UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · Quando ouvia isso ficava feliz, e ainda...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ALESSANDRA MARIA DOS SANTOS ALVES A VIDA NA ESCOLA E A ESCOLA DA VIDA CAMPINAS 2005

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ALESSANDRA MARIA DOS SANTOS ALVES

A VIDA NA ESCOLA E A ESCOLA DA VIDA

CAMPINAS

2005

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ALESSANDRA MARIA DOS SANTOS ALVES

A VIDA NA ESCOLA E A ESCOLA DA VIDA

Memorial apresentado ao Curso de

Pedagogia – Programa Especial de Formação

de Professores em Exercício nos Municípios

da Região Metropolitana de Campinas, como

um dos pré­requisitos para conclusão da

Licenciatura em Pedagogia.

CAMPINAS

2005

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“E voltou então à raposa: ­ Adeus, disse ele... ­ Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com

o coração. O essencial é invisível para os olhos. ­ O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se

lembrar. ­ Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante... ­ Foi o tempo que perdi com minha rosa... Repetiu o principezinho a fim de se

lembrar. ­ Os homens esquecem essa verdade, disse a raposa. Mas tu não deves

esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...

­ Eu sou responsável pela minha rosa... Repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.”

(trecho extraído de: “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint­Exupérie)

A cada dia um novo encontro...

A cada encontro, uma nova descoberta.

Momentos para refletir.

Espaços para partilhar.

Aprender é dividir.

Partilhar é se doar.

Cada um trouxe a si mesmo.

Levamos um pouco de todos nós.

Bons momentos...

Boas perguntas...

Algumas respostas...

Fica desde já a saudade.

E a certeza de que sempre há mais para saber.

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Exclusivamente ao meu querido filho,

Felipe,

que inúmeras vezes pediu que

eu ficasse com ele,

deixando lágrimas

correrem pelo seu rosto...

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO.........................................................................................................

1 EU E A ESCOLA: o começo de tudo!........................................................................

2 EU E O MAGISTÉRIO..............................................................................................

3 EU E MINHA PROFISSÃO ......................................................................................

4 EU E A UNICAMP: realização de um sonho! ..........................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................

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APRESENTAÇÃO

Quando mencionado, no primeiro semestre do Curso de Pedagogia, confesso que

fiquei apreensiva ao ouvir Memorial de Formação e não Trabalho de Conclusão de Curso.

Memorial de Formação. Algo tão novo e exigente para alguém que está preste a tomar

medicamentos para memória.

Naturalmente, pensei eu, deixarei várias páginas em branco que simbolizariam os

lapsos de memórias que constantemente estavam ocorrendo comigo – e ainda acontecem,

acredite – constantemente!

O tempo foi passando... A preocupação aumentando.

No decorrer do curso pouco se falava sobre o Memorial de Formação. A agonia me

tomava conta.

Já nos últimos semestres, questões foram sendo levantadas, informações foram

norteando e, quando mal percebi, aqui estou eu: escrevendo sobre minhas memórias!

Aqui então deixo as memórias de meu passado, que se limitam a minha vida escolar

desde a infância até minha formação acadêmica – universidade. Descrevi, sucintamente

dividindo em capítulos para melhor entender meu processo de formação, a saber: Eu e a

Escola: o começo de tudo! – no qual relato sobre minhas experiências da 1ª a 8ª série –; Eu o

Magistério, através do qual coloco como foi esta vivência; Eu e minha Profissão, no qual

consta todo meu trabalho como professora de educação infantil; e por último, Eu e a

Unicamp: a realização de um sonho!, que como o próprio nome diz, relato como foi

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experimentar vivências na universidade e trazer a teoria para minha prática, colocando­a

como complemento no desenvolvimento de minhas aulas.

A VIDA NA ESCOLA E A ESCOLA DA VIDA

1 Eu e a Escola: o começo de tudo!

Minhas recordações têm início no primeiro dia de aula, primeira série (1983): eu

sentada na penúltima carteira, na segunda fila, caderninho aberto... um lápis... uma borracha...

olhos atentos à porta. A professora entra na sala, diz bom dia. Vira­se para lousa, escreve algo

e pergunta: “quem sabe uma palavra que começa com A?”. Um silêncio percorreu a classe até

que eu, com o coração batendo muito forte e apressado, respondi: “aio”. Uma voz dura me

corrige imediatamente, me deixando muito envergonhada: “NÃO É AIO, É ALHO! NÃO

SABE FALAR?”.

Pobre professora, ela talvez não soubesse que aquela menininha, que pensou muito,

em várias palavras e que escolheu a ‘melhor’ para dizer, era uma criança de fazenda, que

vivia cercada de “caipiras”, que não conhecia a norma culta da língua portuguesa e que se

esforçou ao máximo para responder corretamente. Talvez também, ela não havia percebido

que estava numa escola rural, que todas aquelas crianças estavam apreensivas e ansiosas pelo

primeiro dia na escola. E, talvez, nem imaginou que sua resposta poderia causar um trauma

naquela menina – e causou, porque hoje esta menina tem receio em falar em público por medo

de falar errado, muitas vezes dá resposta só no pensamento com receio de estar equivocada.

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Contudo, não é somente este fato que ficou marcado nos meus primeiros anos na

escola. Muitas coisas boas aconteceram. E agora, pensando nesta fase vivida, consigo voltar

ao tempo e enxergar a escola, os meus colegas, as professoras (que vinham da cidade para

lecionar ali), a merendeira, as brincadeiras. Consigo sentir novamente o gosto daquela

bolachinha com leite, da sopa de fubá, do arroz doce... Consigo ouvir minha mãe dizendo

“fais” tudo certinho na “iscola”, obedeci a professora, não respondi ela, “vorta” direto para

casa” ... Consigo me ver tomando banho cedinho, colocando a roupa, calçando o chinelo,

pegando a mochila e indo contente para escola... Consigo me ver tentando ensinar minha vó,

minha querida vó ‘analfabeta’, a fazer pelo menos bolinhas e tracinhos no papel (mas era

muito difícil, ela mal conseguia segurar o lápis, e logo desistia)... Consigo sentir o perfume da

professora, a mais querida, que por sinal, se tornou minha madrinha de Crisma, por ter sido

tão significativa pra mim, por ter me respeitado como criança, por ter me dado atenção, por

ter falado baixinho comigo, por ter levado os filhos dela na escola para nos conhecer, por ter

me deixado entrar em seu carro para ver o velocímetro enquanto o carro andava, por me

incentivar a escrever histórias, por ter sido um exemplo de professora e por sempre me elogiar

e dizer que eu seria uma ótima professora. Foi esta mesma professora, que ficou comigo por

dois anos seguidos (terceira e quarta série) que me apoiou a seguir a sua profissão.

Mas onde será que esta menina do campo está com a cabeça? Ninguém daquela

fazenda havia estudado mais que a quarta série, pois a escola oferecia somente o primário,

ficava longe da cidade e todos depois disso tinha que ir para roça, ou plantar tomate, ou cortar

cana. Vontade eu me lembro que todos tinham. Minhas tias sempre falavam que queriam

estudar mais, uma queria ser desenhista, outra queria ser modelo, outra só queria estudar,

casar e ter filhos...

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Esta menina estava com a cabeça longe, sonhava em ser professora, sonhava em ser

dançarina, sonhava em ser médica, sonhava que no futuro tinha uma casa igual a do patrão da

fazenda, sonhava que tinha um carro, sonhava alto!

E junto comigo sonhavam meus pais. Eles sonhavam igualzinho a mim e me diziam

que iriam fazer o possível para que eu estudasse e tivesse tudo o que eles não puderam ter.

Quando ouvia isso ficava feliz, e ainda pequena ficava preocupada em como eles

conseguiriam isso se meu pai trabalhava na lavoura, minha mãe era dona casa, ambos sem

estudos e com dinheiro somente para despesas da casa, da humilde casa. Mesmo pensando

nessas impossibilidades, preferia acreditar que um dia iria conseguir com a força e

determinação de meus pais. Eu sentia confiança quando eles falavam.

No final da quarta série recordo que meu pai estava procurando emprego na cidade,

uma casa para alugar, para que eu não ficasse nenhum ano sem ir à escola. Via meu pai voltar

desanimado quando não encontrava, via meu pai sair confiante, outra vez à procura.

Aquele ano terminou, o outro começou e nada.

A solução foi eu morar com minha tia, numa cidade próxima. A escola ficava a dois

quarteirões de sua casa. O combinado era eu ficar lá e a cada quinze ou vinte dias meu pai ir

me buscar no final de semana. Mas eu sentia muita saudade dos meus pais, do meu único

irmão, da fazenda, das vacas, dos porcos, das galinhas, das árvores, das panelinhas de barro,

da minha vó – eu queria de novo, tentar ensiná­la a escrever, agora, pelo menos o seu nome –

e então meu pai ia me buscar todas as sextas­feiras, no seu horário de almoço e me levava de

volta, na madrugada de segunda­feira, para ainda dar tempo de voltar ao trabalho.

Esta rotina teve duração de apenas três meses, pois logo meu pai conseguiu emprego e

então mudamos para outra cidade – na qual moro até hoje e pretendo morar sempre: pequena

Monte Mor.

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Não foi muito fácil para eu me adaptar com a vida da cidade. O cotidiano na fazenda

era muito diferente daquilo tudo: todos os dias eu ajudava tocar as vacas para o curral; todos

os dias, depois da aula, eu pegava um copinho com açúcar e ia para a cocheira esperar a hora

de ordenhar as vacas, colocava­o debaixo da teta e via aquele leitinho cremoso encher o copo,

eu tomava com gosto; todos os dias eu brincava de balançar no cipó das árvores; todos os dias

eu escorregava no barranco com pedaços de papelão; todos os dias eu brincava de fazer

objetos com barro (panelinha, sofá, caminhão, fogãozinho, televisão...) e com legumes (nos

quais eu enfiava palitos como se fossem pernas dos bichos que eu imaginava); todos os dias

eu subia em árvores para lá em cima ficar comendo frutas (manga, goiaba...); todos os dias eu

ajudava a minha vó a molhar as plantas da horta, ajudava a dar comida aos porcos e às

galinhas; todos os dias eu brincava muito de amarelinha desenhada na terra, de pular corda, de

pega­pega, de esconde­esconde, de balança­caixão, de equilibrar no tambor imaginando estar

no circo, de pedrinhas; de casinha, de boneca de pano (pois de plástico só tive uma única, com

nove anos de idade); todos os dias eu assistia televisão por pouco tempo, somente a noite com

minhas tias e logo adormecia; todos os dias eram sempre assim e eu não me cansava.

Já na cidade, mesmo ela sendo considerada pequena, eu mal podia ficar na rua para

brincar, era perigoso – assim dizia minha mãe. Ao invés de animais, eram carros “soltos” nas

ruas. A rotina se baseava em ir para escola, ficar dentro de casa ajudando minha mãe na

limpeza, assistir televisão e só. Esgotava minhas energias somente nas atividades de educação

física (vôlei e queimada – que “maravilha!”).

Tive dificuldade também em enfrentar o preconceito das outras crianças em relação às

minhas roupas simples (feitas pela minha mãe), ao meu jeito de falar “errado”. Sentia

vergonha de estar perto daquelas menininhas “bem vestidas”, que levavam todos os dias

dinheiro para comprar lanche e que jamais comiam a merenda da escola; eu tinha vergonha de

puxar conversa e de falar, pois às vezes percebia risos e cochichos sobre mim. Esta situação

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foi a mais difícil de enfrentar. Não ter a rotina da fazenda era pouco perto da vergonha que eu

passava.

Mas com o tempo fui me acostumando, prestando atenção na maneira como as pessoas

falavam para então aprender. Prestava também atenção na escrita dos livros, principalmente

nos de Língua Portuguesa, na conjunção dos verbos... Eu não queria errar mais. Recordo­me

que eu tentava corrigir minha mãe quando ela dizia palavras “incorretamente” (segundo a

norma culta), mas ela nunca aceitou, então com o tempo fui deixando­a falar de sua própria

maneira porque ficava muito brava e eu com muito medo, pois não entendia o porquê de sua

negação para “aprender” a falar.

As lembranças que tenho da época do ginásio, são mínimas. Quando penso nesta fase

sinto um vazio de informações. Poucos episódios emergem de meu pensamento: vários

professores, muitas matérias (disciplinas), muitas equações, resumo de livros (dos quais nem

sabia do que se tratava o conteúdo), memorização de verbos, classificação de palavras,

“decoreba” de palavras em inglês, história do Brasil, aulas de Educação Moral e Cívica,

mapas, frações, micróbios, bactérias, citoplasma, regras de gramática...

Mas também algo de bom: as excursões ao Play Center, ao Zoológico de São Paulo...

Minhas participações nas aulas de Educação Física – nas quais eu fazia apresentação de

danças, de ginástica, com coreografias criadas por mim e por uma colega – e nas aulas de

Educação Artística, em que eu adorava fazer teatro e dramatizações de piadas, imitação do

programa Chaves, exibido na TV.

Lembro­me também que eu sempre questionava os professores dos textos e atividades

passados na lousa, sendo que coisa igual estava no livro, das vezes em que eu e outros alunos

escrevíamos as “lições” na lousa enquanto eles ficavam sentados, sem fazer nada. As

respostas que tinha eram sempre as mesmas: “você gosta, e isso vai te ajudar para quando for

professora”. E eu respondia sem medo de ser punida: “quando eu for professora vou dar aula,

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não vou ficar sentada!”. E realmente nunca fui punida por questionar e falar desta forma. Por

quê?

Porque, creio eu, estes professores achavam melhor me ignorar do que dar conversas a

uma “aborrescente”, que embora estivesse falando a verdade, não sabia o que estava falando.

Verdadeiramente naquela época, com treze ou quatorze anos, não sabia mesmo o que eu

estava querendo com aquelas interrogações e comentários. No entanto hoje me vejo, lá no

passado, sendo uma adolescente crítica, procurando ver e analisar “erros” e “acertos” dos

professores, dos diretores, dos adultos de convivência – para tomar cuidado quando estivesse

no lugar deles – embora não fosse levada muito a sério.

Não somente estas preocupações permeavam meus pensamentos, mas a preocupação

com a minha família. Pois nesta época meu pai, assim que mudamos para a cidade, pode

trabalhar por apenas oito meses. Devido a uma doença adquirida através de seu trabalho na

roça – artrite reumatóide – ficou impossibilitado de exercer qualquer função. Esta situação

nos abalou muito, passamos por necessidades, mas graças à força e determinação de meus

pais conseguimos superar: minha mãe virou costureira, e meu pai fazedor de tudo – chinelo,

cortina de fitas de plástico, cadeiras de fio de conduíte, carteiras e cintos de couro, bonecas de

pano, sacolas de nylon e bonés promocionais – estes dois últimos produtos resistiram e é

nossa sobrevivência nos dias de hoje.

Eu e meu irmão brincávamos com os colegas e vizinhos todos os dias na rua (contra a

vontade de minha mãe pois ainda achava perigoso) de taco, de queimada, bem de tardezinha,

ao escurecer, pois quando chegávamos da escola ajudávamos meu pai na sua pequena

confecção. Muitas vezes o presenciei arrastar sua perna de tanta dor, sem forças para levantar

uma colher, mas nunca o vi deitado em horário de trabalho. Isso ficou marcante pra mim. Tão

marcante que por vários momentos me ausentei para não vê­lo naquela situação. Tão doloroso

que também hoje procuro estar longe para não vê­lo neste estado. Mas tenho orgulho disso.

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Orgulho de ter pais trabalhadores, honestos, humildes, solidários, num mundo onde os

princípios da moral e os valores estão se perdendo.

Nesta época de adolescência, com tanta coisa para se pensar, eu nem me dava conta de

que a realização de meu sonho estava sendo iniciada. A menina da roça estava terminando o

ginásio. Deixou pra trás a fazenda, os colegas – que diferente dela, pararam de estudar e

trabalhavam intensamente na colheita de tomate e de cana – e já estava prestes a cursar o

magistério.

Restava­me cursar o magistério, pois as práticas de docência faziam parte do meu

cotidiano desde a infância, quando tentava ensinar minha vó a escrever, quando brincava de

escolinha com os amigos, em que eu era sempre a professora, quando ensinava meu irmão nas

suas tarefas de casa, quando liderava as apresentações de dança e de teatro, quando era

auxiliar da professora de catequese, quando com apenas treze anos ensinava datilografia a

minha vizinha e a minha tia, em casa – pois eu havia iniciado o curso com nove anos de idade,

quando ainda morava na fazenda e meu pai me levava à cidade, todos os sábados – e também

ensinava minhas colegas a tocar violão, o qual aprendi a tocar assim que me mudei para

cidade. Hoje apenas arranho suas cordas, mas já toquei muito em missas e celebrações. Ou

seja, o ato de aprender e ensinar já estavam impregnados em mim.

2 Eu e o Magistér io

Assim que o ano de oitava série estava terminando, o assunto e a dúvida da turma era

“o que fazer no ano que vem?”. Havia muitos alunos indecisos, eu pensava no magistério,

mas confesso que ficava indecisa quando algumas colegas diziam coisas negativas sobre a

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função do professor: salário baixo, levar trabalho pra casa, agüentar aqueles alunos rebeldes e

descompromissados; quando outras, porém elogiavam outros cursos como processamento de

dados, técnico em contabilidade, que valiam como o colegial (na época). Cheguei a comentar

com meus pais sobre o fato de eu cursar processamento de dados. Eles, no entanto, disseram

que não era má idéia, mas que infelizmente não poderiam me ajudar pois se tratava de um

curso caro, além de ser em outra cidade. O que eles poderiam fazer era conseguir o dinheiro

do transporte para a cidade vizinha para que eu pudesse cursar o magistério, e que com a

profissão de professora, tendo o meu dinheiro, poderia estudar o que eu quisesse.

Talvez eles nem precisassem dizer aquilo pra mim, pois acho que sozinha faria a

escolha pelo magistério. Algo dentro de mim me forçava a optar em ser professora. Eu tinha

um desejo grande em lecionar – pensava que iria aprender uma técnica de “como ensinar”. E

ainda mais, todos os professores que por mim passaram diziam que eu levava jeito. Jeito? Que

jeito? “Então tem que ter jeito?” Pensava eu.

O tempo que cursei o Magistério valeu a pena mais pelas amizades, pelos professores,

pela rotina (viajar de ônibus, ficar o dia todo em outra cidade...), ou seja, pelo convívio social

do que pelo conteúdo adquirido.

Digo isso, lamentando é claro, pois somente depois de algum tempo, vivenciando a

prática, é que consegui refletir sobre as disciplinas e os conteúdos do magistério. Talvez pela

idade que tinha, dos quinze aos dezenove anos (adolescência!), não soube aproveitar bem.

Apesar de querer “aprender” a dar aula, os pensamentos viajavam... Havia outros interesses

também!

Contudo, pude observar que foi um curso oferecido muito limitado perto das inúmeras

situações que a profissão de professor nos propõe. Eu ficava esperando algo mais, a cada ano,

a cada disciplina. No final do curso não conseguia enxergar em mim própria uma profissional

e tinha receio em ter uma classe para dar aula. Sentia medo. Achava que não daria conta.

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Neste período de estudos havia uma polêmica nos métodos de ensino: transição do

método tradicional para o tão famoso “construtivismo” – mesmo este não sendo um método,

na década de 90 era considerado como tal, e até hoje por alguns leigos.

O que assistia em aula, no meu pensamento era normal (características do

construtivismo, Jean Piaget...), estava recebendo tudo como se fosse a “técnica” que eu

esperava, embora não fosse esta experiência que havia tido nos meus oito anos de escola

como aluna. A polêmica, eu percebia durante os estágios que fazia: as professoras, com

quinze anos ou mais de profissão, perguntavam para nós, estagiárias, se as didáticas estavam

corretas, se estavam sendo construtivistas... era cômico. Durante um momento de observação

de aula, numa segunda série, uma professora chegou a dizer para seus alunos registrarem no

caderno: “escrevam o que eu digo... ABACATE, SOFÁ, LIMÃO...” Dirigiu­se a mim

justificando­se: “agora não pode dar mais ditado, não é?”. Estas professoras sofreram muito

com isso, foi marcante para mim.

Meu curso também tinha momentos de contradição. Ora pedia­se que fizéssemos pasta

de moldes de desenhos (datas comemorativas), de atividades de prontidão (bolinhas, cobrir

traçinhos, onda vai­onda vem...); ora nos propunha planejamento de aula e exposição de

trabalhos baseados no interesse da criança. Na minha regência – momento do estágio em que

tinha que dar aula, sendo observada pelo professor da disciplina – por exemplo, fui solicitada

a dar aula com base no construtivismo, sobre o assunto família numa primeira série, por 2

horas/aulas. Sem experiência nenhuma pedi aos alunos que observassem a obra de Picasso

“Família de Saltimbancos”, discutimos a obra, cada criança teve a oportunidade de falar sobre

sua família da forma que desejasse e depois desenharam suas próprias famílias, comparando

uma com a outra – na verdade apenas reproduzi a aula da qual eu havia participado, e

adorado, quando estava na sétima série, com minha professora de Educação Artística; ela

tinha fascinação por artes visuais e transmitia isso; fazíamos diversas pesquisas sobre os

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artistas e suas obras. No entanto, meu professor, me avaliando, disse que a aula foi boa, mas

poderia ter sido melhor se eu tivesse dado um texto sobre família em que os alunos deveriam

fazer cópia e responder perguntas sobre o mesmo. Ao ouvir isto me senti péssima. Como não

havia pensado nisso antes? A resposta a minha pergunta veio com anos de experiência em sala

de aula: meu professor me solicitou algo que ele próprio não sabia o que era. Contraditório o

que ele fez não? Mas não o recrimino pois ele se encontrava na situação de mudanças, de

transições – não que a aula serviu de modelo, mas por ter sido melhor do que ele sugeriu.

Como sentir medo do futuro já era habitual, para não errar demais se por ventura

terminasse o curso e tivesse uma classe para dar aula (ilusão de todas recém formadas!) eu

fazia substituições nas escolas estaduais e também municipais sem remuneração alguma. Não

recebia pelo trabalho porque não tinha o diploma e também porque não tinha idade suficiente

(menor de dezoito anos), mas não me importava com isso. O que queria mesmo era poder

ganhar experiência, saber um pouco mais, conhecer a vida escolar sob o olhar de professor e

não mais como aluna. Não ganhar dinheiro não era empecilho, pelo contrário, me sentia feliz,

uma quase professora! Ganhei muito com isso.

3 Eu e minha Profissão

Enfim me formei! E junto com minha formatura veio a confirmação de que eu estava

grávida. Tudo isso me causou certa preocupação, pois tinha o desejo de lecionar e estando

grávida ficaria mais difícil. Mas nenhum transtorno aconteceu.

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No ano seguinte a minha formatura, participei de um concurso público, municipal, em

que consegui me classificar. Um ano após, 1996, já estava com minha primeira classe de

Educação Infantil.

Dificuldades surgiram... foram muitas. Me via repetindo atitudes das minhas

professoras primárias. Por mais que eu tivesse estudado uma teoria diferente (concepção

construtivista), por vários momentos tomava base pelas experiências como aluna. Não

conseguia, no início, liderar as atividades direcionadas à pré­escola, até porque não tive o

prazer de freqüentar uma. Vivência de pré­escola foi somente como estágio – poucas vezes.

Como a Secretaria de Educação sempre esteve preocupada com a capacitação de seus

professores, logo consegui tirar dúvidas, ampliar meus conhecimentos, mudar minha didática,

minhas atitudes, melhorar a relação com os alunos, procurando sempre atender os objetivos da

educação.

Sempre tive ansiedade em buscar outros conhecimentos, aprofundar mais sobre os

assuntos relacionados à Educação Infantil, e isso fez com eu participasse de vários cursos e

palestras oferecidos pelas editoras e outras instituições. Isto deu uma contribuição muito

grande para minha prática.

Com o tempo fui ficando mais segura do desenvolvimento do meu trabalho. A cada

dia, a cada curso, a cada leitura, a cada experiência com os alunos sentia que sempre havia

algo de novo como começar, algo para modificar, algo para refletir.

Somente atuando como professora pude fazer reflexões sobre os métodos e

concepções de ensino, sobre as contribuições que os autores podem nos oferecer com suas

teorias. Um deles, o qual o respeito pela pesquisa que desenvolveu, é Jean Piaget. Toda leitura

que fiz de suas pesquisas foi válida, principalmente nas relações com meus alunos e na

garantia de seus desenvolvimentos. Outros nomes também podem ser citados como

contribuintes da minha prática de docente – Emília Ferreiro,Vygostky, Paulo Freire,

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Constance Kamii entre outros – e são os mais considerados como subsídios da Educação

Infantil.

Enfim, não só bons momentos vivenciei trabalhando como professora, mas também

momentos difíceis. Cuidar e propiciar o desenvolvimento do ser humano não é uma tarefa

fácil. Desilusão são muitas: com o não atendimento dos objetivos; com uma aula que não foi

bem sucedida; com a falta de recursos; com a falta de participação e apoio dos pais; com

alunos de necessidades especiais; com falta de reconhecimento. No entanto, são desagrados

que foram e continuam sendo superados por um sorriso, por um gesto de carinho, por uma

demonstração de aprendizagem, por atitudes positivas de cada criança.

Mesmo sendo idealista da educação, nunca deixando a esperança se acabar, defensora

de uma educação mais justa, digna e humana, me senti abalar pela falta de reconhecimento na

questão financeira. O baixo salário e a necessidade de criar um filho praticamente sozinha,

depois que me divorciei, fizeram com que eu pensasse em desistir da profissão de docente e

procurar outras áreas de trabalho.

Por esse motivo, iniciei então, a faculdade de Administração de Empresas. Minhas

expectativas com este curso era mudar radicalmente, fugir da educação, ter um emprego com

boa remuneração. Caí feito um pára­quedas naquela classe com noventa e dois alunos, onde

todos, exceto eu, tinham experiência em comércio e empresas. Por ser da área humana, eu

acreditava que não iria sentir tantas dificuldades no curso de Administração. Quanta ilusão.

A maioria do conteúdo estudado foi contra meus princípios. Nunca vi tanta ambição,

egoísmo e ganância juntos. Eu mesma queria tentar me enganar mas o óbvio estava a minha

frente: todos ali estavam querendo saber em como tirar mais dinheiro do próximo, em como

conquistar o cliente do outro, em como enganar para poder ganhar, em como fazer capital.

Naturalmente, uma empresa sobrevive com lucros! Mas não era exatamente isso que eu

queria. Eu queria mudar de emprego para poder ter um salário maior, sem ter que contrariar

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meus princípios. Mesmo não estando satisfeita com o curso, resolvi terminá­lo, pois todos os

conhecimentos, com ele adquiridos, foram válidos – se não para experiência, para então me

fazer refletir e questionar.

Como tudo não é perdido, assim diz o ditado, esta faculdade me proporcionou uma

experiência riquíssima em minha vida. Primeiramente fiz parte do Núcleo de Pesquisa da

Cnec Capivari – da própria faculdade – onde auxiliava professores em suas pesquisas de

mestrado. Graças a esta participação, com apoio de um professor doutor da faculdade, fui

integrante de um grupo de estudos do CenPRA (Centro de Pesquisas Renato Archer), no qual

realizei também pesquisas científicas.

Graças a estas vivencias percebi que realmente sou da educação.

4 Eu e a Unicamp: r ealização de um sonho!

Como então optei por continuar na área da educação não pude, em hipótese alguma,

perder o curso de Pedagogia oferecido pela Unicamp, pela “famosa” Unicamp – o tão

cogitado PROESF (Programa Especial para Formação de Professores em Exercício da RMC).

Na semana em que fiquei sabendo sobre a possibilidade de fazer um curso em uma das

melhores Universidades, eu mal dormia. Só pensava nisto e ao mesmo tempo morria de medo

de fracassar no vestibular. Lembro­me que tinha uma grande chance devido ao número de

vagas destinado a minha cidade, mas assim mesmo o coração batia forte em pensar nisso tudo.

Nunca havia sentido tanta tensão como no dia da prova: a cabeça doía muito, minhas

pernas estavam bambas, meu pensamento era mais negativo do que positivo por causa da

exigência das perguntas. Era pouco tempo para responder aquilo tudo!

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Toda a tensão foi recompensada ao ver meu nome e de minhas amigas na lista de

classificação. Quanta emoção! “Será que é verdade?” Pensava eu. As expectativas eram

muitas. Toda minha família estava feliz por mim. Era um sonho sendo realizado. Quantos

gostariam de estar no meu lugar! O sorriso transpassava de uma orelha a outra, era engraçado

de ver!

O primeiro dia de aula chegou. Vi que a alegria não estava só em mim, mas em todas

que ali estavam que passaram pela tensão do vestibular, que tinham o mesmo sonho. A

recepção dos professores também foi marcante. Era um curso novo, uma proposta ousada!

No início eu nem pensava no que estava por vir, acho que as outras professoras alunas

também. Estávamos todas esperançosas, com vontade de buscar mais conhecimentos, de

conhecer os professores doutores da universidade, de levar as novidades para escola.

Pensamentos negativos nem se quer passavam por minha mente. Tudo era alegria! Achava

que três anos seriam pouco tempo para desfrutar de tudo aquilo. Somente o tempo me daria

garantia disso.

E o tempo foi passando. As novidades desaparecendo. As dificuldades surgindo. O

cansaço servindo como obstáculo (também, uma faculdade seguida da outra, que loucura!).

Entre uma risada ali, uma distração lá, um comentário novo, uma disciplina nova, outros

professores, novas exigências... Não vi o tempo... Três anos passam rápido mesmo!

No final do curso a exaustão era geral! Minha história se repetia por toda a turma: não

foi fácil se manter no curso – família e lazer deixados de lado; dar aula em dois períodos; falta

de tempo para os trabalhos exigidos; falta de tempo para tanta leitura; falta de tempo para

planejar aulas, para comer, para conversar, para dormir; medo da violência; medo dos riscos

do trânsito; vontade de desistir; sentimento de angustia, de stress, de culpa por abandono do

filho, da casa, da família. Tudo isso estava estampado nos nossos olhares, no nosso modo de

comunicarmos uma com a outra. Tudo isso refletiu em mim um desgaste físico inconcebível:

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hiperglicemia, estafa, stress, nervosismo à flor da pele, TPM trinta dias por mês, falta

excessiva de memória!

Muitas vezes me perguntava: “Será que valerá a pena?” “Será que valerá prejudicar

minha saúde, meu filho, por mais uma formação que talvez não me trará recompensas?” Essa

dúvida vinha constantemente em meus pensamentos quando via acidentes na rodovia, quando

deixava meu filho chorando pedindo minha companhia, quando via meu filho indo para

escola sem fazer a tarefa porque eu não havia tido tempo de ajudá­lo, quando me

decepcionava com alguns professores ou até mesmo com a universidade, quando sentia ânsia,

dores de cabeça, tremores, tordoações, esgotamento físico...

Somente o tempo poderia me dar garantias. E me deu!

Desde as primeiras disciplinas sentia que este não era um curso igual aos demais.

Sentia que havia muito para eu aproveitar e que muito me acrescentaria. Bastava paciência e

sabedoria para usar todos os benefícios, que o curso estava me propondo, no momento certo.

Eu estava diante de descobertas, prestes a transformar minha prática docente, prestes a crescer

como pessoa e como profissional. Era tudo isso que me fazia, inúmeras vezes, não desistir.

O descarregamento de informações foi constante. A cada aula eu me sentia ora

completamente leiga e ignorante ora satisfeita com o trabalho que eu já desenvolvia com

meus alunos – muitos assuntos discutidos serviram para me mostrar que eu estava no caminho

certo. No decorrer deste curso houve muito mais aproveitamento do que descontentamento

com os textos. Todo o conteúdo veio ao encontro do que eu necessitava, servindo como

complemento a minha prática.

Percebi que o PROESF não estava somente cumprindo uma determinação de Lei, mas

esteve, o tempo todo preocupado com a nossa formação, sendo responsável pelo resultado que

estes “novos” professores produzirão na sala de aula. Apresentou elementos constitutivos da

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compreensão da prática docente enquanto dimensão social da formação humana.

Compromissou­se em formar, do que meramente treinar seus professores.

Foram neste três anos que pude entender a verdadeira ligação da teoria – que surgiu,

segundo Luiz Carlos de Freitas (em uma de suas palestras), porque a ‘prática’ não bastou para

analisar e compreender a sala de aula – com a prática. Os conceitos que eu havia concretizado

fazendo o magistério e depois exercendo a função de professora tornaram­se mais

verdadeiros, tomaram forma, a partir do momento em que comecei a enxergar com outros

olhos – mais críticos e atentos à realidade – esta relação de cumplicidade.

Refletindo sobre isso, percebo que abordava a teoria (nos primeiros anos de trabalho)

como se fosse uma verdade a ser seguida. Agora a vejo como fonte inspiradora, sobre al qual

eu tomo as rédeas, analisando­a primeiramente para então saber onde e como aplica­la. Olho

para a teoria e a considero como apoio de significação a minha prática, sem endeusá­la. Uma

teoria apenas não basta, é preciso antes de tudo desfrutar de várias, para poder fazer uma

análise e comparação. Sinto­me numa busca constante, hábito que adquiri na universidade e

faço das palavras de Freire (1997) as minhas: “ensino porque busco, porque indaguei, porque

indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando intervenho, intervindo educo e me

educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a

novidade.”

Freire ainda diz que o educador não deve ensinar apenas os conteúdos, mas também

ensinar a pensar certo, que nada mais é que a capacidade de intervir no mundo, de conhecer o

mundo, é não estar demasiado certo de nossas certezas. Aprender criticamente é possível,

basta ter educadores que vivenciam na prática incentivando seus educandos a serem criadores,

investigadores, inquietos, curiosos, humildes e persistentes.

O fato de eu ter conhecido isso somente na universidade prova que não foram estes

educadores que tive. Os meus professores foram aqueles que não me ensinaram a pensar

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certo, que não colaboraram para que eu aprendesse a intervir no mundo, que não praticaram a

criticidade – talvez pela época, pela falta de conhecimento e de má formação, ou até mesmo

por reproduzirem o que vivenciaram, por não terem vivenciado a autonomia. E isso me leva

aos conhecimentos que adquiri com a Política Educacional: onde é preciso investir em leitura,

em teorias, reflexões, para saber diferenciar os conceitos, para não reproduzir o que o

Governo deseja que reproduzamos, para não reproduzir discursos, para não contribuir na

formação dos cidadãos que o nosso sistema (capitalista) deseja, ou seja, escolarizar os

cidadãos para serem pobres felizes.

Enfim, como todos os conteúdos estiveram entrelaçados, fazendo todo momento com

que nós – professoras­alunas – estivéssemos o tempo todo refletindo sobre nossa vida pessoal

e profissional, o que mais me fez lamentar sobre a educação de nosso país foi conhecer os

reais objetivos políticos que estão camuflados aos nossos olhos. A cada semestre de aula, em

cada disciplina pude entender e questionar o porque de muitas coisas, o porque de eu ser

quem eu sou, o porque de meus pais serem como são, o porque da situação em que nossas

escolas se encontram, o porque da defasagem escolar, o porque a massificação, o porque de

tudo estar institucionalizado, o porque de meus alunos se comportarem de tal forma, o porque

de falta de recursos, o porque de autoritarismo, o porque de sim para o “ter” e não para o

“ser”, o porque da miséria, da pobreza, da violência, do tráfico de drogas, o porque de tudo!

Com as aulas de Pensamento Histórico da Educação consegui abrir os olhos para os

reais objetivos e conseqüências do neobileralismo e a globalização. Resumindo: é fato que na

globalização a política econômica consiste na utilização de meios que convencem que o outro

é melhor, e assim diminuem o poder de uma cultura, que relacionada à educação mostra que

aquele que “lutar” para conseguir mais “conhecimentos” (inteligências múltiplas) terá uma

posição melhor na sociedade, fazendo disso um incentivo a exclusão, pois aquele que não é

capaz de atingir o sucesso não teve “sorte” suficiente na vida”.

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Graças a estes estudos, consegui fazer reflexões entre a educação e os contextos

econômicos, político social no Brasil, percebendo as transformações ocorridas desde o

período colonial até os dias atuais. Consegui ter uma visão crítica sobre a utilização das

tecnologias de informação e comunicação no contexto da realidade educacional brasileira.

Em palestra, o professor doutor José Luis Sanfelice, confirma isso dizendo que

olhando para a história, descobre­se que a escola pública tem seu momento de surgimento.

Ela surge por razões determinadas, com características que define e redefine seus objetivos. É

preciso então acompanhar essa história para entender o porque das ‘coisas’: avaliação,

métodos, currículo. No percurso do pensamento histórico deve­se estar claro que a escola

pública é um produto histórico, da história do homem, com raiz política, ideológica, com base

material que a sustenta.

E foi pensando nessa história de forma crítica e reflexiva que entendi a natureza desse

processo. Consegui, então, interferir melhor na minha realidade, ou seja, na minha sala de

aula, no meu convívio familiar e social: posicionando­me contra a concorrência individual,

contra o consumismo, contra a propagação de idéias, contra os textos de auto­ajuda, contra as

políticas compensatórias (bolsa escola, vale­leite, amigos da escola), contra a ausência de

direitos sociais, contra a qualidade total e competências múltiplas, contra a desigualdade.

A conquista desses conhecimentos exigiu de mim uma nova postura como professora e

como cidadã, diferente da que eu tinha antes. Exijo, de mim mesma, atitudes que não

promovam o neoliberalismo. Infelizmente a proposta neoliberal acaba por ser o pior golpe da

educação porque todos (inclusive os professores) estão engolindo, reproduzindo e formando.

O sistema neoliberal coloca nos dominados a responsabilidade do fracasso, da má situação: se

é pobre ou fracassado, a culpa é de quem o é. Contudo, já que tal proposta é fazer uso da

educação um instrumento massificador de idéias por atingir mais pessoas, eu, como

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professora tenho o poder em minhas mãos para combatê­la e é nisso que penso quando me

relaciono com alunos, pais e funcionários.

Um fato marcante em minha vivência na universidade foi assistir ao filme “Mera

Coincidência”. Após tê­lo assistido minha visão sobre a televisão e o poder da mídia mudou

radicalmente. Não consegui mais assistir programas, jornais e telenovelas sem ter uma postura

crítica. Melhor que isso, ao assistir com outras pessoas, familiares e alunos principalmente,

faço comentários e questionamento instigando­os a ter também um pensamento crítico sobre o

que estão assistindo.

Contudo, torna­se um desafio, pois quanto mais a escola se amplia é claro que ela vai

trabalhar cada vez mais com classes distintas. Quanto mais se diversifica a clientela, maiores

são os desafios para o professor. Tantas diversidades – culturas, hábitos e valores – dificultam

o trabalho do professor, já que o aluno ideal não existe.

Na questão da educação brasileira ligada à diversidade cultural em que a própria se

encontra, inúmeras reflexões podem ser feitas. As aulas de Multiculturalismo deram foco a

isso e me ajudaram muito, principalmente depois da leitura do texto “A cultura enquanto

suporte de identidade, de tradição e de memória”, de Cassiano Reimão, sobre a qual fiz uma

análise do meu cotidiano social. Os “erros” que cometemos enquanto adultos, os quais as

crianças reproduzem, “erros” que vão se difundindo a cada geração, sem fim, como por

exemplo: chamando uma pessoa de certa idade de velho, fazendo comentários banais como,

por exemplo “isto é coisa de velho”, “ele não sabe de nada, está caducando”; ignorando

pessoas de classe social inferior quando esta está mal vestida, com odor; elogiando uma

pessoa de “linda”, “maravilhosa”, “perfeita”; chamando alguém de “baiano”, “caipira”, “Zé

Mané”, “baleia”, “magricela”, “burro”, “preguiçoso”, “negrinho”, “fedido”. Estes e muitos

mais exemplos poderiam ser citados, pois fazem parte da rotina diária no convívio em

sociedade.

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Levando esse conhecimento a minha prática docente, procurei desenvolver trabalhos

que conscientizem os demais de que as diferenças existem sim, mas precisar haver o respeito

a essas diferenças. Comecei então a fazer a soma dos diferentes – não dos iguais – fazendo

uma conexão de trocas de conhecimentos, de culturas, de etnias, através de projetos e de

pequenas atitudes, principalmente no modo de falar, para não reforçar o preconceito.

Diante das palavras de Ribeiro (1995), “ uma nova civilização, mestiça e tropical,

orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si

mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas

as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra” , acredito e

procuro colocar em prática a construção do conhecimento na diversidade cultural, criando

novas identidades, propiciando aos alunos a condição de serem sujeitos do conhecimento e

instituidores de sua própria cidadania.

Com esta disciplina pude verificar as práticas pedagógicas não convencionais que

promovem o convívio das diferenças étnico­culturais; pude constatar os mecanismos de

inclusão e exclusão dos sujeitos e como as características raciais e sociais estão ou não

contempladas nas políticas educacionais.

Mais uma vez me recordo dos preconceitos que vivenciei ao sair da “roça” e ir para

cidade. Meus professores da época não percebiam as diferenças ressaltadas entre os alunos.

Como eles poderiam ver se eles próprios estavam carregados de preconceito. Lembro­me que

assuntos como estes não eram discutidos nem mencionados; tudo era tratado dentro das

normalidades. Respeito era uma palavra descartada do vocabulário escolar, por isso sofri com

o sentimento de rejeição e desvalorização da minha identidade. Hoje consigo entender o

porque daquele sofrimento apenas dez anos de idade: falta de conscientização dos professores,

falta de busca de conhecimento, falta de investimento, proposital (por parte do governo) em

formação continuação de profissionais. Mas para não repetir “erros”, hoje enxergo e respeito

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meu aluno como ele é, partindo de sua origem, valorizando sua cultura e não permitindo que

demais o desconsidere por causa de sua cor, raça ou condição social.

Neste momento me recorre o respeito que tenho, depois de cursar o PROESF – mais

especificamente as aulas de Teoria Pedagógica e Produção em Língua Portuguesa – pela

linguagem que minha mãe utiliza para se comunicar. Minha triste experiência no primeiro dia

de aula, mencionada no início do memorial, fez com que sentisse vergonha da linguagem

utilizada pelos “caipiras” e carreguei isto por muitos anos. Felizmente percebi que não há

certo ou errado, e sim diferentes variações de linguagem. Existe sim uma forma culta de se

falar e um padrão para escrever, mas isso não interfere na valorização do indivíduo. Minha

mãe, ao se recusar em modificar sua forma de falar estava apenas dando importância a sua

identidade, que foi construída com suas experiências de vida, trabalhando na roça desde os

quatro anos de idade, passando fome, não tendo oportunidade de freqüentar a escola e de

conhecer a outra ‘forma’ de se falar.

Estas mesmas aulas me fizeram entender as contradições pelas quais passei enquanto

cursava o magistério. O conflito na transição das propostas metodológicas e concepções de

ensino­aprendizagem. Assim como com minha prática já havia constatado, tais aulas vieram

contemplar meus conhecimentos: não há técnicas para ensinar ler e escrever, mas uma

conjunção de orientação com mediação, por parte do professor, no processo de aprendizagem

dos alunos. Na verdade, esta mediação do professor é ideológica porque a maneira que ele

cria condições para que haja aprendizagem depende de seus conhecimentos, da concepção que

tem sobre o mundo, da concepção de sociedade, de justiça, do papel da escrita para o cidadão.

Em sala de aula coloco em prática o que as concepções trazem de melhor. Não digo

que sou a favor de Piaget ou Vygostky em cem por cento. Há mitos que envolvem ambas as

concepções (construtivista e histórico cultural), como por exemplo, o aluno constrói o

conhecimento sozinho (postura de que só faz o que a criança quer – bom para professores que

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não querem se preocupar com o conteúdo a ser dado!), o erro tem ser respeitado (o que gerou

criança que escreve errado até a oitava série). E, quanto a estes mitos, a reflexão e a leitura

são os melhores instrumentos para se estar no caminho correto. Propicio ao aluno uma

aprendizagem significativa, levando a ele o que ele quer e o que tem de interesse, e partir

disso, ajudá­lo a construir outros conhecimentos. Freire complementa: “ensinar não é

transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua

construção” . Concordo com o autor, e ainda digo que ensinar inexiste sem aprender e vice­

versa, ou seja, “quem ensina aprende ao ensinar, quem aprende ensina ao aprender” .

Não me refiro, aqui, somente às aulas de português, mas a todas as áreas em que o

conhecimento se estende. Até porque não somos partes, somos o todo. Trabalhando na

Educação Infantil vivencio a “Transversalidade”: não há separação de disciplinas, não há

divisão de partes (história, geografia, matemática, ciências...). E então, o que Freire nos

propõe é fácil de colocar em prática, pois não é preciso se prender a um conteúdo. Com

apenas um projeto, consigo, na educação infantil, levar meus alunos aos mais diversos

conhecimentos em suas variadas áreas. Com projetos, faço a criança buscar e não aceitar o

pouco, não aceitar o “arroz” quando se tem uma “torta de morango” para devorar, pois neles

estão inclusos a arte, a ciência, as diferentes linguagens, o raciocínio, o espaço, o lugar, a

história, a cultura... Proporciono aos meus alunos uma aprendizagem sustentada pela

curiosidade. A curiosidade estimula a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta.

Estimulo uma prática da curiosidade como sua liberdade, sujeita a limites, pois acredito no

fato de que a minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô­la

aos demais.

Nestas situações, em constante respeito aos interesses e desenvolvimento de projetos,

meus alunos não temem a avaliação, pois ela, ainda, não existe. Não estou ali para fazer juízo

de valor sobre meus alunos. Estou ali para ajudá­los a se desenvolverem.

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Senti­me muito bem ao assistir a palestra de Luiz Carlos de Freitas sobre Avaliação

porque me vi no caminho correto, com atitudes positivas em relação aos meus alunos. Quando

ele diz que o professor o tempo todo avalia atitudes e valores verbalmente e que a escola é

instituída para hierarquizar e excluir, concordo com sua opinião e mais, acrescento dizendo

que o professor também é vítima destas condições, mas tem que estar ciente disso para não ser

cúmplice desta realidade, tem que agir contra o processo de exclusão, que não opera pela

nota, mas pelo juízo de valor que faço do aluno.

No decorrer desses três anos, lendo, observando, trocando experiências, analisando,

refletindo, me vejo não apenas como objeto da História, mas como sujeito igualmente. No

mundo da História, da Cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar.

Quando constato sou capaz de intervir na realidade – e já estou intervindo, colocando em

prática tudo o que consegui constatar na universidade, modificando minha maneira de pensar

e de agir.

O curso me ajudou a saber lidar com a diversidade existente entre alunos, me ajudou a

incentivar atividades de enriquecimento cultural, a desenvolver práticas investigadoras, a

exercer a organização, coordenação e gestão do trabalho pedagógico, a fazer integração da

teoria e prática, a fazer argumentações sobre o quero ou não para com meus alunos, a ter uma

posição crítica frente ao nosso sistema capitalista e aos reais objetivos políticos que

circundam a educação como um todo.

Consegui entender que tudo está relacionado às ideologias. Consegui ver que o

Currículo Escolar se esbarra não só nas relações de poder, mas também nas de gênero, de

raça. Temos uma história marcada por técnicas e métodos para atingir objetivos da sociedade

capitalista. A escola contribui para isso quando produz uma cultura que alimenta a classe

dominante. Escola é produção. E hoje, na universidade, questiono: o que eu estudei no ensino

fundamental e médio? Por que não consigo me lembrar das leis da física, da história da guerra

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civil, das regras de gramática, da lei de Newton? Na mesma universidade eu respondo: porque

nada foi significativo para mim. Porque estes conteúdos estavam presentes apenas para

cumprir o currículo. Ninguém questionou justamente porque a formação não favoreceu o

pensar: o interesse político é formar professores que não sabem escrever, que não é crítico,

para não derrubarem o poder.

Felizmente mudei meu olhar sobre a educação.

Mas...que olhar será este que, ao apenas olhar, consigo mudar, transformar muitas

coisas?

À medida que vivemos, trocamos experiências, nos relacionamos com outrem – em

família, na escola, na igreja, na rua, na praça, em qualquer lugar que seja –, a nossa maneira

de olhar se modifica. E, então, nossos pensamentos e nossas atitudes também se modificam.

Há renovação, há transformação, há evolução.

Digo isto porque é assim que sinto e me vejo diante da minha realidade.

Sinto que grandes mudanças ocorreram no meu modo de pensar e de agir. Mas tal

mudança somente ocorreu devido ao relacionamento que tive com outras pessoas: trocando

experiência, questionando, refletindo, buscando algo novo.

Enquanto educadora, acredito na hipótese de que transmitimos o conhecimento da

mesma maneira em que aprendemos. É assim que acontece: desde bebê aprendemos por

imitação a falar, andar e agir. E não seria diferente com a educação.

No entanto, se aprendemos de forma “correta”, ensinamos corretamente. Mas se

aprendemos de forma “errada”, ensinamos por conseqüência disto. Penso então que, neste

caso, devemos estar atentos às nossas atitudes e maneiras de “ensinar”. Para isto servem as

pesquisas, as teorias, os relatos de experiências: para nos informar, para nos acrescentar, para

nos fazer refletir, para alargar nossos horizontes, para enfim, mudar nossa maneira de olhar.

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É claro que tais mudanças não iniciaram somente com as aulas. Percebo que desde o

início de meu trabalho docente, venho me transformando quanto ao método e conteúdo a ser

trabalhado. Não somente isso, mas também à maneira que me relaciono com meus alunos.

A maneira pela qual transmitimos os conhecimentos é conseqüência do processo

mecanizado pelo qual passamos. Isto é fato.

É por isso que então, após ter evoluído muito na minha maneira de pensar, estou

mudando também a minha maneira de dirigir minhas aulas, procurando desenvolver meus

alunos em todos os aspectos: cognitivo, físico, social, e afetivo.

Foi neste sentido que me certifiquei de que não há aprendizagem, não há compreensão

do conceito se não há processo do pensamento em movimento. As crianças têm que explorar,

questionar, tocar, sentir, interromper, falar, ouvir, para que elas próprias possam chegar ao

conhecimento.

A transformação que me ocorreu foi algo simples, mas importantíssimo: mudei meu

olhar. Agora estou com um olhar crítico e reflexivo.

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REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

REIMÃO, Cassiano. A Cultura enquanto suporte de Identidade, de Tradição e de Memória. IN: Revista da Fac. de Civ. Soc. e Humanas. Lisboa: Colibri,1996.

RIBEIRO, D. As Dores do Par to. IN:“O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” . São Paulo: Cia das Letras, 1995.