes de feto portador de anencefalia.

E para que se tenha protegida a saúde da gestante, sua vida, autonomia da vontade

e liberdade é imperioso que se possibilite a essas mães a prática de aborto.

Em somatória, a mulher em gestação de um feto anencefálico pode correr

risco de morte, como já comentando no presente trabalho, o diagnóstico desses

fetos é 100% certo, frente ao avanço que a medicina vem tomando a cada dia.

Dessa forma, a certeza da morte intra-interina de um feto durante a gestação

evidencia o direito a gestante de interromper uma gravidez inviável.

Diante das longas discussões acerca da interrupção da gestação de feto

inviável que foram debatidas em audiências públicas no Superior Tribunal Federal,

encontrando-se suspensa, tendo data marcada para julgamento no mês de

novembro do corrente ano, demonstrou o Ministro Marco Aurélio de Mello, tanto na

fase da ADPF Nº 54, bem como, em entrevista a Revista Veja, ser favorável à

interrupção da gestação do feto portador de anomalia congênita incompatível com a

vida extra-uterina.

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Entretanto, nunca esse aborto poderá ser imposto, porque ninguém é

obrigado a abortar. Toda gestante tem liberdade para fazê-lo ou não (de acordo com

suas convicções pessoais e religiosas). Mas a que delibera sua realização não pode

jamais ficar sujeita a qualquer tipo de sanção (ou se reprovação). Obrigar mulheres a

sustentar a gestação de um feto anencefálico é prática institucionalizada de tortura,

já que a criança, com vida simbólica e psicológica, não existirá.

Registra-se que a discussão referente a este tema ainda encontra-se em

fase embrionária, pois não há consenso entre os operadores de direito e população

em geral. A presente monografia buscou discutir o assunto sem querer esgotar os

caminhos que serão trilhados após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal,

mas acredita que a gestante deva ter o direito de interromper sua gravidez

decorrente de anomalia fetal, evitando maiores sofrimentos e traumas para si

mesma e de toda sua família.

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