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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FÍSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MULTIUNIDADES EM ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA HÉLIO SIMPLICIO RODRIGUES MONTEIRO O ENSINO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: (Im)Possibilidades de Tradução CAMPINAS SP 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FÍSICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MULTIUNIDADES EM ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA

HÉLIO SIMPLICIO RODRIGUES MONTEIRO

O ENSINO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: (Im)Possibilidades de Tradução

CAMPINAS – SP

2016

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HÉLIO SIMPLICIO RODRIGUES MONTEIRO

O ENSINO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: (Im)Possibilidades de Tradução

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em Ensino de Ciências e Matemática na área de concentração Ensino de Ciências e Matemática.

Orientador: Prof. Dr. José de Alencar Simoni

Coorientadora: Profa. Dra. Denise Silva Vilela

Este exemplar corresponde à redação final da tese defendida por Hélio Simplício Rodrigues

Monteiro e orientada pelo prof. Dr. José de Alencar Simoni.

CAMPINAS 2016

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HÉLIO SIMPLICIO RODRIGUES MONTEIRO

O ENSINO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: (Im)Possibilidades de Tradução

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sessão

pública realizada em 11 de novembro de 2016, considerou o candidato Hélio Simplício

Rodrigues Monteiro Aprovado.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________

Prof. Dr. José de Alencar Simoni Orientador - UNICAMP

_____________________________

Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes

Membro Titular – UNICAMP

_____________________________

Profa. Dra. Alik Wunder

Membro Titular – UNICAMP

_____________________________

Prof. Dr. Domingo Yojcom Rocché

Membro Titular Externo (Centro de Investigación Científica y Cultural-Guatemala)

_____________________________

Profa. Dra. Marisa Rosâni Abreu da Silveira

Membro Titular Externo (UFPA)

A ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca encontra-se no

processo de vida acadêmica do aluno

CAMPINAS 2016

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DEDICATORIA

À duas mulheres que são meus maiores exemplos de amor à vida, e que infelizmente

partiram desse plano durante meu processo de doutoramento, é por elas e pela força

que sempre tiveram e tentaram me passar, que consegui chegar à este momento:

minha mãe, meu amor maior Ana Maria Rodrigues Monteiro e minha avó Vivina

Pombo Rodrigues

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AGRADECIMENTO

Terminar esse doutorado foi um momento de grande superação, principalmente

devido à partida, para outro plano, de familiares e amigos e amigas muito próximos,

sem os quais, porém, eu não teria conseguido chegar à esse momento. À essas

pessoas que partiram meu mais profundo agradecimento. O apoio dos que estão

nesse plano junto à mim também foi de fundamental importância nessa caminhada, à

essas pessoas também agradeço de coração. Em especial agradeço:

Agradeço à professora Maria do Carmo Santos Domite, que desde a qualificação de

meu mestrado vinha contribuindo com meu trabalho. Partiu para outro plano, mas

contribuiu durante um período com longas conversas, mesmo já estando debilitada e

sempre com um sorriso no rosto.

À professora Denise Silva Vilela, que aceitou o desafio de coorientar este trabalho já

no último ano de desenvolvimento. Sua orientação foi fundamental para a

estruturação, organização e finalização desta pesquisa.

Ao professor José de Alencar Simoni (Cajá), meu orientador, que se interessou pelo

projeto de pesquisa, me oportunizando entrar na Unicamp.

Ao professor Eduardo Sebastiani Ferreira, com quem dialoguei durante o

doutoramento e contribuiu de forma singular no exame de qualificação. Não foi

possível estar no exame de defesa, mas certamente deixou sua contribuição na

finalização desta pesquisa.

À professora Jackeline Rodrigues Mendes, pela importante contribuição ao longo do

desenvolvimento desta pesquisa.

À professora Marisa Rosâni Abreu da Silveira, que desde o processo de mestrado se

mostrou interessada em meu trabalho, podendo participar e contribuir com esta

pesquisa, no exame de defesa.

Ao professor Domingo Yojcom Rocché, que conheci por ocasião do Seminário Latino

Americano de Educación Matemática y Etnomatemática en contextos de Diversid

Cultural y Linguística, realizado na cidade de Lima-Perú, onde, no diálogo lá iniciado,

foi possível fazer parte desta pesquisa nos exames de qualificação e defesa.

Ao professor José Ricardo e Sousa Mafra, sempre solícito e que me oportunizou

momentos de grande aprendizado ao me convidar para colaborar no programa

PARFOR, na Universidade Federal do Oeste do Pará.

À minha irmã Heloneida Monteiro pelo carinho, força e amizade, pelo apoio em

momentos difíceis durante esse trajeto e às minhas queridas sobrinhas Heloana e

Helen.

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À minhas tias Ângela Rodrigues e Angelita Rodrigues pelo carinho e apoio, sempre

presentes em minha vida.

À minhas irmãs Hellen, Heloisa e Helielma, que durante esse processo de

doutoramento pudemos nos reaproximar novamente.

À toda a minha família pelo apoio incondicional e carinho.

À minha querida amiga Elisângela Aparecida Melo, sempre presente nos momentos

que mais precisei. Amiga pessoal e de caminhada pelas aldeias indígenas do Estado

do Tocantins.

Á minha amiga Carolina Tamayo, com quem dividi momentos de alegria e angústia no

desenvolvimento desta pesquisa. Alguns desses momentos regados à caipirinha e

pisco, de onde saíram muitas ideias que fundamentam este trabalho.

À meu amigo Sávio Bicho, que me motivou a cursar o doutorado na Unicamp.

À minha amiga Valéria Dias e querido amigo Fabrício Santa Brígida, pelo apoio

incondicional em momentos muito difíceis.

À meu querido amigo Daniel Gabriel Borges, pelo companheirismo, carinho,

dedicação e amizade, que além de cuidar muito de mim sempre me salva no trato com

os recursos tecnológicos. Que está sempre disposto a me ajudar não importa a hora

do dia ou da noite.

À meu amigo Milton Ciúves, que abriu as portas de sua casa para mim em Campinas,

onde morei por um ano e ficava sempre que precisava ir para Campinas.

Aos queridos amigos e amigas: Alessandra de Castro, Sônia, Wanderson (Sonson),

Gilfran Noronha, Paulo Henrique, Higor, Marquinho, Neimi e Selestino, Vanessa e

Fernando, com o(a)s quais me reúno geralmente aos sábados durante o dia para

almoçarmos e rirmos bastante. Grupo alegre, sempre sorridentes e carinhosos.

À um casal muito querido, Elisandra e Lúcio Flávio, sempre presente e prontos à me

ajudar em momentos alegres e também difíceis.

À Jennifer e Flávio, casal querido e sua família, sempre carinhosos e prontos à me

ajudar.

À Universidade Federal de Goiás que me oportunizou no último ano de doutoramento,

me dedicar exclusivamente à finalização deste trabalho.

Aos professores e colegas do grupo de Estudo em Educação, Linguagem e Práticas

Socioculturais da Faculdade de Educação da UNICAMP, pela inserção nos estudos

em Filosofia da Linguagem.

À todos e todas que de alguma forma contribuíram, direta ou indiretamente, para que

eu conseguisse terminar esse trabalho de pesquisa, muito obrigado.

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RESUMO

Este trabalho de pesquisa tem como objetivo compreender em que medida, tanto a tradução quanto a criação de novos termos para a língua indígena, cumpririam a intenção de transferência dos significados e levaria os indígenas ao conhecimento matemático tido como referência. O campo de pesquisa foi explorado entre os professores indígenas dos povos Xerente e Karajá. A problemática desta pesquisa surgiu do meu trabalho como professor/formador do curso de Formação Inicial em Magistério Indígena do Estado do Tocantins com esses povos, dentre os quais constatei que, em meio à língua materna, era utilizado o português exclusivamente para termos e expressões da matemática, fato que indicava a inexistência deles naquelas línguas indígenas. Diante disso, surge a questão: como lidar com a proposta, presente na literatura analisada, de se criar ou traduzir novas terminologias em línguas indígenas que denotem a linguagem matemática? O referencial teórico adotado se inspira nos conceitos de Jogos de Linguagem, Gramática, Formas de Vida, Uso e Semelhanças de Família, desenvolvidos pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, assim como os estudos sobre Multiculturalismo e Etnomatemática e os Estudos da Tradução. Foram realizadas entrevistas com professores indígenas Xerente e Karajá. Contribuíram ainda com a análise dos dados, além do meu o diário de campo elaborado por ocasião do Curso de Formação Inicial em Magistério Indígena, em nível médio, ofertado pelo governo do Tocantins, assim como observação de uma aula de matemática em uma escola indígena de uma aldeia Xerente. A pesquisa revela que tanto a tradução de palavras da língua portuguesa para a língua indígena quanto a criação de novos termos para a língua indígena não cumpririam a intenção de transferência dos significados que levaria os indígenas ao conhecimento matemático tido como referência.

Palavras – Chave: Educação Intercultural Bilíngue; Línguas Indígenas; Estudos da Tradução; Gramática; Etnomatemática; Wittgenstein.

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ABSTRACT

This research aims to understand how the translation and the creation of new terms in

the indigenous languages, would meet the intent of transferring meanings and could

lead the Indigenous to mathematical knowledge that they have as a reference. The

field study was explored among the teachers of indigenous peoples Karajá and

Xerente. The problem of this research came from my work as a teacher/trainer in a

course of initial training in indigenous Magisterium of Tocantins with these indigenous

people, among whom I found in the middle of the mother language was used the

Portuguese solely for mathematics terms and expressions, a fact that indicates the

absence of these terms in these indigenous languages. Therefore, the question arises:

how to cope with the proposal, present in the literature that was analyzed, about create

or translate new terminology in indigenous languages that denoting mathematical

language? The theoretical framework adopted is based on the concepts of Languages

Games, Grammar, Form of Life, Use and Family Resemblances, developed by the

Austrian philosopher Ludwig Wittgenstein, as well as studies on Multiculturalism,

Ethnomathematics and Translation. For the analyses we made interviews with

indigenous teachers Xerente and Karajá. Also, contributed to data analysis a diary that

I do during the Initial Training Course on Indigenous Teachers in middle level offered

by the government of Tocantins, as well as observation of mathematics classes in an

Indian school in a Xerente´s village. This research reveals that both, the translation of

the Portuguese word for the indigenous language as the creation of new terms of

indigenous languages in order to convey the meanings that would lead the Indians to

mathematical knowledge taken as a reference would not be met.

Keywords: Intercultural Bilingual Education; Indigenous languages; Translation

Studies. Ethnomathematics; Wittgenstein.

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RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo comprender en qué medida tanto la traducción

como la creación de nuevos términos en la lengua indígena, cumplirían con la

intención de transferencia de los significados y podría conducir a los indígenas a los

conocimientos matemáticos tenidos como referencia. El campo de estudio fue

explorado entre los maestros de los pueblos indígenas Xerente y Karajá. El problema

de esta investigación provino de mi trabajo como profesor/ formador en un curso de

formación inicial en Magisterio indígena de Tocantins con estos pueblos, entre los que

encontré que, en medio de la lengua materna, era utilizado el portugués

exclusivamente para términos y expresiones de la matemática, un hecho que indicaba

su inexistencia en dichas lenguas indígenas. Por lo tanto, surge la pregunta: ¿cómo

hacer frente a la propuesta, presente en la literatura analizada, de crear o traducir

nuevas terminologías en lenguas indígenas que denoten el lenguaje matemático? El

marco teórico adoptado se inspira en los conceptos de los Juegos de Lenguaje,

Gramática, Formas de Vida, Uso y Semejanzas de Familia, desarrollados por el

filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, así como estudios sobre Multiculturalismo,

Etnomatemática y Estudios de la Traducción. Se realizaron entrevistas con maestros

indígenas y Xerente Karajá. También contribuyó al análisis de datos mi diario de

campo elaborado durante el Curso de Formación Inicial en el Magisterio Indígena, en

nivel medio ofrecido por el gobierno de Tocantins, así como la observación de clases

de matemática en una escuela india una aldea Xerente. La investigación revela que

tanto la traducción de la palabra portuguesa para la lengua indígena como la creación

de nuevos términos de la lengua indígena no se cumpliría el propósito de transmitir

los significados que conducirían a los indios a los conocimientos matemáticos tenidos

como referencia.

Palabras clave: Educación Intercultural Bilingue; Lenguas indígenas; Estudios de la

Tarducción. Etnomatemática; Wittgenstein.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Localização dos povos indígenas no Estado do Tocantins ..................... 44

Figura 2 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá ..................................................... 47

Figura 3 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá ..................................................... 48

Figura 4 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá ..................................................... 48

Figura 5 – Pintura Karajá......................................................................................... 49

Figura 6 – Pintura dos clãs Xerentes ....................................................................... 52

Figura 7 – Pintura das toras dos partidos Xerentes ................................................. 53

Figura 8 – Escola Estadual Indígena Srêmtôwê ...................................................... 55

Figura 9 – Escola Estadual Indígena Srêmtôwê ...................................................... 55

Figura 10 – Atividade de matemática .................................................................... 123

Figura 11 – Forma de contar Xerente .................................................................... 140

Figura 12 – Numeração Karajá, com números maiores que vinte ......................... 146

Figura 13 – Trabalho de um aluno Javaé .............................................................. 151

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Escrita, fala e significados dos números na língua Xerente ................. 141

Tabela 2 – Escrita e fala dos números na língua Karajá. ....................................... 144

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LISTA DE SIGLAS

EEI – Educação Escolar Indígena

EI – Educação Intercultural

EIB – Educação Intercultural Bilíngue

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia estatística

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

ISA – Instituto Socioambiental

PIX – Parque Indígena do Xingú

RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

SEDUC-TO – Secretaria de Educação do Estado do Tocantins

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 14

CAPÍTULO I – A PESQUISA ................................................................................... 18

1.1 – PROBLEMÁTICA .............................................................................................. 18

1.2 – JUSTIFICATIVA ................................................................................................ 29

1.2 – METODOLOGIA ............................................................................................... 31

CAPÍTULO II – O CONTEXTO DA PESQUISA ....................................................... 40

2.1 – DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DOS POVOS E LÍNGUAS INDÍGENAS NO BRASIL ................ 40

2.2 – CONTEXTO DOS POVOS INDÍGENAS NO ESTADO DO TOCANTINS .......................... 42

2.2.1 – Karajá ................................................................................................. 45

2.2.2 – Xerente ............................................................................................... 50

2.3 – EDUCAÇÃO INTERCULTURAL BILÍNGUE: O INTERCULTURAL E O BILÍNGUE NA

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ................................................................................ 56

CAPÍTULO III – ENSINO DE MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

BILÍNGUE: A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CENTRO DAS ATENÇÕES

................................................................................................................................. 73

CAPÍTULO IV – OS USOS DO CONCEITO DE NÚMERO EM CONTEXTOS DE

DIVERSIDADE CULTURAL E LINGUÍSTICA ....................................................... 130

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 159

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 166

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INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa surgiu a partir de minhas inquietações em relação

aos vários lugares pelos quais passei e ainda passo, no decorrer de minha formação

profissional, dentre eles o de professor formador de professores indígenas, função

desenvolvida na Coordenadoria de Educação Indígena da Secretaria de Educação do

Estado do Tocantins. Nesta Secretaria, desenvolvia duas funções: atuava como

supervisor de escolas indígenas desse estado (onde tinha a função de supervisionar

pedagógica e administrativamente o andamento das unidades escolares indígenas

dos sete povos indígenas localizados no território do Tocantins) e também como

professor-formador do curso de Formação Inicial em Magistério Indígena, nível médio.

Esse curso, em que tive a oportunidade de vivenciar experiências de ensino e de

aprendizagem ricas junto aos alunos-professores indígenas, era oferecido pela

SEDUC-TO. Estávamos, tanto os professores indígenas quanto eu, professor-

formador, envolvidos por um ambiente recheado de diversidade tanto linguística

quanto cultural.

Ao longo de minha trajetória profissional, nessas duas funções, percebi que os

alunos-professores indígenas possuíam um arsenal cultural rico e diversificado, com

conhecimentos tradicionais produzidos ao longo de vários séculos, que poderiam ser

mais explorados no contexto da Educação Escolar Indígena, servindo como a base

de sustentação para a construção de material didático nas aulas de matemática dos

professores indígenas nas escolas de suas aldeias. O formato desse curso de

formação inicial, entretanto, começou a me inquietar, pois oferecia como base um

currículo multidisciplinar, com profissionais de diversas disciplinas que pouco

conversavam entre si, no sentido de desenvolver um planejamento conjunto que

possibilitasse uma forma particular de produção de conhecimento em detrimento de

outras. Quero evidenciar que o fato dos professores, em suas respectivas áreas, não

dialogarem entre si, se devia ao próprio formato do curso, que não abria espaço para

isso.

Como resultado dessas inquietações, comecei a fazer várias indagações na

busca por entendimento desses fenômenos. Dentre elas, algumas se destacaram:

como e de que forma esse ensino tem se materializado nas aulas de matemática?

Que estratégias o professor indígena mobiliza para ensinar matemática em escolas

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Introdução 15

indígenas, escolas essas que têm como pressuposto e baliza a Educação Intercultural

Bilíngue1? Esse ensino se dá em português ou o professor indígena procura traduzir

os conteúdos para a língua materna? Se essa tradução acontece, ela encontra eco

na cultura indígena ou está restrita apenas às aulas de matemática? Um dos

cominhos seguidos por essa investigação é entender melhor esses e outros processos

de ensino e de aprendizagem de matemática em comunidades indígenas, processos

esses entendidos aqui como práticas sociais, buscando, sempre que possível, o

diálogo entre esses saberes tradicionais e o conhecimento escolar com vistas a uma

possível intervenção pedagógica, diretamente ligada ao trabalho que realizei na

SEDUC-TO entre 2006 e 2013.

A presente pesquisa problematiza se será sempre possível construir pontes

que façam uma ligação entre uma cultura e outra por meio da linguagem. Nosso

referencial aponta, como será mostrado, que, uma vez que se trata de culturas

distintas, são abarcadas visões de mundo também distintas, com lógicas de

construção de realidades que podem envolver outras racionalidades ou gramaticas

distintas, as quais constituem um todo completo e complexo, com as normas vigentes

de uma cultura que não se reduz aos padrões estabelecidos da outra. Com isso,

evitam-se hierarquizações entre visões de mundo tão distintas nas quais uma pode

ser subjugada em relação à (s) outra (s).

Dessa forma, primeiramente apresento no primeiro capítulo a problemática

deste trabalho, as inquietações geradoras dessa pesquisa que contém o problema,

seguida dos objetivos geral e específicos. Na próxima seção do primeiro capítulo,

apresento o caminho percorrido para entender o problema, ou seja, a metodologia,

além dos sujeitos que alicerçam esta pesquisa: os professores indígenas das etnias

Xerente e Karajá. Finalizando o capítulo, explicito a justificativa para a realização

deste trabalho.

No segundo capítulo, dividido em três seções, apresento o contexto da

pesquisa. Na primeira seção, exponho a distribuição dos povos indígenas no Brasil de

acordo com um relatório preliminar realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística, além de dados referentes à quantidade de povos indígenas no Brasil,

1 A partir daqui, me referirei em alguns momentos à Educação Intercultural Bilíngue de forma abreviada, por meio da sigla EIB.

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Introdução 16

assim como as línguas indígenas atualmente faladas em nosso território. Entendo que

seja importante esse tipo de informação uma vez que, são dados que a maioria de

nossa população desconhece, apesar de sua extrema importância, pois evidenciam a

riqueza, a diversidade e a complexidade da formação de nosso país. Os referidos

dados quase não são explorados em nosso sistema educacional. Na segunda seção,

falo, de uma forma geral, do Estado do Tocantins e dos povos indígenas que vivem

neste estado. Nas subseções seguintes, faço o recorte, falando do contexto dos dois

povos indígenas, de onde provêm os professores indígenas entrevistados para a

realização deste trabalho, ou seja, falo um pouco dos povos Xerente e Karajá.

A terceira seção se intitula “Educação Intercultural Bilíngue: o intercultural e o

bilíngue”. Nela, discorro sobre o que vem a ser, no entendimento aqui proposto, por

meio da literatura analisada, a Educação Intercultural Bilíngue, a fim de problematizar

a compreensão intercultural e o bilíngue na educação escolar indígena, traçando um

panorama a partir da realidade que conheço.

No terceiro capítulo, intitulado “Ensino de Matemática e Educação Intercultural

Bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções”, apresento as

reflexões acerca da problemática desta pesquisa em torno do discurso favorável à

criação de novas terminologias em línguas indígenas, assim como à tradução, para a

língua indígena, de termos que expressem o conhecimento matemático. Isso, como

garantia de favorecer uma “boa” qualidade de ensino de matemática para os alunos

indígenas.

Para desenvolver essa reflexão, busquei inspiração no filósofo austríaco

Ludwig Wittgenstein (2000, 2008, 2014), mais especificamente nos conceitos de

Jogos de Linguagem, Gramatica, Formas de Vida, Uso e Semelhanças de Família,

desenvolvidos pelo filósofo, aporte teórico que inspirou também os estudos da

tradução. Procuro, também neste capítulo, analisar o material de campo, coletado a

partir de entrevistas com professores indígenas , observação de aula e o diário de

campo, tendo como referência os conceitos desenvolvidos por Wittgenstein. Ou seja,

as análises visam entender melhor as práticas dos professores indígenas no que diz

respeito ao ensino de matemática e às estratégias utilizadas por eles quanto às

palavras que não existem na língua indígena.

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Introdução 17

No quarto capítulo, discuto os vários sentidos, obtidos na pesquisa, atribuídos

ao conceito número em diversas culturas, analisando a multiplicidade não referencial

dos diversos usos em diferentes culturas do conceito de número, cujo sentido

depende do uso no contexto de aplicação, que pode ainda variar dentro de uma

mesma cultura. Para desenvolver essa discussão, utilizei exemplos referentes à forma

particular dos sistemas de numeração dos indígenas Xerente e Karajá, assim como

de outros povos, a fim de ilustrar essa diversidade de manifestações culturais e

sociais. Alicercei-me, para isso, em estudos – além dos já desenvolvidos nos capítulos

anteriores com Wittgenstein – sobre etnomatemática e transdisciplinaridade de

autores como Tereza Vergani, Bill Barton, dentre outros. Ainda para compor a

discussão desse capítulo, utilizei também as entrevistas com os professores Xerente

e Karajá, assim como o diário de campo já utilizado no capítulo anterior e observação

de aula.

Encerro este trabalho, enfim, com as considerações finais acerca deste

trabalho de pesquisa que procura trazer, no contexto da Educação Intercultural

Bilíngue, da Educação Matemática e dos Estudos em Etnomatemática, contribuições

dos estudos da tradução e da filosofia da linguagem para o ensino de matemática em

escolas indígenas. Evidencio, contudo, que os caminhos percorridos aqui, continuam

abertos, deixando um vasto campo de pesquisa a ser trilhado e explorado nos campos

de estudo colocados aqui em evidencia.

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CAPÍTULO I – A PESQUISA

1.1 – Problemática

Antes de explicar minhas inquietações que motivaram o surgimento da

problemática dessa pesquisa, cabe destacar logo de início, a forma como assumo,

aqui, o conceito de “saberes da tradição”, o que será visto ao longo do trabalho.

Entendo que há hoje, no Brasil e no mundo, um crescente número de estudiosos como

Edgar Morin, Fritjof Capra, Conceição Almeida, Edgar de Assis Carvalho, Boaventura

de Sousa Santos, dentre outros cuja literatura se propaga nos meios acadêmicos e

que questionam a estruturação da educação escolar, a qual divide o conhecimento

gerado pela humanidade ao longo do tempo em disciplinas.

Esse modelo de educação, que se origina em um período da história chamado

de Modernidade, já dá, há algum tempo, evidentes sinais de esgotamento por

priorizar, na sua essência, uma quase que total separação do homem com a natureza.

Trata-se de uma concepção que privilegia o conhecimento racional, gerado pela

ciência moderna alicerçada no método experimental, alçando a linguagem matemática

como uma das únicas – senão a única - linguagens capazes de traduzir de forma

inequívoca o conhecimento tido como verdadeiro.

Essa concepção de ciência acabou por menosprezar os conhecimentos

produzidos por sociedades tradicionais como as comunidades rurais, indígenas,

ribeirinhas, entre outras. Os conhecimentos provenientes desses povos receberam

denominações pejorativas, depreciativas, tais como folclore, primitivo, menor e não

científico. No rastro desse menosprezo, muito da sabedoria produzida pela

humanidade, por sociedades ditas tradicionais, simplesmente deixou de existir, em

favor da criação de sociedades hegemônicas, refletindo os interesses da cultura

chamada de cultura ocidental.

Com a percepção de que esta concepção de ciência, além de não resolver os

problemas da humanidade, ainda promoveu desigualdades sociais e guerras de

grande potencial destruidor, sobretudo durante o século XX, colocando em risco a vida

no planeta, começou a se difundir uma busca por uma mudança de paradigma, uma

nova concepção de mundo, de ciência que agora tenta unir, juntar o que foi

fragmentado durante séculos. Essa recente mudança de concepção– dentre outros

motivos – se deve à percepção de que o conhecimento não se dá de forma

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Capítulo I – A pesquisa 19

fragmentada, e que as populações tradicionais também produzem conhecimento,

pois, como bem evidencia Conceição Almeida,

Ao lado do conhecimento científico, as populações rurais e tradicionais, ao longo de suas histórias, têm desenvolvido e sistematizado saberes diversos que lhes permitem responder a problemas de ordem material e utilitária tanto quanto têm construído um rico corpus da compreensão simbólica e mítica dos fenômenos do mundo. (ALMEIDA, 2010, p. 48).

A autora argumenta que todos os seres humanos possuem as mesmas

estruturas cognitivas, porém as estratégias que se valem para interpretar o mundo

são distintas de uma sociedade para outra, encontrando criativamente formas

diferenciadas de agir sobre o mundo. Almeida diz ainda que

[...] talvez tenhamos que reformar nossas atitudes cognitivas para compreender, aprender e dialogar com modos de ver o mundo, por vezes, menos fragmentados e mais orientados por valores que se distanciam do mito do progresso econômico e do pensamento redutor da tecnociência. (IDEM, p. 48).

Não se trata, aqui, de querer substituir o conhecimento produzido pela Ciência

pelos conhecimentos tradicionais. Seria, no mínimo, ingenuidade pensar assim. O

conhecimento científico é importante e necessário, além de atender de forma eficiente

a muitos aspectos da vida moderna, porém não é suficiente e não responde a tudo.

Da mesma forma, os conhecimentos tradicionais também são importantes e

necessários e atendem, de forma eficiente, às especificidades das sociedades que o

produzem. Assim, é possível recorrer novamente à Conceição Almeida, que faz uma

excelente reflexão ao afirmar que

Os saberes científicos são uma maneira de explicar o mundo, mas existem outras produções de conhecimento, outras formas de saber e conhecer que se perdem no tempo e no anonimato porque não encontram espaços e oportunidades de expressão. É isso que acontece, em grande parte, com numerosos conjuntos de saberes construídos pelos intelectuais da tradição. Em diversos lugares espalhados pelo Brasil, mulheres dispõem de grande sabedoria para tratar doenças. Elas conhecem os segredos e as qualidades das plantas para curar enfermidades as mais diversas; sabem assistir os nascimentos, cuidar da alimentação da mãe depois do parto, tratar do recém-nascido, dizer o que se pode ou não se deve comer. Os homens, mais afeitos às longas caminhadas para o trabalho, sabem ler a natureza, compreender a linguagem dos animais e das plantas, os segredos da mata. Desenvolvem um rico conjunto de técnicas agrícolas, extrativistas, de pesca e de conhecimento sobre o ecossistema, mesmo que não registrem essa sabedoria por meio de palavras escritas em livros. Essa enciclopédia de saberes milenares corre o risco de se perder

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Capítulo I – A pesquisa 20

pelo ar, a menos que os registros da oralidade se propaguem por gerações seguidas ou que algum apreciador dessas cosmologias de ideias as eternize por meio das palavras escritas. (IBIDEM, p. 51).

Infelizmente, muito dessa sabedoria tradicional, em grande parte

desenvolvida há milênios, já se perdeu ou corre sérios riscos de desaparecer, em

devido à situação marginal em que foi colocada. E, quando está em evidência por

algum meio de comunicação ou é trabalhada nas escolas, geralmente aparece como

exótica e diferente, sendo que suas práticas socioculturais nem sequer recebem o

status de conhecimento.

De acordo com o que a autora coloca no final da citação, para que esses

saberes tradicionais não se percam, faz-se necessário, entre outras coisas, que se

multipliquem as pesquisas desenvolvidas nessas comunidades, nas mais diversas

áreas do conhecimento. Entretanto, para que, além disso, essas pesquisas possam

ser aplicadas e discutidas tanto na educação básica quanto no ensino superior, e mais

ainda, é necessário se formar profissionais também nas mais diversas áreas oriundas

dessas mesmas comunidades. Isso a exemplo da articulação das comunidades

indígenas que, ainda que timidamente, já se mobilizam, escolhendo membros de suas

sociedades para adentrar os mais distintos cursos de ensino médio profissionalizante

e superior para poder ajudar seu povo.

Diante do exposto aqui, reitero que a problemática geradora deste trabalho de

pesquisa surgiu, principalmente, da minha atuação como professor formador do curso

de Formação Inicial em Magistério Indígena do Estado do Tocantins, função que

desempenhei de 2006 até 2013. Em diversas ocasiões, no decorrer das aulas,

sobretudo nas apresentações de seminários apresentados em grupo pelos alunos-

professores indígenas, ocorria, não raramente, de os alunos - professores pedirem

para apresentar seus trabalhos, primeiramente, na língua materna para depois

apresentar em português.

Tal fato sempre me despertou interesse, pois, para mim, revelava determinadas

especificidades tanto culturais quanto – principalmente talvez – linguísticas no

ambiente da sala de aula, como por exemplo, a reafirmação da identidade dos alunos-

professores indígenas. Tratava-se de uma forma de afirmarem que, mesmo sendo

indígenas, pertenciam a grupos distintos, com características próprias. Isso mostra

que a identidade de cada grupo também se constrói na utilização da língua materna

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Capítulo I – A pesquisa 21

no ambiente de aprendizagem como o elemento aglutinador de cada grupo na sala de

aula.

No entanto, de acordo com o referencial adotado aqui, a língua, apesar de ser

elemento necessário para a afirmação do ser indígena, à ela são agregados outros

elementos culturais para expor essa afirmação concomitante ao uso da língua

originária. Isso porque outros traços característicos da cultura eram evidenciados em

suas falas, como por exemplo a exposição dos desenhos próprios da cultura de cada

povo (não sendo raro os alunos-professores irem pintados para a sala de aula) ou

outros elementos característicos, como adereços utilizados no corpo e levados para a

sala.

O modo de reafirmação da identidade se dava no ambiente da sala de aula do

curso, muitas vezes de forma competitiva, devido à presença ali de várias etnias, que

se distinguiam por meio da língua e, evidentemente, de outros elementos

característicos da cultura. Era possível identificar nas atitudes dos alunos- professores

indígenas, desta forma, que a língua os diferenciava dos demais grupos indígenas

presentes na sala de aula, assim como os diferenciava de mim, o professor formador.

Outra questão intrigante durante essas apresentações em língua indígena é

que, durante elas, algumas palavras em português eram pronunciadas, geralmente

palavras que denotam quantidade maior que quatro, como no caso do povo Xerente,

maior que o três, no caso dos povos Krahô e Apinayé. Além disso, quando precisavam

designar o zero, todos os povos falavam a palavra em português. Palavras que se

referiam a figuras geométricas também eram pronunciadas em língua portuguesa.

Essa foi sem dúvida, uma questão intrigante desde o início de minhas atividades como

professor formador do curso de magistério indígena.

E quando eu lhes perguntava, em algumas ocasiões, o porquê de falarem o

português para determinadas palavras, eles respondiam que aquela palavra não

existia na sua língua. Assim, foi possível também perceber, na prática, que o processo

de tradução ou criação de novos termos de uma língua para outra não é tão simples

como pode equivocadamente parecer. Isto pode estar relacionado com outras

questões que, além de envolverem a linguagem, envolvem também a cosmovisão

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Capítulo I – A pesquisa 22

daquele grupo nas relações que estabelecem com o mundo, a partir do local que esse

grupo ocupa neste mesmo mundo.

É possível, então, supor, ancorados pelo referencial teórico, que tal

problemática se estendesse para as salas de aula desses alunos-professores, nas

relações tecidas com seus alunos ao se verem diante de um currículo que limita. Ou,

dizendo de outra forma, um currículo que oferece uma pseudoabertura, porque

cerceia a criatividade, pois tende a explorar um tipo específico de conhecimento,

geralmente o que está presente nos livros didáticos, os quais propõem uma única

visão de mundo, já que esse é o único material que é distribuído nas suas escolas, e

a partir do qual são levados a trabalhar numa perspectiva bilíngue, basicamente tendo

que fazer traduções do português para a língua indígena.

Sobre isso, entendo que as propostas atuais que advogam por um currículo

nacional de base comum, torna razoavelmente fácil perceber como essa visão pode

estar na gênese da criação de hierarquias entre os povos. Para Apple (2013),

...muito embora os proponentes de um currículo nacional possam vê-lo como

meio de criar coesão social e de nos possibilitar melhorar nossas escolas avaliando-as segundo critérios “objetivos”, os seus efeitos serão justamente o oposto. Os critérios até poderão parecer objetivos, mas os resultados não o serão, dadas as diferenças de recursos e classe social e a segregação racial. Em lugar de coesão cultural e social, o que surgirá serão diferenças ainda mais acentuadas, socialmente produzidas, entre “nós” e os “outros”, agravando os antagonismos sociais e o esfacelamento cultural delas resultantes. (APPLE, 2013, p. 89).

Michel Apple faz sua análise a partir da realidade dos Estados Unidos da

América e da Grã-Bretanha, mas é possível perceber as semelhanças relacionadas à

nossa realidade, sobretudo quando o autor, ao continuar sua reflexão, nos diz que,

Em sociedades complexas como a nossa, marcadas por uma distribuição desigual de poder, o único tipo de “coesão” possível é aquele em que reconheçamos abertamente diferenças e desigualdades. O currículo, dessa forma, não deve ser apresentado como “objetivo”. Deve, ao contrário, subjetivar-se constantemente. Ou seja, deve “reconhecer as próprias raízes” na cultura, na história e nos interesses sociais que lhe deram origem. Consequentemente, ele não homogeneizará essa cultura, essa história e esses interesses sociais, tampouco homogeneizará seus alunos. (IBIDEM, p. 90).

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Capítulo I – A pesquisa 23

Não tenho aqui a intenção de fazer uma análise detalhada de como tem se

efetivado a implantação do currículo em escolas indígenas, embora reconheça que tal

análise seja necessária, sobretudo quando se tem como horizonte a diminuição de

desigualdades sociais. Destaco que qualquer discussão que se teça no âmbito da

educação envolve discussões a respeito de currículo.

O que tenho percebido, na realidade que conheço, é que, embora os

professores indígenas dispensem esforços para colocar em prática metodologias

menos fechadas, com a inserção de elementos da cultura, elas acabam esbarrando

em propostas curriculares homogeneizantes, que privilegiam uma forma particular de

conhecimento. Em consequência disso, sobra pouco espaço para uma discussão que

poderia ser enriquecida com a exploração de visões de mundo diferentes, que

contemplam a ideia de que o conhecimento acadêmico e outras formas de

conhecimento, longe de serem excludentes, embora sejam distintos, são na verdade

complementares.

Dessa forma, diante dessas inquietações, não podemos perder de vista que o

ensino da matemática escolar em comunidades indígenas enfrenta sérios problemas,

sobretudo pelo fato de que, sendo a matemática possuidora de uma linguagem

essencialmente formal e simbólica, de símbolos não familiares aos indígenas, essa

linguagem precisa recorrer à língua materna para se fazer transmitir. Porém, uma vez

que as línguas indígenas, em consonância com suas visões de mundo diferenciadas,

como será mostrado ao longo deste trabalho, não possuem em seu repertório

linguístico de suas formas de vida, palavras que possam ser associadas à matemática

dita ocidental, fica dificultado o ensino da matemática escolar na língua materna.

Cauty (2009), fazendo uma reflexão a respeito do ensino bilíngue, tece críticas

ao ensino de matemática em escolas indígenas. O autor argumenta que, pelo fato de

o ensino de matemática ser ministrado basicamente em línguas de matriz europeia

como o português, o francês e o espanhol, um dos objetivos da EIB não se concretiza

por não se usar a língua materna. Diz o autor:

[...] o ensino de matemática, por exemplo, está longe de ser mediado em línguas indígenas. Em outras palavras, o objetivo da política da escola bilíngüe não é automaticamente atingido. O resultado depende das condições

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Capítulo I – A pesquisa 24

de realização. Além disso, podemos ainda perguntar por que, nas comunidades indígenas, as aulas de matemática da escola bilíngüe se dão ainda maciçamente em língua européia – português no Brasil, francês na Guiana Francesa, espanhol na Colômbia etc. – enquanto um objetivo essencial anunciado é o reforço do uso das línguas indígenas? (CAUTY, 2009, p. 41 e 42).

O referido autor ainda anuncia três razões pelas quais não se ensina

matemática nas línguas indígenas, sendo, na sua visão, a primeira destas razões, o

“(...) fraco desenvolvimento das línguas especializadas e dos subsistemas como, por

exemplo, o da numeração. ” (IDEM, p. 42). O autor coloca como umas das possíveis

soluções para esse problema a criação de novas terminologias para as línguas

indígenas de termos que denotem as ideias da linguagem matemática em

comunidades indígenas. Ele ainda considera as línguas indígenas pouco eficazes

para cálculos matemáticos. Assim, para o autor, seria

[...] preciso começar pela criação das neonumerações nas quase duzentas línguas indígenas do Brasil cujas numerações faladas nomeiam apenas os primeiros numerais e se revelam penosos e inadequadas na execução de cálculos mesmo simples e com números inteiros inferiores a cem. (IBIDEM, p. 42).

Em trabalho anterior, Cauty (2001) explica melhor suas ideias sobre a criação

de neonumerações, ao relatar uma experiência de recontagem realizada com alunos

na Colômbia. Após a experiência, o autor é enfático ao dizer que

[...] se puede afirmar que las situaciones de enunciación conflictiva, que tienen lugar en el marco de una actividade de resolución de problemas, son un irremplazable motor de lá lexicogénesis y la morfogénesis. De ahí estas situaciones presenten un interes excepcional para lós responsables de la EIB, una de cuyas tareas más urgentes es la constitución de léxicos especializados en lenguas ameríndias. (CAUTY, 2001, p.68).

É evidente que essa situação conflitiva de que fala o autor diz respeito à

matemática escolar e, quanto a isso, os problemas relacionados ao ensino dessa

linguagem específica e simbólica, como já foi dito acima, não são problemas

localizados especificamente no universo das comunidades indígenas. Isso porque a

dificuldade no ensino dessa linguagem é perceptível também nas escolas não

indígenas, O que não deixa ser de interesse quando se pensa na EIB cujas

características, no que se refere às diferenças entre um grupo indígena e outro, são

tão distintas, pois, em escolas indígenas, talvez esse problema se potencialize pela

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Capítulo I – A pesquisa 25

diversidade cultural e linguística que se manifesta no ambiente de sala de aula de

diversas formas.

A segunda razão elencada pelo autor diz respeito justamente a essa grande

diversidade de línguas indígenas no Brasil – em torno de 275– fato que justificaria a

criação de novos termos para essas línguas, solucionando com isso, o “problema” do

ensino de matemática nessas comunidades – na visão do autor – dessa grande

diversidade linguística, dada a configuração de uma parcela significativa de escolas

indígenas que possuem alunos indígenas de diferentes povos, ou seja, falantes de

várias línguas no mesmo espaço escolar. Esse fenômeno obriga o professor –

indígena ou não – a falar em língua portuguesa nas suas aulas. Nas palavras do autor,

esta razão

[...] está ligada à imensa diversidade das línguas indígenas; isso faz com que o emprego do português nas escolas bilíngues seja uma solução de urgência adotada pelos professores (mesmo índios) que não falam (e não podem falar) todas as línguas representadas pelos alunos presentes em sala de aula. (CAUTY, 2009, p. 42).

A terceira razão enumerada por Cauty, se refere ao fato de que os mais velhos,

nas comunidades indígenas, aceitam o ensino da língua portuguesa para seus filhos,

ao passo que não veem a mesma utilidade de se ensinar a língua indígena na escola

por serem falantes da mesma. Para o autor, há um favorecimento no ensino da língua

portuguesa nas escolas indígenas, com relação ao ensino técnico, das ciências,

industrial, etc. Ou seja, a terceira razão

...está ligada ao fato de que os adultos compreendem e aceitam que seus filhos recebam um ensino da língua dominante (que muitas vezes eles mesmos não falam), mas não veem a utilidade no ensino escolar da língua indígena que é usada cotidianamente entre eles. (IDEM, p. 42).

O autor, contudo, é contumaz em seu posicionamento quanto à criação de

novos léxicos em línguas indígenas e, sobre essa afirmação de Cauty, o que proponho

é um amplo e profundo debate a respeito desse assunto, pois a questão não é tão

simples. Podemos, a esse respeito, nos perguntar por que seria necessária a criação

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Capítulo I – A pesquisa 26

de novas terminologias, para a língua indígena, que denotam uma linguagem

matemática em uma determinada cultura, conforme propõe Cauty.

Algumas considerações são necessárias, a começar pelo fato de que, conforme

será problematizado a partir de nosso referencial teórico, as palavras que fazem parte

do repertório linguístico ou léxico de qualquer grupo humano, possuem significados

que não são fixos, fechados para sempre. Cauty se apoia na ideia referencialista de

tradução, como se fosse possível que o significado de uma palavra, nas palavras

equivalentes de outras línguas fosse apenas um. Indo na direção oposta, Luft (2007)

explica a dinamicidade da linguagem, nos esclarecendo sobre o poder renovador e

criativo de toda língua, para o autor

Como o ser humano é dotado da faculdade de criar e recriar linguagem, é natural que toda língua, criação sua, seja um instrumento maleável, adaptatiço, com suficiente abertura à tradução e à expressão de quaisquer novidades no mundo da matéria e do espírito. ...O povo não se ocupa de ditar leis gramaticais ou estilísticas. Ele fala observando leis e regras naturais, fala porque vive, e fala como vive. Vive a gramática, a sua, nada tem a ver com interpretar ou disciplinar fatos da sua linguagem (LUFT, 2007, p. 131/144).

Assim, em conformidade com o que nos fala o autor, as palavras que fazem

parte do repertório linguístico de um povo possuem um significado flexível, aberto e

que depende do uso que os falantes dessa língua fazem da (s) palavra (s). Mais do

que isso, as palavras possuem vida e dizem respeito à própria leitura de mundo de

uma determinada sociedade.

Entretanto, na reflexão que se faz agora do problema, entendo que apenas a

criação de criar novas terminologias ou novos léxicos em línguas indígenas não

resolverá os problemas relacionados ao ensino de matemática nas escolas indígenas.

Longe disso, a alternativa dada como solução poderá ainda, causar novos problemas,

já que toda língua é completa e atende às necessidades do grupo que dela faz uso.

A língua, assim como toda cultura, é dinâmica e sofre alterações com o tempo, pois

está em permanente mudança. Essas mutações, no entanto, acontecem a partir de

necessidades que ocorrem dentro da própria cultura ou sofrem as influências que vêm

de fora da cultura em questão.

Algumas perguntas surgem nesse momento: essa criação de novos termos,

como sugere Cauty, de novas palavras para mediar o ensino de matemática em

escolas indígenas, será fruto das necessidades da cultura indígena ou será uma nova

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Capítulo I – A pesquisa 27

forma da cultura dominante exercer seu poder de dominação? A quem interessa

realmente essa criação de novas palavras? Às comunidades indígenas ou aos grupos

no poder da sociedade não-indígena como forma de difundir suas ideologias? O que

as comunidades indígenas ganham realmente com a criação de novos termos que

podem, na verdade, não fazer sentido algum na sua dinâmica cultural?

Como desdobramento destas indagações, outras possibilidades, de amplitude

maior, podem surgir para discussão. Primeiramente, como os projetos em curso de

Educação Intercultural Bilíngue nas comunidades indígenas estão sendo avaliados?

Se essa avaliação acontece, as comunidades indígenas fazem também essa

avaliação para saber se realmente estão de acordo com o que almejam com a

educação escolar em suas áreas?

Não tenho por objetivo responder a todas essas perguntas. Problematizá-las

talvez seja a maior contribuição deste trabalho. Ademais, a multiplicação de pesquisas

nesse campo poderá favorecer a compreensão de tais fenômenos em sociedades, na

perspectiva da diversidade cultural, como bem evidencia Cauty (2001), para quem o

acesso ao conhecimento científico, por parte dos povos indígenas, forma todo um

campo a ser investigado, a fim de que se possa compreender os efeitos desses

conhecimentos nessas comunidades,

Los procesos en curso en estas múltiples génesis siguen siendo poco conocidos, especialmente en las situaciones de gran diversidad cultural y linguística. No se sabe incluso si pueblos de lenguas y culturas verdaderamente diferentes pueden, sin autodestruirse, intercambiar y apropriarse de verdaderos cuerpos de conocimientos complejos, como, por ejemplo, una teoria cientifica o saberes chamánicos; y los ejemplos históricos son numerosos para mostrar que tales intercambios siempre provocaron modificaciones particularmente importantes, mestizajes de culturas o lenguas, el nacimiento de nuevas variedades de ciencia, la aparición de crisis e incluso de guerras de religión. (CAUTY, 2001, p. 54).

O autor não fica alheio quanto às modificações que outros tipos de

conhecimento podem provocar quando em contato com o conhecimento tradicional

dos povos indígenas, como podemos observar na citação acima. No plano legal, a

partir da constituição de 1988, a situação dos povos indígenas, no que se refere à

educação, tem tido ganhos consideráveis, a exemplo de avanços como o direito aos

processos próprios de aprendizagem, assim como a utilização da língua materna.

Pelo menos perante a constituição de 1988, o Brasil se reconhece hoje como

um país multicultural e plurilíngue. Porém, como já foi evidenciado, tal reconhecimento

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Capítulo I – A pesquisa 28

ainda não garantiu às comunidades tradicionais, como as comunidades indígenas,

participação efetiva nos projetos que as afetam diretamente. Trata-se de advogar por

uma participação ativa na elaboração desses projetos, não apenas como convidados

– como em muitos casos vem acontecendo – mas como parte fundamental e

necessária do processo referente à educação escolar em comunidades indígenas.

Há alguns fatores que devem ser levados em consideração. A saber: a) as

línguas indígenas não possuem palavras que estabeleçam relações com a

matemática; b) a grande quantidade e diversidade de línguas indígenas; c) a aceitação

e utilização, pelos mais velhos, da língua portuguesa na educação escolar; d) a

depreciação, por essas mesmas pessoas, do ensino da língua materna na educação

escolar. Essa conjuntura favoreceu a problematização sobre a proposta de se criar

novas terminologias, em línguas indígenas, que denotem uma ideia matemática,

como, por exemplo, a criação de novos números ou traduções da língua portuguesa

para a língua indígena. A partir disso, surgiu a seguinte questão que sintetiza a

pesquisa:

➢ Como lidar com a proposta, presente na literatura analisada, de se criar

ou traduzir novas terminologias em línguas indígenas que denotem a

linguagem matemática?

Seguindo o curso dessa indagação que norteia todo o presente trabalho, traço

como objetivo geral:

➢ Compreender em que medida, tanto a tradução quanto a criação de novos

termos para a língua indígena, cumpririam a intenção de transferência dos

significados e levaria os indígenas ao conhecimento matemático tido como

referência, no contexto dos povos Xerente e Karajá.

E como objetivos específicos, trago os seguintes tópicos:

➢ Entender como os professores indígenas estão lidando com concepções

de Educação Intercultural Bilíngue no ensino de matemática nas escolas

indígenas;

➢ Entender como se dá essa relação entre as concepções de Educação

Intercultural Bilíngue e o ensino de Matemática nas escolas da aldeia.

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Capítulo I – A pesquisa 29

Dada a diversidade de povos indígenas, e sua quantidade, como será possível

verificar na primeira seção do próximo capítulo, são necessárias propostas abertas

em torno da temática aqui referida e que estejam em consonância com essa

diversidade e quantidade. Qualquer tentativa de colocar em prática ações previstas

em documentos, que sejam homogeneizantes acerca da EIB contradiz a proposta de

uma educação intercultural, no sentido de possibilitar o diálogo entre saberes. Dada

também a situação de cada povo, que possui realidades que são também diversas e

numerosas, visões diferentes de educação escolar são encontradas até no interior de

um mesmo grupo indígena, podendo haver, com isso, divergências entre essas

concepções. Desse modo, não é possível tratar essa questão de forma homogênea e

nem harmônica, como bem evidencia Aracy Lopes da Silva (2001), quando enfatiza

que

Há, além do mais, uma grande diversidade de situações e de concepções indígenas divergentes quanto ao que deva ser a escola e ao papel que ela deve representar no presente e no futuro de cada um dos povos ou comunidades indígenas onde exista. (SILVA, 2001, p. 13).

E nem poderia ser diferente, uma vez que cada realidade indica e sinaliza que

os caminhos buscados podem ser semelhantes, mas também divergentes no que diz

respeito à luta por uma escola diferenciada, pois cada povo se constitui também de

forma diferenciada.

1.2 – Justificativa

A inclusão da escola em comunidades indígenas, ao longo de muitos séculos,

teve como característica fundamental a imposição da educação escolar a essas

comunidades, primeiramente pela coroa portuguesa e depois, pelo estado brasileiro.

Ambos tinham como meta fazer com que as comunidades indígenas assimilassem a

cultura da sociedade envolvente, se integrando com isso, à população brasileira. Esse

processo, que objetivava, como já dito, a homogeneização da educação, não

respeitava e muito menos valorizava os costumes e o conhecimento produzido por

essas comunidades tradicionais,

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Capítulo I – A pesquisa 30

Nos dias atuais, o que antes foi uma imposição, tornou-se reivindicação dos

próprios grupos indígenas, por entenderem que apreender os códigos da outra cultura

também é necessário devido às necessidades da situação de contato. A esse respeito,

D’Ambrósio (2002) é taxativo ao afirmar que se apropriar do conhecimento da outra

cultura pode ser positivo se suas raízes culturais estão fortalecidas, ou seja, nas

palavras do autor,

Conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes. Na educação matemática, a etnomatemática pode fortalecer essas raízes. De um ponto de vista utilitário, que não deixa de ser muito importante como uma das metas da escola, é um grande equívoco pensar que a etnomatemática pode substituir uma boa matemática acadêmica2, que é essencial para um indivíduo ser atuante no mundo moderno. (D’AMBROSIO, 2002, p.43).

Assim, conhecer a cultura do outro, longe de significar a perda da cultura

indígena, é antes uma forma de autoafirmação de sua própria cultura e, para além

disso, uma forma também de se manter vivo enquanto grupo diferenciado que é. No

bojo ainda dessas reflexões, Silva (2002) comenta que,

[...] a consciência das contradições e complexidades dos problemas e desafios enfrentados na realidade histórica vivida acrescentou (para a maioria dos povos indígenas) aos conhecimentos tradicionais a urgente necessidade de entender a dinâmica da sociedade majoritária, assim como de ter o domínio sob novos saberes, que os ajudem no encaminhamento de novas situações. (SILVA, 2002, p. 120).

Dessa forma, surge no cenário da sociedade indígena a figura do professor

indígena, que assume uma posição de liderança perante a sua comunidade, uma vez

que, além de ter o domínio de sua cultura, precisa também dominar o conhecimento

da sociedade não indígena. Cabe a ele fazer dialogar, articular conhecimentos

diversos para, de um lado, garantir a difusão da cultura indígena no ambiente escolar,

2 Destaque do próprio autor, que explica que a expressão significa ensinar na escola o que for realmente relevante para os alunos, deixando de lado aquilo que não é interessante para o aluno por ser obsoleto e só estar presente no currículo escolar por força da tradição do conhecimento matemático em nossas sociedades. (D’Ambrosio, 2002).

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Capítulo I – A pesquisa 31

dando sustentação à sua identidade étnico-cultural e, de outro, promover o acesso

aos códigos da sociedade não indígena, necessários às relações advindas da

situação de contato.

Diante do exposto, a intenção de realizar essa investigação, tendo como

suporte de reflexão a filosofia da linguagem do filósofo Ludwig Wittgenstein, é analisar

as possibilidades e desdobramentos da tradução e criação de novos termos em

línguas indígenas para o ensino de matemática nas escolas indígenas. Essa pesquisa,

cujo objetivo é problematizar o modo como tem sido conduzido o ensino de

matemática nas escolas indígenas, na perspectiva da Educação Intercultural Bilíngue,

no contexto dos povos Xerente e Karajá, se justifica então como pesquisa científica

pela busca de caminhos para compreender de que forma o professor indígena está

mediando o ensino da matemática escolar nas suas aulas, no que diz respeito à

Educação Intercultural Bilíngue, e também se essa mediação está de alguma forma

articulando os conhecimentos tradicional e escolar, em situações em que não há, em

línguas indígenas, palavras que possam estar relacionadas com a linguagem da

matemática escolar.

1.2 – Metodologia

O ser humano, ao longo do tempo, esteve e está envolvido na busca incessante

por conhecer o mundo e, quando falamos mundo, nos referimos a pessoas, culturas,

meio ambiente etc. Nessa busca, são percorridos vários caminhos, os quais estão

diretamente relacionados com nossa história de vida, pois buscamos compreender o

mundo a partir do lugar que nele ocupamos, motivados pelos valores que construímos

por nossas relações sociais, culturais e ambientais, o que acaba por transformá-lo.

Fazemos isso tanto no propósito de entendermos a nossa existência quanto de

adaptá-lo às nossas necessidades. Esse, talvez, seja um dos pontos chave que nos

diferenciam dos outros animais, pois, se assim não fosse, agiríamos motivados tão

somente pelos instintos, no sentido de sobrevivência e adaptação ao meio ambiente,

como fazem outras espécies.

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Capítulo I – A pesquisa 32

Diferentes grupos humanos, em diferentes espaços e tempos, então, percorrem

caminhos diversos para a compreensão e explicação da realidade. Dessa forma,

podemos pensar a prática social da pesquisa acadêmica como apenas um desses

infinitos caminhos e maneiras de nos posicionarmos frente aos desafios e

complexidade de nossa realidade, no intuito de compreender e explicar os fenômenos,

sejam eles da natureza social, cultural, ambiental etc.

Com essa reflexão, além de assumir neste trabalho, a pesquisa acadêmica

como um dos possíveis caminhos, reflito sobre a não supervalorização desse caminho

em detrimento das outras formas e caminhos que estão sendo trilhados por grupos

socioculturalmente diversos, tais como os grupos indígenas – aqui nesta pesquisa

colocados em evidência – quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, imigrantes, profissionais,

dentre tantos outros que conformam a riqueza e diversidade da humanidade ao redor

do nosso planeta.

Este trabalho que ora se apresenta tem como suporte balizador o exercício do

respeito pelos grupos estudados por saber que o conhecimento que aqui se busca

alcançar é um conhecimento provisório, datado e limitado. Além disso, utilizo o termo

estudados em um sentido mais amplo, calcado na interação recíproca entre todos os

envolvidos nesse processo de pesquisa, que busca a construção conjunta de um

conhecimento que possa subsidiar as reflexões que orbitam o que se convencionou

chamar, aqui no Brasil, de Educação Escolar indígena. Essa é, porém, uma discussão

mais ampla, não cerceada à EIB, uma vez que a realidade e formação de nossas

sociedades, em particular a do Brasil, está intrinsecamente alicerçada em concepções

de ensino de forma pluriétnicas e multilíngues.

Dessa forma, seguindo o curso dessas reflexões e tentando ser coerente com

elas, assumo a posição de não neutralidade perante a problemática que busco

compreender, que está relacionada à educação de uma forma geral e, mais

especificamente, à EIB. Nessa perspectiva, entendo que seja importante evidenciar

esse aspecto da pesquisa para tentar deixar claro que o conhecimento que se produz,

seja qual for, é produzido por pessoas, situado em contextos específicos, atendendo

a interesses específicos, e permeado, muitas vezes, por relações de poder,

carregando assim, os valores e as visões de mundo de quem o produz. Ou seja, o

conhecimento produzido pelo sujeito pesquisador, em interação com os sujeitos

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Capítulo I – A pesquisa 33

interlocutores dessa pesquisa, fruto de subjetividades múltiplas, pode se tornar um

conhecimento de abrangência social, na medida em que é aceito por seus pares, que

são partícipes de uma comunidade acadêmico-científica. Trata-se, portanto, de um

conhecimento provisório por estar inscrito em um espaço tempo específicos, de tal

forma que

...toda e qualquer teoria, por mais bem fundamentada que esteja em dados objetivos da realidade, é sempre produto da subjetividade e da intersubjetividade humana, já que é impossível ser totalmente objetivo em si mesmo. Ela resulta de um processo crítico e, muitas vezes, também criativo, intuitivo e sensível, além de uma lógica, produto de um nó górdio que liga subjetividade e objetividade. Mas é importante também destacar que o pesquisador não está isolado de uma comunidade científica que reconhece ou não a validade de sua pesquisa. (MORAES e VALENTE, 2008, p. 29).

Wagner (2012), ao se referir à prática da pesquisa desenvolvida pelo

antropólogo como cientista, defende que este deve assumir uma objetividade relativa

no lugar da noção clássica de objetiva absoluta. Para ele o pesquisador, mesmo que

procure ser imparcial tanto quanto possível, acaba por deixar as marcas da sua própria

cultura no estudo realizado, de forma que, muitas vezes, nem nos damos conta disso.

Para o autor, a constatação é que o pesquisador possui um viés que é determinado

por sua cultura.

Assim, entendo também que os processos de ensino e aprendizagem

carregam em si um alto grau de subjetividade, ou, nos termos de Wagner, uma

objetividade relativa que envolve alunos, professores e pesquisadores educacionais,

uma vez que, como resultado dessa subjetividade, cada pesquisador, ao desenvolver

sua pesquisa, carrega consigo seus valores, angústias, alegrias, sentimentos, sua

visão de mundo, que é o resultado de sua história de vida e estará intrinsecamente

presente na pesquisa realizada. Dessa forma, nas pesquisas sociais e educacionais

não se tem uma realidade objetivamente absoluta, independente dos valores do

pesquisador, não havendo, como consequência disso, uma separação entre sujeito e

objeto pesquisado, haja vista que, nessas pesquisas, o pesquisador é, ao mesmo

tempo, sujeito e objeto no processo de pesquisa.

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Capítulo I – A pesquisa 34

A realidade dos professores e alunos indígena, colocados sob análise nessa

pesquisa, não me era totalmente alheia, pois foram muitas as ocasiões em que fui

para as aldeias, tanto Xerente quanto Karajá, com a finalidade não apenas de

trabalhar. No meu caso, os laços de amizade que desenvolvi com os professores

entrevistados, de certa forma, influenciaram na realidade pesquisada.

Levando em conta esse fator, a pesquisa será orientada por uma abordagem

qualitativa com características e inspiração na etnografia, e as estratégias utilizadas

para a construção dos dados são de natureza diversa que englobam procedimentos

lineares e não lineares, abertos e flexíveis que foram surgindo no decorrer da

pesquisa. Sobre a etnografia, entendo que

[... ] é um processo guiado preponderantemente pelo senso questionador do etnógrafo. Deste modo, a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. Os instrumentos de coleta e análise utilizados nesta abordagem de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para atender à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo de pesquisa etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas questões propostas pelo pesquisador (MATOS, 2011, p. 50).

Destaco ainda, conforme nos alerta André (2012), que a pesquisa etnográfica

- indicada no contexto desta pesquisa como orientação etnográfica – não se restringe

às descrições, muitas vezes cansativas, dos fenômenos sociais estudados. Ao

contrário, a pesquisa etnográfica procura entender e reconstruir lógicas diversas, no

intuito de se aproximar o tanto quanto for possível, da realidade estudada. Para a

autora,

...a pesquisa etnográfica não pode se limitar à descrição de situações, ambientes, pessoas, ou à reprodução de suas falas e de seus depoimentos. Deve ir muito além e tentar reconstruir as ações e interações dos atores sociais segundo seus pontos de vista, suas categorias de pensamento, sua lógica. Na busca das significações do outro, o investigador deve, pois, ultrapassar seus métodos e valores, admitindo outras lógicas de entender, conceber e recriar o mundo(...) o trabalho etnográfico deve se voltar para os valores, as concepções e os significados culturais dos atores pesquisados, tentando compreendê-los e descrevê-los e não encaixá-los em concepções e valores do pesquisador (ANDRÉ, 2012, p. 45/46).

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Capítulo I – A pesquisa 35

Nesse sentido descrito pela autora busco, por meio das entrevistas, entender

como agem os professores indígenas ao ensinarem matemática, num contexto de

EIB, no que tange a tradução ou criação de palavras que não existem na língua

indígena, para expressar o conhecimento matemático. Pretendo, para além disso,

conhecer quais estratégias esses mesmos professores estão desenvolvendo para

lidar com esse fenômeno.

Além disso, no desenvolvimento dessa pesquisa, outros procedimentos foram

adotados: gravações em áudio, documentos, diários de campo. As entrevistas foram

realizadas com quatro professores indígenas que ensinam matemática, de dois povos

diferentes, quatro professores Xerente e outro professor Karajá. Inicialmente, minha

intenção era entrevistar somente um professor de cada povo, porém, ao chegar à área

Xerente, três professoras se mostraram solícitas em colaborar com a pesquisa, além

do professor, que eu já se tinha o interesse de entrevistar.

Essa diversidade de material para análise realizada neste trabalho de pesquisa,

que Fiorentini e Lorenzato (2010) chamam de processo de emparelhamento ou

associação, consiste em uma estratégia de análise de informações a partir de um

modelo teórico prévio. Dessa forma, a análise se materializa, buscando as

correspondências entre referencial teórico por mim utilizado previamente definido, e o

material empírico acima elencado. Segundo os autores,

Esa estrategia consiste en analizar las informaciones a partir de un modelo teórico prévio. Eso se puede hacer por intermédio de un apareamiento o asociación entre el cuadro teórico y el material empírico, verificando si hay correspondência entre ellos. El éxito del análises dependerá de la calidad y de la versatilidad del cuadro y de la gradación del análisis. (Fiorentini e Lorenzato, 2010, p. 106).

A referida estratégia de análise foi coerente, nos termos desta pesquisa, pois

me permitiu analisar tanto as falas dos professores indígenas quanto o restante de

material utilizado como fonte de análise, buscando as áreas de intersecção com a

filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein. Posso dizer que, de forma alguma,

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Capítulo I – A pesquisa 36

tentei fazer o diálogo entre o material empírico e o referencial teórico aqui utilizado,

para a compreensão da problemática em questão.

Passemos agora para a apresentação dos professores e professoras

entrevistados para esta pesquisa. Todos concordaram nessa forma de apresentação,

que inclui a divulgação de seus nomes. Vejo essa forma de apresentação dos sujeitos

como uma forma de melhor entender seus posicionamentos, suas concepções e suas

escolhas mediante suas ações como professores indígenas e também seus

posicionamentos em suas comunidades.

O professor e professoras entrevistados na área Xerente são:

➢ Antônio Samurú Xerente, casado, cinco filhos. Sua esposa é também

professora na escola da aldeia. Antônio Samurú possui uma graduação em

Pedagogia, pela Universidade Federal do Tocantins - UFT, Campus de

Miracema do Tocantins, concluída em 2012, e está em fase de conclusão

(final de 2015) do curso de Licenciatura Intercultural Indígena, pela

Universidade Federal de Goiás – UFG. Esse curso possui três habilitações,

uma das quais o aluno deverá escolher em determinado momento de sua

formação, a saber: Ciências da Linguagem; Ciências da Natureza e

Ciências da Cultura. Samurú escolheu esta última, Ciências da Cultura. Ele

é também formou-se em 2005 no curso de Formação Inicial em Magistério

Indígena, nível médio, oferecido pela Secretaria de Educação do Estado do

Tocantins - Seduc, além de ser Técnico Agrícola. Conta que é professor

desde 1998, tendo sido um dos primeiros de seu povo a entrar para uma

universidade. É professor concursado pelo estado do Tocantins e leciona

em duas séries, 3ª e 5ª séries, que funcionam em uma mesma sala de aula.

Acumula ainda as funções de professor, coordenador pedagógico, diretor e

cuida da parte financeira da escola.

➢ Diana Kéti Xerente, formada pelo curso de Formação Inicial em Magistério

Indígena, começou a lecionar na escola da aldeia quando ainda estava

fazendo a 4ª série do ensino fundamental, época em que iniciou o

magistério indígena. Atualmente, leciona para a 2ª série do ensino

fundamental na escola de sua aldeia. Diana cursava o Magistério Indígena,

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Capítulo I – A pesquisa 37

embora o curso promovesse encontros apenas nos meses de férias e

recesso escolar, ou seja, janeiro e fevereiro. Ela estudou também da 5ª à

8ª série em uma escola da cidade de Tocantínia.

➢ Rosalina Xerente, casada, formada pela Universidade Federal de Goiás –

UFG, na primeira turma de Licenciatura Intercultural Indígena, iniciada em

2007. É também da primeira turma do curso de Formação inicial em

Magistério Indígena, oferecido pela Secretaria de Educação do Tocantins -

Seduc, iniciado em 1999. Leciona na turma de 4ª série na escola indígena.

Foi a primeira professora na escola indígena de sua aldeia, tendo

começado a lecionar ano de 1989.

➢ Joana Xerente, começou a trabalhar como professora em 1994.

Atualmente, leciona em turmas multisseriadas da 1ª e 3ª séries e, é formada

pelo curso de Formação Inicial em Magistério Indígena, oferecido pela

SEDUC-TO e concluído em 2008. Iniciou o curso de Licenciatura

Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Goiás, mas parou por

motivos particulares. Foi a primeira mulher Xerente a se separar do marido

e a ficar com os filhos, contrariando a tradição Xerente, de acordo com a

qual os filhos, em caso de separação, ficam sob a responsabilidade da

família do pai.

A escolha do professor entrevistado da área Karajá se deu por dois motivos:

primeiro, pelo ato de ele ter trabalhado com a disciplina de matemática na escola da

aldeia e, segundo, por estar atualmente trabalhando na secretaria de educação do

estado do Tocantins. Isso quer dizer que ele conhecia os outros povos indígenas do

estado e estava, de alguma forma, em contato com os projetos de formação, inicial e

continuada, em desenvolvimento por esta secretaria. Assim o selecionei para

entrevista:

➢ Waxiy Maluá Karajá, é formado em magistério – não indígena – formação

que fez na cidade de São Félix do Araguaia, Estado do Mato Grosso.

Nascido e criado na aldeia Santa Izabel do Morro, na Ilha do Bananal,

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Capítulo I – A pesquisa 38

estado do Tocantins. Trabalhou como professor na escola de sua aldeia

durante três anos, lecionando para as séries iniciais. Deixou o trabalho

como professor quando foi aprovado no curso de Ciências Contábeis na

Universidade Federal do Tocantins – UFT, Campus de Palmas, passando a

morar na cidade de Palmas, capital do Tocantins, a partir de 1999, com a

mulher e os filhos, onde ele ainda reside. Sua esposa é formada em História

pela mesma universidade e hoje mora na cidade de São Félix do Araguaia

- MT, onde atua como professora da rede municipal de ensino desta cidade

desde 2016. Atua também como professora de História na escola da aldeia

Santa Isabel do Morro. Waxiy tem cinco filhos e atualmente trabalha na

coordenadoria de educação escolar indígena da Secretaria de Educação do

E estado do Tocantins, exercendo a função de técnico administrativo.

Durante o período que ministrou aulas na aldeia, lecionou especificamente

a disciplina de Matemática durante um período letivo, época em que faltava

professor dessa disciplina na escola.

O próximo capítulo será mostrado o contexto da pesquisa, o capítulo está

dividido em três seções. Na primeira seção será mostrado, de acordo com o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – dados referentes à distribuição dos

povos e línguas indígenas no Brasil, o objetivo é para dar uma visão panorâmica da

grande quantidade e diversidade desses povos em território brasileiro. Quantidade

essa que vem crescendo a cada censo realizado.

A seguir, na próxima seção, será mostrado o contexto dos povos indígenas

Xerente e Karajá, localizados no Estado do Tocantins, povos neste estudo colocados

em evidencia por meio dos professores indígenas entrevistados. Serão evidenciados

nesta seção aspectos culturais e sociais desses dois povos, para com isso,

entendermos um pouco suas características diferenciadas presentes nas atividades

sociais e linguísticas que formam o ser indígena Xerente e Karajá.

Para encerrar o capítulo, na seção três, será feito um percurso histórico e

motivações sociais a respeito do surgimento e interesse da Educação Intercultural

Bilíngue, interesse que não está restrito aos povos indígenas, mas também a todo

grupo com características culturais e linguísticas diferenciadas. Será feito nesta

seção uma discussão sobre essa modalidade de ensino e suas características

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Capítulo I – A pesquisa 39

peculiares. Ou seja, será visto o que significa o intercultural e o bilíngue na educação

escolar indígena, o que motiva em dias atuais a busca por um ensino que leve em

consideração a diversidade cultural e linguística dos povos indígenas, cujo objetivo

é fazer uma reflexão a partir dessa diversidade, que enseja a procura por modelos

não hierarquizados de conhecimento.

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40

CAPÍTULO II – O CONTEXTO DA PESQUISA

2.1 – Distribuição espacial dos povos e línguas indígenas no Brasil

De acordo com os dados divulgados pelo IBGE, referentes ao último censo

realizado em 2010, o Brasil possui atualmente 817 mil pessoas que se autodeclararam

indígenas, o que corresponde a um número expressivo se este número for comparado

a outros números referentes a outros países da América do Sul, embora esta

representatividade seja apenas 0,4% da população nacional. Esse número, de certa

forma, significa a eficiência nas políticas assimilacionistas e integracionistas a que

foram submetidos esses povos desde o Brasil colônia. Desse contingente, as regiões

Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram crescimento populacional das pessoas

autodeclaradas indígenas, enquanto que, nas regiões Sudeste e Sul, houve

diminuição dos autodeclarados indígenas em 39,2% e 11,6%, respectivamente. A

região Norte continua sendo a região com o maior contingente populacional indígena,

com 37,4% da população indígena nacional.

Quanto aos dados referentes às unidades da federação, o Estado do

Amazonas possui a maior população autodeclarada indígena, 167,7 mil, sendo que o

de menor população é o Estado do Rio Grande do Norte, 2,5 mil. Em 15 dos estados

brasileiros – a maioria – a população indígena está entre 15 mil e 60 mil indígenas.

No que se refere às línguas indígenas, segundo dados divulgados pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – referentes ao último censo, realizado

em 2010, o Brasil possui 274 línguas indígenas, faladas por cerca de 37,4% dos índios

com mais de cinco anos de idade. Seis mil falam mais de duas línguas. A fluência em

pelo menos uma delas foi verificada em 57,3% dos índios que vivem em terras

indígenas reconhecidas. Fora das terras, o índice cai para 12,7%. O português não é

falado por cerca de 130 mil índios, número que corresponde a 17,5% do total.

Ainda segundo os dados do IBGE, o Nordeste é a região com menor número

de terras reconhecidas e apresenta a menor proporção de falantes de línguas

indígenas que segundo João Pacheco de Oliveira, pode ser resultado da colonização.

Para esse autor, o nordeste, que foi a primeira área de chegada dos colonizadores

europeus no país, que proibiram os índios de falar sua língua, imputando-lhes ainda

a escravidão. Os colonizadores, em verdade, fizeram muito mais, como generalizar

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 41

os vários grupos humanos que aqui já estavam, ao classificá-los sob a mesma

alcunha, chamando-os todos de índios e ignorando as características que o

diferenciavam. Essa generalização reverbera até os dias atuais, mostrando a força

destruidora que foi para esses povos, como bem evidencia Maria Bergamaschi (2010),

que nos lembra que

Há também que se considerar uma recorrente generalização desses povos, reconhecidos como índios, cuja denominação, provinda de “um erro geográfico” dos que aqui aportaram no século XV, esconde as mais de 200 etnias de povos ameríndios do Brasil na atualidade. (BERGAMACHI, 2010, p. 135).

Paes (2003), também nos chama a atenção para esse problema que decorre

da generalização de colocar sob a mesma denominação (índio) uma diversidade

imensa de grupos humanos que possuem características bem distintas entre si. A

autora desenvolveu trabalhos no Projeto Tucum3, em Programas de Formação de

Professores Índios para o magistério entre 1996 e a 2000, no Estado do mato Grosso,

especificamente com o grupo Paresi em Tangará da Serra. Ela faz referência ao

caráter híbrido4 dos diversos povos indígenas, os quais, todavia, não deixam de ser

índios. Esse hibridismo é decorrente da situação de contato entre os diversos grupos

indígenas entre si e entre a sociedade não índia, assim como o acesso às diversas

formas de tecnologia. Paes argumenta que, apesar de serem

...diferentes as configurações dos mais de duzentos grupos indígenas espalhados pelo território brasileiro, sendo que um grande número destes já vive sob forma híbrida, embora nem por isso de ser legalmente índios. O processo de contato com a sociedade não-índia inseriu novos costumes e novas foras de utilização de utensílios de uso rotineiro, assim como trouxe novos instrumentos para uso nas aldeias, inventados e utilizados pela

3 Programa de Formação de Professores Indígenas para o Magistério, voltado para formar professores indígena para as séries iniciais do ensino fundamental. Este projeto foi realizado entre os anos de 1995 e 1999 no Estado do Mato Grosso. Teve um alcance em 16 municípios desse estado, com a participação de 11 grupos indígenas, com cerca de 200 professores indígenas (Toniazzo, 2002). Teve financiamento do Banco Mundial, tendo como meta “uma escola pública diferenciada, específica, bilíngue, intercultural e de boa qualidade.” (Projeto Tucum, apud Toniazzo, 2002, p. 33). 4 A autora faz uso desse termo no sentido referente a Néstor Garcia Canclini, para quem o Hibridismo

se refere a “...procesos socioculturales em los que estructuras o práticas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objetos y práticas.” Disponível em http://red.pucp.edu.pe/wp-content/uploads/biblioteca/100616.pdf. Acessado em 03/06/2016.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 42

sociedade envolvente. Onde antigamente havia somente casas construídas de materiais retirados da natureza, em dias atuais é comum as casas serem construídas de madeira ou mesmo de tijolos. Atualmente também utensílios domésticos industrialmente manufaturados são adquiridos no comércio das cidades e levados para a aldeia. (PAES, 2003, p. 91)

Analisar e refletir sobre esses dados é um dos passos coerentes para se pensar

a educação escolar indígena. Em um país com uma diversidade sócio linguística e

cultural tão grande, torna-se pelo menos perigoso, do ponto de vista político, cultural

e linguístico a manutenção de políticas públicas, em especial na educação,

homogeneizantes e ainda colonizadoras, colocadas em prática nas escolas das

comunidades indígenas.

2.2 – Contexto dos Povos Indígenas no Estado do Tocantins

O Estado do Tocantins foi criado no dia 05 de outubro de 1988 com a

promulgação da atual Constituição Federal, tornando-se o mais novo dos 26 estados

da República Federativa do Brasil. Está localizado a sudeste da região Norte, sendo

formado por 139 municípios e, conta, atualmente, com uma população estimada em

1.383.445 habitantes e uma área territorial de 277.621,858 km². Faz divisa com os

estados do Pará, Piauí, Maranhão, Bahia, Mato Grosso e Goiás. Tem como a capital

a cidade de Palmas, cidade planejada localizada na região central do estado, fundada

em 20 de maio de 1989. O estado possui a maior bacia hidrográfica situada

inteiramente em solo brasileiro, formada pelos rios Tocantins e Araguaia, sendo esses

rios de grande valor econômico e cultural. É um dos nove estados brasileiros que

formam a região amazônica, sendo a região norte do estado conhecida como Bico do

Papagaio, uma floresta de transição com o cerrado que ocupa 87% do território

tocantinense. Seu clima é tropical semiúmido.

O estado possui, atualmente, em seu território, os seguintes grupos indígenas: Xerente, Karajá de Xambioá, Apinayé, Krahô, Krahô – Kanela, Kanela do Tocantins,

Javaé e Karajá. Para a realização desta pesquisa, foram escolhidos os professores

de duas etnias: Karajá e Xerente. Essa escolha se deve a uma maior proximidade

com esses dois povos, que teve início em 2004, quando realizei uma especialização

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 43

em Educação Matemática na Universidade Federal do Tocantins, junto ao povo

Xerente e o povo Karajá, quando fui trabalhar na Secretaria de Educação do

Tocantins, no Departamento de Educação Escolar Indígena.

O povo Karajá está presente em duas áreas indígenas no Estado do Tocantins,

na Ilha do Bananal e Xambioá, localizadas ao norte do estado. O professor Karajá

escolhido para participar da pesquisa nasceu na aldeia Santa Isabel do Morro, na ilha

do Bananal, aldeia que mantém uma situação muito próxima com a cidade de São

Félix do Araguaia, separada da aldeia apenas pelo rio.

A localização dos povos indígenas com suas respectivas áreas no Estado do

Tocantins está distribuída conforme o mapa abaixo

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 44

Figura 1 – Localização dos povos indígenas no Estado do Tocantins

Fonte: Secretaria de Planejamento do Estado do Tocantins – SEPLAN

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 45

2.2.1 – Karajá

Os Karajá possuem aldeias localizadas nos estados de Goiás, Pará, Mato

Grosso e Tocantins, e formam, junto com os Javaé e os Karajá de Xambioá ou Karajá

do Norte, o povo Ynã. Os Karajá de Xambioá estão localizados no município de

Araguaína. Karajá e Javaé, tendo seus territórios situados na Ilha do Bananal – maior

ilha fluvial do mundo – localizada entre os rios Javaé e Araguaia, que faz divisa com

os estados de Goiás, Mato Grosso e Pará. Esta ilha abriga duas áreas de reserva

ambiental, ao norte o Parque Nacional do Araguaia, criado em 1956, e que abrange o

sudoeste do Estado do Tocantins e extremo norte da ilha do Bananal, e ao sul o

Parque Indígena do Araguaia. A Ilha fica com até 80% de sua área inundada no

período das chuvas, que ocorre de setembro a março. Estão presentes no parque

duas etnias indígenas: Karajá e Javaé. Os Karajá chamam sua língua de Ynã Ribé,

que significa nossa fala ou fala do povo. Essa língua pertence ao tronco linguístico

macro-jê e à família Karajá. “É subdividida em três dialetos: Javaé (ixyju mahãdu),

Xambioá (ixybiòwa) ‘amigo do povo’ e Karajá propriamente dito.” (PIMENTEL, 2001,

p.).

A Ilha do Bananal é considerada um dos mais importantes santuários

ecológicos do Brasil, por estar numa faixa de transição entre a Floresta Amazônica e

o Cerrado, com uma fauna e flora bem diversificadas. A fauna possui espécies como

a onça-pintada, garça, uirapuru, tartaruga, cobras de várias espécies como a sucuri,

jacaré entre outros animais. Trata-se de espécimes fortemente presentes na mitologia

e na cultura Karajá de várias formas, como na pintura corporal e nos artesanatos de

barro branco que eles confeccionam. Essa arte explica muito de sua visão de mundo.

O povo Karajá se autodenomina Ynã, que significa gente, povo. A denominação

Karajá, no entanto, é exterior a esse grupo e, segundo Toral (1992), é uma designação

de origem Tupi. Este povo tem uma forte relação com o rio Araguaia, de onde retira

boa parte de sua alimentação como peixes de várias espécies e tartarugas. A Terra

indígena Karajá, na Ilha do Bananal, é constituída por 6 Aldeias: Macaúba, Ibutuna,

Fontoura, Santa Isabel do Morro, JK e Tytemã. Cada aldeia possui uma escola

indígena. Esse povo possui uma longa história de contato com o não indígena, com

registros que datam do século XVII. Apesar dessa história de contato com a sociedade

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 46

não-indígena, conseguiram manter fortemente suas tradições culturais como o uso da

língua materna, pintura corporal, arte plumária, cerâmica como as bonecas que são

confeccionadas com o barro extraído das margens do rio Araguaia, além de suas

manifestações comemorativas, como a festa do Hetohoky – festa da casa grande –

que é uma festa de iniciação masculina, onde o jovem Karajá se torna homem em um

ritual que dura vários dias.

Nessa festa, os meninos, enfeitados com colares e pulseiras, passam por um

longo processo de preparação que inclui o canto e a dança. No ritual, os jovens

dançam e cantam em duplas. Cada dupla representa um animal (Wakuka, 2016)

referente à fauna característica do lugar onde vive esse povo. Wakuka enfatiza que

O ritual ou a festa da comemoração da passagem de menino para a fase adolescente é conhecido em Iny de Hetohoky, traduzido para a língua portuguesa de “casa grande”. É uma das principais festas do Povo Iny, todas as aldeias vizinhas participam. A finalidade do festejo é destinada para um tipo de batizado, na minha opinião tenho comparado como se fosse batizado do não índio, porque, passando esse processo, o menino recebe o nome de Jyré, como havia dito antes, mas é diferente porque a criança passa a ser um menino responsável, passa a fazer parte do grupo só de homens adultos, por isso comparo também como formação, na verdade é formação de jovem. O menino passa pelo processo com o direito de adquirir o saber cultural. A criação do processo é para os espíritos de animais da região – worsy – terem a oportunidade de expressar, de aconselhar cada iniciante, seja cantando, dançando ou fazendo outro tipo de dramatização através dos jovens pintados. Essa é uma das grandes importâncias das festas do Hetohoky, além de outros conhecimentos não citados aqui, que falam sobre o respeito e a preservação da natureza. Todo esse conhecimento é passado para os iniciantes ou jyré. (WAKUKA, 2016, p. 72-73).

Há também a festa de Aruanã, que está ligada à religiosidade deste povo, e da

qual participam somente os homens, ou seja, o acesso é negado às mulheres. A

disposição das casas Karajá é formada por duas fileiras paralelas ao rio, enquanto

que a casa de Aruanã está localizada “ Em oposição assimétrica ao lado do rio”

(LOURENÇO, 2008, p. 213). A festa de Aruanã possui um forte valor dentro da cultura

Karajá, pois, ainda segundo Lourenço (2008) " O xamanismo é o locus do saber

compartilhado na casa dos homens (ijoi heto) e capaz de permitir a realização dos

rituais de iniciação masculina e do ciclo anual da dança dos Aruanãs. ” (Idem, p. 2140).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 47

Há uma forte divisão social de gênero, com papéis sociais bem definidos entre

homens e mulheres. Os homens são responsáveis pela construção das casas, plantio

na agricultura, defesa do território, caça, sustento da família. Enquanto isso, às

mulheres cabe o cuidado da casa em geral e também com as crianças, além da

confecção das bonecas de cerâmica, conhecidas como Ritxoko, feitas de argila do

barro das margens do rio Araguaia e pintadas com urucum, jenipapo e carvão. As

bonecas Karajá foram oficialmente tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional – IPHAN –, em 2012, como patrimônio cultural do Brasil. Essas

bonecas retratam muito da cultura e sociedade do povo Karajá, inclusive as relações

de parentesco, assim como seus seres mitológicos, conforme ilustram as imagens

abaixo.

Figura 2 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá

Fonte: Acervo do autor, 2016.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 48

Figura 3 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá

Fonte: Acervo do autor, 2016.

Figura 4 – Bonecas de cerâmica Ritxoko Karajá

Fonte: Acervo do autor, 2016.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 49

Este povo tem na pintura um forte traço cultural, que está fortemente presente

em diversos segmentos de sua sociedade, como na confecção das bonecas, como é

possível verificar nas fotos acima mostradas, e ainda em outros tipos de artesanato,

além da pintura corporal, usada em diversas ocasiões e com diversas simbologias,

sendo que algumas pinturas representam animais. Abaixo, um exemplo de pintura que

é usada pelo povo Karajá.

Figura 5 – Pintura Karajá

Fonte: Ribeiro e Silva (2000 pp. 36-37).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 50

Os Karajá possuem um sistema numérico de base vigesimal, utilizando para

contar as mãos e os pés5. Para efeito dessa pesquisa, foi entrevistado um professor

oriundo da aldeia Santa Isabel do Morro. A escolha desse professor indígena se deve

pelo de eu conhecê-lo bem tanto quanto a comunidade, por meio das supervisões

pedagógicas como assessor de matemática da Coordenadoria de Educação Escolar

Indígena da Secretaria de Educação do Estado do Tocantins, onde trabalhamos

juntos.

A aldeia Santa Isabel do Morro está localizada à margem direita do Rio

Araguaia, distante da cidade de São Félix do Araguaia, a cerca de 4 km, logo na outra

margem do rio. Possui uma população em torno de 700 pessoas e a escola indígena

atende a 305 alunos indígenas, funcionando com o ensino fundamental do 1º ao 9º

anos e ensino médio, do 1º ano ao 3º ano. Do seu quadro de professores constam

professores indígenas e professores não-indígenas; 2 professores indígenas são

alunos do Curso de Magistério Indígena. A escola não possui turmas multisseriadas,

todas são regulares.

2.2.2 – Xerente

O povo Xerente se autodenomina Akwẽ, que significa gente importante, são

falantes de uma língua que pertence à família jê, e tem seu território localizado em

duas reservas indígenas: Terra Indígena Xerente e Terra Indígena Funil, com a cidade

de Tocantínia entre elas. Está distante da capital Palmas cerca de 70Km ao norte, na

parte leste do Rio Tocantins. O território Xerente, tem sido ao longo do tempo, palco

de tensões e conflitos entre os indígenas e a população não índia. A história de contato

dos Xerente com os não índios conta com mais de 250 anos e remonta ao século XVII

com a chegada das missões jesuítas e missões de colonizadores, como os

bandeirantes, na região centro-oeste do Brasil. Segundo dados da Coordenação

técnica local da FUNAI, referente à dezembro de 2014, no município de Tocantínia, a

área Xerente conta com 68 aldeias, sendo que nem todas são registradas pela FUNAI.

Esse povo se organiza socioculturalmente pela dualidade, em duas metades

sociais, chamadas de Doí e Wahirê, que se associam ao sol e a lua, respectivamente,

5 No último capítulo deste trabalho, vamos nos ater mais à numeração Karajá.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 51

evidenciando muito da cosmovisão desse grupo. Essas metades subdividem-se ainda

em seis clãs. Cada uma está associada a três clãs, possuindo cada clã uma forma de

representação, que se manifesta na pintura corporal. À metade Doí associam-se os

seguintes clãs: Kuzâ, que são chamados de os donos do fogo, representados na

pintura corporal por círculos pequenos; Kbazi, chamados de os donos do algodão,

representados na pintura corporal círculos médios; e o clã Kritó, chamado de os donos

da borracha, representado na pintura corporal por círculos maiores.

À metade Wahirê estão associados os seguintes clãs: Wairê, representados na

pintura corporal por listras finas no sentido vertical; Krozaké, representados na pintura

corporal por listras finas no sentido horizontal; e Kreprehi, que, na pintura corporal,

são representados por uma combinação de listras no sentido horizontal e vertical. Há

um profundo respeito entre esses clãs, conforme descreveu um grupo de alunos

Xerentes por ocasião da apresentação de um seminário em uma aula de matemática

no curso de Magistério Indígena: “ Portanto, a metade em círculo é uma família e a

outra metade é outra família, no entanto, a metade com a outra metade se respeita”6.

As pessoas pertencentes aos clãs de um dos partidos não podem se casar com as

pessoas dos clãs do mesmo partido. Por exemplo, quem é pertencente a um dos clãs

do partido Doí – Kuzâ, Kbazi e Kritó – somente poderá casar com quem for de um dos

clãs do partido Wahirê – Wairê, Krozaké e Kreprehi.

Em dias atuais, tem havido muitas mudanças nessas relações de parentesco,

que acabam por afetar essa forma tradicional de arranjos matrimoniais, sendo

possível verificar casamentos com pessoas pertencentes aos clãs do mesmo partido.

Esses rearranjos são, contudo, pouco comuns e ainda repudiados, principalmente

pelas pessoas mais velhas do povo Xerente. São relações patrilineares, ou seja, o

homem tem um grande poder. Um fato importante nessa sociedade é que, caso haja

a separação de um casal, os filhos ficam sob a responsabilidade do pai e sua família,

ficando a mãe fora do convívio com os seus filhos. Abaixo um desenho que representa

a pintura corporal de cada um desses clãs.

6 Essa descrição pode ser vista em Monteiro (2011, p. 121).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 52

Figura 6 – Pintura dos clãs Xerentes

Fonte: Monteiro (2011)

A sociedade Xerente, como já foi referido, é patrilinear e essa patrilinearidade

se reflete em vários aspectos da cultura deste povo. Além dessa divisão clânica dual,

há ainda uma outra divisão dual que acontece na corrida de tora masculina, que

dividem em duas metades, Stêromkwa e Htâmha, chamadas de partidos, um referente

ao partido que é representado com pintura da Sucuri e o outro ao partido com pintura

que representa o jabuti. Essa corrida é exclusivamente masculina, servindo para

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 53

demonstrar força física. Nesses dois partidos, há uma divisão que acontece quando

nascem os filhos de um homem de um partido, que acontece da seguinte maneira.

Quando nasce o primeiro filho de um homem que pertence ao partido Stêronkwa, por

exemplo, esse filho pertencerá ao mesmo partido do seu pai. Contudo, ao nascer seu

segundo filho homem, esse pertencerá ao partido oposto ao de seu pai, ou seja,

pertencerá ao partido Htâmha. O terceiro filho, ao nascer, pertencerá ao partido pai, o

quarto ao outro partido, e assim por diante, de forma que a divisão dos filhos seja de

forma igualitária entre os partidos. Abaixo, um desenho do formato das toras, feito por

um Xerente:

Figura 7 – Pintura das toras dos partidos Xerentes

Fonte: Acervo do pesquisador.

A antropóloga Lídia Barroso (2009), que estudou em seu doutoramento o povo

Xerente, também faz referência a essa dualidade, característica marcante desse povo.

Na abordagem da autora:

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 54

Expressa o sentimento de um povo que vive dividido em duas metades clânicas, e delas derivam suas representações. Para coisa a ser realizada é necessário a permissão de Deus e dos pares. Para os povos indígenas considerados como povos duais, entre eles os Akwẽ, as duas partes se completam, como o inverno e o verão, a noite e o dia, o sol e a lua. Os Akwẽ acreditam que a dualidade está em tudo que existe e por ser diferentes, para existir precisam uma da outra e assim, se completam. (BARROSO, 2009, p. 21).

Para esse povo, possuir nomes para expressar quantidades do um ao quatro

em sua terminologia tradicional (nomes esses que possuem uma relação direta com

elementos da natureza) não significa dizer que eles não saibam contar quantidades

maiores que quatro ou mesmo dizer que não saibam contar. A ideia que é dada pela

falsa impressão de que possuem um sistema numérico limitado, ao contrário, significa

que, em suas estruturas sócias e culturais, não houve – pelo menos até o presente

momento – a necessidade de se criar novas terminologias. Sobre isso, vamos nos

deter mais profundamente nos terceiro e quarto capítulos.

Atualmente, segundo dados obtidos junto à Fundação Nacional do Índio –

FUNAI – esse povo possui 68 aldeias, três das quais ainda não estão registradas

legalmente7, distribuídas em suas duas terras. E dessas, 31 aldeias possuem escolas,

segundo dados obtidos junto à Secretaria de Educação do Estado do Tocantins. Para

essa pesquisa, foi realizada entrevista com quatro professores da escola Indígena

Srêmtôwe, localizada na aldeia Porteira. É uma escola estadual, mas que funciona

em regime de convênio com o município de Tocantínia, e conta com 60 alunos

regularmente matriculados, segundo dados fornecidos por Antônio Samurú, que se

referem ao ano letivo de 2015. O Estado é responsável pelas turmas do 1° ao 5° ano

do Ensino Fundamental, enquanto que o município é responsável pela oferta da

Educação Infantil. Abaixo, duas imagens feitas da escola:

7 Coordenação Técnica local da FUNAI referente ao mês de dezembro de 2014.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 55

Figura 8 – Escola Estadual Indígena Srêmtôwê

Fonte: Acervo do autor, 2015.

Figura 9 – Escola Estadual Indígena Srêmtôwê

Fonte: Acervo do autor, 2015.

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 56

A escola possui, no total, oito funcionários, dos quais seis são professores,

sendo quatro deles concursados, mais uma merendeira e um vigia. Não possui Projeto

Político Pedagógico, assim como as demais escolas indígenas da área Xerente, com

exceção do Centro de Ensino Médio Indígena Xerente – CEMIX – como destacou o

professor Samurú.

Na próxima seção, me detenho em questões referentes especificamente à

Educação Intercultural Bilíngue, e o que vem a ser essa modalidade de ensino para

as comunidades indígenas. Abordo também a forma como a estamos interpretando,

ou seja, o intercultural e o bilíngue no contexto da educação escolar indígena.

2.3 – Educação Intercultural Bilíngue: O Intercultural e o Bilíngue na

Educação Escolar Indígena

Tendo como centro a questão da tradução de termos no cenário da Educação

Intercultural Bilíngue, o objetivo desta seção é apresentar um aprofundamento nos

sentidos de intercultural e bilíngue nas práticas educativas colocadas em evidencia

nas escolas indígenas desta pesquisa. Trata-se de algumas das escolas indígenas do

Estado do Tocantins.

Primeiramente, situo historicamente o pano de fundo sob o qual se configuram

os interesses para o surgimento desse modelo de educação diferenciada. Busquei,

neste estudo, as raízes dos movimentos que reivindicam uma educação com

características diferenciadas das minorias étnicas, presente nos Estados Unidos,

Brasil e América Latina como um todo.

Para tanto, pautei-me em autores e autoras que, de alguma forma, estão muito

próximos a esses temas, no âmbito da formação em universidades que adotaram

projetos com enfoque em cursos específicos relacionados à temática indígena. São

pesquisadores que trabalham junto a agências nacionais ou internacionais, as quais

tratam das políticas referentes à implantação de projetos de EIB. Busquei dialogar

com autores e pesquisadores de outros países porque, guardadas as especificidades

locais que cada povo enfrenta, vejo algumas semelhanças entre os problemas

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 57

enfrentados por esses povos e os sujeitos dessa pesquisa, também quanto aos

caminhos trilhados para a solução desses problemas. Um exemplo é a busca de

caminhos educacionais que, para além de possibilitar o acesso ao conhecimento que

se faz necessário às situações de contato, valorize também a manutenção das

sabedorias tradicionais de seus povos, assim como a utilização de suas línguas

maternas.

As reflexões acerca do papel da educação em sociedades diversas e

multiculturais dentro de um mesmo país é um dos pilares que motivam a busca por

um ensino que dê conta dessa diversidade social e cultural. Importa ainda ressaltar

que, segundo Pimentel (2010), as motivações e interesses por uma maneira

diferenciada de educação, que dê conta das trocas interculturais e das relações de

poder inerentes a esses processos, se deu forma diferenciada entre alguns países.

Pimentel (2010) chama a atenção para o fato de que esse interesse surge não

com propósitos pedagógicos e sim a partir dos interesses sociais, políticos,

ideológicos e culturais e, por que não dizer, também econômicos. Enfatizo o interesse

econômico porque em sociedades capitalistas como a nossa, é necessário que se

chame a atenção dos diversos setores da sociedade para o consumo, e é possível

perceber interesses dessa natureza em torno das comunidades indígenas em vários

setores da economia. Um exemplo é o interesse de grandes editoras pela elaboração

de materiais didáticos com teor indígena, sem que haja, no entanto, uma preocupação

em realizar pesquisas a fim de se conhecer o funcionamento dessas sociedades para

alicerçar a elaboração de tais materiais.

Pimentel (2010) situa então, na EBI, a origem dessa preocupação com

finalidades pedagógicas há “aproximadamente há trinta anos, nos Estados Unidos, a

partir dos movimentos de pressão e reivindicação de algumas minorias étnico-

culturais, especialmente negras. ” (PIMENTEL, 2010, p. 11). De acordo com a autora,

as motivações que alicerçam o surgimento das discussões interculturais se dão de

variadas formas e atendem a interesses diversos. A autora afirma ainda que “Na

América Latina, a preocupação intercultural surge a partir de outro horizonte. Essa

abordagem surge no movimento das populações indígenas. ” (IDEM, p. 11).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 58

Paes (2003), por sua vez, situa na década de 1970 o surgimento de

movimentos organizados de professores indígenas, que tinham como bandeira de luta

o acesso e a garantia de uma escola com características próprias e específicas para

as comunidades indígenas. Segundo a autora, “já nos anos de 1970 surgiram

movimentos de professores indígenas que produziram documentos escritos – o

mesmo instrumento utilizado pela sociedade civil organizada – para garantir o direito

de uma educação específica às suas realidades. ” (PAES, 2003, p. 93).

Assim, no Brasil, os povos indígenas começaram a se organizar de variadas

formas e a reivindicar direitos que, no sentido contrário da negação, reforçassem e

reafirmassem a identidade indígena. Essa reafirmação passa por uma educação que,

além de respeitar a cultura indígena, seja também problematizada no espaço escolar.

Do mesmo modo, a Educação Intercultural Bilíngue busca o diálogo intercultural, o

acesso ao conhecimento que vem de fora, mas o faz ou busca fazer numa atitude que

Pimentel (2010) chama de descolonizadora do saber.

A Educação Intercultural Bilíngue procura uma não hierarquização de

conhecimentos, concepção de acordo com a qual um conhecimento, geralmente o

ocidental, não é mais colocado como o mais importante e verdadeiro em detrimento

de outros tipos de saberes, que estou chamando aqui de tradicionais, que foram – e

de alguma forma ainda são – classificados como folclore ou exótico. E isso se faz por

meio das línguas, as línguas indígenas e o português aqui no Brasil, ou línguas

indígenas e o espanhol no restante da América latina, ou seja, as línguas servem

como instrumental e também como construção de conhecimento e de acesso à

racionalidades diversas, pois cada uma carrega consigo uma lógica própria de ser, de

estar e modificar o mundo.

Paes (2003) nos faz recordar que o diálogo intercultural, contudo, não é tão

simples como se pode equivocadamente imaginar. A autora retoma o período histórico

no qual se deu o contato com os povos indígenas e o que estava no cerne do

pensamento da época, quando da introdução da escolarização a esses povos. Dessa

forma, nos faz recordar que

...o contato entre índios e não-índios iniciou-se num período marcado pelo

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 59

pensamento moderno do desenvolvimento em busca de um saber universal e de ênfase na igualdade de condições, sendo a postura disciplinar – de normas rígidas e de controle absoluto dos comportamentos – a tônica das trajetórias escolares implementadas por missões religiosas da época e que se efetivaram ao longo da história. Dessa forma, o processo escolar que os índios vieram a conhecer baseia-se nesta perspectiva: na crença de uma suposta superioridade de um saber verdadeiramente científico e confiável, ao qual mesmo muitas pessoas da comunidade não-indígena também ainda não têm total acesso. (PAES, 2003, p. 92).

Assim, em acordo com o que a autora postula, implementar uma EIB para os

povos indígenas, requer muito mais que boa vontade e o que está preconizado nas

leis brasileiras referentes a essas comunidades requer primeiramente, e acima de

tudo, uma mudança de postura e de pensamento, cultivado durante vários séculos.

Trata-se de uma mudança que envolve tanto as pessoas não-indígenas quanto os

indígenas, uma vez que a força do pressuposto que eleva o conhecimento científico

como a única forma de saber válido é forte e ecoa para além das escolas indígenas,

que ainda mantêm modelos de educação baseados na transmissão de

conhecimentos, como mais uma vez afirma Paes, para quem

Há que lembrar que a perspectiva e a proposta que temos hoje de escola do sistema de educação nacional e suas funções, quanto à formação de cidadãos críticos, políticos e conscientes – discurso mais corrente de norte a sul em nosso país – vêm sendo construídas em nossas sociedades através de muitas discussões nas últimas três décadas, sem, no entanto, dar conta, ainda, de cobrir todas as ações em todas as esferas da comunidade escolar nacional, no sentido de provocar mudanças efetivas. Por mais que os educadores discutam e formulem propostas “inovadoras”, é comum ainda percorrermos inúmeras escolas e encontrarmos metodologias e currículos de cunho bacharelesco, preocupados com acúmulos e repetição de conteúdos dentro de um modelo tradicional. (IDEM, p. 93).

No Brasil, pelo menos na realidade do Estado do Tocantins com a qual tenho

maior contato, se tem confundido a educação intercultural bilíngue com o ensino de

línguas, ou seja, criam-se disciplinas como línguas indígenas, arte e cultura ou história

do povo para ensinar na língua indígena, enquanto que para ministrar disciplinas como

geografia, história, matemática, usa-se o português, cobrando do professor indígena

a tradução desse conteúdo para a língua indígena. Não se faz uma reflexão profunda

sobre o que significa a língua para esse grupo, quais as implicações socioculturais de

ser falante desta ou daquela língua, e as implicações destes significados para a

constituição de determinado grupo. Silva (2012) propõe como uma meta fundamental

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 60

a compreensão das diferenças entre o que a autora chama de educação bilíngue de

transição e educação bilíngue intercultural. Segundo Silva, a educação bilíngue de

transição servia como o instrumento pelo qual se introduziriam os indígenas no mundo

da escrita, deixada de lado propositalmente após esse período. Dessa forma, as

línguas indígenas serviram – e acredito que, em muitos casos, ainda servem – para o

propósito de homogeneização da nação, com os grupos indígenas – entre outros –

sendo integrados a essa nação que se queria homogênea. Em relação à educação

bilíngue intercultural, a língua indígena passa a fazer parte de todo o processo de

escolarização, desde a alfabetização, se tornando assim, o meio pelos qual se produz

e se adquire conhecimento.

Enfatizamos que, na EIB, na realidade que tenho acompanhado, a tradição oral

dos povos indígenas é colocada de lado por parte dos profissionais ligados à

educação escolar indígena, no âmbito da secretaria de educação, valorizando com

isso nosso modelo ocidental de tradição escrita. O que tenho percebido é que se cobra

dos professores indígenas a tradução de textos escritos em Português para a língua

indígena e isso se dá, via de regra, por meio do livro didático, ou seja, cobra-se dos

professores indígenas que utilizem em suas aulas e, em especial, nas aulas de

matemática, o repasse ( e é essa palavra mesmo, repasse ) do conhecimento contido

no livro didático. Geralmente o mesmo livro utilizado nas escolas das cidades, da

sociedade não indígena, que mostra apenas um lado de nossa história e prioriza

apenas um tipo de conhecimento, em geral, o conhecimento acadêmico, que adquire

assim, status de superioridade sobre os demais tipos de conhecimento.

Nesse sentido, como já foi assinalado acima, há muita confusão a respeito do

que se entende por EIB e sobre essa sigla há muitas propostas de cunho colonizador

em andamento, pois não contemplam as especificidades sociolinguísticas e culturais

de cada povo. A esse respeito Pimentel (2010), evidencia que

O desejável do ponto de vista da educação bilíngue intercultural é gerar o intercâmbio recíproco de saberes, conhecimentos, técnicas, artes, línguas etc., sem discriminação, traduzido na igualdade de oportunidades. Propõe-se superar a tradição histórica das relações de exclusão, desigualdade, opressão e assimetria cultural e linguística que se acentuou desde a Colônia, que se consolidou na República e ainda é vigente em nível social, cultural, linguístico, político e, sobretudo, econômico até os dias de hoje. (PIMENTEL, 2010, p. 12).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 61

A referida pesquisadora é docente de um curso de Licenciatura Intercultural

Indígena, ofertado pela Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, e que recebe

alunos e alunas de várias etnias indígenas dos Estados de Goiás, Tocantins e Mato

Grosso. Para ela,

Numa proposta de educação intercultural a abordagem transdisciplinar incide na construção de pontes que entrelaçam dialogicamente as diferentes culturas e modos de conhecimento, afirmando a importância das suas peculiaridades, mas apontando para os seus nexos de complementaridade. A transdisciplinaridade, assim vista, considera que os grandes pilares do conhecimento e de sabedoria humana são necessários nos processos educativos para a formação da globalidade do ser. Isto é, na transdisciplinaridade não só os conhecimentos ditos científicos são validados, mas também todos os saberes e sabedorias. Reconhece o direito de cada ser humano, quaisquer que sejam sua cultura e seu modo de existir. (PIMENTEL, 2010, p. 14).

Refletindo sobre essas considerações, não se pode deixar de considerar a

grande diversidade de povos indígenas existentes no Brasil, como foi evidenciado nos

dados divulgados no início do segundo capítulo. Cada povo carrega em si uma

realidade distinta, exigindo assim, um modelo de educação escolar que seja próprio

de cada povo, que leve em consideração suas especificidades, seus modos próprios

de ser e estar no mundo, ou seja, suas cosmologias diferenciadas.

Nesse sentido, Paula (1999), que desenvolveu pesquisas junto à etnia

Tapirapé, considera que a institucionalização da EIB se dá a partir de uma realidade

já existente, advinda da situação de contato de indígenas com os não-indígenas,

sendo que esta situação advinda do contato acaba por se fazer refletir nas escolas

indígenas. A autora argumenta que

O binômio intercultural e bilíngue é considerado como constitutivo da

categoria “escola indígena”. Essa preocupação em afirmar os currículos educacionais indígenas como interculturais nasce de uma situação já existente de fato. Ou seja, antes de a escola ser intercultural, as sociedades indígenas já estão se relacionando com a sociedade não indígena, desde o momento do contato. E o modo como ocorrem essas relações se reflete no cotidiano da escola. (PAULA, 1999, p. 76).

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 62

A autora continua ainda seus argumentos sobre o fato da escola indígena, por

se pretender ser diferenciada, e envolver uma diversidade muito grande de povos

distintos, abarcar várias concepções acerca do que se entende tanto por

interculturalidade quanto por bilinguismo. Dessa forma, longe de vermos essa

característica como um empecilho à implantação de uma educação intercultural,

vemos sim, ao contrário, como um enriquecimento, como a garantia de uma escola

indígena realmente diferenciada. Assim, nas palavras da autora, e concordando com

ela,

..., se, por um lado, há um consenso quase unânime de que a escola

indígena, deva ser intercultural, por outro, parece haver várias concepções sobre o modo como a interculturalidade se concretiza no dia-a-dia de uma escola indígena. Por isso, parece-nos importante aprofundar a discussão sobre este assunto, colocando na ordem do dia quando se trata de educação escolar indígena. (IDEM, p. 77).

É justamente por haver uma grande variedade de concepções, que concordo

com a autora sobre a importância de um maior aprofundamento sobre a questão. Não

atentar para esse fenômeno acaba por viabilizar, em comunidades indígenas, projetos

de educação homogeneizantes e descaracterizadoras. Como tenho observado, uma

experiência em ambiente de aprendizagem que dá certo em uma comunidade

específica pode ou não dar certo em uma outra comunidade. Em princípio, é coerente

refletir sobre isso antes que se adotem tais modelos em larga escala com

possibilidades de virar política pública, pois a educação intercultural bilíngue é um

processo em construção, aberto e se faz no diálogo com (e não para) os povos

indígenas.

O anseio por uma educação que seja intercultural sinaliza para o caráter

multicultural de nossa sociedade, o qual não está restrito à área da educação, e é,

sobretudo, um palco de lutas e disputas políticas, que envolve relações de poder, onde

um grupo dominante tenta – geralmente consegue – sob diversas estratégias, impor

seus valores, e com isso, manter na subserviência os grupos minoritários de forma a

garantir a manutenção de seus interesses. A educação intercultural, por meio dos

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 63

estudos multiculturais, está na contramão dessas disputas políticas de poder, pois não

a nega, mas problematiza essas relações de poder e exige, com isso, uma educação

que não negue nem folclorize as culturas de grupos minoritários. Além disso, exige

também uma relação mais equilibrada entre as diversas culturas, pois reconhece, na

diversidade cultural e também linguística, a riqueza de nossa espécie.

Nesse sentido, os estudos do multiculturalismo entram em campo, em grande

parte, amparados pela antropologia, para desmistificar e desnaturalizar uma suposta

superioridade de uma cultura em relação às outras, tentando evitar, com isso, o

estabelecimento de hierarquias entre elas. Entendemos ainda que, para além de um

currículo que possibilite uma abordagem em igualdade de condições às diversas

forma de conhecimento produzidas por diferentes culturas, seja salutar uma análise

dos processos que envolvem o campo das relações de poder que estabelece essas

hierarquias e a superioridade de uma cultura em detrimento das demais com base nas

diferenças culturais. A esse respeito, Silva (2010) nos alerta para o fato de que a

mudança curricular passa também na forma de se discutir as identidades e diferenças

produzidas socialmente. Para o autor,

...o multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não pode ser obtida simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo hegemônico existente, como nas reivindicações progressistas anteriores. A obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo existente. Não haverá “justiça curricular”, para usar uma expressão de Robert Connell, se o cânon curricular não for modificado para refletir as formas pelas quais a diferença é produzida por relações sociais de assimetria. (SILVA, 2010, p. 90).

Dessa forma, refletir sobre a produção dessas relações sociais de assimetria é

tão necessário quanto introduzir no currículo os conhecimentos produzidos pelas

culturas de grupos socialmente minoritários, pois é nessa reflexão que se alicerça a

busca de caminhos para se evitar essas relações sociais de assimetria.

Tomamos então, a cultura como algo inerente à nossa própria existência, sem

contudo, advogar uma suposta essência cultural – que não existe na concepção que

adotamos aqui – essência essa que estaria presente de alguma forma em todas as

culturas. Entendo que seja justamente uma busca por algo comum a todas as culturas

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 64

que instituiu modelos homogeneizantes de comportamento que foram, sobretudo no

período que ficou conhecido por modernidade, responsáveis pela negação do

diferente. Trata-se de uma negação que segregou, marginalizou, excluiu e aniquilou

grupos étnicos diferentes, como os indígenas e africanos, que por ocasião de nossa

colonização, não se subordinaram passivamente a esses modelos hegemônicos e

homogeneizantes, que tentavam enquadrá-los a um único tipo de comportamento,

visto como o melhor e superior aos demais.

Dessa forma, vemos a EI como um posicionamento que, ao invés de negar,

assume a coexistência de diferentes culturas no espaço educacional, com seus

variados sistemas simbólicos igualmente importantes para as pessoas que desses

sistemas fazem parte. Não nos iludimos, que essa coexistência de diferentes visões

de mundo se dê de forma harmoniosa. Ao contrário disso, ela é um espaço de disputas

e se dá na tensão que, contudo, possibilita o estabelecimento de estratégias que

primam pelo respeito mútuo, ao diferente, e também pela não edificação de muros

intransponíveis e incomunicáveis entre as pessoas de culturas diferentes.

Insisto no posicionamento de que a EI não está restrita e nem é um privilégio

de pessoas de etnias diferentes no ambiente educacional. É, antes de tudo, uma

atitude de abertura ao diferente, que poderá fazer parte de todas as escolas, sejam

elas indígenas, quilombolas, rurais, urbanas, públicas, privadas, etc., sendo direito de

todos (professores, alunos, funcionários) de participar de espaços multiculturais.

Um ponto que merece destaque com relação à EI e que se torna parte

fundamental na promoção de uma educação que trate com respeito às diversas

manifestações culturais vivenciadas pelos seus integrantes, diz respeito à formação

do professor, tanto a formação inicial quanto a educação contínua. A EI não se dá de

forma simples, do dia para a noite, pela boa vontade de quem a defende, muito menos

pela boa vontade dos governantes, mas é resultado de uma luta constante dos povos

indígenas que se organizaram e continuam se organizando, exigindo o

reconhecimento e a valorização de manifestações de seus valores culturais.

Por conseguinte, se a EI possui um poder transformador, pelas diversas

características que a distinguem de uma educação tradicional, esse potencial

transformador passa necessariamente pela formação dos diversos atores que atuam

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 65

no âmbito da educação. Neste contexto, trata-se dos profissionais que atuam na

educação escolar indígena. Assim, a formação é peça chave na promoção de uma EI

que esteja aberta ao novo, ao diferente, que evita visões unilaterais e homogêneas,

que entende que os problemas atuais, pelos quais passamos, incidem na busca por

caminhos e alternativas diversas, multidirecionais, como uma teia que se expande em

diversas direções. Uma formação que problematize os fenômenos de forma

interdisciplinar e transdisciplinar nas relações entre as diversas áreas do

conhecimento, ultrapassando as fronteiras disciplinares que nos limitam, nos cerceiam

com uma única visão de mundo.

Ainda que estejamos pautando nossas reflexões especificamente com relação

à educação escolar indígena, estamos cientes de que essa discussão se expande

para além da educação como uma reivindicação que está presente de forma

indissociável nos diversos setores que dizem respeito à busca de direitos relacionados

aos povos indígenas. A esse respeito, Diego Alfonso Iturralde Guerrero (2009), em

um artigo intitulado Direitos Culturais Indígenas e Educação Intercultural Bilíngue: a

situação legal na América Central, aponta cinco grupos de direitos que estariam na

base das reivindicações almejadas pelos povos indígenas que se estende na América

Latina como um todo, são eles:

a) o reconhecimento legal (e constitucional) da existência dos povos e das comunidades como sujeitos específicos no interior da nação;

b) o estabelecimento do direito dos povos e das comunidades de disponibilizar os meios materiais e culturais necessários para a sua reprodução e o seu crescimento;

c) a instrumentalização do direito ao desenvolvimento material e social dos povos e das comunidades, principalmente quanto a suas terras e seus territórios;

d) o direito ao exercício e ao desenvolvimento das próprias culturas, ao seu crescimento e à sua transformação, assim como à incorporação de suas línguas e seus conteúdos culturais nos modelos educativos nacionais. Direito que deve garantir o acesso aos bens culturais da nação e a participação dos povos na conformação da cultura nacional;

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 66

e) por último, o estabelecimento das condições políticas e jurídicas que tornem possíveis e seguros o exercício e a ampliação dos direitos antes determinados dentro da institucionalidade dos Estados, ou seja, a autonomia. (GUERRERO, 2009, p. 93).

O autor lista essas diretrizes referindo-se à realidade da América Central.

Porém, dadas as configurações semelhantes pelas quais passam os povos indígenas

de forma geral na América Latina como um todo e, em especial no Brasil,

salvaguardando as especificidades peculiares a cada região e a cada país,

entendemos que essas diretrizes podem se aplicar à realidade dos povos indígenas

na realidade que conhecemos, ou seja, dos Xerente e Karajá, especialmente no que

diz respeito à diretriz b, que se refere a um direito que fala diretamente sobre a

educação. O autor, por fazer parte do Instituto institucional do Direitos Humanos,

certamente conhece bem a realidade desses povos e é enfático ao dizer que

Os direitos culturais são, por sua vez, um campo complexo, que inclui vários conjuntos de direitos e garantias, entre os quais me interessa destacar, para essa reflexão, os seguintes: o reconhecimento da diversidade, o exercício da identidade como povos, o uso irrestrito do idioma, uma educação própria e o respeito pelo patrimônio cultural. (IDEM).

E ainda esclarece que pautou essa seleção de diretrizes em concordância com

uma classificação adota pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, utilizando

alguns de seus enunciados. Para este trabalho, interessam essas diretrizes, uma vez

que estão em consonância com o que determinam também nossas leis.

Ressalta-se que a Educação Intercultural Bilíngue é uma reivindicação dos

povos indígenas na luta pela preservação e pelo fortalecimento de suas culturas e

língua materna. A consequência disso é que a EIB exige primordialmente uma forma

diferenciada de se pensar a educação e, com isso, uma nova postura metodológica,

não somente nas escolas indígenas localizadas nas aldeias, mas também nos cursos

de formação de professores indígenas por parte dos formadores que são ainda, em

grande maioria, não-indígenas. A EIB procura romper com paradigmas, exige novas

epistemologias para se pensar e repensar a educação uma vez que agrega, não no

sentido de acúmulo, mas de complementaridade, conhecimentos oriundos de dentro

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 67

das comunidades que os produzem. Talvez, o que esteja em jogo na EIB seja o

desafio de se promover uma educação que estabeleça pontes de diálogo entre uma

cultura e outra, onde as culturas colocadas em evidencia no processo educativo,

estejam e sejam valorizadas de forma igualitária, uma não se sobrepondo a outra.

Nesse sentido, o professor indígena assume um protagonismo ímpar. Como

disse um professor indígena por ocasião de um seminário realizado na Unicamp em

novembro de 2014, os professores indígenas que atuam nas escolas indígenas

precisam primeiro se descolonizar para poder descolonizar a escola e, depois, praticar

uma educação que dê conta das necessidades e anseios da comunidade. Isso

porque, uma vez que o professor que se descoloniza, também pode romper com as

barreiras do sistema educacional imposto pelo estado por meio das secretarias de

educação. Dessa forma, a EIB exige o diálogo entre matrizes distintas de produção

do conhecimento. Ainda que possuam lógicas e racionalidades distintas, os

conhecimentos são vistos, como já foi evidenciado, como complementares, o que

solicita uma postura de humildade da parte do formador não-indígena, uma vez que,

pede que ele assuma que o seu conhecimento é apenas uma parte pequena, mas

importante do que se quer construir de conhecimento junto com o outro que é diferente

de mim. Assim, ressalta-se que a EIB é um projeto em permanente construção,

diferindo, e muito, de um povo indígena para outro. Evidentemente, que não se pode

pensar em um modelo de EIB único, ou seja, a Educação Intercultural Bilíngue é um

processo em construção e varia de um povo para o outro a forma, a visão e os

mecanismos que serão utilizados e mobilizados para se colocar em prática.

Não podemos perder de vista que o Brasil é um país com mais de trezentos

grupos indígenas, mais precisamente, 305 povos indígenas. De acordo com o último

censo do IBGE, são falantes de 275 línguas, um dado desconhecido pela maioria do

povo brasileiro e que precisa ser levado em consideração na hora de se pensar em

políticas públicas para essa parcela da população. Não há dúvida de que esse

desconhecimento é criado e pautado no mito de um país monolíngue e faz parte das

estratégias diminuir em âmbito político, econômico e social grupos socioculturais,

falantes de outras línguas como os grupos indígenas, comunidades de imigrantes,

remanescentes de quilombo, dentre outros. Para isso, cria-se o mito do

monolinguismo, ou seja, a afirmação falsa de que, no Brasil, fala-se somente uma

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 68

língua, ou seja, o português. Para Cavalcanti (1999), em um artigo que trata sobre

educação bilíngue no Brasil e os processos de escolarização acerca das minorias

linguísticas, faz apontamentos bem contundentes com relação a criação desses mitos.

Segundo a autora, e concordando com ela,

Esse mito é eficaz para apagar as minorias, isto é, as nações indígenas, as comunidades imigrantes e, por extensão, as maiorias tratadas como minorias, ou seja, as comunidades falantes de variedades desprestigiadas do português. ” (CAVALCANTI, 1999, p. 387).

Cavalcanti é ainda mais contundente ao afirmar que, no Brasil, dada a

configuração de nosso país – assim como em outros – de grande diversidade

linguística presente em todo o nosso território, não se pode ignorar essa configuração,

pois tal característica é formada com representantes falantes de outras línguas, que a

autora chama de contextos. Trata-se de contextos bem diferenciados uns dos outros,

como os contextos indígenas, contextos de imigração, contextos de fronteira,

comunidades de surdos e contextos bidialetais/rurbanos. Cavalcanti ainda evidencia

que, dada a força que tem o mito do monolinguismo, o Brasil acaba por não

reconhecer e não estimular o ensino bilíngue, à exceção dos grupos indígenas que

possuem toda uma legislação diferenciada.

Com relação a essa legislação específica no que diz respeito aos povos

indígenas, sem dúvida nenhuma que a constituição de 1988, assim como as leis

subsequentes como a LDB, resoluções, PNE e as demais, trazem grandes avanços e

conquistas para os povos indígenas uma vez que, pela primeira vez, oficialmente,

reconhecem ser o Brasil um país pluricultural e multilíngue. Esse fato era negado ou

propositalmente esquecido nas constituições anteriores, grandes conquistas sem

dúvida, ainda que essas conquistas estejam bem aquém do esperado no campo

político, econômico e social. Maria Aparecida Bergamaschi (2007), refletindo sobre

esse aparato legal, desenvolvido pela legislação brasileira, salienta que

...as escolas nas aldeias apresenta possibilidades para o protagonismo indígena, especialmente amparada pelo aparato legal que a Escola Específica e Diferenciada. Embasada numa legislação própria, produto da participação organizada dos povos indígenas nessas últimas décadas, abre

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 69

caminhos para a escola indígena que, processualmente, é assumida pelas aldeias e aponta possibilidades de práticas baseadas na cosmologia de cada povo. (BERGAMASCHI, 2007, p. 201).

A autora, no entanto, salienta também que esse protagonismo se efetiva com

uma maior participação indígena na elaboração das políticas públicas, sendo que a

forma como se dá essa participação nem sempre fica clara. Ou seja, para a autora se

torna importante,

...considerar que nem sempre é explicitado, por parte dos gestores das políticas públicas, uma intenção em considerar os povos indígenas como atores que também definem as práticas educativas em suas escolas, fazendo predominar uma grande incompreensão, que se manifesta tanto nas aldeias como própria Secretaria de Educação. Porém, é importante perscrutar o eco desse movimento que se dá no encontro de duas cosmologias, e como é traduzido nas leis e nas ações governamentais que materializam as políticas públicas, assim como a forma de se concretizar num fazer escolar diferenciado nas aldeias. (IDEM, p. 211).

Bergamaschi, refletindo ainda sobre as formas que o povo Guarani tem

desenvolvido para se apropriar da escola, no processo que ela chama de

“indianização”, explica como o processo pelo qual o povo se apropria da instituição

escola, e a transforma em escola indígena, inserindo elementos que são próprios da

cosmologia Guarani. Argumenta que esse processo é que faz a escola indígena

diferenciada e intercultural, embora haja muito ainda para se garantir nesse sentido,

ou seja, para a autora,

O olhar que localiza os Guarani também como protagonistas da política pública é o olhar que foge da unilateralidade e, mesmo no silêncio, reconhece a potência de um povo que sobrevive aos mais refinados atos de destruição, mantendo suas crenças e seu modo de ser, modificando-as de acordo com as solicitações do presente, porém, coerentes com uma cosmologia que se transforma, mas continua Guarani. (IBIDEM, p. 211).

Nesse mesmo sentido, percebo nas escolas Karajá e Xerente essa

indianização, conforme foi explicitado por Bergamuschi, pois, de uma forma ou de

outra, em maior ou menor grau, a escola indígena, conforme preconizada na

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 70

legislação brasileira, acaba sendo praticada por professores, alunos e a própria

comunidade indígena que, como veem como importante o conhecimento não-

indígena, exigem que esse conhecimento seja ensinado aos alunos. Da mesma forma,

exigem que o conhecimento tradicional, próprio de suas comunidades, seja também

ensinado na escola indígena. Sobre esse processo de indianização da escola nas

comunidades indígenas, fiz, em meu diário de campo, o relato que observei da

professora Rosalina Xerente, conforme descrito no meu diário de campo, que abaixo

transcrevo,

A sala de aula, a não ser pela disposição das carteiras na hora que entrei na sala, pois logo os alunos começaram a juntá-las umas próximas as outras, diverge e muito de uma sala de aula convencional, em escolas não-indígenas das cidades, com as quais fui acostumado a lidar, seja como aluno, seja mais tarde como professor. Primeiramente, como a própria professora Rosalina mencionou quando me acomodei na sala, que haviam três turmas de séries diferentes na sala, com a 2ª, 3ª e 4ª séries. Outro ponto, o trânsito de alunos tanto dentro da sala de aula quanto fora da sala, não parece ser um fator de incômodo para a professora, ao contrário, percebi como algo normal, bem “tolerado”, pois, enquanto uns alunos transitavam pela sala ou fora dela, os outros faziam suas tarefas em suas carteiras, e, em muitos casos faziam em grupos, sem que a professora tivesse pedido isso, ou mesmo eram ajudados por outros alunos a fazer sua tarefa. Os alunos que estavam andando, em determinado momento sentavam em suas carteiras e já davam prosseguimento na realização da tarefa, ou ajudando outros alunos. Outros iam à mesa da professora para que esta verificasse se estavam fazendo corretamente. Outro fator interessante que me chamou a atenção, foi o trânsito dentro da sala de aula de crianças muito pequenas que ainda não estão em idade para começar a estudar, uma das quais é neto da professora Rosalina, que ficou em seu colo durante um pequeno intervalo de tempo enquanto ela explicava a tarefa para um grupo de alunos. Devido à presença de alunos de séries diferentes, foi evidente perceber a diferença de idade e tamanhos desses alunos, sem haver com isso, uma separação entre os que tem maior idade e os de menor idade. (DIÁRIO DE CAMPO, junho de 2016).

Dessa forma, percebi que a apropriação da escola enquanto uma instituição do

estado, é apropriada pelos indígenas não de forma passiva, eles a vão moldando

conforme os seus interesses e objetivos. Contudo, entendo que reconhecer essas

diferenciações e esse mosaico cultural que faz parte de nossa constituição, ainda que

necessário, não é suficiente para a garantia de direitos às especificidades e

peculiaridades que envolvem os grupos étnicos que conformam o nosso país. Isso

porque tal reconhecimento se pauta numa assimetria nociva para os grupos

indígenas, uma vez que

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 71

...as relações entre sujeitos e entre culturas diferentes são consideradas a partir de uma lógica binária (índio x branco, centro x periferia, dominador x dominado, sul x norte, homem x mulher, criança x adulto, normal x deficiente ...) que não permite compreender a complexidade dos agentes e das relações subentendidas em cada pólo, nem a reciprocidade das inter-relações, nem a pluralidade e a variabilidade dos significados produzidas nessas relações. Entretanto, a complexidade da relação entre culturas evidencia a necessidade de analisar a abordagem da existência de uma fronteira cultural, uma borda deslizante e intevalar nas relações, para além de uma simples divisão e classificação binária da existência humana. Esse espaço intervalar da cultura aparece como um espaço da intervenção (tensão-negociação-tradução) que introduz a reinvenção criativa da existência, fundada num profundo desejo de solidariedade social: a busca do encontro. (FLEURI, 2003, p. 11).

Essa polarização que se impõe para os indígenas na forma índio x branco faz

aparecer uma assimetria que subalterna os primeiros, homogeneizando, esquecendo

e fazendo questão de esquecer e ocultar as características extremamente peculiares

e distintas entre os povos indígenas, e entre estes e os não indígenas. Tal assimetria

se materializa de diversas formas, sobretudo na educação, quando se impõem

currículos comuns que não respeitam as especificidades inerentes a cada povo,

deixando de lado o caráter intercultural, que acaba por privilegiar uma cultura exterior

à cultura indígena, mais ainda quando se trata a questão do bilinguismo de forma

superficial e restrita. Além disso, também se esquece que a diferença linguística

carrega consigo uma diferença cultural e social, com lógicas de entendimento de

mundo e racionalidades bem diferenciadas umas das outras, as quais, longe de serem

excludentes entre si, podem, sob outra ótica, ser complementares, oportunizando

outras possibilidades de entendimento de mundo tanto aos grupos indígenas quanto

aos não indígenas.

Apesar das conquistas legais dos povos indígenas na América Latina como um

todo, em especial, no Brasil, pois estes vêm lutando para fazer valer seus modos

próprios de organização social e cultural, a Educação Intercultural Bilíngue continua a

enfrentar problemas e barreiras na sua efetivação nas escolas indígenas. Muitos

problemas freiam a implementação de uma EIB, impedindo que esta vá ao encontro

do que anseiam os povos indígenas: a burocracia do estado na implementação de

projetos de EIB; as ações desarticuladas entre as secretarias estaduais e municipais

de educação, universidades e ministério da educação; a falta de material didático

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Capítulo II – O contexto da pesquisa 72

específico para se trabalhar nas escolas indígenas; o despreparo dos técnicos nas

secretarias para lidar com as especificidades que requerem as comunidades; a

efetivação de políticas públicas que atenda às demandas para a formação inicial e

continuada de educadores indígenas dentre outros profissionais. Vencer esses

problemas ainda requer muita luta e enfrentamento com os governos, municipal,

estadual e federal, a fim de encarar de frente o multicultural como algo que faz parte

da constituição de nossas sociedades, sem empurrar essa diversidade para debaixo

do tapete como os governantes insistem em fazer.

No próximo capítulo, apresentarei e discutirei de forma mais detalhada nossa

problemática, que incide sobre a necessidade ou não, de criação de novas

terminologias para as línguas indígenas, ou a tradução, do português para a língua

indígena, de termos que denotem o conhecimento matemático. Farei essa discussão

à luz da filosofia da linguagem, amparado sobretudo, pelo pensamento da fase do

filósofo Ludwig Wittgenstein que muitos chamam de maturidade. Contudo, outras

obras do autor que nos ajudam a entender suas ideias também serão utilizadas. Ainda

no mesmo capítulo, darei voz aos professores e professoras indígenas para que

possamos compreender sobre como se dá, em suas aulas, o ensino de matemática

numa orientação de Educação Intercultural Bilíngue. Eles também comentarão como

têm mediado o ensino de matemática seguindo essa orientação, assim como as

estratégias utilizadas para lidar com palavras da linguagem da matemática que não

possuem um correspondente na língua indígena.

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73

CAPÍTULO III – ENSINO DE MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

BILÍNGUE: A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CENTRO

DAS ATENÇÕES

A língua é um labirinto de caminhos. Você vem de um lado, e se sente

por dentro; você vem de outro lado para o mesmo lugar, e já não se

sente mais por dentro (INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS, § 43).

O modo de atuar compartilhado por todos os homens é o sistema de

referência, por meio do qual interpretamos uma linguagem estrangeira.

(INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS, § 206).

Procurarei desenvolver este capítulo a partir de dois objetivos. O primeiro é

fazer uma discussão da problemática que advoga pela necessidade de criação e/ou a

tradução de termos que pertencem ao domínio da linguagem matemática - que estão

em língua portuguesa para a língua indígena - à luz da filosofia da linguagem, mais

especificamente, alguns dos conceitos desenvolvidos pelo filósofo Ludwig

Wittgenstein, e os estudos da tradução. A intenção, nesse caso, é compreender que,

tanto a criação de novas palavras em línguas indígenas quanto a tradução de palavras

de uma língua para outra, são fenômenos complexos, que envolvem múltiplos fatores

e subjetividades, envoltos em relações de poder. Tais fenômenos estão, ainda,

envoltos em interesses diversos, presentes nas relações socioculturais, dos falantes

tanto de uma língua quanto de outra.

O segundo objetivo desse capítulo, é trazer à tona a pratica dos professores

indígenas nas aulas (e relativamente as aulas) de matemática, no contexto da

educação bilíngue. Ou seja, as estratégias utilizadas pelos professores indígenas, em

suas aulas de matemática, no que diz respeito ao ensino de palavras da linguagem

matemática que não existem na língua indígena. Além disso, pretendo buscar indícios

acerca do ensino de matemática nas escolas indígenas numa concepção de EIB.

Busco compreender o posicionamento dos professores sobre EIB, a fim de avaliar a

pertinência ou não da criação de novas terminologias, ou tradução do português para

a língua indígena, de termos que expressam os conceitos do que é classificado como

conhecimento matemático. Ou seja, retomando o objetivo deste trabalho, que é o de

compreender em que medida, tanto a tradução quanto a criação de novos termos para

a língua indígena, cumpririam a intenção de transferência dos significados e levaria

os indígenas ao conhecimento matemático tido como referência.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 74

Quero deixar claro, que não é minha intenção advogar a favor ou contra a

criação de novas terminologias em línguas indígenas de palavras que denotem o

conhecimento matemático, ou a tradução da língua portuguesa para a língua indígena.

Mesmo porque, em acordo com nosso referencial, entendo que tanto a criação como

a tradução de palavras de uma língua para outra, dependendo do contexto, podem

ser levadas a cabo, como será possível ver nas falas dos professores indígenas. Meu

objetivo, assim, é tão somente compreender o problema, refletir sobre ele para que

essa compreensão possa subsidiar os profissionais que já lidam, de alguma forma,

com essa situação, sejam esses profissionais indígenas ou não.

Enfatizo que este trabalho problematiza a criação de novas palavras em línguas

indígenas, e a tradução de uma língua para outra, de forma conjunta, por serem

fenômenos que, por vezes, caminham juntos, influenciando-se de alguma forma. No

entanto, entendo que são processos distintos, carregados de especificidades e que,

mesmo sendo problematizados aqui de forma conjunta, no desenvolvimento deste

trabalho, apresentam características peculiares e específicas. Tais características

serão evidenciadas ao longo do texto, ora com ênfase na criação de novas palavras

em línguas indígenas ora na tradução de uma língua para outra, conforme a

necessidade de reflexão que se apresente, sem que isso prejudique a busca por

caminhos de entendimento que aqui exercito.

A problemática deste trabalho, na tentativa de encontrar ou construir caminhos

de entendimento, tem sua razão de ser. Motivos não faltam para isso, dentre os quais

a falta de uma política linguística que ampare uma política educacional para os povos

indígenas, e que leve em consideração o mosaico cultural que engloba essa

diversidade linguística e cultural. Dessa forma, encontro – ou sou encontrado – na

filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein, o solo coerente para a compreensão

desse mosaico cultural e diversidade linguística, no âmbito da problemática que

procuro compreender.

É nesse sentido, que analisando os conceitos de formas de vida, gramática,

usos, jogos de linguagem e semelhanças de família, desenvolvidos pelo filósofo.

Encontro nestes conceitos material fértil e coerente para tratar da complexidade que

envolve o ensino de matemática em comunidades indígenas, no contexto de

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 75

diversidade cultural em que esses povos, sobretudo os povos Xerente e Karajá, no

Estado do Tocantins, se apresentam.

Para tanto, busco autores como Gottschalk (2004; 2007) Vilela (2008; 2013),

Condé (2004), Oliveira (2007; 2010;2013), que já vêm trabalhando com as ideias

desse Wittgenstein, e me auxiliam a entender melhor tanto seu pensamento quanto

tentar me apoderar de sua filosofia a fim de entender melhor as reflexões travadas a

respeito da problemática desde trabalho.

Também não tenho a pretensão, aqui, de fazer uma longa análise da filosofia

de Wittgenstein, tal empreitada fugiria aos objetivos desse trabalho, pois não seria

possível, no momento, levar a cabo tal empreitada. O intuito é de, por meio das ideias

desenvolvidas pelo filósofo, buscar inspiração para a compreensão de uma

problemática real pela qual passam os povos indígenas Xerente e Karajá, colocados

aqui em evidência.

Uma primeira distinção a ser realizada, no âmbito deste trabalho, se refere às

características específicas e diferenciadas entre as linguagens formal e artificial, como

a linguagem formal da matemática e as línguas naturais. Não se pode, além disso,

perder de vista que, nesse horizonte de significações, não seria adequado tratar da

mesma forma essas linguagens, como bem enfatiza André Leeclerc (2010), uma vez

que essas linguagens são de natureza tão distinta, operando sob lógicas também

muito distintas e específicas. Para esse autor, os significados nas linguagens formais

são mais delimitados e, nesse sentido, mais rígidos que os significados nas

linguagens naturais.

Essa rigidez com relação às primeiras é, no entanto, necessária para a

garantia, compartilhamento e aval dos pares especializados nessas linguagens

formais, enquanto que, nas línguas naturais, os significados são o que o autor chama

de “potenciais semânticos” de significações, polissêmicos nos termos de Silveira

(2014). Segundo Leeclerc (2010),

Nas linguagens formais ou arregimentadas, o vocabulário é introduzido através de definições que delimitam as condições de aplicação de um termo; nas línguas naturais, os significados são “potenciais semânticos” ou “núcleos de sentido” (“core meaning”), que precisam ser “modulados” em contexto para

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 76

determinar condições de verdade intuitivas (aquelas que serão efetivamente e conscientemente apreendidas pelos falantes-ouvintes do contexto). (...). Os significados nas línguas naturais são potenciais semânticos que aplicamos em novas situações quando essas são suficientemente similares às situações anteriores de uso da mesma palavra ou frase. (LECLERC, 2010, p. 35-36).

Assim, de acordo com o autor, tais implicações, na natureza entre uma

linguagem e outra, devem ser devidamente explicitadas quando necessário para se

evitar confusões equivocadas quando se pensa a questão do bilinguismo nas escolas

indígenas localizadas nas aldeias, uma vez que ambas se manifestam e atendem a

objetivos e finalidades distintas. Levando-se ainda em consideração que o bilinguismo

se manifesta sob várias configurações em relação aos mais de 305 povos indígenas

que vivem em território brasileiro, como foi evidenciado na última seção do capítulo

anterior.

Em princípio, entendo que seja coerente tomar cuidado com os discursos, como

de Cauty (2001, 2009), que sinalizam para a criação de novas terminologias em

línguas indígenas, ou de se fazer traduções, para a língua indígena, de termos que

denotam a linguagem matemática, como assinalei na primeira sessão do primeiro

capítulo. Isso porque não se trata apenas de se criar essas novas terminologias ou de

traduzir palavras de uma língua para outra, e sim de atribuir sentido aquilo que se está

traduzindo ou criando para as línguas dos povos indígenas.

Estar atento a esses discursos, como por exemplo pedir que os professores

indígenas traduzam o conteúdo do livro didático que está em português para a língua

indígena, se torna imperativo por vários motivos, dentre os quais, perceber que a EIB

não se reduz a simplesmente fazer traduções de uma língua para outra ou de se criar

novos termos em línguas indígenas, ou seja, traduzir o conhecimento que está em

uma língua – português aqui no Brasil – veiculando-o na língua indígena. Fazer isso,

é continuar com as mesmas estratégias colonizadoras que começaram com os

jesuítas em 1549, e que tinham como objetivo, dentre outros, a catequização dos

povos indígenas e sua integração à sociedade não indígena. Mais ainda, tal discurso

carrega, de forma leviana, a ideia de que a língua indígena – e a cultura da qual ela

faz parte – é inferior e limitada por não possuir esses termos, discurso que toma como

referência os valores produzidos pela cultura de uma classe dominante, assim como

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 77

o conhecimento produzido na academia. Aqui, no nosso caso, os conhecimentos

matemáticos acadêmico e escolar.

O processo de formação/criação das palavras de qualquer língua, seja essa

língua indígena ou não, está diretamente relacionado com a cosmovisão e da cultura

do grupo que a produz, ou seja, seus mecanismos de produção de racionalidades

estão, de alguma forma e intrinsecamente, relacionados à linguagem desses grupos.

A língua, como parte da cultura de determinado povo, é dinâmica, mutável, sofre

alterações com o tempo, mas isso se dá na dinâmica do próprio grupo, com

motivações internas, mas também externas.

Assim, Wittgenstein nos fala que o significado de uma palavra depende do uso

dessa palavra na linguagem. Por conseguinte, sobre o conceito de uso, o autor expõe:

“Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra “significação” –

se não para todos os casos de sua utilização –, explica-la assim: a significação da

palavra é seu uso na linguagem. ” (I. F. §43). Depreendo disto que não é possível

associar a uma palavra um único significado, uma essência segundo a qual se possa

empregar uma palavra ou expressão de forma única em qualquer situação e contexto.

Ao contrário, o significado está diretamente ligado ao seu contexto de aplicação e,

como o próprio autor fala, já em O Livro Azul 8 “O signo (ou frase) obtém o seu

significado do sistema de signos, da linguagem à qual pertence. Numa palavra:

compreender uma frase significa compreender uma linguagem. ” (Wittgenstein, 2008,

p. 27). Assim, a compreensão de uma palavra ou frase não se dá de forma isolada

nem estanque, ao contrário, seu sentido se dá na amplitude da linguagem à qual esta

palavra ou frase pertence.

A noção de uso, por abarcar uma infinidade de significações para as palavras,

pois estas dependem da prática da linguagem, ou seja, das atividades e dos contextos

onde essa prática se dá, remete a uma outra noção proposta pelo autor, que é a noção

de jogos de linguagem, a qual faz referência justamente a essa variedade de

atividades e contextos com que podemos usar as palavras e expressões. Assim nos

explica Wittgenstein: “Chamarei também de “jogos de linguagem” o conjunto da

8 Esse livro foi ditado por Wittgenstein para os seus alunos de Cambridge no ano letivo de 1933-1934,

e aqui já é possível entrar em contato, de forma embrionária, com muitos dos conceitos desenvolvidos pelo autor e que têm, nas Investigações Filosóficas, seu apogeu.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 78

linguagem e das atividades com as quais está interligada. ” (I. F. §7). Há que se

destacar que esse uso não se dá de qualquer forma, pois a utilização da palavra jogo

nos informa que o uso nos jogos de linguagem se dá seguindo determinadas regras,

como também em um jogo, onde se joga de acordo com as normas estabelecidas

para o jogo.

Nos informa também para a multiplicidade de jogos que se interligam não de

uma única forma, mas através de algumas semelhanças que ligam uns e outros.

Assim nos explica o autor,

Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, se não não se chamariam ‘jogos’”, - mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. (I. F. 66).

São essas semelhanças de família, enfatizadas pelo autor, que permitem o

intercâmbio de ideias, o diálogo entre culturas distintas, por meio de seus jogos de

linguagem. Nesse sentido, Vilela (2013) lança luz sobre a problemática aqui

apresentada em relação à necessidade de se criar novas terminologias em línguas

indígenas que denotem a linguagem matemática, de modo a procurarmos entender

melhor tal questão. Para a autora,

Os significados encontram-se na prática da linguagem, nos usos, mas, ao mesmo tempo, não são arbitrários. Eles são direcionados pela gramática – complexo de regras de linguagem – e condicionados por formas de vida, mas não preestabelecidos definitiva e universalmente. (VILELA, 2013, p. 198).

A autora aponta para algo que merece ser tratado com atenção, quando traz à

tona o significado das palavras em relação com seus diversos usos em formas de vida

específicas, que vêm a ser a questão do não relativismo do significado das palavras.

Ou seja, quando dizemos que uma palavra adquire sentido a partir de uma prática da

linguagem, queremos evidenciar que, nessa prática, o contexto social em que ela se

dá acaba por se tornar o sistema de referência dessa prática. É nessa perspectiva que

o significado ou o sentido, apesar de não ser único, segundo a filosofia de

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 79

Wittgenstein, também não pode ser qualquer um e não poderíamos operá-lo de

qualquer jeito. Ao contrário, o sistema de referência – o contexto, a forma de vida –

determina o uso que se fará da palavra, numa determinada situação linguística, que

por sua vez está atrelada a essa forma de vida.

Continuando as reflexões promovidas por Vilela (2013), do trecho citado

emergem ainda dois conceitos elaborados por Wittgenstein, que se tornam peças

chaves para este trabalho, ao pensarmos no significado das palavras na prática da

linguagem em contextos culturais e sociais diversos, que são os conceitos de

gramática e forma de vida.

Sobre o conceito de gramática em Wittgenstein, este não deve ser confundido,

ou melhor dizendo, limitado a apenas um conjunto de regras linguísticas a serem

seguidas. A gramática, para Wittgenstein, adquire um significado maior e mais amplo,

pois também está relacionada e, por que não também dizer, condicionada, a uma

determinada forma de vida. Na interpretação de Condé (2004), “...torna-se necessário

salientar que a expressão gramática, no sentido em que Wittgenstein a emprega, não

deve ser confundida com a gramática normativa de uma dada língua em particular. ”

(CONDÉ, 2004, p. 80). Interpretação essa, que é corroborada por Vilela, que nos

explica que

A gramática, nesse contexto, não tem seu significado usual, ela comporta a estrutura da linguagem e indica como podem ser usadas as expressões nos diferentes contextos em que aparecem. Ela indica as regras de uso das palavras, o que faz sentido e o que é certo ou errado. Apesar dos diversos usos possíveis, as regras da gramática, e as das práticas matemáticas particulares, não são arbitrárias, não podem ser quaisquer uma! Elas se fundem em formas de vida. Formas de vida são cristalizações de experiências que dependem do mundo, ou de acordos comunitários ou de ideias públicas, isto é, as convenções não são arbitrárias, como num jogo de baralho ou xadrez. Elas podem ter raízes empíricas, mas, se fazem parte da gramática, já se cristalizaram, tornaram-se regras e não percebemos facilmente sua natureza convencional. (VILELA, 2013, p. 198-199).

Segundo a autora, as palavras que fazem parte do repertório linguístico de um

determinado povo, ou seja, fazem parte de sua gramática, apesar de poderem assumir

vários significados em diferentes situações e contextos, não podem assumir qualquer

significado, pois este significado está condicionado a uma determinada forma de vida

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 80

que, por sua vez, também condiciona as regras da gramática dessa forma de vida.

Para Wittgenstein: “O exame minucioso da gramática de uma palavra enfraquece a

posição de certos padrões fixos da nossa expressão que nos tinham impedido de ver

os fatos sem quaisquer ideias pré-concebidas. ” (Wittgenstein, 2008, p. 83). É

interessante notar, sob as lentes dessa filosofia, que cada língua se torna única, e sua

gramática carrega em si, os traços da cultura da qual faz parte. Formas de vida é um

conceito central na filosofia desenvolvida por Wittgenstein, além de ser central

também para a natureza deste trabalho, uma vez que todo jogo de linguagem se dá

em uma dada forma de vida, a qual está intrinsecamente ligado.

Assim, cada forma de vida, na sua especificidade, engendra um determinado

jogo de linguagem relativo a um determinado contexto. Alterando-se a forma de vida,

altera-se também o contexto de uso dos jogos de linguagem, ou seja, sua gramática.

O autor afirma esse entrelaçamento da seguinte forma: “O termo “jogo de linguagem”

deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma

forma de vida. ” (I. F. §23). A linguagem surge desse emaranhado de situações, ou

seja, surge a partir de uma prática social que faz parte de uma forma de vida. Dessa

forma, a gramática de uma forma de vida é estabelecida pelos valores dessa forma

de vida (CONDÉ, 2004).

Um ponto que emerge ainda na citação de Vilela, e que merece destaque, é a

natureza convencional das regras gramaticais em Wittgenstein, a qual também está

fortemente condicionada a uma determinada forma de vida e não o contrário. Não é,

assim, a comunidade que, em convenção, determina as regras gramaticas de uso das

palavras em um determinado contexto, e sim a forma de vida que, em suas atividades

sociais já cristalizadas, determinam o que pode e o que não pode em uma

determinada prática linguística. Moreno (2006) nos explica que “As regras são

formuláveis por definições passíveis, de acordo público que sempre traçam limites

para o sentido, enquanto que os critérios são sempre relativos às mais variadas

circunstâncias. ” (MORENO, 2006, p.152).

De acordo com essas ideias, criar novas terminologias, novas palavras para a

língua indígena de termos que denotam a linguagem matemática pode não gerar o

efeito desejado pelos proponentes se isso não for devidamente bem articulado, com

o intuito de promover um “bom” ensino de matemática em escolas indígenas. Uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 81

vez que essas palavras não estão amparadas por uma forma de vida que as sustente,

seriam palavras que não guardariam uma relação com o mundo, de uma forma de

vida particular. Assim, em determinado jogo de linguagem, a gramática referente a

esse jogo impõe determinado uso de uma palavra pela necessidade de entendimento.

Tal palavra é usada de acordo com aquele jogo de linguagem específico, que está

intrinsecamente relacionado a uma forma de vida.

A gramática determina as regras que devem ser seguidas nesse jogo de

linguagem. A criação e, posteriormente, a incorporação de uma ou mais palavras em

um determinado jogo de linguagem evidencia que uma determinada forma de vida já

se alterou. Isso quer dizer que algum traço cultural foi modificado de tal forma por seus

componentes que pedem, ou melhor, exigem da gramática uma alteração nas formas

de uso das palavras. Como já evidenciado, é a forma de vida que modifica uma

determinada gramática referente a essa forma de vida, exigindo também novos jogos

de linguagem. É nesse sentido que vemos a impossibilidade de serem criadas novas

palavras em línguas indígenas de forma arbitrária, uma vez que falta a forma de vida

que dê sustentação à uma gramática de usos de tais palavras.

Gottschalk (2004), em um artigo chamado A Natureza do Conhecimento

Matemático sob a perspectiva de Wittgenstein, explica de forma contundente as

relações entre formas de vida, gramática e jogos de linguagem em Wittgenstein.

Segundo a autora,

A expressão “jogo de linguagem” enfatiza o papel que nossas formas de vida têm na utilização de nossas palavras. Todo jogo de linguagem envolve uma gramática de usos, as quais estão amparadas em uma práxis, em uma forma de vida. Nesse sentido, o elo semântico entre a linguagem e a realidade não é dado apenas pelas regras que governam a linguagem, mas pelos próprios jogos de linguagem, pois as regras só têm sentido contra o pano de fundo de um determinado jogo de linguagem. (...). É dentro desses jogos que os objetos adquirem significado, quando operamos com eles. Desse novo ponto de vista, Wittgeinstein faz uma crítica demolidora à concepção referencial da linguagem, pois não há necessidade de se postular entidades extralinguísticas como condições necessárias da significação. (GOTTOSHALK, 2004, p. 318).

De acordo com a autora, a interação entre a linguagem e o mundo se dá no

interior do jogo de linguagem, inerente a uma forma de vida. Essa interação se dá na

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 82

prática da linguagem, não sendo, portanto, extralinguística a essa prática, como bem

aponta Gottschalk. Vistas sob esse ângulo, tanto a tradução de palavras ou textos,

quanto a criação de palavras em línguas indígenas que denotam ideias da

matemática, precisam ser pensadas “na” prática da linguagem e não “para” a prática

da linguagem.

Essa mudança de perspectiva, altera o eixo tradicionalmente posto, quando se

pensa tanto a tradução quanto a criação de palavras de uma língua para outra, pois

tais palavras, nessa perspectiva, ganham sentido no uso que se faz delas no jogo de

linguagem, e não numa suposta essência metafísica de um único sentido que seria –

ingenuamente ou não – pensada de forma invariável para todo o sempre. Dessa

forma, se for possível falar em algum tipo de essência, esta está atrelada à gramática

da forma de vida, como bem expressa o aforismo 371, “A essência se expressa na

gramática. ” (IF, §371).

Acreditar na visão essencialista da matemática, além de não a sustentar no

posto de rainha das ciências – como quis a ciência moderna – ainda é capaz de

provocar e disseminar preconceitos e mal-entendidos como os que são, por seu turno,

maciçamente introjetados e aceitos pela maioria das pessoas que assumem que o

problema em não aprender matemática está nelas – nas pessoas. De acordo com o

referencial adotado aqui, se uma pessoa não aprende a matemática acadêmica ou a

escolar, o problema não se assenta em sua suposta deficiência, mas sim numa

confusão gramatical, ou, em outras palavras, o problema reside no fato de alguém ser

exposto a um jogo com o qual não possui a menor familiaridade, ou, pior ainda,

exposto a um jogo que, em muitos casos, não é capaz de produzir sentido na forma

de vida que a pessoa leva.

Wittgenstein, já em O Livro Azul (2008), faz uma veemente crítica à nossa

tendência de generalidade, que insiste em querer generalizar casos particulares. O

autor afirma que é esta tendência de generalidade, a origem de posições metafísicas,

cuja preocupação está ancorada na suposta necessidade em afirmar o método da

ciência. Ele é peremptório ao afirmar que é um erro, uma confusão e até um desprezo

querer reduzir qualquer coisa a uma outra coisa qualquer, seja lá o que for essa coisa,

ou seja,

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 83

O nosso desejo de generalidade tem uma outra fonte importante: a nossa preocupação com o método da ciência. Refiro-me ao método de reduzir a explicação dos fenómenos naturais ao menor número possível de leis naturais primitivas e, na matemática, de unificação de diferentes tópicos por recurso a uma generalização. Os filósofos têm sempre presente o método da ciência e são irresistivelmente tentados a levantar questões e a responderem-lhes do mesmo modo que a ciência. Esta tendência é a verdadeira fonte da metafísica, e leva o filósofo à total obscuridade. Quero aqui dizer que nunca teremos como tarefa reduzir seja o que for a qualquer outra coisa, ou explicar seja o que for. (WITTIGENSTEIN, 2008, p. 47).

Em concordância com o que fala o autor, essa tendência à generalidade pode

ser uma das razões pelas quais se constrói relações assimétricas no que diz respeito

a grupos culturalmente distintos. Ainda é mais preocupante quando pensamos nas

formas de produzir racionalidades distintas dos grupos indígenas, que, por possuírem

uma forma de se relacionarem com o mundo que foge aos modelos historicamente

postos como os corretos em nossas sociedades chamadas ocidentais, são tidos como

grupos de cultura inferior e conhecimento atrasado. Isso fica ainda mais patente

quando se tenta, equivocadamente, comparar as línguas indígenas com as línguas

dominantes como o português ou o espanhol. Como, por exemplo, dizer que o povo

Xerente, por possuir em sua gramática, nomes que evidenciam a contagem que vai

do um ao quatro, não sabe matemática, ou que não sabe contar, ou ainda que não

evoluiu.

Nesse caso, contar até o quatro em sua cultura – na cultura Xerente – é

condição suficiente para se relacionarem/interagirem com o mundo, pois sua

gramática está em sintonia com seus jogos de linguagem, em relação com suas

formas de vida. Não que, com isso, eu esteja, de alguma maneira, afirmando que essa

forma de vida não possa se modificar e que não se modifique também a gramática e

seus jogos de linguagem com a introdução de novos termos que podem guardar

semelhanças de família com a matemática. Longe disso, na dinâmica cultural e

linguística, novos elementos acabam sendo introduzidos, levando a novas

significações dos elementos já existentes. No próximo capítulo, me deterei mais no

sistema de contagem do povo Xerente.

Dessa forma, a gramática nos revela uma regra a ser seguida quando usamos

uma palavra em determinado jogo de linguagem, não sendo essa regra estática e

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 84

imutável. Ao contrário do que se pode pensar, essa regra pode ser mudada, mudando

também o jogo de linguagem, em oposição ao uso de uma única definição de uma

palavra, sem estabelecer aí o jogo de linguagem do qual esta palavra participa.

Assim, com relação a nossa problemática, tanto a criação de novas palavras

quanto a tradução de textos matemáticos para a língua indígena, se feitas sem bases

teóricas de reflexões e as formas de vida que as sustentem, resultam na busca por

significados essencialistas, extralinguísticos, metafísicos e exteriores ao contexto

indígena. Há aí apenas a descrição de fatos a priori, que levam a uma relação

simplista de representação entre a linguagem e o mundo, entre signo e objeto,

excluindo daí toda uma gramática de significações que estariam alicerçadas na forma

de vida indígena.

Dentro deste panorama, em consonância com o nosso referencial, entendo

que, quando nascemos, já existe um modo de vida todo organizado, que nos introduz

a esse mundo, onde passamos a nos comportar de acordo com as regras já

organizadas por esse modo de vida. Para Gottschalk (2004),

Uma criança ao aprender a sua língua materna é imersa em uma forma de vida onde essas técnicas são incorporadas através de treino. Ela aprende o uso de determinadas palavras sem que haja uma explicação a priori sobre os seus significados: “Vem sentar aqui na cadeira! ”, cuidado para não cair da cadeira! ”, e assim por diante. Em nossa cultura o conceito de cadeira vai sendo formado sem que haja a necessidade de se definir o conceito de cadeira, ou de que este seja incorporado através de acordos consensuais.

(GOTTSCHALK, 2004, p. 322).

Assim acontece nos diversos espaços comunitários. Por exemplo, ao

ingressarmos numa universidade, deparamos com toda uma forma de vida

organizada, com sua gramática e jogos de linguagem característicos, com os quais

vamos nos “familiarizando”. Trata-se de aprender a gramática dessa forma de vida, a

fim de poder participar dos jogos de linguagem nessa forma de vida envolvidos. A

gramática dessa forma de vida, com suas regras, poderá ser alterada no decorrer do

tempo, mas não porque as pessoas que fazem parte dessa forma de vida resolvem,

em determinado momento, se reunir para alterar essas regras, e sim por que uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 85

determinada prática, relacionada a essa forma de vida, já se impôs de alguma

maneira.

Assim, neste referencial, o significado de uma palavra ou frase está em sintonia

com uma forma de vida específica, que cria, de forma peculiar, as regras de uso em

um jogo de linguagem referente àquela forma de vida. Dessa maneira, as palavras

que fazem referência às ideias matemáticas em determinada cultura estão

intrinsecamente ligadas às práticas sociais dessa mesma cultura. A criação ou

surgimento de novas palavras nasce, então, como uma necessidade das práticas

sociais para a compreensão e explicação do mundo, e esse fenômeno, como já foi

dito, de forma alguma acontece de forma arbitrária. Dessa forma, “... a ideia dos

significados nos jogos de linguagem, por se ancorar em uma forma de vida, impede a

arbitrariedade dos significados. ” (VILELA, 2013, pag. 44). Dessa maneira, quando

uma palavra é incorporada ao jogo de linguagem característico de uma forma de vida,

essa incorporação não acontece de qualquer jeito, se faz pela necessidade de uso,

alterando, de alguma forma, a gramática daquele jogo de linguagem, ou seja,

...entendemos que sempre é possível fazer um novo uso de um conceito na práxis da linguagem. Caso esse novo uso seja relevante e expressivo naquela forma de vida9, ele pode ser incorporado à gramática, alterando as normas estabelecidas. (VILELA, 2013, p. 261 – 262).

Assim, determinada forma de vida cria/impõe uma gramática específica para

satisfazer o entendimento de suas manifestações socioculturais, formando aí, um jogo

de linguagem característico daquela forma de vida. Talvez esteja claro o fato de que,

se entendemos a cultura como algo dinâmico e em constante transformação, esta

forma de vida também se transforma, exigindo com isso a criação ou incorporação de

novos termos à sua gramática, modificando também seus jogos de linguagem. É

importante enfatizar que essa é uma exigência da forma de vida, com múltiplas

motivações, internas e ou externas. Porém, essas motivações externas que são as

influencias advindas de outros contextos e de outras culturas, são absorvidas por

9 Destaque da autora

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 86

determinada forma de vida, não de forma passiva e, sim, ressignificando em seu

interior aquilo que chega de fora.

Aceitar a criação de novos termos de forma arbitrária, implicaria

necessariamente aceitar, para o nosso caso, não somente uma essência linguística,

como também a ideia de uma matemática única e universal para todas as formas de

vida, tendo por base um referente que, nesse caso específico, seria a matemática

escolar – que por sua vez teria na matemática acadêmica seu referente. Segundo

essa visão, seria então justificável compor um grupo qualquer de pesquisadores

alheios a determinado grupo cultural, para pensar por eles e para eles a criação de

palavras que denotam ideias matemática. Trata-se de algo que, no exercício reflexivo

que estamos propondo aqui, seria muito difícil – ou mesmo impossível – de se

conseguir, por não ser possível “carregar” com uma palavra, um único sentido, de uma

prática social para outra.

Sobre essa questão, a do sentido de uma palavra mudar de acordo com o jogo

de linguagem de uma ou mais formas de vida, do contexto em que uma palavra é

empregada, trago um trecho do meu diário de campo, escrito em uma aula de

matemática, no qual se falava da diferença entre figuras planas e figuras espaciais e,

ao se falar de volume, várias indagações foram feitas. A seguir, o trecho do diário de

campo que trata do assunto e que apresenta as reflexões realizadas entre mim e os

alunos professores indígenas:

...montamos o cubo, onde eu pretendia mostrar aos alunos a diferença entre figura plana e figura espacial. Fui falando dos conceitos mais básicos como face, aresta, vértice, ângulo e volume. Quando falei o que era o volume de um objeto espacial em matemática, um aluno falou que no comércio volume é outra coisa e disse do guarda-volume de uma loja, por exemplo. A indagação foi bem interessante e aproveitei a oportunidade para falar da polissemia das palavras. Que realmente uma palavra pode significar várias coisas, dependendo do contexto onde ela é empregada. E que volume é um bom exemplo disso, dessa polissemia, pois em matemática, volume diz respeito à capacidade de algo, ao que cabe dentro de algo, como por exemplo, ao que cabe dentro de uma caixa d’água, de uma caçamba de um botijão de gás. E que essa mesma palavra pode se referir a coisas distintas. (Diário de campo).

Esta discussão, ocorrida na aula cujo objetivo era apresentar aos alunos

algumas diferenças entre figuras planas e espaciais e algumas características dos

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 87

sólidos geométricos, como, por exemplo, o volume de um sólido geométrico, foi, sem

que eu pudesse prever – e nem tinha como prever – caminhando para uma discussão

sobre o uso que se faz das palavras em diversos contextos. Neste caso, o conceito

de volume foi apreendido conforme eu me propunha a fazer, pois mesmo se tratando

de um guarda-volumes de uma loja de supermercado, a ideia de capacidade de um

objeto que cabe dentro de uma figura espacial, seja ela o formato que for, foi mantida.

Ou seja, a palavra volume que significa algo no jogo de linguagem da matemática

escolar é diferente do jogo de linguagem que essa mesma palavra participa no

contexto do jogo de linguagem do supermercado. Os contextos sociais que a mesma

palavra participa são diferentes, e com isso, diferentes também o significado para

cada contexto.

Decidi, então, depois de todo o debate em que os alunos professores ficaram

livres para fazer suas colocações, aproveitar essa discussão sobre figuras planas e

figuras espaciais para propor um seminário, a ser realizado em grupo. Cada grupo

seria formado por um povo indígena especificamente. O seminário foi estruturado

conforme está descrito no diário de campo, cujo trecho segue abaixo:

Pedi que tentassem relacionar com suas culturas, tudo o que havíamos visto durante o dia sobre figuras planas e figuras espaciais. Por exemplo, peguei o desenho de um triângulo e falei que aquela figura recebia o nome de triângulo na matemática, por possuir, na matemática, algumas características comuns com outras figuras semelhantes. Porém, e na cultura indígena, essa figura existe? E se existe que nome ela recebe e qual o seu significado? Seja na pintura, no artesanato ou em algum outro aspecto da cultura em questão. Pedi então, que fizessem essa relação, se existir, com outras figuras, como o quadrado, dentre outras. (Diário de campo).

Esse foi o mote para discutir com os alunos os significados de várias figuras

em suas respectivas culturas e também o fato de o significado das palavras mudar de

um contexto para o outro, podendo inclusive, a mesma palavra, significar coisas bem

distintas entre um contexto e outro. Dessa forma, essa impossibilidade de se carregar

o sentido de forma única, conforme é possível verificar no trecho acima do diário de

campo, se dá justamente pela falta da prática social que a – a palavra – sustente.

Essa reflexão acaba por alterar a forma como entendemos e construímos o

conhecimento matemático, uma vez que, ela – a matemática – deixa de ser apenas

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 88

um conjunto de regras a serem seguidas de forma única e absoluta em qualquer

contexto, por qualquer grupo cultural e social, seja ele indígena ou não. E essa rede

de significações que é construída muda de acordo com o uso em determinado grupo

sociocultural. Nesse caso, o que podemos no máximo afirmar é que, tal ou tais

palavras são aparentadas, formando uma rede de semelhanças de família, em temos

wittegensteinianos, o que nos remete ao aforismo 65, quando o autor nos ensina que

Ao invés de indicar algo que seja comum a tudo o que chamamos linguagem, digo que não há uma coisa sequer que seja comum a estas manifestações, motivo pelo qual empregamos a mesma palavra para todas, mas são aparentadas entre si de muitas maneiras diferentes. Por causa deste parentesco, ou destes parentescos, chamamos a todas de “linguagens”. (WITTGENSTEIN, 2014, §65).

Assim, o debate gerado na aula de matemática, possibilitou que refletíssemos

sobre os vários contextos de uso em que se pode aplicar a palavra volume, a qual, na

matemática escolar, se refere a algo diverso no contexto em que essa mesma palavra

é aplicada em outras situações do cotidiano não indígena, não sendo possível indicar

algo comum a todas essas aplicações, conforme evidenciado no aforismo acima. A

discussão gerada por meio dos significados da palavra volume propiciaram também

uma discussão mais ampla a respeito dos significados de outras palavras que fazem

parte da gramática da matemática escolar, como as palavras que se referem às figuras

da geometria plana.

Vilela (2013) também nos ajuda nessa reflexão salientando, a partir da filosofia

de Wittgenstein, que alguns grupos indígenas não possuem em suas gramáticas

nomes para indicar quantidades muito altas. Isso indica somente que, nessas formas

de vida não houve necessidade para que determinadas palavras se estabelecessem,

ou seja, a autora salienta que

Sabemos que algumas tribos não possuem nomes para a cor verde, por exemplo, ou não possuem em sua gramática números muito grandes como os nossos. Ocorreria, segundo Wittgenstein, que esses termos – a cor verde e os numerais muito grandes – não se estabeleceram gramaticalmente numa tal forma de vida. ” (VILELA, 2013, p. 216).

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Dessa maneira, não se nega que, em determinado momento, uma determinada

palavra – como a cor verde do exemplo da citação acima, ou outras palavras para

designar números – possa vir a ser introduzida ou criada em determinada cultura, pois

assumimos aqui o dinamismo cultural – e linguístico – e seu caráter não estático como

balizadores deste trabalho. Porém, isso somente acontecerá se, em determinado

momento, tal/tais palavras começarem a fazer sentido e se estabelecerem como regra

gramatical em uma forma de vida, ou seja, uma palavra passa a ter sentido em uma

determinada forma de vida, não porque ela possa ter um referente – que pode ser

concreto ou não – mas porque essa palavra se estabeleceu gramaticalmente,

impondo ou seguindo regras nas especificidades dessa forma de vida. Recorro, nessa

reflexão, a Wittgenstein, que nos ajuda nessa compreensão, ao dizer que, de certa

forma, criamos a falsa ilusão de associarmos o pensamento e a linguagem com uma

única forma de interpretar o mundo, sem especificar o jogo de linguagem que as

palavras participam. Nas palavras do autor,

O pensamento, a linguagem aparece-nos como o único correlato, a única imagem do mundo. Os conceitos: proposição, linguagem, pensamento, mundo estão uns após os outros numa série, cada um equivalendo ao outro. (Mas para que são usadas essas palavras? Falta o jogo de linguagem no qual devem ser empregadas. (WITTGENSTEIN, 2000, p.62-63).

Assim, em consonância com as ideias do autor, criar palavras em línguas

indígenas não é suficiente para que essa palavra se estabeleça na gramática de

determinado grupo, nem é garantia de auxílio para a aprendizagem da matemática no

contexto da EEI. Fazer assim, a tradução de uma língua para outra ou a criação de

termos na língua indígena não garante nada, pois há, no máximo, possibilidades de

que a apreensão dos conceitos ocorra, dependendo do contexto em que os jogos

sejam construídos.

De forma semelhante com o que nos diz Wittgenstein, Ricoeur (2011), enfatiza

que as palavras possuem mais de um sentido, o qual é delimitado pelo uso que se faz

da palavra, ou seja, o autor nos explica que,

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 90

Duas palavras sobre a palavra: nossas palavras têm, cada uma, mais de um sentido, como se vê nos dicionários. O sentido é, a cada vez, delimitado pelo uso, o qual consiste essencialmente em triar a parte do sentido da palavra que convém ao resto da frase e como este concorre para a unidade do sentido exprimido e oferecido à troca. É a cada vez o contexto que, como se diz, decide sobre o sentido assumido pela palavra numa tal circunstância de discurso; a partir daí as disputas sobre as palavras podem ser sem fim: o que você quis dizer? etc. É no jogo da questão e da resposta que as coisas se tornam mais precisas ou se embrulham. Pois não há apenas os contextos patentes, há também os contextos escondidos e o que chamamos conotações10, as quais nem sempre são intelectuais, mas afetivas, nem sempre são públicas, mas próprias a um meio, uma classe, um grupo, até mesmo um círculo secreto; há, assim, toda uma margem do não dito, percorrida por todas as figuras do escondido. (RICOEUR, 2012, p. 52).

Com relação especificamente à tradução de uma língua para outra, Ricoeur

(2012), dentre outros autores, também nos ajuda nessa reflexão, ao assinalar que as

estruturas tanto semânticas quanto de sintaxe entre duas línguas são muito diferentes

entre uma e outra e que, por serem assim, não transportam consigo as características

culturais de uma língua para outra. Para o autor:

Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequencias curtas ou longas. É a esse complexo de heterogeneidade que o texto estrangeiro deve sua existência à tradução e, nesse sentido, sua intraduzibilidade esporádica. (RICOUER, 2012, p. 25).

Ricoeur, nesse livro, que se chama “Sobre a Tradução”, refere-se

especificamente à tradução de obras acadêmicas, o que não impede, pelo referencial

adotado, de fazer aqui uma aproximação com a problemática, uma vez que sua

afirmação de que “... as formas de construção das frases não veiculam as mesmas

heranças culturais; ” lança luz sobre uma pretensa necessidade de tradução de uma

língua para outra. Pretensa porque as palavras ou textos que são produzidos em um

determinado contexto social e cultural, carregam as marcas, os traços da cultura onde

foram produzidos, traços estes que não são facilmente transportados quando feita a

tradução, sendo mesmo bem difícil, ou quase impossível disso acontecer.

10 Destaque do autor.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 91

Assim, de acordo com esse referencial, o professor indígena, na função de

tradutor, poderá ser visto como aquele sujeito que força um caminho de comunicação

entre duas subjetividades linguísticas e culturais. (BATALHA e PONTES JR. 2007).

Ou seja, no processo de tradução estão envolvidas duas subjetividades, duas visões

de mundo que ultrapassam os limites da língua, pois envolvem suas culturas de

origem do texto e a cultura da língua indígena, assim como as relações sociais das

culturas envolvidas. Daí a impossibilidade de se traduzir um texto palavra por palavra

ou frases de forma literal, pois

...as frases são pequenos discursos retirados de discursos mais longos que são os textos. (...) não são frases ou palavras, mas textos que que os nossos textos querem traduzir. E os textos, por sua vez, fazem parte de conjuntos culturais através dos quais se exprimem visões de mundo diferentes, que, aliás, podem se afrontar no interior do mesmo sistema elementar de recorte fonológico, lexical, sintático, a ponto de fazer do que chamamos cultura nacional ou comunitária uma rede de visões do mundo em competitividade oculta ou aberta; (RICOEUR, 2012, p. 60-61).

Ou seja, a tradução será sempre uma interpretação ou uma versão do texto

original, que ganha novos sentidos com os novos usos que serão dados nos sistemas

da cultura de chegada. Dessa forma, em acordo com as reflexões propostas por

Ricoeur, a tradução poderá exercer um papel central diante das possibilidades de

trocas interculturais, desde que seja possibilitado ao professor indígena uma formação

segura em seu papel como professor indígena, participante de uma cultura

diferenciada, que se expressa e se comunica por meio de sua língua. Refiro-me aqui

a uma formação que privilegie o trânsito entre várias visões de mundo, que pelo

menos se intente ser livre das amarras que insistem em construir hierarquias que

subalternam as culturas minoritárias, muito embora eu tenha clareza de que, onde

coexistem sistemas culturais distintos, as tensões advindas das relações de poder

sempre vão existir.

Diante dessa configuração, o professor indígena é figura singular, pois se torna,

dentro da aldeia, um dos sujeitos que transita entre uma cultura e outra, ou seja, se

move dentro da sua cultura e a cultura do não índio, falante das duas línguas – no

caso de seu povo ser falante da língua materna e do português. É, além disso, uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 92

das figuras que melhor poderá liderar, caso seja necessário, tanto a tradução de uma

língua para outra como a criação de novas palavras em língua indígena.

Dessa forma, vejo que a tradução é possível, não se pode negar. Atentamos,

contudo, para a complexidade do ato de traduzir, pois, como anuncia Ricoeur “...como

ocorre com o ato de contar, pode-se traduzir de outro modo, sem esperança de

eliminar a distância entre equivalência e adequação total. ” (2012, p.30). Concordo

com o que fala o autor sobre o ato de traduzir, pois este, quando levado a cabo,

produzirá perdas no caminho que leva do texto original a ser traduzido ao texto

traduzido. As análises dos dados desta pesquisa nos permitem afirmar que, o texto

de saída (a ser traduzido) e o texto de chegada (texto já traduzido), por envolverem

lógicas de construção de realidade distintas e os sentidos presentes numa cultura,

são também distintos. Pode, sim, haver outros significados, o que não significa dizer

que estaremos diante de um texto de chegada novo e diferente do original, o que há

são diferentes significados.

Isso pode ser verificado quando, por exemplo, é analisado o sentido dado aos

numerais na cultura Xerente11. Para este povo que conta até quatro, os nomes dados

aos numerais estão relacionados a elementos da fauna do lugar onde esse grupo está

localizado. Em nosso sistema de numeração decimal, esses numerais possuem um

outro sentido. Dessa forma, o sentido dado a um número – ou a uma figura geométrica

qualquer – em uma cultura, não é “transportado”, pela linguagem, a uma outra cultura

somente pelo ato de traduzir. Pensar nessa possibilidade seria, de acordo com o

referencial aqui adotado, a de tomar uma das culturas por meio de sua língua (que

origina o texto a ser traduzido), como o referencial superior à cultura do texto de

chegada. Nesse sentido, concordo com Ricoeur (2012) que, ao se referir ao ato de

traduzir, afirma que “...com efeito, parece-me que a tradução não implica apenas um

trabalho intelectual, teórico ou prático, mas também um problema ético. ” (RICOEUR,

2012, p. 48).

Essa opinião é compartilhada por Batalha e Pontes Jr., de acordo com quem

“A prática do tradutor não está isenta de decisões que ultrapassam a simples esfera

do conteúdo linguístico e implica escolhas pessoais, modelos críticos e poéticos,

11 Sobre o sentido dado à forma de contagem do povo Xerente, me deterei melhor no quarto capítulo.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 93

predominantes ou não, de uma determinada época” (BATALHA e PONTES Jr. 2007,

p. 12). De fato, pois, se concordamos que, na linguagem, estão presente as marcas

da subjetividade que envolve determinada cultura, é também por meio da linguagem

que se veiculam as ideologias e relações de poder presentes nessa mesma cultura.

Sobre isso, Condé (2004) salienta que

...a subjetividade emerge na medida em que entramos na ordem do simbólico, inserindo-nos na linguagem (gramática, pragmática, etc.) de uma forma de vida. Não se pode conceber um sujeito fora da linguagem, fora de uma forma de vida, isto é, esse sujeito construído “na” e “pela” pragmática da linguagem constitui-se necessariamente a partir de relações inter-subjetivas realizadas em uma forma de vida. (CONDÈ, 2004, p. 80).

Assim, de acordo com Condé, a forma de vida ganha relevância para se pensar

tanto a criação quanto a tradução de palavras para a língua indígena, uma vez que é

numa dada forma de vida que se engendram as regras de uma gramática que

balizarão os usos dessas palavras nos contextos referentes a essa forma de vida.

Maria Cristina Batalha e Geraldo Pontes Jr., no livro Tradução, anunciam, logo na

apresentação da obra, três premissas que envolvem o ato de traduzir, que são

...a primeira delas é que a tradução é uma prática social comunicativa; a

segunda é que o conceito de tradução é bem mais amplo do que a simples passagem de uma língua para outra; e a terceira, é que a tradução é sempre possível e a intraduzibilidade não existe. (BATALHA e PONTES JR., 2007, p. 10).

Refletir sobre essas premissas é importante para entender o fenômeno da

tradução em comunidades indígenas de uma forma geral, mais especificamente no

ambiente da sala de aula e, em especial, nas aulas de matemática, por se tratar de

um fenômeno presente e, de alguma forma, rotineiro, pelo qual passam os professores

indígenas no exercício do magistério. Dessa forma, não há como negar a existência

da terceira premissa, ou seja, a de que a tradução é sempre possível e que não existe

a intraduzibilidade – tampouco se nega as demais. Ao contrário, chama-se atenção é

para um fenômeno que, em decorrência da primeira premissa, como será mostrado

mais adiante com as falas dos professores indígenas, envolve subjetividades múltiplas

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 94

e exige uma atenção mais cuidadosa por parte das várias esferas que tratam da EEI,

pois não se trata de apenas traduzir ou não traduzir para a língua indígena, ou de se

criar ou não palavras, se trata também, e sobretudo, de fazer sentido o que está sendo

traduzido.

Nesse sentido, Batalha e Pontes Jr (2007) evidenciam toda uma cadeia que

envolve o texto de origem e o texto traduzido, chegando ainda a afirmar que,

Ora, o ato tradutório envolve não só o autor e o texto original, mas também toda a cadeia que vai desde o autor do texto de origem até o receptor do texto traduzido. (BATALHA e PONTES JR., 2007, p. 11).

...fazemos “tradução”12 em diferentes situações do nosso cotidiano, como, por exemplo, quando dizemos alguma coisa de “outra maneira”13, através de uma paráfrase, sem passarmos por uma língua estrangeira; ou ainda quando “traduzimos”14 por palavras algum símbolo semiótico, como sinais de trânsito, gestos, etc. (IDEM).

Dessa forma, refletir sobre a tradução da linguagem matemática que, na

realidade dos povos Xerente e Karajá, é veiculada em língua portuguesa, para a língua

indígena, é refletir também sobre as ideologias que estão presentes nos materiais que

circulam nas escolas indígenas, como já foi assinalado. É também refletir sobre a

interpretação que será dada pelo professor ao ato de traduzir que, por sua vez, leva

em consideração a realidade distinta dos alunos daquela realidade retratada no

material que chega às escolas indígenas.

O texto que está em língua portuguesa, e que reflete as ideias matemáticas

presentes em um determinado material, passa uma determinada mensagem

proveniente dos modelos sociais e culturais de onde provém esse material. Em vista

disso, não advogo aqui por uma total desconsideração dessa mensagem como

resultado no texto traduzido. Fazer isso, seria, no entendimento proposto pelo nosso

referencial, a construção de um texto totalmente novo e original na língua indígena,

sendo, dessa forma, uma traição do texto traduzido em relação ao texto original.

12 Destaque dos autores 13 Idem 14 Idem

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 95

Chamo aqui a atenção para o fato de que a tradução não é tão simples quanto

possa parecer, por envolver múltiplos fatores de natureza cultural e social ao redor

das línguas de saída e de chegada do texto a ser traduzido, Assim, quando é

necessário fazer a tradução, deve-se colocar em evidência esses fatores tanto para

se evitar criar novas hierarquias em relação às culturas envolvidas quanto para a não

folclorização da língua indígena, pois, como bem analisam Batalha e Pontes Jr,

refletindo sobre as ideias de Edouard Glissant (1996),

“...existe uma relação de dominância e de fascínio diante das línguas de países adiantados tecnologicamente, relegando ao plano do folclórico e do exótico as outras línguas, notadamente as que não possuem escrita, como é o caso de inúmeras línguas africanas. (BATALHA E PONTES JR. 2007, p. 74-75).

O autor refere-se às línguas africanas, que ilustram essa relação de

dominância, sendo possível fazer no âmbito deste trabalho uma analogia com as

línguas indígenas. Percebi, ao longo desta pesquisa e de meu trabalho na secretaria

de educação do Estado do Tocantins, que as pessoas ligadas às secretarias de

educação, nos departamentos de EEI, nas esferas federal, estadual e municipal - que

na maioria dos casos não são indígenas - precisam de uma formação específica para

tratar dessas especificidades e poder auxiliar o professor indígena nessa tarefa. Para

além disso, os cursos de formação de professores, específicos ou não, para as áreas

indígenas, devem desenvolver métodos também específicos que lhes permitam refletir

sobre essa prática que, a contento ou não, já vem ocorrendo. A ênfase na formação

se dá porque

...a tradução não é uma atividade puramente mecânica, que pode ser exercida por qualquer pessoa que fale bem uma língua estrangeira. Traduzir não é permanecer no enunciado, mas sim elaborar um discurso de significados novos, produzindo outro texto. (IDEM, p. 95).

Pensando dessa forma, o professor indígena, como agente que vai encontrar

na tradução e criação de novas palavras em língua indígena, uma constante no seu

trabalho de sala de aula, precisa de uma formação que lhe possibilite reflexões e

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 96

técnicas mais apuradas nesse sentido. Ele precisa de uma formação que lhe garanta

as mínimas condições de praticar tais ações, quando estas forem possíveis.

A proposta equivocada da ênfase na tradução, pode ser vista como oriunda das

relações de poder. Talvez o equívoco advenha de uma postulação ao redor da

necessidade de se realizar a tradução ou se criar nomes em línguas indígenas, o que

não ganha eco nas comunidades onde se efetua essas tentativas oriundas das

relações de poder ou na desconsideração total da cultura indígena. De uma forma ou

de outra, o fato é que novas palavras, para se estabelecerem em determinada

gramática de uma dada forma de vida, já devem ter consolidado seu uso no interior

de um contexto específico, e, com isso, adquirido sentido por esse uso.

Sobre a utilização da palavra traição acima, esta foi feita no sentido dado por

Arrojo (2003), para quem, no ato de traduzir também estão presentes o contexto

histórico e cultural do realizador do ato de traduzir, sendo que tal ato não acontece de

forma neutra em relação ao tempo e ao contexto histórico e cultural do tradutor. A

autora evidencia que as marcas do tradutor sempre estarão presentes no ato

tradutório, pois revelam a subjetividade de quem o realiza. Para a autora, a

subjetividade é intrínseca ao ato de tradução, o que, em sua visão, não é propriamente

algo negativo. Assim, para ela,

Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente, uma compreensão “neutra” e desinteressada ou um resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos significados supostamente estáveis do texto de partida. (ARROJO, 2003, p. 68).

Arrojo (2003) enfatiza também a não neutralidade do ato de traduzir, quando

afirma que nenhuma tradução é neutra e acaba por trazer consigo as marcas da

cultura, da sociedade da qual o tradutor faz parte. Dessa forma, a autora argumenta

que

Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal. Nenhuma tradução será, portanto, “neutra” ou “literal”; será, sempre e inescapavelmente, uma leitura. (IDEM, p. 78).

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 97

É fato que a autora se refere à tradução de textos científicos, assim como

também enfatiza o termo qualquer tradução, abrindo margem para que se possa

interpretar a situação, ao fazer uma analogia de suas ideias para a tradução nas

escolas indígenas. Melhor dizendo, para a realidade dos professores indígenas que

já lidam com a tradução de alguma forma, como será mostrado mais à frente nas falas

desses professores.

Arrojo (2003), dessa forma, evidencia que as teorias da tradução que se

ocupam da infrutífera tarefa de buscar significados estáveis com relação ao texto

original, além de serem uma característica do conhecimento que é produto do homem

ocidental, evidenciam uma postura logocêntrica do ato de traduzir. Nessa postura,

estaria presente na ação de traduzir, a busca de significados únicos, estáveis e

estanques, que podem ser descobertos, resgatados e/ou recuperados de forma plena

e objetiva pelo tradutor.

Oliveira (2007) também nos oferece uma profunda e profícua análise sobre a

tradução a partir do aforismo 698 da obra Fichas de Wittgenstein. Nesse aforismo, o

filósofo faz uma analogia – que, a princípio, parece díspare – entre domínios de

conhecimento considerados distantes como a matemática e a literatura. Wittgenstein

no aforismo em questão, que aqui foi extraído do artigo de Oliveira (2007), assim se

posiciona:

Traduzir de uma língua para outra é uma tarefa matemática, e traduzir p. ex. um poema lírico para uma língua estrangeira é muito análogo a um problema matemático. Pois pode-se certamente colocar o problema “Como deve ser (p. ex.) traduzida” – i.e. substituída – “essa piada por uma piada na outra língua? ”; e o problema pode também estar resolvido; mas um método, um sistema para sua resolução, não houve. (WITTGENSTEIN, Fichas §698, apud OLIVEIRA, 2007, p. 185).

Esse aforismo analisado por Oliveira (2007) é o mote utilizado pelo autor para

desencadear uma análise sobre tradução, argumentando que as ideias desenvolvidas

por Wittgenstein podem lançar luz sobre os problemas referentes a uma visão

essencialista sobre os estudos da tradução, sem entrar numa espécie de relativismo

epistemológico no qual se empreenderam as críticas pós-modernas de inspiração

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 98

derridiana. Oliveira (2007) percorre as distintas fases – chamadas por ele de inicial,

intermediária e tardia – pelas quais passou o pensamento de Wittgenstein, cujo

objetivo foi investigar se, na obra do filósofo, já não estaria explicitamente articulada

uma concepção de tradução.

Para os objetivos deste trabalho, nos interessam as análises feitas por Oliveira

(2007) no que diz respeito sobretudo às Investigações Filosóficas, pois se localiza

nessa fase o posicionamento do filósofo, de forma explícita, contra os fundamentos

últimos e qualquer forma de essencialismo que não esteja amparado por uma forma

de vida. Sobre a analogia feita por Wittgenstein, Oliveira (2007) considera que

...na interpretação dos aforismos que mobilizam esse tipo de analogia, deve ser descartada a leitura que pressupõe diferentes categorias, conferindo a um extremo (a matemática) a possibilidade de um método rigoroso e restringindo ao outro (a poesia, o humor) a impossibilidade de sistematização (OLIVEIRA, 2007, p. 208).

Com isso, Oliveira argumenta sobre a importância de se distinguir entre os

aspectos normativo e descritivo da tradução, cuja atenção implica no modo como o

conceito pode variar em suas distintas aplicações nos diferentes jogos de linguagem.

O autor chama atenção para o aspecto normativo da tradução no trecho do aforismo

que diz que o problema pode estar “também resolvido; mas um método, um sistema

para sua resolução, não houve” (Wittgenstein, Fichas §698, apud Oliveira, 2007, p.

185). Segundo Oliveira (2007), neste trecho, pode-se depreender que, se o problema

pode estar resolvido supõe-se que a tradução pode ser feita sob determinadas regras,

mas que essas regras não são fixas para todo o sempre, ao contrário, são regras que

são seguidas em conformidade com determinada forma de vida e, nesse sentido,

como as formas de vida são dinâmicas, essas regras também o são, podendo-se

alterar o critério estabelecido vigente.

Contudo, mesmo dentro dessa dinâmica, o caráter normativo continua a se

manifestar, pois sempre existirá um critério normativo balizador na ação de traduzir,

seja essa ação a de um poema ou mesmo a formalização da matemática. Levando-

se sempre em consideração que, na matemática, por seu caráter formalista, as

mudanças se dão mais lentamente que nas línguas naturais.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 99

Sobre essa característica de sistemas mais formalizados como o da

matemática, o autor nos explica que

O que difere os sistemas formalizados dos não-formalizados não é, portanto, uma diferença de natureza, mas sim de grau. Em casos como o da matemática e da geometria, os conceitos permanecem estáveis por mais tempo, de geração para geração, mesmo após a morte dos especialistas que estabeleceram as normas que definem o escopo de cada conceito. (OLIVEIRA, 2007, p. 222).

De qualquer forma, nessa visão proposta pelo autor, implica que não há um

método sistemático que possa ser seguido indiscriminadamente para se realizar a

tradução. Note-se ainda, que a não existência desse método sistemático, não implica

que a tradução, quando levada a cabo, seja considerada insatisfatória. Indica tão

somente que a norma seguida em uma tradução é provisória e, sendo assim, não é

passível de generalização, sendo ainda esta norma apenas uma das possíveis

soluções para uma determinada tradução.

Um limite sim, mas um limite provisório, histórico e temporal. Com isso, chega-

se a uma noção de fechamento na matemática de forma também dinâmica, ou seja,

uma noção de fechamento que é provisória, dinâmica e temporal, e que poderá ser

alterada com o tempo a partir do momento que uma outra norma começar a se

estabelecer em mudanças que acontecem na própria matemática. Dessa forma, diz o

autor que

No momento em que não mais concordamos com a solução encontrada, isso não significará que ela não tivesse sido uma norma, pelo contrário: significará um questionamento da norma antiga e eventualmente a introdução de uma outra norma, que passará a exercer papel semelhante. Quem traduz não apenas descreve, mas sim define o original – mesmo que não haja um método previsível e sistemático para tanto. (IDEM, p. 216).

Oliveira (2007) encerra suas análises nesse trabalho, enfatizando que o ato de

traduzir depende, em grande parte, do jogo de linguagem em que se dá o processo

da tradução, e da percepção de que, por ser o jogo de linguagem dependente de uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 100

forma de vida, existe aí um caráter normativo dessa forma de vida, que é também o

balizador do processo de traduzir.

As análises de Oliveira (2007) sobre a tradução, que têm como referência o

aforismo 618 das Fichas de Wittgenstein, auxiliam nos termos deste trabalho por

permitirem a compreensão de fenômenos como a tradução e a criação de novos

termos em línguas indígenas, nas aulas de matemática, no espaço dinâmico das salas

de aula em escolas indígenas, como será possível ver mais à frente nas falas dos

professores indígenas, e nas ações que, de alguma forma, já vêm acontecendo.

Interessa-nos então saber de que forma isso vem acontecendo, quais estratégias os

professores indígenas estão mobilizando para materializar a questão do ensino

bilíngue nas aldeias, por meio da tradução ou da criação de novos termos em línguas

indígenas.

O trabalho de Mendes (2001) também nos ajuda nessa reflexão, por ser uma

pesquisa de campo realizada com grupos indígenas. A pesquisadora que, em sua

pesquisa de doutorado, investigou os conceitos de leitura, escrita e contagem com o

povo indígena Kaiabi no Parque Indígena do Xingú – PIX –. A autora trabalhou como

formadora do curso de formação de professores indígenas no PIX, com o objetivo de

fazer uma discussão sobre o que ela chama de numeramento-letramento na formação

dos professores indígenas do Parque, buscando ainda estabelecer uma relação entre

essas práticas de numeramento-letramento e as práticas de numeramento-letramento

do contexto escolar, sob a visão tanto dos professores indígenas quanto da

professora-analista-formadora15.

O terceiro capítulo de sua tese dedica-se de forma pormenorizada às

capacidades inerentes ao ato de contar. Nesta parte, é possível perceber uma sintonia

– aproximação no âmbito desse trabalho – das reflexões propostas pela autora e o

conceito de formas de vida como proposto na filosofia de Wittgenstein. Mendes nos

alerta para o fato de que contar envolve múltiplas capacidades, da mesma forma que

ler e escrever, pois é um processo que está envolto a uma série de conhecimentos.

Para a autora,

15 Termo usado pela autora para referir-se a si mesma.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 101

Do mesmo modo que ler e escrever englobam uma série de capacidades e conhecimentos, “contar” não representa ou pelo menos não pode ser encarado como o simples ato de quantificar ou enumerar, já que são múltiplas, também, as capacidades e conhecimentos que envolvem esse conceito. Do mesmo modo que a escrita e a leitura, a compreensão de situações numéricas envolve uma série de conhecimentos, capacidades e competências que não abrangem apenas a mera decodificação de números; muito além disso, abarcam também a compreensão de diversos tipos de relações ligadas ao contexto social de uso. (MENDES, 2001, p. 63-64).

A autora (1995), em sua dissertação de mestrado, propõe uma discussão

detalhada a respeito do uso do termo numeramento, a partir de uma analogia

interessante com o conceito de letramento. Discute que o letramento diz respeito ao

contexto social em que é produzido, existindo várias formas de letramento, que podem

estar ou não associadas ao código escrito. Da mesma maneira, o numeramento está

atrelado ao contexto social de uso, o que possibilita pensá-lo de diferentes formas, e

de acordo com as regras sociais e culturais de determinado grupo, podendo ou não

sofrer influência da escrita alfabética e numérica da matemática acadêmica. Mendes

(1995), com essa analogia, acaba por associar também o numeramento com a

Etnomatemática, diretamente relacionada com o conhecimento matemático próprio de

um determinado grupo e que é anterior ao conhecimento difundido na escola. Assim,

para a autora,

O código estabelecido dentro do grupo social pode não estar relacionado à escrita, pois esses numeramentos podem se apresentar através do saber-fazer (Sebastiani, 1987), ou então, através de representações visuais como a pintura corporal indígena, os desenhos africanos feitos na areia (Gerdes, 1993), ou ainda a aritmética e ornamentação geométrica dos cestos indígenas brasileiros (Gerdes, 1998). (MENDES, 1995, p. 9).

Mendes (1995) ainda nos esclarece sua concepção de alfabetização

matemática, evidenciando que a escrita matemática não está restrita ao processo de

escolarização dos alunos. Segundo a autora,

... a alfabetização matemática, numa visão etnomatemática, aparece antes da escrita numa língua, não estando ligada apenas à aquisição de uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 102

“escrita matemática”16 dentro do processo de escolarização. O conceito de numeramento surge da necessidade de se estabelecer códigos para uma leitura matemática no interior de práticas sociais, podendo dessa forma ser visto como plural, do mesmo modo que o letramento. Podemos então nos referir à existência de eventos de numeramento. (IDEM, p. 10).

Meu objetivo, no entanto, na reflexão das análises propostas pela autora, é

entender o uso do termo numeramento, uma vez que, para Mendes, e concordando

com ela, o numeramento é uma prática específica que possui diversos significados,

dependendo do contexto. Assim,

...o numeramento permite-nos pensar em práticas que estão relacionadas a contextos específicos de uso do conhecimento matemático, as quais diferem, em sua maioria, da forma como é conduzido o ensino de matemática na escola formal, ou seja, a prática de numeramento escolar. (MENDES, 2001, p. 73).

Dessa forma, o uso do termo numeramento, no sentido proposto pela autora,

permite situar o conhecimento matemático no conjunto de práticas sociais específicas,

assumindo então que todo grupo sócio cultural (D’Ambrósio, 2002) é capaz de

produzir conhecimento matemático de acordo com suas especificidades sociais,

culturais, ambientais e linguísticas. Assim, de acordo com a sua forma de vida,

determinados conhecimentos serão mobilizados para dar conta das necessidades

dessa forma de vida. Sobre etnomatemática, buscarei aprofundar a discussão no

quarto capítulo.

É interessante propor a aproximação das ideias de Mendes (2001) com os

conceitos desenvolvidos por Wittgenstein, como sugerido acima, no contexto desse

trabalho, quando a autora enfatiza que

Não somente entre os Kaiabi, como entre vários grupos indígenas brasileiros é comum a existência de poucos termos em L.I. para designar os números; apesar disso, não se pode afirmar que não exista alguma forma de organização e estruturação das quantidades, mesmo que isso não seja explícito através de um termo específico. Pensar em práticas de numeramento em um grupo específico significa pensar no contexto e objetivos em que tais práticas são alocadas. Apresentar termos numéricos até quatro ou cinco faz sentido no contexto em que são usados,

16 Destaque da autora.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 103

pois a questão do número estará sempre ligada a uma necessidade de contagem. Números maiores, só se for necessário, ou seja, se o objetivo da contagem é enumerar grandes quantias. (MENDES, 2001, p. 97).

De acordo com as ideias de Mendes (2001), é possível entender que o fato de

um grupo indígena nomear em sua língua quantidades de até três, quatro ou cinco ou

outra quantidade qualquer, não faz do conhecimento produzido por este grupo limitado

ou inferior a uma outra cultura tomada como referente, pois se tratam de práticas

sociais de numeramento distintas. São limitados e inferiorizantes os discursos

produzidos que afirmam que o índio não sabe contar. É, assim, um grande equívoco

dizer que o indígena não sabe matemática ou não sabe contar, uma vez que tal

afirmação toma como referência a matemática escolar e a acadêmica, pois são

linguagens com lógicas que se dão em contextos diferenciadas de produção.

No contexto indígena, o equívoco se torna evidente quando analisamos a

situação amparados nos conceitos Wittgensteinianos de jogos de linguagem e formas

de vida. Podem ser muito diferenciados os jogos de linguagem do dia a dia da aldeia

e os jogos de linguagem na escola da aldeia, por se tratarem de contextos com

gramáticas próprias de produção. Essa analogia feita entre letramento e numeramento

se torna fecunda para a área da educação e educação matemática, pois, da mesma

forma que para Silva (2012), o conceito de letramento é amplo e permite uma abertura

às possibilidades pedagógicas, localizando-as em contextos sociais, uma vez que,

Ajuda a compreender os contextos sociais e sua relação com as práticas escolares, possibilita investigar a relação entre práticas não escolares e o aprendizado da leitura/escrita e faz a escola repensar seu papel como agencia de letramento. (SILVA, 2012, p. 34).

Dessa mesma forma entendo o conceito de numeramento como proposto por

Mendes (1995), pois também permite uma abertura maior às possibilidades

pedagógicas por abrir espaço para a compreensão de práticas sociais específicas e

particulares, em semelhanças de família com o que se entende por matemática. Essa

compreensão, sem dúvida, abre espaço para vários tipos de investigações, levando-

se sempre em consideração que as práticas sociais e específicas operam de uma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 104

forma que é diferente da forma de operar da matemática acadêmica e escolar,

produzindo dessa forma, gramáticas bem distintas umas das outras.

Nesse sentido, Vilela (2013) diz que “pelos nossos estudos sobre a lógica da

vida cotidiana e sobre a relação da linguagem natural com a lógica, a lógica da

matemática do dia a dia não parece ser um fragmento da lógica formal, e sim lógicas

com características distintas”. (VILELA, 2013, p.148). Evidencia-se assim, ser

equivocado o discurso que anuncia ser necessário a criação de novas terminologias

em línguas indígenas, ou traduzir do português para a língua indígena termos que

expressem ideias matemáticas, com a premissa de que essa necessidade se daria

em função de garantir aos povos indígenas um bom ensino de matemática, ou ainda

o acesso ao conhecimento produzido pela humanidade. Trata-se de um

posicionamento etnocêntrico já que tal suposta necessidade toma como referência,

como já foi enfatizado antes, a matemática acadêmica, fazendo-a assumir um lugar

de destaque, e ainda encontrando na matemática escolar sua principal aliada para

impor e estabelecer seus valores.

Assim, ao interpretar uma determinada prática social a partir de outra prática

social tomada como referente, busca-se uma norma, um padrão generalizável, sem

levar em consideração que práticas sociais específicas fogem a um modelo idealizado

tido como o único e verdadeiro, o que faz com que, geralmente, o específico seja tido

como inferior, pequeno e sem valor.

Pelo que tenho buscado compreender, ao que parece, é que as matemáticas

acadêmica e escolar, por seu caráter formalista, faz uma espécie de assepsia da

complexidade de variáveis que envolvem as práticas sociais cotidianas, afastando-se

com isso desses diversos contextos. Tal assepsia é necessária para garantir essa

formalidade, pois “...o processo de simplificação tende a reduzir a complexidade das

variáveis envolvidas nos problemas cotidianos para transmutá-los em problemas

escolares. ” (Knijinik, 2012, p. 62). É ainda essa formalidade asséptica dos contextos

temporais, sociais e culturais do cotidiano que garantem a pretensa naturalização

almejada de seu caráter de universalidade, unicidade e neutralidade da matemática

acadêmica.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 105

Sobre esse ponto, Vilela (2013) também se manifesta, dizendo que as regras

da matemática acadêmica são tão fortes que acabam se tornando naturais aos nossos

olhos, de sentido único e inquestionável. Para a autora,

Acreditamos na unicidade da matemática pela força das regras que carregam a ideia de resposta única, do caráter necessário. Por termos sido treinados ou porque alimentamos uma imagem, por termos incorporado uma regra é que uma proposição se torna “óbvia”, isto é, parece ser necessária(...) as regras da matemática têm esse aspecto da necessidade, do resultado único, do absoluto. Então, mesmo quando o resultado não é o mesmo, tendemos, ou a achar que é, ou dizemos que não é matemática... (VILELA, 2013, p. 211).

Esse caráter forte, de sentido único, como salientado por Vilela, tende a

simplificar as variáveis dos problemas cotidianos, de acordo com Knijinik, isso em

decorrência do valor social dado a essa ciência, por nossa sociedade. Esse valor, é

realmente tão forte que tudo aquilo que não se enquadra nas regras da matemática

acadêmica – e também a escolar – costuma ser diminuído. Talvez seja esse um dos

pontos que origina o discurso de acordo com o qual é necessária a criação de novas

palavras em línguas indígenas, ou ainda a tradução do português para essas línguas,

como garantia de oferecer um bom ensino de matemática nas escolas indígenas.

Gottschalk (2007) também se manifesta a respeito do caráter necessário das

proposições matemáticas, fazendo uma análise a partir da obra Da certeza, de

Wittgenstein, na qual ele faz uma analogia da imagem do rio de Heráclito. A autora

destaca que essas proposições até podem se originar em contextos do nosso

cotidiano, porém, em algum momento se consolidam, se afastando do contexto de

origem. Ou seja,

Como as proposições que uma vez estiveram no fluxo do rio, as proposições da matemática podem ter como origem remotas situações empíricas, até que, por diversas razões, passam em um determinado momento a exercer uma função que transcende meramente o “registro” de nossos comportamentos habituais: passam a fazer parte do leito do rio. (GOTTSCHALK, 2007, p. 122).

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 106

Isso mostra também a dinamicidade de nossas formas de vida, que passam

por modificações muitas vezes imperceptíveis ao longo do tempo, passando a ideia

de naturalização dessas práticas modificadas. Dessa maneira, entendemos que essa

reflexão, encontra respaldo na resposta de Antônio Samurú que, ao ser indagado

sobre essa questão, quando lhe perguntei sobre seu posicionamento a respeito da

criação ou não de palavras para a língua indígena, respondeu que tal utilização até

poderia funcionar na escola, mas que, na comunidade, não seria bom uma vez que

não foi algo feito pela mentalidade dos próprios índios. Diz Samurú que

Na minha concepção, a gente hoje tá nessa fase, talvez para escola seja necessário, mas para convívio na comunidade, é uma coisa assim, isso ai é inventado não está dentro da nossa realidade, meu medo é esse, eu tenho esse material17, ai saiu isso aqui, e assim isso, e certamente não fizeram com sua própria mentalidade, não sei se a gente pode falar assim. (Antônio Samurú, professor Xerente).

Diante do exposto, a fala do professor Samurú chama a atenção para, segundo

a filosofia de Wittgenstein, dois jogos de linguagem distintos no interior de uma mesma

forma de vida, qual seja, o jogo de linguagem referente ao cotidiano da aldeia, com

suas especificidades, complexidade e peculiaridades próprias, e o jogo de linguagem

do ambiente escolar na aldeia, que também apresenta suas especificidades,

complexidade e peculiaridades. Dois jogos de linguagem distintos, que carregam

consigo práticas sociais específicas de linguagem, certamente, cada um com sua

gramática própria, e que determinam significados distintos mesmo que para termos

que se pretendam equivalentes.

A pertinência e fecundidade desta filosofia vai ao encontro de minha

experiência como professor formador na universidade e na aldeia. Estes espaços

carregam em si uma dada forma de vida com sua gramática correspondente. O

amalgama da linguagem e forma de vida justifica a opção nesta pesquisa por esta

filosofia, que pode ter semelhanças com relação aos grupos indígenas Xerente e

17 O material a que Samurú se refere são três cartilhas publicadas pelo Governo do Tocantins, uma das quais possui novas numerações na língua Xerente, do cinco ao dez. Os Xerente, como já foi colocado aqui, possui nomes para expressar quantidades em sua língua do um ao quatro. Para mais informações a respeito da numeração Xerente, ver em Monteiro (2011) e Melo (2007). No próximo capítulo, me deterei mais um pouco nesse tópico.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 107

Karajá. Essas formas de vida das quais participam, podem, em muitos casos, se

caracterizar como muito distintas daquelas formas de vida de que os indígenas

participam fora da aldeia, no contato com os não indígenas. Este contato, para além

dos hábitos culturais, possuem na língua a diferença mais evidente e estrutural, tendo

em vista o referencial pós virada linguística.

Samurú sugere que a criação de novas palavras “poderá” dar certo se for

estritamente empregada no jogo de linguagem da escola, ou seja, em sua fala fica

claro que, caso tais palavras sejam inseridas, esse uso se dará apenas na escola, não

no jogo de linguagem da comunidade. Tendo o referencial deste trabalho como

suporte, não há garantias de que tais palavras vão se estabelecer como regra

gramatical nesta forma de vida. Além do que, os novos números podem se tornar, ou

não, uma regra gramatical do ambiente escolar.

A linguagem, dinâmica que é, vai mudando lentamente, com o aparecimento

de novos termos que podem se tornar significativos numa forma de vida, caso sejam

significativos para esta forma de vida. Por essa razão, as chances de efetivação na

forma de vida indígena são pequenas, uma vez que, eles resistem de alguma forma,

a essa matemática escolar e a acadêmica. A resistência decorre, antes, da possível

relevância que possa vir a ter o novo número, mas como enfrentamento do

menosprezo e inferiorização do conhecimento e cotidiano da aldeia por parte dos não

indígenas, que ditam as regras do ambiente escolar da aldeia. Samurú ainda se refere

a sua insatisfação com as cartilhas18 Xerente, material produzido sem a “mentalidade”

do seu povo e sem uma participação efetiva da comunidade.

A fala de Waxiy Karajá sobre a criação e tradução de novas palavras em línguas

indígenas, caminha nesse mesmo sentido sinalizado por Samurú. Waxiy postula como

algo importante a criação de novos termos em língua indígena, porém não sem

ressalvas. Para ele, essa criação de novas palavras deve ser feita com a participação

dos mais velhos, pois existem palavras mais específicas que os mais jovens não

18 Sobre essas cartilhas, há alguns anos atrás, foi formada uma equipe, liderada por missionários, para trabalhar a criação de termos do 5 ao 10 na língua Xerente, pois, como sabemos, esse povo, possui na sua língua termos do 1 ao 4. Essa equipe contou com a participação de quatro indígenas Xerente, porém, ao que parece na fala de Samurú, é que não há consenso entre o povo, sobre a utilidade desses novos termos.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 108

conseguiriam traduzir. Vejamos como Waxiy se posicionou sobre o assunto na

entrevista realizada.

Sim, traduzir realmente é necessário, mas isso leva um tempo para poder pensar nisso(...) Para facilitar mais o entendimento, do que está sendo colocado em relação a matemática, porque sem a palavra especifica muita gente fica perdido, muitas vezes eu fazia a escrita na língua indígena para poderem entender melhor, porque os problemas, para serem resolvidos devem ser lidos e entendidos(...) Na realidade tem que entender o que está escrito, conforme o entendimento aí você escreve para eles poderem entender, aí é que eles vão entender o que realmente está perguntando, para poderem resolver o problema. Mas é legal, eu acho muito legal esta tradução, criava palavras, mas a palavra mesmo pode ser criada mesmo junto com os mais velhos, existem umas palavras muito especifica, que o jovem de hoje não consegue reproduzir, eu por mais que sou um filho de uma pessoa mais antigo, eu já me perdi em uma história que ele me contava, porque ele usava uma palavra que eu não entendia o que era, aí tinha que perguntar para ele para entender melhor(...) Com certeza isso com a matemática ajudaria muito.(Waxiy Karajá, professor Karajá).

Waxiy mostra-se aberto tanto à tradução quanto à criação de novas palavras

na língua indígena como algo que poderá facilitar o ensino de matemática, no

entendimento dos alunos. Porém tal atitude, levada a cabo pelo professor na sala de

aula, não acontece de forma simples, leva um tempo para poder pensar nisso, como

bem salienta o professor. Ele enfatiza ainda, a importância do entendimento do texto,

aliada a essa tradução ou à criação, assim como à importância das pessoas mais

velhas nessa ação. A participação dos mais velhos, daqueles que, dentro da aldeia,

são os mais experientes e conhecedores da cultura, é sem dúvida, um ponto singular

nessa questão. Isso porque eles podem dar o suporte necessário na ação da tradução

ou criação de novas terminologias em línguas indígenas, salientando ainda as

especificidades da língua, pois existem umas palavras muito especificas, que o jovem

de hoje não consegue reproduzir.

Waxiy ainda evidencia que, mesmo quando feita a tradução ou a criação de

novas palavras na língua Karajá, a ação poderá ficar circunscrita apenas ao espaço

escolar, no jogo de linguagem das aulas de matemática. Em nenhum momento, sua

fala sugere que esses novos termos poderiam ser utilizados em outros jogos de

linguagem, presentes na forma de vida da aldeia. Trata-se de uma possibilidade essa

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 109

que, no entanto, não pode ser descartada, uma vez que tais palavras, em algum

momento podem se tornar presentes também no contexto da aldeia.

A fala de Waxiy, nos remete, ainda, ao caráter normativo da tradução, conforme

explicitado por Oliveira (2007). Enfatizar, assim, que as palavras podem ser criadas

junto com os mais velhos, implica dizer que a realização da tradução acontece

seguindo algumas normas da forma de vida de dentro da aldeia, embora dentro de

um determinado contexto, para um uso adequado do que foi traduzido

especificamente na aula de matemática.

Nesse sentido, Oliveira (2005) nos ajuda a entender melhor a tradução de

palavras, conforme evidenciado por Waxiy, no contexto específico da aula de

matemática, pois, para o autor

...se o contexto for insuficiente para determinar o sentido de um signo, enunciado, etc., poder-se-á sempre ampliá-lo até que se chegue a critérios suficientes para uma determinação – que não será definitiva nem necessária, mas o suficiente para equacionar as necessidades pragmáticas em questão, naquela situação específica, sem cair em absoluto nalguma espécie de subjetivismo qualquer. Posto que toda decisão, inclusive e sobretudo no caso da tradução, é tomada sempre num dado contexto, a visão wittgensteiniana parece-me ser mais produtiva para a nossa área, principalmente quando o que estiver em jogo não for uma reflexão mais abstrata, de cunho epistemológico, mas sim trabalhos concretos de tradução, definições de critérios de adequação ou qualidade, e outras questões do gênero. (OLIVEIRA, 2005, p. 16).

Dessa forma, analisando a fala de Waxiy quando este enfatiza a participação

dos mais velhos na decisão sobre a tradução de palavras para a língua indígena, e

tomando como referência a reflexão proporcionada por Oliveira (2005), o que entra

em jogo nessa situação específica é a definição de critérios de realização da tradução,

que funciona em determinado contexto, conforme destaca o autor, ou, em termos mais

específicos wittgensteinianos, em determinado jogo de linguagem. Essas palavras

poderão estar circunscritas à aula de matemática na escola indígena, ou, também, em

outros jogos de linguagens presentes na forma de vida da aldeia, dependendo do grau

de adequação do que foi traduzido. Noto que essa reflexão pode ser feita tanto para

a fala de Waxiy quanto dos outros professores e professoras que destacam e

enfatizam a participação dos mais velhos no processo de traduzir, assim como quando

realizam a tradução com seus pares, em conjunto com outros professores.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 110

Atentemos também para o fato de que os Karajá possuem nomes para

representar quantidades até o vinte, enquanto que os Xerente até o quatro. Mesmo

com uma diferença tão grande na nomeação dessas quantidades por dois grupos

indígenas muito distintos, é possível verificar algumas semelhanças nas atitudes dos

professores nas aulas de matemática. Os depoimentos dos professores corroboram o

que foi enfatizado quando, de um lado, Waxiy relata que, na época em que lecionava

na escola da aldeia, via como uma dificuldade no ensino de matemática a expressão

de quantidades maiores que o vinte, pois até o vinte se falava na língua indígena,

sendo, a partir daí, preciso falar em português. A seguir, baixo o relato que trata disso:

Pesquisador: Com relação as aulas de matemática, tu lembras bem como era? Você

tinha alguma dificuldade para ensinar matemática? Se tinha, quais essas dificuldades

que tu via em ensinar matemática?

Waxiy: O que tinha mais dificuldade era a questão dos números, sabe, porque os

karajá conta até vinte, mais de vinte começa a se referir a algumas coisas, então é

praticamente o número que nos contava na terra é 20 e dali a gente seguia em

português, é claro que de um até vinte eles contavam em língua e o restante em

português. Uma dificuldade que tinha é que a escrita indígena é muito grande,

diferente de escrever o número um por exemplo, era menos, só com umas duas letras

já formava, e na língua materna seis letras para forma o número um.

Pela fala de Waxiy, que relata como uma dificuldade de nomear palavras que

expressem quantidades maiores que vinte, parece ser esta dificuldade resolvida

falando-se em português. Esta fala, é uma evidência do que relatei sobre os alunos

professores indígenas nas apresentações de seus seminários em línguas indígenas,

nos quais falavam palavras em português. Este ato que encontra semelhanças na fala

do professor Samurú que, como o professor Waxiy, fala em português os termos que

ultrapassam o quatro.

Como o professor Samurú leciona todas as disciplinas, perguntei como ele faz

para dar aula de matemática, ao que me respondeu: “Porque assim, ali na escola eu

falo mais na língua, só que atividade tipo a língua indígena, agora matemática, porque

até pela soma que a gente tem, na nossa linguagem hoje, só quatro, aí a partir daí

entra português...”

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 111

A essas afirmações de Samurú e de Waxiy, demonstram que somente traduzir

do português para a língua indígena não resolveria o problema, pois, se assim o fosse,

bastaria fazer a tradução e, provavelmente o professor o faria. Tanto um quanto o

outro optam, no entanto, por utilizar o português. Assim, não é possível entender a

tradução, nos termos de nosso referencial e do depoimento dos professores, como

uma ação passiva de traduzir mecanicamente as palavras de uma língua para outra,

uma vez que tal ação não carrega consigo os vários sentidos inerentes àquela palavra

em determinada forma de vida.

É nesse sentido, que Ricoeur (2012) afirma que “... as formas de construção

das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; ” (RICOEUR, 2012, p.25),

enfatizando que “as línguas não são diferentes apenas pela sua maneira de recortar

o real, mas também pelo modo de o recompor no âmbito do discurso; ” (IDEM, p. 60).

Ou seja, no processo de tradução, não é possível traduzir as subjetividades inerentes

às particularidades presentes em cada uma das línguas.

Pode-se, ainda, encontrar diferenças e semelhanças entre a fala dos dois

professores (Samurú e Waxiy) e a fala da professora Joana Xerente, pois, quando lhe

perguntei como fazia para ensinar as palavras que não há na língua indígena, ela

respondeu: “A gente tem que criar a palavra na língua. Quando fica difícil para mim

eu pergunto a Amir e Samurú, a gente senta junto”. Assim, com relação à diferença

entre as falas, depreende-se que seja possível conjecturar a respeito do lugar social

que cada um ocupa na aldeia e fora dela.

Samurú, pelo seu histórico de vida, possui uma longa história de convivência

com os não indígenas, o que pode ser conferido pelas diversas funções que ocupou

e ainda ocupa entre o seu povo. Além de ser formado pelo magistério indígena em

nível médio e possuir um curso técnico, já está cursando a sua segunda graduação,

o que possivelmente lhe garante uma certa autonomia e segurança para lecionar tanto

na língua materna quanto no português. Como ele transita bem entre a sua cultura e

a cultura do não indígena, acaba por fazer as conexões necessárias no ambiente da

sala de aula. Sobre o transitar entre as gramáticas de formas de vida distintas, Condé

(2004) afirma que,

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 112

...a partir da minha gramática, posso estabelecer relações e critérios para compreender outras gramáticas com base em eventuais pontos de aproximação, mas sobretudo no compartilhar semelhanças no modo como atuamos no mundo. Embora a gramática seja o lugar onde construo os meus critérios de julgamento, é possível compreender outras formas de vida através dela. (CONDÉ, 2004, p. 176).

Assim, Samurú, justamente pelo fato de conhecer bem a gramática de sua

cultura, consegue, por meio dela, estabelecer conexões com a gramática da cultura

do não índio. E a professora Joana, por não transitar tanto quanto Samurú entre os

espaços não indígenas, prefere, e se sente mais segura lecionando na língua

materna, criando palavras, quando possível, na língua indígena, ou traduzindo do

português para a sua língua materna. De acordo com nosso referencial, é possível

entender a dificuldade da professora Joana em fazer traduções da linguagem

matemática para a língua materna, já que, nesse processo, estão envolvidas

subjetividades específicas, presentes em cada uma das línguas.

Nota-se, no entanto, que tal ação – a de traduzir – quando levada a cabo pela

professora Joana, não acontece de forma isolada e individual, ao contrário, é feita de

forma conjunta, o que evidencia a complexidade do ato de traduzir. Observo ainda

que os professores utilizam estratégias distintas, algo que está diretamente

relacionado ao trânsito de cada um entre diversos espaços, o que não poderia ser

diferente, pois cada um carrega consigo também uma história de vida particular.

Não quero com isso dizer que cada pessoa constrói também uma forma

particular de entender e interagir com a sua realidade, postulando uma linguagem

privada, algo que Wittgenstein repudia completamente. Mesmo que uma pessoa

interaja consigo mesma, em seus pensamentos, só consegue isso no interior de um

jogo de linguagem de sua forma de vida. Assim, todo jogo de linguagem é público

(BRITO, 2005), fruto de um acordo entre seus falantes, e possibilitado por meio de

sua gramática.

Como já ressaltado antes, diante da possibilidade de se fazer a tradução, ou

mesmo a criação de novas palavras em línguas indígenas, o que se postula

efetivamente dizer é que, por meio dos jogos de linguagem, é possível encontrar uma

aproximação entre diferentes formas de vida. E isso se dá por haver semelhanças de

família entre essas formas de vida, ou seja, por mais diferentes que sejam duas formas

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 113

de vida entre si, em seus hábitos, costumes e linguagens, nota-se em maior ou menor

grau algum tipo de atividade comum a ambas, sem que, com isso, se possa afirmar

que possuam racionalidades capazes de interagir com o mundo semelhantes. Porém,

por meio dessas atividades comuns, é possível transitar entre uma forma de vida e

outra. Caso contrário, seria impossível manter o contato entre indígenas e não

indígenas, algo que não procede quando se verificam as relações que se estabelecem

entre uns e outros, como as relações comerciais por exemplo, dentre outros tipos de

relações em que tanto de uma parte quanto da outra procura-se o entendimento que

se dá na linguagem.

Sobre as relações comerciais, percebo esse transitar entre jogos de linguagens

distintos, tanto do lado de indígenas quanto do lado dos não indígenas, pois há claros

interesses financeiros em jogo. Um exemplo disso é o professor Samurú, que

consegue transitar entre jogos de linguagens diferentes, devido ao fato de falar bem

a língua portuguesa, algo se dá devido suas atividades que o requerem também nas

cidades próximas à sua aldeia. Em sua fala, isso fica claro quando diz que,

dependendo do momento, ora ministra sua aula em língua indígena ora em língua

portuguesa, fazendo, assim, uma aproximação entre as gramáticas de formas de vida

distintas.

Ao que parece, seus alunos também estão conseguindo transitar entre esses

diferentes jogos, ou, pelo menos, estão sendo expostos a eles, embora isso não seja

garantia de que operem da mesma forma as duas línguas. Conforme salientou Oliveira

(2013), são duas estruturas gramaticais diferentes e, mesmo que o indivíduo transite

entre essas duas estruturas, faz uso distinto da forma que um monoglota faria de sua

língua, pois, os traços característicos das línguas se fazem presentes no manejar

entre uma língua e outra. Oliveira nos explica que

O falante que transita entre várias línguas não faz uso delas do mesmo modo que um monoglota (o que, por si só, já é uma ficção: toda língua são várias). Algo de seu domínio do idioma estrangeiro se fará presente em sua performance na língua nativa e não só o contrário. Assim como todos nós necessariamente transitamos entre diferentes variantes de uma mesma língua e os lugares por onde transitamos se fazem notar em nossa fala: no sotaque, nos registros que mobilizamos etc. O tradutor não tem como ser invisível, imperceptível. (OLIVEIRA, 2013, 260).

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 114

Dessa forma, o que também emerge, pelo que explica Oliveira (2013), é que o

professor indígena, no decorrer de suas aulas, faz escolhas para o que considera ser

uma boa tradução, de modo a facilitar o ensino de matemática. E, nessas escolhas,

está presente a sua marca. Sobre isso, Oliveira fala do tradutor não ser invisível na

ação que realiza, ainda que esta tradução se dê de forma oral, que é outro ponto que

quero destacar nessa discussão, a partir das falas dos professores. A tradução que

ocorre no decorrer de suas aulas de matemática não impede que registros escritos

possam ser realizados pelos professores e seus alunos.

Ainda com relação à resposta da professora Joana, perguntei-lhe se havia

planejamento em conjunto, ao que a professora respondeu: “É, para os alunos

entenderem né. ” A fala da professora, em acordo com a fala do professor Samurú,

nos sugere que eles (os professores) têm uma certa concordância quanto ao fato de

que o ambiente escolar possui um jogo de linguagem que é diferenciado do jogo de

linguagem do ambiente da aldeia. Assim, quando se exigem determinadas traduções,

essas, possivelmente, só serão utilizadas nesse ambiente escolar, evidenciando dois

contextos diferenciados, os quais, apesar de determinadas semelhanças, possuem

duas gramáticas próprias e específicas, não havendo como transitar de forma simples

entre uma gramática e outra.

De forma semelhante ao professor Samurú, respondeu também a professora

Diana Kéti à pergunta que lhe fiz sobre as aulas de matemática, sobre como ela faz

para explicar palavras que não tem na língua indígena. Diana respondeu: “... tem vez

que eu crio, mas tem vez que dou do livro mesmo, em português mesmo. ” A fala de

Diana chama a atenção pelo fato dela evidenciar que também fala em português, algo

não evidenciado pela professora Joana.

Quando perguntei à professora Diana o motivo pelo qual ela também utilizava

o português em sua aula, ela me respondeu que, em sua turma, há alunos que falam

as duas línguas, apesar de terem certa dificuldade com o português. Parece claro que

na fala da referida professora, assim como na fala do professor Samurú que, em

determinados momentos, criar palavras ou traduzir para a língua indígena evidenciam

um transitar entre dois jogos de linguagem distintos.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 115

Já a professora Joana enfatiza que, nas suas aulas, fala somente em sua língua

materna. Penso que a transcrição do diálogo que tivemos, contribui para entendermos

melhor as ideias da professora:

Pesquisador – As aulas de matemática, tu usas algum material que vem de fora, tu

crias o material, como é que tú faz para dar aula?

Joana – Eu crio. Tudo em Akwẽ

Pesquisador – é,

Pesquisador – e para explicar alguns conceitos que são de fora, que não são daqui

da aldeia, tu faz como? Continua explicando em Akwẽ também?

Joana – Akwẽ e português

Pesquisador – É que tem coisas que não tem na língua só português e.…, e as

crianças entendem direitinho, elas falam o português também?

Joana – Tudo é só em Akwẽ que eu falo.

Pesquisador – Ahã

Joana – Português eu traduzo.

Notemos que a professora Joana parece se confundir em determinado

momento, ao dizer que explica em Akwẽ e português. Contudo se refaz da confusão,

sendo contundente ao afirmar que só explica na língua materna. A professora Joana

ainda cita como uma das dificuldades de se ensinar matemática na aldeia, a falta de

material em língua indígena. Isso pode ser conferido no seguinte diálogo:

Pesquisador – as aulas de matemática tu acha fácil? Difícil? mais que as outras

disciplinas ou não?

Joana – a mesma coisa.

Pesquisador - e qual a dificuldade que tu vê aqui na escola na aldeia?

Joana – Além destas de trabalhar com duas turmas, isso já é uma dificuldade né.

Pesquisador – É?

Joana – É que falta né material para trabalhar na língua indígena, essas coisas é

pouco demais, aí fica difícil para nós trabalhar.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 116

Pela realidade que conheço e busco conhecer, a falta de material para trabalhar

na língua indígena é uma realidade comum aos povos localizados no Estado do

Tocantins. O uso e a cobrança de uso do livro didático na escola da aldeia, sendo este

livro, não raro, o único material de referência dos professores indígenas, constitui um

problema para essas comunidades, pois são materiais que privilegiam e veiculam uma

única visão de mundo, colocando essa visão, como superior às demais.

Sobre este assunto, ou seja, o livro didático nas escolas indígenas e a falta de

material didático em línguas indígenas para uso nas escolas, muito poderia ser

problematizado, porém, essa problematização poderá ser feita em outro momento,

uma vez que foge aos objetivos deste trabalho.

Os depoimentos dos professores indígenas a respeito de suas aulas de

matemática expõem a questão da não existência de uma essencialidade tanto na

tradução de textos ou palavras quanto na criação de palavras para a língua indígena.

Assim, aceitar como válidos o que postula Wittgenstein a respeito de uma não

essência universal que perpassaria todo e qualquer tipo de conhecimento tem

inúmeras implicações para os caminhos de entendimento que buscamos desenvolver

aqui. Dentre os quais, cabe destacar que, se não há uma essência que seria comum

a todas as palavras, então não há garantias de que, o significado de uma ou mais

palavras, que funciona bem em determinado jogo de linguagem, de uma forma de vida

possa, ao ser traduzido para outra forma de vida, funcionar da mesma forma em outros

jogos de linguagem de outras formas de vida, como os jogos de linguagem das formas

de vida indígena, por exemplo.

O que no máximo poderíamos supor é que existem apenas possibilidades, que

podem ou não ser efetivadas por meio das semelhanças de família. Assim, podemos

no máximo, conjecturar que, entre duas ou mais formas de vida, é possível notar

algumas semelhanças que se evidenciam em maior ou menor grau através dos

hábitos, costumes etc. estando nos jogos de linguagem de ambas, essas

possibilidades de efetivação e aproximação. Nunca uma essência que seria comum a

todas essas formas de vida.

Há, ainda, outra implicação: qual a real necessidade ou importância de se

gastar tempo e, muitas vezes, dinheiro, e também esforço intelectual, em querer

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 117

traduzir ou criar palavras em línguas indígenas de termos que denotam ideias da

linguagem matemática, quando, por intermédio das semelhanças de família, a

gramática e os jogos de linguagem de determinadas formas de vida já tratam de fazer

isso? Ou seja, a tradução ou a criação de palavras, já acontece de alguma forma,

dependendo da situação, como uma necessidade oriunda das práticas sociais – e não

em uma suposta essência linguística que perpassaria todas as línguas – como

podemos perceber nas práticas dos professores indígenas nas suas aulas de

matemática.

De alguma maneira os professores indígenas estão fazendo uma espécie de

confronto entre as gramáticas de duas formas de vida por meio dos jogos de

linguagem. Condé (2004) chama esses jogos de linguagem de jogos de linguagem de

fronteira. Para esse autor, esses jogos são oriundos da interação entre formas de vida

distintas. Assim, esses jogos de linguagem de fronteira, emergem na aula de

matemática a partir de gramáticas distintas, por se encontrarem numa região de

fronteira entre duas formas de vida. De acordo com esse referencial, entendo esses

jogos de linguagem de fronteira como a possibilidade de se fazer a tradução ou criação

de novos termos em línguas indígenas.

Diante desses depoimentos, temos que a tradução de uma língua para outra,

age como uma espécie de negociação entre diferentes formas de vida. Isso porque

leva em consideração as lógicas estabelecidas entre uma forma de vida e outra, suas

visões de mundo. Ou seja, leva em consideração as gramáticas dessas formas de

vida no processo de tradução. E essa negociação entre as gramáticas de diferentes

formas de vida, que ocorre quando for possível realizar a tradução, é possibilitado por

meio dos jogos de linguagem. São os jogos de linguagem que vão realizar essa

aproximação entre formas de vida diferentes na ação de traduzir.

É por isso que os professores indígenas, ora enfatizam a necessidade de

participação dos mais velhos, como na fala de Waxiy, ou, como na fala de Joana, a

realização da tradução com seus pares, os professores indígenas. Ou ainda a crítica

feita por Samurú sobre a criação de novos termos na língua Xerente, para expressar

números do cinco ao dez, que criticou dizendo que foi algo feito pela própria

mentalidade dos indígenas. Algo que podemos entender como uma não consideração

da forma de vida indígena, na criação desses novos termos.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 118

De qualquer forma, ainda que a tradução ou a criação de novos termos para a

língua indígena, seja o meio que tem como finalidade a aprendizagem da gramática

da matemática, o processo passa pela criação de palavras na língua materna e, dessa

forma, tanto a tradução como a criação de novos termos, se ocorrer, se dará pela

baliza da forma de vida indígena, muito embora se tenha como horizonte o domínio

dos jogos de linguagem específicos da matemática.

Dessa forma, nesse caso, ainda que haja a tradução ou a criação de novos

termos, se dá por um acordo entre diferentes formas de vida (I.F. § 41). Ou seja, não

é um acordo promovido por nenhum professor indígena, Xerente ou Karajá, é uma

aproximação (Condé, 2004) entre as gramáticas indígenas e não indígenas, que

determinam o que pode ou não ser traduzido ou criado. Essa aproximação é realizada

pelos jogos de linguagem. Para Condé (2004), está claro

...que as interações entre formas de vida diferentes através dos jogos de linguagem têm importância fundamental o diálogo entre elas. Nesses jogos de linguagem “de fronteira” estabelecem-se as “aproximações” entre diferentes formas de vida. Efetivamente, o contato se dá nesses jogos de linguagem, cujos critérios de “julgamento” são dados pelas respectivas gramáticas envolvidas. Assim, um mesmo jogo de linguagem “de fronteira” é estruturado a partir das interações de duas gramáticas diferentes. Dessa forma, tão importante quanto as interações do jogo de linguagem é a gramática. (CONDÉ, 2004, p. 170.

Esses jogos de linguagem de fronteira, emergem então por aproximação, ou,

nos termos do referencial, por semelhanças de família entre essas gramáticas

distintas, que poderá possibilitar ou não a tradução ou criação de novos termos em

línguas indígenas.

Buscando compreender melhor como os professores indígenas estão

mobilizando suas concepções a respeito do que entendem por Educação Intercultural

Bilíngue, perguntei-lhes o que entendiam por EIB. Quanto ao professor Samurú, que

antes de eu lhe fazer a pergunta, estávamos em uma reflexão sobre muitos dos

ganhos da educação indígena estarem somente no papel, ou seja, na prática, não

haviam se efetivado. Travamos o seguinte diálogo:

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 119

Pesquisador – Voltando a este ponto da escola diferenciada estar só no papel que eu

concordo contigo, aí hoje em dia tá esta discussão, porque tem muito ganho legal,

mas que na pratica a gente acaba que não vê, que a escola diferenciada, que é

intercultural e bilíngue ..., para você, como você entende a educação intercultural e

bilíngue?

Samurú - ... na minha mente o bilinguismo eu entendo pelo seguinte, é esse valor que

a gente tem, minha menina tá bem ai oh, ela não vai falar a língua que eu tô falando

que na época mesmo não falava, quando eu entrei na escola eu já tava como um

rapazão, hoje ela já sabe pintar, já faz um desenha uma coisa que tá dentro do que

talvez foge um pouco do nosso conhecimento, que criança no meu tempo, até uma

vez eu falei com a Rose19, olha professora eu acho que é isso, quando eu era pequeno

meu avô sempre, eu deitava na esteira, e dizia o vô eu quero que me conte esta

história, muitas da vez para eu ouvir e aprender aquilo lá, então bilinguismo e uma

coisa assim que pra mim é isso, que a gente, são duas formas valorizadas, que a

nossa língua é muito importante porque se o nosso povo não tiver sua língua ele não

tem identidade nenhuma, e não adianta eu dizer olha eu sou isso, que se eu não falar

algo na minha língua ou contar uma história não vai acontecer nada, por outro lado a

necessidade que hoje a gente tem. Aqui em casa a 10 anos atrás, não tinha som, não

tinha tv, não tinha energia, simplesmente tinha lamparina, se não tivesse o oleozinho

para iluminar um pouco tudo bem, se não for. Então esta mudança por necessidade

vai acontecer, isso também dentro da área da educação, então tem que ser uma coisa

bem discutida, nós os professores indígenas, eu sempre falo isso lá, se a gente tiver

esse conjunto para combater, o que esse pessoal faz com as escolas, para a gente

ter mais força, mais movimento, a gente mais, o hoje eu tenho eu fiz um curso ai eu

vou ficar no meu canto não vou falar mais nada, ou você faz o seu curso lá também e

vai ficar no teu canto, que não vai acontecer nada, se a gente não falar o que é nossa

realidade, se falar tudo bem fara o papel bunitim mas o real mesmo não vai acontecer.

Eu acho que assim o ensino, eu creio que nosso filho tem que estudar para aprender

também estes movimentos, porque isso não fugir mais, porque não tem saída, mesmo

que eu não saísse da aldeia e ficasse só em casa eu estou conversando com não

19 Professora da Universidade Federal do Tocantins que o orientou no trabalho de conclusão de curso na Pedagogia e com quem fui para a aldeia.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 120

indígena, com certeza eu vou ouvir se eu tiver um tv20 desse, então são coisas que a

gente tem que saber lidar com estas diferenças, então eu acho que a escola é isso,

eu sei que a gente tá esse novo procedimento processo, daqui 10 a 20 anos, a gente

tem mais de 200 anos contato com não indígena, a gente tá com mais de 500 anos

que esse pais foi formado, e , ai a gente tem esse valor que e nosso de falar a língua

de ter nossa, assim a forma de a gente se organizar própria, são coisas naturais

legitimas nossas, e a gente tem que prosseguir com isso ai, eu acho que a cultura,

então e nesse passo que eu quero assim buscar o conhecimento.

Samurú, ao me responder, fez uma narrativa, contou uma história – algo ainda

não muito comum para mim, que segui muito bem os direcionamentos da academia

no sentido de buscar objetividade, no sentido de obter uma resposta direta ao formular

uma pergunta. A fala do professor mostra a sua preocupação com a manutenção da

língua materna no contexto indígena da aldeia e também evidencia a importância da

língua portuguesa como segunda língua, tanto nas relações que os indígenas

estabelecem com os não indígenas, quanto nas diversas tecnologias que agora

adentram o ambiente da aldeia, como por exemplo a televisão, que foi citada por ele.

Samurú ainda enfatiza que “esta mudança por necessidade vai acontecer...”.

Fica perceptível, assim, em sua fala, que ele vê na escola um importante instrumento,

por meio da língua, do povo indígena, na afirmação da identidade de sua cultura,

sendo que os professores indígenas têm um importante papel nesse processo. Ele

deixa claro que “...o ensino, eu creio que nosso filho tem que estudar para aprender

também estes movimentos, porque isso não dá para fugir mais, porque não tem saída,

mesmo que eu não saísse da ideia e ficasse só em casa eu estou conversando com

não indígena, com certeza eu vou ouvir se eu tiver um tv desse, então são coisas que

a gente tem que saber lidar com estas diferenças...”.

Mesmo advogando em favor da língua e da cultura de seu povo, Samurú vê o

aprendizado da língua portuguesa como algo necessário, devido às relações

estabelecidas com os não indígenas. Outro elemento importante nesse processo é o

uso de novas tecnologias, que já estão presentes no espaço tanto da escola quanto

20 O professor refere-se e aponta o seu aparelho de TV.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 121

da aldeia, a exemplo da televisão e do computador, que acabam por exigir também o

aprendizado de novas linguagens.

A conversa com a professora Rosalina não avançou muito, talvez pelo fato de

ter ocorrido pela manhã, horário em que as mulheres Xerente, geralmente têm muitos

afazeres dentro de casa.

Pesquisador – Então, Rosalina, eu estava conversando com o Samurú e a Diana mais

cedo sobre como eles estão entendo a educação indígena, que tem que ser

intercultural, bilíngue, por causa da língua materna (...) pra ti o que tú acha que é a

educação intercultural bilíngue? Você tem uma concepção, para ti como você está

entendo a educação intercultural bilíngue?

Rosalina –Educação intercultural bilíngue, pra mim, eu fico até sem jeito de responder,

Pesquisador – não o que está na lei, porque o que tá lá nem sempre ocorre né, mas

ontem tu falaste que lê em português né?

Rosalina – A leitura principalmente a gente fala em português e para explicar em

nossa língua, sempre na nossa língua.

Na sua fala, a professora evidencia momentos em que é possível falar em

português, e outros em que faz uso da língua materna, algo já percebido nas falas de

Samurú e Diana, que também fazem uso da língua portuguesa em suas aulas. Foi

possível perceber, na aula que acompanhei da professora Rosalina, como se dá esse

trânsito entre uma língua e outra, conforme mostra o trecho abaixo transcrito do meu

diário de campo:

Ao chegar na escola por volta das 8:30 da manhã as aulas já haviam começado. Conversamos um pouco com a professora Rosalina que estava na sala de aula. Depois de nos cumprimentarmos perguntei à professora de qual disciplina era a aula, que me falou que era de matemática. Pedi permissão à professora para assistir sua aula, que aceitou de pronto. Entrei na sala e sentei-me ao fundo. A professora me falou que havia três turmas na sala de aula, as turmas de 2ª, 3ª e 4ª séries, sendo que a turma da 4ª série pertence à professora Diana, que nessa visita que fiz à aldeia, estava em Goiânia acompanhando sua mãe que estava em tratamento médico. Rosalina me falou que sempre que um professor, por algum motivo, precisa se ausentar outro professor logo assume a turma do colega para os alunos não ficarem sem aula. Em uma rápida contagem que fiz, havia na sala de aula por volta de 25 alunos, com um certo trânsito de alunos entrando e saindo da

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 122

sala. A professora foi aonde eu estava sentado e me falou que estava dando aula de matemática em português. Ao observar o quadro, vi que havia uma tarefa de matemática escrita em português. Percebi que a professora ao se dirigir aos alunos, falava somente na língua materna, ou seja, a professora conversa e explica na língua materna, mas, quando se refere aos termos da matemática escolar, o faz na língua portuguesa, como ao se referir aos números 32, 33 e 34 à um aluno, explicando como se fala e como se escreve em língua portuguesa. (DIÁRIO DE CAMPO, 2016).

A professora Rosalina pronunciava em português e não na própria língua as

palavras referentes aos números um, dois, três e quatro que existem na língua Akwẽ.

De acordo com a análise que aqui proponho isso acontece porque está em evidência

apenas o aprendizado do conhecimento da matemática escolar, não-indígena, sem

referência a aspectos do conhecimento da cultura Xerente, ou seja, por mais que

esses números se refiram, supostamente à mesma quantidade, eles operam de forma

diferenciada entre uma língua e outra, com outros sentidos.

Na aula que observei, foi possível ainda perceber que o aprendizado da língua

portuguesa também se dá por meio do ensino de matemática, ou seja, as crianças,

ao aprenderem a numeração indo-arábica, não-indígena, conforme a tarefa proposta

pela professora, também aprendem a língua portuguesa. Assim, o aprendizado dessa

língua não é uma função exclusiva de uma única disciplina, da disciplina da língua

portuguesa, presente no currículo.

Pude constatar essa função para também aprender a segunda língua, oral e

escrita, por meio do ensino de matemática, quando uma aluna foi ao quadro responder

uma parte da tarefa e, ao errar alguma grafia, era imediatamente corrigida pela

professora. Ou quando um aluno comentou com o outro, em português, que o colega

havia esquecido de colocar o acento em uma das palavras.

Algo que ainda foi ainda evidenciado pela professora é o fato da mesma tarefa

servir para todos os alunos, mesmo que de séries diferentes, como foi mencionado

pela professora Rosalina. Segundo ela enfatizou, a tarefa deveria ser feita por todos

os alunos porque todos precisavam aprender. Abaixo, uma fotografia da tarefa escrita

no quadro.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 123

Figura 10 – Atividade de matemática

Fonte: Acervo do autor, 2016.

Uma boa parte dos alunos, a maioria, de forma espontânea, se separou em

grupos – sem a que a professora pedisse – para fazerem a tarefa de matemática.

Observei que uns ajudavam os outros, alternando a forma como falavam, ora falando

na língua Akwẽ, ora falando na língua portuguesa quando se referiam aos números,

exatamente como a professora Rosalina havia me relatado.

O fato de eu ter observado na aula da professora Rosalina que as palavras que

denotam a numeração indo-arábica foram pronunciadas na língua portuguesa e não

na língua materna, não quer dizer que a tradução dessas palavras não seja possível.

O que entendo é que tal fato sugere, sobretudo, que fazer a tradução dessas palavras

ou mesmo a tentativa de se criar novos termos, não é uma tarefa simples, que possa

ser realizada de qualquer forma, como já evidenciado em outras partes desse

trabalho. Pois, se assim o fosse, a professora Rosalina, que fala e se comunica muito

bem em português, certamente já teria feito a tradução ou criado novas palavras, com

a finalidade de ensinar o conteúdo de matemática.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 124

De qualquer forma, o contexto ou a situação em que uma palavra é usada,

constitui o sistema de referência de significação de uma palavra. É o contexto de uso

que, de alguma forma, determina o significado de uma palavra21. E talvez seja esse o

fator que, na aula observada da professora Rosalina, as palavras que dizem respeito

aos números eram pronunciadas na língua portuguesa, e não traduzida para a língua

indígena. Entendo essa não tradução como uma tentativa da professora em manter o

significado dessas palavras alojadas nos jogos de linguagem da gramática da

matemática escolar.

Isso porque, a tradução, se feita, seguirá normas específicas, conforme salienta

Oliveira (2007), em conformidade com a forma de vida indígena, sendo que as

palavras traduzidas poderão ser somente utilizadas nos jogos de linguagem da aula

de matemática no espaço da escola, e não nos jogos de linguagem no espaço da

aldeia, conforme já mencionado. A não ser que, em algum momento essas palavras

traduzidas adquiram sentido na forma de vida indígena. De uma forma ou de outra,

segundo Oliveira (2007), o fato a salientar é que

É constitutivo da tradução mediar entre diferentes culturas, mais ou menos próximas umas das outras. Quando envolve culturas muito próximas, tal mediação parece reduzir-se a uma mera questão linguística (ainda que essa imagem seja enganadora); mas há casos em que as culturas são tão distantes que o uso de determinados conceitos ou jogos de linguagem de uma para caracterizar algum conceito ou jogo de linguagem da outra parece sustentar-se apenas numa vaga analogia. (OLIVEIRA, 2007, p. 223).

É exatamente no segundo caso enfatizado por Oliveira (2007), ou seja, de

culturas tão distantes como são as culturas indígenas entre si e entre os não-

indígenas, que se inserem as discussões que travo nesse trabalho. O processo de

traduzir, por envolver gramáticas tão distintas, acaba por exigir uma atenção e uma

21 Segundo Condé (2004, p.47) o aforismo 43 das Investigações Filosóficas, indica que Wittgenstein

tinha consciência de que a significação de uma palavra não se dá apenas pelo uso, ainda que o contexto de uso seja majoritário nessa significação, pois há significações que são denotações, ou seja, signos de objetos. O aforismo 43 diz o seguinte: “Para uma grande classe de casos – mesmo que não para todos – de utilização da palavra ‘significado’, pode-se explicar esta palavra do seguinte modo: o significado de uma palavra é seu uso na linguagem. E o significado de um nome se explica, muitas vezes, ao se apontar para o seu portador. ” Condé traduz o trecho mesmo que não para todos por embora não para todos os casos. Que na sua visão comportam o mesmo sentido.

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 125

reflexão maior a respeito da tradução de uma língua para outra, para que se possa

fugir da armadilha de subjugar uma língua em relação a outra.

Volto a chamar a atenção para o fato de que, para os Xerente, contar até quatro

na língua Akwẽ, assim como contar até vinte para os Karajá, faz todo o sentido para

o contexto de vida Xerente e o contexto de vida Karajá, pois são essas as suas

gramáticas, seus jogos de linguagens, que estão em acordo com suas formas de vida.

Ao mesmo tempo, usar o jogo de linguagem próprio da matemática escolar, com sua

gramática também própria, com as palavras pronunciadas em português, evidencia

um outro jogo de linguagem e também uma outra forma de vida que, apesar de ter

uma origem não indígena, está incorporada de alguma forma, na vida indígena. Os

jogos de linguagem não são impermeáveis entre si, longe disso, pelas semelhanças

de família os jogos se comunicam a todo momento, modificando-se uns aos outros,

produzindo dessa forma, novos jogos de linguagem.

A criação de novas palavras ou a tradução para a língua indígena, quando for

possível fazer, são indicativos de mudanças no modo de vida indígena, não no sentido

de perda cultural, mas na dinâmica que ocorre em toda cultura que está em contato

com outra cultura, no processo chamado de aculturação, haja vista que “o contato

constante entre os povos, suas culturas e línguas tem promovido uma certa

contaminação mútua” (FREITAS, 2003, p. 111). Ou seja, as mudanças que ocorrem

no modo de vida indígena exigem da língua materna uma dinamicidade que

acompanhe essas mudanças, que acompanhe a entrada de novos tipos de

conhecimento, conforme observa Silva (2012) que, coerentemente, nos alerta que

Todas as sociedades criam a todo instante novas necessidades, deparam-se com novas realidades e com novos objetos, precisam ter também uma linguagem dinâmica, criativa, que acompanhe essas transformações. O falante de uma língua poderá formar uma palavra nova a partir de elementos já existentes na sua língua, ou importando um ou mais termos de outras línguas, estrangeiras, vizinhas, ou alterando o significado de uma palavra antiga, sempre que for necessário um nome para designar uma ideia ou objeto novo. (SILVA, 2012, p. 60).

A autora, nesse sentido, salienta que os jogos de linguagem são modificados o

tempo todo, a todo instante, com palavras sendo criadas ou recriadas de acordo com

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 126

o contexto de aplicação, ou seja, seu uso. São jogos de linguagens que estão em

constante interação, pois em interação também estão as formas de vida de que

participam professores e alunos indígenas.

Voltando à questão do posicionamento dos professores indígenas a respeito

de Educação Intercultural Bilíngue, na resposta da professora Rosalina, não ficou

clara sua visão sobre a EIB, ou, pelo menos, não foi possível para ela expressá-la na

nossa conversa. A professora disse que ficava sem jeito para responder, como de

fato, não respondeu, ficando calada por um momento, apenas me olhando. O fato da

professora não se posicionar claramente com relação à sua visão sobre o que seja

EIB não causa estranhamento, uma vez que é um conceito ainda em processo em

construção. Não quer dizer que a professora não saiba o que seja EIB. Ela certamente

pratica, à sua maneira, o que entende por EIB.

Sobre como a professora Diana entende a Educação Intercultural Bilíngue,

travei, com ela o seguinte diálogo:

Pesquisador – tu ouviu falar na época que tu estudava ou mesmo com os outros

professores sobre educação intercultural bilíngue?

Diana- já.

Pesquisador – tu tens alguma ideia formada sobre isso, para ti como está entendendo

educação intercultural bilíngue? Ou tu não tem nenhuma ideia formada sobre isso?

Diana – não, tenho não.

Pesquisador – certo. Então é isso, então o que tá no livro tu continua falando em

português.

Diana – assim em português não, eu já converso na nossa língua mesmo, mas assim

se for para lê, explicar também na minha língua.

Pesquisador – mas ai as palavras que estão lá no livro, tu fala em qual língua?

Diana – aham, falo em português.

A professora Diana foi bem direta ao me responder que não tem nenhuma

concepção a respeito de EIB. Ainda tentei extrair dela alguma ideia sobre isso, como

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 127

havia feito com a professora Rosalina, fazendo-lhe outras perguntas, porém, ela

deixou bem claro que não tem um posicionamento formado a respeito do assunto. No

entanto, o fato dela não ter respondido o que pensa ser EIB não quer dizer que ela

não saiba o que é e nem que, de alguma forma, à sua maneira, também não a

pratique.

Talvez tenha contribuído para o fato da professora Diana não se posicionar ela

estar ocupada na confecção de um cesto de palha de buriti no momento de nossa

conversa. Lembrando que ela só possui o curso de formação inicial em Magistério

Indígena e, conforme Monteiro (2011), o curso procura privilegiar um modelo de

ensino baseado no que Paulo Freire (2005) chama educação bancária. Ressalto,

ainda, que o Estado do Tocantins possui projetos de Formação tanto inicial, como o

Magistério Indígena, quanto as formações continuadas, com encontros regulares

conforme pontua Monteiro (2011).

Para encerrar este capítulo quero enfatizar que, de acordo com o referencial

teórico, analisado em associação com o material empírico da pesquisa, a tradução de

palavras para a língua indígena, assim como a criação de palavras em língua indígena

de termos da linguagem matemática, que acontece nos jogos de linguagem praticados

e em uso nas aulas de matemática nas escolas indígenas, não são processos fixos,

estáticos. Longe disso, são jogos de linguagem dinâmicos, vivos, históricos, sendo

constantemente recriados a todo instante por professores e alunos indígenas. As

análises mostraram também que, exatamente por esse caráter dinâmico e vivo, outros

jogos são e estão sendo produzidos, tanto em relação à língua indígena nas aulas de

matemática, quanto em relação à língua portuguesa nessas mesmas aulas de

matemática, num processo híbrido que envolve a língua indígena, a língua portuguesa

e a linguagem matemática.

Nesse sentido, o aforismo 199 das Investigações Filosóficas, onde Wittgenstein

diz que “Compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender

uma língua significa dominar uma técnica. ” (I.F.§199). Entendo no sentido de que

jogar o jogo de linguagem da matemática, ou seja, dominar essa técnica, poderá se

dar tanto na língua indígena quanto na língua portuguesa, ou mesmo em ambas. Isso

vai depender de vários fatores, dentro os quais destaco os interesses de cada um dos

povos indígenas, Xerente e Karajá, em dominar essa técnica de acordo com a forma

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 128

de vida indígena atual. Para esses dois povos, a tradução ou a criação de novos

termos poderá ou não acontecer dependendo do transitar dos professores indígenas

entre os jogos de linguagem de gramáticas distintas. E mesmo que ocorra, não

garante a transferência de significados da matemática tida como referência de forma

passiva.

Mesmo que o objetivo da tradução ou criação de novos termos seja,

exclusivamente para dominar o jogo de linguagem da matemática, isso se dá segundo

as regras das gramáticas da forma de vida indígena. Que é algo que ficou claro, na

preocupação dos professores indígenas ou em fazer a tradução em conjunto com

outros professores, ou em fazer isso com a participação das pessoas mais velhas das

aldeias, que com isso, acabam por se envolver na construção e produção de outros

conhecimentos.

Essa produção acontece na comunidade, no espaço da aldeia, mas também

fora dela, assim como no espaço escolar, onde professores e professoras, alunos e

alunas mobilizam o tempo todo a criatividade linguística, motivados por suas formas

de vida, produzindo a todo instante variados jogos de linguagem. No espaço escolar,

essa produção se manifesta para dar significado ao conteúdo da matemática escolar

sempre que uma nova situação advinda de alguma prática social, seja no espaço da

aldeia ou da escola ou mesmo de espaços fora da aldeia frequentados pelos

indígenas, assim o exigir.

Os professores indígenas pesquisados veem como importante a aprendizagem

da matemática, como uma das possibilidades de maior compreensão do mundo não

indígena. Porém, afirmar a tradução ou a criação de novas palavras nas línguas

indígenas como condições necessárias e suficientes para a aprendizagem da

matemática não se mostrou coerente para a reflexão que propomos sobre o ensino

de matemática nas escolas indígenas. Além disso, não condiz com o referencial

proposto neste trabalho, com a significação das palavras e expressões nos usos que

se faz nos jogos de linguagem, de acordo com as formas de vida.

No próximo capítulo, me deterei mais detalhadamente nas diversas

concepções do que se entende por número em diversas culturas, tanto indígenas

quanto não indígenas. Minha intenção é mostrar que cada povo, motivado por sua

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Capítulo III – Ensino de matemática e educação intercultural bilíngue: a educação escolar indígena no centro das atenções 129

cultura, por suas formas de vida, representa suas formas de numeramento de maneira

peculiar, a qual está em estreita relação com suas formas de vida, sendo cada uma

dessas maneiras peculiares e se configurando como uma etnomatemática particular.

Para cumprir com esse objetivo proposto, me pauto nos estudos do programa

Etnomatemática, esclarecendo a forma como entendendo esse programa na

confluência com a filosofia da linguagem de Wittgenstein e os estudos da

transdisciplinaridade.

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130

CAPÍTULO IV – OS USOS DO CONCEITO DE NÚMERO EM CONTEXTOS DE

DIVERSIDADE CULTURAL E LINGUÍSTICA

Pode-se, pois, definir um nome próprio, uma palavra para cor, um nome de

matéria, uma palavra para número, o nome de um ponto cardeal etc.,

ostensivamente. A definição do número dois “isto se chama 'dois'” –

enquanto se mostram duas nozes – é perfeitamente exata. – Mas, como se

pode definir o dois assim? Aquele a que se dá a definição não sabe então,

o que se quer chamar com “dois”; suporá que você chama de “dois” este

grupo de nozes! – Pode supor tal coisa; mas talvez não o suponha. Poderia

também, inversamente, se eu quiser atribuir a esse grupo de nozes um

nome, confundi-lo com um nome para número. E do mesmo modo, quando

elucido um nome próprio ostensivamente, poderia confundi-lo com um

nome de cor, uma designação de raça, até com o nome de um ponto

cardeal. Isto é, a definição ostensiva pode ser interpretada em cada caso

como tal e diferente. (I. F., §28).

Neste capítulo, tenho por objetivo apresentar os vários sentidos que o que

entendemos por número podem ter para grupos socioculturalmente distintos, e que,

dependendo do contexto de aplicação, o conceito pode mudar mesmo dentro de uma

mesma cultura. Para cumprir esse objetivo, me pautarei nos estudos do Programa

Etnomatemática e como referencial teórico, além dos que vem sendo utilizado até

agora, principalmente do filósofo Ludwig Wittgenstein, utilizarei também autores como

Tereza Vergani (2007) e Bill Barton (2006), dentre outros. Para encerrar esse capítulo,

recorrerei à relação que, no entendimento que proponho, existe entre

Etnomatemática, Filosofia da Linguagem e Transdisciplinaridade.

Formulo inicialmente uma pergunta que diz respeito à escolha que fiz sobre

falar a respeito de números e sistemas de numeração: Por que usar diferentes

sistemas de numeração como o ponto sobre o qual se desencadeia toda uma

discussão sobre etnomatemática e transdisciplinaridade e não outro aspecto do

conhecimento matemático? É ponto comum que, ao se escolher discussões que têm

como mote números e sistemas de numeração, outros aspectos ficam de fora e, como

consequência disso, outras discussões também ficam à margem. A resposta a essas

indagações remete ao início de minha trajetória de contato mais efetivo com os grupos

indígenas, mais especificamente com o povo Xerente – mas não somente com esse

povo – pois, por ocasião de uma especialização realizada por mim, como discente

nessa especialização em Educação Matemática, trabalhei com o sistema de

numeração desse povo como objeto de pesquisa.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 131

Concluída essa especialização, já como professor formador do curso de

Formação Inicial em Magistério Indígena, no Estado do Tocantins, entrei em contato,

por meio desse curso, com a cultura de diferentes povos indígenas, conforme já

mencionei no primeiro capítulo, constatando que entre um grupo e outro havia

números e sistemas de numeração diferentes, esse fato sempre me despertou mais

interesse e curiosidade.

Os desenhos presentes na pintura desses povos, e também presente nos

artesanatos, que configuram uma geometria própria de cada povo, também me

despertou interesse. Interesse e curiosidade no que diz respeito a sua relação com

diversos aspectos da cultura de um povo como a pintura corporal e o artesanato.

Porém os sistemas de numeração era algo sempre presente, de alguma forma, em

minhas aulas, quando atuei como professor formador do curso de Formação em

Magistério Indígena. Isso foi o que me conduziu a escolher como o fio condutor para

as discussões a serem desenvolvidas neste capítulo.

O surgimento de termos com o prefixo etno, como em Etnociências,

Etnobiologia, Etnomatemática etc., é sintomático, e é indício de uma forma de

conhecimento bem peculiar, circunscrita a um determinado grupo social no seu modo

de produzir conhecimento (Moura, 2001). Assim, o termo Etnomatemática diz respeito

a essa maneira bem peculiar de conhecimento produzido por grupos específicos de

pessoas e que guarda uma série de características comuns ao que entendemos e

nomeamos por matemática, sem se restringir a ela, contudo.

O programa conhecido como Etnomatemática vem, ao longo de algumas

décadas, se firmando como uma área – envolta de muitas críticas, a favor e contra –

de pesquisa da Educação Matemática, com fortes desdobramentos no ensino desta

disciplina. Tal interesse se verifica na multiplicação de trabalhos acadêmicos que,

direta ou indiretamente, fazem referência a este programa, sobretudo os congressos

que também têm se multiplicado, especificamente para discutir Etnomatemática, a

exemplo do Congresso Brasileiro de Etnomatemática, realizado de quatro em quatro

anos, e o Congresso Internacional de Etnomatemática, que também é realizado de

quatro em quatro anos, além dos grupos temáticos presentes em praticamente todos

os congressos da área.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 132

Podemos dizer que é uma área de caráter interdisciplinar e transdisciplinar,

com inserção em diversas outras áreas: antropologia, sociologia, psicologia,

educação, etc.

É importante, assim, entendermos a matemática enquanto ciência e disciplina

acadêmica, como uma forma de conhecimento específica, produzida por um grupo

específico de profissionais que se detêm na produção desse tipo de conhecimento,

não sendo este superior nem inferior a outras formas de conhecimento produzidas por

outros profissionais ou grupos humanos. D’Ambrosio (1997) nos explica o que vem a

ser o Programa Etnomatemática:

...a Etnomatemática é um programa ambicioso. Dada a sua amplitude, classifico-a como um programa de pesquisa. Esta denominação é coerente com o fato de a matemática ser a disciplina por excelência do mundo moderno. (...). Claro que o desenvolvimento desse programa permite uma outra visão e filosofia da matemática, o que acarreta, como subproduto, uma proposta pedagógica consequente, holística e crítica. É isto o que constitui o Programa Etnomatemática. (D’AMBROSIO, 1997, p. 121).

O referencial adotado aqui, traz reflexões sobre o fato de que todo grupo

humano que forma uma comunidade (seja grupo da natureza que for: de profissionais,

étnico, comunitário), é capaz de produzir conhecimento de acordo com sua forma de

vida. Isso porque produz conhecimentos a partir de suas atividades sociais, das quais

podemos extrair ideias e práticas próprias nessa dada forma de vida – que nós, que

fazemos parte de uma cultura que tem a matemática como uma categoria de

conhecimento (BARTON, 2007) – que nomeamos de matemática.

Essa produção acaba por criar uma gramática própria, com jogos de linguagem

também próprios, com palavras ou expressões que possuem sua significação dentro

desses jogos de linguagem característico, conforme já especificado no capítulo IV.

Podemos então, dizer que cada um desses jogos de linguagem, que guardam certa

relação com a matemática, se configura como uma Etnomatemática específica, que

está ancorada em uma forma de vida, em uma dada cultura.

Wittgenstein, ao desenvolver a concepção do significado das palavras que

adquirirem sentido a partir do uso que se faz delas em determinado jogo de linguagem,

destaca a importância crucial para o entendimento de não se buscar fundamentos

últimos na prática linguística, com a existência de incontáveis jogos de linguagens,

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 133

são esses jogos incomensuráveis entre si (SOUZA 2010), um jogo não sendo redutível

ao outro. Ou seja, quando se evidencia, seguindo nosso referencial, que duas culturas

apresentam racionalidades distintas, com lógicas de entendimento de mundo

distintas, em termos da filosofia do autor das Investigações Filosóficas, significa que

culturas distintas apresentam gramáticas distintas, cada uma com seus respectivos

jogos de linguagem.

Postulo com isso, que os jogos de linguagem engendrados por uma prática

etnomatemática específica, como a do povo Xerente ou a do povo Karajá, ou outro

povo qualquer, indígena ou não, não são menos racionais ou mais racionais, menos

objetivos ou mais objetivos que os jogos de linguagem das matemáticas acadêmica

ou escolar, pois, como evidenciado acima, são discursos incomensuráveis entre si,

por apresentarem gramáticas próprias, alicerçadas em suas respectivas formas de

vida, de suas respectivas culturas.

Para entender melhor a especificidade das culturas, Wagner (2012) nos

esclarece que

Quando falamos de pessoas que pertencem a diferentes culturas, estamos, portanto, nos referindo a um tipo de diferença muito básico entre elas, sugerindo que há variedades específicas do fenômeno humano. (WAGNER, 2012, p.38).

Ou seja, formamos todos uma única espécie – a dos seres humanos –, de

diferentes aglomerados ou diferentes povos que se organizam em determinado

espaço, e que o fazem socialmente e historicamente, produzindo de forma peculiar,

uma cultura também peculiar, de acordo com sua localização e as relações sócio

históricas construídas. Wagner, discorrendo sobre como o antropólogo estuda o

homem, ao mesmo tempo de forma ampla e particular, tomando o diverso e o singular,

talvez numa tentativa de o antropólogo conhecer a si mesmo, considera que

Assim como o epistemólogo, que considera o “significado do significado”, ou como o psicólogo, que pensa sobre como as pessoas pensam, o antropólogo é obrigado a incluir a si mesmo e seu próprio modo de vida em seu objeto de estudo, e investigar a si mesmo. Mais precisamente, já que falamos do total de capacidades de uma pessoa como “cultura”, o antropólogo usa sua própria cultura para estudar outras, e para estudar a cultura em geral. (IBIDEM, p. 39).

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 134

Depreende-se do pensamento do autor que o (a) pesquisador (a) em

etnomatemática acaba por fazer esse caminho, procurando compreender práticas

matemáticas específicas, na tentativa de entender suas próprias práticas dentro de

um corpo de conhecimento que foi nomeado de matemática. Esse caminho pode ser

muito incerto, e estar cheio de armadilhas se não forem tomadas algumas precauções,

como a de não colocar nossas práticas como “a prática”, estabelecendo-a como o

tribunal donde seria possível julgar todas as outras práticas.

Esse é um ponto que merece ser discutido, pois, se entendemos e

concordamos com o fato de que, a etnomatemática tem como pressupostos – dentre

outros – dar visibilidade, respeitar e assumir como válido o conhecimento que possui

semelhanças de família com o conhecimento matemático, produzido por diferentes

culturas, nossa tentativa, então, enquanto pesquisadores, segue no sentido de

perceber essas armadilhas, antes que elas nos aprisionem no terreno dos

fundamentos últimos, da essência, cujas referências seriam nossas práticas que,

naturalizadas que são em nossa cultura, se sobrepõem sobre as demais práticas,

inferiorizando-as. Dessa forma, a ideia que se coloca, é a de que “...a cultura estudada

constitui um universo de pensamento e ação tão singular quanto a sua própria cultura.

” (WAGNER, 2012, p. 42).

Em um artigo intitulado “A base cultural da Matemática”, Wilder (1950) já

naquela época, quando ainda não se havia começado a falar em etnomatemática,

sinalizava fortemente para a matemática enquanto uma produção da humanidade.

Afirmava o autor que uma melhor compreensão da natureza do conhecimento

matemático, se daria pelo reconhecimento de sua base cultural. Dessa maneira, para

o autor, a matemática é parte da cultura, produto desta. Para ele,

Enquanto corpo de conhecimento, a matemática não é algo que eu sei, que tu sabes, ou que algum individuo sabe: é parte da nossa cultura, da nossa posse coletiva. Com o passar do tempo, podemos até esquecer algumas das nossas próprias condições individuais, mas estas permanecem, apesar do nosso esquecimento, na corrente cultural. Como acontece com muitos outros elementos culturais, a matemática é-nos ensinada desde que começamos a falar e desde logo ficamos impressionados com o que denominamos pela sua verdade absoluta. (WILDER, 1950, p.7).

É interessante notar como as reflexões propostas pelo autor nos remetem ao

que, em dias atuais, nos propomos a fazer – em parte – com relação aos estudos em

etnomatemática. De fato, dado o hiato que separa seus escritos para os primeiros

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 135

registros documentados onde a palavra Etnomatemática começa a ser usada –

meados da década de 1970 – poderíamos supor que suas reflexões são de um

pesquisador em etnomatemática. Sobretudo quando Wilder nos afirma que

Na medida em que a matemática é uma parte da cultura onde existe e pela qual é influenciada, poder-se-ia esperar encontrar algum tipo de relação entre as duas. Contudo, não exprimirei nenhuma opinião acerca de quão boa “chave” a matemática poderá ser para uma cultura; de facto, esta é uma questão a ser respondida por um antropólogo. Uma vez que a cultura domina os seus elementos e, em particular, a sua matemática, parece que para os matemáticos seria mais frutuoso estudar a relação a partir deste ponto de vista. (IDEM, p. 08).

Wilder (1950), em seus escritos, tem uma nítida preocupação com as bases

culturais do conhecimento matemático e, pelo que se pode interpretar de sua obra,

guardadas as influências da cultura no conhecimento matemático e vice-versa, o

autor, quando se refere à matemática o faz a partir do ponto de vista da matemática

acadêmica.

Bill Barton (2006) é enfático ao afirmar que a matemática é uma categoria de

conhecimento que foi criada pela sociedade ocidental. Em um artigo intitulado Dando

sentido à etnomatemática: etnomatemática fazendo sentido, o autor faz uma extensa

análise dos trabalhos realizados por pesquisadores que escrevem sobre

etnomatemática até então, para, em seguida, propor uma definição para a

etnomatemática, problematizando essa definição e testando-a ao longo de seu

trabalho. Para Barton,

Uma definição culturalmente delimitada implica que não faça sentido, por exemplo, falar da “matemática dos Maori” ou da “matemática dos carpinteiros, a não ser que o grupo social em questão tenha uma categoria própria chamada matemática. Como a categoria matemática não é comum a todas as culturas, então o conceito etnomatemática não é reflexivo. Uma outra consequência da definição subjetiva é de que as culturas que não possuem a categoria matemática não podem ter uma atividade chamada etnomatemática. (BARTON, 2006, p. 56).

O termo índio, da mesma forma, é um conceito amplo, genérico, externo, e

atribuído pelos europeus, quando estes chegaram às Américas, aos povos que aqui

já se encontravam. Trata-se de um termo que não abarca as diferenças linguísticas,

sociais e culturais desses povos. Seguindo essa reflexão, o termo matemática

indígena, ou mesmo etnomatemática indígena, são conceitos amplos e genéricos,

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 136

dado por quem é de fora das culturas indígenas, e que, não abarca – e nem tem como

abarcar – essas mesmas diferenças linguísticas, sociais e culturais.

São conceitos criados de fora dessas culturas, muitas vezes impostos, que

etiquetam e que, de alguma forma, tentam enquadrar – mesmo que não seja esse o

propósito – um corpo de conhecimento, próprio de uma determinada cultura, aos

padrões categorizados de conhecimento da outra. Ainda nesse trabalho, Barton

(2006), faz o contraponto dos motivos pelos quais a matemática pode ser considerada

universal, e os motivos pelos quais ela pode ser considerada relativa. De acordo com

o autor,

Se você reconhece alguma categoria matemática, logo você reconhece a categoria convencional. Se você não o fizer, então fica difícil justificar o uso do qualitativo “matemática”. A matemática existe enquanto uma categoria de conhecimento. Se você chama outra coisa de matemática, então você não compreende o que é a matemática. Esta auto-referência universaliza a matemática para aqueles que fazem parte de um contexto matemático. (BARTON, 2006, p. 57).

Esse é um ponto importante destacado pelo autor, e que nos permite repensar

muitos dos jargões presentes e difundidos amiúde em nossa sociedade, tais como: a

matemática está presente em todos os lugares; a matemática faz parte da natureza.

Esses jargões têm origem numa visão platônica do conhecimento matemático,

deixando, com isso, pouco espaço – ou quase nenhum – para a criatividade, a

discussão e a reflexão desse conhecimento, pois se a matemática está presente na

natureza, possuindo uma realidade que independe das ações do homem, não há o

que se questionar, basta que se desenvolvam metodologias adequadas para se

descobrir aquilo que está encoberto pela visão limitada das pessoas.

Por outro lado, adotando a visão do conhecimento matemático como um

processo oriundo das relações que se estabelecem entre as pessoas e seu entorno,

de acordo com suas formas de vida, muda-se a perspectiva, abrindo espaço para a

criatividade e a diversidade de práticas de construção e produção do conhecimento.

Trata-se de algo que relativiza a produção de conhecimento, uma vez que diferentes

povos possuem suas próprias matrizes de referência. Este é o pressuposto que

assumo neste trabalho.

Assim, a matemática, para quem faz parte de uma cultura que a compreende e

a pratica como categoria de conhecimento, se torna natural e até universal, porém,

conforme evidencia Barton (2006), nos termos de sua própria cultura. Da mesma

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 137

forma, entendo a etnomatemática, pois esta só faz sentido nas relações estabelecidas

para quem também tem, nos termos de sua cultura, a matemática como uma forma

de conhecimento. Dessa maneira, a etnomatemática chama a atenção para outras

formas de se produzir conhecimento, formas específicas e diferenciadas, que criam

outras linguagens, outras gramáticas, outros jogos de linguagens, mas ainda em

semelhanças de família com a matemática acadêmica, científica.

Isso não significa dizer que um conhecimento particular, próprio de uma

determinada cultura, como o dos indígenas ou outro qualquer, sob o escrutínio da

etnomatemática, esteja amarrado a esse marco conceitual da matemática. Ao

contrário, a etnomatemática possui a característica da abertura, do olhar diferenciado,

que procura a compreensão de uma outra forma de produção de racionalidades.

Significa dizer que diferentes sociedades encontram formas diferenciadas de

ser e estar no mundo, as quais dependem de suas visões de mundo também

diferenciadas, ou seja, diferentes grupos ou sociedades, como as comunidades

indígenas, ribeirinhos da Amazônia, caiçaras, comunidades de pescadores encontram

formas diferenciadas de se relacionar com esse mundo e nomeiam seus

conhecimentos produzidos também de forma diferenciada. A etnomatemática respeita

e procura o entendimento dessas distintas formas de produção.

Isso nos remete novamente ao caráter cultural do conhecimento matemático,

conforme foi exposto acima, ou seja, a matemática tal como a identificamos, é

produção cultural, criação humana, e depende do contexto social, político e do local

onde se dá essa produção, além das tensões advindas das relações de poder. Dessa

maneira, é possível concordar com Bill Barton no sentido de que, tanto o termo

matemática quanto o termo etnomatemática são criações específicas de uma cultura

que tem, no que nomeiam de matemática, um conjunto de práticas também

específicas e bem particulares.

Esta reflexão se estende ao uso do termo etnomatemática, pois esta só faz

sentido ao se falar daquela. Assim, o conjunto de ideias e práticas específicas de um

determinado grupo humano, estudadas pelo etnomatemático, guarda uma relação

com a matemática. Essa relação só existe e é feita por alguém que, na sua cultura,

possui um corpo de conhecimento que se chama de matemática.

Vergani (2007), em seu livro Educação Etnomatemática: o que é? Parece

concordar com Barton. Para a autora,

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 138

Usou-se a palavra ”matemática” para traduzir um conjunto de práticas culturais identificáveis e socialmente vivas, porque é uma palavra que o mundo ocidental conhece (reconhece). Dizer que o motivo estampado de um tecido indiano “significa” o teorema de Pitágoras, ou que certos desenhos geométricos da Nova Caledônia envolvem cálculo vetorial, homotetias ou isomorfismos, são modos de chamar a atenção para a natureza da sua estrutura numa linguagem que será compreendida por nós. (VERGANI, 2007, p. 14).

Vergani, nesse trabalho, faz uma frutífera analogia entre a etnomatemática e

as fases da lua. A autora chama essas fases de tempos ou rostos da etnomatemática,

destacando, nessa analogia, autores e pesquisadores que, em sua visão, estariam

mais propensos a cada uma dessas fases. Para Vergani, o 1° tempo da

etnomatemática, fase da lua nova, corresponderia à primeira fase da lua, que

corresponderia à tomada de consciência, em dias atuais, de que os mais variados

povos se dedicam, das mais variadas maneiras, ” a atividades matematizantes”.

Esse primeiro tempo, para o campo da educação matemática, se daria pelo

conhecimento, reconhecimento e tradução do conhecimento matemático de algum

povo para a linguagem da matemática escolar, a fim de inserir esse conhecimento nos

currículos escolares, no intuito de preservar tais conhecimentos como parte do

repertório cultural da humanidade, sobretudo no caso de povos que não

desenvolveram a cultura escrita. Para esse primeiro tempo da etnomatemática, a

autora destaca o trabalho do professor e pesquisador Paulus Gerdes.

A segunda fase da lua, chamada pela autora de quarto crescente,

corresponderia, segundo Vergani, em sua analogia, ao 2° tempo da etnomatemática,

que seria, além da tomada de consciência das atividades matematizantes da primeira

fase, a percepção de que essas atividades não estão restritas apenas a práticas de

numeramento, geometria e operações. Nesta fase, Vergani chama atenção para o fato

de que, tais práticas matemáticas estão inseridas em um contexto maior, das práticas

socioculturais desenvolvidas por determinado povo. A autora considera que nessa

fase, se estabelece uma estreita relação e dependência dos estudos entre

etnomatemática e antropologia. Para Vergani, Márcia Ascher é a representante desta

fase.

Na terceira fase da lua, chamada por Vergani de lua cheia, seria marcada, além

das fases anteriores, pelo posicionamento crítico frente a esse imbricado quadro

multirreferencial de conhecimentos. Seria o questionamento crítico a partir desse

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 139

quadro multirreferencial, dos valores propostos e impostos por uma única visão de

mundo. Essa fase tem a missão de propor, por meio da educação, transformações

sociais balizadas em atitudes mais justas.

Por fim, a quarta e última fase da lua, chamada de quarto minguante, seria para

a autora, para a educação etnomatemática, as projeções almejadas de um tempo

futuro, no qual o respeito, o reconhecimento, a alteridade de conhecimentos distintos

teria atingido as transformações sociais buscadas, de tal forma que a etnomatemática,

por ter cumprido o seu papel social, deixaria de ser referência, desapareceria,

restando seu nome como sinal de um tempo passado. Fechando esse ciclo, inicia-se,

para a autora, novas fases da lua.

Na analogia exótica e interessante, feita por Vergani (2007), entendo que

estamos em uma dinâmica multidirecional com relação aos estudos e pesquisas em

etnomatemática, pois os caminhos teóricos e/ou práticos percorridos em cada uma

dessas fases são, por vezes, contraditórios, porém ricos e fornecem amplo material

de pesquisa.

De qualquer forma, os etnoconhecimentos de grupos socioculturalmente

distintos e minoritários em relação a uma classe dominante, continuam a ser taxados

de conhecimentos folclóricos e culturalmente limitados. Sobre isso, Vergani se

posiciona, afirmando que

O mesmo preconceito existe relativamente ao folclore ou ao artesanato que olhamos à maneira de formas primitivas de “cultura”; aqui o pretexto já não é a natureza efêmera do suporte, mas a insignificância derrisória do preço. Valoriza-se o que se paga caro. Já pensamos que a moda dos costureiros franceses, a música clássica, o design italiano ou a arte nova são etnoproduções? Por hábito, a noção de “etno” é sempre atribuída aos outros, não a nós. Mas nós somos sempre os “outros” para o “outro”; as noções de centro e de periferia, de identidade e de alteridade, de “nós” e de “outros”, existem (ou constroem-se) por reciprocidade. Sobre isto muito haveria a refletir: a etnomatemática, mesmo na sua fase de lua nova, rompe já a pele do nosso etnocentrismo mais grosseiro. (VERGANI, 2007, p. 10).

Em seu desenvolvimento, os estudos em etnomatemática procuram se

contrapor – conforme salienta a autora – ao preconceito relacionado ao conhecimento

que tem na sua base cultural a referência para suas construções sociais. Os grupos

citados acima produzem seus conhecimentos de forma holística, sem categorização

ou disciplinarização, como o fez o que se convencionou chamar de ciência moderna,

chamando um corpo de conhecimento que guarda um certo tipo de características em

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 140

comum de Matemática, ou História, ou Astronomia etc. Esses grupos, evidentemente,

possuem e produzem organicamente um grande conhecimento, alavancados pelo seu

entorno, como por exemplo, sobre os astros. Trata-se de um conhecimento que

influencia diretamente em determinados tipos de atividades, como por exemplo a

agricultura, pois prevê a época certa de plantar e de colher.

O prefixo etno, de etnomatemática, vem a ser uma outra forma de nossa

sociedade categorizar o conhecimento, pois nos chama a atenção para uma forma

peculiar de conhecimento, produzido por determinado grupo, e que é peculiarmente,

desenvolvida no seio de determinada comunidade por meio de suas atividades

sociais, guardando certas características com aquilo que chamamos de matemática.

Ou seja, todo grupo humano, independentemente de sua origem e visão de mundo,

desenvolve formas peculiares para entender o mundo ao seu redor. Dentre essas

formas diferenciadas, podemos citar os processos de contagem e a forma de falar de

dois sistemas de numeração dos grupos colocados em evidencia no contexto desse

trabalho, ou seja, dos povos Xerente e Karajá.

Os Xerente, em seus processos próprios de contagem, contam de um até

quatro, possuindo, dessa forma, um sistema de numeração binário, conforme destaca

Green (2002). É interessante notar que a forma de contar desse povo é sempre feita

aos pares, unindo os dedos das mãos, conforme figura abaixo, que destaca essa

forma peculiar do povo Xerente fazer sua contagem

Figura 11 – Forma de contar Xerente

Fonte: Xerente et al. ([2011], p. 2)

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 141

Essa forma de contagem influencia diretamente na sua organização social, pois

eles se organizam socialmente em pares, de dois em dois. É uma forma de

agrupamento presente na divisão social clãnica que são dois partidos, chamados de

Doí e Wahire, assim como nos partidos referentes à corrida de Toras, que também

são dois, conforme foi descrito no segundo capítulo deste trabalho. Eles contam, na

língua materna, de um a quatro, nomeando o que entendemos por números,

remetendo também com elementos da natureza, conforme a tabela abaixo:

Tabela 1 – Escrita, fala e significados dos números na língua Xerente

Número Nome Significado

1 Smisi Algo isolado, sozinho

2 Ponkwane Semelhante ao rastro do veado, dual,

completo.

3 Mreprane Semelhante ao rastro da Ema, ou árvores no

mato.

4 Sikwaipse Algo que completa a outra metade, dois

pares de dois. Fonte: Monteiro (2011).

O fato do povo Xerente, em sua língua materna, nomear até o número quatro,

não significa dizer que não saiba manejar com grandes quantidades. Significa tão

somente que, em acordo com sua cultura, não houve necessidade de nomear na

língua materna quantidades acima do quatro – o que não significa dizer que isso não

possa mudar, dadas as rápidas transformações pelas quais esses povos vêm

passando, transformações essas que são internas e externas aos próprios grupos

indígenas. Diana Green (2002), em um artigo relata os sistemas de numeração de

vários povos indígenas no Brasil, nos diz o seguinte a respeito de sistemas de base

dois como o dos Xerente, segundo a autora

Podemos dizer que a terminologia de sistemas de base um e dois reflete um tipo de pensamento que é global ou holístico porque está relacionado ao contexto total, ou à noção de totalidade. Até o significado dos poucos termos utilizados não é bem definido. É

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 142

comum que o termo para dois signifique “alguns”, e o termo para três signifique “muitos”, pois são relativos ao total. Esses sistemas apresentam terminologia numérica limitada, raramente passando do número seis. (GREEN, 2002, p. 256).

Alguns pontos do que diz a autora carecem de uma discussão mais

aprofundada. Concordo com Green no que diz respeito ao pensamento global ou

holístico nos sistemas de base dois, como o dos Xerente, porém, tomando como baliza

o referencial teórico deste trabalho, me posiciono contrariamente porém, às suas

reflexões quando ela diz que “o significado dos poucos termos utilizados não é bem

definido”, enfatizando ainda, mais à frente, que “Esses sistemas apresentam

terminologia numérica limitada”.

Esse tipo de afirmação, além de menosprezar os conhecimentos produzidos

pelos grupos indígenas, faz uma análise superficial e fora do contexto desses povos.

Sobre essa atitude de menosprezo, Wittgenstein (2008) salienta que isso se deve ao

fato de nos posicionarmos perante o conhecimento do outro de acordo com a nossa

forma de pensar, buscando generalidades e inferiorizando um conhecimento particular

por nos parecer estranho. Para Wittgenstein,

Em vez de desejo de generalidade, poderia ter também referido a atitude de desprezo para com o caso particular. Se, por exemplo, alguém tenta explicar o conceito de número e nos diz que uma determinada definição não é suficiente ou é grosseira porque apenas se aplica, por exemplo, a números finitos, eu responder-lhe-ia que o simples facto de ele ter sido capaz de apresentar uma tal definição limitada torna esta definição extremamente importante para nós. (A elegância não é o que procuramos conseguir.) E porque será mais interessante para nós o que os números finitos e transfinitos têm em comum do que o que os distingue? Ou antes, não deveria ter dito porque será mais interessante para nós? – não o é; e isto caracteriza a nossa maneira de pensar. (WITTGENSTEIN, 2008, p. 47).

Wittgenstein, mais a frente, desmistifica a ideia de que um determinado grupo

humano, por apresentar uma forma de contar que é diferente da forma de contar da

matemática dita ocidental, seja limitado, como enfatizado por Green (2002). Para

Wittgenstein,

Se eu quiser saber o que é a aritmética, deveria sentir-me deveras satisfeito por ter investigado o caso de uma aritmética cardinal finita, porque: (a) isto levar-me-ia a todos os casos mais complicados, (b) uma aritmética cardinal finita não é incompleta, não tem lacunas que possam ser preenchidas pela restante aritmética.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 143

Dessa forma, mesmo entendendo que o autor se refere à matemática

acadêmica, apresentamos aqui a compreensão de que contar até o quatro, como no

caso do povo Xerente, foi a forma encontrada por eles para se relacionarem com o

mundo ao seu redor, sendo essa forma de contar suficiente para a realização de suas

atividades sociais. Dizer que os termos utilizados não são bem definidos e são

limitados é deslocar a questão para o ponto de vista de quem é de fora da cultura

indígena e que, por isso, adota uma postura etnocêntrica, que julga a cultura do outro

tomando a sua como referência maior e superior às demais.

O fato ainda de nomearem na língua até o quatro não significa dizer que não

saibam manejar operações com quantidades maiores que quatro. Nesses casos, em

que precisam manejar quantidades maiores, os Xerente costumam chamar essas

quantidades genericamente de muitos, mas sabem exatamente a que esses muitos

se referem. E essa forma de manejar quantidades não é limitada e nem deixa lacunas

para a forma de vida Xerente, como evidencia Wittgenstein.

Entretanto, ao analisar o texto de Diana Green, parece que autora talvez tenha

utilizado os termos de forma equivocada, não evidenciando seu posicionamento com

relação a esses povos que desenvolveram essa forma de numeração, pois, no final

de seu artigo, ela se posiciona da seguinte forma:

É importante lembrar que todas as maneiras de calcular e contar são racionais e lógicas. Umas exprimem um lógico holístico e outras um lógico sequencial, da mesma forma que uma pessoa toca piano de ouvido enquanto outra lê notas musicais. Um sistema numérico não é menos “inteligente” que outro. É diferente. Mesmo assim, todos os sistemas são sensatos e adequados às necessidades dos respectivos povos. (IBIDEM, p. 273).

Posição esta, da citação acima, defendida no âmbito deste trabalho, e que está

em sintonia com o referencial adotado aqui, e ainda, é a de que cada prática de

numeramento, conforme termo utilizado por Mendes (2001), é lógica, racional e eficaz

nos termos do povo, da cultura que o produz.

Vejamos agora um outro sistema de numeração, o do povo Karajá e a forma

como esse povo nomeia as ideias de quantidade. Os Karajá possuem um sistema de

base vigesimal, ou seja, contam de um até vinte e o fazem utilizando o corpo para

isso. O um significa um dedo, o dois são dois dedos, o cinco é uma mão porque a mão

possui cinco dedos. Para continuar a contagem depois do dez, passam para os dedos

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 144

dos pés até chegar ao vinte e, se precisarem continuar a contagem para mais de vinte,

uma pessoa representa um grupo de vinte e então reinicia-se todo o processo.

(MONTEIRO, 2011).

A língua Karajá possui ainda especificidades com relação à forma como o

homem fala e à forma como a mulher fala. Especificidades que se apresentam

também na sua maneira de contar, conforme ilustra a tabela abaixo:

Tabela 2 – Escrita e fala dos números na língua Karajá, que me foi relatada por Waxiy

Nº Nome Masculino Nome Feminino Nº Nome Masculino Nome Feminino

1 sohoji ,, 11 wa-ó sohoji ,,

2 inatxi ,, 12 wa-ó inatxi ,,

3 inatáo inatanõ 13 wa-ó inatáo wa-ó inatanõ

4 inaubiowa inakubikowa 14 wa-ó inaubiowa wa-ó inakubikowa

5 iruyre irukyre 15 waiyre waikyre

6 debo sohoji ,, 16 waiyre sohoji waikyre sohoji

7 debo inatxi ,, 17 waiyre inatxi waikyre inatxi

8 debo inatáo debo inatanõ 18 waiyre inatáo waikyre inatanõ

9 debo inaubiowa debo inakubikowa 19 waiyre inaubiowa waikyre inakubikowa

10 debo itue ,, 20 waitue ,,

Fonte: Monteiro (2011)

Os dois exemplos acima especificados são bem distintos um do outro, contudo,

não seria sensato afirmar que o sistema do povo Karajá, por contar até o vinte, seja

superior ao do povo Xerente, que nomeia seus numerais até o quatro. Entretanto tais

características distintas entre os conhecimentos desses dois povos, assim como de

outros com os quais tenho tido contato, como dos povos Apinajé e Krahô, nos alertam

para a compreensão de outros significados daquilo que entendemos por número, ou

seja, nos alertam para uma variedade de significações que o número pode ter, e que

essas significações dependem da cultura onde são empregados. São jogos de

linguagem diferenciados e específicos, relacionados a uma determinada forma de vida

também diferenciada e específica.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 145

A própria palavra número que, para nós possui um significado, talvez possa

nem existir ou fazer sentido em outros grupos humanos. Vilela (2013) nos ajuda nesse

entendimento quando nos diz que

Os numerais podem ter significações diferentes conforme os jogos de linguagem de que participam, como, por exemplo, uma quantidade, uma posição, um código, um número de telefone, uma data etc. O número, na concepção aqui considerada, não é primordialmente um conceito que está impregnado nos conjuntos de coisas do mundo físico das experiências, assim como não é primordialmente uma entidade abstrata de um mundo platônico ou próprio da racionalidade humana que se aplica às coisas que existem. Assim, em todos os casos em que são empregados não pode ser detectado uma essência comum. Ou seja, ocorre com as palavras ou conceitos da linguagem, número, especificamente, o mesmo que com o termo jogo que é usado de diferentes maneiras, não tendo, portanto, um significado unívoco. (VILELA, 2013, p. 187).

As tabelas (01) e (02), com as significações do que chamamos de número nas

línguas dos povos Xerente e Karajá nos servem como exemplos sobre o que nos

comunica a autora, ou seja, o jogo de linguagem de que participam as palavras que

relacionamos a número, numeral, quantidades, dependem da forma de vida no

contexto em que essas palavras são usadas. Sobre isso, Wittgenstein, no aforismo

29 das IF assim se refere a palavra número

Talvez se diga: o dois pode ser definido ostensivamente somente desta maneira: “Este número se chama ‘dois’”. A palavra “número” indica aqui em que lugar da linguagem, da gramática, colocamos a palavra. Mas isto quer dizer que a palavra “número” tem que ser explicada antes que a definição ostensiva possa ser compreendida. – Contudo, a palavra “número”, na definição, indica esse lugar; indica a posição em que colocamos a palavra. Se a palavra “número” é necessária na definição ostensiva do dois, depende se uma pessoa a concebe, sem essa palavra, de um modo diferente do que eu quero. E isto dependerá certamente das circunstâncias em que ela é dada, e da pessoa, a quem a dou. E o modo que ele ‘concebe’ a explicação se mostra no modo como ele faz uso da palavra explicada (WITTGENSTEIN, §29).

Assim, as palavras que denotam um conhecimento matemático, em uma

determinada cultura, ganham vida de acordo com as circunstâncias em que são

empregadas. É interessante notar a forma como esses conhecimentos, próprios de

uma cultura, que podemos chamar de sua etnomatemática –nesta seção me detenho

na questão dos números e seus sistemas de numeração – estão em estreita ligação

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 146

com a organização social de determinado povo. Isso é uma evidência de que tais

conhecimentos são formulados e produzidos de acordo com os valores culturais e

sociais desse mesmo povo que tem como referência uma determinada forma de vida.

No interior de uma mesma forma de vida podem coexistir distintos jogos de

linguagem, de acordo com os interesses revelados por seus integrantes, como, por

exemplo, no trabalho apresentado por dois alunos professores indígenas, um Karajá

e outro Javaé, na ocasião de uma das aulas de matemática do curso de Formação

em Magistério Indígena, quando foi pedido que escrevessem a numeração de seu

povo. Eles assim a registraram:

Figura 12 – Numeração Karajá, com números maiores que vinte

Fonte: Acervo do autor, 2011.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 147

Esse trabalho, apresentado por dois alunos professores indígenas, chama

atenção para três singularidades. Primeira: essa forma de escrever os numerais na

língua Karajá difere, e muito, na forma escrita apresentada a mim por Waxiy Karajá;

segunda: o povo Karajá possui termos para nomear seus numerais até o vinte, no

entanto, como podemos perceber no quadro apresentado pelos alunos professores,

foi feita a nomeação até o trinta; terceira: um dos alunos professores que

apresentaram o trabalho é Karajá.

Com relação à primeira singularidade, os Javaé e os Karajá, assim como os

Karajá de Xambioá, formam o mesmo povo chamado Ynã. Embora seja o mesmo

povo, e falantes da mesma língua, falam dialetos diferentes dependendo da

localização das aldeias dos falantes, o que fica evidenciado no trabalho apresentado

pelos alunos.

Em relação à segunda singularidade, os alunos em questão, quando perguntei

o porquê de terem feito até o trinta, não souberam responder, apenas se limitaram a

dizer que quiseram fazer. Sobre esse ponto, entendo que foi uma forma de os alunos

dizerem que conseguem contar além do vinte na língua materna, uma forma de

mostrar autonomia em relação à língua portuguesa.

A respeito da terceira singularidade, o aluno Karajá em questão, naquela

época, morava há algum tempo em uma aldeia Javaé. Ao que parece, este já havia

se adaptado à forma de vida Javaé, de tal forma que introjetara a gramática da forma

de vida atual, além de seus jogos de linguagem característicos.

Tais imbricações são percebidas em todo grupo humano, sendo este povo

indígena ou não. Neste sentido, Ifrah (2005), em seu conhecido e interessante livro

“Os Números: a história de uma grande invenção”, nos brinda com diversos exemplos,

que passam ao longo da história da humanidade, de como esses conhecimentos

matemáticos estão imbricados nas organizações sociais de determinada cultura.

Sobre os numerais romanos, o autor nos relata que

...os nomes que os romanos costumavam dar a seus filhos do sexo masculino (as meninas não recebiam nomes na época) eram, até o quarto, designações particulares e normalmente compostas, como Appius, Aulis, Gaius, Lucius, Marcus, Servius, etc. Mas, a partir do quinto, eles se contentavem em chamar seus filhos por simples números: Quintus (o quinto), Sextus (o sexto), Octavius (o oitavo), Decimus (o décimo), ou mesmo Numerius (numeroso). Pensamos, por exemplo, no matemático Quintus Fabio Pictor, no poeta Quintus Horatius Flaccus (mais conhecido pelo nome de Horácio), em Sextus Pompeius Magnus (filho do Grande Pompeu), assim como no poeta satírico Juvenal, que se chamava na verdade Decimus Juvenius Juvenalis.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 148

Observamos também, que os quatro primeiros meses do ano romano primitivo (conhecido como de Rômulo) eram os únicos com nomes particulares (Martius, Aprilis, Maius, Junius), pois a partir do quinto passavam a ser apenas números ordinais: Quintilis, Sextilis, September, October, November, December. (IFRAH, 2005, p. 22).

Ifrah (2005), em seu livro, trata de forma interessante a criação do que

entendemos por número e seus desdobramentos em diversos sistemas de

numeração, nas mais diversas bases numéricas, por diversos povos desde tempos

remotos até dias atuais. Seu livro é rico no detalhamento de exemplos, que perpassam

desde civilizações antigas até os índios americanos.

O que se pode perceber, a partir desses exemplos dados, é que os significados

dados pelo que entendemos e denominamos por número são tão variados quanto são

os jogos de linguagem de que participam, não havendo uma essência comum que

perpasse a todos esses jogos. Cada um desses jogos de linguagem se configura como

uma etnomatemática específica, pois mesmo no interior de uma mesma cultura há

variados jogos de linguagem que conformam diversos tipos de conhecimento

matemático, cada um desses correspondendo a um contexto específico de uso de

palavras e expressões que guardam entre si, no máximo, algumas semelhanças de

família.

São conhecimentos com lógicas de construção tão distintas, gramáticas tão

distintas que, talvez seja mais coerente utilizar Etnomatemáticas, uma vez que se

referem a conhecimentos específicos, com práticas de numeramento específicas,

conforme salienta Mendes (2001), no interior de uma determinada etno. Ou seja, nos

termos de nosso referencial, a etnomatemática faz sentido para quem é de uma

cultura que, por ter a matemática como categoria de conhecimento, identifica em outra

cultura práticas sociais que guardam semelhanças de família com o que se entende

por matemática, e com as práticas sociais que chamo de etnomatemáticas.

O posicionamento em relação a essa distinção do uso do termo no plural é

coerente com o nosso referencial teórico, mais especificamente com relação à forma

como Wittgenstein trabalha com a noção de jogos de linguagem nas Investigações

Filosóficas. Lá, o autor nos esclarece que, assim como o uso do termo jogos, no plural,

poderia evidenciar uma multiplicidade de características muito distintas umas das

outras, sem existir uma única regra que fosse comum a todos os jogos, os jogos de

linguagem, da mesma forma, possuem essa característica de multiplicidade.

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 149

Assim, entendemos as etnomatemáticas que, por possuírem especificidades

tão próprias no interior de determinada cultura, se referem a uma prática de

numeramento específica, em estreita relação com a forma de vida a ela entrelaçada.

A analogia que faço entre jogos, jogos de linguagem, matemática e

etnomatemática, tem a intenção de evitarmos de querer forçar “ver” ou “encontrar”

aspectos da matemática acadêmica ou escolar em outras formas de conhecimento,

produzidos por grupos etnos específicos, como os grupos indígenas.

Essa procura se configura como uma armadilha que, na melhor das hipóteses,

nos impele a forçar um enquadramento de formas diversas de conhecimento a uma

única lógica de conhecimento. Talvez seja essa armadilha que faz com que afirmemos

como limitados ou não evoluídos os conhecimentos de grupos indígenas que contam

até três ou quatro em sua cultura, como os Xerente. Importa para este trabalho,

especificar ou mesmo advogar a favor de uma não classificação, que cria graus de

importância entre uma prática de numeramento particular e outra prática de

numeramento, ou, melhor dizendo, entre etnomatemáticas específicas, pois tal

classificação impõe uma hierarquia entre essas etnomatemáticas (Vilela, 2013).

Nessa perspectiva, a matemática acadêmica (ou escolar) não é o tribunal onde

se julga uma prática social específica, expressa pela linguagem. Isso porque a

matemática não possui uma realidade independente de nossas práticas linguísticas.

A matemática possui uma gramática própria, mas não independente das práticas

linguísticas no contexto social em que estão inseridas. Dessa forma, não há uma

realidade absoluta, universal, que seja a referência para as demais práticas de

numeramento. Assim, conforme destaca Vilela (2008),

...o conceito de número não parece estar impregnado nos conjuntos de coisas que existem por aí no mundo físico das experiências; tampouco seria uma entidade abstrata de um mundo platônico ou próprio da racionalidade humana que se aplique às coisas que existem, de modo que, em todos os casos em que é empregado, permaneça ou possa ser detectada uma essência comum. (VILELA, 2008, p. 10-11).

Assim, se os significados não estão e não são fixos, mudam de acordo com as

regras da gramática de uma forma de vida, não há então como não considerar como

válidas as práticas de numeramento de outras culturas, ou seja, de outras formas de

vida. Que não são nem inferiores e nem superiores à matemática, nem limitadas, são

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 150

apenas diferentes, com outras gramáticas, não podendo, portanto, serem

comparadas.

Quanto ao caráter normativo da matemática, conforme especificado por

Gottschalk no capítulo anterior, a autora (2008) explica que cada forma de vida, em

particular, convenciona suas próprias normas com relação ao conhecimento

matemático. Ela salienta que Wittgenstein

Ao investigar o funcionamento da nossa linguagem, o filósofo observou que utilizamos as proposições da matemática como normas: 2 + 2 deve ser igual a 4! Essa proposição não é negada nem confirmada, é apenas uma regra de como proceder (um princípio de juízo). Permite-nos dizer que “se Maria escreveu e-mails para dois de seus amigos e no dia seguinte para outros dois, pelo menos quatro pessoas foram contatadas”. Mesmo que, devido a um eventual problema de rede, uma dessas pessoas não tenha recebido o e-mail, este fato não invalida a proposição matemática de que dois mais dois é igual a quatro! É nesse sentido que Wittgenstein afirma que seguimos as proposições matemáticas “sem correr perigo de entrar em conflito com a experiência”, pois não são falseáveis por ela. Tem uma função normativa, e não descritiva. Não se referem a nada, apenas organizam a nossa experiência empírica. (GOTTSCHALK, 2008, p. 79).

Gottschalk evidencia que seguir uma norma depende da forma de vida onde

essa norma é empregada, pois um outro povo poderá estabelecer normas de proceder

que sejam totalmente diferentes da norma da matemática que diz que 2 + 2 deve ser

igual a quatro. E sobre isso, nos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas

Indígenas (RCNEI – Indígena, 2000), é possível verificar essa mudança na norma que

segue uma outra forma de proceder. Em uma passagem do RCNEI, há observações

em que as ações sociais de dar e receber seguem uma lógica de reciprocidade, de

graus de parentesco e, dessa forma, envolvem uma gramática distinta da que estamos

habituados, ou seja,

Nas sociedades como as indígenas, em que prevalece o princípio de reciprocidade, ou seja, a ação de dar, receber e retribuir, “dar” e “receber” não pedem, necessariamente, conta de menos e de mais, respectivamente. É possível observar os desdobramentos práticos destas considerações. O problema “Ontem à noite peguei 10 peixes. Dei três para meu irmão. Quantos peixes tenho agora?”, pode apresentar soluções diferentes. Obrigado a retribuir, o irmão vai devolver peixes ou outra mercadoria, que também entram no cálculo. A própria relação entre “irmãos”, em sociedades em que o parentesco rege relações de troca, vai influir na resposta. (RCNEI, 2000, p.165).

Dessa forma, de acordo com essa passagem do referencial curricular indígena,

a lógica que envolve as operações de somar e subtrair traz uma outra normatização,

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 151

que pode variar muito da norma da matemática acadêmica e escolar, pois atende a

estruturas culturais e sociais diversas. Suas estruturas são levadas em consideração

nas relações que se estabelecem nas práticas etnomatemáticas específicas de

determinado povo.

Sobre essa questão, por ocasião da apresentação de um aluno Javaé, no

magistério indígena, ele me fez o seguinte relato escrito:

Figura 13 – Trabalho de um aluno Javaé

Fonte: Acervo do autor, 2012.

O tema dessa aula teve como objetivo o de discutir com os alunos as operações

de adição, subtração, multiplicação e divisão. Pedi-lhes que realizassem essas

operações nas suas atividades do dia a dia da aldeia. Na apresentação das diversas

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 152

atividades, surgiram vários relatos como o acima exposto, que nos servem de exemplo

de que, como bem salienta Gottschalk (2008), os métodos que utilizamos para fazer

a contagem dos objetos dependerão de nossas formas de vida, ou seja, de acordo

com a autora, e em concordância com ela

Os procedimentos que utilizamos para contar objetos dependem de nossas “formas de vida” (Lebensformen), expressão utilizada por Wittgenstein para designar nossos hábitos, costumes, ações e instituições que fundamentam nossas atividades em geral, envolvidas com a linguagem. Algumas dessas ações empíricas se cristalizam na forma de regras e passam a traçar os limites do que faz e do que não faz sentido. Dizer que Maria enviou dois e-mails e depois mais dois, e que, portanto, três e-mails foram enviados por ela não faz sentido. “Dois mais dois é igual a quatro” é uma regra que seguimos independentemente do que ocorra de fato. (GOTTSCHALK, 2008, p. 80).

Foram dados aqui exemplos de algumas formas de organização social de

grupos indígenas e não indígenas, que operam com quantidades sob diferentes

normas, para frisar uma das características da etnomatemática, que é a de procurar

entender e valorizar outras lógicas de conhecimento de sociedade diversas.

Evidencio, no entanto, que a etnomatemática não se restringe apenas a procurar

entender lógicas outras, pois isso os antropólogos fazem muito bem em descrever tais

práticas e, não sem propósito, a etnomatemática tem uma forte ligação com a

Antropologia.

Além de conhecer lógicas diversas, há uma forte preocupação em legitimar tais

práticas e dar visibilidade a elas com finalidades pedagógicas, ou seja, com vistas ao

ensino e a aprendizagem da matemática. D’Ambrósio (1997) é taxativo ao afirmar que

a etnomatemática é um programa de pesquisa com finalidades também pedagógicas

e é esse também o nosso entendimento de etnomatemática.

Aprofundando mais um pouco a questão, quando a etnomatemática faz esse

caminho de abertura e de diálogo a outros tipos de conhecimentos, o faz por meio do

que se entende por transdisciplinaridade. E, a respeito de transdisciplinaridade,

recorro aqui a uma definição ainda atual, elaborada no congresso de Locarno, na

Suiça, em 1997, onde os pesquisadores presentes no congresso argumentam que:

A transdiciplinaridade, como o prefixo trans o indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento. (Síntese do congresso de Locarno, Suiça, 1997).

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 153

Atentar bem para determinados detalhes contidos nessa síntese elaborada

nesse congresso implica para não simplificar ou reduzir essa compreensão a

interpretações colonizadoras e hegemônicas sobre conhecimento. Por exemplo, no

trecho “um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento” entendo como a

produção do conhecimento que se dá de forma holística e não fragmentada,

respeitando-se as peculiaridades locais e a grande diversidade de conhecimentos, ou

seja, o mundo é diverso, multicultural, plurilíngue e está nessa diversidade a riqueza

da raça humana.

Dessa forma a transdisciplinaridade busca o diálogo, o respeito ao diferente e

o reforço da identidade de cada grupo humano. Com relação às disciplinas

acadêmicas, ela quebra paradigmas, pois coloca na roda de reflexões e discussões a

necessidade do diálogo interdisciplinar, buscando mesmo esse diálogo com o

conhecimento produzido pela ciência e desta com os conhecimentos tradicionais, ou

sabres tradicionais, nos termos de Conceição Almeida, colocando em evidencia que

nenhuma disciplina se sustenta sozinha, uma vez que precisa e necessita criar regiões

de intersecção, quebrando as fronteiras da disciplinarização e da autossuficiência

peculiar a cada uma delas.

Não há como negar a recorrência das diversas áreas do conhecimento das

disciplinas institucionalizadas academicamente à linguagem matemática, pois para

ela se voltam procurando, de alguma forma, validar matematicamente seus dados

obtidos tanto nas áreas chamadas naturais/experimentais (Biologia, Física, Química,

Astronomia, etc.) quanto nas que se encontram no domínio das ciências sociais e

humanas (Antropologia, Geografia, etc.) (Vergani, 2007), muito embora os métodos

dessas sejam diferentes dos daquelas.

Assim, a etnomatemática busca ampliar o olhar, que não fica cerceado ao olhar

da academia, trazendo à tona, fazendo emergir não apenas as disciplinas

acadêmicas, mas também o saber que vem do cotidiano de grupos socioculturalmente

distintos, que também segue normas rígidas e disciplinares, possui método, mas que

segue outra lógica de produção. Não vemos essa ampliação do olhar a outros tipos

de lógicas de construção do conhecimento como um acréscimo que inflaciona o

volume de trabalho do professor e/ou do pesquisador. Ao contrário, compreendemos

essa extensão no sentido da complementaridade, que enriquece e dá sentido à

matemática enquanto área de conhecimento que, como produto histórico cultural, é

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 154

dinâmico, vivo e em constante transformação. Além disso, também enriquece e dá

sentido à permanência da disciplina matemática no currículo escolar por meio do

discurso etnomatemático.

São três os pilares ou princípios metodológicos da transdisciplinaridade:

➢ A coexistência de diferentes níveis de realidade;

➢ A Complexidade;

➢ A lógica do terceiro incluído.

Será possível inferir que a etnomatemática consegue responder de maneira

eficaz a esses três pilares. Com relação ao pilar da coexistência de diferentes níveis

de realidade, a etnomatemática é pensada como um conhecimento que é próprio de

um determinado grupo, com características culturais e sociais bem delimitados, sem,

no entanto, se fechar a esse conhecimento, que é dinâmico. E é nessa dinâmica das

relações culturais e sociais que um conhecimento etno se renova, pois se alimenta de

outros tipos de conhecimento, presentes em outros níveis de realidade, produzindo,

dessa forma, novos conhecimentos, que, no entanto, não deixam de ser etno.

Entendemos que seja esse o processo que esteja ocorrendo com os

conhecimentos das formas de vida indígenas, em decorrência da situação de contato

com os não indígenas. Ou seja, o ser indígena não está deixando de ser indígena

porque tem introduzido em sua cultura e na sua linguagem elementos e/ou palavras

da sociedade não indígena, como foi mostrado no material empírico deste trabalho,

visto que, essa introdução não acontece de forma passiva. Ao contrário, essa

introdução se dá pela ressignificação desses elementos no interior dessas

comunidades.

No que diz respeito à lógica do terceiro incluído, Nicolescu (1999) reflete:

A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e talvez até mesmo sua lógica privilegiada, na medida em que permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes domínios do conhecimento. A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: apenas restringe seu campo de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente válida no tocante a situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa autoestrada: ninguém pensaria em introduzir ali um terceiro sentido, em relação ao sentido permitido e ao sentido proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, no domínio social ou político. Ela atua, em tais casos, como uma verdadeira lógica de exclusão: o bem ou o mal, as mulheres ou os homens, os ricos ou os pobres, os brancos ou os negros. (NICOLESCU, 1999, p. 4).

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 155

É nessa lógica que entendemos que se localiza de maneira mais efetiva a

etnomatemática, ou seja, o conhecimento etnomatemático na confluência e no diálogo

entre as diversas áreas do conhecimento e com os saberes tradicionais, produzindo

dessa forma, como resultado dessa confluência e desse diálogo, conhecimentos

híbridos. É também nesse sentido que entendemos a etnomatemática, quando

enfatizamos, nesse trabalho, a emergência de jogos de linguagem que são frutos da

interação de gramáticas de formas de vida distintas e não excludentes. Trata-se de

jogos que são possibilitados por meio ou da tradução de palavras da língua

portuguesa para a língua indígena, ou pela criação de novos termos para a língua

indígena, quando for possível ocorrer.

Dessa maneira, mesmo a forma de vida indígena, na sua dinâmica complexa,

comporta, em sua estrutura, diferentes níveis de realidade que, em contato com outros

níveis de realidade, de formas de vida não-indígenas, provocam o surgimento de

conhecimentos que se situam em uma área de intersecção entre o modo de vida

indígena e o modo de vida não-indígena. Consideramos a etnomatemática, enquanto

programa de pesquisa, como sendo a área de intersecção que estabelece pontes

dialógicas entre o conhecimento indígena, com seus elementos culturais advindos de

suas práticas sociais, e o conhecimento não-indígena – matemática acadêmica e

escolar, conhecimento não-indígena, elementos culturais não-indígenas, advindos de

práticas sociais não-indígenas -.

A etnomatemática, situada nessa região de intersecção se configura em um

outro nível de realidade, justamente por estabelecer e provocar pontes dialógicas

entre formas de vida distintas que se complementam se analisadas sob a luz dos

pilares metodológicos da transdisciplinaridade. No entanto não é possível realizar

essa análise em um único nível de realidade, que estabelece uma lógica binária de

opostos excludentes entre si, como índio x não-índio, alicerçada na oposição entre um

e outro, que cria hierarquias geralmente nocivas aos primeiros elementos dessa lógica

cartesiana.

A discussão travada aqui, neste capítulo em especial, sobre os diversos

sentidos do que entendemos por número pode ter em diferentes culturas, se adequa

de forma coerente à existência de diferentes níveis de realidade, pois, como Nicolescu

(1999), e também Sommerman (2008) evidenciam, é possível perceber a passagem

de um nível de realidade para outro nível de realidade. Isso ocorre quando há a ruptura

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 156

de leis fundamentais que regem um determinado nível de realidade na passagem para

outro nível de realidade, não podendo essas leis serem aplicadas de forma simultânea

a dois ou mais níveis de realidade. Sommerman (2008) assim nos esclarece:

...sempre que há uma ruptura de leis gerais e a derrogação dos conceitos que regem determinados fenômenos, há a manifestação de outro nível de realidade. Vimos que, quando as pesquisas da física começaram a adentrar as escalas subatômicas, os conceitos de continuidade, de causalidade local e determinismo da física anterior, que trabalhava com escalas maiores, foram contrapostos pelos conceitos de descontinuidade, causalidade global e indeterminismo. Dois exemplos da quebra de leis na passagem de um nível para outro, que talvez seja mais compreensível para muitos, são: no nível do mundo sensível (apreendido pelos cinco sentidos) dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço no mesmo momento, enquanto no nível psíquico isto é possível, com a imaginação. Também é possível, no nível psíquico, voltar no tempo, com a memória e/ou com a imaginação, e projetar-se para o futuro, com a imaginação, coisas que são impossíveis para as leis do mundo sensível (macrofísico). Portanto, trata-se de dois níveis diferentes de realidade. (SOMMERMAN, 2008, p. 60).

Ora, quando foi salientado que a forma de contar do povo Xerente é diferente

da forma de contar do povo Karajá e ainda diferente de outros povos indígenas, assim

como também diferente do sistema indo-arábico, é porque são lógicas que são regidas

por leis fundamentais distintas, que se assentam, cada uma a seu modo, sob formas

de racionalidades também distintas. Assim, a lei, a gramática, a racionalidade, que

fundamentam a forma de contar de um povo não se reduz e não se aplica à forma de

contar de outro povo.

Há, desta forma, a quebra dessas leis, pois essas regras que se aplicam

coerentemente a forma de contar de um povo podem parecer incoerentes e sem

sentido quando analisadas na forma de contar de outro povo. É por isso também que

a simples tradução de palavras que envolvem essas formas de contar, não se

efetivam, e nem tem como se efetivar sem antes criar um campo de tensão e disputa

que se manifesta quando se compara uma forma de vida e outra, sem levar em

consideração que essas formas diferenciadas de produzir conhecimento não se

reduzem umas às outras. Esta reflexão se estende também à criação de novas

terminologia em línguas indígenas.

Com relação à complexidade, estabelecem-se pontes de diálogo por meio da

etnomatemática entre os saberes científicos e os saberes da tradição, em uma atitude

ecológica de complementaridade, orgânica, que vê em cada forma de saber uma

totalidade em si mas também parcial, pois é apenas – mas não menos importante –

um dos caminhos na busca de entendimento de mundo. Como destaca Morin (2004),

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 157

A coerência do pensamento complexo contém a diversidade e também permite compreendê-la. Adiro ao que possa ser dito sobre a diversidade de psicologias e das heranças culturais. Entretanto, a diversidade deve ser pensada sobre a coerência e a compreensão. Penso que a missão de aprender a religar e a problematizar representa um retorno a uma missão à qual já me referi. Acrescento que a religação constitui de agora em diante uma tarefa vital, porque se funda na possibilidade de regenerar a cultura pela religação de duas culturas separadas, a da ciência e a das humanidades. (MORIN, 2004, p. 70).

Assim, nesse viés e em consonância com o exposto até aqui sobre

Etnomatemática e Transdisciplinaridade, a etnomatemática procura entender práticas

sociais que estão em semelhanças de família com o conhecimento matemático, no

conjunto de todas as outras práticas sociais desenvolvidas por diferentes grupos

humanos, numa perspectiva transdisciplinar com vistas a compreender, dar

visibilidade e legitimar tais práticas e isso com finalidades pedagógicas.

A proposta presente neste capítulo, de aproximação do Programa

Etnomatemática com a Filosofia da Linguagem de Wittgenstein e

Transdisciplinaridade é coerente com a perspectiva de considerar conhecimentos

específicos, como a sabedoria tradicional de povos indígenas como conhecimentos

válidos, carregados de significados e com lógica próprias, em acordo com suas formas

de vida. Não se tem a intenção de negar o conhecimento instituído da matemática

acadêmica, ou a afirmação de outro paradigma. Como bem evidenciado por Vilela

(2008),

O não-dogmatismo é um elemento fundamental da filosofia wittgensteiniana e também fundamental na Etnomatemática, que busca se afirmar, ao mesmo tempo em que lida com as reações daqueles que procuram sustentar a superioridade, o caráter universal e absoluto da matemática na sua forma acadêmica corrente. As concepções de Wittgenstein são referências importantes por sugerirem uma perspectiva de alargamento e ampliação dos significados, e não na negação de uma matemática, no caso, a acadêmica, para afirmar a Etnomatemática. (VILELA, 2008, p. 18).

Diante do exposto, o que se buscou neste capítulo foi a ampliação do olhar para

além do conhecimento matemático tido como referência, buscando suas raízes nas

práticas sociais para lhe dar sentido nos jogos de linguagem próprios de uma forma

de vida particular. Seu valor social e importância nas sociedades contemporâneas de

forma alguma ficam diminuídos em relação a outras formas de conhecimento, ao

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Capítulo IV - Os usos do conceito de número em contextos de diversidade cultural e linguística 158

contrário, o conhecimento matemático ganha significação exatamente por estar

amparado em uma forma de vida e não em algum lugar no campo das ideias ou em

uma realidade absoluta que seria independente nas relações de interação dos seres

humanos com o mundo.

Ao centralizar a discussão nas diversas significações que o conceito de número

pode ter em diferentes culturas, percebeu-se que cada significação só faz sentido no

interior de um jogo de linguagem particular. Sendo assim, não é coerente buscar

significações únicos e universais em jogos de linguagem diferentes. Esperamos com

isso, ter contribuído com o debate a respeito do programa etnomatemática, tendo

como suporte para este trabalho, a filosofia da linguagem de orientação

wittgensteiniana e os estudos sobre transdisciplinaridade.

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159

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar e refletir a tradução e a criação de novas palavras no ensino de

matemática em escolas indígenas dentro do que se chama educação intercultural

bilíngue, tomando como referencial teórico a filosofia da linguagem, sobretudo a obra

Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein, nos fez pensar também o papel que

a Educação Intercultural Bilíngue ocupa tanto nas escolas indígenas, quanto nas

comunidades onde a escola se localiza.

Entendemos que esse papel está diretamente ligado às relações de poder

estabelecidas entre as comunidades indígenas e a sociedade não indígena, o que

permitiu ainda, entender que não existe um modelo único de Educação Intercultural

Bilíngue que possa ser aplicado da mesma maneira nos cerca de 305 povos indígenas

que vivem em solo brasileiro. O bilinguismo está manifesto de diversas formas entre

esses diferentes povos, sendo que muitos deles já perderam o uso da língua materna,

tendo se tornado monolíngues na língua portuguesa, que é, para eles, o único veículo

de acesso aos diversos tipos de conhecimento, sendo esse conhecimento indígena

ou não, contudo, nem por isso esses povos deixam de ser indígenas.

Há outros povos ainda que têm forte e em pleno funcionamento a língua

materna, e veem na língua portuguesa um meio de resistência, como algo que é

necessário, e que se coloca a partir da situação de contato. Claro está que, nesse

contexto, o bilinguismo atende a outros propósitos nas escolas indígenas, envolvendo

e exigindo também um outro modelo de EIB. No caso dos povos Xerente e Karajá,

com os quais tenho contato, são povos que tem muito forte a língua materna.

Professores e comunidade de uma forma geral, sobretudo os mais velhos, entendem

como importante a preservação da língua materna como forma de fortalecimento de

suas culturas. Exigindo dessa forma, a utilização da língua materna também no

ambiente escolar. Entretanto, veem como importante também o aprendizado da língua

portuguesa como uma forma de garantir o acesso ao conhecimento do não indígena

e pelas relações estabelecidas pela situação de contato.

Assim, a proposta para uma Educação Intercultural Bilíngue abre espaço tanto

para o diálogo intercultural quanto para o uso das línguas indígenas e portuguesa no

espaço escolar. O uso de uma ou de outra, depende de vários fatores, dentre os quais

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Considerações finais 160

a situação sociolinguística do povo em questão: se são monolíngues em português

porque não há ou são poucos os falantes da língua materna; se são bilíngues e em

qual situação de bilinguismo se encontram devido à situação de contato; o que a

comunidade almeja, espera e tem como objetivo com o ensino da língua materna e

da língua portuguesa, dentre tantos outros fatores que podem ser evidenciados de

acordo com o olhar para a questão.

Dessa forma, como já afirmei em partes desse trabalho, não há e nem tem

como haver um único modelo de EIB, pois os contextos e as relações sociais e

culturais tecidos pelos diversos grupos indígenas são múltiplas e heterogêneas. Com

o povo Xerente e Karajá não é diferente. Em respeito a essa heterogeneidade e

diversidade, uma proposta de EIB coerente com essa diversidade não deixa espaço

para se criarem hierarquias linguísticas, priorizando ora uma língua ora outra.

Evidentemente que, dependendo do assunto a ser abordado, ou a língua indígena ou

a língua portuguesa estará em evidência. Essa evidência, porém, estará em

consonância e em sintonia com a dinâmica da aula em sua relação com o assunto

tratado, como descrevi na aula que observei da professora Rosalina, e não porque se

prioriza uma das línguas, atribuindo-lhe uma importância maior em detrimento da

outra.

Assim, tanto a tradução quanto a criação de palavras que exprimem os

conhecimentos da matemática, da língua portuguesa para a língua indígena poderão

ou não ocorrer. Isso vai depender do conteúdo que está sendo tratado pelo professor

ou professora e também da dinâmica da aula, além da proficiência do professor ou

professora tanto na língua portuguesa quanto na língua indígena, e também da

comunidade. Ou seja, são múltiplos os fatores, internos e externos à sala de aula, que

independem sob diversos aspectos, do ensino da matemática propriamente dito, para

que se possa dizer o que deve ou o que não deve ser traduzido. Postulo apenas sobre

a possibilidade ou a impossibilidade de se fazer a tradução de palavras da língua

portuguesa para a língua indígena, como sugere o título desta tese.

De acordo com o referencial, é preciso ficar atento a essas questões para se

evitar cair em armadilhas com relação à Educação Intercultural Bilíngue, no sentido

de não advogar pela predominância da língua indígena ou da língua portuguesa em

relação ao ensino de matemática na escola indígena, pelo menos não sem antes

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Considerações finais 161

conhecer a situação sociolinguística de cada povo. O uso de uma língua ou de outra

depende de vários fatores, dentre os quais a situação de contato dos povos indígenas

com a sociedade não indígena. No caso dos povos indígenas colocados aqui em

evidencia, os Xerente possuem muitas aldeias, umas mais próximas às cidades

enquanto outras se encontram muito distantes.

As mais próximas das cidades do entorno, possuem uma entrada mais evidente

de tecnologias antes alheias ao modo de vida tradicional desse povo, e que agora

influenciam de forma direta na sua dinâmica cultural. A entrada de energia elétrica é

um dos fatores que contribuem para isso, pois, com ela, outras tecnologias

adentraram e adentram no espaço da aldeia, como a televisão, computador com

internet – ainda que, em muitos casos, o uso da internet seja restrito ao espaço escolar

– geladeira, dentre outros itens que acabam por alterar o modo de vida tradicional

indígena. Não cabe aqui que se advogue a favor ou contra a entrada dessas

tecnologias nas aldeias – embora eu possua opinião formada a esse respeito – pois é

um assunto que diz respeito aos povos indígenas, que estão encontrando formas de

lidar com isso. No entanto, chamo atenção para o fato de que essas tecnologias

influenciam diretamente na entrada de termos da língua portuguesa nessas aldeias,

principalmente as localizadas mais próximas das cidades, processo que, em muitos

casos, aconteceu no espaço escolar, inclusive nas aulas de matemática, como foi

possível perceber na aula observada da professora Rosalina.

A televisão é um exemplo claro disso, pois as famílias se reúnem para assistir

a determinado programa como um jogo de futebol ou uma novela, o que propicia a

introdução de novas palavras na gramática das formas de vida indígenas, alterando-

as e seus jogos de linguagem. Nas aldeias mais afastadas das cidades, que não

possuem energia elétrica, as interferências de fora, da sociedade não indígena,

apesar de acontecerem, são menos evidentes, algo que contribui para a manutenção

e fortalecimento da cultura e língua Xerente, como uma quantidade maior de falantes

da língua Akwẽ, dos mais velhos aos mais jovens. Dessa forma, mesmo no interior de

um mesmo povo indígena, como no caso do povo Xerente, a situação sociolinguística

se manifesta de forma diferenciada.

Com relação ao povo Karajá, a situação é diferente, porém, não sem algumas

semelhanças. São poucas aldeias localizadas no Estado do Tocantins, todas situadas

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Considerações finais 162

na ilha do Bananal. Todas têm energia elétrica e acesso a eletrodomésticos, que

acabam por influenciar, de uma forma ou de outra a forma de vida da sociedade

Karajá. Isso é algo que não impede que mantenham fortemente suas manifestações

linguísticas e culturais, como as festas de Aruanã e do Hetohoky, como já mencionei

nesse trabalho.

Essa exposição bem resumida a respeito das sociedades Xerente e Karajá,

serve para evidenciar que as influências externas, a situação sociolinguística dos

povos, dentre outras variáveis, influenciam decisivamente na implantação de uma

educação intercultural bilíngue nas aldeias – ou pelo menos precisariam influenciar.

Os projetos de EIB para as escolas indígenas não podem, de forma alguma, passar

alheios a essas características diferenciadas sob pena de se tornarem projetos que

não representam os anseios dessas comunidades. Evidencio ainda, que não há como

implantar um modelo único de EIB que possa servir de modelo para todos os povos,

uma vez que entre um povo e outro, e mesmo no interior do mesmo povo, como foi

possível ver no caso dos Xerente, as diferenças são muito grandes.

Em acordo com o referencial discutido nesse trabalho, entendo a questão

problematizada e a postulada necessidade de se criar novas terminologias em línguas

indígenas ou a tradução da língua portuguesa para a língua indígena, de termos que

denotem a linguagem do conhecimento matemático, sob a alegação de que, assim

fazendo, se torna fator primordial para garantir e alcançar uma boa qualidade no

ensino de matemática nas escolas indígenas. Como uma visão equivocada da

dinâmica da sala de aula que, além de não garantir a almejada boa qualidade do

ensino de matemática, menospreza o conhecimento que é gerado pelos povos

indígenas, criando assimetrias entre a cultura indígena e a cultura da sociedade não

indígena, com uma evidente valorização desta última, atribuindo à tradução uma aura

de necessidade e essencialidade em relação ao conhecimento matemático

acadêmico, que alcança ares de conhecimento superior em relação aos

conhecimentos que emergem das práticas sociais das comunidades indígenas. Essa

visão se opõe ao referencial utilizado neste trabalho de pesquisa.

A utilização de conceitos como jogos de linguagem, gramática, usos e

semelhanças de família, desenvolvidos pelo filósofo Ludwig Wittgenstein, são

alicerces teóricos coerentes para entendermos a tradução e a criação de palavras ou

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Considerações finais 163

frases da língua portuguesa para a língua indígena, em uma proposta de EIB, no

contexto dos grupos indígenas Xerente e Karajá. São conceitos que lançaram luz

sobre essa problemática, possibilitando enxergá-la sob outras lentes, sob novos

ângulos.

Assim, chegamos ao entendimento – para este trabalho – de que a tradução,

assim como a criação de palavras de assuntos da linguagem da matemática

acadêmica e/ou escolar, da língua portuguesa para as línguas indígenas, são sim

possibilidades, porém não em uma concepção que toma a língua portuguesa com o

referencial a ser seguido pela língua indígena, como se a língua portuguesa fosse o

ideal a ser seguido, e a linguagem matemática uma verdade única e absoluta e

também como um modelo ideal a ser seguido sem nenhum questionamento.

Evidencio aqui, ao contrário disso, que a tradução e a criação de palavras de

uma língua para a outra é, sim, possível, é sim uma possibilidade, mas uma

possibilidade viva e dinâmica, com espaço para adesões e refutações, críticas e

questionamentos sobre a pertinência da tradução ou da criação de novas palavras em

línguas indígenas. Isso porque, conforme salientei ao longo deste trabalho, alicerçado

em nosso referencial teórico, a língua, exatamente por ser viva e dinâmica, não está

separada das práticas sociais e das manifestações culturais, pois são essas que

amparam e dão significação a uma possível tradução e criação de palavras em línguas

indígenas.

Foi ainda evidenciado, reiteradamente em partes desse trabalho de pesquisa

que não se trata de advogar a favor ou contra a criação de palavras em línguas

indígenas de termos que expressem o conhecimento matemático ou a tradução

desses termos da língua portuguesa para a língua indígena. Fazer isso seria como

que fazer uma balança pender mais para um lado ou para o outro, e esse pender

seria, nos termos da filosofia de Wittgenstein, uma confusão conceitual, pois não se

deve colocar a criação de termos em línguas indígenas, ou a tradução de uma língua

para outra como ações que seriam necessárias para a garantia da boa qualidade do

ensino de matemática em escolas indígenas, já que isso seria um equívoco no que

diz respeito aos pressupostos da Educação Intercultural Bilíngue.

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Considerações finais 164

Um equívoco cuja consequência seria colocar a língua indígena em uma

condição de subalternidade em relação à língua portuguesa, criando-se hierarquias

desnecessárias, que em nada ajudam na abertura de caminhos para pensar e refletir

metodologias adequadas para um ensino de matemática que atenda às expectativas

das comunidades indígenas.

Dessa forma, a filosofia da linguagem de Wittgenstein e os estudos da

tradução, de orientação wittgensteiniana, que balizaram este trabalho, se mostraram

referenciais fecundos. Lançaram luz para o entendimento de questões relacionadas à

tradução de palavras ou textos matemáticos que estão em português para a língua

indígena. Este estudo, mostrou que os significados não são transferidos de forma

passiva de uma língua para a outra. Ao contrário, a tradução quando acontece, ou a

criação de termos em línguas indígenas, se materializam de acordo com a forma de

vida indígena, mesmo que se tenha como horizonte o aprendizado do jogo de

linguagem da matemática tida como referência. Ou seja, advogar a favor da tradução

ou criação de novas terminologias em línguas indígenas, não é garantia para que a

aprendizagem da matemática em escolas indígenas seja considerada o passo inicial

para que essa aprendizagem seja de boa qualidade.

Com isso, o objetivo desta pesquisa, que foi o de compreender em que medida,

tanto a tradução quanto a criação de novos termos para a língua indígena, cumpririam

a intenção de transferência dos significados e levaria os indígenas ao conhecimento

matemático tido como referência, no contexto dos povos Xerente e Karajá, foi

alcançado, pois a pesquisa permitiu entender e fazer reflexões a respeito da tradução

e da criação de novas palavras em línguas indígenas no contexto das aulas de

matemática, nas escolas Xerente e Karajá, onde trabalham os professores indígena

pesquisados.

A discussão apresentada no último capítulo, ou seja, a forma como o que

entendemos por número pode adquirir diferentes significados entre uma cultura e

outra, e mesmo no interior de uma mesma cultura. Onde cada um desses significados

se configura como um jogo de linguagem específico, ou ainda uma etnomatemática

também específica, no diálogo com a filosofia da linguagem e a transdisciplinaridade,

nos serviram como uma ilustração fecunda para o objetivo deste trabalho.

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Considerações finais 165

A problemática, contudo, não se encerra aqui, ao contrário, as reflexões

travadas neste trabalho deixam margem para que outros caminhos sejam abertos e

prontos para serem trilhados, pois muito ainda há que ser pesquisado e muito ainda

há que ser dito, e novos caminhos apontados, sobretudo quando se sabe da grande

variedade linguística e cultural dos povos indígenas presentes em território brasileiro,

que se configuram como uma riqueza que temos, e não um entrave que inviabiliza o

diálogo entre culturas distintas.

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