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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO FABIANA MARQUES BARBOSA NASCIUTTI TRAVESSIAS – O GRUPO COMO FONTE DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

FABIANA MARQUES BARBOSA NASCIUTTI

TRAVESSIAS – O GRUPO COMO FONTE DE DESENVOLVIMENTO

PROFISSIONAL

CAMPINAS

2017

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FABIANA MARQUES BARBOSA NASCIUTTI

TRAVESSIAS – O GRUPO COMO FONTE DE DESENVOLVIMENTO

PROFISSIONAL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Educação.

ORIENTADORA: PROFª DRª ANA MARIA FALCÃO DE ARAGÃO

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA FABIANA MARQUES BARBOSA NASCIUTTI, E ORIENTADA PELA PROFª. DRª ANA MARIA FALCÃO DE ARAGÃO.

CAMPINAS

2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

TRAVESSIAS – O GRUPO COMO FONTE DE DESENVOLVIMENTO

PROFISSIONAL

FABIANA MARQUES BARBOSA NASCIUTTI

COMISSÃO JULGADORA

Orientadora Profa. Drª. Ana Maria Falcão de Aragão Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado Profª Drª Luciana Haddad Ferreira Profª Drª Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha Profª Drª Silvia Maria Cintra da Silva

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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À Luiza, Lícia, Alice, Abayomi, Valentina, Ana Elisa, Peter, Tadeu, Isadora e Rosa por terem sido

companhias fundamentais nessa jornada.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Ana Aragão, por me acolher, por me olhar amorosamente, por cada sábia palavra em momentos necessários, por me ensinar o valor do trabalho coletivo e da fruição pessoal na dimensão profissional... Somos uma dupla!

Ao Professor Nikolai Veresov, gratidão imensa por ter me recebido e me ensinado tanto, fortalecendo ainda mais minha escolha pela Teoria Histórico-Cultural.

Ao Professor Guilherme do Val Toledo Prado e aos colegas do GEPEC, com quem muito aprendi nesse período.

À minha sempre orientadora Professora Silvia Maria Cintra da Silva, por estar presente pessoal e profissionalmente com ternura e generosidade.

Ao Grupo Seleto, pela parceria com uma farta dose de afeto.

À banca de Qualificação e Defesa, por colocações pertinentes e fundamentais ao trabalho.

Ao grupo de pesquisa Child and Community Development, da Monash University, que me recebeu generosamente durante o Doutorado Sanduíche e, em especial, às colegas de pós-graduação da Monash, que se tornaram grandes amigas, por terem me feito sentir em casa, mesmo do outro lado do mundo.

À Patrícia Infanger, por não ter medido esforços para me ajudar no meu primeiro ano de viagens à Campinas, acolhendo-me em sua casa sempre que precisei.

À minha família, por me instigar a ir além. Em especial, aos meus pais Carlos e Ivanilce e minha irmã Carolina, que dividem amorosamente comigo as alegrias e desafios da vida.

Ao apoio incondicional do meu companheiro Thiago, por acreditar em mim, por ir de mãos dadas comigo aonde quer que seja – amo você até a Austrália, ida e volta.

À CAPES, pelo financiamento da pesquisa em âmbito nacional e internacional, por meio do PDSE

(Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior)

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Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a

forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos

fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

– Tempo de Travessia, Fernando Teixeira de Andrade –

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Resumo

Esta investigação teve o desenvolvimento profissional como tema e o principal objetivo foi analisar o grupo colaborativo como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com demandas educacionais. De setembro a novembro de 2014, foi oferecido um Curso de Difusão Científica, vinculado à Extecamp (Escola de Extensão da Unicamp) para profissionais diversos que lidavam com questões do campo educacional e que estivessem interessados em discuti-las coletivamente. Ao todo tivemos seis psicólogas de diferentes áreas de atuação – clínica particular, rede pública e privada de ensino, saúde, serviço social; uma fonoaudióloga; uma professora da Educação Infantil; um professor da Educação Básica e uma professora que atuava como coordenadora pedagógica e tinha também a formação em Psicologia. Os encontros tiveram a colaboração e as interações entre as participantes como princípios. As ações e estratégias pautaram-se no: a) diálogo e produção conjunta de conhecimentos; b) exercício de coordenar o grupo e ao mesmo tempo incluir as participantes como corresponsáveis; c) exercício de uma postura reflexiva ao longo dos encontros de modo a não apresentar uma ementa pronta, mas construir a proposta ao longo do curso. Os Grupos Colaborativos, bem como a Psicologia Escolar e Educacional Crítica subsidiaram o desenvolvimento da investigação. Ademais, a Teoria Histórico-Cultural teve lugar central na produção e análise do material empírico, oferecendo conceitos analíticos chave – situação social de desenvolvimento, drama e perejivanie. A unidade dialética entre estes conceitos revelou dimensões importantes, explicando como o grupo colaborativo foi fonte de desenvolvimento profissional. O Paradigma Indiciário e os Núcleos de Significação contribuíram para organizar o material empírico e encontrar indícios de análise, com a criação de quatro Núcleos: i) A constituição de uma proposta colaborativa como um processo que se dá a partir das interações sociais e que se apresenta repleto de crises e contradições; ii) O manejo do grupo, como uma ação que exige tanto uma postura vertical quanto a horizontalidade nas relações estabelecidas; iii) A construção de conhecimentos sobre o trabalho com demandas educacionais, por meio de uma conscientização coletiva dos problemas enfrentados, produzindo questionamentos e buscando subsídios teóricos de enfrentamento; iv) A importância dos vínculos afetivos, indicando a indissociabilidade entre a dimensão pessoal e profissional. Fundamentalmente esta pesquisa revelou que desenvolvimento profissional diz respeito ao processo de desenvolvimento humano como um todo, no qual as relações sociais têm lugar privilegiado, por meio da criação de condições de desenvolvimento, em um processo permeado por contradições e crises. Por fim, a formação colaborativa entre profissionais de diferentes áreas indicou a importância do desenvolvimento de relações solidárias no trabalho com demandas educacionais. Palavras-chave: desenvolvimento profissional; teoria histórico-cultural; psicologia escolar e educacional; grupo colaborativo.

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Abstract

This research had professional development as a subject and its main purpose was to analyze the collaborative group as a source of development for professionals who work with educational demands. From September to November, 2014 a professional development program associated with Extecamp (Extension School of Unicamp, Brazil) was offered to professionals from different areas, who deal with educational issues and who were interested in discussing this topic collectively. Altogether, we had six psychologists from different work fields: one early childhood teacher, one primary teacher, one speech therapist and one educational counselor who also had a degree in Psychology. The meetings had the collaboration and interactions between participants as core principles. Therefore, strategies were based on: a) the dialogue and collaborative generation of knowledge; b) the exercise of coordinating the group, including participants as co-responsible for the proposal; c) the exercise of a reflexive attitude throughout the meetings, building the proposal along the program. Collaborative Groups perspective, as well as a critical perspective in Educational Psychology, underpinned the research development. Moreover, Cultural-Historical Theory had the main contribution on data analysis, offering key analytical concepts – social situation of development, drama and perezhivanie. The dialectical unit between those concepts disclosed important dimensions, explaining how the collaborative group was a source of professional development. The Inditiary Paradigm as well as the Core Meaning perspective contributed to organize the research data and to find evidences of analysis, with the creation of four categories: i) The constitution of a collaborative proposal as a process that arises from social interactions and it is plenty of crises and contradictions; ii) The management of the group, as an action that requires both a vertical and horizontal positioning; iii) The construction of knowledge about the work with educational demands, through a collective awareness of the problems faced, by questioning and searching for theoretical underpinning; iv) The importance of affective bonds, indicating the inextricable connection between personal and professional dimension. Essentially, this research indicates that professional development is about human development as a whole, in which social relations have a central place, by creating conditions of development, in a process filled with contradictions and crises. Lastly, the collaboration between professionals from different areas indicated the importance of solidary relationships to face educational demands. Keywords: professional development; cultural-historical theory; school and educational psychology; collaborative group.

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SUMÁRIO 1. O preparo para a partida: rotas escolhidas, bagagens que levo................................................ 11

1.1. Navegar é (im) preciso, escrever também: palavras iniciais ....................................................... 11

1.2. Sobre memórias: minhas bagagens .............................................................................................. 20

2. Fundamentação teórica: apresentando os parceiros de viagem ............................................... 40

2.1 Psicologia ciência e profissão: aspectos históricos e relações com o campo

educacional .......................................................................................................................................... 40

2.2 Considerações sobre a Psicologia Escolar e Educacional ........................................................... 46

2.2.1 A formação do psicólogo para trabalhar om demandas educacionais: impasses

e desafios atuais ........................................................................................................................... 51

2.3 Desenvolvimento profissional e as contribuições dos grupos colaborativos ................................ 58

2.4 Fundamentos da Teoria Histórico-Cultural e conceitos-chave de análise ................................... 69

3. Planejar a rota, percorrer caminhos: sobre as escolhas de pesquisa ........................................ 81

3.1. Norte, sul, leste, oeste: apresentando as coordenadas de pesquisa ............................................. 81

3.2. Com mapa em mãos: apresentando a proposta ............................................................................ 84

4. Das estradas percorridas, dos destinos visitados: as análises da pesquisa ...................................................... 110 PRIMEIRO MOVIMENTO – “Paradas” ................................................................................................................ 114 SEGUNDO MOVIMENTO – Indicadores de análise ............................................................................................ 131 TERCEIRO MOVIMENTO: “Travessias” .............................................................................................................. 142 TRAVESSIA 1 .................................................................................................................................. 144 “Da crise à oportunidade”: sobre a construção de um grupo colaborativo TRAVESSIA 2 .................................................................................................................................. 155 Participante-propositora-pesquisadora: sobre o manejo do grupo TRAVESSIA 3 .................................................................................................................................. 163 “Trabalho de borboleta”: sobre os conhecimentos construídos colaborativamente TRAVESSIA 4 .................................................................................................................................. 171 “Engraçado, né? Teve mudança”: sobre os vínculos afetivos como parte do processo de desenvolvimento profissional TRAVESSIA FINAL OU FINAL DE UMA TRAVESSIA? ............................................................................... 179 Elementos para uma proposta modelizadora REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 185 REFERÊNCIAS DAS EPÍGRAFES .................................................................................................. 194 APÊNDICES ...................................................................................................................................... 195

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1. O preparo para a partida: rotas escolhidas, bagagens que levo

1.1 Navegar é (im) preciso1, escrever também: palavras iniciais

As placas indicavam o contrário

A menina dobrou o mapa, guardou a bússola, dispensou a

lógica, a máxima, o sextante,

quebrou o molde, rasgou o formulário,

seguiu adiante. Preferiu se aventurar no

imaginário. – Rotatória, Flora

Figueiredo2–

A escrita de uma Tese não é uma tarefa fácil. Ao mesmo tempo, dar forma aos

acontecimentos e entendimentos possibilitados pelo fazer de pesquisa é compromisso do

pesquisador, afinal pesquisa-se para, de alguma forma, contribuir com o desenvolvimento do

campo sobre o qual se analisa e isso, sem dúvida, exige a escrita como meio de comunicar o

que se fez, como se fez, por que se fez e quais as implicações do que se investiga, o que torna

a tarefa da escrita ainda mais inquietante: como comunicar tudo isso? De que forma? No livro

Para quem pesquisamos? Para quem escrevemos? O impasse dos intelectuais, Soares (2011)

nos convida a refletir sobre a seguinte questão: por que, em geral, a escrita é para o

pesquisador momento de sacrifício? A autora tece uma interessante analogia entre o autor-

pesquisador e o autor-artista: para o primeiro, o ato de escrever é uma obrigação. Escreve-se

para contar o que se aprendeu. Para o segundo, o ato da escrita é uma forma de se questionar

e de estar constantemente a aprender. Fico a pensar: para além do inegável e indispensável

desafio que a escrita de uma Tese apresenta, é possível inspirar-nos no ofício dos autores-

artistas para que esta seja uma tarefa que também traga leveza e deleite?

1 Em referência ao poema de Fernando Pessoa, faço um jogo com as palavras – navegar é necessário (preciso) e também incerto (impreciso), assim como é também o ato de escrita. 2 As referências das epígrafes se encontram na página 194

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Para assumir o compromisso de desenvolver um texto que apresentasse um

formato prazeroso, considerei eleger uma imagem que acompanhe de forma poética os

capítulos apresentados.

A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em termos discursivos ou conceituais. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente, ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. (CALVINO, 1990, p. 104)

Como na descrição do processo criativo de Calvino, busquei uma imagem na qual

identificasse o processo da pesquisa e que fosse prenhe de sentidos, de modo ajudar a narrar o

que aprendi, compondo e organizando a escrita.

Do primeiro ano do Doutorado até meados do segundo, morei em São Joaquim da

Barra - SP, cidade que fica a cerca de 290 km de Campinas. Portanto, desde o início do curso,

as viagens semanais compuseram minha rotina. Recordo que, na entrevista do processo

seletivo, uma das principais perguntas da banca foi sobre como eu gerenciaria esse fator da

distância. Inocentemente, disse que não haveria o menor problema em viajar e passar a

semana em Campinas. Porém, logo no primeiro mês me aventurando estrada afora percebi

que não seria tão simples enfrentar essa rotina.

Quando viajamos vivenciamos situações, tais como: arrumar malas – O que

levar? O que deixar? Quanta coisa é preciso carregar conosco. Por outro lado, como é

importante escolher o essencial para que essa bagagem não fique tão pesada; escolher o lugar

de destino – aonde quero chegar? Quais paisagens ver, quais passeios pretendo fazer?;

planejar a rota de viagem – qual o melhor caminho? Quais conduções me levarão ao até lá?

É melhor planejar cada passo e cada roteiro ou deixar-me também conduzir pelos caminhos

trilhados?; embarcar e seguir pela estrada – admirar as paisagens, aproveitar as paradas,

conviver com o cansaço, suportar a ansiedade, lidar com os imprevistos; chegar ao novo

lugar – reconhecer a terra em que piso, pedir ajuda, acomodar-me, fazer novas amizades,

desbravar novos lugares; retornar para casa – momento de rememorar as experiências e

aprendizagens.

Em meio às intempéries que essa condição me impôs, pois nem sempre pude

participar de todas as atividades acadêmicas de que gostaria, além do cansaço e desconforto

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de estar fora de casa, acabei percebendo que a cada semana de viagem voltava para casa

plena de novas e interessantes aprendizagens. Em agosto de 2015, embarquei para a

Austrália, em uma das viagens mais significativas da minha trajetória, para realizar um ano

de Doutorado Sanduíche na Monash University em Melbourne3, sob a orientação do

Professor Nikolai Veresov. Viajei acompanhada por meu marido que, também envolto pela

possibilidade que a viagem nos traz como experiência, decidiu se aventurar ao meu lado.

Mais que conhecimentos acadêmicos, o período na Austrália foi um marco em minha vida,

que tornou ainda mais nítida a escolha pela imagem poética do viajar para este trabalho.

Buscarei, por meio dos títulos e estilo de escrita, significados relacionados ao ato

de viajar que possam ajudar o leitor a acompanhar os caminhos que percorri. Considero,

portanto, que, para além de comunicar os saberes possibilitados por esta pesquisa, a escrita

deste texto será ela mesma um ato de aprendizagem, pois, à medida que eu escrever darei

sentido às experiências que tive e, assim, registrarei tanto as análises possíveis quanto – e

indissociavelmente relacionado a elas – as repercussões e transformações que esta

investigação provocou em mim. É preciso lembrar que quem vai para o campo de pesquisa

munido de certezas acaba por minar o processo investigativo, pois quem sabe a resposta de

antemão já não precisa de perguntas e muito menos de uma investigação para respondê-las:

“Hoje sabemos que a dúvida, a incerteza, a insegurança, a consciência de nosso ainda não

saber é que nos convida a investigar e, investigando, podemos aprender algo que antes não

sabíamos” (GARCIA, 2011, p. 20). O que eu não sabia e pude aprender com a Tese?

Identifico-me com esse lugar de incertezas e dúvidas. Penso que ocupá-lo foi fundamental

para a produção do material desta pesquisa, pois me colocou em constante movimento e em

busca de novos saberes e fazeres que pudessem me ajudar a desenvolver a investigação.

Saber da importância dos questionamentos para idealização e desenvolvimento de

uma pesquisa convida a outra postura: encontrar uma escrita que seja igualmente inquieta e

que possa, de algum modo, fugir dos padrões por vezes excessivamente formais e que não

raro apresentam-se como uma mera repetição de palavras já ditas por outros, deixando à

margem das citações e das normas as considerações do próprio autor. Ainda assim, partindo

do princípio de que somos seres constituídos nas e pelas relações sociais, precisamos das

ideias e dos escritos de pensadores que antecedem nossos textos e pesquisas. Como

justificam Prado e Soligo (2005, p. 49) ao se referirem aos autores nos quais se basearam

3 Aqui reforço meus agradecimentos à CAPES, pelo auxílio financeiro por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). Agradeço também à Monash University por ter me recebido como aluna visitante.

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para escrever, “(...) achamos por bem abusar das citações, que são a forma mais honesta de

dar o devido valor aos que disseram o que gostaríamos de ter dito de um modo melhor do que

poderíamos no momento”. Também eu “abusarei” de citações, não apenas por uma

convenção acadêmica, mas por reconhecer a necessidade de diversas vozes para que nelas eu

possa constituir a minha própria. Por isso, a partir da contribuição de outros, tentarei me

apropriar de uma escrita que possa trazer quem eu sou.

Quando comecei a escrever o projeto de pesquisa, em meados de 2014, minha

orientadora e eu esboçamos alguns tópicos teóricos que seriam interessantes para produzir o

projeto. Dentre eles, muitos temas que já havia discutido na Dissertação de Mestrado

(BARBOSA, F. 2013) e em outras produções. Por alguns instantes fiquei tentada a retomar

esses escritos e partir deles para a escrita do projeto, mas percebi que esta não seria uma boa

escolha. Senti que deveria me arriscar a um outro modo de escrever e de me expressar, para

não correr o risco de simplesmente repetir o que já disse, não encontrando novas reflexões.

Nessa ocasião, escrevi um pequeno texto em meu diário de anotações pessoais4:

(re) aprender a escrever (de um jeito outro) o que eu achava já estar consolidado em meu pensamento. Questionar as frases já tão bem ensaiadas. Demorar na leitura do que eu mesma escrevi. Buscar sentidos que brincam de se esconder entre as palavras tão familiares. Abrir espaço para perguntas. Renovar o que estava confortavelmente amarelo e mofado. Suportar as dores das mudanças. Sentir com prazer o cheiro de fruta fresca, colhida no pé, das novidades que se aconchegam em mim.

(13/06/14)

Ao iniciar a escrita da Tese, senti como se as palavras faltassem e a tela em

branco do computador se tornasse um elemento angustiante nas horas dedicadas à árdua

tarefa. Decidi começar, então, a leitura do livro Pedagogia Profana, de Jorge Larrosa (2000),

autor que, desde o Mestrado, a partir do texto Notas sobre a experiência e sobre o saber da

experiência (2002) me inspira a romper a escrita que se impõe e que emudece outras

possibilidades de estilo e de reflexões sobre o que vejo, sinto, vivencio. Ao deleitar-me em

suas palavras, senti-me movida a escrever. Os motivos desse encantamento pelo trabalho de

Larrosa talvez sejam por sua escrita ser inusitada e por ele conseguir romper com a

4 No decorrer do trabalho, referir-me-ei a dois tipos de diários: a) Diário de anotações pessoais: compilado de narrativas que produzo de acordo com experiências marcantes do meu cotidiano, relacionadas ou não às atividades profissionais; b) Diário de bordo: registros, impressões e reflexões pessoais escritas durante a produção do material empírico da pesquisa e que me permitiram ter dimensão das dúvidas, dificuldades e potencialidades que permeiam o processo da pesquisa (BOSI, 2003). As citações dessas fontes serão destacadas em itálico.

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“verborragia reiterativa da qual estamos rodeados” (LARROSA, 2000, p. 49) e o quanto me

convida a pensar, a partir do (difícil) exercício de não oferecer sentidos prontos e

prescritivos, abrindo meu olhar sobre o mundo – ou pelo menos sobre o pequeno (grande)

mundo que me dispus a compreender a partir do meu trabalho de Doutorado.

O livro ao qual me refiro é uma coletânea de textos do autor, nos quais ele discute

temas diversos do campo da Educação, em especial sobre os processos de formação humana.

Nele, ao contrário de um manual instrutivo, Larrosa desconstrói certezas arraigadas no

discurso pedagógico dominante, inspirando-nos a ler, pensar e aprender de outras maneiras,

talvez mais indisciplinadas, inseguras e impróprias – para citar algumas de suas palavras. Em

meio a uma rotina cansativa de doutoranda que viajava semanalmente para desenvolver as

atividades acadêmicas, essa leitura me fortaleceu de um modo leve e ácido, confortante e

provocativo, na medida do que eu precisava para aquele momento.

Larrosa (2000) se refere à importância do silêncio para o ato da escrita, não de

um silêncio imposto pelo medo de se expressar, tampouco daquele causado pela falta do que

dizer, mas aquele que se faz necessário diante da dimensão do vivido: “Uma escrita

silenciosa produz uma atenção concentrada e algo assim como um estar voltado para si

mesmo. Mas tem também outra qualidade não menos importante: fazer com que o mundo

apareça aberto” (LARROSA, 2000, p.49).

Já tenho trabalhado com Psicologia Escolar e Educacional há algum tempo. É

esse o campo que escolhi como psicóloga-pesquisadora. Entretanto, o encontro com as

participantes5 que compuseram o grupo de produção do material empírico6 desta pesquisa me

convidou a silenciar alguns entendimentos já cristalizados sobre a Psicologia Escolar e

Educacional. Inicialmente, o convite foi feito para psicólogos que atuam com demandas

educacionais. Porém, fui surpreendida pela diversidade de contextos em que estes

profissionais atuam: clínica particular, escola particular, Secretaria de Educação, Unidade

Básica de Saúde, Centro de Referência em Assistência Social e também pelo interesse de

profissionais de outras áreas pelo grupo – dois professores da Educação Básica e uma

fonoaudióloga.

A disponibilidade de estarem ali semanalmente para conversar sobre algo em

comum – o trabalho com demandas educacionais – me fez pensar: o que é a Psicologia 5 Escolho usar o termo no gênero feminino, em respeito à maioria de mulheres participantes do grupo. 6 O termo “material empírico” foi uma sugestão da Profª Drª Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, durante a defesa de mestrado de Raul Cabral França (2017). Comumente os pesquisadores usam o termo “dados de pesquisa”, que remete a algo já existente, que apenas vamos a campo para obter, enquanto “material empírico” refere-se a algo que foi produzido naquele campo.

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Escolar e Educacional? Quem são os psicólogos escolares na conjuntura atual? Qual a

importância do trabalho multidisciplinar no atendimento às demandas educacionais? Silenciar

alguns dos meus entendimentos no decorrer dos oito encontros para exercitar a escuta do que

esse grupo poderia me contar já foi um bom começo:

Porque, às vezes, nos livros, ou nos filmes ou, até mesmo, na paisagem, há tantos bordões que nada está aberto. Nenhuma possibilidade de experiência. Tudo aparece de tal modo que está despojado de mistério, despojado de realidade, despojado de vida. No entanto, há às vezes em que um livro, ou um filme, ou uma música nos faz olhar pela janela e, aí, na paisagem, tudo parece novo; ou nos faz pensar em alguém e, de repente, sentimos mais nitidamente sua presença; ou simplesmente faz nos determos um momento e nos sentimos, a nós mesmos, de uma forma particularmente intensa. (LARROSA, 2000, p. 49)

Quando comecei o planejamento para o primeiro encontro, antes mesmo de

conhecer as participantes, escrevi um relato dizendo me sentir como uma equilibrista na

corda bamba: a equilibrista tem segurança do que faz, sabe o que quer e aonde quer chegar.

Ao mesmo tempo, está vulnerável ao que pode acontecer no caminho que atravessa. Após o

início do grupo, senti que meu lugar seria outro. A equilibrista está sozinha na tarefa, que

exige precisão para ser cumprida sem nenhum acidente. Não foi assim que me senti no grupo.

O texto Pesquisa Narrativa em três dimensões (PRADO, SOLIGO & SIMAS, 2014),

discutido em uma das reuniões do Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação

(GEPEC)7 ofereceu-me a imagem da produção do material empírico como “estar à deriva”

durante o percurso, escolhendo alguns direcionamentos para a navegação, mas também se

abrindo ao novo e ao surpreendente. Movida por esse texto, escrevi, posteriormente, em meu

diário de bordo que, como propositora da pesquisa, sentia-me como alguém que navega em

um barco que tem direcionamentos, mas que, de certa forma, também se encontra à deriva

dos acontecimentos:

Aos poucos, no decorrer dos primeiros encontros, percebi que o controle e o medo de estar na corda bamba não vão ao encontro do lugar que almejo, que quero construir. Sei que algumas vezes me coloco nesse lugar, mas, quando me imagino em um barco à deriva, sinto-me mais livre e potente para remar para lugares desconhecidos, porém ciente dos rumos que escolho. Não sei o exato destino da viagem, quero me surpreender no caminho, deixar o vento conduzir, ajustar a rota quando precisar e compreender que nesse barco não me encontro só, outros remam comigo

7 O Seminário do GEPEC é uma atividade da pós-graduação, na qual os professores do grupo e seus respectivos orientandos se reúnem quinzenalmente para discutir aspectos diversos dos trabalhos em andamento.

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e compõem essa viagem que está apenas no início. Aqui começo a entender de modo mais profundo que a construção deste grupo como um espaço formativo está muito mais no manejo das discussões, com colocações que me ajudem a compreender o processo de reflexividade deles no grupo e que também revele, inevitavelmente, o lugar de onde eu falo (psicóloga, que estuda a Psicologia Escolar em uma perspectiva crítica e a Teoria Histórico-Cultural), do que em um suposto saber que eu tenha que simplesmente transmitir. É esta postura colaborativa-horizontal-mediada que me deixa confortável para seguir adiante na viagem.

(Diário de Bordo, 14/10/14)

Ao longo deste trabalho, é importante compreender a Psicologia Escolar e

Educacional a partir das participantes de pesquisa. O que contam sobre o trabalho do com

demandas educacionais? Que sentidos são possíveis? Que práticas são desenvolvidas? Quais

entendimentos surgiram ao longo de nossas conversas?

Os objetivos iniciais da proposta formativa e da pesquisa foram modificados a

partir do encontro com o grupo. O trabalho não envolveu apenas o desenvolvimento

profissional de psicólogas. Por ser um grupo heterogêneo, a formação foi proporcionada para

todas, indicando que o desenvolvimento profissional do psicólogo não pode se dar somente

entre seus pares, mas também entre os diversos profissionais que o acompanham no trabalho

com demandas educacionais. Por outro lado, o grupo foi coordenado por mim, psicóloga do

campo educacional, o que, sem dúvida, guiou as temáticas e discussões tecidas ao longo dos

encontros.

A Teoria Histórico-Cultural (THC) compôs, desde o início, as lentes através das

quais olhei para a elaboração e condução do grupo e para as análises do material. No Exame

de Qualificação, em julho de 2015, a banca sugeriu que eu não precisava de uma coletânea de

conceitos da THC na Tese, mas escolher conceitos-chave, de acordo com meus objetivos, que

ajudassem a analisar o material produzido no grupo. Logo no início do estágio de Doutorado

Sanduíche, depois de explicar minha pesquisa ao Professor Nikolai, a primeira tarefa foi

discutirmos os conceitos-chave da THC que ajudariam a revelar8 o material empírico. Com a

ajuda dele, entendi que minha pesquisa é sobre desenvolvimento no sentido vigotskiano, pois

procuro entender a origem e o processo de mudanças qualitativas a partir de um dado

contexto social. Além disso, o grupo colaborativo não foi um mero elemento, mas foi a

própria fonte de desenvolvimento e, ainda, a fonte não foi a mera reunião de pessoas em um

8 O verbo em inglês utilizado aqui é to disclose, que em meu entendimento vai além da tradução aproximada de “revelar”, seria abrir algo, para deixar sair o que está dentro. Assim também o fazemos com o material empírico, usamos os conceitos como ferramentas para abri-los.

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grupo, mas as interações sociais que se constituíram por meio dos encontros e das atividades

propostas.

Os primeiros textos que discuti em supervisão com o Professor Nikolai foram um

artigo e um capítulo de livro9 de sua autoria que oferecem um panorama geral sobre os

principais fundamentos da THC. A partir deles, percebi que o processo de desenvolvimento

humano é muito amplo e que, por isso, em uma investigação há que se escolher quais

aspectos desse processo queremos estudar e quais conceitos nos ajudam a analisar o material

de pesquisa. Como a intenção foi compreender o papel do grupo no desenvolvimento

individual das participantes, a tarefa central consistiu em analisar o processo de

internalização das relações sociais, como força que move o processo de desenvolvimento

considerando que não são quaisquer relações sociais e quaisquer condições de mediação que

resultam em aprendizagem e desenvolvimento, mas apenas aquelas interações desafiadoras e

intensas.

Os aspectos bem como os conceitos referentes a eles e a articulação com as

análises serão explorados ao longo da Tese, o mais importante para este momento é partir

dessa elaboração inicial para delinear os objetivos de pesquisa:

O tema da Tese é desenvolvimento profissional, com o objetivo principal de analisar o

grupo colaborativo como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com

demandas educacionais.

Discutirei, portanto, ao longo da minha escrita, sobre possibilidades de

desenvolvimento profissional a partir de espaço colaborativo de conversa e reflexão sobre a

prática profissional. Um espaço constituído por pessoas interessadas em dialogar sobre

questões diversas relacionadas à Educação, Psicologia, processos de ensino e de

desenvolvimento, trabalho com demandas educacionais e outras tantas temáticas que, ao

longo dos nossos encontros, fizeram-se importantes para nós.

Portanto, defendo a Tese do grupo como fonte de desenvolvimento para

profissionais que trabalham com demandas educacionais – as relações sociais como fonte de

desenvolvimento já eram um princípio antes mesmo de produzir o material empírico e,

consequentemente, as minhas ações em cada proposta na produção do material empírico

foram baseadas neste princípio. Porém, não havia garantias de como o grupo aconteceria: 9 Veresov (2010; 2014).

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minha intenção era, portanto, olhar para as singularidades deste processo, para encontrar

indícios de mudanças por meio da proposta realizada.

Retomando a pergunta do título do livro Para quem pesquisamos? Para quem

escrevemos? de Soares (2011): pesquiso e escrevo esta Tese para todos os profissionais que

lidam em suas práticas cotidianas com questões educacionais diversas, a partir das

interlocuções entre Psicologia e Educação e que queriam conhecer possibilidades de

desenvolvimento profissional a partir de uma proposta colaborativa. Pesquiso e escrevo

também sobre esse tema pelo encantamento que me provoca há tanto tempo, a partir do início

da minha graduação em Psicologia, que me apresentou um amplo horizonte de espaços em

que o psicólogo poderia atuar, dentre eles, a escola. Essa história merece lugar especial no

texto, por isso, considerando que as dimensões profissional e pessoal são indissociáveis

(ARAGÃO, 2010), apresento a seguir meu Memorial de Formação, destacando bagagens que

levo comigo e que compõem quem sou e como a pesquisa se constitui em mim.

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1.2. Sobre memórias: minhas bagagens IMAGEM 1 - Ilustração de Angel Bolígan

Cada um tem que fazer um trabalho sobre si mesmo até encontrar aquilo que o define e o

distingue. E ninguém se conhece sem partir. Sim, parte, divide-te em partes. Sem viagem não há conhecimento. E sempre que se bifurquem os

caminhos a sua frente, segue por aquele que tiver sido menos percorrido. É isso que marcará tua

diferença como investigador. Sem coragem não há conhecimento.

– Carta a um jovem investigador, António Nóvoa –

A produção do Memorial de Formação talvez seja uma das etapas mais delicadas

da pesquisa. Pensar sobre si, rememorar a própria trajetória, olhar para os caminhos

construídos e compreender, a partir deles, os lugares ocupados no momento presente. Um

exercício cronológico? Não. O movimento que rege a teia dos acontecimentos rompe com a

mera descrição dos fatos. O Memorial de Formação deve identificar acontecimentos

considerados importantes para o pesquisador, analisando o contexto que constitui as

memórias individuais, os sentimentos e pensamentos suscitados a partir do que se narra

(PRADO & SOLIGO, 2005), destacando inclusive as tensões e contradições que emergem ao

analisarmos os fatos passados (SOARES, 2001). É um tempo outro, guiado pela fluidez das

lembranças, que busca elementos findos que possam, no presente, evidenciar contradições,

produzir questionamentos e dar sentido ao que se viveu e ao que se é.

Em meio a essa tarefa, por várias vezes me coloquei à frente do computador para

tentar rememorar as histórias que gostaria de registrar e acabei não conseguindo.

Curiosamente, aos poucos e eventualmente em situações de descanso ou mesmo nas horas em

silêncio durante as viagens para Campinas, lapsos e episódios da minha história foram

surgindo e as palavras para compor essa narrativa foram tomando forma. No segundo

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semestre de 2014, cursei a disciplina Arte, Psicologia e Conhecimento, conduzida pela

Professora Ana Angélica Albano. No decorrer das aulas, tivemos a arte como temática

central, como uma dimensão que permite o exercício de um olhar sensível diante do que

observamos como pesquisadores. A proposta avaliativa da disciplina foi a escrita do

Memorial de Formação, atividade sobremaneira formativa para mim – para além de um

caráter meramente burocrático, esse exercício reafirmou que a pesquisa acadêmica é

indissociável da dimensão pessoal. O texto que apresento a seguir teve início, portanto, na

atividade avaliativa que produzi na referida disciplina e foi melhor desenvolvido ao longo da

escrita da Tese.

E para quem contamos nossas histórias? Prado e Soligo (2005) ressaltam que

narrar pressupõe necessariamente a presença de um outro, que vai ler e se apropriar de algum

modo da nossa narrativa. No desenvolvimento de uma pesquisa, contamos nossa trajetória de

formação por apostar que a particularidade desta narrativa pode trazer também algo com o

qual outras pessoas possam se identificar:

Ao recordar, passamos a refletir sobre como compreendemos nossa própria história e a dos que nos cercam, vamos nos inscrevendo numa história que não está mais distante e, sim, impregnada das memórias que nos tomam e da qual muitos outros fazem parte. (PRADO & SOLIGO, 2005, p.56)

O Memorial é o primeiro lugar da Tese em que fazemos o uso da primeira pessoa

do singular de modo enfático, não como categoria narcísica, mas como afirmação do caráter

autoral da pesquisa, tendo como direcionadores os princípios da indissociação entre

pessoal/profissional, teoria/prática (ARAGÃO, 2010; 201710). Por isso, os eventos escolhidos

para o Memorial devem comunicar algo a outros, partindo de uma experiência individual

para uma experiência que merece ser partilhada (SOARES, 2001).

Compreendo memória a partir da perspectiva vigotskiana11 que a considera uma

função psicológica superior, cuja gênese se encontra nas relações sociais. Aquilo de que me

recordo é fruto de vivências que me foram significativas e que tiveram origem no plano das

relações sociais, que por sua vez se inserem e são constituídas por um contexto histórico e

10 Em apresentação no Concurso para Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. 11 Uma discussão mais elaborada sobre os conceitos de L. S. Vigotski será realizada no capítulo teórico. Por ora, considero importante apenas definir o entendimento de memória a partir dessa perspectiva para a composição do Memorial de Formação.

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cultural mais amplo. Vigotski12 (1925/2001) considera a dimensão individual e a social como

uma unidade dialética, de modo que o social está presente mesmo quando tomamos um

sujeito apenas. Interações sociais emocional e cognitivamente intensas, que provocam

tensões e questionamentos, impulsionam o desenvolvimento de funções psíquicas

individuais, dentre elas a memória (VERESOV, 2015).

Há uma relação dialética entre a memória coletiva e a memória individual

(POLLAK, 1989/3). Por isso, um memorial formativo não é uma compilação de fatos, mas

uma interpretação, na qual seleciono fatos do passado em função de seus efeitos no presente,

buscando indícios das condições concretas e ideológicas que constituíram os acontecimentos

que relato: o que eu pensava naquela época? Por que pensava assim? Qual era o contexto

social? Quais mudanças enxergo? Que implicações isso tem hoje? Não é simplesmente

buscar conhecer o que se passou, mas pensar o que se passou, elevar a experiência a uma

compreensão mais complexa sobre ela mesma (SOARES, 2001).

Recordar as vivências idas... Que fios tecem a memória? Longe de serem fios

empoeirados e gastos pelo tempo, essa tessitura é viva, pois lembrar as experiências é um

processo que acontece no presente, conduzindo a difícil e bonita tarefa de compreender as

escolhas e trilhar caminhos futuros. Difícil e bonita? Sim. Ao olhar para o que passou me dou

conta das dores, dos desencontros, das perdas. E também percebo o belo que encontrei e que

construí na trajetória rememorada.

A imagem apresentada neste tópico ilustra um viajante partindo com suas

bagagens para outros destinos, com sua sombra ligada às origens e caminhos trilhados. Na

epígrafe, Nóvoa (2014) pontua que precisamos partir em viagem para nos conhecer,

desbravar novos caminhos, vivenciar as tensões e colisões de cada escolha para encontrar

aquilo que nos define. Trago aqui a metáfora da Travessia para compor as memórias

apresentadas. Por definição13, travessia é o “ato ou efeito de atravessar uma região, um

continente, um mar” ou ainda “longo trecho de caminho desabitado”. Em uma definição

poética, apresento um trecho da música Travessia, de Milton Nascimento e Fernando Brant:

Hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha e nem é meu este lugar Estou só e não resisto, muito tenho pra falar Solto a voz nas estradas, já não quero parar

12 Existem diversas grafias para o nome do autor: Vigotski, Vygotky, Vigotskii, dentre outras (PRESTES, 2010), escolho padronizar no texto a grafia “Vigotski”, que mais se aproxima da língua portuguesa, ainda quando a citação decorre de textos em inglês, cujo padrão é “Vygotsky”. 13 Dicionário Michaelis Online – http://michaelis.uol.com.br

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Meu caminho é de pedra, como posso sonhar

Atravessar é ter coragem de se aventurar ao desconhecido, é se inquietar e

almejar a transformação, o que não se faz sem tensões e contradições. Escrevo o Memorial

por Travessias, destacando as memórias individuais constituídas a partir da dimensão social

de memórias coletivas e buscando na trama dramática14 de cada uma delas as mudanças que

me fizeram ser que sou hoje e que me levaram a escrever essa Tese tendo como tema o

processo de desenvolvimento profissional. Considerando que o presente é a fonte para

compreendermos nosso passado e as escolhas que nos fizeram ser quem hoje somos, inicio

esse Memorial às avessas, com perguntas atuais: Quem sou eu? Por que estudar

“desenvolvimento profissional”? Quais as travessias até a Tese que hoje escrevo? Quais

crises identifico? Quais mudanças encontro?

Travessias do presente: quem sou eu?

No texto Carta a um jovem investigador em Educação, Nóvoa (2014) confessa

que ingressou no campo da Educação por acaso, mas que, desde então, vem se questionando

e buscando respostas que o ajudam a ocupar esse lugar, constituindo sua identidade

profissional. Também eu já afirmo logo de início que não sei ao certo por que vim parar onde

estou hoje – no campo da Psicologia e da Educação – mas durante essa trajetória tive

momentos cruciais de reflexão sobre minhas escolhas e sobre o que foi possível fazer com as

oportunidades que tive. Por isso, começo essa narrativa com um acontecimento recente, que

me ajudou a olhar para mim mesma e entender um pouco mais quem sou e os motivos pelos

quais escolhi esse caminho profissional, dentre tantos.

A viajem para a Austrália me transformou profundamente, foi minha primeira

experiência internacional e hoje penso em quão corajosa fui ao encarar, não apenas uma

viagem para outro país do outro lado do globo, mas também ao partir de mudança para lá

morar por um ano, estudando parte do Doutorado. A parceria de meu marido foi fundamental

para que essa vivência fosse mais prazerosa e/porque partilhada com alguém que tem sido

meu companheiro há tantos anos. Ainda assim, estar em um lugar diferente, com costumes

diferentes, falando um segundo idioma não deixou de ser desafiador e difícil para nós dois.

Os sentimentos de euforia e encantamento diante das novidades e de desbravar uma cidade

14 A palavra drama é usada, aqui, em referência ao conceito vigotskiano, a ser desenvolvido no capítulo teórico, segundo o qual somente aquelas interações sociais ‘dramáticas’ – emocionalmente intensas, nas quais o indivíduo tem uma participação ativa – são internalizadas e levam a uma mudança psíquica (VERESOV, 2015).

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tão bonita e culturalmente rica como Melbourne se mesclava com a dificuldade em lidar com

questões simples do cotidiano, como pedir uma informação (e entender a resposta), encontrar

um item no supermercado sem saber ao certo se era aquilo mesmo que estávamos

procurando, entender do início ao fim uma reunião de trabalho ou uma discussão teórica na

faculdade e, no caso de dúvidas (e eram muitas), ter coragem de perguntar sem antes se

questionar muitas vezes sobre como expressar o pensamento em um outro idioma, ao ponto

de por vezes desistir e torcer para que um outro colega fizesse a pergunta.

Ao retomar algumas anotações pessoais feitas no período, percebo que, junto com

a sensação de me sentir estrangeira e das crises decorrentes dessa vivência encontrei também

pessoas que se solidarizaram e me acolheram, em interações que me fizeram perceber que os

relacionamentos humanos podem ser significativos mesmo em um contexto de grandes

diferenças culturais.

Aqui destaco o fato de a Austrália ser, em geral, um país aberto a diferentes

nacionalidades, Melbourne, em especial, é uma cidade cosmopolita, de modo que andando

nas ruas e principalmente no espaço da universidade encontrava pessoas falando diversos

idiomas, usando trajes típicos de seus países de origem, com feições e costumes vários.

Apesar de ser estrangeira, eu não estava só, senti-me identificada e acolhida por colegas na

mesma condição. Em minha primeira orientação com o Professor Nikolai, fui recebida com

um abraço e em seguida ele disse: “As Brazilians do” (Como fazem os brasileiros), em um

gesto de gentileza e acolhida à minha cultura, que jamais esquecerei. Ao começarmos nossa

primeira supervisão, desculpei-me pela dificuldade em colocar minhas ideias em inglês e ele,

de origem russa, tendo também o inglês como segundo idioma, disse me compreender quanto

a isso. Além dos australianos, tive colegas da Nova Zelândia, Bangladesh, Paquistão,

Indonésia, Brunei, Coréia do Sul, Vietnã, China, Japão, Arábia Saudita, México. Vejamos o

que meu relato pessoal revela sobre algumas lições aprendidas por meio dessa vivência:

A convivência com o diferente em terras estrangeiras, potencializada por estar na Austrália, país tão multicultural, não tem sido para mim um mero fator a que devo me adaptar ao longo desse ano fora do meu país, mas tem sido por si só fonte de desenvolvimento para mim. Encontrar diariamente o que me causa certa estranheza e me dar conta de que aquilo que me é familiar é só uma parte ínfima do que constitui esse mundo tem me proporcionado um novo encontro comigo mesma e com o outro. Tenho percebido a alegria e nobreza que existem em escutar, em contemplar e estar aberta ao diálogo. E que não preciso ser afiada na resposta ou afoita em impor meus ‘achismos’. Um olhar, um sorriso e uma palavra de gentileza me apresentam mais ao outro do que meia dúzia de palavras gastas sobre as verdades que acho ter. (Diário de anotações pessoais, 2015)

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Enquanto escrevia essa reflexão, recordo-me que pensava no período de crise

política e das relações sociais pelas quais o Brasil passava e ainda passa, enquanto escrevo a

Tese. As eleições presidenciais de 2014, marcadas pela revolta e descontentamento

provocados pelos escândalos emergentes de corrupção política, aliadas a um movimento

conservador de extrema direita, descontente com os avanços no campo social, provocaram

uma intensa polarização de opiniões políticas nas redes sociais e nos relacionamentos entre as

pessoas, gerando discussões por vezes infundadas, suprimindo o diálogo com quem pensa

diferente, dando lugar a meras ofensas pautadas em informações parciais e acríticas.

Encontrar-me com pessoas tão distintas de mim, por vezes até no modo de vestir – tive

colegas de religião muçulmana, que usavam trajes que mostravam apenas as mãos e o rosto,

por exemplo – me fez refletir sobre como tenho aceitado o diferente e que há uma

diversidade cultural no mundo para muito além dos valores e costumes locais que me

constituem. Percebi, ainda, que a comunicação vai além dos signos produzidos pela

linguagem oral – gestos, olhares, silêncios e uma escuta cuidadosa ao que o outro me conta

também indicam solidariedade e me aproximam daquilo que é diferente de mim, fazendo-me

perceber, respeitar e aprender com o outro.

A intensidade, o estranhamento e a novidade das tantas situações desafiadoras

que vivenciei nas terras de lá faziam com que eu me questionasse com mais frequência sobre

meus saberes e escolhas. Além dos encontros com o grupo de pesquisa para discussão de

conceitos teóricos e das pesquisas desenvolvidas pelos colegas, eu tinha também encontros

individuais e periódicos com Professor Nikolai. No início do estágio, fizemos um plano de

trabalho, cujo principal objetivo era discutir minha pesquisa, encontrando conceitos-chave da

Teoria Histórico-Cultural (THC) para análise do material, para que, assim, pudéssemos

aprofundar no estudo destes conceitos ao longo da minha estadia, elegendo manuscritos do

próprio Vigotski e artigos relacionados que ajudassem nesse debate. Os encontros com

Professor Nikolai eram de uma profundidade teórica tal que por vezes eu passava o dia

seguinte tentando elaborar o que aprendi, escrevendo e sintetizando as reflexões por ele

provocadas.

Em um desses encontros, um dos mais marcantes para mim, que aconteceu em

meados do meu estágio, escolhemos estudar um texto de Vigotski conhecido no Brasil como

Manuscrito de 1929, cujo título em inglês é Concrete Human Psychology (Psicologia

Concreta do Humano). Este é um dos escritos mais curiosos de Vigotski a que tive acesso,

pois não é um texto pronto, com introdução, desenvolvimento e conclusão, mas um rascunho

de ideias e anotações, como se por meio de cada tópico pudéssemos ter acesso ao processo

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criativo de Vigotski na elaboração de ideias fundamentais da THC. A leitura desse

manuscrito me suscitou uma pergunta básica: por que a teoria é denominada Teoria

Histórico-Cultural? Por que “histórico”? Por que “cultural”?

Professor Nikolai me relembrou, nesse encontro, que Vigotski passou a maior

parte de sua produção científica doente, a tuberculose era sempre um peso a lembrá-lo que

ele teria pouco tempo de vida. Por isso, ele tinha urgência em encontrar o cerne explicativo

para sua pergunta principal: como se dá o processo de desenvolvimento psíquico do ser

humano? O Professor acrescentou que a elaboração da THC como a compreendemos hoje se

deu na última fase produtiva de Vigotski e que o Manuscrito de 1929 apresenta um

importante início de transição de uma fase em que ele considerava os signos e ferramentas

ainda dentro do paradigma comportamental de “estímulo-resposta”, para outro em que as

relações sociais são fonte de desenvolvimento psíquico, em um paradigma histórico-cultural.

Nesse momento, Vigotski estava muito doente e estava vivendo, portanto, uma crise

particular, ao mesmo tempo em que vivia a “crise da Psicologia” de sua época, analisada no

manuscrito O significado histórico da crise na Psicologia, de 1927, momento em que essa

ciência, diante da multiplicidade de abordagens sobre os fenômenos psicológicos, não

conseguia encontrar princípios que de fato explicassem as questões humanas, para além de

uma descrição abstrata ou simplista.

Vigotski, portanto, expõe de forma humana e honesta a sua crise neste

manuscrito, questiona-se sobre o que é o desenvolvimento humano e encontra na cultura, nas

relações sociais e nos processos históricos a chave para dar algumas respostas. Ao final desse

encontro, depois de discutirmos conceitos centrais desse manuscrito, Professor Nikolai

apresentou uma reflexão que me fez entender profundamente o porquê de eu ter escolhido a

Teoria Histórico-Cultural, dentre tantas, para subsidiar, não apenas as análises da Tese, mas

quem eu sou como pessoa15:

Vigotski veio da arte para a psicologia. Ele estava tentando entender o sentido mais profundo do ser humano, este era o ponto principal para ele. Então, se eu sou uma pessoa que está sempre buscando formas melhores de viver e de me relacionar com os outros, esta é a teoria certa para mim. Para ser um bom pesquisador da THC, primeiro eu preciso estar disponível para ser uma pessoa melhor e então eu vou perceber que esta é a teoria certa para mim. A THC é para pessoas que questionam elas mesmas e o mundo: “Eu sou uma boa pessoa? Eu gosto do jeito como sou? Como posso ser melhor?”. Se o maior postulado dessa teoria é que nos tornamos

15 Apresento a fala do Professor Nikolai traduzida para o português, a partir das minhas anotações pessoais.

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humanos a partir das relações sociais e, portanto, nossa mente é formada por signos e ferramentas, então devemos usar e criar ferramentas para nos tornamos melhores como seres humanos. Devemos selecionar o que vemos, o que ouvimos, com quem nos relacionamentos, os lugares que frequentamos... Por isso que Vigotski veio da arte para a psicologia, porque a arte pode nos ajudar a nos tornarmos seres humanos melhores. Mas a pergunta é: eu quero mudar? E se sim, que tipo de ferramentas culturais estou selecionando diariamente? Eu reflito sobre minhas ações e as questiono? O que pode ser diferente?

(Prof. Nikolai Veresov, 01/03/2016)

Ao reler meu diário de anotações pessoais, consigo perceber uma pessoa inquieta,

que expõe momentos de crise, que se questiona sobre o porquê ter escolhido ser psicóloga, ter

escolhido a carreira acadêmica no campo educacional, ter escolhido a THC... precisei me

deslocar para tão longe para encontrar indícios de resposta para essas questões – Escolhi esse

caminho e não outro porque eu sou (me tornei) isso: drama, intensidade, profundidade... vivo

em um constante repensar sobre mim mesma e sobre minha relação com o mundo que me

cerca. Defendo o drama como princípio explicativo do desenvolvimento humano por ter a

audácia de abrir as portas de cada vivência para crises, angústias, sensibilidade, reflexões.

Quem sou? Sou/estou a me formar psicóloga/pesquisadora/docente no campo do

desenvolvimento humano. Estudo os processos de desenvolvimento em uma perspectiva

histórico-cultural. Nesta Tese, investigo o processo de desenvolvimento profissional de

pessoas que trabalham com demandas educacionais analisando o grupo como fonte de

desenvolvimento. No penúltimo encontro de trabalho com Professor Nikolai, discutimos os

encaminhamentos finais de um artigo que escrevemos juntos, em parceria com minha

orientadora, com as análises parciais da minha Tese16. O Professor disse que meu trabalho é

interessante por considerar o desenvolvimento profissional não como apenas o processo de

desenvolver habilidades e conhecimentos profissionais, mas como um processo de

desenvolvimento humano, envolvendo a dimensão pessoal, uma vez que as atividades

propostas no grupo possibilitaram às participantes expressarem seus entendimentos sobre o

que vivenciaram. Disse a ele que tenho noção de que o grupo que desenvolvi foi apenas um

momento na vida daquelas pessoas, provavelmente não o mais importante e que minha Tese é

uma humilde contribuição nesse campo. Ele então me respondeu:

Você está dando apenas os primeiros passos. É pequeno? Sim, é pequeno. Humilde? Sim, é humilde. Mas é um começo e a semente vai crescer. Se você olhar para as árvores, todas elas começam de uma pequena semente.

16 O artigo foi publicado em 2016, pela revista Outlines: critical practice studies. Acesso pelo link: http://ojs.statsbiblioteket.dk/index.php/outlines/article/view/24207

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Se não há uma semente, não haverá uma árvore. Se você olhar para você e para mim, nós todos fomos uma pequena célula um dia. Uma pequena célula. E agora é você, sou eu. Tudo começa de coisas muito pequenas e simples. Mas que desenvolvem e dão resultados. Lembre-se do primeiro passo que deu quando era criança, foi um passo muito pequeno e humilde e você caiu, mas agora você anda usando suas próprias pernas e isso começou com um esforço pequeno para dar um passo e ficar de pé e você conseguiu. Tudo vai se desenvolver e então você fará mais e mais. É um começo, mas é um começo muito bom, no futuro, você verá.

(Prof. Nikolai Veresov, 16/06/2016)

Olhar para essas memórias recentes me faz perceber uma travessia em pleno

curso, que me levará por ora a concluir uma das jornadas mais importantes do meu percurso

profissional – tornar-me Doutora em Educação, que nada será do que mais um passo diante

de tantos que darei daqui em diante. Com um pouco mais de clareza sobre o presente,

pergunto: e os passos anteriores a esse que me fizeram chegar até aqui?

Durante o período na Austrália, tive o privilégio de conhecer a cidade de Sydney,

um dos cartões postais mais famosos do mundo. Ao visitar o museu de arte contemporânea

da cidade, uma obra me chamou atenção: Suitcase Museum (2015) da artista indiana

Dayanita Singh:

IMAGEM 2: Suitcase Museum, Dayanita Singh17 (Fotografia do meu acervo pessoal)

17 Dayanita Singh [1961] - Nova Deli, Índia

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A obra é composta por fotografias da artista expostas nas paredes e ao centro

algumas malas abertas e outras fechadas, com livros contendo outros trabalhos da artista. Ao

ver essa obra pensei imediatamente na metáfora da viagem como a composição de nossas

vidas. O que somos ora fica exposto, ora fica guardado em nossas lembranças. Que outras

bagagens eu levo?

Travessias de infância e juventude: indícios de um olhar sensível de pesquisadora

Mineira, nascida em Belo Horizonte, criada desde pequena em Araguari, no

Triângulo Mineiro, interior do estado, só fui me dar conta da minha mineirice nos últimos

tempos em que eu, agora menina crescida, resolvi me aventurar pelas bandas do estado de

São Paulo. Vivendo em outras terras, pude perceber com mais clareza meu sotaque, além de

conhecer novas pessoas, novos jeitos de ser e de pensar. Pude, enfim, me dar conta das

minhas raízes e me orgulhar das origens singelas da minha família.

Apesar de uma vida sempre urbana, o contato com a roça onde meus avós

maternos moraram sempre se fez presença marcante: os passeios no mato, as brincadeiras

inventadas com as primas, a comida no fogão à lenha, a família reunida na cozinha para

almoçar e para ouvir, de quebra, as longas e instigantes histórias do meu avô, a rotina simples

que fazia o dia durar mais. Algumas dessas vivências bucólicas me remetem a memórias de

uma menina Fabiana curiosa, que adorava conhecer o mundo ao redor. Inspirada também

pela paixão do meu pai pela natureza, recordo-me de que gostava de aprender os nomes dos

animais e plantas do cerrado, de procurar joaninhas no jardim, de tentar achar pedras

preciosas na beira do rio e de passar horas a fio olhando as estrelas, em busca de algum

fenômeno surpreendente, como um cometa ou uma estrela cadente.

A curiosidade pelo mundo era despertada também pelo cuidado dos meus pais

com nossa educação. A família do meu pai tinha condições financeiras melhores e ele teve a

chance de estudar e se formar em Administração e fazer um intercâmbio de um ano nos

Estados Unidos, quando era adolescente. Minha mãe não teve as mesmas oportunidades,

interrompendo os estudos no Ensino Fundamental, chegando a concluí-los anos mais tarde,

quando minha irmã e eu estávamos na faculdade. Talvez pela presença marcante da

escolarização de formas diversas na vida dos meus pais, desde cedo aprendi com eles que a

educação escolar deve ter espaço privilegiado na vida. Quando criança já percebia o esforço

dos dois para colocar minha irmã e eu em boas escolas, para ter livros sempre presentes nas

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estantes da nossa casa, especialmente uma coleção de enciclopédias, que meu pai conta com

todo orgulho ter comprado pouco antes de eu nascer e que, como uma espécie de brincadeira,

eu gostava de folhear cuidadosamente, deixando-me encantar pelas imagens e palavras tão

novas, em uma época ainda distante das pesquisas na internet. Lembro-me de tentar, certa

vez, construir uma câmera fotográfica com uma caixa de papelão, ao ler sobre os primeiros

registros de imagens feitos no experimento da câmara escura.

Minha mãe relata que quando mudamos de Belo Horizonte para Araguari, um dos

meus primeiros pedidos que fiz foi para que ela me colocasse na escola, eu tinha três anos de

idade na época. Recordo-me da escola onde estudei quase todo o Ensino Fundamental (das

antigas 1ª à 7ª série) como um espaço de prazer. Era um colégio particular, na modalidade de

“cooperativa de ensino”, na qual os próprios pais tinham cargos administrativos na escola e,

portanto, uma participação ativa na construção daquele espaço. Havia aulas diferentes do que

podia ser encontrado em outros colégios particulares da cidade: um laboratório de ciências

com aulas práticas e direito a usar o microscópio, aulas de teatro e de xadrez, que eram as

minhas favoritas. Lembro que também tínhamos atividades extracurriculares peculiares,

como por exemplo, a escolha de representantes de turma, por meio de eleições – tínhamos até

mesmo que montar partidos, fazer campanha e discurso – fui eleita representante de turma da

quarta série.

Recordo de uma frase comum usada por professores para me definir: “a Fabiana é

uma menina estudiosa” e me recordo que nem sempre isso era visto como um elogio por

parte dos meus colegas, que muitas vezes usavam critérios ligados a estereótipos de gênero

para formação dos grupos de amizade – para os meninos, o legal era transgredir as regras e

não gostar de fazer tarefas e para as meninas, era ser vaidosa e usar roupas de marca –

lembrando que esse era um colégio considerado de classe alta na cidade. Muitas vezes não

me via em nenhum desses grupos e era vista como “certinha” demais, além de destoar da

condição socioeconômica dos demais, o que me causava sofrimento e um sentimento de

exclusão. Hoje, percebo que esses conflitos não foram vistos ou acolhidos no contexto da

própria escola. Havia o esforço por oferecer um ensino prazeroso em termos de conteúdo,

mas as relações interpessoais nem sempre eram tratadas como parte do processo de

escolarização.

Ao pensar sobre meus anos iniciais na escola com o olhar que tenho hoje, percebo

o quanto esse espaço é marcante na minha subjetividade – apesar dos conflitos que marcaram

esse período, hoje me orgulho ao me perceber, desde aquela época, sedenta pelo

conhecimento. Captar o mundo, conhecer o que me cercava, não de um modo meramente

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contemplativo, mas implicado, que olha atentamente, que busca, que explora. Menina

inquieta e atenta. Uma pesquisadora iniciante? Bom, se havia ou não indícios esse desejo ali,

não sei, mas entendo que ao me divertir no universo de brincadeiras que inventava e ao me

deleitar com o que aprendi na escola, entendi também que não seria nada fácil ver além das

estrelas e das pedras preciosas, tampouco construir uma câmera fotográfica. E essa, sem

dúvida, é uma grande lição atrelada ao meu fazer como psicóloga/pesquisadora hoje, quando

volto meu olhar curioso de menina crescida para compreender os processos de

desenvolvimento humano.

Travessias no campo da Psicologia e da Educação: caminhos de desenvolvimento profissional

E onde surgiu a Psicologia na minha história? Quando penso sobre minha escolha

profissional, não me vem aquele velho clichê que começa com: “Desde pequena...”. Pelo

contrário, quando criança pouco sabia eu sobre a existência de psicólogos mundo afora. O

desejo pelo curso aconteceu por volta do segundo ano do Ensino Médio. A escola privada

onde estudei nesse período oferecia espaços tomados quase por completo pelo discurso

imperioso de aprovação no vestibular em uma universidade pública. Recordo que a vontade

de estar em uma universidade pública e também a grande expectativa de que ‘a Fabiana,

sempre tão boa aluna’ fosse aprovada eram mais sedutores naquele momento do que uma

profunda reflexão sobre o que é uma escolha profissional. Nessa época havia o vestibular

seriado, que era realizado em três etapas a começar no primeiro ano do Ensino Médio.

Recordo-me da primeira etapa da prova que fiz, ao final do primeiro colegial e no quanto

estava nervosa e apreensiva. Mais importante do que conhecer quem éramos e o que

queríamos como profissão, era a pontuação do vestibular, para provar nossa inteligência e

vangloriar a fama de aprovação do colégio. Hoje vejo com um olhar crítico a forma como

minha formação foi conduzida nesse momento. Como ainda é comum, também naquela

época éramos treinados para fazer uma prova e não havia uma preocupação efetiva com o

desenvolvimento dos alunos em uma perspectiva integral e reflexiva.

Ao olhar hoje para a Fabiana tão menina daquele tempo fico a pensar: sabia ela

que implicações tinham essa escolha? Tinha ela clareza dos desejos, dúvidas,

questionamentos que impulsionaram essa decisão? Em meio à ingenuidade e meninice

daquela época, aliada aos poucos espaços de reflexão na escola para além do slogan

‘aprovados’, há algo de que me lembro com clareza: a possibilidade de aprender sobre o ser

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humano, sobre relações, afetos, vínculos me causou um fascínio inexplicável, quando cogitei

pela primeira vez cursar Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A

Psicologia me tomou lá pelos tempos da adolescência, sem questionamentos muito

complexos, sem saber bem por onde eu me enveredaria ao dar esse passo... E poderia ser

diferente? Que escolhas não trazem a misteriosa cortina entre o tempo presente e os desafios

que virão?

Em meio a estas perguntas, retomo aqui a menina Fabiana tão curiosa e instigada

a conhecer sempre mais. Do encantamento pela natureza (registro que encontrei inclusive em

um texto meu quando criança, em que escrevi que eu gostaria de ser uma ‘ecologista’ quando

crescesse), meus interesses aos poucos se voltaram para a área de Humanas – talvez por

sempre preferir as letras aos números e conseguir/gostar de me expressar por elas em cartas,

produções de textos, diários... Talvez o fascínio pela literatura, talvez por tanto me identificar

com as matérias de História, Filosofia, Sociologia, Arte e começar a pensar que esses

conteúdos, do modo como eram ensinados na escola, me ajudavam a analisar o mundo de um

jeito melhor do que a Matemática e a Física. Talvez por começar a perceber algo diferente no

meu pai: crises que vinham de tempos em tempos, trazendo sofrimento a ele e a nossa

família. Apesar de estes episódios acontecerem desde minha infância, foi no momento da

adolescência que comecei a percebê-los com mais clareza e foi também nessa época também

que suspeitamos de algum problema de ordem psicológica: ‘Transtorno Bipolar’ – esse foi o

nome que ouvi para o que o meu pai vivenciava, mas que havia tratamento e uma vida que

segue. Ainda assim, havia tantas dúvidas sobre essa questão... Que condição seria essa?

Como as pessoas ‘funcionam’? Que mundo curioso seria esse que nos constitui como gente?

Narro essa parte da minha história com coragem, pois não é fácil encará-la. De algum modo,

hoje, me sinto fortalecida para contá-la e reconhecer que a condição do meu pai também me

inspirou a buscar na Psicologia a compreensão sobre o ser humano, sobre as relações, sobre

as dores e as delícias de ser gente. E o que seria da trajetória de formação profissional se não

fosse a dimensão pessoal que a constitui? Somos sujeitos inteiros...

(...) para escrever o memorial de formação, a referência principal é sempre o lugar profissional que ocupamos (...) e então, quando necessário, lançamos mão das memórias relacionadas a outras experiências – de filho, de neto, amigo, etc. que foram relevantes para nosso processo formativo. (PRADO & SOLIGO, 2005)

E com essa escolha, o vestibular. Com ele, a aprovação. E, assim, o início do

curso em 2006. Qual não é a minha surpresa quando me deparo, já no começo, com uma

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infinidade de jeitos de pensar o ser humano e de atuar em Psicologia. O psicólogo não precisa

trabalhar somente no consultório diagnosticando psicopatologias? Quantas linhas teóricas!

Quantos lugares o psicólogo pode ocupar!

Essa reflexão foi possibilitada logo no início do curso por um espaço de

acolhimento aos calouros, proposto pela Professora Silvia Maria Cintra da Silva, pessoa

querida e fundamental no meu processo de formação, que se tornaria alguns anos depois,

minha orientadora de Mestrado. Este projeto consistia na realização de um grupo para os

alunos do 1º período, no qual, a partir do diálogo com arte, discutiríamos questões relativas

ao ingresso no curso de Psicologia, principalmente quanto às possibilidades deste campo

como ciência e profissão. Foi por meio deste projeto que aprendi, pela primeira vez, que o

psicólogo não trabalha somente envolto por quatro paredes e um divã. Aprendi que este

profissional também trabalha nas instituições e, surpreendentemente, na escola. De modo

especial, foi por meio do olhar acolhedor, sensível e crítico da Silvia e dos estagiários dela –

que conduziam o projeto com a nossa turma – que conheci pela primeira vez algumas

importantes possibilidades da Psicologia, em especial, no campo da Educação. Olhar

acolhedor, pois me lembro de este ser um espaço que ajudou muito no meu processo de

identificação com o curso, instigando-me a seguir na jornada que me aguardava. Olhar

sensível, pois todos os encontros eram banhados por arte – filmes, músicas, artes visuais –

apostando que tais elementos são fundamentais para mediar a compreensão sobre o humano.

Olhar crítico, pois recordo que me encantei com a desconstrução da ideia de um ser humano

puramente guiado pela dimensão biológica e com as discussões pautadas a partir do contexto

social, histórico, cultural em que este se insere. Apesar de ainda não entender muito bem esse

posicionamento naquele momento, com ele me identifiquei.

As disciplinas relacionadas à Educação foram momentos marcantes na minha

formação, uma vez que traziam questões relacionadas aos processos de ensino e de

aprendizagem coerentes com esta concepção social de ser humano, que citei há pouco. Por

que há alunos que não aprendem ler e escrever? O que está envolvido nas dificuldades

relacionadas ao aprender? O que acontece no processo de ensinar e de aprender para além dos

estereótipos preconceituosos, tais como: “a culpa é do aluno!”, “a culpa é da família!”, “é um

problema neurológico!”? Como aprendemos? Como nos desenvolvemos? Como o psicólogo

pode atuar junto a estas questões? Sem dúvida, a mediação e a formação das docentes

responsáveis por essas disciplinas contribuíram sobremaneira para que eu me encantasse com

essas questões. A Professora Silvia Maria, que já mencionei e a Professora Lúcia Helena

Ferreira Mendonça Costa, cada qual responsável por uma disciplina da área, desenvolveram

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conosco trabalhos que envolviam o contato direto com o contexto educativo, nos

supervisionando no desenvolvimento de projetos em escolas e outras instituições, como parte

das atividades da disciplina. Essas experiências, aliadas às consistentes leituras de textos

relacionados ao tema, que articulavam questionamentos sobre as condições da Educação

brasileira, conquistaram-me para continuar estudando e aprendendo mais sobre as

possibilidades de trabalho do psicólogo na Educação. A lição mais preciosa deste primeiro

momento e que levo até hoje no meu jeito de enxergar o mundo é que há sempre vários atores

e elementos na configuração de uma condição humana, seja ela qual for. É preciso questionar

concepções reducionistas, instauradas nos diagnósticos psicológicos fechados, atribuídos sem

uma reflexão crítica e cuidadosa acerca do sujeito que o recebe. É preciso remar contra a

maré da patologização dos processos de aprendizagem e da vida humana como um todo,

questionando sempre: que sujeito há por trás dos rótulos?

No quinto período, comecei a participar de um grupo de pesquisa

interinstitucional, denominado A atuação do psicólogo na rede pública de educação frente à

demanda escolar: concepções, práticas e inovações18. Este estudo teve como objetivo

analisar concepções e práticas desenvolvidas por psicólogos da rede pública de Educação em

relação às queixas procedentes do sistema educacional, para compreender em que medida os

profissionais apresentariam elementos inovadores e pertinentes às recentes discussões na área

de Psicologia Escolar e Educacional. Ao conhecermos o cotidiano de profissionais alocados

em Secretarias de Educação do estado de Minas Gerais, identificamos psicólogas e

psicólogos que lidavam diariamente com grandes dificuldades em suas práticas, denunciando

a desvalorização do trabalho de Psicologia, a falta de recursos, além do desafio de abarcar

elementos teóricos em suas ações ou, em muitos casos, o desconhecimento quase total dos

avanços recentes da área (SOUZA, SILVA & YAMAMOTO, 2014). Diante destes

elementos, o grupo de pesquisa começou a se perguntar sobre a formação destes psicólogos:

como tem sido proposta? Como os fundamentos teóricos têm sido apropriados pelos

profissionais em formação?

Estes questionamentos sobre a formação do psicólogo escolar deram origem a

outra pesquisa neste mesmo formato, da qual participei já como profissional colaboradora,

denominada: A formação do psicólogo escolar e as Diretrizes Curriculares em Psicologia:

18A pesquisa abrangeu sete estados brasileiros. No âmbito nacional, foi coordenada pela Profª Drª Marilene Proença Rebello de Souza, da Universidade de São Paulo. Em Minas Gerais, foi financiada pela FAPEMIG (Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais) e coordenada pela Profª Drª Silvia Maria Cintra da Silva, da Universidade Federal de Uberlândia.

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concepções teóricas, bases metodológicas e atuação profissional19, que teve como principal

objetivo analisar a formação em Psicologia, tendo como base as Novas Diretrizes

Curriculares para os cursos de graduação, buscando entender mais especificamente como os

cursos têm formado seus alunos para atuar junto aos processos educativos.

A participação na primeira investigação, ainda durante a graduação, apresentou-

me ao universo da pesquisa. ‘Mas não seria necessário um laboratório, com tubos de ensaio e

outros materiais mirabolantes para ser pesquisador?’. Para minha surpresa, não. A pesquisa

em ciências humanas podia ser tecida de outro jeito, por meio da inserção nos espaços

cotidianos, a partir de um olhar para as relações interpessoais, da análise minuciosa e sempre

atenta ao contexto.

Inspirada pelas vivências como pesquisadora iniciante e com imenso desejo de

mergulhar na carreira acadêmica, iniciei o Mestrado em Psicologia, em 2011, na

Universidade Federal de Uberlândia, orientada pela Professora Silvia Maria. Como recém-

formada em Psicologia e imersa no campo da Psicologia Escolar e Educacional, queria

aprofundar meus conhecimentos nessa área. A história da Psicologia Escolar e Educacional,

especialmente no contexto brasileiro é marcada pela luta contra práticas individualizantes e

descontextualizadas, tais como a mera aplicação dos testes de inteligência e a atribuição de

diagnósticos de problemas de aprendizagem sem considerar o contexto de ensino da sala de

aula e de inserção social e política da Educação, em busca de construir ações pautadas em

uma análise complexa dos fenômenos. A proposta da Psicologia Escolar e Educacional em

uma perspectiva que denominamos crítica20 é, portanto, uma forma de pensar o homem e a

sociedade que exige a ruptura com o raciocínio cartesiano, racionalista e individualizante

com o qual estamos acostumados, haja vista nossa própria constituição histórica marcada por

este modo de pensar.

Estava eu pesquisando sobre a atuação e a formação do psicólogo em uma

perspectiva crítica, ao mesmo tempo em que iniciava minha própria atuação como psicóloga

nos estágios profissionalizantes, vivenciando os desafios de colocar em prática o

conhecimento que aprendia. Por isso, meus questionamentos eram: considerando as

mudanças e avanços no campo da Psicologia Escolar, tais fundamentos têm sido apropriados

19 Esta pesquisa contou com a participação de quatro estados brasileiros, sendo coordenada nacionalmente pela Profª Drª Marilene Proença Rebello de Souza e em Minas Gerais pela Profª Silvia Maria Cintra da Silva. 20 Esta perspectiva será discutida detalhadamente no Capítulo 2, referente à fundamentação teórica. Por hora, algumas referências na área: PATTO (1984, 1996); MACHADO & SOUZA (1997); BOCK (1999); TANAMACHI, PROENÇA & ROCHA (2000); MEIRA & ANTUNES (2003a, 2003b); MARTINEZ (2007); SOUZA, B. (2007).

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pelos alunos de graduação? De que forma? Como se aprende e como se ensina esta

perspectiva teórico-prática? A partir dessas reflexões, surgiu, então, o interesse em

compreender, no Mestrado, o seguinte processo: a apropriação de uma perspectiva crítica em

Psicologia Escolar e Educacional pelos sujeitos supervisora e estagiária, ao longo de suas

trajetórias de formação profissional. Era uma pergunta de pesquisa e uma pergunta para mim

mesma: como me tornar uma psicóloga que de fato se apropria de um posicionamento crítico

em sua atuação?

A escolha por investigar a trajetória de formação de uma estagiária e uma

supervisora se deu por considerar que o estágio profissionalizante é uma etapa de formação

que permite intensa articulação entre os conceitos práticos e a vivência teórica, tanto para o

estagiário, que se encontra no lugar de quem aprende quanto para o supervisor, que se

encontra no lugar de quem ensina. Foram entrevistadas, portanto, uma supervisora e uma

estagiária de Psicologia Escolar, vinculadas a uma Instituição de Ensino Superior pública de

Minas Gerais. Foi utilizada a modalidade da história oral temática (MEIHY, 2002), com a

realização de quatro sessões de entrevista com cada uma, sem modelo prévio de perguntas,

apenas com uma questão inicial, relativa ao objetivo de pesquisa, sobre a qual as

participantes discorreram livremente.

Dentre as principais análises dessa investigação, destacam-se os seguintes

aspectos: a mediação como processo imprescindível tanto para as escolhas profissionais

quanto para a aprendizagem teórico-prática, indicando que a aprendizagem de um conceito

científico e de um fazer profissional são constituídos intrinsecamente a partir da dimensão

social; a aprendizagem não decorre de uma lógica linear ou causal e, sim, dialética, sendo os

desafios encontrados no exercício da prática fundamentais para o processo de aprendizagem,

indicando que a apropriação de uma perspectiva teórica consiste em um processo vivo,

dinâmico e contínuo; a atividade prática e os estudos teóricos se mostraram nas análises

como componentes indispensáveis para a apropriação conceitual, sendo importante

considerar a unidade dialética de teoria e prática, constitutiva do processo de aprendizagem.

Além disto, ficou nítida a compreensão de que a aprendizagem de uma determinada

perspectiva, que abarca necessariamente a apropriação de conceitos científicos, depende do

conhecimento escolar, sistematizado e pedagogicamente organizado. Ainda assim, o

depoimento das participantes também indica que vivências pessoais para além do contexto da

escolarização formal são muito importantes neste processo. Por fim, o estágio

supervisionado destacou-se como atividade essencial para a apropriação de uma perspectiva

crítica em Psicologia Escolar, revelando o modo como a mediação supervisora-estagiária foi

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fundamental para a apropriação teórico-prática de uma perspectiva crítica em Psicologia

Escolar por parte da estagiária, bem como a importância das ações pedagógicas da

supervisora neste processo.

A pesquisa indicou que os professores dos cursos de graduação, os supervisores

de estágio profissionalizante, os próprios estagiários e as políticas públicas relativas ao

Ensino Superior têm importante lugar na discussão sobre a formação profissional e na busca

por um trabalho coletivo que, ao incorporar os avanços da Psicologia Escolar e Educacional,

possa concretizar esta formação de modo cientificamente respaldado, social e eticamente

comprometido.

Após o Mestrado, trabalhei por um breve período em duas instituições diferentes.

Uma delas foi um colégio de Ensino Médio e a outra, uma casa de acolhimento para crianças

e adolescentes em situação de risco. Em ambas, pude vivenciar os desafios da inserção e do

reconhecimento do trabalho do psicólogo. O colégio contava com um histórico significativo

de rotatividade dos profissionais da Psicologia que, geralmente, eram contratados em seu

primeiro emprego, como foi meu caso, e logo saíam por terem conseguido outras

oportunidades consideradas melhores ou por não se adequarem ao trabalho. Na época,

conversei com alguns colegas que já haviam trabalhado lá e ouvi relatos sobre os impasses de

constituir um serviço de Psicologia devidamente reconhecido e efetivo. Durante minha breve

passagem, meu trabalho foi no sentido de buscar problematizar junto aos pais, alunos e

profissionais da escola a ideia de um psicólogo que simplesmente diagnostica problemas e

traz soluções rápidas e simples, na tentativa de construir um espaço de diálogo, tendo o

psicólogo como parceiro para pensar junto, discutir, refletir sobre as questões do contexto

educacional. Em algumas ocasiões, houve estranhamento quanto a essa postura e, em outras,

curiosidade e apoio para conhecer mais sobre essa modalidade de trabalho. Na instituição de

acolhimento, as características e demandas eram bem diferentes, mas o posicionamento sobre

o trabalho da Psicologia era semelhante ao do colégio. Estava presente todo o tempo a

concepção de um psicólogo que tudo sabe e que deve dar respostas e, em geral, respostas que

contenham uma explicação sobre “o que a criança tem” (no sentido patológico). Nesse

trabalho pude me surpreender com um universo do humano que até então não conhecia ao

vivo: violência, miséria, negligência cruel não apenas por parte das famílias, mas (e talvez

muito mais) das políticas sociais.

Deparei-me aí com a minha insipiência na área, com um universo a ser

conhecido, compreendido... Como a Psicologia poderia contribuir no trabalho com aquelas

crianças? E com suas famílias? E com os profissionais da instituição? Recordo-me que, nesse

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período, eu sentia uma grande impotência e sofrimento, como se estivesse remando

arduamente contra a maré. Havia uma sede em mim de não ceder a visões reducionistas sobre

os alunos ou as crianças com quem lidava, mas havia também a dificuldade em encontrar

estratégias para lidar com as tensões e conflitos que surgiam. Desafios imensos, que me

fizeram compreender que, de fato, a formação é um processo contínuo atrelado aos desafios

que a vivência profissional inscreve. Nesse mesmo semestre de crises e conflitos na estreia

como psicóloga, estava me preparando para me casar em poucos meses. Então, acabei

tomando a decisão de me ausentar destes dois empregos neste período de intensas mudanças.

Hoje, penso que foi a decisão possível para o momento e que estive por um período muito

curto em cada instituição. O trabalho do psicólogo requer tempo e disponibilidade para

compreender e elaborar as tensões e contradições inerentes à condição humana,

especialmente quando trabalhamos com instituições educacionais.

Em agosto de 2013, meu esposo foi transferido para São Joaquim de Barra (SP).

Começar a vida em uma nova cidade me fortaleceu para pensar em novos projetos e buscar o

que já era meu interesse – ingressar no curso de Doutorado, dando continuidade a minha

formação como docente e pesquisadora, carreira com a qual tanto me identifico.

Decidi prestar o processo seletivo da Universidade Estadual de Campinas,

considerando minha admiração pelo trabalho da Professora Ana Aragão, que conheci por

estudar seu trabalho de Doutorado (SADALLA, 1998) na Graduação e Mestrado e também

pessoalmente, durante uma palestra conferida por ela em Uberlândia em 2010, por intermédio

da minha orientadora de Mestrado, que foi sua aluna de graduação. Concomitantemente,

prestei o processo seletivo de Doutorado do Instituto de Psicologia da Universidade de São

Paulo e fui aprovada nas duas instituições. Tive dúvidas em qual delas escolher e minha

decisão pela Unicamp foi em decorrência especialmente do dia da entrevista, última etapa do

processo seletivo. Jamais esquecerei a leveza e o afeto com que fui acolhida nesse dia pela

Profª Ana Aragão, pela Profª Adriana de Carvalho Koyama e pelo Profº Guilherme do Val

Toledo Prado, membros do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada

(GEPEC). Ao me recordar daquele momento, tive certeza da minha escolha pela Unicamp e

de que esse seria o início de uma viagem incrível e instigante, principalmente por estar em

um campo diferente da minha formação inicial.

Agradeço imensamente à Ana por ter me aceito em sua vida. Com ela, aprendo a

cada dia o valor do trabalho coletivo e da indissociabilidade teoria e prática, pessoal e

profissional. Com ela sei que tenho apoio não apenas para a Tese, mas para qualquer situação

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que precisar sei que serei acolhida por inteira e incondicionalmente. Como costumamos dizer

desde o início do Doutorado: “somos uma dupla”!

E assim tem sido. Ao final desse percurso, encontro-me encantada pela

diversidade de áreas de formação, teorias e pesquisas que encontro na Faculdade de

Educação da Unicamp. O diálogo intenso com colegas e docentes nas disciplinas, no grupo

de pesquisa e nos corredores da Faculdade foram valiosos para minha formação.

Continuo como viajante que tem a Psicologia Escolar e Educacional como uma

grande companheira, buscando entender os dilemas, desafios e possibilidades que os

profissionais que trabalham com demandas educacionais vivenciam em seus cotidianos de

trabalho. No segundo semestre de 2014, para a produção do material empírico da Tese,

propus um Curso de Difusão Científica vinculado à Escola de Extensão da Unicamp

(EXTECAMP) voltado para a formação de profissionais que trabalham com demandas

educacionais. Mais que sujeitos de pesquisa, encontrei grandes parceiros de profissão. Para

muito além de um mero fornecimento de informações, construímos um espaço de

desenvolvimento profissional, em que foi possível partilhar angústias, dúvidas, ideias, afetos

e encontrar algumas possibilidades, a partir das vivências levadas por cada um. É a partir da

vivência com este grupo que tecerei as análises desta Tese.

Ao contar minhas histórias nessas breves linhas, questionei-me em alguns

momentos: quais serão os entendimentos de quem as lerá? Que filme se passa por entre estas

linhas e parágrafos? Ficou alguma cena importante de fora? Será que fui explicativa demais?

Obscura demais? Penso que fiz escolhas e teci a escrita possível para esse momento. Fui

capturada pelos clarões que surgiram na memória, colocando no papel o que acredito ser

importante partilhar com que lerá estes escritos. Ainda me encanto e não acho palavras

conclusivas para explicar como e por que motivo a Psicologia e a Educação tornaram-se

dimensões tão importantes em minha vida. Estas serão perguntas que, para além de respostas,

me instigam a seguir em frente. Finalizo, então, com um pequeno poema que fiz no X

Congresso de Psicologia Escolar e Educacional de que participei em 2011, certa da

impossibilidade de finalizar uma história ainda em curso, mas nutrida com indícios de que

estou no caminho possível:

Mais um encontro com a Psicologia Escolar, a mesma emoção de tantos outros. Emoção inquieta. Desejo, paixão. Pathos. Ser tombado. É assim que me jogo ainda tão criança, tão perdida, tão encontrada, nesse jeito transformador de ser.

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2. Fundamentação teórica: apresentando os parceiros de viagem

No percurso de construção de uma Tese, nunca estamos sozinhos. A voz do

pesquisador sempre traz interlocutores, que ajudam a compor sentidos e entendimentos. Esses

parceiros de conversa são como melhores amigos que toparam uma grande aventura ao nosso

lado, tornando o trajeto mais leve, permeado por uma prosa boa e instigante. Na companhia

deles, a viagem certamente resultará em ótimas lembranças. Apresento, neste capítulo,

inseparáveis companheiros de viagem que seguiram comigo pela estrada, segurando-me pela

mão, ajudando-me a contemplar as paisagens de modo que, ao final, contássemos boas

histórias sobre o que vivenciamos juntos.

Na primeira parte, apresento uma breve análise histórica sobre a Psicologia

como ciência e profissão, seguida por uma discussão sobre a Psicologia Escolar e

Educacional, em especial no contexto brasileiro, a fim de refletir sobre possibilidades,

avanços, lacunas e caminhos a percorrer e discuto o trabalho com demandas educacionais

como campo comum não só a psicólogos, mas a toda uma rede de profissionais.

Adiante, trago uma reflexão sobre a formação do psicólogo para atuar na

Educação, a partir de uma revisão bibliográfica e em seguida, apresento a temática do

desenvolvimento profissional e a proposta dos grupos colaborativos, ampliando a revisão de

literatura para compreender como a dimensão colaborativa tem sido abordada no campo do

desenvolvimento profissional na área educacional.

Por fim, apresento a Teoria Histórico-Cultural, a partir das contribuições de

Lev S. Vigotski, discutindo a concepção de desenvolvimento humano que fundamenta a Tese

e definindo os conceitos-chave para as análises do material empírico.

2.1 Psicologia ciência e profissão: aspectos históricos e relações com o campo educacional

A Psicologia é uma ciência relativamente recente, que apresenta uma função

social importante, pois, desde seus primórdios, tem se dedicado a compreender e atuar sobre

questões humanas. Para entender o lugar dessa ciência como campo diretamente envolvido

com o ser humano em seus mais diversos contextos e problemáticas é importante discutir seu

processo histórico de surgimento e de desenvolvimento, assinalando os avanços conquistados

e também os desafios que ainda temos pela frente. Como afirma Antunes, 2007:

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(...) os problemas do presente e os que vislumbramos para um futuro próximo impõem à Psicologia tarefas cada vez maiores e mais desafiadoras; disso decorre a imperativa necessidade de reflexão sobre seu significado e sua responsabilidade na construção do devir histórico. (ANTUNES, 2007, p. 9)

Os problemas referidos pela autora no trecho destacado são incontáveis. Vivemos

em um contexto permeado por contradições gritantes. Se por um lado, contamos com

inovações tecnológicas nunca antes imaginadas, por outro ainda não conseguimos superar

condições de degradação humana que nos assolam há tanto tempo, como a miséria, a

violência, o acesso desigual a direitos básicos de saúde e de educação. Mas, afinal, o que a

Psicologia tem a ver com isso? Como pontua Paulo Freire, a Educação sozinha não consegue

mudanças, mas sem ela a sociedade é incapaz de se transformar. Considero que podemos

dizer algo semelhante sobre a Psicologia, afirmando que ela tem muito a contribuir com o

processo de transformação social, ainda que seja apenas um dentre tantos outros

conhecimentos necessários.

Apesar de sua inquestionável importância, a história de surgimento da Psicologia,

tanto em nível mundial quanto no Brasil, apresenta contradições que merecem destaque. De

acordo com Figueiredo (1989/2012), o interesse pelo estudo do sujeito nasce com a ciência

moderna, a partir da Revolução Industrial na Inglaterra e Alemanha e da Revolução Francesa,

em uma conjuntura histórica, social e econômica que permitiu uma mudança de pensamento

e de prática: entre os séculos XVII e XVIII já se nota uma mudança na concepção de sujeito e

de conhecimento – o sujeito não apenas contempla o mundo, mas pensa racionalmente sobre

ele e é capaz de transformá-lo, além disso, há a emergência da ideia de subjetividade, uma

vez que neste momento a comunidade e a religião não mais definiam os papeis sociais de

forma tão imperativa, mas estes passaram a ser definidos a partir das relações e de uma luta

por interesses individuais, conjuntura que contribuiu com o surgimento da ideia de indivíduo,

que possui características e funcionamento próprio.

Ainda que o interesse pelos fenômenos psicológicos tenha surgido principalmente

com o advento da idade moderna, o nascimento oficial da Psicologia científica é datado do

final do século XIX, a partir dos estudos e da criação do laboratório experimental fundado

por Wundt, na Alemanha. Segundo Figueiredo e Santi (1991/2008), Wundt tinha interesse

também pela Psicologia Social, por meio de estudos que consideravam a cultura como fator

importante, porém acabou ficando mais conhecido por seus estudos experimentais, fundando

os primórdios da Psicologia como ciência que, de acordo com Gimenez (2011) desenvolveu-

se baseada nos mesmos fundamentos que legitimavam as ciências naturais da época –

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empirismo, racionalismo, mecanicismo – para ganhar visibilidade e status de ciência, com o

objetivo de controlar, mensurar, criar leis e explicações universais para o psiquismo humano.

Barbosa, D. (2011) acrescenta que este surgimento decorre também da ampla

expansão capitalista que ocorria nesse mesmo período. Em meio ao intenso crescimento

urbano a partir do processo de industrialização, a Psicologia apresentou-se como um dos

campos de saber privilegiado sobre o psiquismo humano, auxiliando principalmente na

seleção de trabalhadores, ao mensurar habilidades e capacidades mentais, indicando as

pessoas aptas para cada função. Assim como outros campos do saber e atuação profissional

que nasceram e se fortaleceram nessa conjuntura, a Psicologia é apontada por Patto (1984)

como cúmplice da ideologia capitalista, uma vez que colaborava diretamente para a

adaptação do ser humano a uma conjuntura de exploração e alienação. Por outro lado, essas

foram as condições possíveis para que a Psicologia emergisse naquela época, o que também

beneficiou a sociedade, a partir do início de um esforço por compreender de forma mais

profunda os processos psíquicos.

Na dimensão científica e intelectual, a Psicologia foi construída sobre alicerces

positivistas, que valorizavam a neutralidade científica e demais premissas próprias das

ciências naturais. Havia o interesse em mensurar e descrever o funcionamento psíquico a

partir de experimentos em laboratório, de forma mecânica e com base fundamentalmente nos

aspectos biológicos. Essa escolha metodológica decorre principalmente da tentativa de

conferir credibilidade à Psicologia dentro dos padrões da época, buscando distanciar esse

campo da Filosofia e de outras vertentes metafísicas (PATTO, 2007, ANTUNES 2007,

BARBOSA, D., 2011).

Desde seu nascimento com a ciência moderna, diversas escolas e abordagens

teóricas se desenvolveram no campo da Psicologia, de modo que poderíamos nomear esta

ciência no plural, afirmando haver não apenas uma, mas várias ‘Psicologias’, como apontam

Bock, Furtado e Teixeira (1999). Os autores indicam que essa diversidade de

posicionamentos teóricos decorre tanto por a Psicologia ser uma ciência recente e ainda em

pleno processo de constituição de seu escopo, quanto pelo fato de que o estudo dessa ciência

envolve, necessariamente, as concepções de mundo e de ser humano do próprio pesquisador,

o que abarca jeitos diferentes de compreender um mesmo objeto.

Figueiredo (1989/2012) acrescenta que no projeto de afirmar a Psicologia como

ciência podemos identificar duas matrizes básicas. Além das correntes que tentavam se valer

do método positivista e das ciências naturais para se afirmarem, como no caso da Psicologia

Experimental de Wundt, surgiram também matrizes subjetivistas que buscavam o

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reconhecimento da especificidade do objeto estudado, abrindo mão das exigências do que era

considerado “científico” e enfrentando, assim, graves rejeições por parte da comunidade

intelectual, por exemplo, as perspectivas humanistas e fenomenológicas e a psicanálise. Uma

análise atual indica que a vertente subjetivista apresentou ao longo do tempo um vertiginoso

crescimento e visibilidade. Segundo Furtado (2012), a hipervalorização dos processos

subjetivos se transformou, inclusive, em um promissor mercado de consumo, com a

propagação de livros de autoajuda e programas de talk-show e reality show, dando

visibilidade a uma dimensão da Psicologia não como ciência, mas como espetáculo.

Como já sublinhado, a Psicologia, ainda hoje, apresenta uma composição diversa,

em que ora as concepções teóricas dialogam e ora se afastam, ocupando polos opostos e

ainda mantendo muitas vezes as posições dicotômicas que estão presentes desde o seu

surgimento – ora o foco só na subjetividade, ora o foco somente no meio, ora cindindo

cognição e emoções, corpo e mente – de modo a desconsiderar de forma recorrente as

relações mais complexas entre as diversas instâncias que constituem o ser humano. Vigotski

(1927/2004) discutiu essa questão, ao escrever o manuscrito O significado histórico da crise

na psicologia, indicando preocupação quanto aos embates entre diferentes correntes teóricas

e à dificuldade dessas abordagens em, de fato, explicarem os fenômenos psíquicos, ao invés

de meramente descrevê-los olhando apenas para uma dimensão ou fator. Figueiredo

(1989/2012) nos lembra de que o fundamental, ao olhar para toda essa diversidade de

abordagens, é exercitarmos um olhar questionador sobre uma ou outra, compreendendo suas

raízes históricas, culturais, bem como os motivos pelos quais foram desenvolvidas.

Semelhante à trajetória mundial da Psicologia, no Brasil, ela apresenta também

uma configuração interessante, pois, mesmo tendo sido regulamentada como profissão

somente em 1962, o interesse pelos conhecimentos psicológicos já entremeava o país desde

os tempos de colônia portuguesa (ANTUNES, 2007). Cabe ressaltar, em especial, que a

Educação desde o início teve lugar fundamental para o desenvolvimento da Psicologia,

servindo como um dos mais férteis terrenos para que essa disciplina se tornasse uma

profissão.

Já existiam indícios, no Brasil colônia, de um interesse pelos fenômenos

psicológicos. Há registros de trabalhos que abordavam essa dimensão de um ponto de vista

religioso ou moral, decorrente do processo de ensino da cultura católica europeia a índios e

colonos brasileiros, por meio dos jesuítas. Dentre os temas que comparecem em algumas

obras deste período, há, por exemplo, o interesse pelas emoções, autoconhecimento,

sensações e sentidos, educação de crianças e o papel da mulher. O amplo comparecimento de

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temáticas ligadas a processos educativos e moralizantes é coerente, considerando que nossa

colônia visava claramente à exploração de recursos naturais e humanos para enriquecimento

da metrópole. Portanto, fazia-se necessário ‘doutrinar’ os nativos e demais trabalhadores, a

fim de facilitar o processo opressivo (ANTUNES, 2007).

O século XIX é marcado pelo fim da condição de colônia, ainda que o país tenha

continuado sob as égides do império português. Contudo, esse período conta com grandes

mudanças na sociedade brasileira, principalmente a expansão do ensino e das instituições de

saúde, por meio da criação de escolas, universidades e hospitais. O surgimento dessas

instituições também estava diretamente ligado aos graves problemas decorrentes do processo

de urbanização, industrialização e expansão capitalista, que acabou por intensificar velhos

problemas e criar outros, para os quais eram necessárias soluções, convidando principalmente

a Medicina e a Educação para resolvê-los. Por trás das soluções apontadas pela Medicina

para resolver problemas como doenças, fome, mortalidade, causados pela urbanização, havia

um ideal higienista e de imposição moral, normalizando condutas e reprimindo

comportamentos considerados inadequados. Essas práticas foram propagadas nas escolas, que

foi alvo de intervenções higienistas na época, por meio de ações que buscavam testar,

classificar e rotular os alunos de acordo com os padrões considerados aceitáveis.

Antunes (2007) destaca que por trás do importante avanço com a criação de

instituições educacionais, havia o forte interesse pela formação profissionalizante de mão de

obra em detrimento de uma preocupação genuína com a produção de conhecimento. Ainda

assim, é inegável que esse momento marcou o crescente interesse pelo campo psicológico,

que a partir daí passa a comparecer em instituições como as Escolas Normais e os centros de

pesquisa em Educação, para estudar e compreender o processo de aprendizagem dos alunos.

No entanto, os fundamentos teóricos que sustentavam as pesquisas em Psicologia nesse

momento eram fundados em concepções positivistas, inspirados nos modelos advindos da

Europa e Estados Unidos. Os testes psicológicos eram usados tanto para selecionar

trabalhadores e homens para trabalharem no exército, quanto para classificar alunos quanto

ao nível de aprendizagem. Barbosa, D. (2011) ressalta que há registros de que os

psicologistas21 da época produziam e aplicavam testes em larga escala nas escolas, a fim de

classificar os alunos de acordo com habilidades específicas e assim colaborar com o trabalho

do professor. Era no interior das Escolas Normais que os primeiros laboratórios de Psicologia

21 Segundo a autora, havia profissionais que estudavam e exerciam a função de aplicação de métodos e técnicas psicológicas, mas que por não haver ainda a regulamentação da profissão de psicólogo, podem ser denominados ‘psicologistas’.

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surgiram com o principal propósito de realizar pesquisas e desenvolver instrumentos e

técnicas psicométricas, fato diretamente ligado às origens da Psicologia Escolar no Brasil

(PFROMM NETTO, 1996).

Pelos fatos enunciados, há indícios de que a Psicologia, no Brasil, surge

imbricada no campo educacional e pautada em concepções de medida e testagem,

desconsiderando o contexto mais amplo envolvido nos processos educacionais. A história,

porém, não é linear e apresenta contradições. Assim, vale destacar que este período de

construção de uma Psicologia Científica no Brasil também apresentou práticas contrárias à

mera aplicação de testes, como, por exemplo, as contribuições de Manoel Bonfim, que

defendia que a difusão da Educação como “um instrumento contra a opressão e não

simplesmente meio para superar o atraso econômico” (ANTUNES, 2007, p. 65) e de Helena

Antipoff, que contribuiu com importantes estudos e práticas voltadas para a Educação

Especial.

Somente em 1962, com a Lei 4.119, a Psicologia foi regulamentada como

profissão no Brasil, ocasionando a adequação dos currículos de cursos que já ofereciam uma

formação em Psicologia e a criação de tantos outros. Em entrevista, Arrigo Angelini

(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012), que tem o primeiro registro no

Conselho Regional de São Paulo e que participou ativamente do processo de criação da Lei

4.119/62, comenta que inicialmente houve resistência da comunidade médica quanto ao tipo

de atividade que poderia ou não ser exclusiva do psicólogo. Nesse primeiro momento,

decidiu-se que a psicoterapia e outras práticas clínicas não entrariam no rol de especificidades

do psicólogo, elegendo como função privativa do psicólogo a utilização de métodos e

técnicas psicológicas. Além do longo histórico de embate com o campo da Medicina que aí já

aparece e perdura até os dias atuais, esse fato também revela que houve uma restrição das

possibilidades de intervenção do psicólogo, por vezes interpretada como se a única

especificidade deste profissional fosse ‘aplicar testes’. Aqui pergunto: que elementos dessa

história carregamos ainda hoje? Quais avanços foram possíveis e quais ainda temos a

alcançar?

É fato que a Psicologia tem conquistado cada vez mais espaços de atuação: hoje

temos psicólogos em instituições de saúde em seus vários níveis de atendimento, em espaços

jurídicos, na assistência social, no esporte e em tantos outros campos envolvem atividades

humanas. Porém, ao olhar para a seara educacional, percebemos que, apesar de seu inegável

destaque, o psicólogo foi afastado das escolas com o passar dos anos, passando a atender

essas demandas em outros espaços vinculados principalmente ao campo da saúde. Souza e

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Rocha (2008) indicam que as práticas adaptativas, meramente pautadas em princípios

clínicos e diagnósticos foram o principal motim desse distanciamento:

A hegemonia que foi fortalecida nas práticas do psicólogo do pensamento de que o profissional de psicologia pertencia somente à área da saúde e com uma abordagem que não contempla o âmbito da complexidade do processo institucional, enfraqueceu outras áreas de atuação existentes, como por exemplo, a educacional. (SOUZA & ROCHA, 2008, p. 32)

Considerar esses elementos nos ajuda a pensar que ainda temos muito a caminhar.

Como conquistar novamente o espaço no campo educacional a partir de um lugar outro que

não aquele da mera aplicação de testes para classificar e rotular alunos? De um lugar que

possa convidar os profissionais da escola a uma parceria, em que os saberes não se

hierarquizam, mas se entrelaçam para pensarem juntos a Educação? Apesar de ainda serem

hegemônicas concepções e ações individualizantes que não consideram a complexidade dos

fenômenos psicológicos, em especial no campo educacional, há esperanças de rupturas que se

encontram em curso, principalmente a partir surgimento de um movimento na Psicologia

Escolar e Educacional que decidiu olhar para essa história, reconhecendo lacunas e

contradições, para buscar novos rumos, comprometidos com um olhar crítico e transformador

sobre os processos educacionais. A seguir, alguns conceitos e reflexões sobre a Psicologia

Escolar e Educacional em uma vertente crítica.

2.2 Considerações sobre a Psicologia Escolar e Educacional

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

– Para que serve a utopia?, Eduardo Galeano –

Com a regulamentação da profissão de psicólogo em 1962, houve uma forte

expansão de cursos universitários para formação deste profissional, além de um aumento de

oportunidades de trabalho em diversos campos, dentre eles na escola (PFROMM NETTO,

1996; ANTUNES, 2003a). Na história da Psicologia Escolar e Educacional brasileira, este

período desencadeou importantes acontecimentos, como a introdução da disciplina de

Psicologia Escolar nos currículos, a criação da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e

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Educacional (ABRAPEE)22 e também a emergência de congressos na área, como, por

exemplo, o Congresso de Psicologia Escolar e Educacional, que em 2017 completará sua 13ª

edição.

Antunes (2003a) destaca, ainda, que nos primeiros anos de regulamentação da

profissão, a formação do psicólogo escolar focalizava o atendimento individual e a visão do

aluno como cerne dos problemas de aprendizagem, práticas que não contribuíram

efetivamente para resolver os problemas educacionais, levando, como já apontado na seção

anterior, ao afastamento desse profissional do chão da escola. Insatisfeitos com estas

concepções e posturas, em meados de 1970 psicólogos e educadores iniciam uma

problematização ao modo como a Psicologia vinha compreendendo e intervindo no campo

educacional.

A obra de Patto (1984) Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à

psicologia escolar é um dos importantes marcos deste movimento que denuncia as práticas e

concepções a serviço do mero controle e classificação dos alunos quanto à aprendizagem,

defendendo que os fatores históricos, sociais, culturais e políticos devem ser considerados na

análise das questões educacionais. Desde então, pesquisas e propostas de atuação têm

composto o referido movimento, configurando o que se pode denominar como uma

perspectiva crítica em Psicologia Escolar e Educacional. A partir desse marco, houve uma

intensa produção teórico-prática sobre esse assunto, como podemos perceber a partir de

referências como: Patto (1996, 2005); Machado e Souza, M. (1997); Bock (1999);

Tanamachi, Proença & Rocha (2000); Meira & Antunes (2003a, 2003b); Viégas e Angelucci

(2006); Martínez (2007); Souza, B. (2007); Araujo e Almeida (2008), Azzi e Gianfaldoni

(2011); Meira (2012); Guzzo (2007; 2014).

Esta perspectiva afirma que as concepções individualizantes enraizadas no modo

tradicional de atuação da Psicologia Escolar não conseguiram colaborar efetivamente para o

desenvolvimento do contexto educacional. Um dos exemplos mais contundentes disso é

quando o psicólogo é chamado a atender um “aluno que não aprende” e procede com

diagnósticos e intervenções que acabam por atribuir as dificuldades de escolarização somente

a problemas intrínsecos ao sujeito, contribuindo para a exclusão do aluno em questão, por

meio da mera atribuição de rótulos diagnósticos que produzem estigmas e preconceitos,

ignorando a rede de relações e determinações que compõem as dificuldades no processo de

aprendizagem: família, escola, políticas educacionais, contexto social. Tanamachi (2014) 22 http://abrapee.wordpress.com/

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assinala que a postura classificatória na prática do psicólogo escolar é infrutífera, pois

conforma e imobiliza a busca por superações da condição de não aprendizagem. Não basta

perguntar “por que não aprende?”, mas é preciso compreender profundamente as condições e

contexto de surgimento de uma dada queixa para, assim, buscar possíveis caminhos.

Quando voltamos nosso olhar para as questões educacionais a partir de uma

perspectiva mais ampla, percebemos que por trás da emergência de tantas demandas de

‘alunos que não aprendem’ há um cenário de profunda desigualdade social, permeado pela

mercantilizarão do ensino e das relações, no qual:

Viver o cotidiano da escola tem sido viver o desalento de um processo adaptativo e domesticador em relação ao mundo. Pouco se conhece acerca das crianças que a frequentam. Pouco se faz pelas possibilidades de transformação coletiva e individual, enfim, tem-se a visão de um imenso espaço onde as pessoas não aparecem como sujeitos e, portanto, não se pode transformar. (GUZZO, 2007, p. 19)

Porém, ao mesmo tempo em que a Educação se apresenta como parte do aparato

de exclusão e promoção da desigualdade social, ela também comparece dialeticamente como

espaço privilegiado para propor uma superação dessa realidade. Guzzo (2007) pontua que,

para que isso se efetive, é necessário um amplo processo de conscientização e de ações que

promovam a responsabilização, a autonomia e a libertação dos sujeitos envolvidos no

processo educativo.

O panorama de mudanças teórico-práticas no campo da Psicologia Escolar e

Educacional tem indicado que o psicólogo pode ser um grande parceiro nesse processo de

transformação, desde que paute sua atuação em um compromisso social, por meio de esforços

para que a Educação seja uma instância que respeite e promova os processos de

aprendizagem e desenvolvimento, a inclusão social, a diversidade e os direitos humanos. Para

isso, é fundamental que o psicólogo rompa com o lugar de detentor do conhecimento,

subjugando ou desvalorizando os saberes docentes, assumindo um posicionamento

colaborativo, no qual possa, a partir dos conhecimentos específicos do campo da Psicologia,

ajudar professores, alunos, famílias e demais sujeitos a compreenderem o processo de

produção das demandas educacionais:

O psicólogo é o mediador no processo de compreensão e elaboração das condições necessárias para a superação da queixa/demanda, mediação necessária à superação das histórias de fracasso e/ou sucesso. (...) A queixa/demanda é entendida como síntese de múltiplas determinações, portanto, a superação das condições nas quais se apresentam depende de

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uma ação comprometida e consciente de todos os envolvidos, mediada pelo psicólogo. (TANAMACHI, 2014, p. 178)

Em suma, um posicionamento crítico não significa a depreciação de um

conhecimento em detrimento de outro, mas, como recordam Foracchi e Martins (1977),

implica em ir à raiz de um dado conhecimento, buscando as determinações históricas das

concepções que o sustentam. Concordo com as definições de Meira (2012) sobre as

características de um pensamento crítico na Psicologia, pautadas em conceitos marxistas,

que, para além de um mero discurso, devem implicar em ações transformadoras da realidade.

São elas: a) reflexão dialética, a partir da compreensão de que os fenômenos psicológicos

devem ser compreendidos em seu processo de movimento e transformação, constituídos por

múltiplas determinações b) crítica do conhecimento, compreendendo que a produção de

saberes é determinada pelas relações sociais de produção e que, portanto, é preciso

compreender suas raízes histórias e desvelar os compromissos ideológicos que assumem; c)

denúncia da degradação, da alienação e da heteronomia humana impostas pelo modo de

produção capitalista, buscando desvelar todo e qualquer processo que impede o

desenvolvimento autônomo e digno do ser humano, criando possibilidades para a construção

de uma sociedade mais igualitária.

Ao delinear alguns princípios e defender a premência por um posicionamento

crítico, cabe questionar: quem é o psicólogo escolar? Defendo que essa acepção não deve se

restringir a um local específico de trabalho ou a uma simples especialidade, mas a toda

atuação no campo da Psicologia que articule de algum modo o trabalho com demandas

educacionais. Aqui vale um adendo sobre esse termo. No início da profissionalização da

Psicologia, entre as décadas de 1960 e 70, era comum a nomenclatura Psicologia do Escolar

ou ainda problemas de aprendizagem, terminologia ainda popular atualmente e que denotam

que as questões emergentes no contexto escolar estariam alocadas em uma patologia ou

dificuldade inerente ao aluno. Barbosa, D. (2011) ressalta que com a emergência do

movimento de crítica às práticas de ajustamento e culpabilização dos alunos deu origem a

novos termos, dentre eles, fracasso escolar (PATTO, 1996) e queixa escolar (MACHADO,

1997; SOUZA, 2007), indicando que as problemáticas que surgem na escola têm uma

dimensão institucional e não somente individual e devem ser tratadas considerando todo o

contexto de relações que a compõe.

Em publicação de 2008, o Conselho Federal de Psicologia (CONSELHO

FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008) reitera que as possibilidades de atuação do psicólogo

no campo educativo se estendem a diversos tipos de instituições: escolas, abrigos, centros

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socioeducativos; abrangendo variados níveis de ensino: infantil, fundamental, médio,

superior, profissionalizante. Isso reitera que a atuação deste profissional não se define pelo

local físico de trabalho, mas pelo tipo de demanda com a qual lida e, acima de tudo, a partir

do compromisso teórico-prático deste profissional com as questões educacionais, a partir de

um olhar ético e político (TANAMACHI & MEIRA, 2003, CRUCES, 2007).

Ainda assim, considero fundamental explicitar o termo Psicologia Escolar e

Educacional, assegurando esse campo como legítimo e necessário, em busca de espaços de

atuação cada vez mais próximos das instituições educacionais. Afirmar o lugar da Psicologia

Escolar e Educacional não significa isolar esse campo como uma especialização da

Psicologia, mas destacar que a dimensão educativa comparece em uma infinidade de

contextos humanos e merece atenção especial. A importância em afirmar os termos Escolar e

Educacional é apontada por Barbosa, D. (2011) como um modo de revelar o processo de

construção histórica desse campo na Psicologia: antes da regulamentação da profissão, já

havia o ensino e interesse por questões psicológicas no campo educacional, sendo que,

mediante o reconhecimento da profissão do psicólogo, incluiu-se o termo escolar na

nomenclatura, para denominar o campo de atuação desse profissional. A autora sugere,

inclusive, a terminologia Psicologia Educacional e Escolar, para revelar a historicidade do

processo de constituição desse campo.

Nesta Tese, opto pelo termo psicólogo que trabalha com demandas educacionais

para deixar explícita tanto a determinação social, histórica e cultural dos problemas, quer

sejam de aprendizagem, comportamento ou relacionamento interpessoal relacionados ao

aluno, família e/ou educadores que surgem em contextos educacionais ou que estejam, de

algum modo, relacionados à Educação, quanto a diversidade de contextos em que se pode

articular Psicologia e Educação, coerente com a realidade que encontrei nas participantes do

grupo, visto que apenas duas atuavam efetivamente em escolas (um participante trabalhava

em escola particular e outra em Secretaria Municipal de Educação).

O interesse de outros profissionais sobre o tema atendimento a demandas

educacionais deu destaque para o importante fato de que a queixa que surge na escola quase

nunca é atendida diretamente um psicólogo escolar e somente por ele. Aliás, como já

comentado anteriormente e afirmado em pesquisa sobre a atuação do psicólogo na rede

pública de educação (SILVA, SOUZA & YAMAMOTO, 2014), há poucos psicólogos

escolares efetivamente trabalhando na rede educacional. É importante ressaltar que a queixa é

atendida por uma rede de profissionais – se olharmos para as escolas públicas, por exemplo,

geralmente o professor identifica um problema no aluno, que é discutido e atendido pelos

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educadores da própria instituição, a família é chamada e, se considerarem necessário,

encaminham este aluno para a rede de saúde ou assistência social, onde será atendido por

psicólogos, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas e outros profissionais, muitas vezes de

forma restrita a uma perspectiva individualizante de avaliação e diagnóstico psicológico,

desconsiderando a dimensão institucional de surgimento da queixa (GIMENEZ, 2011;

ROSA, 2011).

Em decorrência dessa rede que sustenta os encaminhamentos das demandas

educacionais e diante da diversidade não só de psicólogos, mas também de outros

profissionais que participaram do grupo colaborativo, amplio este termo na Tese para

profissionais que atuam com demandas educacionais, em consonância com Aragão (2010)

que defende que a Psicologia sozinha não é capaz de dar resposta a todas os problemas da

escola, não porque não seja competente o suficiente, mas porque não consegue elaborar todas

as perguntas que podem surgir. Defendo, portanto, que o psicólogo seja parceiro de outros

profissionais e que busquem juntos diversas áreas do conhecimento para dar conta das

demandas emergentes.

A partir desses postulados, reitero meu compromisso, nessa Tese, com Psicologia

Escolar e Educacional, em busca de uma atuação crítica junto às demandas educacionais, em

diversos contextos e em parceria com outros profissionais.

A seguir, apresento algumas reflexões sobre a formação do psicólogo para

trabalhar no campo educacional e na seção seguinte apresento a temática do desenvolvimento

profissional em uma dimensão colaborativa, oferecendo uma revisão bibliográfica sobre o

assunto.

2.2.1 A formação do psicólogo para trabalhar om demandas educacionais: impasses e

desafios atuais

Como já posto anteriormente, a Psicologia é uma profissão nova, regulamentada

em 1962 (Lei 4.119/62). Seu crescimento, no entanto, tem sido vertiginoso: um levantamento

no site do Ministério da Educação23 indica que, em 2017, há 699 cursos de Psicologia

credenciados, entre instituições públicas e privadas. O censo realizado em 2014 pelo Instituto

Brasileiro de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) indica que houve

20.663 concluintes em cursos de Psicologia no Brasil, ocupando o 9º lugar como o curso com 23http://emec.mec.gov.br/

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maior número de egressos do país. Em dados de 2017, o Conselho Federal de Psicologia

informa que o país possui, no momento, 291.373 psicólogas (os) registrados24.

A pesquisa “Quem é o psicólogo brasileiro” (BASTOS & GOMIDE, 1989)

apontou que a área mais escolhida como atuação profissional era a clínica particular, por

meio de atendimentos individuais. As áreas educacional e organizacional vinham em segundo

e terceiro lugar, respectivamente. Um dado interessante é que a área escolar, em geral, era

escolhida por motivações pessoais, mas abandonada por condições precárias de trabalho, em

especial de remuneração. Em pesquisas mais recentes (CRUCES, 2007; BASTOS &

GONDIM, 2010), a Psicologia Escolar e Educacional continua como um campo importante

de inserção do psicólogo, mas ainda atrás da área clínica. Apesar de a Psicologia Escolar

ainda ser uma das importantes áreas de inserção profissional, a investigação sobre a atuação

do psicólogo na rede pública de Educação (SILVA, SOUZA & YAMAMOTO, 2014) revela

que, de fato, há poucos psicólogos inseridos na Educação e que aqueles que lá se encontram

não raro desconhecem as especificidades do trabalho com demandas educacionais e acabam

desenvolvendo práticas relacionadas à atuação individual, sugerindo lacunas em sua

formação inicial.

Cruces (2007) desenvolveu uma pesquisa com os egressos nos cursos de

Psicologia em todo o país, com o objetivo de compreender seus interesses, inserção no

mercado de trabalho e práticas desenvolvidas. Os resultados apontaram que a maioria atua na

área clínica e da saúde, em segundo lugar fica a área organizacional e do trabalho e a

educação foi a terceira maior área de atuação, dado que reforça a relevância da Psicologia

Escolar. Além destas, houve outros campos de trabalho sugeridos em menor intensidade

pelas participantes: institucional e social; acadêmica e de pesquisa; do esporte; do trânsito;

jurídica e criminal. A pesquisa ainda revelou um dado curioso: a maioria das participantes

que não trabalha na área escolar e educacional indicou que, se houvesse oportunidade e boas

condições de trabalho, teria interesse em atuar nesta área.

Souza e Rocha (2008) ressaltam que as próprias práticas psicológicas adaptativas

e pautadas em um modelo médico acabaram por afastar este profissional da Educação,

realocando-o no campo da Saúde e enfraquecendo atuações institucionais. A partir

principalmente das mudanças desencadeadas pela Psicologia Escolar crítica, há uma busca

dos profissionais e pesquisadores por reverter este cenário e conquistar políticas públicas

24As informações sobre o número de egressos em cursos de Psicologia, o número de psicólogos com registro ativo no Brasil e no estado de São Paulo foram obtidas por consulta ao site do INEP e do Conselho Federal de Psicologia, em 2017.

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efetivas para inserção do psicólogo no âmbito educacional, o que é uma luta necessária e

ainda em curso. Um projeto do ano 2000 (PL 3688/2000) previu a inclusão de psicólogos e

assistentes sociais na rede pública de Educação Básica; somente em 2013 o projeto foi

aprovado pela Câmara dos Deputados. A Associação Brasileira de Psicologia Escolar e

Educacional merece destaque aqui, uma vez que tem militado na promoção de condições para

o reconhecimento legal da necessidade do trabalho do psicólogo no âmbito educacional. Em

maio de 2015, a ABRAPEE participou de uma audiência na Câmara dos Deputados,

juntamente com o Conselho Federal de Psicologia e a Associação Brasileira de Ensino de

Psicologia (ABEP) e outras entidades regionais da categoria. Nessa ocasião, houve a

aprovação do parecer sobre o projeto de lei pela Câmara de Constituição e Justiça e de

Cidadania (CCJC)25, que agora aguarda apreciação no Plenário. A importância de que o

psicólogo ocupe efetivamente estes espaços está principalmente na parceria que pode ter com

educadores, famílias e alunos, promovendo diálogos e reflexões que contribuam para a

qualidade das relações e para o desenvolvimento de todos os sujeitos que participam dos

processos educacionais.

Com o intuito de conhecer a atuação de psicólogos que já atuam neste campo e

propor referências técnicas, o Centro de Referência Técnica em Psicologia (CREPOP),

vinculado ao Sistema Conselhos de Psicologia, realizou, em 2009, uma pesquisa com

psicólogos que trabalham nos serviços públicos ligados à Educação Básica, para conhecer o

perfil destes profissionais e sua inserção na área (CONSELHO FEDERAL DE

PSICOLOGIA, 2013). Participaram 302 profissionais que, em sua maioria, trabalhavam

recentemente neste campo (menos de quatro anos), corroborando com a discussão anterior

sobre a deficiência de políticas públicas de inserção do psicólogo na Educação. Os

informantes destacaram como dificuldades: baixos salários, grande volume de demandas e

falta de clareza de suas atribuições no contexto de trabalho, que muitas vezes exige uma

atuação limitada ao atendimento individual de alunos, com o objetivo de diagnosticá-los.

Com o objetivo de conhecer produções contemporâneas relacionadas à formação

continuada do psicólogo, realizei, em 2014, no início do Doutorado, uma revisão

bibliográfica com artigos, Teses e Dissertações em um intervalo de dez anos [2003-2013].

Para a elaboração desse projeto, optei pela busca em dois principais bancos de dados: Scielo

(Scientific Electronic Library Online) e BVS-Psi (Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia).

25http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=20050

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Ressalto que, nesse primeiro exercício de revisão bibliográfica, não havia dado

início à produção do material empírico, portanto o foco ainda era a formação continuada do

psicólogo escolar. A importância desse levantamento foi conhecer as interlocuções dos

trabalhos recentes com a pesquisa. Por isso, considero relevante apresentar o número de

produções encontradas e realizar também uma breve análise qualitativa, indicando as

aproximações dos trabalhos com o tema investigado.

No BVS-Psi, utilizei como descritores “psicologia escolar e educacional” para

uma visão geral do que tem sido produzido na área como um todo. Para uma compreensão

mais específica, escolhi a combinação dos descritores: “psicologia escolar + desenvolvimento

profissional”; “psicologia escolar + formação do psicólogo” e “psicologia escolar + educação

continuada”. Já no Scielo, busquei somente com as combinações entre os descritores, por

considerar já suficientes para compor o projeto os trabalhos encontrados no BVS-Psi com a

palavra-chave “psicologia escolar e educacional”. A tabela abaixo indica a quantidade de

trabalhos encontrados:

Tabela 1: Artigos encontrados em bases de dados nacionais

A partir da leitura dos resumos, foram organizadas categorias, para compreender

qualitativamente a produção encontrada:

26 O valor da soma total dos artigos não confere com a quantidade por descritores, pois algumas produções se repetiram em decorrência da busca com descritores semelhantes. Portanto, no valor total, consideraram-se as entradas repetidas.

Scielo Bvs-psi

psicologia escolar e educacional

(este descritor não foi usado) 176

psicologia escolar + formação do psicólogo

7 8

psicologia escolar + desenvolvimento profissional

---

2

psicologia escolar+ educação continuada

1 3

TOTAL26 6 180

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a) Estudos teóricos: os trabalhos localizados subdividem-se em dois grupos:

revisões teóricas sobre a obra de autores da Psicologia/Educação; estudos sobre a história da

Psicologia Escolar e Educacional ou sobre concepções e direcionamentos de atuação em uma

perspectiva crítica.

b) Pesquisas sobre os processos de aprendizagem e/ou comportamento de

alunos: os trabalhos encontrados abordaram este tema de modos diversificados – em uma

perspectiva quantitativa/estatística, com o uso de testes ou escalas; em uma metodologia

qualitativa, por meio de entrevistas ou trabalhos em grupo; encontrei também pesquisas sobre

o processo de aprendizagem em crianças adoecidas/hospitalizadas.

c) Pesquisas sobre o cotidiano educacional à luz da Psicologia Escolar:

localizei investigações sobre a escola ou outras instituições educacionais, analisadas por meio

do referencial da Educação e/ou da Psicologia Escolar e Educacional. Os assuntos abordados

foram: currículo; avaliação; relação família-escola; relação professor-aluno; relação

professor-supervisão/gestão escolar; estudos sobre o cotidiano da sala de aula, sobre a prática

do professor; investigações sobre educação inclusiva.

d) Relatos e reflexões sobre a atuação do psicólogo em contextos

educacionais: os trabalhos encontrados abordaram discussões sobre as práticas de estagiários

e psicólogos em escolas e instituições de educação não formal, nos seguintes níveis de

ensino: educação infantil, ensino fundamental, médio e superior. Os temas mais abordados:

estudos de caso sobre atendimento à queixa escolar e intervenções institucionais; trabalho de

orientação profissional e formação de professores; dilemas vivenciados na prática; construção

da identidade do psicólogo escolar, indicando, em geral, preocupação em incorporar o

referencial crítico em Psicologia Escolar.

e) Formação inicial do psicólogo escolar: os trabalhos localizados analisam a

formação do psicólogo e do psicólogo escolar na graduação, por meio de pesquisas tanto

quantitativas (análise das notas do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes -

ENADE, por exemplo) quanto qualitativas, com análise do currículo, propostas para

melhorar a qualidade da formação, estudos sobre estágio supervisionado, entrevistas com

alunos e docentes para conhecer o processo formativo.

f) Formação continuada do psicólogo escolar: localizei trabalhos com egressos

dos cursos de Psicologia, para compreender a preferência por áreas e inserção no mercado de

trabalho e estudos sobre a atuação e a formação de psicólogos escolares inseridos na rede

pública de educação.

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O que chamou a atenção foi a escassez de trabalhos sobre o desenvolvimento

profissional do psicólogo escolar. Dentre os poucos trabalhos sobre esse assunto, destaco

algumas produções que ajudaram a compreender um pouco mais sobre como os psicólogos

escolares têm atuado. Para Barreto, Calafange e Lima (2009) há indicativos de ampliação das

práticas para um fazer institucional e interdisciplinar, mas ainda existe uma indefinição do

papel do psicólogo na escola, onde muitas vezes é cobrado a realizar ações individualizantes,

dado que se assemelha à pesquisa do CREPOP (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,

2013), citada anteriormente. Os profissionais relacionam os desafios e dificuldades

encontradas no cotidiano às limitações da formação de graduação, que enfatiza pouco o

campo educacional. Em pesquisa sobre a atuação do psicólogo escolar, Souza (2010) relata

que a maioria dos profissionais buscou aprimoramento após a graduação, em cursos de

especialização ou supervisões, revelando importância atribuída pelos profissionais à

formação continuada, mas parte destes cursos não tinha relação direta com a Psicologia

Escolar ou não abordavam os referenciais críticos e recentes da área. Silva (2010) e Tada,

Sápia e Lima (2010) destacam que ainda são poucos os espaços de supervisão e formação em

Psicologia Escolar, desafio que precisa ser superado para que os profissionais se aprofundem

teoricamente, compartilhem, discutam e encontrem soluções os problemas vivenciados na

prática.

Santos e Toassa (2015) realizaram uma revisão bibliográfica para compreender

como a formação do psicólogo escolar tem sido abordada por pesquisas de 1988 a 2011.

Embora tenham encontrado trabalhos que ressaltam a importância desse campo não só para a

atuação em escolas, mas também para subsidiar uma formação humana e contextualizada dos

processos psicossociais para a Psicologia como um todo, os trabalhos ainda denunciam as

falhas principalmente na formação inicial do psicólogo para atuar na Educação – os

currículos em geral não oferecem possibilidades de uma formação que vá além do mero

domínio técnico, dialogando com a teoria e a prática de forma mais complexa, além disso é

ainda comum não abordarem o cenário educacional brasileiro e se restringirem a uma visão

individualizante e patologizante dos problemas educacionais. As autoras concluem o texto

ressaltando a necessidade de mudança tanto na formação inicial quanto na formação

continuada, indicando que infelizmente há poucos cursos e especializações para o psicólogo

escolar.

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Um levantamento no site do Conselho Federal de Psicologia27 quanto aos cursos

de especialização reconhecidos indicou apenas dois que se relacionam ao campo educacional,

a saber: 1) Curso de Especialização em Psicologia Escolar, oferecido pelo CAPE - Centro de

Aperfeiçoamento em Psicologia Escolar de Porto Alegre28, 2) Curso de especialização em

Psicopedagogia Construtivista, oferecido na Universidade Estadual de Campinas29. Realizei

também uma busca geral na internet com o termo “curso de extensão psicologia escolar” e

encontrei cinco cursos relacionados: 1) Curso de aperfeiçoamento oferecido pela Escola

Superior Aberta do Brasil (ESAB)30, voltado para psicólogos e demais profissionais da

Educação, que indica aprofundar conhecimentos sobre as contribuições da Psicologia no

campo educacional; 2) Curso Psicologia Escolar e Educacional oferecido pela Universidade

Vale do Rio Doce31, cujo objetivo é oferecer formação a psicólogos e demais profissionais

que trabalham em instituições de ensino; 3) Curso de Especialização em Psicologia Escolar,

oferecido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul32, que aconteceu em

2001 apenas; 4) Curso de Especialização lato sensu em Psicologia Escolar, oferecido pela

Universidade de Santo Amaro33, voltado para aprofundar os conhecimentos no campo da

Psicologia Escolar, direcionado para psicólogos e demais profissionais da Educação; 5)

Curso de Especialização lato sensu em Psicologia e Educação, oferecido pela Universidade

Paulista (Unip), voltado para a formação de professores e demais profissionais interessados.

Além destes, a Universidade de São Paulo oferece anualmente um curso de aperfeiçoamento

para atendimento à queixa escolar.

Aqui vale também um adendo do grande número de cursos de pós-graduação lato

sensu em Psicopedagogia, segundo o site do MEC, em 2017 são 729 cursos credenciados,

presenciais e à distância. A Psicopedagogia é um curso que pode ser feito por qualquer

profissional que tenha um curso superior e em geral oferece a ideia de que, ao capacitar-se

nessa área, o profissional estaria apto a atender queixas escolares, em perspectiva semelhante

às atribuições conferidas ao psicólogo escolar. De acordo com Barbosa, D. (2011), a figura

do psicopedagogo surge quando o psicólogo é afastado do contexto escolar, buscando

27http://site.cfp.org.br/servicos/titulo-de-especialista/cursos-credenciados/ 28http://capepsi.com.br/ 29http://www.extecamp.unicamp.br/modelo_noticia_full.asp?id=160 30 http://www.esab.edu.br/cursos-de-extensao-e-qualificacao-ead/psicologia-escolar-e-social-81/ 31 http://univale.br/cursos/o_curso/?CodigoCurso=211 32 http://www.ead.pucrs.br/cursos/listartodos.php 33 http://www.unisa.br/unisadigital/dpg19.html

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substituir suas funções, o que pode ser um problema, uma vez que muitos desses cursos

oferecem uma formação acrítica sobre os problemas que emergem no contexto educacional.

Estes dados indicam a escassez de espaços para que os psicólogos interessados

pelo campo educacional possam aprimorar sua formação e discussão sobre a prática. Vale

ressaltar que, embora verificados os poucos cursos de formação, acontece a cada dois anos o

Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional (CONPE), organizado pela

ABRAPEE, principal evento de discussão das práticas e construção da profissão. Também

ocorrem, em geral de dois em dois anos, intercalados com o CONPE, encontros regionais da

área, dentre eles: Encontro Mineiro de Psicologia Escolar; Encontro Paranaense de Psicologia

Escolar; Encontro Paulista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional e

Encontro Rondoniense de Psicologia Escolar e Educacional. Além disso, a Associação

Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) também realiza importantes encontros voltados

para a formação do psicólogo.

Os elementos apresentados indicam que ainda há grandes desafios no fazer do

psicólogo que trabalha com demandas educacionais. Defendo que o desenvolvimento

profissional é processo inconcluso, não por descrédito à formação na graduação ou para

suprir possíveis lacunas, mas porque a atuação profissional sempre envolve novos desafios,

que os cursos de graduação não conseguiriam abarcar (ARAGÃO, 2010), sendo necessário

ao profissional buscar espaços formais de formação continuada, supervisão profissional,

diálogo com pares, estudos contínuos e um cuidado com a dimensão pessoal para superar os

desafios que surgem cotidianamente.

E o que significa, afinal, desenvolver-se profissionalmente? Considerando que

desenvolvimento profissional é o tema da Tese, sigo com definições sobre este termo, com

especial destaque para os grupos colaborativos, modalidade a partir da qual foi produzido o

material empírico.

2.3 Desenvolvimento profissional e as contribuições dos grupos colaborativos

Como já delineado, o objetivo desta pesquisa é analisar o grupo colaborativo

como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com demandas

educacionais. E o que me levou a eleger o termo desenvolvimento profissional e não

formação continuada? Ressalto primeiramente que a formação, seja ela inicial ou contínua,

compõe o processo de desenvolvimento profissional, mas este processo é mais amplo do que

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os cursos de formação. É principalmente nesse pressuposto que apoio minha escolha.

Vejamos algumas reflexões que contribuem para pensar esse conceito.

Desenvolvimento profissional é uma terminologia usual do campo da Educação.

Nóvoa (1992) o define a partir de uma leitura crítica sobre o processo histórico de

constituição da profissão do professor. Considerando que o ensino escolar é fundamental para

os saberes e valores que serão permeados na sociedade, o autor analisa que o Estado busca

um controle da formação do professor para que este haja de acordo com os interesses

ideológicos convenientes. É necessário manter os professores sob uma lógica do proletariado,

na qual não se valoriza a classe, além de tolher sua autonomia, reduzindo seu trabalho a uma

mera condição técnica. Nóvoa (1992) aponta que, nessa perspectiva, a formação dos

professores fica subjugada a fatores alheios aos próprios profissionais, que ficam a depender

unicamente de conhecimentos externos ao contexto da escola para aprimorar a prática

profissional. Ao tecer essa crítica às propostas de formação continuada que geralmente são

impostas aos docentes e ficam restritas a um nível tecnicista, o autor propõe a valorização do

desenvolvimento profissional do professor, considerando que o objetivo é envolver, para

além da técnica, a dimensão pessoal e também coletiva (contexto e condições de trabalho)

daquele profissional, valorizando suas potencialidades e a produção de saberes no cotidiano

de atuação.

Vicentini (2012) aponta que o termo desenvolvimento profissional seria o mais

adequado para denominar o processo de constituição do educador, pois rompe com a

concepção de que este deve treinado para aplicar teorias e técnicas, apresentando um sentido

abrangente, no qual a formação profissional deve acontecer durante todo o percurso de vida

do professor e por meio de cada experiência:

Com isso, o distanciamento entre a dicotomia formação inicial e formação continuada se faz necessário superar, visto que perante este ponto de vista a formação docente é contínua implicando, consequentemente, constante evolução. (VICENTINI, 2012, p. 53)

Ponte (1998) sugere que a formação do professor é um processo que “envolve

múltiplas etapas e que, em última análise, está sempre incompleto” (p. 2). O autor acrescenta

que a diferença fundamental entre a ideia de formação e o conceito de desenvolvimento

profissional é que o primeiro termo geralmente está ligado a cursos formais específicos,

enquanto o segundo indica que a constituição profissional acontece em diferentes tempos e

espaços, a partir de atividades diversificadas que podem acontecer ou não em contextos

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formais. O desenvolvimento profissional também marca a ideia de que o protagonista desse

processo é o profissional e não um formador externo que vai simplesmente impor ou fornecer

teorias e técnicas. Além disso, o desenvolvimento profissional proporciona uma ideia mais

integrada entre teoria e prática, com destaque especial para as potencialidades e não para o

que falta na formação daquele sujeito:

No desenvolvimento profissional dá-se grande importância à combinação de processos formais e informais. O professor deixa de ser objecto34 para passar a ser sujeito da formação. Não se procura a “normalização” mas a promoção da individualidade de cada professor. Dá-se atenção não só aos conhecimentos e aos aspectos cognitivos, para se valorizar também os aspectos afectivos e relacionais do professor. (PONTE, 1998, p. 2)

Imbernón (2004) acrescenta que os cursos formais de educação inicial e

continuada são elementos importante do processo de desenvolvimento do profissional, mas

não o define, uma vez que outros aspectos estão envolvidos, como, por exemplo, as

condições concretas de trabalho e a dimensão pessoal. A partir dessa perspectiva, considerar

o desenvolvimento profissional implica em propor ações voltadas para a melhoria da atuação

profissional. Para isso, é fundamental que se desenvolvam propostas que possibilitem uma

reflexão ampla acerca da realidade,

(...) com um esforço de superação de nossa condição de rotina na vida cotidiana, na busca constante de entender com clareza as situações em que vivemos e trabalhamos, para mudarmos, avançarmos em relação à situação atual. (GATTI, 2014, p. 378)

O desenvolvimento profissional requer, portanto, inquietude e disposição para

pensar a prática e a teoria, reconhecer-se no coletivo e nele se fortalecer para transformar

efetivamente a realidade ao redor. Inspirado nas contribuições de Schön, Nóvoa (1992)

acrescenta que é importante investir nos saberes que os professores produzem em suas

práticas, considerando que os problemas enfrentados no cotidiano são complexos e exigem

uma postura reflexiva para se conseguir resolver situações de incerteza mediante decisões

bem fundamentadas.

Ainda que a temática da reflexividade não seja o foco principal das discussões

aqui tecidas, penso que nesse ponto seja importante tecer uma breve consideração sobre esse

conceito, uma vez que o exercício reflexivo é fundamental para o processo de

34 Texto redigido em português de Portugal.

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desenvolvimento profissional. O pensamento é uma função psíquica humana e, de modos

variados, todos pensamos sobre algo cotidianamente. Refletir, porém, não se reduz ao mero

ato de pensar, mas consiste em uma ação intencional e sistemática de produzir conhecimento

sobre a prática, buscando suas implicações e fundamentos teóricos (DEWEY, 1938/2011).

Apoiado nesse pressuposto, Schön (1998/2000) diz que o cotidiano de trabalho, em qualquer

área, envolve conhecimentos implícitos e espontâneos que permitem ao profissional guiar

suas ações e tomar decisões diante de situações desafiadoras ou novas, sem que

necessariamente saiba explicar como e porquê agiu daquele modo. A isso, o autor chama de

conhecer-na-ação. Posteriormente a esse processo se dá a reflexão-na-ação, por meio da qual

o profissional, ao se deparar com os dilemas da prática, reflete sobre a situação no momento

presente, criando novas estratégias de ação. A análise posterior das ações desenvolvidas pelo

profissional também é um processo importante, denominado por Schön (1998/2000) como

reflexão-sobre-a-ação, por consistir em uma apreciação retrospectiva da ação, na qual o

profissional reflete sobre como agiu, o que pensou naquele momento, quais significados

atribuiu ao acontecido, com o intuito de construir novas possibilidades, aprimorando a

qualidade da prática. Por último, define um terceiro processo: reflexão sobre a reflexão-na-

ação, que apresenta uma qualidade diferente dos momentos anteriores, pois permite ao

profissional analisar seu processo reflexivo, a partir da construção de futuras possibilidades

de ação, consolidando sua identidade profissional.

Os processos explicitados por Schön são fundamentais para compreender que

aprender uma profissão não é algo estanque, mas acontece de forma vívida, em cada desafio

enfrentado no cotidiano da prática. Críticas ao conceito de reflexividade (PIMENTA, 2002;

LIBÂNEO, 2002) apontam que esse termo tem sido usado erroneamente em reformas

educacionais informando aos professores que “pensar sobre a prática” seria suficiente,

esvaziando o caráter político e coletivo da atuação do professor. Embora Aragão (2010)

considere essa crítica válida, ressalta a reflexividade como um princípio que vai além de

meramente pensar sobre, mas refletir crítica e coletivamente com vistas à transformação do

contexto escolar.

Em consonância com Nóvoa (1992) e Aragão (2010, 201735) concordo que é

inconcebível considerar que a formação acontece somente a partir de um curso pontual,

mediante a transmissão de um conjunto de teorias e técnicas. Ao contrário, o processo de

35 Em apresentação no Concurso para Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

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desenvolvimento profissional é um complexo que abarca a formação, seja ela inicial ou

continuada, mas também as dimensões pessoais, relacionais, cognitivas, afetivas, a

fundamentação teórica, o cotidiano e condições concretas de trabalho e as políticas públicas

de formação e atuação profissional, elementos estes que devem ser considerados como uma

unidade dialética.

Além das definições específicas do campo da formação de professores,

desenvolvimento profissional é tratado nesta Tese sob o prisma da Teoria Histórico-Cultural,

a partir das contribuições de Vigotski. Ainda que o escopo desta teoria seja abordado em

detalhes na seção seguinte, vale um adendo neste tópico, afirmando desde já que

desenvolvimento profissional é uma dimensão do processo de desenvolvimento humano,

objeto principal da THC. Vigotski (1931/1997) define desenvolvimento humano como um

processo complexo de contínua mudança e reorganização das funções psicológicas

superiores, composto por elementos biológicos, mas determinado pela cultura, tendo como

origem as relações sociais. Assim, as características de uma pessoa podem ser explicadas a

partir desse processo, no qual as relações sociais são internalizadas e se tornam funções

psicológicas. Aprender uma profissão exige um funcionamento psíquico complexo, que

depende de diversas funções – raciocínio lógico, memória lógica, pensamento em conceitos

científicos, imaginação criadora, atenção voluntária, emoções, abstração, volição...

Desenvolver-se profissionalmente está, portanto, para além de aprender a como aplicar

técnicas, está relacionado ao desenvolver-se como pessoa integralmente, de forma contínua e

a partir das interações sociais.

Pensando no desenvolvimento profissional como processo cuja origem é social,

encontrei na proposta dos grupos colaborativos uma estratégia para o desenvolvimento do

projeto de extensão com o grupo de profissionais que trabalham no campo educacional. Os

grupos colaborativos são voltados para o campo do desenvolvimento profissional docente e,

nesse sentido, Fiorentini e Crecci (2013) identificam que essa ideia surgiu com o intuito de

estabelecer uma parceria entre universidade e profissionais da Educação Básica para realizar

um trabalho de formação de professores. Por meio de uma forte crítica a propostas de

formação pautadas em ações que impõem conhecimentos e técnicas, por vezes distantes das

reais necessidades da sala de aula, os grupos colaborativos identificam a necessidade de

valorizar produção de saberes docentes no cotidiano de trabalho, identificando que a prática

profissional é um campo complexo. Para isso, exaltam a importância de que as temáticas

discutidas partam do próprio grupo de profissionais, a fim de constituir uma comunidade de

partilha e análise coletiva da prática:

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Estamos cansados de esperar que alguém pergunte ao professor o que ele pensa de sua formação continuada e o que ele gostaria de fazer dela; cansados de esperar que se pergunte do que ele realmente necessita para seu desenvolvimento profissional. Até hoje espaços não foram criados para que seja realmente considerada a voz do professor para a definição de políticas públicas adequadas às suas necessidades. Surge como uma proposta para o campo de formação docente, não apresenta um único modelo, mas pode ser proposto de acordo com as necessidades das pessoas interessadas. (GONÇALVES JÚNIOR; CRISTOVÃO; LIMA - Org.- Carta do I Simpósio de Grupos Colaborativos e de Aprendizagem do Professor que Ensina Matemática, 2012, p. 150)

Não há um único direcionamento para os grupos colaborativos, uma vez que

podem ser realizados com profissionais diversos, interessados em aprimorar a compreensão

sobre um dado aspecto da prática, compartilhando experiências e saberes. Fiorentini e Gama

(2009) destacam que um grupo colaborativo deve ser um espaço de reflexão compartilhada

sobre a prática, por meio da disponibilidade em acolher qualquer membro que esteja

disponível e interessado em contribuir com a temática em questão, em uma proposta

voluntária, na qual não haja cobranças ou imposições e que valorize a construção conjunta

das atividades e ações formativas:

As características desses coletivos fazem emergir a colaboração, considerando que demandam tempo e confiança para que seus integrantes se constituam como participantes colaborativos que respeitam os objetivos individuais e grupais. (FIORENTINI & GAMA, 2009 p. 449)

Para isso, é importante proporcionar um espaço de escuta e de diálogo, por meio

de uma participação ativa e democrática nas escolhas tomadas pelo grupo. Dentre algumas

atividades que facilitam esse processo, Fiorentini e Gama (2009) destacam, por exemplo: a)

participação compartilhada e alternada nas atividades, para que cada participante assuma

diferentes papéis; b) discussão teórica a partir das demandas do grupo; c) compartilhamento

de experiências sobre a prática por meio de narrativas orais e escritas.

Esse processo de reflexão conjunta sobre a prática é apontado por Fiorentini e

Gama (ibidem) como potencialmente importante para o desenvolvimento profissional, uma

vez que a prática em grupo possibilita aos participantes se sentirem parte de uma comunidade

profissional e irem além do que conseguiriam pensar ou realizar sozinhos. É importante

ressaltar que, mais que um espaço para aprender conceitos e teorias específicas, a proposta

dos grupos colaborativos busca considerar os sujeitos participantes de forma integral,

propiciando a acolhida das angústias, medos, dúvidas, experiências e êxitos profissionais,

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buscando, no coletivo, possibilidades para pensar as questões compartilhadas. Proença e

Buciano (2012, p. 35), ao relatarem a experiência de um grupo colaborativo sobre

alfabetização, identificam que o diálogo e o vínculo estabelecido entre os participantes são

elementos fundamentais para a aprendizagem dos participantes: “Os encontros estimulam,

assim, a vontade de deixar-se transformar e afetar, ressignificando o conhecimento como algo

vivo e com sentido individual e coletivo”.

Fiorentini e Crecci (2013) apontam, ainda, que nesses espaços colaborativos

podem-se desenvolver importantes trabalhos de pesquisa sobre a prática, uma vez que, por

meio dos encontros marcados pela discussão das experiências profissionais, é possível

exercitar uma postura investigativa, sistematizando as deliberações produzidas em grupo e

avançando para estudos cada vez mais aprofundados.

Instigada pela proposta de desenvolvimento profissional pautado em uma

proposta colaborativa, ampliei a revisão de literatura em duas dimensões: a) pesquisa em

bases internacionais: aproveitando meu estágio na Monash University, no qual tive acesso

aos bancos de dados disponíveis pela biblioteca da instituição, resolvi realizar uma nova

busca por publicações científicas em inglês, abarcando uma dimensão mais ampla sobre o

que a comunidade científica internacional tem publicado sobre o tema; b) redefinição das

palavras-chave: considerando que o foco da pesquisa não era mais somente a formação do

psicólogo educacional, mas o desenvolvimento de profissionais que trabalham com demandas

educacionais, tendo o grupo como fonte de desenvolvimento, a partir dos conceitos da THC,

decidi refazer a busca usando novas palavras-chave.

Nesta segunda revisão, escolhi uma terminologia de busca relacionada ao grande

tema da pesquisa e que fornecesse, portanto, uma análise ampla e consistente de como a

temática tem sido abordada internacionalmente, quais as lacunas e possibilidades encontradas

e como os trabalhos contribuem para a minha Tese. As perguntas que instigaram essa busca

foram: como a temática do desenvolvimento de profissionais que trabalham com demandas

educacionais tem sido abordada nos últimos 10 anos? Como a dimensão colaborativa

comparece nessa temática? A THC comparece nessas pesquisas? Quais delas envolvem

pesquisa-intervenção?

As bases de dados escolhidas foram ERIC (Education Resources Information

Center) e PsycINFO (da American Psychological Association), por serem duas bases de

dados importantes e que trazem trabalhos tanto do campo da Psicologia quanto da Educação.

O intervalo escolhido foi de 10 anos (jan/2006 a dez/2015) e os descritores escolhidos foram:

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• professional development

• professional development + groups

• professional development + collaboration

• professional development + groups + collaboration

• professional development + discussion groups

• professional development + peer learning

• professional development + Vygotsky

Dentre as publicações, encontrei artigos, teses, dissertações e outros tipos de

publicação e aqui escolho relacionar apenas os artigos científicos, por serem publicações de

mais fácil acesso e circulação. A tabela a seguir indica a quantidade de artigos encontrados

para cada descritor:

Tabela 2: Artigos encontrados em bases de dados internacionais

Descritores ERIC PsicINFO

Professional development (PD) 6.910 7.776

PD + groups 582 750

PD + collaboration 265 526

PD + groups + collaboration 17 64

PD + discussion groups 36 7

PD + peer learning 8 10

PD + Vygotsky 14 7

Considerando o grande volume de trabalhos encontrados nos três primeiros

descritores, decidi realizar uma leitura dos trabalhos apenas a partir quarta da combinação de

descritores (professional development + groups + collaboration; professional development +

discussion groups; professional development + peer learning; professional development +

Vygotsky). A partir de uma leitura dos resumos, escolhi 21 trabalhos para leitura36 e análise a

seguir apresentada, conforme já discutido em Nasciutti, Veresov e Aragão (2016). Os

trabalhos selecionados foram aqueles que apresentavam algum tipo de pesquisa-intervenção

36 As referências dos trabalhos selecionados nesse novo levantamento estão relacionadas no Apêndice 1

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ou análise posterior de programas de desenvolvimento profissional. Escolhi, ainda, pesquisas

sobre desenvolvimento profissional que faziam referencia à Teoria Histórico-Cultural ou à

Vigotski.

Em termos metodológicos, de modo geral os estudos encontrados discutem

desenvolvimento profissional em duas perspectivas: a) analisando programas de

desenvolvimento profissional já existentes; b) propondo uma pesquisa-intervenção para

estudar este tópico e analisar estratégias e práticas neste campo.

A maior parte dos estudos se encaixa na primeira perspectiva, analisando as

repercussões de programas de desenvolvimento profissional em sua maioria propostos para

professores de educação básica, por meio de entrevistas, questionários ou grupos focais. Por

exemplo, Armour e Yelling (2007) discutem o papel da aprendizagem informal e

colaborativa em um programa de formação continuada para professores de Física, analisando

as anotações dos educadores e entrevistas individuais e em grupo, para compreender as

percepções dos professores sobre seu processo de aprendizagem profissional. Os autores

consideram que o processo de desenvolvimento profissional é contínuo e envolve tanto

atividades formais quanto não formais, tais como interação entre pares e colaboração fora dos

cursos de formação continuada. Outros estudos indicam ainda a importância da colaboração,

por meio da partilha de experiência, do diálogo e do apoio dos pares no cotidiano de trabalho

e também durante atividades formativas sistematizadas (KILLEAVY & MOLONEY, 2010;

GULDBERG, 2008; MEIRINK, MEIJER, VERLOOP, 2007). Programas de

desenvolvimento profissional online também aparecem em diversos estudos, que discutem as

repercussões do uso de blogs e outros meios de comunicação via internet como uma

modalidade que pode ajudar os educadores a aprenderem com os pares, partilhando suas

experiências e dilemas (KILLEAVY & MOLONEY, 2010; GULDBERG, 2008; DUNCAN-

HOWELL, 2010; KOOP, HASENBEIN & MANDL, 2014; ERNEST et al., 2013).

Apesar de minoritários, a revisão revelou estudos do tipo pesquisa-intervenção,

que criaram e analisaram programas de desenvolvimento profissional em uma perspectiva

colaborativa. Masuda e Ebersole (2012) afirmam que grupos de estudos podem ajudar

professores iniciantes, indicando que um espaço de apoio e acolhimento, no qual os

professores se sintam convidados a refletir sobre suas práticas é essencial para que eles

desenvolvam novas estratégias de ação. Orland-Barak (2007) analisa um programa de um ano

para mentores educacionais, sugerindo que ao invés de um modelo focado no treinamento

técnico, os programas de desenvolvimento profissional devem focalizar o processo

conversacional, criando um espaço acolhedor e seguro, no qual os profissionais se sintam

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livres para partilhar suas necessidade, conflitos e ideias, valorizando, sobretudo, a interação

entre pares. Hidin et al. (2007) analisam uma proposta formativa nessa direção, indo além da

análise do grupo, investigando a atuação dos professores em sala de aula, para entender como

eles aplicam o que aprendem no programa de desenvolvimento profissional, concluindo que a

colaboração em grupo é essencial para aprimorar a prática docente.

É possível perceber pontos em comum entre os artigos encontrados e a proposta

apresentada na Tese. A maior parte dos trabalhos discute a temática do desenvolvimento

profissional valorizando as interações sociais, em especial entre pares, a partir do diálogo,

apontando a necessidade de se valorizar os profissionais como protagonistas do processo.

Contudo, apenas dois artigos trazem a figura do psicólogo, mas nenhum discute a formação

desse profissional em contextos educacionais – um artigo discute o contexto clínico de

atuação (BRADLEY et al., 2012) e outro a atuação na área de saúde, envolvendo equipe

multiprofissional (PHELAN et al., 2012). Além disso, embora 21 artigos citem Vigotski de

alguma forma, os conceitos da THC não são usados como ferramentas de análise, mas de

forma a sustentar alguns pontos de vista, em geral sobre a importância das relações sociais.

Isso indica a relevância desta Tese, uma vez que trago à tona o grupo não como um fator,

mas como fonte de desenvolvimento profissional, a partir de uma pesquisa-intervenção que

ofereceu e analisou à luz da THC uma proposta formativa para profissionais que trabalham

com demandas educacionais, tendo como centro das discussões os conhecimentos advindos

do campo da Psicologia Escolar e Educacional.

Os trabalhos desenvolvimentos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação

Continuada da Unicamp (GEPEC) também apresentam importantes contribuições, por meio

de pesquisas que valorizam o trabalho docente e que partem do cotidiano escolar, em estreita

colaboração com os professores e demais profissionais da Educação. Cunha e Prado (2007)

valorizam pesquisas que buscam conhecer a realidade escolar, possibilitando propostas de

intervenção e de investigação, compreendendo o constante diálogo entre essas dimensões.

Dentre as diversas produções que caminham nessa direção, destaco a pesquisa de Aragão

(2010, 2012, 201737), a partir de um projeto formativo-investigativo, desenvolvido com

professores de uma escola pública municipal e que teve como objetivos: a) promover o

desenvolvimento profissional dos professores, por meio do trabalho coletivo de superação

dos dilemas e desafios da prática, bem como da construção em conjunto do projeto

37 Em apresentação no Concurso para Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

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pedagógico, a partir da reflexividade (objetivo formativo); b) compreender o processo de

reflexividade dos educadores, analisando de forma crítica os níveis de lógica reflexiva dos

participantes (objetivo investigativo). A relevância desse trabalho é a centralidade do

coletivo, enfatizado pela autora como um dispositivo fundamental para o desenvolvimento

profissional docente no espaço escolar, a partir da reflexividade. A autora pontua que refletir

sobre a prática não é simplesmente um mero ato cognitivo de conversar ou pensar sobre ela,

mas é, sobretudo, buscar, na teoria, fundamentos da prática, discutindo-a na coletividade e

relacionando-a a suas múltiplas determinações.

Aragão (2010) alerta que, se há críticas ao modo como o ensino é desenvolvido

pelos professores em sala de aula, de forma tecnicista e com base na mera transmissão de

conhecimentos, é fundamental pensar em como os espaços de formação para os professores

se organizam e em que medida possibilitam a ruptura com essa modalidade de ensino. Assim,

para que haja repercussões e mudanças efetivas no contexto escolar, é fundamental que os

próprios educadores tenham acesso e reflitam sobre uma concepção crítica de educação e de

ser humano, a fim de se apropriarem delas em suas ações pedagógicas:

Entendo o ensino reflexivo como sendo construído por professores críticos e que analisam suas teorias e práticas, à medida que se debruçam sobre o conjunto de sua ação, refletindo sobre o seu ensino e as condições sociais nas quais suas experiências estão inseridas, sempre de forma coletiva, com seus pares. Além disso, acredito que a reflexividade é constituída, necessariamente, por discussões que busquem fundamentar teoricamente as tomadas de decisão cotidianas na direção de uma ação cada vez mais intencional e menos ingênua. (ARAGÃO, 2012, p. 22)

Dentre as conclusões desta pesquisa, destaco o desenvolvimento da reflexividade

docente como um processo que não ocorreu de forma linear, mas a partir das atividades e

discussões intencionalmente propostas e construídas pelo grupo, nas quais os docentes foram

transformando seu modo de pensar e sua própria constituição como educadores:

E foi assim que sucedeu na escola: sujeitos em transformação, alterando as suas visões sobre o processo de ensino e de aprendizagem e uma intensa teia de relações interpessoais, que foram provocando mudanças no grupo, de modo que todos fomos nos tornando cada vez mais reflexivos coletivamente. (ARAGÃO, 2010, p. 418)

Aragão (ibidem) também ressalta a importância da indissociação entre teoria e

prática, bem como das dimensões pessoal e profissional, como instâncias que se relacionam

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dialeticamente, provendo o desenvolvimento profissional docente em um sentido integral, por

meio dos aspectos cognitivos, emocionais e relacionais do trabalho formativo.

Destaca, ainda, a primazia de que o trabalho de formação em grupo na escola seja

sistemático e contínuo, a partir da valorização dos dilemas vivenciados pelos professores,

legitimando-os e buscando soluções, de acordo com as necessidades coletivas, permitindo a

passagem de um eu solitário para um eu solidário (SÁ-CHAVES & AMARAL, 2000). As

expressões em itálico indicam que, quando o profissional se encontra solitariamente

envolvido em suas práticas, tem diante de si a difícil tarefa de tomar decisões sem discuti-las

e enriquecê-las com seus pares. O encontro com o grupo possibilita ampliar o repertório de

atuação e buscar soluções para os problemas enfrentados (ARAGÃO, 2010).

O desenvolvimento profissional a partir dos grupos colaborativos é uma proposta

pensada para professores, a partir de professores e neste trabalho ouso aproximá-la de outros

profissionais que lidam com demandas educacionais em suas práticas, apostando na criação

de um espaço em que “eus solitários” encontrem solidariedade, a partir de práticas

colaborativas.

Com as preciosas considerações tecidas neste tópico, sigo viagem apostando nas

contribuições de partilhar as vivências da prática e construir saberes coletivamente.

Considerando a Teoria Histórico-Cultural como a chave para compreender as interações

sociais, apresento a seguir os fundamentos e conceitos analíticos dessa perspectiva para a

análise do material empírico da pesquisa.

2.4 Fundamentos da Teoria Histórico-Cultural e conceitos-chave de análise

No Memorial de Formação, apresento a Teoria Histórico-Cultural (THC) como

uma perspectiva essencial, de modo que a não ser um mero apanhado de conceitos que usarei

para analisar o material de pesquisa, mas uma forma complexa de compreender o ser

humano, a partir de fundamentos que fazem parte irreversível de quem sou e do modo como

vejo o mundo. Portanto, apresento nesta seção as contribuições de Lev S. Vigotski [1896-

1934] e, considerando sua vasta produção intelectual, discutirei os principais alicerces de sua

teoria, destacando conceitos que serão ferramentas analíticas para a compreensão do material

empírico produzido.

O objetivo da Tese é analisar o grupo colaborativo como fonte de

desenvolvimento para profissionais que trabalham com demandas educacionais. O

grupo, portanto, não é um mero fator, mas fonte de desenvolvimento profissional, a partir das

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relações sociais estabelecidas por meio dele. Por que escolho a THC como ferramenta

analítica para o material empírico? Em primeiro lugar, o principal objeto de conhecimento

desta perspectiva é o processo de desenvolvimento humano e esta pesquisa tem como tema

central o processo de desenvolvimento profissional, dimensão que envolve aspectos diversos

da vida humana. Ademais, a THC oferece uma explicação sobre o desenvolvimento humano

tendo as relações sociais como origem deste processo (VIGOTSKI, 1934/1994), tal como é o

principal intuito da Tese (NASCIUTTI; VERESOV; ARAGÃO, 2016). Aqui cabem três

perguntas que serão base para a discussão a seguir: como a THC define desenvolvimento

humano? O que significa dizer que as relações sociais são fonte de desenvolvimento? Como

se dá o processo de desenvolvimento da dimensão social para a dimensão individual?

A Teoria Histórico-Cultural tem origem na Rússia, durante a primeira metade do

século XX. L. S. Vigotski, A. N. Leontiev e A. S. Luria são os principais precursores desta

perspectiva teórica, seguidos de diversos colaboradores, tais como S. L Rubinstein; A V.

Zaporovhets; D. B. Elkonin; V. V. Davydov, dentre outros (LONGAREZZI & PUENTES,

2013) que, ao vivenciarem intensamente a Revolução de 1917, propuseram, a partir de uma

base marxista, um modo de compreensão dos processos psíquicos e educacionais pautado em

um prisma histórico e cultural. Com as intensas mudanças sociais ocasionadas naquele

momento, houve a necessidade de pensar em uma ciência para a formação do novo homem

socialista e, nesse âmbito, a Psicologia e a Educação tinham muito a contribuir (PRESTES,

2010; PRESTES, TUNES & NASCIMENTO, 2013). O caráter colaborativo dessa corrente

levou a diferenças de enfoques e do modo como cada autor desenvolveu sua obra,

diversidade que enriqueceu a Psicologia russa e suas repercussões ainda hoje. Aqui opto pela

produção de Vigotski, por ter sido esse o autor a quem mais tive acesso durante minha

formação e por comungar profundamente de suas ideias.

Vigotski deixou uma vasta e intensa produção – há, hoje, livros, manuscritos,

aulas e anotações avulsas, inclusive ainda não publicadas que surpreendem diante do pouco

tempo de vida que teve em decorrência da tuberculose (PRESTES, 2015). Com uma

formação ampla e em diálogo com vários campos de conhecimento, como Direito, História,

Filosofia e Artes, o autor se destaca na área da Psicologia, a partir da insatisfação com as

explicações naturalistas e simplistas dos fenômenos psicológicos e do seu esforço em criar

“uma nova abordagem dos processos psicológicos estritamente humanos e pôr a psicologia

em bases materialistas” (PRESTES, TUNES & NASCIMENTO, 2013, p.55).

Entretanto, a busca de Vigotski por uma explicação dos fenômenos psíquicos

humanos não se deu de modo linear, sua teoria passou por diferentes fases, nas quais ele

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explicita suas questões, conflitos, por vezes negando a si mesmo para dar lugar a conceitos

que hoje conhecemos. Veresov (2005) assinala que Vigotski contou com fontes teóricas

diversas em sua produção intelectual – o marxismo é um dos principais fundamentos e o mais

conhecido deles, mas também há fortes influências na tradição filosófica, cultural e artística

russa, principalmente por meio do teatro, cujos autores Vigotski ficou por vezes

impossibilitado de mencionar em decorrência do regime soviético. Não houve a intenção de

criar uma “psicologia marxista”, com a mera transposição de conceitos, mas o intuito seria

partir dos subsídios marxistas para mediar a construção de uma nova Psicologia. Destaco três

princípios essenciais:

a. Caráter material da existência – a vida humana não é determinada a

partir de aspectos dos indivíduos separadamente, sejam eles biológicos ou

abstratos, mas são os aspectos sociais e materiais que determinam, em última

instância, a constituição de cada sujeito. Engels (1876) analisa que é por meio

da atividade de trabalho que o homem consegue se diferenciar dos outros

animais: modificando e dominando a natureza, a partir da criação de

instrumentos, o homem também cria condições para transformar a si mesmo,

indo além da regulação de seu comportamento por necessidades meramente

fisiológicas e adquirindo funções complexas como a linguagem e a

consciência. A subjetividade é determinada, portanto a partir da forma como

os seres humanos se relacionam e não o contrário.

b. Caráter histórico do processo de constituição humana: além da

materialidade que nos torna humanos, o processo de desenvolvimento de cada

ser individual é sempre contextualizado. Nas Teses sobre Feuerbach

(1845/1978) Marx afirma: “Mas a essência humana não é algo abstrato,

interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações

sociais”, sendo que as relações sociais estão sempre datadas em um momento

histórico específico. Assim, cada mudança e composição do processo histórico

da humanidade é elemento determinante da constituição de cada sujeito

(TANAMACHI, 2014).

c. Compreensão a partir da lógica dialética: a determinação material e

histórica da vida humana não pode ser compreendida mediante um prisma

linear, mas sim dialético. Segundo Konder (1981/2004), a lógica dialética

pode ser definida como um modo de compreender a realidade, como

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essencialmente contraditória e em constante transformação. Assim, ao olhar

para um aspecto individual e aparente da realidade, temos que fazer um

movimento analítico para tentar entender as múltiplas e complexas

determinações que o constituem. A dialética é, portanto, um modo de pensar

elaborado, que considera as constantes mudanças e emergência do novo.

A vida de Vigotski foi marcada por intensas crises – em sua história pessoal,

devido ao adoecimento que atravessou boa parte de sua produção científica; no âmbito

político, diante do anúncio de uma sociedade justa e igualitária seguida de um regime

totalitário e violento; no âmbito da própria Psicologia, ciência que estava ela mesma em crise,

diante das diversas abordagens contraditórias entre si que existiam para explicar o mesmo

fenômeno. Veresov (2005) destaca três fases importantes na carreira de Vigotski que

explicitam sua busca incessante em encontrar o princípio explicativo para os fenômenos

psíquicos humanos:

1) Abordagem reflexológica [1917-1924]: inspirado no legado do behaviorismo, Vigotski

entendia a consciência humana como um reflexo do meio, compreendendo que a Psicologia

deveria desenvolver uma metodologia objetiva e materialista de análise do psiquismo,

criticando as teorias subjetivistas vigentes na época;

2) Psicologia Materialista [1925-1927]: ao final da primeira fase, Vigotski já indicava sua

insatisfação com a explicação da consciência como reflexo, o que podemos ver

principalmente em seu manuscrito de 1927 O significado histórico da crise na psicologia.

Uma investigação metodológica, publicado em português na coletânea Teoria e Método em

Psicologia (2004), nele, Vigotski aponta que a Psicologia da época era caracterizada por

diversas ciências particulares defendendo suas próprias verdades e não conseguindo ir além

da mera descrição dos fenômenos psíquicos humanos. Vigotski indica a necessidade de

propor uma metodologia verdadeiramente explicativa. Para isso, propõe compreender os

fenômenos de modo complexo, histórico e dialético.

3) Teoria Histórico-Cultural [1927-1934]: é interessante notar que os principais conceitos da

THC tal como conhecemos hoje foram formulados nos anos finais da vida de Vigotski.

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Veresov38 observa que o adoecimento de Vigotski piorou muito neste período e seu

sofrimento intensificou-se por não ter encontrado ainda o cerne explicativo do

desenvolvimento do psiquismo humano. Entretanto, os escritos em forma de rascunho

inacabado do manuscrito escrito em 1929, dão indícios de um salto qualitativo na produção

de Vigotski, quando ele questiona: o que é desenvolvimento? Qual a diferença essencial entre

os processos de desenvolvimento naturais e biológicos para o desenvolvimento cultural e

histórico da mente humana? As produções desse último período evidenciam de forma mais

clara e consistente a origem social da mente, inserida em um movimento histórico, tendo a

cultura como mediadora desse processo, por meio de signos e ferramentas.

Em supervisão com o Professor Nikolai, ao discutirmos o Manuscrito de 1929,

fiz a seguinte pergunta: por que Teoria Histórico-Cultural? Apesar de não haver uma clara

denominação desse termo na produção vigotskiana (PRESTES 2015) e de haver também

divergências no modo como é denominada ainda hoje no âmbito acadêmico, seus princípios

teórico-metodológicos são contemplados com profundidade nessa terminologia – Histórico

porque a função psicológica superior surge tanto na história na humanidade em um

determinado período, quanto na história em particular daquele sujeito em um dado momento:

“(...) ao falarmos em desenvolvimento cultural da criança, temos em mente o processo

correspondente ao desenvolvimento mental que ocorre no processo de desenvolvimento

histórico da humanidade” (VIGOTSKI, 1931/1997, p. 18)39. Se tomarmos qualquer função

mental tipicamente humana, conseguiremos perceber que ela tem uma base biológica, mas se

diferencia dela, pois surge em um dado momento histórico da humanidade e, ao mesmo

tempo, para cada sujeito apresenta uma história que é particular e única das relações que ele

estabelece ao longo de sua própria trajetória de vida. Cultural porque os processos psíquicos

não se desenvolvem de forma espontânea, mas mediados por signos e ferramentas

culturalmente construídos pela humanidade, por meio das relações sociais que estabelecemos:

“(...) a cultura cria uma forma especial de comportamento, ela modifica a atividade das

funções mentais, constrói superestruturas no desenvolvimento do sistema de comportamento

humano” (VIGOTSKI, 1931/1997 p. 18).

Quando Vigotski fala sobre desenvolvimento ele se refere ao desenvolvimento

cultural das funções psicológicas superiores, ou seja, aqueles processos mentais que têm sua

origem nas relações sociais, mediados por signos e ferramentas culturais. Ressalta-se aqui a

38 Em supervisão individual do estágio na Austrália, em 1º de março de 2016, ao discutirmos o manuscrito Psicologia Concreta do Homem, de 1929, publicado no Brasil em 2000. 39 Tradução livre do inglês.

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discussão ainda em curso sobre quais seriam as funções psicológicas e a necessidade de

compreendê-las de modo complexo e integrado (DELARI, 2011). Vigotski elenca algumas

delas em sua obra: memória lógica, atenção voluntária, imaginação criadora, pensamento em

conceitos, emoções, volição. Porém, essas funções não se encontram compartimentadas no

sujeito e, por isso, devem ser estudadas em sua dinâmica e interação.

Desenvolvimento é, portanto, um processo complexo de mudança qualitativa, de

reorganização das funções psicológicas superiores do sistema psíquico (VERESOV, 2010).

Se tomarmos uma pessoa em particular, veremos que ela pertence à espécie humana, cujo

processo evolutivo biológico a tornou semelhante a outros de sua espécie, entrada do

desenvolvimento denominada como filogênese. Ao mesmo tempo, ela nasceu com um

determinado material genético e determinadas condições biológicas próprias que a

diferenciam de outros de sua espécie. Em uma outra dimensão, temos que essa mesma pessoa

nasceu em um dado momento histórico e em uma dada cultura, que tem costumes e idioma

próprios, denominado por Vigotski como entrada sociogênica. Em uma outra dimensão,

temos que essa mesma pessoa tem sua trajetória particular e única de vida, de acontecimentos

e relacionamentos, que em combinação complexa com todas as outras entradas do

desenvolvimento, caracteriza-se na entrada denominada como ontogênese. Por fim, há a

entrada microgenética, que explica as pequenas mudanças qualitativas quase imperceptíveis

no desenvolvimento, processo usado por Vigotski para compreender que os processos

psíquicos não estão fossilizados, mas em constante vir a ser. Todas estas entradas compõem o

que Vigotski analisou como o complexo processo de desenvolvimento cultural, que tem bases

biológicas, mas cuja gênese é social (VIGOTSKI, 1931/1997).

Dizer que em uma pesquisa iremos analisar o processo de desenvolvimento é uma

assertiva muito ampla, pois diz respeito a tudo que aconteceu e a todos os elementos que

compõem aquele sujeito para quem olhamos. Por outro lado, selecionar apenas um elemento

e não o enxergar à luz do todo, pode nos levar a uma mera descrição superficial e não a uma

explicação. Veresov (2010) indica que o desenvolvimento é composto por diversos aspectos e

para cada um deles temos conceitos que nos ajudam a entender o processo, sem perder de

vista sua complexidade. Usando a metáfora da viagem, vamos supor que alguém que não fez

parte daquela excursão sinta curiosidade em saber como foi o passeio feito por seus colegas.

Muitos elementos compuseram essa experiência – trajeto de ida e vinda, pontos turísticos

visitados, compras, hospedagem, pessoas que conheceram, imprevistos, tomadas de decisão,

registros fotográficos, comidas que experimentaram... – se um desses elementos mudasse, a

experiência como um todo também seria diferente. Nessa conversa, poderiam, portanto,

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focalizar diferentes aspectos a depender do que é consideram importante relatar para aquele

amigo – imprevistos, as belas paisagens, a culinária do local, as compras realizadas. Porém,

estariam, ainda assim, falando sobre a mesma viagem.

Cada conceito está relacionado a certos aspectos do processo de desenvolvimento

como um todo e consegue explicar um dado aspecto do desenvolvimento e, ao realizar esse

movimento analítico de forma dialética, o pesquisador é capaz de ir além da aparência do

material empírico produzido. Por isso, delineio a seguir os aspectos e os respectivos conceitos

teóricos que serão chave de análise para o material produzido para compreender o grupo

colaborativo como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com

demandas educacionais.

a) Natureza e fonte do desenvolvimento – Situação social de desenvolvimento (SSD)

Vigotski (1931/1997, p. 72) 40 diz que:

A análise do processo, não do produto, análise que revela a real conexão e relação causal e dinâmica, mas que não rompe com as características do processo e que é, consequentemente, uma análise explicativa e não descritiva e, finalmente, uma análise genética, que volta ao ponto inicial e reestabelece todos os processos de desenvolvimento.

Aqui percebemos que o desafio do pesquisador é olhar para o processo de

desenvolvimento em movimento, buscando a gênese que ocasionou as mudanças naquele

fenômeno analisado e reconstruindo os elementos que deram origem ao processo. Para

Vigotski, toda função psicológica superior tem sua gênese nas relações sociais. Temos,

portanto, para cada mudança que ocorre no sujeito um dado contexto social e neste contexto

um sistema de interações que é fonte destas mudanças. As relações sociais são, portanto, a

natureza e a fonte de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Situação social

de desenvolvimento é o conceito que nos ajuda a compreender esse aspecto:

A situação social de desenvolvimento representa o momento inicial para todas as mudanças dinâmicas que ocorrem no desenvolvimento durante um dado período. Ela determina toda e completamente as formas e o percurso ao longo do qual a criança vai adquirir novas características de personalidade, extraindo-as da realidade social como a fonte básica de

40 Tradução livre do inglês.

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desenvolvimento, o percurso ao longo do qual o social se torna o individual. (VIGOTSKI, 1934/1998, p. 22)41

Vigotski nos convida a encontrar as relações sociais que constituem as funções

psicológicas individuais. Nesta pesquisa temos o grupo como o contexto, mas ele por si só

não é a fonte – as interações humanas que lá aconteceram é o que defendo como fonte de

desenvolvimento profissional (NASCIUTTI; VERESOV; ARAGÃO, 2016). Como

aconteceram as relações nesse grupo? Como o processo de mediação estabelecido a partir

dessas relações criaram condições para mudanças qualitativas nos sujeitos?

As mudanças que ocorrem a partir de um dado sistema de interações são únicas,

porém são regidas por uma mesma lei – lei genética geral do desenvolvimento humano – e é

ela que nos permite analisar e explicar as mudanças qualitativas:

Toda função entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsíquica e depois no interior da criança como categoria intrapsíquica. (VIGOTSKI, 1931/1997, p. 106)42

É importante notar dois pontos: 1) as funções psicológicas superiores (FPS) não

‘aparecem’ entre as pessoas para depois ‘reaparecerem’ dentro delas, Vigotski indica que as

FPS internalizadas são elas mesmas relações sociais, em outras palavras, uma vez

internalizadas, as funções psicológicas “permanecem ‘quasi’-sociais. O individual, o pessoal

– não é ‘contra’, mas uma forma superior de sociabilidade” (Vigotski, 1929/2000); 2) nem

todas as relações são internalizadas, mas apenas aquelas relações categóricas, dramáticas,

intensas (VERESOV, 2015), a partir do processo de mediação, o qual permite a

transformação de funções rudimentares em funções complexas, a partir da apropriação das

significações culturais “incorporadas por cada pessoa, adquirindo suas peculiaridades”

(PINO, 2005, p. 160). A partir daqui, podemos seguir para o segundo aspecto e conceito-

chave.

b) Forças motrizes – Drama

Vejamos a seguinte citação:

41 Tradução livre do inglês. 42 Tradução livre do inglês.

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O desenvolvimento toma um caráter turbulento, impetuoso e algumas vezes catastrófico que se assemelha a um curso revolucionário de eventos tanto no nível de mudanças que ocorrem quanto no sentido das mudanças que são feitas. (VIGOTSKI, 1934/1998, p. 9)43

Estamos sempre e inevitavelmente imersos em um dado contexto e

consequentemente em interações sociais diversas e acontecimentos diários e isso por si só

não provoca mudança em quem somos ou em como pensamos/sentimos. Porém, podem

surgir, neste contexto, interações sociais que geram colisões – seja por sua intensidade

emocional, por nos desafiarem cognitivamente, por nos fazerem pensar de um outro modo.

Essas colisões e interações dramáticas são a força motriz do desenvolvimento e o conceito de

drama nos ajuda a compreender esse aspecto:

Tais colisões de experiência emocional podem trazer mudanças radicais na mente do indivíduo e, portanto, podem ser uma espécie de ato de desenvolvimento das funções – o indivíduo pode se tornar diferente, ele se torna superior e acima do seu próprio comportamento. Sem um drama interno, uma categoria interna, tais mudanças mentais são dificilmente possíveis. (VERESOV, 2010, p. 88) 44

Experimentamos tanto crises na dimensão da sociogênese, ou seja, determinadas

experiências dramáticas que são comuns para todos os sujeitos em um dado contexto cultural

e período histórico e que levam a mudanças qualitativas do desenvolvimento (por exemplo: é

esperado que as crianças no Brasil, a partir dos seis anos estejam alfabetizadas ou a transição

para a adolescência, que certamente é um fenômeno social e pelo qual todos passam nessa

cultura e nesse dado período histórico) e temos também, na dimensão ontogenética, crises

que cada sujeito experimenta cotidianamente de forma única, a partir de suas vivências

particulares em determinadas relações (VIGOTSKI, 1934/1998).

As crises são, portanto, uma complexa combinação de elementos do contexto e

do sujeito que as vivenciam, sendo potencialmente capazes de modificar o curso do processo

de desenvolvimento. Logo, o conceito de drama auxilia a compreender a relação individual-

social de forma dialética, uma vez que considera que a força motriz do desenvolvimento não

é a dimensão social de forma isolada, mas a forma como o sujeito se relaciona com o

contexto, por meio de interações dramáticas (VERESOV, 2015).

43 Tradução livre do inglês. 44 Tradução livre do inglês.

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c) Mudanças qualitativas – Perejivanie (переживание)45

Se a situação social do desenvolvimento (SSD) é a fonte e o ponto inicial para

qualquer modificação no sistema psíquico e se não são todas as relações sociais que passam

de uma dimensão interpsíquica para uma dimensão intrapsíquica, mas apenas as situações

sociais dramáticas, a pergunta é: como se internalizam? Como se dá a transição do social para

o individual? Aqui chegamos ao importante aspecto de mudanças qualitativas. Tomemos

novamente a metáfora da viagem, vamos supor que todas as pessoas que participaram

daquela excursão tenham ido aos mesmos lugares, comeram nos mesmos restaurantes,

ficaram no mesmo hotel, fizeram todos os passeios juntos. No retorno, ao contarem sobre a

viagem para o amigo que não foi, cada um deles tem relatos diferentes sobre o que

aprenderam e como interpretaram os mesmos acontecimentos de formas diversas. As

mudanças qualitativas no sistema psicológico se referem justamente ao processo de

apropriação do contexto de forma única e irrepetível e como isto modifica aquele sujeito

como um todo. Perejivanie é o conceito que explica as mudanças qualitativas no sistema

psíquico, na transição do social para o individual. Se a SDD nos ajuda a olhar para a

dimensão do contexto, a perejivanie nos ajuda a olhar para a dimensão do sujeito.

Veresov e Fleer (2016) indicam que, tradicionalmente, este conceito tem sido

usado de forma limitada, referindo-se apenas a algo que acontece a alguém e a como

acontece. Porém, esta terminologia apresenta dois significados diferentes e complexos na

obra de Vigotski: a) perejivanie como um fenômeno, que pode ser observado e que se refere à

dimensão ontológica; b) perejivanie como um conceito analítico, que se refere à dimensão

epistemológica, servindo como uma ferramenta teórica que ajuda na compreensão de como as

relações sociais determinam o curso do desenvolvimento psicológico e que só pode ser

compreendido em relação a outros conceitos fundamentais da teoria.

Escolho aqui me exceder no uso das citações diretas, acreditando ser necessário

trazer a voz do próprio Vigotski (1934/1994)46 sobre este conceito:

45 Esse conceito apresenta traduções muito variadas, ora como emoção, ora como experiência, ora como vivência (Prestes, 2010). Apesar de a perejivanie abarcar a vivência, as emoções, a cognição e outros processos, Veresov (2015) identifica que ela não se define por esses processos, mas pela unidade entre o individual e o social, daí a dificuldade em encontrar uma palavra correspondente para o termo. Em consenso com estes autores, escolho usar o termo no original russo. 46 Tradução livre do inglês.

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[perejivanie é] 47 como a criança se torna consciente de, interpreta e se relaciona emocionalmente com um certo evento. (p. 5) A [perejivanie] surgindo de qualquer situação ou de qualquer aspecto do ambiente determina o tipo de influência que essa situação ou esse ambiente terá na criança. Portanto, não é nenhum dos fatores por si só (se tomados sem relação com a criança) que vão influenciar o futuro curso de seu desenvolvimento, mas os mesmos fatores refratados através do prisma da [perezhivanie] da criança. (p. 3) [perejivanie] é um conceito que nos permite estudar o papel e a influência do ambiente no desenvolvimento psicológico da criança na análise com as leis do desenvolvimento. (p. 7)

As citações revelam que não é possível meramente tentar encontrar no material

de pesquisa a perejivanie como um fenômeno, mas usá-la como um conceito que explica o

processo pelo qual as relações sociais em um dado contexto são refratadas48 pelos sujeitos de

forma única, de acordo com as características e trajetória igualmente singulares,

características estas que têm no social sua origem, revelando a dialética entre social-

individual:

Para afirmar uma certa posição geral, seria correto dizer que o ambiente determina o desenvolvimento da criança, através da [perejivanie] do ambiente. (...) a criança é parte da situação social e a relação da criança com o ambiente e do ambiente com a criança ocorre através da [perejivanie]. (VIGOTSKI, 1934/1994, p. 294)49

Logo, diante do material empírico de pesquisa, ao analisarmos o processo de

desenvolvimento psíquico em quaisquer de suas dimensões, é importante perguntarmos: qual

foi o contexto? Deste contexto, quais são as SSD que se caracterizam como momento inicial

de mudança qualitativa? Quais são as colisões, os eventos dramáticos que impulsionaram as

mudanças? Como essas interações dramáticas foram refratadas pelos sujeitos em sua

singularidade? Quais transições e mudanças encontramos? Portanto, perejivanie, usada como

uma ferramenta analítica indissociada dos conceitos de SSD, e drama, são fundamentais para

compreender o curso do desenvolvimento do sujeito de forma complexa e dialética. 47 O termo encontra-se entre colchetes, tal como na tradução utilizada, porém no texto original perejivanie é traduzida como “experiência emocional” ou “experiência”. Em acordo com Veresov e Fleer (2016), substituo o termo pelo original russo nas citações que seguem. 48 O termo “refratada” é usado aqui de acordo com a metáfora escolhida por Vigotski (1934/1998) para explicar o conceito de perejivanie. Ao contrário da ideia de reflexo, na qual o espelho reproduz fielmente a imagem nele refletida, na refração temos um prisma, no qual a luz entra de uma dada forma mas sai do prisma em múltiplas cores e dimensões. Assim é o conceito de perejivanie, para explicar como cada sujeito refrata o contexto social de forma única. 49 Tradução livre do inglês.

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Finalizo este tópico sobre a Teoria Histórico-Cultural expressando meu

encantamento por essa perspectiva teórica. Considero-me uma viajante em curso, entendendo

que muito ainda há pela frente para aprender. No meu lugar de aprendiz, posso dizer que uma

das mais preciosas contribuições de Vigotski é a valorização plena e absoluta das relações

sociais, imersas e inseparáveis da conjuntura histórica e cultural, como fonte de

desenvolvimento humano. Esse olhar possibilita propor ações voltadas para a formação

humana de modo integral em contextos diversos, valorizando os processos de ensino e

rompendo definitiva e radicalmente com qualquer noção cindida, linear e reducionista de ser

humano.

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3. Planejar a rota, percorrer caminhos: sobre as escolhas de pesquisa

3.1. Norte, sul, leste, oeste: apresentando as coordenadas de pesquisa

Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais;

caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar.

– Cantares, Antonio Machado –

O principal intuito deste tópico é delimitar o aporte metodológico que sustenta

esta pesquisa, bem como os caminhos trilhados para produzir o material, uma vez que

qualquer investigação está relacionada à produção de conhecimento e, assim, ao campo da

ciência. E como poderíamos definir o que é conhecimento e o que é ciência? Vieira Pinto

(1979) aponta uma definição possível ao afirmar que o conhecimento é “a possibilidade de

dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la às suas necessidades”. Portanto, desde que o ser

humano se tornou uma espécie diferente das demais, capaz de transformar a natureza, muito

antes de surgir o conhecimento científico sistematizado, já havia produção de conhecimento.

Segundo o autor, de um conhecimento tácito, baseado na experiência empírica direta, a

humanidade caminhou para o nível de uma autoconsciência sobre o saber que possui, para em

seguida conseguir criar métodos para conhecer e para sistematizar o conhecimento, de modo

a prevê-lo, conhecer as leis da realidade e transformá-la de modo ainda mais complexo,

originado que hoje podemos definir como ciência.

Os campos de conhecimento científico e os métodos de conhecimento da

realidade são diversos. Entretanto, segundo Chalmers (1993), há uma superioridade conferida

ao paradigma positivista de ciência que considera que, para uma pesquisa ser considerada

científica, é necessário que uma hipótese derivada de uma dada teoria seja testada e validada,

de forma neutra e objetiva, para assim se tornar um preceito universal. Porém, cabe a

questão: é possível que um mesmo método consiga abarcar toda a diversidade que nos cerca?

Boaventura Santos (2006) nos ajuda a pensar que não. Ao criticar o absolutismo positivista

no campo da ciência, o autor considera que não devemos hierarquizar as formas de se

conhecer o mundo, como se houvesse uma ciência superior à outra. Pelo contrário, devemos

partir do princípio de que toda produção científica é uma construção social, local e datada

historicamente e que, portanto, nenhum campo da ciência consiste em uma verdade absoluta.

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Diante da impossibilidade de aderir a um único método investigativo para toda e

qualquer conjuntura, Flick (2004) analisa que a pesquisa qualitativa surge no campo das

Ciências Humanas a partir da necessidade de analisar a produção de sentidos em contextos

particulares, uma vez que o estudo das relações sociais exige formas de investigação nas

quais a construção de conhecimento é realizada mediante o estudo e análise de contextos

locais. Uma possível definição de pesquisa qualitativa seria que esta é uma modalidade

caracterizada por contextualizar os sujeitos durante todo o estudo, analisando as informações

de forma descritiva e detalhada, na qual o processo em que a questão estudada foi constituída

é mais relevante do que o produto ou os resultados da mesma (BOGDAN & BIKLEN, 1994).

González-Rey (2002) acrescenta que os estudos na perspectiva qualitativa se propõem a

compreender os fenômenos e criar teorias acerca de uma realidade “plurideterminada,

diferenciada, irregular, interativa e histórica” (p. 29). A dimensão singular e contextualizada

de pesquisas de cunho qualitativo, não deve, entretanto, implicar em um olhar

individualizante para a situação investigada, com o mero objetivo de descrever aquilo que se

observa. Pelo contrário, partindo das realidades locais é fundamental a busca pelas múltiplas

determinações que as constituem, para compreender e transformar aquilo que se estuda. É

preciso rigor, curiosidade, questionamento, diálogo crítico com teorias historicamente postas

e o constante movimento de articular dialeticamente as produções de pesquisa com a vida

cotidiana.

A discussão desses pressupostos indica que não há uma forma padrão de se

desenvolver uma pesquisa e que esse processo ganha especificidades à medida que o

pesquisador desbrava o campo investigativo. Não há, portanto, um método superior a outro,

mas, sim, objetivos de pesquisa que exigem que o pesquisador escolha um ou outro caminho

por onde deve trilhar a investigação. Considerando que o objetivo da pesquisa é analisar o

grupo colaborativo como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com

demandas educacionais, a escolha de uma pesquisa-intervenção, pautada no paradigma

qualitativo, por meio da proposta de um curso de formação profissional se fez coerente, uma

vez que pretendia produzir o material empírico em parceria com os sujeitos de pesquisa,

buscando criar situações que me ajudassem a pensar o campo do desenvolvimento

profissional tendo as relações como centrais e não como mero pano de fundo.

Além de uma pesquisa-intervenção pautada em uma perspectiva qualitativa,

considero que os princípios metodológicos vigotskianos também compuseram a produção do

material empírico. Vigotski desenvolveu sua obra a partir de estudos empíricos,

principalmente experimentos com crianças, que podem ser encontrados em diversos

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momentos ao longo dos diversos textos publicados nas Obras Escolhidas50. Podemos dizer

que o desenvolvimento teórico e metodológico são dimensões igualmente importantes de sua

obra. Considerando a lei genética do desenvolvimento humano, segundo a qual toda função

psicológica entra em cena em dois planos (primeiro, interpsíquico e, depois, intrapsíquico),

sendo que nesse processo os signos são internalizados e modificam o sistema psicológico,

Vigotski estava interessado em entender não o resultado, mas o processo em si,

reconstruindo-o para compreender os determinantes de sua origem (VERESOV, 2014). No

método desenvolvido por Vigotski, denominado experimental genético, ele se valia de

experimentos no intuito de criar situações, oferecendo, por exemplo, atividades e desafios

para as crianças para que ele conseguisse visualizar todo o processo de desenvolvimento de

funções psicológicas. Com isso, buscava superar as pesquisas que tradicionalmente eram

feitas no campo da Psicologia e que tentavam apenas mensurar o que já havia sido alcançado

para depois descrever os fenômenos psicológicos. Para ele, o desenvolvimento é um

complexo objeto de estudo e que deve ser investigado como processo:

Em nossa concepção, esse propósito é descobrir a consistência interna, a lógica interna, as conexões internas e as interdependências que determinam o curso e a estrutura do processo de desenvolvimento da criança. (VIGOTSKI, 1931/1993, p. 252)51

Apesar de não ter desenvolvido um estudo aos moldes idênticos que Vigotski

realizava, identifico que o Curso de Difusão se aproximou da metodologia vigotskiana, pois

foi um contexto especialmente criado para analisar o processo de desenvolvimento

profissional. Havia minhas intencionalidades investigativas, assim como atividades

oferecidas ao grupo com o objetivo de contribuir com a formação das participantes. O foco

estava, portanto, em criar situações propícias para o desenvolvimento do grupo e em analisar

o percurso percorrido.

A frase da epígrafe, “caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar” é

pertinente para pensar esse percurso. Ao embarcar nesta pesquisa escolhi ser como uma

aventureira, que não escolhe um destino final, mas se desafia a descobrir as estradas ao longo

do percurso. É claro que em uma viagem deste tipo também temos que fazer escolhas prévias,

50 Existem seis tomos das Obras Escolhidas, as publicações mais conhecidas são em inglês e espanhol. Para entender a relação das publicações, ver DELARI, A. Obras escolhidas de Vigotski (títulos na edição espanhola), 2005 [texto não publicado formalmente]. Acesso: https://www.scribd.com/doc/10283264/Lista-completa-dos-titulos-das-obras-escolhidas-de-Vigotski 51 Tradução livre do inglês.

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pois sabemos de onde partir e temos uma aposta de destinos que gostaríamos ou não de

conhecer, mas deixamos que o trajeto nos surpreenda, encontrando ao longo dele paisagens

nunca antes imaginadas.

3.2. Com mapa em mãos: apresentando a proposta

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse A anatomia de um corpo...

(...) Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...) – O Mapa, Mário Quintana –

No segundo semestre de 2014, a partir do diálogo com minha orientadora e com

colegas de pesquisa, defini que o objetivo da Tese seria investigar o desenvolvimento

profissional de psicólogos escolares, a partir de uma proposta de formação em grupo.

Consideramos, desde o início, realizar uma ação ligada à extensão universitária, por

identificarmos a importância de institucionalizar o trabalho, colaborando para a parceria entre

universidade e comunidade externa, dentro do tripé: ensino, pesquisa e extensão. Para

produzir o material empírico, escolhi oferecer um curso dentro da modalidade de Curso

Difusão Científica, oferecido pela Escola de Extensão da Universidade Estadual de Campinas

(EXTECAMP), “criados pela deliberação CEPE A 06/01 e substituída pela CEPE A 22/04,

com o propósito de divulgar cultura, conhecimentos e técnicas de trabalho”52.

Algumas dúvidas surgiram nesse processo: haveria procura para um curso

voltado para psicólogos escolares? Quem são os psicólogos escolares53: somente aqueles que

trabalham em escolas e outras instituições educacionais? E outros profissionais da Psicologia

que de algum modo lidam com questões de escolarização em suas práticas em contextos

diversos, sentir-se-iam convidados também dentro do público-alvo “psicólogos escolares”? E

ainda: que planejamento fazer? Como propor a ementa e as atividades de modo a

proporcionar um espaço de diálogo a ser construído em conjunto?

52 Informações do site https://www.extecamp.unicamp.br/cursos.asp. 53 Esta questão está discutida de forma aprofundada no capítulo de fundamentação teórica.

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Movidas pelos questionamentos e dúvidas, escolhemos, inicialmente, como

público-alvo psicólogos que trabalhassem com demandas educacionais e que tivessem

interesse em discutir aspectos e dimensões de seu trabalho coletivamente54. Deixamos claro

que o profissional não precisaria atuar necessariamente em escolas ou outras instituições de

ensino formal, contanto que seu trabalho envolvesse processos educativos, com o intuito de

convidar uma amplitude maior de profissionais para comporem o grupo. Com relação ao

planejamento, decidimos não apresentar uma proposta fechada, mas um convite à parceria, no

qual a decisão sobre os temas a serem dialogados emanaria dos interesses das participantes,

em consonância com atividades e sugestões levadas por mim, para mediar o desenvolvimento

dos encontros, tendo em vista a produção da pesquisa.

Para isso, definimos que a proposta deste grupo abarcaria duas dimensões dentro

da mesma pesquisa: o projeto formativo e o projeto investigativo. Aragão (2010) define que

esta modalidade abarca, dentro de uma mesma proposta, objetivos diferentes, porém

dialeticamente relacionados, que dialogam e se entrelaçam – o projeto formativo seria aquele

em que há o intuito explícito e intencional de contribuir para a formação de um determinado

grupo; já o projeto investigativo, abarcaria o movimento do próprio pesquisador de, a partir

daquela proposta de formação, investigar determinadas questões e aspectos. Assim,

inicialmente, havia tanto o interesse de contribuir com a formação profissional de psicólogos

que trabalham com demandas educacionais, quanto analisar esse processo formativo por

meio do trabalho em grupo.

Foi definida a realização de 08 encontros semanais, de 2h de duração cada

(das 18h às 20h), a terem início em 24 de setembro de 2014, com término em 13 de

novembro de 2014. Para a divulgação da proposta, elaboramos um folder (Apêndice 3), que

continha uma breve explicação sobre o curso, com os principais objetivos, as datas e as

instruções para inscrição, que seria realizada por e-mail. Divulgamos o curso em listas de e-

mail e redes sociais e, aos interessados, solicitamos o preenchimento de uma ficha de

inscrição, constando dados pessoais e de formação (Apêndice 4). Ao todo, recebemos 18

inscrições, com as fichas de cadastro devidamente preenchidas.

Para minha surpresa, nem todos os inscritos eram psicólogos: quatro eram

profissionais da área da Educação (uma coordenadora pedagógica, dois professores do ensino

básico, uma fonoaudióloga, uma pessoa formada em Psicologia e em Pedagogia, mas que

atua somente como professora), além de dois estudantes de Psicologia. Entrei no seguinte

54 Vide o folder de divulgação do curso (Apêndice 3)

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dilema: incluir ou não estes interessados? Decidi, então, acolhê-los no grupo, apostando que

no diálogo sobre as contribuições da Psicologia no trabalho com demandas educacionais seria

enriquecedor ouvir outros profissionais, que são parceiros do psicólogo, tais como

educadores e fonoaudiólogos. Acredito que não seria coerente com uma proposta

colaborativa excluir profissionais com formações diferentes, uma vez que a Psicologia é

apenas uma dentre tantas ciências que podem contribuir para pensar as questões

educacionais. Portanto, aceitei essa diversidade apostando que outros profissionais poderiam

ampliar os olhares sobre os temas discutidos.

A decisão de incluir profissionais diversos no grupo modificou profundamente a

pesquisa, levando-me a reelaborar os objetivos. Considerando que a pesquisa desenvolvida se

encontra em um prisma qualitativo (SANTOS, 2006; FLICK, 2004; GONZÁLEZ-REY,

2002), a produção do material empírico não foi uma mera “aplicação” da proposta do projeto

inicial, mas compôs diretamente o curso investigativo, contribuindo para transformar e

conferir forma e conteúdo à Tese. Logo, somente no decorrer de produção e análise do

material é que identifiquei com mais clareza meu objetivo de pesquisa chegando à

configuração que agora apresento. Afirmando o precioso lugar da colaboração e da

importância do coletivo, ressalto que o apoio dos colegas do GEPEC, das supervisões com a

Professora Ana, com o Professor Nikolai e das reuniões de pesquisa na Monash University

foram essenciais para esse processo, contribuindo fundamentalmente para refinar meu olhar

sobre o material, oferecendo possibilidades e referências que ajudaram na elaboração das

ideias que aqui apresento.

Portanto, ao incluir outros profissionais, não estava mais investigando a formação

do psicólogo, mas o desenvolvimento de profissionais que trabalham com demandas

educacionais, a partir do grupo colaborativo, que consistiu como objeto e procedimento de

pesquisa. A denominação do trabalho como grupo colaborativo foi delineada a partir das

contribuições de Fiorentini e Crecci (2013) Fiorentini e Gama (2009) e Proença e Buciano

(2012). Quando idealizei o grupo, já havia pensado em propor um espaço de colaboração,

antes mesmo de conhecer esta proposta, por meio da valorização de uma postura horizontal e

da construção conjunta das atividades e temas a serem discutidos no decorrer dos encontros.

A ideia, desde o início não era “coletar informações”, mas proporcionar um espaço de

discussão sobre dilemas do trabalho com demandas educacionais, a partir principalmente dos

conhecimentos Psicologia Escolar e Educacional, de forma que o processo de estar em grupo

com esse propósito pudesse contribuir para a formação das participantes. Ao conhecer o

trabalho denominado grupos colaborativos, identifiquei-me prontamente e encontrei

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subsídios que me ajudaram a compreender o que eu havia produzido. O trabalho em

colaboração, no qual profissionais com interesses em comum se reúnem para partilhar os

impasses e angústias vivenciados na prática, bem como o diálogo sobre possibilidades de

atuação proporciona o fortalecimento do vínculo entre os participantes – implicados em um

trabalho formativo e transformador, os participantes se identificam uns com os outros e não

mais se sentem sozinhos em seus enfrentamentos cotidianos (PROENÇA & BUCIANO,

2012).

Das 18 inscrições, compareceram 10 participantes no primeiro encontro, que

serão apresentados a seguir, no item 3.3. Alguns desistentes não informaram o motivo e

outros disseram que isso aconteceu por incompatibilidade de horários. Os encontros

aconteceram em uma sala de aula do Prédio Anexo da Faculdade de Educação da

UNICAMP.

Empenhei-me na escolha de uma sala ampla e climatizada que comportasse as

participantes confortavelmente, considerando que a época do ano em que os encontros

aconteceram era de intenso calor. No primeiro encontro, levei um lanche para receber as

participantes e fiz a proposta de nos revezarmos a cada encontro na partilha da alimentação

para aconchego de todas e todos. Concordo com Ferreira (2014) que o cuidado com esses

aspectos também compõe o processo de produção do material empírico, não para meramente

“criar condições favoráveis”, mas fundamentalmente pela importância dos saberes sensíveis

para o desenvolvimento humano. O lanche não foi somente uma forma de criar uma situação

mais confortáveis, mas foi um dos elementos que constituiu a formação sensível, a partir da

acolhida e da valorização das interações, a partir de um processo formativo que não era

somente intelectual, técnico ou cientificista, mas igualmente estético, sensível, pessoal.

Contei, também, com a preciosa parceria da aluna que cursava o último período

de Pedagogia, Bianca Fiod Affonso, como auxiliar de pesquisa. Ela esteve presente em todos

os encontros e foi responsável por me ajudar a organizar as atividades, o espaço físico e fazer

um registro fotográfico. Para além da colaboração nas atividades de ordem prática, sua

presença no grupo foi essencial para ajudar nas conversas do grupo, tecendo colocações

pertinentes e que contribuíram para o desenvolvimento dos encontros. A participação de

alunas de graduação como auxiliares na produção da pesquisa de pós-graduação é uma

prática que temos priorizado em nosso grupo, por compreendermos essa parceria como

atividade importante para a formação das pesquisadoras iniciantes, além do fato de

contribuírem com os pesquisadores mais experientes, tecendo considerações que muito

colaboram com o processo de pesquisa.

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Decidi preparar o primeiro encontro com o objetivo de apresentar a proposta ao

grupo e conhecer as participantes e, a partir daí, planejar os demais, semana a semana, a fim

de que os acontecimentos do próprio grupo pudessem servir como guia e inspiração para o

encontro seguinte, respeitando o movimento e as sugestões das participantes.

A ideia de uma construção conjunta, por meio da escuta atenta às demandas e ao

movimento do grupo foi sustentada pelo entendimento de que mais que sujeitos de pesquisa,

as participantes eram companheiras de viagem que trilhariam comigo uma longa jornada. E

foi um grande desafio construir essa parceria: Eu tinha uma pesquisa, com objetivos

delineados. Eu receberia pessoas interessadas em discutir sobre o trabalho com demandas

educacionais. Por qual mapa me guiar para a construção dos encontros? Haveria um mapa?

Senti-me como versa Mário Quintana no poema da epígrafe ao descrever um mapa de um

lugar onde ele nunca esteve.

Considerando meu lugar de propositora dos encontros, havia, sim, um mapa a me

guiar, um planejamento e atividades cuidadosamente preparadas e pensadas para facilitar

nossas conversas. Neste mapa, existiam ruas já conhecidas, mas também (e muito mais) ruas

desconhecidas, caminhos por onde nunca passei, trajetos que nunca fiz. Ruas encantadas,

surpreendentes, que eu não poderia prever no itinerário inicial e que poderiam ser exploradas

somente no/com o grupo.

Portanto, é importante explicitar, a seguir, duas dimensões metodológicas

fundamentais para a produção do material empírico: os princípios de construção da proposta

e as estratégias utilizadas para conduzir os encontros.

Os princípios se caracterizam pelos elementos básicos e fundamentais que

fundamentaram cada ação no grupo, a partir do conjunto de intencionalidade, fundadas em

meus pressupostos teóricos e baseadas nos objetivos da pesquisa. Os princípios não oferecem

garantia de como serão os resultados da proposta, mas abrem e direcionam os caminhos,

fundamentando as escolhas metodológicas:

a. Atenção ao processo de constituição do grupo: o convite veiculado na divulgação

da proposta teve como temática central a discussão sobre os impasses e

possibilidades do trabalho com demandas educacionais. Tínhamos, inicialmente,

como ponto de interesse comum a temática da atuação do psicólogo junto a

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questões do campo educacional, como podemos observar na fala de uma das

participantes55:

Mesmo as participantes que não eram psicólogas também apresentavam interesse

em conhecer um pouco mais sobre as possibilidades de trabalho da Psicologia na Educação,

como podemos identificar na fala da participante Alice, professora de Educação Infantil:

Como propositora, pretendia proporcionar um espaço que possibilitasse o diálogo

e a produção de conhecimentos sobre essa temática, contribuindo para a formação das

participantes. No entanto, desde o início não tinha a intenção de que isso acontecesse por

meio da mera transmissão de conteúdos. Não era meu intuito despejar sobre o grupo teorias e

conceitos que eu considerava importantes, mas me atentar para que a produção de saberes

fosse construída no grupo e com o grupo, por meio do diálogo e da partilha da prática. Para

isso, foi necessário proporcionar um contexto acolhedor e afetuoso, priorizando a escuta

atenta das falas, sugestões e contribuições de cada um para o grupo, de modo que aos poucos

as participantes se sentissem pertencentes àquele espaço. Identifico isso, por exemplo,

quando já no primeiro encontro levei para eles um lanche, explicitando que, para além das

discussões da dimensão profissional, o grupo também era espaço para a formação de vínculos

afetivos:

55 Ainda que este seja o capítulo metodológico, escolho trazer trechos das falas ou de materiais produzidos pelas participantes para ilustrar e compor este tópico. Os excertos serão destacados em itálico em uma caixa de texto e os nomes apresentados são fictícios, preservando a identidade das participantes. Mais à frente, as participantes, bem como cada tipo de material produzido no grupo, serão apresentados. Aqui trago não apenas as audiogravações, que foram devidamente autorizadas pelas participantes, como também outras fontes de material, todas elas discutidas adiante.

A gente tem uma série de problemas a serem resolvidos e eu me sinto às vezes desatualizada dentro da psicologia escolar, fui muito para a clínica, para a psicanálise e eu me sinto desatualizada mesmo, eu queria contar com pessoas que estão na prática, para a gente debater, me sentir mais atualizada e nesse processo da troca, poder evoluir de alguma forma. (Luiza, audiogravação, encontro 1)

Na graduação de pedagogia a gente tem uma matéria, mas o olhar do psicólogo é muito importante. É isso que eu vim buscar, a troca de experiência, saberes novos que possam contribuir com a minha prática. (Alice, audiogravação, encontro 1)

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b. Postura horizontal-vertical como propositora/pesquisadora/participante: a atenção e

cuidado com o processo de constituição do grupo exige a explicitação de um outro

pressuposto: o meu exercício em busca de uma postura horizontal e ao mesmo tempo

vertical. Considero que ocupei um triplo lugar no grupo: propositora, pesquisadora e

participante. Como propositora era meu dever estar atenta ao movimento das

participantes, respeitando suas falas e interesses, buscando tecer considerações e

também propor atividades que ajudassem no desenvolvimento dos encontros, dando o

tom na escolha de textos para discussão e de conceitos importantes a serem discutidos

em cada momento. Assim, flutuava entre instigar as participantes se engajarem no

grupo e fazer colocações que eu considerava pertinentes, em uma postura

simultaneamente vertical e horizontal (SÁ-CHAVES, 2012). Meu exercício era ter em

vista a produção do material empírico, para isso, buscava um olhar atento para cada

acontecimento, cuidando para que o tema da pesquisa fosse contemplado em nossas

conversas, o que também me instigou a propor atividades como o registro reflexivo e

a carta ao amigo (ambas detalhadas no tópico seguinte), pelas quais eu pude

apreender de forma mais aprofundada, via escrita, os sentidos produzidos pelas

participantes. A intencionalidade exercida a partir de colocações e sugestão de

atividades não excluiu um momento algum a postura horizontal que busquei diante do

grupo. No percurso de construção dos encontros, eu também era participante, que

explicitava minhas dúvidas e anseios com relação ao trabalho do psicólogo no campo

educacional e também aprendia com o grupo:

c. Postura reflexiva ao longo do processo: como já explicitado, optei por não

apresentar uma ementa de curso pronta, mas mediar a construção da proposta ao

longo dos encontros e a partir das participantes. Para isso, foi necessário um

A ideia do lanche é para ter esse conforto e esse momento de distrair um pouquinho (...). Hoje eu trouxe e a ideia é de que a cada encontro alguém traga um lanche. E o lanche é momento de partilha também. Vai ser um momento pra gente poder ter uma conversa fiada e nos ajuda a desenvolver melhor o encontro. (Fabiana, audiogravação, encontro 1)

Todo mundo falou “ah, eu tô aqui para aprender”, eu estou aqui para aprender também, muito! Aprender com a experiência de cada um deixar que vocês conduzam o processo. (...) As atividades são nesse sentido de colocar vocês como participantes mesmo, do grupo. (Fabiana, audiogravação, encontro 1)

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constante movimento de análise das minhas ações e dos acontecimentos no grupo.

Ao término de cada encontro, eu escrevia minhas considerações no diário de bordo,

buscando destacar os episódios que mais me chamaram a atenção, que me

inquietaram ou que geraram dúvidas, em busca de repensar as estratégias, refinando-

as de acordo com os objetivos da pesquisa e com os interesses do grupo. A postura

reflexiva também era exercitada coletivamente com o grupo, mediante a leitura

semanal do registro reflexivo de uma das participantes sobre o encontro anterior.

Esse momento nos ajudava a tomar consciência do vivido, direcionando a rota

trilhada. Um exemplo disso é que nos primeiros encontros houve um extenso

momento de desabafo das dificuldades vivenciadas no contexto de trabalho, gerando

no grupo uma preocupação se conseguiríamos dar conta de trazer, para além dos

problemas, ideias e propostas de superação considerando o número de encontros.

Exemplifico essa questão com um trecho do registro reflexivo56 de uma participante

partilhado no grupo, momento que nos ajudou a compreender essa situação e a

delinear propostas possíveis:

d. Compreensão contextualizada dos acontecimentos: em busca de uma coerência com

os pressupostos teóricos que defendo, principalmente a partir da Teoria Histórico-

Cultural, busquei um olhar amplo, que considerasse os acontecimentos do grupo a

partir da inserção em um contexto maior, considerando as múltiplas determinações

envolvidas nas situações vivenciadas. Por exemplo, ao longo das propostas

sugeridas por mim, algumas participantes indicaram dificuldade para entregar no

prazo proposto. Minha postura era sempre de verificar os motivos que

circunscreviam tais situações, buscando compreender a condição de cada

participante. Na data em que aconteceu o curso (entre setembro e novembro) muitos

deles estavam atribulados com as demandas de trabalho e, assim, não puderam

corresponder com todas as solicitações. Houve o caso de uma participante que 56 Esta estratégia será explicada a seguir.

Os dois primeiros encontros desta proposta foram formadores, gestacionais, eu diria, pois funcionaram como preparadores iniciais e direcionadores da reflexão sobre o objeto central de estudo e ação deste projeto. Este terceiro momento me marcou como o nascimento propriamente dito deste núcleo. O que parecia solto, encontrou seu eixo e objetivo. (Registro reflexivo de Lícia, encontro 3)

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estava nas vésperas de seu casamento e que trouxe essa condição para o grupo, para

justificar a ausência em um dos encontros. Além disso, grande parte do grupo

morava em outras cidades e tinha que se deslocar semanalmente e nem sempre

conseguia chegar no horário. Em todos os casos de ausência, eu sempre buscava

saber diretamente com a participante o que havia acontecido, enviando um e-mail ou

mensagem. Houve um episódio interessante, quando, ao perguntar a uma

participante sobre sua ausência, ela respondeu:

Em resposta, eu disse:

Esse episódio ilustra o movimento de atenção às condições e aos contextos das

participantes, em busca de não inferir julgamentos apressados sem antes analisar

cuidadosamente o que ocorreu. Penso que essa postura compôs também a constituição de

vínculos no grupo e fortaleceu meu lugar como propos da proposta.

As estratégias utilizadas para a condução do grupo são aquelas atividades,

fundamentadas nos princípios, que contribuíram para criar determinadas condições no grupo,

abrindo espaço para o diálogo, movimentação de saberes e relacionamentos interpessoais. As

estratégias foram pensadas por mim, como autora e participante e também foram discutidas

com o grupo, construídas, portanto, de forma peculiar, de acordo com nossas necessidades e

características. Dentre elas, destaco primeiramente as três estratégias que perpassaram todos

os encontros.

Bom dia Fabi! Realmente não estava bem... e não estou ainda...agora começa aquelas somatizações...rsrsrs...estou com dor de garganta. Já adianto que não fiz os registros e não consegui pegar o texto com a Valentina. Agradeço a preocupação e peço desculpa! Até mais Abraço Ana Elisa

Ana Elisa, Entendo você, a vida é de fato um grande desafio e por vezes daqueles bem difíceis... Espero que hoje, para além das discussões você tenha um espaço de acolhida e afeto! Conte comigo! Beijos Fabi

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a. Elemento Novo: a cada encontro, uma participante seria responsável por apresentar

ao grupo um recurso artístico/estético que tivesse relação com a temática a ser

discutida no dia. Poderia ser um texto (conto, poema, crônica...), uma imagem, uma

música, um vídeo, de forma a acolher os colegas e instigar o diálogo. A proposta

dessa atividade foi sustentada pela compreensão de que os elementos estéticos e

artísticos são fundamentais para o desenvolvimento de um olhar sensível e complexo

sobre as questões a serem discutidas (SILVA, 2005; FERREIRA, 2014).

b. Partilha do Registro Reflexivo: as participantes foram convidadas a realizar,

individualmente, um registro sobre cada encontro vivenciado, expressando aquilo

que foi mais significativo, as reflexões, sentimentos e entendimentos, bem como as

relações estabeleceram entre o que foi vivenciado e sua prática profissional/pessoal.

O registro poderia ser feito livremente, a partir de narrativas que possibilitassem um

exercício de autoria e criatividade. A cada encontro, um membro do grupo se

disponibilizava a ler seu registro, compartilhando no coletivo as impressões sobre o

encontro anterior. Essa atividade nos ajudou a olhar para o processo de construção

da proposta, refletindo conjuntamente sobre as estratégias e significados produzidos

ao longo dos encontros. Ao final do trabalho, deveriam entregar um portfólio

completo, constando todos os registros do percurso de formação no grupo. A

proposta dos registros é inspirada no trabalho de Sá-Chaves (SÁ-CHAVES;

GOMES; PESSATE & GOMES, 2004) com portfólios reflexivos. Segundo a autora,

este instrumento pode ser considerado como uma estratégia reflexiva e avaliativa,

pois possibilita ao aluno o registro de seu percurso, significando e refletindo sobre as

vivências de aprendizagem, ao mesmo tempo em que possibilita ao educador acesso

ao processo de aprendizagem do educando, permitindo que o docente repense e

reconduza constantemente as estratégias utilizadas.

c. Leituras: considerando que a dimensão teórica é essencial para a compreensão da

prática profissional, a cada semana seriam propostos por mim alguns textos (artigos,

capítulos de livro) que contribuíssem para a discussão desenvolvida em grupo, de

acordo com as temáticas escolhidas por nós. A ideia não era ficarmos presos aos

textos, destacando um ou outro trecho que mais chamou a atenção, mas era ter, nos

artigos sugeridos, subsídios para desenvolvermos as discussões em grupo,

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fundamentando e inspirando o diálogo tecido. Em meio à diversidade de formação e

campos de trabalho entre as participantes, havia o interesse comum de discutir as

possibilidades de trabalho com demandas educacionais, partilhando as angústias e

desafios em trabalhar no campo da Educação. No segundo encontro, solicitei às

participantes que levassem por escrito os principais dilemas da prática profissional e,

no terceiro encontro, apresentei uma categorização dos dilemas levados por eles em

eixos centrais para identificarmos as necessidades e interesses em comum. Apesar

de já estabelecido nesse momento um grupo profissionalmente diverso, os objetivos

ainda estavam focados no trabalho do psicólogo. Tendo em vista a intenção inicial

do grupo, as temáticas formalmente escolhidas foram:

• A queixa escolar: o que é, como se constitui e como trabalhar a formação dos

professores a partir da emergência dessa queixa no contexto escolar/A queixa

escolar e a medicalização.

• A relação família-escola no trabalho do psicólogo com demandas educacionais;

• Papéis e funções do psicólogo escolar;

• Implicações do trabalho individualizado e do trabalho coletivo do psicólogo junto às

demandas educacionais.

Ainda que estes títulos se referirem ao trabalho do psicólogo, o conteúdo das

discussões a partir dessas temáticas se referiu ao trabalho com demandas educacionais,

envolvendo a contribuição dos diversos campos de atuação, mas tendo a Psicologia como

balizadora das reflexões, principalmente pela minha formação que inevitavelmente guiou

meu olhar nas proposições de atividades e na mediação da proposta e também pela

composição do grupo que contava com uma maioria de psicólogos e também outros

profissionais interessados em conhecer as contribuições da Psicologia.

Debruçamo-nos em cada encontro sobre a compreensão dessas dimensões, por

meio de questionamentos, partilha da prática profissional, articulando à nossa conversa

elementos teóricos que pudessem nos ajudar, de forma reflexiva. A bibliografia foi sugerida

por mim e aqui destaco novamente que meu olhar guiou escolhas e a condução do grupo,

dando o tom e guiando os caminhos, uma vez que escolhi textos que foram importantes na

minha própria trajetória formativa e que eu considerava que pudessem também ser relevantes

para o grupo. A tabela a seguir indica os textos trabalhados durante os encontros:

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Tabela 3: Bibliografia usada nos encontros

Destaco que as temáticas nortearam nossos encontros, ajudando-nos a produzir

entendimentos importantes sobre Psicologia, Educação, a atuação junto a demandas

educacionais, dentre outros. Em meio ao movimento formativo do grupo, meu olhar voltou-se

também para o processo como discutimos e construímos tais entendimentos, em busca de

compreender como essa partilha em grupo, de forma colaborativa pode contribuir para o

desenvolvimento de profissionais que lidam com demandas educacionais. Valorizando o

cuidado com o processo do grupo, propus, por volta da metade dos encontros realizados, duas

atividades inicialmente não previstas:

a. Cartas Devolutivas dos Registros Reflexivos: solicitei que me entregassem os

registros reflexivos produzidos até o momento, para que eu pudesse ler e ter acesso

de forma mais detalhada ao modo como estavam se apropriando desse instrumento e

a como têm significado os encontros. Sá-Chaves; Gomes; Pessate & Gomes, (2004)

consideram que é importante que o formador tenha acesso às produções reflexivas

dos educandos, para poder apontar considerações pertinentes em “tempo útil”:

MARTÍNEZ, A. M. O que pode fazer o psicólogo na escola? Revista em Aberto, v. 23, n. 83,

2010.Disponívelem:<http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/1634/1298>

GOMES, B. N., PESSATE, L. A., GOMES, S. de O. P. Discutindo sobre portfólios nos processos de

formação: Entrevista com Idália Sá-Chaves. Olhar de Professor, v. 7, n. 2, pp. 9-17, 2004. Disponível

em <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=68470202>

ARAGÃO, A.M.F., Reflexividade e formação docente: considerações a partir de um projeto

formativo-investigativo. In: MAIA, H., FUMES, N.L.F., e AGUIAR, W.M., Formação, atividade e

subjetividade: aspectos indissociáveis da docência. São Paulo: Vilani Editora, 2013.

BARBOSA, D. R.; DA SILVA JUNIOR, M. J.; MURAKAMI, K. A doença do Tom Cruise: uma

experiência de estágio em intervenção psicoeducacional. Psicologia Escolar e Educacional, v. 13, n.

2, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-

85572009000200022&script=sci_arttext>

SOUZA, B. P. Orientação à Queixa Escolar: Considerando a Dimensão Social. Psicologia Ciência e

Profissão, v. 26, n. 2, 2006. Disponível em:<

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932006000200012>

OLIVEIRA, C. B. E. de; MARINHO-ARAUJO, C. M. A relação família-escola: intersecções e

desafios. Estudos de Psicologia, v. 27, n. 1, 2010. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2010000100012>

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Ou seja, nas pequenas narrativas de cariz reflexivo (através das quais os formandos vão evidenciando as suas aprendizagens) o formador deve dar-lhe feedback oportuno e apropriado, para que possam tomar consciência quer dos seus adquiridos quer, sobretudo, do que ainda se mantém em aberto em termos da aprendizagem que está em curso. (SÁ-CHAVES; GOMES; PESSATE & GOMES, 2004, p. 10)

Esse diálogo possibilitou guiar o curso da aprendizagem, elencando conceitos a

serem desenvolvidos e identificando indícios importantes para aprimorar o processo de

desenvolvimento do educando. Para cada participante, elaborei uma devolutiva em formato

de carta, por considerar que esse gênero possibilita uma proximidade afetiva maior. Busquei

nessas devolutivas um olhar que potencializasse as percepções apresentadas pelas

participantes nos registros, valorizando suas opiniões, ao mesmo tempo em que tentei ajudá-

las a refinar a percepção sobre os encontros, instigando-as a irem além da mera descrição dos

encontros, a fim de acessarem uma dimensão subjetiva e reflexiva sobre os acontecimentos:

b. Partilha do meu diário de bordo: o exercício de uma postura horizontal e

democrática nos lugares que ocupei – propositora/pesquisadora/participante – levou-

me ao desejo de partilhar com o grupo meus escritos de pesquisadora no diário de

bordo. Assim como tive acesso aos registros reflexivos de cada um, a ideia foi de

que também eles tivessem acesso aos meus e que se sentissem convidados a tecer

também suas considerações. Apenas três participantes deram um retorno por escrito

do diário de bordo, mas houve possibilidade de discutir sobre essa ação durante os

encontros. Valentina, uma das participantes que entregou suas considerações sobre

meus diários, destaca que, na minha escrita, expresso meu jeito tímido de ser. Ela

relata se identificar comigo e sobre isso escreveu:

E como fazemos isso? [uma escrita mais reflexiva] Acho que de fato é uma tarefa e tanto! Eu mesma sinto que estou sempre a aprender a cada dia sobre a potência de refletirmos sobre a prática e sobre as aprendizagens por meio da escrita... (...) Em momentos do seu texto, você se arrisca de forma bonita e ainda tímida nessa tarefa, quando fala sobre as angústias que você compartilha com o grupo ou quando analisa o elemento novo como algo que permitiu que o grupo se sentisse afagado... Continue desenvolvendo essa sensibilidade em seus relatos, para que eu possa conhecer seu processo junto ao grupo! (Carta para Valentina)

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Esse episódio ilustra a importância da partilha do meu diário de bordo como

instrumento que contribuiu para a dimensão horizontal-colaborativa da proposta, uma vez

que por meio disso as participantes tiveram acesso às minhas impressões pessoais sobre o

processo do grupo.

c. Carta a um amigo: essa atividade foi solicitada ao final dos encontros e consistia

em um pedido para que escrevessem uma carta a um amigo real ou imaginário

contando como foi para eles a experiência de participar do grupo. O gênero de carta

permite o uso de uma linguagem mais afetiva e também uma síntese daquilo que foi

essencial na experiência que tiveram, resultando em um precioso material de análise

que me ajudou a acessar mais profundamente a vivencia subjetivas das participantes

ao longo dos encontros.

Posto isso, destaco que o material empírico da pesquisa foi elaborador a

partir das seguintes fontes:

i. Audiogravação e transcrição dos encontros: esse recurso de pesquisa me permitiu

registrar as falas das participantes na íntegra, possibilitando uma análise complexa

dos acontecimentos, tanto na dimensão coletiva quanto de cada participante

individualmente. A audiogravação foi realizada mediante livre consentimento das

participantes. No primeiro encontro, antes de começar a gravação, expliquei

detalhadamente a proposta de pesquisa, indiquei que poderiam solicitar a qualquer

momento que eu desligasse os gravadores, caso não quisessem que uma determinada

fala fosse registrada, expliquei que todo o material gravado seria sigiloso e que suas

identidades não seriam reveladas sem anuência. Utilizei dois gravadores para melhor

captação de áudio, uma vez que estávamos em grupo. Os dois gravadores ficavam

no meio da roda de conversa, apoiados em carteiras, cada um deles voltado para uma

direção diferente. Para as análises da pesquisa, optei pela gravação de maior

qualidade.

Na sua escrita em algum momento você coloca questões da sua timidez, consigo compartilhar deste mesmo sentimento, com o qual às vezes me incomodo; presto atenção em tudo o que acontece no grupo, em todos os detalhes, sempre muito atenta, no momento em que preciso me colocar me esforço, mas sempre com certo cuidado. (Valentina, devolutiva do diário de campo)

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ii. Registros reflexivos das participantes: como apontado anteriormente, a produção

escrita das participantes consistiu em um rico material de acesso aos sentidos e

entendimentos possíveis a partir do processo do grupo.

iii. Carta devolutiva sobre os registros reflexivos: a partir da minha leitura dos

registros reflexivos, ofereci, na metade dos encontros, uma devolutiva individual em

formato de carta, em um processo de diálogo e reflexão conjunta, que também

compôs o inventário de material de análise.

iv. Diário de bordo: consistiram em meus apontamentos, impressões e reflexões

pessoais de cada encontro, que me permitiram ter dimensão das dúvidas,

dificuldades e potencialidades que permeiam o processo da pesquisa (BOSI, 2003),

colaborando para entendimentos sobre o processo de construção da pesquisa, bem

como alguns indícios de análise. Além disso, como relatado anteriormente, o diário

de bordo foi instrumento que também ajudou as participantes a conhecerem meu

olhar sobre o grupo, contribuindo para ampliar os entendimentos de todos sobre a

proposta vivenciada.

v. Devolutivas do diário de bordo: assim como eu fiz cartas devolutivas sobre os

registros reflexivos das participantes, também elas foram convidadas a fazerem o

mesmo sobre meu diário de bordo. Apesar de ter recebido apenas três devolutivas,

decidi incluí-las também no conjunto de material para análise.

vi. “Carta a um amigo”: como já explicado, essa produção teve por objetivo acessar

uma síntese dos principais acontecimentos e lições aprendidas pelas participantes,

colaborando para o processo de análise do material empírico.

Apresentando as participantes – viajantes peregrinos

Elejo este trecho do diário de bordo, redigido por mim após o primeiro encontro

com o grupo para introduzir este subtópico:

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(...) por volta das 18h15 todas as participantes já haviam chegado. Demos início ao grupo. Um grupo diverso, cheio de experiências para contar e sedento por partilhar a prática profissional. Temos não só psicólogos, mas uma fonoaudióloga, dois professores e uma professora que também tem a formação em Psicologia. As psicólogas e o psicólogo trabalham em diversos segmentos: no campo social, na escola, na saúde... todos muito inteirados de questões concernentes à Psicologia Escolar: medicalização, alto número de encaminhamentos das queixas escolares ao médico e ao psicólogo clínico, embates com os educadores sobre o papel do psicólogo e as possibilidades de atuação... dentre outros tantos assuntos. Isso me faz pensar: o que é a Psicologia Escolar e Educacional? Nós que estudamos este campo, sabemos que este é um termo já legitimado e que se refere ao psicólogo que trabalha junto aos processos educativos. Por meio do grupo percebo que poucas participantes se encontram na escola efetivamente... Então, quem é o psicólogo escolar para nós? O que faz? Onde ele está? São questões que pareciam tranquilas para mim, mas a conversa com esse grupo tão diverso me fez questionar e refletir sobre isso...

(Diário de Bordo, 24/09/2015)

Essas considerações indicam que uma das características marcantes do nosso

grupo é a diversidade:

- De localidades: a maior parte do grupo era vinha de outras cidades da região e inclusive três

participantes vinham de outro estado vizinho. Viajantes, tais como eu, grande parte do grupo

enfrentava estradas e se esforçava para organizar seus compromissos para que pudéssemos

nos reunir semanalmente.

- De formações: nosso grupo inicial era composto por um psicólogo, cinco psicólogas, uma

fonoaudióloga, um professor e duas professoras do Ensino Básico, sendo que uma delas tinha

formação em Psicologia, porém não exercia a profissão.

- De campos de trabalho: um psicólogo trabalhava em uma escola privada e em consultório

particular. Dentre as cinco psicólogas, os campos de trabalho eram: Secretaria de Educação

Municipal, Secretaria de Saúde, Centro de Referência em Assistência Social e consultório

particular.

- De concepções teóricas: Psicanálise, Análise do Comportamento, Psicologia Cognitivo-

Comportamental, Teoria Social-Cognitiva, Psicologia Humanista. Houve também algumas

referências à Piaget, Vigotski e Paulo Freire.

A partir do registro no meu diário de bordo, identifico que a heterogeneidade do

grupo me chamou a atenção logo no primeiro dia, fazendo-me refletir: pessoas diferentes,

reunidas para iniciarmos um processo de formação em torno de um tema comum: o trabalho

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do psicólogo com demandas educacionais. Por que esse assunto nos reuniu nesse mesmo

espaço? O que nos entrelaça a partir dele? A diferença no grupo era destacada pelas

participantes como importante:

Logo no primeiro encontro, todas partilharam que, nos seus locais de trabalho em

diferentes contextos, as demandas educacionais comparecem e se apresentam como grandes

desafios, de difícil compreensão e intervenção profissional. Esse aspecto indica que, em meio

à diversidade, havia um ponto em comum que nos unia e instigava a estarmos em grupo todas

às quartas-feiras para dialogar:

Nos dois primeiros encontros houve momentos de grande angústia e desabafo,

como se o grupo pedisse socorro: “o que fazemos diante do grande número de

encaminhamentos de crianças que não aprendem? O que fazemos com a não

compreensão/desconhecimento/resistência do/ao trabalho do psicólogo junto aos

profissionais da escola? O que fazemos com tantos problemas no sistema de ensino que

temos em nosso contexto?”. Entendo que esse sentimento comum precisou ser ouvido e

acolhido, pois nas primeiras conversas era isso que mais nos entrelaçava e nos fazia

compreender que não estamos sozinhos nos desafios profissionais, mas que temos dúvidas e

angústias semelhantes.

O reconhecimento de pontos em comum entre as participantes ajudou na

constituição de vínculos no grupo, bem como na organização da proposta, contribuindo para

delinearmos temáticas de interesse geral para trabalhar ao longo dos encontros, tal como já

foi mencionado, quando descrevi as quatro dimensões escolhidas para dialogarmos em grupo,

no item 3.2. Ao mesmo tempo, a heterogeneidade entre nós foi fundamental para o exercício

de vários olhares e entendimentos sobre os aspectos discutidos, consistindo em um elemento

enriquecedor da proposta.

Eu gostei muito, os encontros eram para discussão entre profissionais de psicologia, entretanto tiveram participantes de outras áreas também que muito contribuíram para a discussão e o desenvolvimento do grupo, tinha psicólogos de diversas abordagens, fonoaudióloga e pedagogos. (Abayomi, Carta ao amigo)

Pude perceber nesse encontro que o sentimento que compartilho é o mesmo do grupo, um mal-estar, uma angústia que muitas vezes dificulta o trabalho por esbarrar em obstáculos e até mesmo nas políticas públicas. (Valentina, Registro Reflexivo)

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Das dez participantes iniciais, duas não continuaram conosco até o fim. Por

motivos de trabalho e outros compromissos, informaram, depois dos primeiros encontros, que

não poderiam mais comparecer. Ressalto o cuidado com que as participantes se posicionaram

quanto à desistência, informando o quanto sentiram em tomar essa decisão, uma vez que já se

sentiam parte do grupo, como podemos perceber no e-mail enviado pela participante Rosa:

Seguimos até o final, portanto, com oito participantes. Identifico a seguir com

nomes fictícios57, escolhidos por eles, de acordo com algum significado afetivo, como, por

exemplo, a participante Abayomi58, nome dado a bonecas negras, feitas de pano e que tem

um sentido especial em sua história de vida ou a participante Luiza, que escolheu o nome de

sua filha.

Tabela 4: Nome e formação das participantes

57Apenas um participante afirmou preferir usar seu próprio nome para constar na pesquisa. Três participantes não enviaram o nome fictício que gostariam de receber, portanto eu mesma fiz essa escolha, elegendo um nome que mantivesse a primeira letra dos nomes reais. 58 Palavra em Iorubá, uma língua africana, que significa: “encontro precioso”.

NOME FORMAÇÃO

Valentina Psicóloga

Abayomi Psicóloga

Ana Elisa Psicóloga

Lícia Fonoaudióloga

Luiza Psicóloga

Alice Professora

Oi, pessoal. Tudo bem? Saudades de estar com vocês e pelo jeito não vou poder mais participar. Hoje, tudo organizado, lanche, registro (lindo!) e a alegria e satisfação em poder encontrá-los. Nem sempre as coisas caminham como organizamos. E hoje, apesar da minha organização, fui surpreendida às 16h30.Fico muito triste em não poder estar com vocês e também por ter, talvez, tirado a oportunidade de outra pessoa participar. Apesar das faltas, estou com as leituras em dia, assisti o "vídeo" sobre a inclusão (dos círculos e quadrado). Fiz o registro, que estava muito lindo!! Foram dois encontros, mas foram, muito intensos e importantes. Agradeço pela oportunidade e peço desculpas por não conseguir continuar. Um grande abraço a todos. (E-mail de Rosa)

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Além da escolha dos nomes fictícios, também solicitei que escrevessem um

pequeno texto de apresentação pessoal. Considerando que o material de pesquisa foi

produzido com elas, considerei coerente que a apresentação de cada um no texto fosse

autoral, para que as próprias participantes tivessem a oportunidade de escolherem as

características e aspectos de suas vidas que gostariam de deixar registrados na Tese. A seguir,

apresento as participantes, nas suas próprias palavras59:

Valentina Meu nome é Valentina, tenho 27 anos, sou solteira, me considero uma pessoa de fácil relacionamento interpessoal, reservada e observadora. Me formei em Psicologia no ano de 2010. Após minha formação, minha primeira oportunidade na área foi com RH em uma Transportadora. Durante os meus 05 anos de curso, sempre adorei a abordagem psicanalítica e área clínica, e meu primeiro emprego foi na área organizacional. Como me considero uma pessoa que se adapta fácil às situações, não foi difícil vivenciar á área organizacional, mas não é minha paixão. Fiquei por 02 anos nesta empresa, porém, havia prestado concurso público na cidade vizinha e logo fui convocada, e sem pensar muito, me desliguei da empresa anterior e levei comigo, apenas as boas lembranças e recordações de aprendizados e amigos que ali fiz. Fui convocada para atuar como Psicóloga na Atenção Básica em Unidade Básica de Saúde na área clínica, aqui sim me realizo todos os dias enquanto profissional. Meu trabalho é muito dinâmico, pois não fico só com atendimentos clínicos, mas grupos psicoterapêuticos, projetos, grupos temáticos, entre outras rotinas. Ganho muita experiência todos os dias, pois atendo diversos tipos de pessoas e todos os tipos de demanda. Uma demanda que surgiu foi a educacional, e, por não ter tido muita experiência nesta área, é que resolvi participar deste grupo, para adquirir conhecimentos teóricos e bagagem para lidar com este tipo de demanda, e digo que fui contemplada com minhas expectativas.

Abayomi

Tenho 26 anos, sou psicóloga, e tenho um marido que eu amo muito. Trabalho na Secretária de Educação dando orientações a professores em relação a inclusão de alunos com deficiência e problemas comportamentais. Trabalho com a orientação cognitivo comportamental, amo o que eu faço, gosto de trabalhar com crianças e participar do desenvolvimento delas. Sou uma pessoa motivada, boa ouvinte e sempre disposta a atingir meus objetivos.

59 Alguns dados do texto de apresentação, tais como cidade onde reside, instituição em que se formou ou local de trabalho foram omitidos por mim, para não permitir a identificação das participantes.

Peter Psicólogo

Tadeu Professor

PARTICIPANTES QUE NÃO PERMANECERAM ATÉ O FINAL DO GRUPO

Rosa Professora/Coordenadora pedagógica (formação

também em Psicologia)

Isadora Psicóloga

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Lícia Sou fonoaudióloga formada há 23 anos. Fiz especialização em terapia fonoaudiológica durante dois anos. Em seguida, passei um ano em Nova York, onde estudei inglês e também fiz um estágio em uma clínica fonoaudiológica, onde pude comparar as atuações da fonoaudiologia em um hospital público brasileiro e outro americano. E, acabei concluindo que embora eles sejam muito melhor estruturados e aparelhados que nós, a fonoaudiologia brasileira é mais criativa e menos “fechada” em padrões e protocolos que muitas vezes não permitem outros olhares e possibilidades de atuação. Logo após esta experiência, voltei ao Brasil onde me instalei na minha cidade natal, inicialmente trabalhando na APAE. Nesta, aprendi muito sobre diagnóstico de desenvolvimento e aprendizagem e trabalho em equipe, o que acrescentou muito na minha trajetória profissional e pessoal. Atuei como fono na APAE por alguns anos e hoje me encontro participando da diretoria (cargo voluntário) da Instituição, como Diretora Financeira, tentando constantemente buscar uma solução para o problema maior das APAEs, que é a falta de suporte financeiro, este cada vez mais sucateado pelo poder público. Há 13 anos, conclui o mestrado em Fonoaudiologia Clínica, o único na época com este enfoque. Escolhi tal mestrado pela possibilidade de vivenciar todo o conteúdo construído pela e para a fonoaudiologia, o que não existia em outro curso, como neuro, lingüística e educação, que eram os mestrados então mais procurados pelos fonoaudiólogos. Enfim, adorei o curso que escolhi também pela linha que seguia,sócio-construtivista, abordagem esta que também já admirava na época da graduação. Atualmente, atuo em clinica e atendo casos de linguagem (oral e escrita), voz e sistema sensório motor oral. Participo de um grupo de apoio às pessoas com gagueira e no último ano fiz a formação em “Capacitação em diagnóstico dos sinais de risco de autismo em crianças de 0 a 3 anos – PREAUT”, e devo fazer o curso de reabilitação em 2015. Constantemente participo de palestras, aulas e cursos sobre as áreas que atuo.

Luiza

Fiz magistério e então descobri que gostaria de trabalhar com pessoas. Me apaixonei pelo trabalho com as crianças. Me formei em psicologia em 1996. Fiz a Formação em Psicanálise da Criança, foram três anos. Concluí em 2001. Trabalhei na APAE por 8 anos, onde pude aperfeiçoar a avaliação psicológica com crianças. Em 2005 iniciei uma especialização em Psicoterapia Breve de Base Psicanalítica. Nesta época fui convidada a dar aulas na faculdade de psicologia da minha cidade. Lecionei por um ano. Iniciei o mestrado no departamento de neurologia. Conclui em 2011. Atualmente, atuo na área clinica. Atendo crianças, adolescentes e adultos. Mas o trabalho que eu tenho mais prazer é fazer a avaliação infantil. O psicodiagnóstico deve ser o ponto de partida, visto que, através dele, o terapeuta decide o que fazer, como fazer e por que fazer com a criança. Nesse sentido, pode ser um meio valioso para direcionar o tratamento (indicações e orientações).

Peter Sou Psicólogo e curso especialização em Psicopedagogia. Trabalho em uma escola privada do interior de Campinas, realizando orientação profissional de jovens do ensino médio. Também os ajudo com questões de autoconhecimento, bem como com sua sexualidade, prevenção ao uso prejudicial de álcool e outras drogas, entrada na faculdade e no marcado de trabalho. Dentre outras ocupações, atendo em consultório particular, outro local onde trabalho bastante com crianças e adolescentes. Aprendi a gostar da escola na Faculdade, e até hoje tenho muito apreço pela formação pessoal e profissional de jovens e adultos.

Tadeu

Sou o Tadeu, filho do Antônio e da Iara, dividindo o mundo com a Andréia e pai do João Vicente. Transito entre vários rótulos: filho, marido, pai, irmão, amigo, professor, inquilino, cidadão, historiador, músico e incontáveis outros. Tento ser do bem, me encaixar no mundo, ter olhos de poeta e agir na base do diálogo.

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Do grupo de oito, duas participantes – Ana Elisa e Alice – não entregaram suas

apresentações, além de Isadora e Rosa, que também não entregaram por terem decidido não

participar mais do grupo desde os primeiros encontros. Tentei entrar em contato com as

participantes para solicitar essas atividades, mas não tive sucesso.

Em uma viagem podemos ter companheiros de vários tipos, há aqueles que

começam a aventura conosco, desistem no caminho e ainda assim deixam suas marcas, outros

que encontramos no percurso e seguem até o fim, desfrutando do destino alcançado. Há,

ainda, aqueles que mesmo estando ao nosso lado não nos fazem companhia genuína, não

compartilhando dos mesmos interesses e encantamentos pelo que se vê na estrada e outros

que dividirão conosco para sempre uma experiência única, que somente nós teremos

dimensão do que foi. Em busca de compreender o que significou ter a companhia das

participantes no percurso, fui presenteada com a sensível definição do participante Tadeu60:

A metáfora do turista e do peregrino é usada pelo sociólogo Zygmunt Bauman61

para definir o caráter das relações e das experiências que as pessoas vivenciam na

contemporaneidade. Se o peregrino é aquele que se desloca para fazer parte do contexto

visitado e criar vínculo com as pessoas daquele local, o turista se desloca com o intuito de

experimentar uma diversão efêmera, sem se conectar verdadeiramente com o destino

visitado. Os turistas não se permitem criar raízes, pois logo já partem para outra viagem em

busca de mais entretenimento. Já os peregrinos, fazem de sua passagem uma verdadeira 60Além de participante do grupo, Tadeu é meu colega de pós-graduação e o texto a que ele se refere na mensagem é uma apresentação prévia do trabalho de Qualificação compartilhada com o GEPEC. 61 BAUMAN, Z. Mal-estar na pós-modernidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

Vou tentar tecer alguns comentários sobre seu texto. E vou pegar a metáfora da viagem. Nessa viagem fomos (estou me incluindo, certo) peregrinos ou turistas? Os turistas, aqueles de pacote, possuem roteiros pré-definidos, paradas obrigatórias, guia falando o tempo todo, necessidade de souvenires, fotos como registro de memória, essas coisas. Já o peregrino também tem um roteiro final, mas o caminho, não a chegada, é o mais importante. Não importa o souvenir ou a foto postada, mas a memória imaterial. Importa a vivência/experiência, a narração da jornada. Não que exista uma melhor do que a outra, todas produzem marcas, mas o peregrino é menos pasteurizado, menos industrial, mais artesanal, original e profundo. Tem até uma conotação religiosa, de descoberta de si. Enfim, depois dessa minha viajada, acho que a nossa viagem foi uma peregrinação. E como você, enquanto guia turística, pode medir nossa transformação pelo caminho? (E-mail enviado por Tadeu)

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experiência, intimamente relacionada às suas próprias vidas e crescimento pessoal. Considero

que as participantes foram peregrinas, que aceitaram seguir comigo por caminhos

surpreendentes de descobertas e aprendizagens. Foram guiados por mim, não em uma relação

guia-turista, na qual o guia, já cansado do trajeto conhecido e repetitivo, profere falas

ensaiadas e apáticas para um público mais interessado em tirar fotos do que contemplar e

apreender os caminhos, mas em uma relação de descoberta conjunta, na qual eu sabia como

conduzir, mas não tinha dimensão de onde chegaríamos, muito menos como chegaríamos ao

nosso destino.

No capítulo de análises apresentado a seguir, elejo episódios do que vivenciamos

nos oito encontros para ir dando forma aos núcleos de análise. Essa escolha por vezes é

reiterativa, não necessariamente segue a ordem dos encontros e também não abarca todas as

atividades e contexto do que vivemos. Porém, acredito ser importante que o leitor tenha uma

visão geral dos acontecimentos, por isso, antes de seguir com as análises propriamente ditas,

apresento, ainda na metodologia, uma cronologia das atividades de cada encontro:

Encontro 1

Data: 24/09/2014 Duração: 2h 01min Participantes: Fabiana, Bianca, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Abayomi, Valentina, Tadeu, Peter, Rosa, Isadora. Lanche: Fabiana Atividades

1) Apresentação da pesquisadora, da auxiliar de pesquisa e da proposta, incluindo os aspectos éticos da investigação e a assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; 2) Acolhida das participantes, a partir da leitura e discussão do conto “O mundo contempla o mundo”, de Ítalo Calvino62; 3) Apresentação pessoal de cada participante; 4) Diálogo inicial sobre dilemas vivenciados no cotidiano de trabalho e expectativas sobre participação no grupo; 5) Definição das atividades para o encontro seguinte.

Para acessar o conto O mundo contempla o mundo:63

62Conto extraído do livro CALVINO, Ítalo. Palomar. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 63 Aqueles que estiverem lendo o texto em papel, podem escanear o Código QR por meio de um aplicativo no smartphone. Os que estiverem lendo em arquivo digital, têm a opção de acessar a mídia pelo link indicado também.

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Link: http://bit.ly/elemento1mundo Encontro 2 Data: 01/10/2014 Duração: 2h11 Participantes: Fabiana, Bianca, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Abayomi, Valentina, Tadeu, Peter, Rosa, Isadora Lanche: Luiza, Lícia, Alice Atividades:

1) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Peter – música “Dom Quixote”, Engenheiros do Havaí;

2) Partilha de dilemas/angústias da prática profissional; 3) Apresentação do registro reflexivo por Ana Elisa, a partir do texto Pipoca – Rubem Alves 4) Reflexão coletiva sobre a metodologia do grupo.

Para ouvir a música Dom Quixote:

Link: http://bit.ly/domquixote-elemento2

Para acessar o texto Pipoca:

Link: http://bit.ly/elemento3pipoca

Encontro 3

Data: 08/10/2014 Duração: 2h06 Participantes: Fabiana, Bianca, Ana Aragão64, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Abayomi, Valentina, Tadeu, Peter, Isadora. Lanche: Ana Elisa, Abayomi, Valentina Atividades:

1) Partilha do registro reflexivo de Peter; 2) Discussão e escolha das temáticas que nortearão os encontros; 3) Discussão sobre reflexividade e sistemas teóricos com a participação da Ana Aragão; 4) Apresentação do elemento novo trazido por Isadora – vídeo “Sentimentário”

64 Minha orientadora, Ana Aragão, foi convidada a participar especialmente nesse dia para conduzir uma discussão sobre reflexividade e formação docente, por acreditarmos que essa temática poderia contribuir com o grupo.

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Para acessar o vídeo Sentimentário:

Link: http://bit.ly/elemento4sentimentario

Encontro 4

Data: 15/10/2014 Duração: 2h17 Participantes: Fabiana, Bianca, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Valentina, Tadeu, Peter. Atividades:

1) Comemoração do aniversário do Tadeu e do dia dos professores; 2) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Tadeu – vídeo “Por cuatro

esquinitas de nada”; 3) Discussão sobre inclusão; avaliação psicológica; atendimento à queixa escolar;

medicalização; 4) Estudo de caso: “A doença de Tom Cruise” 5) Partilha do registro reflexivo de Lícia

Para acessar o vídeo Por cuatro esquinitas de nada:

Link: http://bit.ly/elemento5porcuatroesquinitas

Encontro 5

Data: 22/10/2014 Duração: 2h15 Participantes: Fabiana, Bianca, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Abayomi, Valentina, Tadeu, Peter Atividades:

1) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Fabiana – A função da Arte 1, Eduardo Galeano;

2) Partilha do registro reflexivo trazido por Tadeu; 3) Discussão sobre diagnósticos psicológicos e possibilidades de atuação profissional com as

demandas educacionais; 4) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Luiza – poema “Verdade”, Carlos

Drummond de Andrade.

Para acessar o conto A função da Arte 1:

Link: http://bit.ly/elemento6-funcao-arte

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Para acessar o poema Verdade:

Link: http://bit.ly/elemento7verdade

Encontro 6

Data: 29/10/2014 Duração: 2h37 Participantes: Fabiana, Bianca, Lícia, Luiza, Alice, Ana Elisa, Valentina, Peter. Atividades:

1) Partilha e discussão do diário de bordo de Fabiana; 2) Discussão sobre o ato de registrar reflexivamente os acontecimentos da prática profissional; 3) Brincadeira da “batata-quente” para discutir os seguintes temas: psicologia escolar e educacional; transformação social na prática profissional; processo educativo; contribuições da psicologia na educação; 4) Discussão do texto “Orientação à queixa escolar” 5) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Lícia – vídeo-clipe “Another brick in the wall”, Pink Floyd

Para acessar o vídeo-clipe Another brick in the Wall:

Link: http://bit.ly/elemento8anotherbrick

Encontro 7 Data: 05/11/2014 Duração: 2h28 Participantes: Fabiana, Bianca, Peter, Tadeu, Abayomi, Ana Elisa, Valentina Atividades:

1) Apresentação e discussão do elemento novo trazido por Abayomi – vídeo “Ex-ET” 2) Discussão sobre a história da psicologia no Brasil e as interlocuções com a educação; 3) Discussão sobre os dilemas e possibilidades da parceria entre psicólogos e educadores.

Para acessar o vídeo Ex-ET:

Link: http://bit.ly/elemento9ex-et

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Encontro 8

Data: 13/11/2014 Duração: 2h29 Participantes: Fabiana Marques, Bianca, Peter, Tadeu, Abayomi, Ana Elisa, Valentina, Alice, Lícia, Luiza. Atividades:

1) Atividade em pequenos grupos de reflexão sobre o processo do grupo e síntese das vivências e lições aprendidas; 2) Apresentação da Bianca sobre a percepção dela a respeito do grupo e dos encontros; 3) Apresentação e discussão do vídeo The last knit 4) Reflexão coletiva sobre o processo do grupo; 5) Apresentação do poema Sobre importâncias, Manoel de Barros.

Para acessar o vídeo The last knit:

Link: http://bit.ly/elemento10lastknit

Para acessar o poema Sobre Importâncias:

Link: http://bit.ly/elemento11sobre-importancias

Realizada a descrição e contextualização dos encontros, sigo com o capítulo de

análises, buscando elementos que ajudem a compreender o grupo colaborativo como fonte de

desenvolvimento profissional.

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4. Das estradas percorridas, dos destinos visitados: as análises da pesquisa

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,

esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o

mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!

– A função da Arte 1, Eduardo Galeano –

O volume e a qualidade do material empírico produzido fizeram com que eu me

sentisse como o personagem Diego, atônita: para onde olhar? Como olhar? Para contemplar o

material da pesquisa é preciso clamar pela generosa ajuda de elementos teóricos que guiam o

olhar na organização e na busca por entendimentos acerca do que foi produzido. Apresento,

a seguir, perspectivas teóricas que colaboraram nessa tarefa desafiadora, além da descrição de

como o material foi organizado até chegar aos núcleos de análise propriamente ditos.

Ginzburg (1989) discorre sobre o Paradigma Indiciário, perspectiva própria das

Ciências Humanas, sugerindo a análise de um fenômeno a partir de pistas e sinais, por vezes,

sutis, para se chegar a conclusões elaboradas e que captem a amplitude em que aquele

fenômeno se constituiu. O autor considera que o Paradigma tem inspiração em Morelli,

escritor famoso por identificar quadros falsificados, a partir de pequenas características

próprias de cada artista. Ao invés de olhar para características suntuosas, Morelli se atentava

aos pormenores quase insignificantes da obra, como as unhas e o formato dos dedos, por

exemplo. A sagacidade de Morelli inspirou a criação do personagem Sherlock Holmes65,

conhecido por desvendar crimes, a partir da investigação por pistas aparentemente

insignificantes, mas que acabavam por levar à compreensão sobre o caso. Segundo Ginzburg

(ibidem), Morelli também serviu de exemplo para Freud, no início da construção do corpo

teórico da psicanálise, ao pensar em um método de acesso aos conteúdos inconscientes por

meio dos resquícios e lapsos apresentados na fala dos pacientes:

Nos três casos, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas, mais precisamente

65 Personagem criado pelo escritor Arthur Conan Doyle.

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sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli). (GINZBURG, 1989, p. 150)

Ginzburg (ibidem) identifica que esse modo de conhecer um contexto local a

partir de indícios permeia os primórdios da ciência. Porém, com o advento, fortalecimento e

valorização da lógica das Ciências Naturais e Exatas, a partir da qual se postula conhecer a

realidade por meio da quantificação e da generalização dos fenômenos, a perspectiva

qualitativa foi renegada ao posto de “não científica”. Porém, o tipo de rigor exigido pelas

Ciências Naturais e Exatas não é suficiente nem compatível com as formas de conhecimento

ligadas à experiência cotidiana. A postura investigativa do Paradigma Indiciário pode

colaborar com o pesquisador que trabalha com material que envolve a linguagem, seus

significados e sentidos. O esforço, nesse caso, seria uma análise cuidadosa das narrativas das

participantes, buscando indícios que não se encontram diretamente explícitos na fala dos

sujeitos e que ajudem na compreensão do fenômeno estudado. Segundo o autor, considerando

a impossibilidade de conhecer a realidade estudada de forma direta, é preciso partir de “zonas

privilegiadas – sinais, indícios – para decifrá-la” (GINZBURG, p. 177).

Coerente com princípios do Paradigma Indiciário e com base na Teoria Histórico-

Cultural, Aguiar e Ozella (2006; 2013) sistematizam um procedimento de análise,

denominado Núcleos de Significação. Segundo os autores, a compreensão analítica do

material empírico de pesquisa deve partir do conceito vigotskiano de que as palavras

apresentam significados produzidos a partir de um dado contexto histórico e social e, ao

serem expressas pelos sujeitos, estão impregnadas de sentidos e estes devem ser o ponto de

partida das análises. Se os sentidos e significados são produzidos de forma mediada, a busca

do pesquisador deve ser para tentar apreender os elementos de mediação que constituem a

expressão do sujeito: “O pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza”

(VIGOTSKI, 2001, p. 409). Para isso, deve-se partir do material empírico registrado pelo

pesquisador para assim compreender as zonas de sentido mais profundas expressas pelos

sujeitos de pesquisa e entender do ponto de vista histórico-cultural seu processo de origem e

desenvolvimento (AGUIAR & OZELLA, 2006; NAVES, 2011).

Para auxiliar esta tarefa, Aguiar e Ozella (2006) sugerem algumas etapas de

análise que também foram adotadas por mim para organização e compreensão do material

empírico:

a) Leitura inicial, recorrente, flutuante e cuidadosa do material produzido;

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c) Elaboração de pré-indicadores de análise, destacando os trechos mais significativos ou

ainda que apresentam contradições e lacunas;

d) Agrupamento dos pré-indicadores, por complementaridade, similaridade ou contradição,

criando indicadores iniciais de compreensão do material;

e) Construção de núcleos de significação, que serão elaborados a partir da organização dos

pré-indicadores e indicadores, de modo a identificar zonas de sentido que ajudem na

compreensão dos fenômenos investigados.

f) Análise dos núcleos de significação, por meio do exercício de articulação entre os núcleos

e os contextos mais amplos constituem a realidade investigada, bem como do referencial

teórico pertinente.

O intuito dessa modalidade analítica é realizar uma aproximação das zonas de

sentido construídas no processo de pesquisa, para compreender aspectos referentes à

dimensão subjetiva das participantes, à luz do contexto em que se inserem, exercício que

permite clarear a questão de pesquisa, fazendo emergir entendimentos acerca da temática

investigada.

Além do caminho analítico com base na Teoria Histórico-Cultural sugerido por

Aguiar e Ozella (2006; 2013) nos Núcleos de Significação, foram escolhidos conceitos-chave

da THC como ferramentas de análise, considerando o objetivo da Tese: analisar o grupo

colaborativo como fonte de desenvolvimento para profissionais que trabalham com

demandas educacionais. Como apresentado na fundamentação teórica, a partir deste objetivo,

foram escolhidos os aspectos do processo de desenvolvimento a serem analisados e, a partir

destes aspectos, os conceitos-chave de análise:

a) Relações sociais como natureza e fonte de desenvolvimento: Situação Social de

Desenvolvimento;

b) Colisões como força motriz do desenvolvimento: Drama;

c) Mudanças qualitativas no processo de desenvolvimento: Perejivanie.

O pesquisador que tece análises em uma perspectiva histórico-cultural almeja,

portanto, não uma mera descrição do material empírico, mas uma reconstrução do processo

de desenvolvimento em questão, considerando: o contexto social, a interações que

aconteceram, quais foram as crises e colisões e como aconteceram, como as pessoas em

questão refrataram essas crises e quais foram as mudanças no processo de desenvolvimento,

criando novas condições sociais, em um movimento complexo e dialético (VERESOV,

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2014). Portanto, a apresentação e discussão das análises da Tese, neste capítulo, seguirá o

seguinte caminho:

PRIMEIRO MOVIMENTO, a escolha dos Pré-Indicadores de análise: a partir das

transcrições dos oito encontros, foram escolhidos episódios que oferecem indícios das

relações sociais no grupo como fonte de desenvolvimento profissional. Nesse primeiro

movimento analítico, escolhi por utilizar somente as transcrições dos encontros, como uma

forma de organização primeira do material. Devido à intensidade do meu envolvimento e

implicação na proposição dos encontros, começar a organizar o material pelas transcrições foi

um modo de buscar os primeiros indícios das interações sociais como fonte de

desenvolvimento.

SEGUNDO MOVIMENTO, a escolha dos Indicadores de análise: a partir dos episódios

escolhidos como pré-indicadores, recorri às demais fontes de material empírico apresentadas

no capítulo metodológico, para aprofundar a busca por indícios de análise, uma vez que os

demais materiais (Diários de Bordo, Registros Reflexivos, Cartas Devolutivas e Cartas ao

Amigo) fazem emergir mais indícios das interações sociais e da forma como cada

participante significou as vivências no grupo. Nesse movimento, foram criadas codificações a

partir de todo o material de pesquisa, de acordo com os objetivos da Tese, agrupando em

categorias os conteúdos reiterativos, que apresentam maior carga emocional ou ambivalência

para, em seguida, escolher aqueles episódios mais significativos e que revelam o grupo como

fonte de desenvolvimento profissional.

TERCEIRO MOVIMENTO, a escolha e análise dos Núcleos de Significação: a partir da

confluência dos pré-indicadores e dos indicadores de análise, foram criados os Núcleos de

Significação que explicam o processo de desenvolvimento das participantes no grupo,

analisando minuciosamente como as relações sociais deram origem a mudanças no processo

de desenvolvimento profissional, tecendo uma análise das condições subjetivas e das

condições histórico-culturais desse processo.

Por fim, apresentarei as considerações finais da Tese, retomando os principais

pontos de análise e discutindo as principais lições aprendidas e compartilhando ideias para

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uma “proposta modelizadora” (SÁ-CHAVES, 2012; ARAGÃO, 201766) do desenvolvimento

profissional daqueles que trabalham com demandas educacionais, a partir de uma perspectiva

colaborativa.

PRIMEIRO MOVIMENTO – “Paradas”

O primeiro movimento analítico consistiu em realizar uma leitura cuidadosa das

transcrições dos oito encontros, buscando encontrar nos acontecimentos e interações indícios

do grupo como fonte de desenvolvimento. Meu olhar buscou recortar aqueles episódios

recorrentes que se destacavam por sua intensidade emocional ou ainda por colisões nas

interações sociais, na intenção de eleger situações que se configuraram como forma inicial

(interpsíquica) das mudanças no processo de desenvolvimento profissional das participantes,

por meio da proposta. Como já explicado no tópico anterior, é claro que as demais fontes de

material também apresentam indícios das situações sociais de desenvolvimento, porém a

escolha por narrar episódios marcantes a partir das transcrições é justificada por minha

intensa implicação nos encontros, ajudando-me a organizar o material e encontrar os

primeiros indícios de análise.

Sobre a dimensão interpsíquica, como início das mudanças no processo de

desenvolvimento, Vigotski afirma que:

A situação social de desenvolvimento representa o momento inicial para todas as mudanças dinâmicas que ocorrem no desenvolvimento durante um dado período. Ela determina toda e completamente as formas e o percurso ao longo do qual a criança vai adquirir novas características de personalidade, extraindo-as da realidade social como a fonte básica de desenvolvimento, o percurso ao longo do qual o social se torna o individual. (VIGOTSKI, 1934/1998, p. 22)67

Nomeio estes episódios como “Paradas”, inspirada na metáfora da viagem. As

lembranças de uma viagem que ficam guardadas na memória, em registros escritos, orais ou

fotográficos são daqueles lugares ou situações em que, seja por necessidade de tomar um ar,

descansar, reabastecer-se ou por causar em nós deslumbramento, convidaram-nos a uma

contemplação mais atenta, para serem explorados e vivenciados intensamente. Assim como

uma parada de viagem, os episódios, a seguir descritos, são registros dos acontecimentos do

66 Em apresentação no Concurso para Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. 67 Tradução livre do inglês.

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grupo que merecem um olhar mais atento e demorado, não são uma transcrição literal dos

encontros, mas narrativas criadas por mim a partir das transcrições. A seguir, apresento cada

uma das Paradas, selecionadas ao longo dos oito encontros. Os títulos de cada uma são

retirados da própria fala das participantes ou criados por mim com base no sentido que

melhor representa aquele episódio68.

1º Encontro – 24/09/2014

PARADA 1: O objetivo é...

Na apresentação da proposta, digo que o grupo será um espaço de construção do material da pesquisa, mas ao mesmo tempo um espaço formativo, em que conversaremos sobre questões diversas relativas à prática do psicólogo que trabalha com demandas educacionais. Diante das angústias e queixas trazidas pelas participantes, digo que estamos juntos nessa proposta para refletir sobre os nossos problemas e pensar em possibilidades. Logo depois da apresentação pessoal de cada participante, ao perceber a diversidade de profissionais no grupo, eu digo: FA: Eu quis dar esse início com a nossa conversa, porque esse vai ser o tom do encontro, a gente estar juntos para conversar, para partilhar (...). Sobre a questão de haver outros profissionais no grupo, destaco que o objetivo é propor a formação do psicólogo, mas com a presença de outros poderemos dialogar e ampliar nossas experiências e entendimentos (...). O objetivo é ‘vamos pensar então no que podemos fazer a partir de tudo isso que vocês estão trazendo? Que possibilidades a gente tem, estando em grupo, numa formação coletiva, com os pares, dialogando, pensando nas realidades, trazendo casos, refletindo sobre eles?

PARADA 2: “estamos no mesmo barco”

No início da proposta, afirmo que este é um grupo voltado para pensar a atuação do psicólogo com demandas educacionais. Ao me dar conta da diversidade do grupo, acolho os demais profissionais e digo que com a presença deles poderemos ampliar nossos entendimentos. Apesar da diversidade, os problemas e expectativas quanto ao grupo eram semelhantes: lacunas na formação, grande número de encaminhamentos relativos à queixa escolar, problemas institucionais para o desenvolvimento de um trabalho consistente, solidão nos locais de trabalho – falta de espaços e incentivo para formação continuada, falta de diálogo com os pares e com a equipe de trabalho. A frase de Valentina, que dá título a essa Parada, exemplifica o sentimento do grupo ao se apresentarem – todos apresentam queixas em comum e a necessidade de partilhá-las em grupo: LI: Então a minha expectativa é de conversar sobre essas coisas, porque eu acho que a solução... não sei se a solução está tão fácil.

68 Para facilitar a leitura, coloquei os nomes em siglas: FA: Fabiana; BI: Bianca; AN: Ana Aragão; LI: Lícia; LU: Luiza; AL: Alice; AB: Abayomi; VA: Valentina; TA: Tadeu; PE: Peter; RO: Rosa; IS: Isadora

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PARADA 3: Queixa-lamento69

Começo o 1º encontro com uma apresentação da pesquisa e da proposta formativa, dizendo que abordaremos questões relativas à formação do psicólogo que trabalha com demandas educacionais. Em seguida, leio um conto do Ítalo Calvino – O mundo contempla o mundo – dizendo ao grupo que essa seria uma forma de dar leveza ao encontro. Aguardo alguns minutos em silêncio, tentando observar a reação do grupo ou alguma iniciativa de comentar a leitura e pergunto se alguém tem algo a comentar. Peter comenta que o texto tem a ver com Psicologia: PE: É um exercício constante, do psicólogo e para outras áreas, assistência social... Conseguir se distanciar de si próprio para ver o outro como ele é por ele mesmo (...). Acho que o texto traz um pouco dessa reflexão de como esse processo não é realmente tão simples assim. Elogio a fala dele e em seguida abro novamente para o grupo. Rosa questiona se é possível olhar de forma diferenciada para o contexto educacional e começa a criticar o sistema educacional atual, citando, por exemplo a medicalização como um problema. Continuo a abrir para que o grupo fale. A partir desse momento, percebo emergir mais comentários sobre problemas e críticas à Educação, em especial ao papel do psicólogo, dos professores e das famílias: RO: Os pais perderam essa autoridade também e aí a escola perdeu totalmente o valor (...) O papel da escola é a escolarização e o papel dos pais é a educação (...) em nome de uma afetividade, de um carinho, está se deixando perder uma série de coisas, inclusive a autoridade. AB: Então eu tenho muita dificuldade [nas escolas] por causa disso. Quando fala que é psicólogo eles pensam que vamos resolver todos os problemas. Tento acolher as falas que surgem e ressalto que o objetivo do grupo é partilhar as angústias, mas também pensar em possibilidades: “É isso que eu queria trazer para vocês: estar em grupo e pode conversar sobre isso, pensar nas nossas ações e buscar possibilidades no cotidiano das nossas práticas”.

2º Encontro – 01/10/2014

PARADA 4: “Por amor às causas perdidas...”70

Inicio o segundo encontro convidando Peter a apresentar o elemento novo que preparou – música Dom Quixote, dos Engenheiros do Havaí. Percebo que não retomo com o grupo os objetivos do encontro, nem ofereço ao grupo uma organização das atividades programadas para o dia. Depois de ouvirmos a música, pergunto a Peter o que ele pensou ao trazê-la como elemento novo. Ele diz que essa música o anima em momentos difíceis. Pergunto ao grupo o que pensaram ao ouvir a música, Ana Elisa diz que ficou pensando nas ‘causas perdidas’: “Às vezes a sensação é essa, não tem mais jeito, está todo mundo perdido, é o que chega pra gente”. Eu tomo a fala logo em seguida e conto de uma situação difícil que vivenciei, quando trabalhava em um abrigo para crianças em situação de vulnerabilidade social, dizendo em um tom de “queixa-lamento” que por vezes não sabia como agir, mas que sempre tentava enxergar o melhor nas crianças para contribuir de alguma forma. A partir daqui, percebo que o grupo entra no momento de “desabafar”, trazendo problemas e críticas ao sistema educacional, à sociedade. Peter comenta sobre

69 Esse termo é inspirado na definição de Fernandez (1994), quando problematiza os diferentes tipos de queixa que podem surgir do professor, dizendo que a queixa-lamento, ao apontar somente as dificuldades e agruras do cotidiano, impede o pensamento crítico e a busca por soluções. 70 Trecho da música Dom Quixote, Engenheiros do Havaí.

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as lacunas na formação do psicólogo para lidar com demandas educacionais, Tadeu comenta sobre a produção de pessoas “desajustadas” pelo sistema capitalista, Rosa traz o caso de sua filha que apresentava dificuldades em matemática, problema que a escola acabou atribuindo a causas orgânicas, não buscando um olhar para o processo de ensino-aprendizagem, Ana Elisa traz o caso do seu filho de cinco anos que já é cobrado a fazer atividades de leitura e escrita, quando essas ainda não fazem sentido para ele. A partir desse momento, sinto dificuldades em fazer entradas e retomar o lugar de coordenadora do grupo. Tento acolher as falas levantadas pelo grupo e propor reflexões ou mesmo que recorramos às leituras que tínhamos para aquele encontro, mas não consigo. Os desabafos continuam e apresentam contradição – ora responsabilizam as famílias, ora os professores, ora o sistema social, educacional... ora as ideias são conservadoras e ora trazem uma perspectiva crítica: RO: Porque hoje a educação está perdida. Criança de cinco anos fazendo tarefa, ela já é velha, porque começa antes. IS: O problema não é a criança, a escola não sabe lidar com a criança. Porque o professor não é preparado para isso (…). Eu acho que se joga muita responsabilidade sobre o professor (...) o que vocês vão fazer como psicólogos? Fazer com que a criança fique quadradinha? No meu caso, eu não faço. Eu faço com que a criança se apodere do potencial dela. Em um determinado momento, sugiro novamente discutirmos as leituras programadas para aquele dia e em seguida Tadeu pede a palavra para sugerir dois documentários (Tarja Branca e Em busca do Super-homem) que ajudam a pensar a Educação criticamente. Logo após as sugestões de Tadeu, eu começo a contar um caso pessoal, de uma criança que conheço e que se encaixa na crítica que Tadeu trouxe – muitas atividades formais e pouco tempo e espaço para brincar. Aqui percebo que eu também precisava desabafar, assim como o grupo e a partir desse ponto, outras pessoas continuam a trazer relatos pessoais e a levantar problemas e queixas. Faltando vinte minutos, proponho que a Ana Elisa leia o seu registro do primeiro encontro e que façamos a discussão dos textos. Peter e Ana Elisa, porém, pedem a palavra para contarem situações que viveram no trabalho e eu digo estar preocupada com a hora e sugiro que quem tiver mais problemas para partilhar me mandar por escrito em forma de um dilema, para que no encontro seguinte possamos escolher coletivamente quais temas trabalharemos ao longo da proposta.

PARADA 5: “Seu objetivo maior o que é?” Nos minutos finais do segundo encontro, Lícia faz uma pergunta e, a partir dela, temos uma conversa em grupo sobre os objetivos da proposta: LI: Fabiana, qual a metodologia da sua pesquisa? Seu objetivo maior o que é? Ouvir os relatos, dentro dos relatos, obter alguma informação? Queria saber um pouquinho disso. Explico que o objetivo é tanto produzir o material de pesquisa, quanto proporcionar um espaço formativo. Ela continua: LI: A proposta é esse livre relato? FA: A proposta é uma construção conjunta. Ao invés de chegar aqui com um planejamento pronto, eu chego com propostas, porque tenho um objetivo e uma intencionalidade que é de provocar em vocês a discussão sobre a prática. (...). Eu tenho uma intencionalidade, mas a ideia de estar todo mundo junto conversando, é justamente essa, de ter uma horizontalidade maior, de partir do pressuposto de que eu também não sei. Tudo isso que vocês estão trazendo como problemas também são questões minhas, também tenho dificuldades, não tenho uma solução pronta. É a gente que vai pensando junto.

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LI: Hoje, por exemplo, ficamos muito falando do professor, do aluno, da família... houve uma angústia pessoal, que eu enquanto equipe posso fazer para o professor... A gente focou muito no outro (...). E ao mesmo tempo a gente chega num ponto da ação. Parece que nisso a gente não está entrando “e aí, o que eu faço diante disso?”. Eu como equipe. O professor está errado em tal ponto, o aluno, mas jogar para a equipe. FA: Vocês se identificam com essa fala da Lícia? É uma angústia de vocês também? IS: É nesse ponto que eu queria chegar. É como se ficássemos apontando e não buscássemos... você entendeu. FA: Eu acho que entendi, Isadora e é legal você explicitar isso, Lícia, porque é uma angústia que me bateu hoje. Como mediadora, minha proposta é horizontal mesmo, com toda sinceridade, de ouvir vocês. Até por isso que estou deixando mais solto, porque eu quero entender primeiro de que lugar estamos falando aqui. (...). Tanto no encontro passada quanto nesse, o meu movimento foi de tentar escutar vocês para tentar entender que problemas são esses para a gente nos próximos encontros tentar se organizar e aí sim chegar: efetivamente o que a gente pode fazer com isso? E aí tem essa proposta dos textos, a ideia de discutir os textos é justamente para buscar essas possibilidades concretas e eu penso que eles trazem isso. LI: Fico pensando assim, o primeiro encontro foi um momento para gente se conhecer, chegar no lugar. Esse encontro de hoje foi um momento de conseguir tirar aquilo que está mais incomodando, foi como se a gente tirasse aquele choro que está na garganta para num próximo momento a gente poder falar sobre nosso papel. 3º Encontro – 08/10/2014

PARADA 6: “Para hoje, pensei em uma organização diferente”

Diferente do segundo encontro, em que não houve uma retomada e organização das atividades combinadas, inicio o terceiro encontro estabelecendo um cronograma: primeiro a partilha do registro reflexivo do Peter, seguido pela categorização dos dilemas e escolha coletiva dos temas a serem discutidos nos encontros seguintes; partilha do elemento novo preparado pela Isadora; discussão dos textos sugeridos, com as contribuições da Ana Aragão, convidada especial do dia. Aqui percebo que assumo uma postura de propositora do grupo, conduzindo e orientando as atividades de acordo com minhas intenções de pesquisadora e considerando também o processo formativo das participantes, objetivo igualmente importante da proposta.

PARADA 7: “Que teorias têm fundamentado a prática de vocês?”

Ana e eu decidimos que seria importante sua participação no terceiro encontro, levando uma discussão sobre reflexividade, a partir das pesquisas e trabalhos que tem desenvolvido nas escolas. No início deste encontro, apresentei a categorização dos dilemas levantados pelo grupo, explicando o que seria reflexividade e como esse processo ajuda na tomada de decisões diante de problemas enfrentados cotidianamente. Então, Ana fez a seguinte pergunta ao grupo: “que teorias têm fundamentado as práticas de vocês?”. Cada participante conta brevemente as linhas teóricas nas quais baseiam suas práticas. Alguns indicam que ainda estão em processo de defini-las, outros dizem que apesar de se identificarem com uma dada teoria, sentem que ela não dá conta de todos os problemas, outros indicam ainda dificuldades em articular a teoria na prática:

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AB: Tenho seguido mais comportamental, mas desde que estou trabalhando na educação tenho buscado outras coisas também. AE: Eu não queria falar. Porque não fico à vontade quanto a isso. Na faculdade eu tinha professores que faziam terrorismo com a teoria deles. Então, eu acabei fazendo estágio em comportamental, por conta do professor (...). Fui chamada para trabalhar na área social e a psicóloga de lá trabalhava na teoria sistêmica e para mim faz muito sentido. TA: Tento muito seguir Vigotski e Paulo Freire, mas é difícil. Ana e eu tecemos uma discussão com o grupo sobre a importância de escolher um sistema teórico, para que as ações profissionais tenham fundamento e guiem as escolhas e a superação dos dilemas da prática. Conversamos também sobre a articulação dialética entre teoria e prática e sobre a impossibilidade de que a psicologia consiga resolver todos os problemas: AN: Por muito tempo eu achei que a psicologia dava conta de qualquer coisa. Então é igual a BCG, toma e está vacinado para o resto da vida. O que eu acho hoje é que a teoria não dá todas as respostas, simplesmente porque ela não é capaz de elaborar todas as perguntas. Então não é ir atrás de outro sistema teórico é ir atrás de outras ciências: como a sociologia vê isso, como a filosofia vê isso. À essa colocação da Ana, eu acrescento dizendo que para escolher um referencial teórico dentro da psicologia é importante pensar no contexto histórico de surgimento daquele autor e daquelas ideias, analisando os propósitos e condições de criação daquele sistema teórico. Aqui apresento o movimento de crítica dentro da Psicologia Escolar, explicando principalmente a crítica aos testes padronizados. Peter comenta minha fala e a partir disso tecemos uma conversa sobre por fundamentos teóricos: PE: Como essa ideia de que alguém vai a partir de um teste dar a resposta para o outro é forte na orientação profissional. Vários alunos falam, mas você não vai dar um teste vocacional para a gente? FA: E porque você acha que o teste não funciona, Peter? PE: Primeiro que eles esperam que um teste vai apontar a profissão e você vai ser aquilo. E o teste não vai. Esse é o primeiro ponto que consigo de abertura deles nesse sentido. Segundo, porque o teste seja ele psicólogo ou outro é situacional (...) FA: E olha só o que está fundamentando o que você pensa! Partindo do princípio de que o ser humano está sempre em processo de transformação.

PARADA 8: Só temos oito encontros!

Ao final do terceiro encontro, convidei o grupo a olhar para a categorização dos dilemas que trouxeram para decidirmos o cronograma para os encontros seguintes, considerando que nosso ponto em comum é discutir o trabalho com demandas educacionais. Com a ajuda da Ana, chegamos à definição de 4 grandes eixos: 1) Queixa escolar: o que é, como trabalhar a formação dos professores e como lidar com a questão da medicalização; 2) Relação família-escola, que tipo de orientação podemos dar, 3) Papel e funções do psicólogo no trabalho com demandas educacionais; 4) Propostas de trabalho coletivo e individualizado.

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Teríamos somente mais cinco encontros para organizar o cronograma. Neste momento, as participantes oferecem soluções diversas para a organização do grupo e, chegamos coletivamente à decisão de agrupar os eixos 1 e 2 e os eixos 3 e 4, trabalhando-os respectivamente nos encontros 4 e 5 e 6 e 7, sendo o último encontro destinado para o encerramento do grupo.

4º Encontro – 15/10/2014

PARADA 9: Conversa (a) fiada Desde o 3º encontro, comecei a audiogravar também as conversas informais, que aconteciam na chegada das participantes, antes de o encontro começar formalmente. Essa ação me possibilitou acessar mais profundamente a forma como os vínculos interpessoais foram se formando no grupo. No 4º encontro, começamos de forma bem descontraída, em uma conversa sobre relacionamentos e família. Neste dia era aniversário do Tadeu, ele era responsável pelo lanche e levou salgadinhos e bolo para compartilhar. Cantamos parabéns a ele e depois conversamos sobre o que cada um gosta de cozinhar e sobre o quanto a comida e a partilha da refeição podem criar vínculos afetivos entre as pessoas: TA: [O salgadinho] foi de última hora. Mas a ideia era trazer algo mais de coração, mais artesanal. Eu gosto muito de coisa artesanal e isso de ofertar para o outro eu gosto muito. Me sinto muito bem. Me interessa menos a reação da pessoa e mais o prazer de fazer. A partir disso, fiz uma colocação sobre como a partilha do lanche no nosso grupo tem sido um momento para nos aproximarmos afetivamente: FA: Eu trouxe o lanche a primeira vez e convidei vocês para trazerem as próximas para partilhar comidas que tivesse algum significado para vocês ou mesmo o ato de trazer, o esforço que a gente tem para estar aqui no horário, passar em algum lugar e buscar um lanche que todos gostem, acho que o convite que queria fazer e espero que esteja sendo significativo, é da gente se aproximar como grupo, de isso fazer sentido para gente, as conversas, oferecer uma rifa, partilhar receitas, trocar ideias e da comida. Isso tem a ver com essa proposta de estarmos juntos e partilhar (...) O que tem significado para vocês estarem aqui toda quarta? E daí me lembrei do momento do lanche, do momento em que vocês chegam e eu recebo vocês e eu sinto muita amorosidade nesse espaço e nesse momento. Sinto que o encontro é algo potente e é nele que eu aposto. Eu aposto na conversa, aposto no outro como uma possibilidade muito rica da gente se desenvolver como profissionais, como gente.

PARADA 10: “O que vocês acham?”

No 4º encontro levo para o grupo um cronograma com as atividades programadas para o dia: entrega dos registros reflexivos para elaboração de devolutiva; elemento novo levado por Tadeu; partilha do registro reflexivo da Lícia; estudo de caso a partir do artigo: “A doença do Tom Cruise: uma experiência de estágio em intervenção psicoeducacional”. Pergunto ao grupo como gostariam de organizar a ordem das atividades. Fabiana sugere que as pessoas que prepararam o elemento novo e o registro decidam qual ordem fica melhor e assim Tadeu apresentou o elemento novo no início do encontro. Em seguida, discutimos o artigo sugerido por mim, que trazia um estudo de caso sobre atendimento a uma criança com diagnostico de dislexia. Eu havia preparado uma atividade em pequenos grupos. Porém, havia poucas pessoas naquele dia e Peter sugeriu que fizéssemos a atividade com o grupo todo, decisão que foi acolhida por todos.

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PARADA 11: “Mais alguém ficou pensando alguma coisa?”

O elemento novo foi um recurso estético presente em todos os encontros e a cada vez era levado por uma pessoa diferente, ajudando a disparar discussões. No 4º encontro, Tadeu partilhou com o grupo um curta-metragem “Por cuatro esquinitas de nada”. Pergunto a ele porque decidiu trazer esse vídeo: TA: Eu acho o seguinte, pensando no que a gente falou outro dia em qual seria o papel do psicólogo (...) de falar “olha, não é mais fácil abrir a porta?”. Essa clareza talvez seria a função de vocês: “será que não tem outro caminho, outra forma?”. Dar esse olhar. Isso eu acho interessante. Não só interessante, como fundamental. Porque vezes na escola você não tem isso. (...). Eu acho que talvez vocês conseguiriam dar esse olhar, talvez é muita responsabilidade. FA: E os psicólogos do grupo, o que acharam do elemento novo? PE: Eu acho que conversa um pouco, eu li os textos e a visão que ficou para mim dos três textos como um todo é que a maioria das vezes a queixa escolar vem de um olhar errado sobre a criança (...) Então a dificuldade nossa na verdade é fazer com que as pessoas não olhem para a criança, olhem para o sistema eu pensei numa luta contra a maré. FA: Bem contra a maré. Mais alguém ficou pensando alguma coisa sobre o vídeo? LC: Eu fiquei pensando na inclusão, que hoje é uma realidade que a gente tem. Não é no sentido ideal, mas muitas vezes a gente consegue colocar o quadradinho. Mas e aí? Aí eu fico pensando, será que a gente está ainda só nesse primeiro passo, colocando o quadradinho e isso basta? Não. É colocar o quadradinho, mudar a porta, mudar esse coletivo para receber esse quadradinho, pensei na inclusão que é um grande desafio hoje. Luiza e Alice partilham experiências de suas práticas com educação inclusiva. Em seguida, usando a metáfora do próprio vídeo, Peter comenta que não se deve apenas arrumar a porta para “permitir a entrada do quadradinho”, mas tirar a parede toda, refazê-la. Eu pergunto: FA: Que tipo de concepção de criança, educação, aprendizagem, desenvolvimento sustenta essa ideia que vocês trazem de inclusão? PE: Acho que isso vem muito com a visão de que cada um é um mesmo, independente se tem um nome para o que a pessoa tem ou não (...)

PARADA 12: Participante-propositora, propositora-participante

A discussão provocada pelo elemento novo trazido por Tadeu levou o grupo a pensar sobre a inclusão e sobre as crianças que apresentam alguma intercorrência no processo de escolarização, recebem algum diagnóstico e acabam ficando “invisíveis” no cotidiano escolar, vista apenas por meio de uma patologia e não a partir de suas potencialidades. Comento com o grupo que a necessidade de enxergar e trabalhar as potencialidades da criança já parece ser um assunto tão comum, mas me questiono porque isso tantas vezes não se efetiva nas salas de aula. Tadeu então responde: TA: Eu tenho uma tese. Eu trabalho com formação de professores e essa situação é assim “eu sei eu vejo, mas eu não tenho o que fazer”. E aí o que a gente pensa e chegou a algumas conclusões, vou tentar responder duas coisas que você perguntou. As concepções que a gente tem de criança, aprendizagem e desenvolvimento (...) é uma mistura de tudo, um sambão. Então você não tem, de verdade, o professor estuda pouco teorias de concepção, estuda muito pouco isso. Dá uma pincelada

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em Vigotski, uma pincelada em Piaget, coloca ou dois juntos, vai fazendo essas coisas. Não se aprofunda. E no final o que eu vejo é que a gente tem uma educação muito militarizada. [Tadeu parecia ter algo a mais para acrescentar, mas eu não escuto sua solicitação inicio uma fala, a partir de um material que preparei em slides] FA: Eu penso também, não tem um culpado nessa história. Por quê? Porque são discursos que sustentam esse jeito de pensar. Então discursos produzidos a partir de uma trajetória que é história. Então isso chega para o professor, para ele e para nós como psicólogos e para outras pessoas como algo muito natural. Após apresentar uma crítica aos diagnósticos psicológicos a partir de avaliações neurológicas, pergunto a Luiza: FA: O que você pensa, Luiza, estou pensando em você agora, por você vir dessa área da neuropsicologia, da avaliação neuropsicológica, o que você pensa dessa questão do distúrbio como um argumento muito presente na fala dos professores? Partilha com a gente um pouco sua experiência. A partir dessa pergunta, Luiza contribui para pensar esse tema com sua prática clínica, Tadeu com os conhecimentos da História, Ana Elisa com sua prática na área social e da saúde.

PARADA 13: “O que vocês fariam?”

A discussão sobre diagnósticos, medicalização, predominância dos saberes do campo da saúde para tratar questões escolares emergiu ao longo do 4º encontro. Ao perceber o movimento de “queixa-lamentação” em que estávamos prestes a entrar, fiz a seguinte entrada: FA: Mais uma vez a gente entrou naquele movimento que é de falar do quanto é difícil e realmente é. É o entrave com os médicos, com um pensamento que está inserido na fala dos professores, na nossa fala, na fala das famílias. (...). Estou pensando aqui no nosso objetivo de hoje que é pensar em possibilidades efetivas, considerando a questão da atuação do psicólogo, mas também dos professores e da Lícia que lida com essas questões. E de novo a gente tem meia hora para fazer tudo isso. O que eu pensei: tem o registro da Lícia, que acho que podemos deixar para o final como um jeito de amarrar e de sair daqui pensando no seu entendimento sobre o grupo. Eu pensei em ler para vocês a história do Tom Cruise da Silva, é esse o nome que a autora deu no artigo e partir desse caso, a gente pensar em algumas questões (...) A partir da leitura do caso, pergunto ao grupo o que fariam com aquele encaminhamento e percebo que cada participante contribui para pensar no atendimento à queixa escolar, a partir do seu campo de formação/atuação profissional. LU: Ah, Fabiana, geralmente eu acolho [a mãe]. Falo, é, você pensa isso? Tudo bem, vou tentar ajudar e a gente juntos vamos ver o que é possível ser feito. Não sei. Geralmente acolho. LI: A gente não sabe o fato, mas a gente tem que investigar isso: que função o não estar lendo está tendo na vida dele, como que isso começou e para onde isso está indo. BI: Acho que as outras informações que a gente precisa nesse caso, seria fundamental olhar para como essa criança está sendo atendida na escola.

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AE: Acho que aí a gente vai considerando tudo, como a escola reage e quando fala da mãe, como a mãe concebe aquilo também vai fazer com que ela aja determinada forma com aquela criança. TA: Vocês já foram em reuniões de pais e professores? Você é um confessionário, eles vêm e despejam tudo, chora, abraça e daí melhora. O professor que é duro nesse momento, não tem resposta. Só de você acolher o pai e a mãe, já tem uma mudança. AL: Eu tenho um aluno e quando eu ofereço um estímulo e ele não responde, eu fico, o que eu estou fazendo de errado? Será que a forma como eu estou falando está errada, será que minha didática está errada, será que a minha teoria está errada? O que eu estou fazendo de errado?

PARADA 14: “E agora a gente está caminhando, andando”

Ao final do 4º encontro, Lícia partilha seu registro reflexivo sobre o encontro anterior. Nele, relata as angústias de não perceber um objetivo nos dois primeiros encontros e como o 3º encontro foi decisivo para criar uma identidade no grupo. Ao finalizar a leitura, comentou: LI: Eu percebo de um jeito muito pontual. Os dois primeiros encontros eu achei bons, claro, mas mais soltos, no sentido do objetivo e isso me angustiou um pouco. Como eu coloquei aqui, ilustrando, como se tivesse sido uma gestação e no terceiro encontro a coisa nasceu. E agora a gente está caminhando, andando. E eu achei o terceiro encontro como o que norteou: “que linha que eu sigo?” “como quem você dialoga?”, a Ana falou isso. E relata um caso que atendeu naquela semana: LI: Quinta-feira de manhã atendi uma menina autista, caso dificílimo, dificílimo e a menina tem três anos e ela fica muito com a mãe, fala muito pouco e ela protesta muito, o protesto dela quando a gente tira a mãe é ela fazer xixi. Ela já faz no banheiro, mas ela fez xixi na sala, perto do meu pé. E naquele dia a gente tirou a mãe e ela veio, fez xixi, aquele xixizão. Eu falei assim: “bom, tá bom, com quem eu vou dialogar agora, o que eu faço agora?” É pra gente chamar a mãe, a mãe troca e a gente não tá fazendo mais isso, eu troco e tal. E aí ela sapateia no xixi, faz aquela confusão e nessa hora eu pensei: “bom, na teoria estava tudo muito tranquilo e agora na prática, o que eu faço com esse xixi, com essa criança?” A gente já tem algumas coisas prontas para fazer, não entrei em desespero, mas enfim, foi um dilema que vivi e falei, com quem eu vou conversa agora? Então, esse encontro trouxe muito isso, criou uma propriedade no grupo e foi muito bom. Foi isso que pensei e acho que a angústia que tive nos dois primeiros encontros foi atendida, fui muito acalmada nesse terceiro. 5º encontro – 22/10/2014

PARADA 15: Pesquisadora-participante, participante-pesquisadora Desde o 4º encontro, havia pedido ao grupo que entregassem os registros reflexivos que haviam feito até então para que eu pudesse conhecer o processo de cada uma no grupo mais profundamente, oferecendo devolutivas. Então partilhei com o grupo uma outra ideia: FA: E daí enquanto eu pensava sobre isso me veio uma outra ideia: se eu estou dizendo que aqui é um espaço de construção coletiva e eu considero que tem sido, pelas conversas que a gente teve, pelas escolhas que vocês mesmos fizeram dos dilemas, eu resolvi trazer os meus registros para vocês também. Essa semana eu falei “ah, vou mandar do último encontro”, porque eu achei legal, me movimentou coisas interessantes, e aí fui ler os outros e pesei que seria bom vocês terem acesso ao que eu escrevi. A cada vez que eu saio daqui eu escrevo alguma coisa, como se fosse um diário de

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campo, que é um recurso que a gente usa na pesquisa qualitativa, o pesquisador, ao longo do processo, ele já vai narrando e tentando entender os sentidos produzidos pelo processo da pesquisa. Então a cada vez que eu saio daqui eu faço um registro e daí trouxe para vocês. Eu vou entregar e aí eu queria a contrapartida: que vocês fizessem para mim considerações: o que chamou a atenção nesses registros que eu estou entregando, sobre minha postura, sobre o que a gente conversou... do meu jeito de enxergar o grupo. Vocês topam?

PARADA 16: Uma equipe profissional

Tadeu partilhou conosco seu registro reflexivo sobre o 4º encontro: começa dizendo que é o registro do dia 15 de outubro, dia do seu aniversário e diz que foi bom, mas esquisito estar com o grupo. Pergunto porque esquisito, ele disse que já tem um tempo que ele escolheu não trabalhar no dia do aniversario dele. E esse ano ele disse que não só trabalhou como fez mais coisas: “mas o dia inteiro, com fazendo coisas que eu não gostei, a única coisa que eu gostei foi estar aqui”. Segue lendo o relato sobre como o vídeo Sentimentário e as conversas sobre rótulos relacionados a problemas de aprendizagem o mobilizaram, pois ele mesmo foi diagnosticado como disléxico na infância: TA: Achei muito interessante quando você [Lícia] falou que não é um diagnostico fácil, né? Hoje eu entendo isso, não é fácil, não é simples, hoje eu entendo isso. A partir do relato pessoal de Tadeu, pedi ao grupo para que imaginassem o que fariam se um caso como o de Tadeu chegasse até eles. Alice relaciona o relato a uma reunião em seu trabalho, na qual discutiram a possibilidade de retirar o EJA da escola: AL: aí fiquei escutando o Tadeu falar e pensei: tudo a ver com a discussão de hoje de manha. Tirar o problema da escola, não tem que tirar o problema da escola, o problema é da escola, o problema é de todo mundo que está envolvido com a escola. Pergunto aos psicólogos do grupo o que fariam. Valentina partilha sua prática como psicóloga de uma Unidade Básica de Saúde, dizendo que busca investigar tanto os aspectos da saúde da criança, da história familiar, quanto da escolarização. Convido o grupo a buscarem nos textos sugeridos ideias para pensar em como lidar com demandas educacionais. O grupo fica em silêncio diante desse convite e eu pergunto o que estão pensando. Luiza comenta sobre a falta de preparo dos profissionais que atendem as demandas educacionais, desde professores até psicólogos, médicos... e Tadeu comenta que no seu caso algo que fez toda a diferença foi o modo como alguns professores o olharam sem julgá-lo por seu diagnóstico, mas valorizando suas potencialidades. FA: Mas Tadeu você também falou uma coisa importante que é de procurar o olhar do professor, você devolvia em forma de brincadeira e aquilo voltava. Então eu acho que você está falando do vinculo afetivo que é criado com o professor. Se aquele professor te dava troca afetiva, então a coisa caminhava. Alice então associa essa conversa sobre afetividade e prática docente a suas ações como professora: AL: Hoje na escola em que eu trabalho tem encontro individual. E aí eu pensei: “o que eu vou falar pra mãe sobre o que esse aluno desenvolveu nesse semestre?”. E comecei a pensar, pensar, pensar e aí eu me dei conta que no meio do semestre o aluno ficou mais próximo de mim e aí eu acho que o vínculo afetivo foi diferente e aí eu percebi que tanto que ele estava desenvolvendo. FA: Alice e o que da sua ação você consegue identificar que foi importante nesse processo?

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AL: Acho que o tempo (...) Me conhecer e conhecer essa criança também, saber de que forma eu posso agir com essa criança, o que eu posso fazer, de que forma eu posso chamar a atenção (...) Então a gente vai criando estratégia durante o ano. FA: É o tempo, mas eu penso que tem um outro elemento aí no meio, que é o seu entendimento de que isso é importante. Porque você, nesse processo, se isso não fosse importante, você não iria estar se fazendo tantas perguntas. Olha o tanto de perguntas que você foi fazendo: “o que eu posso fazer? Porque ele estava assim? Porque ele ficou desse jeito? O que é importante nessa relação?”.

PARADA 17: Qual é a receita?

Diante do meu convite para discutir os casos apresentados no grupo, Peter disse: PE: Quando pergunta: “o que fazer com esse caso?” parece que o caso sempre chega pronto e é só dizer: “vou fazer assim, assim, assim”. Será que esse caso assim vai ser sempre da mesma forma? FA: Eu entendo o que você traz, Peter, acho que a minha tentativa de pensar em casos é tornar mais concreta a nossa conversa, sabe? E acho que a gente tem que tomar bastante cuidado mesmo, porque não existe uma única solução (...) Então não tem uma receita, mas tem possibilidades e eu estou percebendo que a possibilidade mais concreta que a gente chegou até agora é essa de buscar outros jeitos de olhar. Então vamos ouvir essa criança? O que será que ela entende dessa situação? Que jeito ela vê isso tudo? A partir desse ponto, discutimos sobre a importância de ouvir as crianças e entender a versão delas sobre a queixa, ouvir também as famílias e a escola, acolhendo as angústias e movimentando as várias versões sobre o caso: LU: Então, eu me apresento eu falo: “olha, eu já conversei com seus pais”, porque já colhia queixa com os pais e falo “eu vou te contar o que eu conversei com seus pais e depois você me fala se você concorda ou não (...) TA: Essa estratégia é muito legal. LU: É uma técnica, uma estratégia de você deixar a criança mais... tranquila, você acolhe aquela angústia. PE: E quando você acha que é o momento de falar com a escola? LU: Peter, primeiro eu faço uma avaliação (...). Então, primeiro eu fecho a avaliação da criança e depois eu vou para a escola. Ao final do encontro, Tadeu disse: TA: Eu estava pensando numa coisa, a receita de bolo, de estar preocupado com a receita de bolo. A receita de bolo ela dá uma segurança pra gente de que se ela falhar, troca de receita. Por isso que as pessoas querem tanto a receita de bolo. Mas pensando por outro lado, a gente pode construir uma receita de bolo (...). Acho que a gente construiu uma receitinha. Uma receitinha não, um receitão. Um bolão gostosão. E não tem problema. Eu tinha muito forte essa fala, não quero receita, não quero usar receita, mas é legal a gente construir, talvez artesanal. FA: Talvez a receita seja o processo mesmo, de conversar e refletir junto.

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TA: Seja o processo. E aquela coisa: não deu certo? Vamos fazer de novo. É isso. Achei legal isso, o quê olhar, como olhar... escutar. 6º Encontro – 29/10/2014

PARADA 18: “O que você acha que os encontros estão sendo para nós?”

Depois de ter entregado impresso às participantes o diário de bordo de todos os encontros, levo o registro que fiz do 5º encontro para partilhar com o grupo no início do 6º encontro. Perguntei, então, como foi para elas ouvirem as minhas impressões sobre o grupo. PE: Achei engraçado que no começo você se pergunta até que ponto você se coloca participando do grupo e ao longo da sua leitura, você foi trocando várias palavras que se distanciavam um pouco do grupo e na sua troca você se aproximava do grupo. Quando você escreveu sobre o grupo, você colocou “conosco”, acho que você está mesmo inserida e como isso contribui para que esse grupo seja um grupo mais unido, mais humano, sabe? LI: O que me disparou uma reflexão foi essa frase “que sentido tem para o grupo registrar reflexivamente os acontecimentos?”. E é um exercício muito interessante. Na minha prática eu não escrevo muito, eu gosto de escrever, mas eu não conhecia o exercício do portfolio reflexivo. E eu achei muito interessante, porque a gente ressignifica, retoma aqui e ressignifica, entende melhor a coisa, o que foi pensado. (...) O seu relato eu achei muito cuidadoso, seu olhar é muito cuidadoso, muito atento. Então isso não é fácil, acho que isso é trabalhoso. (...) Então eu vejo que você tem esse movimento sozinha você com o trabalho e aqui no grupo. E eu acho que a sua escuta é muito delicada, muito sensível, acho que o olhar e a escuta. Luiza partilha a dificuldade em escrever os registros toda semana: LU: A vida da gente é muito corrida, né, Fabiana, chega a noite, minha filha está lá escutando a Pepa e eu fazendo registro reflexivo. (...) Então eu entrei um pouco em angústia, tive vontade de desmarcar uma manhã inteira de paciente para sentar quietinha e fazer. Eu senti falta de um tempo que eu já tive e hoje não tenho. Eu pergunto se mais alguém se identifica com essa angustia partilhada pela Luiza. Alice disse: AL: Para mim é significativo fazer o relato, mas meu tempo também é curto. Para mim não é fácil, não só o relato, mas tudo que eu tenho que fazer. Tudo demanda tempo e meu tempo é muito curto. FA: E é por isso que eu coloco que vocês não são meu objeto de pesquisa, são gente. Gente bem inteira mesmo. E eu tenho tentando exercitar esse cuidado de entender a condição de vocês [aqui falo ao grupo que entendo quando não conseguem entregar uma atividade solicitada ou fazerem as leituras indicadas, pois todas trabalham e vêm de outra cidade e que ainda assim percebo o compromisso de cada uma com o grupo]. AL: Tenho uma pergunta: o que você acha que o curso está sendo pra gente? FA: E é uma pergunta daquelas assim... né? AL: Você perguntou: o que será que o curso está significando para eles. Mas o que você acha que está significando pra gente?

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FA: Pra vocês? [silêncio]. Eu penso... Sua pergunta é muito pertinente, eu não sei nem por onde começar a responder. (...) eu vejo que tem sido um espaço bom, de compromisso mesmo (...) Acho que só depois de ouvir as gravações e retomar o que vocês escreveram é que vou poder ter acesso ao que você me perguntou.

PARADA 19: “Tem um texto que fala isso”

No 6º encontro, levei a dinâmica da “batata-quente”: uma caixinha com perguntas que paravam aleatoriamente nas mãos das participantes, de acordo com o parar da música, para proporcionar a circulação de temas, de acordo com os eixos de discussão escolhidos coletivamente. A perguntas eram: - O que você entende por psicologia escolar e educacional? - O que você entende por compromisso social, transformação social? - O que você entende por processo educativo? - Para você, o que seria uma atuação crítica? - Que contribuições você considera oferecer à educação na sua prática? - Como o trabalho com processos educativos se inserem em sua prática? Após cada participante ter respondido a uma pergunta, convidei o grupo a aprofundarem nas respostas, relacionando-as com as leituras sugeridas para aquele dia. Surgiu uma interessante discussão sobre se o compromisso social comparece no atendimento clínico, individual e, independente do local de atuação, se quando o psicólogo se propõe a um olhar amplo, a dimensão social do trabalho estaria presente aí. AL: O social não envolve só essa questão de ajudar financeiramente ou trabalhar em um lugar onde tem crianças com mais necessidades, mas você se disponibilizar para o outro, você estar disposta e aberta para o outro. Na minha visão isso é trabalhar o social, trabalhar a coletividade. VA: Quando você trabalha com clínica não é só você ficar sentada ali atendendo. LZ: Impossível, quando você trabalha com criança, impossível. VL: Tem que sair do seu lugar. Ana Elisa levantou a questão de que nem sempre a escola está disponível para essa conversa sobre os casos encaminhados. Luiza então dá uma ideia de como lida com essa questão em sua prática, seguida por um convite de Lícia para buscarmos na leitura sugerida uma reflexão sobre esse problema. LU: Então, Ana Elisa eu já enfrentei isso no começo era assim, mas agora eu agendo a visita eu peço a presença da professora. LI: Tem um texto que fala isso, da importância da presença da professora. FA: Sim, acho que é o de orientação à queixa escolar? LI: Achei, era sobre interlocução com a escola: “no processo de marcação de encontro procuramos a presença do professor na qualidade daquele que lida diretamente com a criança e da queixa escolar”.

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PARADA 20: “Da crise à oportunidade” Ao final do 6º encontro, Lícia apresenta o elemento novo ao grupo, o clipe da banda Pink Floyd “The Wall”, dizendo que pensou em trazê-lo por sua crítica ácida e não conformista ao sistema educacional e que apesar de ser antigo, os problemas apontados lá ainda são atuais. Ao final, peço para cada uma dizer uma frase ou palavra que relacionasse o vídeo com a discussão que tivemos naquele dia. E tivemos a seguinte conversa: VA: Transformação. Assim espero... BI: Repensar... antes de transformar precisamos repensar mesmo, porque tem muita coisa a ser mudada ainda. AE: Fiquei pensando no quanto às vezes a gente acha que está caminhando e depois percebe e fala, nossa, está me fazendo da boba. FA: O movimento é dialético mesmo, a gente avança, retrocede, muda algumas coisas e repete outras. AL: Como a sociedade exige de todos nós um padrão é algo que está bem claro no filme. FA: Esse que nem permite a gente parar para pensar e escrever, né, Alice? AL: Com certeza. A gente está preso ao tempo, tem que ter tempo pra tudo. FA: E o sujeito vai se perdendo. Lícia, você quer colocar mais alguma coisa? LI: Não... em uma palavra, pensaria crise. Eu escutei aqui, no primeiro dia, a educação está em crise, acho que foi a Rosa que falou. E eu fiquei pensando, será que é crise, será que é transformação? Até pouco tempo a gente tinha isso, professor batia em aluno. Meus pais tiveram. Isso não é tão antigo. Será que crise, será que é transformação? FA: E essa crise será que é ela é ruim? LI: Pode ser uma coisa boa. FA: A mesma coisa com a psicologia, a gente está nesse processo de romper com algumas práticas. LU: A crise dentro da psicoterapia breve, ela é vista, você parte da crise para tratar o paciente, o paciente não entra em psicoterapia breve se não está na crise. E eu lembrei que no ideograma japonês, a crise significa oportunidade. Então acho que minha palavra é oportunidade. FA: Da crise à oportunidade. 7º Encontro – 05/11/2014

PARADA 21: “Resistir, mas seduzir ao mesmo tempo”

No 7º encontro, Abayomi levou o vídeo Ex-E.T. como elemento novo, que traz o tema dos diagnósticos psicológicos e medicalização e que foi apresentado logo no início. Ela disse que já passou esse vídeo em um encontro de formação docente e que em geral os professores não entendem

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a proposta: “Eu já passei uma vez e a gente tem que conversar bastante, porque eles levam para um outro caminho”. Valentina também vivenciou algo semelhante: VA: Eles falam assim: ai, meu aluno é desse jeito mesmo! E na hora que dá o remédio, pra eles é um alívio: nossa que bom que acontecesse isso. Já passei uma vez e foi totalmente ao contrário, ao invés de vez de elas verem que a criança ficou ali, quietinha apática, que não estava mais sendo ela, eles falam, ai graças a Deus, vocês viram como ele ficou lá todo quietinho? Ele não deu mais trabalho (…). A gente tem reuniões mensais com os professores e na semana retrasada, nós tivemos três encontros, tentando juntar a educação com a saúde (...)E, assim, uma catástrofe, alguns entendem, alguns não entendem. Eles pegam aquilo que a gente já falou nos encontros, a receita está pronta, o remedinho está pronta. Eles esperavam que a gente fosse lá, que eles iam dar os encaminhamentos, que a gente ia pegar esses encaminhamentos e ia dar solução para os casos deles. E a gente colocou que não era esse o objetivo, que era a construção em conjunto. Disse a ela que esse seria um dilema e pedi licença para apresentar ao grupo um material que preparei sobre a história da psicologia no Brasil, para pensarmos historicamente a atuação do psicólogo nas escolas e depois voltarmos no problema levantado por ela para buscarmos soluções: FA: Quando a gente chega na escola e há essa solicitação: por favor me fale o que essa criança tem para eu saber como eu lido. Aí está o professor como alguém aquém do saber, o psicólogo como quem detém esse saber e que pode dar uma resposta e uma resposta baseada em uma medida quantitativa. Então eu ouvindo tudo isso eu pensei, a gente tem que ter humildade de olhar para a nossa história como profissão e pensar no que foi produzido e que a gente está em um momento de ruptura disso e que não vai ser fácil, né, Valentina, não vai ser fácil. É possível, mas fácil não vai ser.

VA: (...) a gente está querendo colocar os professores dentro do quadradinho também. AB: Tem esse momento de vamos pensar juntos, mas eu preciso ser um pouco mais direta, mas eles falam, eu já faço. Isso que você está falando não adianta. Mesmo quando eu falo, mas eu estou com vocês, estou aqui para orientar, se precisar eu venho aqui junto, a gente vai junto. Mas eles falam, não precisa, eu já sei. Então fico sem saber o que fazer. FA: Alguém ajuda a Abayomi a pensar em alguma outra possibilidade?

(...) AE: (...) É a gente sair desse lugar do saber absoluto e que de alguma forma a gente fez e talvez a nossa luta todo dia seja essa. E a gente acha que não está fazendo nada, na verdade. FA: E isso já é muito. Só que eu acho que tem alguma outra coisa que a gente precisa pensar talvez até aqui agora juntos que é de também de acolher essa fala para não deixar para não dar a entender também esse lugar do contra que você falou. Esse é o desafio, da gente resistir, mas ao mesmo tempo seduzir. Essa parte da sedução é que eu acho delicada, porque ela exige sim uma postura de entender que esse professor tem um saber, ele tem um conhecimento que a gente não tem, por isso que a relação tem que ser horizontal.

PARADA 22: “Trabalho de borboleta”

Valentina, Abayomi e Ana Elisa partilharam com o grupo o projeto saúde-escola que têm desenvolvido, integrando profissionais de ambas as instâncias para pensar em ações para atender as demandas educacionais da rede. Ao relatarem as dificuldades em lidar com as expectativas dos professores, que muitas vezes esperam que elas somente atendam individualmente as “crianças-problema”, sem fazer um trabalho institucional mais amplo, o grupo sugeriu que esse tipo de projeto pode demorar a se constituir. Tadeu comentou, por exemplo que um trabalho que convida as pessoas à

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reflexão é artesanal, demanda tempo e esforço para se estabelecer. Valentina afirmou: “É um trabalho de formiguinha”. Mais a frente, refiro-me novamente ao trabalho que envolve uma reflexão e horizontalidade como um trabalho de formiguinha. Tadeu diz: TA: Eu não gosto dessa expressão “formiguinha”. A formiga só trabalha e não sabe dar risada e a gente nessa coisa, em escola usa muito, “ah, a gente está fazendo um trabalho de formiguinha”. Formiga não questiona, não pensa, vai sempre no mesmo ritmo. AE: Igual naquele desenho,[a participante não cita qual é esse desenho] se cai alguma coisa no meio, elas ficam desesperadas. FA: Nem pensei nessa possibilidade. Seria um trabalho de que, então? (...) VA: Trabalho de borboleta. FA: É lembrei da borboleta que usei nos relatos em um deles sai pensando, no segundo encontro que saí daqui bem pesada, pensando onde está indo esse grupo, será a gente vai dar conta do que se propôs a fazer, do que eu me propus e daí pensei na borboleta, ela tem um voo leve, mas não tem muito rumo certo, como da formiga, ela vai para onde mais agrada... TA: E é o símbolo da transformação. FA: É o símbolo de transformação de uma lagarta que tem dificuldades de se locomover para uma borboleta que voa livre. 8º Encontro – 13/11/2014

PARADA 23: “Engraçado, né? Teve mudança”

No último encontro, Bianca preparou uma apresentação para partilhar suas percepções como pesquisadora-auxiliar sobre o processo do grupo. No início de sua apresentação, Bianca colocou fotos dos primeiros encontros. Tadeu, então comenta: TA: Engraçado, né? Teve mudança. FA: Muita. TA: Mudança física mesmo (...) Eu fiquei impressionado como que na primeira foto para agora a gente mudou. LI: Isso tem a ver com o vínculo. LU: Quando o vínculo se cria, muda a nossa percepção em relação ao grupo e a nós mesmos dentro do grupo. No fechamento do encontro, ao discutirmos o curta metragem The last knit que levei como reflexão final, Lícia comenta: LI: (...) Acho que é isso, embora nosso grupo teve um momento de construção, mas essa construção nunca acaba, ela vai seguir com cada um de nós e enfim, acho que me dá um pouco essa impressão,

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de construção que nunca se acaba, ela aconteceu aqui e vai continuar dentro de nós, o grupo vai continuar dentro da gente. A gente se distancia na memória, mas continua na gente. SEGUNDO MOVIMENTO – Indicadores de análise

O segundo movimento analítico foi elaborado com a intenção de criar os

indicadores de análise, por meio do agrupamento e categorização de todas as fontes de

material empírico, a seguir identificadas com a respectiva sigla usada em cada trecho:

a) “Paradas” criadas a partir das transcrições dos oito encontros (ENC);

b) Registros reflexivos das participantes (RR);

c) Carta devolutivas sobre os registros reflexivos da pesquisadora às participantes (CD);

d) Diário de bordo da pesquisadora (DB);

e) Devolutiva das participantes sobre o Diário de Bordo (DP);

f) “Cartas a um amigo” (CA).

Além das siglas, será também identificado o número do encontro e a data a que se

referem. Por exemplo, se o Registro Reflexivo é decorrente do encontro 1, a sigla será “RR-

1”. A exceção será para os materiais empíricos que não foram produzidos em um encontro

específico, tais como as “Cartas a um amigo”, “Devolutiva das participantes sobre o Diário

de Bordo” e “Carta da pesquisadora às participantes”.

O volume de material produzido, advindo de fontes diversas exigiu um trabalho

minucioso e sistemático de organização. Com a intenção de conhecer as temáticas e

conteúdos, relacionados aos objetivos da pesquisa, emergentes de todas as fontes juntas,

utilizei o Software WebQda71 que me ajudou a codificar todo o material, por meio do

destaque de frases e trechos relacionados aos objetivos da pesquisa. A partir deste trabalho de

codificação, foi possível elaborar uma trama de conteúdos, concedendo uma perspectiva

ampla sobre os elementos, oferecendo indícios importantes para compreender o grupo como

71 WebQda é um software de análise qualitativa desenvolvido em Portugal e utilizado em diversas faculdades e institutos de pesquisa no mundo todo, inclusive em grupos de pesquisa da Faculdade de Educação da Unicamp. Para mais detalhes acessar: https://www.webqda.com/

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fonte de desenvolvimento profissional. O diagrama a seguir apresenta os indicadores de

análise, a partir de categorias e subcategorias72:

Diagrama 1: Indicadores de análise

Após a codificação de todas as fontes de material nessas categorias, o Software

gerou um gráfico com as categorias mais recorrentes – o número em cada linha representa a

frequência com que esse código foi marcado no material.

Gráfico 1: Códigos mais recorrentes

72 Os indicadores estão divididos em categorias e subcategorias, de acordo com a similaridade e complementariedade entre eles. O único indicador avulso é o “vínculo afetivo”, por não ter encontrado subcategorias correspondentes a ele.

Constituiçãodeumapropostacolaborativa

Objetivosdogrupo

Diversidadedeprofissionais

Decisõescoletivas

ElementoNovo

RegistroReflexivo

Leituras

Contribuiçõesdasparticipantes

Colisões

Demandaseexpectativas

Manejodogrupo

Posicionamentohorizontal

Posicionamentovertical

Lacunasedificuldades

Concepçõesteóricas

Concepções sobreeducaçãoescolar

Concepções sobrefamília

Concepções sobrepsicologia

Concepções sobreotrabalhocomdem.educacionais

Sistemasteóricos

Vínculoafetivo

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Apesar de a recorrência numérica dos códigos ao longo do material não ser por

si só elemento para análise, é interessante notar que o manejo do grupo por mim, a partir de

um posicionamento horizontal é o indicador que mais se repete, junto das contribuições das

participantes entre si, sugerindo que, no grupo, a participação ativa das integrantes foi um

elemento relevante para a constituição de uma proposta colaborativa. As colisões aparecem

em segundo lugar, como indício de que o desenvolvimento profissional, tendo as relações

sociais como fonte, implica em um processo não linear, permeado por contradições e crises.

O indicador concepções sobre psicologia e papel do psicólogo sugere que esse foi o assunto

mais recorrente ao longo da proposta e o registro reflexivo aparece como atividade mais

comentada ou mencionada ao longo do grupo, indicando a necessidade, nas análises, de um

olhar atento a esses dois elementos.

A seguir, descrevo brevemente os indicadores de análise, a partir das categorias

e subcategorias criadas na combinação de todas as fontes de material empírico, citando

alguns trechos a partir do material para exemplificar cada um dos indicadores.

1. Constituição de uma proposta colaborativa: este indicador apresenta os elementos que

foram importantes para a constituição do grupo colaborativo e como as vivências foram

recebidas e significadas pelas participantes.

1.1 Demandas e expectativas: aqui foram agrupados os trechos em que as participantes

relatam quais necessidades as levaram buscar o grupo e o que esperavam desse espaço. Em

geral, mencionaram as lacunas na formação inicial e continuada, a busca por conhecimento

no campo da Psicologia Escolar para conseguirem lidar com as demandas educacionais em

seus cotidianos de trabalho, o sentimento de solidão e o desejo de estar com outros

profissionais, partilhando os desafios do cotidiano profissional. No trecho a seguir, Alice

relata que inicialmente esperava apenas aprender alguns conhecimentos, no entanto

encontrou espaço ativo de partilha e discussão sobre a prática:

Como descrevi no primeiro relato, minhas intenções ao me inscrever neste curso eram apenas ouvir e absorver conhecimentos (...). Entretanto no decorrer dos encontros não contive minha ansiedade em relatar minhas experiências. Percebi que apenas ouvir seria impossível diante de discussões tão enriquecedoras. Não basta observar, é preciso participar. (Alice, RR-6, 29/10/14)

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1.2 Objetivos do grupo: esta subcategoria inclui os trechos em que os propósitos do grupo

são mencionados ou discutidos coletivamente no grupo. Considerando que a proposta não

estava fechada, alguns trechos indicam o questionamento das participantes sobre os objetivos

do grupo e o meu convite para que todas possamos pensar na construção daquele espaço

formativo:

O objetivo é ‘vamos pensar então no que podemos fazer a partir de tudo isso que vocês estão trazendo? Que possibilidades a gente tem, estando em grupo, numa formação coletiva, com os pares, dialogando, pensando nas realidades, trazendo casos, refletindo sobre ele (Fabiana, ENC-1, 24/09/14)

1.3 Elemento Novo: os trechos selecionados aqui se referem a como as participantes se

apropriaram da atividade do elemento novo o que foi em geral encontrado nos registros

escritos (registro reflexivo ou carta ao amigo), como podemos identificar no relato de

Abayomi:

Tinha também o “Elemento Novo”, a cada encontro um participante levava algo para aquecer o início, foram levados muitos elementos legais entre textos, música e vídeos, no meu dia eu levei o vídeo: Ex-ET, que passamos bastante aqui na secretaria para os professores e que discute a despatologização, a sensibilização para as diferenças e a dificuldade em lidar comas diferenças no dia a dia (Abayomi, CA)

1.4 Registro Reflexivo: aqui foram escolhidos os excertos em que as participantes relatam

suas experiências com a atividade do registro reflexivo, bem como o uso que eu mesma fiz

desse recurso como uma estratégia no grupo, quando partilhei meu diário de bordo. Em geral,

as participantes identificam o que aprenderam a partir desse exercício:

E é um exercício muito interessante. Na minha prática eu não escrevo muito, eu gosto de escrever, mas eu não conhecia o exercício do portfolio reflexivo. E eu achei muito interessante, porque a gente ressignifica, retoma aqui e ressignifica, entende melhor a coisa, o que foi pensado (Lícia, ENC-6, 29/10/14) O relato revelador do Tadeu [por meio do Registro Reflexivo] me fez refletir sobre como o olhar do outro pode influenciar a vida de um individuo. Ouvindo o relato de Tadeu lembrei-me de minha infância e pensei muito sobre como lembrar da vida escolar me ajuda e influencia minhas decisões. (Alice RR-05, 22/10/14)

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1.5 Leituras: a fundamentação teórica das discussões era parte da proposta, por isso nessa

categoria foram selecionados trechos em que as participantes mencionam a importância dos

textos discutidos para sua formação. Aqui destaco também um trecho de Peter, que ressalta as

contradições dessa proposta, relacionadas às dificuldades que tivemos em focar nos textos

indicados durante os encontros, sugerindo que as necessidades do grupo estavam

relacionadas ao desejo de partilha, identificação e pertencimento:

Percebo uma insistência da Fabiana em conduzir o grupo no sentido de uma reflexão teórica embasada em artigos e uma dificuldade do grupo em caminhar nesse sentido. Talvez o grupo não deseje nesse momento um fortalecimento teórico, mas sim um fortalecimento pessoal (Peter RR- 6, 29/10/14)

A Fabi sempre trazia algum texto para dar embasamento teórico nas nossas discussões, os textos foram muito ricos para o meu desenvolvimento como profissional, relembrei coisas que muitas vezes deixamos passar. (Abayomi, CA)

1.6 Diversidade de profissionais: aqui os trechos se referem ao modo como as participantes

significaram a multiplicidade de profissionais no grupo. Destaco uma fala minha no primeiro

encontro, na qual ainda me refiro à formação do psicólogo como o principal objetivo do

grupo, mas já apresento a necessidade de pensar a presença dos demais profissionais. No

trecho de Abayomi, ela traz a diversidade profissional com um elemento formativo

importante:

Sobre a questão de haver outros profissionais no grupo, destaco que o objetivo é propor a formação do psicólogo, mas com a presença de outros poderemos dialogar e ampliar nossas experiências e entendimento. (ENC-1, 24/09/14) Senti-me parte deste grupo, que apesar de diferentes locais de atuação que cada um ali tem, temos anseios e dilemas bastante parecidos, não me senti “sozinha” como muitas vezes acontece no meu ambiente de trabalho. (Abayomi, RR-1, 24/09/14) 1.7 Decisões coletivas: esta subcategoria se refere a trechos sobre as situações em que o

grupo se organizou coletiva e colaborativamente. Aqui trago como exemplo um trecho do

meu diário de bordo, em que relato a mobilização das participantes para organizar o encontro

e um trecho em Lícia traz a expressão “construção coletiva” para definir o grupo:

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Logo no início, coloquei para o grupo minha dúvida sobre iniciar com o registro ou com o elemento novo... Fiquei feliz quando todos opinaram sobre essa questão, ajudando a resolvê-la, ao sugerirem que a própria pessoa responsável pelo elemento pudesse escolher em que momento apresentar o que trouxe ao grupo. Isso indica a apropriação daquele espaço como de fato coletivo, construído a muitas mãos. Como é bonito o carinho e comprometimento de quem leva o elemento novo, partilha seu registro, leva o lanche, se programa para sair de suas casas e cidade para estar no grupo toda quarta. (Fabiana, DB-4, 15/10/14)

Fabi, a mediadora trouxe para o grupo a expressão “ construção coletiva”. Eu não conhecia este termo. A ideia foi do grupo construir os temas a serem trabalhados a partir da proposta inicial. Tínhamos alguns elementos teóricos trazidos pela mediadora e também sugestões de leitura, mas na maioria das vezes o grupo acrescentava na reflexão. (Lícia, CA)

1.8 Contribuições das participantes entre si: nesta subcategoria foram agrupados trechos que

indicam o modo como as participantes colaboraram entre si para resolverem dilemas e

pensarem em possibilidades no decorrer dos encontros. Destaco como exemplo o relato de

Lícia, sobre a contribuição de todos os membros na fluidez das discussões e também o trecho

de um episódio em que a partilha da experiência de Tadeu se mostrou fundamental para gerar

reflexão sobre o trabalho com demandas educacionais: O grupo mostrou-se muito entrosado na proposta do “construir com” e “falar com”. Apesar de ser um grupo não muito numeroso, foi muito coeso e funcionou em um movimento horizontal e afetivo que permitiu uma construção única e preciosa de muitos conteúdos. Cada membro expôs seus momentos mais marcantes, e embora tenham sido diferentes e distintos, mostrou que a presença de todos foi decisiva na percepção de cada um, assim como a visão individual na formação do grande olhar. Todo o movimento aconteceu no plano singular/individual e coletivo/grupal. (Lícia, CA)

Tadeu segue lendo o relato sobre como o vídeo Sentimentário e as conversas sobre rótulos relacionados a problemas de aprendizagem o mobilizaram, pois ele mesmo foi diagnosticado como disléxico na infância: TA: Achei muito interessante quando você [Lícia] falou que não é um diagnostico fácil, né? Hoje eu entendo isso, não é fácil, não é simples, hoje eu entendo isso. (...) AL: aí fiquei escutando o Tadeu falar e pensei: tudo a ver com a discussão de hoje de manhã. Tirar o problema da escola, não tem que tirar o problema da escola, o problema é da escola, o problema é de todo mundo que está envolvido com a escola. (ENC-5, 22/10/14)

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1.9 Colisões: apesar de ter alocado esta subcategoria no indicador referente à constituição de

uma proposta colaborativa, ela perpassa todas os demais indicadores, sendo central para

compreender as interações sociais que foram força motriz para mudanças no processo de

desenvolvimento das participantes. Aqui coloco alguns exemplos de trechos em que as

participantes expõem suas dúvidas e angústias com relação à proposta:

Este primeiro encontro, de contato inicial, que se apresentou como de muitos blá-blá-blás sobre educação, psicologia, alunos, professores, etc... pareceu-me mais um desabafo do que uma reflexão mais aprofundada sobre os assuntos. Mas enfim, cabia a este momento. (Lícia, RR-1, 24/09/14)

No decorrer do encontro fui sendo preenchida por uma angústia em relação ao pensamento de alguns profissionais, companheiros de curso, especialmente alguns (psicólogos), quanto ao papel e atuação dos professores nas escolas. Nesse momento senti a falta de relacionarmos as falas do grupo com questões concretas e teóricas acerca dos textos. (Alice, RR-2, 01/10/14)

Falamos sobre a concepção de dilemas e sobre reflexividade. Tudo muito bom, até que... eis a pergunta que me tira da minha zona de conforto: que teoria fundamenta minha prática? Acredito que por ter ciência da importância dela me incomode tanto. (Ana Elisa, RR-3, 08/10/14)

Depois de discutirmos a história da Psicologia no Brasil, fiquei preocupada com uma questão que a Natalia colocou: estamos tentando colocar os professores na forma? Precisamos nos questionar de tudo, inclusive da própria postura e nossa função diante das situações vivenciadas. (Ana Elisa RR-7, 05/11/14)

2. Manejo do grupo: este indicador focaliza essencialmente minhas ações no grupo, a partir

tanto de um posicionamento horizontal quanto vertical, bem como as dificuldades e crises

que emergiram nesse processo.

2.1 Posicionamento horizontal: aqui foram selecionados trechos que indicam minhas ações

no sentido de abrir para o diálogo e para a participação de todo o grupo. Apresento como

exemplo um episódio em que pergunto de forma recorrente a opinião do grupo sobre um

elemento novo partilhado e um outro em que Peter comenta meu diário de bordo partilhado

com o grupo, ressaltando que o uso que fiz da primeira pessoa no plural demonstra meu

envolvimento pessoal e próximo com o grupo:

FA: E os psicólogos do grupo, o que acharam do elemento novo? (Por cuatro esquinitas de nada) PE: Eu acho que conversa um pouco, eu li os textos e a visão que ficou para mim dos três textos como um todo é que a maioria das vezes a queixa escolar vem de um olhar errado sobre a criança (...) Então a dificuldade nossa na verdade é fazer com que as pessoas não olhem para a criança, olhem para o sistema eu pensei numa luta contra a maré. FA: Bem contra a maré. Mais alguém ficou pensando alguma coisa sobre o vídeo? (ENC-5, 15/10/14)

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PE: Achei engraçado que no começo você se pergunta até que ponto você se coloca participando do grupo e ao longo da sua leitura, você foi trocando várias palavras que se distanciavam um pouco do grupo e na sua troca você se aproximava do grupo. Quando você escreveu sobre o grupo, você colocou “conosco”, acho que você está mesmo inserida e como isso contribui para que esse grupo seja um grupo mais unido, mais humano, sabe? (ENC-5, 15/10/14)

2.2 Posicionamento vertical: os trechos escolhidos nesta subcategoria referem-se minhas às

posturas e ações que envolveram um direcionamento do grupo, seja no ensino de algum

conceito ou aspecto teórico relacionado ao trabalho com demandas educacionais ou na

sugestão de atividades ao grupo, necessária para mediar a formação das participantes, de

acordo com os objetivos da proposta. Nos exemplos a seguir, trago o relato de Lícia sobre o

encontro em que apresentei a história da Psicologia Escolar e o registro reflexivo de Tadeu,

que comenta sobre a importância dos meus direcionamentos no grupo:

Neste sexto encontro, houve a apresentação das bases históricas da psicologia educacional/escolar. Assim, nos deparamos com paradigmas que basearam as concepções e ações até pouco tempo atrás, sendo que ainda persistem em muitos contextos escolares e clínicos. (Lícia RR-6) Fabiana assumiu de vez a coordenação do grupo.Parecia que precisava se sentir no direito.Enfim, a insegurança passou, pois eu já estava adorando.Aliás, todos estão se soltando mais.Expondo suas teorias e suas bases teóricas.O encontro rendeu muito.(Tadeu RR-5)

2.3 Lacunas e dificuldades: aqui foram selecionados trechos relacionados às minhas crises

pessoais como propositora do grupo, tanto na mediação das interações quanto nas tomadas de

decisão quanto às atividades e ações formativas. Seleciono como exemplo uma breve

narrativa sobre o manejo do grupo no segundo encontro:

Logo depois dos primeiros comentários sobre a música D. Quixote, eu tomo a fala e conto de uma situação difícil que vivenciei, quando trabalhava em um abrigo para crianças em situação de vulnerabilidade social, dizendo em um tom de “queixa-lamento” que por vezes não sabia como agir, mas que sempre tentava enxergar o melhor nas crianças para contribuir de alguma forma. A partir daqui, percebo que o grupo entra no momento de “desabafar”, trazendo problemas e críticas ao sistema educacional, à sociedade. Sinto dificuldades em fazer entradas e retomar o lugar de coordenadora do grupo. Tento acolher as falas levantadas pelo grupo e propor reflexões ou mesmo que recorramos às leituras que tínhamos para aquele encontro, mas não consigo. Os desabafos continuam e apresentam contradição – ora responsabilizam as famílias, ora os professores, ora o sistema social, educacional... ora as ideias são conservadoras e ora trazem uma perspectiva crítica. (ENC-2, 01/10/14)

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3. Concepções teóricas: este indicador apresenta subcategorias que reúnem trechos

reveladores dos entendimentos das participantes sobre temas como educação escolar, relação

família-escola, papel do psicólogo e sobre o trabalho com demandas educacionais. Em todos

eles, há contradições entre concepções conservadoras e outras mais críticas, em um

movimento intenso de construção de saberes no decorrer dos encontros.

3.1 Concepções sobre educação escolar: aqui apresento dois exemplos, o primeiro de Rosa,

indicando uma visão fatalista do sistema educacional e o entendimento de Valentina ao final

dos encontros, a partir da compreensão da necessidade de entender a perspectiva dos

professores no trabalho com queixas escolares.

RO: Porque hoje a educação está perdida. Criança de cinco anos fazendo tarefa, ela já é velha, porque começa antes (ENC-2, 24/09/14) Pude perceber que muitas vezes colocamos a "culpa" sobre o professor de não entender determinado aluno, ou não entender o papel do psicólogo, mas com o conteúdo teórico apresentado e os confrontos ocorridos beste grupo, compreendi que antigamente o olhar era diferente, os psicólogos eram chamados para avaliar os alunos e verificar se estavam dentro dos padrões ou não (...) não podemos então, colocar a culpa sobre esses professores, ou termos muitas vezes um olhar de julgamento. (Valentina, CA)

3.2 Concepções sobre família: de forma semelhante, nesta subcategoria apresento dois

exemplos de entendimento sobre a relação família-escola: uma concepção fatalista e outra

que parte de um entendimento mais complexo sobre a atuação junto a famílias.

RO: Os pais perderam essa autoridade também e aí a escola perdeu totalmente o valor (...) O papel da escola é a escolarização e o papel dos pais é a educação (...) (ENC-4, 15/10/14) LZ: Às vezes a angústia tende a baixar quando você compreende. Às vezes a mãe naquele momento ela não quer a solução, ela quer ser compreendida. E quando você diz, eu te entendo, entendo sua angústia, entendo porque você está dizendo isso. (ENC-4, 15/10/14)

3.3 Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo: os trechos que exemplificam esta

subcategoria relacionam-se tanto às dificuldades encontradas pelas participantes psicólogas

em delimitar seu lugar nas instituições escolares, quanto aos entendimentos construídos ao

longo do grupo sobre a atuação deste profissional.

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AB: Então eu tenho muita dificuldade [nas escolas] por causa disso. Quando fala que é psicólogo eles pensam que vamos resolver todos os problemas. (ENC-1, 24/09/14) Considerando o foco de nossas discussões no papel do psicólogo na escola, será que tantas frustrações da ação do psicólogo na escola, não são resultado de um conflito interno do próprio profissional, que muitas vezes não sabe qual é o seu papel diante das queixas escolares? (Alice, RR-2) O importante é o psicólogo não se colocar no lugar do saber, de ter uma resposta pronta para a família, a escola... Tudo é construído a partir do coletivo. Junção de ideias, pensamentos. O psicólogo pode funcionar como mediador. (Luiza, RR-6, 29/10/14)

3.4 Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais: aqui apresento um exemplo

de um importante entendimento discutido no grupo sobre o trabalho com queixas escolares:

(...) o Caso do Tom Cruise da Silva nos ajudou a (re) pensar a prática. Os slides da Fabiana nos auxiliaram a organizar o pensamento e o que ficou pra mim é que é crucial nos casos de queixa escolar movimentar a rede que está envolvida no caso. Todos precisam ter voz e contribuir para se chegar numa melhor forma de lidar com a situação. (Ana Elisa, RR-4, 15/10/14)

3.5 Sistemas teóricos que fundamentam a prática: esta subcategoria reúne trechos que

indicam os autores e teorias que subsidiam a prática profissional das participantes e ainda as

reflexões tecidas no decorrer dos encontros sobre a importância de repensar os sistemas

teóricos que fundamentam a prática.

AE: Eu não queria falar. Porque não fico à vontade quanto a isso. Na faculdade eu tinha professores que faziam terrorismo com a teoria deles. Então, eu acabei fazendo estágio em comportamental, por conta do professor (...). Fui chamada para trabalhar na área social e a psicóloga de lá trabalhava na teoria sistêmica e para mim faz muito sentido. (ENC-3, 08/10/14)

Por fim, o que já sabia, mas às vezes também nos distanciamos é ser fiel a uma teoria. O que sustenta nossa atuação, qual é a linha teórica que me apoio. Fundamental para a evolução com o paciente e até uma questão ética. CA, Luiza

4. Vínculo afetivo: este último indicador apresenta trechos em que os vínculos afetivos no

grupo são colocados em evidência como parte da proposta formativa. O primeiro é parte do

registro reflexivo de Peter, no qual ele questiona se as necessidades maiores do grupo não

seriam mais relacionadas ao acolhimento e vínculos interpessoais e o segundo é um trecho da

“carta ao amigo” de Abayomi, com uma reflexão sobre a constituição de vínculos afetivos no

grupo:

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Percebo uma insistência da Fabiana em conduzir o grupo no sentido de uma reflexão teórica embasada em artigos e uma dificuldade do grupo em caminhar nesse sentido. Talvez o grupo não deseje nesse momento um fortalecimento teórico, mas sim um fortalecimento pessoal (Peter RR-6, 29/10/14)

A Fabi fez um fechamento da proposta e a Bianca também apresentou alguns slides de como foi para ela essa experiência, simplesmente adorei, ela colocou umas fotos nossas na apresentação que ela havia tirado durante todos os encontros, e como o Tadeu, um dos participantes disse no fim, como estávamos diferentes no ultimo dia e aí eu percebi como tínhamos criado um vínculo, mudado conceitos, aprendemos com os textos, com a experiência do outro, com o olhar do outro. Esse grupo deixou uma marca em mim, e por vezes me pego pensando nas nossas discussões, releio os textos e continuo aprendendo. (Abayomi, CA)

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TERCEIRO MOVIMENTO: “Travessias”

A partir dos 23 episódios selecionados como “Paradas”, juntamente com a

codificação de todo o material, busquei, nesta etapa, reler o que foi produzido, aglutinando e

criando conexões entre os pré-indicadores e os indicadores de análise para criar os núcleos de

significação. Para Vigotski (1934/1998), não são todas as relações sociais que provocam

mudanças no sistema psíquico, mas são aquelas que apresentam um caráter dramático, por

meio de colisões que atuam como força motriz do desenvolvimento:

O desenvolvimento toma um caráter turbulento, impetuoso e algumas vezes catastrófico que se assemelha a um curso revolucionário de eventos tanto no nível de mudanças que ocorrem quanto no sentido das mudanças que são feitas. (VIGOTSKI, 1934/1998, p. 9)

Portanto, neste terceiro movimento analítico, selecionei os trechos e

acontecimentos que apresentam colisões, contradições ou um caráter

emocionalmente/cognitivamente mais intenso e que, portanto, ofereçam indícios de quais

situações sociais provocaram mudanças no curso de desenvolvimento profissional das

participantes.

Vale ressaltar que, em decorrência de minha formação e apropriação teórica,

tomar as relações sociais como origem desse processo já era um princípio desde o início da

proposta – minhas intencionalidades em cada estratégia foram certamente baseadas neste

princípio. Mas não havia garantia de como o grupo aconteceria: o processo de

desenvolvimento humano é o mesmo, mas os resultados são diferentes, pois o modo como

cada sujeito se apropria do social é único. Portanto, minha intenção foi olhar para aquilo que

é singular – mudanças, transformações nesse grupo específico de profissionais, a partir da

mediação de um processo que é universal – o desenvolvimento que acontece da dimensão

interpsíquica para a dimensão intrapsíquica, para então destacar elementos que possam

contribuir com outras propostas de desenvolvimento profissional para aqueles que trabalham

com demandas educacionais.

Considerando este postulado, escolhi a imagem da “Travessia” para nomear os

núcleos de significação que irão compor o terceiro movimento de análise. Como explicado no

Memorial, em que também uso a imagem da Travessia para narrar os marcos na minha

formação, em uma viagem, a travessia remente não àqueles passeios turísticos que fazemos e

depois voltamos para o conforto da nossa casa, mas àquelas viagens definitivas, nas quais

deixamos o lugar comum para trás para nos arriscarmos em algo novo ou em um destino

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desconhecido ou incerto, que exige uma longa jornada e que ao final terá nos transformado

irreversivelmente. Quais vivências nos levaram a travessias? Por quais caminhos passamos?

Como as travessias aconteceram? Quais mudanças encontramos ao chegar “do outro lado”?

Assim como nas Paradas, elegi uma frase advinda do material empírico ou criada

a partir do significado mais marcante de cada Travessia para nomeá-las. Todas elas foram

elaboradas a partir da aglutinação e da síntese de diversos pré-indicadores e indicadores, que

serão explicitados por meio de tabelas. Aqui peço licença ao leitor para repetir alguns trechos

já mencionados nos pré-indicadores e indicadores, alguns deles serão reiterativos entre as

Travessias também, uma vez que a potencialidade de sentidos que trazem é fundamental para

as análises. A intenção, portanto, discutir elementos essenciais relacionados à origem e ao

processo de desenvolvimento profissional no grupo, buscando, nos núcleos, unidades de

análise que abarquem as características do contexto social e também da dimensão singular

com que as participantes se apropriaram do social, tendo os conceitos-chave: Situação Social

de Desenvolvimento, Drama e Perejivanie como ferramentas analíticas.

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TRAVESSIA 1

“Da crise à oportunidade”: sobre a construção de um grupo colaborativo

A primeira Travessia busca explicar o processo de constituição de uma proposta

colaborativa, destacando que a colaboração não se deu de forma natural, mas a partir de

determinadas estratégias e interações sociais que criaram condições especiais para o

surgimento de um grupo colaborativo.

Tabela 5: Combinação de pré-indicadores e indicadores – 1ª Travessia

PRÉ-INDICADORES INDICADORES

Parada 2: “estamos no mesmo barco”

Demandas e expectativas

Diversidade de profissionais

Parada 3: Queixa-lamento

Objetivos do grupo Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo Concepções sobre educação escolar

Concepções sobre família

Parada 4: “por amor às causas perdidas”

Elemento Novo Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo

Concepções sobre educação escolar Manejo do grupo – lacunas e dificuldades

Manejo do grupo – posicionamento vertical Manejo do grupo – posicionamento horizontal

Colisões

Parada 5: “Seu objetivo maior, qual é?”

Demandas e expectativas Objetivos do grupo

Manejo do grupo – lacunas e dificuldades Manejo do grupo – posicionamento vertical

Manejo do grupo – posicionamento horizontal Colisões

Parada 8: “só temos oito encontros!”

Objetivos do grupo Demandas e expectativas

Decisões coletivas Parada 14: “E agora a gente está

caminhando” Objetivos do grupo

Sistemas teóricos que fundamentam a prática Contribuições das participantes

Parada 16: Uma equipe profissional

Contribuições das participantes Sistemas teóricos que fundamentam a prática

Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais Concepções sobre educação escolar

Parada 19: “Tem um texto que fala sobre isso”

Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais Concepções sobre educação escolar

Contribuições das participantes Parada 20: “Da crise à oportunidade” Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais

Concepções sobre educação escolar

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Colisões Contribuições das participantes

Parada 21: “Resistir, mas seduzir ao

mesmo tempo”

Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais Concepções sobre educação escolar

Colisões Contribuições das participantes

A divulgação do Curso de Difusão Científica73 traz de forma clara que o objetivo

do grupo é discutir a atuação do psicólogo que trabalha em contextos educativos. Quando

recebi inscrições de profissionais que não eram psicólogos, minha orientadora e eu

consideramos incluí-los apostando que poderiam contribuir com o grupo. Mesmo já ciente da

participação de outros profissionais, nos primeiros encontros continuei afirmando que o

objetivo seria discutir a atuação do psicólogo que lida com demandas educacionais. Aos

poucos, comecei a perceber que as demais profissionais não eram coadjuvantes para pensar o

trabalho com demandas educacionais, mas tinham um papel principal de parceria. Além

disso, entendi que as próprias psicólogas do grupo traziam uma grande diversidade de

formação, áreas de atuação, e dilemas vivenciados na prática. Vejamos um trecho do meu

diário de bordo74:

Demos início ao grupo. Um grupo diverso, cheio de experiências para contar e sedento por partilhar a prática profissional. Temos não só psicólogos, mas uma fono, dois professores e uma professora que também tem a formação em Psicologia. As psicólogas e o psicólogo trabalham em diversos segmentos: no campo social, na escola, na saúde... todos muito inteirados de questões concernentes à Psicologia Escolar: medicalização, alto número de encaminhamentos das queixas escolares ao médico e ao psicólogo clínico, embates com os educadores sobre o papel do psicólogo e as possibilidades de atuação... dentre outros tantos assuntos. Isso me faz pensar: o que é a Psicologia Escolar e Educacional? (...). Quem é o psicólogo escolar? O que faz? Onde ele está? São questões que pareciam tranquilas para mim, mas a conversa com esse grupo tão diverso me fez questionar e refletir sobre isso... (Fabiana, DB-1, 24/09/14)

A composição do grupo permeada pela diversidade de áreas de formação e locais

de trabalho instigou, em mim, questionamentos sobre como definir tanto os objetivos

formativos quanto os objetivos da pesquisa – estava esperando por psicólogos que

trabalhassem na escola e recebi profissionais que, de diferentes formas, lidam com demandas

educacionais em seus contextos de trabalho. A movimentação de saberes provocada pela

73 Ver folder no Apêndice 3 74 Nos excertos escolhidos para a composição dos núcleos, escolho destacar algumas palavras e frases mais significativas em negrito, que apresentam indícios de análise.

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diversidade de profissionais no grupo mobilizou não só a mim, mas às participantes também,

como podemos ver no relato de Abayomi:

Senti-me parte deste grupo, que apesar de diferentes locais de atuação que cada um ali tem, temos anseios e dilemas bastante parecidos, não me senti “sozinha” como muitas vezes acontece no meu ambiente de trabalho. (Abayomi, RR- 1)

O fato de acolher a diversidade de profissionais no grupo, entender de onde vêm,

quais suas demandas e expectativas foi uma ação mediadora importante para criar um

contexto de acolhimento e um espaço de escuta, como destaca a participante no trecho acima.

Ressalto que esse caráter aberto e não prescritivo também foi condição para que

as participantes se sentissem corresponsáveis pela proposta. Porém, esse processo de

construção de um senso de coletividade não aconteceu de modo linear de automático.

Vejamos alguns elementos que ajudam a compreender esse aspecto. O curso não apresentou

uma ementa pronta, pois um dos princípios da proposta era conhecer primeiro as

participantes, identificar os dilemas que viviam no trabalho com demandas educacionais para

depois definirmos as temáticas que guiariam o grupo. Portanto, busquei inicialmente ouvir as

demandas emergentes. A seguir, algumas das minhas ações que ilustram esse momento

inicial:

(...) leio um conto do Ítalo Calvino – O mundo contempla o mundo – dizendo ao grupo que essa seria uma forma de dar leveza ao encontro. Aguardo alguns minutos em silêncio, tentando observar a reação do grupo ou alguma iniciativa de comentar a leitura e pergunto se alguém tem algo a comentar (ENC-1, 24/09/14)

Tento acolher as falas que surgem e ressalto que o objetivo do grupo é partilhar as angústias, mas também pensar em possibilidades: “É isso que eu queria trazer para vocês: estar em grupo e poder conversar sobre isso, pensar nas nossas ações e buscar possibilidades no cotidiano das nossas práticas. (ENC-1, 24/09/14)

Com essa abertura, as participantes trouxeram muitas angústias e problemas

vivenciados na prática profissional e algumas delas também levantaram críticas ao sistema

educacional tanto em uma perspectiva ampliada, compreendendo o lugar e a responsabilidade

de todos – sociedade, alunos, professores, famílias – quanto em uma visão fatalista e que

culpabilizava principalmente aos professores e às famílias pelo fracasso escolar. Vejamos

algumas falas das participantes:

PE: É um exercício constante, do psicólogo e para outras áreas, assistência social... Conseguir se distanciar de si próprio para ver o outro como ele é por ele mesmo. (ENC-1, 24/09/14)

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RO: Os pais perderam essa autoridade também e aí a escola perdeu totalmente o valor (...) O papel da escola é a escolarização e o papel dos pais é a educação (...) em nome de uma afetividade, de um carinho, está se deixando perder uma série de coisas, inclusive a autoridade. (ENC-1, 24/09/14) RO: Porque hoje a educação está perdida. Criança de cinco anos fazendo tarefa, ela já é velha, porque começa antes. (ENC-2, 01/10/14) IS: O problema não é a criança, a escola não sabe lidar com a criança. Porque o professor não é preparado para isso (…). Eu acho que se joga muita responsabilidade sobre o professor (...) o que vocês vão fazer como psicólogos? Fazer com que a criança fique quadradinha? No meu caso, eu não faço. Eu faço com que a criança se apodere do potencial dela. (ENC-2, 01/10/14)

Essas queixas iniciais acabaram incomodando algumas participantes,

principalmente as que não eram psicólogas e que não se sentiram contempladas com as

concepções que circularam:

Este primeiro encontro, de contato inicial, que se apresentou como de muitos blá-blá-blás sobre educação, psicologia, alunos, professores, etc... pareceu-me mais um desabafo do que uma reflexão mais aprofundada sobre os assuntos. Mas enfim, cabia a este momento. Houve relatos pessoais e uma angústia me tomou: O que vai ficar deste encontro? O que interessa à pesquisa? O que é para fazer? (Lícia, RR-1, 24/09/14) No decorrer do encontro fui sendo preenchida por uma angústia em relação ao pensamento de alguns profissionais, companheiros de curso, especialmente alguns (psicólogos), quanto ao papel e atuação dos professores nas escolas. Nesse momento senti a falta de relacionarmos as falas do grupo com questões concretas e teóricas acerca dos textos. (Alice, RR-2, 01/10/14)

Identifico que nos dois primeiros encontros a intensidade das queixas levantadas

pelas participantes era grande e, de um modo fatalista, levou o grupo a um desabafo coletivo

sobre os problemas vivenciados cotidianamente. Ao retomar o material para as análises,

percebi que não somente as participantes precisavam desabafar, mas também eu me

posicionei dessa forma:

Inicio o segundo encontro convidando Peter a apresentar o elemento novo que preparou – música Dom Quixote, Engenheiros do Havaí. Percebo que não retomo com o grupo os objetivos do encontro, nem ofereço ao grupo uma organização das atividades programadas para o dia. Depois de ouvirmos a música, pergunto a Peter o que ele pensou ao trazê-la como elemento novo. Ele diz que essa música o anima em momentos difíceis. Pergunto, então, ao grupo o que pensaram ao ouvir a música, Ana Elisa diz que ficou pensando nas ‘causas perdidas’: “Às vezes a sensação é essa, não tem mais jeito, está todo mundo perdido, é o que chega pra gente”. Eu tomo a fala logo em seguida e conto de uma situação difícil que vivenciei, quando trabalhava em um abrigo para crianças em situação de vulnerabilidade social, dizendo em um tom de “queixa-lamento” que por vezes não sabia como agir. (ENC-2, 01/10/14)

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Aqui destaco duas colisões vivenciadas nesses momentos iniciais do grupo: 1)

havia a intenção de construir a ementa com as participantes a partir das demandas trazidas e

para isso decido ouvir as queixas trazidas pelo grupo. Ao mesmo tempo, senti a necessidade

de ocupar o lugar de pesquisadora e coordenadora da proposta, por meio de ações que

direcionassem o grupo para a busca de soluções para os problemas trazidos, o que naquele

momento tive dificuldade em fazer; 2) As concepções sobre educação, papel da família e dos

professores e papel do psicólogo se apresentavam ora em uma perspectiva crítica, ora

conservadora, consistindo em um desabafo, sem esforço para buscar possibilidades.

Considero que as colisões enfrentadas no estabelecimento do grupo como um

espaço colaborativo estão relacionadas ao fato de que tradicionalmente cursos de

aprimoramento profissional ou de formação continuada apresentam propostas fechadas, com

ementas prontas e em geral voltadas para a transmissão de saberes (NÓVOA, 1992; PONTE,

1998; FIORENTINI & CRECCI, 2013). Tanto eu quanto o grupo, estávamos tateando,

naqueles momentos iniciais, caminhos para fazer daquele espaço não uma repetição de tantos

outros nos quais há, de um lado, um coordenador ou professor que transmite informações e

técnicas e, do outro, alunos que não têm suas vozes, necessidades e conhecimentos ouvidos e

partilhados no coletivo, mas um espaço que tinha como ponto de partida as relações entre as

pessoas que nele se achegaram e que para criar uma identidade colaborativa primeiro

tínhamos que nos conhecer e partilhar as demandas em que mais precisávamos de ajuda.

Analiso esse momento de desabafo e de dúvida e a forma como foi conduzido por

mim a partir do que Vigotski (1929/1989) conceitua como drama – o caráter intenso e repleto

de colisões de determinadas interações sociais que impulsionam a internalização da dimensão

social para uma dimensão individual. O momento auge dessa crise foi vivenciado quando, ao

final do segundo encontro, Lícia pergunta sobre minhas intenções de pesquisa e tecemos uma

importante conversa sobre os objetivos do grupo:

LI: Fabiana, qual a metodologia da sua pesquisa? Seu objetivo maior o que é? Ouvir os relatos, dentro dos relatos, obter alguma informação? Queria saber um pouquinho disso. Explico que o objetivo é tanto produzir o material de pesquisa, quanto proporcionar um espaço formativo. Ela continua: LI: A proposta é esse livre relato? FA: A proposta é uma construção conjunta. Ao invés de chegar aqui com um planejamento pronto, eu chego com propostas. (...). Eu tenho uma intencionalidade, mas a ideia de estar todo mundo junto conversando, é justamente essa, de ter uma horizontalidade maior, de partir do pressuposto de que eu também não sei. Tudo isso que vocês estão trazendo como problemas também

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são questões minhas, também tenho dificuldades, não tenho uma solução pronta. É a gente que vai pensando junto. LI: Hoje, por exemplo, ficamos muito falando do professor, do aluno, da família... houve uma angústia pessoal, que eu enquanto equipe posso fazer para o professor... A gente focou muito no outro (...). E ao mesmo tempo a gente chega num ponto da ação. Parece que nisso a gente não está entrando “e aí, o que eu faço diante disso?”. Eu como equipe. O professor está errado em tal ponto, o aluno, mas jogar para a equipe. FA: Vocês se identificam com essa fala da Lícia? É uma angústia de vocês também? IS: É nesse ponto que eu queria chegar. É como se ficássemos apontando e não buscássemos... você entendeu. FA: Eu acho que entendi, Isadora e é legal você explicitar isso, Lícia, porque é uma angústia que me bateu hoje. Como mediadora, minha proposta é horizontal mesmo, com toda sinceridade, de ouvir vocês. Até por isso que estou deixando mais solto, porque eu quero entender primeiro de que lugar estamos falando aqui. (...). Tanto no encontro passada quanto nesse, o meu movimento foi de tentar escutar vocês para tentar entender que problemas são esses para a gente nos próximos encontros tentar se organizar e aí sim chegar: efetivamente o que a gente pode fazer com isso? E aí tem essa proposta dos textos, a ideia de discutir os textos é justamente para buscar essas possibilidades concretas e eu penso que eles trazem isso.

LI: Fico pensando assim, o primeiro encontro foi um momento para gente se conhecer, chegar no lugar. Esse encontro de hoje foi um momento de conseguir tirar aquilo que está mais incomodando, foi como se a gente tirasse aquele choro que está na garganta para num próximo momento a gente poder falar sobre nosso papel. (ENC-2, 01/10/14)

Ao explicitar o que a incomodou no segundo encontro, Lícia coloca em questão

os objetivos do grupo, convidando-me a explicar melhor minhas intencionalidades. A partir

disso, nomeio o grupo como um espaço de “construção conjunta” e abro para o grupo dizer o

pensa sobre a fala da Lícia para chegarmos a um entendimento comum. É interessante notar

que me coloco como parte do grupo, dizendo que busquei escutá-los para “a gente nos

próximos encontros tentar se organizar”. Este episódio também coloca em evidência a

importância de um trabalho contínuo e sistematizado – por vezes surgem dificuldades que

precisam de tempo e esforço conjunto para serem solucionadas. Aqui identifico que o

nascimento do grupo colaborativo – proposta na qual as participantes são parte fundamental

das escolhas dos temas e do desenvolvimento das atividades – teve as interações sociais não

como um fator, mas como fonte de desenvolvimento (VIGOTSKI, 1934/1994).

A definição da proposta do grupo por meio das colisões vivenciadas nesse

primeiro momento foi internalizada pelas participantes de formas diferentes. Escolho como

exemplo a participante Abayomi que faz o seguinte relato sobre o que foi vivenciado nos

primeiros encontros:

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A princípio todos estavam bastante ansiosas para dividir suas angústias e os dilemas que vivem no cotidiano do seu trabalho, foi muito rico esse inicio para mim, pois me senti pertencente de tudo aquilo, era como se eles fossem parte da nossa equipe aqui da Secretária da Educação, pois muitos dos dilemas deles eram os meus também, os dias que tínhamos o momento “catarse” no grupo por incrível que pareça eu ia embora bastante aliviada, era terapêutico para mim estar ali (...) (Abayomi, CA).

Ainda existem lacunas nas oportunidades de supervisão ou de diálogo com os

pares sobre os problemas enfrentados no trabalho do psicólogo (TADA, SÁPIA & LIMA,

2010; SILVA, 2010; CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013) e Abayomi,

psicóloga que trabalha na Secretaria de Educação revela essa realidade, ao indicar a solidão

enfrentada no seu cotidiano profissional, situação apontada também por outras participantes

do grupo, inclusive aquelas que trabalham em outras áreas ou mesmo que não são psicólogas.

Por meio da fala de Abayomi, compreendo que a colisão vivenciada coletivamente foi por ela

internalizada de modo único – o desabafo em grupo, chamado por ela de “catarse” – fez com

que ela se sentisse acolhida por meio da identificação com os problemas emergentes na

conversa, sentindo-se aliviada. Nesse exemplo, o conceito de perejivanie nos ajuda a

compreender o modo singular como a participante interpretou e reagiu emocionalmente ao

drama vivenciado na situação social de desenvolvimento – momento de desabafo,

contradições na proposta do grupo. Para Vigotski (1934/1994) não são os fatores sociais por

si só que provocam mudanças, mas como os fatores sociais são refratados pelo sujeito e o

exemplo de Abayomi oferece indícios de que a forma como ela vivencia a solidão em seu

trabalho, condição comum a outros tantos profissionais, encontrou conforto em um espaço de

formação que ouviu e legitimou as queixas e problemas trazidos pelos profissionais. Ainda

que esse momento específico não tenha apresentado “técnicas” ou soluções práticas para que

ela simplesmente aplicasse em seu trabalho, o movimento do grupo – que abarcou não

somente a dimensão cognitiva, mas a afetiva e a social – atendeu suas necessidades

profissionais naquele momento.

Aragão (2010) defende que o desenvolvimento do profissional não consegue se

restringir somente a um curso, seja ele a graduação, pós-graduação ou formação específica –

porque diariamente surgem novos desafios na atuação profissional e por isso precisa também

do constante diálogo com seus pares, socializando experiências e ideias para encontrar

soluções coletivas, a partir da produção de conhecimento sobre a prática cotidiana. Em

consonância com a autora, aqui também defendo o desenvolvimento profissional como

contínuo e que de forma complexa e indissociável abarca a as dimensões pessoal e

profissional, teoria e prática.

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Após o segundo encontro, tão emblemático e intenso, convido a Professora Ana

Aragão para participar do encontro seguinte. A ideia era de que ela pudesse partilhar sua

experiência no trabalho com educadores e nos ajudasse a pensar e a organizar os dilemas

trazidos pelas participantes. Identifico que a presença da Ana aqui, para além de uma mera

“participação especial” foi reveladora do meu drama como propositora, como uma forma de

buscar apoio para pensar no direcionamento da proposta. O terceiro encontro, foi marcado

pela escolha coletiva dos temas a serem discutidos até o final da proposta - os dilemas

levados por escrito por cada participante foram por mim categorizados e levados ao grupo

neste dia. Juntos, chegamos a um acordo sobre como deveríamos distribuir os temas ao longo

dos encontros restantes. Lícia relata o quanto o terceiro encontro foi crucial para a definição

do grupo e aqui ressalto a importância das minhas ações – organizando os dilemas,

convidando a Ana – para que a proposta formativa caminhasse:

O terceiro encontro nos questionou de onde viemos e o que norteia nossa ação. Os dois primeiros encontros desta proposta foram formadores, gestacionais eu diria, pois funcionaram como preparadores iniciais e direcionadores da reflexão sobre o objeto central de estudo e ação deste projeto. Este terceiro momento me marcou como o nascimento propriamente dito deste núcleo. O que parecia solto, encontrou seu eixo e objetivo. (Lícia, RR-3)

Um dos temas sobre o qual mais nos debruçamos foi a queixa escolar e

possibilidades no atendimento à rede envolvida nesse problema. Se nos primeiros encontros

conduzimos a discussão sob um posicionamento fatalista, nos demais encontros houve

mudanças na forma de lidar com os dilemas trazidos e nas concepções teóricas que

circularam no grupo. Vejamos um exemplo:

No 7º encontro, Abayomi levou o vídeo Ex-E.T. como elemento novo, que traz o tema dos diagnósticos psicológicos e medicalização e que foi apresentado logo no início. Ela disse que já passou esse vídeo em um encontro de formação docente e que em geral os professores não entendem a proposta. Valentina também vivenciou algo semelhante: VA: Eles falam assim: ai, meu aluno é desse jeito mesmo! E na hora que dá o remédio, pra eles é um alívio: nossa que bom que acontecesse isso. Já passei uma vez e foi totalmente ao contrário, ao invés de vez de elas verem que a criança ficou ali, quietinha apática, que não estava mais sendo ela, eles falam, ai graças a Deus, vocês viram como ele ficou lá todo quietinho? (…). A gente tem reuniões mensais com os professores e na semana retrasada, nós tivemos três encontros, tentando juntar a educação com a saúde (...) E, assim, uma catástrofe, alguns entendem, alguns não entendem. (...). Eles esperavam que a gente fosse lá, que eles iam dar os encaminhamentos, que a gente ia pegar esses encaminhamentos e ia dar solução para os casos deles. E a gente colocou que não era esse o objetivo, que era a construção em conjunto. (ENC-7, 05/11/14)

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Identifico que, a partir do vídeo levado por Abayomi e da interação que se

sucedeu, tínhamos uma situação social de desenvolvimento, uma condição criada no grupo

que movimentou um tema que já era pauta dos encontros desde o início – relação psicólogo e

professor no trabalho com as demandas educacionais. Como apresentado no início desse

núcleo, nos primeiros encontros houve críticas ao professor – lacunas na formação, falta de

preparo, falta de entendimento e parceria com o psicólogo. Aqui, elas emergem novamente

no grupo, por meio do problema colocado por Abayomi e Valentina: os professores pedem

encaminhamentos e atendimentos individuais para as crianças, pautados em uma concepção

de medicalização e diagnósticos e as psicólogas resistem e dizem que querem realizar um

trabalho institucional, mas essa proposta parece não ter adesão.

Após a queixa trazida por Valentina, pedi a palavra para apresentar ao grupo um

material que preparei sobre a história da Psicologia no Brasil, para pensarmos historicamente

a atuação do psicólogo nas escolas e depois voltarmos no problema levantado por ela para

buscarmos soluções:

FA: Quando a gente chega na escola e há essa solicitação: por favor me fale o que essa criança tem para eu saber como eu lido. Aí está o professor como alguém aquém do saber, o psicólogo como quem detém esse saber e que pode dar uma resposta e uma resposta baseada em uma medida quantitativa. Então eu ouvindo tudo isso eu pensei, a gente tem que ter humildade de olhar para a nossa história como profissão e pensar no que foi produzido e que a gente está em um momento de ruptura disso e que não vai ser fácil, né, Valentina, não vai ser fácil. É possível, mas fácil não vai ser. (ENC-7, 05/11/14)

Considerei necessária essa ação para que olhássemos para a relação professor-

psicólogo de um ponto de vista histórico e crítico e não mais baseado na lamentação e

culpabilização e uma ou de outra parte. Como pontuado na fundamentação teórica da Tese, o

surgimento da Psicologia tem alicerces baseados em técnicas de medida e de diagnóstico e as

instituições escolares, especialmente no Brasil, foram um terreno fértil para a expansão desse

campo do saber, por meio de ações de caráter individual, que tinham como foco o aluno

(ANTUNES, 2007). Apesar de todo o movimento crítico e de desconstrução de ações

individuais rumo a uma perspectiva mais ampla sobre os fenômenos educacionais, ainda hoje

encontramos práticas individualizantes e um imaginário dos professores de que os psicólogos

possuem um saber superior que vai dizer a eles o que “o aluno tem” e devolver esse aluno

“curado” (SOUZA; SILVA & YAMAMOTO, 2014). Os conflitos entre professores e

psicólogos inseridos nessa história macro, aparecem nas histórias singulares de atuação

profissional das participantes. Ao final da minha fala, tivemos o seguinte diálogo:

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Em um trecho do Registro Reflexivo, Valentina relata o que aprendeu com esse encontro:

A partir da apresentação da Fabiana, consigo olhar os motivos, as dificuldades que hoje nós vivenciamos no nosso cotidiano profissional. Como mudar agora os paradigmas? Como sairmos desse lugar vertical para um lugar mais horizontal? Nós profissionais da Psicologia, somos também uma referência técnica e não melhor do que qualquer outro saber. Sofremos hoje os impactos de toda uma construção histórica, não podemos então colocar os professores nessa caixinha que tanto falamos nos nossos encontros (...). Esse encontro foi valioso demais, pois serviu para tirar as vendas dos meus olhos de como enxergar esse professor. (Valentina RR-6, 29/10/14)

Diferente de uma “queixa-lamento”, identifico que nesse encontro conseguimos

criar condições diferentes, pautadas na interação social no grupo – exposição do vídeo,

levantamento do problema, discussão sobre ele e na minha ação intencional e planejada, ao

realizar uma exposição teórica sobre a história da Psicologia Escolar no Brasil – que

movimentou o tema de tal forma que conseguimos pensar em soluções para o problema

instaurado.

Como visto no exemplo apresentado, chegamos ao entendimento de que é preciso

que o psicólogo busque parceria, saindo da condição de um saber absoluto para valorizar o

saber docente, é preciso “resistir, mas seduzir ao mesmo tempo” – resistir a uma atuação

individualizante, mas ao mesmo tempo propor ações de parceria. Em consonância com

Aragão (2010), defendo que a Psicologia não oferece todas as respostas para os problemas

educacionais, por não ser capaz de elaborar todas as perguntas, exigindo uma horizontalidade

de saberes na superação dos problemas que emergem no contexto educacional:

Temos que ter a humildade de romper com toda a onipotência que nos formou, quando chegamos a imaginar que a presença da Psicologia na escola seria condição para um ensino de qualidade. Ledo engano! Felizmente, percebemos que se a presença da Psicologia contribui com as práticas educacionais, ela não é condição suficiente para que as transformações ocorram. Há outros olhares que podem, mais do que oferecer respostas, ajudar a elaborar perguntas sobre as quais nunca tínhamos pensado. O profundo respeito pelas contribuições de outras ciências revela que se isto for desconsiderado, a transformação do processo educativo levará tanto tempo que nós, psicólogos, passaremos décadas tentando convencer a educação (apenas convencer!) de que temos o que dizer e contribuir. (ARAGÃO, 2010, p. 115)

Por meio da discussão tecida, identifico a constituição do grupo como um espaço

colaborativo que teve as relações sociais como origem e processo e que conseguiu

transcender de uma mera lamentação para a construção conjunta de possibilidades,

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enfrentando as colisões que emergiram. No 6º encontro, havíamos finalizado com o clipe da

música The Wall, levado por Lícia. Conversamos sobre as críticas à Educação levantadas

nesse vídeo e chegamos à conclusão de que o enfrentamento aos problemas educacionais é

dialético e repleto de crises e conflitos. Ao final, pedi ao grupo para relacionar o clipe com

nossas discussões em grupo e Lícia trouxe a palavra crise, que em seguida foi significada por

Luiza como sinônimo de oportunidade.

LI: em uma palavra, pensaria crise. Eu escutei aqui, no primeiro dia, a educação está em crise, acho que foi a Rosa que falou. E eu fiquei pensando, será que é crise, será que é transformação? Até pouco tempo a gente tinha isso, professor batia em aluno. Meus pais tiveram. Isso não é tão antigo. Será que crise, será que é transformação? FA: E essa crise será que é ela é ruim? LI: Pode ser uma coisa boa. LU: A crise dentro da psicoterapia breve, ela é vista, você parte da crise para tratar o paciente, o paciente não entra em psicoterapia breve se não está na crise. E eu lembrei que no ideograma japonês, a crise significa oportunidade. Então acho que minha palavra é oportunidade. (ENC-6, 29/10/14)

Fecho essa Travessia afirmando que uma importante herança desse grupo foi a

passagem da crise à oportunidade. Mais que respostas prontas, as interações no grupo

provocaram questionamentos, inquietações e movimentação dos problemas levados pelas

participantes, legitimando as relações sociais como lugar privilegiado para o

desenvolvimento profissional individual.

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TRAVESSIA 2

Participante-propositora-pesquisadora: sobre o manejo do grupo

A segunda Travessia tem por objetivo discutir minhas ações no grupo em seus

diferentes posicionamentos: pesquisadora, propositora e participante, analisando os papeis

assumidos, as estratégias escolhidas, focalizando principalmente como isso repercutiu nas

interações entre mim e as participantes e no modo como essas condições criaram situações de

desenvolvimento.

Tabela 6: Combinação de pré-indicadores e indicadores – 2ª Travessia

PRÉ-INDICADORES INDICADORES Parada 6: “Para hoje pensei em uma

organização diferente” Manejo do grupo - posicionamento vertical

Parada 10: “O que vocês acham?”

Manejo do grupo - posicionamento vertical Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Parada 11: “Mais alguém ficou pensando alguma coisa?”

Elemento Novo Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo

Concepções sobre educação escolar Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Contribuições das participantes

Parada 12: Participante-propositora, propositora-participante

Concepções sobre educação escolar Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Manejo do grupo - posicionamento vertical Colisões

Parada 13: “O que vocês fariam?” Manejo do grupo - posicionamento vertical Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Contribuições das participantes Parada 15: Pesquisadora-participante,

participante-pesquisadora Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Colisões Parada 18: “O que você acha que os encontros

estão sendo para nós?” Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Registro Reflexivo Colisões

Na Travessia 1, apresentei uma importante crise vivenciada nos dois primeiros

encontros que resultou na definição dos objetivos da proposta, criando uma identidade do

grupo como espaço de construção coletiva:

Fabi, a mediadora, trouxe para o grupo a expressão “construção coletiva”. Eu não conhecia este termo. A ideia foi de o grupo construir os temas a serem trabalhados a partir da proposta inicial. Tínhamos alguns elementos teóricos trazidos pela mediadora e também sugestões de leitura, mas na maioria das vezes o grupo acrescentava na reflexão. (Lícia, CA)

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O trecho de Lícia revela duas dimensões importantes: o protagonismo das

participantes na organização das atividades e as minhas estratégias para coordenar a proposta.

Como descrito na metodologia, havia atividades solicitadas às participantes desde o início,

que traziam como intencionalidade a ideia de promover o diálogo e a produção de sentidos

sobre a experiência de participar do grupo, tais como o elemento novo, os registros reflexivos

e as leituras; e outras que foram solicitadas por mim ao longo dos encontros, à medida que fui

conduzida pelas necessidades do grupo e, também, de produzir material para a pesquisa,

como a devolutiva dos registros reflexivos, a partilha do diário de bordo e a carta ao amigo. O

duplo objetivo – promover o desenvolvimento profissional das participantes, por meio de

uma proposta colaborativa e ao mesmo tempo produzir material de pesquisa – levou-me ao

fluido movimento entre diversos posicionamentos e papeis: como pesquisadora, como

propositora, como participante. Ora ocupando um lugar “de dentro”, posicionando-me

ativamente, ora exercitando um olhar mais distanciado e observador. Ora por meio de ações

horizontais de escuta e de atenção ao movimento do grupo, ora por meio de ações verticais de

proposta de atividades, partilha de conceitos e discussão teórica sistematizada.

Se os primeiros encontros tiveram um tom de desabafo, que foi importante, mas

ao mesmo tempo causou estranhamento e colisões, do terceiro encontro em diante decidi

assumir um lugar mais definido na coordenação do grupo, organizando e direcionando as

atividades com mais clareza. Uma importante ação que marca essa mudança foi começar os

demais encontros retomando com o grupo o encontro anterior juntamente com um

cronograma para as atividades do dia:

Diferente do segundo encontro, em que não houve uma retomada e organização das atividades combinadas, inicio o encontro estabelecendo um cronograma: primeiro a partilha do registro reflexivo do Peter, seguido pela categorização dos dilemas e escolha coletiva dos temas a serem discutidos nos encontros seguintes; partilha do elemento novo preparado pela Ana Isabel; discussão dos textos sugeridos, com as contribuições da Ana Aragão, convidada especial do dia. Aqui percebo que assumo uma postura de coordenadora do grupo, conduzindo e orientando as atividades de acordo com minhas intenções de pesquisadora e considerando também o processo formativo das participantes, objetivo igualmente importante da proposta. (ENC 3)

Vejamos o que Tadeu escreveu sobre a mudança na minha postura:

Fabiana assumiu de vez a coordenação do grupo.Parecia que precisava se sentir no direito.Enfim, a insegurança passou, pois eu já estava adorando.Aliás, todos estão se soltando mais.Expondo suas teorias e suas bases teóricas.O encontro rendeu muito.(Tadeu RR-5, 22/10/14)

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Após a escolha coletiva dos temas a serem discutidos, uma outra decisão que

tomei foi preparar a cada encontro alguns slides com uma sistematização teórica baseada na

temática do dia e no texto escolhido para discussão. Nem sempre eu sentia a necessidade ou

espaço para uma aula expositiva, mas, em algumas circunstâncias, foi essencial realizar esse

tipo de entrada no grupo. Ao mesmo tempo, meu cuidado e atenção estavam em permitir

também que as participantes partilhassem seus saberes e protagonizassem a construção de

conhecimento no grupo. Observemos um exemplo ocorrido no quarto encontro:

Tadeu havia levado um elemento novo para iniciar o encontro: o curta metragem “Por cuatro esquinitas de nada”. A discussão provocada pelo elemento novo trazido por Tadeu levou o grupo a pensar sobre a inclusão e sobre as crianças que apresentam alguma intercorrência no processo de escolarização, recebem algum diagnóstico e acabam ficando “invisíveis” no cotidiano escola, vistas apenas por meio de uma patologia e não a partir de suas potencialidades. Comento com o grupo que a necessidade de enxergar e trabalhar as potencialidades da criança já parece ser um assunto tão comum, mas me questiono porque isso tantas vezes não se efetiva nas salas de aula. Tadeu então responde: TA: Eu tenho uma tese. Eu trabalho com formação de professores e essa situação é assim “eu sei, eu vejo, mas eu não tenho o que fazer”. E aí o que a gente pensa e chegou a algumas conclusões, vou tentar responder duas coisas que você perguntou. (...). Então você não tem, de verdade, o professor estuda pouco teorias de concepção, estuda muito pouco isso. Dá uma pincelada em Vigotski, uma pincelada em Piaget, coloca ou dois juntos, vai fazendo essas coisas. Não se aprofunda. E no final o que eu vejo é que a gente tem uma educação muito militarizada. [Tadeu parecia ter algo a mais para acrescentar, mas eu não escuto sua solicitação e inicio uma fala, a partir de um material que preparei em slides, apresentando as concepções sobre queixa escolar que geralmente circulam entre os professores e fazendo uma discussão sobre a construção social dos discursos individualizantes e medicalizantes acerca da queixa escolar] FA: Eu penso também, não tem um culpado nessa história. Por quê? Porque são discursos que sustentam esse jeito de pensar. Então discursos produzidos a partir de uma trajetória que é história. Então isso chega para o professor, para ele e para nós como psicólogos e para outras pessoas como algo muito natural. Após apresentar uma crítica aos diagnósticos psicológicos a partir de avaliações neurológicas, pergunto a Luiza: FA: O que você pensa, Luiza, estou pensando em você agora, por você vir dessa área da neuropsicologia, da avaliação neuropsicológica, o que você pensa dessa questão do distúrbio como um argumento muito presente na fala dos professores? Partilha com a gente um pouco sua experiência. A partir dessa pergunta, Luiza contribui para pensar esse tema com sua prática clínica, Tadeu com os conhecimentos da História, Ana Elisa com sua prática na área social e da saúde. (ENC-4, 15/10/14)

É interessante notar que, em meio à conversa no grupo sobre o elemento novo, eu

exponho uma dúvida, uma angústia pessoal, ocupando o lugar de participante “por que uma

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perspectiva crítica de compreensão da queixa escolar não chega até os professores?”. Em

seguida, Tadeu se disponibiliza a responder e faz uma interessante reflexão sobre a formação

docente. Interrompendo a fala dele, eu tomo a palavra para fazer uma explicação teórica

sobre os discursos que circulam sobre a queixa escola e que constituem o pensamento e a

prática docente. Ao abordar o discurso médico e do campo da neurologia, convido Luiza a

partilhar sua prática, uma vez que ela trabalha com avaliação neuropsicológica. Em seguida,

as participantes contribuem cada uma com seu campo de atuação para pensar no tema. Esse

movimento entre fazer entradas no grupo e abrir para o diálogo é relatado no meu diário de

bordo, no qual exponho em diversos momentos a dúvida com relação às minhas posturas no

grupo:

Depois do grupo, fiquei pensando se de fato dei voz às participantes ou se falei na vez deles. No momento do encontro, novamente senti um duplo e dialético movimento: querer ouvir o que pensam, como desenvolvem seus trabalhos, que problemas enfrentam e que ideias têm para superá-los ao lado de uma vontade de também dizer como penso, que ideias tenho para aquelas questões. Logo me vem novamente a imagem da dança, imersa em ritmos e tempos variados. É preciso atenção e sensibilidade ao movimento para que haja sincronia e inteiração entre nós, parceiros: participantes e pesquisadora. Será que minhas colocações fazem sentido? (Fabiana, DB-4, 15/10/14)

Identifico que essa se constituiu em uma crise para mim: deixá-los falar e ir

apenas fazendo colocações que instigassem o diálogo ou me posicionar, levando uma

organização de teoria e conceitos? Levar uma aula expositiva ou restringir as atividades do

grupo ao que foi solicitado como tarefa? Esses questionamentos me levaram a refletir sobre

como as participantes estavam percebendo e avaliando minhas posturas e entradas e em que

medida o grupo estava sendo formativo para elas.

Durante o período de realização dos encontros, estava realizando uma disciplina

da pós-graduação, oferecida por minha orientadora: Reflexividade e Formação Docente.

Como a proposta era discutirmos a perspectiva teórica da reflexividade e suas implicações no

cotidiano de atuação, havia espaço para trazermos exemplos e dilemas vividos por nós e

geralmente eu levava minhas dúvidas sobre a condução dos encontros para dialogar com a

Ana e com as colegas em um processo, como denomina Schön, de “reflexão sobre a reflexão-

na-ação”. Em uma das aulas, compartilhei minhas dúvidas sobre os meus diversos

posicionamentos no grupo, as entradas em forma de exposição de conceitos e meu anseio em

criar um espaço de colaboração. Saí dessa conversa com uma ideia: se tenho dúvidas sobre

como as participantes estão se apropriando desse espaço, por que não perguntar a elas? E daí

surgiu a proposta de partilhar meus diários de bordo, propondo no sexto encontro uma

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conversa sobre o processo do grupo e pedindo a elas um retorno, a partir do meu olhar de

propositora-pesquisadora-participante:

(...) se eu estou dizendo que aqui é um espaço de construção coletiva e eu considero que tem sido, pelas conversas que a gente teve, pelas escolhas que vocês mesmos fizeram dos dilemas, eu resolvi trazer os meus registros para vocês também. (...) eu vou entregar e aí eu queria a contrapartida: que vocês fizessem para mim considerações: o que chamou a atenção nesses registros que eu estou entregando, sobre minha postura, sobre o que a gente conversou... do meu jeito de enxergar o grupo. Vocês topam? (ENC-6, 29/10/14)

Aqui é interessante notar que o movimento proporcionado por as minhas

intencionalidades, as estratégias utilizadas, as interações que estas estratégias criaram no

grupo, o modo como eu mesma fui interpretando e refletindo sobre os acontecimentos que

emergiram, levando-me a essa crise resultou inclusive na proposição de uma nova situação

social no grupo: a partilha, escuta e devolutiva sobre meus diários de bordo. As participantes

identificaram que a partilha dos meus escritos pessoais foram um modo de um cuidado, afeto

e sensibilidade com as relações e com o processo do grupo:

PE: Achei engraçado que no começo você se pergunta até que ponto você se coloca participando do grupo e ao longo da sua leitura, você foi trocando várias palavras que se distanciavam um pouco do grupo e na sua troca você se aproximava do grupo. Quando você escreveu sobre o grupo, você colocou “conosco”, acho que você está mesmo inserida e como isso contribui para que esse grupo seja um grupo mais unido, mais humano, sabe? (ENC-6, 29/10/14)

Além da chance de dialogarmos sobre os rumos da proposta e sobre as relações

interpessoais entre nós, algumas participantes se sentiram pessoalmente mobilizadas com

meus relatos. Em um trecho do meu diário, relato que a introspecção é uma das minhas

características e que, muitas vezes, quando coordeno uma atividade ou um grupo, tenho

muitas dúvidas pessoais se de fato estou satisfazendo às expectativas das pessoas. Valentina

escreveu uma carta com suas impressões sobre meus registros e nela diz se identificar com

essa característica, sentindo-se acolhida. Abayomi também mencionou esse mesmo trecho

que revela como minha ação afetou os membros do grupo em uma dimensão também

pessoal:

(...) senti-me totalmente neste lugar, parece que era eu ali escrevendo sobre mim, Sou bastante tímida, acho que sempre vou falar alguma coisa errada, que não vou saber falar bonito, insegura, falo baixo, pouco, sinto que transmito essa insegurança para as pessoas, questiono muito esse meu jeito “quietinha de ser”, pois muitas vezes me cobram ser falante, desinibida por ser psicóloga, depois que iniciei a terapia me ajudou bastante a aceitar esse jeito, que cada um tem o seu jeito e não é porque escolhi ser psicóloga que eu preciso mudá-lo, pois essa sou eu. (Abayomi, Devolutiva DB)

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Sobre esse relato, penso ser fundamental destacar alguns elementos para análise:

a) a distinção entre meus papeis como propositora, pesquisadora e participante é muito tênue,

esses papeis foram se mesclando, inclusive, em uma mesma situação, como a da nossa

conversa sobre o elemento novo, relatada anteriormente; b) a partilha de reflexões teóricas

em um posicionamento vertical foi tão importante quanto a escuta e a valorização dos

conhecimentos trazidos pelas participantes para a constituição do grupo colaborativo; c) as

estratégias, por si só, não levaram a colisões e a mudanças no desenvolvimento dos membros

do grupo, mas, sim, o que aconteceu entre nós a partir dessas estratégias.

Em uma perspectiva vigotskiana, é possível afirmar que as mudanças qualitativas

no processo de desenvolvimento são tão complexas e não lineares que o processo SSD-

drama-perejivanie se apresenta como um contínuo, sendo que uma interação dramaticamente

vivenciada produz mudanças tais que acabam por gerar novas condições para outras

mudanças (VERESOV, 2014). É possível identificar a complexidade desse processo quando

as interações entre mim e as participantes provocaram uma crise pessoal sobre a qual refleti,

discuti com minha orientadora e com colegas de pós-graduação e cujo resultado foi

identificar que eu precisava dividir com o grupo minhas impressões. A partilha do diário de

bordo, resultado de uma crise, criou uma nova situação social para as participantes, um novo

ponto de partida, que provocou novas crises e mudanças.

Além disso, as estratégias propostas por mim não tinham um caráter meramente

técnico, de aprendizagem de um conceito para ser aplicado, mas afetaram as participantes em

um nível (também) afetivo – quando partilho meu diário de bordo, que trazia uma expressão

inclusive subjetiva dos meus sentimentos sobre o que vivenciei no grupo, Abayomi e

Valentina foram mobilizadas também em um nível pessoal, indicando a dialética e

indissociabilidade entre pessoal e profissional, afetivo e cognitivo e reafirmando o

desenvolvimento profissional como desenvolvimento humano, em um sentido amplo. É

interessante ressaltar que por mais simples e repetitiva que pareça a afirmação

“desenvolvimento profissional não deve se dissociar do pessoal” este ainda não é um cenário

superado no campo da formação profissional que, em grande parte, tanto na graduação

quanto na formação continuada se restringe a um ensino de transmissão de conhecimentos e

técnicas por vezes ignorando a história, a subjetividade, as necessidades e os conflitos da

pessoa em formação. Ressalto ainda que a dimensão afetiva não foi somente um “conteúdo

ensinado” ao grupo, mas foi incorporada como princípio formativo nas minhas ações e

posturas e, por isso, foi significativa para o processo de desenvolvimento profissional das

participantes.

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As colisões que vivenciei entre os diversos posicionamentos assumidos no grupo

podem ser analisadas como o movimento inerente de uma proposta que teve as relações

sociais como fonte de desenvolvimento e que se propôs como espaço com objetivos múltiplos

e complementares – formativo, de produção de material de pesquisa, de colaboração entre

pares. Como já postulado anteriormente, uma das ideias centrais de Vigotski (1931/1997)

para explicar o desenvolvimento cultural do psiquismo é o conceito de mediação, definido

como o processo no qual signos e ferramentas culturalmente produzidos se interpõe à ação

direta do ser humano sobre os objetos, relações ou sobre si mesmo, transformando

profundamente as funções mentais, tornando-as complexas e superiores, determinadas não

mais pelo aparato biológico, mas pelas interações sociais das quais se originam. Portanto, não

há desenvolvimento se não houver mediação simbólica.

É fundamental ressaltar que nem toda interação social leva a desenvolvimento.

Portanto, nem tudo que se propõe em um grupo é mediação, apenas aqueles elementos que de

fato provocam algum tipo de mudança. No caso do manejo deste grupo, identifico como

elementos mediadores a articulação dos dilemas levantados a teorias coerentes e consistentes

que construíram entendimentos sobre o trabalho com demandas educacionais, além de um

cuidado afetivo na organização das atividades oferecidas ao grupo.

Considerando que um dos principais objetivos do grupo era a construção de

saberes sobre as possibilidades de atuação junto às demandas educacionais, a circulação e a

discussão de conhecimentos científicos sobre essa temática, de forma, inclusive, organizada e

sistematizada por mim, consistiu em elemento essencial, como podemos perceber no registro

de Alice:

Iniciamos o encontro com uma nova organização. E como isso foi bom! As propostas expostas por Fabiana começaram a fazer mais sentido. As falas de nossos companheiros de grupo também ganharam um novo significado. Percebo que as pontuações de Fabiana entre as nossas falas e observações apresentadas nos textos e em seus estudos enriquecem a cada encontro nossas discussões. Contudo ainda percebo que as discussões estão pautadas em críticas ao sistema de ensino e ao modo como é organizado (...). Percebo que precisamos pontuar melhor qual o papel do psicólogo na escola, para que possamos pensar de que forma ele pode contribuir no enfrentamento de tantas queixas escolares. (Alice, RR-4, 15/10/14)

Devemos ter cuidado com o que Saviani (1983/2008) denomina como “Teoria da

Curvatura da Vara”, quando discute que, ao irmos contra o ensino tradicional de transmissão

de conhecimentos, podemos cair em um outro extremo e acabar negando o acesso aos saberes

historicamente construídos em nome de uma suposta horizontalidade na relação de ensino.

Vigotski (1934/2001) defendia que a educação escolar, por meio do ensino dos

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conhecimentos científicos construídos historicamente pela humanidade é um propulsor

fundamental do desenvolvimento psíquico, levando o ser humano a um desenvolvimento

pleno, crítico e que o leva atuar nas transformações sociais. Uma proposta colaborativa exige

horizontalidade por parte de quem coordena, mas isso não nega a necessidade da

verticalidade do ensino (SÁ-CHAVES, 2012). A abertura para a dimensão pessoal e para a

colaboração em uma proposta de desenvolvimento profissional não pode ser algo

improvisado, mas intencional, fundado em princípios, planejamentos e estratégias, mas ao

mesmo tempo aberta em termos da interação, das relações sociais como ponto de partida para

o processo de desenvolvimento. Essa intencionalidade nas ações formativas exige uma

postura ativa dos participantes, tirando-os do lugar do ensino tradicional de transmissão de

saberes fazendo necessariamente emergir colisões, tensões e contradições. É o caráter

dramático provocado pelas situações sociais de desenvolvimento que leva a mudanças

qualitativas. Portanto, a colaboração e a horizontalidade não devem ser priorizadas porque a

“aula expositiva está fora de moda”, mas porque em uma perspectiva histórico-cultural

afirmamos que o conhecimento é produzido a partir das relações sociais. Isso envolve a

discussão conceitual e envolve ao mesmo tempo dar voz e vez às participantes.

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TRAVESSIA 3

“Trabalho de borboleta”: sobre os conhecimentos construídos colaborativamente

A terceira Travessia pretende analisar os conhecimentos construídos a partir do grupo

sobre o trabalho com demandas educacionais, identificando as situações sociais criadas, as

colisões e as mudanças que surgiram na discussão coletiva sobre o trabalho com demandas

educacionais.

Tabela 7: Combinação de pré-indicadores e indicadores – 3ª Travessia

PRÉ-INDICADORES INDICADORES

Parada 3: Queixa-lamento

Objetivos do grupo Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo Concepções sobre educação escolar

Concepções sobre família Colisões

Parada 4: “por amor às causas perdidas” Elemento Novo Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo

Concepções sobre educação escolar Manejo do grupo – lacunas e dificuldades

Manejo do grupo – posicionamento vertical Manejo do grupo – posicionamento horizontal

Colisões

Parada 7: “Que teorias têm fundamentado a prática de vocês?”

Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo Sistemas teóricos que fundamentam as práticas

Colisões

Parada 11: “Mais alguém ficou pensando alguma coisa?”

Elemento Novo Concepções sobre psicologia/papel do psicólogo

Concepções sobre educação escolar Manejo do grupo - posicionamento horizontal

Contribuições das participantes Parada 14: “E agora a gente está

caminhando” Objetivos do grupo

Sistemas teóricos que fundamentam as práticas Colisões

Contribuições das participantes Parada 17: Qual é a receita? Colisões

Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais

Parada 21: “Resistir, mas seduzir ao mesmo tempo”

Concepções sobre o trabalho com demandas educacionais

Colisões Contribuições das participantes

Manejo do grupo – posicionamento vertical Manejo do grupo – posicionamento horizontal

Parada 22: “Trabalho de borboleta” Concepções sobre o trabalho com demandas

educacionais Colisões

Contribuições das participantes

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Como já discutido, os primeiros encontros foram marcados por uma espécie de

queixa-lamento, por meio da qual o grupo desabafou sobre as angústias vivenciadas no

trabalho com demandas educacionais. Ao mesmo tempo em que esse movimento foi

importante, levando o grupo ao questionamento sobre os objetivos da proposta e à superação

dessa crise no coletivo, o desabafo inicial também fez emergir concepções conservadoras

sobre Educação, família e sobre o trabalho com demandas educacionais, já incluídas no

capítulo de análise. Tais concepções geraram desconforto e estranhamento no grupo:

(...) ao usarmos nosso tempo criticando o professor, parece que me ficou uma fala: “Mas e então, o que vamos fazer, apesar do professor ser tão inadequado em algumas de suas ações? E a nossa atuação, a quantas anda???? Estamos tão adequados assim?”. (Lícia, RR-2)

Os problemas que surgem em sala de aula ou que chegam ao psicólogo

apresentam determinantes nas condições sociais em que vivemos. Em uma sociedade

capitalista, na qual a desigualdade social impera, é preciso que grande parte das pessoas

venda sua mão de obra a baixos preços e viva em condições desumanas para que uma

minoria possa desfrutar da abundância de bens e conforto, surgem problemas entre os níveis e

de todos os tipos e as patologias psicológicas e os problemas de aprendizagem são alguns

deles – emergentes principalmente a partir das precárias condições do sistema educacional,

lacunas na formação e atuação docente, falta de assistência para as famílias na educação dos

filhos. No entanto, em geral encontramos um mascaramento dos determinantes sociais a

partir de explicações que culpabilizam as próprias vítimas desse sistema, individualizando ou

internalizando os problemas, alocando causas e soluções em nível exclusivamente biológico

ou nas relações imediatas, como o que aconteceu no grupo quando circularam concepções

que culpabilizam a família ou professores pelo fracasso escolar. Guzzo (2007) aponta que

quando os profissionais que atendem essas demandas não conseguem desenvolver uma

análise crítica e contextualizada da situação, a tendência é caírem em um ciclo sem-fim de

reclamações, em uma postura fatalista, que “paralisa o homem diante da história e o faz

renunciar à capacidade de pensar, de escolher, de decidir, de projetar e de sonhar” (GUZZO,

2007, p. 233).

É possível identificar que houve momentos, no grupo, em que nos posicionamos

de forma fatalista, sentindo-nos impotentes diante dos problemas que emergem na prática,

como podemos observar no desabafo de Isadora no segundo encontro sobre como se sente

impotente diante dos desafios enfrentados no trabalho com crianças em situação de risco:

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E como psicóloga, cada hora está em um lugar, eu não fico nada em lugar nenhum. Eu falo que eu finjo que faço. Eu não aprofundo em nada e isso me angustia... por que eu me sinto em falta com o indivíduo. Eu penso que é a mesma ansiedade do professor, quando não dá conta daquela criança. (Isadora, TR-1)

Nos dois primeiros encontros, houve uma ebulição mais evidente de ideias

conservadoras, alocando a responsabilidade pelo não aprender unilateralmente, ou no

professor ou na família. Com o desenvolvimento do grupo, a partir das leituras, elementos

novos, partilha da prática e discussões entre nós, outras ideias mais complexas foram se

construindo sobre o trabalho com demandas educacionais. Como exemplo, no quarto

encontro discutimos um caso apresentado no artigo A doença do Tom Cruise: uma

experiência de estágio em intervenção psicoeducacional (BARBOSA, D. et al.) e apresentei

o grupo que o objetivo do atendimento à queixa escolar deve ser primordialmente a

movimentação de saberes e versões sobre a criança. O relato de Ana Elisa traz um importante

entendimento a partir dessa discussão:

(...) o Caso do Tom Cruise da Silva nos ajudou a (re) pensar a prática. Os slides da Fabiana nos auxiliaram a organizar o pensamento e o que ficou pra mim é que é crucial nos casos de queixa escolar movimentar a rede que está envolvida no caso. Todos precisam ter voz e contribuir para se chegar numa melhor forma de lidar com a situação. (Ana Elisa, RR-4)

Porém, o fato de termos encontrado possibilidades de superação e novas formas

de pensar não significa que definitivamente superamos uma postura fatalista no

enfrentamento da queixa escolar. No sétimo encontro, Abayomi apresenta o vídeo Ex-E.T.,

que problematiza a medicalização das crianças e ela diz que já o levou para trabalhar o tema

com professoras da rede, mas que nem sempre a crítica à patologização dos problemas

escolares é compreendida ou bem recebida. Valentina e Ana Elisa concordara e afirmaram o

quanto é difícil fazer com que as professoras entendam que o papel do psicólogo não é

simplesmente diagnosticar as crianças, levantando um problema histórico da Psicologia

Escolar: como romper com atendimentos individualizantes para um trabalho com/no coletivo,

a partir das relações de ensino? Vejamos o desabafo de Abayomi sobre neste encontro:

Tem esse momento de vamos pensar juntos, mas eu preciso ser um pouco mais direta, mas eles falam, ‘eu já faço. Isso que você está falando não adianta’. Mesmo quando eu falo, ‘mas eu estou com vocês, estou aqui para orientar, se precisar eu venho aqui junto, a gente vai junto’. Mas eles falam, não precisa, eu já sei. Então fico sem saber o que fazer. (Abayomi, ENC-7, 05/10/14)

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É possível identificar na fala de Abayomi um tom de desistência e desesperança –

ela compreende que o papel da Psicologia não é ceder ao pedido de encaminhamento, como

se o “não aprender” estivesse localizado no aluno, mas ao mesmo tempo encontra um

estranhamento das professoras que parecem não entender, então, qual seria o papel dela na

escola. Nessa mesma conversa, apresentei ao grupo elementos da história da Psicologia e da

Psicologia Escolar no Brasil, que nos ajudam a identificar que o posicionamento crítico que

defendemos é um movimento relativamente recente, que se inicia entre as décadas de 1970 e

80 (PATTO, 1984; BARBOSA, D., 2011) e que, por apresentar uma lógica complexa, que

analisa os determinantes sociais das questões escolares, além de não haver interesse das

políticas públicas que o professor pense dentro de um paradigma crítico, esta perspectiva

muitas vezes não chega até a formação e a prática do professor na escola. Esse

esclarecimento resultou em uma interessante mudança no grupo:

VA: (...) a gente está querendo colocar os professores dentro do quadradinho também. (...) AE: (...) É a gente sair desse lugar do saber absoluto e que de alguma forma a gente fez e talvez a nossa luta todo dia seja essa. E a gente acha que não está fazendo nada, na verdade. (ENC-7, 15/10/14)

Ao discutirmos os determinantes históricos e culturais das queixas escolares,

percebemos que, se por um lado estamos lutando para não patologizar e culpabilizar as

crianças, por outro não podemos cair na armadilha de fazer o mesmo com o professor.

Identifico que a crise vivenciada no grupo sobre como trabalhar de forma crítica,

considerando a complexidade do contexto educacional é semelhante à crise da própria

Psicologia Escolar e Educacional, cuja vertente crítica vem lutando para romper com

concepções conservadoras e lineares sobre os problemas educacionais e que por ser contra

hegemônica, trazendo uma lógica complexa para pensar as questões que emergem no

cotidiano escolar, não é facilmente entendida muito menos linearmente apropriada pelo

pensamento, exigindo que os profissionais estejam em constante formação para que

desenvolvam formas um olhar para o contexto em que as queixas escolares são produzidas.

Além disso, por este ter sido um grupo heterogêneo, percebo que a movimentação

de visões teve espaço privilegiado. Enquanto grupos de formação somente para psicólogos ou

somente para professores podem estar mais sujeitos a uma visão unilateral, um grupo diverso

como o nosso possibilitou uma complexa compressão da queixa escolar a partir da

perspectiva de diferentes profissionais, como registrado por Abayomi:

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Eu gostei muito, os encontros eram para discussão entre profissionais de psicologia, entretanto tiveram participantes de outras áreas também que muito contribuíram para a discussão e o desenvolvimento do grupo, tinha psicólogos de diversas abordagens, fonoaudióloga e pedagogos.

Um dos aspectos formativos do grupo mais comentado pelas participantes foi a

reflexão que tivemos sobre os sistemas teóricos que sustentam nossa prática. No terceiro

encontro, cada um teve a chance de partilhar quais são as teorias que articulam em seu

cotidiano de atuação e algumas participantes disseram muitas vezes não se dar conta ou não

pensar sobre essa dimensão:

[a discussão sobre sistema teórico] me fez pensar bastante sobre o meu trabalho de fato, a teoria que eu sigo (...) Fiquei com vontade de ler mais sobre a teoria de Vigotski, pois muitas das coisas que a Fabiana fala e faz ligação com a teoria histórico-cultural me faz pensar bastante a respeito e refletir em relação a que eu uso que é a comportamental. (Abayomi, RR-3)

Falamos sobre a concepção de dilemas e sobre reflexividade. Tudo muito bom, até que... eis a pergunta que me tira da minha zona de conforto: que teoria fundamenta minha prática? Acredito que por ter ciência da importância dela me incomode tanto. (Ana Elisa, RR-3)

Neste encontro, conversamos sobre a importância de ter clareza dos sistemas

teóricos que orientam nossas decisões e que diante de um dilema ou novo desafio é

fundamental um exercício de reflexão sobre a prática, mais do que meramente aplicar

técnicas, devemos fazer perguntas para as situações desafiadoras, buscando fundamentos

teóricos que nos ajudem a compreendê-la de forma complexa e encontrar possibilidades

(ARAGÃO, 2010). Após essa discussão, no encontro seguinte, Lícia trouxe um relato sobre

como a discussão sobre sistemas teóricos a ajudou em um atendimento de um complexo caso

de autismo:

Quinta-feira de manhã atendi uma menina autista, caso dificílimo, dificílimo, dificílimo e a menina tem três anos e ela fica muito com a mãe, fala muito pouco e ela protesta muito, o protesto dela quando a gente tira a mãe é ela fazer xixi. Ela já faz no banheiro, mas ela fez xixi na sala, perto do meu pé. E naquele dia a gente tirou a mãe e ela veio, fez xixi, aquele xixizão. Eu falei assim, ‘bom, , com quem eu vou dialogar agora, o que eu faço agora?’ (...) E aí ela sapateia no xixi, faz aquela confusão e nessa hora eu pensei, ‘bom, na teoria estava tudo muito tranquilo e agora na prática, o que eu faço com esse xixi, com essa criança?’ A gente já tem algumas coisas prontas para fazer, não entrei em desespero, mas enfim, foi um dilema que vivi e falei, com quem eu vou conversa agora? Então, esse encontro trouxe muito isso, criou uma propriedade no grupo e foi muito bom. Foi isso que pensei e acho que a angustia que tive nos dois primeiros encontros foi atendida, fui muito acalmada nesse terceiro. (Lícia, ENC-04)

Pensando nas relações sociais como fonte de desenvolvimento profissional,

gostaria de destacar duas dimensões analíticas importantes sob o prisma da THC. A primeira

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é em relação ao modo como as concepções teóricas foram internalizadas. Vigotski

(1934/2001) identifica que os conceitos científicos, como organizações teóricas e sistemáticas

do mundo, são uma forma complexa de pensamento, como estágio mais elaborado da

consciência humana e que depende essencialmente do processo de escolarização para se

desenvolver. O processo de desenvolvimento profissional no grupo envolveu

necessariamente um trabalho de formação de conceitos científicos – a circulação de

concepções conservadoras e críticas em um movimento contraditório e mediado pelas

contribuições da Psicologia Escolar crítica, por meio dos textos discutidos, dos elementos

trazidos pelas participantes e também das aulas expositivas organizadas por mim para

direcionar nosso olhar para aspectos essenciais do trabalho com demandas educacionais

contribuiu para refinarmos nosso entendimento teórico-prático sobre o enfrentamento dos

problemas emergentes nos contextos educacionais. É importante destacar que não houve uma

evolução na formação conceitual entre as participantes, como se partissem de uma concepção

conservadora para que no último encontro “atingissem” um nível de compreensão crítica (e

nem era esse o propósito!), tanto é que entramos em outros dilemas no decorrer dos

encontros. Porém, podemos sim afirmar que houve um movimento de revolução que, longe

de ser linear, proporcionou a circulação de saberes de forma complexa, envolvendo

contradições, de modo a encontramos possibilidades, mas também novas perguntas sobre os

temas discutidos. Poderia dizer que uma das heranças do grupo apontada pelas participantes

foi, justamente, o movimento de questionar e descontruir certezas arraigadas, indicando a

complexidade e não linearidade da formação de conceitos científicos no processo de

desenvolvimento profissional:

(...) tivemos muitas reflexões, não foi um espaço para decorar conceitos, embora tivéssemos discutido historicamente o papel do psicólogo, o termo Psicologia Escolar, os pressupostos básicos de algumas abordagens, etc. (Peter, CA)

Percebo que participar desse grupo vem me trazendo mais perguntas do que respostas. E como é bom ter perguntas! (Alice RR-5, 22/10/14)

A segunda análise é em relação à lei genética do desenvolvimento humano,

segundo a qual as funções psicológicas entram em cena duas vezes, primeiro como uma

categoria interpsíquica, na relação entre pessoas e, depois, como uma categoria intrapsíquica

(VIGOTSKI, 1931/1997). Deste postulado, podemos compreender que o desenvolvimento

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apresenta diversas entradas75 tanto em um nível macro (filogênese, sociogênese) quanto em

um nível das relações imediatas, da dimensão particular de cada sujeito e das pequenas

transformações que acontecem no processo de desenvolvimento (ontogênese, microgênese)

que se combinam e interagem de forma complexa resultando no processo de

desenvolvimento de cada pessoa. No caso das participantes do grupo, identifico que as

temáticas emergentes, em especial os impasses no trabalho com demandas educacionais e a

relação professor-psicólogo para o enfrentamento dessas questões estão relacionados a um

contexto maior, no qual ainda é conflituoso propor um trabalho pautado no coletivo e que

tenha os determinantes sociais como princípio explicativo e como processo de superação da

queixa escolar, uma vez que o discurso dominante é de explicações lineares e medicalizantes

para esses fenômenos. Porém, o enfrentamento fatalista desses problemas partilhados no

grupo parece ter sido rompido a partir das situações de desenvolvimento criadas,

principalmente, por meio de discussões colaborativas sobre a prática e os elementos teóricos

consistentes. Quando Lícia partilha conosco o questionamento que se fez sobre os sistemas

teóricos que fundamentam a prática a partir de um desafio vivenciado, percebo aí um

exemplo de como as interações sociais vivenciadas no grupo podem ser internalizadas,

mobilizando o profissional para pensar por perspectivas que não estavam claras

anteriormente.

No sétimo encontro, Valentina comenta que o trabalho com demandas

educacionais é um “trabalho de formiga”, referindo-se à dificuldade e à persistência

necessárias para promover alguma mudança. Tadeu discorda, dizendo que a formiga remete a

um “fazer obediente” e que não ousa a romper a lógica imposta. Valentina sugere então a

expressão “trabalho de borboleta”, em referência a uma metáfora que eu usei nos meus

diários de bordo:

FA: É lembrei da borboleta que usei nos relatos em um deles sai pensando, no segundo encontro que saí daqui bem pesada, pensando onde está indo esse grupo, será a gente vai dar conta do que se propôs a fazer, do que eu me propus e daí pensei na borboleta, ela tem um voo leve, mas não tem muito rumo certo, como da formiga, ela vai para onde mais agrada...

TA: E é o símbolo da transformação.

75 A filogênese é relacionada ao desenvolvimento da humanidade como espécie biológica, por meio da evolução das espécies. A sociogênse é relacionada ao processo de desenvolvimento cultural da humanidade. A ontogênese abarca as especificidades da história de cada sujeito particular e a microgênese explica as mudanças em cada sujeito particular a partir da complexa combinação de todas essas entradas do desenvolvimento.

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FA: É o símbolo de transformação de uma lagarta que tem dificuldades de se locomover para uma borboleta que voa livre. (ENC-7, 05/11/14)

Chegamos a um consenso de que o trabalho com demandas educacionais exige

uma postura de transformação – das relações, do sistema educacional, do sistema social.

Guzzo (2007) aponta que um dos caminhos para a superação do fatalismo é a compreensão

coletiva dos problemas enfrentados, por meio da construção de relações solidárias, o que

exige tempo e esforço. Reconheço que o grupo foi um espaço limitado em termos de tempo e

recursos para, de fato, promover algum tipo de transformação social em nível amplo e

profundo. Porém, o desenvolvimento de um curso formativo que se pautou nas relações

sociais, no diálogo, em uma acolhida sensível e humana dos participantes e na colaboração

entre diferentes profissionais como ponto de partida sinaliza um caminho importante que

pode inspirar outros espaços de formação profissional.

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TRAVESSIA 4

“Engraçado, né? Teve mudança”: sobre os vínculos afetivos como parte do processo de desenvolvimento profissional

A quarta Travessia discute o processo de constituição de vínculos afetivos no grupo,

analisando a dimensão pessoal como parte inerente do processo de desenvolvimento

profissional, a partir das interações sociais e dos elementos mediadores que criaram

condições para mudanças.

Tabela 8: Combinação de pré-indicadores e indicadores – 4ª Travessia

PRÉ-INDICADORES INDICADORES

Parada 9: Conversa (a) fiada Vínculo afetivo

Manejo do grupo – posicionamento horizontal

Parada 23: “Engraçado, né? Teve mudança”

Vínculo afetivo Contribuições das participantes

Os encontros do grupo se caracterizaram não somente pela discussão dos

problemas da prática profissional à luz das temáticas escolhidas e de sistemas teóricos de

análise, mas também pelo relacionamento interpessoal entre as participantes. É fundamental

ressaltar que a abertura para a constituição de vínculos no grupo não foi algo espontâneo, mas

relacionado a determinadas posturas e ações intencionais, criando condições especiais para

que o grupo fosse um espaço de interação social.

Uma das propostas, desde o início, foi o estabelecimento de um rodízio de

pessoas definido semanalmente para a partilha coletiva do lanche. Como as participantes

vinham de outras cidades, depois de um dia cansativo de trabalho, a proposta de um lanche

coletivo foi inicialmente um modo cuidar do grupo. Logo nos primeiros encontros, propus

que cada um que trouxesse o lanche pudesse contar sobre o que aquela comida ou o ato de

oferecê-la ao grupo significava. No início, Ana Elisa demonstrou preocupação em não

conseguir levar o lanche, pois não teria muito tempo entre sair do trabalho e se deslocar para

o grupo. Acolhendo sua angústia, disse que não haveria problemas. Na mesma semana, ela

mandou um e-mail dizendo ter pensado melhor e que gostaria de colaborar, levando o lanche

para a semana seguinte, juntamente com as outras duas colegas que vinham da mesma

cidade. Neste encontro, conversamos sobre o significado do lanche compartilhado:

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FA: No primeiro dia falei sobre o caráter afetivo do lanche, a ideia é cada um trazer o que é significativo. Mas semana passada foram a Alice, Lícia e Luiza que trouxeram e eu acabei não fazendo essa pergunta, vocês gostariam de partilhar? AE: Não sei... não é do jeito que a gente queria. Eu gosto de cozinhar, gosto de fazer bolo, mas não dava tempo. Ana: Mas tinha toda uma produção, tinha papel celofane. Vocês podiam ter mentido, dizendo que vocês que fizeram! AE: Foi uma questão de tempo, pelo o que era mais prático. Cada uma vez uma coisa, meu marido, enfiei ele no meio. Ana: Tem sempre uma participação especial. FA: O que acho legal é que no primeiro dia quando fiz o convite para trazer o lanche elas se mostraram muito preocupadas, “será que vai dar tempo?”, porque elas saem do trabalho e vêm na correria toda de outra cidade e eu achei muito bonito o cuidado da Ana Elisa em me mandar um email “Ah, Fabiana, fiquei pensando e dá sim pra gente trazer”. E isso é muito bonito, porque mostra o quanto vocês estão envolvidas com o grupo. (ENC-3, 08/10/14)

No quarto encontro, era aniversário de Tadeu e também dia do professor. Por

isso, começamos a reunião entoando “parabéns” e degustando o bolo e salgadinhos levados

pelo próprio aniversariante. Ao finalizarmos esse momento e entrarmos nas atividades

programadas, eu disse ao grupo:

FA: Eu trouxe o lanche na primeira vez e convidei vocês para trazerem nas próximas para partilhar comidas que tivessem algum significado para vocês ou mesmo o ato de trazer, o esforço que a gente tem para estar aqui no horário, passar em algum lugar e buscar um lanche que todos gostem, acho que o convite que queria fazer e espero que esteja sendo significativo, é da gente se aproximar como grupo, de isso fazer sentido para gente, as conversas, oferecer uma rifa, partilhar receitas, trocar ideias e da comida. Isso tem a ver com essa proposta de estarmos juntos e partilhar (...) O que tem significado para vocês estarem aqui toda quarta? E daí me lembrei do momento do lanche, do momento em que vocês chegam e eu recebo vocês e eu sinto muita amorosidade nesse espaço e nesse momento. Sinto que o encontro é algo potente e é nele que eu aposto. Eu aposto na conversa, aposto no outro como uma possibilidade muito rica de a gente se desenvolver como profissionais, como gente. (ENC-4, 15/10/14)

Nesses episódios é possível identificar que o lanche compartilhado não foi

somente um meio de criar conforto ao grupo. Ao solicitar que o grupo refletisse sobre o

significado de levar o lanche, ao acolher e compreender as dificuldades particulares das

participantes e deixar explícita a importância de que as relações interpessoais sejam parte

inerente da proposta, percebo que determinadas condições foram criadas e a partir delas, os

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vínculos afetivos no grupo foram estabelecidos. Vejamos alguns excertos que indicam a

significação dos vínculos como parte legítima e importante desse espaço:

O lanche que no inicio cada dia um trouxe para os outros e por fim fomos nos dividindo cada um levando alguns quitutes e sucos. Foi muito bom ter esse momento, ficava um ambiente mais descontraído (CA, Abayomi)

TA: Dia 15 de outubro, foi meu aniversário e foi muito esquisito estar aqui, ao mesmo tempo que foi esquisito, foi gostoso estar com vocês. Desde que eu comecei a trabalhar eu cismei que eu não ia trabalhar no dia do meu aniversário e esse ano eu não só trabalhei como fiz mais coisas, então foi nesse sentido. Mas o dia inteiro, de um monte de coisas que eu não gostei, a única coisa que eu gostei foi estar aqui. (ENC-5, 22/10/14)

O momento do lanche e das conversas informais que aconteciam antes do

encontro, nas pausas ou ao final não eram situações periféricas, mas constituíram parte

fundamental da proposta. A formação de vínculos interpessoais não acontece naturalmente,

mas parte de uma mediação intencional, a partir da compreensão de que este é um elemento

essencial no processo de desenvolvimento profissional. Ao priorizar a dimensão afetiva das

interações, consigo provocar nas participantes uma integração entre teoria e prática, entre

cognição e afeto e só assim há desenvolvimento em um sentido amplo e integral.

Vigotski (1931/1997) indica que as funções psicológicas superiores são um

sistema complexo e não podem ser compreendidas de forma compartimentada, como se uma

fosse independente da outra. Leite (2017) alerta que a afetividade é uma dimensão

historicamente ainda vista como diferente ou cindida da cognição ou do raciocínio lógico e

que uma das tarefas da teoria psicológica é romper com essa visão, por meio de um olhar

complexo para a interação emoções e cognição, no qual uma dimensão constitui a outra:

Portanto, deve-se destacar que os processos afetivos complexificam-se durante o desenvolvimento, sofrem influencia e influem nos processos cognitivos, mantendo com eles uma relação dialética durante todas a vida do sujeito. (LEITE, 2017, p. 163)

As estratégias e ações formativas escolhidas por mim pautaram-se na

compreensão de que a formação sensível não só é importante, mas fundamental na

transformação do processo de desenvolvimento. Para isso, é necessário ter uma compreensão

de que o desenvolvimento profissional abarca um conjunto complexo de funções psíquicas,

dentre elas a intelectual, por meio da formação de conceitos científicos e da apropriação de

uma perspectiva teórica coerente e consistente com as temáticas estudadas e também a

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afetiva, que se desenvolve mediante uma organização dos processos de mediação no grupo,

incluindo a pessoalidade, o afeto, o carinho e a gentileza com as participantes como parte

inerente das ações, o que proporciona uma aprendizagem efetiva irreversível. Um exemplo

desse aspecto pode ser identificado no registro de Peter:

Escrevo esse registro agora em uma maneira diferente. Atrasado para ir ao último encontro, mas mais diferente ainda quanto ao estilo, mais leve, mais carregado de emoções, mais próximo ao estilo da Fabi (...) No sétimo encontro, com menos pessoas, tivemos uma relação mais próxima, o que ficou mais em evidência é que vai acabar. Com um misto de alívio e tristeza, por ter menos compromisso e consequentemente menos espaços prazerosos de aprendizagem. (Peter RR-7)

Peter indica apropriação do tom afetivo com que mediei a proposta, diferente de

uma mera descrição do que aconteceu, Peter utiliza o recurso do registro reflexivo para tecer

entendimentos e reflexões que expressam sua vivência emocional no grupo. A partir deste

exemplo, afirmo que não é suficiente “ensinar” sobre afeto e explicar ao grupo sobre sua

importância, é imprescindível criar condições para que a dimensão afetiva e humana seja

vivenciada no processo formativo, por meio de posturas e ações educativas encarnadas pelos

propositores da formação profissional.

Identifico que vivenciamos colisões relacionadas à cisão que ainda persiste entre

a dimensão cognitiva e afetiva. Nos primeiros encontros percebo minha preocupação em

seguir o cronograma e focar nos textos escolhidos para guiar a discussão, quando o grupo

tinha a necessidade de partilhar as angústias vivenciadas cotidianamente, conforme já

relatado nas demais Travessias e podemos perceber no registro de Peter:

Percebo uma insistência da Fabiana em conduzir o grupo no sentido de uma reflexão teórica embasada em artigos e uma dificuldade do grupo em caminhar nesse sentido. Talvez o grupo não deseje nesse momento um fortalecimento teórico, mas sim um fortalecimento pessoal. (Peter RR-6, 29/10/14)

Ao acolher a pessoalidade das participantes, por meio de uma escuta atenta e

generosa dos dilemas e dificuldades partilhados no grupo, percebo que aos poucos

conseguimos direcionar a propostas para um aprofundamento teórico, mas sem perder de

vista a afetividade e interações como fonte de desenvolvimento para o grupo. Vejamos um

exemplo do quinto encontro, no qual Tadeu partilhou seu registro reflexivo sobre o encontro

anterior.

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Tadeu disse em seu relato que o vídeo Sentimentário e as conversas sobre rótulos

relacionados a problemas de aprendizagem o mobilizaram, pois ele mesmo foi diagnosticado

como disléxico na infância:

TA: Achei muito interessante quando você [Lícia] falou que não é um diagnóstico fácil, né? Hoje eu entendo isso, não é fácil, não é simples, hoje eu entendo isso. Tadeu partilhou com o grupo um relato pessoal, no qual nos conta que foi diagnosticado como disléxico na infância e como isso o afetou. A partir do relato pessoal de Tadeu, pedi ao grupo para que imaginassem o que fariam se um caso como o de Tadeu chegasse até eles. Alice relaciona o relato a uma reunião em seu trabalho, na qual discutiram a possibilidade de retirar o EJA da escola: AL: aí fiquei escutando o Tadeu falar e pensei: tudo a ver com a discussão de hoje de manhã. Tirar o problema da escola, não tem que tirar o problema da escola, o problema é da escola, o problema é de todo mundo que está envolvido com a escola. (ENC-5, 22/10/14)

Aqui, identifico que a abertura para a expressão da dimensão pessoal contribuiu

não só para que os vínculos interpessoais fossem construídos, mas também foram fonte de

desenvolvimento profissional para pensarmos em possibilidades no trabalho com demandas

educacionais. Tadeu partilhou com o grupo sua história de vida e quando solicitei que

imaginem possibilidades de atuação profissional a partir de sua história, Alice consegue tecer

uma importante análise a partir de sua prática, dizendo que se há uma criança com alguma

dificuldade no contexto escolar, todos devem se mobilizar para acolher e lidar com esse

problema, buscando superá-lo.

O lanche coletivo, as conversas informais e a partilha de relatos pessoais criaram

situações sociais de desenvolvimento no grupo resultando em um senso de pertencimento e

de compromisso das participantes com a proposta – éramos pessoas vindas de cidades

diferentes, com afazeres diversos e, ao longo de dois meses, participamos intensa, voluntária

e colaborativamente da construção desse espaço. Como afirma Lícia, a prioridade do grupo

estava na apropriação dos conteúdos por meio das interações horizontais afetivas, em um

movimento de escuta e construção conjunta:

O grupo mostrou-se muito entrosado na proposta do “construir com” e “falar com”. Apesar de ser um grupo não muito numeroso, foi muito coeso e funcionou em um movimento horizontal e afetivo que permitiu uma construção única e preciosa de muitos conteúdos. Cada membro expôs seus momentos mais marcantes, e embora tenham sido diferentes e distintos, mostrou que a presença de todos foi decisiva na percepção de cada um, assim como a visão individual na formação do grande olhar. Todo o movimento aconteceu no plano singular/individual e coletivo/grupal. (Lícia, CA)

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Destaco aqui duas dimensões analíticas importantes: 1) a indissociabilidade entre

as dimensões pessoal e profissional; 2) o processo de desenvolvimento profissional como

processo de desenvolvimento humano como um todo.

Na primeira dimensão ressalto, em concordância com Aragão (2010; 201776), que

o professor seja considerado em sua inteireza, de modo que os aspectos pessoais e

profissionais constituam de forma contínua e dialética quem o professor é e a prática que

desenvolve. Historicamente, a formação de profissionais para atuar na Educação tem sido

considerada somente na dimensão do treinamento de técnicas ou conhecimentos para serem

aplicados, geralmente os cursos de formação continuada envolvem somente essa dimensão

pouco considerando as necessidades e as vozes dos profissionais nesse processo (NÓVOA,

1992; PONTE, 1998). É imperativo romper com essa cisão, não simplesmente levantando

uma bandeira de que a dimensão pessoal é importante, mas criando propostas formativas que

incluam os aspectos pessoais e relacionais como fonte de desenvolvimento, por meio de

ações coletivas, colaborativas e afetivas. Contudo, alerto aqui que defendo a dimensão

pessoal como decorrente dos processos históricos e culturais mais amplos, tendo como

origem as interações sociais. Dizer que os aspectos da personalidade estão e devem estar

imbricados no desenvolvimento profissional não se refere a uma concepção individualista e

competitiva, como se o profissional tivesse que cuidar de si e aprimorar suas características

de personalidade para competir com outros, para se sobressair ou ser “vencedor”, como

vemos em slogans de autoajuda ou em algumas estratégias de marketing de treinamentos

profissionais. Incluir a dimensão pessoal significa sobretudo olhar para si para estar no

coletivo e com ele contribuir, por meio de ações colaborativas. É igualmente importante

afirmar que uma dimensão se encontra imbricada na outra – não há desenvolvimento

profissional sem uma busca pelo desenvolvimento pessoal, o ser profissional diz respeito a

uma pessoa em sua inteireza.

Em relação à segunda dimensão analítica, a partir da experiência neste grupo,

afirmo que falar sobre desenvolvimento profissional é falar sobre desenvolvimento humano

como um todo. Vigotski (1931/1997) indica que o desenvolvimento cultural das funções

psíquicas superiores é um complexo processo de mudança qualitativa, que tem como gênese

as relações sociais. Considerando a complexidade do trabalho com demandas educacionais,

que lidam diariamente de forma intensa com interações entre alunos, pares e famílias, não

76 Em apresentação no Concurso para Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

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podemos dizer que os profissionais não sejam constantemente afetados e transformados por

meio das relações que estabelecem cotidianamente.

O que significa se desenvolver profissionalmente? Aprender conceitos, técnicas,

sim, mas também se desenvolver como pessoa, refinando um olhar sensível, contextualizado

e abrangente para as questões humanas e para os desafios encontrados no trabalho no

contexto educacional. Aqui ressalto também a importância de termos incluído na proposta

não somente textos acadêmicos, mas os elementos novos, por meio de vídeos, músicas,

poemas, crônicas e outros meios estéticos-artísticos para que a partir deles pudéssemos

discutir a dimensão teórica. Como colocado por Ferreira (2014), a dimensão estética da

Educação encontra-se em superar a cisão entre sentir, pensar e experimentar. Para isso é

fundamental propor ações formativas que considerem o educador como pessoa inteira e a arte

é, nesse sentido, vetor fundamental de aprendizagem.

No último encontro, Bianca preparou uma apresentação para partilhar suas

percepções como pesquisadora-auxiliar sobre o grupo. No início de sua apresentação, ela

colocou algumas fotos dos primeiros encontros. Tivemos o seguinte diálogo, minutos antes

de finalizarmos:

TA: Engraçado, né? Teve mudança. FA: Muita. TA: Mudança física mesmo (...) Eu fiquei impressionado como que na primeira foto para agora a gente mudou. LI: Isso tem a ver com o vínculo. LU: Quando o vínculo se cria, muda a nossa percepção em relação ao grupo e a nós mesmos dentro do grupo. (...) LI: (...) Acho que é isso, embora nosso grupo teve um momento de construção, mas essa construção nunca acaba, ela vai seguir com cada um de nós e enfim, acho que me dá um pouco essa impressão, de construção que nunca se acaba, ela aconteceu aqui e vai continuar dentro de nós, o grupo vai continuar dentro da gente. A gente se distancia na memória, mas continua na gente. (ENC-8, 13/11/14)

A mudança física percebida nas fotos dos primeiros encontros foi significada pelo

grupo como uma percepção decorrente da formação de vínculos afetivos entre nós. Não

éramos mais estranhos, pois ao longo da proposta conhecemos uns aos outros em dimensões

que estavam inacessíveis nos primeiros encontros. Lícia fecha essa conversa dizendo que

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vamos dali em diante nos distanciar na memória, mas o grupo ficará guardado dentro de cada

um. Identifico que a proposta, pautada nas relações sociais como fonte, propiciou a

internalização por cada participante de uma memória coletiva – as vivências diversas levaram

à internalização única de saberes por cada participante. Vigotski (1931/1997) considera a

memória como uma função psicológica complexa, formada a partir da mediação de signos,

por meio das relações sociais estabelecidas. Portanto, a internalização do vivido passa pelo

coletivo e pelas significações que damos ao que vivemos, por meio do uso da linguagem:

A possibilidade de falar das experiências, de trabalhar as lembranças de uma forma discursiva, é também a possibilidade de dar às imagens e recordações embaçadas, confusas, dinâmicas, fluidas, fragmentadas, certa organização e estabilidade. Assim, a linguagem não é apenas instrumental na (re) construção das lembranças; ela é constitutiva da memória, em suas possibilidades e seus limites, em seus múltiplos sentidos, e é fundamental na construção da história. (SMOLKA, 2000, 187)

Considero que esse episódio final revela o modo como, ao rememorarmos os

encontros e conversar sobre as vivências passadas, significar coletivamente os principais

acontecimentos do grupo e internalizar memórias que, do coletivo passaram a ser memórias

individuais. Cada participante levou uma herança singular e irrepetível dos encontros. Houve,

portanto, a internalização de uma memória coletiva porque afetiva e de uma memória afetiva

porque coletiva, reafirmando o lugar de primazia das relações sociais no processo de

desenvolvimento profissional.

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TRAVESSIA FINAL OU FINAL DE UMA TRAVESSIA?

Elementos para uma proposta modelizadora

Nas palavras iniciais, faço uma pergunta que me acompanhou durante todo o

percurso: o que não sabia antes e aprendi com a Tese? Penso ter chegado o difícil momento

de respondê-la. É claro que todo percurso do texto até aqui já contempla as respostas e é claro

também que estas são respostas possíveis para o momento e não verdades definitivas ou

absolutas. Nessa última Travessia, escolho sintetizar as lições fundamentais da Tese, na

tentativa que fiz durante todo esse tempo para compreender o grupo colaborativo como fonte

de desenvolvimento para profissionais que trabalham com demandas educativas.

Inspiro-me em Sá-Chaves (2012) tecendo aqui considerações para uma

“proposta modelizadora” – o grupo de desenvolvimento profissional aqui descrito e

investigado não é um modelo a ser seguido, mas uma “modelização aberta”, cujos princípios

e análises decorrentes de todo o processo da pesquisa não devem ser meramente aplicados a

todas as circunstâncias, mas podem inspirar novas situações e propostas. O que vivenciamos

foi singular, mas relacionado a dimensões mais amplas, o que emergiu no grupo diz respeito

à atuação e ao desenvolvimento de diversos profissionais que cotidianamente lidam com

demandas diversas do contexto educacional e que não raro se sentem desamparados para

enfrentar os dilemas e desafios da prática.

Para iniciar a discussão de uma proposta modelizadora, escolho o gênero da carta

– presente em minhas ações – e direciono-a ao grupo de participantes da pesquisa como

síntese das lições aprendidas, dos significados produzidos a partir das análises e também

como uma forma de homenagem e agradecimento. Em seguida, elejo alguns pontos

principais que ajudam a responder às questões de pesquisa. Espero que a carta singularmente

endereçada e as considerações finais para uma proposta modelizadora alcancem outros

profissionais que, identificados com estes escritos também possam encontrar caminhos, de

mãos dadas uns com os outros, colaborativamente.

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Campinas, agosto de 2017

Querido grupo,

Quanto tempo desde que nos encontramos pela última vez em novembro de 2014! Como disse alguém no último encontro, nos afastamos na memória, mas o grupo continua dentro de nós, de alguma forma. Dentro de mim, continuou tão vivo, que consigo me lembrar dos detalhes de cada encontro, de cada conversa. Claro, como pesquisadora tive o privilégio de rememorar muitas vezes e de formas diversas nossos encontros, transcrevendo nossas falas, relendo incansavelmente os escritos produzidos para, então, transformar tudo isso em um texto, uma Tese! Quero começar esta carta, escolhida para compor as considerações finais da pesquisa, agradecendo a participação tão especial de vocês. Ao me direcionar de forma particular a vocês, que compuseram a pesquisa comigo, gostaria de registrar as principais lições aprendidas com a produção da Tese, na esperança de deixar um pequeno legado no campo do desenvolvimento profissional, da Psicologia Escolar e Educacional, da Teoria Histórico-Cultural. Em primeiro lugar, uma pergunta que me fiz desde o começo, quando, ao propor uma formação para o “psicólogo escolar”, encontrei nesse grupo uma grande diversidade de profissionais: o que esse grupo me conta sobre a Psicologia Escolar e Educacional? Bom, primeiramente o grupo revelou que o psicólogo escolar não está somente em escolas, mas o trabalho com demandas educacionais acontece em contextos variados. A diversidade de profissionais no grupo também revela que o psicólogo precisa da parceira com outros campos do saber para atuar e que seria precioso que esses profissionais pudessem dialogar colaborativamente, como fizemos no nosso grupo. Um processo de formação centrado única e exclusivamente em si mesmo, ao não dialogar com o outro se torna cego. E o que fizemos juntos foi o contrário. Uma importante lição é de que os profissionais em formação podem dialogar entre si. Ainda somos uma cultura da individualidade, da competitividade e vocês mostraram que é possível romper com isso e que o trabalho colaborativo é contra hegemônico. Precisamos de ajuda, não dá para caminhar sozinho. Analisando o material produzido sob o prisma da Teoria Histórico-Cultural, alguns inéditos emergiram e, dentre eles, o que mais me encantou foi perceber que falar sobre desenvolvimento profissional é falar sobre desenvolvimento humano como um todo. Em especial para vocês, que lidam com contextos educacionais e com um objeto de trabalho tão complexo como os alunos, as famílias, os professores, não há como dissociar o conhecimento técnico da integralidade de quem vocês são. Vigotski fazia estudos especialmente com crianças, propondo experimentos complexos para analisar o processo de desenvolvimento de funções psicológicas superiores como um processo cultural, mediado por signos. Dentre suas maiores contribuições está o fato de que o desenvolvimento segue um caminho que vai das interações sociais para a internalização pelo sujeito. As relações sociais não são, portanto, um pano de fundo, mas a própria fonte de desenvolvimento. Foi surpreendente perceber que podemos ampliar a compreensão desse processo para o desenvolvimento profissional de adultos – as nuances são diferentes, o processo é o mesmo. Pude também perceber que não basta somente dizer que as relações sociais são importantes, mas é necessário criar condições de desenvolvimento em que as interações entre as pessoas seja elemento central. Penso que isso foi contemplado em nossos encontros, por meio das atividades

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proporcionadas e das nossas intensas conversas sobre a prática e sobre tantos assuntos relevantes para o trabalho com demandas educacionais. Das principais análises da tese a partir da Teoria Histórico-Cultural, destaco: a constituição de uma proposta colaborativa como processo não linear, mas permeado por colisões, contradições, como essencialmente dramático, afinal o grupo não caminhou em uma crescente sofisticação, na qual vocês foram evoluindo, mas como uma revolução, por meio da partilha de dúvidas, provocação de questionamentos e construção de saberes a partir das contribuições de cada um. Identifico que minhas colocações como propositora tiveram lugar privilegiado: além das atividades solicitadas e da abertura para o diálogo no grupo, houve momentos em que eu me levantava e dava uma aula. Identifico que o princípio de colaboração e horizontalidade não deve negar a verticalidade. A partilha de saberes também é necessária. Percebo também que a dimensão afetiva foi parte essencial dos nossos encontros, criando um senso de pertencimento e comprometimento e contribuindo para que ao final cada um de nós levássemos uma herança singular dos encontros. Fico pensando que é difícil existir um curso ou uma proposta de formação profissional perfeita, mas o que é interessante é uma formação que produza incômodos, estranhamentos... Lembram das angústias e perguntas sobre a atuação com demandas educacionais que nos tomaram principalmente nos primeiros encontros? Percebi que encontramos algumas respostas para elas – como, por exemplo, a necessidade de um olhar cuidadoso não só para a criança, mas para o professor e famílias também; a importância dos diversos saberes para dar conta das demandas educacionais, em uma construção coletiva das ações; a importância de olhar para a dimensão histórica de nossas concepções teóricas ou ainda o valor de registrarmos nossas impressões sobre a prática de forma reflexiva, afetiva e implicada. Mas também nos deparamos com outras perguntas... é claro que nosso curso em oito encontros foi apenas uma pequena parte da trajetória de vocês e não espero que tenha tido uma repercussão extraordinária na sua vida, mas que, ao final, vocês tenham saído de lá mobilizados, incomodados, instigados a sempre buscar conhecimento, afinal o desenvolvimento profissional é um processo contínuo. Identifico que nosso grupo foi um lugar especial de partilha sobre a prática profissional. Criamos um espaço que valorizou os vínculos afetivos, as conversas sérias, mas também as conversas (a) fiadas. Um grupo que pôde se conhecer ao longo do processo, trocar ideias, fazer amizade. Um espaço horizontal, em que todos eram convidados a trazer suas contribuições. Um espaço colaborativo, em que o eu solitário, tantas vezes sentido por aqueles que trabalham com demandas educacionais, foi ganhando jeito de eu solidário. Também eu encontrei solidariedade ao me juntar a vocês e pude me transformar nesse processo. Não apenas no decorrer dos oito encontros, mas nas ressonâncias dessas horas que passamos juntos ao longo do Doutorado até chegar aqui, quando escrevo as palavras finais da Tese. Talvez o tema “desenvolvimento profissional” tenha mais relação com o meu próprio desenvolvimento como psicóloga e pesquisadora do que imaginava. Por afirmar que este é um processo contínuo, sei também que não finalizo este texto como a profissional que serei para sempre, mas certa de que produzi saberes que merecem ser compartilhados e que espero poder contribuir com outras pessoas que decidirem embarcar comigo nessa leitura. Com carinho, Fabiana

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Como é desafiador finalizar uma Tese! Penso que não é possível realizar uma

Travessia Final, mas apenas delimitar o Final de uma Travessia, que, no fundo, tem

potencial para se desdobrar em outros caminhos que não necessariamente serão trilhados por

mim, mas talvez por outros pesquisadores que virão a desenvolver investigações posteriores

sobre esse tema.

Como forma de propor uma conclusão possível, além da carta, apresento, como

síntese das lições de pesquisa, os principais elementos que apontam limites e possibilidades e

que ajudam a responder ao objetivo principal: analisar o grupo colaborativo como fonte de

desenvolvimento para profissionais que trabalham com demandas educacionais.

• Considero que um dos principais inéditos trazidos por essa investigação é a fundamentação na Teoria Histórico-Cultural para discutir a temática do desenvolvimento profissional. Os conceitos não foram apenas pano de fundo, mas ferramentas analíticas que ajudaram a apurar meu olhar sobre o material empírico. A organização do material, guiada pelo Paradigma Indiciário e pelos Núcleos de Significação contribuiu para um olhar atento e profundo sobre o grupo, em busca de indícios e elaborações possíveis e a tríade situação social de desenvolvimento-drama-perejivanie contribuiu para revelar a dialética social-individual no grupo, indicando como as relações sociais foram a origem das mudanças no processo de desenvolvimento das participantes.

• Nem toda relação social emerge como uma situação social de desenvolvimento, para

que possibilitar uma mudança é preciso partir de princípios e estratégias coerentes com os objetivos da proposta e com uma concepção de ser humano que leve em conta toda a complexidade do processo de ensino e de aprendizagem. Neste trabalho, considerando o grupo como fonte de desenvolvimento profissional, a colaboração e as interações entre as participantes foram princípios essenciais. A partir deles, as ações e estratégias pautaram-se no diálogo e produção conjunta de conhecimentos; no exercício de coordenar o grupo e ao mesmo tempo incluir as participantes como corresponsáveis; no exercício de uma postura reflexiva ao longo dos encontros de modo a não apresentar uma ementa pronta, mas construir a proposta ao longo do curso.

• O processo de desenvolvimento profissional foi compreendido em termos do conceito de drama: se em geral as colisões, embates e contradições em um grupo de formação são considerados um impasse, nesta proposta o caráter dramático das interações foi trazido na centralidade do processo. Os incômodos, as angústias, as dúvidas tiveram espaço para serem discutidos no grupo e expressos também nos registros reflexivos como forma de impulsionar o desenvolvimento profissional das participantes.

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• O drama das interações também foi ferramenta de análise, oferecendo para mim indícios importantes de quais situações foram mais desafiadoras e propulsoras de mudanças. No decorrer da escrita, meu exercício foi enfatizar as crises (das participantes e as minhas) e usá-las como forma de interpretar o material empírico, deixando emergir as mudanças que aconteceram ao longo do processo, como por exemplo a decisão em partilhar meu diário de bordo com as participantes. Aqui ressalto, portanto, o pesquisador como sujeito inteiramente envolvido e vulnerável ao processo de pesquisa e a importância de refletir sobre suas ações, para mudar o curso da investigação, se necessário, e para fazer da produção de material empírico um processo vivo de produção de conhecimento.

• O fato de propor a construção conjunta da proposta com as participantes, exercitando

uma escuta cuidadosa aos dilemas emergentes e ao processo não significou que cheguei no grupo de mãos vazias. Ao mesmo tempo em que é primordial considerar o manejo do grupo, por meio de ações que valorizem um posicionamento horizontal e colaborativo a verticalidade na coordenação da proposta não pode ser excluída (SÁ-CHAVES, 2012). A construção do conhecimento é um processo de mediação simbólica (VIGOTSKI, 1934/2001) e o desenvolvimento profissional implica necessariamente na formação de conceitos científicos, por meio da articulação de conceitos teóricos consistentes e coerentes com as temáticas discutidas no coletivo. No caso desta proposta formativa, cujo assunto central foi o trabalho com demandas educacionais, as contribuições da Psicologia Escolar e Educacional Crítica foram balizadoras de entendimentos e possibilidades de superação dos dilemas vivenciados pelas participantes. Aqui ressalto, portanto, a centralidade do conhecimento científico, crítico e historicamente situado e que, ao mesmo tempo, precisa de ações pedagógicas sensíveis, respeitosas e humanas para ser aprendido.

• Os saberes produzidos durante os encontros sobre o trabalho com demandas educacionais revelam a importância de que o enfrentamento dos problemas da prática deve acontecer no coletivo e que a Psicologia ou qualquer outra área não consegue por si só respostas para todas as questões – é fundamental propor espaços de desenvolvimento profissional fundamentado em relações solidárias de diálogo e colaboração. A partir de um convite para psicólogos, o surgimento de outros profissionais interessados nesta temática sinaliza a necessidade de diálogo entre as várias áreas de conhecimento. A Psicologia Escolar e Educacional perpassou nossas conversas, guiando nossos entendimentos sobre o trabalho com demandas educacionais, porém a diversidade do grupo aponta para a urgência de práticas solidárias e multidisciplinares e essa peculiaridade sem dúvida nos ajudou a um olhar mais amplo, generoso e compreensivo sobre os dilemas trazidos por cada uma.

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• Pensar nas demandas educacionais exige um olhar amplo, crítico e contextualizado, pois concepções lineares e simplistas acabam levando a posicionamentos fatalistas e culpabilizantes, que enxergam ou uma ou outra dimensão dos problemas que emergem, enquanto um olhar que parte de elementos histórico-culturais leva ao enfrentamento dos problemas com vistas à transformação social (GUZZO, 2007). Nesse sentido, assumo que o grupo foi uma experiência limitada diante da complexidade das demandas emergentes nos contextos educativos e do esforço que ainda é preciso para superá-las. Ainda assim, considero que conseguimos pensar em algumas possibilidades para muitas questões e angústias levantadas inicialmente. Porém, mais do que respostas, vejo que a experiência do grupo possibilitou mobilizações, questionamentos e inquietações, sobretudo por romper com um modelo de desenvolvimento profissional baseado na transmissão de conhecimentos, trazendo à tona a centralidade na colaboração. Mais do que respostas prontas, o grupo proporcionou o conhecimento sobre o processo, por meio de questionamentos e experiências sensíveis a partir das interações sociais. Diferente de cursos tradicionais, em que a formação se pauta prioritariamente no ensino técnico, por meio da memorização e da transmissão de conteúdos, ter o grupo como fonte significou valorizar a singularidade das pessoas, legitimando-os na construção da proposta.

• Por fim, por mais simples e recorrente que pareça afirmar que as relações interpessoais são importantes e que as dimensões pessoais e profissionais são indissociáveis, é preciso assumir que esses são princípios ainda longe de serem incorporados no processo de formação profissional, seja na graduação ou em espaços de formação continuada. A dimensão técnica ainda é priorizada e inserida nas ações formativas desconsiderando a subjetividade, pessoalidade e afetividade. Por isso defendo reiteradamente nesta Tese que desenvolver profissionalmente é se desenvolver como pessoa. Defendo desenvolvimento profissional como uma importante dimensão do processo de desenvolvimento humano, a partir de mudanças qualitativas nas funções psicológicas, processo que acontece mediante a internalização de interações sociais emocional e cognitivamente desafiadoras, que incluem a formação de conceitos científicos, os vínculos afetivos e um processo educacional sensível e humano, complexo e contínuo. Para além das mudanças proporcionadas para as participantes deste grupo, espero que, a partir de propostas como esta, as práticas educativas no campo do desenvolvimento profissional se modifiquem. Espero que as lições aprendidas a partir dessa experiência singular possa inspirar outras ações formativas para profissionais de várias áreas, para que outros eus solitários encontrem solidariedade em espaços de colaboração, escuta e diálogo.

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REFERÊNCIAS

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Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, v. 18, n. 1, 1773-180, 2014. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141385572014000100019&script=sci_arttext> Acesso em 15 Mar 2015. TANAMACHI, Elenita de Rício; MEIRA, Marisa Eugênio Melillo. A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em Psicologia e Educação. In: Psicologia escolar: práticas críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, pp. 11-62. TANAMACHI, Elenita de Rício; PROENÇA, Marilene.; ROCHA, Marisa Lopes (Orgs.). Psicologia e Educação: Desafios teórico-práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. VERESOV, Nikolai. Marxist and non-Marxist aspects of the cultural-historical psychology of L. S. Vygotsky. Outlines: Critical Practice Studies, n. 1, pp. 31-49, 2005. Disponível em: <http://www.outlines.dk/contents/Outlines051/Veresov05.pdf> Acesso em 15 Mar 2015. ___________. Introducing cultural-historical theory: main concepts and principles of genetic research methodology. Cultural-historical psychology, 4, 83-90, 2010. Disponível em:< http://nveresov.narod.ru/KIP.pdf> Acesso em 15 Set 2015. ___________. Refocusing the lens on development: Towards genetic research methodology. In: FLEER, Marilyn.; RIDWAY, Avis. (Orgs.) Visual methodologies and digital tools for researching with Yong Children. Springer, 129-149, 2014. ___________. Duality of Categories or Dialectical Concepts? Integrative Psychological and Behavioral Science, v. 50, 244-256, 2015. Disponível em: <DOI 10.1007/s12124-015-9327-1> Acesso em: 10 Jan 2016. VERESOV, Nikolai, FLEER, Marilyn. Perezhivanie as a theoretical concept for researching Young children’s development, Mind, culture and activity, v. 23, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/10749039.2016.1186198> Acesso em: 10 Mar 2017. VIÉGAS Lígia de Souza e ANGELUCCI, Carla Biancha. (Orgs.) Políticas Públicas em Educação & Psicologia Escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. VICENTINI, Adriana Alves Fernandes. Narrativas autobiográficas de professores-formadores na educação de jovens e adultos: lugares reinventados em comunhão. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa cientifica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2. ed., 1979. VYGOTSKI, Lev Seminovich. The Collected Works of L. S. Vygotsky: The History of the development of Higher Mental Functions (Vol. 4, pp. 97-120). New York: Spriger Science+Business Media New York, 1997. (Escrito em 1931). ___________. The Diagnostics of Development and the Pedological Clinic for Difficult Children. In: The Collected Works of L. S. Vygotsky: The Fundamentals of Defectology (Vol. 2, pp. 241-291). New York: Spriger Science+Business Media New York, 1997. (Escrito em 1931).

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VYGOTSKY, Lev Seminovich. The problem of environment. In: R. Van der Veer, R. & Valsiner, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1998, pp. 338-354. (Escrito em 1934). ___________. (1929/1989). Concrete human psychology. Soviet Psychology, v. 27, n. 2, pp. 53–77, 1989. (Escrito em 1929) VIGOTSKI, Lev Seminovich. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Escrito em 1925). ___________. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 71, 21-44, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302000000200002> Acesso em 10 Mar 2015. ___________. O significado histórico da crise na psicologia. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Escrito em 1927) ___________. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Escrito em 1934)

REFERÊNCIAS DAS EPÍGRAFES

ANDRADE, Fernando Teixeira [1946-2008] Tempo de Travessia. Retirado de: <http://memoriaipms.blogspot.com.br/2012/09/tempo-de-travessia-fernando-teixeira-de.html> FIGUEIREDO, Flora. Rotatória. In: Limão Rosa. Novo Século Editora, 2009. GALEANO, Eduardo. A função da arte 1. In: O livro dos abraços. Tradução Eric Nepomuceno. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2002. __________. Para que serve a utopia. In: As palavras andantes. Tradução Eric Nepomuceno. 5. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. MACHADO, Antonio [1875-1994], Poema Cantares. Retirado de: <http://blogs.utopia.org.br/poesialatina/cantares-antonio-machado/> NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Travessia. Álbum: Travessia, 1967. NÓVOA, ANTÓNIO. Cartas a um jovem investigador: Conferência de Abertura do XII Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2014. Investigar em Educação, IIª Série, n. 3, 2015. QUINTANA, Mário [1906-1994], Poema O Mapa. Retirado de: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/quinta1.html>

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APÊNDICES Apêndice 1 – Referências dos trabalhos selecionados no levantamento bibliográfico em bases internacionais77 AMADOR, Julie; WALLIN, Abraham; AMADOR, Paul. Professional Development of Multi-experienced Educators through a book study: fostering mentoring relationships. Mentoring and Tutoring: partnership in learning v. 23, n. 4, 273–292, 2016. ARMOUR, Kathleen M.; YELLING, Martin. Effective Professional Development for Physical Education Teachers: The Role of Informal, Collaborative Learning. Journal of Teaching in Physical Education, v. 26, 177-200, 2007. BARTLEET, Brydie-Leigh; HULTGREN, Ralph. Sharing the podium: exploring the process of peer learning in professional conducting. British Journal of Music Education, v. 25, 193-206, 2008. BRADLEY, Stacy; DRAPEAU, Martin; DeSTEFANO, Jack. The Relationship Between Continuing Education and Perceived Competence, Professional Support, and Professional Value Among Clinical Psychologists. Journal of Continuing Education in The Health Professions, 32(1):31–38, 2012. DUNCAN-HOWELL, Jennifer. Teachers making connections: Online communities as a source of professional learning. British Journal of Educational Technology, v. 41, n. 2, 324–340, 2010. ELFER, Peter Emotion in nursey work: work discussion as a model of critical professional reflection. Early Years, v. 32, n. 2, 129-141, 2012. ERNEST, Pauline et al. Online teacher development: collaborating in a virtual learning environment. Computer Assisted Language Learning, v. 26, n.4, 311-333, 2013. EUN, Barohny. A Vygotskyan theory-based professional development: implications for culturally diverse classrooms. Professional Development in Education, v. 37, n. 3, 319-333, 2010. EUN, Barohny. Making connections: grounding professional development in the developmental theories of Vygotsky. The teacher Educator, v. 43, n. 1, 134-155, 2008. GLEESON, Catherine. Education beyond competencies: a participative approach to professional development. Medical Education, v. 44, 404-411, 2010. GULDBERG, Karen. Adult learners and professional development: peer-to-peer learning in a networked community. International Journal of Lifelong Education, v. 27, n. 1, 35-49, 2008.

77 Como a busca foi feita com o acesso às bases de dados da biblioteca da Monash University, alguns artigos têm acesso livre e outros não, por isso não foram incluídas nas referências o link de acesso aos artigos, uma vez que muitos deles requerem pagamento para download na íntegra.

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HINDIN, Alisa; MOROCCO, Catherine Cobb; MOTT, Emily Arwen; AGUILAR, Cynthia Mata. More than just a group: teacher collaboration and learning in the workplace. Teachers and Teaching, v. 13, n. 4, 349-376, 2007. HORN, Ilana Seidel; KANE, Britnie Delinger. Opportunitiesfor professional learning in mathematics teacher workgroup conversations: relationships to instructional expertise. Journal of the Learning Sciences, v. 24, n. 3, 373-419, 2015. KILLEAVY, Maureen; MOLONEY, Anne. Reflection in a social space: Can blogging support reflective practice for beginning teachers? Teaching and Teacher Education, v. 26 1070-1076, 2010. KOPP, Birgitta; HASENBEIN, Melanie; MANDL, Heinz. Case-based learning in virtual groups – collaborative problem solving activities and learning outcomes in a virtual professional training course. Interactive Learning Environments, v. 22, n. 3, 351-372, 2014. MASUDA, Avis; EBERSOLE, Michele. Beginning Teachers’ Study Groups: a place to continue critical conversation about teaching writing. The New Educator, v. 8, n. 2, 160-172, 2012. MEIRINK, Jacobiene A.; MEIJER, Pauliene C.; VERLOOP, Nico. A closer look at teachers’ individual learning in collaborative settings. Teachers and Teaching, v. 13, n. 2, 145-164, 2007. ORLAND-BARAK, Lily. Convergent, divergent and parallel dialogues: knowledge construction in professional conversations. Teachers and teaching, v. 12, n. 1, 13-31, 2007. PHELAN, Anne M.; BARLOW, Constance A.; IVERSEN, Sharon. Occasioning learning in the workplace: the case of interprofessional peer collaboration. Journal of Interprofessional Care, v. 24, n. 4, 415-424, 2009. SHABANI, Karim; KHATIB, Mohamad; EBADI, Saman. Vygotsky's Zone of Proximal Development: Instructional Implications and Teachers' Professional Development. English Language Teaching, v. 3, n. 4, 237-248, 2010. WARFORD, Mark K. The zone of proximal teacher development. Teaching and Teacher Education, v. 27, 252-258, 2011.

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Apêndice 2 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Você está sendo convidado (a) a participar da pesquisa “Desenvolvimento profissional do psicólogo escolar: contribuições da formação coletiva e da reflexividade”, realizada pela psicóloga e estudante de Doutorado Fabiana Marques Barbosa Nasciutti, orientada pela Profa. Dra. Ana Maria Falcão de Aragão, ambas da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. O objetivo dessa pesquisa é propor um grupo de formação para psicólogos escolares na Faculdade de Educação da UNICAMP, a fim de identificar os dilemas vivenciados na prática, buscando a superação destes no coletivo, por meio de um trabalho pautado na reflexividade. Assim, nosso intuito é analisar as contribuições de um trabalho coletivo baseado na reflexividade para o campo da formação de psicólogos escolares.

Ao aceitar fazer parte desta pesquisa, você será convidado (a) a participar dos encontros em grupo, composto por outros psicólogos escolares. Estes encontros ocorrerão na Universidade Estadual de Campinas em dias, horários e locais a serem definidos. Os encontros serão audiogravados e transcritos pela pesquisadora. Este e todos os dados produzidos no decorrer do estudo serão utilizados apenas com fins relacionados à presente pesquisa e sua identidade será sempre mantida em sigilo, sobretudo na divulgação ou publicação dos resultados.

Sua participação nessa pesquisa é voluntária e você não receberá nenhuma remuneração para isso. Além disso, você poderá desistir de participar a qualquer momento, sem que isso lhe traga qualquer prejuízo. Esta pesquisa não apresenta riscos previsíveis à sua saúde e você poderá entrar em contato com as pesquisadoras em qualquer situação relacionada à sua participação ou quando julgar necessário.

Esclarecido e concordando com o que foi colocado: Eu, _____________________________________________________________, aceito participar da pesquisa “Desenvolvimento profissional do psicólogo escolar: contribuições da formação coletiva e da reflexividade”.

Campinas, ____ de ________________ de 201__. Assinatura: _________________________________

Pesquisadora: Fabiana Marques Barbosa Nasciutti Pesquisadora: Profa.Dra.Ana Maria Falcão de Aragão Endereço para contato com os pesquisadores: Faculdade Educação da Universidade Estadual de Campinas - Rua Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas – SP, CEP: 13083-865. Tel: (19) 3521-6715. Endereço do Comitê de Ética em Pesquisa: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)- Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)- Rua: Tessália Vieira de Camargo, 126- Distrito de Barão Geraldo- Campinas – SP, CEP: 13083-887. Telefone: (19) 3521-8936. E-mail:[email protected]

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Apêndice 3 – Folder de Divulgação do Curso

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Apêndice 4 – Ficha de Inscrição

FICHA DE INSCRIÇÃO

A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO E OS DILEMAS EM CONTEXTOS EDUCATIVOS: REFLEXÕES,

CRÍTICAS E POSSIBILIDADES COLETIVAS DE SUPERAÇÃO

Complete todos os campos com seus dados e salve o documento preenchido. Envie esta ficha completa para o e-mail: [email protected] Nome completo: Data de nascimento: RG: e-mail: Telefone residencial: Telefone celular: Endereço Rua: Número: Complemento: Bairro: CEP: Cidade: Última formação Curso: Instituição: Local de trabalho: Cargo:

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Apêndice 5 – Carta convite

Caro/a participante, Você está inscrito/a no curso A atuação do psicólogo e os dilemas em contextos educativos: reflexões, críticas e possibilidades coletivas de superação a ser oferecido pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada – GEPEC da Unicamp.

Disponibilizamos abaixo algumas informações importantes sobre o curso, para que você possa entender melhor nossa proposta, organizar seus horários e viabilizar sua presença. Pedimos que após a leitura deste documento você envie um e-mail para [email protected] confirmando o interesse em frequentar o curso.

Esta medida se faz necessária para organizarmos a proposta de acordo com o número de inscritos. Sendo assim, se você não tiver certeza ou por algum motivo não puder mais estar conosco, pedimos que também manifeste sua desistência.

Datas dos encontros: 24/9; 01/10; 08/10; 15/10; 22/10; 29/10; 05/11; 12/11

Horário: Das 18h às 20h00

Local: Faculdade de Educação da UNICAMP

Sala ED-07 (Prédio Anexo) Av. Bertrand Russell, 801

Cidade Universitária "Zeferino Vaz”

Coordenadoras do curso: Fabiana Marques Barbosa Nasciutti Ana Maria Falcão de Aragão Ementa do curso:

Diante dos embates, enfrentamentos e dificuldades que nós psicólogos/as vivienciamos em contextos educativos, o curso será um espaço para estudo, reflexão e discussão sobre o

trabalho do psicólogo na Educação, em que poderemos debater coletivamente as possibilidades de atuação em buscas por caminhos alternativos que possam nos ajudar, a

partir de um corpo de conhecimentos bem fundamentado, a alcançar os objetivos pretendidos.

Objetivos gerais:

• Identificar e compartilhar os dilemas vivenciados na prática, buscando a superação destes no coletivo, por meio de um trabalho pautado na reflexividade;

• Fundamentar as discussões em referenciais teóricos que subsidiem e colaborem para pensar em possibilidades nas atuações cotidianas;

• Refletir sobre o papel do psicólogo em contextos educativos. Metodologia de trabalho:

A proposta é que o grupo participe do desenvolvimento dos encontros, decidindo coletivamente temas e assuntos a serem debatidos e conduzindo as discussões por meio do diálogo e de narrativas sobre vivências da prática profissional. Ao mesmo tempo, para atender aos objetivos da proposta, algumas atividades serão sistematizadas, a fim de facilitar as discussões dentro da temática pertinente. Para isso, utilizaremos recursos, tais como: dinâmicas de grupo; elementos audiovisuais; propostas de leituras relacionadas aos temas em debate, tanto acadêmicas quanto do campo da arte, por considerarmos que as

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produções científicas são importantes para subsidiar a as discussões teóricas e a compreensão da prática, ao mesmo tempo em que trabalhos ligados à arte também são fundamentais para o desenvolvimento de um olhar sensível e complexo sobre as questões a serem discutidas. Portanto, haverá necessidade de realização de leituras e preparação de materiais para os encontros. Forma de avaliação:

A avaliação será processual, envolvendo a realização das propostas e atividades individuais e em grupo, bem como o registro narrativo dos encontros. É necessário mínimo de 85% de presença relativa ao total de horas-aula para a emissão do certificado do curso. Observações:

Os participantes são responsáveis pela aquisição dos materiais necessários para cada encontro. As leituras, tanto sugeridas pelas coordenadoras quanto decididas pelo grupo, serão imprescindíveis para o desenvolvimento satisfatório da proposta. Será emitido certificado aos participantes que cumprirem as exigências avaliativas.

Como se trata de espaço de produção de conhecimento acadêmico, os registros dos encontros poderão ser utilizados posteriormente pelas coordenadoras como material de pesquisa e análise, desde que devidamente autorizado e documentado pelos participantes envolvidos nas atividades.

Esperamos contar com sua presença e participação!

Abraços, Fabiana e Ana