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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS MÁRCIO ANDRÉ BRAGA – OS SELVAGENS DA PROVÍNCIA – ÍNDIOS, BRANCOS E A POLÍTICA INDIGENISTA NO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1834 E 1868 São Leopoldo 2006

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

MÁRCIO ANDRÉ BRAGA

– OS SELVAGENS DA PROVÍNCIA –

ÍNDIOS, BRANCOS E A POLÍTICA INDIGENISTA

NO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1834 E 1868

São Leopoldo

2006

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MÁRCIO ANDRÉ BRAGA

– OS SELVAGENS DA PROVÍNCIA –

ÍNDIOS, BRANCOS E A POLÍTICA INDIGENISTA

NO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1834 E 1868 Dissertação de Mestrado em Estudos Históricos Latino-americanos Para obtenção do título de Mestre em História Universidade do Vale do Rio dos Sinos Programa de Pós-graduação em História Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina

Orientadora: Heloisa Jochims Reichel

São Leopoldo

2006

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

B813s Braga, Márcio André Os selvagens da província: índios, brancos e a política indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868 / por Márcio André Braga. – 2005.

167 f. : 29cm.

Dissertação (mestrado) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, 2005. “Orientação: Profª. Drª. Heloisa Jochims Reichel , Ciências Humanas”.

1.Política indigenista. 2. Questão indígena. 3. Índio I. Título.

CDU325.45(=1.81-82)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor: Márcio André Braga. Título: Os Selvagens da Província – Índios, Brancos e a Política Indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868. Natureza do trabalho: Dissertação de Mestrado em Estudos Históricos Latino-americanos. Objetivo: Identificar e analisar a política indigenista aplicada na província do Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868, bem como as formas como ela se articulava aos encaminhamentos dados à Questão Indígena pelo Império brasileiro no período. Instituição: Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Área de concentração: Estudos Históricos Latino-americanos – Populações indígenas e missões religiosas na América Latina. Data de aprovação: _________________________ Banca Examinadora: Dra. Heloisa Jochims Reichel (Unisinos) _________________________ Dr. Pedro Ignácio Schmitz, S.J. (Unisinos) _________________________ Dr. John Manuel Monteiro (Unicamp) _________________________

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de mencionar, inicialmente, os meus professores. Em particular, agradeço a Dra. Loraine Slomp Giron, por ter me iniciado no universo da pesquisa.

Obrigado ao Dr. José Alberione dos Reis, portador de tamanha paixão por ensinar que seria difícil não ser contaminado.

A Dra. Vânia Beatriz Merlot Herédia, tutora e amiga, agradeço pelas dicas, pelo exemplo e pela torcida.

Obrigado a Dra. Paula Caleffi, pelas orientações iniciais que transformaram uma idéia em um projeto de pesquisa.

Agradeço de forma especial a minha orientadora, a Dra. Heloisa Jochims Reichel, pela paciência, pela dedicação e pelos ensinamentos.

Fora da acadêmia, mas não com menor importância, agradeço ao paciencioso pessoal do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, pela atenção dispensada a este pesquisador.

Impossível esquecer os amigos Claitor Mazzochi, Rudimar Mendes e Simone Gonçalvez, por terem estado presentes incondicionalmente quando as coisas ficaram nebulosas. Clai, Rudi e Moni, que tantas vezes me serviram de bússola, a vocês um muito obrigado, meu carinho e dedicação eternos.

A Cíndia Brustolin e Júlio Pereira, agradeço pela disposição em me receber semanalmente em sua casa.

Muito obrigado a Cláudia, ao Seu Algeu e a Dona Tereka, minha irmã e meus pais, pelo apoio constante a minha carreira de historiador.

Finalmente, obrigado a Bila, que foi uma parceira fiel e dedicada nas longas horas de estudo. Existiriam filas intermináveis para ouvir suas preleções a respeito dos índios rio-grandenses, caso você falasse, é claro.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo central analisar as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela aplicação da política indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868.

Para tal análise foram consultados prioritariamente os documentos oficiais produzidos naquele período pelos Juizados de Órfãos, pelas Diretorias de Índios e pela Presidência da Província, que se encontram reunidos no acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Entre esses, os gerados após 1845 passaram ainda por um recorte de ordem geográfica, tendo sido selecionados os relativos aos aldeamentos da Guarita, Nonoai e da Colônia Militar de Caseros.

Buscando subsídios para a análise proposta, o texto apresenta, como primeiro capítulo, um histórico da Questão Indígena no Brasil desde o período de dominação portuguesa até o Império brasileiro.

O segundo capítulo focaliza o encaminhamento da Questão Indígena no Rio Grande do Sul durante o século XIX, concretizado pela formação de aldeamentos indígenas na zona do planalto sul-rio-grandense. Nele, são privilegiadas as mudanças processadas na apropriação da terra na Província de São Pedro entre a tomada das Missões pelos portugueses e a Lei de Terras de 1850, momento em que ocorre o avanço dos colonizadores brancos em direção ao planalto gaúcho, marginalizando os grupos indígenas que habitavam esse território.

De posse dos subsídios desenvolvidos nos capítulos anteriores, o terceiro analisa as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela aplicação da política indigenista na província de São Pedro entre 1834 e 1868, bem como as reações da população indígena a essa mesma política.

Dessa análise, conclui-se que o tratamento dado à Questão Indígena pelo governo do Rio Grande do Sul, no século XIX, estava alinhado a política indigenista do Império. Entretanto, a abordagem provincial da questão não deixou de sofrer as influências da agenda de interesses regionais e nem das reações dos indígenas as iniciativas provinciais para sua integração a sociedade imperial em expansão.

PALAVRAS-CHAVE: Índios – Política Indigenista – Questão Indígena

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ABASTRACT

This Paper has as primary objective analyze the actions maked by the official agents in charge for the application of indigenous politics in Rio Grande do Sul between 1834 and 1868. For this analysis was primarily consulted the official documents produced in that time by the Orphan Court, the Indigenous Directory and the Province Presidency, that is found on the Historical Archive of Rio Grande do Sul (AHRGS). The ones generated after 1845 passed by a geographic clip, selecting the files related to the Guarita, Nonoai and Colônia Militar dos Caseros villages. Searching for subsidy for the proposed analysis the paper presents, as the first chapter, a historical of the Indigenous Matter on Rio Grande do Sul in Brazil since the Portuguese domination to the Brazilian empire. The second chapter focus on the guidance of the Indigenous Matter on Rio Grande do Sul on the XIX century, realized by the indigenous village formation in the plateau zone from Rio Grande do Sul. In that chapter there is a privilege on the processed changes in the land appropriation on the Province of São Paulo between Mission's take by the Portuguese and the Lei the Terras in 1850, moment that occurs the white settler's advance in direction of the plateau of Rio Grande do Sul, marginalizing the indigenous groups that live in this territory. In grasp of the subsidy developed in the previous chapters, the third one analyze the actions taked by the official agents in charge of the application of the indigenous politics in São Pedro province between 1834 and 1868, as well the reactions of the indigenous population in the same politics. From this analyzes, concludes that the treatment gaved to the Indigenous Matter by the government of Rio Grande do Sul, on the XIX century, was aligned to the imperial indigenous politics. Whatever, the provincial approach of the matter didn't escape the influences of the regional interests agenda and even the reactions of the indigenous people to the provincial initiatives for the integration of expansion empire society.

KEY-WORDS: Indigenous – Indigenous Politics – Indigenous Matter

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................... 07 LISTA DE MAPAS ............................................................................................................... 08 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 09 1 A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL DA COLÔNIA AO II IMPÉRIO ..................... 15

1.1 Relações Entre Indígenas e Colonizadores na América Portuguesa ........................... 16 1.2 O Diretório Pombalino ................................................................................................ 21 1.3 A Política Indigenista de D. João VI ........................................................................... 24 1.4 O Império Brasileiro .................................................................................................... 28 1.5 A Legislação Indigenista do Século XIX .................................................................... 35

2 O RIO GRANDE DO SUL NO SÉCULO XIX ................................................................. 47

2.1 Integração dos Sertões do Centro-Sul ao Domínio Português .................................... 48 2.2 A Ocupação do Planalto Gaúcho e a Lei de Terras ..................................................... 53 2.3 Mão-de-Obra Livre e Despossuída no Rio Grande do Sul do Século XIX ................. 62 2.4 A Imigração e a Ocupação dos Vales e Encostas ........................................................ 68 2.5 Os Indígenas Encurralados Pelas Frentes de Ocupação .............................................. 76

3 A POLÍTICA INDIGENISTA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO .............................. 87 3.1 Índios e Seus Bens Tutelados Como Órfãos ............................................................... 90 3.2 As Iniciativas para Catequizar e Civilizar ................................................................... 96 3.3 O Cotidiano dos Aldeamentos ................................................................................... 112 3.4 A Reação dos Indígenas Aldeados ............................................................................ 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 149 FONTES CONSULTADAS ................................................................................................ 152 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 154 ANEXOS ............................................................................................................................. 158

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Organograma de cargos a serem preenchidos nos aldeamentos indígenas no

Império do Brasil a partir do Regulamento das Missões ....................................... 43

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Avanço da ocupação territorial no Brasil pelos colonizadores ............................... 50 Mapa 2: Avanço da urbanização e povoamento no sul do Brasil entre 1801 e 1822 ............ 51 Mapa 3: Áreas de circulação dos grupos Kaingang no Rio Grande do Sul ........................... 78 Mapa 4: Localização aproximada dos aldeamentos indígenas criados no Rio Grande do Sul depois de 1845 .............................................................................................. 80

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INTRODUÇÃO

Este trabalho focaliza as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela

aplicação da política indigenista1 no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868. Além de

considerar as decisões de tal política, a análise considera as especificidades do processo de

expansão territorial e formação de mão-de-obra da província durante o período, bem como as

relações, conflituosas ou não, que se estabeleceram entre os brancos colonizadores e a

população indígena.

A historiografia que aborda a ocupação da terra e a constituição da força de trabalho no

Rio Grande do Sul do século XIX traz, em geral, o colonizador português, o negro, o índio e

o imigrante europeu como os elementos humanos constituintes da população rio-grandense.

Entretanto, nessas narrativas, os indígenas normalmente aparecem de forma apagada, como

se apenas fizessem parte da paisagem ao fundo do palco no qual interagem os demais atores.

1 Foram consideradas como “Política Indigenista” as ações tomadas pelo estado, ou

instituições representantes dele, com reflexos sobre as populações indígenas. Essa definição seguiu a dada ao termo por Lima (1995, p. 15) em seu texto sobre Poder Tutelar, Indianidade e a Formação do Estado no Brasil: “A expressão política indigenista designaria as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas. Isto exclui outros aparelhos de poder da esfera da definição, implicando em não se falar em uma política indigenista eclesiástica, nem tampouco condicionar a idéia de atos oficiais afetando populações autóctones à existência de uma racionalidade onde as ações práticas correspondem a um planejamento implícito e, sobretudo, explícito. De modo mais claro: Não há uma correspondência necessária entre os planos para os índios e as ações face a eles”.

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Quando os indígenas aparecem como agentes dessa história, as menções feitas a eles se

referem a sua atuação como peões de estância e, principalmente, aos conflitos entre os índios

e os colonos durante a ocupação da região dos vales e da encosta superior do nordeste.

Nesse sentido, merece menção a dissertação de Maria Luiza Martini (1993), tratando

da mão-de-obra no Rio Grande do Sul durante o século XIX. Nela, fica destacada a

importância do indígena remanescente das antigas reduções jesuíticas para o trabalho nas

estâncias de gado que se formaram na região durante a primeira metade daquele século.

Também têm perspectivas interessantes as obras de Ligia Osório da Silva (1996), Aldomar

Arnaldo Rückert (1997) e Paulo Afonso Zarth (1997), nas quais, estão analisados os efeitos

da ocupação territorial e da Lei de Terras sobre a população do Rio Grande do Sul naquele

momento. É preciso citar também os textos de Heloisa Reichel (1993; 2000; 2005) sobre a

ocupação e propriedade da terra na região platina no século XIX. Neles, apesar de

extrapolarem o recorte geográfico estabelecido para este trabalho, o índio aparece de forma

mais presente, o que fornece parâmetros de comparação com a política indigenista imperial

brasileira e com o processo de ocupação dos territórios rio-grandenses no mesmo período.

Na bibliografia específica dedicada às populações nativas do Rio Grande do Sul, as

atenções se concentram nos modelos sociais tribais ou, ainda, nas formas pelas quais os

povos indígenas resistiram ao convívio com os colonizadores que se instalaram nos

territórios por eles tradicionalmente ocupados. Esse olhar sobre os índios rio-grandenses

pode ser visto nos textos de Ítala Irene Becker (1976; 1995). No primeiro deles, são

apresentadas as relações estabelecidas entre os grupos Kaingang e a instalação das colônias

de imigrantes alemães na região dos vales. No segundo, estão descritas características

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culturais e históricas dos Kaingang no Rio Grande do Sul, bem como sua movimentação para

dentro dos aldeamentos no século XIX.

O texto de Luís Fernando Laroque (2000), tratando da atuação das lideranças Kaingang

no Brasil meridional, merece destaque, pois apresenta as relações entre índios e brancos não

apenas sob a perspectiva da resistência, mas também os processos de associação através dos

quais os líderes indígenas se aproximaram da política indigenista da província.

A resistência indígena aparece nesses trabalhos, bem como em outros, através dos

diversos relatos de assaltos e saques promovidos pelos índios contra os colonos, indicando

que a situação dos indígenas não era um problema menor no contexto de ocupação dos

territórios rio-grandenses, especialmente nas áreas ao norte e nordeste da província. No

século XIX essas áreas representavam os últimos redutos de índios arredios no Rio Grande

do Sul, por isso, são as regiões onde aparecem registrados o maior número de conflitos entre

índios e brancos no período.

Os problemas decorrentes do relacionamento entre o Império brasileiro em expansão e

as nações indígenas circunscritas no território que veio a constituir o atual território nacional

é o que se tratará como Questão Indígena2 neste trabalho. Nela, estão envolvidas a

sobrevivência cultural e física dos índios, sua relação com o Estado e a sociedade civil, as

disputas por terras e as políticas públicas para solução dos problemas decorrentes do

2 O entendimento dado aqui ao termo “Questão Indígena”, seguiu de perto o de Paulo Ricardo Pezat. Segundo

aquele autor: Por “questão indígena” entendo os problemas decorrentes do relacionamento entre a sociedade nacional (abrangendo os poderes públicos da União, estados e municípios, assim como a sociedade civil) e as nações indígenas. Refere-se tanto à sobrevivência física como à sobrevivência cultural dos povos subjugados, envolvendo lutas por terras, tentativas de absorção, reclusão ou extermínio, grau de tolerância da sociedade conquistadora com a diversidade de costumes dos conquistados, status do indígena incorporado (sob tutela ou como cidadão) etc” (PEZAT, 1997, p. 104).

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encontro entre as sociedades indígenas e a sociedade colonizadora. Esses problemas se

fizeram presentes na atmosfera dos poderes públicos do Império, bem como nas relações

entre os índios e a sociedade capitalista em expansão no Brasil do século XIX.

As políticas indigenistas elaboradas no período colonial para encaminhar essa questão

estão discutidas em textos como os de Beatriz Perrone-Moisés (1992) e John Manuel

Monteiro (1994). A respeito do período entre 1822 e 1889, pode-se encontrar essa mesma

discussão em obras como as de Manuela Carneiro da Cunha (1987; 1992), tratando da

legislação indigenista no período monárquico brasileiro.

Entretanto, a postura oficial do governo rio-grandense no trato da Questão Indígena,

bem como as suas iniciativas para encaminhar os problemas dela decorrentes no século XIX,

momento no qual se efetivava a ocupação capitalista da terra naquela província, permanecem

como uma lacuna na historiografia.

A análise da Questão Indígena, diante do contexto de ocupação dos territórios gaúchos

naquele período, levantou o questionamento que representa a problemática norteadora deste

trabalho: Como se desenrolou a Questão Indígena na Província do Rio Grande do Sul

durante o período imperial?

Foi buscando responder a essa questão central que se desenvolveu a análise da política

indigenista rio-grandense entre 1834 e 1868. Nessa análise, foram abordados os documentos

produzidos naquele período pelos Juizados de Órfãos, pelas Diretorias de Índios e pela

Presidência da Província, que se encontram reunidos no acervo do Arquivo Histórico do Rio

Grande do Sul (AHRGS). Os critérios utilizados para seleção desta documentação, bem

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como a análise realizada a partir dela, estão discutidos de forma detalhada no terceiro

capítulo deste texto. Mesmo assim, por hora, é importante destacar que esses organismos

foram selecionados levando-se em consideração a legislação vigente Brasil imperial.

Segundo ela, durante a vigência dos decretos imperiais de 1831, 1832 e 1833, os juízes de

órfãos exerciam com exclusividade a tutela sobre os indígenas e seus bens.

A partir de 1845, com o Regulamento das Missões, os índios passaram a ser encargo

das Diretorias de Índios, órgão diretamente subordinado aos presidentes das províncias.

Entre os documentos provenientes da Diretoria de Índios que abarcava o território do atual

Rio Grande do Sul, foram selecionadas amostras dos relativos aos aldeamentos da Guarita,

Nonoai e da Colônia Militar de Caseros, por serem os conjuntos mais representativos da

Questão Indígena arquivados no fundo de Catequese dos Índios do AHRGS.

Determinados os organismos estatais a serem analisados, foram definidas as balizas

temporais do trabalho, levando-se em consideração as fontes documentais disponíveis. O ano

de 1834 foi determinado como marco inicial do trabalho por ser a data do primeiro

documento proveniente dos Juizados de Órfãos da província a mencionar a Questão

Indígena. O ano de 1868, marco cronológico final da análise, é a data do Relatório mais

recente emitido pela diretoria do aldeamento de Nonoai no período imperial.

Entretanto, para a compreensão da política indigenista aplicada pelo governo da

província de São Pedro entre 1834 e 1868, fez-se necessário estabelecer os princípios a partir

dos quais a Questão Indígena era tratada no Brasil. Para isso, no primeiro capítulo do texto

foi apresentado um histórico dos encaminhamentos dados a questão, desde o período de

dominação portuguesa, até a aplicação das leis que regulamentaram a propriedade capitalista

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da terra durante o período monárquico brasileiro. Apesar de não terem sido elaboradas em

função das disputas territoriais entre índios e brancos, a Lei de Terras e o seu Regulamento,

editados respectivamente em 1850 e 1854, tiveram profundos impactos sobre as populações

indígenas. Isso, pois, com o avanço das frentes de ocupação da terra, a partir da primeira

metade do século XIX, o eixo das discussões entre índios e brancos foi deslocado para as

disputas envolvendo os terrenos tradicionalmente ocupados pelas populações nativas.

Visto que a posse da terra se tornou o ponto central da discussão em torno da Questão

Indígena no século XIX, para uma análise da política indigenista na província de São Pedro,

fez-se necessário a apresentação do contexto regional naquele período. Assim, no segundo

capítulo deste trabalho, foi descrito o processo através do qual se deu a anexação do Rio

Grande do Sul à colônia portuguesa e a sua posterior integração ao avanço das frentes de

ocupação da terra promovido pelo Império. Foi feita, ainda, nesse capítulo, uma análise da

situação dos contingentes populacionais desalojados dos territórios pela instalação de

estâncias e colônias. Entre esse grupo de desterrados, estavam os indígenas das regiões norte

e nordeste da província.

No terceiro capítulo, foi analisada a documentação selecionada no acervo do AHRGS,

relacionando-a aos encaminhamentos historicamente dados à Questão Indígena no Brasil e

ao contexto rio-grandense no século XIX. Nesse processo de análise puderam ser destacadas

as ações tomadas pelos agentes da província diretamente envolvidos na questão, as

articulações entre a política indigenista da província e o projeto imperial para colonização

dos indígenas. Além disso, puderam ser detalhadas as reações dos grupos de índios atingidos

pelas políticas de catequese e civilização desenvolvidas pelo Império e pela província para os

indígenas.

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1 A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL DA COLÔNIA AO II IMPÉRIO

Os encaminhamentos dados à Questão Indígena no Brasil serão apresentados neste

capítulo, abordando desde a implantação da dominação portuguesa na América até a

elaboração das legislações indigenistas, na metade do século XIX, pelo Império Brasileiro.

Cinco momentos foram identificados, sendo que a política indigenista adotada pelos

governos aparece com nuances diferentes, embora não tenha havido, em nenhum deles, uma

mudança substantiva na direção dada à Questão Indígena.

Inicialmente, são caracterizadas as relações estabelecidas entre portugueses e índios

desde o século XVI até a primeira metade do século XVIII, focalizando o tratamento dado

pelo empreendimento colonizador português aos habitantes nativos da América. Este

momento inicial merece destaque, pois nele foram lançadas as bases que nortearam a política

indigenista no Brasil, não somente no período colonial, mas também durante o Império.

No segundo item do texto, são analisadas as mudanças introduzidas pelo Diretório

Pombalino de 1757, o qual, ao remover os religiosos de sua situação de intermediários entre

a coroa portuguesa e os índios, e instituir as vilas pombalinas, alçou os nativos à categoria de

cidadãos.

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No item seguinte, é focalizado o período joanino, principalmente no que diz respeito

aos efeitos das Cartas Régias de 1808, que, ao invocarem as guerras justas, inauguraram uma

ofensiva aberta aos índios hostis dos sertões. Neste momento, a servidão indígena volta a

vigorar oficialmente na colônia portuguesa, incentivando a prea de índios no sertão.

O quarto item analisa a atuação do Império Brasileiro nas décadas imediatamente

posteriores à independência. Mesmo com a independência, permaneceu em vigor a política

indigenista de D. João VI, transformando em uma questão importante, na pauta do Império, a

necessidade latente de se formular uma política geral para nortear as relações entre índios e

brancos.

No quinto item do texto, é abordada a Legislação editada pelo Império para

encaminhar a Questão Indígena, bem como a estrutura instituída por esta Legislação para dar

conta da Questão Indígena no Brasil. Essas legislações vieram suprir a ausência de diretrizes

amplas para a Questão Indígena num período em que essa problemática cruzou com a

regulamentação da propriedade fundiária no Império.

1.1 Relações entre Indígenas e Colonizadores na América Portuguesa

Desde sua implantação, no século XVI, a dominação portuguesa aplicou tratamentos

diferenciados aos índios amigos ou aliados – que eram considerados uma opção de mão-de-

obra – e aos índios que resistiram à conquista, denominados bárbaros ou hostis – aos quais

cabia a guerra e o extermínio. Aos primeiros, desde o século XVI, era destinado o itinerário

descrito por Perrone-Moisés:

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[...] devem ser “descidos”, isto é, trazidos de suas aldeias no interior (“sertão”) para junto das povoações portuguesas; lá devem ser catequizados e civilizados, de modo a tornarem-se “vassalos úteis”, [...] (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 118)

O roteiro identificado pela autora indica o que parecia ser o ponto mais importante da

questão indígena até o final do século XVIII para os portugueses, ou seja: como alinhar as

populações nativas à necessidade de braços da empresa colonizadora. Dos indígenas

aldeados, dependia o trabalho nas roças de subsistência e nas lavouras dos colonizadores,

bem como a manutenção dessa mão-de-obra e a formação de um contingente militar

importante na defesa das vilas portuguesas contra invasores e índios hostis. Os portugueses

dependiam dos nativos aldeados, pois eles conheciam a língua e a região. Esses saberes,

somados ao exemplo que davam ao viverem em aldeamentos, eram fundamentais para novos

descimentos e, portanto, para a renovação dos braços nas lavouras e dos homens disponíveis

para a defesa das vilas.

Para “conquistar pela fé e civilizar” as populações nativas, padres jesuítas vieram para

as novas terras. O primeiro grupo, tendo por superior Manuel da Nóbrega, chegou às

possessões portuguesas em 1549, em Salvador. A partir da instalação de sua residência os

padres passaram, imediatamente, a criar escolas para as crianças indígenas, iniciando os 210

anos de atuação dos jesuítas junto aos índios da América portuguesa. Dando conta dos

objetivos da Companhia de Jesus e também dos interesses da Coroa, foram fundados

colégios3 que deram suporte à ação de catequese reunindo, inicialmente, filhos de

portugueses e meninos índios. Nesses colégios, ministravam-se fundamentos do cristianismo

e padrões de civilização europeus. Os colégios foram fundados com recursos provenientes da

Coroa portuguesa, como doações de terras e outros, inclusive financeiros. 3 Para aprofundamento da atuação jesuíta no Brasil ver: FRANZEN, 2002, p. 69-91.

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A presença dos missionários jesuítas no trato com indígenas foi incisiva até o período

pombalino4, tendo os religiosos da ordem usufruído de uma posição privilegiada na política

indigenista portuguesa. Os padres aplicaram modelos sociais e econômicos no

estabelecimento de reduções bastante harmonizados aos interesses da Coroa. Os

estabelecimentos organizados pelos jesuítas preparavam os índios para servirem como mão-

de-obra aos colonizadores portugueses e, ao mesmo tempo, garantiam a posse da costa

brasileira pela sedentarização da população. Além disso, as reduções produziam a maior

parte dos mantimentos consumidos no seu sustento tendendo a auto-suficiência econômica,

ou ao menos a uma suficiência relativa. Assim, os estabelecimentos organizados pelos

jesuítas tornaram-se interessantes e viáveis para a coroa portuguesa.

Os primeiros estabelecimentos situaram-se na faixa litorânea, atendendo às

necessidades metropolitanas de povoar a costa e preservar a posse do território. Ainda no

século XVI, no que tange às relações entre índios e brancos, iniciaram-se duas práticas que

se perpetuaram nas possessões portuguesas na América. A primeira foi a inserção do

elemento branco nos estabelecimentos destinados à civilização de indígenas, inclusive com a

introdução de órfãos “como instrumentos de atracção dos pequenos indígenas [...]”

(FRANZEN, 2002, p. 77). A segunda foi a concentração de índios no litoral, suprindo a

defasagem de população no território ocupado pelos portugueses.

Essas práticas puderam ser verificadas ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as

atividades dos missionários passaram a penetrar mais no interior do continente. Os

4 Período entre 1757 e 1798, quando vigorou o Diretório que se Deve Observar nas Povoações de Índios do

Pará e Maranhão, ou simplesmente, Diretório Pombalino. As modificações no trato com os índios introduzidas pelo Diretório serão discutidas mais adiante nesse capítulo.

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descimentos permaneceram como uma constante durante todo o período da administração

portuguesa. Como destacado por Perrone-Moisés (1992, p. 118), era recomendado persuadir

os indígenas de que lhes interessava a proximidade com os colonizadores, pois os

portugueses garantiriam seu bem-estar. Para isso, os descimentos eram sempre

acompanhados de um missionário, incumbido de convencer os indígenas das vantagens de se

unirem aos vassalos portugueses.

Uma vez aldeados, os indígenas recebiam garantia de manutenção de suas terras. Essa

garantia apareceu, pela primeira vez, no Alvará de 26/07/1596, expresso pela máxima

“senhores das terras das aldeias, como o são na serra”5, tendo sido reafirmada por diversas

vezes durante o período português, como por exemplo no Alvará de 1596; nas Leis de 1609 e

1611; na Provisão de 08/07/1604; na Carta Régia de 17/01/1691; no Diretório de 1757)6.

Posteriormente, o Império voltou a garantir terras reservadas aos índios (Decreto n.º 426 de

24/07/1845; Lei de Terras de 1850; Lei n.º 1318 de 31/01/1854)7.

Nesses aldeamentos, a população indígena ficava confinada em áreas mais reduzidas

que as originalmente ocupadas – daí a associação feita por Manuela Carneiro da Cunha entre

a redução territorial e o termo “redução” utilizado para definir a reunião de índios nas

missões jesuíticas durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Com esse confinamento, os sertões

ficavam “limpos” para os colonos, vistos como os capazes de cultivar a terra que estava

sendo desperdiçada pelos “selvagens”. As reduções territoriais, promovidas pelos

aldeamentos dos missionários a partir do século XVI, foram o primeiro grande esbulho de

5 Apud PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 119. 6 Idem, ibidem. 7 Reproduções desses documentos podem ser encontradas in: CUNHA, 1992, p. 191, 212, 220.

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terras sofrido pelos índios8. Nas áreas de índios ditos “bravos”, sedentarizá-los em aldeias

tornou-se uma prática comum desde aquele período.

Quanto às relações de trabalho entre indígenas aldeados e colonos, dispositivos legais

estabeleciam, tanto para as administrações leigas quanto para as dos missionários, como

deveriam ser os modos de pagamento e os períodos de serviço para os indígenas aldeados. A

remuneração do trabalho dos indígenas provenientes de aldeamentos foi prevista em Lei

desde 1587, reafirmada no Alvará de 1596, em Lei de 1611, no Regimento para o Grão-Pará

e Maranhão de 1655 e no Diretório de 1757. Diversos desses documentos referiram a boa

vontade dos índios em trabalharem para colonos sob tais condições. No entanto, como

observou Perrone-Moisés em nota ao seu texto sobre a legislação indigenista colonial, “de

seus “salários”, em geral pagos ao administrador das aldeias, os índios costumam receber

apenas uma fração, e em espécie” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 131).

Corroborando a análise da autora acima citada, as violações à liberdade e ao prazo de

trabalho estipulado, os salários não pagos e a submissão dos indígenas a condições piores do

que a escravidão foram constantemente documentadas na bibliografia referente ao

indigenismo na América portuguesa9.

1.2 O Diretório Pombalino

8 Essa circunstância foi freqüentemente referida na bibliografia, sendo discutida de forma bastante completa nos

textos de Manuela Carneiro da Cunha sobre os Diretos do Índio e sobre a Legislação Indigenista no Brasil do século XIX.

9 Para aprofundamento das violações contra o trabalho indígena ver: MOREIRA NETO, 1988; PERRONE-MOISÉS, 1992; MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, 1992.

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O Diretório Que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, ou

simplesmente Diretório Pombalino10, entrou em vigor em 1757, trazendo um conjunto de

mudanças que laicizaram as reduções, nomeando diretores não religiosos para a

administração das aldeias. O seu texto reafirmou a abolição oficial da servidão indígena,

como já acontecera diversas vezes no século XVII, bem como o princípio de converter os

indígenas em agricultores sedentários e produtivos foi mantido, como sugeria o fragmento

abaixo do Diretório Pombalino de 1757:

19 Depois que os Diretores tiverem persuadido aos Índios essas sólidas, e interessantes máximas, de sorte, que eles percebam evidentemente o quanto lhes será útil o trabalho, e prejudicial a ociosidade; cuidarão logo em examinar com a possível exatidão, se as terras, que possuem os ditos Índios são competentes para o sustento de suas casas, e famílias; e para nelas fazerem suas plantações, e as lavouras; de sorte, que com a abundância dos gêneros possam adquirir as conveniências, de que até agora vivem privados, por meio do comércio em benefício comum do Estado.11

Segundo Carlos Moreira Neto (1988, p. 20), a partir do Diretório, o regime implantado

pelos jesuítas cedeu seu lugar a um esforço sistemático da coroa para a integração12, sem

intermediários, dos indígenas aldeados ao sistema colonial.

A presença de colonos brancos nos aldeamentos indígenas, que já era uma realidade

desde o período dos jesuítas, foi incentivada pela política pombalina. Enquanto vigorou o

10 O diretório era um texto legal editado no século XVIII, que regulamentava os aldeamentos indígenas. Apesar

de ter visado o Pará e o Maranhão, foi aplicado em toda a colônia portuguesa na América. Seguindo a lógica de racionalização do Estado vigente no período, converteu as antigas aldeias em vilas, diminuiu o papel da Igreja no trato com os índios e aplicou um modelo de urbanização que visava inserir os índios política, econômica e socialmente em uma esfera de administração laica.

11 Diretório Que Se Deve Observar nas Povoações dos Índios da Pará, e Maranhão, § 19 apud MOREIRA NETO, 1988, p. 166. A redação do documento foi atualizada por aquele autor.

12 A perspectiva de integrar o indígena ao restante da sociedade colonizadora em expansão configurou-se como uma característica constante da política indigenista no Brasil, desde o período colonial até a República. Neste trabalho, a manutenção dessa perspectiva de que os índios se integrariam a sociedade que se formava em trono deles foi chamada de integracionismo.

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Diretório, famílias de colonos foram instaladas no interior das vilas para que, com a

convivência entre índios e brancos, acabasse a “odiosa separação, entre uns e outros”13.

As vilas instituídas pelo Diretório eram diferentes dos aldeamentos jesuítas,

principalmente pela existência de um modelo administrativo aparelhado e controlado pelo

estado colonial português. As vilas de Pombal trouxeram, ao universo físico do índio, além

da presença efetiva do colono, autoridades e instituições que representavam oficialmente a

coroa portuguesa como os códigos de posturas e a normas legais. Índios e mestiços se viram

alçados a postos de vereadores, juízes e administradores, entre outros.

Acima de tudo, como destaca Moreira Neto (1988, p. 25), “a nova ordem representava

a desistência da autonomia relativa”. Essa relativa autonomia, característica dos aldeamentos

missionários, cedeu espaço à integração dos indígenas à ordem colonial como cidadão de

segunda categoria. O mesmo autor destaca, sobre a situação dos índios cidadãos de Pombal,

não podermos esquecer que “colonizados, eram necessariamente subordinados aos

colonizadores e nunca iguais em direito, a despeito dos textos legais” (MOREIRA NETO,

1988, p. 25). Essa afirmação vem ao encontro do que parece ser a função básica da vila

pombalina: integrar o índio já aldeado ao mundo da América portuguesa, aproveitando o que

Moreira Neto (1988) chamou de “índio genérico”14. Esse indígena, destituído de suas

identidades tribais, foi criado pelos missionários nas reduções e transformado numa massa

produtiva econômica e socialmente controlada.

13 Diretório Pombalino, 1757, §80-8 apud PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 119. 14 O termo “Índio Genérico”, usado pelo autor ao tratar dos indígenas do século XVIII, refere-se aos indígenas

aldeados, que já haviam sido expostos, ao menos parcialmente, ao processo de apagamento das identidades tribais. A criação desse “Índio Genérico” fazia parte do que poder-se-ia chamar de funções implícitas dos aldeamentos, pois, as antigas identidades tribais traziam consigo toda uma carga de conflitos endógenos e exógenos, sendo alguns deles anteriores aos contatos entre portugueses e índios, que inviabilizavam o convívio intertribal nos aldeamentos e dificultavam a utilização da mão-de-obra indígena.

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A importância do indígena como mão-de-obra e habitante de território, juntamente com

a de parcela integrante do reino português, aparecia associada, também, à política

expansionista portuguesa. As instruções enviadas por Pombal ao seu comissário para as

questões de limite na região sul evidenciam isso:

[...]a fôrça e a riquesa de todos os Países consiste principalmente no número e multiplicação da gente que o habita: como [...]se faz mais indispensavel, agora, na Raia do Brasil, para sua defesa, em razão do muito que tem propagado os Espanhóis nas fronteiras deste vasto continente, onde não podemos ter segurança sem povoarmos, á mesma proporção, as nossas Provincias desertas [...] não só julga S.M. necessário que V.Sa. Convide, com os estímulos acima indicados, os vassalos do mesmo Senhor, Reiniculas e Americanos que se acham civilizados, mas tambem que V.Sa. estenda os mesmos e outros privilégios aos Tapes, que se estabeleceram nos Dominios de S.M., examinando V.Sa. as condições que lhes fazem os Padres da Companhia Espanhois, e concedendo-lhes outras à mesma imitação, que só não sejam iguais, mas ainda mais favoráveis; [...]15

O diretório Pombalino e os parâmetros por ele estabelecidos para o tratamento da

questão indígena vigoraram até sua revogação por Carta Régia, em 12 de maio de 1798.

Essa, além de revogar o Diretório Pombalino, restabeleceu a servidão e atribuiu aos índios a

condição de órfãos.

§ 41 – Todos aquelles moradores que ajustarem e trouxerem para os servir Indios d’aquellas Nações que estiverem em paz como estão agora os Murás, Mondurucús e Carajaz: ordenovos lhes permitais estes ajustes, obrigando-os porém a manifestar logo ao Governador aquelles que d’este modo trouxerem, afim que mandeis immediatamente proceder a termo, pelo qual sejam obrigados [...] a educar e instruir os mesmos Indios de sorte [...] que sejam elles baptizados; e pelo mesmo termo ficarão elles obrigados a pagar-lhes o estipendio convencionado. Para o que hei por bem conceder a estes Indios o privilégio de Orphãos.”16

15 Instruções de Pombal a Gomes Freire apud MOREIRA NETO, 1988, p. 26. 16 Fragmento da Carta Régia de 1798 apud CUNHA, 1987, p. 110.

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A tutela orfanológica17, que caracterizou o tratamento das questões indígenas no século

XIX, surgiu na revogação do Diretório Pombalino com a determinação de que os índios

seriam tutelados pelo estado com o status jurídico de órfãos. A partir daquele momento, os

juizados de órfãos deveriam cuidar para que os índios, por eles tutelados, não fossem lesados

em seus contratos de trabalho. Apesar de a tutela orfanológica representar um direito

assegurado à assistência legal, a integração do índio como súdito leal da Coroa, sob essa

condição, atribuía-lhe a conotação de um cidadão de segunda categoria, incapaz18 e, por isso,

tutelado. A condição de órfãos visava evitar que, por sua incapacidade de compreender a

língua ou os costumes dos cidadãos civilizados, libertos de qualquer ordem fossem

escravizados, estando protegidos pela orfandade não apenas os índios, mas também os

negros libertos. Esses últimos, segundo Cunha (1992, p. 24), eram, em geral, africanos

resgatados em águas brasileiras por navios britânicos depois da proibição do tráfico de

escravos.

1.3 A Política Indigenista de D. João VI

A ação da Coroa portuguesa no início do século XIX foi de caráter profundamente

anti-indígena. Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, D. João VI

restabeleceu a guerra justa e incentivou a servidão indígena através das Cartas Régias de 13

de maio, 05 de novembro e 02 de dezembro de 1808. Nelas, a guerra justa aos índios ditos

selvagens, antes invocada defensivamente, foi reinaugurada com caráter abertamente

ofensivo contra os índios de São Paulo e Minas Gerais, genericamente chamados de

17 Para maior aprofundamento ver: CUNHA, 1992, p.25. 18 A incapacidade relativa dos índios, expressada pela tutela orfanológica, vigorou durante o século XIX e parte

do século XX, concretizando-se legalmente no código civil republicano de 1916. Para maior detalhamento das políticas indigenistas na Primeira República e da incapacidade relativa no Código Civil Brasileiro de 1916, ver: LIMA, 1995.

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botocudos. O caráter anti-indígena da política de D. João teve receptividade em todas as

regiões da colônia, pois, apesar de fazerem referência aos botocudos das regiões de São

Paulo e Minas Gerais, as Cartas Régias de 1808 e 1809 foram aplicadas em todas as áreas do

domínio português na América. Um exemplo da aceitação da guerra justa foi a carta que

aprovou o projeto de estabelecer uma comunicação por terra entre as áreas de colonização no

Pará e em Goiás, apresentado pelo desembargador Theotonio Segurado em 1811:

Acontecendo porém [...] que a nação Carajá continue nas suas correrias, será indispensável usar contra ela da força armada; sendo este, também, o meio de que deve lançar mão para conter e repelir as nações Apinagé, Chavante, Cherente e Canoeiro; por quanto, suposto que os insultos que elas praticam tenham origem no rancor que conservam pelos maus tratamentos que experimentaram da parte de alguns Comandantes das aldeias, não resta, presentemente, outro partido a seguir senão intimidá-los, e até destrui-los, se necessário for, para evitar os danos que causam19

No fragmento acima, aparecem aprovadas ações militares contra grupos indígenas

conhecidos, sendo que alguns deles tinham contato pacífico com a sociedade regional.

Segundo Moreira Neto (1988), a postura de aceitar o índio porque era fornecedor de mão-de-

obra cedeu espaço para uma rejeição étnica do mesmo. Este último, caso não se sujeitasse ao

projeto de expansão português, deveria ser eliminado e substituído por indivíduos mais

alinhados ao avanço do progresso e da civilização.

Os indígenas feitos prisioneiros nas ditas guerras justas deveriam servir aos milicianos

e moradores que os aprisionassem. Como era de se esperar, em um território vasto e

frouxamente controlado pelo poder central, as Cartas Régias abriram a possibilidade de

guerra contra muitos grupos indígenas em diversas regiões da colônia. Esses grupos se

19 Apud MOREIRA NETO, 1988, p. 33.

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tornaram uma fonte farta e oficialmente viável de mão-de-obra e de terras, pois, como

anunciavam os textos régios, os índios aprisionados deveriam servir por quinze anos e as

terras conquistadas, passavam a ser consideradas devolutas20.

Segundo os textos régios de D. João VI, a servidão dos indígenas seria temporária e

serviria para conjugá-los à sociedade civilizada através dos exemplos que teriam, vivendo

com seus senhores. O convívio com os civilizados também serviria para iniciar os selvagens

na agricultura e nos ofícios mecânicos, preparando-os para se tornarem vassalos úteis da

coroa.

O discurso contido nas Cartas Régias de D. João VI, também presente no documento

pelo qual foi revogado o Diretório Pombalino em 1798 apregoava, na realidade, uma

justificativa para a servidão indígena, apresentando o que poderíamos chamar de uma

“pedagogia da civilização”.

20 Segundo Siqueira Campos (1936, p. 13), originalmente, a definição jurídica de “devoluto”

fazia referência à propriedade de terras que retornou ao domínio de um seu senhor de procedência, pelo fim da validade das concessões ou outros títulos que legitimavam sua ocupação. Entretanto, Lígia Osório da Silva (1996, p. 156) destacou que o sentido atribuído ao termo “Terras Devolutas”, pela Lei de Terras de 1850, não equivalia a sua definição jurídica tradicional. Houve uma redefinição do conceito, tornando legal o sentido usualmente dado ao termo devoluto desde os tempos coloniais, com o qual o conceito entrou definitivamente para a língua portuguesa, o de vago. Essa redefinição do conceito ia ao encontro dos parâmetros definidos para a ocupação da terra segundo a Lei de 1850, pois respeitava o domínio dos posseiros, mesmo quando inexistiam títulos de domínio legal. Seguindo ainda o destacado por Silva, o artigo 3º da Lei mantém a validade do domínio dos posseiros quando define as Terras Devolutas pela exclusão das que não o são, ou seja, as que não eram de uso público, as que não estavam sob domínio particular por título legítimo, as que não se achavam ocupadas por posse mesmo que não fundadas em título legal. Considerando as terras excluídas pelos parâmetros citados acima, o que restou foram as terras vagas, ou tidas como desocupadas. Assim, para fins de análise, considerou-se, neste trabalho, a definição dada a Terras Devolutas como sinônimo de vagas, visto, como já destacado por Silva, ter sido este o significado usualmente dado ao termo desde a colônia, e que foi legalizado a partir de 1850. Para uma análise completa do significado do termo, ver: SILVA, 1996, p. 156. Ver ainda: CAMPOS, 1936, p. 13.

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Essa pedagogia da civilização se tornou uma característica das iniciativas tomadas pela

coroa para solucionar a Questão Indígena no início do século XIX. Segundo ela, os indígenas

aprenderiam os padrões de convivência necessários para serem integrados na sociedade

civilizada através do convívio com cristãos que os educassem. Como recompensa, pelo seu

empenho em trazer os selvagens para o seio da civilização, os tutores podiam utilizar a mão-

de-obra dos indígenas por eles tutelados enquanto os educavam, ou pelo tempo estipulado

pelas legislações vigentes. A oficialização dessa fonte de braços e terras pode ser

exemplificada pelo seguinte fragmento da Carta de 1º de abril de 1809:

Ao mesmo comandante ordenareis que, quando seja obrigado a declarar a guerra aos índios, que então proceda a fazer e deixar fazer prisioneiros de guerra pelas bandeiras que ele primeiro autorizar a entrar nos campos ... bem entendido, que essa prisão ou cativeiro só durará 15 anos, contados desde o dia em que forem batizados [...] Autorisareis ao Commandente para que além das sesmarias concedidas ao Governo possa repartir os terrenos devolutos em proporções pequenas [...]21

A conversão dos terrenos tomados dos índios em terras devolutas pelas Cartas Régias

de D. João VI pareceu ser um primeiro encaminhamento da política indigenista adotada nas

décadas seguintes. Em outra palavras, a ocupação da terra passou a dar a tônica das

discussões a respeito dos problemas envolvendo índios no século XIX. O deslocamento do

eixo da Questão Indígena para a terra foi impulsionado, entre outros motivos, pelo

incremento da mão-de-obra escrava negra que reduziu a importância do índio como

trabalhador e, principalmente, pelo avanço das frentes de expansão agrícola rumo ao sertão.

A busca pelas ditas “terras vazias”22 que, por sua vez, representavam uma imensidão de

21 Fragmento da Carta Régia de 01 de abril de 1809, reproduzida em: CUNHA, 1992, p. 71. 22 O termo terra vazia, aqui mencionado, não deve ser tomado no seu sentido literal, visto ser sabido que as

áreas geográficas para as quais avançaram os portugueses na América, bem como o Império brasileiro depois

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terras a serem libertadas da improdutiva barbárie dos seus habitantes naturais, tornou

dinâmicas as fronteiras do sertão23.

1.4 O Império Brasileiro

O período entre a revogação do Diretório Pombalino e o Regulamento das Missões de

1845 permaneceu carente de uma legislação que desse conta da Questão Indígena em âmbito

geral.

A característica flutuante da política indigenista nas últimas décadas do domínio

português, onde cada caso era julgado conforme as circunstâncias específicas e que aparecia

inserido, permaneceu como uma continuidade durante todo o primeiro Império. A

independência em nada modificou o tratamento dado aos índios, sendo que não podemos

destacar nem mesmo grandes alterações na forma de pensar as relações entre índios e

brancos. Prova dessa continuidade foi o silêncio da Constituição de 1824, que manteve em

vigor as diretrizes estabelecidas por D. João VI.

Durante a primeira metade do século XIX, a questão indígena apareceu ligada ao

acirramento da disputa pela posse da terra que, como mencionado anteriormente, se tornou a

tônica do problema no período. Essa disputa passou a ter um espaço mais relevante nas

discussões do Parlamento brasileiro, onde apareciam subterfúgios como os apresentados por

deles, eram bastante povoadas. Por outro lado, o conceito de terra vazia, que persistiu por todo o período de expansão dos limites e fronteiras brasileiros, legitimava a posse daqueles territórios anteriormente ocupados por indivíduos ou coletividades tidos como marginais em relação aos projetos de ocupação propostos oficialmente, tanto pelo governo português quanto pelo Império do Brasil. Para uma discussão mais aprofundada da função do conceito de terra vazia na expansão fronteiriça brasileira ver: VANGELISTA, 2000, p. 59-72.

23 A necessidade da busca de novas terras para a agricultura no sertão aparecia, no período, associada à difusão dos princípios fisiocratas. Doutrina econômica que circulou pela Europa na segunda metade do século XVIII, segundo a qual, somente a produção em larga escala no setor agrícola poderia construir a prosperidade de uma nação, pois era produção dos grandes territórios destinados a agricultura seriam, segundo os fisiocratas, a única fonte verdadeira de riqueza.

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um deputado do Maranhão, usando elementos da relação entre os índios e suas terras para

negar-lhes a legitimidade do indigenato24:

Uma aldeia de 200 a 300 índios, umas vezes se achava a 20 léguas acima e dahi a poucos dias 20 léguas mais abaixo; chamar-se-ão estes homens errantes, proprietários de tais terrenos? Poderá dizer-se que elles tem adquirido direito de propriedade? Por que razão não se aldeiam fixamente como nós? [...] Eu quisera que se me mostrasse a verba testamentária, pela qual nosso pai Adão lhes deixou aqueles terrenos em exclusiva propriedade [...]25

Segundo Carlos Araújo Moreira Neto (1998), a posição do Império refletia a exclusão

do índio da agenda de interesses nacionais26, restando a eles, o papel de empecilho à

expansão territorial do Império.

Contudo, a necessidade de uma política indigenista com medidas amplas e

permanentes era sentida em vários níveis do governo imperial e, apesar de a Constituição de

1824 não ter levado em consideração a questão, ela foi bastante debatida no período

imediatamente anterior ao texto constitucional outorgado por D. Pedro. A Assembléia

Constituinte de 1823 formou, durante os trabalhos de elaboração do projeto constitucional,

uma Comissão de Colonização e Catequização, a qual recebeu, em junho do mesmo ano, um

projeto de José Bonifácio com o nome de Apontamentos Para a Civilização dos Índios

Bárbaros do Brasil.

24 Direito originário a posse da terra definido por Beckhausen como: “Trata-se de direito congênito, impregnado

de laços culturais e históricos, que não se confunde com a posse civil, tampouco com ocupação (já que neste sentido estaria implícito um direito preexistente) e que nos remete a imemorialidade do domínio sobre as terras brasileiras [...].” BECKHAUSEN, 2000, p. 59.

25 Annaes do Parlamento Brazileiro, Rio de Janeiro, Assembléia Geral Legislativa, Câmara dos Senhores Deputados, 1826, tomo terceiro, Typ. Do Imperial Instituto Artístitco, 1874, p. 189. Reproduzido parcialmente in: CUNHA, 1992, p. 16.

26 Para aprofundamento ver: MOREIRA NETO, 1998, p. 40.

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O texto de Bonifácio foi uma das mais inovadoras e influentes propostas de

encaminhamento para a questão indígena no século XIX, embora mantivesse a visão

eurocêntrica do índio selvagem:

Com effeito o homem no estado selvatico, e mormente o Indio bravo do Brazil, deve ser preguiçoso; porque tem poucas, ou nenhumas necessidades; porque sendo vagabundo, na sua mão está arranchar-se successivamente em terrenos abundantes de caça ou de pesca [...]27

Mesmo mantendo a imagem de inferioridade dos indígenas e não tendo sido levado a

cabo, os Apontamentos de José Bonifácio gozam de, pelo menos, dois grandes méritos. Esses

Apontamentos tornaram-se um marco da questão indígena no Brasil, cujos princípios se

fizeram presentes em outros documentos indigenistas posteriores, com influências visíveis

até mesmo na criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) já durante a Primeira República.

Além disso, indicavam uma demanda que se apresentava como fundamental na sua época: a

criação de medidas amplas e permanentes para o trato da questão indígena.

Os Apontamentos de José Bonifácio haviam sido apresentados, anteriormente, numa

reunião das Cortes Gerais de Lisboa (1821-1823), juntamente com outros projetos de

deputados brasileiros. Apesar do prestígio político do autor, nenhum dos dois parlamentos

aprovou a proposta. A sua reprovação, na Constituinte de 1823, demonstra, para Moreira

Neto (1988, p. 40), “a continuidade dos interesses coloniais no Brasil após a independência”,

ao menos no tocante à Questão Indígena, onde, seguindo uma lógica fisiocrata, se procurava

liberar terras dos índios para a colonização e a produção agrícola.

27 SILVA apud CUNHA, 1992, p. 348.

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Enquanto projetos como o de José Bonifácio procuravam manter, nas discussões da

Constituinte de 1823, a idéia da integração do índio ao restante da sociedade, outros

parlamentares buscavam a anulação do índio naquela pauta. Para alguns deputados, manter

os direitos dos índios não fazia parte das atribuições do Império, como ficou expresso em

declaração feita pelo deputado Montesuma: “Os índios não são brazileiros no sentido político

em que se toma; elles não entram comnosco na família que constitui o imppério”28.

O projeto de constituição de 1823, em seu Título XIII, art. 254, chegou a propor que a

“Assembléia terá igualmente cuidado de crear estabelecimentos para Catechese e civilização

dos índios, emancipação lenta dos negros, e sua educação religiosa, e industrial”29.

Entretanto, esse projeto constitucional esbarrou em D. Pedro I que, na sua Carta Outorgada

em 1824, não fez qualquer referência aos índios ou aos problemas suscitados pelas suas

relações com o restante da sociedade que se formava.

Para Cunha (1987, p. 63), o Brasil independente retrocedeu no reconhecimento dos

direitos indígenas, negando a soberania e a cidadania aos índios. Os estadistas colocaram a

questão da construção da nação brasileira, desde a independência, a partir das premissas da

Revolução Francesa, conforme as quais, a cada Estado, deveria corresponder uma nação30.

28 Diário da Constituinte, sessão de 25/09/1823 apud CUNHA, 1987, p. 63. 29 Fragmento do projeto de Constituição de 1823 apud 1987, p. 212. 30 O termo nação, tomado aqui como uma instituição que surge com a Revolução Francesa, não aparecia

carregado das conotações étnico-culturais que lhe foram conferidas posteriormente pelo romantismo. Conforme Chiaramonte (1993), na concepção herdada dos franceses e que se tornou usual no início do século XIX, a nação era configurada como uma reunião do povo (ou povos), sujeito a um governo ou representação comum, vivendo segundo uma mesma legislatura. Assim, substancialmente, a nação e o Estado tem a mesma gênesis, posto que ela não era a tradução de uma nacionalidade, mas a consolidação de uma legitimidade político-administrativa capaz de imputar a soberania. Depois da terceira ou quarta década do século XIX, com o romantismo, a nação foi associada ao princípio da nacionalidade, com toda a sua carga étnico-cultural e sua capacidade de legitimar a existência do Estado. Para um aprofundamento das utilizações do termo nação nos séculos XIX e XX, ver: CHIARAMONTE, 1993, p. 49-84.

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Dentro dessa visão de nação, era impossível garantir direitos a um grupo não identificado

com o restante da sociedade nacional.

Segundo a mesma autora, o silêncio da Carta Outorgada em 1824 a respeito da questão

Indígena representava um paradoxo. Isso ocorreu porque, enquanto se negava o índio, não

mencionando sua existência na Constituição, o mesmo era difundido como um símbolo

nacional. Um exemplo dessa contradição são os personagens criados por José de Alencar em

Iracema e o Guarani.

Com relação ao índio representado como símbolo da nação, um outro paradoxo

destacado por Cunha (1992, p. 5) diz respeito a que, no século XIX, a questão da

humanidade do índio voltou a ser colocada. O cientificismo do período preocupou-se em

estabelecer antropóides humanos e levantou controvérsias sobre a linha que marcava o

fenótipo biológico humano. Três crânios de Botocudos foram parar em coleções suecas,

alemãs e americanas, entre 1818 e 1868. Examinando o crânio levado em 1818 pelo príncipe

von Wied-Neuwied, Blumenbach o classificou como algo entre o orangotango e o homem. O

crânio levado a Harvard por Hartt, em 1868, foi analisado e declarado bastante próximo do

humano. Para a autora, o que “os tupi-guaranis são à nacionalidade”, figurando como

símbolo da auto-imagem do Brasil, “os botocudos são à ciência” (Cunha, 1992. p. 7).

Oficialmente, a humanidade do índio era afirmada, mantendo o orgulho nacional, mas,

domesticamente, a idéia da bestialidade e animalidade indígena era freqüentemente

expressada. Em 1827, Francisco Pereira de Santa Apolônia, presidente da província de Minas

Gerais, fez o seguinte comentário sobre a índole dos Aymorés: “Permitta-me V. Exa.

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Reflecitir que de Tigres só nascem Tigres; de Leoens, Leoens se gerão; e dos cruéis

Botocudos (que devorão, e bebem o sangue humano) só pode rezultar Prole semelhante.”31

Ao nível das ações concretas, a primeira iniciativa substancial promovida pelo governo

imperial foi em 1826, com a condução de uma ampla consulta às províncias sobre a índole

dos índios da região, quais as melhores terras para aldeá-los e quais os motivos pelos quais as

iniciativas anteriores teriam falhado mesmo com recursos da fazenda pública. A origem

dessa consulta, provavelmente, estava vinculada à atuação da Comissão de Colonização e

Catequese formada em 1823, somada à influência dos Apontamentos de José Bonifácio sobre

o pensamento indigenista da época. A intenção da consulta era a formulação de um Plano

Geral de Civilização para os Índios, mas como as respostas obtidas pelo governo

demonstraram a impossibilidade do estabelecimento do mesmo naquele momento, a

iniciativa acabou fadada ao esquecimento.

Enquanto permanecia a ausência de uma diretriz geral a ser dada à Questão Indígena,

intensificavam-se as iniciativas de ocupação produtiva das ditas terras vazias.

Os indígenas apareciam de forma singular nesse quadro, pois o indigenato havia sido

reafirmado legalmente diversas vezes, demonstrando que, em tese, o Estado reconhecia o

direito dos índios à terra. Entretanto, na prática, o indigenato continuava sendo violado,

algumas vezes com a conivência do próprio Estado. Essa circunstância criou uma situação

onde a terra precisava ser desapropriada legitimamente.

31 Francisco Pereira de Santa Apolônia ao Visconde de São Leopoldo, março de 1827. Apud CUNHA, 1992, p.

5.

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Complementando o esbulho das terras indígenas, iniciado pelas reduções do século

XVI, nas áreas de colonização mais antiga identificou-se uma segunda etapa da tomada das

terras indígenas: o apossamento das terras que haviam sido reservadas para os aldeamentos.

Como já dito anteriormente, os aldeamentos foram criados para a iniciação dos

indígenas no convívio com o restante da sociedade. Visando acelerar o processo de

integração dos índios a sociedade, foi mantida, entre 1808 e 1824, a mentalidade pombalina

de conceder terras a colonos portugueses no interior dos aldeamentos, para que eles

servissem como exemplo de civilidade aos indígenas aldeados. Essa prática foi mantida pelo

menos até o Regulamento das Missões em 1845.

Uma vez misturados à população sertaneja, os índios eram então classificados como

“assimilados” e o aldeamento extinto, liberando a terra para a posse legal dos colonos32.

Esses últimos, por sua vez, viam, na proximidade das aldeias, uma possibilidade de

abastecimento de mão-de-obra farta, barata e administrada por indivíduos nomeados pelo

Estado com autonomia para dispor a mão indígena a terceiros.

As etapas descritas acima não podem ser grifadas como regra. Entretanto, elas

apareceram como uma prática recorrente nas questões envolvendo terras indígenas e, pelo

32 Um exemplo pôde ser constatado em correspondência expedida pelo Juiz de Órfãos de Porto Alegre, Joaquim

Lopez de Barros em 1856, referindo-se ao aldeamento da Aldeia dos Anjos, criado na segunda metade do século XVIII: “(...) tenho a honra de informar segnificando a V. Exª. primeiro que tudo, e pelo que é publico e notorio que na Freguezia da Aldeya de Nopsa Senhora dos Anjos foi onde houve se não o primeiro pelo menos um dos primeiros Aldeyamentos de Indios d’esta Provincia, e que as terras depse Aldeyamento se diz terem sido invadidas e usurpadas por mtas. Pepsoas por ter sucepsivamente declinado e achar-se inteiramente extinto (...)”. Correspondência do Juizado de Órfãos de Porto Alegre, 11 de outubro de 1856. AHRGS J-23.

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menos até o final do século XIX, formavam um processo de expropriação comumente

verificado.

1.5 A Legislação Indigenista do Século XIX

Dada a derrota da modernização proposta por Bonifácio em 1823 e a completa omissão

da Carta Outorgada de 1824, a legislação indigenista, que continuou vigorando nos primeiros

anos do Império brasileiro, constituía-se das Cartas Régias de D. João VI. O Império

permaneceu fomentando o aldeamento de grupos indígenas e seguindo a lógica característica

do período de disponibilizar espaços colonizáveis. A legislação imperial reafirmou repetidas

vezes a demarcação de terras para a civilização de índios, o que demonstrava a manutenção

da perspectiva integracionista e o vislumbre da formação de uma nação unificada, da qual o

índio deveria fazer parte. Outra permanência, que visava a integração dos índios, era o

incentivo à instalação de colonos brancos entre os indígenas. Exemplo dessas continuidades

foi o Decreto nº.31 de janeiro de 1824:

Sendo consideravel o numero de Indios Botecudos que têm concorrido, e todos os dias vem concorrendo ás margens do Rio Doce, os quaes é de summa necessidade contentar e aproveitar, já, aldeando-se e dispondo-os para a civilisação, [...]: Manda S. M. o Imperador [...] ao Governo da Provincia do Espirito Santo, o brevissimo regulamento interino [...], para que o ponha logo em pratica: dando regularmente parte do que fôr passando, e apontando as providências que julgar adequadas. E porque para o aldeamento dos Indios é necessario marcar terreno, e muito convem aproveitar os colonos civilisados que forem concorrendo a pedir terras para se estabelecerem, pois que de sua vizinhança, e communicação resultam gradnes benefícios á civilisação de selvagens: Manda outrosim S. M. o Imperador que o Governo da Provincia, além dos terrenos para o aldeamento dos Indios, continue a dar sesmarias a particulares que as pedirem, na fórma das leis; Manda finalmente o mesmo A. S. que seja empregado como Director dos Indios e Inspector da guarda de Pedestres que se estabelecer, o Coronel Julião Fernandes Leão, por confiar delle que desempenhará tão importante commissão, visto a

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actividade, zelo e intelligencia que tem mostrado neste genero de trabalho. Palacio do Rio de Janeiro em 28 de Janeiro de 1824. – João

Severiano Maciel da Costa.33

A reserva de terras para os índios não recebeu parâmetros novos de imediato,

permanecendo norteada pela Provisão de 08/07/1819 e pelo Decreto de 26/03/1819,

documentos nos quais ficara afirmado que as demarcações deveriam ser “nos lugares em que

se achão arranchados, pela preferência que devem ter nas sobreditas terras”34. Na consulta

promovida pelo Império em 1826, apesar dos resultados pouco favoráveis, percebemos os

ecos desses parâmetros, onde se afirmava a preferência dos índios na escolha dos locais para

os aldeamentos. A declaração dada pela Câmara da Vila de Barbacena, na consulta de 1826,

mostrava que os parâmetros estabelecidos em 1819 ainda tinham voz corrente na reserva de

terras para os indígenas. Na declaração dizia que: “deve ser a arbítrio e escolha dos mesmos

índios: parece injustiça que ao dono da caza se determine lugar para sua estada”35.

Em outubro de 1823, na Lei que deu forma aos governo provinciais, instituindo os

Presidentes e criando os Conselhos, D. Pedro I decretou as questões que demandavam juízo

administrativo encargo do Presidente da província reunido em conselho. Entre elas estava a

catequese de indígenas.

Art. 24 – Tratar-se-ão pelo Presidente em Conselho todos os objectos que demandem exame e juizo administrativo, taes como os seguintes: [...]

33 Reproduzido in.: CUNHA, 1992, p. 111. 34 Apud CUNHA, 1987, p. 67. 35 Idem, ibidem.

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§ 9: Promover as missões e catequese dos Indios, a colonisação dos estrangeiros, a laboração das minas, e o estabelecimento de fabricas mineraes nas Provincias Metaliferas. [...]36

A existência de legislações pontuais, como a acima citada, relativiza a autogestão dos

indígenas entre 1798 e 1845, mencionada por alguns autores37.

Entretanto, somente a partir da década de 1830, com a revogação das Cartas Régias

de D. João VI, a legislação indigenista passou a apresentar modificações em relação à

herança dos portugueses. Um Decreto da Assembléia Geral Legislativa, sancionado pelo

Senado, revogou a Carta Régia de 5 de novembro de 1808 e aboliu a servidão indígena por

Guerra Justa nos arredores de Lages. Em outubro de 1831, o mesmo decreto foi sancionado

pela Regência Trina e, sofrendo pequenas modificações, ganhou força de Lei ampliando a

revogação para as Cartas Régias de 13 de maio e 28 de dezembro de 1808.

27/10/1831: Lei – Revoga as Cartas Régias que mandaram fazer guerra, e pôr em servidão os índios A Regência, em nome do Imperador, o Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os

súbditos do Império, que a Assembléa Geral Legislativa Decretou e Ela sancionou

a Lei seguinte: Art. 1º - Fica revogada a Carta Régia, de 5/11/1808, na parte em

que mandou declarar guerra aos Indios Bugres da Província de São Paulo [...].

Art. 2º - Ficam também revogadas as Cartas Régias de 13/05 e de 2812/1808, na

parte em que autorizam, na Província de Minas Gerais, a mesma guerra [...]. Art.

36 Reproduzido in: CUNHA, 1992, p. 109. 37 Cíntia Régia Rodrigues (1999, p.50), por exemplo, afirmou que entre a revogação do Diretório Pombalino e o

Regulamento das Missões, os índios teriam vivido sob um autogoverno. Entretanto, as prolongadas análises feitas por Manuela Carneiro da Cunha sobre a legislação indigenista no século XIX, apresentaram uma elaborada hierarquia de cargos normalmente providos por não índios, demonstrando que os agentes com poder sobre a questão indígena no Brasil eram indivíduos ligados ao governo central, ou, em alguns casos, o próprio imperador.

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3º - Os índios [...] em servidão, serão dela desonerados. Art. 4º - Serão

considerados como órfãos, e entregues aos respectivos juízes [...]. Art. 5º - Serão

socorridos pelo Tesouro do preciso, até que os Juízes de Órfãos os depositem onde

tenham salários ou aprendam oficios fabris. Art. 6º - Os Juízes de Paz, nos seus

Distritos, vigiarão e acorrerão aos abusos contra a liberdade dos índios. [...]

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos 27 dias do mês de Outubro de 1831,

décimo da Independência e do Império. Francisco de Lima e Silva, José da Costa

Carvalho, João Braulio Muniz.38

A Lei regencial de 1831, como pode ser visto, reavivou a tutela orfanológica, não

apenas por equiparar a condição civil dos indígenas a dos órfãos, mas, também, porque a

própria pessoa do índio passava a ser encargo dos Juízes de Órfãos, salvo nos casos de

abusos contra a liberdade dos indígenas, ocasiões nas quais a questão deveria ser julgada

por um Juiz de Paz. Ainda na década de 1830, os assuntos referentes aos indígenas se

tornaram definitivamente de responsabilidade dos juizados de órfãos. Com os decretos de

1832 e 1833, foram extintos, respectivamente, os cargos de Ouvidores de Comarca e

encarregados os Juízes de Órfãos da administração dos bens dos índios, que anteriormente

era feita pelos sobreditos Ouvidores.

Apesar da reafirmação da condição jurídica de órfãos para os indígenas e a

transferência da tutela deles e de seus bens para uma instância regional de poder, a dos

Juizados de Órfãos, legislar sobre a catequese e a civilização de indígenas permanecia uma

exclusividade do poder central. As câmaras provinciais podiam apenas propor dispositivos

38 Reproduzida in: CUNHA, 1992, p. 137.

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legais que precisavam ser sancionados pela Assembléia Geral e pelo Imperador. Em 1834,

as Assembléias Provinciais conseguiram um avanço significativo na descentralização da

questão. O artigo 11 do Ato Adicional de 1834 atribuiu autonomia às Assembléias

Legislativas Provinciais para legislar, cumulativamente à Assembléia Geral, a respeito da

catequese e da civilização de indígenas.

A possibilidade da existência de uma legislação provincial sobre a questão indígena

foi uma vitória para as elites locais que, naquele período em que a propriedade da terra era

uma questão importante, passaram a poder também legislar sobre a formação e organização

de territórios reservados aos índios. Conforme Manuela Carneiro da Cunha: “Mais

próximas do poder local, não é de admirar que as Assembléias Provinciais tenham legislado

em detrimento dos diretos indígenas, em particular extinguindo sumariamente aldeias para

se apropriarem de suas terras”.(Cunha, 1987, p. 69)

Os Decretos de 1831 e 1833, mais o Ato Adicional de 1834 foram as legislações mais

representativas que abarcaram a questão indígena até 1845. Nenhuma delas alterou em

profundidade a concepção que se tinha do trato com os indígenas, mantendo a mesma

estrutura e importância dada à questão no período colonial e no Primeiro Império.

O Decreto N.º 426, de 24 de julho de 1845, contendo o Regulamento Acerca das

Missões de Catequese e Civilização dos Índios39, representou o primeiro instrumento legal

indigenista do Império que foi concebido para ser aplicado em âmbito geral. Porém, o

39 O Anexo A, deste trabalho, apresenta uma reprodução integral do Regulamento das Missões de 1845.

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alcance desse Regulamento não pode ser superestimado, sendo ele mais um regimento

administrativo detalhado do que uma nova política indigenista propriamente dita.

O Regulamento pareceu ter vindo tardiamente para atender aos anseios, tão presentes

no primeiro reinado, de parâmetros gerais para o tratamento da Questão Indígena. O

Decreto N.º426 serviu, na realidade, para oficializar, ao nível de postura geral do Império,

as mesmas concepções usuais que vigoraram anteriormente. Foi mantida a política

integracionista que visava a assimilação dos indígenas através da sua concentração em

aldeias, local onde esses seriam economicamente integrados à produção agrícola. Depois de

1845, a criação de estabelecimentos destinados à sedentarização e colonização de indígenas

ganhou impulso, pois se tornara uma diretriz apoiada legalmente pelo Regulamento das

Missões.

Legalmente amparadas pelo Decreto Nº 426, as províncias passaram a intensificar a

política de concentração de indígenas em territórios controlados pelo governo. Esse

processo de intensificação na criação de novos aldeamentos estava associada à necessidade

de terras disponíveis, conseqüência do deslocamento da ocupação do território para um eixo

mais central entre as prioridades do Império.

Com a intensificação da política de aldeamentos, depois de 1845, os grupos indígenas

que ainda vagavam pelos sertões foram desalojados das áreas a serem ocupadas pela

ampliação das propriedades agrícolas e pela instalação de novas colônias. Esse processo

também garantiu uma relativa pacificação dos conflitos entre indígenas e integrantes das

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frentes de expansão e pioneira40 que adentravam as regiões não colonizadas do sertão. A

intensificação da política de aldeamentos foi fundamental para a regulamentação da posse

da terra no Brasil, promovida pelo Império a partir da década de 1850. Como foi destacado

anteriormente, reunir indígenas em aldeias administradas por agentes oficiais foi uma

prática comum em toda a política indigenista aplicada no Brasil, assim, os grupos indígenas

eram conduzidos a um sedentarismo patrulhado que garantia terra vaga nos sertões.

Outro ponto importante do Regulamento das Missões era que, mesmo não destituindo

a competência legislativa das Assembléias Provinciais sobre a questão, o Decreto de 1845

marcava um relativo retorno do governo central ao domínio dos encaminhamentos dados à

Questão Indígena. Isto pois, pelos parâmetros estabelecidos no Decreto N.º426, a nomeação

dos altos cargos para o exercício da política indigenista dependiam da ratificação do

próprio imperador.

O Regulamento estabelecia a existência de cargos, como o de Diretor Geral de Índios,

cuja nomeação era exclusividade do Imperador. O laço entre Império e cargos da diretoria

de índios era ressaltado também pela atribuição de postos militares da Guarda Nacional aos

funcionários administrativos da diretoria geral e das aldeias.

Art. 11. Em quanto servirem, terão a graduação Honoraria, o Director Geral de Brigadeiro, o Director da Aldêa de Tenente Coronel, e o Thesoureiro de Capitão; e usarão uniforme, que se acha estabelecido para o Estado Maior do Exercito.41

40 O papel das frentes de expansão e das frentes pioneiras, bem como seus impactos sobre as populações

indígenas, serão analisados mais detalhadamente no item 2.4, do segundo capítulo deste trabalho. 41 Fragmento do Regulamento das Missões reproduzido in: Rodrigues, 1999. p. 33-41.

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As possibilidades de arrendamento das terras reservadas passaram a ser encargo do

Diretor Geral de Índios de cada província. Fazia parte, da alçada deste, verificar se, nos

aldeamentos estabelecidos, os índios tinham produção agrícola e se as terras disponíveis

para as aldeias estavam bem dimensionadas. Além disso, cabia-lhe decidir sobre a

manutenção desativação e/ou fusão de aldeias e sobre a necessidade de criação de novos

aldeamentos.

A administração dos bens dos índios, que na década de 1830 havia sido confiada aos

Juízes de Órfãos, passou a ser encargo da Diretoria Geral de Índios e, em parte, dos

Diretores de Aldeias, seus procuradores oficiais, nomeados pelo presidente de província

para representá-los diante dos órgãos de justiça e demais autoridades a partir daquele

momento. Pelo Regulamento, as terras das aldeias eram reservadas aos índios em usufruto,

sendo aberta a possibilidade de doação dos terrenos aos índios. Não se deve perder de vista

que os parâmetros estabelecidos para essa doação eram de difícil alcance, sendo

necessário, além de “bom comportamento”, que os indígenas cultivassem efetivamente a

terra por doze anos, com prazo estendido em caso de viuvez.42

Aos Diretores de Aldeias, cabia indicar índios para serviços públicos no aldeamento

ou fora dele, zelando para que o trabalho fosse remunerado. Mesmo não sendo parte de sua

42 Ver §15 Art. 1º do Regulamento das Missões, Anexo A deste trabalho.

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competência, era comum os Diretores intermediarem a contratação do trabalho de

indígenas para particulares.43

Em seu texto sobre poder tutelar no indigenismo brasileiro, Antônio Carlos de Souza

Lima (1995) destacou a confusão causada nas incumbências dos Diretores de Índios pela

vigência da escravidão. Essa permitia a compulsão oficial ao trabalho, muitas vezes gerida

sobre os índios pelo Diretor da Aldeia, que se autoprojetava na figura de um capataz, com

direitos de exploração do trabalho dos indígenas sob sua guarda. Assim, o trabalho

indígena em nenhum momento deixou de ser acessível para particulares. Houve apenas uma

mudança nos intermediários entre os índios e seus contratadores que, com o Regulamento

das Missões, passou dos Juízes de Órfãos para os Diretores de Aldeias.

Com a nova estrutura de cargos e funções, uma das modificações trazidas pelo

Regimento merece menção. O Império voltou a encarregar a Igreja de boa parte da

responsabilidade pela integração dos povos indígenas, e reafirmanda a máxima “catequizar

para civilizar”. Todos os aldeamentos deveriam contar com um missionário, detentor de um

rol de funções que iam desde o atendimento espiritual da aldeia, da responsabilidade pelos

registros civis e chegava a atuações na administração geral dos aldeamentos.

Art. 6º. Haverá hum Missionario nas Aldêas novamente creadas, e ns que se acharem estabelecidas em lugares remotos, ou onde conste andão Índios errantes. Compete-lhe: § 1º. Instruir aos Índios nas maximas da Religião Catholica, e ensinar-lhes a Doutrina Crhristã.

43 Nessa questão havia uma nítida confusão entre as antigas atribuições dos Juízes de Órfãos e as novas

atribuições dos Diretores de Aldeias. Os referidos Juízes sim tinham a incumbência de estabelecer acordos de trabalho, não apenas para índios, mas para todos os seus tutelados.

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§ 2º. Servir de Parocho da Aldêa, e seu Districto, emquanto não se crear Parochia. § 3º. Fazer o arrolamento de todos os Índios pertencentes a Aldêa, e seu Districto com declarações dos que morão nas Aldêas, e fora dellas; dos baptizados, idades, e profissões; e dos nascimentos, e obitos, e casamentos; para o que lhe serão fornecidos os livros pelo bispo Diocesano, pela caixa de Obras Pias. § 4º. Dar parte ao Bispo Diocesano, por intermedio do Director Geral da Provincia, do estado espiritual da Aldêa; representando as necessidades, que encontrar, e apontando as providencias, que lhe parecem mais proprias para occorrer a ellas. § 5º. Representar ao Director Geral, por intermédio da Aldêa, e necessidade, que possa haver outro Missionario, que ajude, principalmente se houver nas visinhanças Índios errantes, que seja nistér chamar á Religião, e a Sociedade. § 6º. Ensinar a lêr, escrever, e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que sem violencia se disposerem a adquirir essa instrucção. § 7º. Substituir ao Director da Aldêa, quando esteja impedindo o Thesoureiro, e nos casos, em que este o pode substituir.44

No quadro abaixo, está destacada a estrutura de cargos estabelecida pelo

Regulamento de 1845 para os aldeamentos no Império brasileiro.

44 Fragmento do Regulamento das Missões de 1845 reproduzido in: Rodrigues, 1999, p. 33-41.

DIRETOR GERAL DE ÍNDIOS

Nomeado pelo Imperador para cada Província.

DIRETORES DE ALDEIAS

Propostos pelos Diretores Gerais de Índios, mas nomeados pelos

Presidentes de Província.

MISSIONÁRIO

Solicitados pelos

TESOUREIRO ALMOXARIFE CIRURGIÃO

Propostos pelos Diretores Gerais de Índios, mas nomeados

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Figura 1: Organograma de cargos a serem preenchidos nos aldeamentos indígenas

no Império do Brasil a partir do Regulamento das Missões

Apesar de ter restabelecido a predominância do governo imperial sobre a Questão

Indígena depois do Regulamento das Missões, os governos provinciais mantiveram seu

poder de influência nessa estrutura, como demonstra o quadro acima. Além dos cargos que

dependiam da nomeação do governo provincial, as terras que seriam destinadas aos novos

aldeamentos e a manutenção ou ampliação das aldeias mais antigas continuavam passando

pelo crivo dos Presidentes de Província e das Assembléias Provinciais.

Outros dois dispositivos legais do século XIX assumiram grande relevância diante da

Questão Indígena: a Lei n.° 601 de 18 de setembro de 1850, mais conhecida como Lei de

Terras45, e seu Regulamento, o Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854.

A Lei n.º 601 de 1850 redirecionou a ocupação territorial brasileira e estabeleceu novos

princípios para a ocupação e o registro da terra em todo o Império, os quais afetaram

diretamente as terras dos índios. Isso se deveu aos parâmetros estabelecidos para o registro

das posses, que excluíam os indígenas da possibilidade de acesso legítimo e privado a terra.

Entre os princípios estabelecidos pela Lei de Terras, estavam a revisão do conceito de

terras devolutas e a inserção do princípio do registro de imóveis.

45 O Anexo B deste trabalho contém excertos da Lei de Terras relevantes para a Questão Indígena.

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A Lei de 1850 voltou a afirmar a reserva de terras para a colonização e catequização de

indígenas, sendo que elas deveriam ser registradas como tais pelos Diretores das Aldeias. Na

prática, esse registro foi diversas vezes negligenciado ou feito de maneira irregular.

Essas terras deveriam ser reservadas em terrenos devolutos e concedidas em usufruto

aos indígenas, sendo as mesmas demarcadas preferencialmente nas mesmas áreas onde eles

estivessem arranchados. Mas a preferência de fixação dos indígenas em terras já ocupadas

por eles, que aparecia em diversos decretos e leis desde o início do século XIX e voltava a

ser reafirmada em 1850, representava uma contradição interna da Lei de Terras. Ao mesmo

tempo em que era dada a preferência dos índios sobre suas terras, a lei estabelecia que os

simples roçados e arranchamentos, característicos das aldeias indígenas, não configuravam

posse legitimável dos terrenos.

A Lei de Terras aparecia ainda como uma reedição do integracionismo característico da

política indigenista imperial em pelo menos dois pontos. O primeiro deles, quando reafirmou

a implementação de aldeias para “catequização e colonização” de índios, o que, seguindo a

lógica corrente no século XIX, podia ser entendido como sinônimo de “civilização” de

indígenas. O segundo, reafirmado novamente no Decreto n.º 1318 de 1854, afirmava que as

terras destinadas a aldeamentos deveriam ser reservadas em usufruto aos índios, podendo no

futuro passarem a sua posse conforme permitisse seu estado de civilização.

Art. 72 “serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas nos distritos onde existem hordas selvagens”.

Art. 75 “ As terras reservadas para colonisação de indígenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu uso fructo; e não poderão

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ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permittir o seu estado de civilização”.46

Certamente, não se pode afirmar que a legislação indigenista brasileira do século XIX

integrava algum projeto de desenvolvimento nacional do Império. Entretanto, se, ao tratar

da integração econômica dos “espaços vazios” do território brasileiro promovida pelo

Império, não foi possível indicar uma intencionalidade na edição do Regulamento das

Missões pouco antes da Lei de Terras, podia-se ao menos afirmar que essas leis não

atingiram a sociedade brasileira de forma desligada uma da outra. Isto porque o registro

das terras se beneficiou com a redução dos territórios indígenas promovida pelo governo

imperial através do Regulamento das Missões.

46 Fragmento do Decreto de Regulamentação da Lei de Terras apud CUNHA, 1987, p. 68.

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2 O RIO GRANDE DO SUL NO SÉCULO XIX

Neste segundo capítulo, são apontados o processo de expansão territorial pelo qual o

Rio Grande do Sul foi anexado à colônia portuguesa na América e a forma como foi

integrado economicamente ao Império brasileiro o planalto sul-riograndense, região onde

estavam localizados os aldeamentos indígenas instalados na província durante o século XIX.

Devido às características oscilantes da política indigenista brasileira, tornou-se

necessário, para a condução de uma análise do tratamento dado aos índios no Rio Grande do

Sul no século XIX, apresentar o contexto regional em que a problemática indígena estava

inserida naquele período. Essa análise foi balizada pelos dois pontos norteadores das disputas

em torno da questão indígena no Brasil, a posse da terra e a formação de mão-de-obra.

No primeiro item do texto, é abordada a expansão territorial lusitana na América em

direção aos sertões do centro-sul e o panorama em que se deu a incorporação do território

sul-riograndense aos domínios portugueses.

A seguir, é analisada a ocupação da terra nos territórios já incorporados do planalto

gaúcho, bem como da integração econômica dos mesmos ao restante do Império. Nesse

momento, também estão indicados os impactos causados pela regulamentação da

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propriedade territorial promovida pela Lei de Terras a partir de 1850, no processo de

ocupação da terra no planalto rio-grandense e seus efeitos sobre as populações indígenas da

região.

O terceiro item do texto identifica os elementos componentes da reserva de mão-de-

obra livre na província de São Pedro, analisando as formas como os indígenas foram

integrados a essa massa de trabalhadores.

Complementando o enfoque da desterritorialização sofrida pelas populações nativas do

planalto gaúcho, o quarto item do texto descreve o avanço das frentes de imigração e

colonização em direção ao Vale do Rio dos Sinos, ao Vale do Caí e às escarpas da Encosta

Superior do Nordeste, analisando ainda os problemas entre imigrantes e índios, causados

pelo ingresso de colonos nos últimos redutos indígenas nas terras altas da Província durante

o século XIX.

Finalizando o capítulo, é abordada a situação dos indígenas, encurralados pela

ocupação de seus territórios tradicionais, suas reações diante dos contatos com as frentes de

expansão e ocupação, bem como a postura assumida pelo governo provincial diante do

problema.

2.1 Integração dos Sertões do Centro-Sul ao Domínio Português

O avanço dos portugueses para o interior do continente americano, iniciado pelas

entradas e bandeiras no século XVII, não causou desavenças entre índios e portugueses

exclusivamente a respeito da posse da terra. Essas expedições tinham outro interesse central,

como Sérgio Buarque de Holanda referiu: “[...] antes de tudo a vontade de corrigir os efeitos

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da carência de mão-de-obra para a faina rural o que fomentou muitos episódios próprios da

sociedade do planalto.” (HOLANDA, 1986, p. 26)

Mesmo considerando o alcance territorial bastante vasto, obtido pelas bandeiras no

século XVII, essas expedições não visavam, ao menos num primeiro momento, fixar

habitações ou feitorias. Considerando essas características, os enfrentamentos entre indígenas

e brancos giraram em torno da prea de índios promovida pelos bandeirantes.

A fixação de portugueses nos territórios do centro-sul se tornou mais efetiva a partir do

final do século XVII, com a descoberta das minas. Naquele momento, passaram a ser

instalados, no interior do sertão, feitorias, fortes, vilarejos e pousos. Esse avanço territorial e

sua gradual integração ao domínio luso propiciou, conforme destacado por Lígia Osório

Silva (1996), além de um aumento das perspectivas econômicas portuguesas na América, um

considerável afluxo populacional para as regiões de mineração, bem como para as que a elas

se vinculavam. Em poucas décadas, os sertões do centro e do sul do Brasil atraíram uma

população que, apesar de instalada de forma esparsa, iniciou a exploração das possibilidades

econômicas daquelas regiões ligadas principalmente à prea de indígenas. Esse afluxo de

pessoas alterou o traçado da ocupação territorial, como podemos observar no mapa abaixo.

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Mapa 1: Avanço da ocupação territorial no Brasil pelos colonizadores. Fonte: MELATTI, 1993, p. 181.

A inserção dos territórios ao sul de Laguna no contexto econômico português do

período, que apareceu destacada no mapa a partir do século XVIII, esteve ligada ao início de

expedições que arrebanhavam o gado vacum, muar e bovino, concentrado naquela região

como resultado da ação dos jesuítas espanhóis. Assim, o tropeio de gado para as zonas de

mineração foi a atividade que iniciou a integração econômica dos territórios ao sul de

Laguna à colônia portuguesa na América.

A incorporação das regiões noroeste e oeste do Rio Grande do Sul aos territórios

portugueses teve início com o Tratado de Madrid, em 1750. O Tratado, feito para implantar

uma divisa natural entre o território espanhol e português, exigia a ocupação efetiva da terra

para garantir a posse portuguesa do território delimitado pelo tratado. Os tropeiros paulistas,

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que haviam se apossado do planalto paranaense na região de Guarapuava e se inserido nos

campos de Santa Catarina, incursionaram à região da margem esquerda do rio Uruguai em

busca de gado e, ali, se estabeleceram com estâncias, incentivados pela concessão de

sesmarias da coroa. Esses estancieiros passaram a deter o controle de grandes extensões de

terras salvaguardadas por peões militarizados que cumpriam uma dupla função, pastorear o

gado e, indiretamente, garantir os direitos portugueses estabelecidos pelo Tratado.

Apesar dessa presença portuguesa mais efetiva na região das antigas reduções desde

meados do século XVIII, foi a conquista das Missões por Borges do Canto, em 1801, que

definitivamente oficializou a ocupação portuguesa do território das antigas reduções

jesuíticas e das antigas estâncias missioneiras. No mapa abaixo, pode-se ver o avanço da

ocupação territorial no Rio Grande do Sul durante as primeiras décadas do século XIX.

Mapa 2: Avanço da urbanização e povoamento no sul do Brasil

entre 1801 e 1822. Fonte: Adaptado de HOLANDA, 1985, p. 377.

A ocupação daquelas regiões de campo realizou-se, segundo a historiografia

tradicional, através da concessão de sesmarias a militares como recompensa pela

Cidades

Vilas

Áreas sob influência de vilas ou cidades Áreas povoadas de forma relativamente estável, mas

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participação na conquista do território. Segundo Reichel (2000), em seu texto sobre a

privatização da terra no início do século XIX:

Saint-Hilaire ofereceu elementos para que a historiografia tradicional sul-riograndense definisse o caráter da expansão de território que estava se processando ao identificar a estância como unidade de produção predominante e que seu proprietário era um comandante da guarda de Santana. Ou seja, a privatização da terra se realizava através da concessão de sesmarias a militares, originando o grupo dos estancieiros-militares. (REICHEL, 2000, p. 130)

Essas unidades produtivas tinham suas atividades diretamente ligadas à criação de

gado, garantindo sua inserção na economia colonial através do comércio desses animais nas

regiões centrais da colônia.

A ocupação efetiva da região das missões, distribuída entre estancieiros-militares,

permitiu o avanço sobre as terras também no sentido oeste-leste, partindo da costa do rio

Uruguai para o interior do Rio Grande do Sul, dispersando ainda mais os remanescentes

indígenas das missões. Entretanto, essa ocupação não constituía uma apropriação privada dos

terrenos. Os militares que estabeleceram estâncias no noroeste do Rio Grande do Sul, no

período imediatamente posterior a conquista das missões, em geral, recebiam concessões

para ocupação das terras na forma de sesmarias. Em contrapartida, com essas concessões a

Coroa portuguesa esperava garantir a defesa daqueles territórios e a manutenção dos limites

estabelecidos, na segunda metade do século XVIII, pelos Tratados de Madrid e Santo

Ildefonso.

O processo descrito acima confirma uma peculiaridade da ocupação da terra no Brasil

já destacada anteriormente por Lígia Osório da Silva: “a propriedade territorial constituiu-se

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fundamentalmente a partir do patrimônio público” (SILVA, 1993, p. 14). Em outras palavras,

a constituição da propriedade da terra no Brasil se deu dessa forma, pois, até a

independência, a doação de sesmarias e a posse pura e simples eram os dois grandes

mecanismos de apropriação da terra no Brasil.

Proclamada a independência, as concessões de sesmarias futuras foram suspensas por

D. Pedro através de uma resolução imperial de 17 de julho de 1822. A partir daquele

momento e até 1850, a posse passou a ser a única forma de aquisição de domínio sobre a

terra. Esse período entre 1822 e 1850 foi, no Brasil, o momento de transição entre a

concepção da terra como propriedade do estado e a mercantilização da terra como

propriedade privada.

2.2 A Ocupação do Planalto Gaúcho e a Lei de Terras

Nas primeiras décadas do Império, a facilidade de acesso a terra e sua posterior

valorização causaram uma procura por novas áreas disponíveis. Essa busca por terras

impulsionou a população que se alojara na região das missões em direção do planalto

gaúcho47.

A ocupação dos campos do planalto se deu, geograficamente, a partir da costa do Rio

Uruguai, impulsionada pela redução das terras devolutas disponíveis na região das missões,

ocupadas entre 1801 e 1820 pelos militares que participaram da conquista do território

missioneiro. Com o esgotamento dos campos disponíveis na região das antigas reduções, a

47 Estão sendo tratadas aqui como Planalto gaúcho, as terras de campos nas regiões altas ao norte do atual

estado do Rio Grande do Sul. A ocupação desta região, localizada entre a Encosta Superior do Nordeste, o Rio Uruguai e os campos dos atuais municípios de Nonoai, Passo Fundo e Palmeira das Missões, é relevante para a contextualização deste trabalho, pois no século XIX estas áreas eram o reduto dos grupos indígenas que se tornaram alvo da intensificação na política de aldeamentos, desenvolvida pelo Império e pelo governo da Província, entre as décadas de 1840 e 1870.

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população que chegava à região foi forçada a procurar terras nas áreas que correspondiam ao

norte do município de Cruz Alta e, mais tarde, ao município de Passo Fundo, mais distantes e

isoladas em relação às primeiras estâncias estabelecidas depois da conquista.

A ocupação desses campos no planalto gaúcho foi relativamente lenta no período entre

1820 e 1850. Embora o acesso as terras estivesse facilitado pela ausência de trâmites

burocráticos depois da suspensão das sesmarias em 1822, o que fez da posse pura e simples a

principal forma de acesso a terra no Brasil, os campos do planalto gaúcho serviam apenas

como passagem e sua potencialidade econômica ainda não era plenamente conhecida.

Umas das dificuldades que se apresentava à inserção luso-brasileira nos campos do

planalto era a presença de indígenas hostis nas áreas de mato existentes entre os campos. Os

campos do planalto eram entremeados de florestas, terrenos inexplorados pelos brasileiros e

portugueses, pois não eram úteis para a atividade pastoril. Segundo Becker (1995, p. 61),

essas florestas eram povoadas, desde o século XVIII, por grupos Kaingangs hostis à

ocupação lusitana.

As dificuldades de acesso, o desinteresse econômico e os riscos acarretados pela

vizinhança hostil, somados ao tamanho e ao número ainda baixo de posses registradas pelo

Comando Militar das Missões na região do planalto até a metade do século XIX, servem para

demonstrar que a ocupação da região era bastante parca até 1850. Não se pode negar que os

registros sobre a ocupação dessas áreas sofreram a influência das dificuldades de fazer um

recenseamento preciso naquele momento. Mesmo assim, segundo dados apresentados por

Rückert (1997, p. 61), em 1847, nos campos de Passo Fundo, distrito de Cruz Alta, existia

uma população de apenas 1159 almas, um número bastante baixo, mesmo no período.

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É importante lembrar que esses números não contemplam a existência de lavradores

pobres e índios coletores de erva-mate. Essa população, que vivia dispersa nas florestas da

região, migrando em busca de novos ervais, com freqüência não aparecia nos censos de

almas em função das dificuldades que tinham de se fazerem presentes com relativa

assiduidade às Igrejas. Dados mais sólidos sobre quem eram os posseiros e o tamanho das

posses apareceram após a Lei de Terras de 1850, pois ela exigiu o registro dos terrenos

ocupados.

Na metade do século XIX, a posse estava consolidada como principal forma de

ocupação e apropriação de terras nas áreas de campo do planalto, tendo essa prática se

intensificado por volta da década de 1850. A partir desse momento, ela foi legitimada pela

Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, que dispôs sobre a regulamentação do registro de

terras no Império, a chamada Lei de Terras. A intensificação do apossamento dos campos

ficou evidente no ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, datado de janeiro de 1858, no

qual se informava o presidente da província de que “[...] neste município em campos não

existe terreno devoluto algum, porém, Mattos, existem em abundância[...]”48. No mesmo

ofício, entre as áreas devolutas, cobertas de mato, citadas como mais bem situadas, estavam

o Mato Castelhano, a picada de Botucaraí e as margens dos rios da Várzea, Goioen e Passo

Fundo, na região de Nonoai, territórios historicamente ocupados por índios Kaingangs.

Depois da metade do século XIX, a posse da terra sofreu alterações substanciais,

trazidas pela Lei de Terras. A partir de então, uma maior precisão na demarcação entre terras

particulares e públicas pôde ser estabelecida. Daquele momento em diante, foi acelerada a

48 Fragmento do Ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, Janeiro de 1858 apud RÜCKERT, 1997, p. 73.

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legitimação das posses tomadas por grandes proprietários na região do planalto gaúcho como

resultado – entre outros fatores ligados a uma presença mais efetiva de brasileiros na região –

do próprio formato exigido para a regularização das possessões. Em seu Artigo 5º, a Lei de

1850 estabeleceu os parâmetros para legitimar as posses e determinou a revalidação das

ocupações realizadas através de sesmarias, no formato exigido pela Lei, mesmo para as

concessões anteriores à resolução de 1822.

[...] Art. 5º. Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou quem o represente, guardadas as regras seguintes:

[...] § 2º. As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indemnisação pelas benfeitorias. [...]49

Nem todos os sesmeiros regularizaram imediatamente suas terras, mas, certamente,

como efeito do Artigo 5º, boa parte dos concessionários sentiu o perigo de perder suas

possessões, ou de ter que disputá-las com outros posseiros. Entretanto, além de criar

condições para a legitimação das posses primárias, a Lei de 1850 estabelecia, no seu Artigo

6º, parâmetros específicos para a configuração da propriedade, os quais restringiram bastante

as possibilidades dos pequenos posseiros e índios legitimarem suas terras.

Art. 6º. Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva e morada habitual exigidas no artigo antecedente.50

49 Fragmento da Lei de Terras de 1850 apud RODRIGUES, 1999, p. 23. Grifos meus. 50 Artigo 6º da Lei de Terras reproduzido in: IOTTI, 2001. p. 112. Grifos meus.

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Os indígenas e os caboclos, que viviam do extrativismo nos matos da região e, assim

como os pequenos posseiros, não se enquadravam nos parâmetros exigidos no Artigo 6º,

ficaram impossibilitados de legitimar suas ocupações. Além das dificuldades legais, esses

habitantes das áreas de florestas ou de pequenas áreas de terra viviam, freqüentemente,

isolados devido às grandes extensões geográficas, tendo dificuldades para manter a

comunicação com as sedes paroquiais e freqüentar regularmente as Igrejas, encarregadas de

divulgar a Lei.

Em razão dessas dificuldades, os pequenos posseiros ficaram sabendo mais

tardiamente dos efeitos da lei sobre suas áreas de ocupação e atividades produtivas, bem

como dos efeitos nocivos que os parâmetros estabelecidos pelo Art. 6º tinham sobre seus

direitos as terras. Como ressaltado no texto da Lei, os roçados, derrubadas ou queimadas de

matos ou campos, ranchos ou outros semelhantes não configuravam posse útil da terra e,

portanto, os indivíduos que assim dispusessem dos terrenos não tinham uma ocupação

territorial legitimável.

As exigências de cultura efetiva, bem como de domicílio fixo, criaram uma grande área

de terras disponíveis para apropriação nos campos e matos de uso comuns habitados por

caboclos e índios. Estas áreas passaram a ser vistas pelos grandes proprietários, que

almejavam aumentar suas possessões anteriores, como terrenos devolutos, facilmente

apropriáveis dentro dos padrões de ocupação considerados úteis pelo Império. Em diversos

casos, a comprovação da “cultura efetiva” não ultrapassava a presença extensiva de gado

pastoreado por um ou dois peões agregados, estabelecidos na região sob a bênção dos

estancieiros, o que configurava a exigida “morada habitual”. Essa prática se tornou comum,

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visto que a Lei permitia a legitimação da posse pela presença tanto do respectivo posseiro,

quanto pela de um seu representante.

[...]morada habitual do respectivo posseiro, ou quem o represente, guardadas as regras seguintes:

§ 1°. Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado, ou do necessário para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contigo, [...]51

O princípio da Posse Útil ressaltava mais uma vez a função da Lei de 1850 como

mecanismo de criação de um mercado de terras, necessário à expansão da agricultura

mercantil e capitalista que se desenvolveu no século XIX. As necessidades de expansão

dessa economia agrícola exigiam a reserva de novas terras apropriáveis pelos latifúndios em

todo o território do Império. A reserva de terras apropriáveis foi feita pela exclusão dos

habitantes dos sertões das possibilidades de acesso à propriedade, ou seja, pela restrição das

possibilidades de índios e caboclos se apropriarem das terras.

O Planalto rio-grandense participava de forma secundária na economia

agroexportadora desenvolvida no restante do Império. Sob este olhar, estando voltada para o

abastecimento interno, a apropriação de grandes áreas de pastoreio criava o espaço ideal para

o fomento de um mercado complementar à grande lavoura desenvolvida no nordeste.

Seguindo esta lógica, seus terrenos estavam destinados a atividades que viessem a contribuir

para o desenvolvimento da grande lavoura agroexportadora, ou ainda, terrenos apropriados

para o plantio em larga escala de produtos considerados estratégicos pelo Império, como era

o caso dos campos de trigo no vale do Rio Pardo.

51 Fragmento da Lei de Terras de 1850 reproduzido in: IOTTI, 2001. p. 112. Grifos meus.

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A situação dos pequenos posseiros caboclos que habitavam as matas, além dos

problemas de comunicação e informação a respeito das possibilidades de legitimação de suas

áreas de ocupação e a descaracterização de suas atividades produtivas como ocupação útil

dos terrenos, aumentou a dificuldade dos moradores das florestas para regularização de suas

terras. Pode-se afirmar isso, pois boa parte desses caboclos vivia da extração da Erva-Mate

no interior das florestas, atividade que, apesar de sua representatividade como produto de

exportação para os mercados da Bacia do Prata, não configurava a posse útil segundo a Lei.

Esses caboclos não possuíam mais do que roças de subsistência, baseadas na agricultura de

coivara, para manutenção do núcleo familiar durante a exploração dos ervais em que estavam

trabalhando. Esgotadas as possibilidades daquela área, migravam para outro erval

descoberto, descaracterizando também a morada habitual.

Os indígenas passaram por dificuldades semelhantes. Apesar de terem territórios

assegurados pela Lei, garantia reafirmada pelo Regulamento da Lei de Terras de 1854, os

indígenas também foram impossibilitados de legitimar diretamente a posse de seus territórios

tradicionais, pois, seu modelo de produção, baseado na caça, coleta e pequenas lavouras de

subsistência, também não caracterizava posse útil dos terrenos.

A transformação da terra em bem comercializável no século XIX, parafraseando

Rückert (1997, p. 27), passou pela “destruição do território indígena e caboclo e à construção

de novas e diferentes formas fundiárias”, bem como pela renovação das formas de

apropriação legítima do solo a partir de 1850.

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61

Em ofício datado de 16 de janeiro de 1850, enviado pela Câmara Municipal de Cruz

Alta à presidência da província, foram prestados esclarecimentos a respeito do apossamento

de terras no planalto. Nele, era possível perceber como a presença de índios nos terrenos não

representava um empecilho, nem para o Comando Geral das Missões e nem para os grandes

posseiros:

[...] sendo o comandante geral de missões autorizado a conceder terrenos devolutos a quem os queira cultivar, e sendo este meio ainda mais fácil de obter terrenos a ele se recorriam todos que queriam obter terrenos. Este concedia a quem pedia desde que pela informação do comandante do distrito e resposta das áreas confinantes lhes constava estar o terreno desocupado, sem distinguir se pertenciam ou não a comunidade dos índios. [...]52

O ofício da Câmara de Cruz Alta deixava transparecer que, ao menos no Rio Grande do

Sul, a Lei de Terras legitimou práticas antigas de ocupação de territórios, práticas essas

existentes pelo menos desde o fim das concessões por sesmarias em 1822.

O avanço do apossamento das áreas ocupadas por caboclos e indígenas chegou a gerar

conflitos entre os grandes posseiros e as municipalidades, sendo freqüente, nas atas das

Câmaras Municipais, pronunciamentos defendendo índios e caboclos, principalmente quando

esses apareciam ligados à atividade de extração de erva-mate. O confronto entre as elites

regionais do planalto não se devia a uma conscientização das municipalidades quanto à

defesa dos cidadãos regidos por sua autoridade, mas sim, ao fato de que a receita arrecadada

com a tributação sobre a produção de erva-mate no século XIX revertia para as Câmaras

Municipais. Para a viabilidade do negócio, foram mantidas áreas de florestas sob a

52 Ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, 16 de janeiro de 1850 apud RÜCKERT, 1997,

p. 63. Grifos meus.

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administração municipal, com o status de terras públicas reservadas para uso comum. Essas

terras de uso comum passaram a representar um espaço de exploração extrativista para a

população expulsa dos campos e que vivia da produção dos ervais. Essa recebia relativa

proteção das autoridades municipais, visto a relevância da erva-mate como produto de

exportação e atividade promotora de receita para as Câmaras Municipais.

A representatividade da erva-mate para a economia regional não poderia ser

desprezada, pois, mesmo não sendo um produto de interesse direto para os centros

agroexportadores do Império, os ervais figuravam como um dos principais produtos de

exportação da província ao lado da produção pecuária, durante todo o século XIX. Entre

1860 e 1871, a arrecadação proveniente do imposto sobre a erva-mate foi de 35:029$93253,

monta expressiva se comparada com outros produtos.

Entretanto, mesmo com a esporádica defesa das parcelas menos favorecidas da

população por autoridades municipais, a mercantilização da terra teve forte impulso com a

aceleração das posses depois de 1850. O preço do hectare subiu 23,4% entre 1851 e 1881,

conforme nos mostra Zarth (1997, p. 91), ao acompanhar a evolução do preço da terra a

partir de inventários post-mortem. Era possível comprar 1 (um) hectare de campo por 500

réis em 1851, sendo o mesmo campo avaliado em 617 réis no início da década de 1880. A

valorização das terras foi uma conseqüência previsível do processo de privatização das

mesmas promovido pelo Império. A redução dos territórios possíveis de apropriação tornou a

terra uma mercadoria com valor em ascensão.

53 Dados extraídos de: ZARTH, 1997, p. 57.

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Com a escassez de espaços disponíveis para a massa de caboclos, índios e pequenos

posseiros acelerado pela legitimação das posses, essas populações foram transformadas em

habitantes de terras alheias. As dificuldades de acesso à propriedade fundiária que foi

imposta à massa de habitantes oficialmente despossuídos a conduziu a um papel determinado

na economia regional: complementar a formação de uma reserva de mão-de-obra livre,

controlada pela impossibilidade de acesso direto a terra e pelos vínculos de dependência

estabelecidos entre a população e os estancieiros, legítimos proprietários das terras.

2.3 Mão-de-Obra Livre e Despossuída no Rio Grande do Século XIX

Com as dificuldades de acesso à propriedade dos terrenos, os caboclos e indígenas

habitantes das terras de mato passaram a complementar, no cenário rio-grandense do século

XIX, a reserva de mão-de-obra livre. A formação dessa massa de trabalhadores despojados

iniciara com o tropeio de gado e o declínio das reduções jesuíticas no século XVIII.

Os índios guaranis viviam nas reduções de forma bastante precária depois da expulsão

dos jesuítas, facilitando o seu desalojamento do território. Martini (1993) fala em

missioneiros organizados nos povos até 1828. Esses indígenas missioneiros se transformaram

em peões de estância, guias de tropeiros e agricultores trabalhando como temporários. Sua

experiência com o gado os qualificou como uma mão-de-obra disputada. A mesma autora

descreveu os indígenas habitando rancharias no interior das matas, áreas essas que haviam

ficado para trás na ocupação inicial dos campos e estâncias pelos portugueses.

Assim, boa parte dos índios remanescentes das reduções jesuítico-guaraní passou a

viver nas áreas de mato no período a partir da primeira ou segunda década do século XIX,

mantendo relações comerciais ou de trabalho com os colonizadores das áreas de campo,

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sobrevivendo da extração e comércio de erva-mate, da lavoura de subsistência, do trabalho

temporário remunerado ou, ainda, das três atividades alternadamente.

O extrativismo não era uma exclusividade de trabalho dos indígenas que ocupavam as

matas. Viviam também, nesse ambiente, os caboclos nômades, atraídos para a região durante

a ocupação inicial e marginalizados pela distribuição de terras.

A manutenção dessa massa de trabalhadores habitante das matas foi possível pelas

características da produção ervateira e agrícola no período. Para esses camponeses

expropriados, os ervais, que permaneceram de domínio público até bem avançada a segunda

metade do século XIX, tornaram-se uma fonte de renda viável.

O aumento do volume de erva extraído dos matos despertou a atenção dos

comerciantes da região, que passaram a instalar depósitos para exportação de erva.

O ervateiro, pouco ou nada capitalizado, impossibilitado de deslocar sua produção até

os mercados platinos – grandes centros consumidores do produto – passou a vender a sua

produção aos comerciantes de erva instalados na região do planalto. Esse comerciante, em

geral, era o proprietário dos armazéns e das casas de comércio onde os camponeses

adquiriam bens de consumo – como ferramentas, farinhas, sal e fazendas, – criando um

círculo vicioso para o trânsito de valores, que não raramente redundava no acúmulo de

dívidas por parte dos ervateiros e comprometia parte das safras futuras. Com a concentração

das atividades comerciais em seus depósitos, os proprietários dos armazéns tinham relativo

domínio sobre a extração de erva-mate, através da manutenção das dívidas dos camponeses.

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A mão-de-obra indígena envolvida na coleta e comercialização de erva-mate, até a

década de 1840, era basicamente composta por guaranis provenientes das antigas reduções

jesuíticas. Com o avanço do processo de apossamento dos campos em direção ao Planalto

gaúcho, os índios Kaingang, que habitavam a região norte da província, tornaram-se uma

outra opção de braços para o trabalho nos ervais.

A inserção dos Kaingang no mercado ervateiro regional se deu como conseqüência da

intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul, principalmente depois de

184554. Em suas correspondências aos presidentes da província, os Diretores de Índios do

Rio Grande do Sul descreveram o envolvimento dos Kaingang aldeados no circuito de

produção da erva-mate, se não como produtores, como mão-de-obra em ervais privados

próximos dos aldeamentos.

[...] aldeamento dos indios em Nonohay

[...] No correr da estação do inverno, occupão se estes na preparação da herva matte ou a fazem por conta propria vendendo=a no mercado, ou se ajustão mediante um salário determinado: e em o tempo das plantações dos sereaes, d’elles cuidão com a mesma actividade.[...] Directoria Geral interina dos indios em Nonohay, 16 de Novembro de 1868.55

Observei na guarita que os Bugres tem bastante confiança na gente d’aquella visinhança, que tem tido bastante prudência p.ª os attrair, e não sei que até agora se lhes tenhão dado motivo de escandalo: assim he que se acostumão alugar p.ª trabalhos nos hervaes, e se

54 A intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul a partir da década de 1840 será abordada

com maior proximidade no item 2.5 deste capítulo. 55 Relatório do diretor de índios de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao presidente da

província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.

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estima seu trabalho a causa da facilidade que elles tem de trepar nas arbores p.ª desgalhar a herva.56

A inserção dos indígenas no mercado de trabalho como ervateiros, através da política

de aldeamentos do Império, trouxe à tona uma questão dedutível do encontro de índios e

caboclos no interior das florestas: a existência de disputas pela ocupação dos ervais, bem

como do espaço para as roças de subsistência dessas populações no interior das matas. Essa

disputa certamente acarretou enfrentamentos entre ervateiros caboclos e ervateiros indígenas

provenientes tanto dos aldeamentos – que a partir da década de 1840 são formados

predominantemente por grupos Kaingang – como remanescentes populacionais formados a

partir do abandono das antigas reduções.

[...]O Director Oliveira officiou ao director Geral, pedindo que, sollicitasse da Presidencia uma ordem pella que fosse prohibido por agora aos Portugueses entrar a fazer herva n’um grande herval que os Bugres descobrirão no matto que separa os campos da Guarita do Rio Uruguai. Julgo que esta providencia seria vantajosa desde já ao aldeamento, e logo também a todo o districto, pois deste modo elles mesmos abrirão estrada até o Rio para por elle transportar as hervas a S. Borja e a Uruguayana. A mais se evitaria qualquer desavencia com os outros hervateiros, que por isso não tem os Bugres querido abrir pique ou mostrar o dito herval se não he ao Sr. Oliveira.

Passo-Fundo 14 de Janeiro de 1851. Bernardo Pares PP. Miss.º 57

Os núcleos de extrativismo de erva-mate, apesar de terem gerado receitas

representativas e serem incentivados pelas Câmaras Municipais, tinham suas atividades

56 Correspondência do Padre Bernardo Pares ao presidente da província. AHRGS –

Catequese dos Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 57 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província. AHRGS – Catequese dos

Índios, 14 de janeiro de 1851. Maço 1

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restritas ao período de inverno, como afirmou o próprio diretor do aldeamento de Nonoai em

1868: “[...] No correr da estação do inverno, occupão se estes na preparação da herva

matte”58. Nas estações quentes, os índios aldeados, bem como os dispersos pelos matos e os

caboclos, se convertiam em agricultores independentes, cultivando roçados ou aproveitando

o espaço entre as ervateiras para a lavoura. Apesar da conotação de subsistência dessa

produção, era inegável a sua importância para prover tanto as estâncias como a população

dos centros urbanos com gêneros alimentícios provenientes da agricultura e que não eram

abundantes nas lavouras das fazendas.

O texto de Paulo Zarth sobre a História Agrária do Planalto Gaúcho recorta bem essa

dupla fonte de abastecimento interno das estâncias:

No interior da estância a produção agrícola livre era conduzida pelos peões posteiros, agregados que cuidavam do gado em pontos estratégicos da propriedade, em troca do direito de plantar e de alguma remuneração. [...] Por outro lado, embora extremamente fraco, o mercado de produtos agrícolas existiu através de agricultores pobres da região. [...] (ZARTH, 1997, p. 115)

Como destacado no fragmento de Zarth, a presença desta abundante reserva de mão-

de-obra favorecia aos estancieiros, também, devido ao estabelecimento de outro tipo de

dependência do peão caboclo em relação ao estancieiro. Além dos laços de dependência

comercial, firmavam-se laços baseados no uso da terra e na troca de serviços por produtos

alimentares ou de consumo. Paulo Zarth (1997, p. 170) ressaltou esse tipo de relação de

produção no planalto como fator constitutivo da figura do agregado. Neste tipo de relação de

58 Relatório do diretor de índios de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao presidente da

província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.

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trabalho, os caboclos e índios59 convertidos em peões recebiam permissão do estancieiro

para permanecer na terra, separando um pequeno lote para o cultivo de sua subsistência,

mantendo, no tempo livre, o pastoreio dos rebanhos do proprietário da terra, em troca de

alguma vaca, leite, ferramentas ou outros gêneros aos quais não teria acesso pela sua

produção direta.

Referindo ainda o mesmo texto, pareceu emblemático para a utilização da mão-de-obra

livre na forma de agregados ou de contratação temporária o exemplo da Fazenda Estrela,

citado pelo autor, que em 1866 contava com 3.600 cabeças de gado e apenas três escravos60

(Zarth, 1997, p. 115).

A constante afirmação da necessidade de compra de gêneros alimentícios nas

correspondências de Diretores de Aldeamentos revelava a participação dos índios Kaingang,

aldeados no século XIX, apenas como coletores e fornecedores de erva-mate neste escasso

comércio agrícola. As freqüentes aquisições de produtos para abastecimento das aldeias

demonstravam também que, apesar da existência de uma lavoura regular, principalmente de

feijão e milho, a produção raramente era suficiente para o abastecimento interno da aldeia

nas entressafras, impossibilitando a geração de excedentes comercializáveis.

59 O indígena que aparecia inserido nestas relações de trabalho como peão era o índio remanescente das antigas

reduções jesuíticas. Os aldeamentos que visavam a reunião de índios kaingang no norte da província, embora tivessem rebanhos bovinos, tinham uma produção interna direcionada para a lavoura de subsistência. A produção dos aldeamentos no Rio Grande do século XIX será melhor explorada no terceiro capítulo desta dissertação.

60 É importante ressaltar que a tradição pastoril do planalto gaúcho, em geral, exigia um emprego relativamente baixo da mão escrava, não apenas pela abundância de mão-de-obra formada pela legião de caboclos e índios despossuídos, mas pela própria natureza da atividade pastorial. Entretanto, essas características de mão-de-obra não se repetem em toda a província, servindo como exemplo para um contraponto à região das charqueadas ao sul, onde o montante de escravos nas propriedades rurais era bastante representativo.

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Visto que na segunda metade do século XIX a reserva de mão-de-obra disponível para

as fazendas tinha sido formada principalmente por caboclos, habitantes das terras de mato e

engrossada por indígenas esparsos oriundos dos contínuos vai e vêm dos aldeamentos, essa

análise se alinha à interpretação de Souza Lima (1995, p. 99), onde a Lei de Terras de 1850 e

seu Regulamento de 1854 apareceram como dois dispositivos legais com profunda

importância, não apenas na efetivação da propriedade privada da terra, mas também na

formação de mão-de-obra destinada à subordinação nas grandes propriedades rurais do

Império. Assim, as grandes dificuldades enfrentadas pelos habitantes das florestas do

planalto para legitimar suas posses devidas à configuração de suas atividades produtivas, a

baixa freqüência com que compareciam às paróquias e a instabilidade de seus paradeiros,

somados à redução dos territórios indígenas pela intensificação dos aldeamentos, foram

determinantes para a formação da mão-de-obra livre na província do Rio Grande no século

XIX.

Essa mão-de-obra disponível para as fazendas, formada por índios e caboclos, apareceu

como elemento fundamental nas décadas finais do século XIX. Diferentemente dos centros

agroexportadores do Império, no planalto gaúcho, o escravo foi substituído pelo agregado –

em alguns casos assumindo ele mesmo esse papel – e não por imigrantes. Os imigrantes

europeus chegados na região dos vales, a partir da década de 1820, e mais tarde na região das

encostas e ao próprio planalto, vieram para compor pequenas propriedades rurais nas quais

se baseou o surgimento de um mercado agrícola no sul do Brasil. O projeto imperial que

inseriu imigrantes europeus no Rio Grande do Sul cercou definitivamente os remanescentes

populacionais indígenas alojados nas florestas do planalto e das encostas. Essa situação,

agravada pelo avanço da imigração em direção ao alto da serra, transformou o aldeamento na

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opção oferecida pelo Estado para os indígenas que ainda vagavam pelas florestas do planalto

e das encostas.

2.4 A Imigração e a Ocupação dos Vales e Encostas

Paralelamente à ocupação das terras do planalto pelas estâncias de gado, nas regiões

dos vales do Rio dos Sinos e próximas à encosta superior do nordeste, o governo imperial

passara a implementar um projeto de colonização com imigrantes europeus já a partir da

segunda década do século XIX. Visto que a habitação por grupos indígenas não representava

para o Império uma ocupação efetiva, a colonização européia foi mais uma estratégia

utilizada para preencher os “vazios” demográficos no sul e ao mesmo tempo constituir um

novo grupo social, destinado a desenvolver as regiões coloniais dentro de um modelo

econômico baseado na pequena propriedade agrícola com mão-de-obra familiar.

Inicialmente, essas propriedades tinham uma produção de subsistência, mas depois vieram a

constituir um mercado de abastecimento interno para a província e outras partes do Império.

Marcos Justo Tramontini (2000), ao avaliar o processo de imigração de alemães para o

vale do Rio dos Sinos, destacou três posições diferentes para os apoiadores da imigração: A

importação de cultura européia para civilizar o sertão; a preparação para o final da

escravidão e o branqueamento da população.

Concretamente, a estratégia de imigrar europeus, adotada pelo Império, criou uma

classe de pequenos proprietários de terra, livres da influência dos grandes estancieiros e

dedicados a atividades comerciais agrícolas e, num segundo momento, também fabril.

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A escolha de imigrantes europeus, em detrimento dos caboclos despossuídos ou dos

indígenas habitantes do planalto e das encostas, foi resultado da mentalidade do período. Os

colonos europeus eram tidos como os portadores das habilidades e da capacidade de

modernização desejada para a agricultura nas terras “vazias” e improdutivas do Império.

Enquanto isso, índios e caboclos, com seus roçados e atividades extrativistas, representavam

tudo o que havia de selvagem e atrasado no sertão da província. Ela se fazia perceptível no

discurso corrente entre os indivíduos que orbitavam na corte, bem como nos meios

permeados pelo poder legislativo e executivo. A Decisão de 31 de março de 1824, ordenando

o estabelecimento de uma colônia alemã na Província de São Pedro, serve para exemplificar

a imagem que o Império fazia dos imigrantes europeus.

Decisão Nº 80 de 31 de março de 1824. Manda estabelecer uma Colônia de Alemães na Província do Rio Grande do Sul. Esperando-se brevemente nesta Corte uma Colônia de Alemães, a qual não pode deixar de ser de reconhecida utilidade para este Império pela superior vantagem de se empregar gente branca, livre e industriosa, tanto nas Artes como na Agricultura: E constando a S.M. o Imperador que o Terreno em que se acha o Estabelecimento do Linho Cânhamo na Província de S. Pedro, é o mais apropriado para nele se estabelecerem os mesmos Alemães [...] S.M. Imperial está muito certo da inteligência e zelo do Presidente de Governo, para duvidar um só instante que nele empregará toda a eficácia e esmero nesta Comissão que lhe dá por mui recomendada. Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de Março de 1824. Luiz José de Carvalho e Melo.61

Como conseqüência da opção imperial pelo elemento branco imigrado da Europa para

a ocupação das zonas coloniais, a população nativa formada por índios e caboclos

61 Documento reproduzido in: IOTTI, Luiza Horn. Imigração e Colonização – Legislação de 1747 a 1915.

Caxias do Sul: EDUCS, 2001. p. 79. Grifos meus.

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despossuídos permaneceu destinada a compor mão-de-obra para as estâncias ou a trabalhar

na preparação da estrutura para os projetos de colonização, abrindo estradas ou desmatando

áreas que seriam ocupadas pelos imigrantes.

Quanto aos papéis destinados aos agentes envolvidos no processo de colonização das

terras nos Vales do Rio dos Sinos e Caí, bem como nas terras das encostas, a análise feita

aqui se alinha à perspectiva apresentada por Zarth (1997, p. 33). Nela, os papéis foram

distribuídos de acordo com existência de duas etapas na ocupação do território, sendo a

primeira delas uma frente de expansão e a segunda uma frente pioneira62.

Nas áreas que viriam a ser colonizadas por imigrantes no Rio Grande do Sul, o papel

de integrante das frentes de expansão foi destinado aos caboclos empobrecidos e indígenas

que se engajavam em atividades remuneradas ligadas ao abastecimento da colônia, transporte

dos colonos e preparação da estrutura para os lotes nos períodos de entressafra do

extrativismo ou de suas roças. A existência dessa frente de expansão não ficou restrita às

primeiras colônias, estabelecidas na década de 1820 com imigrantes alemães no Vale dos

Sinos. A partir do final dos anos de 1820, quando iniciam os preparativos para a expansão da

62 O mesmo autor destaca sobre essa diferenciação que, as frentes de expansão e pioneira são na realidade duas

etapas de um mesmo processo de ocupação de novas terras, sendo possível separá-las apenas para fins de análise. Pode-se deduzir, seguindo o raciocínio de Zarth, que a diferenciação mais concreta entre as duas etapas se daria ao nível da solidez das relações entre os agentes e a propriedade da terra, bem como o nível de integração das atividades produtivas desses agentes ao mercado. Na etapa de expansão, a inserção no mercado é bastante reduzida, normalmente ligada a operações extrativas, sendo a apropriação da terra dada a partir de estatutos bastante precarizados. Mesmo assim seria a motivação do mercado, ou de uma perspectiva de mercado, que moveria a ocupação da terra. Por outro lado, a frente pioneira aparece dotada de uma intensificação migratória, acompanhada de uma crescente mercantilização da terra e da integração efetiva da produção ao mercado nacional. Nesta etapa, a produção agrícola sistematizada se sobrepõe ao extrativismo, alavancando a criação e o crescimento de um mercado de produtos e terras, se sobrepondo ainda o mercado de trabalho livre às formas existentes de trabalho compulsório. Apesar de Paulo Zarth desenvolver esta análise diante do panorama de ocupação de terras no planalto gaúcho, a participação de indígenas no reconhecimento de novas áreas para a colonização e desalojamento de grupos rivais ocupantes destas áreas, bem como o engajamento de índios e caboclos como mão-de-obra na abertura de estradas e desmatamento de terrenos, ambas as atividades desenvolvidas mediante remuneração, configuram uma frente de expansão relativamente engajada ao mercado de terras em formação nas áreas destinadas a imigrantes na Província de São Pedro no século XIX.

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empresa colonizadora rumo às encostas e, no final do século XIX, quando a imigração

chegou às áreas do planalto, foram comuns as descrições de diretores de índios sobre o

engajamento de indígenas aldeados tanto na abertura e na manutenção de estradas, como na

pacificação de grupos hostis ao avanço colonizador sobre as áreas de mato, onde atuavam

como intérpretes e até como bugreiros. Essa participação dos índios foi fundamental ao

avanço da colonização e era o papel para o qual foram destinados nesse processo.

Esses indígenas foram cooptados pela empresa colonizadora durante o avanço da frente

de expansão. Eram grupos Kaingang que se instalaram no planalto e nas encostas no final do

século XVIII e não tinham passado pelo processo de redução nas missões jesuíticas. Esses

Kaingang viviam em pequenos grupos ligados por laços consangüíneos, que habitavam as

terras de mato entre os campos e, por isso, permaneceram à margem do processo de

ocupação das terras vazias do sul até o começo do estabelecimento das colônias de

imigrantes europeus. Com a intensificação da ocupação de áreas no planalto nos vales e nas

encostas a partir de 1820, os Kaingang foram envolvidos pela política de aldeamentos do

governo imperial63. Depois de aldeados, eles foram engajados como mão-de-obra em vários

ramos de atividade, entre os quais, as frentes de expansão da empresa colonizadora.

O papel do pioneiro ficou reservado aos imigrantes europeus. Como referido por Zarth

(1997, p. 77), os “colonos imigrantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os

caboclos”. Porém, os colonos foram encaminhados por funcionários do Império aos lotes que

seriam de sua propriedade. Eles eram instalados em áreas próximas a mercados

consumidores, facilitando a comercialização da produção e, por conseqüência, o pagamento

63 Os conflitos entre índios e colonos e o processo de aldeamento dos grupos Kaingang do Rio Grande do Sul

será abordado mais profundamente no item 2.5 deste capítulo.

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das terras. Os imigrantes foram abastecidos e orientados para o desenvolvimento da atividade

agrícola, visando não apenas a lavoura de subsistência, mas, também, a atividade comercial

nas zonas de colonização. Essa estrutura preparada pelo Império mostra que o imigrante

europeu foi eleito para compor a frente pioneira. Esses pioneiros foram integrados à

economia imperial para formar, no sul, uma região abastecedora do mercado interno. Assim,

a ocupação das áreas vazias do Rio Grande do Sul tinha, além das conotações políticas

levantadas por Tramontini (2000) e citadas anteriormente, a perspectiva de formar o que

ficou conhecido como o “celeiro de abastecimento do Brasil”.

Em 1824, foi iniciado o projeto imperial de colonizar o vale do rio dos Sinos e a

encosta da serra com gente “branca, livre e laboriosa”, através da instalação de imigrantes

alemães na antiga Feitoria do Linho Cânhamo. Dois anos depois, em 1826, outro grupo de

imigrantes alemães foi instalado na Estância Velha, localizada entre a margem direita do rio

dos Sinos e a Costa da Serra. Essa rápida expansão da área destinada à colonização se devia

à velocidade com que avançava o contínuo envio de levas de imigrantes para as regiões da

Feitoria e da Estância Velha. O ofício emitido pelo diretor da colônia alemã em São

Leopoldo, em 17 de dezembro de 1829, dava conta do esgotamento das possibilidades de

distribuição de terras aos colonos na antiga Feitoria (que a essa altura já estava oficialmente

rebatizada como colônia São Leopoldo), bem como da expansão da colônia em direção à

serra geral:

[...] fazendo aberturas de comunicação com as distâncias de duas a três léguas da faldas da mesma Serra, ou dos lugares onde se termina o Campo: e se acontecer que prossiga a vinda de mais colonos, e com isso a necessidade de se aumentarem tais estabelecimentos mais extensão se deverá ganhar na Serra, por ser o único território que atualmente há a dispor. [...] e a mim compete-me indicar o meio, senão o mais apropriado para por aqueles Colonos acobertos de novas invasões porque para isso se dependeria de medidas que trariam grandes despesas, com que não podemos, e grandes delongas que se

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fazem incompatíveis com a urgência deste objeto, ao menos o que pode animá-los a fim de não recearem novas invasões de gentios.64

Devido à rápida expansão das colônias fundadas na primeira onda de colonização,

entre 1824 e 1847, quando foram fundadas as colônias de São Leopoldo, São João das

Missões, Três Forquilhas, São Pedro das Torres, São José do Hortêncio, Feliz e Novo

Mundo, os imigrantes europeus passaram a habitar regiões mais próximas da encosta ou,

mesmo, inseridas na serra. Essa proximidade das áreas de mato ainda pouco exploradas

desencadeou o processo de fricção interétnica65 entre os colonos e os indígenas habitantes da

região, mencionado no ofício pelo diretor da colônia de São Leopoldo. Esse processo foi

desencadeado, pois, com a ocupação dos campos no planalto e a rápida expansão das

colônias alemãs nos vales, a encosta da serra permanecia como um dos últimos redutos

Kaingang no Rio Grande do Sul. Os dois grupos mais citados na bibliografia que circulavam

naquela região eram comandados pelos caciques Braga e Doble. Esses dois grupos

permaneceram em contato contínuo com a frente pioneira pelo menos até quando foram

aldeados, respectivamente, em 1850 (no Pontão) e em 1849 (no Campo do Meio)66.

64 Fragmento de correspondência do Diretor da Colônia São Leopoldo, Tomás de Lima, ao presidente da

província em 1829 apud Tramontini, 2000, p. 91. 65 A utilização dada ao termo neste trabalho se alinha à elaboração de Roberto Cardoso de

Oliveira, a partir da qual toma-se por fricção interétnica o processo de articulação social entre minorias étnicas e a sociedade abrangente, centrando a análise no desenvolvimento das interações promovidas pelos contatos étnicos. O autor elaborou a noção vinculando-a às relações entre índios e às frentes de expansão que se desenvolveram no seio da sociedade brasileira, ressaltando o caráter de permanente instabilidade desse tipo de sistema interétnico, isto, pois, o dinamismo do sistema é proporcionado pela presença constante de antagonismos, que podem se apresentar de forma manifesta ou latente. Para uma apresentação mais aprofundada da noção de fricção interétnica, ver: OLIVEIRA, 1976, p. 57 – 58.

66 O aldeamento das lideranças Kaingang no século XIX não deve ser entendido como um marco final nos conflitos entre índios e brancos. Na realidade, os aldeamentos Kaingang apresentavam um contínuo entrar e sair grupos indígenas, determinado pela disponibilidade de recursos dos estabelecimentos. Para uma descrição mais detalhada da atuação dos Caciques Braga e Doble, ver: LAROQUE, 2000.

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A segunda onda de expansão da empresa colonizadora no século XIX, que resultou em

problemas de fricção interétnica com as populações indígenas, teve seu avanço entre 1848 e

1874. Dessa segunda onda, as colônias que tiveram contato mais direto com os

remanescentes indígenas foram as de Caí, Montenegro e Nova Petrópolis.

Os conflitos resultantes da abrupta redução territorial sofrida pelos indígenas são

exemplificados pelo número de colonos e funcionários do Império mortos ou seqüestrados

por indígenas no interior das áreas mais avançadas abertas para a colonização. Referindo-se a

esses conflitos na região de colonização alemã no vale dos Sinos, onde estavam as mais

proeminentes colônias européias da primeira metade do século XIX, Telmo Marcom

relembra que:

Entre 1829 e 1831, na região de São Leopoldo, foram assassinados 19 colonos, além dos feridos e das crianças raptadas. [...] Esse problema não se restringe apenas ao início da colonização, estando presente em todo o processo, principalmente até a consolidação dos aldeamentos [...].(MARCON, 1994, p. 67)

Naturalmente, os colonos que haviam sido instalados nas áreas mais afastadas foram as

mais constantes vítimas dos ataques indígenas. Existem diversas narrativas dos assaltos

promovidos por índios em propriedades agrícolas na encosta da serra, não sendo poucas às

vezes em que eles desalojaram colonos das propriedades a que tinham sido destinados,

provocando senão recuos, ao menos interrupções no avanço do projeto colonizador do

Império. O relato de Matthias Franzen, reproduzido no livro alusivo aos Cem anos de

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Germanidade no Rio Grande do Sul, traduz a situação de disputa pelas terras de mato na

serra travada na província no século XIX:

Estaríamos bem satisfeitos e felizes, não fossem os selvagens que há tempo tornaram as matas inseguras e já roubaram a vida de 21 dos nossos irmãos alemães. [...] Mostram-se especialmente interessados em surrupiar utensílios de ferro. Fogem do estampido das espingardas e têm muito medo delas. No dia 16 de abril deste ano, os selvagens mataram a uma distância de 4 quilômetros daqui (no Rosental), 11 pessoas, entre adultos e crianças. Por isso os alemães retiraram-se das colônias mais afastadas [...]67

Nesses assaltos às propriedades dos agricultores mais avançados na serra, eram comuns

os seqüestros de crianças, como destaca Ítala Becker (1976, p. 71). Ao abordar o problema,

cita o exemplo do ataque na Picada Dois Irmãos em 1831, onde foram mortos três

indivíduos, feridos mais dois e raptada uma criança, resgatada em Cima da Serra

posteriormente.

Diversos outros relatos da reação68 dos indígenas serviram de exemplos para os

problemas de fricção interétnica causados pelo avanço das frentes de expansão e pioneira em

67 Correspondência de Matthias Franzen 1832 apud AMSTAD, 1999, p. 81. 68 A idéia de reação aplicada neste trabalho não deve ser entendida com o sentido único de

resistência, pois busca dar conta da uma série de ações desenvolvidas pelos Kaingangs, e outros grupos esporadicamente, como conseqüência do processo de fricção interétnica durante a colonização das regiões ao norte do Rio Grande do Sul. Em alguns momentos, essas reações dos grupos indígenas envolvidos no processo apareceram na forma de negociações e até mesmo como acomodações dos modelos culturais intragrupais a realidade que lhes estava sendo apresentada. Um exemplo de acomodação pode ser destacado da postura colaboracionista assumida por algumas lideranças Kaingang durante o século XIX, que seguem o modelo pelo qual se escolhem os líderes grupais a partir da capacidade dos escolhidos em manter a subsistência do grupo. A semelhança entre as duas situações reside no fato de os Pay e Pay-bang, que atuaram em colaboração com o governo provincial, o fazerem normalmente pesando as possibilidades de recebimento de recursos – soldo, alimentos, roupas – além de garantias de segurança e terras aos seus seguidores. Nos momentos em que se escasseavam esses recursos os grupos ganhavam os matos, retornando a suas antigas áreas de roças, coleta, pesca e caça, deixando claro que

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direção a serra. Estes problemas decorrentes da disputa pela terra entre os imigrantes e

grupos indígenas historicamente alojados na região foram, antes de qualquer coisa, o

resultado da sobreposição das áreas destinadas aos colonos europeus e territórios

conhecidamente ocupados por índios.

2.5 Os Indígenas Encurralados pelas Frentes de Ocupação

Com a chegada dos imigrantes europeus, os índios coroados69 tiveram sua área de

circulação restrita aos redutos de mato, localizados entre os campos do planalto ocupados por

estancieiros e caboclos na extensa região que formava o município de Passo Fundo e as

frentes pioneiras de colonização dos imigrantes europeus. O Império tinha conhecimento da

presença indígena naquela área, detalhadamente descrita pelo engenheiro e agrimensor do

Império Alphonse Mabilde, que esteve na região entre 1836 e 1866. No fragmento abaixo, o

engenheiro descreveu um encontro com os indígenas em 1850:

[...] nas matas compreendidas entre os campos de Passo Fundo e os de Vacaria, cujos matos compreendiam o chamado Mato Castelhano – sempre foi o foco ou centro onde se concentravam os coroados – existia uma grande tribo daquela nação, sujeita ao cacique principal Braga. Ao sudeste destas matas e nas compreendidas entre as cabeceiras e as embocaduras do rio Turvo e rio da Prata, ambos tributários do caudaloso rio das Antas e, passando este último rio,

retornariam aos aldeamentos quando aqueles pudessem garantir o sustento do grupo. Como pode-se ver, ocorreu uma resignificação do papel de provedor do líder indígena, assumido pelo governo provincial para garantir a aliança entre índios os índios e a província, o que acomodava as necessidades do grupo a nova realidade imposta pela empresa colonizadora. Alianças desse tipo também podem ser verificadas entre grupos indígenas e fazendeiros, seguindo a mesma lógica de negociação de lealdade e não agressão. A idéia de reação aparece para dar conta, em um nível mais amplo, de posturas desse tipo, bem como de outros, assumidas pelos indígenas diante da sociedade colonizadora em expansão. Para outro exemplo de aplicação semelhante da idéia de reação, ver: LAROQUE, 2000, p. 43 – 80.

69 Nomenclatura generalizante onde foram englobados diversos grupos indígenas que habitavam o centro sul do país (Kaingang, Xokleng e etc.). Esses mesmos grupos são por vezes chamados de botocudos, bugres e outros nomes, apagando suas identidades grupais e substituindo-as por termos que, geralmente, são vistos como sinônimos de “índio selvagem”, “sem rei e nem lei”.

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até à margem direita do rio Caí, existiam outras tribos da mesma nação e subordinadas ao cacique principal Braga. [...] O cacique Braga alojou-se, com sua gente – 19 das 23 tribos subordinadas – nos pinherais da serra entre o rio das Antas e o rio Caí, onde ficou muitos meses, até que mudou o seu alojamento geral para o território compreendido entre o rio Turvo e o rio da Prata. Em fins de 1850, encontrei ainda ali, num território de menos de duas e meia léguas quadradas, o cacique Braga e as 23 tribos subordinadas. (MABILDE, 1983, p. 159)

Esses eram grupos Kaingang migrados do planalto paranaense para o Rio Grande do

Sul, como conseqüência da ocupação dos campos de Guarapuava, que os empurrou para as

áreas de mato ao norte da província São Pedro ainda no século XVIII.

Quando do início da ocupação efetiva destes territórios pelos luso-brasileiros, três

grandes grupos Kaingang estavam alojados na região, tendo suas áreas de circulação

relativamente definidas, como demonstra o mapa a seguir.

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Mapa 3: Áreas de circulação dos grupos Kaingang no Rio Grande do Sul. Fonte: Adaptado a partir de BECKER, 1976, p. 62.

Esses grupos eram comandados pelos Pay-bang Fongue – na região da Guarita, Pay-

bang Nonohay – nos campos que receberam o mesmo nome e Pay-bang Braga – líder do

maior dos três grupos, que ocupava as áreas entre o Rio Passo Fundo e a encosta da serra.

Teriam sido principalmente os grupos sob a influência do Pay-bang Braga os envolvidos em

confiltos com imigrantes europeus.

Dois desses, Fongue e Nonohay, segundo Becker (1976, p. 48), teriam migrado para o

Rio Grande do Sul num processo de reocupação territorial de áreas anteriormente utilizadas

por eles mesmos, vindos respectivamente do Paraná e de Santa Catarina. O grupo de Braga

tem origens incertas, sendo que Ítala Becker (1976, p. 53) cita um diálogo entre o Pay-bang

Braga e Mabilde, em 1850, no qual o velho índio descreve uma linhagem de sepultamentos

em uma clareira no Mato Castelhano. Pela descrição desta linhagem, feita por Braga, Becker

conclui que a ocupação Kaingang daquela área remontaria a meados do século XVIII.

Mesmo com seu território atravessado pelos caminhos das tropas e considerando os

assaltos a tropeiros promovidos pelos índios, os Kaingang haviam permanecido

Legenda: Grupo do Pay-bang Fongue

Grupo do Pay-bang Nonohay

Grupo do Pay-bang Braga

Área aproximada das antigas

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relativamente isolados no norte da província até o século XIX. Com a ocupação das terras de

mato pela atividade extrativista, os conflitos entre os grupos Kaingang e caboclos e, depois,

entre Kaingang e imigrantes, durante o século XIX, tornaram-se mais freqüentes.

No período entre a independência e a Lei de Terras, o governo do Rio Grande do Sul

destinou áreas para aldeamentos de índios Kaingang, em diversas áreas da região norte da

província.

Como já foi dito no primeiro capítulo, a intensificação da política de aldeamentos no

século XIX foi decorrente de uma necessidade de desalojar os indígenas das áreas a serem

ocupadas por estâncias e colônias, bem como pela necessidade de pacificar os conflitos entre

indígenas e integrantes das frentes de expansão e pioneira que adentravam a região. É a este

acréscimo no montante de estabelecimentos criados para sedentarização e civilização de

indígenas que está sendo denominado como intensificação da política de aldeamentos no

século XIX.

A reunião de índios em aldeamentos, prática comum na política indigenista brasileira,

levava os grupos indígenas a um sedentarismo patrulhado, garantindo a segurança de

estancieiros, peões e colonos alojados nos sertões. No caso do Rio Grande do Sul, foram

criados doze novos aldeamentos a partir de 1848, além de pelo menos mais sete, citados por

Ítala Irene Basile Becker (1995), sem datação confirmada.

Legenda:

1 – Conceição 2 – Inhacorá 3 – Estiva 4 – Campina 5 – Guarita 6 – Nonoai 7 – Serrinha 8 – Pinheiro Ralo 9 – Erexim

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Mapa 4: Localização aproximada dos aldeamentos indígenas criados no Rio Grande do Sul depois de

1845. Fonte: Adaptado a partir de BECKER, 1995, p.89.

O texto de Becker sobre o índio Kaingang no Rio Grande do Sul apresenta a criação

dos aldeamentos no norte da província, a partir da metade do século XIX, de forma bastante

detalhada. Entre os aldeamentos citados pela autora, os primeiros foram os de Tenente

Portela e Nonoai, criados respectivamente nas regiões da Guarita e dos campos de Nonoai,

ambos em 1848. Na Guarita foram reunidos cerca de 1000 índios que seguiam o Pay-bang

Fongue. Em Nonoai, o aldeamento foi iniciado com uma população de cerca de 144 índios,

dos grupos comandados pelos Pay-bang Nonoai e Condá.

A seguir, apareceram os aldeamentos de Santa Izabel e do Pontão, em Santo Antônio e

Lagoa Vermelha. Esses estabelecimentos foram criados, provavelmente, no ano de 1849,

abrigando uma população de 187 índios em Santa Izabel e 138 no Pontão. Não se teve

notícias sólidas sobre a origem dessa população, sendo possível indicar apenas que os índios

reunidos em Santa Izabel eram parte do grupo do Pay Doble.

No ano de 1850 foram criados os estabelecimentos do Ligeiro (Tapejara), Campo do

Meio (Marau), Campina (Palmeira) e Votouro (Erexim). Os dados sobre a fundação desses

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aldeamentos são bastante confusos, sendo possível confirmar apenas que, em 1850, haviam

no Ligeiro cerca de 90 índios reunidos. No Campo do Meio apareceram indicações de uma

população inicial de 400 índios, provenientes dos grupos comandados pelo Pay-bang Braga e

pelo Pay Doble. Entretanto, a documentação utilizada neste trabalho indicou que o Pay-bang

Braga, propriamente dito, se apresentou no aldeamento somente em 1851.

Seguindo ainda as indicações de Becker, apareceram os aldeamentos de Cacique Doble

e Caseros, criados em 1862, nas localidades de Machadinho e Lagoa Vermelha. Ambos

estabelecimentos iniciaram com uma população aproximada de 60 indivíduos, que haviam

migrado de Santa Izabel depois de sua extinção, em 1861.

Além desses, a autora cita ainda a criação dos seguintes aldeamentos: Inhacorá (1880 –

Santo Augusto), Estiva (Palmeira), Água Santa (Tapejara), Serrinha (Sarandi), Campos de

José Bueno, Erexim (Erexim), Ventarra (Getúlio Vargas) e Fachinal (Lagoa Vermelha).

A criação dos aldeamentos recebeu o apoio de três dispositivos legais na metade do

século XIX: o Regulamento das Missões, a Lei de Terras e o Regulamento da Lei de Terras

de 1854. Estes dispositivos estabeleceram os parâmetros gerais para aldear indígenas no

Império e, assim, completaram a estrutura para a liberação de territórios. Esse princípio, de

aldear para disponibilizar terras nos sertões, recorrente no indigenismo brasileiro foi,

segundo Paulo Pezat (1997), ressaltado pelo Regulamento de 1845.

[...] a política indigenista elaborada em 1845, através da criação da Diretoria

Geral de Índios, não priorizava o atendimento das reivindicações destes ou

mesmo sua incorporação à sociedade, e sim à liberação das terras que ocupavam

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para permitir a expansão da fronteira agropecuária. [...] desde o momento em

que os Kaingang [...] não puderam opor resistência à ocupação da região norte

do Rio Grande do Sul, as autoridades [...] passaram a atuar apenas nos

momentos críticos, sendo as demandas indígenas vistas como caso de polícia [...]

(Pezat, 1997, p. 130)

A Lei de Terras de 1850 também corroborou com a intensificação política de

aldeamentos, pois promoveu a regulamentação das terras para indígenas, sendo estas

reservadas tanto na Lei de 1850, quanto no seu regulamento de 1854, para a colonização de

indígenas: “Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º,

para a colonisação dos indigenas.”70

O registro das terras indígenas, em 1850, deveria ter sido feito pelos Diretores de

Índios, encarregados da administração das aldeias e procuradores dos índios desde 1845, mas

muitos não realizaram o registro das terras ou o fizeram indevidamente, abrindo espaço para

invasões de posseiros.

O que aparentemente poderia figurar como uma contradição da Lei de Terras, na

realidade, deixa claro o interesse do Império de remover do sertão os seus habitantes nativos,

permitindo a reocupação da região, pois, enquanto o texto legal reservava terras para os

índios, os expulsou de seus territórios tradicionais. É importante lembrar aqui que a posse era

a única forma de aquisição de domínio dos terrenos naquele então, mas que, pelos

parâmetros estabelecidos no artigo 6º da Lei de 1850, as ocupações indígenas não eram

70 Fragmento da Lei de Terras de 1850, reproduzida na íntegra in: IOTTI, 2001, p. 112.

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posses legalmente legitimáveis. A Lei de Terras exigia “cultura efetiva e morada habitual”71.

Pelas características culturais dos grupos indígenas que habitavam as matas do Alto Uruguai

e as encostas nessa época, profundamente ligadas à caça e a coleta, as ocupações indígenas

não atendiam às exigências para a legitimação.

A ocupação dos territórios ao norte do Rio Grande do Sul a partir de duas frentes

distintas ressaltava o interesse do império em liberar o sertão de seus habitantes primeiros.

Exemplo disso foi a abertura, em 1850, da estrada delineada pelo já citado Alphonse

Mabilde, ligando o Passo do Pontão, na costa do rio Uruguai, a Picada Feliz, no município

do Caí. O traçado da estrada cortava o território habitado pelos grupos do Pay-bang Braga e,

mesmo com a intenção de abrir uma via de ligação com a capital, o próprio Mabilde afirma:

Indo sempre na frente em descoberta encontrei trinta e quatro arranchamentos ou alojamentos de Bugres, em várias partes do Sertão, e todos bastante distantes entre si, porém, sobre uma mesma cordilheira. Resolvi abrir a Picada pelo meio daqueles alojamentos para assim ficarem todos devastados. O resultado foi ficarem mui descoroçoados os Bugres, e terem-se mais depressa decidido anuir ao convite que lhes fazia de se retirarem daquele Sertão como ao depois o fizeram.72

Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que as iniciativas para convencer os

indígenas a se aldearem nem sempre foram conflituosas. Fazia parte da política de

aldeamento de indígenas proposta pelo Império a atração dos índios através de dádivas e

presentes. Nos seus contatos com o grupo de Braga, durante a abertura da estrada do Pontão,

Mabilde também recebeu recursos da província para atrair os indígenas e convencê-los a se

aldearem. Em correspondência ao engenheiro datada de 24 de abril de 1850, a presidência da

província envia ferramentas e vestimentas para apoiar o contato com os indígenas:

71 Fragmento da Lei de Terras de 1850, reproduzida na íntegra in: IOTTI, 2001, p. 112. 72 Mabilde apud Becker, 1976, p. 54.

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O presidente da província, atento à precisão de não se afugentarem os indígenas, que têm aparecido e querido impedir o seguimento dos trabalhos da abertura da Picada, incumbe ao Engenheiro Alphonse Mabilde, os quais, mediante algumas roupas e mantimentos que se lhes distribuírem, se têm tornado mais razoáveis, não deixando contudo de fazer novas exigências; [...] sendo a despesa feita com essas roupas carregadas à mesma rubrica – Catequese e Civilização dos Índios[...]73

Esse processo de atração dos indígenas através de dádivas e presentes era uma prática

que se tornou amplamente utilizada, principalmente na segunda metade do século XIX, com

a intensificação da política de aldeamentos. O governo da Província apoiou essa prática,

seguindo, ao menos em parte, os procedimentos estabelecidos pelo Regulamento das

Missões. Além do apoio à atração de indígenas e de ter destinado terras para os aldeamentos,

o governo soube aproveitar, para o tratamento da questão, a presença de missionários

jesuítas74 no sul do Brasil, empregando-os na catequese dos Kaingang nos aldeamentos

estabelecidos ao norte da Província. Os aldeamentos criados na província, a partir de 1845,

recebiam ainda mantimentos, ferramentas, vestuário, tropas de bugreiros e recursos

financeiros.

Quanto aos grupos dissidentes dos aldeamentos, ou que apresentavam resistência para

se aldear, o governo da província lançou, repetidas vezes, ações coercitivas, utilizando

Companhias de Pedestres ou tropas de bugreiros civis. Nessas ações foi comum a presença

de chefes e caciques que colaboravam com o Império. Dois exemplos importantes de

73 Apud BECKER, 1976, p. 57. 74 Entre 1840 e 1867, padres jesuítas voltaram a atuar na catequização de índios no Brasil. As atividades

jesuítas foram concentradas nos aldeamentos Kaingang em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Os jesuítas dessa nova fase vieram para o Rio Grande do Sul depois de sua expulsão da Argentina por Rosas. A presença dos jesuítas era muito mais interessante para o Império como agentes civilizadores do que como evangelizadores. Digo isso sem perder de vista a recorrente prática de que era preciso atrair para catequizar e, assim, civilizar pela fé. A visão dessa prática como caminho para a assimilação indígena persistiu no Brasil, mesmo que de forma latente em alguns períodos, pelo menos até as ações positivistas conduzidas pelo SPI, já no século XX.

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colaboracionistas foram o Pay-bang Fongue e o Cacique Doble. Esses não são os únicos

exemplos de lideranças Kaingang que colaboravam com o Império, mas suas ações, em

parceira com as tropas de bugreiros, ou ainda, atuando como bugreiros, são conhecidamente

importantes dentro das políticas de repressão a índios hostis no Rio Grande do Sul.

Segundo Luís Fernando Laroque, em seu texto sobre as lideranças Kaingang no Rio

Grande do Sul durante o século XIX, as ações de grupos indígenas como colaboradores do

Império não fugia às estruturas culturais tradicionais Kaingang, nem mesmo quando lhes

atribuía oficialmente a condição de bugreiro. Era, na realidade, uma ação que unia a

possibilidade de acesso a bens e retribuições, inclusive financeiras, que de outra forma não

seriam acessíveis aos grupos indígenas, a traços culturais e conflitos políticos intestinos

desses grupos. Laroque usa o exemplo do Cacique Condá, bugreiro que conduziu Francisco

da Rocha Loures aos campos de Nonoai em fins de 1845, para afirmar que:

[...] a guerra contra as tribos inimigas de sua própria nação estava subjacente na cultura Kaingang. Nesse sentido, [...] podemos dizer que as atitudes tomadas pelo Cacique Condá nesses eventos não significaram que ele estivesse trabalhando a favor dos fóg, mas sim atendendo aos interesses da tribo a que pertencia [...] (LAROQUE, 2000, p. 111)

Apesar do esforço do governo provincial para remover dos campos do planalto e da

encosta da serra os índios que ali habitavam75, a manutenção dos grupos dentro de

75 A questão da mercantilização e ocupação das chamadas terras vazias, durante o século

XIX, não foi uma exclusividade do Império do Brasil. No período imediatamente posterior as independências das colônias européias na América Latina, a maioria das novas nações tiveram que redirecionar suas políticas de ocupação da terra. Tornou-se necessária uma reorganização das formas de utilização da terra que permitisse a expansão capitalista das fronteiras agrícolas. Para uma análise mais detalhada das modificações nas formas de ocupação da terra na região platina ver: REICHEL, 1993, p. 25 – 48. Nos atendo ainda a

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aldeamentos nunca chegou a ser plena. A necessidade da manutenção das tropas de

bugreiros, os constantes enfrentamentos entre brasileiros e índios, bem como as contínuas

migrações de grupos para dentro e para fora dos aldeamentos, demonstraram que nem todos

os índios haviam sido recolhidos aos estabelecimentos e nem convencidos a permanecerem

ali, não sendo raras as notícias de grupos que continuavam se abastecendo em residências ou

roças de colonos, de forma pacífica ou não, freqüentemente apoiados por outros índios já

aldeados.

região platina, na província Argentina de Buenos Aires o governo de Rosas adotou uma política orientada no individualismo liberal, abolindo as legislações específicas que protegiam os índios e seus territórios, os igualando aos demais cidadãos argentinos. Fora da proteção das legislações indigenistas, as terras dos índios puderam ser apropriadas durante a expansão das propriedades dedicadas a pecuária. Para aprofundar a situação dos indígenas diante da expansão capitalista nos territórios da argentinos ver: REICHEL, 2005, no prelo.

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3 A POLÍTICA INDIGENISTA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO

Este capítulo tem por objetivo identificar a política indigenista no Rio Grande do Sul

do século XIX, bem como as articulações ou tensões existentes entre as ações tomadas pelos

organismos provinciais e as propostas e encaminhamentos dados à Questão Indígena pelo

governo imperial. Para isso, foram analisados documentos produzidos pelos juizados de

órfãos, pela presidência da província e, principalmente, pelas diretorias de índios,

encarregados da aplicação da política indigenista durante o Império.

O conjunto de documentos analisados é formado por cinqüenta e cinco amostras

arroladas nos fundos da Justiça, Indígenas e da Presidência da Província, resguardados no

acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Nesses fundos documentais

foram consultados sessenta e oito maços, contendo correspondências e relatórios produzidos

no âmbito dos organismos acima citados entre 1834 e 186876.

76 A datação recortada foi com base nas amostras selecionadas e não na classificação utilizada pelo AHRGS,

pois aquela se baseava exclusivamente no órgão expedidor ou receptor do documento, ignorando temáticas ou balizes temporais. Assim, alguns dos documentos reunidos nos maços pela classificação original do acervo não diziam respeito aos objetivos traçados para este trabalho.

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Quatorze destes ofícios foram enviados ou recebidos pelos Juizados de Órfãos da

província, os únicos dos maços de correspondência associados àqueles juízes, nos quais

indígenas eram mencionados.

Outros quatro documentos são pronunciamentos dos presidentes da província no

encerramento de seus mandatos, sendo três Relatórios e uma Fala, todos encaminhados à

Assembléia Legislativa nos anos de 1862, 1864 e 1866. O período recortado para este

trabalho, foram os únicos anos onde havia referências à catequese e civilização de indígenas

nos relatórios dos chefes do executivo do Rio Grande do Sul.

O maior montante documental consultado foi o proveniente dos diretores de índios,

contando com trinta e cinco correspondências – entre cartas, comunicados e ofícios – e dois

relatórios selecionados, como amostras do fundo Indígenas. As dificuldades constatadas para

a uma análise total do acervo, devido ao grande volume de documentação disponível, impôs

essa seleção de amostras, que seguiu alguns critérios de ordem prática. Inicialmente, as

atenções foram centralizadas nos aldeamentos de Nonoai, da Colônia Militar de Caseros e da

Guarita. A escolha desses estabelecimentos, em detrimento de outros possíveis, foi feita

segundo a quantidade e a variedade de documentos disponíveis. Nos maços referentes a eles

foram encontrados correspondências e relatórios tratando de atividades cotidianas,

demografia, produção e fluxo de verbas ou outros recursos, informações nem sempre

presentes nos fundos de outros aldeamentos.

A seguir, foram selecionadas duas a três amostras em cada grupo de documentos,

tendo sido consideradas novamente sua tipologia e o volume de informações disponíveis,

além das possíveis relações com outros documentos ou com a bibliografia consultada.

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Na análise, também foi considerada a Lei Provincial nº 274, de 15 de novembro de

1853, reproduzida na íntegra no texto sobre a Legislação Indigenista do século XIX de

Manuela Carneiro da Cunha (1992, p. 218). Apesar de sua origem diversa das demais fontes

documentais utilizadas no trabalho, o texto da Assembléia Legislativa da Província compila a

política indigenista do governo rio-grandense no período e, assim, ganha relevância para o

desenvolvimento do trabalho.

Definido o conjunto de documentos que comporia o corpo de análise, estes foram

submetidos a um processo de pré-análise, onde foi feita uma crítica inicial da documentação,

buscando identificar temas comuns, a descrição de práticas ou procedimentos e a

reincidência de questões factuais nos documentos. Desse questionamento inicial, emergiram

os seguintes eixos temáticos: Índios e Seus Bens Tutelados como Órfãos; Catequizar e

Civilizar; Cotidiano dos Aldeamentos; Reação dos Índios.

O corpo de análise foi fracionado em grupos, seguindo esses eixos temáticos e

encerrando a preparação das fontes para a análise propriamente dita. Passou-se, então, a

estabelecer relações entre os textos contidos na documentação e o contexto rio-grandense

descrito no capítulo anterior, buscando identificar os padrões práticos com que os

organismos oficiais conduziam a política indigenista nesta província, bem como suas

aproximações e afastamentos em relação às propostas e encaminhamentos dados à Questão

Indígena pelo governo Imperial Brasileiro.

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3.1 Índios e Seus Bens Tutelados como Órfãos

O primeiro eixo temático emergido da documentação levantada girava em torno da

problemática da tutela dos índios e de seus bens legais.

Entre as amostras recolhidas, seis itens tratavam diretamente da questão. São ofícios

produzidos nos primeiros anos da ação do juizado de órfãos sobre a questão indígena,

solicitando a intervenção da presidência da província para o estabelecimento oficial da tutela

orfanológica sobre o patrimônio dos índios remanescentes que ainda viviam dispersos nas

antigas reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul.

Esses ofícios foram trocados entre o Juiz de Órfãos de São Borja, Domingos José da

Silveira, o presidente da província, Fernandes Braga, e o Comandante de Missões, Manoel da

Silva Pereira do Lago, entre 1834 e 1835, período em que vigoravam os decretos imperiais

de 1831, 1832 e 1833, transferindo os índios e seu patrimônio para a alçada daqueles juízes.

Oficialmente, as legislações da década de 1830 restabeleceram a tutela orfanológica

para os índios em servidão, mas a compreensão geral dada ao texto da lei alcançava a todos

os indígenas indiscriminadamente77. Entretanto, os seis ofícios referentes ao patrimônio das

antigas reduções foram os únicos localizados no acervo do juizado de órfãos que abordaram

a questão durante o período de vigência da tutela do órgão sobre os índios.

O primeiro documento da série foi escrito em 15 de Junho de 1834 pelo Juiz de

Órfãos, Domingos José da Silveira, e direcionado ao presidente da província. No ofício,

77 Sobre o conteúdo dos decretos imperiais de 1831, 1832 e 1832, que transferiram a tutela dos índios aos juízes

de órfãos, ver o item 1.5 do primeiro capítulo deste texto, onde foi tratada a Legislação Indigenista do Século XIX.

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Silveira comunicava sua nomeação para o cargo pela Câmara Municipal de São Borja e

pedia instruções a respeito das atribuições que o cargo lhe trazia.

Illm.º e Exm.º Snr. Em sessão extraordinária da Câmara Municipal desta Villa de São Francisco

de Borja de 10 de Junho Corrente, fui nomeado á pluralidade relativa de votos, Juis de Órfãos interinamente,[...] como no Código do Processo não trate em artigo algo das atribuiçoens dos Juises de Órfãos, VEx.ª ma esclarecerá oque devo praticar aeste respeito [...]78

O texto apresentava o estabelecimento, quase protocolar, de uma relação oficial entre a

autoridade instituída pela municipalidade e o governo da província. O caráter sutil e

subserviente, através do qual o juiz Silveira solicitou instruções para o desenvolvimento de

sua função, desapareceu no fragmento seguinte do mesmo ofício, sendo substituído pelo

conhecimento tanto dos encargos dos juízes de órfãos a respeito dos bens dos índios como da

situação desse patrimônio na região das Missões.

[...] Pela Lei de 29 de Novembro de 1832 forão extintos os Lugares de Ouvidores das Comarcas, que tinhão sob. sua Adeministração os bens dos Índios: Em virtude desta Lei aparece o Decreto da Regência de 3 de Julho de 1833, que Há por Bem encarregar a Adeministração dos ditos bens aos Juises de Órfãos dos Municípios Respectivos, emquanto pela Assemblea Geral senão derem outras providencias. Os Bens dos Índios deste município seachão de baixo da Adeministração do Tem. Coronel Comandante de Missoens desde oanno de 1826. VEx.ª me Ordenárá sedevo dar execução neste Decreto, ou amarcha que devo seguir com a Respopnsabilidade, ou sem ella dos ditos bens dos Índios de Missoens.

Deos Guarde a VEx.ª Villa de São Francisco de Borja de Missoens 15 de Junho de 1834.

Ilm.º e Exm.º Snr. Presidente da Provincia de São Pedro

Domingos José da Silveira79

78 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja ao Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de junho de 1834. AHRGS J – 43. 79 Idem.

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O ofício inaugurava uma disputa entre o juiz Silveira, baseado no Decreto de julho de

1833, e o Comandante de Missões Pereira do Lago, apoiado por uma portaria ministerial de 6

de Junho de 1826.

A disputa entre as autoridades locais, que se estendeu até o primeiro semestre do ano

posterior, foi acompanhada através dos ofícios seguintes. Em outubro de 1834, o juiz Silveira

escreveu novamente à presidência da província, dando conhecimento de ter sido notificado

sobre a delegação da guarda do patrimônio dos índios ao Comandante de Missões. Ainda

assim, o juiz questionou novamente a legalidade da postura do governo da província ao

apoiar a portaria ministerial que mantinha Pereira do Lago como administrador daquelas

propriedades.

[...] pelo que respeita a Adeministração dos bens dos Índios, enpasso a Cumprir a Ordem de V.Ex.ª, não ingirindo=me pordever de Subdito, mas não por Convicção de sua Legalidade, avista do Decreto citado em meo officio de 15 de Junho. Permita=me, V.Ex.ª, a respeitosa observação,, que ou hû Decreto não tem força de Lei, ou a Lei he Letra morta, visto que obita à sua execução huma Simples Portaria de hû Ministro. A Portaria do Ministro he datada de 6 de Junho de 1826, e o Decreto da Regência he de 3 de Julho de 1833, mui posterior a aquella Portaria. Este Decreto, Exm.º Snr., he extensivo, e mui claro, e positivamente incumbe aos Juises de Órfãos da Administração dos bens dos Índios; suas disposiçoens são geraes, e por conseqüência, só hû Acto Legislativo, enão huma Portaria opoderá revogar, ou empecer seo Cumprimento, como entendo em minha mesquinha percepção. VEx.ª, porem, Mandárá oque lhe aprouver.

Deos Guarde a VEx.ª Villa de São Borja 15 de outubro de 1834.

Illm.º Exm.º Snr. Antonio Rodrigues Fernandes Braga. Presidente da Província80

A defesa convicta do direito de tutela sobre os bens dos índios, pelo juiz Silveira,

parecia confirmar a tradição “financista” do juízo de órfãos que, desde o período colonial

80 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja ao Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de outubro de 1834. AHRGS J – 43.

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português, operava valores e bens pertencentes aos índios, depositados no cofre dos órfãos.

John Manuel Monteiro (1994, p. 111) destacou esta característica dos Juizados de Órfãos em

seu texto sobre a mão-de-obra indígena em São Paulo no século XVII.

Além desta função, o juízo de órfãos acumulava outra, talvez mais importante ainda: emprestar a juros o valor dos bens dos órfãos, tornando-se uma das principais fontes de crédito para os colonos.[...] Em São Paulo, estes pagavam pesados 8% de juros anuais sobre o principal emprestado, o que era justificado pelo “uso e costume da terra”. (Monteiro, 1994, p. 111)

Manuela Carneiro da Cunha, quando tratou da tutela orfanológica em seu texto sobre a

legislação indigenista do século XIX, também anotou a exploração dos indígenas pelos juízes

de órfãos, ressaltando em nota os benefícios pessoais dos sobreditos juízes na tutela de bens

e índios. A nota da autora diz que: “Era sabido que o ofício de Juiz de Órfãos, pelo poder que

tinha de distribuir libertos para trabalharem, enriquecia rapidamente seus incumbentes: tão

notório era isto que não se pertmitia a ninguém deter esse cargo por mais de quatro anos”

(CUNHA, 1992, p. 111).81

Essa mesma relevância do patrimônio indígena na tutela orfanológica, percebida pelos

dois autores, aparecia nos ofícios do juiz Silveira da vila de São Francisco de Borja. A

análise integral dos dois documentos não demonstrou, em nenhum momento, uma

preocupação direta com a pessoa do índio, encargo dos juízes de órfãos desde o Decreto de

27 de outubro de 1831, antes mesmo de o patrimônio indígena ter sido transferido para a

guarda daqueles juízes.

81 No texto, a autora faz referência aos índios libertos da servidão pela Lei de 27 de outubro de 1831,

considerados como órfãos desde então.

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Nas cinco outras amostras componentes deste eixo temático, continuou, como tema

central, a administração dos bens indígenas. A Secretaria dos Negócios do Império interveio

na questão em setembro de 1834 e sancionou os direitos do juizado de órfãos sobre aqueles

bens. A partir de janeiro de 1835, Domingos José da Silveira passou a dominar a questão e,

na documentação, apareceram os primeiros encaminhamentos dados pela nova administração

aos imóveis das antigas reduções.

[...]Fico entregue do Officio de VEx.ª datado de 29 de Janeiro do Corrente anno, acompanhando a Copia do Aviso da Secretaria dos Negocios do Imperio de 12 de Setembro do anno proximo passado, em que Manda a Regência [...] fiquem os Indios das Vila Missoens – Orientais do Uruguai, debaixo da direcção, e Adeministração do Juis de Orfãos de São Borja, e pela mesma maneira mafáz VEx.ª siente [...] Responçabilizandome pela mesma Adeministração, e como me diz VEx.ª,, não de pouca monta. Nodia 22 de Fevereiro mefoi derijido hû officio do Tenente Coronel Manuel da Silva Pereira do Lago[...] Comunicandome, que desde aquella data, ficava desligado de tal Adeministração: em Consequencia poiz cingindome ao Regulamento dos Juizes de Orfãos, equerendo dar outro andamento aesta dita Adeministração, para que apareção rendimentos, mandei numerar as Cazas desta villa, pertencentes aos bens dos Índios[...] e despos de completa esta avaliação deque sefar termo neste Juízo, mandei preceder Edital naforma domesmo Regimento dos Juizes de Orfãos, edevem nos dias seguintes 18, 19 e 20 do Corrente, Correr pregão em hasta publica, aquém porellas mais der alugueis, sobre suas avaluaçoens.[...] Não dou Conta a VEx.ª dos mais Povos, Estancias, e utencilios que pertencem aesta Administração, porque ainda não recebi o Archivo dos Povos, ainda que esteja ja investido para deliberar atal respeito, mas para dar aminha Conta de recebimento a VEx.ª mehe perciso revisar tudo primeiramente.

Deos Guarda a V.Ex.ª Villa de São Borja 15 de Março de 1835 Ilm.º e Exm.º Snr.º Presidente da Provincia Antonio Rodrigues Fernandes Braga

Dominguos José da Silveira Juiz de Órfãos da V.ª e M. de São Borja82

Pereira do Lago e Silveira trocaram outros dois ofícios entre si, respectivamente em 11

e 12 de março de 1835, tratando o pagamento dos aluguéis e os imóveis que seriam

disponibilizados para o Comando das Missões, além do destino dos demais imóveis.

82 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja Domingos José da Silveira ao Presidente da Província do Rio Grande

do Sul. Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de março de 1835. AHRGS J – 43.

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No último documento desta série, Silveira apareceu completamente inteirado da

situação, tanto dos imóveis das reduções, como das estâncias adjuntas aos povos e do gado

nela reunido. O ofício, encaminhado ao governo da província, pedia aprovação para a venda

de parte do gado da estância de São Gabriel.

[...] em de me haver reprezentado o capataz da Estancia de São Gabriel, que faz parte dos bens dos Indios, cuja Administração foi confiada aeste Juízo, aurgente necessidade de ser aliviada aquella Estancia do grande pezo de animaes que nella pastão, [...] resolvi vender mil rezes decriar da referida Estancia de S. Gabriel, as quaes com effeito seachão vendidas a Francisco Berardo Vernes. Espero de VEx.ª a a provação desta minha deliberação. Deos guarde a VEx.ª São Borja 16 de Agosto de 1835. Illm.º Exm.º Antonio Rodrigues Fernandes Braga Presidente da Provincia

Domingos José da Silveira Juiz de Orfãos do M. de São Borja83

A importância do patrimônio na tutela orfanológica dos índios mereceu destaque

também, pois as estâncias das antigas reduções jesuíticas apareciam ligadas ao contexto de

ocupação das terras de campos para criação de gado no Rio Grande do Sul.

As concessões de sesmarias foram suspensas por resolução imperial a partir da década

de julho de 1822, o que restringiu as possibilidades de acesso a campos com domínio

legitimamente assegurado. No período entre 1822 e 1850, a posse vigorou como o único

meio de obtenção de domínio sobre a terra no Brasil. No entanto, não haviam mecanismos

para legitimar essas posses.

83 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja Domingos José da Silveira ao Presidente da Província do Rio Grande

do Sul. Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 16 de agosto de 1835. AHRGS J – 43.

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A tutela orfanológica dos bens dos índios funcionou, no caso exemplificado pelas

correspondências descritas anteriormente, como o subterfúgio legal que forçou a

transferência de uma parcela substancial de terras e gado do domínio do Comando das

Missões para a alçada do juizado de órfãos, mais especificamente para a guarda do juiz

Silveira. Essa característica da tutela orfanológica se aproximou da afirmação de Silva (1993,

p. 14), segundo a qual “a propriedade territorial constituiu-se fundamentalmente a partir do

patrimônio público”. No exemplo do Juizado de Órfãos de São Borja, não se pode falar em

propriedade, mas sem dúvida, a disputa se travou em trono da tutela legítima de bens

garantidos aos índios pelo Império.

A tutela dos juízes de órfãos sobre os indígenas e seus bens se estendeu até 1845 com

o Regulamento das Missões, quando as Diretorias de Índios foram criadas e passaram a

aplicar a política indigenista no Brasil. Entretanto, até o fim de sua atuação oficial junto aos

indígenas, o juizado de órfãos não apresentou nenhuma preocupação direta com a forma

como viviam os índios no Rio Grande do Sul, constatação feita pelas poucas vezes em que a

questão apareceu mencionada na documentação. Tão pouco, demonstrou a elaboração de

algum tipo de instituição garantindo os direitos dos índios em seus acordos de trabalho, no

tocante a sua integridade física ou mesmo algum mecanismo para inserir os indígenas no

mercado local de trabalho, como se poderia supor pela mentalidade integracionista que

vigorava no período.

3.2 As Iniciativas para Catequizar e Civilizar

O segundo eixo temático, identificado durante a pré-análise da documentação, versava

a respeito das propostas de inserção para os indígenas e das iniciativas dos organismos

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oficiais na província de São Pedro, durante o século XIX, que visavam integrar os índios ao

contexto regional do período.

Um conjunto de dezoito documentos abordava o tema, todos eles redigidos entre 1845

e 1868, portanto, referiam-se ao período posterior à edição do Regulamento das Missões.

Quinze desses documentos eram ofícios encaminhados por diretores de índios para o

presidente da província. Nesses ofícios os Diretores relatavam os resultados obtidos nas

ações desenvolvidas por eles no estabelecimento e na condução dos aldeamentos e, também,

apresentavam sugestões para melhorias naqueles estabelecimentos ou na aproximação com

grupos de índios arredios.

Um dos Relatórios e uma das Falas dos presidentes da província, encaminhados à

Assembléia Legislativa, também tratavam dessa temática. Esses prestavam contas das ações

do governo provincial diante da Questão Indígena. Entretanto, os dois documentos da

presidência se restringiam a reproduzir informações prestadas anteriormente pelos diretores

de índios, sendo raras as observações adicionais ou críticas a respeito da postura dos

diretores de índios ou dos trabalhos em andamento nos estabelecimentos por eles dirigidos.

Para análise do tema, foram considerados, ainda, fragmentos da Lei Provincial Nº 274

de 1853, pois nela estavam determinados os modelos que deveriam ser seguidos nos

estabelecimentos mantidos pela província para os índios.

O primeiro documento da série foi enviado por Francisco Ferreira da Roxa Loures ao

Conde de Caxias, que era o presidente da província naquele então. O ofício, datado de

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outubro de 1845, relatava os contatos iniciais entre um grupo comandado por Loures e

indígenas habitantes de um toldo84 nas regiões circunvizinhas de Passo Fundo.

O senhor Roxa Loures foi contratado em São Paulo para acompanhar o missionário

Antônio Leite Penteado nos contatos com os indígenas que vagavam pela região de Passo

Fundo. Essa expedição pareceu ter sido uma das primeiras iniciativas do governo da

província para o aldeamento de indígenas depois do Regulamento de 1845.

O grupo era formado pelo missionário, por Loures e alguns outros homens vindos com

ele de São Paulo, além de uma força militar sob comando do Tenente Coronel Antônio Maria

de Souza, que levava uma remessa de roupas e ferramentas enviadas pelo governo da

província para atrair os indígenas e estabelecer um contato pacífico com os mesmos.

O ofício de Roxa Loures demonstrou a importância central dessas dádivas para a

aproximação com os índios, tendo sido a tarefa do grupo adiada vários dias na espera das

ferramentas e das roupas que serviriam como presentes.

[...] Eu acho desnecessario dizer a VExª os motivos que ou veram de senão cuidar com mais brividade no principio da Cathequeze dos Gentios que suponho que o Reverendo Antonio Leite Penteado, melhor espôrá a VExª, Cumprindo-me unicamente dizer a VExª que em razão de ter eu empenhado minha palavra a VExª dava-me para a a companharme, ajudar ao dito Padre no principio desta Cathequizi, pr. ser aquella ocazião mais opportuna pa. incetar esse trabalho, foi-me preciso esperar a vinda da factura para ser destribuida pelos Indios comforme as ordens de VExª arrespeito: Cuja factura depois de muita demora chegou em fins de 7bro [...]85

84 O termo “Toldo” apareceu com freqüência em toda a documentação utilizada como amostra para este

trabalho. Nas descrições feitas pelos interlocutores, os toldos apareciam como arranchamentos de índios já contatados e que, em alguns casos, mantinham relações regulares com as autoridades instituídas ou ainda com moradores brancos das proximidades. Entretanto, esses índios dos toldos não se viam nem eram vistos pelas autoridades como indígenas oficialmente aldeados segundo o Regulamento das Missões.

85 Ofício de Francisco Ferreira da Roxa Loures ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos Índios, 15 de outubro de 1845 – Maço 1 – Documentos Diversos.

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Devidamente equipado, o grupo de Loures dirigiu-se ao campo na tentativa de

restabelecer as conversações com toldos indígenas já contatados anteriormente, mas que

permaneciam à margem dos aldeamentos organizados pela província. A estratégia adotada

por Loures foi tentar convencer os índios das intenções pacíficas do governo, que pretendia

unicamente trazê-los para o seio da sociedade civilizada.

[...] com sultemos de eu com mª jente da que trouce de S. Paulo com parte de factura hir aos toldos onde os tinha deixado a fim de ver-se depor alguma maneira sepodia comseguir alguma coiza; com efeito fui, ecom mtº custo pude em contrar Com os abitantes de hum toldo, e de estes pude reduzir atrazer treis, e os mais a li deichei surtidos de ferramenta, Ponches, e roupa: contentamento que tiveram depois de ter eu repartido o que levava por elles foi bastante, e depois de bem persuadidos de que VExª hera qm. ali nos mandava com o fim de dizer-lhes que sua intenção era unicame. o fazer-lhes entrar na sociedade, e que para este fim estaria prompto a asistir-lhe com tudo quanto percizassem, arribei deixando aelles botando mil bênçãos em VExª. [...]86

Encerrada sua tarefa de estabelecer os contatos iniciais, Loures anunciou seu retorno a

São Paulo, deixando a cargo do Padre Penteado o início da catequese. Para apoiar o trabalho

do missionário, ficou encaminhado o retorno de um casal de índios que estava residindo no

Uruguai, pois eram pessoas influentes entre os indígenas e poderiam facilitar a ação do

padre.

[...] Finalme.; qtº. Amim omais custozo esta feito e sérto na ativide. ezello do Pe. que por VExª esta em carregado desta Cathequézi que tudo ira bem. [...] Passo a recolherme pª S. Paulo pela nova estrada, e de combinação com o Pr. levo os tres Indios que nos vieram acompanhar, os q vão fazer junção em outros toldos, p.ª em lugar marcado se em contrarem com elle Pe. que então continua na Cathequizi, e apezar da pouca gente que tenho; p.ª instancia do Pe. fariy voltar do Uruguay o Indio Manoel, que he cazado com a filha de um Cacique o que o Pe. exige como de suma necessidade p.ª por elle entender os outros como bom imterpetre, e mm.º pela estima que goza a China, como huma das Nobrezas Selvajens. [...]87

86 Idem. 87 Idem.

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A expedição conduzida por Loures, segundo o descrito no ofício, levou em

consideração as recomendações feitas pelo Regulamento das Missões em seu Art. 1º, §19,

para que fossem utilizados meios brandos e suaves para atrair os índios aos aldeamentos. A

utilização das dádivas foi sugerida, para a aproximação e estabelecimento de laços de

confiança com os índios, por José Bonifácio em seus Apontamentos de 1823 e, no Rio

Grande do Sul, se tornaram uma prática usual mesmo nos aldeamentos já estabelecidos.

Essa forma como foi conduzida a ação de aproximação com os indígenas do toldo por

Loures, com apoio do governo provincial, demonstrou novamente que o Regulamento de

1845 apenas oficializava práticas já seculares no tratamento da Questão Indígena.

O tratamento utilizado por Loures ao anunciar os índios que retornariam do Uruguai

para apoiar o padre demonstra, também, a manutenção da imagem dos indígenas como

selvagens, vivendo à margem da civilização. No documento citado acima, mesmo deixando

clara a expressão social da mulher do índio Manoel enquanto membro de um grupo

socialmente destacado, Loures a classifica como uma “china” pertencente a uma nobreza

“selvagem”. A adjetivação, dada pelo representante da província à índia a marginalizava

duplamente. Primeiramente, enquanto mulher que vive fora dos modelos sociais vigentes e,

por isso, uma selvagem. Em segundo lugar, mesmo sendo casada e reconhecida como tal,

descrita com o termo pejorativo de china, que desmoralizava tanto sua condição de esposa

quanto a de membro de uma nobreza.

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Retomando o modelo de aproximação com os indígenas utilizado por Loures, desde o

século XVI a formação de grupos para contatar indígenas tinha essa estrutura descrita no

ofício, unindo a ação de sertanistas e missionários no convencimento dos indígenas sobre as

vantagens da vida nos aldeamentos.

Encerrado esse momento inicial de aproximação, a integração do indígena na

sociedade através dos aldeamentos voltou, desde 1845, a ser incumbência dos religiosos.

Ficava concretizada, então, a relação entre catequizar e civilizar. O Regulamento de 1845 já

reafirmava essa relação, dada a importância da figura dos missionários nos aldeamentos, e a

Lei Provincial Nº 274 a ratificou na esfera regional em 1853.

Art. 2º. Os padres missionarios serão exclusivamente empregados, não só no ensino dos rudimentos das primeiras lettras, como na propagação da religião, esforçando-se com o seu exemplo e conselhos por inspirar nos indigenas o amor ao trabalho.88

As assinaturas dos documentos que tratavam da catequese e civilização no Rio Grande

do Sul atestavam a volta da figura central da Igreja na condução da política indigenista

depois de 1845. Dos dezoito documentos abordando a questão, dez eram assinados por

religiosos que apareciam como administradores interinos ou mesmo diretores dos

aldeamentos.

O padre Bernardo Pares, em ofício de novembro de 1848 ao presidente da província,

demonstrou o engajamento dos missionários na crença da religião como instrumento de

civilização dos indígenas.

88 Lei Provincial n.º 274 – Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul, novembro de 1853, reproduzida in.:

CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação Indigenista do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992, p. 218.

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[...]Quanto a religião eu julgo que elles não tem nenhuma, e que a Idea do ser supremo he nelles muito confusa e material: Porém sabendo agradar a elles, e inspirar-lhes confiança me parecerão serem bastante docis p.ª que se possa lograr delles, que se deixem instruir nas verdades de nossa Santa fé: mas o mesmo que eu dizia antes fallando de sua natural indolência, se precisa tambem p.ª isto de tempo e paciencia, e se perderia tudo se se pretendesse ganha-los de outro modo. [...]89

Além da ligação direta entre catequese e civilização, os documentos indicavam que o

destino dos indígenas aldeados era a integração como mão-de-obra agrícola. Inicialmente, a

preocupação dos diretores das aldeias era o estabelecimento de roças para o sustento do

próprio aldeamento. O ofício enviado pelo Padre Bernardo Pares ao presidente da província,

em outubro de 1849, demonstrava o empenho do missionário em manter os índios

envolvidos com o trabalho das roças.

[...] vendo se passaba o melhor tempo de roçar, me decidi a comprar huma ducia de machados e outra de foces para dar principio aos trabalhos. [...] temos ya huns dez alqueres de roça, bem feita, segun dicem, os qe. entendem, tanta na roçada como na derrubada. [...] teremos para a roça-grande huns doce alqueres, que correndo o tempo regularmente darão milho, feijão e abobra para manter abundantemente quantos Bugres se agreguen a este Aldeamento. Á mais da roça-grande os Bugres tem feito as suas particulares: Victorino Condá de 1½ alquer, seu Irmão Domingos de 1 alquer, Canãfe de 1 alquer, Criquincha, Caembé, Ñandi, Nonnemi, Arimbenk cada hum de ½ alquer, Nonohay, o capitão Jacob e outros estão agora roçando com porretes a falta de ferramentas, e espero qe com a chegada d’este se tem de animar muito pois são gente trabalhadora, principalmente os do Nonohay, que dicem querem plantar bastante para não passar mais fome. No qe. respeita este trabalho estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião gostosos [...]. A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. [...] Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.90

89 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 06 de novembro de 1848 – Maço 1. 90 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.

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No exemplo do aldeamento de Nonoai, descrito pelo padre Pares, vemos que o plantio

de roças para consumo interno no aldeamento era um dos objetivos a serem alcançados pelos

diretores de índios. Essa incumbência dos diretores de índios do Rio Grande do Sul alinhava-

se à política indigenista do Império e, ao mesmo tempo, dava ênfase à idéia de encerrar

rapidamente os gastos do Estado com a tutela sobre os indígenas, através da criação de uma

relativa autonomia econômica para os aldeamentos. Para isso, foi tomado como norte, no

estabelecimento dos aldeamentos, a integração dos índios à agricultura através de

aldeamentos auto-sustentáveis.

O princípio de criar aldeamentos capazes de se autoprover no século XIX foi

estabelecido a partir do modelo das antigas reduções guaraníticas administradas pelos

jesuítas até a metade do século XVIII. Em carta enviada a um colega de ordem em 1848, o

padre Bernardo Pares indicava que a relação entre as antigas reduções guaraníticas e o que se

esperava dos aldeamentos da província, mesmo não aparecendo descrita nos documentos

oficiais, norteava a política indigenista da província no século XIX.

[...] devo fazer saber à V.R. que isto não é nem poderá ser coisa que se pareça ás antigas reduções, pois nem as circunstâncias locais, nem as pessoais dos índios, nem as idéias do dia o permitem. Não é possível isolar umas reduções que se acham tão imediatas às populações e estâncias, nem os índios acostumados a tratar com os cristãos da vizinhança sofreriam facilmente esse isolamento. [...]91

Retomando a análise do documento anterior, chamou a atenção o empenho do padre

Pares para o estabelecimento de roças particulares pelos indígenas. O destaque dado aos

91 Carta do Padre Bernardo Pares ao Padre Lerdo, 07 de novembro de 1848 apud PEZAT, 1997, p. 266.

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índios que se interessaram pelo plantio privado, recebendo por esse trabalho as mesmas

recompensas dos envolvidos nas roças comunitárias, demonstrava que no Rio Grande do Sul

existia a perspectiva de integrar rapidamente o índio a um modelo de agricultura de

subsistência voltada para o sustento do núcleo familiar.

[...] A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. [...] Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.92

A iniciativa do padre Pares destacava o alinhamento, em tese, da província ao projeto

imperial de integração dos indígenas. Isso, pois, o Regulamento de 1845 previa, em seu Art.

1º, §3º, a manutenção das terras individualmente cultivadas em usufruto aos índios, ou as

suas viúvas, quando esses pudessem comprovar bom comportamento e capacidade de se

sustentar, preferencialmente pela agricultura. Entretanto, nos documentos consultados

durante este trabalho, foi possível identificar apenas um caso de manutenção do indígena em

suas terras depois de fechado um aldeamento. O caso referido tratava de um indivíduo

remanescente da antiga Aldeia dos Anjos, estabelecimento fechado antes mesmo da edição

do regulamento das missões. Nos aldeamentos criados depois de 1845 no norte da província

as terras permaneceram sempre reservadas para os grupos nelas reunidos e, posteriormente,

nos casos onde estabelecimentos foram fechados, esses terrenos acabaram sendo

reincorporados aos próprios nacionais ou apossados por particulares.

92 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.

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Mesmo mantida a diretriz de incorporar os indígenas à sociedade como agricultores, o

Regulamento de 1845 abria a possibilidade de instalação de oficinas nos aldeamentos, desde

que atendessem às necessidades imediatas do estabelecimento e fosse possível engajar os

índios no aprendizado dos ofícios ali desenvolvidos. O regulamento falava em: “§ 26.

Promover o estabelecimento de officinas de artes mechanicas, com preferencia das que se

prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admitidos os Índios, segundo as

propensões que mostrarem”.93

No ofício enviado pelo padre Pares ao governo da província, em outubro de 1849, o

missionário demonstrava a pretensão de estabelecer o ensino de ofícios aos indígenas fora

das atividades agrícolas. Seguindo a orientação de estabelecer oficinas a partir das

necessidades imediatas dos estabelecimentos, na ocasião, Pares solicitou a manutenção no

aldeamento do carpinteiro encarregado da construção das mangueiras e de uma capela para

ensinar o ofício aos indígenas.

O homem qe. tem servido de dirigir os trabalhos da roça e qe. agora está facendo a manguera e cortando as maderas para Capella e Casa he escellente carpinteiro do matto, e não será fácil achar outro tão capaz de ensinar aos Bugres qe. o-estimão, trabalhador e de boa conducta, e qe. não menos entende de facer herva. Por isso me parece conveniente pedir a VE. qe. ma autoriçase para depois de levantar a Capella continuar tendo elle alugado para dirigir aos Bugres no facer as suas casas, e se for necessário taobem logo qe. chegue o tempo, para facer herva. Me parece qe. não seria fácil achar hum homem das suas qualidades qe. morasse n’aquelles sertões por 32$000 reis.94

A solicitação do religioso teve respaldo junto ao governo da província, ao menos

durante o ano seguinte. Nas prestações de contas enviadas pelo padre em julho de 1850 e

janeiro de 1851, constavam entre os gastos descritos as somas respectivas de 224$000 e

93 Fragmento do Regulamento das Missões reproduzido na íntegra in: RODRIGUES, 1999. p. 33-41. 94 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.

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160$000, destinadas ao pagamento do mestre carpinteiro empregado na instrução dos índios

em Nonoai.

No início de 1851, o padre Pares voltou a demonstrar a intenção de instalar oficinas

nos aldeamentos. Nas observações finais do relatório entregue pelo missionário em janeiro

de 1851, constava a solicitação de instalação de um ferreiro em Nonoai, que, além de fazer a

manutenção das ferramentas do aldeamento, ensinaria o ofício aos indígenas.

Para este mesmo aldeamento se tem mandado a necessária ferramenta, e se pouparião muito dinheiro se houvesse ferreiro para a compor, claçar e conservar. Tem vindo no ppdo. Dezembro um ferreiro de Garopoaba que se engajaria pella quantia de 12$000 por mes para servir no Aldeamento, e ensinar aos Bugres. Para isto era preciso mandarlhe uma tenda completa com alguma porção de ferro e aço.

Passo-Fundo 14 de Janeiro de 1851. Bernardo Pares PP. Miss.º 95

Entretanto, na documentação consultada, não houve vestígios que pudessem

comprovar a instalação da ferraria solicitada por Pares. Somente q uinze anos depois, em

1866, um dos presidentes da província referiu, em relatório a Assembléia Provincial, o envio

de aço para o aldeamento de Nonoai. Mesmo assim, não pareceu existir ligação direta entre a

proposta de 1851 e o aço remetido pela província a Nonoai em 1866. O ensino dos ditos

ofícios mecânicos aos indígenas parece não ter tido continuidade. Além dos documentos

citados acima, somente na Fala do Vice-Presidente da província à Assembléia Legislativa, no

ano de 1866, se voltou a referir a instrução de indígenas em ramos de atividade desligados da

agricultura.

95 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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Classe Provincial Existiram em 30 de Junho último 51 menores da classe provincial, havendo 19 vagas, sendo 11 nos lugares reservados para os expostos e 8 para os indígenas. Estes menores aprendem os ofícios seguintes: Carpinteiros 24 Correeiros 14 Ferreiros e armeiros 7 Latoneiros e funileiros 6 Além destes ofícios 28 aprendem a arte da música.96

A classe provincial descrita pelo Vice-Presidente Cunha não era uma iniciativa

propriamente destinada à integração de indígenas. Havia uma reserva de vagas para

indígenas entre as existentes no ensino provincial de ofícios. No entanto, o documento da

presidência não indicava positivamente nem se as vagas reservadas para índios foram

preenchidas, nem se meninos índios eram freqüentemente enviados para instituições de

ensinos regulares da província. Entre os cinqüenta e cinco documentos consultados neste

trabalho, apenas a fala do Vice-Presidente em 1866 mencionou vagas reservadas para

crianças de origem indígena. Assim, mesmo que em 1866 alunos índios tenham freqüentado

as classes provinciais de ofícios mecânicos, a iniciativa do governo provincial naquele ano

não pareceu ter se repetido em anos anteriores ou posteriores.

Paralelamente ao princípio de converter índios em agricultores e as iniciativas isoladas

de iniciação dos indígenas em ofícios mecânicos, durante o período imperial, houve

alistamentos compulsórios de indígenas para servirem embarcados ou nos arsenais da

marinha. Uma Decisão imperial de 1827 recomendava a remessa de índios para os navios da

Armada Nacional e Imperial.

96 Fala do Vice-Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Antônio Augusto Pereira da Cunha

na 1a sessão da 12a legislatura da Assembléia Provincial, 3 de Novembro de 1866. AHRGS

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05/09/1827: Decisão n. 82 – MARINHA – Recomenda a remessa de indios

para serem empregados no arsenal da Marinha da Cortê, e nos

navios da Armada Nacional e Imperial

Illm. E Exm. Sr. – Sendo necessario que no serviço do Arsenal da Marinha desta Cortê, e no dos navios da Armada Nacional e Imperial se empregue o maior número possivel de indios; Manda Sua Majestade o Imperador recommendar a V. Ex. a prompta remessa daquelles dos existentes nessa provincia que estiverem nas circunstancias de ser assim empregados conforme anteriormente se havia já ordenado por esta Secretaria de Estado. Deus guarde V. Ex. – Palacio do Rio de Janeiro em 5 de Setembro de 1827. – Marquez de Maceió. – Sr. Presidente da Provincia de [...]97

Segundo Lima (1995, p. 97), as requisições de indivíduos nos aldeamentos para

servirem embarcados, ou em arsenais da marinha, foram mais comuns nas províncias do

norte. No Rio Grande do Sul essa prática não apareceu comumente mencionada nas

correspondências dos aldeamentos consultados. A única referência encontrada na

documentação ao alistamento compulsório de índios foi uma recomendação do padre

Antônio Moraes Branco, diretor do aldeamento da Colônia Militar de Caseros em 1866.

Aconteceu que, naquele ano, alguns índios do aldeamento de Caseros ajustaram um

trabalho na roça de João Damasceno, morador da região do Turvo. Com a proximidade entre

os indígenas e a família de João, se iniciou um romance entre o índio Jacinto Doble e a filha

de Damasceno. Decidida a se casar com Jacinto, a menina mudou para o aldeamento.

Quando soube do não consentimento dos pais da menina naquela união, o padre Branco

tomou medidas para que a moça retornasse à casa paterna. Em seguida, recomendou o envio

do índio Jacinto para a marinha, como punição por incitar um mau exemplo aos demais

aldeados.

97 Decisão imperial n.º82 de 05 de setembro de 1827, reproduzida in: CUNHA, 1992, p. 130.

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Eis, Exm. Sr., a narração fiel do facto. Agora, moralizando-o tomo a liberdade d’aprezentar a V.Ex.ª a minha opinião que peço a V.Ex.ª a graça de tomar em consideração.

Este Indio Jacintho não deve ms. morar neste Aldeamt.º, por que com o seu exemplo incita os outros a actos semelhantes, e alem disso acarreta sobre a Tribu a odiosidade do povo, que naturalmte. almeja a sua punição. Todos os Indios repreovárão o acto deste; só foi elle acompanhado do irmão João Gangrê, que tambem, por perverso, e vadio, deve acompanhar a Jacintho ao destino que V.Ex.ª der aos dous. Sou portanto d’opinião que devem estes dous sujeitos sentar praça na marinha [...]98

Como dito anteriormente, esta proposta de punição, feita pelo padre Branco, foi a

única referência citada, na documentação consultada durante este trabalho, que indicava o

alistamento compulsório de indígenas para embarcações da marinha imperial no Rio Grande

do Sul.

Com relação à manutenção das terras dos aldeamentos, a política indigenista aplicada

na província de São Pedro apareceu, nos ofícios dos diretores de índios, permeada do intuito

de concentrar cada vez mais os grupos indígenas, disponibilizando-lhes a menor área

possível. Apesar da resistência dos índios em reunirem-se nas áreas destinadas a eles pelo

governo provincial, três anos depois da edição do Regulamento das Missões, os diretores de

Índios tratavam das tentativas de reunir vários grupos em um mesmo aldeamento.

Em ofício de 06 de novembro de 1848, destinado à presidência da província, o padre

Bernardo Pares falava da recusa dos índios aldeados na Guarita em serem deslocados para

Nonoai.

98 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.

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Os da Guarita não quizerão ajuntarse aos do Nonohay p.ª não se sujectarem ao Condá a causa de certas desconfianças que d’elle tinhão, e ainda durão, porem tampouco elles fizerão mais dannos aos christãos depois da presentação do Condá.99

No ano seguinte, em 1849, o mesmo missionário voltou a mencionar em ofício a

intenção do governo provincial de reunir em Nonoai o maior número possível de grupos

indígenas, solicitando ao presidente da província determinações sobre a ocupação dos

campos do Pontão, na região de Vacaria.

O tão prolongado temporal de chuvas me tem tido incommunicado com a Guarita e Vaccaria; de aqui recebi uma noticia confusa de qe. os Bugres fugidos do Campo-do-meio queria aldearse lá, e qe não seria difficil persuadir elles qe. fosse no pontão donde se achão os PP. Missrios. Eu estou persuadido qe. todos os qe. estavão no campo-do-meio, passarão ao Nonohay logo qe. saibão qe. não falta qe. comer e qe. serão lá protegidos. Porem quiçer saber a vontade de VE sobre se o Pontão debe povoarse de Bugres ou de Portugueses, pois me consta haver varias familias d’estes qe. tencionão estabelecerse lá. Eu dentro de poucos dias passarei, se o tempo melhorar a visitar aquelles Padres e então poderei informar melhor a VE.100

Os grupos Kaingang abordados pelo padre Pares nos dois ofícios não são os mesmos.

Os índios aldeados na Guarita eram do grupo comandado pelo cacique Fongue, os do Campo

do Meio e do Pontão seguiam o Pay-bang Braga e o Pay Doble. No aldeamento de Nonoai já

viviam reunidos diversos grupos, sendo que, em 1848, a liderança mais influente no

aldeamento parecia ser o Pay-bang Victorino Condá. Essa diversidade de grupos indicados

nos documentos demonstra que as intenções do governo da província não era reunir em

Nonoai grupos aparentados ou com algum tipo de vínculo histórico, mas sim o maior número

de índios possível.

99 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 100 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.

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Em 1854, a situação tinha sofrido poucas alterações. Entretanto, a idéia de reunir em

Nonoai todos os grupos indígenas aldeados voltou a aparecer nos documentos da diretoria

daquele aldeamento. Em ofício de José Joaquim de Oliveira, enviado ao presidente Sinimbu

em 1853, o diretor do aldeamento de Nonoai deu parecer favorável ao agrupamento dos

índios aldeados.

Sou da opinião de V.Exª. que este local he omais azado para o aldeamento de todas as Tribus de Indios Coroados, que vagão por estes contornos, pela Vaccaria, Pontão, e Campo do Meio, muito embora ainda não se tenha conseguido aqui reunilos todos, em consequencia dos manejos de huns que só almejão desacreditar o governo actual, e esta Directoria, e de outros que despejadamente aspirão locupletar-se com os Campos e serviços dos Indios. Visto como aqui não estão reunidos todos os Índios, não he possivel ao certo dizer-se o seo numero; porem não he longe da verdade o calculo de 640, inclusive 289 que me acompanharão da Guarita sob as ordens do Capitão Fongue.101

Dois anos depois, o padre Antônio de Almeida Leite Penteado, novo diretor do

aldeamento, em ofício ao presidente da província, dava a entender que a intenção de reunir

os índios em Nonoai, apesar de não te sido concretizada plenamente, ainda existia.

Sua Exª. o Senr” Ex. Preside., informado do pessimo estado do aldeamtº. de Nonohaÿ, entendeo em sua sabedoria q. devia fundir-se as tribus aldeando-as todas em Nonohaÿ, cujos campos destinou pª. os indígenas; e deo a Directoria ao dº. Olivª. em 1853, o ql. em dias de Janrº. do anno pp. fes pª. ali recolher a sua mencionada tribu – Fongue –, tendo antes obtido recolher a – Nicaphÿm – ; porem esta desertou logo pª. a casa de seos amigos.102

101 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 102 Ofício do Padre Antônio de Almeida Leite Penteado ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul.

AHRGS – Catequese dos Índios, 1856 – Maço 2.

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A persistência do governo na tentativa de reunir os indígenas do norte da província em

áreas cada vez mais reduzidas, no período entre as décadas de 1840 e 1860, nos permite

associar a criação dos aldeamentos à necessidade de disponibilizar terras para os projetos de

colonização que estavam sendo desenvolvidos pelo Império no sul do Brasil. Permite,

também, associar a redução dos espaços ocupados pelos indígenas ao processo de

mercantilização da terra, em desenvolvimento no Brasil desde a primeira metade do século

XIX, que culminara com a ascendente valorização dos terrenos em função da Lei de Terras,

depois de 1850.

Entretanto, entre 1834 e 1868, período abordado por este trabalho, o plano do governo

da província de agrupar todos os indígenas aldeados nos campos de Nonoai nunca foi

concretizada. As históricas rivalidades intragrupais dos Kaingang nunca permitiram uma

reunião pacífica e duradoura das lideranças daqueles indígenas. Além disso, as constantes

referências à existência de toldos nas proximidades dos estabelecimentos de catequese

demonstra que diversos grupos permaneciam transitando entre os aldeamentos.

A própria dinâmica interna dos aldeamentos, principalmente no que diz respeito aos

recursos de subsistência destinados àquelas populações e à segurança nas aldeias, impedia

uma permanência estável dos índios nos estabelecimentos mantidos pela província. A

dinâmica interna da vida nos aldeamentos mereceu uma análise mais aproximada, por isso,

será apresentada a seguir em item separado no texto.

3.3 O Cotidiano dos Aldeamentos

Pela natureza dos documentos consultados, a vida dos indígenas aldeados apareceu de

forma bastante detalhada na documentação, principalmente nos ofícios e relatórios

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provenientes da diretoria dos aldeamentos. Os relatórios e falas dos presidentes da província

também apresentavam características do cotidiano dos estabelecimentos para catequese

indígena, mas, em geral, eles se limitavam a reproduzir as informações que recebiam da

Diretoria de Índios da província.

Entre as cinqüenta e cinco amostras arroladas para este trabalho, uma série de vinte e

nove tratavam do dia-a-dia dos estabelecimentos de catequese mantidos pela província do

Rio Grande do Sul. Neles, estavam descritas as rotinas de trabalho, os produtos obtidos nas

roças comuns e privadas dos aldeados, os relacionamentos sociais, os problemas

administrativos das diretorias e, em menor escala, a ligação dos indígenas com a religião.

Como já dito anteriormente, desde o início da intensificação da política de

aldeamentos, o estabelecimento de roças foi uma preocupação central dos diretores de índios.

Os roçados eram fundamentais para garantir a subsistência dos grupos aldeados e, assim,

mantê-los sedentarizados nos aldeamentos. O padre Bernardo Pares, em 1848, já apontava a

dificuldade de conter os índios nos aldeamentos em função da escassez das roças.

Os do Nonohay faz ja tres annos se apresentarão baixo do commando de seu Chefe Victorino (Condá) que pedio seguridade, e offereces, que procuraria reunir a gente toda de sua nação nos campos ditos de Nonohay, porque pe.la falta de alimentos não podião estar fixos naquelle lugar, mas se espalhavão successivamente pe.los matos a procurar a sua subsistência; porem se assegura que desde aquelle tempo não tem feito elles danno algum aos christãos. Ouvi dizer que se tinhão feito no Nonohay algumas roças, mas não quanto basta p.ª tanta gente [...]103

103 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1.

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No ano seguinte, em 1849, o missionário que dirigia o aldeamento de Nonoai tomou

providências para que o dimensionamento das roças feitas pelos indígenas fosse suficiente

para o abastecimento de toda a população ali reunida. Mesmo não tendo recebido

ferramentas do governo da província, em agosto daquele ano, Pares utilizou recursos

financeiros destinados ao aldeamento para adquirir as ferramentas necessárias ao início dos

trabalhos. Munidos os indígenas, foram preparados e semeados quinze alqueires e meio de

terras. Além da área cultivada, apareceram no ofício do padre Pares outros roçados ainda

sendo preparados.

Na espera da ferramenta qe. VE. teve a bem mandar para serviço do Aldeamento do Nonohai com officio de 27 Agosto ppdo e qe. eu não recebi the o 28 de outubro, me demorei no Passo Fundo até o 18 Agosto; que vendo se passaba o melhor tempo de roçar, me decidi a comprar huma ducia de machados e outra de foces para dar principio aos trabalhos. Com esta pouca ferramenta ruin e cara entramos no matto qe. Separa esta Aldeã do passo Ngoi-u-em, donde temos ya huns dez alqueres de roça, bem feita, segun dicem, os qe. entendem, tanta na roçada como na derrubada. O matto hé bom, e se espera qe. apesar do temporal de chuvas, qe. segue vá ya mes e meio, tem de arder bem. Taobem se tem roçado huma tiquera boa, comqe. teremos para a roça-grande huns doce alqueres, que correndo o tempo regularmente darão milho, feijão e abobra para manter abundantemente quantos Bugres se agreguen a este Aldeamento. Á mais da roça-grande os Bugres tem feito as suas particulares: Victorino Condá de 1½ alquer, seu Irmão Domingos de 1 alquer, Canãfe de 1 alquer, Criquincha, Caembé, Ñandi, Nonnemi, Arimbenk cada hum de ½ alquer, Nonohay, o capitão Jacob e outros estão agora roçando com porretes a falta de ferramentas, e espero qe com a chegada d’este se tem de animar muito pois são gente trabalhadora, principalmente os do Nonohay, que dicem querem plantar bastante para não passar mais fome.104

O trabalho de estabelecimento dessas roças de subsistência parece ter dado resultado.

No relatório apresentado pelo padre Pares ao governo da província, em janeiro de 1851,

apareciam não apenas os roçados feitos pelos índios, mas, também, a extração de erva-mate

com fins comerciais no aldeamento da Guarita. Segundo o missionário: “Tanto no anno

104 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.

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anterior como n’este fizerão grandes roças para plantações, e ja levarão ao mercado no anno

anterior 480 arrobas de herva, e no proximo passado 500”.105

A área cultivada nos aldeamentos permaneceu em expansão nos anos seguintes. Em

ofício remetido ao presidente da província pelo diretor do aldeamento de Nonoai, o senhor

José Joaquim de Oliveira, em 1854, foram descritos vinte alqueires de milho e dez de feijão

plantados na região da Guarita.

O tipo de cultura e a forma de plantio que apareceram descritas, tanto nos documentos

apresentados acima como em outros desta série, destacaram a característica de subsistência

dos roçados cultivados pelos índios aldeados. Em geral, eram roças de milho, feijão, abóbora

e batata, produtos de consumo direto, cultivados na medida considerada suficiente para

prover o aldeamento até a próxima safra. Em 1868, no relatório do diretor de índios de

Nonoai, apareceu uma rápida referência ao plantio de cereais. Porém, não ficou especificado

o tipo de grãos cultivados e nem o destino da produção. No mesmo relatório, o diretor

mencionou a utilização de palha na confecção de chapéus, o que nos permitiu supor que o

mencionado cereal tratava-se de trigo.

Entre os documentos consultados, o único que indicava a comercialização de produtos

cultivados pelos indígenas era um ofício do diretor do aldeamento de Caseros, o padre

Antônio Moraes Branco, enviado à presidência da província em 1864.

105 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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De posse do Officio de V.Ex.ª com fecho de 11 do mez preterito, cumpre-me informar a V.Ex.ª que este aldeamento é muito novo, e que por isso não tem tido rendimentos alguns, visto que as colheitas tm sido consumidas pelos Indios. Alguns Indios, alem da roça comum, plantarão suas particulares, e venderão algum milho; mas esse produto naturalmente deve pertencer-lhes, por que mesmo lhes é absolutamte. Precizo. Ds. Ge. a V.Ex.ª = Col.ª M.ª Caseros no Matto Portugues 14 de Fever.º de 1864.106

Também apontava no sentido da produção de subsistência, o fato de o trabalho dos

índios nos roçados dos aldeamentos não receber nenhum tipo de remuneração regular,

mesmo quando os serviços eram prestados nas roças comunais daqueles estabelecimentos.

Demonstrando que a paga pelos serviços dos índios aldeados não era uma prática comum,

em seu Relatório ao presidente da província, em 1851, o padre Pares reclamou da exigência

de pagamento por serviços prestados ao aldeamento feita pelos indígenas migrados de

Palmas e Guarapuava para Nonoai.

Tanto no Aldeamento da guarita como no Nonohay há bastantes Bugres manços dos que estiveram aldeados em Garupoaba e Parmas na Provincia de S. Paulo que são mais civilizados e gostão de ter sua creações e propriedades. Se por uma parte são úteis nas Aldeãs por ser seguros e impedir qualquer traição dos novos e os ensinar a trabalhar, por outra parte dão um mão exemplo porque não querem sem paga prestar serviço nenhum ainda que seja em beneficio do commum.107

A única referência apresentada na documentação como recompensa do trabalho dos

índios nos aldeamentos foi, em 1849, quando roupas e mantimentos foram distribuídos pelo

padre Pares aos indígenas envolvidos no trabalho de preparação de roças em Nonoai.

106 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 14 de fevereiro de 1864 – Maço 2. 107 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. O numero dos qe trabalharão na dita roça he dde 32. Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.108

Assim sendo, excetuando-se a venda de milho na Colônia Militar de Caseros, citada

pelo padre Branco em 1864, as rendas obtidas pelos indígenas eram normalmente produto da

atividade de extração da erva-mate, da prestação de serviços a terceiros, ou ainda, da venda

de artesanato.

Quanto ao artesanato, a atividade também foi citada uma única vez na documentação.

Tratava-se do já mencionado relatório da diretoria do aldeamento de Nonoai, enviado à

presidência da província em 16 de novembro de 1868. Segundo Manoel Francisco de

Oliveira, diretor do estabelecimento no período, os índios adultos faziam chapéus de palha,

retirando dessa atividade alguma forma de sustento. No documento Oliveira afirmava que:

“[...]as mulheres igualmente como os homens empregão na cultura dos sereaes, e em outros

serviços próprios da sua condição, como de fazer chapéus de palha etc, e do que tirão

sufficientes meios de subsistência[...]”109

No entanto, o produto que efetivamente inseriu comercialmente os indígenas aldeados

no mercado rio-grandense do século XIX foi a erva-mate. O produto extraído dos ervais

nativos, localizados na região do planalto, foi citado em cinco dos sete documentos que

tratavam da produção direta no interior dos aldeamentos. A erva-mate aparecia de forma tão

108 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1. 109 Relatório do Diretor do Aldeamento de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao Presidente da Província

do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.

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representativa na economia interna dos aldeamentos que, em 1854, num momento de

esgotamento dos ervais nativos, o diretor de índios José Joaquim de Oliveira propôs ao

governo provincial que se enviassem os indígenas aldeados em Nonoai para a exploração do

mate na província do Paraná. Conforma o diretor: “Amenos que não vão trabalhar os Indios

nos Ervaes d’alem do Goÿoen, territorio da Provincia de Paraná, embreve aqui escaceará a

Erva mate, e não mais os Indios tirarão partido do seo fabrico;[...]”110.

A importância da erva-mate para a inserção econômica dos índios aldeados podia ser

percebida desde os primeiros anos da intensificação na política de aldeamentos na província.

No relatório do padre Bernardo Pares, enviado em janeiro de 1851 ao presidente do

Rio Grande do Sul, o missionário propôs a reserva de um erval para exploração exclusiva

dos indígenas aldeados na Guarita. Como argumento para sustentar a conveniência da

proposta, o padre sugeriu ainda que ficasse a cargo dos índios a abertura de uma estrada para

o escoamento da produção esperada daquele erval, que beneficiaria a toda a população da

região.

O Director Oliveira officiou ao director Geral, pedindo que, sollicitasse da Presidencia uma ordem pella que fosse prohibido por agora aos Portugueses entrar a fazer herva n’um grande herval que os Bugres descobrirão no matto que separa os campos da Guarita do Rio Uruguai. Julgo que esta providencia seria vantajosa desde já ao aldeamento, e logo também a todo o districto, pois deste modo elles mesmos abrirão estrada até o Rio para por elle transportar as hervas a S. Borja e a Uruguayana. A mais se evitaria qualquer desavencia com os outros hervateiros, que por isso não tem os Bugres querido abrir pique ou mostrar o dito herval se não he ao Sr. Oliveira.111

110 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 111 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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A produção de erva-mate aparecia ainda como uma opção de engajamento da mão-de-

obra indígena no mercado regional de trabalho, principalmente nos períodos de entressafra

dos roçados feitos nos aldeamentos. A possibilidade de inserir os indígenas como mão-de-

obra nos ervais foi logo percebida pelos encarregados da catequese e civilização dos

indígenas.

Como destacado no segundo capítulo deste trabalho, o mercado ervateiro era

economicamente importante na região do planalto, pois o produto encontrava um farto

mercado consumidor na região platina. Assim sendo, o trabalho dos índios nos ervais os

inseriu em um mercado regional que tinha a atenção constante das autoridades oficiais,

principalmente das Câmaras Municipais. Além disso, era uma das poucas atividades

econômicas possíveis para a população desalojada dos terrenos apropriados como efeito do

processo de mercantilização da terra na primeira metade do século XIX. Entre esses

desterrados, encontravam-se também os indígenas reunidos nos aldeamentos da província.

No discurso dos diretores dos aldeamentos, a respeito do ajustamento do trabalho dos

índios aldeados, podia-se perceber ainda presente a velha pedagogia da civilização, onde a

prestação de serviços por parte dos índios serviria para acostumá-los ao convívio com os

cristãos. O ofício do padre Bernardo Pares, enviado em novembro de 1848 ao presidente da

província, dando conta do início do trabalho de catequese nos campos da Guarita e de

Nonoai, abordava diretamente as possibilidades de civilização dos indígenas através do

trabalho nos ervais.

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Observei na guarita que os Bugres tem bastante confiança na gente d’aquella visinhança, que tem tido bastante prudência p.ª os attrair, e não sei que até agora se lhes tenhão dado motivo de escandalo: assim he que se acostumão alugar p.ª trabalhos nos hervaes, e se estima seu trabalho a causa da facilidade que elles tem de trepar nas arbores p.ª desgalhar a herva. Isto poderia ser bom p.ª costuma.los ao trabalho, e ao tratto com os christãos; porem era preciso, que não se abusse da sua simplicidade, antes que a vista da recompensa de seu trabalho fosse hum estimulo, que os livrasse da sua natural priguiça.112

Como destacado no documento, a prestação de serviços a terceiros, por parte dos

indígenas, voltou a aparecer como instrumento civilizador. Poderia se criar uma

diferenciação entre a perspectiva dada ao trabalho dos índios em 1848 e as Cartas Régias de

D. João VI, que vigoraram nas primeiras décadas do século XIX, apenas pela sugestão de

uma recompensa material pelos serviços executados nos ervais.

Entretanto, importa destacar que o mercado ervateiro não era o único ramo de

atividade onde a mão-de-obra indígena, proveniente dos aldeamentos instalados no Rio

Grande do Sul a partir da década de 1840, aparecia empregada. Foi citado na documentação

o ajustamento do trabalho dos índios em estradas do norte da província, em roçados de

terceiros e, até mesmo, nas plantações dos diretores de índios.

No primeiro capítulo deste texto, quando foram descritas as atribuições feitas pelo

Regulamento das Missões aos Diretores de Índios, foi citada uma confusão existente entre a

antiga tutela dos Juízes de Órfãos e as dos sobreditos diretores sobre o trabalho dos

indígenas. Fazia parte das incumbências dos referidos Juízes ajustar acordos de trabalho, não

apenas para índios, mas para todos os seus tutelados. Já no caso dos Diretores de Índios, não

fazia parte de suas atribuições controlar e disponibilizar o trabalho dos mesmos para serviços

112 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 1848 – Maço 1. Grifos meus.

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fora dos aldeamentos. Mesmo assim, os Diretores de Índios rio-grandenses não só ajustavam

contratos de trabalho para os indígenas aldeados, como também apresentavam propostas de

aplicação para a mão-de-obra reunida nos aldeamentos. Os documentos abaixo demonstram

que essa foi uma prática comum na província durante todo o período analisado nesta

pesquisa.

Consta que se vaê retirar a commissão empregada na estrada que vaê ao alto Uruguai; e, não estando a dita estrada ultimada, seria pois de summa vantagem para os Coffres da Provincia, e mesmo para os Indigenas, que estes fossem a li empregados para se ultimar aquelle serviço, que tantos contos de reis tem-se n’elle absorvido.113 Tenho a satisfação de participar a V.Ex.ª que dedicando-me este anno á plantação do trigo, contractei os Indios sob a minha direcção para esse serviço, dando-lhes durante o tempo do mesmo serviço o mantimt.º, e 440rs. diarios a cada um;114 Havendo eu licenciado alguns Indios deste Aldeamt.º para se justarem em serviço de roça, e outros, nas immediações do lugar denominado = Turvo = a distancia de 4 legoas ms. ou menos d’aqui, acontece que o Indio de nome Jacintho, com seu irmão de nome João Gangrê, e ms. 3 ou 4 com suas mulheres se juntarão com úm tal João Damasceno, e ali permanecerão ganhando por tempo de úm mez.115

Mesmo considerando a existência das roças de subsistência nos aldeamentos e as

rendas oriundas do comércio de erva-mate, da prestação de serviço a terceiros e da

esporádica comercialização de produtos cultivados pelos índios aldeados, não se poderia

afirmar uma auto-suficiência econômica nem dos indígenas e nem dos aldeamentos da

província no século XIX. Desde o início da intensificação na política de aldeamentos, os

diretores de índios do Rio Grande do Sul fizeram constantes pedidos de ferramentas,

vestuário, gêneros alimentícios e remédios ao governo provincial. Em doze dos documentos

113 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 27 de abril de 1863 – Maço 2. 114 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 15 de janeiro de 1865 – Maço 2. 115 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.

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consultados, todos provenientes das diretorias de índios, apareceram solicitações de algum

tipo de bem ou produto essencial para a manutenção do trabalho de catequese. O primeiro

documento, desta série de doze, que dava conta da necessidade do Estado abastecer a um

estabelecimento de catequese e civilização de indígenas da província era um ofício do padre

Bernardo Pares ao presidente da província, de outubro de 1849.

Agora, Exmo Sñr, he preciso ayudar a manter esta pobre gente até a colheita, pel-o qe. acabo de comprar trinta alqueres de feijão, e quince de farinha de mandioca qe. comprei com preferencia ao milho, porqe. vulta de menos custo. A mais era necessário comprar algumas reses para comer, pois ficão somente dez das 27 qe. eu comprei em Agosto. Me parece qe. comprando a mais do Feijó e farinha qe. dice, tenho comprado, 20 reses e 200 mãos de milho, ou alguns alqueres mais de farinha, haverá sufficiente mantimento para 250 bugres qe. hé o numero qe. julgo serão los de este Aldeamento logo qe. se ajuntem os qe. estão caçando ou roçando e a gente do campo do Araxi qe. ya estão chegando.116

No ofício, o padre se referia a uma circunstância bastante comum onde a província era

chamada a prover os indígenas. A solicitação foi feita logo depois do início do trabalho de

preparo dos roçados para o ano seguinte em Nonoai. Portanto, apesar de terem sido feitas

roças, ainda não havia produção para consumo imediato da população reunida no

aldeamento.

Além da dificuldade trazida pela espera do tempo de maturação das plantações, era

necessário abastecer os índios que estavam envolvidos nos trabalhos das roças. Nesse caso, a

presença do Estado como provedor também renovava a face, anteriormente citada, da

pedagogia da civilização. Isso pois, o fornecimento dos gêneros alimentícios só era garantido

aos que estivessem realmente envolvidos com as atividades determinadas pelos diretores dos

estabelecimentos. Essa função “civilizadora” do abastecimento dos índios pela província

116 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.

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ficou exemplificada em outro trecho do ofício do padre Pares: “No qe. respeita este trabalho

estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo

qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião

gostosos;[...]”.117

Como demonstra o documento acima citado, a participação da província era

fundamental para a subsistência dos aldeamentos. Outros documentos, como o relatório do

padre Pares de janeiro de 1851, o ofício de José Joaquim de Oliveira de dezembro de 1854 e

o ofício do padre Branco de novembro de 1862, demonstram que a complementação dos

recursos dos aldeamentos pelo Estado não foi sazonal, ou conseqüência dos momentos de

instalação dos estabelecimentos. Os três documentos citados, além de não terem sido

encaminhados à presidência da província na mesma época, foram redigidos em locais

diferentes. O padre Pares fez seu relatório a partir de Passo Fundo, abordando vários

aldeamentos e toldos da região. O diretor Oliveira escreveu seu ofício em Nonoai, tratando

especificamente daquele local. O padre Branco, por sua vez, se referiu aos índios reunidos

sob sua direção na Colônia Militar de Caseros. As diferentes datações e locais de origem dos

documentos atestaram uma necessidade constante dos aldeamentos em serem abastecidos,

pela província, com mantimentos, ferramentas, animais de tração ou de corte, roupas e outros

gêneros.

Além das questões ligadas à subsistência dos índios aldeados, o fornecimento de

gêneros, por parte do Estado, era importante para a sedentarização das populações reunidas

nos aldeamentos. A garantia de uma relativa fartura de alimentos era utilizada como

117 Idem.

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argumento para atrair os indígenas para os estabelecimentos de catequese no Rio Grande do

Sul.

Não se tendo podido conseguir que os Bugres que baixo do comãndo dos Chefes Capitão Dovre e Capitão Braga andão vagando pellos Mattos do Campo-do-Meio e Vaccaria se aldeassem no Pontão; os PP. Missionarios por ordem dos Exmõs. Sñres. Presidentes Sõr. Andrea e Sõr. Pimente Bueno passarão ao campo-do-meio que era o logar que os Indigenas preferião. No fim de Agosto estavão ja reunidos no dito campo o Capitão Dovre com umas 150 almas, inclusas mulheres e crianças, entre elles dois filhos e um irmão do Braga que mandou a dizer que elle se presentaria quando houvesse que comer.118

Como dito no segundo capítulo deste trabalho, a sedentarização das populações

indígenas nos aldeamentos nunca chegou a ser plena. Era comum grupos migrarem para

dentro e fora dos aldeamentos, ou entre um estabelecimento e outro. Conforme constatou-se

na documentação, nos momentos onde o abastecimento dos índios pela província sofreu

algum tipo de restrição, os grupos aldeados dirigiram-se a suas roças nos antigos Toldos, ou

passaram a vagar pelos matos em busca de caça. Essa relação, entre as remessas regulares de

gêneros alimentícios e de vestuário para os estabelecimentos de catequese da província e a

manutenção do sedentarismo dos indígenas neles reunidos, apareceu expressada de forma

direta cinco vezes em quatro dos documentos consultados neste trabalho. Os ofícios enviados

pelos diretores de índios José Joaquim de Oliveira e Antônio Moraes Branco,

respectivamente em 1854 e 1862, à presidência da província, exemplificavam essa

necessidade de abastecimento dos índios para mantê-los aldeados.

118 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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Actualmente tem cessado as continuas brigas em que vivião entre si estas tribus e por isso vae a sua população em progressivo augmento e com quanto vão se amoldando ao trabalho, plantando milho, feijão, e outros legumes; e empregando-se no cultivo de Erva, por veses ainda sahem partidas de Indios á caça, ja por que de prompto lhes custa abandonar antigos hábitos, e ja por que as veses lhes falta o necessario alimento.119 Os Indios ficárão summamente tristes, porque actualmente não tem para sua subsistencia mais que a caça, e essa em pouca abundancia, e dispostos a retirarem-se para outros lugares onde ela abunda, me tem sido mui penoso demove-los desse proposito: mas felizmente ainda aqui se conservão.120

Entretanto, depois da década de 1860, mesmo sob pena de os índios abandonarem os

aldeamentos, o governo da província passou a limitar as remessas de alimentos e roupas para

os indígenas. Principalmente nos documentos redigidos entre 1862 e 1868, apareceram

comentários dos diretores de índios indicando que apenas as crianças, os velhos e os

impossibilitados de trabalhar regularmente receberiam subsídios do Estado. Naquele período,

os indígenas considerados “aptos para o trabalho” parecem ter sido obrigados a garantir sua

alimentação e de sua família, além de arcar com despesas de vestuário.

Hontem chegou dessa cidade a esta Colônia o Sr. Alfs. Ajudante da mesma Leôncio José Barboza e hoje me entregou o Officio de VEx.ª de 4 do mez passado em que ordena que d’ora em diante so se abonará etapa aos Indios menores, e ás pessoas que não puderem de todo trabalhar, o que cumprirei.121

Esse redirecionamento na postura do Estado, em relação as suas obrigações como

provedor dos índios aldeados, foi acirrado nos últimos anos da década de 1860. O relatório

do diretor geral de índios do Rio Grande do Sul, enviado ao governo da província em 16 de

119 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 120 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 13 de novembro de 1862 – Maço 2. 121 Idem.

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novembro de 1868, indicava o corte do fornecimento de gêneros de qualquer espécie, mesmo

aos indígenas considerados inaptos para o trabalho.

Em outros tempos os cofres da provincia fornecião o vestuario preciso aos velhos invalidos, porem ha algum tempo que tem sido interrompido tam necessário supprimento; e por espírito de humanidade tenho às minhas expensas supprido á alguns entre os maiz necessitados com o preciso vestuario.122

Nesse período de restrição do abastecimento, os índios e suas famílias recebiam

recursos do Estado apenas quando se ausentavam dos aldeamentos por convocação do

governo para prestarem serviços públicos. Um exemplo dessa circunstância foi a convocação

do Cacique Doble e mais trinta homens no aldeamento da Colônia Militar de Caseros para

perseguir grupos arredios nos campos do Turvo e de Cima da Serra, em 1863. As esposas e

filhos dos índios envolvidos na perseguição receberam alimentos que os subsidiassem

durante a ausência dos homens.

Tenho a saptisfação de participar a V.Ex.ª que em cumprimento no que V.Exª. declarou-me em Officio de 6 d’Outubro proximo preterito, partirão d’aqui no dia 3 do prezente mez, em companhia do digno Alfes. Vice Director desta Colonia, que me disse haver sido para isso authorizado por V.Exª., 30 Indios, no proposito de capturarem os Indios nômades que vivem errantes pelas mattas do Turvo, e de Cima da Serra. Estes Indios se prestarão, e principalmte. o Cacique Doble, de mto. bôa vontade, e me assegurarão que não voltarião sem que fossem satisfeitos os desejos de V.Exª., e destes povos, levando á prezença de V.Exª. todos os selvagens que por esses lugares vivem. Disse-me o Cacique Doble que lá andão alguns que são parentes d’outros aqui aldeados; que eu pedisse a V.Exª. para traze-los em sua companhia; e que os outros, principalmte. os menores, elle os deixaria a V.Exª. para aprenderem officios, Vª. Peço pois a V.Exª. que se digne attende-lo pois assim é necessário. Forão os Indios fornecidos na forma porque V.Exª. me ordenou no citado Officio, e fico fornecendo as Índias de carne, farinha, e sal, menos aquellas cujos maridos ficarão, e farei a menor despeza que for possivel; sendo do meu dever pedir a V.Exª. que os Indios se demorem pouco nessa Capital para evitar-se maior despesa durante a sua auzencia.123

122 Relatório do Diretor Geral Interino dos Índios no Rio Grande do Sul, Manoel Francisco de Oliveira, ao

Presidente da Província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2 123 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 7 de dezembro de 1863 – Maço 2.

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129

A postura do governo provincial ao diminuir sua participação na subsistência dos

índios aldeados indicava a existência de uma perspectiva de que, com o passar dos anos, os

indígenas estariam economicamente integrados à sociedade e não precisariam mais ser

tutelados pelo Estado. As constantes solicitações de roupas e alimentos feitas pelos diretores

de índios, principalmente nos períodos de entressafra, atestavam a incapacidade dos

aldeamentos de se auto-sustentarem. Mesmo assim, os documentos de 1862 e 1868, citados

anteriormente, demonstravam que no Rio Grande do Sul o governo levou a cabo o princípio

a partir do qual os indígenas se tornariam capazes de proverem a si e a suas famílias. Apesar

de as restrições ao abastecimento dos indígenas aldeados ter iniciado apenas em 1862, a Lei

provincial n.º274, de novembro de 1853, determinava, em seu artigo 6º, que seriam

fornecidas vestimentas apenas às crianças das aldeias e que aos índios adultos se remeteriam

apenas as ferramentas essenciais ao trabalho nas roças e derrubadas de matos.

Retomando as dificuldades encontradas na sedentarização dos indígenas, a

documentação apontou a segurança nos aldeamentos como uma questão fundamental para

convencer os caciques e seus seguidores a permanecerem reunidos nas áreas destinadas pelo

governo. Seis dos ofícios redigidos pelos diretores de índios tratavam da segurança no

interior dos estabelecimentos e na disposição dos aldeados em se retirarem para os matos em

função desse problema.

Os primeiros três documentos dessa série referiam-se a necessidade da presença de

uma Companhia de Pedestres para conter as divergências existentes entre os caciques nos

aldeamentos. Entre esses três documentos, o relatório do padre Pares, escrito em janeiro de

1851, pareceu o mais emblemático. Naquele texto, o missionário relatou ter ouvido dos

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próprios índios o receio de conflitos entre diferentes grupos reunidos no aldeamento de

Nonoai.

[...] todos os mais acima expressados estiverão juntos no Aldeamento, ainda que não tivessem casas, ate que no mez de fevereiro do anno passado tendo sido dissolvida a companhia de Pedestres; o velho Nonohay pedio permisso para ir morar no seu antigo Toldo que està a duas legoas, dando por razão que tinha là as suas plantações està a duas legoas, dando por razão causa foi por medo deqe. a sua gente não brigasse com a de Nicafi, faltando a força que lhes impunha respeito. Tão bem e pela mesma causa quiserão retirar-se os Caciques Vutoro e Canhafé, mas se demorão com a esperança deqe. o Governo mandaria novo destacamento, he que no mês de Outubro ppdo. tendo havido uma desavencia entre as mulheres, esteve as gentes de Vuotoro e Canhafé para brigar com a do Condà e de Nicafi, o qe. affortunadamente conseguirão impedir os PP Cathequistas: porem de resultas se retirarão os dois ditos Caciques a morar com sua gente nas roças a distancia de ½ legoa do aldeamento, donde ficou só a gente do Condà e de Nicafi, e desde ese tempo não houve mais novidade.124

A necessidade de patrulhar as relações entre os próprios índios foi conseqüência da

reunião, em um mesmo espaço territorial, de grupos indígenas com longos históricos de

rivalidade. Em outro trecho, do mesmo documento, o padre coloca que os próprios indígenas

consideravam difícil a manutenção de um ambiente de tolerância mútua entre grupos rivais

sem a presença dos Pedestres.

Seria conveniente que os Directores pudessem exigir dos Indios que não saíssem do Aldeamento sem portaria que isto os costumaria a sujeição, isto seria facil se existisse em elles uma força de respeito; de outro modo não he posivel. Os mesmos Indios reclamão esta força e dizem que não he possivel sem ella morar juntos. Logo que em Fevereiro se retirou do Nonohay a companhia de Pedestres, se separou da aldeã o velho Nonohay.125

A relação direta entre a reunião de grupos rivais e os conflitos internos nos

aldeamentos foram destacados ainda pelas datas dos documentos. Os três documentos

124 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1. 125 Idem.

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iniciais da série, que solicitavam a presença das Companhias de Pedestres para aplacar

conflitos entre grupos indígenas rivais, haviam sido redigidos pelo padre Pares nos anos

imediatamente posteriores a intensificação da política de aldeamentos na província do Rio

Grande do Sul. Essas amostras eram: um ofício de outubro de 1849, um ofício de abril de

1850 e o relatório de 1851.

Com o amadurecimento dos aldeamentos, os grupos aldeados foram se acomodando à

convivência com seus antigos rivais. Em 1854, o diretor José Joaquim de Oliveira dava

notícia de Nonoai ao presidente Sinimbu, dizendo que: “Actualmente tem cessado as

continuas brigas em que vivião entre si estas tribus e por isso vae a sua população em

progressivo augmento [...]”.126

Quanto ao problema da segurança nos aldeamentos, as Companhias de Pedestres

apareceram, na documentação, como a solução proposta para outros três tipos de problemas

dos estabelecimentos de catequese da província: os ataques de índios arredios, criminosos

escondidos próximos das residências dos índios e as invasões das terras reservadas aos

indígenas por portugueses e brasileiros.

Desde 1850, entre os distúrbios relatados pelos diretores de índios, estavam os

enfrentamentos entre índios aldeados e grupos arredios. O ofício do padre Pares ao governo

da província, em abril de 1850, dava conta do receio dos índios em serem atacados por

grupos que permaneciam vagando pelos matos, à margem dos aldeamentos.

126 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2.

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Outra hora, E.S., não era eu de parecer, qe. houvesse soldados nos Aldeamentos; mas depois qe. vi as circunstâncias particulares d’estes indigenas, julguei d’outro modo, e muito mais quando ouvir aos Chefes principaes pedirem e exigirem huma força qe. os proteja, pois sabem por não remotas experiencias qe. o Bugre selvagem e sempre inimigo dos Aldeados.127

O relatório do padre Pares, de janeiro de 1851, continha observações explicando as

possíveis causas dos enfretamentos entre índios aldeados e arredios. Mesmo depois da

intensificação da política de aldeamentos pelo governo da província, segundo as observações

daquele relatório, encontram-se indícios da manutenção de uma política de vinganças entre

as lideranças indígenas, do sul do Brasil, no século XIX. No documento, o missionário fez

referência à memória que os grupos aldeados mantinham “das matanças” nos campos de

“Parmas” e de “Garupoaba”. A memória desses eventos, unida à ausência dos Pedestres, foi

o que mobilizou os seguidores do Pay-bang Nonoai a se retirarem do aldeamento dirigido

pelo padre Pares em 1850.

Logo que em Fevereiro se retirou do Nonohay a companhia de Pedestres, se separou da aldeã o velho Nonohay. A mais elles sabem que os Indios do matto são inimigos dos Aldeados e não se esquecem das maranças de Parmas e de Garupoaba.128

Os ataques de índios arredios aos índios aldeados pareceram ter se repetido com

freqüência, ao menos no período até 1868. Mais de uma década depois da solicitação de

segurança feita pelo padre Pares, a Colônia Militar de Caseros enfrentou um ataque de índios

arredios provenientes das matas da região do turvo. Segundo o relato do diretor do

127 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 08 de abril de 1850 – Maço 1. 128 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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aldeamento, o objetivo dos agressores era seqüestrar mulheres e crianças. Naquele evento, a

participação dos Pedestres pereceu definitiva para a defesa dos moradores de Caseros.

[...] ha dias fomos vizitados por grande numero d’Indios que pretendião atacar este aldeamet.º naturalmte. para raptarem as Índias e as crianças que ficarão aqui durante a auzencia dos Indios que seguirão em demanda dos que prenderão nas mattas do Turvo, e forão conduzidos á prezença de V.Ex.ª = Este Aldeamt.º foi = bombeado = por essa horda de selvagens, e pr. fim atacado ao escurecer; mas felizmente não pereceo, nem faltou pessoa alguma. Grande foi a minha tribulação nestes dias aziagos. Deprequiz força ao Captãº. Director desta Colonia; elle me a prestou, e com esta unida aos Colonos paizanos, e Indios que ficarão, a quem chamei ás armas, conseguimoes fazer retirar esses barbaros assassinos. Os Indios que estavão no Aldeamtº., e bem assim as Índias não conhecerão a nenhum dos agressores; mas dizem que deve ser gente, ou de Nonohay, ou do Cacique Victorino, que, só, e sem Director, pr. que é feroz, vive no campo de Palmas Província do Paraná, e costuma fazer destas excursões.129

Os Pedestres também foram solicitados pelos diretores de índios para defender os

aldeamentos contra possíveis agressores brancos. Nesse caso, chamou a atenção o argumento

utilizado por José Joaquim de Oliveira, diretor de Nonoai em 1866, para justificar a

necessidade de soldados ou policiais naquele aldeamento. Segundo o diretor Oliveira, os

matos em torno de Nonoai estavam repletos de criminosos e desertores das forças armadas

que, por sua vez, só não estariam cometendo “atrocidades” contra os indígenas por medo da

força policial existente no aldeamento.

Exm.º Senr, esta aldeã não póde prescindir de ter n’ella húa Força, que fassa esta indiada conter-se em respeito; tanto mais hoje, que se achão estas mattas aquém, e alem do rio Goyoen inside de desertores e outros criminósos; os quais temendo-se do destacamento, the esta dacta se conservão sem cometerem atrossidades.130

129 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 14 de fevereiro de 1864 – Maço 2. 130 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 01 de abril de 1866 – Maço 2

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As Companhias de Pedestres também foram solicitadas para defender os índios

aldeados contra outro tipo de invasor: os posseiros portugueses ou brasileiros que se

instalavam entre os indígenas e depois reclamavam direitos sobre as terras por eles habitadas.

Esse tipo de invasão dos terrenos reservados aos índios apareceu, na documentação

consultada durante esta pesquisa, imediatamente após o início do registro das posses imposto

pela Lei de Terras de 1850. Essa sucessão cronológica sugeriu uma relação direta entre os

efeitos da Lei de Terras e a existência de conflitos interétnicos nos aldeamentos. Dois

documentos do padre Pares exemplificaram essa relação entre a Lei de 1850 e os conflitos

entre índios aldeados e posseiros. No primeiro dos documentos mencionados, o missionário

abordou as dificuldades de manter a ordem nas relações entre indígenas e invasores,

comentando que: “Não he facil regulamentar os Aldeamentos sem uma força que imponha

respeito aos Bugres e aos Portugueses que morão entre elles”.131

No segundo documento, a relação entre a tomada de posse dos terrenos e distúrbios

envolvendo os indígenas que habitavam os campos de Nonoai ficou mais explícito:

Tendo sabido que com o fim de prevenir as desordens que ameação no Aldeamento de Nonohay e expulsar d’aquelles campos os intrusos que estão tomando posses, tinha VE ordenado ao Capitão Comandante da Guarda Nacional de Passo Fundo de mandar um destacamento da mesma Guarda, e ao Subdelegado d’aquelle districto de ir com a dita força a executar as providencias prescriptas[...]132

Como indicaram os documentos citados nas últimas páginas, a intensificação da

política de aldeamentos reuniu nos estabelecimentos mantidos pela província boa parte dos

131 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1. 132 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 05 de agosto de 1851 – Maço 1.

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índios remanescentes que habitavam o norte do Rio Grande do Sul. Entretanto, os conflitos

entre grupos indígenas, bem como entre eles e os habitantes brancos da região, não foram

solucionados com a concentração das populações nativas nos territórios a eles reservados

pelo Estado. Bem pelo contrário, os aldeamentos apareceram na documentação coma áreas

de constantes conflitos interétnicos, onde estavam em questão a liderança dos grupos

aldeados, a subsistência da população ali reunida e a posse da terra.

Como dito anteriormente, as Companhias de Pedestres eram a proposta dos diretores

de índios para impor a ordem aos habitantes dos aldeamentos. Mesmo tendo sua presença

justificada pela necessidade da existência de força armada para manter a segurança da

população aldeada, os Pedestres foram citados como envolvidos em enfrentamentos diretos

contra os indígenas apenas uma vez na documentação. Tratava-se da narrativa feita pelo

padre Antônio de Moraes Branco sobre os eventos ocorridos durante um baile no aldeamento

de Caseros, em 1863, onde ocorreu o assassinato de um dos índios sob direção do padre

Branco.

[...] havendo no dia 26 do presente, varios soldados desta Colonia instaurado úm baile em caza de úm dos ditos soldados, convidarão para elle varios Indios [...]; ahi se entregarão á bebida tanto aquelles, como estes, e quando eu menos pensava, por que tudo ignorava, eis que ouço tocar a reunir e que dous Indios chegão a minha caza, [...] dando-me parte que se estavaão assassinando seus companheiros. Corri immediatam.te ao lugar do conflicto, e deparei com úm dos Indios mais briosos mortalmente ferido no craneo [...] Vendo os outros Indios o seu companheiro neste estado, correrão ao aldeamt.º; armarão-se [...] e estavão dispostos á vingança, enquanto o Cap.tão Director também se preparava para a lide.133

Além os eventos do baile na Colônia Militar de Caseros, não houve narrativas de

enfrentamentos regulares dos Pedestres com os índios reunidos nos aldeamentos, ficando

133 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 28 de julho de 1863 – Maço 2.

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suas funções restritas a sustentar a ordem estabelecida pelos diretores dos estabelecimentos

de catequese e civilização dos indígenas.

Também chamou a atenção que as Companhias de Pedestres raramente eram

invocadas para perseguir grupos indígenas fora dos aldeamentos. Tanto nas ocasiões onde os

grupos arredios atacaram os índios aldeados, quanto nos assaltos a fazendas e casas de

portugueses e brasileiros, normalmente os próprios indígenas eram chamados para perseguir

os atacantes. Nas poucas perseguições onde foi narrada a presença de Pedestres, eles

formavam pequenos destacamentos de quatro ou cinco soldados acompanhando os indígenas

encarregados da perseguição. Assim sendo, ficou ressaltada a presença e atuação de soldados

apenas como agentes de manutenção da ordem nos aldeamentos estabelecidos ao norte do

Rio Grande do Sul depois de 1848.

Mesmo com a presença desses corpos regulares de soldados encarregados de manter a

ordem social, os documentos consultados não traziam relatos da aplicação de punições aos

indígenas, pelo menos não ligadas a sublevações ou desordens causadas por indígenas. As

poucas situações onde foram propostas punições aos índios aldeados, pelos diretores dos

aldeamentos, diziam respeito à não submissão deles aos padrões propostos pelo Regulamento

de 1845 para a inserção dos indígenas no convívio com o restante da sociedade.

Esses casos, em geral, demonstravam uma resistência dos indígenas em abandonar

seus antigos hábitos de subsistência, como as migrações em busca de caça. Diante disso, os

diretores de índios normalmente cortavam o fornecimento de gêneros alimentícios, roupas ou

ferramentas para os indivíduos que persistiam nos antigos hábitos tribais. O ofício do padre

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Pares ao presidente da província, datado de outubro de 1849, exemplifica esse tipo de

punição contra a resistência dos índios em aceitar o trabalho nos aldeamentos.

No qe. respeita este trabalho estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião gostosos [...] Os Bugres qe. tem reusado trabalhar, o melhor, qe. por não trabalhar se tem ido a caçar, pois nenhum tem reusado positivamente, são só os tres Irmãos chamados Portellas e Pedro Nicafi com seu Irmão o capitão Chico, este anteontem me prometeo qe hoje ia a principiar a sua roça. A todos elles lhes neguei o mantimento. [...] 134

Somente em um ofício, enviado pelo padre Branco ao presidente da província, em

1866, foi solicitada uma punição a um dos indígenas não relacionada à resistência contra os

novos padrões de produção propostos para os índios aldeados. Na ocasião narrada pelo padre

Branco, o índio Jacintho Doble teria se envolvido em uma relação amorosa com a filha de

um fazendeiro brasileiro na região do Turvo, indispondo-se com a família da moça e com a

população vizinha da Colônia Militar de Caseros. Como já comentado no item 3.2 deste

capítulo, para resolver a questão, o padre Antônio de Moraes Branco propôs ao governo

provincial que Jacintho e seu irmão João fossem banidos do aldeamento e compulsoriamente

engajados na marinha imperial.

Este Indio Jacintho não deve ms. morar neste Aldeamt.º, por que com o seu exemplo incita os outros a actos semelhantes, e alem disso acarreta sobre a Tribu a odiosidade do povo, que naturalmte. almeja a sua punição. Todos os Indios repreovárão o acto deste; só foi elle acompanhado do irmão João Gangrê, que tambem, por perverso, e vadio, deve acompanhar a Jacintho ao destino que V.Ex.ª der aos dous. Sou portanto d’opinião que devem estes dous sujeitos sentar praça na mairnha [...]135

134 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1. 135 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.

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138

Estranhamente, apesar da repetida presença de religiosos na direção dos aldeamentos,

a pregação de doutrinas religiosas entre os indígenas foi parcamente abordada nas

correspondências e relatórios das diretorias de índios. Normalmente, quando o tema era

citado, resumia-se a reclamações pela ausência de catequistas nos estabelecimentos

destinados à civilização de indígenas, ou ainda, a breves relatos do andamento da construção

de capelas e residências para os padres que dirigiam os indígenas aldeados. Apenas dois

documentos abordavam mais profundamente a questão. O primeiro deles foi enviado por

Bernardo Pares a um destino desconhecido e em data imprecisa, mas provavelmente nos

anos iniciais da intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul. Trata-se de

um pequeno bilhete do missionário explicando a razão de terem sido feitos poucos batismos

entre os índios já reunidos por ele.

Observações Quando os Bugres começarão a amançarse tanto n’este como na Provincia de S. Paulo, os moradores dos Sertões a Cuias casas iaô pedir algumas coisas, para mais os attrair, e accreditando que assim propagarão a Religião, os costumavão bautizar sem os instruir, nem fazer-lhes entender outra coisa, se não que terião compadres e padrinhos. São muitos os que para ter compadres e padrinhos se tem feito bautizar, duas, tres e mais vezes, sem fazer do baptismo outra estimação ou apreço que a do interesse que lhes podia resultar de terem compadres e padrinhos. Desde a primeira vez qe cheguei entre elles, se me presentarão muitos para que os baptizasse; mas como tive occajião de me informar d’estas circunstancias, e de duvidar até se olharão o baptismo como coisa religiosa, mesmo os mais civilizados, e que se chamão christãos por ter sido baptizados no modo dito, fixei estas reglas que até agora temos observado: 1º não baptizar aos adultos, fora do perigo de morte sem a necessaria instrucção, conforme a capacidade d’elles, e sem que dem provas de estimar o bautismo e ley cristão. 2º Não bautizar as crianças sem consentimento dos pais, e isto só havendo esperanças de que poderão ser educados na Religião, e a mais sempre que houver algum perigo da morte. Este he o motivo de ser poucos ainda os que temos bautizado, a pesar de não haver repugnância de parte d’elles.136

136 Correspondência do Padre Bernardo Pares. AHRGS – Catequese dos Índios, 1848 a 1852 – Maço 1.

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139

Como menciona o missionário, até aquele momento os indígenas ainda percebiam a

conversão ao catolicismo através de uma lógica intragrupal, onde o batismo estava sendo

encarado, por eles, como uma possibilidade de estabelecer vínculos com os cristãos que

estavam se instalando no interior de seus territórios tradicionais. Entretanto, os documentos

analisados neste estudo não permitiram determinar que tipos de benefícios os indígenas

esperavam alcançar com a construção de tais vínculos. Assim mesmo, foi possível fazer uma

associação entre o apadrinhamento católico que os índios buscavam através do batismo e as

tradicionais alianças políticas feitas pelos Kaingang através de casamentos. Esses casamentos

criavam laços de parentesco entre caciques de grupos tribais diferentes e expandiam as redes

de influência das lideranças grupais por vastos territórios.

A doutrina religiosa no interior dos aldeamentos voltou a ser referida diretamente

somente em mais um documento. Foi em um ofício do padre Bernardo Pares ao presidente

da província tratando das despesas feitas no aldeamento da Guarita, em 1849. No ofício, o

missionário menciona a presença de um menino índio na residência dos padres, que estaria

trabalhando como pajem em troca de comida e dos ensinamentos da doutrina católica.

[...] somente me sorprendo achar no documento nº11. a quantia de 28$000 de aluguer de hum pagem, qe. não atino possa ser outro qe hum Indio botocudo de 12 a 13 annos a quem criamos facermos favor com dar-lhe a comida e insimorar a doutrina, e qe. não tínhamos pedido, nem d’elle precisabamos.137

Como demonstram os fragmentos acima, mesmo sendo comum a ação de missionários

na direção dos estabelecimentos de catequese e civilização de indígenas, a atividade de

doutrina foi pouco referida na documentação. A ação dos religiosos como diretores de índios,

137 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 28 de junho de 1849 – Maço 1.

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140

descrita nos documentos, aparece muito mais ligada à questão da administração de

problemas temporais. Apesar de o Regulamento das Missões descrever detalhadamente os

profissionais que deveriam estar disponíveis nos aldeamentos, bem como as atribuições de

cada cargo138, eram os missionários quem cumpriam as funções de Diretor, Tesoureiro,

Almoxarife e, em alguns momentos, aplicavam receitas homeopáticas na tentativa de

substituir os Cirurgiões.

3.4 A Reação dos Indígenas Aldeados

O último dos eixos temáticos, emergido da documentação durante o processo de pré-

análise, orbitava as reações dos grupos Kaingang ao processo de intensificação da política de

aldeamentos no Rio Grande do Sul. Essas reações139 dos indígenas contatados ou tutelados

pela província aparecem dispersas, em breves narrativas, por treze dos documentos

consultados, sendo identificadas em dois formatos básicos: a resistência e a associação.

Como resistência estão sendo consideradas as ações dos indígenas, efetivadas em

grupo ou individualmente, que se oponham aos padrões de produção e convívio social

difundidos pelos agentes do Estado no interior dos aldeamentos, ou ainda, a política

indigenista do Império.

138 Os cargos que compunham a administração dos aldeamentos e suas atribuições, segundo o Regulamento das

Missões, foram descritos nos item 1.5, do primeiro capítulo deste trabalho. 139 Importa destacar aqui as dificuldades de apreender, com precisão, a percepção que os indígenas tinham da

política imperial de aldeamentos. Como as sociedades indígenas do planalto gaúcho eram ágrafas, os relatos disponíveis ao trabalho de pesquisa foram redigidos por agentes do Império Brasileiro e, portanto, estão distorcidos pelas representações prévias que esses agentes tinham dos índios. Ricardo Salvatore, em seu texto sobre as representações do índio no governo argentino de Rosas, atentava para essas dificuldades. Segundo o autor: “Esto complica nuestras historias y nos lleva, irremediablemente, a prestar atención a lo que he llamado el problema de la representación y, en particular, a las formas por las cuales el estado construyó el sujeto que llamamos “indio” y silenció o deformó sus voces” (SALVATORE, 1996, p. 70). Assim, as formas de reação do indígena à política imperial de aldeamentos foram recuparedas das entrelinhas da documentação produzida pelos próprios agentes civilizadores do Império.

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141

A oposição, principalmente aos modelos de produção, foi uma forma de resistência

bastante referida nos ofícios e relatórios das diretorias dos aldeamentos. Esse modo de

resistir aos padrões culturais que deveriam ser implantados nos estabelecimentos provinciais

de civilização de indígenas, apareceu ligada a forma tradicional de concepção do trabalho

dos Kaingang. Segundo ela, o trabalho se distribuía sexualmente no interior do grupo, sendo

o trabalho nas roças reservado às mulheres. O padre Pares, em ofício enviado ao presidente

da província em 1848, fez referência às dificuldades trazidas por essa diferença cultural.

[...]a repugnância que tem elles pe.lo trabalho não provem somente da antural preguiça e da falta de costume, mas tambem da portuasão em que estão de que o trabalho he coisa propria só dos escravos e das mulheres, e como temam a escravidão mais do que a morte, por isso he que detestão o trabalho, e que o considerão como coisa degradante.140

O modelo produtivo implantado nos aldeamentos previa a integração dos indígenas ao

restante da sociedade capitalista preferencialmente através da agricultura, o que degradava o

modelo culturalmente estabelecido como estereótipo masculino pelos indígenas. Segundo

esse modelo cultural indígena, a derrubada do mato nas áreas onde seriam feitos os roçados e

a busca de alimentos através da caça seriam as atividades produtivas desenvolvidas pelos

homens141.

140 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 141 A resistência dos indígenas em abandonar os antigos padrões de produção do grupo representa uma tentativa

de manutenção do grupo como uma sociedade étnica e culturalmente diferenciada. Em seu texto sobre as relações entre folclore, antropologia e história social, Thompson coloca a resistência dos hindus em abandonar seus modelos culturais de caridade e mendicância como uma tentativa de sobrevivência social daquele grupo. Segundo o autor: “A los ojos de los dirigentes británicos la resistencia de estos pobres aparecia, con frecuencia, como passividad o “fatalismo”. Pero dentro de este fatalismo puede que se escondiera la sabiduria de la supervivencia”. (THOMPSON, 1992, p. 76) Aplicando a observação do autor sobre as populações hindus ao caso dos Kaingang do planalto gaúcho, a negação dos modelos produtivos apresentados pelo Regulamento das Missões de 1845 representaria uma tentativa de sobrevivência dos índios enquanto grupo social portador de uma identidade diferenciada dos demais.

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142

Já no modelo produtivo dos aldeamentos do século XIX, o patriarca do núcleo familiar

monogâmico era o responsável por prover a subsistência de seus dependentes, que, pelas

orientações do Regulamento das Missões de 1845, deveria se originar prioritariamente da

atividade agrícola.

Em 1854, José Joaquim de Oliveira voltou a referir diretamente a resistência dos

índios ali reunidos em abandonar seus antigos modelos culturais para se submeter ao regime

produtivo implantado pela diretoria de índios. dizendo que: O então diretor de Nonoai

afirmou que “[...] por veses ainda sahem partidas de Indios á caça, ja por que de prompto

lhes custa abandonar antigos hábitos [...]”. 142

Na década de 1860, os grupos de caçadores índios voltaram a ser referidos pelos

diretores dos aldeamentos. Naquele período, as caçadas não apareciam somente como uma

forma de resistência, mas também como uma possibilidade de complementação das reservas

alimentares dos aldeamentos.

Uma outra forma de resistência indígena, que pôde ser identificada na documentação

consultada para este trabalho, foram os conflitos envolvendo indígenas e posseiros alojados

nas terras reservadas para os aldeamentos. Nesse caso, não mais uma oposição à

intensificação da política imperial de aldeamentos, mas uma resistência ao processo de

capitalização da terra no planalto rio-grandense que se desenvolveu na metade do século

XIX.

142 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 2.

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143

O ofício do padre Antônio de Moraes Branco, remetido ao governo da província em

novembro de 1864, exemplifica a existência de disputas pelos terrenos dos índios mesmo

depois do estabelecimento dos aldeamentos. No documento, o padre pedia providências ao

presidente da província sobre a invasão das terras dos índios, na tentativa de evitar um

confronto entre posseiros e os Caciques Chico e Jacintho Doble, aldeados na Colônia Militar

de Caseros.

Sendo os dous Indios Cacique Doble e Chico senhores de dous campos, e faxinais sitos nas margens do Rio por elles denominado = Gôy = a seis leguas mais ou menos de distancia deste Aldeamt.º e no centro das mattas, de há muito reclamão por meu intermedio ao Exm.º Gov.º Proval. providencias a fim de que seus campos, que de tempo immemorial são o deposito dos restos mortaes de seus maiores, não sejão invadidos por individuos de nossa sociedade que delles tem querido apossar-se, e extorquir herva de mate contígua aos mesmos campos. Os dous Cacique já de ha muito haverião por meios violentos feito desoccupar os seus terrenos, se não os obstassem os meus conselhos, e a confiança que lhes foi inspirado, de que, o Exm.º Governo proveria de forma, que elles continuarião a usofruir o que por direito sagrado lhes pertence.143

A ocorrência desse tipo de conflito entre posseiros e índios não apareceu com

freqüência na documentação diretores de índios da província, sugerindo um relativo respeito

às áreas demarcadas como terrenos reservados para a colonização de indígenas. No entanto,

as esporádicas citações de atritos entre os índios aldeados e seus vizinhos demonstram que a

defesa dos limites dos aldeamentos, quando não se deflagravam em um enfrentamento direto,

permaneciam em um estado latente.

A manutenção de toldos por alguns grupos de indígenas poderia ser citada como uma

tentativa desses índios de resistir à intensificação da política imperial de aldeamentos. Como

mencionado anteriormente, neste capítulo, os Toldos foram freqüentemente citados pelos

143 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 8 de novembro de 1864 – Maço 2.

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diretores de aldeamentos como sendo redutos de índios já contatados, mas, que nem sempre

viviam pacificamente ou segundo os modelos propostos pelo Regulamento das Missões. No

relatório do padre Pares, enviado à presidência da província em 1851, portanto três anos

depois da instalação do aldeamento de Nonoai, foram mencionadas cerca de setenta e oito

famílias vivendo em Toldos espalhados pelo campo. Mesmo sendo consideradas dependentes

do estabelecimento de catequese e civilização localizado em Nonoai, essas famílias não

puderam ser concentradas nas proximidades do posto da diretoria, em torno do qual apenas

25 famílias estavam reunidas.

O numero de Indigenas existentes n’este campo, me parece que aproximadamente se pode calcular como segue: No aldeamento que se estabeleceo quase no fundo do dito campo a meia légua do rio Passo-fundo e 1½ da barra d’este no Uruguay que é o passo denominado Ngoi-u-em – Gente do Condá e do Nicafi. 25 familias com umas ----------------------------------------------------- 150 almas No toldo do velho Nonohay a uma legoa do Aldeamento 50 familias com umas ------------------------------------------------------------------------- 250 almas No toldo do velho Vuotoro a ½ legoa do aldeamento 8 familias com umas ------------------------------------------------------------------------------------- 40 almas No toldo do Canhafé a ½ legoa do aldeamento 8 familias com umas --------------------------------------------------------------------------------------------- 30 almas

Total 470 almas [...] Fora do campo de Nonohay na banda oriental do Passo-fundo e a umas 6 legoas sE n’um campestre, que chamão Arechi, existem umas dez a doze familias da gente de Nicafi que se considerão como dependencia do Aldeamento.144

Em outro trecho do mesmo documento, tratando dos grupos chefiados pelos Pay-bang

Braga e pelo Pay Doble, habitantes das regiões do Campo do Meio e de Vacaria, o

missionário comenta ter sido necessário mudar o local do aldeamento que seria estabelecido

para as áreas onde os índios estavam. Tal mudança foi necessária, pois as lideranças daqueles

144 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese

dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.

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grupos indígenas se recusaram a reunir-se no Pontão, local inicialmente designado pela

província para o aldeamento.

Não se tendo podido conseguir que os Bugres que baixo do comãndo dos Chefes Capitão Dovre e Capitão Braga andão vagando pellos Mattos do Campo-do-Meio e Vaccaria se aldeassem no Pontão; os PP. Missionarios por ordem dos Exmõs. Sñres. Presidentes Sõr. Andrea e Sõr. Pimente Bueno passarão ao campo-do-meio que era o logar que os Indigenas preferião.145

Com o aumento do número de grupos envolvidos na tentativa de concentração dos

indígenas promovida pelo Império os Toldos tornaram-se maiores e, em alguns casos,

ganharam uma organização própria. Em ofício remetido à presidência da província, ainda no

ano de 1851, o padre Pares reclamou da formação de um núcleo habitacional fora dos limites

do aldeamento, onde os preceitos da catequese indígena estariam ficando sem efeito.

Todos os dias estão chegando Bugres de Palmas, que são da gente do Victorino com suas familias e animaes; e como dizia eu n’outra minha, pertendem levantar seus ranchos no campo por separado e não aqui no Aldeamento, para, (disem elles) criar melhor seus animaes; e effectivamente apesar meu estão executando seu plano. Alguns Brasileiros lhes dão o máo exemplo: Manoel Fernandes levantou ja sua chacara no campo e outros tres ou quatro, forão a fazer seus ranchos perto d’elle, de modo que vaê formando-se povoação separada. Isto he uma desordem, pois assim se diminui a Aldeã e ficão sem effeito os nossos Ministerios espirituaes por falta de concurrentes.146

Como destacado pelo missionário, nesse caso, a resistência indígena se daria pelo

afastamento da presença vigilante do diretor do aldeamento. Os representantes do Estado,

mesmo tendo os Toldos sob sua alçada administrativa, não tinham como manter um controle

efetivo do número de indígenas neles reunidos, nem de suas movimentações ou de seus

145 Idem 146 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 1 de junho de 1851 – Maço 1.

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modelos produtivos. No documento, aparece, também, a dificuldade das diretorias de índios

para controlar as relações entre indígenas e intrusos que estivessem vivendo infiltrados nos

Toldos.

Por outro lado, a manutenção desses Toldos em regiões bastante próximas dos

aldeamentos e os freqüentes contatos dos índios ali arranchados com os diretores de índios

da província indicam que, se os Toldos representavam uma resistência dos indígenas a idéia

de fixarem-se nos locais determinados pelas diretorias de índios, ela não era nem muito

organizada e nem muito arraigada. Na realidade, essa proximidade dos Toldos sugere o

interesse de seus habitantes na segurança e em outros possíveis benefícios trazidos pela

vizinhança com os representantes do Estado.

Com o desenvolvimento dos estabelecimentos de catequese e civilização da província

reduziu-se expressivamente, na documentação consultada, a descrição de grupos arranchados

fora dos limites dos aldeamentos. A existência de Toldos nos arredores dos aldeamentos

parece ter sido uma característica específica dos anos iniciais da intensificação na política de

aldeamentos no Rio Grande do Sul.

Além das formas de resistência descritas acima, a associação de grupos indígenas ao

governo provincial aparece descrita em cinco dos documentos emitidos pelos diretores dos

aldeamentos em períodos e locais diferentes. Para identificar esse tipo de reação dos índios

aldeados no século XIX foram consideradas como associação as relações entre indígenas e

membros, ou instituições, da sociedade imperial, para a prestação de serviços ou para a

colaboração em algum empreendimento. Em geral, essas associações se davam mediante o

recebimento, por parte dos indígenas, de benefícios, suprimentos ou numerários. As

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variações de local e data nos levam a crer que esse era um tipo de reação relativamente

freqüente dos grupos aldeados diante da política indigenista aplicada na província do Rio

Grande do Sul.

O primeiro exemplo de associação entre os índios aldeados e as diretorias de índios,

que aparece citada na documentação, foi no ofício remetido pelo padre Bernardo Pares ao

governo da província em novembro de 1848. Nele, o missionário menciona a apresentação

do Pay-bang Vitorino Condá em Nonoai, que se ofereceu para reunir ali os índios sob sua

liderança. Sobre o contato com Condá o padre Pares relatou o seguinte: “Os do Nonohay faz

ja tres annos se apresentarão baixo do commando de seu Chefe Victorino (Condá) que pedio

seguridade, e offereces, que procuraria reunir a gente toda de sua nação nos campos ditos de

Nonohay [...]”147

Em seu texto sobre a atuação das lideranças Kaingang no sul do Brasil, Luís Fernando

Laroque (2000, p. 112) fez referência à atuação de Condá, em colaboração com o governo da

província, para reunir indígenas em Nonoai mediante remuneração. Em 1850, outro ofício do

padre Pares confirma o pagamento de soldos ao Pay-bang Condá.

Recebi a de VS de Abril com a quantia de 80$000 reis pertencentes aos soldos do Cap.㺠Victorino, a quem já a-mandei entregar. O dito Victorno fica muy descontento porqe. dice qe. hé major quantia qe. se lhe-debe, pois qe. no passado Agosto cumpriu hum anno recebeo huma quantia qe. foi a primeira qe. tem recebido y depois não tem recebido mais até a de agora, e he por isso qe. quer ir a Porto Alegre a queixarse ao Sr. Presidente.148

147 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 148 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos

Índios, 29 de maio de 1850 – Maço 1.

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Essa prática de utilizar indígenas aldeados para atrair outros grupos para os

aldeamentos foi constante nas décadas iniciais da aplicação do Regulamento das missões.

Com o desenvolvimento dos aldeamentos, os índios passaram a ser chamados não apenas

para o trabalho de atração, mas também, para a perseguir grupos hostis. Merece destaque,

nesse caso, os serviços prestados pelo cacique Doble enquanto esteve aldeado na Colônia

Militar de Caseros. O padre Antônio de Moraes Branco, no ano de 1863, deu um exemplo da

atuação de Doble como colaborador do governo rio-grandense. O missionário, em ofício ao

presidente da província, anunciou a disposição de Doble em perseguir um grupo arredio na

região do Turvo em troca de mantimentos e gratificações.

Perguntei aos aqui aldeados se se prestavão a bater, e capturar essa gente, e lhes fiz conhecer que isso mto. agradaria a V.Exª.; elles me responderão que estão promptos para isso, mandando V.Exª. dar-lhes carne, farinha e sal, e tambem algum mantimento para suas mulheres, que ficão sem elle durante a auzencia dos homem por não terem quem para ellas cace; assim mais uma gratificação para o Cacique Doble.149

Outros documentos do padre Branco, emitidos imediatamente depois do ofício de

agosto de 1864, indicaram que a perseguição dos índios do Turvo foi realmente efetuada pelo

cacique Doble e seus seguidores. Outros documentos dessa série, redigidos em 1864 nos

aldeamentos de Caseros e do Campo do Meio, tratando dos índios liderados por Doble e pelo

Cacique Chico, davam outros exemplos da colaboração de índios aldeados na perseguição de

grupos arredios.

As diferentes datas e locais indicados nos documentos ressaltam a importância dos

serviços prestados pelos líderes indígenas aldeados na condição de bugreiros. Nos ofícios e

149 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 4 de agosto de 1863 – Maço 2.

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relatórios consultados durante este trabalho, existem mais referências a índios aldeados

sendo utilizados na perseguição de grupos arredios do que a Companhias de Pedestres

destacadas para essa função.

As habilidades dos índios aldeados durante as perseguições na mata merece ser

destacada em pelo menos mais uma ocasião. Em 1865, o padre Branco ofereceu os serviços

dos indígenas aldeados na Colônia Militar de Caseros para perseguir, expulsar ou capturar

desertores da Guarda Nacional que estivessem escondidos nas matas circunvizinhas ao

aldeamento. No ofício, o padre dizia que:

Havendo-se dado na prezente reunião da Guarda Nacional destes lugares muitos cazos de deserção, achando-se já pelos Mattos grande numero desses Guardas, o que é, alem d’um crime por falta de patriotismo, de sinistro agouro para os habitantes, que, d’istante ficão expostos ás violencias que em semelhantes conjuncturas saem por-se em pratica por semelhante gente, deliberei consultar os Indios sob minha direcção, e saber, se, em occazião preciza, elles se prestão á captura desses rebeldes ao serviço da Patria; me responderão todos que farião qualquer deligencia que eu lhes mandasse fazer, e sem violencia, porque não querem Mattar portuguezes, (como nos chamão) mas que = desertor é gente brava = e que, se lhes fizessem fogo, tambem mattarião com suas flexas; me prometherão somente acossar essa gente de tal forma que desamparasse as mattas, ou fosse por sua estrategia por elles preza, e entregue a mim, para, clausurada no xadrez desta Colonia, seguir depois o seu destino. Podem os Indios nos prestar relevantissimo serviço na epoca calamithosa em que nos achamos; e contando V.Ex. com meus debeis esforços neste sentido, se dignará deliberar como julgar mais conveniente. Tenho jà sido convidado para semelhantes deligencias; mas já mais me prestarei sem ordem previa de V.Ex.ª, salvo cazo urgentissimo, visto que marchando para a Fronteira qualquer força, nos veremos por aqui a braços com esses maus cidadãos, e teremos então de repellir suas afrontas.150

Não há indícios, na documentação, de que a iniciativa do padre Branco tenha sido

concretizada, mas, como mencionado no ofício acima, a proposta de utilização dos indígenas

na perseguição de proscritos não era uma novidade para o missionário.

150 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –

Catequese dos Índios, 6 de setembro de 1865 – Maço 2.

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150

A presença de formas de associação descritas nos documentos do padre Pares, de 1848

e 1850, bem como nos do padre Branco, de 1863 e 1865, indicam que as relações entre

índios aldeados e representantes do Estado nem sempre foram conflitivas. Além disso,

ressaltam o papel ativo das populações indígenas no processo de intensificação da política de

aldeamentos no Rio Grande do Sul durante o século XIX.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da documentação produzida pelos Juízes de Órfãos do Rio Grande do Sul

entre 1834 e 1845 demonstrou a inexistência de qualquer tipo de política provincial para a

inserção social dos indígenas durante aquele período. A única ação efetiva do governo da

província foi estender a tutela orfanológica, determinada por decreto imperial, aos índios

remanescentes das antigas reduções jesuíticas. Ainda assim, as iniciativas tomadas pelos

tutores legais dos indígenas apontavam para uma preocupação exclusiva em garantir, para si,

o direito de administrar o patrimônio formado pelos prédios, estâncias e gado das antigas

reduções.

Nesse sentido, as iniciativas dos agentes oficiais encarregados da política indigenista

rio-grandense, até 1845, se alinhavam às determinações legais dadas à Questão Indígena pelo

Império, bem como às práticas tradicionais daqueles magistrados, descritas na bibliografia

consultada sobre o período.

A mudança institucional trazida pelo Regulamento de 1845 não alterou o

posicionamento do governo rio-grandense, que continuou a desenvolver uma política

indigenista regional em acordo com as orientações estabelecidas pelo Império. Assim, pelas

diretrizes estabelecidas no Regulamento das Missões, os indígenas gaúchos deveriam ser

economicamente inseridos na sociedade imperial do século XIX. Seguindo a essa orientação,

foram criados aldeamentos para reunir os grupos Kaingang que transitavam nas áreas de

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mato ao norte e nordeste da província, sendo perceptível, no formato com o qual se criaram

esses aldeamentos, a manutenção dos dois princípios freqüentemente reafirmados na política

indigenista brasileira: Civilizar pela fé e converter os índios em agricultores sedentários

capazes de garantir sua própria subsistência.

A manutenção da política de sedentarizar indígenas em aldeamentos, durante o século

XIX, indica uma relação bastante direta entre as práticas indigenistas e o projeto estatal de

ocupação das “terras vazias” do Império. Observando a Questão Indígena, a partir dessa

perspectiva, percebe-se que o Regulamento das Missões não veio apenas suprir a necessidade

histórica de uma legislação geral que organizasse as relações entre índios e brancos. Ele foi

editado para, também, resolver os problemas decorrentes da invasão dos territórios

tradicionalmente ocupados por grupos de índios arredios. Esse processo foi acirrado pelo

aumento no volume de terras apossadas depois da suspensão das sesmarias em 1822 e pela

conversão da terra em mercadoria através da Lei de Terras de 1850.

A intensificação da política de aldeamentos na província do Rio Grande do Sul, a

partir de 1848, foi a conseqüência direta do apossamento dos campos do planalto, contexto

no qual o espaço de trânsito dos grupos indígenas, que habitavam aquela região, havia sido

reduzido as áreas de mato ao norte e nordeste da província. Além disso, a concentração dos

índios nos aldeamentos possibilitou a expansão do projeto imperial de estabelecer colônias

de imigrantes europeus nos vales e nas encostas, povoando aquelas regiões com gente

“branca e laboriosa”.

Ao analisar narrativas feitas pelos diretores de índios, buscando conhecer o cotidiano

dos aldeamentos instalados pelo governo rio-grandense durante o século XIX, percebe-se,

porém, que o cumprimento dos objetivos da política indigenista imperial foi apenas parcial.

Nelas, há a menção constante a grupos de índios transitando entre os aldeamentos ou

habitando áreas fora dos estabelecimentos de catequese e civilização mantidos pela

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província. Esse contínuo entrar e sair dos aldeamentos, impulsionado umas vezes pela

resistência dos índios à política indigenista oficial e, outras, por necessidades de subsistência,

demonstra que a fixação dos indígenas nos terrenos determinados pelo Estados nunca se

completou.

Pode-se observar ainda, nos relatos dos diretores de índios do Rio Grande do Sul, a

ineficiência das iniciativas por eles tomadas para garantir a auto-sustentação dos

aldeamentos. As freqüentes solicitações de gêneros alimentícios ao governo da província e as

constantes referências a índios garantindo o sustento de suas famílias a partir da caça

indicam que os roçados dos aldeamentos raramente atingiam níveis de produção capazes de

sustentar a população neles reunida.

A análise da documentação da Diretoria de Índios demonstrou também uma inserção

apenas parcial dos indígenas na economia regional. Foram poucos os relatos do engajamento

de indígenas em atividades produtivas remuneradas fora dos serviços regularmente prestados

ao Estado. Além disso, as deficiências de produção nos aldeamentos raramente permitiram a

formação de excedentes comercializáveis, impossibilitando a participação dos índios, como

fornecedores, no mercado agrícola rio-grandense. A única atividade produtiva onde os

indígenas aldeados figuraram com relativa expressão foi a de coleta de erva-mate.

Essas características do tratamento dado à Questão Indígena no Rio Grande do Sul,

entre 1834 e 1868 indicam que a política indigenista aplicada pelo governo da província não

apenas se alinhava às diretrizes estabelecidas pelo Império para ela, mas também atendia às

exigências contextuais do processo de expansão capitalista da ocupação da terra que

caracterizou o Brasil do século XIX.

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FONTES CONSULTADAS

Fontes Impressas MABILDE, Pierre F. A. Booth. Apontamentos Sobre os Indígenas Selvagens da Nação Coroados dos Matos da Província do Rio Grande do Sul: 1836 – 1866. São Paulo: IBRASA, 1983. PARÉS, Bernardo. Carta Enviada ao Padre Lerdo em Novembro de 1848. In: PEZAT, Paulo Ricardo. Auguste Comte e os Fetichistas: Estudo sobre as relações entre a Igreja Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-grandense e a Política Indigenista na República Velha. Porto Alegre: UFRGS, 1997. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000. p. 266. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brazil. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Legislação Indigenista do Século XIX – Uma Compilação (1808-1889). São Paulo: EDUSP, 1992. p. 347-360. Fontes Manuscritas DIRETORIA DE ÍNDIOS DA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos Diversos. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 1, 1845. DIRETORIA DO ALDEAMENTO DE NONOAI. Correspondência do Padre Antônio de Almeida Leite Penteado. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 2, 1856. DIRETORIA DO ALDEAMENTO DE NONOAI. Correspondência de José Joaquim de Oliveira . AHRGS, Catequese dos Índios, maço 2, 1863-1866. DIRETORIA DO ALDEAMENTO DE NONOAI. Correspondência de Manoel Francisco de Oliveira. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 2, 1868.

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DIRETORIA DO ALDEAMENTO DA COLÔNIA MILITAR DE CASEROS. Correspondência do Padre Antônio Moraes Branco. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 2, 1862-1867. DIRETORIA DE ÍNDIOS NO ALDEAMENTO DE NONOAI. Correspondência do Padre Bernardo Parés. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 1, 1848-1852. DIRETORIA DE ÍNDIOS NO ALDEAMENTO DE NONOAI. Correspondência do Padre Bernardo Parés. AHRGS, Catequese dos Índios, maço 2, 1854. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE CACHOEIRA. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 06, 1855. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE CRUZ ALTA. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 09, 1856. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE PASSO FUNDO. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 016, 1867. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE PORTO ALEGRE. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 23, 1856. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE SÃO BORJA. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 43, 1834-1835. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE SÃO JERÔNIMO. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 45, 1868. JUIZADO DE ÓRFÃOS DE VACARIA. Correspondência. AHRGS, Justiça, maço J – 56, 1856.

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ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho 1850 – 1920. Ijuí: Unijuí, 1997.

ANEXOS

ANEXO A – Regulamento das Missões de 1845 24/07/1845: Decreto n. 426 – contém o Regulamento ácerca das Missões de catechese, e civilisação dos Índios Hei por bem, tendo ouvido o Meu Conselho d’Estado, mandar que se observe o Regulamento seguinte: Art. 1º. Haverá em todas as Provincias hum Director Geral de Índios, que será de nomeação do Imperador. Compete-lhe: § 1º. Examinar o estado, em que se achão as Aldêas actualmente estabelecidas; as ocupações habituaes dos Índios, que nellas se conservão; suas inclinações, e propensões; seu desenvolvimento industrial; sua população, assim originaria, como mstiça; e as causas, que tem influido em seus progressos, ou em sua decadência. § 2º. Indagar os recursos, que offerecem para a lavoura, e comercio, os lugares, em que estão collocadas as Aldêas; e informar ao Governo Imperial sobre a conveniencia de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em huma só. § 3º. Precaver que nas remoções não sejão violaentados os Índios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bom comportamento, e apresentem hum modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste ultimo caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufruto do terreno, que estejão na posse de cultivar. § 4º. Indicar ao Governo Imperial o destino, que se deve dar ás terras das aldêas, que tenhão sido abandonadas pelos Índios, ou que sejão em virtude od §2º deste Artigo. O proveito, que se deve tirar da applicação dessas terras, será empregado em beneficio dos Índios da Provincia. § 5º. Indagar o modo, por que grangeão os Índios as terras, que lhes tem sido dadas; e se estão occupadas por outrem, e com que título. § 6º. Mandar proceder ao arrolamento de todos os Índios aldeados, com declaração de suas origens, suas linguas, idades, e profissões. Este arrolamento será renovado todos os quatro annos. § 7º. Inquirir onde há Índios, que vivão em hordas errantes; seus costumes e linguas; e mandar Missionarios, que solicitará do Presidente da Provincia, quando já não estejão á sua disposição, os quaes lhes vão pregar a Religião de Jesus Christo, e as vantagens da vida social. § 8º. Indagar se convirá fazê-los descer para as Aldêas actualemente existentes, ou estabelecê-los em separado; indicando em suas informações ao Governo Imperial o Lugar, onde deve assentar-se a nova Aldêa. § 9º. Diligenciar a edificação de Ugrejas, e de casas a habitação assim dos empregados da aldêa, como dos mesmos Índios. § 10º. Distribuir pelos Directores das Aldêas, e pelos Missionarios, que andarem nos lugares remotos, os objectos, que pelo Governo Imperial forem destinados para os Índios, assim para a agricultura, ou para o uso pessoal dos mesmos, como amtimentos, roupas, medicamentos, e os que foram proprios para attrair-lhes a attenção, excitar-lhes a curiosidade, e despertar-lhes o desejo do trato social; requisitando-os do Presidente da Provincia, segundo as Instruções, que tiver do Governo Imperial.

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§ 11. Ptopor ao Presidente da Provincia a demarcação, que devem ter os districtos das Aldêas, e fazer demarcar as terras, que, na fórima do § 15 deste artigo, e do § 2º do Art. 2º, forem dadas aos Índios. Se a Aldêa já estiver estabelecida, e existir em lugar povoado, o districto não se entenderá além dos limites das terras originariamente concedidas á mesma. § 12. Examinar quaes são as Aldêas, que precisão ser animadas com plantações em commun, e determinar a porção de terras, que deve ficar reservada para essas plantações, assim omo a porção das que possão ser arrendadas, quanto, attenta ainda a pequena população, não possão os Índios aproveita-las todas. § 13. Arrendar por trez annos as terras, que para isso forem destinadas, procedendo ás mais miudas investigações sobre o bom comportamento dos que ás pretendem, e sobre as posses, que tem. Nestes arrendamentos não se comprhende a faculdade de derrubar matos, para o que será necessário o consenso do Presidente que será expresso no contracto, com declaração dos lugares, onde os possão derrubar. § 14. Examinar quaes são as aldêas, onde, pelo seu adiantamento, se passão aforar terras para casas de habitação; informar ao Governo Imperial com o quabtitativo do fôro; e aforal-as segundo as Instruções que receber. Não são permitidos aforamentos para cultura. § 15. Informar ao Governo Imperial ácerca daquelles índios, que, por seu bom comportamento, e desenvolvimento industrial, mereção se lhes concedão terras separadas das da Aldêa para suas gragearias particulares. Estes índios não adquire, a propriedade dessas terras, senão depois de doze annos, não interrompidos, de boa cultura, o que se mencionaria com especialidade nos Relatorios annuaes; e no fim delles poderão obter Carta de Sesmaria. Se por morte do Concessionario não se acharem completos os doze annos, sua viuva, e na falta de seus filhos, poderão alcançar a Sesmaria, se além do bom comportamento, e continuação de boa cultura, aquella prehencher o tempo que faltar, e estes a grangearem pelo duplo deste tempo, contanto que este nem passe de oito annos, e nem seja menos de quinze o das diversas posses. § 16. Dar licença ás pessoas, que quizerem ir negociar nas Aldêas novamente creadas, com estabelecimento ou fixo, ou volante; e retiral-as, quando o julgar conveniente. Quanto ás que já estão estabelecidas, examinará quaes as que estão nas circunstâncias de precisarem desta protecção, e as declarará sujeitas a esta disposição, com dependencia de aprovação Imperial. § 17. Representar ao Presidente da Provincia a necessidade que possa haver de alguma força Militar, que proteja as Aldêas, a qual poderá ter hum Regulamento especial. § 18. Propor á Assembléa Proincial a creação de escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino. § 19. Empregar todos os meios licitos, brados, e suaves, para attrair Índios ás Aldeas; e promover casamentos entre os mesmos, e ente elles, e pessoas de outra raça. § 20. Esmerar-se em que lhes sejão explicadas as maximas da Religião Catholica, e ensinada a doutrina Christã, sem que se empregue nunca a força, e violencia; e em que não sejão os pais violentados a fazer baptisar seis filhos, convido attrahi-los à Religião por meios brandos, e suasorios. § 21. Cuidar da introducção da Vaccina das Aldêas, e facilitar-lhes todos os soccorros nas epidemias. § 22. Corresponder-se com os missionarios, de quem receberá todos os esclarecimentos para a catechese, e civilisação dos Índios, providenciando no que conhecer em suas faculdades; e com todas as Authoridades, por quem possa ser auxiliado. § 23. Vigiar na segurança, e tranquilidade das Aldêas, e seus districtos, requerendo, ou constituindo procurador para requerer perante as Justiças, e requisitando das Authoridades competentes as providencias necessarias. § 24. Indagar se nas Aldêas, e seus districtos, morão pessoas de caracter rixoso, e de máos costumes, ou que introduzão bebidas espirituosas, ou tenhão enganado aos Índios com lesão enorme; e fazê-las expulsar até cinco leguas fóra dos limites dos districtos. § 25. Informar-se dos meios de subsistência, que tem as Aldêas, para providenciar que não sobrevenha alguma fome, que seja causa de que os Índios avalem para os mattos, ou se derramem pelas Fazendas e Povoações. § 26. Promover o estabelecimento de officinas de artes mechanicas, com preferencia das que se prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admitidos os Índios, segundo as propensões que mostrarem. § 27. Indagar qaes as producções do lugar de mais facil cultura, e de mais proveito; esmerando-se em fazer adoptar aquelle genero de traalho, e modo de vida que offereça mais facilidade, e a que os Índios mais promptamente se acostumem. § 28. Exercer toda a vigilancia em que não sejão os Índios constrangidos a servir a particulares; e inquirir se não pagos por seus jornaes, quando chamados para o serviço da Aldêa ou qualquer serviço publico, e em geral que sejão religiosamente cumpridos de ambas as partes os contractos, que com elles se fizerem.

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§ 29. Vigiar que não sejam os Índios avexados com exercicios militares, procurando que se lhes dê aquella instrucção, que permitir o seu estado de civilisação, suas occupações diarias, e seus habitos, e costumes, os quaes não devems ser aberta e desabridamente contrariados. § 30. Fiscalisar as tendas das Aldeas, quaesquer que sejam suas fontes; e exercer vigilante inspecção sobre as producções das lavouras, pescas, e extracções de drogas, e de outro qualquer ramo da industrua , e em geral sobre todos os objectos destinados para o uso, e consumo das Aldêas. § 31. Applicar os dinheiros, e outros quaesquer, segundo as necessidades das Aldêas, e na conformidade das ordens do Governo Imperial, dando huma conta circumstanceada todos os annos, e todas as vezes que huma urgente necessidade o obrigue a fazer alguma despeza extraordinaria da applicação, que houver resoluto. § 32. Servir de Procurador dos Índios, requerendo, ou nomeando Procurador para requerer em nome dos mesmos perante as Justiças e mais Autoridades.

§ 33. Propor ao Presidente da Provincia o director da aldêa, o Thesoureiro, Almoxarife e o Cirurgião, preferindo-se para estes empregos os casados aos solteiros; suspender os trez ultimos, e em geral a todos os que estão a serviço das Aldêas, nomeando interinamente quem substitua, e dando parte immediatamente ao Presidente, ou ao director da Aldêa, segundo pertencer a nomeação ao primeiro, ou ao segundo.

§ 34. Organisar a Tabella dos vencimentos dos pedestres, e dos salarios dos Officiaes de officios, que estiverem ao serviço das Aldêas; e leva-la ao conhecimento do Governo Imperial para sua approvação.

§ 35. Approvar, e mandar por em execução provisoriamente a Tabella, organisada pelos Directores das Aldêas, dos jornaes que devem ganhar os Índios, que forem chamados para o serviço ds mesmas, ou qualquer outros serviço publico; levando-a ao conhecimento do Governo Imperial para sua final approvação.

§ 36. Propor ao Governo Imperial os Regulamentos especiaes para o regimen das Aldêas, e as instrucções convenientes para o desenvolvimento de sua industria; tendo attenção ao estado de civilisação dos Índios, sua indole, e caracter; as necessidades dos lugares, em que se acharem ellas estabelecidas; as producções do Paiz, e as proporções, que o mesmo offerece para o seu adiantamento moral e material.

§ 37. Apresentar todos os annos ao Governo Imperial o Orçamento da receita e despeza das aldêas, e hum Relatorio circustanceado do seu estado em população, instrucção, e industria, com huma exposição miúda da execução das disposições deste Regulamento; exigindo dos Directores ds Aldêas outros iguaes, que habilitem a esclarecer o Governo sobre os progressos ou decadencia ds mesmas, e as causas, que para isso tem concorrido; e apontando as providenciais que convenha ser adoptadas.

§ 38. Expor ao Governo Imperial os incovenientes, que tenha encontrado na execução deste Regulamento, e de outros, que houver de fazer; indicando as medidas, que julgar apropriadas para se conseguir o grande fim da catechese, e civilisação dos Índios.

Art. 2º. Haverá em todas as Aldêas hum Director, que será de nomeação do Presidente da provincia, sobre proposta do Director Geral. Compete-lhe:

§ 1º. Informar ao Director Geral a necessidade, que possa haver de trabalhos em commum, e a natureza destes; assim como sobre a parte dos productos desses trabalhos, que deva ser reservada para o uso commum dos Índios.

§ 2º. Designar as terras, que devem ficar reservadas pra as plantaçõies em commum, depois de determinada a porção, que deve ser pelo Director Geral; assim como as que devem ficar para as plantações particulares dos Índios, e as que possão ser arrendas, art. 1 § 12.

§ 3º. Inspeccionar essas plantações, ou outros quaesquer trabalhos da Aldêa; e procurar consummo aos seus productos, depois de feitas as reservas necessarias.

§ 4º. Nomear quem substitua o Thesoureiro, ou Almoxarife, nos inpedimentos imprevistos, e de caso repentino.

§ 5º. Nomear os Índios para as plantações ou outros trabalhos em commum, ou para qualquer serviço Publico; procurando repartir o trabalho com igualdade, e ir de accordo, quanto ser possa, com o Maioral dos Índios.

§ 6º. Fazer entregar ao Thesoureiro, ou Almoxarife, os productos dos trabalhos dos Índios, os objectos obtidos em trocados que forem vendidos, o dinheiro pertencente á aldêa, qualquer que seja sua origem, e em geral todos os objectos destinados para a Aldêa.

§ 7º. Distribuir os objectos, que forem applicados pelos Director Geral para os trabalhos communs, e particulares dos Índios; e os que forem destinados para animar, e premiar os Índios já aldeados, e atthair os que ainda o não estejão.

§ 8º. Applicar os dinheiros, e mais objectos, segundo as determinações do director geral; podendo, em casos urgentes, gastar, sob uma responsabilidade, do dinheiro, que houver em caixa, até a quantia de cem mil réis, de que dará conta ao mesmo Director para sua approvação.

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§ 9º. Nomear, suspender, e despedir os Pedestres, e Officiaes de officios, que estiverem ao serviço da Aldêa, e determinar o serviço, que devem fazer.

§ 10. Vigiar sobre a segurança, e tranquilidade da aldêa, e seu districto; podendo, em casos menores, reter em prisão, até seis dias, o que a perturbar, sendo Índio; e não sendo, fazel-o expulsar para fóra da Aldêa, e até do seu districto; e em casos menores, prender, e remeter ás Justiças ordinarias com todas as indicações, que esclareção a verdade.

§ 11. Requerer ás Autoridades policiaes contra os que, tendo sido expulsos em virtude do § antercedente, ou do § 24 do artigo 1º, se estabelecerem dentro dos limites declarados no Mandado de despejo, ou não queirão obedecer a este.

§ 12. Ter abaixo das suas ordens a força Militar, que se houver de mandar collocar na Aldêa e seu districto; representando a necessidade, que della possa haver, ao Director Geral, conformando-se com as instrucções, que receber, e com o Regulamento especial do § 17 do art. 1.

§ 13. Alistar os Índios, que estiverem em estado de prestar algum serviço militar, e acostumal-os a alguns exercicios; animando com dadivas aos que mostrarem mais gosto, e zelo pelo serviço, e tendo todo cuidado em que não se desgostem por excesso de trabalho. Dará huma conta circunstanciada ao Director Geral das disposições, que encontrar, para ser levada ao conhecimento do Governo Imperial, que resolverá sobre a oportunidade de se crearem algumas Companhias, as quaes poderão ter huma organização particular.

§ 14. Procurar que sejão demarcadas as terras dadas aos Índios, proceder a demarcação das porções das mesmas, que, em virtude deste Regulamento, tenhão de ser demarcadas dentro dos seus limites.

§ 15. Esmerar-se em que as Festas tanto, Civis, como Religiosas, se fação com a maior pompa, e apparato, que ser possa; procurando introduzir nas Aldêas o gosto da musica instrumental.

§ 16. Servir de Procurador dos Índios, podendo nomear quem faça as suas vezes para requerer perante as Justiças, e outras Autoridades.

§ 17. Dar parte todos os trimestres ao Director Geral dos acontecimentos mais notaveis na Aldêa, e fazer hum Relatorio annual do estado, em que ella se acha, com declaração da execução, que tem tido as disposições deste Regulamento, e com o Orçamento da receita e despeza para o anno seguinte.

§ 18. Exercer as funções do art. 1°, desde o § 1 até o § 9º, e desde o § 19 até o § 30; entendendo-se que suas faculdades serão restrictas á Aldêa, de que he Director; e que em lugar do Presidente, ou Governo Imperial, deve dirigir-se ao Director Geral da provincia.

Art. 3º Ao Thesoureiro compete: § 1º. Receber os dinheiros pertencentes á Aldêa, qualquer que seja a origem d’onde provenha,

recolhendo-os em huma caixa, de que o Director da Aldêa terá huma chave; assim como receber todos os objectos, que forem destinados para o serviço, e uso da Aldêa.

§ 2º. Ter a seu cargo a escripturação, e contabilidade, para o que terá os livros proprios fornecidos pela Fazenda Publica.

§ 3º. Ajudar ao Director da Aldêa na sua correspondencia, particularmente na confecção dos Mappas Estatísticos.

§ 4º. Fazer os pagamentos, e entregar os objectos, que estiverem debaixo da sua guarda, segundo as ordens, que receber do Director Geral, e as determinações do Director da Aldêa.

§ 5º. Dar todos os annos huma conta circunstanciada ao Director Geral de todos os dinheiros, e objectos, que houver recebido; dos empregos, que fez; e das ordens, que os autorisárão.

§ 6º. Escrever em todos os actos, que houverem de ser remetidos ás Justiças, e nos termos da demarcações das porções de terras, a que houver de proceder o Director da Aldêa dentro dos limites das terras da Aldêa.

§ 7º Substituir ao Director da Aldêa em seus impedimentos imprevistos, e de caso repentino; dando parte immediatamente ao Director Geral para prover interinamente.

Art. 4º. Quando o estado da Aldêa não exija hum Thesoureiro, hum Almoxarife receberá todos os objectos, que forem destinados para a Aldêa, e os entregará segundo as ordens do Director da mesma, dando annualmente conta ao Director Geral; e o Director da Aldêa receberá os dinheiros, que á mesma pertebcerem.

Art. 5º. O Cirurgião tem a seu cargo a botica, e os isntrumentos Cirurgicos; e cuidará da Enfermaria com hum Enfermeiro, que será hum dos Pedestres, que proporá ao Director da Aldêa.

Art. 6º. Haverá hum Missionario nas Aldêas novamente creadas, e ns que se acharem estabelecidas em lugares remotos, ou onde conste andão Índios errantes. Compete-lhe:

§ 1º. Instruir aos Índios nas maximas da Religião Catholica, e ensinar-lhes a Doutrina Crhristã. § 2º. Servir de Parocho da Adêa, e seu Districto, emquanto não se crear Parochia. § 3º. Fazer o arrolamento de todos os Índios pertencentes a Aldêa, e seu Districto com declarações dos

que morão nas Aldêas, e fora dellas; dos baptizados, idades, e profissões; e dos nascimentos, e obitos, e casamentos; para o que lhe serão fornecidos os livros pelo bispo Diocesano, pela caixa de Obras Pias.

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§ 4º. Dar parte ao Bispo Diocesano, por intermedio do Director Geral da Provincia, do estado espiritual da Aldêa; representando as necessidades, que encontrar, e apontando as providencias, que lhe parecem mais proprias para occorrer a ellas.

§ 5º. Representar ao Director Geral, por intermédio da Aldêa, e necessidade, que possa haver outro Missionario, que ajude, principalmente se houver nas visinhanças Índios errantes, que seja nistér chamar á Religião, e a Sociedade.

§ 6º. Ensinar a lêr, escrever, e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que sem violencia se disposerem a adquirir essa instrucção.

§ 7º. Substituit ao Director da Aldêa, quando esteja impedindo o Thesoureiro, e nos casos, em que este o pode substituir.

Art. 7º. A creação de Thesoureiro, Almoxarife e Cirurgião, dependerá do estado em que se achar a Aldêa, e da sua importancia; e do lugar, em que estiver collocada; sobre o que o Director Geral informará ao Governo Imperial para resolver. O Cirurgião poderá servir de Thesoureiro, se as circunstancias o permittirem. Seus vencimentos, e os dos Missionarios, serão fixados segundo as informações dos Directores Geraes.

Art. 8º. A creação dos Pedestres, e Officiaes de officios; seu numero, salario, organisação, e a natureza dos officios, dependerão das circunstancias locaes, segundo as informações dos Directores Geraes.

Art. 9º. As informações, de que trata o art. Antecedente, as do art. 7º, e as do art. 1º, §§ 2, 4, 8, 14, 15, 16, 34, 35, 36 e 37, serão transmittidas ao Governo Imperial por intermedio do Presidente da Provincia, que as acompanhará com as observações convenientes.

Art. 10. Nos impedimentos do Director Geral o Presidente da provincia nomeará quem o substitua; e nos impedimentos do Director da Aldêa, que não sejão imprevistos, e de caso repentino, fará a nomeação o Director Geral.

Art. 11. Em quanto servirem, terão a graduação Honoraria, o Director Geral de Brigadeiro, o Director da Aldêa de Tenente Coronel, e o Thesoureiro de Capitão; e usarão uniforme, que se acha estabelecido para o Estado Maior do Exercito.

José Carlos Pereira de Almeida Torres, Conselheiro d’Estado, etc.

Palacio do Rio de Janeiro em 24 de Julho de 1845, vigesimo quarto da Independencia e do Imperio. – Com a Rubrica de sua Majestade o Imperador. – José Carlos Pereira de Almeida Torres. Fonte: RODRIGUES, Cíntia Régia. Os Índios e Imigrantes: Aspectos Legislativos na

Província de São Pedro(1800 – 1850). São Leopoldo: Unisinos, 1999. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura Plena em História) Centro de Ciências Humanas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999. p. 33-41.

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ANEXO B – Excertos da Lei de Terras de 1850

LEI N.º 601 DE 18 DE SETEMBRO DE 1850

Dispõem sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuidas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de Colônias de nacionais, e de estrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara. Don Pedro Segundo, por Graça de Deus, e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional

e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Súditos que a Assembléia Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte.

[...] Art. 2°. Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derribarem matos, ou lhes

puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitoras, e demais sofrerão a pena de dois a seis anos de prisão, e multa de cem mil réis, além da satisfação do dano causado. Esta pena porém não terá lugar nos atos possessórios entre heréus confinantes.

[...] Art. 3°. São terras devolutas: § 1°. As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2°. As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por

sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

[...] § 4°. As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal,

forem legitimadas por esta Lei. Art. 4°. Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se

acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.

Art. 5°. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente, guarda- das as regras seguintes:

[...] § 4°. Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais Freguesias, Municípios ou Comarcas

serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, enquanto por lei não se dispuser o contrário.

Art. 6°. Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva, e morada habitual exigidas no Artigo antecedente.

[...] Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1°, para a colonização

dos Indígenas; 2°, para a fundação de Povoações, abertura de estradas, e quaisquer outras servidões, e assento de Estabelecimentos públicos; 3º, para a construção naval.

[...] Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro, certo número de

colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em Estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de Colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem.

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Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do Artigo antecedente. Art. 19. O produto dos direitos de Chancelaria e da venda das terras, de que tratam os Arts. 11 e 14

será exclusivamente aplicado, 1°, à ulterior medição das terras devolutas, e 2°, à importação de colonos livres, conforme o Artigo precedente.

[...] Art. 21. Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessário Regulamento, uma Repartição

especial que se denominará - Repartição Geral das Terras Públicas - e será encarregada de dirigir a medição, divisão, e descrição das terras devolutas, e sua conservação, de fiscalizar a venda e distribuição delas, e de promover a colonização nacional e estrangeira.

[...] Art. 23. Ficam derrogadas todas as disposições em contrário. Mandamos portanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento, e execução da referida Lei

pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente, como nela se contêm. O Secretário de Estado dos Negócios do Império a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos dezoito dias do mês de Setembro de mil oitocentos e cinqüenta, vigésimo nono da Independência e do Império.

Imperador Com Rubrica e Guarda Visconde de Mont’alegre. Carta de Lei, pela qual Vossa Majestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que

houve por bem sancionar, sobre terras devolutas, sesmarias, posses e colonização. Para Vossa Majestade Imperial Ver. João Gonçalves de Araújo a fez. Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Câmara. Selada na Chancelaria do Império em 20 de Setembro de 1850. Josino do Nascimento Silva. Publicada na Secretaria de Estado dos Negócios do Império em 20 de Setembro de 1850. José de Paiva

Magalhães Calvet. Registrada a fl. 57 do Lv. 1° de Atos Legislativos. Secretaria de Estado dos Negócios do Império em 2

de outubro de 1850. Bernardo José de Castro. Fonte: Extraídos da Lei de Terras reproduzida In: IOTTI, Luiza Horn. Imigração e

Colonização – Legislação de 1747 a 1915. Caxias do Sul: EDUCS, 2001. p. 112-116.