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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação LUISA CAETANO ESCOBAR DA SILVA POR DENTRO DA ESCOLA “SEM PAREDES”: RELAÇÕES EDUCATIVAS NA FAVELA DE HELIÓPOLIS (SP) CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

LUISA CAETANO ESCOBAR DA SILVA

POR DENTRO DA ESCOLA “SEM PAREDES”: RELAÇÕES

EDUCATIVAS NA FAVELA DE HELIÓPOLIS (SP)

CAMPINAS

2019

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LUISA CAETANO ESCOBAR DA SILVA

POR DENTRO DA ESCOLA “SEM PAREDES”: RELAÇÕES

EDUCATIVAS NA FAVELA DE HELIÓPOLIS (SP)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de

Mestra em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientadora: CAROLINA DE ROIG CATINI

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA LUISA CAETANO ESCOBAR DA SILVA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA.

CAROLINA DE ROIG CATINI.

CAMPINAS

2019

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Agência: CNPq

Nº do Proc.: 153287/ 2016-0

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

POR DENTRO DA ESCOLA “SEM PAREDES”: RELAÇÕES

EDUCATIVAS NA FAVELA DE HELIÓPOLIS (SP)

Autora: Luisa Caetano Escobar da Silva

COMISSÃO JULGADORA

Carolina de Roig Catini

Elie George Guimarães Ghanem Júnior

Aparecida Neri de Souza

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da

Unidade.

2019

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Para Marina, Antonio, Gildo e Tatá, com carinho e

saudades

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Deu meio dia, toma banho vai pra escola a pé

Não tem dinheiro pro busão

Sua mãe usou mais cedo pra poder comprar o pão

E já que tá cansada quer carona no busão

Mas como é preta e pobre, o motorista grita: não!

E essa é só a primeira porta que se fecha

Não tem busão, já tá cansada, mas se apressa

Chega na escola, outro portão se fecha

Você demorou, não vai entrar na aula de história

Espera, senta aí, já já dá 1 hora

Espera mais um pouco e entra na segunda aula

E vê se não atrasa de novo! A diretora fala

Chega na sala, agora o sono vai batendo

E ela não vai dormir, devagarinho vai aprendendo que

Se a passagem é 3,80 e você tem 3 na mão

Ela interrompe a professora e diz, 'então não vai ter pão'

(...) Agora ela cresceu, quer muito estudar

Termina a escola, a apostila, ainda tem vestibular

E a boca seca, seca, nem um cuspe

Vai pagar a faculdade, porque preto e pobre não vai pra USP

Foi o que disse a professora que ensinava lá na escola

Que todos são iguais e que cota é esmola

Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade

Ela ainda acorda cedo e limpa três apê no centro da cidade

Experimenta nascer preto, pobre na comunidade

Cê vai ver como são diferentes as oportunidades

(Bia Ferreira – Cota não é esmola)

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Agradecimentos

Ao CNPQ pelo financiamento.

À Carolina Catini agradeço a orientação precisa, carinhosa e humana, as muitas leituras, indicações e

conversas, o olhar crítico e a parceria que ultrapassa a universidade e tornou esse período mais prazeroso. Ao

professor Elie Ghanem, desde os tempos de Projeto Heliópolis, e à professora Neri de Souza, em todas as

etapas do mestrado, agradeço as leituras atentas, comentários e caminhos apontados. À Lu Palhares, parceira

em toda essa caminhada, e aos colegas da UNICAMP, pelas conversas, trocas e aprendizados.

Às pessoas que constroem o Bairro Educador, às queridas Laila Sala e Beatriz Besen, a toda a gestão

e funcionários do CEU Heliópolis, às professoras e professores, coordenação e gestão da EMEF Campos

Salles e aos estudantes que me acolheram em sua rotina e quiseram contribuir para a reflexão sobre a escola,

agradeço a abertura, a franqueza, os aprendizados e a possibilidade de reflexão e aproximação desta

experiência transformadora. Às companheiras do Projeto Heliópolis, Carol, Oli, Fefê, Ana, Bel, Aline, Alana,

Jany, Vânia, Bia, e educadoras/es do projeto, pelo ambiente livre e alegre que construímos para pensar a

educação que queremos.

À minha mãe, Lúcia, que, entre tantas coisas, me deu o gosto por aprender, ao meu pai, Aristeu, que

sempre trouxe a visão crítica para dentro de casa e à minha irmã, Laura, parceira da vida toda, agradeço o

encorajamento constante, a paciência e o amor. A minhas tias, tios, primas, primos (e sobrinho), de sangue e

de coração, agradeço o carinho permanente.

Às companheiras e companheiros de luta e de profissão, e a minhas alunas e alunos, agradeço os

aprendizados, trocas e construções coletivas que fazem valer a pena seguir sendo professora nesses tempos

sombrios, sempre abaixo e à esquerda. À Marina, amiga e compa pra todas as horas, Karol e Flá,

irmãs que encontrei em Campinas, Nuca, Ju, Maíra e Ligia, amizades inabaláveis, Dani, Thales, Maria, Vibe,

que compartilharam tantas ansiedades, Dé, Lau, Tha, Pê, Ju, Nands e às queridas e queridos da GV, pelas

leituras, comentários, conversas, a possibilidade de descanso e as risadas. Finalmente, ao Marcos, meu

companheiro que trilhou comigo todo esse percurso (e tantos outros), agradeço pelos fins de semana perdidos,

pelas conversas tranquilizadoras, pelas leituras, pela força e pelo que construímos e construiremos juntos. Aos

Panontin pela segunda casa e a acolhida na família.

Às mulheres que estiveram aqui agradeço, mais uma vez e sempre, a parceria, sororidade e força em

tempos difíceis. Sozinha eu ando bem, mas com vocês ando melhor.

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Resumo

O objeto desta pesquisa é uma escola pública situada em uma das maiores favelas do Brasil, cujo projeto foi

transformado em articulação com a comunidade para combater a violência e garantir uma formação de

qualidade. Trata-se da Escola Presidente Campos Salles, situada em Heliópolis, cidade de São Paulo, que

funciona com projeto diferenciado desde 2006. Conhecida como a escola “sem paredes”, a Campos Salles

ministra as aulas do Ensino Fundamental (6 a 14 anos) em grandes salões, sem divisão de disciplinas, aulas

expositivas ou sinais sonoros que marquem o tempo. Os princípios: autonomia, solidariedade,

responsabilidade, escola como centro de liderança e tudo passa pela educação elucidam a teoria e os objetivos

pedagógicos da experiência. Propõe-se o protagonismo estudantil em um processo de aprendizagem

significativa, buscando formar estudantes autônomos e críticos. A pergunta que a pesquisa busca responder é

se as transformações e mudanças realizadas na escola representam efetivamente uma ruptura com a forma

escolar hegemônica. A modificação do funcionamento da escola se deu em consonância com o projeto

Heliópolis, Bairro Educador, que busca articular diversos equipamentos da comunidade em prol de uma

educação de qualidade. E foi instrumental para a criação do Complexo Educacional Unificado (CEU) Profª

Arlete Persoli, no local em que se situa a escola. A investigação, portanto, passou pelo estudo do histórico de

ocupação de Heliópolis e de luta e organização dos moradores e das moradoras para compreensão do

significado da escola e da articulação comunitária para sua transformação. Os elementos que foram

transformados nas relações educativas escolares estão profundamente vinculados a esse contexto do território

e de organização da comunidade. Com isso, pudemos situar a experiência e passar a estudar a escola por

dentro. A escola, que se propõe democrática, conta com mecanismos de participação discente como

assembleias e República de estudantes e Comissão Mediadora de conflitos composta por estudantes. É vista

pela comunidade como uma escola “da paz” e realizou transformações significativas no tempo e espaço

escolares, no processo de aprendizagem e nas relações entre alunos, professor-aluno assim como no papel do

docente. Ao longo da pesquisa aliamos diferentes procedimentos metodológicos tais como análise

documental, observação participante mediadas por conversas com equipe pedagógica, docentes e estudantes,

além das entrevistas com estudantes. Com essas fontes, pudemos analisar as relações educativas

pormenorizadamente, para interpretar os sentidos das mudanças propostas, que se apresentam como uma

resistência às tendências de mercantilização e mercadorização da educação atual.

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Abstract

The object of this research is a public school located in one of Brazil’s largest favelas that was transformed in

articulation with the community in order to fight violence and ensure a quality education. It is the Presidente

Campos Salles School, located in Heliopolis, in the city of Sao Paulo, and operates with a differentiated project

since 2006. Known as the school without walls, the lessons (with students from 6 to 14 years old) occur in big

halls, without subject divisions, lectures and sound signals to mark the time. The principles: autonomy,

solidarity, responsibility, school as a leadership center and Everything goes through education elucidate the

theory and pedagogical goals behind the experience. The student protagonism is proposed in a meaningful

learning process aiming to form autonomous students with critical minds. The question that the research hopes

to answer is whether the changes made to the school represent an effective rupture with the hegemonic school

form. The modification of the school’s operation happened alongside the Heliópolis, Bairro Educador

(Educative neighborhood) project, that intends to articulate several community spaces towards a quality

education. It was also instrumental for the creation of the Profª Arlete Persoli CEU (Unified Education Center),

in the same location as the school. A historical study of Heliopolis’ occupations, the struggles and organization

of its people and the community articulation that made the school’s transformation possible was made. The

elements that were transformed within the educative relations in the school are profoundly linked to the

territorial and community context. That allowed us to contextualize the experience and study the school from

within. The school presents itself as democratic and has student participation mechanisms such as assemblies,

a Student’s Republic as well as a Conflict Mediation Commission composed by students. It is seen by the

Community as a “peaceful” school and has made significant changes in school time and space, in the learning

process, in relations between students, between students and educators and, also, in the teacher’s role.

Throughout this research we have combined different methodological procedures, such as documental

analysis, participant observation and student interviews, as well as informal conversations with staff and

students. With these sources we were able to analyze the educative relations in detail, in order to interpret the

meanings of the proposed changes, that are presented as a resistance to the current tendencies to transform

education in markets and commodities.

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Lista de siglas

Sigla Legenda

CCA Centro para Crianças e Adolescentes

CEI Centro de Ensino Infantil

CEU Complexo Educacional Unificado

DRE Diretoria Regional de Ensino

EJA Educação de Jovens e Adultos

EMEI Escola Municipal de Ensino Infantil

EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental

ENEM Exame Nacional de Ensino Médio

ETEc

MOVA

Escola Técnica Estadual

Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos

ONG Organização Não-Governamental

PMSP Prefeitura Municipal de São Paulo

PPP Projeto Político Pedagógico

SME/SP Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo

TCA Trabalho Coletivo Autoral

UAB Universidade Aberta do Brasil

UNAS União de Núcleos das Associações de Moradores de Heliópolis e Região

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Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 – “Eu prefiro morrer lutando”: da ocupação de Heliópolis ao Bairro Educador 24

1.1. O Helipa ........................................................................................................... 25

1.1.1 Ocupação de Heliópolis: “Quem não luta tá morto” ................................ 34

1.1.2 UNAS: de Associação de Moradores a ONG ................................................. 46

1.1.3 A Caminhada da Paz e a educação na favela .................................................. 55

CAPÍTULO 2 – “Parece menos uma cadeia”: do Bairro Educador à transformação da escola 62

2.1 O Projeto Heliópolis, Bairro Educador: ................................................................ 63

2.1.1 A criação do CEU Heliópolis: uma conquista da comunidade ...................... 66

2.2: Uma Escola ‘sem paredes’: O processo de transformação da Campos Salles ..... 69

2.2.1 Princípios da escola: entre o Bairro Educador e a Escola da Ponte ............... 74

2.3 O significado da escola pública numa favela ........................................................ 87

2.3.1 A organização das escolas da prefeitura de São Paulo ................................... 92

CAPÍTULO 3 – A escola na prática: rotina e relações educativas na escola ................. 98

3.1 Roteiros de estudos: a ferramenta básica da Campos Salles ................................. 99

3.1.1 As transformações nos usos do espaço escolar ............................................ 104

3.1.2 A experiência do tempo escolar e do tempo de aprendizagem ..................... 115

3.1.3 Momentos de ensino e aprendizagem ........................................................... 120

3.1.4 O papel do professor ..................................................................................... 133

3.2 ‘Uma escola da paz’: Relações entre alunos e Mecanismos de participação ..... 144

3.2.1 República dos estudantes .............................................................................. 149

3.2.2 As assembleias .............................................................................................. 154

3.2.3 A Comissão mediadora: entre o diálogo e a busca pela ordem .................... 156

3.2.4 Democracia e escola ..................................................................................... 160

CAPÍTULO 4 – A escola e a resistência em tempos de educação mercadoria. ........... 164

4.1 Escola da classe trabalhadora .............................................................................. 168

4.2 Tempo da escola, tempo do trabalho ................................................................... 172

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4.3 O estudante autônomo ......................................................................................... 178

4.4 A escola disputada ............................................................................................... 183

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 193

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 199

ANEXO I – Mapa de Heliópolis ................................................................................... 205

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Introdução

Nós, educadoras e educadores, observamos constantemente as relações educativas

e buscamos soluções para diversos problemas que permeiam a vida escolar, sejam eles

relacionados às questões do vínculo com a comunidade, das relações entre estudantes,

entre eles e docentes, da violência, das dificuldades de ensino e de aprendizagem etc.

Nesta pesquisa olharemos para as respostas, a estes e outros problemas, colocadas pela

Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Campos Salles, situada na favela de

Heliópolis, na cidade de São Paulo.

A escola, em geral, é uma instituição de significados contraditórios. É onde

passamos grande parte da infância, onde conhecemos os primeiros amigos, aprendemos

a ler e a estudar, desenvolvemos nossos interesses e é, também, um espaço de esperança,

no qual se nutre uma expectativa de futuro.

É na escola que apostamos, em nível individual, para buscar melhores condições

de vida, ascensão social, e expandir nossos conhecimentos. Do ponto de vista social, por

muito tempo se depositou na escola grande parte da tarefa de dissolver desigualdades,

oferecer iguais oportunidades e, de modo geral, melhorar a vida da população,

contribuindo para o desenvolvimento econômico, social e político de um país ou região.

Ao mesmo tempo, a escola pode ser um ambiente autoritário que pouco ensina. Do ponto

de vista individual pode ser uma experiência de exclusão, do ponto de vista social pode

aprofundar desigualdades posto que a qualidade da educação oferecida a diferentes

grupos sociais - e em diferentes territórios – não é equivalente.

Entre seus variados significados, a escola é também dispositivo de reprodução de

desigualdades e exclui baseada em classes. A mesma escola capaz de acolher pode

reforçar a marginalização de indivíduos, transformando em desigualdades escolares as

desigualdades sociais e vice-versa. Como mostra Lahire: “a escola não é um simples

lugar de aprendizagem de saberes, mas sim, e ao mesmo tempo, um lugar de

aprendizagem de formas de exercício do poder e de relações com o poder” (LAHIRE,

2004, p. 171). Em grande medida, a escola também pode ser instituição que reproduz e

aprofunda as relações de dominação que são observadas na sociedade.

É necessário abandonar a visão ingênua da escola redentora, isto é, de que a

escola resolverá todos os problemas sociais e garantirá dignidade, felicidade e sucesso a

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todas as pessoas que a frequentarem. Ainda que se possa realizar mudanças efetivas em

nível individual, em sua forma atual a escola e os sistemas educativos não podem

colaborar para tal tipo de transformação profunda e coletiva da realidade. Neste momento

do percurso histórico de constituição e desenvolvimento da escola, fica cada vez mais

evidente que o ideal liberal e republicano de educação escolar não pode se realizar

completamente. Se assim o fosse, certamente viveríamos em uma sociedade diferente da

que vivemos hoje.

Ao adquirir uma configuração com traços homogêneos que é replicada por todo o

mundo capitalista, a escola também tem a função de manter e reproduzir o sistema, com

suas desigualdades e exclusões. A forma escolar, isto é, o conjunto de características que

a escola tomou no modo produtivo capitalista refere-se a uma espécie de “matriz”, de

uma base comum presente em cada escola específica. A predominância dessa forma

social, no entanto, não faz delas todas iguais. Na prática, cada escola tem sua

especificidade por ser construída e experienciada por indivíduos, que tecem diferentes

relações entre si, com o conhecimento e com seu contexto social. Essa forma escolar,

atualmente, é a forma hegemônica e é tida socialmente como meio legítimo de se educar.

No bojo das contradições entre a forma social geral e as relações específicas, entre

as expectativas históricas e as mudanças que a educação escolar coloca em prática, entre

as possibilidades de transformar e de reproduzir, a escola é uma forma necessária e:

Apesar de todas as suas limitações, a escola é vital para o trabalhador

e para seus filhos, na medida em que ela se apresenta como uma

alternativa concreta possível de acesso ao saber. E é só a partir das

pressões que estabelecerá no seu interior, aliada aos esforços dos

intelectuais progressistas e orgânicos, que a classe trabalhadora

poderá forçá-la à democratização (KUENZER, 2011, p.190).

Pela perspectiva de Kuenzer, a crítica da escola não nos deve levar a abandoná-

la, pelo contrário, nos cabe ocupá-la e transformá-la de modo a aproveitar seu imenso

potencial para impacto positivo. Há que se democratizar não somente o acesso à escola,

mas a escola em si. Se de um lado é necessário que nos afastemos da concepção ilusória

de que a escola poderá realizar todas as mudanças que buscamos no mundo, tampouco

podemos nos resignar a uma escola que traumatiza, exclui e legitima desigualdades.

“Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. (...) Cabe a nós pôr

sua força a serviço de nossos sonhos” (FREIRE, 2001). Um defensor da escola pública,

Paulo Freire propunha que ela fosse transformada, atentando ao fato de que o acesso a

saberes, em si, não é necessariamente transformador:

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Não podemos alimentar a ilusão de que o fato de saber ler e escrever,

por si só, vá contribuir para alterar as condições de moradia, comida

e mesmo de trabalho (...) essas condições só vão ser alteradas pelas

lutas coletivas dos trabalhadores por mudanças estruturais da

sociedade (FREIRE, 2001, p. 70).

Como atenta o educador, somente a luta popular poderá mudar as condições de

vida do povo. A partir daí, podemos supor que somente uma educação aliada à luta por

outras condições materiais e pelas necessidades que englobam a formação das novas

gerações, poderá ser, de fato transformadora.

Há diferentes experiências em todo o mundo que buscam transformar a maneira

de educar na escola, com inovações pedagógicas, gestão democrática e participação

discente na construção do projeto. Infelizmente, no Brasil, grande parte dessas

experiências ocorrem em instituições particulares que, justamente por serem pagas, são

direcionadas a grupos restritos e tem potencial limitado de transformação da realidade. A

escola pública, por outro lado, com suas limitações materiais e condições de trabalho

precárias, dificilmente consegue ser espaço de transformações mais profundas, mesmo

diante do engajamento de muitos de seus profissionais. Além destes aspectos da

limitação, há o projeto governamental a ser seguido e frequentemente isso serve como

um empecilho a mudanças.

Este é o diferencial do objeto desta pesquisa, trata-se de uma escola pública, que

atende filhos e filhas da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, critica a forma escolar

hegemônica e alterou suas práticas e projeto pedagógico de modo profundamente

vinculado a seu contexto e território. A EMEF Campos Salles está situada na comunidade

de Heliópolis, que tem o projeto de tornar-se um “Bairro Educador” e, por isso, um lugar

que amplia a rede de espaços considerados educativos para além da escola, mas que tem

nela um dos centros irradiadores de relações comunitárias.

Sendo o Heliópolis uma comunidade que se estabeleceu ao longo de décadas de

luta popular e resistência, foi a população que se responsabilizou pela garantia de

condições dignas de vida na região. Casas, esgotos, pavimentação, iluminação urbana,

aparelhos de saúde, educação, lazer, ainda que não seja toda a população que tenha acesso

a esses, foram conquistados pelos movimentos locais. Essa priorização da educação

surgiu igualmente da comunidade e dos movimentos sociais da região, que agora se

articulam em uma ONG, que se organizou a partir das antigas associações de moradores.

A Campos Salles é conhecida na região como uma “escola sem paredes”. Em

2007, com o intuito de transformar a experiência escolar, a equipe da escola, apoiada por

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lideranças comunitárias, derrubou as paredes que dividiam as salas de aula,

transformando espaços que antes eram divididos em três salas de aulas em grandes salões.

A gestão também quebrou os muros que separavam a escola da comunidade que a cerca,

criando novas entradas para que os moradores da favela de Heliópolis pudessem ter amplo

acesso a seu espaço e a relação entre escola e comunidade se modificasse.

A transformação, portanto, partiu da comunidade e da equipe escolar em conjunto.

Por um lado, há uma organicidade entre educação escolar e território, uma vez que a

comunidade é bastante articulada politicamente e apresenta objetivos pedagógicos muito

bem delineados, organizados em torno do Bairro Educador: uma articulação de

instituições e entidades da região que busca uma educação de qualidade e se desenvolve

pari passu à transformação do projeto da Campos Salles. Entretanto, por outro lado, por

ser uma escola municipal, encontra limitações. Por conta da falta de verba, por exemplo,

realiza parcerias com o setor privado, que também não é isento de interesses para apoiar

o desenvolvimento do projeto educativo. A escola está, portanto, em permanente disputa

de interesses.

A discussão sobre novas formas de educar na escola começou a ser priorizada na

Campos Salles nos anos 90. Nessa época, Heliópolis era um lugar extremamente violento

e a escola, como muitas outras, era dominada pelo tráfico e tinha uma imagem muito

negativa na região. Isso levava à falta de motivação dos profissionais e estudantes, e a

altos índices de evasão e abandono. Em resposta à situação, formou-se um grupo de

membros da comunidade, corpo docente e gestão com a ideia inicial de procurar romper

o ciclo de violência na qual escola e favela estavam imersos. No entanto, ao dar início à

discussão acerca da escola e de seu projeto pedagógico, ficou evidente que havia muitos

outros problemas. Mesmo os alunos que frequentavam as aulas não se envolviam e viam

a escola como uma punição.

Em 1999, uma aluna, Leonarda, foi assassinada na saída da aula. Sua morte teve

um profundo impacto na comunidade. Na escola, o efeito da tragédia foi fortalecer a

vontade de transformação e os vínculos comunitários. O grupo que pensava a Campos

Salles começou a questionar a violência da região, a relação entre escola e comunidade,

os métodos autoritários da instituição escolar e estudar outros modelos de educação, mais

notadamente, a conhecida experiência da Escola da Ponte1, de Portugal. O trabalho passou

1 Experiência escolar portuguesa de transformação de uma escola pública que tinha a imagem de receber alunos

‘problemáticos’ em um espaço educativo democrático com protagonismo estudantil. Ver mais em:

http://www.escoladaponte.pt/novo/

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a ser interdisciplinar e o Projeto Político Pedagógico foi reelaborado.

Com a reformulação do projeto educativo, as paredes foram quebradas e a partir

de então, as aulas de cada série passaram a ser ministradas em salões, que comportam até

100 alunos, dentro dos quais os estudantes se sentam em mesas coletivas, divididos em

grupos escolhidos por afinidade e trabalham juntos com roteiros interdisciplinares. O

processo de aprendizagem se dá no ritmo de cada estudante, que é encorajado a ajudar e

pedir ajuda aos colegas. Os princípios da escola: autonomia, responsabilidade e

solidariedade e os lemas tudo passa pela educação e a escola como centro de liderança

passam a orientar a prática educativa.

O aprendizado é organizado a partir dos roteiros de estudos, um material

interdisciplinar produzido pelos professores, com intuito de tecer, em conjunto com os

alunos, relações mais horizontais. Do ponto de vista das relações entre os estudantes as

relações são modificadas, pois o projeto visa ensinar a cooperação, no lugar da

competição.

Assim, a Campos Salles se modifica por dentro e por fora, em seu projeto

educativo e na sua relação com Heliópolis, propondo práticas distintas das relações

escolares dominantes. Abdicando da pretensa neutralidade da escola, se propõe como

centro de liderança, isto é, espaço de transformação da sociedade e das relações escolares,

como um espaço em que estudantes têm a mesma voz que a gestão. Um efeito disso foi

descrito por um estudante2 ao explicar porque gostava da Campos Salles: “Parece menos

uma cadeia”. Essa fala, tão objetiva, indica não só que o menino acreditava que as escolas

em geral parecem cadeias, mas que esta escola é diferente, possivelmente por ser um

espaço no qual as relações são menos violentas, sem tantas paredes, grades e muros.

A escola é vista, de fato, como algo diferente na comunidade, o que gera diferentes

percepções, desde as cobranças em relação a disciplina, a uma visão de que esse novo

fazer escolar constituiria a nova escola redentora que poderia solucionar todos os

problemas do Heliópolis. Mesmo com essas múltiplas visões, é certo que a comunidade

é parte integrante da escola, opina nas decisões e ajuda a resolver os problemas, e isso é

um diferencial que abre espaço para transformações profundas.

No entanto, a prática sempre traz limites e contradições. Há entraves materiais,

individuais, obstáculos não previstos. Para além da educação transformadora que se

busca, o discurso, muitas vezes, entra em choque com a realidade. Há, como em toda

2 Em 2013, durante o período em que estagiei na escola.

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escola, outros atores em jogo, de modo que a análise profunda desta experiência deve ser

necessariamente crítica. Não interessa a descrição apaixonada dos méritos da escola, que

de fato são vários, mas um olhar crítico sobre o histórico de resistência que levou à

construção do projeto, sobre os diferentes interesses que operam na escola, e sobre a

prática, de modo a oferecer subsídios para um aprofundamento do debate sobre as

mudanças que este tipo de projeto escolar diferenciado promove.

A questão que a pesquisa busca responder é se este projeto, mesmo em um

contexto de divergência de interesses, conseguiu produzir rupturas em relação à forma

escolar hegemônica. É possível transformar profundamente a escola? Que mudanças

podemos situar na relação entre escola e comunidade? Quais os efeitos e significados

dessas mudanças no Heliópolis e que contribuições traz para a reflexão sobre a escola

pública? Qual o sentido atribuído a tais mudanças na organização escolar do ponto de

vista de estudantes? De que maneira esse projeto transformou a experiência escolar vivida

por eles?

A experiência da Campos Salles não é a primeira a levantar essas questões. Há

muitas escolas com projetos diferenciados, metodologias alternativas, criativas,

inovadoras. Há exemplos no mundo inteiro. Mesmo olhando exclusivamente para as

escolas públicas na cidade de São Paulo, é possível mencionar outras importantes

experiências, havendo, inclusive, frequente troca de aprendizados entre essas instituições.

Entre elas estão a CIEJA Campo Limpo3, a EMEF Amorim Lima4 e mais recentemente,

a EMEF Escritora Carolina Maria de Jesus5. O fato de haver trocas, conversas e

aprendizados compartilhados entre essas escolas já é, em si, um diferencial, entendendo

que a escola é em geral uma instituição isolada. Os nexos dessas experiências com a

Campos Salles são variados, mas cada uma delas se articula com um contexto particular,

desenvolvendo suas peculiaridades. Daí a decisão de elegermos, nesta pesquisa, somente

3 O Centro Integrado de Educação de Jovens e adultos também adota práticas democráticas e é reconhecido pelo seu

trabalho com inclusão de pessoas com necessidades especiais, pela flexibilização dos horários de aulas e pela

metodologia de ensino por projetos. Ver mais em: http://blogdociejacampolimpo.blogspot.com

4 Localizada no Butantã, a Amorim Lima, assim como a Campos Salles é inspirada na Escola da Ponte, de Portugal,

tendo começado seu processo de transformação antes da Campos Salles, chegou a receber professores de lá quando a

equipe começou a transformar o funcionamento da escola para realizar formações e muitas vezes é referida pela equipe

como uma escola-irmã. A escola é conhecida também por englobar filhos dos professores da Universidade de São Paulo

assim como estudantes provenientes da Favela de São Remo. Ver mais em: https://amorimlima.org.br/

5 Atual EMEF Infante Dom Henrique a escola localiza-se no bairro do Pari e está aguardando os trâmites para mudança

de nome para homenagear a autora, Carolina Maria de Jesus (ver mais em: https://www.geledes.org.br/simbolo-de-

combate-ao-racismo-escola-quer-levar-nome-da-escritora-carolina-maria-de-jesus) que viveu próxima a região da

escola, e escreveu “Quarto de despejo”. A mudança de nome se deu por vontade da comunidade escolar, em assembleia,

e o processo pelo qual a escola tem passado tem muitas similaridades com as outras citadas anteriormente, também se

encaixando na definição de escola democrática. A escola é conhecida por receber muitos estudantes imigrantes e há

muitos anos faz um trabalho de acolhimento e combate ao preconceito. Ver mais em:

https://www.facebook.com/emefinfante/

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uma dessas escolas como objeto de estudo, a fim de desenvolver com maior profundidade

de análise das complexas relações que envolvem a escola e seu território.

Ainda que essas experiências tenham considerável repercussão midiática6, a maior

parte da produção sobre o assunto é de caráter jornalístico, sendo reduzida a quantidade

de trabalhos acadêmicos aprofundados sobre essas escolas7, o que torna essa pesquisa

relevante para a reflexão sobre essas experiências e, possivelmente, útil para pensar e

repensar essas práticas diferenciadas.

O percurso da pesquisa

A escolha de trabalhar especificamente com a Campos Salles se deu por minha

experiência pessoal com a escola. Em 2013 e 2014 participei do Projeto Especial de

Estágio Heliópolis8, fruto da aproximação de lideranças de Heliópolis com a Faculdade

de Educação da Universidade de São Paulo. A demanda era que a USP criasse uma Escola

de Aplicação em Heliópolis, projeto este que foi considerado inviável pela Universidade

por questões orçamentárias e de logística. Assim, a faculdade criou um projeto de

pesquisa e intervenção através de estágios de estudantes de pedagogia e licenciaturas. A

partir desse programa, tivemos a oportunidade de trabalhar diariamente nos salões da

Campos Salles, CCAs da região e participar de atividades com educadores da região.

Posteriormente, em 2015, fui convidada para trabalhar no Cursinho Popular Pré-

Etec, organizado pelo CEU Heliópolis, no qual buscamos replicar em grande parte a

metodologia da Campos Salles. Posto que muitos dos estudantes eram do 9º ano da escola,

foi um período em que pudemos pensar coletivamente nas aulas e com a gestão do CEU

sobre o projeto, o contexto de Heliópolis e do Bairro Educador. Muitas das reflexões desta

pesquisa foram iniciadas neste espaço e foi aí que nasceu o interesse em realizar a presente

investigação.

A primeira fase da pesquisa envolveu a análise documental e pesquisa histórica

sobre a transformação da EMEF Campos Salles, a formação do projeto Heliópolis, Bairro

Educador e a ocupação da comunidade. As principais fontes às quais tivemos acesso

6 Ver: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/04/escolas-publicas-brasileiras-aplicam-experiencias-

desenvolvidas-nos-eua.html; https://www.cartacapital.com.br/sociedade/derrubando-paredes-e-estereotipos-na-

favela/; https://emais.estadao.com.br/blogs/bruna-ribeiro/emef-campos-salles/; http://porvir.org/escola-em-heliopolis-

implanta-republica-de-alunos/ . 7 Entre as pesquisas que tratam sobre as escolas de projeto diferenciado no Brasil, utilizamos nesta dissertação:

BASTIANI (2000) e WREGE (2012). Sobre a experiência específica da EMEF Campos Salles, localizamos:

CAETANO (2015); GALLO (2009) MORAIS et al (2017); SANTIS (2014), SOARES (2010). 8 Fui estagiária, junto de um grupo de estudantes da graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP e

funcionários, sob a orientação, inicialmente da Profª Drª Lisete Arelaro e posteriormente do prof. Dr. Elie Ghanem.

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foram produzidas pela UNAS, a ONG que surgiu das antigas associações de moradores

da região.

Num segundo momento, após conseguir a aprovação do Comitê de Ética em

Pesquisa para a realização da pesquisa de campo, me reuni com a coordenadora

pedagógica para discutir os objetivos da pesquisa e receber sua autorização para iniciar o

período de observação dos salões da EMEF. Toda a equipe da escola foi muito receptiva

e se mostrou disposta a conversar sempre que possível. A abertura das professoras foi

essencial e muitas das indicações e reflexões delas puderam guiar a observação e,

posteriormente, a análise.

A etapa de observação participante teve o objetivo, além de acompanhar o

cotidiano da escola, de selecionar pessoas para a fase de entrevistas. Pude entender a

rotina e observar o trabalho das professoras e professores assim como acompanhar o

aprendizado, momentos de descanso e de socialização dos estudantes. Dividi, portanto, o

trabalho de campo em duas etapas. Inicialmente visitei todos os salões, de manhã e à

tarde9, notando diferentes usos dos espaços e como os dispositivos utilizados entre os

mais velhos eram adaptados às crianças dos anos iniciais. Na segunda etapa, concentrei-

me no salão do 8º ano. Isso foi importante para entender melhor como os estudantes

organizam o processo de aprendizado e observar as relações entre eles. Este

acompanhamento mais próximo e cotidiano permitiu conhecer e escutar os pontos de vista

de alunos que não aceitaram realizar as entrevistas. Tive a oportunidade de realizar

mediações de roteiro, conversar sobre ensino superior e aspirações de carreira dos

estudantes, intervir em discussões e oferecer apoio nos problemas. Pude experienciar o

cotidiano da escola e a partir disso levantei os temas a serem abordados nas entrevistas.

A decisão de entrevistar alunos do 8º ano foi por acreditarmos que os alunos mais

velhos do Ensino Fundamental10 poderiam ter experiências mais diversas ao longo de sua

trajetória escolar. A escolha dos entrevistados foi pautada pela variedade de experiências.

O objetivo era encontrar tanto alunos que tivessem realizado todo o fundamental na

Campos Salles como alunos que tivessem frequentado anteriormente outras escolas.

Procuramos incluir meninos e meninas, brancos e negros, nordestinos e paulistas. Houve

9 Um recorte da pesquisa foi o de tratar somente dos períodos matutino e vespertino, entendendo a educação de jovens

e adultos, realizada à noite, uma realidade diversa que precisaria de atenção particular em outra pesquisa. Assim, escolhi

pensar as crianças e adolescentes do Ensino Fundamental, mas acredito que o EJA, realizado na Campos Salles, e

herdeiro do Movimento de Alfabetização (MOVA) de Paulo Freire, merece estudos detidos e oferece aprendizados

importantes. 10 Isso aconteceu pelo fato de não haver um 9º ano na escola em 2017, pois houve um ‘buraco’ gerado pela reforma

que criou o ensino fundamental de 9 anos, o 8º ano era a turma com estudantes mais velhos em 2017, em 2018 estes

alunos continuaram na escola no 9º ano

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também a intenção de incluir tanto quem se adequasse à categoria ‘bom aluno’ quanto

‘mau aluno’. Refinamos estas categorias durante a observação. Entendemos que na

Campos Salles o mau aluno é entendido como aquele que não expressa interesse em fazer

faculdade ou curso técnico depois da escola, briga ou desrespeita os professores e colegas

e passa dias sem fazer roteiro. Consequentemente, o bom aluno seria aquele com

aspirações acadêmicas para o futuro, que está ‘adiantado’ nos roteiros, que se relaciona

bem com todos e, principalmente, que demonstra vivência dos princípios da escola, ou

seja, um aluno que se mostra autônomo em seus estudos, solidário em ajudar colegas com

dificuldades, e responsável pelas próprias ações.

Entrevistar adolescentes que eram vistos como maus alunos provou-se um

desafio, pois em geral, eles não queriam falar. Eram poucos para um salão de 70 alunos,

mas não estavam interessados, fosse por considerarem que estariam fazendo trabalho de

escola fora do horário escolar11, fosse por acharem que seriam de alguma maneira

punidos. Estavam, contudo, dispostos a conversar informalmente durante o período de

observação, de modo foi possível acessar, ainda que de maneira reduzida, as visões destes

alunos sobre a escola e pudemos referenciar a análise também em seu ponto de vista.

Nas entrevistas12 foram realizadas a partir de outubro, todas no espaço do CEU

ou da escola no período do almoço ou à tarde. A entrevista mais curta durou trinta minutos

e a mais longa uma hora e quarenta. Entre as dez pessoas entrevistadas13, quatro eram

meninos e seis meninas. Cinco eram negras, das quais duas garotas e três garotos. Quanto

à origem, três eram nordestinos (provenientes do Piauí e Bahia) e dentre os sete nascidos

11 Antes de autorizar a realização da pesquisa de campo da escola tive uma conversa com a então coordenadora para

explicar o teor e objetivos da pesquisa. As únicas restrições que ela colocou à minha presença no salão foi que eu não

realizasse entrevistas, ou atividades que impedissem os alunos de estudar, durante o período de aulas, de modo que as

entrevistas foram todas realizadas no período da tarde. Outro combinado foi que eu não produzisse imagens nas quais

aparecessem as crianças, mas que eu poderia reproduzir aquelas que já estivessem públicas na internet ou em outras

fontes, pois já teriam sido aprovadas pela escola em outro momento. Por isso, as imagens contidas nessa dissertação

foram aquelas encontradas no período de pesquisa documental e histórica. Além disso, conforme acordado com a

coordenação e acertado com o Comitê de Ética de Pesquisa, todos os nomes de alunos utilizados ao longo do texto da

dissertação são fictícios, de modo a resguardar a identidade das crianças e adolescentes que participaram a pesquisa. 12 No momento em que cada estudante aceitava ser entrevistado, já era possível contatar o responsável para explicar a

pesquisa e solicitar sua autorização. Em todos os casos o adulto responsável indicado foi a mãe. A autorização era

necessária por serem todos menores de idade. Neste processo produzi dois documentos, um para o entrevistado, o

Termo de Aceite Livre e Esclarecido, no qual explicada com linguagem simples o que era uma pesquisa de mestrado e

quais os objetivos. Tendo esclarecido tudo isso, o estudante ficava com duas cópias do Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido, um documento mais elaborado e detalhado, para o conhecimento dos responsáveis. Em seguida eu

contatava as mães, conversava com elas, e respondia questões que tivessem, a partir disso elas podiam assinar, ou não,

os documentos. Tendo recebido a cópia assinada pela mãe e a confirmação da autorização por telefone, eu podia marcar

com o estudante horário e local para a entrevista que, respeitando o acordo que fiz com a coordenação, não podia ser

durante o horário de aula. Nenhuma mãe recusou a autorização, mas muitos estudantes disseram aceitar, mas

esqueceram de trazer os termos assinados, perderam, ou acabaram adiando diversas vezes de modo que essas entrevistas

jamais ocorreram. Somente uma mãe, a única aposentada, conseguiu se encontrar pessoalmente comigo. Todas se

mostraram abertas a conversar e interessadas na pesquisa, muitas delas chegaram a mencionar espontaneamente que a

escolha de colocar os filhos na Campos Salles se deu por acreditarem no projeto da escola.

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em São Paulo, três eram filhos de nordestinos (provenientes do Piauí, Bahia e

Pernambuco).

Entrevistamos quatro alunos que fizeram todo o percurso do ensino fundamental

na escola e seis que começaram a estudar na escola nos últimos três anos. Cinco vivem

em famílias monoparentais, sempre com a mãe. Todos os alunos entrevistados

frequentavam alguma igreja, sendo nove cristãos (católicos e evangélicos) e uma

umbandista. Somente um entrevistado se mostrou envolvido com as atividades associação

de moradores (UNAS), mas seis se mostraram ativamente envolvidos com a escola para

além das aulas, participando da organização de festas, da Mostra Cultural, de grupos

extracurriculares etc. Somente três disseram não gostar do projeto da escola, e estes

estudantes a frequentavam há dois anos ou menos.

Para alcançar as questões colocadas e apresentar os achados da pesquisa de campo

de maneira contextualizada, a exposição da pesquisa está organizada em quatro capítulos:

O primeiro, de cunho principalmente histórico, se debruça sobre a comunidade. O

segundo busca elucidar o processo de transformação da escola. O terceiro capítulo

apresenta o cotidiano e funcionamento da escola enquanto o último busca discutir a forma

escolar e relacionar os aspectos da prática da EMEF Campos Sales nos quais se observam

mudanças.

O primeiro capítulo inicia a exposição dessa pesquisa com a caracterização e

histórico de Heliópolis, desde as primeiras ocupações da região, sendo um agente

importante para esses processos, a UNAS. Com a caracterização da comunidade nos anos

90 podemos entender como surgiu a Caminhada da Paz, que em 2019 terá sua 21ª edição.

Foi um momento em que diversos atores da região buscaram, na educação, soluções para

problemas da comunidade.

Isso nos leva, no segundo capítulo, à constituição do projeto Heliópolis, Bairro

Educador e à construção do CEU Heliópolis Profª Arlete Persoli, uma grande vitória da

comunidade, e, finalmente, ao processo de transformação da Campos Salles, no qual

entendemos como se deu a construção do projeto. Também com o intuito de

contextualizar, apresentamos na terceira parte deste capítulo algumas considerações sobre

a escola pública e fazemos uma breve retomada das políticas educacionais da Secretaria

Municipal da Educação de São Paulo (SME-SP) para entender sua organização e como

as diferentes gestões tem influenciado a escola em mais de duas décadas.

Para sistematizar a grande quantidade de informações recolhidas em campo, o

terceiro capítulo está organizado em duas partes. A primeira é centrada no roteiro de

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estudos, um material didático produzido pela equipe de professores, que é a ferramenta

que organiza o processo de aprendizado no dia a dia. A partir dele, tratamos do tempo

escolar, do uso do espaço na escola, da aprendizagem em si e o papel que o professor

adquire neste projeto. Na segunda seção do capítulo procura-se refletir sobre as relações

estabelecidas na escola, e apresentar os mecanismos de participação e de mediação de

conflito que contribuem para que a Campos Salles seja uma Escola da Paz. São elas, a

República de alunos, as assembleias e a comissão mediadora. Isso levanta um debate

sobre a democracia na escola.

No último capítulo, a intenção é aprofundar a análise da Campos Salles, e

responder o problema de pesquisa, tentando entender como ela se relaciona com a forma

social da escola hegemônica, inserida nas relações capitalistas, como um espaço de

resistências que também se articula com o Estado e com o setor privado. A escrita foi

dividida em quatro seções, que indicam eixos articuladores das formas de manifestação

da crítica às relações escolares dominantes operadas por essa experiência. Na última parte

A escola disputada buscamos entender a posição particular que a escola ocupa em suas

relações com ONGs e o Estado. Todo o capítulo é permeado também por achados e

retomadas do campo, na tentativa de entender melhor os significados desta experiência.

Comecemos, portanto, entendendo de onde partiu o projeto diferenciado da Campos

Salles.

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CAPÍTULO 1 – “Eu prefiro morrer lutando”: da ocupação de

Heliópolis ao Bairro Educador

Para entender a EMEF Campos Salles, é essencial, antes, olhar para a favela que

a cerca e para o povo que a construiu e ali vive. O projeto da escola é profundamente

marcado pela relação com a comunidade, de modo que somente aí apenas poderia adquirir

a forma que tomou, de maneira articulada com o Bairro Educador, o Movimento Sol da

Paz e a UNAS.

Sendo assim, iniciaremos este capítulo com a caracterização da comunidade, com

a intenção de pintar um breve retrato do território no qual entramos. É uma favela, e como

tal, é estigmatizada, mas é também uma região onde há intensa cooperação entre vizinhos,

organização comunitária e produção cultural, do funk ao forró, que torna evidente a

origem nordestina de grande parte dos moradores.

A partir disso, faremos um panorama histórico das ocupações de terras e a

resistência do povo que ali permaneceu. Compreendendo os antigos movimentos de

moradores, é possível discutir a atuação da UNAS que reúne todas as antigas associações

de moradores da região e que hoje trabalha para garantir serviços básicos à população e

acolhe os movimentos sociais da região. Compreendendo esse contexto, discutiremos a

resposta da comunidade à violência, com a constituição do Movimento Sol da Paz e a

Caminhada da Paz e como isso se relaciona à educação que se quer construir.

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1.1. O Helipa

O Heliópolis se localiza na região sudeste do município de São Paulo, próximo ao

centro expandido da cidade. A região é conhecida como uma favela, muitos dos

moradores a chamam de comunidade, outros grupos acreditam ser um bairro14. É o espaço

entre a Avenida Juntas Provisórias, a Avenida Almirante Dellamare e a Estrada das

Lágrimas, fazendo fronteira com os bairros de São João Clímaco, Sacomã, Vila Carioca

e a cidade de São Caetano. Na prática, a região, carinhosamente apelidada de ‘Helipa’,

hoje ultrapassa esses limites15.

Vivem no Helipa filhos e netos de migrantes, nascidos em São Paulo,

descendentes que frequentemente apresentam estreitos laços com a cultura nordestina e

orgulho pela origem dos pais e avós. Segundo a UNAS16, (União de Núcleos, associações

14 Alguns grupos, principalmente ligados à associação de moradores, UNAS, tem entendido que Heliópolis deixou de

ser uma favela e seria agora um bairro, por ter sido muito urbanizada em anos recentes, inclusive por conquista dos

movimentos de moradores da região. Entretanto, nesta pesquisa os interlocutores primários são os estudantes e nenhum

deles, durante o período de campo, descreveu Heliópolis, atualmente, como bairro, variando sempre entre favela e

comunidade, sendo a segunda mais frequente, e a não-classificação do espaço através de uma descrição inespecífica do

espaço, como “moro aqui atrás da escola”. O termo ‘bairro’ apareceu na descrição do projeto do “Bairro Educador” e

como sinônimo de região, alguns disseram que a favela de Heliópolis ficava no bairro do Sacomã ou São João Clímaco.

Por isso, escolhi utilizar estes dois termos ‘favela’ e ‘comunidade’. Ainda assim, muitas das falas de moradores e

lideranças – às quais tive acesso através de um projeto da UNAS – falam em ‘bairro’, e o projeto comunitário no qual

a EMEF Campos Salles se insere tem o nome de Bairro Educador. 15 Ver em anexo I: mapa. 16 União de Núcleos e associações dos moradores de Heliópolis e região, é hoje regularizada como ONG, mas surgiu

inicialmente como movimento de bairro e centraliza muitos grupos que se organizam politicamente na região e é

essencial na luta por moradia na região e, como será relevante para esta pesquisa, na luta por educação de qualidade.

Figura 1: Vista de Heliópolis com o Hospital Heliópolis ao fundo Fonte: UNAS

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dos moradores de Heliópolis e região), Heliópolis tem uma população de

aproximadamente 200 mil17 pessoas. É um polo de cultura popular periférica, do funk18,

do movimento hip hop19 e também conta com a Orquestra de Heliópolis20. A região tem

ainda intensa mobilização popular, havendo movimentos articulados de mulheres, negros,

LGBT*, e de jovens, sendo que as pessoas que os constroem frequentemente convergem

nos movimentos que lutam por pautas locais, relacionadas às condições materiais como

moradia, educação, saúde, segurança e infraestrutura. É neste espaço e ambiente que

nosso objeto, a EMEF Presidente Campos Salles, se insere.

O panorama que traçarei parte de relatos e documentos associados a UNAS.

Considerando que a Campos Salles se relaciona com o Bairro Educador e a UNAS é a

grande articuladora deste projeto, foi necessário acompanhar de perto a organização21

para compreender o papal dela na constituição do projeto educativo da escola. Além disso,

esse é o grupo que mais produz documentos, publicações e vídeos sobre Heliópolis, de

modo que foi essa produção que nos deu acesso à voz de moradores que não têm relação

direta com a Campos Salles. Entretanto, a UNAS não é consenso na comunidade, e é

criticada por moradores por entenderem que tenha caráter predominantemente

assistencialista. Um aluno da Campos Salles, ao ser entrevistado, criticou a postura da

organização de falar ‘em nome’ de Heliópolis, afirmando um suposto monopólio da luta

e da representação da comunidade.

Talvez seja por isso que eles [UNAS] meio que se sintam donos de

Heliópolis, porque se você for ver, a única instituição que meio que luta

pelos direitos de Heliópolis é a UNAS, só que também (…) não é aberto

um espaço para que outras pessoas sejam (...) inclusas no trabalho e

daí meio que fica só a UNAS com o nome de Heliópolis que fala assim:

‘ai, a gente ajuda Heliópolis sempre e a gente que meio que tem o poder

sobre Heliópolis’ (Lincoln).

17 Dados do IBGE variam em relação aos da UNAS, mas aqui consideramos o que foi levantado pela organização de

moradores. Estes dados são atualizados com mais frequência do que os Censos do IBGE, por serem essenciais para os

movimentos de moradia da região. 18 Há nas periferias das grandes cidades, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, o movimento do Fluxo, que

consiste na realização de enormes bailes funks na rua, organizados de maneira informal. O Fluxo do Helipa é

considerado o maior baile deste tipo. Quando o fluxo acontece, começa à noite e dura até de manhã, causando

incômodos aos moradores que além de passar a noite inteira com o som alto, não conseguem sair de suas casas devido

a imensa quantidade de gente nas ruas. O fluxo do Helipa é frequentado pelos grandes nomes do funk, recebe muitas

pessoas de outras quebradas e inspirou inúmeros funks de sucesso dos últimos anos, constituindo Heliópolis um dos

maiores polos do funk no Brasil. Ver mais em: http://funknacaixa.com/2015/08/20/as-mil-tretas-que-envolvem-o-

fluxo-do-helipa/ e http://www.kondzilla.com/demos-um-role-no-helipa-com-o-mc-2k/ 19 A cultura hip hop é forte no Heliópolis. Os Slams da região a banda da região, Avante, o coletivo. 20 O Instituto Baccarelli, vizinho ao CEU Heliópolis Profª Arlete Persoli, oferece aulas de coral, teoria musical e

instrumentos, gratuitamente para as crianças e jovens de Heliópolis. O Instituto é responsável pela organização da

Orquestra de Heliópolis. Muitos dos estudantes da EMEF Campos Salles fizeram algum curso no Baccarelli. 21 Apesar disso, a maior parte dos adolescentes entrevistados não frequentam atividades da UNAS e muitos nem

conheciam a organização. Isso mostra como o que a UNAS apresenta como totalidade de Heliópolis não pode ser

encarado como tal, pois a organização, apesar de pretender, não consegue alcançar toda a população do bairro.

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Não foi possível, entretanto, dados os limites desta pesquisa, entender os conflitos

presentes na relação da UNAS com a comunidade, para tanto seria necessário um estudo

mais aprofundado e específico sobre este tema. Deste modo, o panorama histórico das

ocupações de Heliópolis é orientado pelo discurso da organização, ainda que saibamos

que as histórias de Heliópolis são múltiplas e a perspectiva da UNAS é somente uma

delas.

No decorrer da pesquisa algumas pessoas que trabalham ou moram na região

descreveram Heliópolis como uma favela ‘pacificada’. Isto faz referência ao fato de que

apesar da presença do tráfico, a violência22 em Heliópolis diminuiu significativamente

nas últimas décadas. Contudo, é importante diferenciar este caso das favelas ‘pacificadas’

do Rio de Janeiro, onde começou-se a utilizar este termo. Sobre o caso carioca, Barreira

afirma:

Com o falatório em torno da `pacificação`, o discurso dominante reduz

o crime à sua dimensão mais visível e espetacular, o conflito aberto,

enquanto a favela permanece estigmatizada como território de

violência em potencial, que demanda controle permanente

(BARREIRA, 2013, p. 81).

A paz das UPPs cariocas seria, além de superficial, uma forma de legitimar

controle policial da comunidade, seguindo uma lógica de criminalização da pobreza.

Ainda que o crime e a violência continuem a existir em Heliópolis – assim como nos

casos cariocas -, a paz que existe foi construída por vontade da comunidade, não por

intervenção ostensiva e televisionada do Estado. A diferença entre a paz do Helipa e as

favelas pacificadas do Rio de Janeiro pode ser resumida em uma das palavras de ordem

dos movimentos sociais da comunidade: “A paz é de todos ou não é de ninguém”. Assim,

não interessa ao movimento Sol da Paz23 a presença da polícia, muito menos do exército,

para coibir a ação de traficantes, não interessa uma paz imposta de fora, mas uma

construída por dentro. Os movimentos de Heliópolis24 querem forjar relações de respeito

e não-violência dentro da comunidade, sem a ação de forças repressoras externas. O

objetivo é que todos possam viver num espaço de paz e segurança. Repressão policial não

condiz com a ideia de paz que se formou na comunidade, como pode ser verificado no

material educativo produzido pelo movimento “Sol da Paz”, que coloca como objetivos:

22 Discute-se aqui a violência não-estatal. A violência policial, por outro lado, foi citada com alarmante frequência entre

os adolescentes com quem conversei. 23 O nome “Sol da Paz” é uma referência à origem do nome “Heliópolis”, que em grego significa “cidade do Sol”. 24 Nos referimos aqui aos movimentos sociais que se inscrevem no projeto Heliópolis, Bairro Educador, e trabalham

com ou próximos à UNAS.

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Reivindicar a participação da comunidade na busca de soluções

coletivas e na construção de políticas públicas para a garantia da

democracia e dos direitos humanos; Compreender que a violência é um

problema social causado pela exclusão, pelo desrespeito aos direitos

humanos básicos e pela lógica do lucro, por isso não pode ser resolvida

com punições, e sim com a transformação dessa sociedade injusta e

perversa em uma outra sociedade sem desigualdade e sem relações de

opressão; Encorajar as pessoas a agir coletivamente em busca da

garantia dos direitos humanos (SOL DA PAZ, 2017).

Mesmo com todo este processo de ‘pacificação’, nossos entrevistados contam que

nem sempre é seguro andar em Heliópolis. Na realidade, todas as meninas entrevistadas

disseram achar a região perigosa, enquanto entre os meninos, somente um disse o mesmo.

Sophia conta que vive na frente de um ponto de drogas e que já viu um assassinato da

janela de seu quarto. Juliana conta que sempre faz caminhos mais longos para chegar em

casa à noite para passar por lugares que considera mais seguros. Outras meninas,

informalmente, relataram perseguições na rua e abusos. Já Lincoln afirmou que dizer que

favela é um lugar violento é um estereótipo. Esta diferença de percepção da segurança

tem uma dimensão de gênero, o que se repete em todo o espaço urbano de diferentes

maneiras. Entretanto, os meninos são mais vítimas de violência policial. Alguns meninos

negros, em particular aqueles que têm pele mais escura, contaram informalmente que são

parados pela polícia com frequência absurda e forçados a esvaziar todo o conteúdo da

mochila no chão, muitas vezes são insultados e humilhados. O próprio Lincoln, que foi

muito enfático em defender que Heliópolis é um lugar seguro contou, emocionado, uma

história de quando seu irmão, também adolescente, foi parado e ameaçado por policiais:

Eles falaram “enfia ele na viatura, vamos dar um fim nisso”, só que,

sabe, qual era o fim que isso ia se dar? A gente não sabia se eles iam

levar meu irmão para uma delegacia, a gente não sabia se eles iam

ligar para minha mãe, pro meu pai, a gente não sabia o que podia

acontecer (Lincoln).

O menino concluiu a história relatando indignação por temer mais os policiais do

que os traficantes sendo que segundo ele, os primeiros “tinham que estar do nosso lado”.

Essa sensação remete à política do Primeiro Comando da Capital (PCC)25 de ‘paz entre

25 Trata-se de uma poderosa organização criminosa que comanda assaltos, sequestros e o narcotráfico em São Paulo. O

Comando foi criado numa penitenciária em Taubaté no interior do estado e tomou força com rebeliões carcerárias em

todo o estado ao longo dos anos 2000. Gabriel Feltran define a organização como uma fraternidade do crime que hoje

se disseminou por todo o país. “Há pelo menos uma década o Primeiro Comando da Capital preocupa a Interpol e o

FBI, além do Departamento de Narcóticos dos Estados Unidos. O Ministério Público brasileiro estima que, em 2018,

o PCC tenha mais de 30 mil integrantes batizados em todos os estados da federação. Ao menos outros 2 milhões de

homens, mulheres e adolescentes, mesmo que não batizados, são funcionários de baixo escalão dos mercados ilegais

no Brasil e correm com o Comando em periferias, ruas e favelas de todo o país” (FELTRAN, G. Irmãos: Uma história

do PCC. Companhia das Letras, São Paulo, 2018).

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os ladrões’26 à qual também se atribui responsabilidade pela queda de homicídios na

região no começo dos anos 200027, assim como em muitas quebradas28 paulistas. O PCC

regula o crime que atinge os moradores, protegendo-os. Braz Nogueira, ex-diretor da

Campos Salles, conta sobre quando roubaram computadores da escola. Ao constatar o

ocorrido, Braz foi falar com líderes do crime na região, acusando-os de roubarem das

crianças da comunidade, que são os alunos da escola. Diante disso, a gerência do PCC

mandou devolverem os computadores, o que de fato aconteceu.

Uma conversa com Karol, moradora do Heliópolis, elucidou essa dinâmica: “é

isso, o crime é organizado mesmo, e organizado de uma forma boa pra comunidade

porque (...) o tráfico é como se fosse a organização de segurança da quebrada. Aí parece

mais próximo da nossa realidade, parece até mais justo, porque todo mundo se conhece”.

A moradora explicou que, ainda que se entenda que o PCC tem práticas violentas, como

assassinato e espancamento, a sensação de quem mora ali, e não tem relação com o crime,

é de segurança: “A galera não tem medo porque eles não saem matando a rodo até porque

[quem faz isso] se fode, morre também”. Isto é, não se teme sofrer violência dos irmãos29

26 Lema do PCC de acordo com Feltran (2018). 27 Segundo Feltran (2018) o PCC participou na redução em 70% dos homicídios no estado de São Paulo no início dos

anos 2000. 28 Gíria que se refere a favelas e regiões periféricas. 29 Termo utilizado para designar membros do PCC.

Figura 2: Crianças brincando em vielas de Heliópolis Fonte: Bruta Flor Filmes / Foto: Cacá Bernardes

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pois o povo entende a lógica pela qual eles operam. Como Lincoln apontou: “muitas vezes

eu me sinto mais seguro, infelizmente, perto de traficantes do que do lado da polícia,

porque os traficantes eu sei o que eles são capazes, mas a polícia eu não sei”. Karol

acredita que o Helipa tem uma dinâmica de cidade pequena, o que colabora para a

sensação de segurança e de fato protege os moradores: “Todo mundo se conhece, então,

pra morador, nunca foi perigoso e quando acontece alguma coisa tem uma organização

interna. Não fica por isso mesmo”. A moradora contou ainda um caso recente de quando

meninos começaram a assaltar moradores na região e os líderes do PCC resolveram a

situação, assassinando ou “dando um sacode”30 nos garotos. O PCC realiza punições

exemplares, para que toda a população compreenda suas regras, que incluem proteger a

comunidade de sua ação criminosa.

A força do Primeiro Comando da Capital no Heliópolis contribui para o estigma

da região, e de acordo com os moradores, há, nos bairros vizinhos, a presunção

preconceituosa de que quem é do Helipa é ‘bandido’. Isso, evidentemente, não é verdade.

Entre milhares de moradores, a imensa maioria não está relacionada a atividades

criminosas. Mas isso não impede que os moradores sofram preconceito por sua origem.

Muita gente não fala para quem é ‘de fora’ que é morador do Heliópolis, por receio de

como será tratado. Quando procura emprego, coloca no currículo o nome de algum bairro

vizinho. “Tem muita gente que sabe que a gente mora aqui e tem medo de a gente ser

ladrão, não confia muito, tem medo de vir na minha casa. Qualquer pessoa que mora lá

fora tem medo de entrar aqui, pensa que aqui só tem marginal” (PERSOLI e SANTIS,

2013, p. 83), relata Geraldo, morador de Heliópolis.

Entre nossos entrevistados, percebemos o estigma da palavra ‘favela’, que era

utilizada por poucos. A maioria chamava Heliópolis de comunidade, outros evitavam

categorizar e simplesmente explicavam “Eu moro aqui no Helipa”. Gallo (2009) em seu

estudo sobre a escola também notou essa tendência a disfarçar a origem em depoimentos

“Eu moro ali, mais pra frente da Estrada das Lágrimas” (p. 123). Há quem negue

abertamente a palavra favela, principalmente adultos, entre moradores e professores,

pessoas que a entendem como algo integralmente ruim, justificando: “não é favela, aqui

é bom”. Quem utiliza o termo favela, o faz como um enfrentamento do estigma: “Eu falo

favela” explicou o estudante Tadeu, desafiador e orgulhoso de suas origens. O termo

‘comunidade’ parece mais palatável e é mais comum entre as crianças menores. Na escola

30 Gíria paulista que se refere a agressão física e espancamento que servem como ameaças.

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encoraja-se chamar Heliópolis de bairro, em acordo com o posicionamento da UNAS e o

projeto do Bairro Educador.

Entretanto há pontos conhecidos de Heliópolis que reivindicam o nome favela,

como a famosa lanchonete – e conhecido ponto de encontro do funk – Mec Favela, e o

Cine Favela:

Uma Associação Cultural, com sede própria na comunidade e

patrocínio de iniciativas pública e privada, com oficinas de diversas

linguagens artísticas, produções cinematográficas profissionais e

infraestrutura sofisticada. O Cine tem promovido o cinema dentro de

Heliópolis e conquistado respeito dentro e fora da comunidade. Entre

2010 e 2012, foi Ponto de Cultura, projeto do Ministério da Cultura

(CAETANO, 2015, p. 62).

O Cine favela é um exemplo, entre muitos, da intensa produção cultural da região

e a escolha do nome é também um enfrentamento do estigma, um posicionamento

político. Camila Arelaro Caetano (2015) estuda produções culturais na região e atenta à

importância da rádio Heliópolis, que começou como um espaço de organização dos

movimentos sociais:

A Rádio Heliópolis é uma das maiores conquistas da comunidade.

Fundada em 1992, tem uma programação diversificada, desde os

forrós nordestinos até os grupos de RAP nascidos na comunidade. A

transmissão é feita na frequência 87.5 e pela internet. A Rádio é a

Figura 3 Menina sentada em calçada de Heliópolis. Fonte: Bruta Flor Filmes / Foto: Cacá Bernardes

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primeira rádio comunitária legalizada do Estado de São Paulo.

Começou como uma ‘rádio corneta’, que divulgava as reuniões das

associações de moradores (CAETANO, 2015, p.61).

A Rádio ainda convida diversas lideranças da comunidade e membros de

movimentos sociais para participar de programas. Além da programação musical, tem

forte programação jornalística e política. Quanto a esportes, a referência no Helipa é o

Ratatá Futebol Clube, inicialmente um time de futebol de várzea, cresceu como um grupo

que realiza diversos esportes e é conhecido ponto de encontro na região, além de unir

muitos moradores na torcida “Bicho Solto”.O CEU Meninos31, além do CEU Heliópolis,

é também um espaço muito utilizado para a prática de esportes, lutas, danças, etc.

Percebe-se que ainda que a atuação da UNAS seja intensa e variada, e a dimensão

do Helipa como um todo a ultrapassa em muito. Lá há barracos, biqueiras32, intervenção

agressiva - frequentemente racista e classista - da polícia e som alto de madrugada, mas

também é intensa a mobilização política e programação cultural. A própria UNAS,

descreve essa variedade, destacando as histórias dos moradores:

[Em Heliópolis] existem ruas estreitas e vielas, mas também biblioteca

comunitária, rádio comunitária e organizações sociais. Mais que isso,

Heliópolis tem uma história, história de organização e história de luta.

Os principais protagonistas dessa história são os moradores de

Heliópolis que, pela falta de programas habitacionais dirigidos à

população de baixa renda, foram sendo despejados das zonas centrais

da cidade e criaram alojamentos provisórios no local. Aos poucos, o

que era pra ser passageiro hoje é parte da cidade (UNAS).33.

Soares (2010), que estuda a paisagem de Heliópolis, aponta a diversidade de

estruturas na região, descrevendo casas de moradores mais antigos, que ocuparam

espaços maiores e tiveram ao longo dos anos mais condições financeiras para fazer

melhorias nas casas, em contraste com barracos que ainda se encontram em algumas

regiões da favela. Hoje se encontra mais casas de alvenaria, ainda que muitas ainda em

construção e sem acabamento, do que barracos.

Na área mais próxima a São Caetano e do lado de São João Clímaco

encontramos casas maiores, ou seja, casas com garagem e jardins, que

reproduzem o padrão burguês de casas isoladas.(...) Hoje encontramos

alguns barracos espalhados por Heliópolis, que proporcionam aos

seus moradores uma má qualidade de vida, como na área conhecida

como Pilões, onde localizamos nas vielas os barracos ao lado de casas

31 Outro CEU da região, localizado na rua Barbinos, próximo à fronteira da cidade de São Paulo com São Caetano do

Sul, o endereço consta como São João Clímaco, mas a região é considerada Heliópolis. 32 Pontos de venda de drogas. 33Disponível em https://www.unas.org.br/single-post/2017/04/17/Regulariza%C3%A7%C3%A3o-e-

urbaniza%C3%A7%C3%A3o-das-moradias-j%C3%A1

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de alvenaria (SOARES, 2010, p. 49).

Em seu relato ao projeto Memórias de Heliópolis34, Francisco Manuel, cearense

que veio a São Paulo procurando melhorar de vida conta que vive em um barraco de

madeira. “Eu não tenho casa ainda porque eu não tenho condições de construir até hoje.

O que eu ganho é muito pouco para eu construir aqui” (PERSOLI e SANTIS, 2013, p.

81)35. Em termos de organização popular, ainda que a UNAS seja uma organização forte

no Heliópolis e região, não representa toda a luta política que ocorre. A região tem

historicamente muitos apoiadores do PT (Partido dos Trabalhadores), e hoje encontramos

militantes da Frente Povo Sem Medo36, e outros movimentos sociais que não tem

34 Consultamos publicações da comunidade em blogs, facebook, jornais locais, registros da rádio etc., além de matérias

jornalísticas e documentários sobre a região e o Bairro Educador. O projeto Memórias de Heliópolis, realizado pela

UNAS e pelo CEU Heliópolis Profa. Arlete Persoli foi a fonte que nos garantiu de fato a visão das pessoas que lutam

e lutaram pela comunidade desde seu início. O projeto consistiu em entrevistar moradores da região para resgatar a

memória das lutas que boa parte da juventude do Heliópolis não conhece. As entrevistas estão disponíveis em vídeo na

internet e também foi produzido um livro. Para a pesquisa utilizamos tanto a versão impressa quanto os vídeos online.

Entre as pessoas entrevistadas estão Cleide Alves, atual presidenta da UNAS que veio morar na comunidade ainda

criança quando sua família foi removida da favela da Vila Prudente, o casal Genésia Ferreira e João Miranda, lideranças

históricas da comunidade, Gerô, representante da rádio e do movimento LGBT da UNAS, e João Prefeito, outra

liderança histórica da comunidade que foi, por muito tempo, oposição à UNAS, entre muitas outras pessoas com as

histórias mais diversas. 35 Fonte: Livro Memórias de Heliópolis 36 Formada em 2015 por organizações políticas que se declaravam ‘oposição à esquerda’ ao governo de Dilma Rousseff.

Atualmente a frente inclui organizações ligadas ao PT (Partido dos Trabalhadores) e ao PSOL (Partido Socialismo e

Liberdade), mas também inclui o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto), o MLB (Movimento de Luta nos

Bairros, Vilas e Favelas), as Brigadas Populares, a CTB (Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil) e a CUT

(Central Única dos Trabalhadores).

Figura 4:Atividade final da campanha presidencial de Fernando Haddad (2018), caminhada por Heliópolis com Luiza Erundina. Foto: Ricardo Stuckert

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qualquer relação com partidos ou com a UNAS. São também muitos os movimentos

culturais na região, tendo alguns, cunho político, principalmente antirracista.

Em Heliópolis às vezes nos sentimos fora de São Paulo, seja pela frequência com

que se escuta a fala nordestina entre os moradores, pelas muitas “Casas do Norte” onde

são vendidos produtos nordestinos e nortistas, ou pelo fato de que nas periferias, diferente

de outras partes da cidade, as pessoas ocupem as ruas. Vê-se pessoas idosas conversando

na frente de suas casas, com tranquilidade, crianças brincando na rua, vizinhos se

cumprimentando, as vielas permitem um ritmo de vida diferente daquele das grandes

avenidas paulistas. Os próprios moradores costumam dizer que ‘uma coisa é Heliópolis

e outra é lá fora’, referindo-se à diferença de sociabilidade, mas também à imagem que

se faz da comunidade de dentro e de fora de Heliópolis. Essa identidade parece ter se

construído na história de luta dos moradores:

Os moradores de Heliópolis, quando questionados, relatam com

orgulho suas vitórias, como a autoconstrução da casa, o mutirão para

‘bater a laje’, a criação da associação de moradores, a escolha de uma

nova diretoria para a associação, a conquista do terreno para a nova

sede da associação, o nascimento do primeiro filho, a primeira creche

conveniada, o casamento da filha, o primeiro projeto para

adolescentes, ou o primeiro grupo do MOVA (SOARES, 2010, p. 45).

Com a construção da comunidade e o reconhecimento da luta que demanda há

mais de quatro décadas, surge também o orgulho daquilo que já foi conquistado e,

igualmente, desse povo batalhador.

1.1.1 Ocupação de Heliópolis: “Quem não luta tá morto”

Pelos dados do Geosampa37, a primeira ocupação de Heliópolis data de 197238,

37 O Geosampa é o mapa digital da cidade de São Paulo mantido pela secretaria municipal de desenvolvimento humano.

Trata-se de uma plataforma interativa que reúne os dados abertos da prefeitura, do IBGE, INEP, entre outros. São dados

relativos a população, habitação, infraestrutura, recursos naturais etc., que podem ser visualizados graficamente no

mapa da cidade. A plataforma pode ser acessada em: http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/. 38 As datas do Geosampa, fornecidas pelo IBGE, divergem em um ano das datas que encontramos através da pesquisa

documental da comunidade. Acreditamos que, como o IBGE não tem meios de coletar as transformações urbanas

imediatamente quando acontecem, houve um tempo entre o começo das ocupações e a atualização dos dados da região.

Esta primeira ocupação de 1972, segundo o IBGE ocorreu em uma região ao norte da Avenida Almirante Dellamare e

principalmente na porção maior e central de Heliópolis, entre a Estrada das Lágrimas e a Avenida Almirante DellaMare,

hoje há segundo a mesma fonte, 15843 domicílios. Este número não inclui a gleba A, que é considerada núcleo

urbanizado. Segundo a prefeitura: “Núcleos Urbanizados são favelas que já possuem infraestrutura de água, esgoto,

iluminação pública, drenagem e coleta de lixo. Os perímetros dos núcleos e respectivos atributos têm origem no

georreferenciamento dessas áreas constantes do cadastro de núcleos do município de São Paulo. É mantido e

atualizado por SEHAB e atualmente disponibilizado no sistema HABISP (Sistema de Informações para a Habitação

Social na Cidade de São Paulo)”.

Fonte: http://dados.prefeitura.sp.gov.br/dataset/nucleo-urbanizado-da-cidade-de-sao-paulo

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havendo uma segunda onda em 198039 e uma terceira em 200040. No entanto, sabemos

que se tratou de um processo contínuo. O primeiro registro que encontramos sobre a terra

em que hoje se situa Heliópolis mostra que até o início dos anos 40 teria sido sítio do

Conde Alvares Penteado, herdeiro de Antônio Alvares Penteado, fazendeiro de café e

industrial. No período de 1920 a 1940 teria havido 36 residências de trabalhadores do

sítio no espaço em que mais tarde seria construído o Hospital Heliópolis. Segundo a

UNAS, em 1942 a terra foi comprada pelo antigo Instituto de Aposentadoria e Pensão

dos Industriários (IAPI)41. Na época a compra foi de quase três milhões de metros

quadrados:

Durante esse período os administradores do Instituto tinham a intenção

de construir na área casas para os associados do IAPI, mas esse

projeto não saiu do papel, ficando assim uma imensa área sem uso. O

abandono do poder público favoreceu outros usos por grupos e

moradores da região. Em várias narrativas encontramos menções

sobre chácaras, a criação de animais como porcos e galinhas, a

presença da mata atlântica no entorno da Estrada das Lágrimas. Esse

local já era rota de soldados e comerciantes que vinham do centro de

São Paulo com destino ao Porto de Santos, ou vice-e-versa. Havia os

campos de futebol, onde aconteciam os torneios nos finais de semana,

ou os campeonatos de balões e corridas de carro, ou seja, uma área

com muitos usos de lazer (SOARES, 2010, p. 36).

O IAPI acabou sendo incorporado à previdência nacional, hoje INSS. Duas

grandes partes do terreno foram vendidas pelo INSS nos anos 80, 420.103m³ para a

Petrobrás42 e 539.000m³ para a Sabesp43 , ambas empresas estatais que ainda hoje mantêm

a posse dessas terras. Foi nos quase dois milhões de metros quadrados que permaneceram

sob a posse do INSS que se formou a comunidade de Heliópolis, que hoje ocupa

aproximadamente metade deste terreno.

A área é atravessada pela estrada das Lágrimas, batizada em homenagem à

histórica Figueira das Lágrimas. Situada no atual número 515 da estrada, a árvore de

aproximadamente 400 anos marcava o início da estrada para o litoral e era o ponto em

que famílias vinham, no século XIX, despedir-se dos filhos que eram enviados à Guerra

do Paraguai44. Em 1969 o então IAPI construiu o Hospital Heliópolis e o Posto de

39 A ocupação de 1980, segundo o IBGE foi da região sudeste da favela, a Viela das Gaivotas e a Viela da SABESP,

na região da rua Anny e da rua João Lanhoso onde há hoje, segundo a mesma fonte, 600 domicílios. 40 Em 2000 houve, segundo o IBGE a ocupação de região nordeste de Heliópolis, conhecida como Atílio, na avenida

Michel Saliba, onde hoje há 600 domicílios. Foi também a partir de 2000 que a prefeitura deixou de categorizar a gleba

A, a região mais oeste, próxima ao terminal de ônibus e metrô Sacomã, como núcleo urbanizado. 41 Em 1966 seria um dos fundos previdenciários a compor o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que por

sua vez, em 1990, formaria o atual INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). 42 Companhia Petróleo Brasileiro S.A. 43 Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. 44 Fonte: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/noticias/?p=238749

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Assistência Médica45, que marca a região da comunidade hoje conhecida como PAM. Os

trabalhadores das obras do Hospital e do PAM em finais da década de 60 começaram a

construir barracos no entorno, posto que a região não tinha transporte público ou

infraestrutura. Segundo alguns relatos, eles teriam sido o primeiro grupo a morar na terra.

Há outros relatos de que, antes, teria chegado um grupo de trabalhadores baianos, da

cidade de Heliópolis, que ocupou a região e a batizou em homenagem à cidade natal. Não

conseguimos verificar documentalmente nenhuma das versões, contudo ambas

concordam que até a conclusão da construção do Hospital Heliópolis e do PAM, a

ocupação de famílias era esparsa.

Hoje, ainda ao lado da comunidade, está o tradicional e prestigiado bairro do

Ipiranga. Lá está localizado o Museu do Ipiranga e Parque da Independência46, cercados

por avenidas largas e arborizadas. É uma região bem servida de linhas de ônibus e metrô,

com custo de vida alto e variedade de escolas, públicas e particulares, restaurantes, opções

de cultura e lazer. Ainda é possível encontrar na região do Parque da Independência

casarões que datam do Brasil Imperial.

Em 1971, no ano anterior ao 150° aniversário da independência do Brasil, foram

feitas obras de revitalização da região do Museu do Ipiranga e Parque da Independência,

incluindo um viaduto, para o qual, as pessoas que moravam na região foram removidas

da então favela da Vila Prudente. 153 famílias foram expulsas pela prefeitura e levadas

para os Núcleos Temporários de Habitação, situados às margens da Avenida Almirante

Dellamare.

Em 1978, mais um despejo realizado pela prefeitura, desta vez da favela da

Vergueiro, leva mais famílias a Heliópolis. A partir de então mais pessoas, a maioria

migrantes nordestinos à procura de um lugar para se fixar em São Paulo, começaram a

construir mais barracos em volta da precária estrutura que deveria ser temporária.

Ambas as remoções foram para realizar obras públicas nos respectivos

locais. Foi no entorno de alguns pontos como os alojamentos

‘provisórios’, do Hospital Heliópolis, ou das bicas de água que mais e

mais famílias começavam a chegar. Eram parentes e amigos que já

estavam no local, confirmando o fluxo migratório de pessoas vindas do

Nordeste ou do Sudeste, e também do ABC Paulista. Primeiro os

moradores construíam seus barracos com piso em terra socada,

madeira e lona, e com o passar dos anos, aos poucos, substituía o

barraco pelas casas de alvenaria (SOARES, 2010. p. 39).

45 Com a criação do INSS estes equipamentos de saúde tornaram-se parte do Sistema Único de Saúde (SUS). 46 O Museu do Ipiranga é um edifício-monumento onde opera hoje o Museu Paulista da Universidade de São Paulo. É

um museu histórico, criado no século XIX, que é um grande ponto turístico da cidade e inclui os jardins e o complexo

do Parque da Independência.

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Quem chegava em Heliópolis nos anos 70, à exceção dos barracos, encontrava

terra vazia, campos de futebol e mato. Não havia luz, água ou esgoto e os dejetos

acabavam sendo despejados num córrego que atravessava a comunidade. As condições

de vida eram difíceis. Genésia Miranda, moradora e liderança de Heliópolis, descreve os

alojamentos temporários como uma forma moderna de senzala “porque era um lado de

barraco, do outro lado, outra trilha de barraco, um banheiro pra todo mundo (...) à céu

aberto, o esgoto no meio”47.

Apesar disso, a comunidade foi pouco a pouco se tornando destino para migrantes

nordestinos que vinham tentar a vida em São Paulo e, após se assentarem, traziam os

familiares, fazendo a comunidade permanentemente crescer. A formação de Heliópolis,

como é comum em favelas, foi marcada pela necessidade de fazer com que o espaço

comportasse o máximo de gente possível. Geraldo, um dos moradores mais antigos da

comunidade, relata que quando chegou havia pouca gente, assim pode ocupar uma porção

grande de terra. “Aí chega um, chega outro: ‘Dá um pedacinho de terra pra mim!’”, e

Geraldo foi repartindo o espaço. O essencial era que houvesse lugar para os parentes e

amigos daqueles que já estavam situados, como nota Soares ao analisar a estrutura das

casas autoconstruídas:

Toda a autoconstrução já tem por característica a laje, pronta a ter

outra casa ou outro cômodo em cima e quem vai morar nesse “puxado”

é sempre um parente, conterrâneo ou algum amigo familiar e quando

fica pronta quase sempre tem uma festa para comemorar esse dia,

47 Trecho de depoimento encontrado em vídeo institucional da UNAS, disponível em: https://youtu.be/ierNcQJm2pQ

Figura 5: Núcleo Temporário de Habitação Heliópolis, anos 70. Fonte: UNAS

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como se fosse um rito de passagem (SOARES, 2010, p. 51).

João Prefeito, nordestino, chegou em Heliópolis em 1978 e participou da

organização das ocupações na época, ajudando a definir onde os recém-chegados

poderiam construir seus barracos. Em seu depoimento ao projeto Memórias de

Heliópolis48 descreve a região na época:

Heliópolis aqui era só campo de futebol, e algumas moradias,

barracos. Era mato, não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto.

Você passava por cima de corpos dois, três por dia. Amanhecia o dia e

era aquela fileira de corpos que eles matavam na madrugada

(MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João Prefeito, 2016).

Eram muitos os assassinos de aluguel segundo João Prefeito e, pelo que descreve,

a região era um espaço de ‘desova’ de cadáveres49. Conta também que estes ‘assassinos

de aluguel’ buscavam certa ‘manutenção da ordem’: “Se usasse maconha eles chegavam

atirando e matavam todos que tavam lá” (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João Prefeito,

48 Utilizamos na pesquisa tanto depoimentos do livro “Memórias de Heliópolis: Raízes e Contemporaneidade” de

criação coletiva, organizado por Arlete Persoli e Marília Santis, quanto a série de vídeos produzida pelo mesmo projeto

e disponível no youtube. Os depoimentos retirados do livro foram referenciados com os nomes das organizadoras

(PERSOLI e SANTIS, 2013), enquanto os trechos transcritos de vídeos do youtube levaram o nome do Projeto e do

entrevistado ou entrevistada, como aqui em (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João Prefeito, 2016). 49 Notamos semelhanças entre o relato de João Prefeito e relatos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo em

relação às práticas do Esquadrão da Morte. Sendo o período aqui discutido posterior a 1971 entendemos que se trataria

de um momento em que a continuidade das ações do esquadrão da morte se deu via Rondas Ostensivas Tobias de

Aguiar (ROTA) o que leva à persistência do modus operandi até hoje. Disponível em:

https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=359625 e

http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-i-cap2.html.

Figura 6: Alojamento Provisório Heliópolis (Anos 70) Fonte: Acervo Digital Itaú Cultural.

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2016). Explica também que outro grupo violento na época eram os grileiros, que vendiam

e cobravam aluguel sobre a terra que não era deles. Eram conhecidos por espancar os

‘inadimplentes’ e há relatos de assassinatos.

Genésia Ferreira Miranda, paraibana, mãe de três filhos, trabalhadora do CCA50

Mina e liderança de Heliópolis, conta que veio para São Paulo buscando um sonho.

Acreditava que aqui teria sua casa própria e ao chegar surpreendeu-se ao descobrir que

os grileiros cobravam aluguel.

Para mim foi uma surpresa, mesmo comprando o barraco a gente tinha

que fazer um contrato com os grileiros, que era um contrato de aluguel,

que você tinha que pagaria todo mês. Todos os moradores pagavam.

Era obrigado a pagar para morar. Falaram que tinha que pagar. Se

não pagasse, que eles tiravam as famílias e judiavam, então todos eram

obrigados (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

Genésia conta que os grileiros diziam ser donos da terra. Inicialmente ninguém

tinha meios de comprovar o contrário. Porém, o comportamento ilícito e violento dos

grileiros aumentava a certeza na comunidade de que aqueles homens não tinham a posse

das terras. Ainda assim, o controle que eles tinham sobre os moradores da região

continuava intocado, já que o medo que causavam garantia que ninguém os enfrentasse.

O primeiro ato de resistência de Genésia aos abusos dos grileiros serviu como inspiração

para muita gente.

Eu me neguei a dar o documento. Eu falei ‘olha eu não vou fazer’. Aí,

eles me deram o prazo de 24 horas. A partir daí eu comecei a ter muito

problema, porque realmente eles vieram expulsar, né? E à noite vieram

tacar fogo no meu barraco comigo e as crianças dentro. Eu consegui

realmente fazer muito barulho, como se tivesse muita gente aqui. Até

hoje eu não sei dizer naquele momento porque eles desistiram. Aí no

dia seguinte eu conversei com alguns moradores, pedindo ajuda, mas

eles também tinham medo. Eles falavam que eu não sabia onde eu tava

me metendo que eram coisas muito graves, que eles iam me matar. Um

dia, né, o João, ele levantou, a gente tava aqui na frente e apareceu dez

homens, do nada e pegaram a gente e começaram a bater na gente

muito forte (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

Após serem agredidos, Genésia conta que seu marido, João Miranda, quis sair da

comunidade, mas ela se recusava. Foi procurar apoio de seus companheiros moradores

para enfrentar os grileiros, mas havia muita relutância, devido ao medo. João Miranda

conta que ele e a esposa chegaram a ser jurados de morte e perseguidos. Genésia, ainda

assim, não desistiu, foi procurar apoio fora da favela e conta que preferia morrer lutando:

Eu fui procurar um grupo que tinha aqui na região do Ipiranga, eu não

50 Centro da Criança e do Adolescente, ligado à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e gerido,

em Heliópolis, pela UNAS.

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sabia, que eles organizavam as lideranças de favelas ali no início de

80, essa que são da ditadura ainda tava muito forte o sumiço de

pessoas, de lideranças né, os sindicalistas aqui em São Paulo. E eles

nos aconselham a sair. Mas eu não queria sair. Falei, olha eu não

quero sair. Que diferença faz morrer aos poucos... eu prefiro morrer

lutando (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

No meio deste jogo de poder, Genésia ainda teve que combater o machismo. “E

eu lutava, eu falava para os moradores, muitas vezes os homens, os maridos das mulheres

não gostavam que eu chegasse na casa delas porque eu ia, né?” (MEMÓRIAS DE

HELIÓPOLIS, Genésia, 2016) relata, dando a entender que os maridos não gostavam da

proximidade de suas esposas com Genésia por que ela acabaria influenciando as mulheres

a lutarem como ela.

O relato de Genésia evidencia o papel central das mulheres na resistência e luta

pela permanência na moradia e enfrentamento aos grileiros. Pelo que indicam os relatos,

a organização das mulheres foi fundamental para os moradores saírem de um regime de

opressão gerado pelos grileiros, e pressionarem a prefeitura para finalmente, em 1987,

comprar as terras do Heliópolis para que pudessem continuar ali. Contando sobre essa

primeira vez que ela e seu marido foram espancados pelos grileiros, ela explica que foi

cobrar uma atitude dos homens da comunidade, que viram o que aconteceu e não fizeram

nada para defendê-los:

Nessa hora, eu fiquei com muita raiva. Aí, outra vez eu saio e encontro

esse mesmo grupo de homens. E eu vou lá no bar onde eles está, e eu

quebro o pau com eles. Falei muita malcriação, chamei eles de

covarde, vocês só são homem pra bater na mulher, mas defender a

causa da família de vocês, vocês não são homem para isso.

Nossa.... No outro dia esses homens vieram aqui atrás do João. Que

eu faltei com o respeito com eles, que eu desafiei eles, que eu era muito

atrevida, olha mais e proibiram as mulheres de conversar comigo. Mas

não tinha jeito porque eu ia até elas. Eu era muito danada, eu ia até

elas, a gente vinha aqui pro barraquinho do lado e a gente conversava

e tal (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

A questão de gênero em si foi um obstáculo, pois Genésia e suas companheiras

queriam lutar pela terra, enquanto havia na comunidade uma forte noção de que a posição

da mulher era a de ser submissa e obediente ao homem, e que o espaço da luta popular

não devia ser feminino. Assim, Genésia relata uma cisão entre as mulheres e os homens

da região, sendo que as mulheres tomaram para si a luta e os homens se mantiveram

afastados. Só no momento em que os homens passaram a aceitar que essas mulheres se

portassem fora do padrão submisso que a comunidade conseguiu se unir:

Aí teve um momento, que eu até falei para elas, digo agora, o grande

desafio é a gente convencer os homens para vir junto com a gente

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fortalecer essa luta. E eu tive que ganhar essa confiança dos homens

também, depois de tudo isso acontecer, aos pouquinhos né? E eu

consegui, com o tempo eu consegui a confiança deles. E eles vem

também, eles se unem com a gente e eles vem pra luta (MEMÓRIAS

DE HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

Este protagonismo feminino, como em muitas outras lutas populares, marcou a

história de Heliópolis e se repetiu com um movimento de moradia encabeçado

principalmente por mulheres, pela luta por creches e pelos CCAS como veremos mais à

diante.

Sobre a luta por creches no Brasil, Gohn (1985) afirma que se tratou de um

movimento por condições de reprodução de força de trabalho, de modo que interessaria

ao Estado atender a esta demanda, pois baratearia o custo de reprodução da força. Afirma

que o “Estado, propiciando este meio às classes populares, cria condições para a

reprodução da força de trabalho e, portanto, cria condições de existência para o próprio

capital” (GOHN, 1985, p. 164). A esta ponderação, segue um questionamento, que se

aplica ao caso de Heliópolis, sobre o caráter transformador de lutas pautadas em

reivindicações de direitos, como aprofundaremos adiante.

Ainda assim, as vitórias dos movimentos de luta por creches fortaleceram a

articulação entre as mulheres, de modo que a luta foi passando a ser lugar de mulher no

Heliópolis. Ainda que a clivagem causada pela opressão de gênero persistisse, a causa da

favela unia a todos, que estavam constantemente ameaçados de despejo e lutando para

viver as condições da época.

A infraestrutura da comunidade, por muito tempo abandonada pela prefeitura, foi

sendo formada pelo trabalho da população, em mutirões. Conforme a comunidade ia se

formando, e construindo as próprias condições estruturais de vida, os habitantes foram se

organizando e resistindo aos grileiros. Foi neste primeiro momento de trabalho e

cooperação popular e coletiva em que surgiram as primeiras associações de moradores,

que viriam a se juntar e tornar-se a UNAS em 1984.

Soares resgata a história de Conceição, moradora que batizou a Rua da Mina, onde

a população ia lavar roupa e buscar água. Era um ponto de encontro, estava sempre cheio,

desde as 5 da manhã, pois só três pessoas conseguiam utilizar o cano de água por vez, de

modo que as outras ficavam ali, esperando. Hoje a sede da UNAS é localizada no espaço,

assim como uma CEI e um CCA. A população mais antiga lembra de como as ruas foram

formadas e é possível entender mais sobre a comunidade ao atentarmos aos nomes que a

comunidade escolheu.

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Rua da Mina, Rua Paraíba, devido à origem dos primeiros moradores

naquela área, ou Rua Heliópolis que é próxima ao Hospital Heliópolis.

São ruas que demonstram significados e sentimentos construídos e

descontruídos coletivamente ao longo desses anos. A Rua União é o

local onde aconteceram as primeiras reuniões de moradores. Outros

nomes indicam desejos da comunidade, como a Rua da Paz, e a Rua da

Alegria. Há também, os nomes que homenageiam lideranças como a

Rua João Miranda, liderança e ex-presidente da UNAS, a Rua Miguel

Borges, liderança do núcleo da Portuguesa e Rua Maria Ruth Sampaio,

professora da FAUUSP, que deu assessoria a comunidade. As

curiosidades ou controvérsias também estão nos nomes dos

logradouros, como a Rua do Flamengo, em homenagem ao Flamengo

do Moinho Velho, time dos jogadores/moradores, campeão do primeiro

Campeonato Varzeano da Cidade de São Paulo (1962) (SOARES,

2010, p. 43).

Há a Rua Moradores Batalhadores, e a Rua Luta da Terra, que também aludem a

este período de mutirões e construção popular da infraestrutura de Heliópolis. João

Prefeito descreve o processo: “Esgoto nós fazíamos em mutirão, cada um dava uma barra

de cano, outro comprava o cimento, fazia aquela vaquinha, e fim de semana nós fazia um

mutirão e foi aí que saiu a união do nosso grupo” (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João

Prefeito, 2016), falando da primeira associação de moradores, a Sociedade Amigos e

Moradores da favela de Heliópolis.

Mesmo no momento em que os mutirões eram realizados para a formação de uma

infraestrutura para a comunidade, o objetivo maior era a permanência no espaço, a

garantia do direito de morar. “Naquela época nós achava que tendo água e luz isso dava

a posse. Mas na verdade não é isso. Hoje a luta nossa mesmo seria a posse da terra. O

direito de você morar e você ter a escritura” (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João

Prefeito, 2016).

João Miranda descreve o medo despertado pela situação de insegurança, das

condições precárias em que as famílias viviam e pela permanente ameaça de despejo,

explicando que inicialmente os mutirões, mais do que garantir melhores condições de

vida, tinham a intenção de resistir às desocupações que a polícia realizava.

Aqui tem história de mutirão. Não era aquilo de ir encher a laje do

outro, que isso a gente fez depois, que já estava num segundo processo.

O primeiro processo era bater prego no madeirite de madrugada pra

quando a polícia chegasse de manhã as famílias já estar com a família

dentro do barraco (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João Miranda,

2016).

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Miranda, lembrando hoje, se impressiona com a força que tiveram na época. “Às

vezes a situação faz que a gente seja mais valente”.

Em 14 de setembro de 1987, o movimento foi vitorioso e conseguiu que a

prefeitura comprasse o terreno de Heliópolis. A terra passou a ser propriedade da

COHAB/SP51. Segundo a UNAS, essa aquisição incluiu 14 glebas (da A à M)52. Assim

acreditava-se que havia sido garantida alguma estabilidade. Heliópolis já estava grande e

a comunidade unida o suficiente para que houvesse a sensação de que se algum despejo

ocorresse, não seria de repente, haveria como lutar contra. Infelizmente, a moradia não

estava assegurada.

Aí chega o Jânio Quadros com projeto de desfavelamento pra levar a

gente pra fora daqui. Olha o descaso né? A gente teve toda uma luta

para [a prefeitura] comprar [a terra] pra nós ficar aqui. Aí vem o outro

e fala ‘não, eu vou vender pros empresários aqui fazer um shopping

center e vocês vão morar lá onde eles fizerem casa (...)Como que a

gente não tivesse uma vida aqui (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, João

Miranda, 2016).

Um momento histórico, contado por muitas pessoas e registrado em vídeos e

51 Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo. 52 Contudo, segundo o movimento de Moradia, até hoje, somente as glebas C e I constam como averbadas no Cartório

de registro de imóveis. As demais 12 glebas constam como vazios urbanos. O não reconhecimento da ocupação destas

áreas ainda deixa a população sujeita a uma possível desocupação por vontade do poder público. Para que a ocupação

de Heliópolis seja reconhecida, é necessário que essa terra seja regularizada.

Figura 7 :Mutirão em Heliópolis nos anos 80. No centro, João Miranda Fonte: Acervo da UNAS.

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documentários, foi a tentativa da prefeitura, em 1993, de desocupar a região. Era o início

do mandato de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo. “Era uma gestão truculenta, em

que a gente mais lutou”, descreve Manoel Otaviano, morador e coordenador do

Movimento Sem Teto de Heliópolis (PERSOLI e SANTIS, 2013). Ele também relata que

na época da construção do anel viário do Sacomã, Maluf despejou 600 famílias, que

tiveram que ir morar no Cingapura na divisa com São Caetano. O relato de Lázara,

moradora de Heliópolis há mais de trinta anos, evidencia o descaso e violência com que

os moradores de Heliópolis eram tratados.

Um dia não havia água para preparar o leite do filho e ela foi buscar

lá na [Igreja] Santa Edwirges. Na volta, enquanto preparava a

mamadeira do bebê, ouviu pessoas gritando, chorando, a vizinhança

em polvorosa. A cavalaria e a tropa de choque tinham vindo desocupar

o território. Quando ela se deu conta, o trator já imbicava para

derrubar seu barraquinho, construído a duras penas com a boa

vontade dos vizinhos e a ajuda de um candidato a vereador.

Desesperada, ela juntou as três crianças menores e se atirou debaixo

da máquina. ‘Olha, vocês passem por cima, porque eu não tenho onde

morar! Nem parente e nem ninguém eu tenho aqui. Vocês me matem

que assim eu paro de sofrer!’ (PERSOLI e SANTIS, Lázara, 2013, p.

74).

Mais do que interesse financeiro na região, a gestão era motivada por ódio de

classe, como fica evidente no relato de Quitéria de Melo (PERSOLI e SANTIS, 2013),

moradora que participou ativamente das lutas por moradia na época. Ela conta de um dia

em que um padre, companheiro de luta, organizou uma reunião com o então prefeito e foi

com um grupo de representantes da comunidade até a prefeitura tentar um diálogo. Maluf

se recusou a atendê-los. “Ele simplesmente olhou pro padre e falou que não ia atender

cachorro de favela! E nessa mesma noite a gente voltou de lá, quando a gente chegou,

Heliópolis estava cercado, policial pra bater na gente” (PERSOLI e SANTIS, Lázara,

2013, p. 59).

A população fez barricadas, resistiu à polícia e a expulsou da comunidade,

impedindo os despejos. Além do sentimento de solidariedade que orientava essa defesa

dos vizinhos, acreditava-se que ‘se um cair, cai todo mundo’. Ou seja, que se a

comunidade cedesse, aceitando um despejo sequer, então abriria espaço para que todos

fossem despejados.

Cleide Alves conta: “foram todos os moradores pra lá acolher aquelas famílias,

até porque eles sabiam ‘tá tirando ele hoje, amanhã sou eu’. Já tinha choque, batalhão

de todo tipo e a juíza voltou atrás porque viu que ia se transformar em um campo de

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guerra”53. Neste período dos anos 90 a repressão foi mais acirrada, mas também as táticas

do movimento de moradia foram radicalizadas:

E, no final da gestão a gente fez a primeira ocupação – ali no Anel

Viário do Sacomã. Eu fiquei lá 45 dias e foi onde tivemos a primeira

conquista das casas” conta Manoel Otaviano, que ainda emenda

“Quem não luta tá morto. Tem que lutar e lutar sempre (PERSOLI e

SANTIS, 2013, p. 45).

Ao mesmo tempo em que a luta por moradia se fortalecia e a relação entre os

moradores e o poder público era tensionada, também se vivia na região um crescimento

dos índices de violência.

No final dos anos 90, a região de Heliópolis era dominada pelas ações

do crime organizado. Era comum que todos os equipamentos

educativos cedessem aos rotineiros toques de recolher impostos pelo

poder paralelo liderado por traficantes de drogas. A localidade se

destacava em âmbito nacional pelas altas taxas de criminalidade e

violência (SANTIS, 2014, p.69).

Atualmente, Heliópolis é mais segura, mas permanece sendo espaço de tensão. A

cidade cresceu e a região que a comunidade ocupa não é geograficamente periférica.

Cleide, a presidenta da UNAS, conta:

a gente ter a coragem de fazer a prefeitura comprar essa área... era um

shopping center que tava desenhado lá (...) a gente não imaginava que

isso 30 anos depois ia ficar um terminal e um metrô do lado (...) Os

pobres não era pra ficar nos centros, aqui já começou a ficar uma área

extremamente valorizada (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Cleide,

2016).

Há muito interesse da especulação imobiliária no desalojamento de famílias que

vivem na região, ainda hoje em algumas partes da favela o direito à moradia está em

risco54. As moradoras e os moradores que se mantiveram unidos, ainda hoje sem as

escrituras das casas, correm risco de despejo. Mas o movimento de moradia e a

comunidade resistem.

53 Trecho de depoimento encontrado em vídeo institucional da UNAS, disponível em: https://youtu.be/ierNcQJm2pQ 54 Ver mais em: https://www.unas.org.br/single-post/2018/05/29/Negocia%C3%A7%C3%B5es-pelo-direito-

%C3%A0-terra-e-%C3%A0-moradia-em-Heli%C3%B3polis-est%C3%A3o-paralisadas

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1.1.2 UNAS: de Associação de Moradores a ONG

O movimento de moradia uniu a população e levou à formação da UNAS. A partir

dessa luta pelo próprio direito de morar, a convicção dos militantes na necessidade de

uma luta mais ampla, estrutural, por justiça social, foi fortalecida. Genésia, liderança da

comunidade e da UNAS, conta que um de seus filhos quase morreu quando era recém-

nascido, pois o hospital em que nascera, público, não tinha condições de realizar o

tratamento que ele necessitava para sobreviver. Genésia e João Miranda conseguiram

negociar os custos do tratamento de seu filho num hospital particular e a comunidade

conseguiu levantar o dinheiro necessário para quitar a dívida. Hoje ele é adulto e saudável,

mas a indignação com a injustiça de que só o dinheiro tenha garantido seu direito de viver

permanece. “Mas uma das coisas que eu não me conformava, com esse tipo de pobreza,

de entre o pobre e o rico, de um ter direito a viver e o outro não tem” (MEMÓRIAS DE

HELIÓPOLIS, Genésia, 2016).

Assim, as origens da UNAS estão na luta por justiça social, e ao longo dos anos a

organização se mobilizou por diversas pautas da comunidade. Atualmente, constituiu-se

uma ONG e atua em muitas frentes. “Quando a gente acredita na transformação de um

Figura 8: Primeira associação de moradores de Heliópolis. Fonte: PPP CEU Heliópolis Prof. Arlete Persoli

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bairro, de uma comunidade, de uma sociedade, de um país, a gente não atua em uma só

coisa, a gente atua em tudo. Então hoje eu atuo na área de moradia, educação,

comunicação” afirma Gerô (MEMÓRIAS DE HELIÓPOLIS, Gerô, 2016), que também

relata que ao chegar em Heliópolis foi ameaçado e informado de que deveria sair da

comunidade. “Viado aqui não mora”, disseram-lhe. Hoje é diretor da UNAS, foi

responsável pela consolidação da rádio comunitária de Heliópolis e é um dos maiores

representantes do movimento LGBT na comunidade.

Enquanto ONG, a UNAS tem convênio com a prefeitura e administra 16 CEIs e

11 CCAs. Nestes, a UNAS atende aproximadamente 1560 crianças e adolescentes de 6 a

14 anos. O CCA é um projeto da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento

Social e ocorre em diversas partes da cidade, principalmente em regiões periféricas.

Nos CCAs de Heliópolis busca-se concretizar o projeto do Bairro Educador.

Grande parte do apelo de deixar os filhos no CCA é a garantia de que eles receberão a

merenda e não estarão na rua, no entanto os centros da região oferecem mais do que isso

“com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento pessoal e social, por meio de

atividades socioculturais e educacionais no contraturno escolar que oportunizem a

conquista da autonomia, cidadania, e fortaleçam vínculos familiares e comunitários”55.

O CCA também garante um espaço formativo para os profissionais da educação e

oportunidades de trabalho na região, pois privilegia a contratação de trabalhadores e

trabalhadoras do Heliópolis.

Todos os trabalhadores/as dos CCAs são fundamentais no projeto

político-pedagógico. Rita de Cássia, por exemplo, fazia trabalhos

voluntários até que surgiu uma vaga para cozinheira. Passou no

processo seletivo e, após começar a trabalhar, matriculou-se no curso

superior de pedagogia. Atualmente, está finalizando o curso e é

educadora no CCA Aziz. Para ela, o projeto impacta no

desenvolvimento tanto da vida da criança e do adolescente quanto dela

própria. “Na escola, eles não têm essa liberdade de falar e de

expressar as próprias opiniões, já neste espaço isso faz parte do

desenvolvimento deles”.56

Lincoln, um dos estudantes entrevistados da Campos Salles, ex-educando de

CCA, afirma que foi neste espaço que teve contato com a história de Heliópolis e descreve

sua experiência: “a gente passava a tarde lá, aprendia esportes e um pouco mais sobre a

história de Heliópolis, sobre a história de outras pessoas, pessoas revolucionárias

55 Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/2017/10/16/Qual-a-import%C3%A2ncia-do-CCA 56 Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/2017/10/16/Qual-a-import%C3%A2ncia-do-CCA

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(...)Martin Luther King” (Lincoln). O menino também apontou o CCA como espaço onde

teve contato com debate racial e de gênero. Genésia Miranda que, além de liderança

comunitária, é educadora de um CCA explica a intenção do trabalho realizado nos

centros:

é sempre trabalhar nessa aprendizagem do menino: ele tem que ser um

cidadão conhecedor de suas histórias, para que ele pense e transforme

essa situação (...). Nós trabalhamos, nesse projeto político-pedagógico

com esses meninos, para que eles sejam cidadãos saudáveis, que não

usem drogas, mas que tenham consciência política do comportamento

dele, do que ele está fazendo (SANTIS, 2014, p. 94).

Um projeto de CCA que visa a formação política e trabalha a história da

comunidade, não aconteceu por acaso. Houve a demanda da comunidade, especialmente

de mães, que garantiu que se transformasse positivamente a experiência dos CCAs.

Aproximadamente 40% das famílias de Heliópolis são compostas somente por mães e

filhos, sendo a mãe a única provedora.57

Como já observado no apanhado histórico da região, as mulheres sempre foram

liderança nas lutas comunitárias em Heliópolis. Assim, em 2012, dentro da UNAS se

formou também o Movimento de Mulheres Heliópolis e Região, que continua a apoiar a

luta pela educação, moradia, saúde, trabalho e segurança, mas visa principalmente,

discutir pautas específicas de mulheres, como a luta pelo fim dos feminicídios, o combate

ao assédio sexual e a violência doméstica, saúde da mulher e a condição da mulher

periférica. O movimento também realiza ações para além de Heliópolis, como a Ocupação

da Casa da Mulher Brasileira no bairro do Cambuci58.

O Movimento de Mulheres tem crescido e se fortalecido na região, o que é

extremamente necessário, segundo a moradora Karol, que afirma que a violência

doméstica é comum na região e acredita haver uma naturalização da agressão de homens

a mulheres. A proteção que os moradores em geral recebem do crime não se estende às

mulheres em relação à violência doméstica e abuso sexual: “Se um molequinho foi lá e

assaltou um morador do Helipa, esse molequinho vai levar um pau. Mas se um mano tá

batendo numa mina a reação é: ‘Calma aí, que que a mina fez?’ Sabe? ‘Ah, eles são

marido e mulher então não mete a colher’. Tem muito essa política”.

57 Dados disponíveis no Projeto Político Pedagógico do CEU Heliópolis Profa. Arlete Persoli. 58 Ver mais em: https://www.brasildefato.com.br/2017/10/29/movimentos-de-mulheres-fazem-inauguracao-popular-

de-casa-da-mulher-brasileira-em-sp/

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A UNAS conta também com um movimento de jovens, hoje representado pelo

grupo ‘Fala Jovem’, com núcleos de empreendedorismo, onde promove cursos de

programação e redes sociais, entre outros, para a comunidade.59 É ainda o espaço em que

se constituiu os movimentos LGBT e negro de Heliópolis. A UNAS cria espaços, tais

como suas conferências, onde convergem diversos movimentos. É, entretanto, uma ONG

que faz a mediação da comunidade com o poder público por ter diversos convênios com

a prefeitura e com o setor privado. Há muitas contradições nesse processo de deixar de

ser uma associação de moradores, que podemos entender, ainda mais na época das

ocupações, como movimento social, para constituir-se como ONG. No lugar de

enfrentamento, a UNAS propõe mediação e conseguiu construir enorme legitimidade

para negociar com o governo.

Um exemplo de força de barganha da UNAS em relação ao poder público é a

manutenção do MOVA60 até hoje. “O MOVA em Heliópolis inicia-se em 1989, na gestão

de Paulo Freire para reforçar e ampliar o trabalho dos grupos que já atuavam com

alfabetização de adultos” (SOARES, 2010). É um espaço não só de alfabetização, mas

de construção coletiva de processos educativos que se dão, em grande parte, através da

59 Já notamos aqui como as pautas de justiça social podem se misturar com os interesses do mercado, efeito das parcerias

com o setor privado realizadas pelas instituições educativas de Heliópolis e pela UNAS, mas também pelo ímpeto de

proporcionar às pessoas da comunidade acesso a vagas de emprego mais prestigiadas. 60 Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos implementado pela prefeitura durante a gestão de Paulo Freire

como secretário da educação.

Figura 9: Ato -Vigília por Anna Borges, vítima de feminicídio, organizado pelo Movimento de Mulheres toma as ruas de Heliópolis - Dezembro de 2018. Fonte: UNAS

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participação nas lutas coletivas. A alfabetização é pensada como uma ferramenta para

atuação no mundo, mas também de transformação da realidade material do indivíduo.

Nota-se um movimento na UNAS de mobilizar algumas pautas populares

enquanto defende outras que atendem aos interesses do mercado. No primeiro caso, a

educação popular, com a reivindicação de um MOVA engajado. No segundo, com os

núcleos de empreendedorismo, formulados para os jovens, os interesses do mercado são

resguardados. São cursos encarados como meramente ‘instrumentais’, como se não

houvesse, por trás do conceito de empreendedor, conteúdo ideológico. Ainda que a

promessa da empregabilidade contida no discurso do empreendedorismo seja de interesse

aos jovens trabalhadores da região, é um discurso que relativiza a importância de direitos

trabalhistas, pois supõe que um empreendedor deve estar disposto a trabalhar em qualquer

condição, e é isso que o garantirá sucesso financeiro. Isto é, o discurso do

empreendedorismo está profundamente relacionado com o discurso da meritocracia, bem

como com a flexibilização das relações trabalhistas.

A decisão de transformar a UNAS em ONG se deu pelo interesse em conseguir

apoio financeiro para seus projetos e garantir empregos na comunidade, suprindo as faltas

do Estado e fazendo a mediação com o Mercado. Para tanto era necessário ter outra figura

jurídica que permita as parcerias. Hoje, há parcerias com empresas privadas61,

organizações do terceiro setor62 assim como com o poder público.63 O trabalho cotidiano

da UNAS visa facilitar acesso à saúde, moradia, educação e aconselhamento jurídico a

grande parte da população do Heliópolis, mas faz isso, como coloca Brandão (1984), “nos

limites do puro jogo capitalista”. Esta posição particular da UNAS torna difícil a sua

definição entre ONG e movimento social. Seria uma Ong que surgiu de um movimento

social? Ou um movimento social que utiliza a institucionalidade de ONG como

estratégia? Ou ainda um conjunto de movimentos sociais que se organizam sob o

emblema de uma ONG?

Maria da Glória Gohn (2011), define movimentos sociais “como ações sociais

coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a

população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2011, p. 335). Por esta

descrição, a UNAS poderia ser entendida como um movimento social. Entretanto, a

61 AMBEV e FACEBOOK. 62 ActionAid, KinderNotHilfe, Habitat para a humanidade e Instituto Coca-Cola. 63 Há diversos convênios com as Secretarias Municipais de Educação, Saúde, Cultura, Serviços, Assistência Social e

Desenvolvimento Social e Direitos Humanos e Cidadania, assim como parcerias com a Defensoria Pública do Estado

de São Paulo e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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autora também descreve um limite nebuloso entre movimentos sociais e ONGs. Sobre

esta diferenciação, Gohn explica que os movimentos sociais:

Possuem identidade, têm opositor e articulam ou fundamentam-se em

um projeto de vida e de sociedade. Historicamente, observa-se que têm

contribuído para organizar e conscientizar a sociedade; apresentam

conjuntos de demandas via práticas de pressão/mobilização; têm certa

continuidade e permanência. Não são só reativos, movidos apenas

pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão); podem

surgir e desenvolver-se também a partir de uma reflexão sobre sua

própria experiência. (...) Lutam contra a exclusão, por novas culturas

políticas de inclusão. Lutam pelo reconhecimento da diversidade

cultural (...). Finalmente, os movimentos sociais tematizam e redefinem

a esfera pública, realizam parcerias com outras entidades da sociedade

civil e política, têm grande poder de controle social e constroem

modelos de inovações sociais (GOHN, 2011, p. 336-337).

Esta definição se assemelha a UNAS, mas há alguns pontos que não se encaixam

precisamente na atuação da organização. Não há para a UNAS, por exemplo, um opositor

específico e a organização tem se focado mais em projetos do que em mobilizações e

ações de pressão direta64. Mais do que isso a reflexão sobre a sua própria experiência

levou a UNAS a constituir-se como ONG. Isto significa que estaria negando seu caráter

de movimento social?

Esta confusão dos limites entre ONG e movimento social não é específica desse

caso, e é fruto de um processo descrito por Gohn:

Os movimentos sociais populares perdem sua força mobilizadora, pois

as políticas integradoras exigem a interlocução com organizações

institucionalizadas. Ganham importâncias as ONGs por meio de

políticas de parceria estruturadas com o poder público, que, na grande

maioria dos casos, mantém o controle dos processos deflagrados

enquanto avalista dos recursos econômicos (GOHN, 1997, p. 298).

Segundo a autora, as ONGs mudaram sua forma de atuação desde fins dos anos 90 e agora

estão “inscritas no universo do terceiro setor, voltadas para a execução de políticas de

parceria entre o poder público e a sociedade, atuando em áreas onde a prestação de

serviços sociais é carente ou até mesmo ausente” (GOHN, 2011, p. 343). Em diálogo

com esse processo:

O poder público se transforma em agente repassador de recursos. A

operação é intermediada pelas ONGs. Na prática as ONGs é que têm

tido o papel principal no processo, pois são elas que estruturaram os

projetos e cuidam da organização e da divisão das tarefas (...). As

64 Essas ações, como passeatas, marchas e pressão por negociações, têm sido realizadas principalmente pelos

movimentos que se relacionam à UNAS, como o movimento de mulheres, de moradia etc., mas não especificamente

pela organização.

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ações sendo menos de pressão e mais de organização da população,

voltadas para algum programa efetivo, necessitam de suportes

materiais. Estes suportes são obtidos pelas ONGs por meio de projetos.

Estes projetos são financiados por outras ONGs ou por programas

governamentais, ou pela própria comunidade. Para que tenham

continuidade, precisam de eficiência (GOHN, 1997, p. 316).

É possível encaixar a UNAS nesta definição, pois sua atuação é focada em

projetos, gerencia creches e outras instituições públicas com repasse governamental, e

realiza parcerias cujo principal objetivo é a viabilização financeira da continuidade de

seus projetos. Entretanto, a UNAS parece ser diferente de outros grupos que são descritos

como ONGs, como as grandes ONGs internacionais65, ou relacionadas a grupos

empresariais como fundações ou institutos66. A UNAS, na prática, funciona como gestora

de Heliópolis e se encaixaria na categoria ONG cidadã, utilizada por Gohn (1997), sendo

um dos diferenciais deste tipo de ONG que são constituídas por grupos articulados do

povo, em vez de empresas. No caso, a UNAS seria uma ONG cidadã que atua, entre

outras maneiras, também como um guarda-chuva sob o qual se articulam os diferentes

movimentos sociais da região já mencionados, como de mulheres, de moradia, LGBT,

negro etc., sendo que esta parceria é também uma tendência recorrente desde os anos 90.

“Movimentos e ONGs cidadãs têm se revelado estruturas capazes de desempenhar papéis

que as estruturas formais, substantivas, não têm conseguido exercer enquanto estruturas

estatais, oficiais, criadas com objetivo e o fim de atender a área social” (GOHN, 1997,

p. 304).

Elie Ghanem também nota a existência de ONGs que, diferente de entidades

puramente assistenciais, atuam em prol dos próprios interesses e aponta para um perigo

que reside nesta configuração das ações sociais na qual o terceiro setor assume papel

protagonista:

a noção de espaço público se nublou, governos passaram a convocar a

participação da sociedade civil, nomeadamente as ONGs, nos serviços

públicos. Isto ocorreu em um período de mais reconhecimento das

demandas e de fortes restrições de recursos, favorecendo também a

simples substituição do Estado por organizações civis na prestação dos

serviços. Aumentou, portanto, o risco de escolhas pouco criteriosas, de

mau uso dos recursos disponíveis e de abandono da meta de

abrangência universal dos serviços (GHANEM, 2012, p. 54).

Muitas dessas ONGs, como aponta o autor, acabam por substituir o Estado no

cumprimento de funções que seriam estatais, como a gestão da educação pública, da

65 Como exemplo, a própria Action-Aid, com a qual a UNAS tem uma parceria. 66 Tais como instituto Coca-Cola e Fundação Telefônica.

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saúde, a garantia de moradia, urbanização etc., em um processo que Paulo Arantes (2005)

chama de “participação cidadã na terceirização das funções sociais do Estado”. Como

aponta Ghanem, isso aumenta o risco de que essas tarefas não sejam cumpridas, ou que

os serviços não tenham a abrangência necessária. No caso da UNAS, entretanto, há forte

articulação de luta por direitos fundamentais, de modo que é improvável que se perca de

vista a meta de universalização de acesso a esses direitos. Genésia Miranda, liderança de

Heliópolis, defende que a luta por direitos possa realizar transformações estruturais:

“quando a gente reivindica direitos, dentro das leis que existem, a gente consegue

questionar e conquistar. E cada vez que a gente conquistar esses direitos aqui e a gente

tiver ganho aqui em baixo, aqui em cima vai ter perda”67. Entretanto, Maria da Glória

Gohn questiona:

As lutas empreendidas por tais movimentos, a partir de reivindicações

fundadas em necessidades para a reprodução da força de trabalho não

seriam realmente lutas reformistas, como pensam alguns analistas?

Não estariam apenas contribuindo para o sistema de exploração à

medida que estariam ajudando a solucionar os problemas deste

sistema, ainda que fosse através da simples localização de uma

demanda não atendida? (GOHN, 1985, p.170).

Segundo Gohn, portanto, este tipo de atuação pode operar em favor da

manutenção de desigualdades, tomando para o povo a função de resolver falhas

sistêmicas. A autora ressalva que “é importante ter presente que a contraditoriedade –

reproduzir e negar o sistema – não se esgota com o entendimento da reivindicação”

(GOHN, 1985, p. 171). Do mesmo modo, reconhecer o efeito transformador que o

trabalho da UNAS provoca na vida de grande parte da população de Heliópolis tampouco

desfaz essa contradição. Ainda que a entidade garanta melhoria de condições de vida à

população de Heliópolis, não deixa de naturalizar uma inversão de papéis através da qual

a organização não-governamental assume tarefas do governo:

Fica assim mesmo a impressão de um amistoso compadrio vocabular,

como se ONGs e governo formassem um bizarro sistema de vasos

comunicantes, pelos quais circula o mesmo léxico dos Direitos, da

Cidadania, da Esfera pública, da Sociedade civil etc., ora barateado

pela ênfase edificante e nem sempre oficial, ora no diapasão dos

antigos ou ainda novos Movimentos Sociais, que era o da interpelação

de um poder usurpador, a um tempo ausente e opressivo. Em suma, ora

à esquerda, ora à direita (ARANTES, 2005, p. 166).

Os serviços estatais são gerenciados por organizações que não são públicas, mas

67 Depoimento coletado por Santis (2014, p. 94).

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com recursos que são, em grande medida, estatais. A UNAS trabalha a partir das

demandas da comunidade e encontra limitações concretas, financeiras, a seus projetos.

Sendo o financiamento público ou privado – neste caso proveniente de empresas, ONGs

internacionais, fundações, institutos parceiros – há exigências dos financiadores em

relação aos projetos, como nota Arantes:

Tais projetos lidam com fundos escassos sob severa vigilância, que por

sua vez não toleram amadorismo, antes exigem, pelo contrário, um

cálculo profissional de custo/benefício, na previsão de ‘retorno’ do

investimento, o qual vem a ser enfim a transformação do apoio

recebido em serviço (ARANTES, 2005, p. 168).

A UNAS, portanto, toma para si grande responsabilidade na gestão de serviços

sociais, o que se reflete em ações que promovem melhorias de qualidade de vida em

Heliópolis, que geram empregos, que garantem acesso à educação de qualidade. Realiza

tais tarefas, no entanto, visando atingir metas estabelecidas com algum grau de

exterioridade e deve apresentar evidências de seu trabalho a todo momento e adequar-se

às exigências do governo enquanto tenta não perder de vista seus posicionamentos

críticos. Com o adendo de que a captação de recursos implica na possibilidade de

descontinuidade de projetos. Marília de Santis nota esta dificuldade de equilibrar a

realização das tarefas – outrora estatais – com a vontade de formação política dos

militantes:

Percebemos que o grande desafio das lideranças da UNAS é realizar a

gestão de tantos serviços permanentes vinculados ao poder público e,

ao mesmo tempo, garantir o exercício dos princípios da entidade por

parte dos contratados. As lideranças se preocupam com a formação

dos funcionários e trabalham para qualificar os atendimentos

oferecidos à população, mas desejam principalmente ressignificar a

militância de seu quadro de associados no campo da ação política

(SANTIS, 2014, p. 47).

Já o Estado sucateia a oferta de seus serviços de modo que o setor privado sempre

apareça como solução, e o governo seja visto como financiador externo. Afinal, se o

Estado tivesse garantido moradia, segurança pública, saúde, educação à população de

Heliópolis, a UNAS não teria precisado assumir este papel.

Ao depender do Estado para a continuidade de sua atuação, a UNAS garante a

este certo controle em relação aos movimentos sociais que se articulam a ela. Tendo em

vista que o Estado financia grande parte dos projetos da organização, pode definir

prioridades e ter o efeito de amenizar discursos e posicionamentos. Ou seja, ao mesmo

tempo que o Estado se desresponsabiliza de suas tarefas, tornando-se agente externo,

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financiador benevolente e juiz da qualidade dos serviços ofertados, também recebe o

poder de vigiar e influenciar a atuação dos movimentos populares da região, uma vez que

dificulta a formação política dos militantes. Sendo assim, que espécie de autonomia a

UNAS pode construir se ao mesmo tempo que assume as responsabilidades do Estado,

deve fazer malabarismos para garantir seu financiamento e é, também, vigiada por ele?

1.1.3 A Caminhada da Paz e a educação na favela

Não basta pedirmos por paz

A paz nascerá de cada ação

Na nossa rua, bairro, cidade, país

Em cada ato de solidariedade

Na ajuda e no amor ao colega, ao vizinho, ao semelhante

Assim nascerá a paz

A paz não virá de governos ou leis.

Crescerá na escola que acolhe e educa

Nos grupos que unem. No bairro que organiza (...)

Contra a mesquinharia, a exploração.

A paz pede para ficar (...)

E deixar de lado as violências

Uma paz criada assim será nossa, de todos!

Quem será capaz de ir contra construção tão poderosa?

(“A Paz Pede Passagem” - Movimento Sol da Paz )

A história da Caminhada da Paz marca a relação entre a UNAS, a EMEF

Presidente Campos Salles e o Bairro educador. No começo dos anos 90 a Campos Salles68

era conhecida como uma escola muito violenta, as brigas eram frequentes, o diálogo,

muito difícil, e a sensação geral era de medo e tensão. A partir de 1996, a equipe iniciou,

articulada com a comunidade, um processo de transformação da escola e de sua inserção

no bairro.

Em 1999, a violência era bastante presente dentro e fora da escola. Os moradores

que se lembram da época69 contam sobre toques de recolher, assassinatos, mandos e

desmandos de traficantes. A situação culminou com o assassinato de uma aluna na saída

da escola à noite. Leonarda foi assassinada com tiros no rosto. A garota havia rejeitado

um rapaz e a resposta dele foi o feminicídio. Essa tragédia abalou o Heliópolis e acabou

gerando um sentimento de que esta tinha de ser a gota d´água. A situação era insustentável

e algo precisava ser feito, e assim se deu um dos processos de articulação entre a

comunidade escolar da Campos Salles e a UNAS, em torno da construção de uma

68 A Escola foi inaugurada em 1957, originalmente com o nome de Escola de São João Clímaco, em dois galpões com

cinco salas no total. O prédio de alvenaria onde a escola funciona hoje, que suporta até 1000 estudantes, foi inaugurado

em 1967 (CEU EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2017). 69 De acordo com o Projeto Memórias de Heliópolis (2012).

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Caminhada pela Paz, com a constituição do que viria a ser o Movimento Sol da Paz:

Eu estava com o Braz no velório dela e ouvimos que o assassino estava

tomando cerveja num bar lá perto, se vangloriando do assassinato.

Ficamos indignados e o Braz me perguntou se eu toparia iniciar um

movimento, uma caminhada pela paz, para construir uma cultura de

paz na comunidade. É claro que eu topei. Procuramos o João Miranda,

que na época era o presidente da UNAS, e ele também topou. Naquele

momento, nasceu o Movimento Sol da Paz (Orlando)70.

O professor Orlando, da EMEF Campos Salles, relata os primórdios da caminhada

e explica que a questão inicial da Caminhada era romper o ciclo de violência que havia

se instaurado. Contudo, explica o professor, rapidamente ficou evidente que para isso

acontecer, muitas outras ações eram necessárias. Assim, a comunidade foi se envolvendo

e acabou constituindo o Movimento Sol da Paz, com os objetivos de motivar uma nova

postura nas relações estabelecidas na comunidade, gerar espaços de escuta e de diálogo,

tratar de problemas que acirram as situações de violência como o tráfico, e o abuso de

álcool e drogas e reivindicar políticas públicas, em torno de uma noção de que toda a

sociedade deve ser “educadora”:

Já nos primeiros anos da Caminhada, a comunidade reivindicou um

movimento que fosse além de uma caminhada anual. Nasceu assim o

Movimento Sol da Paz de Heliópolis e a noção de Bairro Educador,

onde todos podem educar e ser educados, através da solidariedade e

70 Depoimento do professor Orlando, da EMEF Campos Salles, disponível em: https://www.unas.org.br/single-

post/2016/04/11/Professor-Orlando-fala-Sobre-o-Surgimento-e-a-Import%C3%A2ncia-do-Movimento-Sol-da-Paz-

em-Heli%C3%B3polis

Figura 10: 20ª Caminhada da Paz, 2018 Fonte: UNAS

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da consciência coletiva, e a percepção de que o Estado não é formado

apenas por um conjunto de parlamentares que definem o destino e as

prioridades de uma nação, mas por todos os cidadãos e cidadãs que

fazem parte dela. Por isso, o tema das últimas caminhadas tem sido:

Consciência Comunitária + Políticas Públicas = Sociedade

Educadora71 (MOVIMENTO SOL DA PAZ, 2017).

Em 2017, na 19ª edição da Caminhada da Paz, observamos que o ideal de paz

que se busca na comunidade foi ampliado e engloba muitos outros fatores. Além da

campanha de não-violência, segurança e boa convivência entre as pessoas, o movimento

luta por justiça social e politização das questões relacionadas aos direitos sociais das

classes populares e da política nacional:

O Movimento Sol da Paz é um dos instrumentos que nossa comunidade

tem para se posicionar e fazer suas reivindicações, principalmente nos

dias atuais, em que estamos à beira de um golpe e com a sombria nuvem

do nazismo pairando sobre nossas cabeças. Por isso, é preciso que não

apenas o nosso movimento, mas todos os movimentos sociais deste país

resistam ao golpe e se fortaleçam cada vez mais para que os direitos

conquistados pelas classes populares sejam respeitados (Orlando)72.

Nesta edição, como de costume, a Caminhada foi adornada com girassóis de papel

feitos pelas crianças, assim como muitos desenhos do Sol. Pudemos ver as faixas, já

tradicionais, com as palavras de ordem do movimento: “A paz é de todos ou não é de

ninguém”, “Movimento Sol da Paz transformando Heliópolis num bairro educador”.

Havia camisetas, faixas e cartazes com frases de líderes negros africanos conhecidos pela

defesa do pacifismo, como Desmond Tutu e Nelson Mandela. Contudo, além do tema

central da caminhada, houve manifestações contra a reforma da previdência, contra a

reforma trabalhista, pedindo inclusão educacional a pessoas com deficiência, e com as

palavras de ordem atuais dos movimentos sociais em todo o país, como “nenhum direito

a menos” e “Fora Temer”. Além disso, encontramos pautas relacionadas a minorias e a

uma militância externa à política institucional, como o respeito pela população LGBT,

pelas vidas da população negra e pelo fim dos feminicídios, assim como pela Libertação

de Rafael Braga.73

71 Trecho de material educativo produzido pelo movimento Sol da Paz. 72 Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/2016/04/11/Professor-Orlando-fala-Sobre-o-Surgimento-e-a-

Import%C3%A2ncia-do-Movimento-Sol-da-Paz-em-Heli%C3%B3polis 73 Preso em 2013 por portar um produto de limpeza, Rafael Braga, então morador de rua, negro e pobre, tornou-se

símbolo do movimento contra o encarceramento em massa, e o genocídio do povo preto. Ver mais em:

https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/about/.

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A 20ª Caminhada, em 2018, seguiu a mesma linha, mantendo o tema tradicional

de “Consciência Comunitária + Políticas Públicas = Sociedade Educadora”, mas

também dando mais espaço à luta pelo fim do genocídio da população preta e dos

feminicídios. Marielle Franco74 foi homenageada e traçou-se uma relação entre seu

assassinato e o de Leonarda75. Também se manteve a defesa de que a educação é

instrumento essencial para o combate à violência, como Marília Santis, gestora do CEU

Heliópolis, afirma:

Embora a gente saiba que o nosso trabalho é 'de formiguinha', um

trabalho de convencimento, é essencial e importantíssimo, pois sem ele

é barbárie completa mesmo. A gente acredita que é função da educação

travar um embate direto para desconstruir o discurso de que a violência

é algo natural, porque não é natural.76

74 Marielle Franco foi ativista e vereadora executada em 14 de março de 2018. Era mulher negra, carioca, oriunda da

favela da Maré e entende-se que foi assassinada como retaliação pelo seu trabalho nas favelas cariocas e sua denúncia

dos abusos policiais. Até o momento desta escrita não havia sido solucionado seu assassinato, mas é amplamente

entendido entre os movimentos sociais que tratou-se de uma execução de cunho político, para silenciar a ativista.

Marielle tornou-se uma figura internacional contra a violência policial e em defesa da vida das mulheres. 75 Nos quase 10 anos que conheço a Campos Salles e sua história, foram raras as vezes em que escutei falar sobre o

assassinato de Leonarda como um feminicídio. É evidente que o contexto violento da comunidade no período foi

decisivo para que isso acontecesse. Somente em meio a tamanha banalização da violência que alguém assassina uma

estudante na saída da escola e sai andando tranquilamente. Desse modo, a atuação do movimento Sol da Paz tem sido

transformadora da realidade local e possivelmente, salvou vidas. No entanto, a motivação do crime foi machista. Foi a

percepção do assassino de que, por que ele tinha interesse romântico nela, Leonarda era sua propriedade, que fez com

que ele agisse. Em sua cabeça, Leonarda lhe pertencia e era sua prerrogativa descartar a vida dela, ainda mais se isso

fortalecesse sua imagem de macho. Como fez, ao se gabar do crime, após o fato, tomando cerveja no bar. Deste modo,

cartazes de “Fim aos feminicídios” no contexto da caminhada que foi motivada por um, me parecem o começo de uma

justiça à memória de Leonarda e das tantas mulheres que morrem no Brasil vítimas de feminicídio todo ano. Ver mais

em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-oito-casos-de-feminicidio-por-dia-diz-ministerio-

publico.ghtml; e http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-

quinta-maior-do-mundo. 76 Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/2018/06/13/20%C2%AA-Caminhada-pela-Paz-de-

Heli%C3%B3polis

Figura 11: 19ª Caminhada da Paz, 2017. Fonte: UNAS

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O ‘trabalho de formiguinha’ mencionado por Santis, diz respeito à resistência

popular em geral, não somente ao que diz respeito à educação. Soares (2010) coletou um

relato de Cleide sobre a caminhada que nos mostra como entende-se que a noção de Paz

tem pré-requisitos relacionados à luta popular.

A caminhada é importante porque Paz é tudo e se você não tem

emprego, educação você vai ter paz? É essa luta que temos na nossa

comunidade e é essa questão do direito a educação, moradia. Como

teremos paz se você não tiver essas coisas básicas? (Cleide, 2010).77

Atualmente, a leitura do material do movimento Sol da Paz nos informa que o

movimento faz uma relação profunda e direta entre: luta popular, luta pela paz e a luta

por uma educação de qualidade em Heliópolis. O movimento busca inserir a noção de

“cultura de paz” nos currículos das escolas em prol dos objetivos educacionais defendidos

na comunidade e criar espaços de participação política para reivindicações de condições

materiais, tais como espaços educativos e de organização permanentes. Procura-se

ensinar outros modos de lidar com a violência a partir de uma sociabilidade coletiva e não

do punitivismo. Assim, percebemos que as pautas da Caminhada da Paz e do Bairro

Educador se confundem na declaração de objetivos do movimento:

77 Disponível em SOARES (2010).

Figura 12: 20ª Caminhada da Paz, 2018. Fonte: UNAS

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- Integrar escolas e equipamentos educativos da região, fortalecê-los

para que se tornem centros de liderança e articulá-los para a inclusão

de temas pertinentes à comunidade e à cultura de paz em seus

currículos, de modo a desenvolver atividades cotidianas que estimulem

respeito ao ser humano, independente de sua cor, religião ou

sexualidade; (...)

- Transformar Heliópolis em um Bairro Educador, onde todos se

sintam estimulados a ensinar e a aprender, com base em seus cinco

princípios: tudo passa pela educação, a escola como um centro de

liderança, solidariedade, responsabilidade e autonomia.

Bairro Educador é, portanto, um projeto, assim como um movimento e uma

prática. É um apanhado de metas, que orientam a ação educativa em diversos espaços da

comunidade, e que parte do princípio de que a Educação é a melhor resposta à violência

e que, igualmente, é responsabilidade do conjunto da comunidade, não somente daqueles

que são educadores como profissão. Além disso, o projeto supõe uma mudança no sentido

da educação que se realiza na comunidade, voltando-a aos interesses e demandas do povo.

Seria ainda um espaço para experimentação, segundo João Prefeito “é um bairro onde

nós podemos ser um exemplo para outros lugares (...) tipo aqui ser um laboratório de

estudos para outros lugares”.

O primeiro objetivo, a articulação de escolas, equipamentos e grupos populares

que tratam de educação, saúde, cultura e lazer tem o intuito de responsabilizar a todos

pela educação, assim como fortalecer a ideia de que a escola e outros espaços públicos

sejam de fato do povo. Entende-se que todas as pessoas da comunidade são educadoras.

Figura 13: Concentração da 20ª Caminhada da Paz, ao lado da EMEF Campos Salles. Fonte: UNAS

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Este processo motiva diversos eventos culturais que acontecem periodicamente na favela

de Heliópolis78 e impulsionou diversas mudanças em outras escolas da região nestes

últimos anos, no sentido de construção de gestões mais democráticas, currículos mais

abertos e fortalecimento da relação escola-comunidade. Este princípio de que todos são

responsáveis pela educação, contudo, pode ter ramificações contraditórias em relação à

busca por uma educação de qualidade.

Ao mesmo tempo que se propõe uma educação para além da escola e construída

coletivamente, esse discurso pode desvalorizar professores. Se todos ensinam, qual é a

importância do professor? Isso nos remete à ideia do notório saber79. Além disso, a ideia

de um bairro educador supõe não depender do Estado, isto é, se este não garante uma

educação de qualidade, a comunidade a constrói ela mesma. Por uma perspectiva, isso é

libertador, sendo uma educação que emerge da comunidade com objetivos pedagógicos

que fazem sentido neste contexto. Por outro lado, esse processo significa, também,

desresponsabilizar o Estado em relação à educação, assim como em relação à pacificação,

ou seja, à segurança pública, transferindo essas tarefas ao Bairro Educador, ao Movimento

Sol da Paz, à UNAS, à população de Heliópolis em geral.

O Movimento Sol da Paz, fala ainda em democracia e direitos humanos, mas o

que entende como real força para inclusão e transformação social, é a Educação. Esta

perspectiva idealiza a educação, e pode propagar uma ideia de educação salvadora, capaz

de resolver todas as desigualdades sociais, mas essa visão coexiste com a crítica da forma

escolar, que está presente também na maioria dos textos do Bairro Educador e

principalmente, da Campos Salles. É por isso, na perspectiva do movimento, que se faz

necessário mudar os processos educativos formais e não-formais que ocorrem na

comunidade. Se esta é a ferramenta para transformar o mundo, então é preciso que a

Educação seja como este outro mundo que se quer construir, libertadora.

78 Entre estes eventos está o Seminário da Educação em Heliópolis: Bairro Educador que em 2017 teve sua oitava e

trata de temas muito variados como educação infantil, ensino médio, políticas públicas para jovens, redução da

maioridade penal, políticas de saúde, direito à cidade e ocupação do espaço público, maternidade na juventude, o papel

da escola na sociedade etc. Há convidados externos para alimentar os debates, mas para cada tema há sempre um espaço

para que as pessoas da comunidade possam debater cada tema a partir da vivência na comunidade. 79 O notório saber é medida incluída na atual proposta de reforma do Ensino Médio que permite que pessoas sem

diplomas em cursos de pedagogia e licenciatura lecionem na rede básica desde que comprovem ter ‘notório saber’ no

tema que pretendem ensinar. A medida foi apresentada como solução à falta de professores. Além da precarização da

categoria docente, pelo abandono da formação, nota-se que a medida atende também a interesses privados, como a

criação de empresas, que certificam este suposto ‘notório saber’, ligadas a instituições como Itaú Social e a Fundação

Lemann. Ver mais em: https://avaliacaoeducacional.com/2016/09/24/notorio-saber-vire-professor-em-5-semanas/;

http://www.cartaeducacao.com.br/artigo/notorio-saber-na-educacao-desonera-o-estado-de-sua-responsabilidade/.

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CAPÍTULO 2 – “Parece menos uma cadeia”: do Bairro

Educador à transformação da escola

A EMEF Presidente Campos Salles é uma escola construída pela comunidade em

seu entorno, o que é um grande diferencial em seu projeto. Essa articulação, entretanto,

não aconteceu por acaso, foi um trabalho longo, coletivo e bem refletido cujos resultados

são fáceis de observar. Anteriormente isolada da comunidade por muros e relações

conflituosas marcadas pela violência, a escola e o espaço que a cerca hoje são abertos e

foram, através da luta da comunidade, incorporados ao CEU Heliópolis Profª Arlete

Persoli, onde se pode realizar aulas de esportes, dança, frequentar o cinema e as rodas de

leitura na biblioteca comunitária. Hoje, o espaço é uma referência na região onde se

realizam shows e diversos eventos culturais, a concentração de pessoas para

manifestações populares na região, e debates variados.

Para entendermos este processo, esse capítulo se deterá sobre o projeto do Bairro

Educador. A partir desse contexto, apresentaremos o processo de transformação do

funcionamento da EMEF Campos Salles, com base no PPP80 que reúne grande parte da

teoria que orienta a prática da escola, descreve seu funcionamento e apresenta o histórico

das transformações aí realizadas.

Em seguida traremos algumas reflexões sobre o significado que a escola pública

adquire em uma favela e as diferentes posturas em relação a políticas educacionais que a

prefeitura de São Paulo adotou em suas variadas gestões desde os anos 90.

80 Versão do documento atualizada em 2017 e disponibilizada pela escola.

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2.1 O Projeto Heliópolis, Bairro Educador:

[O Bairro educador de Heliópolis] Cria novos significados aos espaços

comunitários, ao articular as pessoas, tendo também a preocupação

com a acessibilidade e a estética, para que os espaços ressignificados

sejam educadores. (...) identifica suas inúmeras possibilidades

educacionais, criando ações coletivas e priorizando a formação

permanente dos seus moradores, através das associações, entidades,

projetos sociais, para o desenvolvimento do capital humano e o

fortalecimento do capital social da comunidade. (...) cria, junto com a

escola, condições para a expressão da educação através das diversas

linguagens (...). Promove a conscientização política dos seus

moradores, através do resgate da sua história, da construção e

fortalecimento da sua identidade individual e coletiva, pautada pelo

diálogo entre as gerações, para que os mais jovens, se sentindo parte

desta história, sejam a possibilidade da sua continuidade (...). Incentiva

a interlocução da produção sociocultural de Heliópolis com outras

produções da cidade, respeitando e garantindo a diversidade,

ampliando a sua visão de mundo (...). Organiza o debate e cria

condições de novas ideias e proposituras sobre as questões

educacionais, políticas, econômicas, sociais, ambientais, éticas e

estéticas, que afligem a comunidade, a cidade, o país e o mundo. (...) É

o lugar onde se constrói uma cultura da paz. (CEU HELIÓPOLIS

PROFa ARLETE PERSOLI, 2017).

O Bairro Educador é, na prática, uma articulação de entidades, coletivos e

lideranças comunitárias e gestões de equipamentos públicos de educação, saúde,

assistência social de Heliópolis, que organiza uma série de atividades. Está orientado por

princípios políticos de organização coletiva e comunitária para construir espaços de

diálogo e soluções para problemas, bem como para lutar por melhores condições de vida

e de reivindicação e luta por direitos sociais.

A educadora Arlete Persoli, figura central no projeto do Bairro Educador,

escreveu um texto no qual explica as pautas do projeto. Mais do que uma descrição do

que seria o Bairro Educador, é uma espécie de carta de intenções e súmula de ações do

projeto. Este texto é veiculado em diversas publicações sobre o projeto, tanto em posts na

internet quanto nos PPPs do CEU Heliópolis Arlete Persoli e da Campos Salles e no

material educativo do Movimento Sol da Paz. Nele descreve como a educação que o

projeto busca ultrapassa os muros da escola, é inclusiva, e ferramenta de transformação:

O Bairro Educador de Heliópolis (...) É uma escola a céu aberto, onde

todos se respeitam independentemente das suas diferenças étnicas,

religiosas, de gênero. (...) Prioriza a educação como eixo condutor e

organizador da comunidade, para o melhor enfrentamento da luta pela

efetivação dos direitos (CEU HELIÓPOLIS PROFª ARLETE

PERSOLI, 2017).

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Ainda que critique a forma escolar, o projeto não nega a escola, pelo contrário, a

enxerga como parceira essencial. O Bairro Educador “Cria uma nova cultura do educar,

que transcende a escola, mas se associa a ela para buscar, explorar e desenvolver todos

os potenciais educativos da comunidade, visando a educação integral das suas crianças

e jovens, dos adultos e dos idosos” (CEU HELIÓPOLIS PROFa ARLETE PERSOLI,

2017). Esta aproximação da escola se dá pelo entendimento de que ela é também parte da

comunidade e como tal, deve dialogar com outros espaços de modo a atender os interesses

da população de Heliópolis.

Na mesma linha de estabelecer parcerias, segundo o texto, o Bairro Educador

“Busca tecer uma rede de articulação entre o poder público, empresários, sociedade civil

organizada, moradores e escolas, para a promoção do bem comum” (PPP, 2017)81. Mas

o que seria o bem comum? Empresários, moradores do Heliópolis, e poder público têm

os mesmos interesses? O texto parece tomar por certo que sim. Entretanto sempre haverá,

pela própria natureza do nosso sistema produtivo e relações sociais antagônicas,

divergências entre o bem do povo e o bem do mercado. Ao transformá-los em um bloco

homogêneo dissimulam-se os interesses divergentes. Ou seja, ao supor que as empresas

envolvidas com o Bairro Educador tenham interesses idênticos ao dos moradores, de

justiça social e melhoria de condições de vida, oculta-se a natureza do empreendimento

capitalista e efetiva-se o fenômeno que Arantes (2005) denomina “surrealismo da

empresa que não visa lucro”. Certamente não há aqui uma transformação tão profunda

que os empresários deixem de fato de buscar lucro, mas de alguma maneira a

lucratividade é apresentada como se fosse efeito secundário, até acidental, não seria o fim.

Quando essas parcerias são firmadas em nome do bem comum, além de criarem a ilusão

de que exista um bem comum entre empresários e povo, também assumem a aparência de

caridade e como tal, parecem estar acima de cobranças.

Ao mesmo tempo, como indica Arantes (2005), o terceiro setor, alinhado com

interesses do mercado, toma para si termos como cidadania e participação, deslocando-

os de seu lugar junto ao povo e dando a impressão de que o objetivo final de todos esses

atores seria o bem da população. Como efeito, “nem sempre é fácil perceber onde termina

a utopia republicana e principia um empreendimento tocado à imagem e semelhança do

mundo dos negócios” (ARANTES, 2005, p. 168).

81 Ao longo desta dissertação a versão de 2017 do Projeto Político Pedagógico da Campos Salles será referenciado

como (PPP, 2017), porém consta nas referências bibliográficas como: CEU EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES.

(Projeto Político Pedagógico) Cidadania: Uma questão de sobrevivência. São Paulo, 2017.

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Quanto ao Estado, as parcerias firmadas podem funcionar para, ao mesmo tempo

que o desencarregam de deveres, garantir sua presença no movimento e certo controle.

Assim, ao tomar para si a missão de garantir tantas transformações na comunidade, o

Bairro Educador pode, assim como a UNAS, agir como um braço do Estado, que transfere

suas responsabilidades para a ‘sociedade civil’ aí cristalizada.

Entre estas organizações de Heliópolis, percebi que o Estado é visto como

instrumental para a melhoria de condições de vida na comunidade, mas não é no governo

que se depositam as esperanças de transformações reais. O Estado é um potencial

financiador de melhorias, mas não é agente da mudança. As lideranças procuram cultivar

relações com o governo e utilizá-las como uma ferramenta para alcançar objetivos locais,

tentando, através desse contato permanente, garantir a autodeterminação. A avaliação de

Santis sobre a relação entre as lideranças comunitárias e o governo corrobora essa leitura:

Observamos (...) a postura respeitosa, mas sempre firme [das

lideranças comunitárias] diante de autoridades do governo, e até

mesmo de membros da academia. Sabem que têm o que aprender com

eles, mas têm segurança de que negociam em nome e a favor de

demandas comunitárias que se encontram social e politicamente

articuladas. Acreditamos que tal postura revela um aprendizado

adquirido ao longo de anos de reflexão sobre o fazer político do grupo,

de uma consciência já adquirida de seu papel histórico-social

(SANTIS, 2014, p. 99).

Assim, ainda que muito seja feito em parceria com órgãos estatais, a crítica a estes

permanece presente, como vemos nesta fala de Braz Nogueira:

José Pacheco82, quando fala 'pra que Diretoria Regional? Pra que

Ministério?' eu entendo perfeitamente o que ele está falando. Porque

eles existem para sustentar esse sistema que está aí, não está

funcionando. Se eles deixarem de existir, vai vir uma força local, e essa

força local vai se encontrar, e vai ter política pública de verdade. E

fazer revolução (SANTIS, 2014, p. 98-99).

Retornando a discussão propriamente educacional, há no Bairro Educador uma

centralidade da ideia de Educação Integral. Marília de Santis (2014), gestora do CEU

Heliópolis, situa o conceito como herdeiro da obra do teórico da Escola Nova83 Anísio

82 Um dos idealizadores da experiência portuguesa da Escola da Ponte, que é uma das inspirações do projeto escolar da

Campos Salles da qual tratarei mais adiante. 83 A Escola Nova foi um movimento internacional de renovação pedagógica que no contexto brasileiro adquiriu caráter

nacionalista, passando a ter papel mais importante nos anos 30 quando foi lançado o Manifesto dos Pioneiros da

Educação. O movimento propunha diversas mudanças na escola, sendo que algumas se aproximam daquilo que as

escolas democráticas e alternativas viriam a defender no país, como o papel do professor mediador, a centralidade no

educando e a crítica do conteúdo curricular. Apesar destas semelhanças com as escolas democráticas, o conteúdo

político da Escola Nova no Brasil era de teor liberal.

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Teixeira, por sua vez, leitor do americano John Dewey.

os fundamentos desse legado se referem a um entendimento de

educação pública que amplia a educação escolar, no sentido de

articulá-la a dimensões mais amplas como a cultura, a socialização, a

formação para o trabalho e a cidadania, assim como implicava a

defesa do aumento da jornada escolar discente (SANTIS, 2014, p.50).

Isto é, Educação Integral, seria aquela que ultrapassa os conteúdos e formas

escolares. É integral por envolver a vida de maneira completa, acontece também na escola

pública, mas deve ultrapassá-la. Por este motivo que Santis afirma que o Bairro Educador

“se ancora na pulverização de espaços educativos, já que a escola não é o único local

onde é possível produzir conhecimento. Os tempos e espaços em que os indivíduos se

educam são permanentes e múltiplos” (SANTIS, 2014, p. 55). Esta perspectiva elucida a

relação do Bairro Educador com a Campos Salles. Ambos projetos se constroem

mutuamente. A escola transforma, internamente, a maneira como se vive o tempo e o

espaço escolares, ampliando as possibilidades de aprendizagem (SANTIS, 2014)

enquanto o Bairro Educador busca fazer o mesmo na comunidade.

Outros objetivos deste projeto são “a renovação do papel social desempenhado

pela instituição escolar na contemporaneidade e a democratização da gestão de projetos

educacionais” (SANTIS, 2014, p. 108). Disso se entende a vontade de transformar a

forma escolar, como discutiremos no último capítulo, mas também a maneira como a

educação está presente em outros aspectos da vida. Esta intenção se concretiza com o

CEU Heliópolis Professora Arlete Persoli, cuja gestão se envolve, ativamente, na

construção do Bairro Educador.

2.1.1 A criação do CEU Heliópolis: uma conquista da comunidade

Os CEUs são projeto municipal da gestão de Marta Suplicy84. O intuito era formar

nas periferias espaços públicos onde houvesse acesso a Cultura, Lazer, esportes,

educação. Em Heliópolis já existe, desde 2003 o CEU Meninos. O espaço do entorno da

EMEF Campos Salles tornou-se recentemente (2015) também um CEU. Em 2009 depois

de muito tempo de negociação com a Prefeitura85, foi criado no espaço o Centro de

Convivência Educativa e Cultural de Heliópolis, CCECH. Entre 2010 e 2014 a gestão

84 Prefeita de São Paulo entre 2001 e 2004, eleita pelo Partido dos Trabalhadores. 85 A esta altura, a prefeitura estava na gestão Gilberto Kassab que, após assumir em 2006 por ser vice-prefeito de José

Serra (PSDB), fora eleito em 2009 pelo DEM e permaneceu no cargo até 2012, sendo sucedido por Fernando Haddad

(PT) em 2013.

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deste centro organizou diversas atividades e projetos, sempre contando com forte

participação comunitária.

Em 2012, essa gestão desenvolveu em parceria com a UNAS o projeto Memórias

de Heliópolis – Raízes e Contemporaneidades, produzindo vídeos e o livro homônimo,

que foram de extrema importância para o desenvolvimento desta pesquisa.

Esse projeto tinha o intuito de sistematizar a história do bairro a partir

do ponto de vista dos próprios moradores que a viveram. Além disso, o

projeto Memórias de Heliópolis tinha como objetivo produzir material

que pudesse ser usado pelas escolas, projetos e equipamentos

educativos da região, estimulando que esse conteúdo passasse a fazer

parte de seus currículos, ao lado daqueles considerados mais

tradicionais (CEU HELIÓPOLIS PROFa ARLETE PERSOLI, 2017).

Finalmente em 2015, o CCECH virou CEU. Esta mudança foi de muita relevância

para a comunidade, pois garantiu condições para a manutenção de uma equipe maior e

permanente na gestão, com núcleos de cultura, de educação, de esporte, de modo que

mais projetos foram possíveis. Além disso, muitos equipamentos públicos foram

agregados ao espaço. Hoje no espaço do CEU se encontra a EMEF Campos Salles, a Etec

Heliópolis, a EMEI Antonio Franscisco Lisboa, 3 CEIs, o centro cultural, que conta com

um cinema, um teatro de arena e um saguão coberto onde ocorrem oficinas, teatro e

shows, um polo do projeto Fab Lab86, a Torre da Cidadania, edifício onde há aulas

86 O Fab Lab Livre SP é um projeto da Prefeitura de São Paulo, da gestão Fernando Haddad, em parceria com o Instituto

de Tecnologia Social no qual diversos laboratórios são disponibilizados para o público, para uso livre. Os laboratórios

são equipados com impressoras 3D, computadores com software de desenho digital, equipamentos de eletrônica e

robótica, e ferramentas de marcenaria e mecânica. O projeto também oferece cursos.

Figura 14: Visão aérea do CEU Heliópolis Profa Arlete Persoli. Fonte: PPP do CEU

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diversas, como danças e lutas, e onde fica o polo da UniCeu87, uma biblioteca com amplo

acervo de literatura infantil, nacional e internacional, computadores e espaço para rodas

de história e de conversas e oficinas, um complexo esportivo que conta com quadra

poliesportiva e duas piscinas, além de praças com equipamentos de ginástica, parquinhos

e wi-fi livre.

No nome do CEU, a comunidade decidiu homenagear Arlete Persoli. Ela foi

educadora e gestora do CCECH e grande articuladora do Bairro Educador88. Tendo

falecido no final de 2014, Arlete, uma das grandes idealizadoras do projeto do CEU,

infelizmente não pôde vê-lo concluído. O PPP do CEU descreve sua atuação política na

comunidade:

a presença de Arlete foi fundamental na aglutinação da força dos

movimentos sociais organizados - da juventude, LGBTT, de mulheres,

por moradia, dentre outros - que garantiram a ampliação dos

equipamentos públicos que transformaram Heliópolis num dos mais

completos centros de educação da cidade de São Paulo (CEU

HELIÓPOLIS PROFª ARLETE PERSOLI, 2017).

No CEU há diversos cursos, de esportes, danças, pilates, xadrez etc. Além disso,

a agenda cultural é sempre cheia, pois a gestão organiza shows, peças de teatro, encontros

de mães, de Educação popular, cine-debates, contações de história etc. Além de propor e

realizar eventos e projetos, em geral com educadores da comunidade, o CEU tornou-se

um espaço no qual outros grupos da região podem propor atividades. O CEU Heliópolis

é vizinho do Instituto Bacarelli, onde grande parte dos estudantes da Campos Salles e de

outras escolas da região fazem aula de coral e instrumentos musicais. O Instituto é

responsável pela formação da Orquestra de Heliópolis.

Todas essas atividades são articuladas e integram o projeto do Bairro Educador.

Duas ações que visam atender ao objetivo do projeto de colocar os jovens e adolescentes

do Heliópolis em Etecs e Universidades públicas são o Cursinho Preparatório Pré-

Vestibulinho89 e o Helipa na Universidade90. O primeiro surgiu como uma resposta ao

fato de que a Etec, que existia na comunidade desde 2009, não era frequentada pela

87 O Programa Universidade nos CEUs é uma parceria da prefeitura de São Paulo com o governo federal que integra o

sistema nacional UAB (Universidade Aberta do Brasil) e oferece gratuitamente cursos de ensino superior nos CEUs

nas modalidades presencial, semipresencial e à distância com o apoio de instituições de ensino superior. Ver mais em:

portal.sme.prefeitura.sp.gov.br. 88 Arlete foi esposa de Braz Nogueira, diretor da EMEF Campos Salles no início da transformação do projeto, de modo

que também participou deste processo mesmo sem vínculo oficial com a escola. 89 Fui educadora interdisciplinar do Cursinho Preparatório Pré-Vestibulinho em 2015, encarregada principalmente da

articulação dos conteúdos de Humanas, participava do planejamento coletivo de todos os encontros e de eventos

externos do Cursinho. 90 No projeto piloto do Helipa na Universidade, em 2015, trabalhei como educadora, oferecendo oficinas preparatórias

para o ENEM.

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população local. Foi constatado que os adolescentes sequer sabiam que poderiam estudar

lá, consideravam escola de boy91 e muitos imaginavam que fosse particular. Assim o

cursinho teve o objetivo de tomar para a comunidade aquela escola. O Pré-Etec tem

caráter interdisciplinar que ultrapassa os conteúdos da prova da Etec, trazendo debates

atuais com o intuito de formação crítica. Em 2015, de 140 inscritos, entre adolescentes e

adultos, 70 foram aprovados tanto na Etec Heliópolis quanto em outras escolas técnicas.

O Helipa na Universidade surgiu a partir da experiência do Cursinho Pré-Vestibulinho,

diante da imensa procura de cursinho pré-vestibular. O projeto foca na preparação para o

ENEM e procura incluir as tecnologias da informação no dia a dia do aluno para que ele

consiga continuar os estudos em casa de maneira autônoma. Em 2016 o projeto teve 60

alunos e em 2017 cresceu, com uma equipe grande de 13 educadores.

2.2: Uma Escola “sem paredes”: O processo de transformação da Campos

Salles

A EMEF Campos Salles é anterior à ocupação massiva da região de Heliópolis.

Segundo o PPP, por muito tempo foi vista como uma escola ‘do crime’ e ‘dos favelados’

o que era recebido de maneira negativa na comunidade. Paradoxalmente, a escola ‘dos

favelados’ buscava afastá-los, colocando muros e obstáculos à integração dos estudantes

provenientes do Heliópolis na escola ainda que eles fossem absoluta maioria. Vale dizer

que os portões da escola ficavam voltados para o bairro de São João Clímaco, oposto à

favela de Heliópolis,

O Projeto Político-Pedagógico da escola de 2012, intitulado “Cidadania: uma

questão de sobrevivência” descreve o período anterior à constituição de Heliópolis, de

1957 a 1971 da seguinte maneira:

A EMEF Pres. Campos Salles se restringia ao atendimento das séries

iniciais do ensino fundamental. Segundo uma das professoras

entrevistadas, e documentos da escola comprovam, a grande maioria

dos alunos era proveniente do Jardim Patente e São João Clímaco. A

grande maioria de seus pais era de trabalhadores das chácaras e

91 Boy no linguajar dos adolescentes paulistas é uma pessoa rica, cheia de privilégios, com vida fácil, é uma variação

do antigo playboy. A pesquisa realizada pelo CEU entre os adolescentes antes da criação do cursinho mostrou que eles

só viam pessoas de fora do Heliópolis estudando na Etec, pessoas que aparentavam ter mais dinheiro e que

identificavam como boy. Supunham, portanto, que se esse espaço era frequentado por essas pessoas, não deveria ou

poderia ser frequentado por quem não fosse boy. Daí que saía a ideia, repetida por muitos, de que a escola

provavelmente era paga.

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olarias que se espalhavam pela região. Muitos eram descendentes de

portugueses e italianos (PPP, 2017).

Assim podemos entender que a escola durante este período era de maioria branca

e ainda que não estivesse conectada com o resto da cidade, não se tratava de uma região

particularmente pobre. Levando em conta que a proporção de zona rural na cidade na

época era muito maior do que hoje, faz sentido que as famílias fossem trabalhadoras

rurais. Como vimos, a ocupação mais massiva da região ocorreu no início dos anos 70,

quando se altera o público que frequenta a escola:

A EMEF Pres. Campos Salles era a única escola próxima que poderia

atendê-los. Segundo uma professora, presente na escola desde 1978, a

maioria das crianças que chegavam era de 1ª e 2ª série. Segundo a

mesma, a partir do momento que aprendiam a ler e escrever, os alunos

se transferiam para as escolas novas que estavam surgindo, mesmo

sendo mais distantes. Disse ela: “Era muito difícil formar uma 8ª série.

Eles tinham vergonha de tirar o diploma aqui”. Desta fala e de muitas

outras se conclui o porquê do estigma imputado a EMEF Pres. Campos

Salles como sendo a “escola dos favelados”, dos marginais e

baderneiros (PPP, 2012)92.

Este estigma teria permanecido até o início do que o PPP chama de terceira, e

atual, etapa da história da escola, em 199693. O depoimento da coordenadora Rosemeire

coletado por Marcia Gallo (2009) ilustra a natureza desse estigma:

a Escola era considerada um ‘lixão’. Todos os alunos que não se davam

bem nas escolas e que não aceitavam as matrículas, caíam lá na

Campos Salles. (...) tinha muita transferência de outras escolas e a

gente nunca rejeitou, já era uma linha da escola. E a EMEI em frente,

por exemplo, nenhuma mãe queria matricular a criança no Campos

Salles. A escola era toda pichada, as paredes todas pichadas, tinha

briga quase todos os dias na porta da escola, a escola realmente não

era procurada.

Nesse período de início dos anos 90, segundo a retomada histórica apresentada no

PPP (2017) a evasão e abandono eram muito comuns e mesmo os alunos que

frequentavam as aulas eram desmotivados, viam a escola como uma punição. Com o

impulso de mudança e a vontade de integrar a comunidade com a escola, os métodos

autoritários e violentos da escola hegemônica começaram a ser questionados. A primeira

questão que moveu a mudança era que a escola, se pretendia transformar a realidade, tinha

que ser da comunidade. Não deveria ser um espaço do crime, mas também não podia ser

92 O Projeto Político Pedagógico da EMEF Campos Salles do ano de 2012 será referido ao longo do texto como PPP,

2012, entretanto, nas referências bibliográficas consta como EMEF PRESIDENTE CAMPOS SALLES, 2012. 93 O documento mostra o início da gestão de Braz Nogueira como diretor da escola como o primeiro momento de

transformação da relação entre escola e comunidade, pois foi ele quem iniciou o debate acerca de experiências

pedagógicas alternativas e iniciou os processos de integração com a comunidade.

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um espaço estrangeiro. A comunidade deveria ter voz e determinar a escola que queria

para que a escola pudesse também impactar a comunidade.

O que se propõe de fato é o fortalecimento da relação Escola-

Comunidade, onde a escola como um centro de liderança

comprometido com o saber e juntamente com as outras instituições e

lideranças da comunidade, possa quebrar as amarras que aprisionam

todos às estruturas sociais pré-determinadas (PPP, 2017).

Com este intuito, lideranças comunitárias foram convidadas para um curso, ainda

no final dos anos 1990, realizado pelos profissionais da escola, “educação e cidadania”

no qual se discutiu o potencial transformador da educação e qual educação se queria. A

ideia do curso era trazer os debates que estavam acontecendo entre os profissionais da

escola para as lideranças da comunidade, mas também trazer estas lideranças, e os grupos

que representavam, para a construção do projeto. Foi então que a comunidade começou

a se responsabilizar pela escola que estava construindo, constituindo um Conselho de

Escola bastante ativo.

Como resultado do curso – Educação e Cidadania – a escola passou a

contar, no final de 1998 com a atuação de quatro comissões: Limpeza,

Conservação e manutenção do prédio escolar, Cultura, Esporte e

Lazer, Relação escola-comunidade e Comissão de Reivindicação (...)

No final de 1998 o estigma que pesava sobre a escola – “escola dos

favelados, marginais e baderneiros”, começou a ser substituído pela

denominação de “escola da comunidade” (PPP, 2017).

É neste momento de renovação da escola que ocorre o assassinato de Leonarda

que, como já discutimos, leva à construção da primeira Caminhada da Paz e fortalece a

parceria entre a Campos Salles e a UNAS no início do que se tornaria o projeto do Bairro

Educador:

escola e comunidade formam um mesmo corpo. Os problemas da escola

são da comunidade, bem como, os problemas da comunidade são da

escola, uma vez que acreditamos que tudo passa pela educação. Sendo

assim, a escola e a comunidade são parceiras na luta pela efetivação

dos direitos da população de Heliópolis, pela construção de uma

cultura de PAZ e a transformação de Heliópolis em um bairro

educador, com o objetivo de transformar a sociedade (...). Acreditamos

que isoladamente, a escola enquanto instituição, não consegue atingir

plenamente seus objetivos. Somente com uma rede articulada de

parcerias sólidas e de diferentes instâncias é possível promover um

ambiente educativo e amplo (PPP, 2017).

Enquanto as relações entre escola e comunidade se fortaleciam foi necessário

também um trabalho de aproximação das educadoras e educadores da escola. A intenção

de reestruturar o trabalho docente, de modo que se tornasse coletivo, levou a um

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movimento de pesquisa e estudo de alternativas pedagógicas, principalmente da

experiência portuguesa da Escola da Ponte94. Em 2004 a equipe da Campos Salles chegou

a fazer estágio na EMEF Desembargador Amorim Lima95, no Butantã, também inspirada

na escola portuguesa. Ainda hoje a escola busca e promove espaços de trocas com outros

projetos escolares diferenciados, como CIEJA Campo Limpo96 e a EMEF André Urani97,

no Rio de Janeiro.

Podemos afirmar que o trágico assassinato de Leonarda em 1999 inspirou a

transformação na comunidade, dentro e fora das escolas. A mudança que já estava em

curso dentro da Campos Salles foi fortalecida pela indignação que o feminicídio, ocorrido

na porta da escola, causou e o movimento pela paz também ganhou fôlego e se articulou

com a experiência da escola. Ao que indicam os relatos, ambos os movimentos são as

bases do Bairro Educador.

A organização comunitária não se limitou a criar uma organicidade na inserção

da escola no Heliópolis, mas passou a influir mais diretamente no trabalho pedagógico e

no processo de ensino, quando iniciou o lento processo de mudança do projeto de

educação da EMEF Campos Salles. Em 2006, as disciplinas foram agrupadas por áreas

de conhecimento “quebrando as paredes”, metaforicamente, entre as disciplinas e os

estudantes começaram a estudar em grupos. Segundo o Projeto Político Pedagógico o

foco tornou-se os alunos e suas demandas, em uma preocupação de formá-los de maneira

interdisciplinar e integral, entendendo cada estudante como “ser integral, completo,

capaz de tomar decisões, portador de saberes e capaz de organizar-se individual e

coletivamente para aprender” (PPP, 2017).

Em 2007 o Conselho da Escola, a equipe escolar e a comunidade já tinham

consolidado seu posicionamento sobre qual escola queriam para Heliópolis: uma escola

sem paredes. A intenção era fazer com que as pessoas trabalhassem juntas,

descompartimentalizando o espaço e o tempo, a fragmentação abstrata mais

tradicionalmente encontrada na organização escolar. O objetivo era proporcionar um

ambiente mais livre, que garantisse possibilidades de autonomia e trabalho coletivo aos

estudantes. Diante dos obstáculos burocráticos postos pelos órgãos oficiais de educação,

94 A Escola da Ponte é uma escola pública portuguesa que passa por projeto semelhante de construção de um novo

projeto escolar desde os anos 1970, já citado anteriormente na página 16 e na nota 2. 95 Ver nota 4. 96 Ver nota 3. 97 Conhecida também como Projeto GENTE, a escola experimental recebe alunos da favela da Rocinha do 7º ao 9º ano.

Trabalha com ensino por projetos, a partir de planos de ensino individualizados. É uma parceria da prefeitura do Rio

de Janeiro com a iniciativa privada.

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a equipe escolar decidiu tomar para si a tarefa de derrubar as paredes da escola,

literalmente.

as paredes entre as salas de aula foram derrubadas e transformaram-

se em quatro grandes salões de estudos, onde se agruparam estudantes

da mesma série. Nessa reorganização de tempos e espaços os

professores passaram a elaborar roteiros de estudos para os

estudantes, visando uma integração maior entre as áreas do

conhecimento através do planejamento coletivo (PPP, 2017).

Neste momento começou a ser desenvolvido o roteiro de estudos. Trata-se, como

veremos no próximo capítulo, de um material didático interdisciplinar que é o principal

dispositivo pedagógico na escola. A partir de então os alunos puderam organizar seu

próprio tempo na escola, pois os roteiros não têm prazo de entrega e podem ser realizados

na ordem que os alunos preferirem.

Nessa época, a escola e alguns equipamentos de educação infantil que ocupavam

o mesmo espaço, eram completamente cercados por muros que impediam o acesso a partir

de Heliópolis. Os estudantes eram obrigados a estender seu percurso, contornando o

terreno das escolas e entrando pelo lado do São João Clímaco, bairro urbanizado. A

mensagem era clara, quem vinha de Heliópolis não era bem-vindo. Também em 2007,

após repetidas recusas da Diretoria de Ensino do Ipiranga ao pedido de construção de uma

nova entrada, direta para Heliópolis, a comunidade derrubou parte do muro e construiu

outros dois acessos diretos à comunidade. O espaço, agora aberto para a comunidade, se

Figura 15: Braz Nogueira no momento da quebra das paredes que dividiam as salas de aula em 2007. Fonte: PPP CEU Heliópolis Profa Arlete Persoli.

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tornaria em 2009 o CCECH e mais tarde, em 2015, o CEU Heliópolis professora Arlete

Persoli:

nasceu a proposta de apropriação do espaço público localizado no

entorno da escola, com o objetivo de valorizar as culturas locais,

propiciar espaços de convivência, lazer e cultura para a comunidade

de Heliópolis celebrar as diferenças e socializar o saber. A partir desse

sonho, obtivemos mais uma conquista da comunidade organizada junto

com a escola, na construção do Centro de Convivência Educativa e

Cultural, CCEC-Heliópolis (CEU HELIÓPOLIS PROFª ARLETE

PERSOLI).

Hoje, o dia a dia dos alunos é em cinco grandes salões, dentro dos quais os

estudantes se sentam em grupos escolhidos por afinidade e trabalham com roteiros de

estudos interdisciplinares, com temas escolhidos coletivamente, no ritmo do grupo, sendo

encorajados a ajudar e pedir ajuda aos amigos.

2.2.1 Princípios da escola: entre o Bairro Educador e a Escola da Ponte

O projeto político pedagógico da EMEF Campos Salles intitulado “Cidadania:

uma questão de sobrevivência” dá grande ênfase aos princípios da escola: autonomia,

solidariedade, responsabilidade, ‘a escola como centro de liderança’ e ‘tudo passa pela

educação’. O documento é bem conhecido pelos professores, o que em si já é uma

diferença em relação ao que se observa na maioria das escolas, pois frequentemente o

papel do PPP é meramente burocrático. Neste caso, contudo, pauta de fato a ação

Figura 16 Entrada direta do CEU para Heliópolis Fonte: DW Brasil

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pedagógica e os objetivos educativos da escola, sendo frequentemente mencionado pelos

professores e pela gestão. Isto significa que a escola tem uma proposta própria e não

opera, como é muito frequente na rede pública, como mera executora das políticas e

propostas elaboradas somente pelo Estado ou até mesmo, em tempos de privatização da

educação, dos interesses do Mercado.

O intuito da escola é, segundo o documento, o de formar estudantes independentes

e capazes de tomar decisões levando em conta o bem-estar coletivo, além de seu próprio.

Defende-se também a formação integral e crítica do ser-humano, em consonância com o

projeto Heliópolis, Bairro Educador e o Projeto Político Pedagógico do CEU Heliópolis,

onde a escola se situa. O PPP cita muitas vezes Paulo Freire, em sua crítica à educação

bancária, na qual o papel do professor é o de ‘depositar’ certos conhecimentos nos alunos,

vistos como vazios, ‘‘em que a única margem que se oferece aos educandos é a de

receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los’’ (FREIRE, 1987, p. 33). O projeto

afirma que a escola que se busca é alinhada com a visão do educador, que propõe que o

trabalho pedagógico seja uma relação dialógica:

Um trabalho a partir da visão de mundo do educando é, sem dúvida,

um dos eixos principais sobre os quais se deve sustentar a prática

pedagógica de professoras e professores (...). O que proponho é um

trabalho pedagógico que, a partir do conhecimento que o aluno traz,

que é uma expressão da classe social a qual os educandos pertencem,

haja uma superação deste, não no sentido de anular este conhecimento,

ou sobrepor um conhecimento ou outro. O que se propõe é que o

conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e

significativo para a formação do estudante (FREIRE, 2001, p. 95-96).

Além da valorização do conhecimento prévio do aluno, o PPP também fala em

‘aprendizado significativo’, aquele que é construído coletivamente, o que também se

aproxima da perspectiva de Freire.

Mas como construir este conhecimento? Para responder a esta

questão, é preciso refletir sobre como os estudantes aprendem. Os

estudantes aprendem o que vivenciam. Se os estudantes convivem com

as consequências de seus atos — são responsáveis, corresponsáveis

pelo seu processo de aprendizagem — aprendem a se tornar

responsáveis. Se convivem com expectativas positivas, aprendem a

construir um mundo melhor. Se convivem com o respeito no trabalho

em grupo e nos salões compartilhados, aprendem a ter consideração

pelos outros. Se convivem com o apoio de educadores e de outros

estudantes, aprendem a apoiar e a se aceitar melhor. Se convivem com

a responsabilidade, aprendem a ser autossuficientes. Para que os

estudantes aprendam, não basta apresentar-lhes o conteúdo (MORAIS

et al, 2017).

Seguindo esse pensamento, o trabalho dos professores é centrado na ideia de

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mediação. Procura-se evitar que o professor explique algo, mas que facilite para o aluno

o processo de construção do próprio conhecimento, havendo assim a tentativa de colocar

em prática uma relação mais horizontal.

É preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é

necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao

contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção

explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz,

e não ao contrário, é ele que constitui o incapaz como tal (...). Explicar

alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não

pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a

explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido

em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e

imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos (PPP, 2017).

Assim, com esta tentativa de desconstrução da hierarquia professor-aluno, os

estudantes se tornam mais responsáveis pelo próprio processo de aprendizagem assim

como os de seus colegas. O trabalho em grupo e a construção coletiva do conhecimento

são as principais estratégias de aprendizagem na escola.

A EMEF compartilha dos objetivos do Bairro Educador, voltados principalmente

para a construção e fortalecimento de vínculos entre a escola e as pessoas e instituições

da comunidade. Objetiva-se construir uma “rede articulada de parcerias sólidas e

diversificadas” (PPP, 2017), e formar pessoas cidadãs, pois entende-se que assim

contribuiriam para a comunidade. Além disso, tem seus próprios objetivos, que dizem

respeito especificamente à relação com o saber que se espera que os estudantes

estabeleçam: “criar situações de aprendizagem que exijam o máximo de exploração por

parte dos estudantes, pesquisa qualificada e estimular novas estratégias de compreensão

da realidade e leitura de mundo” e que dizem respeito à luta mais ampla por uma

educação de qualidade:

Avançar no processo de construção de uma Escola Pública de

Qualidade com a participação de todos os segmentos, tornando-a viva

e capaz de receber as influências da comunidade e também influenciá-

la no sentido de colaborar com a vivência democrática e avanço do

processo educacional (PPP, 2017).

A noção de qualidade de educação na Campos Salles é apreendida a partir dos

princípios da escola, sendo que todos os cinco adquirem significado específico nessa

experiência escolar.

Os três primeiros princípios, autonomia, responsabilidade e solidariedade,

formam um tripé no qual se baseia toda a prática da escola. Os estudantes devem ser

autônomos, decidindo o que estudarão e quando, também devem ser responsáveis pelo

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seu próprio processo de aprendizagem e por suas ações na escola ao mesmo tempo que,

devem ser solidários, para que a construção do conhecimento seja coletiva. Nas palavras

de um estudante da escola:

autonomia você precisa saber cuidar de si, porque os professores têm,

além de você tem mais 69 alunos no salão, então se você não souber

cuidar de você os professores também não vão (...)os professores não

vão ensinar você a cuidar de você e eles também não têm essa obrigação

e que você precisa se formar como um ser humano e saber cuidar de

você. A responsabilidade ela meio que entra nisso, porque você tem o

roteiro na sua mão e você meio que não tem prazo para entregar aquele

roteiro, mas você precisa ter uma consciência de que você também não

pode ficar atrasado naquele roteiro, então a responsabilidade ela vem

como uma coisa também de você saber cuidar de si e você ter ciência das

suas… atitudes no cotidiano com as outras pessoas. A solidariedade vem

também que os três se encaixam, porque ela vem para pensar que você

não está sozinho no salão e você não está sozinho na escola e você nunca

vai estar sozinho, então ela vem para trabalhar a questão do trabalho

em grupo. Você pensar: ‘isso vai ser bom pra mim, mas será que se eu

fizer vai ser bom pro outro?’ e pensar, sabe, colocar as necessidades do

outro também primeiro do que as suas, (...) que a gente não está sozinho

na sociedade e que a gente nunca vai estar sozinho e isso é algo muito

bom porque estimula não só o nosso lado acadêmico (...) ajuda a gente

a criar a nossa personalidade e isso é algo muito legal que você só acha

na Campos Salles (Lincoln).

O estudante entrevistado acredita que a autonomia se aproxima da independência.

Formar para a autonomia seria, portanto, formar para que a pessoa tenha condições de

autodeterminação. A responsabilidade, conforme entendida por Lincoln, tem a ver com a

o cumprimento de obrigações, responsabilizar-se pelo que se faz, mas também com o

cuidado com as pessoas com quem se convive. A solidariedade seria pensar coletivamente

e exercitar empatia.

- Relações com a Escola da Ponte: sobre autonomia e solidariedade

Baseados na Escola da Ponte, os princípios de autonomia, responsabilidade e

solidariedade são frequentemente discutidos com os alunos e devem orientar as ações de

todos na escola. A Escola da Ponte é uma experiência portuguesa que começou o processo

de transformação de projeto e prática escolar em 1976 e apresenta as três características

que Mariana Wrege (2012) utiliza para descrever a ‘escola democrática’: “a gestão

participativa que inclui alunos, funcionários e professores, as relações não hierárquicas

entre adultos e crianças e a organização pedagógica como centros de estudos, que os

alunos definem suas próprias trajetórias de aprendizagem” (WREGE, 2012, p. 78). Com

muitos estudantes em situação de vulnerabilidade social, o projeto diferenciado tem tido

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há décadas sucesso do ponto de vista acadêmico. Ao mesmo tempo em que é uma escola

para a qual são mandados os ‘alunos problema’ é um espaço onde não se aceita violência

e os conflitos são resolvidos com diálogo.

A EMEF Campos Salles também se encaixa nessa definição de escola

democrática e se inspirou na experiência da Ponte, embora no que diz respeito ao

cotidiano haja muitas diferenças entre as duas. A distinção mais marcante é que na Ponte

a seriação foi abolida, de modo que não há qualquer divisão etária ou espacial. Os

estudantes, de todas as idades, decidem onde e o que trabalharão em seus grupos. Foi um

rompimento profundo com a organização tradicional, que abriu espaço para que no lugar

do tradicional se construísse coletivamente algo novo.

É necessário, portanto, levar em consideração os contextos das duas experiências

que levam a diferentes críticas, rupturas e práticas. Há também muitas semelhanças entre

as duas, como realização de assembleias, construção coletiva das regras de convivência e

do conhecimento, professor como educador-mediador, valorização do trabalho coletivo,

interdisciplinaridade, entre outras. Entretanto, cada uma dessas características se

apresenta de forma particular em cada experiência. Não há intenção de replicar o modelo

da Ponte em Heliópolis, justamente por ambas as escolas procurarem constituir suas

práticas firmadas em suas realidades particulares. Como Rui Canário analisa, uma

reprodução da experiência da Escola da Ponte sequer faria sentido:

A melhor maneira de aproveitar, de modo fecundo, a experiência da

Escola da Ponte é a de não encarar o seu contributo como uma solução

acabada e pronta a exportar. O que se fez e faz na Escola da Ponte

pode e deve ser apropriado por outros colectivos e reconfigurado

noutros contextos. Não pode ser exportado e muito menos copiado. A

sua principal virtude reside em mostrar que o problema da escola tem

um carácter indeterminado e admite uma pluralidade de soluções, cuja

pertinência é uma variável social e histórica. A procura de caminhos

alternativos não é axiologicamente neutra e, por isso, os problemas

educativos com que nos defrontamos são, no essencial, problemas de

fins e não de meios. A experiência da Ponte tem subjacente uma

articulação entre projecto educativo e projecto social (CANÁRIO,

2004, p. 24-25).

Isso significa que é possível aprender com a experiência do projeto diferenciado

português – que está em elaboração há duas décadas a mais do que o projeto estudado –

como fonte de ensinamentos, da mesma maneira que é possível que outras escolas olhem

para a própria Campos Salles. Mas isso não pode se converter em um modelo ou método

a ser replicado, sobretudo porque uma tentativa de alteração como esta está

profundamente relacionada ao contexto e ao projeto social na qual a educação está

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inserida.

A inspiração na Escola da Ponte é principalmente expressa pelo papel central que

é dado à comunidade, com o objetivo de trazer a realidade em que se vive para a escola

tanto como fonte de aprendizados, como maneira de fazer a crítica e transformar a

realidade.

Na Ponte, são considerados dois currículos, que se integram: o da

subjetividade e o da comunidade. O ser humano realiza-se no seio da

sua comunidade. Existe porque o outro existe e a sua liberdade começa

onde começa a liberdade do outro. A matriz axiológica de um projeto

assim contém valores como a solidariedade, pressupõe a manutenção

de uma cultura onde a responsabilidade social não é mera palavra de

enfeitar o texto de um PPP (PACHECO, 2016, p.13).

No que diz respeito à prática, a influência da experiência da Ponte no caso

estudado pode ser entendida pela análise dos princípios que se empresta do caso

português: autonomia, solidariedade e responsabilidade. A autonomia, talvez a principal

palavra de ordem em ambas as experiências, se dá na Ponte de maneira mais radical. A

escola é gerida pela comunidade, rompendo com a burocracia estatal e abandonando até

mesmo a figura do diretor.

Na Campos Salles, autonomia é uma palavra muitas vezes estrangeira para os

alunos e são poucos os que conseguem definir seu significado. Ainda assim, o conceito

se expressa no cotidiano dos alunos, quando eles podem definir como será o próprio dia

na escola e como realizarão a pesquisa dos conteúdos dos roteiros. Esta vivência da

autonomia é descrita frequentemente pelos estudantes como liberdade. “Filosoficamente,

o conceito de autonomia confunde-se com o de liberdade, consistindo na qualidade de

um indivíduo de tomar suas próprias decisões, com base em sua razão individual” (PPP,

2017). Assim, ao serem menos tutelados os estudantes da Campos Salles teriam espaço

para determinar o próprio processo de aprendizagem.

O PPP nota que a autonomia, assim como a liberdade, ultrapassa a capacidade de

tomar as próprias decisões: “O indivíduo autônomo interroga, reflete e delibera com

liberdade, responsabilidade e solidariedade. Ele não aceita obedecer e seguir aquilo que

foi construído e pensado pelo outro sem a sua participação” (PPP, 2017). De modo que

há, na concepção da escola, uma dimensão crítica no conceito de autonomia que pode se

expressar na reflexão e participação.

Para um aluno da Campos Salles toda regra deve fazer sentido e ser decidida

coletivamente, ou seja, ser objeto de reflexão e de participação. Um exemplo, a proibição

do uso do boné, praxe na maioria das escolas, é uma regra arbitrária que não é construída

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coletivamente. Os estudantes da escola questionaram a proibição, por entenderem que

não acrescentasse nada ao cotidiano escolar exceto uma censura estética98. Assim, hoje o

uso do boné não só é liberado na escola como é comum. Este caso, específico, expressa

uma postura mais ampla em relação à autonomia:

Compreendemos que a autonomia se dá no mundo, e não apenas na

consciência dos sujeitos. Nesse sentido, sua construção envolve o poder

de determinar suas próprias regras e objetivos e também a

capacidade/condição de realizá-los: o pensar autônomo precisa ser

também um fazer autônomo. (...) a autonomia não vem com o

consentimento das autoridades governamentais, como explica Braz,

sobre a derrubada das paredes da EMEF Presidente Campos Salles:

"se eu fosse pedir autorização para tirar as paredes eu nunca iria tirar

as paredes". Essa aparente 'desobediência' está ancorada na

concepção de que as proposições políticas devem partir do movimento

social da localidade, com a participação direta dos atores sociais

implicados (SANTIS, 2014, p. 98-99).

A luta popular, como acontece em Heliópolis, está muito relacionada a esta noção

de autonomia, e isso se reflete no projeto da Campos Salles. Assim como defendido por

Pacheco (2016), a autonomia entendida nesta escola tem um caráter coletivo. Difere,

portanto, tanto da liberdade individual sem limites, quanto do egoísmo e do abandono.

“Ninguém se constitui como sujeito na solidão, este se constitui pelo contato entre os

seres humanos, pois as ações individuais no cumprimento dos deveres devem

salvaguardar a liberdade própria e a do outro” (PPP, 2017).

O papel da escola na construção da autonomia do estudante seria, assim,

principalmente, o de oferecer condições para a autodeterminação contextualizada

socialmente. Deve-se garantir condições para constituição da autonomia antes de

responsabilizar o aluno por seu próprio aprendizado. Há perigos envolvidos no discurso

de autonomia e responsabilidade, especialmente quando considerada a agenda neoliberal.

Pode-se acabar sobrecarregando os alunos com a responsabilidade pela própria educação,

reduzindo cada vez mais o papel do professor ao mesmo tempo em que forma o ‘cidadão

produtivo’ (FRIGOTTO, 2007), aquele que demanda cada vez menos para reproduzir sua

força de trabalho. Além disso, um modelo escolar no qual se pode aglomerar grande

número de crianças responsabilizadas umas pelas outras pode encorajar a diminuição do

número de professores, o que se relaciona com o momento que vivemos, de

98 Podemos criticar esta regra também no sentido de que se trata de censurar uma estética periférica. Há uma associação

preconceituosa, e corrente na escola, entre boné, símbolo do hip hop e da cultura periférica, ao crime. Assim,

acreditamos que ao reivindicarem algo tão simples como o uso do boné os estudantes estão, também, exigindo espaço

para a própria expressão cultural na escola.

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desvalorização da docência ao ponto em que se defende que qualquer pessoa, mesmo sem

formação pedagógica possa ser professora, desde que tenha notório saber99.

O entendimento que se dá ao princípio de ‘responsabilidade’ no PPP é o de

responder pelos próprios atos. “É responsável o indivíduo que aceita e repara as

inevitáveis consequências de seu comportamento. Antes de agir reflete, pois responde

por seus atos e não quer provocar danos que não pode reparar ao outro e a si mesmo”

(PPP, 2017). Sendo assim, trata-se de uma responsabilidade também diante de seus

pares, de modo que se afaste do individualismo. É necessário que haja responsabilidade

também em relação a construção do projeto, que é coletiva. É neste ponto que se a

responsabilidade se relaciona com a solidariedade. Canário entende que a solidariedade

tem papel preponderante na Escola da Ponte. “O sucesso dos alunos depende da

solidariedade exercida no seio de equipas educativas, a qual facilita a compreensão e a

resolução de problemas comuns” (CANÁRIO, 2004, p.76). O mesmo se dá na Campos

Salles, pois sem solidariedade, o que deve incluir o cuidado com os colegas, o grupo de

alunos não pode romper com a lógica capitalista da atomização de estudantes. Se não

trabalharem juntos, serão alunos individualizados, estudando separados embora sentados

em uma mesma mesa. É necessário que haja vontade de troca, ajudando e sendo ajudado,

para que o trabalho coletivo se constitua como tal.

No texto do PPP, procura-se diferenciar ‘solidariedade’ de ‘bondade’, sendo a

primeira entendida como um processo de libertação social. Diferente da bondade,

solidariedade não é uma qualidade nata, mas algo que se aprende e se ensina. Não é

somente ajudar o outro, mas ter empatia e uma postura coletivista. Seria também condição

sine qua non para a construção de uma ordem social mais justa.

A solidariedade é um processo dialético que possibilita o

desenvolvimento do potencial humano e dele se nutre. Sendo assim, ela

é fundamental para a construção de uma ordem social cada vez mais

justa, na qual as tensões possam ser mais bem resolvidas e os conflitos

encontrem mais facilmente sua solução por consenso (PPP, 2017).

A solidariedade seria, portanto, diferente do altruísmo ou da caridade. Seria

construção coletiva e ajuda mútua a partir da inversão da lógica individualista. Não se

99 “Recentemente temos acompanhado em nosso país um movimento de deliberações do Conselho Nacional de

Educação que afetam diretamente os cursos de formação de professores, o recrutamento de profissionais sem formação

educacional, em que a atuação como professor passa a ser divulgada como um bico, um complemento de renda para

profissionais de outras áreas. Ao mesmo tempo, vemos a liberação para contratação de pessoas com notório saber,

prevista na lei da reforma do ensino médio brasileiro” (ZAN, Dirce; MAZZA, Débora. Formação de professores no

contexto atual: os desafios apontados pelo Professor António Nóvoa. In: KRAWCZYK, Nora (org.). Escola pública:

tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas FE/UNICAMP; Uberlândia, MG: Navegando, 2018).

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trata de abnegação, mas de uma partilha que tem o efeito de desenvolver o potencial de

todos os envolvidos.

Mais um ponto em que a Campos Salles se inspira na Ponte é a centralidade da

ideia de democracia. Isto não ocorre somente nestas escolas, havendo um movimento que

se intitula ‘escolas democráticas’, como veremos. Democracia é entendida, na escola,

como a prática de dar espaço para que todos e todas opinem, formulem e critiquem

coletivamente as normas de convivência, definam o que aprenderão etc. Tanto na Ponte

quanto na Campos Salles há assembleias, realizadas principalmente em momentos de

tomada de decisões que afetarão a todos.

Na Campos Salles esta prática surgiu com a vontade de trabalhar a formação

política dos alunos, mas também como um exercício de diálogo. As assembleias podem

resolver problemas e tomar decisões, como o tema da Mostra Cultural de cada ano, os

temas dos roteiros, ou sobre o uso do celular durante as aulas ou se a saída do CEU durante

o intervalo das aulas deve ser liberada ou não.

Existe ainda a república da escola, na qual há cargos como vereadores, secretários

e prefeitos, eleitos através de votação, como uma reprodução da estrutura da política

institucional. Assim, entende-se que a principal característica que se atribui à ideia de

democracia é a de participação. Ser democrático envolve permitir que as crianças

participem do processo de tomada de decisão e uma das intenções desta pequena república

foi a de oferecer mais um espaço para que os estudantes se integrassem e pudessem opinar

na gestão da escola. Entretanto, há também nessa prática uma ideia de hierarquia. A

participação é mediada pelos mesmos mecanismos burocráticos que a política

institucional nacional. Quem participa de fato é a parcela eleita, mediante votação e

campanha eleitoral. Ser eleito oferece um certo status social, pois implica uma

popularidade na escola. Além disso, as pessoas eleitas que formam um grupo à parte do

resto da escola e acabam concentrando certo poder, alienando o resto da escola dessas

decisões. A réplica reduzida da política institucional consegue produzir o mesmo efeito

que realiza em nível nacional, afastar as pessoas da política em si.

Deste modo, ainda que haja uma noção de democracia semelhante à grega antiga,

associada à participação e representação direta, expressa na assembleia, há também esta

instância de aprendizado dos mecanismos burocráticos da política brasileira. Entende-se,

portanto, que a formação política que se pretende na escola, assim como a noção de

democracia, inclui esta espécie de ‘treino’ para a política institucional.

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- ‘A escola como centro de liderança’ e ‘tudo passa pela educação’

Os outros dois princípios, ‘A escola como centro de liderança’ e ‘tudo passa pela

educação’, são mais voltados para guiar a prática docente, a gestão da escola e a

articulação da escola com a comunidade, no sentido proposto pelo projeto do Bairro

Educador.

‘A escola como centro de liderança’ reivindica que a escola pública volte a

assumir um papel que teria abdicado. Segundo o PPP, a escola estatal ao pretender-se

neutra se afasta da realidade dos alunos, “com o pretexto de que cuida dos ‘assuntos

educacionais’, distanciou-se da realidade social, passando a trabalhar, então, com

conteúdos e a visão de um estudante descontextualizado” (PPP, 2017, p. 19). Este é um

princípio que deve reger a postura da gestão escolar, ou seja, esta escola se propõe a tomar

para si as questões da comunidade, e a luta por transformação social, abandonando a

suposta neutralidade das instituições estatais, particularmente da escola, para posicionar-

se ao lado dos trabalhadores.

O que se propõe de fato é o fortalecimento da relação Escola-

Comunidade, onde a escola como um centro de liderança

comprometido com o saber e juntamente com as outras instituições e

lideranças da comunidade, possa quebrar as amarras que aprisionam

todos às estruturas sociais pré-determinadas (PPP, 2017, p. 20).

Isto significa não somente que as pessoas que vivem de fato a escola devem definir

seu funcionamento, mas que também possam direcionar sua função e seus objetivos,

como vemos em Santis (2014):

O princípio de que a escola deve ser um centro de liderança na

comunidade onde está inserida demanda uma gestão profundamente

articulada com as lideranças estabelecidas na localidade, que atue na

direção apontada por esse coletivo, e não apenas na administração de

um bem público, de forma legalista (SANTIS, 2014, p. 99).

A formulação deste princípio remete à forma de organização popular tradicional

baseada em lideranças. Ainda que haja instâncias participativas como assembleias, muito

da política em Heliópolis se dá pela representação do povo em lideranças que se

constituíram historicamente na comunidade. Santis demonstra como esta forma de

organização se deu de forma concomitante com a ocupação de Heliópolis:

Durante a década de 1980 e início dos anos 90, a organização política

da comunidade se dava por representação em núcleos: cada região de

Heliópolis elegia suas lideranças e, juntas, elas se agregavam na Rua

da Mina, para somar forças e reivindicar políticas públicas para a

área. As muitas vezes tinham pontos de vista antagónicos sobre as

demandas da população e as possibilidades de atuação política,

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revelando um mosaico de ideologias (SANTIS, 2014, p. 44).

Atualmente essas pessoas reconhecidas como lideranças têm imensa força

política. Suas histórias de vida e luta são reconhecidas como centrais para a transformação

da favela e por isso seus posicionamentos carregam muito peso entre os moradores.

Entretanto, não encontrei lideranças que criticassem ou fossem desvinculadas da

UNAS100 o que transmite à organização essa força política.

Na Campos Salles, além de se valorizar a atuação das lideranças, defende-se uma

organização democrática, horizontal e participativa, postura essa também defendida pelas

lideranças e pela UNAS. Essas duas perspectivas, política representativa através de

lideranças e democracia participativa direta, ainda que contraditórias, estão presentes na

escola em mecanismos como a república, baseada em representatividade, e assembleia,

baseada em democracia direta.

‘Tudo passa pela educação’ é um princípio que diz respeito à formação política

que se propõe na escola. Afirma-se aí que não há nada que não seja assunto da educação.

Não há tema que seja tabu na escola, ou hierarquização de conteúdos. É uma postura que

os educadores da escola devem ter, de luta por transformação social. Assim, se aproxima

do princípio anterior ao pretender-se uma tomada de posição, agora por parte dos

educadores.

Tudo passa pela educação quando o educador da escola é cidadão. Ele

busca não só a mudança da escola, mas também a mudança da

sociedade, juntamente com os outros agentes educativos que não estão

dentro da escola. Sabe que a escola e a sociedade mudam juntas.

Interage com o estudante contextualizado, pois é portador de uma visão

de mundo, que leva em consideração as estruturas políticas,

econômicas, históricas e culturais que moldam os sujeitos. Ajuda o

estudante a perceber que a sociedade que não atende aos direitos

referentes à vida, à saúde, à moradia, à alimentação, ao conhecimento,

à construção de valores humanos, da ética etc., compromete os outros

direitos, até mesmo o direito à educação (PPP, 2017, p. 20).

Um conceito que não é colocado como um princípio da escola, mas que é central

para a sua prática, é a ‘cidadania’, entendida não somente como o conjunto de atitudes

de boa convivência comumente associados a esta palavra – tais como o voto, respeito às

leis, consciência no trânsito - mas principalmente como uma tomada de posição e

100 Não afirmo, com isso, que todas as lideranças atuais de Heliópolis estejam associadas à UNAS. A pesquisa não teve

este olhar e, portanto, não tenho dados para fazer qualquer afirmação relativa a isso. O que noto aqui é, somente, que

ao longo do meu período de campo não encontrei, pessoalmente ou por via documental, qualquer pessoa que fosse

considerada liderança que não estivesse ligada à UNAS. Na análise documental referente à ocupação de Heliópolis

encontrei a figura de João Prefeito (falecido em 2017), que se opôs à UNAS nos anos 90, mas posteriormente trabalhou

juntamente à organização.

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engajamento político, a favor dos trabalhadores. O PPP da escola coloca como objetivo

pedagógico que o aluno possa:

Compreender a cidadania como participação social e política, assim

como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando,

no dia a dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às

injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito

(PPP, 2017, p. 60).

Portanto, mais do que uma pessoa que obedece as leis, o cidadão descrito pelo

projeto é engajado politicamente “O educador-cidadão não fala bem ou mal da luta do

povo pelos direitos, ao contrário, assume-a como sua, pois quer educar e ser educado na

ação, com os outros, na busca da melhoria da qualidade de vida” (PPP, 2017). Explicita-

se aqui que o educador-cidadão é parte da luta do povo, portanto é povo e luta. Entretanto

a luta que se pretende é ‘pelos direitos’, ou seja, mantem-se o caráter institucional da

cidadania. Busca-se a melhoria das condições de vida dentro do sistema democrático

estabelecido. Ser cidadão seria, portanto, militar pela melhoria das condições de vida do

povo sem, necessariamente questionar ou transformar a estrutura política democrática

vigente.

- Percepção do projeto na comunidade: Que escola se quer?

A escolha de estudar na Campos Salles, para muitas famílias, se dá pautada na

percepção de que é uma escola mais segura. Manu explica que saiu da escola anterior:

“Porque era muita bagunça lá, todo dia de rebelião”, vendo a Campos Salles como um

lugar menos violento. Tadeu conta que mudou para esta escola por ter sofrido bullying na

escola anterior, e acreditar que na Campos Salles isso não aconteceria, mas que a decisão

sofreu muitas críticas de conhecidos, que diziam ser uma escola ruim. Quando perguntado

sobre o porquê das críticas, o menino responde: “Por quê? Aqui, acho que pelo motivo

de ser livre. Meu primo já não gostava por causa do ensino, porque falava que aqui o

ensino era muito ruim” (Tadeu). Ainda assim, a escola tem lista de espera para matrículas.

Juliana também mudou para a Campos Salles por ter tido problemas com violência na

escola anterior, mas sua mãe escolheu esta escola também por gostar do projeto:

Os meus primos, eles estudavam aqui e tipo, sempre tinha

oportunidades pra eles sabe? Quando eles estudavam aqui tinha,

mano, as coisas da comissão, e eles gostavam de tudo isso sabe? E

comissão, por exemplo, é uma coisa que é uma responsabilidade. E eles

gostavam muito e eles traziam tudo que acontecia lá eles falavam ‘ah

aconteceu isso, isso e aquilo’. Minha mãe achava muito legal. Ela

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achava a segurança, por mais que a gente saísse na hora do intervalo

ela achava a segurança boa e tudo mais. E o estudo também. Que, tipo,

ela via que os meus primos eles são muito inteligentes e tudo mais. E aí

ela achou que aqui era bem muito bom e aí ela tentou me colocar aqui

(Juliana).

Já os alunos que estudaram por todo o ensino fundamental na Campos Salles,

quando perguntados sobre o que sabiam das outras escolas da região criticaram a

violência, a evasão e o que chamaram de ‘falta de compromisso’ tanto por parte dos

alunos quanto por parte dos professores:

Tem esse negócio de tipo assim, o professor falta, aí a sala inteira sai

mais cedo, sabe? Na [outra escola da região] tem muito isso, tem gente

que vai pra escola às sete horas e nove horas já está saindo porque

faltou professor! Acho que isso é muito errado, atrapalha muito no

estudo do aluno e no futuro dele mesmo (Fabi).

Esta suposta falta de compromisso muitas vezes é reflexo das condições materiais e de

trabalho que existem em muitas escolas.

Muitos estudantes, tanto alguns que estudaram desde o primeiro ano na Campos

Salles quanto outros que estavam na escola há menos tempo, também criticam, com suas

palavras, a concepção de educação que observam em outras escolas, dizem que os alunos

são “tratados como robôs” e que não podem se expressar e tomar decisões sobre o que

estudar.

Essas críticas indicam que ao olharem para ‘as outras escolas’, os estudantes não

veem a escola que desejam. Ainda que critiquem o projeto da Campos Salles,

principalmente por alguns acreditarem que é desorganizado e precisa de mais disciplina,

todos tinham críticas às ‘outras escolas’ que não viam repetidas em sua escola. Isso nos

faz pensar que, independente das limitações do projeto, algo de diferente está sendo criado

aqui.

A escola pública que desejo é a escola na qual tem lugar destacado a

apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação

dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a

criar; onde se propõe a construção do conhecimento coletivo,

articulando o saber popular e o saber crítico, científico, mediados

pelas experiências do mundo (FREIRE, 2001, p. 96).

Assim, estamos vendo aqui um projeto mais próximo da escola almejada por Freire, mais

próxima do povo. Mas que escola é esta que se está negando aqui? Mais do que a forma

escolar em geral, o que os estudantes criticam é a forma sucateada em que se apresenta a

escola pública brasileira.

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2.3 O significado da escola pública numa favela

Que função tem uma escola pública que funciona em uma favela e é frequentada

por seus moradores? Como vimos, o Bairro Educador ao mesmo tempo em que critica o

formato que a escola toma, também vê na educação escolar – assim como na educação

não-escolar – uma solução para diversos problemas, entre eles a deteriorada condição

material de vida da classe trabalhadora. Mas é possível a escola se responsabilizar pelo

combate à desigualdade? Como se dá esse nexo entre a escola pública brasileira e a

pobreza?

Esta noção de escola como espaço de solução das desigualdades sociais se articula

com o discurso que Cunha (2011) chama de ‘entusiasmo pela educação’. É a defesa

apaixonada da escola como força redentora que, segundo o autor, acaba por invisibilizar

os processos históricos que mantiveram a classe trabalhadora fora da escola, como nosso

modo produtivo, a escravidão etc.

O caráter dissimulador desse entusiasmo, a ponto de obscurecer os

verdadeiros problemas que impediram a escolarização das grandes

massas, no Brasil de ontem, e a permanência e a progressão delas nas

escolas do Brasil de hoje. A valorização mágica da educação como

panaceia social transparece dos resultados da pesquisa de Elisa Reis

(2000) sobre a percepção das elites brasileiras sobre a pobreza. Elas

atribuíam à falta de educação do povo a responsabilidade pela maioria

dos problemas do país, um artifício conveniente para não abrir mão de

seus privilégios (CUNHA, 2011, p. 605).

Pensando a relação entre educação básica e pobreza, Eveline Algebaile (2009)

apresenta um quadro da escola pública brasileira depois das reformas educacionais do

governo Fernando Henrique Cardoso, que, segundo a autora, tem como marca a

transferência para a escola de tarefas assistenciais que eram originalmente de competência

do Estado. Partindo das relações postas entre escola pública elementar, Estado e pobreza,

Algebaile adota uma visão dialética, não entendendo a crise da educação e a pobreza

como fenômenos individuais que se cruzam, mas como realidades sociais

retroalimentadas.

Num país como o Brasil, onde a pobreza, não sendo residual nem

transitória, é tratada permanentemente como se o fosse, e onde o nível

de ensino mais elementar atravessa todo um século sem jamais

completar sua saga de universalização, é válido pensar que a escola

pública e a pobreza se fazem, a ponto de suas histórias resultarem em

boa parte, de um profundo e mútuo atravessamento (ALGEBAILE,

2009, p. 26).

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Em sua análise, a autora consegue apontar indícios de que a escola

responsabilizada pela gestão da pobreza, contudo, não é exclusiva do governo FHC e

acaba por constituir um traço fundante da escola pública brasileira. Assim, ela apresenta

a tese de que:

a escola pública elementar, no Brasil, tendo em vista as funções de

mediação, que passa a cumprir para o Estado, em suas relações com

os contingentes populacionais pobres, tornou-se uma espécie de posto

avançado, que permite, a esse Estado, certas condições de controle

populacional e territorial, formas variadas de negociação do poder em

diferentes escalas e certa “economia de presença” em outros âmbitos

da vida social (ALGEBAILE, 2009, p. 26).

A autora continua a desenvolver a tese da “expansão para menos”, isto é, de que

a suposta expansão do ensino, apesar de alcançar mais pessoas, significa menos ensino e

é também a expansão da esfera de atuação da escola. Marília Sposito (2008) também

aborda este processo ao questionar a tão discutida perda de qualidade da escola. É uma

perda da perspectiva dos grupos que já tinham acesso à escola pública, por outro lado,

para quem nunca tivera acesso à escola, ganhou-se o direito ao acesso sendo que o direito

à educação permaneceu negado (CATINI, 2013). É necessário, segundo Sposito (2008),

discutir a diferenciação de acesso a direitos sociais baseada em classe e a qualidade dos

direitos que são acessíveis à classe trabalhadora. Há um aumento numérico das pessoas

que frequentam a escola, mas a função educativa desta escola sofre uma severa perda

qualitativa. Aumenta-se a oferta de vagas e as tarefas da escola passam a incluir

alimentação e assistência social, entre outras, que originalmente seriam atribuídas ao

Estado o que faz com que o caráter formativo da escola fique de lado. Certamente, a

escola é do Estado, mas não pode ser confundida com ele. Tem funções específicas a

serem realizadas e ao assumir aquelas que não são de sua alçada coloca em risco a

qualidade e efetividade daquilo que é propriamente educativo. Assim, a expansão escolar

assume uma configuração complexa, nas palavras de Algebaile, que considera que a

expansão da esfera escolar “implica perdas incalculáveis em termos do direito à

educação e de outros direitos sociais” (2009, p. 26).

Um fator agravante é que ao delegar a gestão da pobreza, as tarefas do Estado não

são resolvidas. A escola não é de maneira alguma equipada para enfrentar todas as

consequências psicológicas, físicas e sociais da pobreza, ainda mais quando é deixada de

segundo plano na agenda estatal, como sempre tem sido a escola brasileira. Não é realista

esperar que a escola cumpra com estas tarefas de maneira digna. O principal motivo da

transferência de tarefa é transferir, também, a culpa pela impossibilidade de dar conta de

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tantas tarefas não educativas. Assim, a escola falha em atender às demandas não-escolares

dos alunos, que são também responsabilizados por diversas carências que podem vir a ter

pela omissão do Estado capitalista. O Estado em si, e o próprio sistema capitalista, que

necessita da pobreza não são questionados.

Quanto às “tarefas” que migram para a escola, convém ainda esclarecer

que não se trata necessariamente de ações concretas plenamente

realizadas. Em geral, são arremedos de ação, cujos efeitos principais são

o deslocamento do ensino de sua posição central na escola e a

dissimulação da ausência e das omissões do Estado, de maneira a

parecer que problemas sociais econômicos e de saúde, entre outros,

decorrem da “carência educacional e cultural do povo (ALGEBAILE,

2009, p. 27).

Algebaile (2009), entretanto, recusa a ideia de que a escola seja inteiramente

determinada por políticas públicas de um ou outro governo. As políticas tendem a ter

alguma continuidade, mas, além disso, a instituição escolar é constituída social e

historicamente através da complexa fusão, em alguns pontos essenciais, de projetos em

princípio distintos e mesmo antagônicos (p. 28). Desse modo, a escola que chega aos

pobres não é a escola que deu errado. É uma escola que também é feita por profissionais,

comunidade e estudantes engajados na ação educativa, na esperança de ascensão social

ou na luta por transformação social e no combate a vários tipos de desigualdades. Se ela

falta em muitos aspectos, isto não é necessariamente incapacidade de realização de um

ou outro projeto, mas sintoma desta constituição histórica em meio a conflitos de

interesses.

Por outro lado, a escola que chega aos pobres também não pode ser

compreendida “em negativo”, como mero resultado do malogro de

projetos. Ela deriva, em boa medida, de certa funcionalidade que

adquire para o Estado brasileiro em formação. O “insucesso” de

projetos, a insuficiência de investimentos, o descompasso entre

quantidade e qualidade, entre outros aspectos, não são causas da não

realização, no Brasil, de uma escola pública próxima à que se formou

nos países de capitalismo avançado, mas expressões do lugar

secundário que as funções educativas ocupam na formação da escola

pública brasileira, tendo em vista o papel que ela passa gradualmente

a assumir na gestão da pobreza (ALGEBAILE, 2009).

Esta perspectiva se aproxima da célebre frase de Darcy Ribeiro: “A crise da

educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. A crise da educação não se atribui à

incompetência, ou atraso, mas à vontade política. Ao mesmo tempo que há atores que

buscam construir uma educação para o povo, as classes dominantes a disputam para seus

interesses próprios. Gaudêncio Frigotto (2006) nota que, ainda que seja vista como uma

“conquista crescente dos trabalhadores" a escola "tem sido em grande parte neutralizada

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pela articulação estrutural da escola com os interesses e valores burgueses"

(FRIGOTTO, 2006, p. 203), isto é, a conquista do povo não tem o efeito esperado de

melhoria de condições de vida e atende aos interesses de classes dominantes.

Isso se nota também na constatação de que há cada vez mais maneiras de

transformar a escola, pública, em fonte de lucro. Vivemos um momento em que o

mercado tem cada vez mais poder sobre a agenda educacional, como se pode perceber

com a mercantilização do livro didático, sendo o PNLD101 um mercado lucrativo, e no

aumento do uso de sistemas apostilados, também muito lucrativos, inclusive em redes

públicas. Teresa Adrião et al. analisam este fenômeno concluindo que:

As empresas vendedoras tendem a determinar não só os conteúdos a

serem desenvolvidos pelos professores, mas também determinam os

tempos de trabalho escolares, as rotinas e a própria metodologia do

ensino. A aceitação tem sido grande. A propaganda apresenta os

sistemas de ensino como trazendo para as redes públicas o sucesso das

escolas privadas, que usam a mesma marca, mesmo que incompleta

(ADRIÃO et al., 2009, p. 812-813).

Esta organização da escola proposta pelas empresas não tem como maior preocupação a

função educativa e a qualidade da educação oferecida. O interesse do setor privado

envolvido na educação pública é, como não poderia deixar de ser, o lucro, e o Estado, ao

facilitar a atuação privada na escola pública, se posiciona no mesmo sentido

secundarizando a qualidade da educação também em prol de uma aparência de sucesso.

Hoje se diz que a educação é o grande motor do desenvolvimento e que

a universidade é para todos. Parece importar menos que os alunos

cheguem à 5ª série do ensino fundamental sem saber ler ou sem

compreender o que leem; que os “incluídos” em qualquer faculdade

chamada de universidade recebam diplomas sem correspondência na

formação profissional prometida; importa que os números cresçam e

façam o país chegar mais perto dos países desenvolvidos, ao menos nas

estatísticas (CUNHA, 2011, p. 605).

Ainda assim, Algebaile, retornando à sua consideração de que cada escola é

também o grupo de pessoas que a vivem efetivamente, afirma que “as formas históricas

assumidas pelas instituições são irredutíveis aos projetos a elas dirigidos”

(ALGEBAILE, 2009, p. 28), assim, a escola pública vai muito além dos projetos e

interesses que a envolvem e pode sim proporcionar experiências educativas que priorizam

as demandas do povo, por serem construídas coletivamente, diariamente, por pessoas que

tem seus próprios objetivos.

101 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) avalia e distribui gratuitamente livros didáticos nas escolas

públicas brasileiras através da realização de acordos com editoras.

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Ainda que a escola que chega à classe trabalhadora não seja aquela que se quer,

isso não diminui sua importância e potencial de impacto social. Foi por valorizar este

trabalho político que Paulo Freire defendia a expansão do acesso à escola pública, ainda

que a ela dirigisse duras críticas, acreditando ser possível transformá-la por dentro, desde

que se invertesse o sentido do trabalho pedagógico, partindo da realidade de seus alunos

e mirando em suas demandas:

Continuo afirmando que o povo tem necessidades e expectativas com

relação à escola. As escolas e equipes que trabalham em diferentes

instâncias da Secretaria Municipal de Educação precisam conhecer

essas necessidades e expectativas e considerá-las no processo que

desencadeará a transformação da escola (FREIRE, 2001, p. 97).

É, o caso da Campos Salles, muito influenciada por Paulo Freire nos primeiros

momentos de transformação de seu projeto, até pela atuação do educador na Secretaria

Municipal de Educação de São Paulo. A escola se insere na defesa que o autor faz de uma

escola pública que fosse tomada pelo povo e transformada com um projeto próprio. Ainda

assim, não deixa de ocupar uma posição contraditória.

Essa escola se coloca como uma alternativa à escola pública sucateada em geral,

mas ao fazer isso assume para o próprio projeto uma aura solucionadora. É como se a

escola tradicional já tivesse se provado ineficaz, mas este novo projeto ainda tivesse

chances de produzir uma nova escola redentora. Ou seja, mais do que responsabilizada

pela gestão da pobreza, como escola pública frequentada por estudantes pobres, a

Campos Salles assume também a responsabilidade de solucionar desigualdades sociais102,

resolver a questão da violência e os problemas escolares do país.

Parece uma armadilha teórica acreditar que a instituição escolar não resolveu os

problemas do Brasil até hoje somente porque não encontrou o projeto certo, armadilha

esta que levaria a uma constante busca por inovações pedagógicas como fonte de

transformação social, desviando os educadores, estudantes e grande parte do povo da luta

popular. Cabe ainda lembrar que, se tem sido apoiada por governos, como veremos na

seção seguinte, cabe refletir que também neste projeto diferenciado, a escola pode ser útil

ao Estado e apropriada por ele, ainda que seja construída pelo povo.

102 Quanto à possibilidade de ascensão social e destino dos egressos da Campos Salles no que diz respeito a vagas de

trabalho, remuneração e condições de vida, não temos dados, posto que este levantamento, ainda que seja de extrema

relevância, não cabia no escopo da pesquisa.

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2.3.1 A organização das escolas da prefeitura de São Paulo

O projeto aqui estudado se insere na rede municipal de educação da cidade de São

Paulo, o que teve, certamente, profundos efeitos na escola. É o que discutiremos nesta

seção. Desde os anos 90, quando se inicia o processo de transformação do projeto da

Campos Salles, São Paulo teve gestões municipais muito diversas. Isso influenciou a

organização das escolas e o sentido das políticas educacionais.

Uma das bases que permite a existência da Campos Salles hoje, foi lançada na

gestão de Luiza Erundina (1989 – 1993) na prefeitura, que teve Paulo Freire como

secretário da Educação (SME/SP), seguido por Mario Sérgio Cortella. Em Heliópolis, em

particular, esta gestão deixou o legado direto do, ainda atuante MOVA (Movimento de

Alfabetização de Jovens e Adultos).

Santis afirma que o direito à educação passou a ser fortemente pautado em

Heliópolis também nesta gestão. “Nesse governo, as classes populares foram incluídas

no processo de requalificação das políticas públicas pensadas pelo poder público”

(SANTIS, 2014, p.73). A autora também resgata depoimentos de moradores sobre o

MOVA, nos quais se afirma que até então a grande pauta em Heliópolis era moradia e

urbanização, pois nem se pensava na possibilidade de uma educação para o povo, que

passou, então, a ser prioridade.

Paulo Freire considerava os maiores avanços conquistados em sua gestão na

SME/SP: “o maior avanço no campo da autonomia da escola, foi o de permitir, no seio

da escola, a gestação de projetos pedagógicos próprios que, com o apoio da

administração, possam acelerar a transformação da escola” (FREIRE, 2001, p. 91)103.

Desta forma, esta gestão da secretaria municipal de educação abriu caminhos para que

projetos de alterar o funcionamento da escola se fortalecessem.

Erundina, que assumia a prefeitura logo após a abertura democrática, teve um

mandato voltado para a valorização da escola pública e uma educação que atendesse aos

interesses populares. Não por acaso apontou Paulo Freire como secretário, conhecido por

seu engajamento com a educação popular. Freire (2001) descreve como priorizou em sua

gestão a criação de mecanismos de participação nas escolas, mencionando o trabalho

realizado com a UMES (União Municipal de Estudantes Secundários) para o

estabelecimento de grêmios nas escolas e a valorização dos conselhos escolares. Outra

prioridade foi a formação de professores, que tinha como um dos eixos centrais pensar “a

103 Tradução minha da edição mexicana.

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fisionomia da escola que se quer” (FREIRE, 2001).

Neste período então que se implantou o sistema de ciclos na prefeitura de São

Paulo pela primeira vez. As séries escolares passaram a ser vistas não individualmente,

mas em conjuntos, chamados de ciclos, tendo cada um destes um objetivo pedagógico

específico. Uma das maiores, e mais conhecidas, mudanças trazidas por este sistema é

que só permite que o aluno seja retido no ano final de cada ciclo. Para Jacomini, o objetivo

do sistema ciclado é “assegurar ao aluno a continuidade dos estudos e oferecer-lhes

oportunidades, dentro do seu grau de desenvolvimento e aprendizagem, de concluir o

Ensino Fundamental de forma satisfatória” (JACOMINI, 2004, p. 2). Seria uma proposta

de rompimento com a lógica da seriação, buscando a democratização do ensino. Na época

em que a mudança foi implementada, entretanto, foi muito questionada pelos professores:

Os professores compreenderam a promoção continuada como um

mecanismo de desvalorização do seu trabalho, que estava,

essencialmente, calcado na avaliação seletiva. O norteador do

trabalho do professor não era criar as condições para que todos os

alunos aprendessem, mas selecionar por meio da reprovação àqueles

que não aprendiam a contento. Ao tirar o instrumento de seleção — a

reprovação -, o ensino e a avaliação perderam o sentido para o

professor, e ele passou a imputar aos ciclos a responsabilidade pela

falta de qualidade no ensino municipal. Grande parte dos professores

que eu tive contato acabou temendo que o ciclo fosse comprometer a

qualidade, porque num primeiro momento o ciclo passou como

sinónimo de aprovação automática (JACOMINI, 2004, p. 8).

Tendo sido implantado no final da gestão Erundina, o sistema de ciclos não pôde

ser consolidado como se esperava no projeto inicial, havendo uma ruptura na gestão

seguinte da prefeitura. Mantovan (2017) relata que o sistema de ciclos continuou a existir,

mas os objetivos pedagógicos e o trabalho com os professores foram descontinuados.

Assim aconteceu durante a gestão Maluf (1993 – 1996) e Pitta (1997 – 2000). Este

período foi, como vimos no capítulo anterior, de intensa atuação dos movimentos sociais

de Heliópolis devido aos constantes ataques da Prefeitura ao direito de moradia da

população. Em 1998, o Estado de São Paulo adotou a progressão continuada e, de acordo

com isso, a prefeitura, que agora dividia os ciclos em dois (sendo ciclo I, 1ª a 4ª série e

ciclo dois, 5ª a 8ª), retoma a tradição de separar a escola em ‘primário’ e ginásio’ visando

a separação dos docentes por formação.

Em 2001, Marta Suplicy assume a prefeitura e de acordo com Mantovan (2017),

suas metas eram similares às de 1992. Entretanto, não foi capaz de realizar mudanças

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efetivas que fossem neste sentido104. Em 2005 José Serra, do PSDB assume a prefeitura,

seguido por seu vice, Gilberto Kassab, que permaneceu até 2012. Há muitas

continuidades nas duas gestões, entre elas a busca pela homogeneização nas salas de aula

com diretrizes que buscavam reunir as crianças consideradas ‘fracas’ e o aumento do

número de alunos por salas, políticas condizentes com a gestão da educação estadual, há

mais de duas décadas nas mãos do mesmo partido.

Depois de Kassab, em 2013, Fernando Haddad assume a prefeitura e rapidamente

anuncia um pacote de reformas chamado Mais Educação São Paulo que, aliado a

questões salariais, motivam uma grande greve de professores municipais105. Uma das

principais questões dos educadores foi que a reforma foi feita sem real consulta à

categoria e incluía mudanças profundas em seu trabalho.

apesar da ênfase que se dá nos documentos em relação à gestão

democrática e à importância da participação da comunidade escolar

na reorganização, poucos aspectos foram alterados na nova proposta

depois da consulta, a qual, pode-se considerar, ficou disponível por um

curto período de tempo, apenas um mês, para a postagem das opiniões

dos professores e comunidade (MANTOVAN, 2017, p. 81).

A postura da então gestão da EMEF Campos Salles nesse período de

movimentação da categoria, entretanto, foi a de defender a proposta da prefeitura petista.

Braz Nogueira, ex-diretor da escola, chegou a falar que a escola poderia ser pensada como

um projeto piloto para a rede. A gestão de Haddad foi um momento em que a escola se

aproximou da prefeitura e regularizou seu caráter ‘experimental’.

104 A autora nota, entretanto a transformação que foi realizada na cidade com a criação dos CEUs e medidas no sentido

da democratização do acesso à escola, tais como o programa de transporte escolar gratuito. 105 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1464373-professores-municipais-de-sp-decidem-

encerrar-greve-apos-42-parados.shtml

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A reforma de 2014 abandonou a separação do Ensino fundamental em dois – no

estilo primário e ginásio - implantando a separação em três ciclos para o Ensino

Fundamental de 9 anos. Entre o 1º e o 3º ano há o ciclo de alfabetização (isto é, em geral

dos 6 aos 8 anos) no qual, as professoras são pedagogas alfabetizadoras e polivalentes. A

prefeitura coloca objetivos de aprendizagem relativos à alfabetização para cada ano deste

ciclo. Mantovan (2017) aponta a contradição entre a defesa do sistema de ciclos e essa

expetativa anual de aproveitamento. Entre o 4º ao 6º ano (em geral dos 9 aos 11 anos), há

o ciclo interdisciplinar, que busca articular conhecimentos de diferentes áreas:

Uma preocupação deste ciclo é atenuar a passagem dos anos iniciais

para os anos finais, por isso a implantação da docência compartilhada

no 6º ano, que compreende a presença de um professor polivalente nas

aulas de Português e/ou Matemática, atuando em conjunto com o

professor especialista, a fim de consolidar a leitura, escrita e resolução

de problemas. Ademais, há a possibilidade também de o professor

especialista ter uma parte de sua carga horária atribuída ao trabalho

com projetos nas turmas de 4º e 5º anos. É possível observar a ênfase

que se dá neste ciclo em relação à interdisciplinaridade, ponto

condizente com o sistema ciclado, porém nos outros ciclos essa questão

não é tão enfatizada (MANTOVAN, 2017, p. 83).

Finalmente, entre o 7º e o 9º ano, há o Ciclo autoral, que tem como objetivo final

a apresentação do TCA (trabalho colaborativo autoral), que deve ser feito em grupo, com

reuniões de orientação com professores e estímulo ao pensamento crítico. Em nosso

período de campo no oitavo ano da Campos Salles, o TCA já era motivo de muito debate

Figura 17: Quadro comparativo da organização escolar da Prefeitura de São Paulo antes e depois da reforma de 2014 e o Programa Mais Educação São Paulo. Fonte: MANTOVAN, 2017

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e planejamento por parte dos alunos, apesar de ser esperado somente para o final do 9º

ano.

Mantovan (2017) também destaca que a reorganização de 2014 aumentou as

possibilidades de reprovação, indo contra o espírito do projeto inicial do sistema ciclado,

e que aumentou a importância dada à formação de professores, com ênfase nos

professores do ciclo de alfabetização. Também tornou novamente obrigatórias provas

bimestrais, boletins e lição de casa.

Em suma, a conclusão da autora é a de que a reorganização de 2014 apresenta

boas propostas, mas sua implantação encontrou resistência entre os profissionais da

educação por ter sido realizada sem o devido diálogo. Ainda assim, a avaliação que faz

da repercussão da reforma é que a maior parte da categoria docente atribui a ela diversos

avanços.

Ao mesmo tempo, a reforma propõe práticas contraditórias com o que o próprio

texto do programa propõe. O sistema de ciclos, posto como uma resistência à lógica da

avaliação reguladora do tempo de aprendizagem, que opera de modo a excluir, coexiste

aqui com o uso disciplinar da retenção, avaliações obrigatórias e notas em conceitos

numéricos:

A concepção da reorganização é de uma avaliação para a

aprendizagem, sendo diagnóstica e formativa, porém, com o retorno

das ferramentas apontadas tem se encaminhado para uma avaliação

somativa, realizada com o intuito de aprovar ou reprovar os alunos,

por isso o aumento das possibilidades de reprovação foi bem aceito

entre a maioria dos docentes, com a justificativa predominante de levar

o aluno a aprender. Nesse sentido, pode-se constatar que ainda a visão

que predomina é a da retenção como motivação para os estudos,

denotando falta de consciência dos reais impedimentos para a

aprendizagem dos alunos (MANTOVAN, 2017, p. 158).

Voltando a atenção agora para a relação da Campos Salles com a prefeitura, é

importante notar que a escola frequentemente esteve em conflito com a gestão municipal

e realizou seu projeto fora desta. Isto é, mantendo a relação formal e burocrática

inevitável, agia de maneira a resguardar sua liberdade de projeto com a mínima

interferência, buscando apoio na comunidade e financiamento externo. Ainda na gestão

Kassab, a escola atraiu o apoio de ONGs, tais como ActionAid e tornou-se palco de

projetos da Fundação Telefônica Vivo106.

106 Principal projeto da Fundação é o Inova escola, que visa a inclusão digital de escolas públicas, na Campos Salles as

principais ações realizadas foram a concessão dos netbooks utilizados nos salões de estudos e a formação dos

professores para o uso de Tecnologias da Informação, tanto na produção especialização dos roteiros, como para inclusão

de atividades com recursos digitais e registros escolares. Ver mais em:

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Com estas parcerias o projeto ficou conhecido na cidade e teve repercussão

positiva. Na gestão Haddad, após a reforma, a prefeitura decidiu apoiar o projeto,

garantindo suporte na produção do material pedagógico e melhores condições de trabalho

aos professores, tudo em caráter experimental. Como contrapartida, a escola deveria

apresentar resultados e comprovar que seus alunos obtêm mais ‘sucesso’ do que alunos

de outras escolas da região. Este acordo é compatível com a afirmação de Braz Nogueira

de que haveria por parte da prefeitura o interesse em transformar a Campos Salles em

uma espécie de escola modelo para a rede.

Após a gestão petista, João Dória (PSDB) assumiu a prefeitura de São Paulo, em

2017, e em menos de dois anos de mandato107 tornou-se a imagem dos ataques à escola

pública. Entre a polêmica sugestão de distribuição da ‘ração humana’ nas escolas108 e

albergues e cortes sem cerimônia do transporte escolar gratuito109, os ataques à escola

pública culminaram na proposta de desmonte da previdência dos professores que

significou uma diminuição real no salário da categoria, respondida com uma greve que

atingiu 93% das escolas da cidade110.

A relação da Campos Salles com a prefeitura, depois de uma breve parceria,

voltou a ser crítica, ainda que formalmente, muito da parceria persista. Foi nesse contexto

que se deu o trabalho de campo na EMEF Campos Salles. Em um período marcado por

atrasos nos repasses das verbas para a escola, economia de materiais, greve e críticas

constantes por parte de professores e alunos, à atual gestão.

http://fundacaotelefonica.org.br/projetos/inovaescola/emef-presidente-campos-salles-sp/ 107 Dória saiu da prefeitura para poder candidatar-se nas eleições estaduais, sendo eleito em 2018 governador do estado.

Em seu lugar, assumiu Bruno Covas, seu vice, que tem trabalhado de maneira a dar continuidade aos objetivos postos

por Dória. 108 Dória propôs, como medida de corte de gastos, a substituição da merenda escolar por um composto alimentar

conhecido como ração humana. Ver mais em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,composto-alimentar-

sera-distribuido-em-escolas-a-partir-deste-mes-diz-doria,70002051192 109Ver mais em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/11/gestao-doria-corta-transporte-escolar-e-diz-a-

pais-para-mudarem-filhos-de-escola 110 A greve conseguiu que a prefeitura voltasse atrás em algumas propostas, mas a reforma da previdência municipal,

o SAMPAPREV, está atualmente sendo votado no legislativo com apoio do atual prefeito, Bruno Covas. Ver mais em:

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/03/greve-de-professores-cresce-e-ja-atinge-93-das-escolas-

municipais-de-sp.shtml

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CAPÍTULO 3 – A escola na prática: rotina e relações

educativas na escola

Com base no contexto que cerca a escola e seu papel num bairro educador, bem

como fundamentada nas linhas gerais do projeto educativo e no processo de

transformação da EMEF Campos Salles, é agora possível olhar mais detidamente para o

seu funcionamento interno. As opiniões dos alunos sobre o caráter diferente de sua escola

são, quase sempre, positivas. Houve casos de críticas ao projeto, Manu e Daniele não

gostam do modo de funcionamento, consideram que se aprende pouco, mas vieram

estudar nesta escola por considerarem-na mais segura. Já Black gostava do

funcionamento da escola, mas a considerava ‘difícil de fazer amigos’. Mas mesmo que

não agrade a todos, a transformação da escola certamente impactou positivamente a sua

relação com os moradores.

Hoje, vemos que grande número de famílias escolhe colocar os filhos na Campos

Salles por considerar a escola mais segura, como o caso de Manu. Algumas por

acreditarem no projeto, como é o caso de Juliana. Essa percepção é uma transformação

muito significativa em relação à escola que anteriormente era vista como o destino de

alunos indesejados (GALLO, 2009), onde nos anos 90 as brigas eram quase diárias, os

pais e mães eram ausentes, e cujo prédio era constantemente depredado. Atualmente a

comunidade passou a participar de fato da escola, hoje situada num CEU livremente

frequentado por moradores, é construída por eles, que tem a possibilidade de opinar sobre

projeto e problemas.

O objetivo deste capítulo é apresentar os principais achados de campo de modo a

explicar o funcionamento da escola e elucidar aspectos gerais da rotina matutina e

vespertina da escola, com olhar mais detido às dinâmicas do 8º ano, salão onde nossos

entrevistados e entrevistadas estudavam. Entendendo o funcionamento da escola é

possível entender quais as transformações e continuidades encontradas aqui.

Na primeira parte, a exposição está organizada a partir dos roteiros de estudo. A

partir desta ferramenta é possível refletir sobre a organização do tempo e espaço escolar,

e o processo de aprendizagem em geral assim como sobre o papel dos professores, que

constroem todos estes roteiros, e como isso transforma o trabalho docente.

Na segunda parte discutiremos o impacto das relações com a comunidade e

apresentaremos os dispositivos de participação: primeiro de participação política por

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meio da república de alunos e da assembleia, depois dos dispositivos de participação

disciplinares, por meio da exposição das práticas da comissão mediadora. O estudo se

volta para a compreensão das relações com o conhecimento, com o tempo, com processos

decisórios e de participação coletiva, e o papel formativo de tais elementos neste projeto

educativo.

3.1 Roteiros de estudos: a ferramenta básica da Campos Salles

A ferramenta que melhor explica o trabalho pedagógico na Campos Salles é o

roteiro de estudos e é a partir deste que está organizada esta seção, que tem o objetivo de

elucidar aspectos centrais da escola, tais como o espaço, a gestão do tempo e a

aprendizagem, assim como o papel docente.

“Metodologias ativas de aprendizagem: elaboração de roteiros de estudos em

‘salas sem paredes” (MORAIS et al, 2017)111, apresenta muito bem como a prática dos

roteiros de estudo reflete a posição da escola perante a educação. Podemos notar aqui a

crítica à educação bancária (FREIRE, 2001) e a preocupação com o protagonismo

estudantil, e um trabalho educativo que parta da realidade dos estudantes. Esta é, segundo

o texto, a diferença central entre o roteiro de estudos e uma sequência didática. O roteiro

deve ser organizado a partir do que se conhece dos alunos, das escolhas de temas feitas

por eles e com base na realidade em que vivem. (MORAIS et al, 2017). Os roteiros de

estudos são vistos como uma prática que materializa o posicionamento da Campos Salles

em relação a educação.

A proposta pedagógica da EMEF Presidente Campos Salles vai no

sentido contrário ao modelo tradicional do currículo universal e seus

testes padronizados, que cria um resultado comum a partir de uma

massa diversa de aprendizes. Como a maioria das escolas é medida de

acordo com esses padrões comuns, elas são então obrigadas a entrar

em um tipo de dança na qual se pede aos estudantes que aprendam um

material que cairá na prova e eles nele se concentram, o que garante

que os estudantes revejam de antemão exatamente o que será pedido

nessa prova. De certa forma, essa abordagem é enganosa, pois testa

somente uma etapa mínima do conhecimento em qualquer assunto — e

efetivamente só ensina os estudantes a fazer provas e memorizar

conteúdos de forma mecânica, levando a pouca retenção de

conhecimento. A proposta metodológica dos roteiros de estudo é

possível, tangível e acessível, tanto para os educadores quanto para os

estudantes, os verdadeiros atores do processo. Trata-se de uma

111 Capítulo escrito coletivamente por um grupo de mulheres das quais, na época, duas eram coordenadoras da Campos

Salles. O texto detalha o processo de produção do roteiro a partir da perspectiva da equipe.

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proposta de educação adaptativa, ou seja, adaptável à realidade local

da escola e multiplicável pelo educador (MORAIS et al., 2017).

Este material adaptável é produzido coletivamente pelos professores de cada ano,

relacionado de maneira interdisciplinar em torno de um tema. O roteiro articula conteúdos

designados pelo Ministério da Educação e pelo Currículo da Cidade112 para cada ano

específico a temas mais gerais e a eventos atuais. Por exemplo, um roteiro com o tema

“Esportes”, poderá incluir informações sobre atletas populares entre os estudantes, vídeos

e jogos113, bem como detalhes sobre os primeiros Jogos Olímpicos, introduzindo estudos

sobre mitologia grega.

Entre as atividades desenvolvidas pelos professores, há exercícios a serem

respondidos por escrito no próprio material, mas há também pesquisa, desenho, produção

textual, indicação de literatura e de filmes, de exercícios nos livros didáticos, produção

de cartazes, entre outros, incluindo também algumas lições a serem feitas em casa, como

“Pesquise entre as pessoas da sua família de onde vieram seus antepassados”, ou

“Pergunte aos seus vizinhos, quais as melhorias que eles gostariam de ver na sua rua”.

Os formatos dos roteiros variam entre os anos, já que a equipe de professores que

os produz também é diferente, mas alguns elementos sempre estão presentes. Em geral

os exercícios estão separados em blocos coesos, que são o que os alunos chamam de

atividades. Assim, quando alguém diz que pretende fazer duas atividades, está se

referindo a dois blocos diferentes de exercícios que podem ter diversos formatos. Há

também espaço para o aluno colocar a data em que começou a trabalhar com o material e

uma meta, definida por ele, para quando pretende terminá-lo, seguida de um espaço para

explicar por que ultrapassou o tempo planejado, caso isso aconteça. O número de roteiros

em um ano varia de acordo com o ritmo dos alunos 114, nem todos os roteiros são

completados por todos. Quando um aluno termina o primeiro, recebe o segundo, e assim

vai, durante todo o ano letivo, sem que tenha prazo estabelecido pela escola para a entrega

do material. Alguns alunos contaram levar três meses para completar um roteiro, outros,

três semanas, mas a maioria falou que depende do tema, do interesse que desperta neles,

e da dificuldade das atividades.

A autoavaliação nos roteiros acontece no começo, no meio e no final de cada um.

112 Plano Curricular geral da cidade de São Paulo, produzido na gestão Dória. 113 Os roteiros incluem atividades a serem consultadas na estação tecnológica. Como “para entender o ciclo da água,

acesse:” seguido de um link que leva a um jogo interativo sobre o tema ou direções para acessar um vídeo no youtube

etc. Os professores também fazem isso com jogos, enquetes, ‘testes’ etc. 114 Em todos os salões do Fundamental 2 em que observei especificamente o número de roteiros no final do ano, houve

ao menos 12.

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Pergunta-se o que se espera do roteiro e o que já se sabe sobre aquele tema, em seguida,

como está a dificuldade das atividades e se está sendo uma boa experiência e, no final,

uma avaliação mais elaborada, sobre o que o aluno gostou ou não, o que aprendeu ou não,

se foi fácil, se o roteiro foi realizado em grupo, se as pesquisas foram interessantes etc. A

‘autoavaliação’115 é utilizada também para diagnosticar a adequabilidade do próprio

roteiro, com perguntas como ‘o que você gostaria de ter visto nesse roteiro que não estava

aqui?’, ‘você mudaria algo neste roteiro?’ ou ‘o que foi mais difícil?’. É um espaço para

sugestões e críticas a serem acolhidas ou não pela equipe pedagógica considerando os

objetivos previstos para aquele roteiro e o balanço do desempenho individual dos alunos

nas atividades. Outra intenção da autoavaliação é possibilitar reflexão sobre o próprio

processo de aprendizagem, perceber o que se aprendeu.

Os roteiros de estudo têm como principal objetivo articular toda a

comunidade escolar e exige, portanto, responsabilidade e trabalho em

equipe por parte de todos os segmentos envolvidos. Nascem de escolhas

de temas votados pelos estudantes em assembleias, onde os

educadores, tendo como referência o plano anual (baseado na Base

Nacional Comum Curricular, no Currículo da SME e na realidade

social e política) constroem propostas de estudos (PPP, 2017).

O roteiro é produzido com interação de diferentes segmentos da escola. A intenção

é que este se configure como uma ferramenta de trabalho coletivo. Ainda que cada aluno

115 ‘Autoavaliação’ é o termo utilizado pela própria escola para as perguntas diagnósticas incluídas no roteiro de

estudos, entretanto, como descrito, nem sempre o objetivo dessas perguntas é que o aluno avalie o próprio aprendizado,

mas também a adequabilidade do material.

Figura 18: As quatro etapas que compõe o roteiro. Fonte: MORAIS et al, 2017|

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tenha o seu roteiro, o material é formulado para ser trabalhado no grupo, com ajuda

mútua. A prática de organizar os estudantes em grupos idealmente tem a função de unir

pessoas que se encorajem mutuamente, sentadas na mesma mesa de quatro lugares e

estudando em conjunto. Os grupos seriam definidos pelos alunos, por afinidade.

MORAIS e outras autoras (2017) definem as tarefas de cada etapa da produção

do roteiro (Figura 18): Antes de cada roteiro, os professores fazem um trabalho de

levantamento de conhecimentos prévios relativos ao tema que será abordado. Na capa,

busca-se cativar o aluno e estabelecer os objetivos para o roteiro. Segundo Morais et al

(2017), “é necessário transformar objetivos de ensino do educador em expectativas de

aprendizagem para os estudantes”, ou seja, é importante que o aluno entenda o que será

tratado em cada roteiro e crie a expectativa de aprender, de modo que se engaje mais no

aprendizado. Após a realização das atividades propostas os professores realizam a

avaliação de aprendizagem individual de cada aluno e, do roteiro em geral, como foi

recebido, se pôde ser compreendido etc.

O processo envolvido na produção do roteiro se manifesta na maneira como o

aluno se relaciona com o material. Os estudantes se engajam mais ao perceber que o

roteiro inclui um rapper ou um jogo que gostam. Entretanto, sendo uma produção coletiva

às vezes não se consegue fazer uma revisão detida do conteúdo. Não tendo um projeto

gráfico, como o livro, o roteiro pode ser mais difícil de entender.

P: Você acha que o roteiro funciona bem?

K: Às vezes. Por que às vezes é um pouco bagunçado, às vezes eu não

entendo. Pra ser sincera ainda não sei lidar muito com o roteiro

P: O que você acha difícil?

K: Sei lá, não é o roteiro em si, é que às vezes eles colocam páginas

erradas e essas coisas, não sei, sei lá (Juliana, 2017).

Este ‘lidar com o roteiro’ foi mencionado também por outro aluno, que acredita

que foi o maior aprendizado em seu primeiro ano na escola. ‘Lidar com o roteiro’ envolve

entender a estrutura do material, mas também aprender a organizar seu próprio tempo,

seu próprio caderno e aprender a aprender sozinho. Isso vai desde o uso do dicionário,

índices de livros e mecanismos de busca na internet, a desenvolver a postura de ir atrás

da informação, sem esperar que lhe seja entregue na lousa. O papel do docente é, com

isso, transformado, pois no lugar de apresentar todos os conteúdos para todos os

estudantes ao mesmo tempo, deve se adaptar a cada grupo no momento da mediação. Em

cada mesa os alunos também têm ritmos diferentes, e parte do objetivo da mediação é

ajudá-los a trabalhar melhor juntos. Quando um aluno tem dificuldades e quer abandonar

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a tarefa, cabe ao professor encorajá-lo. Quando alguém aprende mais rápido e começa a

falar todas as respostas, o professor deve resguardar a possibilidade dos outros alunos as

descobrirem sozinhos, como fez uma professora do 3º ano: “Vamos deixar ela descobrir,

que se a gente der a resposta ela não aprende”.

Enquanto fazem o roteiro os alunos são encorajados, caso precisem de ajuda, a

pesquisar nos instrumentos disponíveis no salão (netbooks, livros), pedir ajuda aos

colegas, e caso a dúvida permaneça, chamar um educador. Lincoln nos diz, por exemplo,

normalmente eu peço ajuda para as pessoas do grupo e daí eles explicam, se eu não

entendo eles explicam de novo e daí se eu vejo que não vai ter jeito daí a gente chama o

professor (Lincoln).

Um ponto exaltado por muitos estudantes é a escolha coletiva dos temas dos

roteiros. Mais do que fortalecer a relação de respeito entre professores e alunos, esta

prática inclui o aluno nas decisões referentes ao seu próprio aprendizado e ainda, parte de

sua realidade para a construção dos roteiros, eles se sentem ouvidos e mais interessados.

Para alguns alunos, mais familiarizados com os conteúdos escolares tradicionais, a

escolha dos temas pode parecer absurda, mas são, em geral, coisas que a maioria dos

estudantes conhece e se interessa. “Jogos Eletrônicos”, “Esportes”, “Música” e

“Carnaval”, foram os roteiros mais citados entre os entrevistados como os ‘mais legais’

do ano. Temas mais distantes do dia a dia são geralmente considerados mais ‘chatos’ mas

podem despertar a curiosidade e até certo engajamento com questões que os alunos pouco

conhecem. “Fiquei muito preocupada com essa história do Rio Doce116, professora!”,

disse uma aluna em relação a um roteiro sobre “Meio Ambiente”.

Essa contextualização do ensino visa o que MORAIS et al (2017) chamam de

aprendizagem significativa, que seria o objetivo da Campos Salles, propiciar

aprendizados que ultrapassem os conteúdos decorados e fragmentados, mas que adquiram

significado na vida dos estudantes.

A metodologia de ensino por roteiros de estudo contribui de forma

especial para o aprendizado significativo que leva ao conhecimento,

pois trata justamente de como colocar em prática o ensino de forma

contextualizada e lógica, de modo a promover a articulação dos

saberes e instrumentalizar o educador e ter clara percepção sobre o

aprendizado dos estudantes (...) O desafio é tornar claro o que estes já

sabem sobre um tema(...) e desenvolver mediações/interações

pedagógicas em sequência e controladas para que os estudantes

relacionam as informações e construam a aprendizagem significativa

116 A aluna referia-se ao ‘desastre de Mariana’. Ver mais em: https://brasil.elpais.com/tag/desastre_mariana

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– construam conhecimento (MORAIS et al, 2017).

Este desafio de articular conteúdos com temas da realidade dos alunos requer um

esforço constante e há momentos em que a relação produzida é meramente formal. O

roteiro de estudos é, portanto, um aprendizado permanente também para a equipe de

professores que o produz, e as alterações que realiza no modo de viver a escola

reverberam em muitos aspectos. Vejamos a seguir, as relações do roteiro de estudos com

o uso do espaço na escola.

3.1.1 As transformações nos usos do espaço escolar

O espaço físico da Campos Salles é amplo e bem cuidado, em grande parte pela

contribuição de familiares e estudantes que também se responsabilizam pela conservação

do prédio. Muitos estudantes comentaram espontaneamente gostar de lá, consideram a

escola limpa, alegre e colorida. Construída num declive, a EMEF tem uma entrada térrea

em uma face do prédio, e outra no andar inferior na face oposta, por onde os alunos entram

e saem. A transformação do espaço é uma das mais marcantes nessa experiência. Na

comunidade, se ouve falar muito em “escola sem paredes”, mas o significado concreto

disso não é evidente. Uma das estudantes entrevistadas chegou a propor para a Mostra

Cultural de 2017 uma ação que ajudasse as pessoas que vivem no entorno a entender isso.

Figura 19: Instalação da Mostra Cultural 2018 com fotografias na escola em árvore no CEU. Fonte: Facebook EMEF Campos Salles

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Quando eu falava que a escola não tinha parede, as pessoas pensavam

que a gente estudava aqui [no gramado do CEU]. Foi engraçado que

uma menina me perguntou: ‘e quando chove, que que acontece?’, e eu

fiquei tipo: ‘Gente! Calma não é assim!’. [Rindo] Eu acho legal ser

assim. Por isso falei da gente tirar fotos da escola e pendurar nessa

árvore aqui [de frente para a saída da escola]. Tipo com uns fiozinhos

assim, deixar pendurado [para quem passar ver](Juliana).

Tendo em mente o efeito do espaço no aprendizado, Alexandre Barbosa Pereira

(2016) observa fortes semelhanças entre diferentes escolas públicas em sua arquitetura e

nos usos do espaço. Nota-se como o espaço define e expressa muito da rotina e das

relações postas na escola.

O caso da Campos Salles é particular. Por se tratar de um prédio público e antigo,

sua arquitetura é como a maioria das escolas públicas de São Paulo. Mesmo com as

intervenções realizadas, como a quebra de paredes que dividiam salas de aula, a

organização dos espaços se mantém praticamente a mesma, afinal o prédio foi feito

seguindo o projeto de muitas escolas públicas. O que transforma este espaço, entretanto,

é o seu uso.

Pereira (2016) nota que a primeira dificuldade em fazer pesquisa em escolas era

entrar no prédio, pois dependia de algum funcionário ou funcionária da secretaria, em

geral sobrecarregados, para abrir o portão, o que podia significar uma longa espera. Já na

Campos Salles, ainda que o portão em si, pesado, de metal seja igual aos encontrados por

Pereira, seu uso é diferente. O portão não é responsabilidade exclusiva de funcionários da

secretaria, mas é vigiado por quem quer que esteja próximo. Se a pessoa querendo entrar

é desconhecida, os adultos se encarregam de saber do que se trata e as crianças de avisar

os adultos. A entrada não é completamente livre, é constantemente observada, por

motivos evidentes de segurança, mas é muito facilitada e desburocratizada. Abandona-se

aqui a associação do funcionário escolar a imagem do carcereiro.

Ao entrar pela secretaria, encontra-se a área administrativa, disposta da exata

maneira que Pereira relata encontrar em outras escolas públicas:

As escolas costumam manter em uma mesma área: a sala dos

professores, a secretaria e as salas de direção, vice-direção e

coordenação pedagógica. (...) [Estes] espaços são mais bem-

arrumados do que os outros. Muitas vezes há quadros e vasos com

plantas que são mantidos à parte do restante da escola, em locais de

pouca ou restrita circulação. Na maioria dos casos a área onde fica

esse conjunto de salas é isolada por portões e grades que impedem que

pessoas não autorizadas circulem por ali, principalmente os alunos

(PEREIRA, 2016, p. 92).

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Na Campos Salles, contudo, não há portões ou grades que isolem este complexo

administrativo-escolar, a área não é vedada aos alunos. Uma diferença no uso deste

espaço é nos bancos no corredor. Em outras escolas, esses bancos costumam ser lugares

de vergonha. Os colegas perguntam para os alunos que estão ali o que fizeram, supondo

que exista um motivo negativo, ocupar aquele banco já costuma ser o início da punição

por comportamento ruim na escola. Aqui isso não ocorre, pois os alunos frequentam esse

espaço também por vontade própria.

Nessa área também estão as salas de JEIF117 e de professores. A primeira, é

grande, tem computadores e muitas mesas, que às vezes são usadas lado a lado, como

uma mesa enorme, e às vezes são divididas, para serem usados por grupos diferentes de

pessoas. Há muitos usos para esta sala além da JEIF em si. É comum ver reuniões de

comissões de alunos ou da República de Alunos118, reuniões com alunos e professores,

para discutir algum evento ou projeto, conversas entre responsáveis por alunos e

professores ou a coordenação. É também frequente encontrar professores elaborando

roteiros coletivamente ou sentados com um ou dois alunos que estavam com alguma

dificuldade ou problema pessoal para ajudá-los em um espaço mais particular. Nessa sala

fica o armário de materiais, que é grande, como uma despensa, o que faz com que o fluxo

de alunos no corredor do complexo administrativo-escolar seja grande. As crianças

pequenas não podem utilizar o armário sem acompanhamento de um adulto, mas os

117 Jornada Especial Integrada de Formação é o período de formação incluído na carga horária dos professores da rede

municipal. É um horário que se cumpre na escola, coletivamente. 118 Como será discutido adiante, a escola forma uma ‘república de alunos’, eleitos, que emula os processos decisivos

da democracia representativa.

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estudantes maiores, que já conhecem o sistema de organização encontram os materiais

necessários e só avisam o que foi pego.

Já a sala de professores é um espaço bem menor e é vedada aos alunos. Às vezes

alguma criança quer seguir sua professora para dentro da sala e recebe um: “eu também

sou filha de Deus e mereço meu intervalo” com a promessa de conversarem depois. Nessa

sala, encontramos os armários individuais decorados com o nome de cada professor, uma

mesa comunitária onde sempre há café – custeado pela tradicional ‘vaquinha’ -, filtro de

água e pia para lavagem de canecas e pratos, micro-ondas e geladeira. Na parede também

há uma lousa, sempre muito organizada, que mostra os próximos eventos importantes do

calendário, um ocasional lembrete, e panfletos de eventos, do sindicato, jornais etc.

Pereira (2016) observa que a sala de professores é o espaço onde se percebe os signos da

categoria. As lutas salariais, reformas, sempre estão representadas neste espaço, que

principalmente em período de greve, também reúne discussões políticas e sobre as

mazelas da categoria. Na Campos Salles, a sala não deixa de ser o lugar seguro para

queixas sobre alunos, a escola ou a rotina dos professores (que em sua maioria tem mais

de um emprego), mas foi também o espaço em que tive conversas com professores que

não somente me explicaram alguns mecanismos da escola, como a reunião de pais e a

participação da comissão de alunos no conselho de classe, mas que também fizeram a

defesa apaixonada e convicta do projeto. Foi neste espaço que percebi que, ainda que haja

professores que discordam do projeto, e estes em geral não ficam mais de um ano na

escola, logo pedindo remoção, grande parte da equipe está ativamente envolvida na

Figura 20: Visão da escada da escola com banner produzido por alunos. Fonte: Fundação Telefônica

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construção e reconstrução do projeto, acredita nele e está pronta para defendê-lo.

O caráter coletivo do trabalho docente realizado nesta escola também se evidencia

no uso deste espaço. Os professores saem para o intervalo e voltam para os salões em

duplas e trios, muitas vezes conversando sobre o que planejam fazer juntos, alguma

dificuldade que tiveram, algo inesperado que aconteceu, ou simplesmente contando

coisas de suas vidas pessoais. É um trabalho muito compartilhado e o tom de amizade das

conversas na sala de professores reflete isso.

O complexo administrativo escolar está localizado no andar térreo, onde também

se encontra uma sala de oficinas119, um salão de estudos e o Ambiente de Apoio Literário

e Tecnológico, onde está organizado parte do acervo de literatura da escola, com

computadores no centro e um projetor em uma das extremidades. É um espaço de

pesquisas, oficinas de informática e projetos específicos.

A escola é organizada em cinco grandes salões de estudo nos quais estudam entre

70 e 90 pessoas. Os quatro outros salões estão no andar de cima onde também há outra

sala de oficina, menor, sempre utilizada com poucos alunos. No andar de baixo há um

pátio interno com mesas compridas e bancos, onde os alunos comem a merenda, uma sala

de leitura, um palco e uma saída para a quadra externa onde acontece a educação física.

Os alunos circulam bastante pela escola e é comum que façam ‘estudos de meio’ ou

conversas do lado de fora. Esta prática está de acordo com o discurso do Bairro Educador,

conforme exposto no PPP da escola.

O estudante não aprende só no interior da escola: salão de estudos,

sala de oficina, Ambiente de Apoio Literário e Tecnológico, quadra de

esportes, pátio e área livre e espaços educativos do CEU Heliópolis.

Aprende em qualquer espaço de sua comunidade, de sua cidade etc.

Cabe à escola ajudá-lo a aprender continuamente em qualquer lugar,

contribuindo assim, para a construção do bairro educador em

Heliópolis, onde todos ensinam, aprendem e organizam-se para a

efetivação dos direitos de todas as pessoas (PPP, 2017, p. 45).

Um efeito dessa dissolução do lócus do trabalho escolar é que não há mais uma

barreira entre o lugar do trabalho e o lugar do lazer, do ócio. Da mesma forma que é

comum encontrar crianças e adolescentes divertindo-se com seus celulares nos salões, é

possível encontrar grupos que decidam realizar atividades do roteiro no pátio, ou ao ar

livre. Isso significa que o espaço escolar é percebido de maneira distinta daquela descrita

por Frago:

O espaço escolar torna-se assim, no seu desenvolvimento interno, um

119 As oficinas são outro momento pedagógico e serão discutidas ainda neste capítulo.

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espaço segmentado no qual o ocultamento e o aprisionamento lutam

com a visibilidade, a abertura e a transparência. A racionalização

burocrática – divisão do tempo e do trabalho escolares – e a gestão

racional do trabalho coletivo e individual fazem da escola um lugar

onde adquirem especial importância a localização e a posição, o

deslocamento e o encontro dos corpos, assim como o ritual e o

simbólico (FRAGO, 2001, p. 80).

Essa relação entre aprisionamento e visibilidade remete à discussão feita por

Foucault (2002) em “Vigiar e Punir” sobre o Panóptico, o projeto de Jeremy Bentham,

de uma penitenciária ‘ideal’, na qual haveria um posto de vigia em lugar de permanente

destaque sem que, no entanto, fosse possível ver o que acontecia no posto. O efeito seria

que as pessoas aprisionadas não saberiam quando estivessem sendo observadas, de modo

que agiriam constantemente, como se estivessem, seria o máximo dispositivo disciplinar.

“A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia.

A visibilidade é uma armadilha”. Ainda que o Panóptico nunca tenha sido construído,

traz uma lógica que aparece em muitos espaços da sociedade contemporânea como o

“diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal” (p. 181). A discussão

tratada por Foucault pode, ainda hoje, ser utilizado para pensar diversas instituições, como

a prisão, o hospital, o manicômio e também, a escola. A sala de aula, que destaca o

professor, coloca todos os alunos sob sua vigilância, ao mesmo tempo que os dispõe de

maneira a individualizá-los, ou seja, separá-los uns dos outros, de modo a evitar que os

alunos se tornem uma massa coesa. “A multidão, massa compacta, local de múltiplas

trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma

coleção de individualidades separadas” (FOUCAULT, 2002, p. 177). Os alunos não são

um coletivo, mas um grupo de indivíduos, em competição e constantemente vigiados.

Dessa maneira podem, mais facilmente, ser transformados em corpos dóceis

(FOUCAULT, 2002), aqueles que podem ser controlados, e são disciplinados e eficientes.

Antônio Zuin (2008) também nota como essa atomização dos alunos, similar à

dos trabalhadores na fábrica, tem o efeito de facilitar a rotulação dos estudantes e sua

ordenação de acordo com disciplina e produtividade: “A distribuição espacial dos objetos

e dos alunos na sala de aula facilita, portanto, a eficiência do olhar ‘classificador’ do

professor, que pode rotular o aluno com mais propriedade com o objetivo de otimizar o

tempo de aprendizagem dos conteúdos” (ZUIN, 2008, p. 46), de modo que vemos que

também na sala de aula, a organização do espaço influencia a vivência do tempo. O

mesmo ocorre com o salão de estudos na Campos Salles.

O controle dos corpos é menos rigoroso nos salões. Uma vez que não há destaque

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da figura do professor, não há a vigilância constante, não há uma definição rígida sobre

onde deve estar cada criança a cada momento, não há obrigação de todos ficarem sentados

e em silêncio o tempo todo e o espaço não é classificador. Vejamos, então, quais as

transformações realizadas pelos salões no dia a dia da escola.

- Os salões de estudo

O atrito entre aprisionamento e abertura que Frago (2001) aponta como típico das

salas de aula ocorre aqui de maneira alterada. Existe, pois há controle de saída e entrada

ao mesmo tempo que se propõe a livre circulação. Entretanto, a contradição é abrandada,

pois a organização do salão permite a fácil circulação entre as mesas, todos são vistos.

Não há uma ‘mesa do professor’, de modo que não há ‘frente e fundo’ do salão, já que a

lousa, apesar de presente, é utilizada somente para organizar o planejamento e anotar

recados.

A dissolução do modelo tradicional do espaço da sala de aula tem forte efeito

simbólico das relações escolares e entre professor e estudante, afetando até mesmo a

percepção sobre a função da escola. Mas também tem decorrências para o

desenvolvimento das relações concretas no cotidiano escolar. Isto é, influencia a

circulação das pessoas pelo espaço, e o ambiente proporciona proximidade à relação entre

estudantes assim como entre estes e docentes. Os professores, por sua vez, deixam de ser

vistos principalmente como agentes disciplinares, o que permite que sejam vistos como

os mediadores do processo educativo que de fato são. Este modelo também tem o efeito

de dissolver a cisão, mais evidente na maioria das escolas, entre locais mais e menos

controlados, como entre as salas de aulas, os corredores e o pátio, por exemplo. Os

salões são espaços muito amplos, já que eram antigamente duas ou três salas de aula. Tem

muitas janelas, com cortinas coloridas e as paredes repletas de produções dos alunos que

utilizam o espaço no período da manhã, tarde e noite. Cada salão tem aproximadamente

20 mesas quadradas e bem cuidadas, cada uma com espaço para quatro estudantes se

sentarem, mas é comum que nas últimas horas do dia, os estudantes juntem muitas

cadeiras em uma mesma mesa para ficarem conversando. Isso não é repreendido, mas, no

fim da aula, é necessário deixar a cadeira no mesmo lugar em que estava no começo. Há

muitos armários, onde são guardados os livros didáticos e os roteiros que os estudantes

do Fundamental 1 deixam em pastas. Os salões, assim como os corredores da escola, são

repletos de mensagens do Bairro Educador, como “A Paz é de todos ou não é de

ninguém”, frases de Paulo Freire e contra racismo e homofobia. A configuração

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espacial do salão e a forma pedagógica dos roteiros de estudos parecem complementares.

O roteiro visa o trabalho em grupo que o espaço facilita, criando em cada mesa um

pequeno núcleo de trabalho. A dinâmica de aula expositiva seria impossível nesse espaço,

o professor precisaria falar muito alto, muitos não o enxergariam pela distância, outros

pela posição. Fica evidente como a configuração do espaço do salão diz muito sobre o

projeto da escola. Não há professor como centro das atividades de ensino.

A coordenadora da escola notou outro efeito dessa configuração espacial, o

barulho: “o salão sempre vai ter mais barulho do que uma sala com somente trinta alunos.

Mas, sabe que a escola é mais silenciosa? Os corredores, a escola mesmo... porque

ninguém tem que falar por cima, as pessoas não gritam”. Os momentos de silêncio no

salão são tão raros quanto os de gritaria. Há sempre um burburinho, mas nenhuma voz se

destaca, nem a do professor.

Diferente da sala de aula convencional, o espaço do salão dilui a hierarquia

professor/aluno. Isto é, ela ainda existe, mas de forma rarefeita. Os professores continuam

a ser figuras de autoridade, passam boa parte de seu tempo em pé, de modo que suas

figuras de destacam, mas diferente da sala de aula em que há separação espacial do

professor e o reconhecimento deste é imediato, às vezes ao entrar em um salão em aula,

leva-se alguns segundos para encontrar um dos professores. Eles podem estar sentados

corrigindo roteiros em uma mesa, conversando com alunos do outro lado do salão

preenchendo diários numa mesa vazia. O funcionamento do salão não demanda uma

figura de professor em destaque como imagem que força a disciplina. Isto não significa,

contudo, que a disciplina não exista, mas que ela é diluída, e cada mesa ou grupo de mesas

estabelece sua dinâmica de convivência, sempre levando em consideração o fato de que

o professor, por mais que não esteja em evidência, sempre está circulando.

Na sala de aula comum o centro é o espaço do professor, sua mesa, a lousa que só

ele pode usar, tudo é referenciado pela sua figura, é o agente de vigilância do “Panóptico”.

O que se faz bem é feito de modo que ele veja, o que se faz de ‘errado’ é feito de modo

que não veja. No salão, por outro lado, a atividade se referencia principalmente pelo

grupo. Alguns momentos dependem de um professor: tirar dúvidas, corrigir roteiro,

receber um roteiro novo etc. Mas o dia do estudante, como será analisado mais adiante na

discussão sobre o tempo escolar, é pautado pelo próprio ritmo e as regras de convivência

são implementadas pelo próprio grupo, a exceção de transgressões mais graves, sem

intervenção de adultos. O espaço oculta as pequenas contravenções estudantis, como a

cópia de atividades ou o uso do celular para motivos além da pesquisa, ou mesmo a não-

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realização dos roteiros, muito melhor que a sala de aula, mas também permite que o

professor que identifica que estes comportamentos são padrão para algum estudante, lide

com isso com conversa particular, sem exposição e humilhação do aluno, sem causar

medo. O espaço também demanda que o aluno que faz algo que considera positivo chame

algum professor para receber seu reconhecimento. Nos salões das crianças mais novas é

frequente escutar “Olha que bonito que eu fiz, professora, vem ver!”. Isso acontece

também na sala de aula tradicional, claro. O que muda aqui é que a exposição pública é

menor, de modo que uma criança que talvez não queira chamar atenção em outro espaço

possa chamar um professor e receber o esperado elogio ou comentário em particular. Em

suma, a fragmentação do salão em vários núcleos de estudo e a presença de três

professores ao mesmo tempo garante uma privacidade difícil de conseguir numa sala de

aula.

Principalmente entre os estudantes adolescentes, o salão é um espaço que permite

a mobilidade. As mesas podem ser movidas, a decoração das sala pode ser transformada

e os estudantes participam dessas decisões. No oitavo ano, principalmente no final da

manhã quando a maioria das pessoas já fez suas atividades planejadas, as pessoas colocam

cadeiras em outras mesas, às vezes formando grupos de oito amigos conversando, às

vezes indo para uma mesa do fundo dormir, ou conversar em particular com algum amigo

mais próximo. Isso também ocorre em salas de aula convencionais, mas a diferença aqui

é que não se trata de uma desobediência, mas da autonomia criada para definir o uso do

espaço e do próprio tempo.

Com os alunos mais novos, há um controle maior para que cada um se sente no

próprio lugar, segundo as professoras, por que sendo eles pequenos, ainda não percebem

as exigências do uso coletivo do espaço, ainda estão aprendendo a perceber as

necessidades dos colegas com quem compartilham o salão e, por isso, o uso deste é

diferente com as crianças menores.

- As diferenças nos anos iniciais da escola

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental o uso do salão é distinto do observado

entre os mais velhos. Formalmente, existe em cada salão três turmas diferentes. No

Fundamental II essa divisão é mera formalidade que facilita o controle de presença e

acompanhamento dos alunos, na prática os alunos mal se lembram em qual grupo estão.

Já entre os pequenos, as três turmas simbolizam uma divisão real. No começo do ano,

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cada uma das turmas escolhe um nome e no começo de cada dia há um planejamento

detalhado das atividades de cada grupo. As professoras procuram evitar ao máximo que

todas as três turmas estejam no salão ao mesmo tempo. Por este motivo, os salões das

crianças menores são mais silenciosos.

Essa dinâmica, uma professora do 3º ano explicou, funciona melhor para os

pequenos, pois têm mais energia e começam a ficar nervosos se passam um dia inteiro no

salão. Também precisam ser acompanhados mais de perto, assim os grupos menores

tornam as coisas mais fáceis. A mesma professora comentou que é neste momento, do

Fundamental I, que se está construindo a autonomia que se espera nos mais velhos, mas

é irreal esperar que isso seja aprendido rapidamente. É necessário construir as bases para

isso, as crianças menores demandam esse uso do espaço. Já que o salão das crianças

pequenas costuma estar mais vazio, é possível transformar o espaço, deixá-lo mais lúdico,

até mesmo para atividades físicas, como gincanas. Frequentemente as professoras

montam o “canto da leitura”, no qual colocam cobertores e almofadas no chão e a criança

que sentir vontade pode ler um livro da seleção feita pelas professoras. O uso desse espaço

é livre para quem quiser, quando quiser, mas as professoras costumam restringir a não

mais do que cinco ou seis crianças por vez.

Nos salões dos menores há também um controle maior de onde cada um está

sentado, mas esse controle pode ser negociado. Parece um trabalho de, aos poucos, ir

permitindo mais liberdade de decisão a cada criança, criando maior confiança e

observando o que a criança faz com suas novas conquistas.

Todo começo de dia há a roda de conversa, para a qual as crianças mudam a

configuração do espaço, afastando mesas e cadeiras e deixando grande parte do salão livre

para que todos sentem em roda no chão, terminada a roda, as crianças devolvem tudo ao

lugar anterior.

O formato das rodas varia de acordo com as professoras. Algumas fazem

exercícios de relaxamento, outras contam histórias. A roda, quase sempre, inclui um

momento para as crianças que quiserem compartilhar algo sobre suas vidas “Minha mãe

descobriu que vai ter dois nenéns” ou “Ontem eu dormi na casa da minha vó e comi um

monte”. Normalmente há também um momento de fala das professoras, sobre assuntos

coletivos como o planejamento para o dia, ou algo que aconteceu na escola, sobre algum

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feriado que se aproxima, ou algo de importante que esteja acontecendo no país.

Os salões, quando utilizados pelas crianças mais novas, costumam estar sempre

com as mesas alinhadas perfeitamente. Entre os mais velhos, ao longo do dia, as mesas

são mais aproximadas ou afastadas, para que se possa conversar – ou demonstrar que não

se quer conversar – com alguém. Mais uma vez percebemos como os mais velhos já têm

mais consciência do uso do espaço, pois são capazes de fazer isso, ou juntar cadeiras, de

maneira que não prejudique a circulação pelo salão, sem que nenhum adulto precise

explicar isso. Já as crianças pequenas, que se preocupam muito em deixar as mesas no

lugar ‘certo’ e se incomodam se há cadeiras em lugares ‘errados’, muitas vezes

demonstram ainda não ter assimilado a necessidade de circulação que o salão demanda,

esquecendo mochilas e lancheiras no caminho, de modo que as professoras

constantemente devem lembrá-las de liberar o caminho.

Para além do roteiro nos salões, os estudantes de todas as idades, têm momentos

em outros espaços. Em geral em grupos menores, orientados por uma só professora, mas

às vezes também individualmente ou em duplas. Durante os intervalos os estudantes

podem percorrer o espaço do CEU, que é grande, arborizado, colorido e tem wi-fi livre.

Figura 21 Professora lendo com estudantes do 4º ano em roda o Manifesto da 20ª Caminhada da Paz. Fonte: Jornalistas Livres

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Também é comum ver grupos de alunos com professores fazendo alguma atividade no

espaço. Isso também contribui para a integração da escola com a comunidade, afinal, o

CEU é constantemente ocupado por moradores da região que encontram os estudantes e

podem observar parte das práticas da escola. O lugar mais indicado entre os entrevistados

como o espaço favorito da escola foi a quadra, adjacente a esta há mesinhas de concreto,

onde os alunos mais velhos gostam de conversar e logo ao lado um parquinho onde as

crianças brincam.

Este uso mais livre do espaço é possível não somente pelas mudanças feitas no

prédio da escola, mas também pela transformação do tempo escolar. Tendo abandonado

o cronograma de aulas, a escola não define exatamente quando se pode ocupar cada

espaço. O uso do pátio para a realização de alguma atividade, por exemplo, pode ser

negociado a qualquer momento. Deste modo, é importante entendermos como se dá a

organização, percepção e vivência do tempo escolar na Campos Salles.

3.1.2 A experiência do tempo escolar e do tempo de aprendizagem

O tempo escolar é entendido tanto como linear, como cíclico (TUMA, 2001). É

linear por ser sequencial, nas atividades e conteúdos, assim como nas avaliações. Tudo é

organizado e realizado em direção a um fim fixo, passar de ano. Cada ano, por sua vez, é

um degrau, da sequência maior, em direção à formatura. É também cíclico, pois todo ano

começa da mesma maneira, o estudante passa pelas mesmas etapas, bimestre após

bimestre, composto de aulas, revisão e prova, até o último bimestre, quando idealmente

passa de ano, para recomeçar tudo no ano seguinte. A semana também repete essa

ciclicidade, e o próprio dia é cíclico. Todo dia é o mesmo horário de entrada, seguido por

três períodos de aulas de 50 minutos, um período de intervalo, mais três aulas de 50

minutos e finalmente, a tão esperada saída, sempre no mesmo horário.

Estes dois padrões, cíclico e linear, persistem na Campos Salles. A ciclicidade

anual se mantém. Apesar de o projeto diferenciado muitas vezes realizar mudanças

organizacionais de um ano para o outro, a escola segue o calendário da prefeitura,

incluindo férias no meio do ano etc., além dos eventos da comunidade que se repetem

todo ano, a Caminhada da Paz, a festa junina aberta para a comunidade etc. A ciclicidade

diária persiste por haver horário determinado para a entrada, saída e intervalo, como é

padrão em toda a rede municipal, ainda que o trabalho escolar que se realiza nesse período

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seja organizado de outra maneira. Quanto à linearidade, há também aqui, as séries que

são etapas até a formatura.

A maior mudança no tempo escolar da Campos Salles, seria a priorização do

tempo individual de aprendizagem, e é aí que a linearidade foi rompida. A sequência de

conteúdos que ocorre na maioria das escolas supõe a existência de um tempo pré-

determinado para a transmissão de cada conteúdo e vê o tempo como algo linear que

aponta em direção a um fim, em termos gerais, ao progresso.

Adorno (1992) pensa o mito do progresso baseado no fetiche da história universal

e única. O mito nega a dialética da história, apagando contradições e resistências,

provendo uma história única, cuja evolução é medida pelo progresso tecnológico. Essa

ideologia é essencial ao sistema capitalista, pois justifica a exploração, a destruição do

planeta, tudo em prol de um fim maior, ao mesmo tempo que apaga diversidades e as

encaixa numa escada ascendente em direção ao progresso, como se algumas culturas

fossem anteriores e outras mais avançadas. Esta ideologia permeia a maneira como

vivemos o tempo, nossas decisões e objetivos e nossa maneira de educar.

Se o tempo é visto como algo que se desloca em direção ao progresso, ele não

pode esperar. Na escola convencional, isso é muito facilmente observado. Se o aluno não

o aprendeu o conteúdo até o dia da prova, ‘ficou para trás’. Se o aluno não vai a aula, ele

Figura 22 - Reprodução da lousa no início da manhã no 3º ano em 2017. Fonte: Caderno de Campo.

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‘perde matéria’, ‘fica com falta’. Isto é, se não se acompanha o ritmo, ou a frequência da

escola, deixa-se de aprender. O ensino não pode parar para que a aprendizagem o

acompanhe. Já na Campos Salles, não há prazos, não há ‘dia da prova’ ou ‘final de

bimestre’, assim, há uma intenção de afastar a ideologia do progresso, ainda que ela

inevitavelmente paire sobre a escola.

A rotina dos estudantes da Campos Salles é organizada de maneira diferente e os

roteiros não apresentam, em si, uma sequência. No dia a dia, os alunos do 8º ano

organizam a própria rotina em torno do roteiro de estudos, realizando as atividades

propostas em seu próprio tempo. “Eu chego, tomo o café da manhã, aí eu faço as minhas

lições junto com a minha colega que senta aí, os roteiros, né? Quando a gente termina

joga alguma coisa, mexe um pouquinho no celular. Aí dá a hora do intervalo e a gente

sobe, às vezes tem oficina” (Daniele). A maioria das pessoas entrevistadas descreveu o

começo das atividades de maneira similar: “Hmm eu chego na escola aí a gente faz o

planejamento, escreve o que vai fazer durante a aula. Espera os professores corrigirem,

aí quando eles terminam a gente começa a fazer as atividades” (Juliana). Daniele

também menciona o planejamento, momento no começo do dia onde cada um organiza

as atividades que pretende realizar. “Eu escrevo em que roteiro eu estou, a data e a

atividade que irei fazer”. Ela conta que costuma planejar cinco atividades por dia, mas

nem sempre consegue fazê-las. “Às vezes não, às vezes sim, depende muito (...) Porque

se envolve vídeo aí tem que assistir uns dois, três e aí leva mais tempo” (Daniele, 2017).

O planejamento é a escrita de uma sequência de atividades que acontecerão no

dia. A professora coloca na lousa atividades gerais e os alunos devem copiar somente o

que lhes diz respeito, já que frequentemente oficinas acontecem em dias diferentes para

cada grupo do salão. No caderno, portanto, cada um escreve o que fará naquele dia, cada

planejamento individual é diferente.

No ciclo de alfabetização, o planejamento na lousa já é mais detalhado (Figura

11), para facilitar a organização individual das crianças. A professora indica na lousa

espaços que espera que os alunos preencham no caderno. Há uma listagem de espaços

disponíveis em cada período e o horário das atividades coletivas, entrada, saída e recreio

e ainda um campo para completar com a autoavaliação no final do dia.

O planejamento é uma maneira de firmar a responsabilidade dos estudantes com

as atividades. Não há, entretanto, a necessidade de preenchimento heterônomo do tempo.

Cada estudante decide, de maneira autônoma, diante das possibilidades oferecidas em

cada dia, o que fará e isso pode incluir tempo de descanso e lazer, não se exige que todo

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o tempo passado no salão seja ‘produtivo’ e, principalmente entre os mais velhos, há

pouco controle do que está sendo feito a cada momento, as professoras acompanham o

processo de cada um principalmente através da checagem diária dos planejamentos,

durante as quais perguntam como foi o dia anterior e pelas avaliações de roteiro.

Os roteiros não são pensados com atividades necessariamente sequenciais. Isto é,

em geral, os blocos de exercícios, aos quais os alunos se referem como ‘atividades’ têm

uma sequência interna, mas as diferentes atividades que compõem o roteiro quase sempre

podem ser realizadas na ordem que o estudante preferir. Assim, os alunos têm liberdade

para organizar o tempo que dedicam ao roteiro da maneira que preferirem.

Para cada aluno essa gestão do tempo se dá de maneira diferente. Os alunos

acostumados com o roteiro, ao começarem a trabalhar nele já ficam atentos ao que

precisarão, caderno, lápis de cor, livro de ciências, dicionário, livro, varia, mas sempre há

uma preparação e isso é levado em consideração no cálculo das atividades a serem

realizadas em cada dia.

Ao decidir o que farão em um dia, alguns estudantes definem exatamente o que

farão, alguns só colocam o ponto em que vão começar, como Tadeu: “Eu não decido, eu

vou no flow120, vou até onde dá, até cansar”. Já Fabi estabelece as metas de antemão,

mas levando em consideração sua experiência a garota sabe estimar o que conseguirá

fazer: “Cada aluno tem que saber até onde consegue ir num dia. Eu, num dia, quando eu

estou muito disposta, eu consigo fazer duas atividades. Dependendo de quantos

exercícios tem nessas atividades”. A garota prefere fazer assim, pois desse modo tem

120 Flow, em inglês, significa fluxo. Entre os jovens paulistanos é uma gíria utilizada para descrever um tempo natural,

sem limite externo ou planejamento.

Figura 23 - Reprodução de caderno de um estudante do 8º ano. Fonte: Caderno de campo, 2017

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certeza que conseguirá de fato fazer tudo que escrever no planejamento.

Essa gestão do tempo também leva em consideração a dificuldade das atividades

ou, muitas vezes se contém algo que o estudante considera chato ou difícil e pode ser

adiada. “Quando uma atividade eu não estou sabendo, quero pular para uma atividade

que eu acho mais fácil, que eu acho mais interessante, aí eu pulo. Vou lá e faço outra. Aí

depois eu chamo o professor e volto na questão que eu não estava entendendo (Tadeu).

Outros alunos preferem fazer as atividades exatamente na ordem em que aparecem, como

Juliana: “tem muita gente que tipo, tá ruim em matemática e fala ‘ah eu não vou fazer

matemática hoje, eu vou fazer, sei lá, geografia’, só que eu não, eu costumo fazer como

tá, matemática, português, tudo um depois do outro, certinho. Acho melhor”.

Como já foi mencionado, não existe a expectativa de que o estudante da Campos

Salles ‘preencha’ completamente o tempo que passa no salão com as atividades. O

descanso e o lazer são permitidos desde que não sejam um empecilho ao aprendizado.

Ah, eu chego, eu sento no meu lugar (...) mexo um pouco no celular e

aí quando começam a escrever na lousa, eu paro e faço a minha lição.

Às vezes, claro, tem aquela hora que você dá uma escapada, entra no

Instagram, vai mandar mensagem pra sua amiga, vai no Twitter, vai

em todas as redes sociais (Manu).

O que Manu relata não é diferente do que acaba acontecendo em qualquer escola,

a questão é que aqui, não é proibido. Muitas vezes um professor que encontra um aluno

usando o facebook no celular, o repreende, mas diante da explicação de que ‘já fiz todo

meu planejamento’ ou ‘ainda tô com muito sono, faço atividade depois do intervalo’, o

momento de lazer pode ser negociado. Não há aqui o tempo econômico121, aquele que

preenche todo o espaço temporal com coisas úteis e planejadas de antemão, mas um

tempo que prioriza as necessidades individuais, tanto físicas quanto educativas e sociais,

sobre a produtividade. Quando indagado sobre as pausas que faz na realização dos

roteiros, Tadeu explica:

Assim, os professores eles permitem a gente ouvir música, eles não

permitem a gente parar a nossa lição de vez para mexer no celular.

Eles falam assim: “quer ouvir música, mas ouça música fazendo

lição”. Aí a gente coloca o fone, às vezes a gente para pra mudar a

música, aí muda, desliga, aí às vezes não tem como, a gente para pra

conversar… para de fazer lição o grupo e sabe, começa a ficar uns

cinco minutos, uns dez minutos conversando… normal, eu acho, né?

121 Expressão de E.P. Thompson (1998) que alude a uma percepção do tempo como algo que não pode ser

‘desperdiçado’ e deve ser inteiramente preenchido de forma racional, ou seja, produtiva. Esta discussão será

aprofundada no próximo capítulo.

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(Tadeu).

Os alunos dizem gostar de poder decidir o que estudam e quando, em qual ritmo,

mas ao mesmo tempo, criticam quem aparenta ‘não fazer nada’. Mesmo nessa última

citação de Tadeu, o menino procura aparentar ser produtivo. Há uma preocupação em não

‘se atrasar’ ou ‘ficar para trás’ com os roteiros. A valorização da produtividade continua

presente entre os alunos, que a associam a responsabilidade. É uma internalização da

disciplina produtiva que ultrapassa o projeto da escola. Isso se mostra presente na

competição que existe entre os ‘melhores alunos’ sobre qual roteiro se está. O aluno que

está no 11º está ‘na frente’ de quem está no 9º e isso confere ao primeiro um status de

superioridade, similar aquele conferido ao trabalhador que é visto como mais produtivo

do que seus colegas. Mas o ganho real que essa produtividade oferece ao trabalhador é

questionável. Da mesma maneira, o aluno que realiza os roteiros mais rápido não

necessariamente aprende mais, mas é percebido socialmente como ‘bom aluno’.

A particularidade da Campos Salles é que essa imagem de ‘bom e mau aluno’

coexiste com a exaltação da possibilidade de fazer o roteiro com calma. Essa

competitividade é trazida pelos alunos não pelos professores ou pela gestão, não há

medalhas ou menções honrosas para o estudante mais rápido. Essa dinâmica permite que,

na prática, alguns alunos não se importem de ficar ‘para trás’, desde que não seja ‘muito

para trás’. Kelly diz que gosta de fazer suas atividades devagar e com calma, elogia o

roteiro justamente neste aspecto de respeito ao tempo individual de aprendizagem. “Gosto

[de fazer roteiro], acho que a gente tem mais tempo, assim, pra aprender alguma coisa

que a gente não sabe. Porque nas escolas normais não tem esse tempo todo pra gente

aprender. A gente aprende mais, eu acho”. A avaliação da estudante indica que, ainda

que não seja capaz de romper completamente com a busca por produtividade, a escola

oferece a possibilidade de outra experiência de tempo escolar.

3.1.3 Momentos de ensino e aprendizagem

Se o roteiro de estudos transforma o tempo de aprendizagem, ainda resta entender

como acontece esse aprendizado. Para tanto, a primeira questão a ser abordada é o que se

quer ensinar. O projeto da Campos Salles tira a prioridade dos conteúdos escolares e busca

a formação de uma pessoa cidadã, isto é, ciente de seus direitos e respeitadora das pessoas

à sua volta. O PPP não define precisamente o que é uma pessoa cidadã, mas esta definição

de educador-cidadão ajuda a elucidar a questão:

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121

Ele busca não só a mudança da escola, mas também a mudança da

sociedade, juntamente com os outros agentes educativos que não estão

dentro da escola. Sabe que a escola e a sociedade mudam juntas.

Interage com o aluno contextualizado, pois é portador de uma visão de

mundo que leva em consideração as estruturas políticas, econômicas,

históricas e culturais que moldam os sujeitos. Ajuda o aluno a perceber

que a sociedade que não atende aos direitos referentes à vida, à saúde,

à moradia, à alimentação etc., compromete os outros direitos, até

mesmo o direito à educação (PPP, 2012).

A partir deste trecho se nota a valorização da formação política e a compreensão

de cidadania associada a atuação política e visão crítica. Esta formação, que a escola

chama de cidadã seria fruto da educação conscientizadora é: “a educação como prática

da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade"

(FREIRE, 1980, p. 25). A escola, alinhada com Paulo Freire, acredita que para uma

educação transformadora tanto da sociedade quanto das vidas dos educandos, a

transmissão dos conteúdos escolares não podem ser o objetivo principal. Como Freire, a

Campos Salles acredita que “é preciso, portanto, fazer desta conscientização o primeiro

objetivo de toda educação: antes de tudo provocar uma atitude crítica, de reflexão, que

comprometa a ação” (FREIRE, 1979, p. 40).

Os conteúdos escolares podem ser instrumentais para este objetivo, mas não são,

em si, prioridade para a escola, o que se reflete no PPP:

Quanto aos estudantes, os roteiros de estudo visam o desenvolvimento

das habilidades e competências, a apropriação dos conhecimentos

historicamente acumulados pela humanidade, a construção de

conhecimentos, a competência para trabalhar em equipe, o uso das TIC

como ferramenta de aprendizagem e comunicação, a vivência de

princípios e construção de valores éticos que envolvem o exercício da

autonomia, da responsabilidade e da solidariedade (PPP, 2017, p. 42).

O documento apresenta os objetivos do Bairro Educador, vistos no primeiro capítulo e

que, sozinhos, já demonstram a prioridade que se dá à formação do cidadão. O texto

segue para objetivos do ensino fundamental, definindo conteúdos, metodologias e formas

de acompanhamento e avaliação como meios para um fim, e não o fim em si. Prioriza

cidadania, participação política comunitária e pensamento crítico, conhecimento e

respeito às variadas culturas brasileiras e formas de vida, construção da autoconfiança e

habilidade de trabalhar em equipe. Para o EJA, os objetivos são no sentido de garantir

permanência dos estudantes e fazer um trabalho contextualizado, que leva em

consideração as especificidades dos jovens e adultos.

Nos objetivos atribuídos a cada área de conhecimento, prioriza-se o que chamam

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de habilidades e competências122, que estão relacionadas à ideia de que o aluno deve

saber fazer. É uma postura que busca se afastar da ‘decoreba’ de conteúdos, privilegiando

aprendizados práticos e que o consiga ‘aprender a aprender’, ensina-se hábitos de estudos.

Esse posicionamento da escola pode ser observado na busca por uma formação para a

cidadania que prioriza o desenvolvimento de posturas também consideradas cidadãs, que

possam ser transportadas para a vida além da escola, como observamos nos objetivos da

área de matemática e ciências, que são pensadas como instrumentais para o

desenvolvimento de um pensamento crítico, como se verifica no seguinte objetivo:

“Trabalhar os conhecimentos matemáticos como meios para compreender e transformar

o mundo à sua volta e perceber o caráter de jogo intelectual, característico da

matemática”.

Entre os objetivos da área de Linguagens listados no PPP se expressa a prioridade

de construir a habilidade de trabalho em equipe e de convivência respeitosa:

- Desenvolver a capacidade de agir de modo construtivo nas diferentes

situações; - Possibilitar e ampliar o espaço de diálogo, discussão e

argumentação, fundamentais na aprendizagem da cooperação e no

desenvolvimento de atitudes de autoconfiança, de capacidade para

interagir e de respeito ao outro, apropriando-se de regras pré-

estabelecidas ou construídas pelo grupo;

Na área de História e Geografia, busca-se estimular o estudante à pesquisa “a fim

de comparar dados, informações e o processo de desenvolvimento histórico da

civilização em seus diversos aspectos”, contribuindo para a formação de um pensamento

crítico. Outro objetivo é lançar as bases para: “Compreender as alterações nas formas de

produção, identificando suas relações com os aspectos sociais e culturais, assim como o

processo de transformação da história da humanidade”.

Todos estes objetivos postos no PPP podem ser relacionados ao projeto do Bairro

Educador pelos princípios de autonomia, solidariedade e responsabilidade. Em conversa

com os professores afirmaram que os princípios são as metas e matrizes de seu trabalho.

Esta mudança na direção do trabalho pedagógico, entretanto, pode gerar confusão, ou

mesmo discordância de estudantes.

Este é o caso de Francine, que tem orgulho em contar que sempre está no roteiro

mais avançado do salão. Ela foi objeto de muitas conversas na sala de professores, pois

acreditava ser perseguida, já que mesmo sendo sempre a ‘mais avançada’, nunca tinha

122 Os currículos oficiais são organizados em torno de habilidades e competências a serem desenvolvidas nos alunos

em vez de conteúdos a serem transmitidos.

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nota 10 no boletim. A menina desaprovava o projeto, dizia que era uma bagunça e havia

‘falta de compromisso’. Era notável o desencontro de objetivos entre ela, que priorizava

o acúmulo de conteúdos e a equipe da escola que explicava privilegiar a ‘vivência dos

princípios da escola’. Assim, a menina fazia todos os exercícios e decorava muitas das

respostas, mas sempre demandava muito tempo dos professores e se recusava a ajudar os

colegas de mesa, afirmando que ‘explicar é o trabalho da professora’. A menina

acreditava que estava sendo privada de um direito, de ter aulas expositivas na lousa em

salas menores. Em sua escola anterior, a menina contava que era ‘a melhor da sala’ e que

isso não acontecia aqui, pois não era ‘uma escola de verdade’.

Alguns estudantes afirmaram sentir falta de conteúdos de História e Geografia.

Em relação a isso, professoras me responderam que isso pode acontecer em todas as

escolas, mas na Campos Salles, há a escolha de ensinar outras coisas, ‘o que se ensina, se

ensina direito’. Lincoln, um dos alunos mais apaixonados pelo projeto da escola na

entrevista explica que apesar de não haver certos conteúdos, o roteiro propõe outro tipo

de aprendizagem, mais crítica: “te estimula a pensar e [o roteiro] faz perguntas que fazem

você realmente pensar, mas não só perguntas acadêmicas, mas, sabe, perguntas de

problemas sociais e esse tipo de coisa”.

Outra mudança que este projeto traz é a tentativa de deixar o ensino mais dinâmico

e interessante. Vitor Paro (2016) apresenta falas de crianças, que estudam em escolas

convencionais, falando que estudar e ir à escola são coisas necessariamente chatas e

desagradáveis, que só o fazem por serem obrigadas. Ao apresentar a fala de uma criança

que afirma que o estudo jamais será interessante por ser repetitivo e que legal é quando

a professora dá alguma coisa pra gente desenhar, pra gente pintar, porque só ficar

escrevendo também cansa (PARO, 2016, p. 253), o autor analisa:

Esta fala parece muito reveladora de certa concepção do ensino que

transita entre os alunos da escola pública – e mesmo entre profissionais

do ensino – e que deveria merecer maior atenção de pedagogos e

responsáveis pela educação pública em geral. Se por um lado mostra a

opinião da maioria dos alunos da escola de que o estudo é algo

intrinsicamente desagradável e chato, o discurso de Mônica revela, por

outro lado, que esse mesmo ensino pode ser ‘legal’, dependendo da

forma como ele se apresenta, muito embora a aluna disso não tenha

consciência: para ela, desenhar, pintar, brincar etc. não fazem parte

do ensino, mas de uma espécie de trégua que a escola oferece para se

suportar o ensino (PARO, 2016, p. 253).

Esse já não é o caso da Campos Salles, somente duas das pessoas entrevistadas

afirmaram não gostar de ir à escola. O aprendizado é visto como algo divertido e

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interessante. Uma questão que fiz a todos os estudantes foi “Como você faz para aprender

um conteúdo novo?” e a resposta de Lincoln levou à conclusão de que o aprendizado é

contextualizado e desperta o interesse dos alunos:

Eu acho que na maioria das vezes eu aprendo alguma coisa nova

quando é aquilo que fala sobre o que eu gosto. É o que os professores

fazem muito e que eu acho muito bom. Eles fazem meio que uma

pesquisa no salão para saber o que os alunos estão curtindo

ultimamente e daí eles dão um jeito de incluir aquilo nas oficinas (...) é

do ser humano, quando fala de algo que a gente gosta já faz a gente se

prender àquilo, prender a atenção e prestar atenção.

Sobre as diferentes maneiras de aprender algo novo, Black me ofereceu uma

explicação objetiva “eu aprendo lendo ou vendo”. Outros, como Juliana, indicaram pedir

o auxílio do professor diante de algo novo, “chamo o professor (...) pra ele explicar pra

gente. Eles explicam, explicam até a gente entender. Até a gente mesmo explicar pra eles!

Aí eles veem que tá certo e deixam a gente fazendo” e Leandro, só como um segundo

recurso: Eu leio aí se eu não entendi eu chamo o professor. Fabi também procura

pesquisar sozinha antes: “Pesquiso primeiro para saber o que é. (...) Se tiver texto eu

procuro no texto, qualquer coisa no google e quando não deu… aí que eu peço pra

professora”. A garota também afirma utilizar o celular para pesquisar. Alguns poucos

apontaram o grupo como primeira opção para a resolução de dúvidas:

[Para aprender um conteúdo novo] Normalmente eu peço ajuda para as

pessoas do grupo e daí eles explicam e daí se eu não entendo eles

explicam de novo e daí se eu vejo que não vai ter jeito daí a gente chama

o professor e é algo muito bom, porque nessa escola o professor só sai

do seu grupo enquanto ele vê que você entendeu, enquanto você der

uma explicação correta para ele e eu acho que isso não acontece em

outras.

Quando não há mais dúvidas e o estudante, ou grupo, sente que já sabe o que era

esperado naquele roteiro, chama as professoras para a ‘correção’. Esse momento inclui a

verificação de respostas corretas nas atividades escritas do roteiro, mas é principalmente

um momento de checagem oral de aprendizado. “Consegue me explicar o que isso quer

dizer?”, “Como você chegou nessa conta?” e “Porque será que a gente te pediu para

fazer isso?” são algumas das perguntas que ouvi as professoras fazendo durante essa

correção. No fundamental 2, isto é, entre o 6º e 9º ano, os professores são especialistas,

contratados por disciplina, por isso, em geral os alunos chamam a pessoa especialista de

cada matéria para tratar de cada conteúdo. Isso suscita o questionamento a respeito do

caráter interdisciplinar do roteiro. É de fato um material interdisciplinar se, ao realizá-lo,

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os alunos entendem que estão realizando tarefas de diferentes disciplinas? Trata-se de

uma coleção de atividades associadas às diferentes disciplinas escolares compiladas em

um mesmo material? Há alguns anos o roteiro era de fato dividido por disciplinas o que

foi criticado pela própria equipe pedagógica e motivou a transformação desse formato. A

prática da interdisciplinaridade é um objetivo da escola, mas a pesquisa de campo mostrou

que sua concretização ainda está sendo elaborada.

O momento da correção também indica que os alunos desenvolvem a habilidade

de perceber que aprenderam e que estão prontos para o diagnóstico de aprendizagem. Isso

diz muito sobre o aprendizado que ocorre na escola, afinal, esse é um exercício que

demanda autoconhecimento assim como a percepção dos objetivos pedagógicos

colocados no roteiro e a intenção geral das atividades. Nas escolas convencionais o tempo

das avaliações marca o tempo esperado para o aprendizado de determinado conteúdo e os

objetivos das atividades dificilmente são explicados para os estudantes.

A habilidade de notar o próprio aprendizado é também necessária para ‘aprender

a aprender’, um objetivo educacional defendido em documentos da UNESCO e nos

Parâmetros Curriculares Nacionais que prioriza a capacidade do estudante de aprender

sozinho e está relacionado à organização de currículos a partir das ‘habilidades e

competências’ que se espera que os alunos desenvolvam.

Quanto ao que chama de “pedagogias do aprender a aprender”, Newton Duarte

(2001) realiza uma crítica na qual afirma que essa linha educativa se trataria de uma

apropriação neoliberal de teorias pedagógicas como as de Vigotski. O autor acredita que

essa ideia está baseada em pressupostos ideológicos, sendo dois deles que:

1) aquilo que o indivíduo aprende por si mesmo é superior, em termos

educativos e sociais, àquilo que ele aprende através da transmissão por

outras pessoas; e 2) o método de construção do conhecimento é mais

importante do que o conhecimento já produzido socialmente

(DUARTE, 2001, p. 37).

Esses pressupostos indicam uma disposição de valorizar aquilo que é individual

em relação ao social, isto é, prioriza-se o aprender sozinho e o aluno autossuficiente, sobre

a partilha do saber socialmente construído, de experiências históricas e coletivas. Duarte

afirma que o ‘aprender a aprender’ também supõe a compreensão da realidade,

especialmente no que diz respeito ao trabalho na sociedade capitalista atual, entendendo

que as relações trabalhistas têm se tornado cada vez mais flexíveis e instáveis. O intuito

dessa compreensão, entretanto, não seria, segundo o autor, de possibilitar sua crítica e

transformação, mas de transformar o estudante em um trabalhador adaptado a essa

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concretude, “conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e

construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social

radical, mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo

dos indivíduos” (DUARTE, 2001, p. 38).

Contraditoriamente, encontramos na Campos Salles a priorização de conteúdos

que indicam uma crítica a opressões estruturais e uma priorização de demandas locais.

São abordados temas como Direitos Humanos, o combate ao racismo à homofobia e à

desigualdade social, os problemas da comunidade. Sobre este último, se vê na época que

antecede a Caminhada da Paz um intenso debate na escola. Mesmo as crianças pequenas

fazem atividades como desenhar Heliópolis, sua rua ou as soluções que sonham para os

problemas da região. Os mais velhos discutem esses problemas, também desenham e

escrevem contribuições para o Manifesto da Caminhada, há também um roteiro próprio

da Caminhada. Entre os desenhos feitos para a Caminhada vi retratada a falta de moradia,

a violência policial, o tráfico de drogas, o desemprego, mas também a escola, a biblioteca,

o CEU e os espaços favoritos para brincar na região. Esses retratos de Heliópolis decoram

os salões e corredores da escola.

Há, portanto, uma preocupação em construir uma consciência de classe entre os

alunos. Além disso, as lideranças comunitárias, a UNAS e a equipe pedagógica declaram

o interesse em promover uma formação política e crítica. Assim, a mesma escola que

ensina os estudantes a tornarem-se trabalhadores melhor adaptados às atuais formas de

precarização de trabalho na sociedade capitalista propõe uma formação política e crítica

dessa sociedade. Entendendo que a escola tem a função social de formar trabalhadores, a

Campos Salles não teria condições de abrir mão disso se ensina os filhos da classe

trabalhadora. Se a comunidade, as lideranças, estudantes e a equipe escolar querem

construir na escola um espaço para a crítica, a contradição parece inevitável.

- Oficinas

As oficinas são um espaço de aprendizagem que tem dinâmica diferente dos

salões, acontecem em salas menores que tem esse fim específico, com uma professora só.

Leandro as indicou como um momento importante: “as oficinas a gente aprende coisas

novas e a professora tira mais dúvidas”. Fabi as indicou como momento para aquilo que

era mais desafiador: “Se é uma coisa muito complicada aí tem as oficinas. Que é com

turmas mais pequenas, que é pra entrar mesmo no assunto”. As oficinas são

desenvolvidas conforme se diagnostica uma dificuldade entre os alunos, partindo de

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temas de seu interesse.

Nas últimas oficinas de matemática que a professora estava falando de

porcentagem e daí ela colocou várias músicas da atualidade, por

exemplo, Wesley Safadão, “Você não merece 1% do amor que eu dei”

porque além da gente estar falando de algo que a gente gosta, a gente

tá aprendendo algo e ela conseguiu juntar essas duas coisas, que é algo

que eles conseguem fazer. (...) o inglês com música que ele pega,

músicas que a gente curte, internacionais, de vários artistas e daí ele

(…) estuda a biografia daquele cantor em inglês, ele passa músicas

daquele artista e várias outras coisas, filme depois a gente faz algumas

redações em inglês e é bem legal (Lincoln).

A intenção desta atividade é que não se reproduza o modelo da aula expositiva,

mas um grupo de estudos, organizado em torno de uma atividade que parta de algo que

interesse aos alunos. Neste espaço, mais frequentemente, a busca da interdisciplinaridade

é abandonada, a oficina de matemática acontece com a professora de matemática para

resolver um problema de matemática. Ainda assim, o modelo é também utilizado para

outras discussões, como a oficina de sexualidade, centralizada por uma professora

formada em biologia, mas construída, em cada ano, com profissionais de áreas diferentes.

As oficinas de matemática foram apontadas como o momento favorito na escola por

vários estudantes, Manu elogia a professora: “Ela sempre tenta ensinar a gente de um

jeito diferente, um jeito mais animado”.

Manu avalia que aprende bastante na escola, mas acredita que isso seja apesar do

projeto, pelo bom trabalho realizado por professores específicos. Ela está entre os três

estudantes entrevistados que tinham críticas mais profundas ao projeto juntamente com

Daniele e Black:

- É uma maneira diferente das outras escolas, porque nas outras

escolas a gente fazia as lições na lousa, tinha (...) o próprio

planejamento do professor e aqui a gente faz o nosso, é bem diferente.

- E você não gosta por quê?

- Pelo jeito diferente deles ensinarem a gente acaba não aprendendo

muito. O meu irmão, ele estudou aqui até o terceiro ano e ele tá

aprendendo a ler e a escrever só agora indo pro quarto.

- Mas, assim, e com o roteiro? Você acha que você não aprende?

- Não muitas coisas, a gente aprende o que é necessário para eles. A

gente não tem História, as coisas que precisa a gente não tem (Manu).

As críticas, em sua maioria, se relacionam com a vontade de que a escola seja

mais como as outras escolas, e de ter mais conteúdos, mais disciplina e mais tempo para

fala dos professores. Por outro lado, muitos dos estudantes que acreditam que o projeto

da Campos Salles funciona melhor, afirmam não só que se trata de um espaço mais

seguro, mas que também se aprende mais aqui. Este é o caso especialmente com

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estudantes oriundos de outras escolas nas quais tinham dificuldades e isso se dá, em

grande parte, pelo trabalho realizado no Grupo de Avanço.

- O grupo de avanço

Em todos os salões há um grupo que reúne alunos com dificuldades,

principalmente de alfabetização, com professoras especialistas que oferecem outras

atividades além de um acompanhamento mais próximo.

Estudantes que não dominam a escrita e a leitura serão agrupados, no

seu período de estudo para que sejam alfabetizados. Esta ação tem

como objetivo evitar que o estudante chegue no 4º ano sem dominar a

escrita e a leitura. Esses grupos de estudantes receberão roteiros de

estudos diferenciados. São eles: roteiro de avanço (para estudantes que

ainda não atingiram a hipótese de escrita alfabética ou são recém-

alfabéticos) e roteiros intermediários (para aqueles que já se

apropriaram do sistema de escrita, porém, ainda precisam avançar na

interpretação e na produção de textos). A Coordenação Pedagógica e

a Direção supervisionarão a utilização das atividades ou recursos

descritos acima, em cada ano, sempre com o foco nos princípios da

autonomia, responsabilidade e solidariedade (PPP, 2017).

O trabalho do grupo de avanço é bem ilustrado pelo caso de Marcos, do 8º ano. O

aluno, muito tímido, recusou-se a ser entrevistado, mas sempre conversávamos

informalmente. Nunca fazia as atividades e quando era cobrado em relação ao estudo,

copiava o roteiro de alguém, recusava-se terminantemente a participar das atividades que

seu grupo fazia. Ele se sentava com Francine, que criticava muito a escola. Quando ele

começou a me procurar para falar sobre o projeto, percebi que seu interesse era explicar

que a escola não era ‘tão ruim quanto a [Francine] acha’, elogiou, espontaneamente, os

professores o espaço e o ‘clima’.

Durante essas conversas foi possível entender a relutância do aluno em trabalhar

em grupo: ele não sabia ler. Como era recém-chegado na escola, ainda não tinha sido

indicado para o grupo de avanço. Para isso, as professoras passaram por um lento

processo de conversa para ganhar a confiança do estudante, tinham muito cuidado em

dizer que frequentar o grupo de avanço não era vergonha ou sinal de falta de inteligência.

O aluno não admitia não saber ler. Copiava palavras muito bem, mas não sabia o

significado do que copiava. As professoras começaram a ler o roteiro para ele, até que,

interessado, aceitou tentar participar do grupo de avanço, para que pudesse ler sozinho.

Com esse acompanhamento próximo, foi capaz de contar para as professoras que vivia

situações de violência em casa, que muitas vezes chegava cansado na escola porque tinha

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que trabalhar muito e que nunca achara que conseguiria aprender nada na escola. Entender

o contexto de Marcos foi essencial para o trabalho que se realizou no grupo de avanço e

o estudante aprendeu a conversar sobre seus problemas.

Ele tornou-se sorridente e começou a fazer amizades. Um dia, veio me mostrar,

muito orgulhoso, que conseguia fazer sozinho atividades do roteiro de avanço e disse que

quem estudava ali desde pequeno não percebia como era bom, ’eles não sabem a sorte

que eles têm’. Na escola anterior, Marcos temia os professores, e disse que na Campos

Salles era diferente, pois era possível aprender ‘sem ninguém gritando e botando medo’,

apontando uma transformação da relação professor-aluno.

O grupo de avanço tem, portanto, uma função reparadora. A educação que tinha

sido negada anteriormente pode ser alcançada de maneira contextualizada e adaptada. É

por ser tão adaptável que a prática pedagógica da Campos Salles consegue que seus

alunos não ‘fiquem para trás’. Não há momento pré-estabelecido para aprender.

Muitos dos entrevistados estiveram por algum período no grupo de avanço, mas

parte desta prática é que eles voltem a trabalhar em sua mesa, com seu grupo de colegas,

sem o acompanhamento permanente de um adulto. Isso supõe um conjunto particular de

desafios que são necessários para a aprendizagem que se propõe nesta escola.

- Os grupos de estudantes

Na leitura do que se refere ao roteiro no PPP, observamos a intenção de fortalecer

o trabalho em grupo como primeira forma de aprendizagem, sendo o professor uma figura

mediadora. Observa-se também o intuito de fortalecer os princípios da escola.

Cada grupo de estudantes, e não cada indivíduo tem autonomia para

decidir quais roteiros realizar no dia (...). Na dúvida, os estudantes

deverão recorrer primeiramente aos colegas de grupo, não obtendo a

ajuda necessária deverá levantar a mão para que o educador

disponível se aproxime para orientá-lo. O grupo também vivencia a

responsabilidade em relação a execução de todos os roteiros de

estudos. “A solidariedade também é um exercício constante, uma vez

que o estudante, tanto aprende com seus pares, quanto os ajuda a

aprender” (PPP, 2017, p. 43-44).

Ainda que segundo o PPP, a realização dos roteiros se dê coletivamente, com todo

o grupo de estudantes de cada mesa dos salões, é muito frequente que o roteiro seja

realizado individualmente ou que cada membro da mesa faça uma parte e copie as

respostas das outras. As mesas em que o roteiro é efetivamente feito em grupo são

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geralmente as mesas nas quais há uma relação maior de afinidade entre seus membros.

É comum que os professores sintam necessidade de separar alunos que juntos

façam bagunça ou tentem outros arranjos, como juntar alunos que estão tendo dificuldade

em acompanhar as atividades dos roteiros com alunos que entendem rapidamente os

conteúdos, ou juntar alunos que estejam há muito tempo no mesmo roteiro, ou que façam

as atividades em ritmos parecidos. Também há casos em que professores agrupam alunos

esperando que a parceria seja benéfica para lidar com alguma questão de sociabilidade.

Entende-se que a experiência de ensinar o que já se sabe ao colega também é formativa

para o aluno que ensina. Neste caso, podemos extrapolar esta lógica para entender que o

aluno ‘popular’ também se beneficia da aproximação com o aluno ‘tímido’, sendo a

experiência formativa para ambos. Os grupos estão sempre sendo renegociados e

repensados e nem sempre as tentativas de encaixar pessoas diferentes funcionam. O que

se observou na prática, é que é muito comum os alunos não terem a decisão final sobre

com quem se sentarão.

- Acho que sentar junto é legal quando você senta com os seus amigos.

Não é o meu caso. Eu sentava com eles e era tudo muito divertido,

gostava um monte de vir pra escola, aí enfim, meus amigos né? Aí

depois que eu comecei a sentar com outras pessoas aí foi tipo ‘mano,

queria sentar sozinha, preferia sentar sozinha’, sabe? É, que na época

eles começaram a juntar as pessoas que tavam no mesmo roteiro. E eu

e o Lincoln não tava no mesmo roteiro que minhas outras amigas (...)

- Mas quando você sentava com seus amigos vocês só ficavam falando

ou faziam juntos?

- Não, a gente fazia junto! Lógico, fazia junto (Juliana).

Há benefícios e transformações inerentes ao estudo realizado coletivamente.

Marilena Chauí (1980) reflete sobre a prática pedagógica do trabalho em grupo em

escolas e levanta pontos que podem se aplicar aos grupos da Campos Salles:

[a prática do trabalho em grupo] diminui a competição e o

individualismo típicos do universo burguês, cria condições para uma

intersubjetividade na qual as tensões podem ser trabalhadas em lugar

de ser camufladas ou mantidas numa situação de pura destrutividade

recíproca, torna possível uma participação dos estudantes em seus

próprios problemas e nos de suas relações com o professor e com a

escola, abre campo para as discussões coletivas e, portanto, para o

entendimento recíproco das diferenças (CHAUÍ, 1980, p. 252).

O intuito dos grupos neste caso estudado se aproxima muito das vantagens

descritas pela autora, principalmente no que diz respeito à resolução dos próprios

problemas. Os professores só mediam conflitos nas mesas quando a situação está muito

agressiva, o que não é comum acontecer. Em geral, instruem os estudantes a pensar em

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acordos. É um aprendizado, mas quando um grupo compartilha a mesa há algum tempo,

começa rapidamente suas questões de convivência, sem necessitar da intervenção de

nenhum adulto. A escola rejeita a lógica da competitividade individualista e, nesse

sentido, a mera experiência de sentarem-se em grupos já é educativa para os estudantes.

Por outro lado, Chauí (1980) também aponta que o trabalho em grupo na escola

pode levar a “uma forma nova e mais sutil de dependência recíproca”, criando “líderes e

liderados”. A autora acredita que, sendo o grupo organizado em torno de uma ‘tarefa’,

acaba havendo o paralelo com a ideia de trabalho, o que leva a essa reprodução da lógica

empresarial, percebida como natural e inevitável. De fato, observei em alguns casos essa

hierarquização no interior dos grupos. Por isso que é importante a possibilidade de

intervenção e reajuste nos grupos por parte dos professores, para garantir que a

experiência vivida nos grupos seja compatível com aquilo que se quer ensinar na escola.

- Um exemplo de ensino contextualizado: o caso das mesas de jogos

Outra maneira de pautar questões que ultrapassam os conteúdos específicos dos

roteiros são os roteiros temáticos. São preparatórios para a Mostra Cultural, para o dia da

Consciência Negra ou podem ainda abordar algum tema que esteja sendo problemático

em um dado salão. Este foi o caso dos roteiros sobre Bullying e Direitos Humanos:

a gente tava vindo de meio que uma crise de pessoas desrespeitando as

outras pessoas e julgando por várias coisas ridículas e daí os professores

fizeram esse roteiro [de Direitos Humanos], todos os salões fizeram, até

o do primeiro ano, porque foi algo que estava precisando e foi um

assunto da atualidade, então foi algo que a gente aprendeu (Leandro).

Os roteiros temáticos são distribuídos em um dia específico, definido pela equipe

docente, e devem ser feitos coletivamente, em geral há uma conversa explicando o porquê

de haver um roteiro específico para aquele tema. Estes roteiros não têm necessariamente

um conjunto de atividades, como os outros, podem ser só disparadores de uma discussão

para um projeto específico.

Por exemplo, no segundo semestre de 2017, a escola recebeu uma verba da

prefeitura que só poderia ser gasta com equipamentos duráveis e não tecnológicos, que

após consulta às comissões de alunos e representantes de sala foi usada para comprar uma

mesa de pebolim e uma de ping-pong, a serem utilizadas nos recreios e como opção para

educação física em dias de chuva. Para discutir o cuidado com os equipamentos, foi feito

um roteiro temático para o Ensino Fundamental 2, no qual falou-se sobre a verba ser

pública e como devia ser usado o dinheiro que é público. A principal atividade era pensar,

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em grupos, em meios de preservar os equipamentos e elaborar coletivamente regras de

conduta a serem seguidas por todos, no dia a dia.

Para o Fundamental 1 este roteiro seria muito elaborado, então foi transformado

em atividade coletiva. No 5º ano, uma professora introduziu o tema contando sobre a

verba, perguntando quem sabia o que era ‘verba’ e explicou as restrições que vinham com

o dinheiro123. Isso gerou uma conversa sobre o racionamento de recursos na escola.

Faltam folhas de papel, então, se alguém perde o roteiro pode acabar não recebendo outro

por algum tempo. A professora conta que somente em junho a escola recebeu um terço

do dinheiro, para manutenção, que esperava receber em janeiro124. Para entender a

proporção, as crianças fazem contas: “Se fosse para a escola receber 1000 reais, quanto

seria um terço? Será que se a gente precisa de 1000 reais para pagar tudo, consegue

pagar com 333?”.

Ao contar que a verba recebida para a compra foi de 3000 reais, e foi exatamente

este o dinheiro gasto nas mesas, a professora pergunta quanto é o salário mínimo e as

crianças sabem o número exato, 937 reais, complementando a informação com

experiências pessoais: “minha mãe disse que ganha um salário mínimo”. A partir dessa

discussão, a professora pede que calculem quanto tempo uma pessoa que recebe o salário

mínimo precisaria trabalhar para comprar aquelas mesas, dividindo o valor das mesas

pelo salário mínimo. “Mas assim não sobra dinheiro nem pra fazer mercado!”, observou

uma menina. Quando a professora pergunta quanto tempo alguém que recebe o salário

mínimo teria que economizar para comprar uma daquelas mesas, um menino, com

semblante preocupado, conclui: “Olha professora, eu nem sei se dá, viu?”.

Seguiu-se uma discussão sobre trabalho e o preço das coisas. Finalmente, a

professora conclui que, já que as mesas são de todos e tão caras, caso sejam estragadas,

não serão repostas, portanto, deverão pensar coletivamente em regras para a preservação

das mesas. As regras sugeridas pelas crianças visavam preservar a integridade das mesas,

como ‘sem sentar nas mesas’, ‘sem comer em cima da mesa’ e ‘sem empurrar ou brigar

perto da mesa’, mas também regras para zelar pelos colegas, como observar se alguma

criança pequena, da altura da mesa, está por perto antes de jogar pebolim, para evitar

acidentes.

123 Sendo uma verba de projeto especial da prefeitura, não poderia ser utilizada para material básico e consumível,

como papel, lápis e livros, nem com material tecnológico como computadores ou fontes novas para os netbooks da

escola. 124 Ver mais em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,doria-congela-r-2-6-bi-de-educacao-e-saude-e-culpa-

orcamento-de-haddad,70001647181

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Este caso indica, primeiramente, que na Campos Salles temas que costumam ser

vedados às crianças, como o uso dos recursos financeiros da escola, podem ser discutidos

com todos. Também nota-se como uma simples atividade, pensar em regras para a

preservação das mesas, levou a outras conversas e aprendizados sobre o mundo em que

vivemos e, possivelmente, fez com que as próprias regras adquirissem mais sentido e

fossem, posteriormente, respeitadas.

Nota-se neste exemplo muito do que se espera do trabalho do professor na escola,

deve partir da realidade do aluno e contextualizar o que se ensina, mas também deve-se

cultivar uma relação aberta à partilha de experiências. Trata-se de uma transformação do

papel esperado do professor, como veremos a seguir.

3.1.4 O papel do professor

A relação professor-aluno é sabidamente hierarquizada, o professor convencional

é visto como um ser maior, detentor de todo o conhecimento, e o aluno, vazio, deve ser

disciplinado para que se possa depositar nele os conteúdos escolares. O professor é

idealizado pelo aluno, seja como herói ou carrasco, o que significa também um

afastamento, isto é, o aluno sequer percebe a humanidade do professor, pois este adquire

uma aura de sobre-humano. Esta relação, típica da educação bancária, é criticada pela

Campos Salles que busca transformá-la e defende que a relação entre professores e alunos

seja mais horizontal, para que se possa constituir como uma parceria, em vez da

tradicional inimizade.

É comum que se estabeleça em escolas uma percepção de professores contra

alunos. Alexandre Pereira (2016) percebe isso ao descrever que professores o recebiam

em escolas com uma postura de ‘Bem-vindo à Selva’, comparando seus alunos a animais

e a bandidos, reproduzindo, segundo o autor, “uma visão negativa que se baseia, entre

outros fatores, no modo como os alunos se relacionam com eles [os professores], pelas

brincadeiras e, às vezes, por certo enfrentamento declarado” (PEREIRA, 2016, p. 11).

A indisciplina era apresentada por eles como o maior problema nessa relação, e

simbolizaria a perda do controle dos professores na escola, supostamente resultante da

incapacidade de punir.

Muito mais do que buscar a causa da insatisfação dos alunos com a

escola, o que se desejava era retomar o poder de controle e coerção da

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instituição. No plano mais geral da educação no Brasil alguns fatores

contribuíram para que, nos últimos anos, o poder da escola de

controlar e punir enfraquecesse, aumentando a insatisfação de

professores e gestores. A instituição do Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) em 1990, por exemplo, além de estabelecer e

consolidar direitos tinha como uma de suas principais finalidades a

abolição de práticas muito comuns nas instituições educacionais até

então, como a do castigo físico e da expulsão dos alunos considerados

problemáticos (PEREIRA, 2016 p. 122-123).

Sem o acesso a esses dispositivos de punição, a avaliação tomou um papel

disciplinador, e punitivo, entendendo que com ela, vinha a possibilidade de reprovação.

Isto é, o professor já não podia ferir ou excluir estudantes, mas ainda tinha a habilidade

de reprová-los – ou ao menos ameaçá-los, o que lhe garantia o poder de obrigar o aluno

a passar um ano a mais na escola ou, em alguns casos, evadi-la. Foi então que a LDB de

1996 permitiu a prática da progressão continuada, que tornou “mais difícil para um

professor fazer com que um aluno ficasse retido e tivesse que cursar a mesma série

novamente no ano seguinte (...). Dessa maneira, perderam os docentes um dos seus

últimos recursos de coerção sobre os alunos (PEREIRA, 2016, p. 123). Se a relação

estabelecida aqui é a de enfrentamento entre inimigos, os professores estão em menor

número e agora desarmados das tradicionais formas de punição.

Antônio Zuin (2008) nota, entretanto, que o professor permanece com a arma da

violência simbólica e psicológica que pode ser mais eficaz na imposição da disciplina do

que a punição física, já que esta em excesso poderia levar à morte e sua medida justa não

impedia a recorrência da indisciplina. Deste modo, “o exemplo do aluno humilhado diante

de seus colegas era mais producente, pois o que realmente interessava era obter a

continuidade da ameaça do exercício da violência simbólica em todos aqueles que não

se comportassem devidamente” (ZUIN, 2008, p. 5). O abandono da punição física

complexifica a imagem do professor carrasco, segundo Zuin, já que se torna corrente um

discurso mais libertário que acompanha uma prática que continua a ser autoritária.

Para transformar essa relação, portanto, é necessário modificar a prática do

professor. É por isso que uma experiência como a Campos Salles prescinde da

participação entusiástica de uma equipe de professores articulada e disposta a essa

mudança. A prática docente aqui foi modificada em todos os aspectos, exceto os

trabalhistas, para entendê-la, comecemos com a formação da equipe.

Como escola da rede municipal, a Campos Salles contrata professores

concursados, podendo ser pedagogos, com atuação polivalente ou especialistas

licenciadas em uma disciplina específica, seguindo os mesmos processos que todas as

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escolas da prefeitura. O processo de atribuição de aulas, realizado pela DRE, define as

escolas e turmas de cada professor, de modo que todo ano podem chegar professores

novos enquanto outros podem ser transferidos para outra escola. A atribuição da

prefeitura tem ainda vagas para os professores ‘módulo’, que não têm uma sala atribuída

de maneira fixa e são como volantes nas escolas convencionais.

Ainda que a Campos Salles se insira nesses procedimentos municipais, a maneira

interna de lidar com a atribuição de aulas e a entrada e saída de professores é diferente.

Quando novos professores chegam, sem conhecer o projeto, são introduzidos a ele, e há

momentos de acolhimento e conversa. Entretanto, é deixado claro, desde o começo do

ano letivo, que não é facultado ao professor o retorno às aulas expositivas tradicionais,

pois o projeto é coletivo e a prática também. Os profissionais que não se adaptam ao

projeto são encorajados a pedir remoção, isto é, a transferência para outra escola

municipal.

Na atribuição de aulas define-se uma carga horária individual para cada professor

trabalhar com uma só sala de 30 alunos. Na prática, esse período é dedicado ao salão,

com três salas, e pelo menos, mais dois professores, às vezes mais, com a presença dos

‘módulos’, especialistas em alfabetização e inclusão etc. São assim definidos os grupos

de trabalho dos professores, nos quais se forjam parcerias. Se há, por exemplo, três turmas

‘oficiais’ para um 3º ano haverá três professoras cuja carga horária oficial será

integralmente dedicada a cada uma dessas turmas, mas na prática as três, juntas,

trabalharão com o salão inteiro. Também em equipe pensarão os roteiros, abordagens

educativas, rodas de conversa e de leitura, projetos, eventos e diagnosticarão problemas

individuais e coletivos no salão. A atividade das professoras deixa de ser individual. Os

professores especialistas fazem rotação entre os anos, cumprindo a carga horária atribuída

a cada turma em seu respectivo salão, sempre acompanhados de ao menos dois colegas.

É estabelecida uma parceria entre os professores e o trabalho docente, em geral tão

solitário, passa a ser coletivo.

Por também vivenciarem o trabalho em grupo, os educadores estão equipados para

orientar os alunos quando há dificuldades de relacionamento no grupo e encorajá-los a

tentar resolver esses problemas. A prática docente coletiva também tem o efeito de

desvelar, para os alunos, o trabalho de planejamento, frequentemente oculto na escola.

Ouve-se, durante as orientações de roteiro professores explicando “Ah aqui a professora

M. estava pensando em começar com um exercício mais simples, então vamos voltar para

a outra atividade?”, ou “Eu e o professor A. achamos mesmo que talvez essa atividade

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fosse muito difícil, mas tenta pesquisar na internet, vê o que você acha”. Os alunos

percebem não somente o trabalho envolvido na produção dos roteiros e planejamento de

conteúdo, de abordagens didáticas etc., mas também notam que este trabalho foi realizado

em equipe.

O caráter coletivo do trabalho escolar dos professores reflete e é refletido pelo

trabalho em grupo discente. Deste modo, o trabalho docente se aproxima dos alunos,

deixando de ser oculto, pois os estudantes conseguem relacionar a prática docente com a

sua própria prática de estudo. Ao mesmo tempo, as relações de parceria estabelecidas na

equipe docente podem espelhar relações semelhantes entre os alunos. Este processo é

similar ao que Rui Canário descreve na Escola da Ponte:

O modo original de organizar o trabalho dos alunos tem uma

contrapartida simétrica quer no modo igualmente original de

organizar o trabalho do professor, quer no modo como este se

relaciona com os colegas (trabalho colectivo), com os alunos e com os

saberes profissionais (CANÁRIO, 2004, p. 23).

A escolha coletiva, em assembleia, dos temas dos roteiros também tem o efeito de

desmistificar o trabalho docente. Os alunos sugerem e votam, em assembleia, as temáticas

dos próximos roteiros, de modo que são incluídos no processo de planejamento e também

se colocam no lugar dos professores. Em entrevista, o estudante Tadeu demonstra

preocupação com os professores, por haver alunos que gostam de ‘desafiá-los’, por

exemplo, sugerindo temas engraçados e inesperados para roteiros. Entretanto, quando

estes temas são votados os professores mantêm o acordo e fazem os roteiros com os temas

decididos. Foi assim que um dos roteiros do 8º ano, em 2017, teve o tema ‘Mosquitos’,

que acabou incluindo atividades sobre doenças transmitidas pelo aedes aegypt, uma

discussão sobre o trabalho no Egito Antigo a partir de doenças que eram comuns na época,

e cálculos matemáticos da velocidade de expansão de uma população de mosquitos.

Esse ‘desafio’ dos professores por parte dos alunos se relaciona com a análise de

Zuin (2008) de que, por vivermos em uma sociedade hierarquizada, nossas relações são

de dominação, também na escola, de modo que os ‘dominados’, no caso os estudantes,

elaboram estratégias de resistência. É o mesmo caso do aluno que se recusa a seguir as

regras, que fala de maneira grosseira com professores etc. Estas outras formas de ‘desafio’

ocorrem nos salões da Campos Salles também, mas são exceção. O mais comum é que a

relação entre professores e alunos seja afetuosa. Os estudantes entrevistados foram

unânimes ao expressar carinho pelos professores, respeito pela história de vida de alguns,

elogio às qualidades e personalidade de outros, todos os descreveram como ‘bons

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professores’ e elogiaram a postura em geral dos docentes:

Nessa escola o professor só sai do seu grupo quando ele vê que você

entendeu, enquanto você der uma explicação correta para ele e eu acho

que isso não acontece em outras escolas porque o professor é meio que,

desculpa a palavra, o professor ele é meio que foda-se para os alunos.

Ele tá lá, ele passa coisa na lousa e fala copia aí e tá tudo certo porque

no final você vai ganhar nota. Isso é um tanto quanto ridículo, porque,

sabe, aqui os professores se importam se o aluno tá aprendendo ou não,

eles se importam realmente com o conteúdo que está sendo passado

que é o que é bem diferente de outras escolas (Lincoln).

Esta postura, tão elogiosa, parece remeter à idealização do educador como herói,

que seria outra forma da hierarquia professor-aluno, com uma roupagem positiva, mas

desigual da mesma maneira. Zuin (2008) aponta que este tipo de relação “pode acarretar

uma situação de aceite passivo de tudo que o professor prefere no cotidiano escolar” (p.

90) sendo, portanto, uma forma de manutenção da dominação. Uma possibilidade para

romper com isso seria “um rearranjo de identidades dos mestres e dos alunos que se

transformam no transcorrer do processo de ensino-aprendizagem” (ZUIN, 2008, p. 90-

91). Só assim a relação poderá ser horizontal, superando-se a ideia de professor como

infalível, percebendo sua humanidade e os processos de trabalho e aprendizado pelos

quais também passa.

Talvez não fosse equivocado afirmar que o educador que discute com

seus alunos sobre o fato de que é um ser humano, sujeito a falhas e

acertos possa contribuir para que os alunos não se subordinem tanto

em relação aos modelos idealizados, promovendo o processo de

superação de uma autoridade que também se educa durante o processo

educacional/formativo (ZUIN, 2008, p. 56).

É essa a relação que está sendo construída na Campos Salles, de acordo com a

busca por uma relação de ensino mútuo entre professores e alunos expressa no PPP: “Em

sala de aula, os dois lados aprenderão juntos, um com o outro - e para isso é necessário

que as relações sejam afetivas e democráticas, garantindo a todos a possibilidade de se

expressar” (PPP, 2017). Ao perceberem o processo de planejamento e reflexão sobre a

atividade docente, os estudantes também entendem erros, acertos, percebem melhorias e

o esforço por contemplar aquilo que os alunos valorizam, nos roteiros. Isso é parte do

esforço de ensino contextualizado, mas também vai no sentido da autonomia e da

valorização do pensamento crítico, negando a obediência cega a regras autoritárias:

Assim, o processo de identificação pode ocorrer de forma mais

verdadeira e, portanto, humana, em vez de compelir o aluno a entregar-

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se aos sedutores e sutis mandos e desmandos do professor que se julga

portador da verdade. Ou então de se identificar com o professor-

agressor, na expectativa de que chegará a sua vez de ocupar o lugar

do verdugo e de extravasar a dor das humilhações que suportou em

silêncio na sala de aula (ZUIN, 2008, p. 91).

Voltando o olhar mais especificamente para os educadores, a transformação da

relação com os alunos pode ser uma quebra de expectativas para quem quer trabalhar da

maneira convencional. Outro ponto de frustração, indicado no artigo de autoria das

coordenadoras (MORAIS et al, 2017), é a secundarização da transmissão de conteúdos já

que para muitos profissionais esta é a essência de seu trabalho. As autoras, entretanto,

afirmam que o momento da produção de roteiros de estudos aplaca esta angústia, por

tratar-se de um trabalho de articulação de conhecimentos de forma que gere o que

chamam de aprendizagem significativa:

Dentro dessa proposta [os roteiros], os educadores podem manter sua

paixão, estar seguros que a informação transmitida possa ser capaz de

gerar conhecimento e continuar a desenvolver sua capacidade de

liderar a aprendizagem dentro e fora da escola, contribuindo

significativamente para a construção da autonomia de cada estudante.

Claramente, o formato de "linha de produção" do século XIX, que

empurra massas de crianças no sistema educacional, não é mais

praticável nem desejável (MORAIS et al, 2017).

O processo de construção do roteiro é visto como momento central para o trabalho

pedagógico na escola, por trabalhar conhecimentos, mas também articular a comunidade

escolar, como demonstrado na figura 24. Os momentos de levantamento, entrega e

mediação dos roteiros ocorrem diretamente com os estudantes. A Elaboração e Validação,

ainda que não ocorram direto com eles, é pautada pelo diagnóstico de interesses,

dificuldades e necessidades do salão, além do que se sabe sobre o contexto em que os

estudantes vivem. No momento de finalização, além da avaliação de cada aluno em

relação aos conhecimentos do roteiro, realiza-se também a avaliação coletiva do roteiro,

enquanto material. Assim, todas as etapas desta jornada miram o aluno, isto é, o objetivo

é sempre o de alcançar e incluir os estudantes, partindo de seu contexto.

Figura 24: Jornada do Roteiro de Estudos. Fonte: Morais et. al, 2017

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O aspecto interdisciplinar do roteiro, entretanto, ainda está sendo construído.

Muitas vezes o que se observa é a repetição de conteúdos específicos de cada disciplina

espalhados pelo roteiro com uma articulação artificial com o tema oferecido. Não seria

necessariamente o ensino contextualizado, mas um formato diferente do ensino

tradicional. Uma professora comentou “Estamos aprendendo a interdisciplinaridade na

prática”, explicando que entender este conceito teoricamente é mais simples do que

trabalhar concretamente desta maneira. Mas ainda que a formulação e entendimento da

interdisciplinaridade seja um processo em curso, a prática da mediação permite uma

prática docente interdisciplinar.

A mediação é a atividade mais rotineira e que ocupa maior parte do tempo dos

professores. O educador que faz a mediação não é, necessariamente, especialista naquilo

que se tem dúvida. Um professor de educação física, na Campos Salles, deve estar

preparado e disposto a mediar uma atividade de análise sintática, por exemplo. O roteiro

é interdisciplinar e a prática dos professores também busca ser.

Quanto aos educadores, os roteiros de estudo visam articular as áreas

do conhecimento e as disciplinas, assim como também, a transformação

dos mesmos em mediadores do conhecimento, ou seja, com o exercitar

contínuo todos terão o conhecimento do currículo do Ensino

Fundamental da EMEF. Pres. Campos Salles, independentemente do

Nível de Ensino ou de suas disciplinas (PPP, 2017).

Entende-se que a própria prática de mediação habilita o professor a auxiliar o

aluno a resolver qualquer questão. Diferente da ideia de que qualquer pessoa com notório

saber possa ser professor, aqui não se abandona a necessidade de formação do professor,

mas questiona-se a divisão do conhecimento em disciplinas.

A mediação do roteiro é, além disso, também um momento em que os alunos

recebem atenção mais próxima, do professor sozinho com o grupo de até quatro pessoas

ou com um estudante só. Sem a exposição, os alunos perguntam muitas coisas e repetem

sem qualquer vergonha ou sinal de insegurança quando continuam sem entender. Este

momento permite um trabalho docente mais próximo do estudante, o que é benéfico tanto

para a aprendizagem e adaptação à escola, como para a relação professor-aluno.

Conforme os alunos vão concluindo as atividades, chamam os professores para a

correção dos roteiros, na etapa de Finalização. É quando checam se os alunos encontraram

as respostas certas nas atividades e fizeram tudo que foi pedido, mas também avaliam,

através de conversa, a aprendizagem. Os alunos devem explicar pessoalmente aos

professores como resolveram um exercício, sobre o que fala um texto que leram, o que

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significa determinado conceito etc. Caso o aluno não demonstre ter entendido, o professor

pede que continue trabalhando no roteiro antes de receber o próximo.

- Questões de classe

Todas essas transformações colaboram para uma relação mais horizontal entre

professores e alunos, mas a velha busca por formas de punição ainda aparece, até mesmo

entre os estudantes. Pereira (2016) relaciona essa busca com a associação de alunos

periféricos e pobres ao crime, descrevendo uma situação em que a polícia entrou em uma

escola para revistar alunos e um estudante se opôs dizendo à sua professora que se os

policiais tentassem revistá-lo, não deixaria. “Natanael então retrucou: ‘e se eu não

deixasse o policial me revistar, ele ia fazer o quê? Ia me levar preso? Já não chega levar

geral da polícia na rua, agora na escola também?’ A professora calou-se” (PEREIRA,

2016, p. 124).

A relação entre os professores da classe média e os estudantes periféricos é

necessariamente permeada por tensões de classe. Por seu projeto diferenciado e a

proximidade da região central da cidade, a Campos Salles atrai vários profissionais de

classe média, que vivem no centro. Existe, portanto, diferenças fundamentais de valores,

cultura e condições materiais entre educadores e educandos.

Observei, por exemplo, algumas vezes a questão da polícia como um ponto de

conflito, pois, enquanto muitos alunos veem policiais como heróis, há também muitos

que vivem e conhecem histórias de violência policial e abuso de autoridade e que

expressam ódio em relação a polícia. Por não compartilharem da realidade destes alunos,

há professores que entendem este ódio como sinal de que estes alunos seriam bandidos.

Entretanto a escola procura fazer um trabalho de conscientização com os professores,

especialmente os recém-chegados, sobre essa diferença de realidades com o intuito de

aproximá-los da comunidade.

Conta-se na escola que antes do início do trabalho de aproximação com a

comunidade e reconstrução do projeto, nos anos 90, os professores tinham representações

preconceituosas a respeito da favela, em termos de criminalidade, higiene, moral etc. Isso

era uma enorme barreira entre eles e os alunos, pois frequentemente não havia respeito

nessa relação. A tensão também era reproduzida na relação dos professores com os

familiares, sobre os quais tinham as mesmas noções preconceituosas além de

responsabilizá-los pela indisciplina dos filhos e filhas. Essa tensão foi o ponto de partida

para uma série de ações, a visita e conversa com líderes da comunidade na escola, a visita

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dos professores às casas de alunos na favela e a transformação da dinâmica das reuniões

de pais, mais notadamente aqui, a discussão de questões trabalhistas com os pais.

Marcia Gallo (2009) trabalha com a noção de que “comunidade somos nós,

moradores”125 e, portanto, inclui estudantes e suas famílias, mas também lideranças e

outras pessoas da região. Foi por essa perspectiva que ocorreram as duas primeiras ações,

as conversas com lideranças, e as visitas domiciliares, como descrito no relato da então

coordenadora:

Trouxemos algumas lideranças da comunidade que tem, já tinham, uma

história na comunidade, o João Miranda, a Genésia, pra contar a

história da comunidade, pra falar da realidade (...) Num momento

inverso, os professores foram chamados pela equipe técnica a

acompanhá-los nas visitas às ruas e vielas da favela para conhecerem o

espaço de onde vinham seus alunos. (...) Foi um passo importante para

que os professores pudessem compreender situações que, muitas vezes,

eram verificadas na sala de aula, e tinham sido interpretadas como

dificuldades exclusivas do aluno. Em seguida, nós levamos os

professores para a favela, para conhecer a favela, conhecer a realidade,

as áreas de risco, (...) e isso veio quebrar aquele preconceito. Professor

que fazia dezoito, vinte anos que trabalhava na escola, eles não tinham

noção de como os alunos viviam (GALLO, 2009, p. 140-141).

Essas primeiras visitas domiciliares são frequentemente contadas na escola como

um momento em que muitas professoras abriram os olhos para a realidade de seus alunos,

com comentários como “nunca imaginei que eu tinha aluno que vivesse nessa situação”

(GALLO, 2009, p. 139). Uma história que ouvi algumas vezes em reuniões de professores

foi a de uma professora que dava broncas em um aluno que sempre ia à aula com a mesma

camiseta manchada e que depois veio a descobrir que aquela era a única que ele tinha.

Mas tratou-se também de um momento de desconstrução de estereótipos, foi quando os

professores e professoras puderam ver que não ter a presença do pai, ser criada pela avó

ou passar parte do dia sozinha, pois a mãe deve trabalhar, não significa que a criança ou

adolescente estava abandonada, que a família é desestruturada, cega às questões

disciplinares e de aprendizagem. Enfim, os professores puderam perceber o quanto as

mães e familiares eram de fato presentes nas vidas dos filhos, ainda que isso não

aparecesse na relação com a escola. Foi rompida a associação de pobreza a abandono que

fazia com que os professores não estivessem abertos aos familiares.

Do outro lado da relação, entretanto, os familiares também não estavam abertos à

escola em geral nem, tampouco, aos professores. Responsabilizavam a equipe pelo

125 Depoimento de moradora recolhido por Gallo (2009).

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estigma da escola e pelos problemas específicos de seus filhos, acreditavam que os

professores não eram comprometidos porque faltavam, a gestão da escola não era

competente porque a escola era pixada. Essa percepção começou a mudar quando a

dinâmica das reuniões de pais foi transformada e passou a incluir um momento coletivo

no qual a escola abria para os familiares os problemas que enfrentava e se abria a soluções,

não somente ideias, mas prática.

Um dos temas tratados nessas reuniões, quanto aos professores, era a

questão do direito às faltas, desde as faltas abonadas até as justificadas

e injustificadas (...) muitos professores não concordavam com essas

discussões por parte dos pais, pois achavam que essa era uma questão

que só dizia respeito aos profissionais (GALLO, 2009, p. 146).

Entretanto, com o tempo isso teve o efeito de fazer com que os familiares

entendessem melhor as condições de trabalho dos professores. Todo esse trabalho de

aproximação teve o efeito de conscientização e sensibilização a outras realidades, assim

como de criar vínculos e relações de respeito entre os trabalhadores da escola e as pessoas

do Heliópolis.

Esse vínculo com a comunidade transforma a maneira com que professores

provenientes de famílias de classe média lidam com a pobreza, entretanto as tensões de

classe não desaparecem. Sabemos que a escola hegemônica tem, entre outras, a função

de inculcar valores burgueses nos estudantes (ALTHUSSER, 1983), de modo que as

vivências de classe média dos professores são mais valorizadas do que as vivências

periféricas dos estudantes. Isso ultrapassa a preconceituosa associação da pobreza ao

crime, mas engloba a estética, os movimentos culturais, músicas e gírias da periferia,

todos esses aspectos são vistos nas escolas em geral como algo a ser consertado nos

alunos e mesmo aqui, onde ocorre um esse esforço de aproximação, essa hierarquização

de valores persiste. Isso não ocorre, contudo, sem resistência.

A forma mais frequente de cristalização deste atrito parece ser a discussão sobre

o funk. Alguns professores criticam o uso de palavras relacionadas ao funk assim como

a escuta do funk em si. É como se fosse necessário ‘educar’ os estudantes a abandonarem

estes hábitos. Quando esta repreensão ocorre, é comum que alunos comecem a tocar funk

no celular, cantar alto e caçoar dos professores: “Você sabe o que quer dizer sarrada,

professora?”.

Ao mesmo tempo, o funk, em si, gera desconfortos para além daquele causado

pela cultura periférica em quem só valoriza a cultura burguesa. Professores criticam o

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funk por seu conteúdo sexualmente explícito, e, menos frequentemente, pela apologia à

violência contra a mulher presente em algumas das músicas. O maior problema atribuído

ao funk, entretanto, é que incentiva os alunos a frequentarem o baile funk, o Fluxo,

ambiente considerado perigoso pela frequência com que ocorrem agressões sexuais e o

uso de drogas.

Pereira (2016) também observa que muitas das músicas escutadas pelos

estudantes das escolas que pesquisou expressavam o poder que seria ostentado pelo

crime. O mesmo ocorre na Campos Salles e tem muitas vezes o efeito de intimidar os

professores que, por não conviverem com este universo, muitas vezes acreditam que a

mera escuta de certo tipo de música significa que o estudante está efetivamente envolvido

com o crime e que precisa ser levado para o ‘bom caminho’. Assim, mesmo respeitando

o trabalho dos professores muitas vezes a barreira da classe aparece.

Um dos professores pelos quais os alunos mais expressam admiração é justamente

nascido e criado no Heliópolis e sempre vai trabalhar com a jaqueta do Ratatá F.C.126 e é

quem é chamado, quando há conflitos mais sérios por ser considerado “quem tem mais

moral”, é com quem se identificam. Além do fator de classe, é necessário lembrar que o

professor em questão é um dos poucos homens em uma categoria predominantemente

feminina e seguramente sua voz de autoridade está muito relacionada a uma questão de

gênero.

Entretanto, a transformação da relação professor aluno, também tem efeito

positivo no aspecto de classe, já que compreendem melhor a realidade dos estudantes.

Além disso, aquele professor que se incomoda com, por exemplo, um caderno repleto de

tags127, não tem aqui a legitimidade para simplesmente proibir seu uso, mas deve aprender

a conviver com isso. A maioria dos conflitos é resolvida com os dispositivos de

participação estudantil, de modo que o ônus da manutenção da ordem, tão pesado para os

professores escolares, é diminuído. Não é necessário fiscalizar e banir comportamentos

como o uso de boné e de celular, de modo que os professores podem dedicar seu tempo

às atividades propriamente educativas e os estudantes aprendem a se responsabilizar pela

maneira como se relacionam uns com os outros.

A transformação da relação professor-aluno cria um ambiente propício para que

os estudantes também forjem relações menos violentas. O professor tem, na sala de aula

126 Time local de futebol de várzea. 127 Termo utilizado por pichadores para descrever a assinatura estilizada de cada um, é frequente que as pessoas que

pixam troquem entre si essas tags, como sinal de amizade e respeito. Por serem associadas ao pixo, as tags também

são associadas à criminalidade.

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convencional, assim como o patrão no ambiente de trabalho, o poder de colocar os

estudantes uns contra os outros para reforçar sua autoridade. Quando essa hierarquia é

rompida, e o professor se mostra humano, não há necessidade de competição e divisão

entre os estudantes. Nas palavras de bell hooks128:

A competição baseada em práticas desumanizadoras de humilhação,

de rituais masoquistas de poder, impede a comunhão e é um obstáculo

à formação de uma comunidade. Se estudantes entram na sala de aula,

todos compartilhando habilidades e capacidades semelhantes e,

portanto, vínculos comuns, são empregadas estratégias de

distanciamento e separação para romper esses laços orgânicos. Em vez

de olhar uns para os outros como camaradas, estudantes são ensinados

a ver aos colegas como adversários, lutando para competir pelo prêmio

de ser o único esperto o suficiente para dominar os outros (HOOKS,

2003, p.131). 129

Essa é a intenção da Campos Salles, promover a cooperação, o que é bem explícito pelo

princípio da solidariedade. Essas relações de parceria que existem entre os professores

servem também como um modelo para o trabalho dos estudantes em cada grupo o que os

ajuda a construir relações menos violentas entre si. Nos aprofundemos, portanto, nessas

relações entre alunos.

3.2 ‘Uma escola da paz’: Relações entre alunos e Mecanismos de participação

A EMEF Campos Salles é vista como uma escola ‘da paz’. Além de seu histórico

com o movimento Sol da Paz, com as tradicionais Caminhadas da Paz e com o próprio

Bairro Educador, percebemos que um grande motivador para as famílias decidirem que

seus filhos estudarão aqui é por verem esta escola como mais segura. Quando perguntada

sobre o que considerava diferente em sua escola uma aluna do 7º ano respondeu “Aqui

não pode brigar”. Essa declaração é uma mudança radical em relação à realidade da

escola até os anos 90.

Mas esta escola é de fato menos violenta? Para pensar isso, busquei observar

algumas questões, principalmente a violência física e brigas, mas também bullying e

128 A autora prefere que o uso de seu nome seja feito sem letras maiúsculas por acreditar que assim a atenção do leitor

seja voltada àquilo que escreve e não ao seu nome. 129 Tradução própria do original: “Competition rooted in dehumanizing practices of shaming, of sado-masochistic

rituals of power, preclude communalism and stand in the way of community. If students enter a class all sharing similar

skills and capabilities and thus common bonds, strategies of distancing and separation must be deployed to effectively

disrupt these organic ties. Rather than regarding each other as comrades, students are taught to see each other as adversaries struggling to compete for the prize of being the one smart enough to dominate the others” (hooks, 2003,

p.131).

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violência psicológica incluindo injúria racial, expressões de machismo e homofobia, e

ofensas relacionadas a bairrismo. O que percebi foi que, ainda que não seja isenta de

situações violentas, a escola realiza um trabalho intenso de diálogo e mediação de

conflitos que faz com que as situações não escalem.

“É uma escola mais da paz, né? Nunca ouvi boatos de bullying aqui, até porque

eles tratam sobre esses assuntos às vezes, né?”, Kelly se referia ao trabalho de

conscientização em relação ao bullying feito por professores, que incluiu um roteiro

temático sobre o assunto. Entretanto, a opinião de Black, o único estudante especial de

seu ano, é diferente e o aluno afirma sofrer bullying inclusive por ser negro. Daniele

também relata que a Campos Salles pode não ser um espaço seguro para todos, ao contar

o que descreveu como “bullying homofóbico. Foi com o meu próprio irmão. Ele tem um

jeito meio feminino e por isso ele apanhava, ele era xingado de gay”.

Ainda que continue a existir, é possível notar uma modificação que faz com que

este tipo de violência seja bem menos frequente na Campos Salles130 pelo fato de haver

um trabalho de prevenção, como apontado pelos estudantes. Sobre o assunto, Márcia

Gallo (2009) destaca uma fala de Braz Nogueira, antigo diretor da escola, “quando a

violência ocorre, as pessoas continuam a raciocinar, a pensar” Isto é, ao criar-se espaços

seguros para o diálogo, é possível que os conflitos se resolvam de outra maneira que não

seja a escalada da violência. Muitos dos entrevistados relataram ter se envolvido em

brigas na escola, mas todos os casos foram, em seguida, acompanhados de perto por

alguém da coordenação, sem ferimentos sérios ou crescimento do conflito. Gallo (2009)

acredita que um fator que teve grande impacto na diminuição da violência na Campos

Salles foi o trabalho próximo com as famílias dos estudantes. A autora coletou o seguinte

depoimento da então coordenadora, Rosemeire:

Olha, em alguns casos, quando a gente não sabia mais o que fazer com

o aluno, às vezes que a relação com o professor era muito complicada,

assim, em última instância era: ‘Vamos lá na casa dele um pouco?

Vamos bater um papo com a mãe dele, vamos lá um pouquinho?’ E

você sabe que mexe, quando vê a situação que tem ali, a realidade do

aluno (GALLO, 2009, p. 167).

O aluno passa a demonstrar mais respeito e sentir-se mais importante, com isso,

também se abre ao diálogo. A proximidade das famílias com a escola é constante e a

escola cobra este envolvimento dos responsáveis. Entre os entrevistados notei que as

130 Especificamente em relação a injúrias raciais e homofóbicas, eram muito mais frequentes na escola no período em

que estagiei, em 2013 e 2014. No período de campo em 2017, essas ocorrências foram muito raras e vocabulários

pejorativos em relação a raça e sexualidade eram malvistos entre os alunos.

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famílias acompanham de muito perto a vida escolar dos filhos. Sophia contou que “minha

mãe trabalha com limpeza de dia e à noite tá fazendo faculdade porque ela diz que é

importante estudar”, de modo que a menina pouco vê a mãe durante a semana, mas diz

que sempre conversa com ela sobre roteiros, acontecimentos da escola e que mesmo sem

ter horário para frequentar as reuniões, a mãe sempre está em contato com a coordenação.

“Ela não consegue vir na reunião, mas aí ela liga, elas ficam um tempão conversando e

ela sabe de tudo”. Tadeu também conta que sua mãe não consegue ir à escola nos dias de

reunião, então sempre marca conversas particulares, mesmo que não haja nada fora do

comum. “Na outra escola só queriam falar com a minha mãe quando dava um problema,

mas aqui gostam de falar com ela sempre, até pra falar: ‘Olha, o [Tadeu] tá indo bem,

viu?’”.

A reunião de pais é, nesta escola, um instrumento de aproximação com a

comunidade muito efetivo. Antigamente, antes dos esforços para transformação do

projeto, as reuniões eram pouquíssimo frequentadas. Marcia Gallo (2009) em seu estudo

sobre a Campos Salles elenca como os maiores problemas da escola nessa época: a

violência, indisciplina, absenteísmo e não-aprendizagem. Além disso, no que diz respeito

à relação entre moradores e famílias de alunos com a comunidade, elenca outras questões:

como eram quase diários os casos de alunos brigarem e se acidentarem

na escola, os pais e mães apontavam o diretor como único responsável;

os pais e mães não compareciam à escola quando convocados pela

equipe técnica para conversas ou reuniões (GALLO, 2009, p. 125).

Com a mudança da dinâmica e de foco das reuniões de pais, lidou-se de maneira

direta ou indireta com todas essas questões. As reuniões tinham uma natureza acusatória,

onde só se apontavam as falhas dos estudantes, começou a ter um momento prévio e

coletivo nos quais se colocavam os problemas que envolviam a todos na escola, referentes

a brigas, aprendizado, projeto, integridade física do prédio, limpeza, atividades, eventos

etc. Além de servir para atualizar as famílias do que acontecia na escola, passou a ser um

espaço em que se esperava que os familiares pensassem em soluções para o problema e,

posteriormente, as colocassem em prática. Desse espaço saíram comissões de familiares,

como de limpeza, de esportes, de eventos etc. cujo formato lembrava os antigos mutirões

comunitários de Heliópolis. Também se incluiu nesse espaço as angústias e pautas

trazidas pelas famílias. “Temas de interesse particular dos pais como o desemprego e as

dificuldades da família para estabelecer limites aos filhos também eram discutidos, o

que, segundo a Coordenadora, motivava os pais a permanecerem na escola até o término

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das reuniões” (GALLO, 2009, p. 146). As reuniões passaram a ser um espaço do

fortalecimento de vínculo da escola com a comunidade. Segundo um funcionário, hoje a

fórmula das comissões “evoluiu”, não é mais necessário formar grupos permanentes de

temas como ‘limpeza’, pois a organização nesse sentido é mais orgânica, cada questão é

posta coletivamente e a solução também. A partir daí passaram a ser construídos

encontros mais ‘formativos’ a partir de temas levantados por familiares, profissionais da

escola etc.

A relação com os moradores do entorno também foi muito transformada nesse

período. Gallo conta que “as dependências externas e internas da escola eram invadidas

nos finais de semana e à noite por grupos de pessoas que utilizavam a quadra, o pátio e

consumiam a merenda” (GALLO, 2009, p. 125). A relação da escola com essas pessoas

era, portanto, muito tensa, pois as tratavam como invasoras. O que modificou essa relação

foi uma mudança de postura por parte da escola. Os vizinhos foram chamados para

conversas, e a partir daí organizou-se horários para o uso das quadras e algumas pessoas

desses grupos receberam chaves da escola para organizarem o uso zelarem pelo espaço e

também como demonstração de uma nova postura da escola, um dos homens que recebeu

a chave contou à Gallo: “Sinto-me orgulhoso por ser um dos que têm as chaves da escola.

Isto para nós significa mais responsabilidade e compromisso para com a escola”

(GALLO, 2009, p. 132).

Quanto à relação com aprendizagem e o projeto, os responsáveis pelos alunos têm

conversas com a coordenação e os professores sobre o projeto e os princípios da escola e

têm a responsabilidade de continuar os diálogos em casa quando o aluno se envolve em

situações de violência. Ao analisar os objetivos postos no PPP em relação às famílias dos

estudantes, percebe-se que a prática está alinhada ao discurso:

Conscientizar a todos, que a escola sozinha não dá conta de educar, e

que precisa da cooperação, do apoio e da intervenção da comunidade

organizada, como parceira propositiva, legitimando o papel que lhe

cabe de liderança; Construir com as famílias, entidades e moradores,

a importância da participação na vida da escola, da sua proposta

pedagógica e da sua gestão, através das várias instâncias instituídas,

propondo oportunidades educativas à escola e desta à comunidade;

Levar pais, famílias, entidades, associações, moradores, a

compartilharem com a escola a responsabilidade pela educação das

suas crianças e jovens (PPP, 2017, p. 84-85).

A continuidade do projeto dentro de casa também se evidenciou no momento em

que contatei as mães, para obter autorização para entrevistar seus filhos. Todas conheciam

bem o funcionamento da escola e mostraram-se envolvidas com a vida escolar dos filhos.

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Com este trabalho conjunto, brigas e bullying vão ficando menos frequentes entre os

alunos mais velhos, como aponta Leandro: “tinha [brigas], mas agora diminuiu muito,

desde o 6º ano diminuiu muuito, agora não tem nenhuma (...) eu acho que as pessoas vão

amadurecendo e vão deixando pra lá a briga”. Fabi, que assim como Leandro, estudou

na escola desde o primeiro ano, conta que ela mesma chegou a fazer bullying com colegas,

meninas que estavam fora do padrão estético, e que quando eram mais novos, escutava-

se com frequência ofensas racistas, mas a menina afirma hoje ter vergonha disso, por ter

crescido, e considera que seus colegas também. A maioria das pessoas entrevistadas

relatou algo semelhante a isso, já terem se envolvido em brigas, mas atualmente não

acreditarem que faça sentido o confronto físico.

Assim, brigas com agressão física, na escola, são raras, mas os meninos relatam

‘brincar de gangue’. Isto é, dividem-se em grupos de amigos e se batem de brincadeira,

fingindo serem de gangues. “Eu só fechava os olhos e ficava socando o ar, às vezes

acertava até quem era do meu lado”, contou o estudante Marcelo, rindo. Ao fim da

brincadeira saem todos juntos, rindo. Esta brincadeira, que reproduz uma realidade

conhecida dos meninos, engloba somente eles, as meninas não participam. Entre os

meninos a chacota e a provocação também são muito comuns, mas nem sempre aparecem

de forma violenta:

Ou seja, em certos momentos a gozação poderia ser amistosa, feita

apenas para romper o tédio e produzir risadas entre os amigos. Da

mesma forma, a retribuição daquele que foi chacoteado também

poderia ser amistosa, tendo em vista que se reconheceria que a

intenção era apenas brincar. Em outros momentos, no entanto, a zoeira

pode ter a intenção explícita de agredir quem quase sempre era

considerado como rival. O que se procuraria nesses casos, era um

desafio ao outro, que poderia responder – ou retribuir – com outras

gozações agressivas ou até com uma discussão, ou, em alguns casos

mais extremos, com um confronto físico (PEREIRA, 2016, p. 179).

A brincadeira parecia ultrapassar o ponto do amigável quando alguém mencionava a

mãe, ou outra mulher, da família de quem provocava.

Já entre as meninas, quando há brigas, são graves. São, em geral, motivadas por

competição, seja por um menino ou pela atenção de amigas, ou por comentários relativos

a aparência de uma delas ou a uma suposta promiscuidade. A maioria das meninas com

quem conversei, seja em entrevista ou durante o período de observação, contou já terem

brigado com outra menina. Trata-se de uma evidência nítida de que muito das relações

violentas na escola são mediadas pela questão de gênero. As meninas reproduzem o

discurso patriarcal de que devem competir entre si, ser inimigas, e os meninos, ainda que

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não agridam fisicamente as meninas, nesta escola, fazem frequentes comentários sobre

seus corpos, ocasionalmente assediando-as.

Ainda que os efeitos de uma sociedade patriarcal sejam profundamente sentidos

no dia a dia da escola, percebe-se que há um trabalho dos professores para combater este

tipo de violência e entre os alunos a discussão sobre temas como a opressão estética

sentida pelas meninas, tem se aprofundado. Isso se deve, em grande medida, à forma de

gestão democrática que se constituiu na escola, que envolve a participação ativa dos

estudantes.

Os dispositivos de participação construídos na Campos Salles têm grande efeito

positivo na mediação dos conflitos entre estudantes, mas também no diagnóstico de quais

questões geram violências e o oferecimento de um espaço de diálogo e soluções para estes

problemas. São eles: República dos Estudantes, as assembleias e a Comissão Mediadora.

3.2.1 República dos estudantes

A república dos estudantes é um dos mecanismos que garantiu atenção midiática

à Campos Salles. Trata-se de uma reprodução da democracia representativa na escola,

através da qual se busca construir regras coletivas de convivência que façam sentido para

os estudantes e formular maneiras de melhorar o dia a dia na escola. Este espaço, criado

pela gestão, foi inspirado em experiências educativas históricas, notadamente, o caso do

Lar das Crianças, do início do século XX, de Janusz Korczak, que durou 30 anos onde

viria a ser o gueto de Varsóvia durante a segunda guerra mundial131. Tratava-se de um

orfanato ‘democrático’, no qual as crianças elaboravam as próprias regras de convivência

através de um dispositivo que o polaco chamava de “República das Crianças”, através do

qual se podia votar e tomar decisões coletivas.

O PPP da Campos Salles não define precisamente o momento em que surgiu a

República. Em campo, alguns professores falaram que a iniciativa partiu da gestão e da

equipe pedagógica, outros disseram que foi uma ideia de Braz Nogueira, ex-diretor da

131 As semelhanças entre este caso e a Campos Salles são inúmeras, notadamente a crítica que Korczak fazia à escola

tradicional sobre o papel do professor, que segundo ele, era o de zelar pela ordem, limpeza e silêncio (WREGE, 2012).

Ele acreditava que no lugar disso o professor deveria ter o papel de bom ouvinte, de encorajar a curiosidade e tratar as

crianças de maneira justa, respeitosa e em nível de igualdade, não de cima para baixo, como costumam ser as relações

entre adultos e crianças. A experiência polonesa ficou conhecida por seu trágico final em 1942, durante a segunda

guerra mundial, quando as tropas alemãs entraram no então gueto da Varsóvia, para levar as 200 crianças para o campo

de extermínio de Treblinka. Janusz Korczak, apesar de segundo seu diário ter tido algumas oportunidades de fugir do

gueto, acompanhou as crianças e alguns educadores do Lar à câmara de gás onde foram todos assassinados pelo regime

nazista. Para saber mais: Korczak, filme, 1990; ARNON, J. Quem foi Janusz Korczak?. Perspectiva. São Paulo, 2005.

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escola, outros disseram que veio dos estudantes. A origem precisa dessa instância não foi

constatada na pesquisa, mas percebeu-se uma vontade de construir, entre os alunos

eleitos, ‘lideranças’, com as pessoas que são referência para a organização política de

Heliópolis.

A República de Estudantes é “uma forma de gestão do espaço escolar por parte

dos estudantes que objetiva promover a aprendizagem democrática na própria prática

da democracia” (PPP, 2017). A democracia é conceito central no PPP e, portanto, parece

coerente que se queira ensinar a ‘prática democrática’, que aqui se entende como o

mecanismo eleitoral e burocrático de representatividade que existe no Brasil. O PPP é a

carta magna da República, cujo regimento está incluído no primeiro documento. Na

prática, atualmente, o que se observa em relação a república de estudantes é que há uma

estrutura de cargos que emula a democracia representativa federal. Assim, são eleitos

estudantes nas funções de: um prefeito, um vice-prefeito, dez vereadores e três membros

da Comissão de Ética. Além disso, quatro secretários são indicados pelo prefeito. A

Comissão de Ética é composta também por três professores e um funcionário, totalizando

23 membros da república entre os 400 que frequentam as aulas de manhã. Esses

estudantes se reúnem periodicamente pensam propostas e definem regras para a escola.

A ideia é que a simulação se assemelhe o máximo possível a lógica eleitoral e a

estrutura política representativa brasileira. Deste modo há uma intenção de replicar os três

poderes dentro da escola:

Para os fins desta República, serão considerados como constituintes do

Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, respectivamente, os cargos

de: Prefeito, Vice-Prefeito e Secretário para o primeiro; Vereador para

o segundo; e membros da Comissão de Ética para o terceiro.

No Executivo, o prefeito tem as competências de “manter, defender e cumprir o

PPP, observar as leis, e promover o bem geral dos estudantes desta unidade, sustentar a

união e a integridade da EMEF Pres. Campos Salles”. A função do vice é cumprir este

mesmo papel caso o presidente esteja impedido. Os secretários devem “de forma geral,

tomar medidas que assegurem a aplicação das regras, aprovadas pelos vereadores”.

Sendo que cada um tem uma área de atuação específica, sendo elas:

I. Secretaria da Comunicação: tem como atribuição tornar público

todo e quaisquer trâmites e decisões dos Poderes Legislativo e

Judiciário; II. Secretaria da Convivência e Diversidade: tem como

atribuição promover ações da convivência entre os sujeitos da

comunidade escolar, primando pela equidade; III. Secretaria da

Cultura e do Esporte: tem como atribuição viabilizar ações culturais

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dos próprios estudantes, além de proporcionar a ampliação do

repertório cultural de todos os sujeitos que compõem a comunidade

escolar; IV. Secretaria da Saúde e Ambiente: tem como atribuição

promover a preservação do ambiente escolar e entorno, tendo como

princípio norteador das ações a sustentabilidade (PPP, 2017)

Quanto ao Poder Legislativo, o regimento descreve: “Ao Vereador compete,

especificamente, promover o debate e aprovação de regras gerais da escola, mediante

consulta às outras instâncias representativas, assim como para toda a comunidade

escolar (p. 53)”. Sendo que são eleitos dois vereadores por salão do 5º ao 9º ano. Há

ainda o Poder Judiciário, a Comissão de Ética que, segundo o regimento, deve julgar e

analisar ações dos membros dos outros dois poderes tendo em vista o PPP e as regras de

convivência da escola. Seria mais próximo de um Poder Moderador.

Anualmente há um processo eleitoral. Normalmente entre maio e junho ocorre o

chamado “Mês da democracia”, durante o qual a escola é coberta de cartazes de

campanha, feitos pelos próprios candidatos. Para os cargos de prefeito, vice e membros

estudantis da Comissão, o vencedor é eleito por maioria simples. Para os vereadores, o

voto é distrital, “ou seja, cada salão vota somente em seus vereadores. Essa medida foi

tomada para garantir a representatividade de todos os salões na República de Estudantes

(PPP, p. 55)”. Os três representantes docentes da Comissão de Ética são eleitos por seus

colegas de profissão assim como o representante funcionário é eleito por seus pares.

Qualquer professor ou funcionário pode se candidatar. Já entre os estudantes, somente

aqueles que participem da comissão mediadora de seu próprio salão podem ser

candidatos.

Todas essas informações são descritas em linguajar jurídico no regimento da

República de Estudantes, o qual os estudantes são encorajados a ler. Entretanto não

observei em campo muitos estudantes que tivessem se apropriado do processo eleitoral o

suficiente para explicá-lo. Ainda assim os princípios gerais da república, são os princípios

da escola que, como vimos anteriormente, os estudantes conhecem, ainda que muitas

vezes tenham leituras variadas de seus significados. O Regimento da República pontua:

“As ações de todos os estudantes e seus representantes, professores, equipe técnica e

equipe de apoio devem estar assentadas nos três princípios ético-pedagógicos desta

unidade: autonomia, responsabilidade e solidariedade” (p. 51), de modo que a intenção

da República parece ser compreendida por todos.

A prática, entretanto, não é evidente. “Eu não vejo muita diferença, porque eles

não fazem nada. Eu não vejo nada (Fabi)”. A opinião de Fabi foi ecoada por vários

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colegas, o que nos leva a acreditar que, na tentativa de replicar o sistema representativo

brasileiro, replicou-se também sua burocracia, resultando em semelhante afastamento das

pessoas em geral da política institucional. A maioria dos estudantes com quem conversei

considera a república uma coisa ‘chata’ ou que ‘não serve pra nada’, de modo que

simplesmente não se interessam em entender como funciona.

- [Os membros da República] Eles querem melhorar a escola.

- Mas melhorar como? Eu não entendi o que eles fazem...

- Nem eu! [risos] Eu tô aqui, mas eu não entendi nunca. Assim, pelo que

eu entendi mais ou menos que eles fazem, é que eles querem melhorar

a escola propondo propostas boas, você me entende?

- Mas você consegue lembrar de alguma proposta...

- Ah, assim, como eu não presto muita atenção nesse negócio da

república, porque eu nunca me interessei muito saber... Mas eles

propuseram já mudar os pratos, colocar self-service no refeitório,

essas coisas. Mas eles não mudaram muita coisa não (Manu).

Leandro, em 2017 era vereador e contou que participar da República “quer dizer

que a gente faz regras pra sala e ajuda a melhorar o posicionamento da sala”. Assim

como outros estudantes em conversas informais, disse que a República é uma boa ideia e

que as pessoas são bem-intencionadas, mas não conseguem efetivar mudanças. Contou

ainda que quando foi membro da República achou muito difícil fazer “as coisas

acontecerem”. Essa parece ser a opinião mais geral. Os estudantes gostam do processo

eleitoral, defendem a construção de uma escola democrática e a ideia da República é

associada a isso. Entretanto, é nebuloso o funcionamento dos mandatos, os objetivos e as

competências dos membros da República.

Sophia, que já foi secretária e vereadora, diz que o problema é que as pessoas não

se importam com a República e, quando conseguem mudar algo, ninguém reconhece.

Leandro é vereador e contou que a República pensou regras de uso de materiais, inclusive

votando, entre as propostas de alunos, as regras das recém-adquiridas mesas de ping-pong

e pebolim. Entre os entrevistados, o maior defensor da República foi Lincoln:

Eu já fui secretário da Cultura e do Esporte, só que a gente, no ano em

que eu fiquei, a gente não conseguiu fazer muitas mudanças por causa

da presidência e tudo mais. Só que a maioria das pessoas não percebe

na escola. É algo muito legal porque são alunos que estão lá, sabe?

Ninguém melhor do que os alunos pra saber o que a escola precisa, o

que realmente tá meio que deixando a desejar.

Mas mesmo quem defende esse dispositivo comenta que é difícil “fazer as coisas”

por questões burocráticas. Nota-se uma rejeição à política, similar à que ocorre

nacionalmente. A crise de representatividade brasileira atual parece ter diminuído o apelo

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para a participação em uma réplica da política institucional que tanto se critica. Cleide

Alves, liderança comunitária em Heliópolis, menciona que a rejeição aos partidos

políticos acaba sendo um obstáculo a qualquer tipo de organização política:

Nosso povo, não só na nossa comunidade, mas o povo em geral, quando

se fala em 'político', ele está entendendo que se está falando em

partidário, ele não está entendendo como um ser político, um ser que

tem cidadania, um ser pensante, um ser autônomo. Não é isso o que ele

vê na política. Esse é um entrave.132

É curioso que num projeto escolar diferenciado que é fruto de luta popular tenha

se decidido reproduzir a dinâmica burocrática do Estado. Talvez além da crise de

representatividade, esse distanciamento da realidade dos estudantes, contribua para a

rejeição à República. Uma evidência dessa rejeição foi a resposta que obtive de Tadeu

em relação a República. O menino atua apaixonadamente na Comissão Mediadora e

defende o projeto da Campos Salles com unhas e dentes, entretanto quanto a República,

demonstrou uma postura defensiva e rapidamente encerrou o assunto.

- Vereador eu ouvi falar, mas eu não me interesso muito por política.

Não gosto.

- Mas eu digo vereador aqui da escola...

- Ah, da escola! Sim. Olha, eu ouvi falar sim, mas eu nunca vi. Eu vejo

que eles às vezes saem da sala para fazer reuniões e tudo (...) mas não

sei o que fazem.

Além da rejeição à política institucional há outros fatores que contribuem para

uma rejeição à República. Há alunos que veem as eleições como concursos de

popularidade e criticam esse caráter competitivo que, segundo eles, faz com que algumas

pessoas se candidatem pelo prazer de serem eleitos e não pela vontade de atuar de fato na

República. Além disso, a estrutura é muito complicada, o texto do regimento, com

vocabulário jurídico, é longo e de difícil leitura, deste modo não são todos que se sentem

aptos a se candidatarem, ou mesmo dispostos a entender o mecanismo. A instância

da participação indireta, isto é, do eleitor representado pelos eleitos, é também, pelo que

observei, um problema, pois em vez de sentirem-se representados por aqueles que

escolheram, muito alunos sentem-se excluídos por não poderem participar das reuniões

da República, o que também gera uma má vontade em relação a esse espaço. O momento

das eleições é uma quebra da rotina escolar e causa certo alvoroço, mas esse parece ser o

único momento em que toda a escola se engaja na República.

Há uma intenção de compartilhar com os membros da República as

132 Depoimento coletado por Santis (2014, p. 97).

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responsabilidades referentes à manutenção da ordem na escola, como se pode observar

nas funções do Poder Legislativo, mas não tive evidências em campo de que isso se

efetive. Se a intenção deste dispositivo era de fato a construção de lideranças, como

aquelas que são referência no Heliópolis, a dinâmica da República parece ser muito

burocrática para que isso se efetive. Entretanto há alunos cuja atuação na escola pode ser

comparada com a das ‘lideranças’. São alunos que já apareceram em matérias jornalísticas

e documentários sobre a escola, que se apresentam em eventos e falam em nome da

escola, mas que assumem essa função por envolvimento com o projeto e não por uma

decisão eleitoral, eles não participam necessariamente da República.

Muito diferente disso são as assembleias, que envolvem participação direta de

todos através de um funcionamento amplamente compreendido e cujos efeitos são

sentidos na rotina da escola.

3.2.2 As assembleias

As assembleias são outro mecanismo de participação da escola que também visa

a construção de uma escola democrática, entretanto, não é associado, pelos estudantes à

‘política’, que tem conotação negativa, mas é visto como uma maneira justa e objetiva de

decidir coisas. Todos os presentes podem falar e todos decidem, não há cargos, portanto,

a voz de todos tem igual peso nas decisões da assembleia. A participação é direta. Esse

modelo também é mais próximo do modo de organização dos movimentos sociais da

região, que também realizam assembleias.

Em 2013 e 2014, as assembleias eram muito mais frequentes. Já no período de

realização da pesquisa de campo, em 2017, para a presente pesquisa, houve somente duas

assembleias do oitavo ano. Fabi recordou que houve uma época em que havia assembleias

toda semana, e disse que prefere assim, quando o foro se mostra necessário, pois

anteriormente “ficou como que por obrigação” o que, segundo a garota, diminuía sua

relevância. No PPP de 2017, a função das assembleias é descrita da seguinte maneira:

As assembleias de estudantes acontecerão, por salões, e toda vez que

surgir a necessidade de resolução de problemas, tomada de decisões,

encaminhamentos e constituição de regras. Após a discussão, votação

das regras e encaminhamentos por cada salão, a República de

estudantes; vereadores e prefeito decidirão pelos mais votados em cada

salão, e a partir daí deverão ser cumpridos por toda a escola (p. 48).

Especialmente no oitavo ano, no qual grande parte dos alunos estuda na escola há

alguns anos e já conhece bem as regras de convivência comuns, as assembleias não se

mostraram necessárias com frequência, mas são momentos importantes para a construção

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coletiva do projeto. A maioria dos entrevistados gosta dessa prática “Os professores

perguntam, um a um, o que cada um acha, sua opinião. Quando tem votação vão

perguntando um a um o que votam... é sempre uma coisa bem, elaborada” (Tadeu).

Diferente da República, as assembleias parecem ser um dispositivo do qual a maior parte

dos estudantes se apropriou. Eles explicam facilmente seu funcionamento:

A gente desce pro pátio, e aí a gente senta nas cadeiras. Todos os alunos,

em círculo e os professores também. Começam a falar de todos os

assuntos, todos. Todos os problemas que tão tendo no salão. Tem um

aluno responsável que anota tudo no caderno pra ser discutido depois

com a comissão mediadora. Isso é levado pra diretoria e, por exemplo,

teve uma assembleia que a gente foi falar dos temas dos roteiros. Aí eles

apresentaram os temas que os alunos tinham sugerido e a gente tinha

que votar e a gente votou e foi escolhido alguns temas (Fabi).

Também são capazes de entender a função da assembleia, e defender a

necessidade deste tipo de participação dos alunos, como Lincoln coloca, “é muito

importante para os alunos porque com isso eles se sentem parte da escola”. Também se

entende o caráter educativo deste dispositivo:

Eu acho que a assembleia tem um poder muito grande porque ela

também dá o poder para o aluno escolher aquilo que ele vai fazer não

só naquele momento, mas futuramente e também dá o poder de escolher

regras e é algo muito legal porque você tá escolhendo algo que não vai

te prejudicar só que também com a questão da solidariedade você não

está pensando só em si, mas também em outras pessoas e eu acho que

a assembleia tende muito a melhorar as pessoas, no caráter (Lincoln).

Os estudantes descreveram dois tipos de assembleia, aquelas programadas, para

decidir temas de roteiro, da Mostra Cultural ou planejar outro tipo de atividade prevista

no calendário escolar, e aquelas mais emergenciais, para lidar com algum problema que

surgiu no salão, em geral bullying, brigas, desrespeito às regras de convivência e falta de

zelo pelos recursos materiais da escola.

Por mais que nenhum estudante tenha se mostrado desfavorável à própria

participação nas decisões da escola, muitos acham difícil aceitar a decisão da maioria,

quando é diferente da própria, o que pode ser um aprendizado importante, e alguns acham

o processo chato. “Ah, é chato, porque você sai do salão, do que você tá fazendo, às vezes

você tá pedindo a correção e eles vão, tipo: ‘Vamos fazer assembleia’. Aff” (Manu).

Além disso, encontramos diferentes posturas na assembleia. Alguns estudantes

gostam de aproveitar o momento para expressar suas opiniões: “Sim, participo [das

assembleias]. Tipo, por exemplo, no caso da Mostra Cultural. Eu dou a opinião, aí

quando eu acho que alguma coisa tá errada eu vou e falo a minha opinião de novo.

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Quando eu acho que tá certo eu vou e falo minha opinião.” (Juliana). Enquanto outros

têm vergonha de falar na frente de todos “Só escuto!” (Fabi).

Mesmo que alguns não gostem da assembleia, é uma maneira de manter todos

envolvidos nos acontecimentos da escola ao mesmo tempo que não se impõe a

participação ativa. Cada um tem a liberdade de falar, ou não, da maneira que preferir, mas

todos escutam. Trata-se também de um exercício necessário para a autonomia. Assim

como decidir quando e como fazer o roteiro, decidir seus temas, decidir regras para os

salões, propor soluções coletivas para conflitos são maneiras de determinar o próprio

aprendizado e a própria experiência escolar. O exercício de aceitar a decisão diferente da

sua também pode ser construtivo, ainda mais quando se dá de maneira horizontal, com

debate e defesa de pontos de vista e não de maneira vertical e nebulosa. A Comissão

Mediadora também tem se construído de maneira horizontal, mas com algumas

diferenças, nela só participa quem quer, mas a partir do momento em que alguém se torna

membro, deve participar das reuniões e, necessariamente, expressar seu ponto de vista.

3.2.3 A Comissão mediadora: entre o diálogo e a busca pela ordem

A Comissão surgiu inicialmente como uma experiência para resolver pequenos

conflitos internos do salão. No começo ainda não se sabia o que este grupo viria a ser,

mas entendia-se que os alunos eram capazes de dialogar e resolver os problemas de

convivência do salão entre si. A gestão da escola conta que, no início da formação deste

grupo alguns estudantes, crianças, do Fundamental I, avaliaram que algumas conversas

precisavam incluir as famílias e começaram, sem pedir qualquer autorização, a convocar

familiares de alunos que estavam tendo dificuldades de aprendizagem, socialização ou

que não estavam respeitando os colegas. O objetivo das crianças era conversar e pensar

em possibilidades de resolução do problema. A prática se mostrou eficaz e persiste até

hoje.

Essa comissão não será “disciplinadora” de seus pares dentro do salão

de estudos. O seu principal instrumento de trabalho será o permanente

diálogo com todos os segmentos da comunidade escolar. Seu principal

objetivo é ser ponte. Ponte entre: estudantes – estudantes, estudantes –

educadores, estudantes – pais, estudantes - direção/coordenação

pedagógica e estudantes – comunidade. Sendo assim, estarão ajudando

na sua organização e na da escola em geral, para que haja um clima

cada vez mais favorável para o desenvolvimento de todas as atividades

escolares (PPP, 2017, p. 45).

A Comissão é uma das experiências mais valorizadas entre os alunos, atualmente,

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se reúne quando identifica no salão alguma pessoa que esteja atrapalhando o andamento

dos dias no salão, ou não esteja comprometida com os próprios estudos, ou esteja com

alguma dificuldade de socialização. Inicialmente, convoca-se somente uma pessoa, em

casos de briga, problemas mais pontuais, as pessoas envolvidas são encaminhadas para a

coordenação. Caso alguém se envolva sistematicamente em brigas, aí, sim, essa pessoa

será chamada pela comissão.

Hoje, os encontros da comissão seguem uma espécie de roteiro. Em primeiro

lugar, todos os membros falam algo positivo sobre o estudante convocado. Há então uma

segunda rodada na qual eles expõem qual comportamento consideram negativo e o por

que. Finalmente, abre-se espaço para uma conversa, na qual a pessoa pode querer mostrar

sua versão dos fatos, contextualizar o comportamento, ou em alguns casos, ficar calada.

No final, há mais uma rodada em que todos falam e acertam ‘combinados’ com a pessoa

convocada, com o que ela se comprometerá dali em diante. Tadeu conta:

A pessoa se compromete a fazer tal e tal a partir daquele momento. Se

não cumprir faz outra [reunião]. A gente dá outro prazo, se não cumprir

a gente faz mais uma reunião e a Comissão dá outro prazo pro

comprometimento dela. Se ainda não cumprir, aí que a gente chama os

pais (Tadeu).

Não há critérios pré-determinados para a situação em que se deve incluir a família.

Alguns alunos, como Tadeu, falaram de uma regra de que a terceira convocação de uma

mesma pessoa pela Comissão deve ser acompanhada dos familiares. Entretanto, a regra

não consta no PPP nem, tampouco, parece ocorrer na prática. O que determina a

convocação é a avaliação da Comissão, que pode se basear em uma preocupação com o

aluno ou com uma intenção punitiva. Entre os casos relatados pelos entrevistados há os

dois casos, tanto de a Comissão avaliar que precisava envolver a família para atuar, de

fato, como mediadora entre o estudante e sua família para abordar alguma questão,

baseada em uma preocupação com o bem-estar do aluno, como de convocarem os pais

por acreditarem que o estudante em questão precisava ser punido, apesar de esse não ser,

supostamente, o papel da Comissão.

O objetivo de chamar a família é expandir o diálogo, mas na prática isso é muito

temido e visto como uma das coisas mais graves que poderia acontecer na escola e é,

portanto, frequentemente adiada, ou usada como ameaça, ou seja, pode funcionar como

um mecanismo positivo. O recurso, entretanto, visa incluir os familiares na solução dos

problemas levantados e que estejam cientes de eventuais questões mais sérias pelos quais

os filhos e filhas possam estar passando. Essas reuniões com a família, que podem ser

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acompanhadas por professores, acontecem da mesma maneira: pede-se ao responsável,

assim como ao aluno, que escute no começo, para só depois da segunda rodada começar

a intervir. Encoraja-se que o adulto fale e tente entender o que gera os comportamentos

vistos como negativos. É esperado que o adulto escute, inclusive o momento em que se

fala coisas positivas do estudante, para diminuir a sensação de que se trata de uma forma

de punição.

Todos os membros da Comissão entrevistados expressaram uma preocupação

ética de não expor as questões colocadas nas reuniões e afirmaram não as discutir com os

outros colegas. Os casos que contaram, especialmente aqueles considerados mais graves,

como de assédio, bulimia, problemas familiares, tiveram os nomes dos envolvidos

omitidos. Um caso do oitavo ano que foi relatado por alguns dos entrevistados, um

menino que estava tendo comportamentos agressivos no salão e foi convocado pela

comissão. Durante a reunião, o menino contou que sofria violência doméstica. Os

membros contam que a reunião foi muito emotiva e que alguns deles tornaram-se amigos

do menino naquele dia, pois buscaram estar sempre em contato com ele depois da reunião

e garantir um apoio e acompanhamento para além das reuniões. As reuniões da comissão,

exceto quando familiares ou coordenadoras são convocadas, são compostas somente por

alunos, a ideia é que o espaço se configure como um ambiente seguro, sem sanções

punitivas para comportamentos considerados errado. Entretanto, neste caso, os

adolescentes avaliaram que era necessário envolver adultos, especificamente a

coordenação que, ao ser informada da situação do menino, começou a também

acompanhá-lo de perto e fez visitas domiciliares. É, portanto, necessário para a prática da

Comissão que seus membros entendam qual é o trabalho da gestão, dos professores, e

seus posicionamentos, para que fique a seu critério quando será benéfico envolvê-los e

quando este envolvimento será somente fonte de vergonha para o aluno convocado.

A Comissão também participa dos Conselhos de Classe, onde se definem

as notas dos alunos, e opina nas notas finais de seus colegas.

Eles falam que é o ‘olhar do aluno’ é a gente que mais vê o que tá

acontecendo, que convive com aquilo. Aí um exemplo: o professor fala

uma nota, mas eles sempre respeitam o que o aluno fala ‘ah professor,

mas tal pessoa tá merecendo... tá fazendo isso, isso e isso’, e aí eles

aumentam a nota. Às vezes eles tão botando uma nota mais do que o

aluno merece, aí a gente conversa, fala por que ele não pode receber

essa nota, e eles abaixam. A gente sempre entra numa união pra dar

uma nota que todos aceitem (Tadeu).

Esta prática permite que todos os alunos sejam ‘vistos’ pelo conselho, mesmo aqueles

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que não se aproximam tanto dos professores, mas ao mesmo tempo, confere um poder

aos membros da Comissão, que gera a cobrança de que sejam exemplares, o que pode

alterar a condição de horizontalidade na escola.

É legal (...) porque a gente é visto como exemplo no salão e também

porque é tão bom saber que (...) você tem o poder de ajudar uma

pessoa, só que também na maioria das vezes, sabe, não é bom porque

também é muito cobrado de alunos e tal, como nós somos vistos como

exemplos, a gente meio que se sente na obrigação de não errar. (...) A

maioria das vezes, a cobrança de alguns professores é bem constante,

é meio chato (...) acaba se tornando uma responsabilidade a mais

(Lincoln).

Entretanto, apesar de o texto do PPP afirmar que não se trate de um órgão

disciplinador, associa-se na escola ‘ser chamado pela comissão’ a ‘ir para a diretoria’ em

escolas tradicionais. Mesmo que possa ser uma estratégia eficaz de resolução de conflitos

e partilha de responsabilidades, ainda é entendida como punição, e isso se dá em grande

parte pelos próprios alunos acreditarem que deve haver alguma instância punitiva para

que a escola funcione devidamente. Percebemos, inclusive, que muitos alunos, mesmo os

que apoiam e defendem o funcionamento diferenciado da escola, acreditam que os

professores são ‘muito bonzinhos’ e que falta disciplina na escola. Entre os dez

entrevistados, cinco afirmaram que os professores precisavam ser mais rigorosos, dentre

eles, três, não gostavam do projeto e preferiam que a escola funcionasse da maneira

convencional. Os outros dois, contraditoriamente, consideram a escola melhor do que as

outras justamente por seu funcionamento diferenciado, consideram-na mais pacífica e

atribuem aos mecanismos de participação grande parte dessa transformação, mas também

desejam que haja uma figura autoritária de professor que garanta o silêncio no salão ao

mesmo tempo que afirmam gostar de ter liberdade para conversar e ter relações mas

horizontais com os professores. Está aí uma contradição que evidencia a força do discurso

hegemônico.

A concepção hegemônica do funcionamento de uma escola é bem presente entre

os estudantes. Há, até mesmo, uma busca ‘punitivista’ pela ordem e produtividade,

expressa por alguns alunos que acreditam que outros, ‘bagunceiros’ ou que ‘não fazem

nada’ deveriam ser levados ao Conselho Tutelar. Isto se aproxima muito do que Enguita

(1989) fala sobre a obsessão pela ordem na escola “o ensino ou instrução ficava em um

obscuro e segundo plano, atrás da obsessão pela ordem, pela pontualidade, pela

compostura etc.” (ENGUITA, 1989, p. 118).

Essa busca pela ordem e por punições por parte de estudantes aponta um desafio

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para a Campos Salles, e talvez qualquer escola que busque constituir-se de maneira

diferenciada, que é evitar que suas novas formas mascarem as velhas relações. Os

estudantes participam e são mediadores da resolução de conflitos e possíveis punições, o

que pode ser um aprendizado importante, ou uma oportunidade para o abuso de

autoridade.

Há, entre os estudantes, uma forte necessidade de comparar o funcionamento da

Campos Salles com o de outras escolas, partindo da ideia implícita de que o modelo

hegemônico seja o ‘correto’, mesmo quando acreditam aprender mais e se relacionarem

melhor com seus colegas neste modelo não-tradicional. Essa contradição indica que,

ainda que se fale muito em vivência democrática nesta escola, desvencilhar-se da tradição

escolar autoritária é um processo longo.

3.2.4 Democracia e escola

Estes espaços descritos são definidos pela escola como mecanismos de

participação e têm o objetivo pedagógico de oferecer a vivência da prática democrática.

A democracia é central para o projeto da escola, apesar de não haver no PPP uma

definição objetiva do que se entende pelo conceito, muitos dos objetivos postos no

documento visam a formação democrática que também parece estar muito associada a

cidadania. Segundo a ex-coordenadora Natalina, a cidadania se desenvolve na prática.

“A formação da cidadania se faz antes de mais nada pelo seu exercício; se aprende a

participar participando, se aprende a fazer fazendo e a escola deve ser o local possível

para essa aprendizagem (GALLO, 2009, p. 158). A democracia, da mesma maneira,

parece ser aprendida na prática. Cabe agora, refletir sobre os nexos entre escola e

democracia, para que se possa analisar mais precisamente como esta relação se dá na

Campos Salles.

Elie Ghanem (2004) trabalha com os três aspectos constitutivos da democracia

que empresta de Touraine133, são eles: o respeito aos direitos fundamentais, a cidadania,

e a representatividade dos dirigentes. A Cidadania para o autor implica considerar-se

cidadão, para que a escolha dos dirigentes faça sentido para o eleitor que, de fato, participa

da esfera política. Já a representatividade dos dirigentes precisa reproduzir a pluralidade

da sociedade, enquanto os direitos fundamentais, o conjunto de direitos civis, políticos,

133 Ghanem parte da discussão de Alain Touraine em: TOURAINE, Alain. O que é democracia? Tradução de Guilherme

João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996.

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sociais e humanos, além de garantir melhorias de vida às pessoas, devem ser reconhecidos

e respeitados pelo Estado sendo “também condição para a existência da livre-escolha dos

governantes porque aqueles direitos limitam o poder dos governantes” (GHANEM,

2004, p. 28).

A primeira relação que se estabelece entre democracia e educação está justamente

neste ponto, do respeito aos direitos fundamentais, isto é, na garantia do direito ao acesso

à escola. Ghanem afirma ser impossível “imaginar um país democrático que não ofereça

educação escolar aos seus habitantes” (GHANEM, 2004, p. 39) e defende que a exclusão

de pessoas do sistema escolar atenta contra o respeito aos direitos fundamentais, posto

que a educação é um direito social. Entretanto, a escola não é, em si, necessariamente

democrática, “ainda que a oferta de serviços escolares seja indispensável à democracia,

isso não distingue por si só o caráter democrático de uma sociedade no que diz respeito

a educação. A educação escolar pode se aproximar, afastar-se ou manter-se equidistante

da democracia” (GHANEM, 2004, p. 39).

Quanto a representatividade dos governantes, o autor nota que uma escola voltada

para a democracia tem necessidade de buscar uma formação crítica e “indagar que

contribuição a educação escolar traz para a constituição de atores sociais fortes, com

clara definição de interesses, reivindicações e projetos, assim como para a expressão

deles no plano das escolhas políticas” (GHANEM, 2004, p. 40), o que tem efeito positivo

na representação plural da população. No caso da cidadania “deve-se examinar também

a contribuição da educação escolar como formação de personalidades democráticas, no

sentido de maximizar a transformação de indivíduos e grupos em sujeitos” (p. 40).

Posto que um dos maiores objetivos da Campos Salles é formar para a cidadania,

essa escola, pela definição de Ghanem, estaria, de fato, voltada para a democracia. O autor

ainda define duas vias da democratização do ensino, sendo que “um desses caminhos

focaliza a representação das categorias sociais nos diferentes níveis dos serviços

escolares e nas diferentes escolas” (GHANEM, 2004, p. 63). Quanto a este, sendo uma

escola pública, a atuação possível da Campos Salles é garantir às camadas populares o

acesso a uma educação de qualidade que lhe é comumente negada. Este, certamente, é

um dos objetivos da escola. “O outro caminho se volta para o difícil problema das

relações interpessoais de poder que constituem a prática educativa” (p. 63). Transformar

as relações de poder é um dos grandes objetivos do projeto da escola, como se pôde

observar ao longo da segunda parte deste capítulo.

Mais do que trabalhar em prol da democratização do ensino, a Campos Salles se

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entende como uma escola democrática. Essa categoria, segundo Mariana Wrege, tem três

principais características: “gestão participativa que inclui alunos, funcionários e

professores, as relações não hierárquicas entre adultos e crianças e a organização

pedagógica como centros de estudos, que os alunos definem suas próprias trajetórias de

aprendizagem” (WREGE, 2012, p. 78). Além da já estabelecida busca por relações

democráticas na escola, a EMEF certamente visa o protagonismo estudantil no próprio

aprendizado. Quanto à gestão participativa, ou democrática, alguns de seus principais

mecanismos foram descritos aqui: a assembleia, o exemplo máximo de democracia

participativa direta, a Comissão Mediadora e a República. Esta última, ainda que tenha

inúmeros objetivos pedagógicos alinhados com a proposta da escola parece,

inadvertidamente, ter reproduzido fatores que afastam a população da política, como a

burocratização da participação e a crise de representatividade, o que também coloca em

questão a lógica das eleições.

A reprodução da prática eleitoral é necessariamente democrática, mesmo que as

condições em que ocorre possam reforçar diferenças entre os alunos, sendo eleitos aqueles

que conseguem produzir material de campanha mais atrativo, que são mais populares, se

encaixam no padrão de beleza etc.? Essa pergunta nos leva a questionar o próprio sistema

eleitoral nacional, afinal, quão democrática pode ser uma eleição baseada em

financiamento privado de campanhas? Mais do que isso, uma democracia de fato interessa

ao Estado? Carlos Rodrigues Brandão reflete sobre esta questão:

Ora, se a democracia implica a soberania popular efetiva e a

realização do poder da sociedade civil através da mediação de um

Estado de fato representativo; se ela importa a igualdade, a

observância de exigências constitucionais efetivas de reconhecimento

de direitos das minorias e da vontade da maioria e, por consequência,

a possibilidade real da liberdade, é evidente, lembra Marilena Chauí,

que democracia e sistema capitalista são na prática incompatíveis

(BRANDÃO, 1984, p. 183).

O autor apresenta uma visão radical de democracia, isto é, que vai à raiz do termo,

pensando o efetivo poder do povo e defende que não seja vista como um sistema político,

mas que “ela se realiza como uma forma própria de vida social fundada sobre um sistema

transformado de relações sociais de produção de bens” (BRANDÃO, 1984, p. 184).

Assim, a prática democrática pode ser essencialmente anticapitalista? Sabendo que a

escola como a conhecemos, isto é, a forma escolar, é própria e necessária ao modo de

produção capitalista, é possível que uma escola, ao propor-se profundamente democrática

esteja negando este sistema? Busquemos elucidar estes questionamentos a partir da

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discussão do próximo capítulo, que apresenta relações entre a Escola e a resistência à

lógica do Capital.

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CAPÍTULO 4 – A escola e a resistência em tempos de educação

mercadoria.

A prática da EMEF Campos Sales foi traçada até o momento a partir de seu

histórico e relações estabelecidas no interior da escola. Para análise de nosso objeto de

pesquisa, contudo, é preciso agora colocar em confronto este projeto específico com a

forma escolar hegemônica para conseguirmos desenhar o que lhe é próprio e foi

constituído como ruptura com as relações educacionais dominantes.

Há, seguramente, diferenças em relação à escola convencional. Algumas

evidentes chamam atenção à primeira vista, como a organização específica do espaço, o

trabalho em grupo, as assembleias e o abandono de aulas expositivas. Outras necessitam

de olhar mais detido para serem percebidas, como o trabalho de mediação de conflitos da

Comissão, a abertura ao diálogo por parte da gestão, a busca por horizontalidade na

relação professor-aluno e a priorização da formação crítica e contextualizada em relação

à transmissão de grande quantidade de conteúdos. Mas quais os significados dessas

diferenças? Entendendo que também a escola hegemônica passa por transformações,

seriam essas diferenças, rupturas em relação à forma escolar ou apontariam para a mesma

direção? Isto é, estamos aqui diante de uma negação da escola hegemônica ou da

expressão de novos traços que tem adquirido?

A escola hegemônica não se formou, como tal, no vácuo, ou fruto de decisões

acerca das melhores formas de educar. Antes, ela consolidou-se no bojo de um longo

processo histórico de desenvolvimento de relações materiais. Assim, pode-se dizer, que

a forma escolar tal qual a conhecemos hoje, é uma marca das sociedades modernas. Foi

no capitalismo que a forma escolar se generalizou, massificando seu atendimento,

sobrepondo-se às outras maneiras pré-existentes de educar. Com isso a escola se torna

modo de educar socialmente necessário, que é um dos principais meios de se efetivar a

inserção de crianças, jovens e adultos na vida social (CATINI, 2013, p. 7).

A escola se tornou o jeito ‘certo’ de aprender e ensinar passou a legitimar os

conteúdos dignos de serem ensinados, assim como passou, em grande medida, a

reproduzir as relações sociais capitalistas e a produzir trabalhadores. Ainda que em cada

escola em particular possa haver espaço para uma prática questionadora da realidade e

que possa significar em alguns casos a melhoria das condições de vida, a forma que a

escola tomou no capital tende a reproduzir as relações coisificadas.

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A despeito de suas particularidades, pode-se observar como o modo de

educar está estritamente relacionado com processos sociais gerais:

com a divisão social do trabalho; com um modo específico de viver a

infância e se preparar para a vida adulta; com a necessidade de

separar a educação das tarefas cotidianas dos adultos, entre outros

(CATINI, 2013, p. 106).

Catini (2013), ao descrever o processo histórico que constituiu a forma escolar

fala em modo de educar capitalista e conta que, tendo sido consolidada por gerações e

transformada em obrigatória pelo Estado, a forma se apresenta hoje naturalizada, isto é,

como se fosse algo criado e acabado pela natureza, aparentando assim ser uma realidade

dada, imutável e eterna. Se adequa, dessa maneira, a descrição que Marilena Chauí faz de

ideologia:

sua coerência depende de sua capacidade para ocultar sua própria

gênese, ou seja, deve aparecer como verdade já feita e já dada desde

todo o sempre, como um ‘fato natural’ ou algo ‘eterno’ (...) Pode-se

dizer que uma ideologia é hegemônica quando não precisa mostrar-se,

quando não necessita dos signos visíveis para se impor, mas flui

espontaneamente como verdade igualmente aceita por todos (CHAUÍ,

1980, p. 247).

A escola é tão hegemônica que aparece como coisa natural e eterna, apresenta-se,

muitas vezes, de maneira ideológica, como forma a-histórica. Assim, quando falamos em

forma escolar não estamos falando em organização escolar, especificamente, mas nas

características da escola que se formou no contexto capitalista, elementos que se repetem

em diversos contextos sociais. Não se trata de uma escola ou metodologia específica, mas

algo como uma matriz, é aquilo que é estável e invariante e é, contraditoriamente, mais

determinante do que a formação que supostamente realiza.

Num certo sentido, é a isto que Silva (2005) se refere quando diz que prevalece a

forma sobre a formação. O objetivo é transformar o aluno em um trabalhador que se

comporte de acordo com o que o capital necessita. O que realiza esse processo não é o

conteúdo escolar ou o conhecimento em geral, mas a forma escolar à qual é submetido.

A forma escolar não é a educação, ou formação, mas uma forma social através da qual o

sistema produtivo se impõe e se fortalece.

A forma se sobrepõe ao conteúdo da educação escolar, que se torna

mais importante pelo modo que impõe a convivência do que pelo

aprendizado da leitura, escrita e cálculo. Isto é, evidentemente, quando

se trata da educação massiva voltada para o povo. Esta cisão só é

possível quando a escola está imersa em relações sociais

especificamente capitalistas, com sua forma própria de atomizar os

membros da classe trabalhadora: como força de trabalho, capaz de

objetivar trabalho abstrato e como sujeito de direito, perante o Estado

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(CATINI, 2013, p. 96-97).

Silva reflete sobre uma educação cuja prioridade fosse a formação: “Em vez da

forma, prevalece a história, o fato e o sentido da existência configurando a construção

da identidade como processo de formação. A educação deveria ser a formação da

consciência emancipada” (SILVA, 2005, p. 2, grifos do autor) O autor conclui, disso,

que se educação é formação, e esta não pode ser encontrada na forma escolar, não haveria

educação na escola mas “o que se faz sob o nome de educação seria uma espécie de

doutrinação ideológica geral (...) simples decorrência das exigências do mundo da

produção” (SILVA, 2005, p. 5). É o que o autor, baseado nos textos de Adorno sobre

educação, chama de educação em estado falso.

A diferença essencial da Campos Salles, assim como de outros projetos similares

é, portanto, a recusa em aceitar essa educação em estado falso. Os grupos que a constroem

perceberam que a forma escolar não garante o aprendizado, a formação, e assim, a

negaram. É a crítica da forma escolar que pode devolver a primazia à formação. Não

observamos na Campos Salles uma negação integral da forma escolar e, sim, uma crítica

que aparece na negação de alguns elementos da forma hegemônica. Tampouco há uma

ruptura completa. Trata-se de uma escola do Estado, que recebe apoio do chamado

‘terceiro setor’134, de modo que sofre influência de ambos. Além disso, trata-se de um

projeto de educação da comunidade, é apoiada pelas lideranças locais, responde às

expectativas diversas dos estudantes, familiares, professores e funcionários e sofre os

efeitos do próprio sistema produtivo que, por ser necessariamente desigual, impõe a

continuidade da desigualdade nesse espaço. Ainda que discuta e preze a autonomia, a

escola não é autônoma, é do Estado, que não é isento de interesses e teve seu papel na

constituição da forma escolar:

O Estado, tendo o controle da educação concentrado em suas mãos –

pela propriedade dos meios de trabalho, pela regulação da educação

por meio das leis, passíveis de alteração conforme a conveniência –

reforçou o predomínio da forma sobre a formação, quer dizer, fez valer

a escola como lugar de amoldar o trabalhador, sem ter acesso ao

aprendizado (CATINI, 2013, p. 96).

Há muitas características da Campos Salles, entretanto, que são a negação de

alguns aspectos da forma escolar, enquanto outras propriedades se mantêm. Esta escola

não nega o lugar de formar o trabalhador e a trabalhadora, afinal, esta é uma preocupação

134 As relações da Campos Salles com o terceiro setor serão abordadas nesse capítulo de maneira geral, mas as minúcias

dessas parcerias e a natureza das atividades realizadas fogem ao escopo da pesquisa

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das crianças que ali estudam, que precisam se inserir no mercado de trabalho. Essa é uma

função dessa forma escolar, com seu forte nexo com a sociedade fundada no trabalho.

Isso é indicado na resposta de muitos dos entrevistados na escola, ao serem indagados

sobre para o quê serve a escola, como: “Pra aprender, me formar e ter uma vida melhor,

né?”, “Pra ter um cargo de um emprego que você gosta”. Mas algumas respostas já

indicam que ainda que a empregabilidade futura seja uma questão, não é a prioridade,

como a de Kelly, que valoriza o conhecimento: “Pra dar uma estrutura pra pessoa, pra

se formar, saber das coisas, pro futuro (…) Também serve pra emprego, mas serve pra

gente ficar atualizado, saber das coisas”. Houve também quem apontasse que a função

da escola é oferecer uma visão crítica da realidade: “A escola serve para ter um

conhecimento melhor da vida (...) tipo… não é mais pensar que a vida é só um conto de

fadas… É entender o que é a realidade” (Daniele). Lincoln, também aponta algo similar:

“Eu acho que a escola serve para não só educar academicamente, mas também pra criar

seres pensantes e seres humanos (...) que sabem daquilo que elas estão falando, com

atitudes corretas diante a sociedade”. Já Fabi, percebe uma ênfase na boa convivência e

nos princípios da Campos Salles:

Pra gente aprender! (...) E não só português e matemática. A escola

ensina também como a gente ser uma pessoa né? De verdade, tipo, ter

sentimento, não ficar tratando a outra pessoa mal e, principalmente

pelos princípios aqui da escola, que é ser solidário. Eu aprendi muito

depois que eu entrei aqui nessa escola (Fabi).

A educação para o trabalho, portanto, está presente neste projeto. Não obstante,

ela aparece associada a uma formação de cada indivíduo, voltada para suas singularidades

e para sua possibilidade de reflexão crítica e a troca nos grupos de estudos. Além de

ensinar características que são procuradas pelo mercado de trabalho, como a

autodisciplina, também tem uma prática questionadora. A forma de educar na Campos

Salles está em constante mudança e negociação, sempre em função de uma melhor

formação, que é, de fato, a prioridade.

Discutiremos neste capítulo, portanto, as rupturas e continuidades desse projeto

em relação a forma escolar hegemônica, não supondo que se trate de uma solução, ou

uma nova receita, mas uma experiência de resistência que pode oferecer contribuições

para a reflexão sobre uma educação emancipadora. Para alcançar essa discussão, posto

que estamos falando da realidade de Heliópolis, é necessário, primeiro, entender a forma

escolar na maneira que é acessível à classe trabalhadora.

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4.1 Escola da classe trabalhadora

A escola, sendo essa instituição que existe em todo o planeta, parece ser neutra e

única, como se fosse uma só entidade que se repete em toda parte: “A escola se apresenta

espontaneamente sob a figura da unidade. Se fala da Escola, do sistema escolar ou do

ensino como de uma realidade homogênea e coerente” (BAUDELOT E ESTABLET,

1990, p. 13). O sistema escolar parece ser um só, pois, por ser obrigatória, a escola

alcançará a todos, os filhos dos ricos e os filhos dos pobres. “O Estado estabelece a

obrigatoriedade do ensino de crianças e jovens, fazendo com que o acesso à forma

escolar seja um ponto de partida comum a todas as classes sociais” (CATINI, 2017. p.

15). Assim, a forma escolar seria o que há de comum entre todos os diferentes grupos.

Essa escola unificada aparenta passar uma régua, que dissolveria diferenças, até mesmo

de classe, por submeter a todos ao mesmo processo e percurso. “[A] escola unifica o que

a política separa, ou ao menos se estabelece à margem e por cima dessas divisões

políticas” (BAUDELOT E ESTALET, 1990, p. 18).

Essa percepção é, entretanto, uma ilusão. Se a escola pudesse, por ela mesma,

produzir a igualdade, depois de tanto tempo de sua existência, seguramente, viveríamos

hoje numa sociedade mais justa. A escola, afirmam Baudelot e Establet, realiza

justamente a função de reprodução da desigualdade:

O efeito aparente (proclamado) da escolarização é o de dar aos

indivíduos os ‘meios’ ou as ‘bases’ de uma ‘carreira’, de uma

promoção profissional ulterior. A forma que as massas escolarizadas

se repartem entre as duas redes basta para mostrar qual é seu esforço

real: proibir materialmente a ‘promoção profissional’, a

transformação da divisão de trabalho capitalista (BAUDELOT e

ESTABLET, 1990, p. 111).

Pensando o Brasil, há a impressão de unidade escolar. O currículo é único, a

seleção de conteúdos é única, independente da enorme variedade de realidades dos

estudantes. Todas as escolas devem seguir os Parâmetros Curriculares Nacionais, as

Bases Nacionais Curriculares, sejam públicas ou privadas. Isso não impede, contudo, que

as formações oferecidas sejam diversas e desiguais. É justamente o que ocorre na prática:

há duas escolas, sendo o critério da divisão, a classe, e o efeito, a desigualdade. Quase

duzentos anos atrás, Marx já apontou como a ideia de uma escola só para todos em uma

sociedade de classes é ilusória.

Educação popular universal e igual sob incumbência do Estado.

Escolarização universal obrigatória. Instrução gratuita: Educação

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popular igual? O que se entende por essas palavras? Crê-se que na

sociedade atual (e apenas ela está em questão aqui) a educação possa

ser igual para todas as classes? Ou se exige que as classes altas

também devam ser forçadamente reduzidas à módica educação da

escola pública, a única compatível com as condições econômicas não

só do trabalhador assalariado, mas também do camponês? (MARX,

2012, p. 45).

No ensino básico brasileiro essa dualidade é evidente, inclusive para o senso

comum, pela existência da escola pública e da escola privada. A tendência é que os filhos

dos trabalhadores estudem nas escolas públicas e gratuitas e os filhos dos ricos estudem

nas escolas particulares e caras135, o que gera a associação de educação de qualidade com

escola cara. Essa dualidade gera preconceito com a escola pública e seus egressos, é

percebida socialmente e naturalizada. Um exemplo disso é o caso da Etec Heliópolis, que

apesar de ter sido uma conquista da comunidade, quando começou funcionar, por tratar-

se de um prédio novo, bem-cuidado e frequentado por pessoas de classe média, os jovens

do Heliópolis supuseram que a escola não era para eles, se era frequentada por boy, não

podia ser frequentada pela classe trabalhadora136.

A escola da classe trabalhadora, como se vê nas atuais propostas de reformas do

ensino médio, e historicamente, tem sido levada ao ensino mais técnico, entendendo-se,

como já vimos, que só deva receber formação prática, aquela que é voltada diretamente

ao trabalho, e certamente não às posições melhor remuneradas. Ainda assim a escola é a

única via possível, legítima, para o trabalhador acessar essas posições, mesmo que na

prática seja extremamente improvável que as alcance. O fato é que se a escola não garante

a melhoria de vida àqueles que a acessam, por outro lado, assegura condições piores

àqueles que não a frequentarem, o que é sabido pelos trabalhadores que, por isso,

demandam o acesso:

Trabalhadores sabem que a escolarização das crianças é necessária:

primeiro pela prática cotidiana da discriminação social que usa

frequentemente o diploma para limitar o acesso aos cargos mais

remunerados, mais prestigiosos e que dão maior poder; segundo, pela

ideologia liberal contida na educação difusa, presente no seu próprio

ambiente familiar e profissional, sem falar nos veículos de

comunicação de massa e na própria escola. Levam, então, seus filhos

à escola e estes fracassam (CUNHA, 1980, p. 122).

Interessa também às classes dominantes que os trabalhadores acessem a escola,

135 Existe um grupo de escolas que, ainda que particulares, são mais baratas e são frequentadas por filhos e filhas da

classe trabalhadora. Também existem escolas públicas, como as federais de ensino médio, que por serem antigas e de

renome, são frequentadas pelas elites. Estamos discutindo, entretanto, a tendência mais geral. 136 Sobre o caso da Etec, ver p. 68-69 e a nota 88.

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desde que seja a ‘escola dos pobres’. Enguita descreve como a escola da classe

trabalhadora foi necessária para a burguesia no momento de consolidação do capitalismo

industrial, como uma solução preventiva para as resistências dos trabalhadores às novas

condições de trabalho e de vida.

Os pensadores da burguesia em ascensão recitaram durante um longo

tempo a ladainha da educação para o povo. Por um lado, necessitavam

recorrer a ela para preparar ou garantir seu poder, para reduzir o da

Igreja e, em geral, para conseguir aceitação da nova ordem. Por outro

lado, entretanto, temiam as consequências de ilustrar demasiadamente

aqueles que, ao fim e ao cabo, iam continuar ocupando os níveis mais

baixos da sociedade, pois isto poderia alimentar neles ambições

indesejáveis (ENGUITA, 1989, p. 111).

Os trabalhadores devem ser submetidos à forma escolar, mas não é interessante

para as classes dominantes que tenham acesso a uma educação contextualizada

historicamente e crítica. A escola deve, portanto, cumprir a missão de aparecer como

espaço de democratização do saber e via para ascensão social, ao mesmo tempo que nega

ambos à maior parte de seus alunos.

A falsa ilusão de que a escola é única, igual para todos e em toda parte, propaga a

ideia de que todas as pessoas têm oportunidades iguais, o que apaga o abismo que separa

o aluno da escola particular cara e aquele da escola pública periférica. Isso produz a falsa

impressão de que para ambos acessarem a universidade e alcançarem o ‘sucesso’

financeiro basta o esforço individual. Sendo que a escola produz, como exceção, casos de

‘sucesso’, reforça a ilusão. O ‘sucesso’, entretanto, é relativo, pois se o trabalhador deve

competir com pessoas provenientes das classes trabalhadoras mesmo a conclusão dos

estudos não garante aos trabalhadores acesso as posições melhor remuneradas de

trabalho:

o aumento da proporção de estudantes de camadas populares nos

níveis mais elevados do sistema escolar constituiu, para eles, uma

vantagem muito relativa, embora o certificado de conclusão de oito

anos de estudo seja um ponto de partida favorável, eles não poderão

competir por empregos com os pertencentes a famílias mais bem

situadas. (...) Esse tipo de conclusão reitera, que os serviços escolares,

na prática, são mesmo diferentes conforme o segmento social que

atendem, ainda que não esteja identificado um nítido contorno dessas

diferenças e de suas variações e a despeito de a opinião predominante

e legitimada pretender que tais serviços devem ser idênticos para todos.

Em segundo lugar, além de os serviços se dividirem entre escolas ‘de

pobres’ e ‘de ricos’, seus efeitos são também desiguais, como

benefícios que adviriam da escolarização, ao menos no que respeita à

disputa por postos de trabalho (GHANEM, 2004, p. 66-67).

Para além do tipo e da qualidade da educação oferecida, há mecanismos

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sistêmicos que limitam o tempo de escolaridade dos trabalhadores. Me refiro aos altos

índices de evasão137 causados pela inadequabilidade da escola ao estudante trabalhador138

e periférico, ao vestibular139, aos inúmeros obstáculos à permanência do estudante

trabalhador na faculdade pública, e ao aumento da exigência do nível de qualificação

diante da expansão do acesso à faculdade pela classe trabalhadora, ou seja, quando se

populariza o diploma de graduação, passa-se a exigir pós-graduação. Como efeito, as

vagas de trabalho mais valorizadas continuam inatingíveis às pessoas afetadas por estes

processos. Deste modo, a qualidade e o direito efetivo ao aprendizado são negados à

classe trabalhadora assim como a quantidade de tempo de escola, o que é ainda um fator

de reprodução social. Reside aí o motivo pelo qual é tão potente e determinante uma

experiência como a Campos Salles, construída pela classe trabalhadora para atender a

seus filhos e filhas, ainda mais tendo em mente o trabalho de conscientização dos

professores sobre a realidade dos estudantes e aproximação com as lideranças

comunitárias.

Há na escola, e nos movimentos do Heliópolis, a esperança de que promovendo

um ensino de qualidade seja possível aumentar o tempo de escolarização dos jovens da

comunidade. Há diversos projetos que visam o acesso à universidade, como cursinhos

preparatórios para o ENEM e para o Vestibulinho da ETEc. A ETEc Heliópolis foi

conquistada pela comunidade com o objetivo de agir como uma ponte para o ensino

superior, pois não só aumenta as chances de passar no Vestibular, como têm as menores

taxas de evasão menores no Ensino Médio da região. Na própria Campos Salles, que só

oferece ensino fundamental, discute-se entre os professores e alunos a realidade

universitária, possibilidades de cursos, o que também indica a preocupação do acesso ao

ensino superior. Braz Nogueira quando era diretor contava que uma das metas da escola

era que seus alunos fossem aprovados na USP140.

137 O Censo Escolar 2017 aponta 11,2% de evasão no Ensino Médio e uma queda de matrículas. Ver mais em:

https://gestaoescolar.org.br/conteudo/1935/evasao-censo-escolar-revela-fracasso-da-escola 138 Nacionalmente tem havido um movimento de cortes de turmas de ensino médio noturno, que ecoa as reformas

propostas para o Ensino Médio e tem o efeito de obrigar muitos estudantes trabalhadores a abandonarem os estudos. 139 “O concurso vestibular é um espelho fiel das distorções e das iniquidades que caracterizam a sociedade brasileira.

Ele é um instrumento neutro e, sendo seu objetivo precípuo selecionar os candidatos mais bem preparados para

preencher as poucas vagas oferecidas, não poderia ser outro o resultado. Tal resultado só não é mais desastroso

porque a marcada hierarquização das numerosas carreiras oferecidas, determinada pelas expectativas de emprego e

remuneração após a conclusão da graduação, abre algum espaço para candidatos menos bem preparados e

conformados com um horizonte mais modesto. Não há qualquer surpresa no que se constata e, face aos compromissos

da Universidade com a sociedade quanto ao nível dos graduados que ela deve fornecer num prazo economicamente

suportável, seria um descalabro tentar usar o concurso vestibular como instrumento de justiça social (PINHO, Alceu

G. de. Reflexões sobre o papel do concurso vestibular para as universidades públicas. Estudos avançados. São

Paulo, n. 42, p. 353-362. Agosto, 2001) 140 A USP aqui representa a educação de qualidade, acredito que a intenção real por trás disso era que tivessem acesso

ao ensino superior público e de qualidade.

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É uma luta pelo direito ao aprendizado e pela expansão e qualificação do tempo

de escolarização. Isso significa não somente qualificar no sentido de adicionar qualidade,

mas também de organizar o tempo de maneira qualitativa, isto é, a partir do que demanda

cada atividade e não regulada estritamente por um relógio.

Em outras escolas, a criança tem 50 minutos para completar a tarefa da aula, se

não o fizer estará ‘atrasada’ na próxima aula. Na Campos Salles, busca-se romper com a

ideia de que alguém possa estar atrasado já que os alunos são donos do próprio tempo. Se

um aluno não aprendeu algo que será necessário para uma atividade, não a fará até que

aprenda o que precisa. Assim, quando fizer a atividade, poderá entendê-la, lhe atribuir

significado. Na Campos Salles, não se abandona o aluno para ‘trás’, pois cada um

estabelece seu próprio ritmo.

É por isso que o tempo escolar é categoria-chave para entendermos as rupturas da

prática da Campos Salles com o modo de educar capitalista. Trata-se de uma escola que

transformou internamente a maneira de lidar com o tempo e isso tem efeitos profundos

no modo de aprender e na formação de seus alunos.

4.2 Tempo da escola, tempo do trabalho

O tempo é categoria determinante para entender o modo de educar capitalista e é

também um aspecto que sofreu profunda transformação na Escola Campos Salles, como

pudemos observar no segundo capítulo. Cabe agora refletir sobre o significado dessas

mudanças.

A forma escolar mimetiza o tempo do trabalho, que é cronometrado, ritmado e

visa o progresso. Se todas as aulas de uma dada rede de ensino começam com o tocar

dos sinos às 7h, então, em todas as escolas da rede os sinos soarão de novo, para a troca

de aulas, às 7h50, e novamente às 8h40 e mais uma vez às 9h30, quando todas as crianças

serão liberadas para brincar por 20 minutos. No capitalismo, com a generalização da

educação massiva:

a educação passa a ser contada e medida pelo tempo do relógio, assim

como o tempo de escolarização é completamente preenchido por um

cronograma previamente estabelecido, num continuum onde,

socialmente, a quantidade tem mais relevância que a qualidade

(CATINI, 2013, p. 98).

Walter Benjamin (1987) descreve o tempo, vivido assim, como vazio e

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homogêneo, como algo a ser preenchido, não importa com o quê. O tempo, separado do

significado das atividades, se torna algo a ser meramente medido, contado, e o passado

parece uma sucessão de fatos desconexos. Pensando na escola, é como se todas as

atividades que se realizam fossem indiferenciáveis, posto que estejam na devida forma,

em blocos de 50 minutos. O cronograma estabelecido de antemão determina as atividades

que preenchem cada dia escolar. Assim, como diz Enguita: “o que o aluno encontra é que

seu tempo é fragmentado, normalizado e recomposto na forma de um quebra-cabeças de

atividades que ele não planejou nem é capaz de compreender” (1989, p. 175).

Os sinos marcam o ritmo das atividades e as avaliações marcam o ritmo do

aprendizado. Não adianta estudar trigonometria depois da prova de matemática, há uma

data certa para aprender cada conteúdo. A velocidade do aprendizado é definida pela

escola, não pelo aluno. O processo educativo, assim como o passado, parece alheio ao

estudante, uma série de atividades desconexas que visam levá-lo ao fim do ano, à próxima

série, à formatura, enfim, ao progresso. Como discutido anteriormente, o tempo escolar

é tanto cíclico, em seu aspecto ritmado e homogeneizado, quanto linear, ao voltar seu

significado sempre ao futuro.

A percepção do tempo presente como tempo abstrato e sem vínculo com

a qualidade do processo da passagem temporal, produz a imagem do

passado como algo progressivo e linear, visão que apaga os

antagonismos (...) a história é vista como linear e sem processo, como

se os fatos se sucedessem sem elos entre si, no interior da ininterrupta

marcha triunfal do progresso (CATINI, 2013, p. 104).

A noção de progresso seja o sucesso pessoal, o avanço de uma nação ou o

progresso da humanidade em geral, parece dar sentido às ações despidas de significado

no tempo vazio e homogêneo. Cria-se a ideia de que o tempo é um caminho único e o fim

é o progresso, em nome deste se justifica a exploração dos trabalhadores, a destruição do

planeta e a manutenção das relações desiguais e da miséria. No campo educativo, a escola

aparece como a via inequívoca para o progresso:

Naturalmente a escola incorpora com grande força a seu discurso

ideológico a ideia de progresso: supõe-se que ela própria o personifica

e é seu principal instrumento. Mas o que incorpora à sua prática é a

ideia de progresso pessoal como algo cumulativo e carente de limites,

através da experiência da soma dos anos de escolaridade, matérias

cursadas, créditos, títulos etc., e de sua sempiterna insuficiência. Por

outro lado, não é difícil associar à escola a convicção de que qualquer

tempo futuro será melhor: frente ao cinza do presente escolar, o futuro

do trabalho pode parecer pintado com todas as cores do arco-íris; e,

mesmo que se anteveja cinza, pelo menos será remunerado

(ENGUITA, 1989, p. 179).

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A ideia de tempo como bem que se acumula, tal qual o dinheiro, foi abordada

também por Thompson (1998) que afirma que, visto dessa maneira, o tempo passou a ser

economizado. O autor apresenta a transformação dos costumes que se deu com a

consolidação do capitalismo industrial, em relação ao tempo, discute seu uso econômico.

Por ter deixado de ser algo que passava e se transformado em algo a ser ‘gasto’, tornou-

se também passível de ser ‘desperdiçado’, através do ócio. Cada momento improdutivo

passou a ser um momento ‘jogado fora’. O uso econômico do tempo visa impedir este

suposto desperdício. Com isso em mente, nas fábricas, sincronizou-se o ritmo de trabalho,

de modo a tornar a produtividade comparável entre os trabalhadores. Esse ímpeto pela

sincronização também torna o tempo dos trabalhadores equivalentes, e tem o mesmo

efeito na escola. Neste espaço também, o tempo é homogeneizado.

O tempo e a disciplina da fábrica, explica Thompson, se disseminavam pela vida

no período inicial do capitalismo industrial, e transformaram os processos sociais mais

amplos, refletindo em outras esferas além do trabalho. “Havia outra instituição não

industrial que podia ser usada para inculcar o ‘uso-econômico-do-tempo’, a escola

(THOMPSON, 1998, p. 292)”. Se a escola tinha a função de preparar para o trabalho,

agora, que esse era racionalizado para o lucro, também seria transformada. “A escola se

apresenta como herdeira da função de reprodutora do ‘tempo disciplinado da fábrica’ e

está impregnada pela exaltação do tempo do trabalho como poupança, tempo útil, tempo

do dinheiro, da produção” (TUMA, 2001, p. 99).

O processo de consolidação do modo de educar capitalista foi, portanto, imiscuído

com o desenvolvimento do modo produtivo, de modo que o tempo escolar se aproximou

do tempo da fábrica. A marcação do tempo com sinos é simbólica desta semelhança.

Nota-se também que a escola reproduz a atomização fabril dos trabalhadores, os alunos

têm lugares pré-determinados para sentarem-se, isolados, e não devem se comunicar

enquanto estudam. Catini (2013) nota que essa relação não se trata de pura analogia, mas

uma mimetização que ocorre na prática, pela forma social da escola, isto é, pelas relações

sociais que estabelece em seu interior, com profundo nexo com a organização social. As

relações interpessoais que se dão no interior da fábrica são mediadas pela racionalidade

produtiva, seja pela forma de trabalho que visa individualizar os trabalhadores, ou pela

competitividade que é instilada em cada um. Ora, se a escola mimetiza a racionalidade

produtiva fabril, também as relações escolares tendem a ser mediadas por essa.

Ao analisar essa racionalidade produtiva, Tuma (2001) acredita que a

mimetização do tempo fabril na escola se dê também como um mecanismo de

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fortalecimento das relações desiguais do capital. A autora entende que a forma escolar

pretende um ‘poder sobre o tempo’, ao controlar como é vivido consegue produzir certa

previsibilidade em relação ao futuro e, dessa forma, cria a ilusão de que é algo controlável.

O presente é, dessa perspectiva, mera preparação para o que virá que, caso a escola seja

bem-sucedida, será o progresso material. “A escola é o local do preparo para o porvir,

onde a ordem e a disciplina se configuram como meios para o progresso material que

será expresso na adesão às regras” (TUMA, 2001, p. 120). A disciplina é necessária,

nesta lógica, para assegurar o progresso material dos estudantes.

As preocupações com o mercado de trabalho, que norteiam muitas das

ações disciplinares, reproduzem as relações de poder da sociedade

capitalista, que são dissimuladas na projeção de ‘benesses’ para o

futuro. Há sempre a valorização do tempo útil do tempo bem

empregado na e para a produção, pois, o tempo só é válido pelo sucesso

e pelo trabalho (TUMA, 2001, p. 124).

Com isso, é possível perceber as diferenças propostas pela Campos Salles. Há

uma ruptura com a homogeneização do tempo, mesmo que não de maneira integral. A

escola mantém a hora de chegar, a hora de sair para o intervalo e a hora de ir para casa,

mas o tempo que se passa no salão não é homogêneo e abstratamente mensurado durante

todo o tempo de aula. Afinal, cada pessoa ou grupo está realizando tarefas diferentes em

diferentes ritmos, ou ainda, não está fazendo nada ‘produtivo’, por julgar que seja o

momento para o descanso.

A ideologia do tempo econômico ultrapassa a escola, assim como a ideologia do

progresso, de modo que é inevitável que ambas estejam presentes nessa escola.

Entretanto, há uma quebra da ideia do tempo homogêneo. Para exemplificar isso,

podemos pensar caso da Fabi, que dormia nas aulas porque, com o nascimento de seu

irmão, o bebê passava as noites inteiras chorando e a garota estava exausta. Nenhum

professor viu necessidade de proibi-la de dormir, por entenderem que haveria outros

momentos em que ela estaria mais descansada e estudaria. Indagada em relação a isso,

Fabi me explicou que os professores não viam problema, pois sabiam que ela era,

normalmente, uma ‘boa aluna’ e se não conseguisse descansar tampouco conseguiria

aprender.

Da mesma maneira que os entrevistados descrevem momentos que não realizam

atividades por estarem ‘cansados’, ‘com sono’, descrevem dias que estão ‘empolgados’,

‘animados’, ‘com vontade’, e nesses dias estudam muito, realizam várias atividades. Por

outro lado, existem limites, como indicou Fabi, nessa liberdade de organizar o próprio

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tempo. Para isso, há que ser um ‘bom aluno’, que pode ser, neste caso, alguém que faz

uso racional do tempo, como veremos mais à diante. Quando um aluno escolhe, por um

longo período, não estudar, será abordado por professores para conversar.

Outra diferença nesta escola é que o tempo que se dedica a uma atividade é o

tempo dessa própria atividade, não o período determinado pelo relógio, ou pelo professor.

O significado da atividade volta a ser mais importante do que a quantidade de tempo que

se gasta nessa. A forma escolar equivale conteúdos e os elenca, esvaziando-os de

significado “as matérias tornam-se equivalentes porque ocupam o mesmo número de

horas por semana, e são vistas como tendo menos prestígio se ocupam menos tempo que

as demais” (ENGUITA, 1989, p. 180).

Podemos concluir, assim, que a prática da Campos Salles tende a não produzir tal

relação de homogeneização do tempo ou de hierarquização dos conteúdos pela

diferenciação quantitativa do tempo dedicado a cada um deles. Além das atividades

cotidianas, o processo educativo em si, volta a tomar o tempo que seja necessário. O caso

de Marcos141 é emblemático para recolocar essa discussão, pois nota-se que o menino

pôde ter apoio para aprender a ler em seu próprio tempo. Começou por receber roteiros

adaptados a suas habilidades de leitura e pôde trabalhar também com outros temas. Não

foi abandonado por ter perdido ‘o tempo certo’ de aprender.

Há, contudo, uma competitividade dos estudantes em relação à velocidade com

que se conclui os roteiros, apesar de não haver número pré-estabelecido de roteiros a

serem realizados no ano e de a competição não ser encorajada pela escola, que preza a

cooperação. Este é um sinal de como o tempo econômico e a ideologia do progresso

ininterrupto pauta nossas ações quando nos relacionamos no capitalismo e nenhum

projeto educacional que se dê nesse contexto estará isento disso. A sensação de ‘ficar

atrasado’ existe ainda pela competitividade entre nós, eventualmente reproduzida até

pelos professores. Entretanto, é preciso admitir a necessidade de que a educação de

grandes grupos de estudantes tenha determinados parâmetros, o que é inerente à forma

escolar massiva. Ademais, na Campos Salles há outros mecanismos para permitir que

cada estudante estabeleça seu próprio ritmo de aprendizado como, por exemplo, a

avaliação dos roteiros, que não tem o efeito de fazer o conteúdo avançar, pois só ocorre

quando o aluno sente que já aprendeu e chama uma professora para realizar sua avaliação.

Uma questão relevante sobre as mudanças no tempo experienciado na Campos

141 O garoto que aprendeu a ler com o trabalho do grupo de avanço do 8º ano e que, a partir disso, passou a se relacionar

melhor com as pessoas na escola. Ver p.128.

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Salles em relação a outras escolas é se tal forma de vivenciar o tempo representa uma

ruptura com a forma hegemônica ou um paralelo com a nova configuração da forma

hegemônica. David Harvey (1989) descreve a atual forma do modo capitalista como

acumulação flexível. Tuma acredita que as transformações do sistema produtivo que

temos vivido acabarão por transformar também a forma escolar e como se organiza o

tempo na escola. Alguns efeitos já podem ser percebidos: a compressão espaço-temporal

(HARVEY, 1989) se expressa no rápido acesso a informação, que chega num fluxo

constante, dando a impressão de que o mundo é menor e tornando a vivência do tempo

mais imediatista. Mais do que o tempo, essa nova configuração do sistema produtivo tem

repercussões notáveis nas relações de trabalho, e são refletidas nas recentes reformas da

educação e também na Campos Salles.

A acumulação flexível, de acordo com Harvey (1989) seria um novo ordenamento

do capitalismo, uma nova fase da organização do trabalho. É um regime de acumulação

que acentua a inovação e o fugaz, baseado na flexibilização dos processos e relações de

trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo, e supõe altos

níveis de desemprego estrutural, rápida destruição e reconstrução de habilidades e o

retrocesso do poder sindical. Sobre a reestruturação do mercado de trabalho, Harvey

afirma:

Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e

do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do

enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de-

obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor

regimes e contratos de trabalho mais flexíveis (...) é a aparente redução

do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo

parcial, temporal ou subcontratado (HARVEY, 1989, p. 143).

A flexibilização do trabalho é um processo que oculta a exploração, parecendo,

superficialmente, ser igualmente benéfica para empregador e trabalhadores, ocultando a

erosão dos direitos trabalhistas e das condições de trabalho. Intensificam-se as formas de

exploração do trabalhador, surge e cresce a terceirização e o trabalho temporário. Ao

oferecer menor segurança no emprego para a maior parte dos trabalhadores, torna-os mais

facilmente descartáveis. Todas essas características descritas por Harvey podem ser

observadas, atualmente, no Brasil, na lei da terceirização142, e nas reformas trabalhista143

142 A lei federal Nº 13.429/2017 sancionada em 2017 pelo então presidente Michel Temer amplia as possibilidade de

terceirização do trabalho, permiti a terceirização em atividades-fim, isto é, que um hospital terceirize médicos e uma

escola terceirize professores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-

2018/2017/Lei/L13429.htm 143 A reforma trabalhista que em 2018 tramitou pelo legislativo já tendo sido aprovada pelo Senado altera direitos

referentes a férias, jornada de trabalho, tempo de descanso, entre muitos outros. A reforma também abre espaço para

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e da previdência144. O momento é de facilitar a acumulação flexível, o que podemos

observar na crescente uberização do trabalho145. Assim, o que se espera do trabalhador

nos dias de hoje, não é o mesmo que se esperava de um operário fordista. O novo

trabalhador deve ser empreendedor, ousado, ter novas ideias, vestir a camisa da empresa

e pensar em maneiras de aumentar a produtividade, ser flexível, criativo, comunicativo e

aprender rápido. Contraditoriamente, muitos destes elementos estão presentes na noção

do estudante “autônomo” que a Campos Salles quer formar, mas de que maneira?

Vejamos.

4.3 O estudante autônomo

O estudante que encontramos aqui experiencia o tempo de modo diverso, participa

da construção da própria escola e organiza o próprio processo de aprendizagem. É alguém

que a escola busca equipar para a construção da própria autonomia. Mas o que isso

significa? Quem é o estudante autônomo que se busca formar nessa experiência da

Campos Salles?

Pensando inicialmente os estudantes enquanto crianças, acredita-se que a escola

tenha o efeito de prepará-las para ‘a vida’. Essa noção do senso comum dá a entender que

as crianças, enquanto tais, ainda não participam da ‘vida’, do mundo. Phillipe Ariès

(1981) discute a construção histórica da ‘criança’ e indica que a noção desta como ser

incompleto é típica da modernidade. Disso decorre a necessidade de que ela passe por

uma preparação antes de estar apta a participar da sociedade dos adultos, preparação esta,

a ser realizada pela escola “instrumento de disciplina severa, protegida pela justiça e pela

política” (ARIÈS, 1981). Decorre disso a separação das crianças do mundo dos adultos

até que sejam docilizadas. “a escola confinou a infância, outrora livre, num regime

disciplinar cada vez mais rigoroso” (ARIÈS, 1981) Assim, as crianças devem ser

protegidas e não podem ser expostas a temas que são considerados adultos. Devem

que pontos importantes de condições de trabalho e plano de carreira sejam ‘negociados’ diretamente com o patrão.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm 144 Proposta de emenda constitucional para alterar as normas previdenciárias. O texto prevê, entre outros, que aumento

da idade mínima para aposentadoria e do tempo mínimo de contribuição para o INSS (Instituto Nacional do Seguro

Social), ainda está em tramitação. Disponível em:

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016 145 Termo cada vez mais corrente, similar ao zero-hour contract, que descreve o fenômeno do trabalho sob demanda,

que só é remunerado mediante procura. O nome sai do aplicativo Uber, no qual quem trabalha como motorista só

recebe mediante corrida, o tempo que dedica ao aplicativo sem um passageiro no carro não é remunerado, da mesma

maneira, a empresa não garante os meios para o seu trabalho.

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obedecer sem questionar, pois ainda não têm discernimento e devem, ao mesmo tempo,

viver um mundo de brincadeiras e inocência sem lidar com as duras realidades do mundo.

Marilena Chauí questiona o conceito de imaturidade, apontando que

historicamente foram consideradas imaturas não só as crianças, mas também as mulheres

e grupos oprimidos por racismo. “Qual a consequência fundamental da imputação de

imaturidade a essas figuras? A legitimidade de dirigi-las e governá-las, isto é, de

submetê-las” (CHAUÍ, 1980, p. 250). Ou seja, segundo Chauí, identificar a relação

professor/aluno na chave maturidade/imaturidade configura uma hierarquização que

facilita alcançar a docilidade e adestramento dos alunos. Trata-se de uma “dupla

hierárquica”, na qual:

um dos polos seja uma espécie de receptáculo vazio e dócil no qual

venha depositar-se um conteúdo exterior trazido pelo outro polo. Com

isso, sob o nome de conscientização, reedita-se sob nova roupagem o

conservadorismo e o autoritarismo da educação que se pretendia

combater (CHAUÍ, 1980, p. 255).

Eis aí outra ruptura relevante trazida pelo projeto da Campos Salles, a criança

responsável. Pensar que as crianças – e os estudantes mais velhos também – são seres

capazes de tomar decisões e se responsabilizarem por seus efeitos, rompe com essa ideia

de imaturidade. A noção de criança que a Campos Salles adota - que não é exclusiva da

escola146 - é a de que a criança já é um ser completo, ainda que esteja em formação. O

Projeto político-pedagógico da escola propõe: “a superação da mentalidade que vê a

criança como um ser incompleto e a apropriação da mentalidade que a vê como um ser

integral (...) capaz de tomar decisões, organizar-se individual e coletivamente para

aprender e viver” (PPP, 2017, p. 48). Esse discurso é bem difundido entre educadores,

atualmente. O diferencial aqui é que essa convicção pauta, de fato, a prática na escola.

As crianças participam de decisões, são responsáveis pelos próprios estudos, são

capazes de resolver entre si os conflitos que aparecem no salão e não são poupadas de

temas ‘adultos’ como a falta de verbas da escola, os motivos para os professores aderirem

à greve ou sobre a violência policial. É possível observar a vontade e criação de espaços

e tempos para discutir com as crianças temas dos quais elas são frequentemente

‘protegidas’, ainda que muitas vezes a família intervenha e demande que as crianças

continuem a ser blindadas de certas discussões. Houve, por exemplo, tentativas de

146 Sobre este ponto, o PPP menciona que a perspectiva da escola em relação a criança foi construída a partir do

seminário “Escolas Sem Muro – Uma Nova Geografia do Aprendizado” em 2005, que reuniu diversas experiências

educativas.

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oficinas sobre sexualidade, que acabaram encerradas por reclamações de familiares. A

intenção de tratar esses temas é justamente para que as crianças possam ser autônomas,

responsáveis e críticas, para que, informadas, possam ter posicionamentos e entender

situações de risco às quais podem estar sujeitas, seja a atuação violenta e racista da polícia

à qual a negritude jovem é sujeita, ao tráfico, à gravidez na adolescência, à sexualização

de crianças e abusos decorrentes disso etc. Não se procura formar, portanto, a criança, ou

jovem, que fica em silêncio, mas aquele que dialoga e se posiciona, mais do que isso,

alguém que esteja consciente das contradições da realidade em que vive e incluído na

discussão dos problemas de modo que possa participar da busca por soluções coletivas.

O estudante da Campos Salles é incentivado a ser autônomo. Trazer a noção de

autonomia para a escola não é uma novidade. A autonomia e a falta de autonomia

são frequentemente citadas nas entrevistas dos professores para qualificar a atitude dos

alunos em "sucesso" ou em "fracasso" (LAHIRE, 2004, p. 58). Entretanto, é necessário

entender o que significa prática da autonomia neste projeto. A autonomia construída na

Campos Salles se situa, entendo, entre duas noções: a autonomia como autodisciplina e a

autonomia como emancipação.

O que vemos no PPP se aproxima da ideia de autonomia como emancipação.

Professoras, gestão e alunos falam frequentemente em autonomia como um recurso

necessário à autodeterminação. Entendo que a defesa principal desse conceito é que sendo

autônomo, se pode ser mais livre, independente. É uma maneira de ajudar os alunos a

ultrapassarem os limites de uma educação escolar. Um aluno autônomo determina seu

próprio processo de aprendizagem. Rui Canário entende autonomia em oposição à

heteronomia, definindo “o terreno da autonomia, ou seja, o terreno da criação em que

nos determinamos e o terreno da heteronomia, ou seja, o terreno em que interiorizamos

e reproduzimos o que já existe e, portanto, somos determinados” (CANÁRIO, 2006, p.

5). O autor vê a educação como um processo de emancipação, ou seja, que caminha em

direção à autonomia, e “como um trabalho que cada sujeito realiza sobre si próprio (em

relação com outros e com o contexto)” (p.5).

Por outro lado, no contexto escolar, autonomia pode ter outro significado. Como

Lahire aponta, a autonomia pode significar internalização de regras, a autodisciplina:

Autonomia vista como autodisciplina corporal (saber conter os

desejos, portar-se bem, ficar calmo, escutar, levantar a mão antes de

falar, começar a trabalhar sem que o professor tenha necessidade de

intervir, imprimir regularidade ao trabalho, ao esforço, ser

ordenado...) e como autodisciplina mental (saber fazer

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um exercício sozinho, sem a ajuda do professor, sem perguntar

nada, fazer uma leitura silenciosa e resolver por si mesmo um

problema, saber se virar sozinho ao fazer um exercício escolar

somente com as indicações escritas...). O termo "autonomia" parece

cristalizar um conjunto de características valorizadas do ponto de vista

escolar (LAHIRE, 2004, p. 58-59).

Ou seja, Lahire indica que ensinar essa autonomia nas escolas, que agora

valorizam esse conjunto de habilidades, longe de ser uma ruptura, é uma nova tendência,

próxima daquilo que Duarte (2001) chama de ‘pedagogias do aprender a aprender’ e

compatível com as recentes transformações do trabalho e do sistema produtivo.

a escola passou historicamente da construção da figura do "aluno

domado" à do ‘aluno sensato e racional’(...). Deixar o aluno caminhar

sozinho em direção ao saber, sendo o professor mais um guia

pedagógico do que um instrutor (no duplo sentido do termo), pedir-lhe

que se comporte bem, através de uma forma de autocontrole bem

compreendida, significa estar cada vez mais próximo de um aluno

sensato e racional, de um aluno capaz de self-government, de

"aprender a aprender", de caminhar sozinho para a apropriação do

saber (...) capaz de fazer um exercício após a leitura de uma instrução,

de organizar sozinho seu trabalho, de virar-se sozinho ou trabalhar em

grupo (LAHIRE, 2004, p. 59).

Tudo que Lahire descreve nesse trecho parece próximo da prática observada na

Campos Salles e não é, necessariamente, incompatível com uma educação emancipatória,

ainda que também esteja próximo das novas demandas do capital. Pensando

objetivamente, preparar o aluno para o mercado de trabalho não é contraditório com a

educação que visa emancipar, pois esse processo não o desobrigará de suas necessidades

materiais: o aluno, independente da educação à qual terá acesso, precisará trabalhar. O

ponto nevrálgico nessa dualidade - autonomia como emancipação versus autonomia como

autodisciplina - seria a crítica. Há uma conscientização em relação ao sistema produtivo

ao ensinar habilidades valorizadas pelo mercado de trabalho, ou há simplesmente a

reprodução da ideologia hegemônica? A prática, contraditoriamente, parece englobar as

duas perspectivas. Ambos discursos estão presentes. Há um ímpeto de crítica e

politização, mas há a preocupação prática de preparar o aluno para o mercado de trabalho

– e vestibular – que por vezes aparece de maneira isenta de crítica.

Quando a prática se dá sem crítica, abre espaço a degeneração do discurso crítico

e popular da escola. Isso acontece com o debate sobre o papel do professor no ensino de

alunos autônomos. Lahire descreve:

A figura do professor desaparece em proveito de dispositivos

pedagógicos objetivados, em relação aos quais ele desempenha dois

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papéis: preparar para a utilização autônoma desses dispositivos

através de um trabalho específico sobre a leitura-compreensão (leitura

solitária com os olhos) e, em seguida, guiar os alunos em sua

progressão autônoma em direção aos conhecimentos (respondendo

fatalmente a perguntas, lembrando ou comentando as

instruções) (LAHIRE, 2004, p. 62).

Essa nova posição do professor, mais horizontal, ao mesmo tempo remete a uma

em reunião de professores, sobre a Campos Salles ter supostamente ‘resolvido’ o

problema de falta de professores na rede. Afinal, se disse, um salão poderia ter dois

professores para 80 alunos e se as crianças fossem de fato autônomas, a diferença em

relação ao salão com três professores não seria notada.

Não é função ou interesse da Campos Salles ‘resolver’ a falta de professores pelo

viés de diminuir sua importância. Essa é uma questão trabalhista. Formação, condições

de trabalho e remuneração dignas para a categoria poderiam resolver o problema de falta

de professores. É central, no projeto, a transferência do protagonismo no processo

educativo do professor para o estudante. Todavia, o papel do professor deve estar

assegurado, afinal, só diante da articulação de professores engajados, criativos e com

autonomia pedagógica, que essa experiência tem pôde durar tanto tampo, aprimorando-

se constantemente, e pode esperar continuar a existir. O estudante deve ser protagonista

da própria aprendizagem, mas a escola não existe sem a valorização dos professores e

funcionários que também a constroem.

Vemos, então, como o discurso transformador deste projeto pode ser utilizado em

favor das demandas do capital. Pode ser uma maneira de formar o ‘cidadão

produtivo’ (FRIGOTTO, 2007), que produz de modo eficiente, sem necessidade de muita

supervisão, respondendo às demandas do mercado de trabalho atual e ao

empreendedorismo. Ao mesmo tempo que a construção da autonomia, enquanto

autodeterminação, é essencial para uma atuação política transformadora, segundo Duarte,

esse intuito de tornar o estudante autônomo pode ser interpretado como:

uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o

desemprego. O “aprender a aprender” aparece assim na sua forma

mais crua, mostra assim seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se

de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a

formação da capacidade adaptativa dos indivíduos (DUARTE, 2001,

p. 38)

Pelo aspecto financeiro, uma escola que rompe com o formato de fileiras e

trabalha com grupos de alunos estudando juntos, podendo aglomerar grandes números de

crianças com poucos professores – que podem ser menos especializados – e funcionários,

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pode ser muito lucrativa. Assim, a escola em questão pode estar alinhada ou ser crítica ao

discurso hegemônico. Entra em questão aqui, o sentido que se dá à prática da Campos

Salles e a quais interesses atende.

4.4 A escola disputada

Como sabemos, a Campos Salles está situada em uma convergência de interesses:

dos movimentos sociais de Heliópolis, dos alunos, das famílias, da equipe escolar. Esses

interesses se expressam no projeto político que as lideranças da região têm para a escola.

A equipe pedagógica procura transformar a forma escolar que conhecem. Na

comunidade, muitos olham para a Campos Salles como a chance de acesso à educação.

Ainda que a evasão e o abandono escolar ainda existam aqui, são enfrentados a partir da

proximidade com as famílias, visitas domiciliares e diálogo, o que não somente tem se

provado efetivo, como aumenta a aproximação, e voz, dos familiares no funcionamento

da escola. É também um espaço de construção de consciência de classe e onde se ensina

o histórico de luta da região, onde se discutem os problemas da região, principalmente a

violência, ao mesmo tempo que é tratada muitas vezes como um bastião de esperança

para a transformação de todos esses problemas, como a representante de uma nova

educação que, finalmente, faria sentido para o povo. Esses interesses, entretanto, muitas

vezes se desencontram. O caso da oficina de sexualidade, por exemplo, atendia à

preocupação de combater à gravidez na adolescência e à postura da escola de abertura

com os estudantes para construção de autonomia e responsabilidade, entretanto, era

incompatível com valores religiosos de algumas famílias, ou o interesse de manter seus

filhos ‘inocentes’.

Como toda escola, a Campos Salles deve realizar um delicado equilíbrio entre as

vontades, interesses e projetos que a cercam. Mas por ser uma escola profundamente

integrada com a comunidade em que se situa, tem um trabalho mais custoso nesse sentido.

Os familiares podem opinar sobre o projeto da escola, frequentam o espaço do CEU e

presenciam qualquer transformação cotidiana. Os movimentos sociais, a UNAS e o CEU

realizam eventos no espaço da escola, que também é referência para a concentração de

pessoas que antecede a Caminhada da Paz, que, cabe lembrar, terá em 2019 sua 21ª

edição. Assim, os significados atribuídos ao espaço da escola, e do CEU, e o projeto são

variados e acabam sendo limitados também pelos interesses de dois grandes atores

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184

externos: o Estado e o Mercado.

À primeira vista, Estado e Mercado parecem ter, entre si, interesses contraditórios,

mas diante de análise mais profunda, percebe-se que este não é o caso. Harvey (2012), ao

estudar o neoliberalismo, afirma que essa teoria produz e propaga uma falsa oposição

entre Estado e mercado. Como consequência, a luta contra o neoliberalismo na esquerda

brasileira acabou por construir uma tradição de defesa do Estado como uma negação do

mercado capitalista. Esta tradição vê o Estado como defensor do bem comum, por ser

posto em oposição ao mercado, é associado aos interesses do povo.

Pelo contrário, Sanfelice (2005) afirma que no pensamento marxista entende-se

que o Estado tem “a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de

classe”, de modo que não se pode esperar que esteja alinhado aos interesses do povo.

Pensando no Estado moderno, afirma que esta nova configuração o tornou mais

autônomo, porém de modo “a preservar uma ordem favorável aos interesses da

propriedade privada, dos meios de produção e do capital”.

A conclusão sucinta é a seguinte: o Estado, ou o que é estatal não é

público ou do interesse público, mas tende ao favorecimento do

interesse privado ou aos interesses do próprio Estado com a sua

autonomia relativa (SANFELICE, 2005, p. 90).

É possível, no campo da educação, traçar inúmeras convergências entre o Estado

e o Mercado. No caso brasileiro há uma regulação fundamental a este respeito na

Constituição Federal de 1988, ou na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que trata da

legalização de escolas que visam lucro e do sistema dual de ensino:

Ao decretar que um dos princípios da educação nacional é a existência

de instituições públicas e privadas de ensino o Estado reconhece a

necessidade de gratuidade pela imensa massa da população

trabalhadora, sem, no entanto, cercear a possibilidade de que a

educação seja uma mercadoria lucrativa, na forma da venda do serviço

de ensino (CATINI, 2017, p. 15).

Isto é, a prioridade defendida não foi o acesso universal a educação, mas a

manutenção de acesso desigual à forma escolar, colocadas sob a condição de livre-

competição. Além de permitir a venda da educação enquanto serviço, o Estado também

se desencarrega da educação das elites, que teriam condições políticas de pressionar por

qualidade caso o ensino básico privado não existisse. Deste modo, quem pode pagar tem

direito à educação de qualidade, e tem liberdade para escolher um ensino tradicional,

construtivista, bilingue etc., por ter à sua disposição um mercado que surgiu a partir da

conivência do Estado.

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Assim, o Estado contribui para universalizar o acesso ao direito à

educação pela forma escolar, ao mesmo tempo em que permite uma

diferenciação das classes pela qualidade e forma distinta das ofertas

de serviço educativo. Universaliza-se uma forma, sem eliminar a

distinção dos conteúdos ou mesmo o esvaziamento dos conteúdos, uma

vez que passamos a considerar o direito pelo acesso a forma e não a

formação (CATINI, 2017, p. 15).

Retornamos, então, à questão de a forma escolar priorizar a forma sobre a

formação. O que Catini (2017) explica é que o direito à educação se transfigurou em

acesso à forma escolar, em vez de direito à formação em si.

Ao se relacionar com escolas com projetos diferenciados, que de alguma maneira

rompem ou criticam a forma escolar, como a Campos Salles, o Estado não deixa de atuar

como parceiro do Mercado. Há uma tendência de apoio estatal a essas escolas, definidas

como inovadoras, criativas, transformadoras. Isso se verifica no programa do Ministério

da Educação, Inovação e Criatividade na Educação Básica147, que visa localizar, mapear

e sistematizar experiências de educação escolar inovadoras e criativas. A iniciativa reúne

escolas que defendem o protagonismo do estudante ou um ambiente escolar mais

acolhedor.

A partir deste referencial, o Ministério da Educação criou um Mapa da Inovação

e Criatividade na Educação Básica148, a partir do qual prevê o fortalecimento das

organizações responsáveis pelas experiências educativas, para ampliar seu impacto. Prevê

ainda a ampliação da demanda social por educação inovadora e criativa e a formação

de educadores especializados para, finalmente, formular e reorientar políticas públicas

que fomentem experiências de ‘criatividade e inovação’ na educação escolar.

Constatamos, portanto, a intenção do Estado de fortalecer estas experiências149, somada

à vontade declarada de aproximação de tais escolas com universidades, empresas e

secretarias da educação. A questão é: qual o interesse do Estado nessas experiências?

Cabe ainda pensar a terminologia empregada no programa estatal. Adotar os

termos inovadoras e criativas dá a conotação de que o diferencial destas escolas é serem

mais modernas, mais antenadas ou tecnológicas. Supõe-se que o problema da educação é

que não temos sido capazes de acompanhar as mudanças e as demandas do século XXI.

O problema desse discurso é que simplifica a questão e esvazia o significado político

147 Disponível em: http://criatividade.mec.gov.br/ 148 Disponível em: http://criatividade.mec.gov.br/mapa-da-inovacao 149 Ver mais em: http://porvir.org/mec-busca-experiencias-inovadoras-na-educacao-basica/

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dessas escolas. A crise da educação não é efeito de uma recente dificuldade de integração

tecnológica na escola, mas é, como vimos em Algebaile (2009), característica constitutiva

da escola brasileira.

Além disso, a terminologia pode ter o efeito de dissociar essas experiências,

agora inovadoras, de seu histórico de luta. É como se as escolas do futuro tivessem

aparecido no vácuo e rumassem de maneira inequívoca em direção ao progresso, e não

fossem fruto de processos históricos e resistências. Não se veem as dificuldades e

obstáculos envolvidos em cada experiência, somente resultados incríveis alcançados

como que por mágica. Essa percepção também está presente no discurso da gestão da

Campos Salles:

Diferentemente da educação do passado, a escola de hoje precisa

articular diversos saberes e práticas metodológicas de ensino para

garantir a aprendizagem de seus estudantes. Além de expandir o

potencial criativo de crianças e jovens, as instituições de ensino do

século XXI têm a tarefa de abrir suas portas e estabelecer parcerias e

vínculos com as famílias e comunidades onde estão inseridas. Ou seja,

a criança que entra na escola hoje não pode encontrar a mesma

estrutura pedagógica de quando estudaram seus avós. Nesse contexto,

surgem escolas centradas no estudante (MORAIS et al, 2017).

Nesse trecho há a intenção de transformar o modo de ensinar na escola, quando

propõe-se que o enfoque da educação seja a efetiva aprendizagem em vez da metodologia

de ensino, e que a escola se articule com famílias e comunidades. Ao mesmo tempo,

percebe-se que o discurso da transformação está impregnado da crença de que, se há

problemas na configuração atual da escola, é porque esta não se modernizou. Não se

coloca em questão os interesses envolvidos na manutenção da forma escolar nem,

tampouco, os significados e a direção da almejada modernização. Acredita-se que por

estar ligada ao futuro, esta escola que virá necessariamente será melhor do que a atual,

aquela de educadores atrasados que ainda não alcançaram o séc. XXI. Este discurso da

inovação, desta maneira, pode invisibilizar processos históricos, disputas e interesses que

são essenciais para a compreensão da educação escolar.

Certamente, esse apagamento de realidades não acontece por acaso. As escolas

que compõem o Mapa da Inovação, inclusive a Campos Salles, têm ‘parcerias’ com

diversas ONGs, nacionais e internacionais, como: ASHOKA, Instituto Alana e

ActionAid. Entre elas há organizações do terceiro setor que são ligadas a empresas, como:

Fundação Telefônica Vivo, Instituto Natura, Fundação Itaú Social, entre outras. O

envolvimento e financiamento do Terceiro Setor é muito comum no grupo de

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escolas criativas e inovadoras. Observamos nessas organizações, um discurso similar

àquele visto no Programa Inovação e Criatividade na Rede Básica. Fala-se também em

“escolas inovadoras”, alunos “empreendedores e criativos”, como solução para os

problemas da escola que parece estar parada no tempo, alheia às mudanças históricas e

dos modos de vida.

Isso se nota nesta fala do diretor presidente da Fundação Telefônica Vivo que

acredita que a escola esteja atrasada pois, “não está ensinando aos jovens as competências

para a vida. 80% dos entrevistados disseram que aprendem sozinhos sobre

empreendedorismo, que é um conteúdo fundamental para o mundo de hoje”150. Esta

priorização do empreendedorismo indica para uma valorização das necessidades do

mercado de trabalho flexível. Fala-se nas novas relações de trabalho, mas não se

problematiza as novas formas de precarização, como se essa “nova e excitante” era da

tecnologia trouxesse somente transformações positivas. O documento Inova Escola151, da

mesma organização, chega a relativizar a necessidade do acesso ao conhecimento em prol

nas novas necessidades do mercado:

No século XXI, essa dinâmica mudou (...). Ter muito conhecimento não

é mais a grande vantagem para os jovens que estão de olho no mercado

de trabalho, porque qualquer fato que ele não saiba pode ser

pesquisado, com alguns clicks ou em uma conversa com um

especialista, por meio de um chat, mesmo à distância (2016).

Essas organizações estão também alinhadas com grupos empresariais, tais como

o Todos pela Educação que tem um projeto de privatização do ensino e tem tido crescente

poder de decisão nos rumos da educação básica152. A fala de Priscila Cruz153, fundadora

e diretora do Todos pela Educação demonstra a semelhança de discursos:

Há várias razões pelas quais precisamos inovar. A principal delas não

é novidade para ninguém: o nosso sistema educacional é atrasado e

extremamente ineficiente. Quase metade dos jovens brasileiros não

conclui o ensino médio na idade adequada e a principal causa do

150 Fala de Américo Mattar a respeito de pesquisa realizada pela Fundação Telefônica Vivo. Disponível em:

http://fundacaotelefonica.org.br/noticias/7-caminhos-para-inovacao-da-educacao- 151 Produzido pela Fundação Telefônica Vivo com o apoio do Instituto Natura. Disponível para download em:

http://fundacaotelefonica.org.br/acervo/inovaescola/ 152 “A Reforma do Ensino Médio em implantação, tendo sido organizada e formulada por institutos empresariais como

do Unibanco, Itaú ou “movimento” Todos pela Educação – uma reunião de empresários que estabelecem já inúmeras

parcerias e cada vez mais dão as cartas da educação pública -, indica a implementação de formas mais consistentes

de gestão e prestação de serviços privados também nesse nível” (CATINI, 2017, p. 13). 153 A fala foi reproduzida no mesmo documento Inova Escola da Fundação Telefônica Vivo, que menciona o Todos

pela Educação como referência para os rumos da educação no Brasil em diversos momentos, tais como “70% é a

proporção de alunos que, até 2022, deve ter o aprendizado adequado, segundo as metas estabelecidas pelo movimento

Todos pela Educação”.

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abandono escolar é o desinteresse.

Seguramente, evasão e abandono no Ensino Médio são graves problemas

educacionais no Brasil, entretanto, ao supor que a principal causa para isso seria

desinteresse, desconsideram-se as condições materiais, de trabalho e acesso à escola e

apaga-se a difícil condição do estudante trabalhador. Ao se afirmar que os problemas da

educação podem ser facilmente resolvidos a partir de parcerias inovadoras, com o

Terceiro Setor, este se coloca a tarefa de atualizar a escola, fazer com que ‘alcance’ o

século XXI.

Voltando a olhar para as escolas com projetos diferenciados, tais como a Campos

Salles, outra evidência papel do preponderante do Terceiro Setor neste grupo é que um

espaço privilegiado de debate e articulação dessas experiências, o CONANE154

(Congresso Nacional pela Nova Educação), seja financiado pelo Instituto Natura e

Instituto Telefônica.

À primeira vista, pode parecer que o envolvimento do Terceiro Setor nessas

escolas nada tenha a ver com os interesses do Estado e do Mercado, afinal, estamos

falando de uma “terceira via”, neutra e desinteressada. Não obstante, é preciso perscrutar

o que há de fundamental em tal interesse na escola e na solução dos problemas

educacionais.

Essas organizações oferecem serviços que vão desde o desenvolvimento de

plataformas virtuais de ensino à formação de educadores, consultoria em gestão escolar,

aplicativos de autoaprendizado e integração tecnológica nas escolas. Estes institutos

trabalham em muitas e variadas instituições de ensino.

Paulo Arantes (2005) enfrenta a tarefa de tirar o véu ideológico do Terceiro Setor.

O autor combate o discurso da terceira via, a noção de que o Terceiro Setor seria uma

opção para resolução dos problemas sociais por superar o suposto dualismo Estado e

Mercado, como se fosse apenas uma espécie de “meio-termo”, para superar velhos

conflitos, uma saída moderna e inteligente para os problemas causados pelos limites do

Estado e do Mercado. Arantes afirma que as empresas, quando se transfiguram em

institutos e fundações ‘sem fins lucrativos’ continuam a visar lucro, pois permanecem

154 O Congresso Nacional, que inclui convidados internacionais, em 2015 ocorreu no CEU Heliópolis Profª Arlete

Persoli de modo que a gestão do CEU e da Campos Salles foram centrais na sua organização e encabeçaram diversos

debates, com a contrapartida de que o Congresso oferecesse gratuitamente certo número de inscrições (que tinham

valores altos) a educadores do Heliópolis. Foram representadas inúmeras experiências escolares diferenciadas,

incluindo algumas que já citamos como EMEF Desembargador Amorim Lima e CIEJA Campo Limpo. É considerado

um espaço privilegiado de troca de experiências para estas escolas e espaços educativos. Ver mais em:

https://www.conane.com.br/.

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empresas. “As grandes empresas estão passando, nos últimos tempos, por uma espécie

de surto esquizofrênico, pois agem, mas, sobretudo falam, dando a entender que no fundo

são organizações sociais sem fins lucrativos” (ARANTES, 2005, pp. 173-174).

Esse surto esquizofrênico, entretanto, segundo o autor, não é remotamente

acidental. É estratégia do mundo corporativo, financeiro, e do Terceiro Setor de assumir

um discurso de marketing, que se recusa a tratar as coisas pelo seu nome real, de modo a

ocultá-las através de uma imagem incólume de boas intenções e competência. No caso

do Terceiro Setor o intuito é de passar uma imagem de caridade desinteressada:

Não-governamentais e além do mais sem fins lucrativos. Tão longe,

portanto, do dinheiro quanto do poder? Outra vez por definição, é claro

que sim. E novamente nos deparamos com um disparate de mesmo teor.

É que também as empresas, por uma espécie de esquizofrenia

programada, principiaram a se comportar em público como se fossem

de verdade organizações não-lucrativas! No fundo, se ainda distribuem

dividendos para os seus acionistas é por mera e incontrolável

decorrência técnica de sua maior eficácia no uso de bens

escassos (ARANTES, 2005, p. 166).

O Terceiro Setor, desta forma, não estaria desassociado do Mercado, mas seria o

próprio Mercado. “Não há como não conceder aos teóricos do Terceiro Setor que, de

fato, numa economia de mercado não há valor de uso coletivo que, ao se tornar objeto

de uma demanda efetiva, não gere um correspondente investimento lucrativo”

(ARANTES, 2005, p. 168). A atividade do Terceiro Setor é necessária para suprir as

faltas do Estado, é a participação cidadã na terceirização das funções sociais do Estado,

contrariando a corrente crença na oposição dualista entre Estado e Mercado. A

convergência de interesses e ação entre os dois existe e é frequente justamente porque é

possível, e também frequente, para o Estado terceirizar funções, como pode-se constatar

nas parcerias público-privadas, sintetizadas por Adrião et al:

As empresas privadas lucrativas não oferecem apenas materiais

didáticos ou formação docente, mas atuam também sobre a política

educacional no que diz respeito à organização do ensino local. O poder

público, por sua vez, delega parcela de suas responsabilidades

específicas para com a educação, muitas vezes recém-assumidas, para

a iniciativa privada (ADRIÃO et Al, 2012).

Esta colaboração entre Estado e Mercado torna-se mais evidente a cada dia diante

do esforço de privatização da educação e dos serviços públicos que vivemos atualmente.

Um desses pontos de convergência de interesses é, novamente, o Terceiro Setor:

afinal, empresa e ONG não são ‘organizações sociais’ muito

semelhantes? E quando empregam a expressão ‘organização social’

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sabem muito bem do que estão falando, pouco importa a maior ou

menor convicção com que giram a manivela do realejo ‘cidadão’. A

fórmula mágica ‘organização social’ designa um curioso espécime da

zoologia fantástica gerencial, algo como uma ONG clonada nas

incubadoras do Estado, uma sorte de ONG espelho da similar

produzida por geração espontânea no seio generoso da sociedade dita

atualmente civil (ARANTES, 2005, p. 171).

Arantes ainda refuta a ideia - que justificaria a suposta oposição entre esses atores

- de que o Mercado requer um Estado mínimo, afirmando, pelo contrário, que necessita

de um Estado forte e atuante:

A primazia absoluta dos mercados requer, ao contrário, um Estado

forte: no jargão do Banco Mundial, um Estado atuante, não mais um

provedor, porém um ‘parceiro’ facilitador e regulador. Quer dizer:

trata-se de fato de um Estado mais forte do que nunca, na medida em

que lhe cabe gerir e legitimar no espaço nacional as exigências do

capitalismo global. Assim, a força do Estado, que no período de

compromisso keynesiano consistiu na sua capacidade de promover

regulações e prestações não mercantis, converteu-se numa outra coisa,

o poder de submeter as normas da reprodução social à lógica do

dinheiro, coisa que o mercado por si só está longe de poder fazer sem

correr o risco da ingovernabilidade (ARANTES, 2005, p. 170).

Segundo o autor, portanto, para que atue livremente, o mercado demanda um

Estado ‘parceiro’ facilitador e regulador na função de adequar os campos, legislações e

agendas nacionais às necessidades do capital global que deve: “‘estrategicamente’ se

retirar assim que organizações não-governamentais ‘demonstrarem’ a superioridade de

suas vantagens comparativas – convenhamos, uma vitória sem muito esforço, já que não

havia mais em campo com quem competir, salvo a sucata preparada para tal efeito

demonstrativo (ARANTES, 2005, p. 171), isto é, diante do sucateamento dos serviços

estatais, as ONGs, ou a privatização em geral, aparecem como salvadores.

O que acontece, portanto é que a sociedade civil - outro termo usado para ocultar

a palavra ‘empresas’- passa a gerir serviços que competem ao Estado e, para tanto,

recebem dinheiro público. Para isso, necessitam do apoio e ‘parceria’ estatais. Afirma

ainda que um dos instrumentos mais eficazes e amplamente utilizados nessa tarefa é a

organização social:

A fórmula mágica “organização social” designa um curioso espécime

da zoologia fantástica gerencial, algo como uma ONG clonada nas

incubadeiras do Estado, uma sorte de ONG espelho da similar

produzida por geração espontânea no seio generoso da sociedade dita

atualmente civil. Mais exatamente, seguindo a nomenclatura oficial,

organizações sociais resultam da transformação dos serviços públicos

em entidades públicas de direito privado que celebram com o estado

um contrato de gestão, cujas atividades são controladas de forma mista

pelo Estado (financiamento parcial pelo orçamento público, poder de

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veto e cooptação nos conselhos de administração) e pelo Mercado

(cobrança de serviços prestados pela mão invisível da concorrência

entre as entidades) (ARANTES, 2005, p. 171).

Essa discussão remete à posição ocupada pela UNAS que, ainda que inicialmente

se pretendesse prioritariamente como um movimento social, hoje teve que secundarizar a

formação política para realizar as tarefas que o Estado falha em cumprir tendo, ao mesmo

tempo, que buscar apoio no setor privado.

A Campos Salles está em posição similar, sendo disputada pelo Estado e Mercado

que, diferente do que se pensava, não estão em polos opostos da disputa, mas estão

alinhados, embora muitos grupos disputem a sua hegemonia. Percebe-se uma contradição

na posição da Campos Salles, buscando uma educação emancipatória no bojo do Estado.

Canário (2006) atenta ao fato de que “o conceito de ‘emancipação social’ foi concebido

pelo movimento operário como uma acção autónoma construída contra o Estado

capitalista”, de modo que uma educação emancipatória demandaria autonomia em

relação ao Estado e ao mercado, assim como autogestão, no lugar da gestão hierarquizada

que encontramos na maior parte das escolas públicas.

Os limites impostos ao projeto pelo Estado se agravam em um contexto de

privatização da educação155, com as políticas sendo cada vez mais determinadas por

interesses privados. Vivemos um momento de reformas que visam atualizar o modo de

educar e produzir um trabalhador mais adaptado às demandas da acumulação flexível. A

reforma do ensino médio156 prevê a possibilidade de ensino a distância e de currículos

fluidos, e terá o efeito de agravar a dualidade escolar enquanto a Base Nacional Comum

Curricular está sendo reformulada de modo a reduzir o currículo obrigatório, para

melhorar o desempenho da educação brasileira nos ranqueamentos internacionais ao

mesmo tempo que nega o acesso ao conhecimento. Não é possível ignorar este contexto

e acreditar que o interesse da prefeitura em apoiar a Campos Salles e do Ministério da

Educação em mapear experimentos escolares inovadores visa a construção de uma

educação popular transformadora.

155 Que tem ocorrido em todos os níveis de ensino. Catini (2017) descreve algumas modalidades de privatização do

ensino a partir da atuação da Kroton “a maior empresa educacional do país”. No ensino de nível superior, compra

empresas, como a Rede Anhanguera, “com a garantia de repasse de recursos estatais pelos programas de concessão

de bolsas e de financiamento estudantil” (p.10), na educação básica implementa sistemas de gestão em escolas públicas

e privadas, vendendo modelos de educação como mercadoria. 156 “A reforma do ensino Médio é um exemplo que sintetiza as contradições do direito à educação(...)ampliará o tempo

de jornada diária obrigatória de 5 para 7 horas, implementando educação de tempo integral. Paradoxalmente, à

ampliação do tempo, reduz a menos de 40% o conteúdo obrigatório e diversifica o atendimento pela possibilidade de

‘escolha’dos estudantes por cinco ‘percursos curriculares’ (...) a formação profissional pode validar créditos cursados

de modo presencial ou à distância com instituições que firmam convênios com a rede estadual” (CATINI, 2017, p.33)

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Ao mesmo tempo, há benefícios que vem com a posição da Campos Salles. Ainda

que os interesses e a forma do Estado possam disputar e limitar este projeto, é por ser

estatal que a escola pode ser gratuita e ter a infraestrutura necessária para atender seu

grande contingente de alunos. É inclusive por ser estatal, isto é, uma escola pública e

gratuita, que esta experiência é tão interessante. Há práticas parecidas entre as escolas

particulares, mas aqui não estamos falando em novas modas pedagógicas que comumente

só alcançam quem pode pagar. Trata-se de transformar a realidade numa escola com

condições semelhantes à de qualquer escola da imensa rede pública paulistana. A Campos

Salles, concretamente, já existia antes da transformação do projeto. O que ocorreu foi a

ocupação deste lugar pela comunidade, aliada a educadores e educadoras, em busca de

uma educação de qualidade, com a finalidade de melhorar, significativamente, e preservar

a vida em Heliópolis.

Contudo, existe o perigo de que este projeto, fruto de luta popular, seja apropriado

para defender uma educação mais adequada às demandas atuais do capital. Já há

aproximações entre os discursos e a defesa de práticas semelhantes. É necessário que os

educadores e educadoras envolvidos nestes projetos estejam permanentemente atentos em

relação às parcerias e apoio que recebem. A crença de que a Campos Salles representa

uma experiência absolutamente nova pode acabar por descolá-la da realidade, com o

efeito de enfraquecer a crítica à realidade e a organização política que estavam em sua

intenção inicial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta dissertação buscou-se apresentar o contexto em que a experiência

escolar da Campos Salles foi criada, entendendo a realidade de Heliópolis e as relações

tecidas entre os moradores e a escola. Compreendemos a posição particular da escola, que

é construída pelas pessoas que trabalham, estudam e moram na região, mas também é

disputada pelo Estado, Mercado e “Terceiro Setor”, cujos interesses não convergem com

aqueles da comunidade. Assim, voltemos à pergunta que originou essa pesquisa: foi

possível, nesta experiência escolar, produzir rupturas em relação à forma escolar

hegemônica?

Observamos que sim, a Campos Salles apresenta rupturas com a forma escolar

hegemônica. Ainda que não haja uma negação integral da escola hegemônica, aqui se

busca uma outra maneira de educar na escola. O processo educativo deixa de ser

nebuloso, não é mais alheio ao estudante que, consciente do processo de ensino, pode

apropriar-se do próprio aprendizado.

O espaço da escola não é disciplinador, organizado para vigiar e punir, mas se

constitui de maneira funcional, para ser vivido a partir da prática da escola. Os corredores

são espaço de aprendizagem da mesma maneira que os salões podem ser espaço de lazer.

Os alunos não estão presos, como percebe Kelly ao comparar sua escola com outras “Eles

ficam muito trancados, assim, presos. Aqui a gente é bem livre, bem solto. Eu gosto

disso”. A principal ferramenta pedagógica, o roteiro de estudos, reorganiza a prática de

ensino e aprendizagem da escola, exigindo que o processo seja compartilhado, que

estudantes compartilhem mesas e pratiquem o ensino mútuo, o que transforma a

disposição do espaço. Não são, portanto, as atividades escolares que devem ‘caber’ no

espaço da escola, mas o espaço que é rearranjado para se adequar à prática.

O tempo também é transformado, abandonando a disciplina do trabalho. O relógio

deixa de ser o grande organizador da atividade escolar. O roteiro não demanda uma ordem

rígida ou prazo de entrega, o que qualifica o tempo dedicado à atividade. Não é mais o

tempo abstrato, cronometrado, e atribuído externamente, mas aquele que é necessário ao

aprendizado de cada estudante e do coletivo.

A escola propõe relações democráticas, de respeito, abandonando a

hierarquização e competição reproduzidas na maioria das escolas, dá voz e respeita a

cultura e origem do estudante, constitui uma equipe coesa e colaborativa de professores.

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Quanto a isso, uma das mudanças com mais impacto no dia a dia é a humanização da

figura do professor. Os processos do trabalho docente, para além da sala de aula, se

tornam visíveis para o estudante, e busca-se tornar a relação vertical de professor-aluno

mais horizontal.

As relações também se alteram quanto a opressões estruturais de classe, raça,

gênero e orientação sexual na escola. Ainda que não declare uma postura radicalmente

antirracista ou antipatriarcal, o combate a essas opressões apareceu de forma marcante

em campo. São temas que marcam profundamente a vida dos estudantes: as meninas

falaram muito em assédio e violência doméstica, os meninos negros, na atuação racista

da polícia, os estudantes gays, em homofobia. Entretanto, ainda que ocorram, os

estudantes não viam a escola como espaço marcado por essas violências, pois há um

trabalho de conscientização sobre esses temas e, mais do que isso, as expressões de

preconceito relativas a essas questões têm sido cada vez menos aceitas entre os

estudantes. É difícil saber quanto disso se deve ao projeto diferenciado da escola e quanto

se deve ao momento histórico que vivemos de crescente conscientização a respeito dessas

pautas, mas o combate a todas as violências provenientes disso é compatível com o que a

escola propõe. Nas palavras de bell hooks:

Certamente, como educadores democráticos temos que trabalhar para

achar maneiras de ensinar e partilhar conhecimento que não reforcem

estruturas de dominação (quanto a hierarquizações de raça, gênero,

classe e religiosidades). Diversidade de discursos e representatividade

são recursos que melhoram qualquer experiência de aprendizado. Em

anos recentes, temos sido desafiados, enquanto educadores, a

examinar as maneiras pelas quais reforçamos, consciente ou

inconscientemente, estruturas de dominação e temos sido encorajados,

por aqueles educadores que são democráticos, a estarmos mais alerta

e a fazermos escolhas mais conscientes (HOOKS, 2003, p. 45).157

Há, portanto, uma postura geral da escola de colocar-se como transformadora da

realidade. Ao primar pela aprendizagem, formação continuada de profissionais e

encorajar a visão crítica da realidade, a Campos Salles qualifica o ensino que oferece e

atribui sentido - para além do diploma e merenda - à escola. A equipe tem consciência do

157 Traduzido por mim do original: “Certainly as democratic educators we have to work to find ways to teach and

share knowledge in a manner that does not reinforce existing structures of domination (those of race, gender, class,

and religious hierarchies). Diversity in speech and presence can be fully appreciated as a resource enhancing any

learning experience. In recent years we have all been challenged as educators to examine the ways in which we support,

either consciously or unconsciously, existing structures of domination. And we have all been encouraged by democratic

educators to become more aware, to make more conscious choices”.

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papel que a escola pública ocupa na sociedade, e tem a intenção de transformar

positivamente essa instituição, objetivo que se explicita no PPP:

Avançar no processo de construção de uma Escola Pública de Qualidade

com a participação de todos os segmentos, tornando-a viva e capaz de

receber as influências da comunidade e também influenciá-la no sentido

de colaborar com a vivência democrática e avanço do processo

educacional.

Ao colocar-se como centro de liderança, a escola se posiciona de maneira ativa,

em favor da justiça social e da melhoria da vida das pessoas de Heliópolis. Trata-se de

uma escola profundamente articulada com a comunidade em que se localiza, o que,

paradoxalmente, é incomum entre escolas públicas que, apesar de receberem os filhos da

classe trabalhadora, costumam ser instituições isoladas do povo. A própria Campos

Salles, antes de transformar seu projeto, era vista como inimiga pelas famílias, estudantes

e vizinhos. Hoje a relação comunidade-escola foi radicalmente transformada por um

processo de aproximação com as lideranças de Heliópolis, com as famílias, que também

se tornaram responsáveis pelos problemas da escola, e dos professores com os moradores.

Marilena Chauí (1980) questiona o uso do termo ‘comunidade’ quando se trata de

escolas numa sociedade necessariamente cindida pelas classes sociais, “não estaremos

confundindo o bairro, a vila, a periferia, isto é, os agrupamentos, com a comunidade?”

(p. 251). A pergunta é pertinente; há entre as pessoas que trabalham, as pessoas que

estudam e as pessoas que vivem no entorno da escola relações de comunidade ou trata-se

de uma relação formal com o bairro? Aqui o termo parece bem empregado, ‘comunidade’

se refere às pessoas que têm participação efetiva na escola e que estabelecem de fato

relações comunitárias. A mera existência dessa relação já é uma transformação em relação

a forma escolar. A escola, portanto, é tecida, não com toda a população de Heliópolis,

mas com as pessoas que se encarregam de organizar eventos da escola, as mães que

escolhem colocar seus filhos nessa escola como uma decisão política158, os professores

que direcionam o olhar à realidade de Heliópolis etc.

Os efeitos dessa relação foram sentidos concretamente. A escola que já foi foco

de violência, murada para manter a comunidade do lado de fora, e era ‘invadida’ por

pessoas da região, hoje é ocupada e construída pela comunidade e, não por acaso, o espaço

de seu entorno tornou-se um CEU que oferece à população equipamentos esportivos,

culturais e de lazer, além de ser local de atividades políticas como, por exemplo, a

158 Considero que algumas das explicações que recebi das mães com quem conversei por telefone sobre os motivos

para seus filhos estudarem na Campos Salles são políticas, como o fato de a escola privilegiar a realidade vivida em

Heliópolis, oferecer uma visão ampla e crítica da sociedade.

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concentração de pessoas que antecede a Caminhada da Paz. A concretização deste espaço

enquanto CEU foi uma conquista da comunidade que, possivelmente, não teria ocorrido

se não fosse pelo projeto ali em curso. Para além das mudanças físicas no espaço, é certo

que a escola produziu em seu entorno, na vivência escolar e no processo educativo,

mudanças positivas159 de maneira articulada com o Bairro Educador.

Quanto à violência física na escola, os alunos que ali estudavam há mais tempo

lembravam-se de casos graves ocorridos no passado, mas todos concordaram que hoje

brigas são incomuns. A escola é vista como um lugar seguro. Quando perguntada sobre

consumo ou tráfico de drogas na escola, uma estudante respondeu, rindo, “certeza que

aqui não”. A pergunta pareceu absurda para a menina que, tendo conhecido a escola

somente em 2016, não imaginava que já fora controlada pelo tráfico. Isso nos remete à

afirmação de que a Campos Salles “parece menos uma cadeia”160. De fato, verificamos

que após mais dez anos com o projeto diferenciado, as relações educativas na escola são

menos violentas. É essencial entender que se há muitos efeitos positivos deste projeto

escolar, eles só se concretizam por serem construídos com a comunidade e olhando para

a sua realidade. Não se trata de uma receita replicável. O grande aprendizado que a

Campos Salles oferece é que a escola pode ser do povo.

São muitas as transformações na escola, mas todas convergem para um mesmo

movimento –a mudança mais significativa encontrada aqui -, construir a primazia da

formação. A escola hegemônica realizou uma inversão, e sua forma tornou-se mais

importante do que a formação que oferece, seu principal papel seria preservar e reproduzir

uma forma específica em vez de oferecer uma formação. Como colocado por Enguita, a

forma escolar tem o objetivo de “ter os alunos entre as paredes da sala de aula ao olhar

vigilante do professor o tempo suficiente para domar seu caráter e dar forma adequada

a seu comportamento (ENGUITA, 1989, p.118). Seria, portanto, mais prioritário

reproduzir a forma da escola, já que tem essa função de formação de trabalhadores e

reprodução social, do que formar.

Na Campos Salles recusa-se essa educação em estado falso (SILVA, 2005). O

projeto e prática da escola estão em permanente negociação, muitos dispositivos são

transformados, repensados, abandonados e criados, sempre em prol da formação. A

159 Não encontrei, na revisão bibliográfica, estudos quantitativos que analisem mudanças em relação a índices de

violência na escola, evasão, abandono, alfabetização, destino de egressos, acesso a ensino superior etc., de modo que

me refiro a mudanças qualitativas que observei em campo. Entretanto, indico a importância da realização de estudos

dessa natureza para o aprofundamento da análise da Campos Salles e de outras experiências diferenciadas em escolas

públicas. 160 Referência a fala de um estudante em 2013, época em que estagiei na Campos Salles (p.11)

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forma, isto é, os roteiros, os mecanismos de participação e resolução de conflitos, o uso

do tempo e espaço, as assembleias etc. tornam-se, todos, elementos do conteúdo escolar,

que serve à função maior de oferecer formação de qualidade.

Além da prevalência da forma escolar, a escola que é hegemônica no Brasil, no

que diz respeito à classe trabalhadora, é também a escola em crise, violenta, onde faltam

professores, condições dignas de trabalho, material, merenda. A Campos Salles, portanto,

se propõe como uma alternativa à ideologia por trás da instituição escolar, mas também

à escola sucateada, abandonada pelo Estado, ao oferecer a possibilidade real de educação

de qualidade. Se o processo de mudança, em seu início, foi inspirado pelo combate à

violência, pela garantia do direito de seus alunos à vida161, se fortaleceu pela constatação

de que as crianças daquela escola também não tinham seu direito de formação assegurado.

A formação crítica dos alunos é nítida, mesmo entre as crianças pequenas,

conteúdos tradicionalmente abordados de maneira acrítica são problematizados, temas

que frequentemente são vetados a elas, como desigualdades sociais, violência policial,

racismo, homofobia e questões orçamentárias, são temas discutidos com naturalidade.

Isso se vê na crítica conclusão à qual chegou uma criança em roda de conversa sobre o

feriado de 7 de setembro e colonialismo: “Os portugueses chegaram aqui e acharam que

a terra não tinha dono porque eles achavam que os índios não era gente, né?”. A

educação oferecida busca ir além do lugar-comum e evidenciar processos históricos que

expliquem a realidade atual. Nota-se também a crítica no trabalho engajado realizado

pelas professoras e professores.

A maneira como o estudante se relaciona, com seus pares e professores, é muito

diferente. A dificuldade de aprendizagem, por exemplo, é discutida em um diálogo não-

hierarquizado, no qual o estudante consegue explicar melhor suas dificuldades, os

resultados de cada abordagem educativa e sua percepção sobre cada roteiro de estudos.

A experiência escolar, em si, é mais contextualizada, pois, vendo os professores e

a gestão como seres humanos e não criaturas sobre-humanas, carrascos ou heróis, é

possível para o estudante observar o trabalho de planejamento realizado, compreender e

colocar os próprios objetivos pedagógicos, enfim, perceber todo o trabalho realizado na

escola para além do momento de mediação.

É necessário, entretanto, notar as contradições que estão postas por uma escola

crítica da realidade que, ao mesmo tempo, tem sua atuação limitada pelo Estado e por

161 Não por acaso, o Projeto Político Pedagógico da escola tem o título: “Cidadania, uma questão de sobrevivência”.

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atores ligados ao Mercado. Como vimos, visando a autonomia, a Campos Salles ensina

as habilidades que são buscadas em um bom trabalhador em tempos de flexibilização das

relações trabalhistas. Assim, a escola, que no PPP declara não ser neutra e estar a favor

da classe trabalhadora, atende a certos interesses do Capital. Não se trata de hipocrisia,

mas de disputa de projetos, entre aquilo que a comunidade busca e aquilo que interessa

aos seus ‘parceiros’. Trata-se ainda de uma contradição indissolúvel em nosso modo de

vida, na necessidade de adaptar-se às demandas que são inescapáveis e produzir efeitos

que cumpram um papel de inserção na vida social do trabalho e do consumo.

A conclusão é que, entendendo os atores em jogo e os processos históricos que

levaram a este projeto, a ação da Campos Salles tem muito bem delimitado o seu objetivo:

transformar positivamente a vida presente e futura de seus alunos de modo a impactar a

comunidade. O caminho para alcançá-lo, contudo, não se dá isento de contradições. Ainda

assim, a diferenciação desta experiência em relação a escola pública que está sendo

gestada pelas reformas e privatização de ensino é facilmente observável. A escola

hegemônica reformada atua sobre o povo, mas parte de empresários em direção a seus

próprios interesses, em última instância, mira o lucro. Por outro lado, o projeto da Campos

Salles tem suas raízes fortemente fincadas em Heliópolis, parte do povo e se volta para o

povo.

No momento político que se configura no Brasil atualmente, a educação, a

liberdade de organização política, as chamadas ‘minorias’ e espaços articulados de defesa

dos interesses do povo estão sob ataque. É realista esperar que experiências como a

Campos Salles não fiquem imunes a esse cenário. Tem se agravado a necessidade de

olharmos, enquanto educadores, para essas experiências, em busca de reflexão, de novas

práticas educativas e de histórias de resistência, para aprendermos com elas. Contudo, é

essencial mantermos a perspectiva crítica diante desses novos discursos e práticas, para

que possamos entender, e combater, sua apropriação e degeneração por parte do

neoliberalismo e do conservadorismo crescentes.

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205

ANEXO I – Mapa de Heliópolisi

Destaque em amarelo: região classificada como ‘favela’: “assentamentos precários que

surgem de ocupações espontâneas feitas de forma desordenada, sem definição prévia de

lotes e sem arruamento, em áreas públicas, particulares ou de terceiros, com redes de

infraestrutura insuficientes em que as moradias são predominantemente autoconstruídas

e com elevado grau de precariedade, por famílias de baixa renda em situação de

vulnerabilidade”ii.

Destaque em azul, glebas A e N, classificadas como ‘núcleos’: “Os núcleos urbanizados

são favelas dotadas de 100% de infraestrutura de água, esgoto, iluminação pública,

drenagem e coleta de lixo, viabilizadas através de ações por parte do poder público ou

não. Porém, ainda não regularizadas legalmente”.

i Mapa produzido na Plataforma HabitaSampa. Disponível em: mapa.habitasampa.inf.br ii Definições da Prefeitura de São Paulo, disponíveis em: habitasampa.inf.br/habitacao