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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO) SULA ANDRESSA ENGELMANN ASPECTOS DA MODERNIZAÇÃO DO TEATRO BRASILEIRO EM CAFÉ (1933/42) E EM A MORATÓRIA (1954): FORMALIZAÇÃO ESTÉTICA DA CRISE DE 1929/30 MARINGÁ PR 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)

SULA ANDRESSA ENGELMANN

ASPECTOS DA MODERNIZAÇÃO DO TEATRO BRASILEIRO EM CAFÉ (1933/42)

E EM A MORATÓRIA (1954): FORMALIZAÇÃO ESTÉTICA DA CRISE DE 1929/30

MARINGÁ – PR

2017

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SULA ANDRESSA ENGELMANN

ASPECTOS DA MODERNIZAÇÃO DO TEATRO BRASILEIRO EM CAFÉ (1933/42)

E EM A MORATÓRIA (1954): FORMALIZAÇÃO ESTÉTICA DA CRISE DE 1929/30

Dissertação apresentada à Universidade Estadual de

Maringá com requisito parcial para a obtenção do

grau de Mestre em Letras, área de concentração:

Estudos Literários.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Villibor Flory

MARINGÁ – PR

2017

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A minha família, pelo amor, carinho e incentivo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Alexandre Villibor Flory pela confiança, pelas orientações

enriquecedoras e pelas conversas sempre produtivas. Obrigada por suas aulas marcantes e por

fazer parte da minha formação desde a graduação.

As professoras Luzia Aparecida Berloffa Tofalini e Maria Cristina de Souza, pelas

contribuições precisas no exame de qualificação. À professora Luzia, em especial, pelo

carinho desde a graduação e por fazer parte da minha formação acadêmica.

Agradeço ao meu companheiro, Paulo Lopes, pelo amor, carinho, incentivo, pelo ombro

amigo, por estar sempre do meu lado e pelas conversas sobre música, que foram de grande

ajuda.

Aos meus pais, pelo amor, carinho e por me ensinar a trilhar meus próprios caminhos.

A minha sogra e meu sogro, por me adotarem como filha.

A minhas irmãs que desde pequena me incentivam a estudar. Nunca esquecerei as resenhas de

fim de ano.

Ao grupo de Crítica Literária Materialista da UEM, pelo aprendizado, pelas leituras e pelo

diálogo sempre muito produtivo. Juntos, buscamos uma formação crítica contracorrente, para

assim entender o teatro, a literatura, a sociedade e a história a contrapelo. Aos colegas pela

amizade, pelo companheirismo e pela solidariedade. Aprendo muito com todos vocês.

Aos amigos de todas as horas, pelas conversas, pelo carinho e pela ajuda. Agradeço, em

especial, a Djeine, Karyna, Camila, Keila, Luana, Hadassa, que gentilmente e amavelmente

contribuíram para a realização deste trabalho.

Á Capes, pelo apoio financeiro concedido por meio de bolsa de pesquisa.

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ASPECTOS DA MODERNIZAÇÃO DO TEATRO BRASILEIRO EM CAFÉ (1933/42)

E EM A MORATÓRIA (1954): FORMALIZAÇÃO ESTÉTICA DA CRISE DE 1929/30

RESUMO

A presente dissertação apresenta a formalização estética de um momento específico da

história brasileira pelo teatro, baseado na crítica literária materialista e no conceito de teatro

épico-dialético. Ela tem por objetivo o estudo das peças Café, de Mário de Andrade, e A

moratória, de Jorge Andrade, e suas formalizações estéticas da mesma matéria histórica

brasileira, a saber a crise econômica cafeeira de 1929/30, no sudeste paulista. Para o

desenvolvimento do trabalho parte-se da questão de como Mário de Andrade e Jorge

Andrade, em épocas diferentes – respectivamente 1933-1942 e 1954 – e envolvidos em

movimentos estéticos distintos – Teatro Modernista e Modernização do teatro brasileiro –

deram expressão artística à crise mencionada. O estudo se justifica pelo papel importante que

os autores exercem na literatura e no teatro brasileiros, visto que suas obras contribuem para a

constituição de uma literatura social e de um teatro crítico. O estudo se divide em três

capítulos: no primeiro acompanhamos algumas questões históricas do teatro brasileiro a partir

do século XIX que são decisivas para os autores em tela, no segundo capítulo discutimos em

que medida os autores podem ser entendidos como pensadores do teatro brasileiro e, no

terceiro, analisamos as duas peças. Para compreender a dialética entre forma literária e

processo social, bem com o Teatro Épico no Brasil, a pesquisa guia-se pela perspectiva

teórica e crítica de autores como Antonio Candido (1973), Anatol Rosenfeld (2011), Sábato

Magaldi (2004), Iná Camargo Costa (1996; 1998), Roberto Schwarz (2008), Gilda de Mello e

Souza (2008), João Luiz Lafetá (2000), Catarina Sant’Anna (1997) dentre outros, e pelas

produções artísticas de Mário de Andrade e Jorge Andrade. A pesquisa visa contribuir para a

fortuna crítica dos estudos sobre Mário de Andrade e Jorge Andrade, fortalecendo o campo de

pesquisa dos estudos teatrais.

Palavras-chave: Teatro Épico; Mário de Andrade; Jorge Andrade; Literatura e História.

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ASPECTS OF MODERNIZATION OF BRAZILIAN THEATRE IN CAFÉ (1933/42)

AND IN A MORATÓRIA (1954): AESTHETIC FORMALIZATION OF THE 1929/30

CRISIS

ABSTRACT

This master thesis presents the aesthetic formalization of a specific moment of Brazilian

history through theatre, based on literary materialist criticism and on the concept of epic

dialectical theatre. Its objective is the study of the plays Café, by Mario de Andrade, and A

moratória, by Jorge Andrade, and their aesthetic formalization of the same Brazilian

historical matter, which is the economic coffee crisis that took place in 1929/30 in the

southeast São Paulo State. The development of the work starts with the question of how

Mário de Andrade and Jorge Andrade, in different times - respectively 1933-1942 and 1954 –

and involved in different aesthetic movements – Modernist Theatre and Modernization of

Brazilian theatre – gave artistic expression to the mentioned crisis. The study is justified by

the important role that the authors have in Brazilian literature and theatre, since their works

contribute to the constitution of a social literature and a critical theatre. The study is divided in

three chapters: in the first we go over some historical matters of Brazilian theatre from the

XIX century that are decisive for the authors, in the second chapter we discuss how the

authors may be understood as thinkers of Brazilian theatre, and, in the third, we analyse the

two plays. To fully comprehend the dialectic in literary form and social process, as well as

Epic theatre in Brazil, the research is guided by the theoretical and critic perspective of

authors such as Antonio Candido (1973), Anatol Rosenfeld (2011), Sábado Magaldi (2004),

Iná Camargo Costa (1996; 1998), Roberto Schwarz (2008), Gilda de Mello e Souza (2008),

João Luiz Lafetá (2000), Catarina Sant’Anna (1997) not to mention others, as well as the

artistic productions of Mário de Andrade and Jorge Andrade. The research aims to contribute

to the critical fortune of studies about Mário de Andrade and Jorge Andrade, strengthening the

research field of theatre studies.

Keywords: Epic Theatre; Mário de Andrade; Jorge Andrade; Literature and History.

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“O passado é lição para se meditar, não para reproduzir.”

Mário de Andrade, 1922.

“[...] para a formação de um futuro [...] não podemos esquecer as grandes verdades

encerradas neste passado; são elas que esclarecem o presente e o justificam.”

Jorge Andrade, 1959.

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SUMÁRIO

Introdução ...............................................................................................................................11

Capítulo 1. Revisitando o teatro brasileiro do século XIX..................................................18

1.1 O teatro cômico e musicado no século XIX: momento decisivo para uma história do

teatro nacional..................................................................................................................18

1.2 Apropriação crítica da Revista de Ano e da Comédia de Costumes.............................29

Capítulo 2. A modernização do teatro brasileiro em Mário e Jorge Andrade..................44

2.1 Mário de Andrade: modernismo, dramaturgia e teatro.................................................44

2.2 O papel de Jorge Andrade para a modernização do Teatro Brasileiro..........................59

2.3 Mário e Jorge Andrade: pensadores do teatro brasileiro...............................................72

Capítulo 3. Café e A moratória: formalização estética da crise de 1929/30......................104

3.1 O épico em Café: forma teatral e impossibilidade cênica...........................................105

3.2 A moratória de Jorge Andrade: teatro, história e memória.........................................127

Considerações Finais ............................................................................................................154

Referências.............................................................................................................................159

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NOTAS:

– Todas as citações seguem normas de escritas atualmente vigentes.

ABREVIATURAS:

CPC – Centro Popular de Cultura.

EAD – Escola de Arte Dramática.

GTE – Grupo de Teatro Experimental.

GUT – Grupo Universitário de Teatro.

R. A. – Rastroatrás.

S. – Sumidouro.

TA – Teatro de Arena.

TBC – Teatro Brasileiro de Comédia.

TEB – Teatro do Estudante do Brasil.

TEN – Teatro Experimental do Negro.

TEP – Teatro de Estudantes de Pernambuco.

TMDC – Teatro Maria Della Costa.

TPA – Teatro Popular de Arte.

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Introdução

Esse estudo guia-se pelo conceito de crítica literária materialista dialética, de modo a

compreender, por meio do teatro, as relações entre arte e sociedade. A pesquisa busca analisar

como Mário de Andrade e Jorge Andrade, respectivamente nas peças Café (1933-1942) e A

moratória (1954), formalizam esteticamente questões ligadas a uma mesma matéria histórica,

a saber, a crise cafeeira de 1929/30. São duas peças escritas com certa proximidade temporal e

que remetem ao mesmo contexto histórico de crise, embora cada uma a seu modo e

dialogando com quadros de referência estéticos diversos.

Café é caracterizada por Mário de Andrade de modo variado: ópera-coral, ópera

coletiva, tragédia secular, que se desenvolve por meio de cinco cenas e três atos. Destaca-se

pela utilização de variados recursos épicos e expressionistas, bem como pela construção

fragmentária, por personagens-tipo, por alegorias, pela sátira social, pela paródia, em torno de

assunto de dimensão nacional, dentre outros aspectos.

A moratória, de Jorge Andrade, lembra um drama realista em três atos e dois planos

temporais (1932 e 1929) vistos concomitantemente no palco. Com essa configuração

inovadora, desenvolve uma relação entre elementos dramáticos e épicos nada usuais,

tensionando a forma dramática tradicional pela ruptura do espaço e do tempo. Além disso,

também cria uma tensão muito produtiva pela construção das personagens, que são ao mesmo

tempo subjetividades bem marcadas e representações de coletivos, isto é, tipos sociais. Deste

modo, as questões sociais e históricas, em A moratória, são compreendidas através de

nuances, insinuações como, por exemplo, a família de Joaquim representando a derrocada de

toda uma classe, a dos grandes aristocratas rurais.

É necessário ressaltar que este estudo não tem o intuito de realizar uma análise

comparada sistemática dos recursos estéticos em cada peça, por categorias como tempo,

espaço, ação, personagem. Ele procura compreender como cada autor expressou esteticamente

pontos nevrálgicos de um mesmo período histórico, mas com diferenças significativas: pós-30

e pós-50. Enquanto Café apresenta colonos e estivadores em sua luta contra fazendeiros e

deputados, em A moratória acompanhamos uma família aristocrática, dona de cafezais, que

perde tudo com a crise. São ângulos diversos para se olhar para o mesmo quadro social,

político e econômico, que requerem formas e linguagens adequadas. Isso porque cada obra

está ligada a movimentos estéticos de seu momento histórico. Café precisa ser localizada no

campo do modernismo e da influência do expressionismo e de outros ismos do início do

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século XX, enquanto A moratória dialoga com o contexto de modernização do teatro

brasileiro após o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e do Teatro Maria Della

Costa (TMDC), além da criação da Escola de Arte Dramática (EAD), por sinal onde Jorge

Andrade estudou. Em outras palavras, além do ângulo diverso por onde se olha (nos dois

casos, criticamente) para a crise do café, há também questões de formalização estética ligadas

aos momentos históricos em que cada um dos autores se inseria.

O estudo se justifica pela escassez de estudos críticos sobre as peças e pela grande

importância literária de Mário de Andrade e de Jorge Andrade. O primeiro representa o

esforço mais bem sucedido do Modernismo brasileiro ao articular muito bem os projetos

estético e ideológico (LAFETÁ, 2000), e se destaca ao levar os interesses modernistas para o

teatro, realizando assim uma obra engajada, crítica e política, mas de modo a evitar o panfleto

fácil. A carência de estudos sobre a peça Café deriva de esta ter sido publicada pela família de

Mário de Andrade, depois de sua morte (1945), no livro Poesias Completas, e ainda de modo

fragmentado: das três partes ou conjuntos que compõe esta obra, foi publicada apenas a

segunda, correspondente aos textos Concepção melodramática e O Poema. A peça completa

de Mário de Andrade somente foi publicada na íntegra em 2004 por Flávia Camargo Toni,

como apêndice de sua Livre-Docência intitulada Café, uma ópera de Mário de Andrade:

estudo e edição anotada, por meio a qual se pode analisar a riqueza e a complexidade da obra

de Mário de Andrade. Por conta disso e do fato de não ter sido encenada à época, a peça foi

tomada como poesia épica e não como teatro. Sendo um projeto que Mário acalentou por

nove anos (de 1933 a 1942) e sobre o qual deixou ainda um rico material sobre os motivos e o

processo de criação, é uma obra que merece análise.

O segundo autor representa um momento decisivo para o teatro brasileiro, que buscava

se abrasileirar, modernizar e profissionalizar. O dramaturgo paulista produziu ao longo de

duas décadas um teatro de revisitação e análise histórica a contrapelo da História oficial,

formando assim um painel de quatrocentos anos da História do Brasil no ciclo Marta, a

árvore e o relógio, do qual A moratória faz parte. Para muitos, como, por exemplo, Gilda de

Mello e Souza (2008b), A moratória é a primeira obra-prima do teatro brasileiro, e para todos

um marco de nossa dramaturgia e encenação (pelo TMDC). Essa peça antecipa, por assim

dizer, a voga do autor nacional que toma conta do teatro brasileiro a partir de 1958, com o

Eles não usam Black-tie de Guarnieri encenado pelo Arena. Diferentemente da obra teatral de

Mário de Andrade, a de Jorge Andrade já foi objeto de vários estudos críticos, embora por

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caminhos diversos do nosso, que serão levados em conta à medida que contribuírem para o

aprofundamento desta pesquisa.

Por meio desta análise buscaremos compreender Mário de Andrade e Jorge Andrade

como dramaturgos, como pensadores críticos de teatro e, principalmente, como fundamentais

para uma discussão sobre a função social da arte. Além disso, também nos interessa

apresentar a importância desses autores para o Teatro Brasileiro, iniciando nosso teatro épico.

Mário de Andrade, apesar da curta incursão como dramaturgo, dedicou-se nove anos à

elaboração da peça Café (1933-1942), bem como de textos críticos sobre a utilidade de seu

trabalho. Embora a peça não tenha subido aos palcos, isso não exclui o valor literário de sua

obra. Jorge Andrade, com sucesso de público e crítica da encenação1 de A moratória em 1955

pelo TMDC, teve demonstrações claras de que poderia contribuir largamente com o Teatro e

com a Literatura Brasileira. Os autores são influenciados por uma crescente preocupação com

o nacionalismo crítico, isto é, a necessidade de falar do Brasil e de questionar as formas

artísticas majoritárias. Essa preocupação, segundo Sérgio de Carvalho (2011), faz parte da

politização do teatro brasileiro, que se desenvolveu em três ciclos: 1930, 1960 e a partir de

1990. Desses ciclos nos interessam apenas os dois iniciais, pois Mário de Andrade é um dos

nomes fundamentais do primeiro e Jorge Andrade pode ser visto como um precursor para o

teatro político dos anos 60. Ambos se destacam por levantar questões individuais e coletivas

que visam analisar como determinada ruptura histórica pode influenciar e transformar a

sociedade brasileira.

Interessa-nos analisar criticamente como estes autores-chave do Teatro Brasileiro

realizam uma arte interessada em discutir a sociedade; não uma arte vista como uma forma

pura, mas sim como uma tentativa de rompimento e inovação para dar conta da matéria

histórica complexa. Nesse sentido, está claro que as análises de Café e de A moratória partem

da relação entre literatura e sociedade, bem como da dialética entre forma literária e processo

social, que já têm tradição nos nossos estudos literários (CANDIDO, 1973).

Para dar conta desse percurso, a dissertação está organizada em três capítulos. O

primeiro tem como propósito empreender uma revisitação histórica e teórica do Teatro Épico

no Brasil. Isso é fundamental pois, para avaliar as obras em tela, precisamos retomar tradições

específicas de nosso teatro que dialogam com as buscas estéticas do modernismo. Essa

recuperação será de extrema importância para os próximos capítulos.

1 Embora a peça tenha sido encenada, não nos deteremos na encenação, mas em fontes biográficas sobre a peça.

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Neste primeiro capítulo, por meio da recapitulação de alguns momentos da história do

teatro brasileiro, iremos abordar a tradição do teatro cômico e musicado do século XIX.

Estudaremos as Revistas de Ano e as Comédias de Costumes. Não analisaremos influências

diretas dessas formas do século XIX no século XX, mas é importante, para o estudo da obra

de Mário de Andrade, conhecer formas alegóricas de teatro e o teatro musicado, matrizes do

teatro político brasileiro.

Noutras palavras, embora não seja correto dizer que Mário de Andrade seguiu à risca

uma dessas formas, é inquestionável que elas constituem uma história cultural que faz parte

do seu repertório. Sem a remissão a essa tradição, torna-se difícil analisar uma peça complexa

como Café, que também é resultado do Modernismo e da influência do Expressionismo

alemão.

Autores importantes para esse percurso são Iná Camargo Costa (1998), Roberto Ruiz

(1988) e Neyde Veneziano (1991; 1996 e 2010), dentre outros. Esses autores valorizam,

através de uma leitura dialética, a importância da tradição cômica e musicada do século XIX

para o teatro brasileiro, em contraposição às leituras equivocadas e de juízo de valor feitas

sobre esta tradição e que ainda são voz corrente. Com base nesses autores, referimo-nos,

principalmente, à linhagem de comédia rebaixada do século XIX, tão importante quanto

esquecida e, talvez até pior, desvalorizada por sua suposta irrelevância. Somente no século

XX serão reconhecidos nessa tradição traços modernos que apontam para o teatro épico

como, por exemplo, o enfraquecimento do núcleo dramático principal (por meio de conflitos

frágeis e de personagens-tipo ou marcados pela volubilidade) ou casos em que a exposição do

contexto social está em primeiro plano e atua como se fosse um personagem.

Em síntese, este capítulo histórico e teórico evidencia os assuntos primordiais para se

compreender o teatro brasileiro e a chegada por aqui do teatro épico. Isso nos traz elementos

para a análise do teatro de Mário de Andrade e de Jorge Andrade, autores que participam,

cada um a seu tempo e modo, da modernização do Teatro Brasileiro.

O segundo capítulo guia-se pela preocupação em apresentar alguns episódios seguintes

da história do teatro brasileiro, entre eles a tentativa tateante do teatro modernista e o segundo

momento de modernização do teatro brasileiro em meados dos anos 50. Além disso,

buscaremos discutir em que medida podemos dizer que Mário de Andrade e Jorge Andrade

atuam como pensadores críticos do teatro brasileiro. Nessa seção levaremos em consideração

o contexto e as condições de produção das duas peças, cada uma dialogando com movimentos

estéticos distintos.

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Para compreender a dramaturgia de Mário de Andrade será necessário analisar o caldo

cultural proveniente do século XIX e a tradição modernista. Para esse último item recorremos

aos estudos críticos de Alfredo Bosi (2006), Orna Messer Levin (2013), João Luiz Lafetá

(2000), Gilda de Mello e Souza (2008a), José Augusto Avancini (1998), dentre outros. Com

base nesses estudos, analisaremos a articulação entre as características do Movimento

Modernista e o Teatro Modernista, levando-se em conta que o teatro não foi representado na

Semana de Arte Moderna (1922), incorporando apenas a partir de 1930 itens caros à estética

modernista. No projeto de Café, a partir de 1933, Mário de Andrade utiliza inovações

modernistas para a literatura dramática, de modo a explorar novas formas estéticas por meio

de assuntos nacionais, trabalhando as contradições sociais em um momento de ruptura

histórica.

Outra experiência valiosa nesse período foi o Teatro de Brinquedo (do casal Álvaro e

Eugênia Moreyra, ainda na segunda metade dos anos 1920), o surgimento de alguns grupos

amadores (como Os Comediantes, o Grupo Universitário de Teatro (GUT) e o Grupo de

Teatro Experimental (GTE), já nos anos 1940) a formação do TBC e da EAD, para podermos

chegar à Jorge Andrade. A modernização do Teatro Brasileiro surge de grupos amadores que

não dependiam do sistema mercadológico. Esse é um dos fatores pelos quais eles podiam

realizar a experimentação de novas formas estéticas desligadas de modelos consagrados. Isso

nos permitiu entrar em contato com o teatro europeu e norte-americano do período, o que

levou a uma melhor preparação de atores, dramaturgos, além de produtores e empreendedores

como Franco Zampari e o seu TBC. Nesse cenário se insere o teatro de Jorge Andrade, num

momento diverso da história do nosso teatro, o qual não se liga diretamente a uma tradição

tipicamente do século XIX, mas a uma tradição posterior aos anos trinta.

Esta tradição, posterior a 1930, busca trabalhar com questões provenientes da crise do

teatro do século XIX na Europa, que ocorreu por meio do naturalismo, do expressionismo e

do teatro épico brechtiano. Todavia, essas questões chegam tardiamente ao Brasil e não se

expressam como na Europa. Jorge Andrade é um dos autores que procura estar à altura do que

se fazia na época, buscando novas formas que possibilitem a comunicação entre experiências

sociais e culturais brasileiras. Para esse seu projeto, baseia-se inicialmente nas obras de

dramaturgos com boa recepção por aqui, a começar por Tennessee Williams, Arthur Miller e

Eugene O’Neill; posteriormente, entram também autores como Anton Tchekhov e Bertolt

Brecht – esses dois últimos, porém, já fora do período do recorte dessa dissertação, que se

estende até a encenação de A moratória em 1955. Para o teatro de Jorge Andrade é

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fundamental compreender a psicologia tanto individual como social dos personagens em tela,

criando um realismo distanciado, que aceita, por exemplo, a distorção expressionista como

expressão tanto do sujeito como de uma situação social e coletiva travada. Estudaremos a

dramaturgia de Jorge Andrade, a rigor apenas A moratória, também através da relação entre

forma literária e processo histórico e social, nesse caso articulando história e memória.

Além disso, buscaremos compreender Mário de Andrade e Jorge Andrade como

pensadores do teatro brasileiro, visto que produziram textos críticos sobre seu processo

criativo e sobre a situação da arte no Brasil. Mário de Andrade, através do estudo sobre a

função social da arte, passa a considerar o teatro como “a mais independente e a mais social

das artes, capaz de nacionalizar, socializar, conduzir atitudes éticas para a humanidade”

(LOPEZ, 1972, p. 241). Jorge Andrade pode ser analisado como pensador crítico do teatro e

de seu fazer teatral, pois a formação na EAD e a abrangência de seu projeto – ciclo de dez

peças intitulado Marta, a árvore e o relógio – levaram o autor a discutir o espaço social,

estético e crítico de sua produção.

No terceiro capítulo, iremos analisar as duas peças em perspectiva dialética,

procurando compreender como recursos épicos distintos operam em cada uma delas. Isso

permitirá entender que o teatro épico não deve ser entendido como uma forma pronta,

aplicável a qualquer situação, limitado à mera técnica. E, a partir de uma análise das peças,

desejamos suscitar questionamentos sobre como cada uma aborda a crise do café, a crise

1929/30. Que classes sociais são mostradas? Como a materialidade histórica se evidencia?

Qual a função da alegoria modernista? Qual o papel de um realismo crítico que marca a

modernização de nosso teatro?

Mário de Andrade e Jorge Andrade retomam o mesmo período de crise histórica, mas

têm objetivos diferentes, perspectivas diversas e articulam estéticas variadas. Apesar dessas

diferenças todas, são possibilidades que estão à disposição no campo do teatro épico, mesmo

que sejam diferentes das propostas de Brecht, por exemplo, o que mostra a riqueza dessa

teoria e suas possibilidades de atualização.

Todavia, carece esclarecer, desde já, que o caráter épico estudado nessa pesquisa não

está ligado, a princípio, à teoria do Teatro Épico postulado por Bertolt Brecht a partir do final

dos anos 1930. Antes diz respeito à evolução das formas narrativas que buscam se distanciar

do efeito ilusionista do teatro dramático. A falta de interlocução com o teatro épico brechtiano

é compreensível, pois este somente chegou profissionalmente ao Brasil por volta do final dos

anos 1950. Isso explica a sua ausência na análise da peça de Mário de Andrade. Mesmo a

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partir do período em que se insere a produção inicial de Jorge Andrade, em que surgem

tímidos os primeiros diálogos com o teatro de Brecht, ele não será decisivo. Com isso, em

chave dialética, não se diminui a força do trabalho de Brecht, mas a aumenta. O próprio

Brecht afirma que não inventava uma teoria, mas que buscava no teatro anterior ao do drama

burguês, e em formas populares, meios de expressão que poderiam ser refuncionalizados para

servir aos seus propósitos de questionamento e exposição da naturalização do abuso e da

exceção (ROSENFELD, 2011). Assim, Brecht já mostrava que não se trata de um dispositivo

técnico, mas da recuperação do teor e do valor histórico de formas, que foram severamente

criticadas e julgadas como ruins e sem importância apenas por não se submeterem ao juízo

(ideológico, político e estético) de uma teoria dos gêneros rígida.

A análise imanente da formalização estética da peça-coral Café levará em conta

autores como Anatol Rosenfeld (2011), Raymond Williams (2011), Pedro Fragelli (2013),

Sergio de Carvalho (2002), Flávia Camargo Toni (2004), Tatiana Longo Figueiredo (2015),

dentre outros. E a análise de A moratória terá como base os estudos críticos realizados por

Luiz Humberto Martins Arantes (2008), Catarina Sant’Anna (1997), Mário Guidarini (1992),

C. A. Rahal (2015), dentre outros. E, por fim, nas Considerações Finais, evidenciaremos a

atualidade do teatro desenvolvido por Mário de Andrade e Jorge Andrade.

Em suma, esse estudo salienta a importância dos estudos teatrais na literatura, embora

o teatro ainda não ocupe o lugar que mereceria no campo literário brasileiro. Mário de

Andrade e Jorge Andrade são autores representativos para o Teatro Brasileiro, visto que

romperam, cada um a seu modo, com formas burguesas hegemônicas. Eles fomentaram um

teatro crítico e inovador que merece ser discutido. Além disso, transitam entre os gêneros

literários e têm uma discussão crítica sobre a arte, possibilitando uma discussão que se faz

necessária nos dias de hoje, dadas as condições adversas que o posicionamento crítico tem

enfrentado.

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Capítulo 1. Revisitando o teatro brasileiro do século XIX

Para melhor compreensão da obra de Mário de Andrade e de Jorge Andrade, torna-se

imprescindível uma revisitação histórica, com a finalidade de debater o teatro brasileiro do

século XIX e suas implicações para o do XX. Este percurso privilegia momentos que sejam

representativos para o desenvolvimento do teatro brasileiro e que, também, contribuam para o

estudo das peças que serão analisadas em capítulos posteriores. Isso não implica dizer que não

haja outros momentos-chave, mas que não queremos fazer apenas uma relação de obras em

sequência, comentando rapidamente cada uma delas. Preferimos, portanto, remeter-nos

diretamente àquelas formas que, de maneira consciente ou inconsciente, com maior ou menor

afinidade, têm alguma relação com as peças em análise.

1.1 O teatro cômico e musicado no século XIX: momento decisivo para uma história do

teatro nacional

Este capítulo objetiva empreender uma atualização histórica de algumas questões do

teatro da segunda metade do século XIX, de modo a contribuir para a revalorização desse

teatro, mais especificadamente da tradição cômica e musicada para a formação do Teatro

Brasileiro. Essa tradição terá desdobramentos no século XX, em especial na dramaturgia de

Mário de Andrade.

Essa retomada histórica será feita na contramão dos mais conhecidos manuais de

historiografia teatral, que costumam negligenciá-la. Isso porque a tradição cômica e musicada

era rejeitada por intelectuais e críticos de sua época, que a consideravam inferior ao teatro dito

sério – isto é, os dramas e as comédias realistas de origem francesa. Sendo assim, o retorno a

alguns gêneros da segunda metade do século XIX se justifica tanto por seu valor em si

mesmos, como por seu reposicionamento no campo dos estudos teatrais, além de serem ponto

de partida para muitas obras decisivas do século XX e, ainda, de sua grande atualidade.

Para o estudo da tradição cômica e musicada da segunda metade do século XIX,

teremos como referências os artigos A comédia desclassificada de Martins Pena (1998) e A

classe da comédia de França Junior (1998), de Iná Camargo Costa; os artigos de Rubens José

Souza Brito, O teatro cômico e musicado: operetas, mágicas, revistas de ano e burletas

(2012) e de Flávio Aguiar, A continuação da comédia de costumes (2012), que estão reunidos

no livro História do teatro brasileiro, vol. I. Para estudarmos o Teatro de Revista, bem como

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os gêneros ligeiros, utilizamos como referências o livro de Roberto Ruiz, O teatro de revista

no Brasil: do início à I Guerra Mundial (1988), que faz uma rica análise das origens até a

decadência do gênero; e os livros de Neyde Veneziano, O teatro de revista no Brasil:

dramaturgia e convenções (1991) e Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro...Oba!

(1996). O primeiro analisa o surgimento dessa dramaturgia e desenvolve um estudo

aprofundado de sua estrutura formal; o segundo parte do exame das alterações formais do

gênero, que imprimiu na forma importada uma fisionomia nacional até chegar a um gênero

autenticamente brasileiro, a revista carnavalesca. Além disso, utilizaremos, também de Neyde

Veneziano, o artigo É brasileiro, já passou de americano (2010), que realiza um estudo sobre

o Teatro Musical Brasileiro desde sua inserção em cena, bem como de seus desdobramentos.

A princípio, existe no Brasil, segundo Iná Camargo Costa (1998), uma “confusão

conceitual [...] a respeito do teatro moderno” que começa desde o século XIX, haja vista que

os críticos brasileiros da época se guiavam pelas normas do teatro francês. Estas, contudo, não

representavam a realidade brasileira, que era primorosamente desenvolvida nas comédias de

costumes de Martins Pena como, também, posteriormente, nas Revistas de Ano e nas Burletas

de autores como Artur Azevedo, além das comédias de costumes de França Júnior2. Esses

autores se dedicavam a desenvolver assuntos nacionais, de modo a fazer crítica social e

explorar a dialética entre forma e processo social por suas (supostamente) despretensiosas

peças. Logo, não podemos desmerecer a relevância desse teatro para a formação de um Teatro

Nacional.

A seguir, buscaremos observar como ocorreu o surgimento do Teatro Cômico e

Musicado no Brasil, bem como de seus gêneros como a Opereta, a Revista de Ano e a

Comédia de Costumes, bem como o parecer negativo de parte da crítica. O posicionamento

dos críticos do século XIX será relativizado diante das inovações e do valor estético dessa

tradição. O estudo dessa tradição se localiza especialmente no Rio de Janeiro, centro de

efervescência cultural à época.

O teatro, a partir das comédias de costumes de Martins Pena na primeira metade do

século XIX, começa a direcionar-se para uma expressão mais próxima da realidade local, de

sua estrutura social, cultural e econômica. Com isso questões como a cordialidade brasileira,

as injustiças sociais e os tipos brasileiros veem-se representados no palco sem idealização ou

2 Embora muitos críticos como D. A. Prado (1986) e F. Aguiar (2012), dentre outros, o classifiquem como

continuador das comédias de Martins Pena, entendemos com base em Iná Camargo Costa (1998, p. 157) que a

comédia realizada por França Júnior se distingue das de Martins Pena, visto que “o herdeiro não se dedicou à

comédia de costumes (como geralmente se afirma) e sim à alta comédia que Martins Pena ‘não teve tempo’ de

fazer”. Para um estudo mais aprofundado. Cf. COSTA, I. C. (1998. p. 157-175).

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traços pitorescos. Na segunda metade do XIX, esse teatro começa a ter desdobramentos em

outros gêneros como nas operetas brasileiras, nas paródias das operetas francesas, nas revistas

de ano e no desenvolvimento das comédias de costumes.

Um país de miscigenação, um povo em formação, uma sociedade pequeno-

burguesa em ascensão só poderia gerar uma plateia receptiva a um teatro

popular. Por isso Martins. Por isso a comédia. Influenciada pelo teatro

europeu, a dramaturgia brasileira do século XIX ainda buscava seus

caminhos. (VENEZIANO, 1991, p. 25)

A opereta foi o primeiro tipo de teatro musical que aportou no Brasil, mais

especificadamente no Rio de Janeiro, em 1859; e teve espaço garantido nos palcos do recém-

inaugurado Alcazar Lyrique, denominado no Brasil de café cantante, à moda do café-concerto

europeu. Segundo Neyde Veneziano (2010, p. 53), esse gênero corresponde a um tipo de

“espetáculo de variedades com números de canto, dança, ginastas” e de um novo estilo de

dança, o cancã.

Gênero de origem francesa, nasceu em meados do século XIX como um “misto de

comédia e melodrama, o qual era sempre levado na brincadeira, entremeada de números

musicais (...) a opereta referia-se, também, a assuntos do cotidiano”. Embora debaixo de uma

“aparente aura sentimental”, os assuntos do cotidiano poderiam ser retratados de modo feroz,

crítico e mordaz (VENEZIANO, 1991, p. 26). No Brasil, o teatro musical firmou-se em 1865,

com o sucesso da encenação da opereta francesa Orphée aux enfers3.

Este espetáculo permaneceu um ano em cartaz, com grande aceitação pelo público,

fato que motivou “os homens de teatro brasileiros” a traduzir, adaptar e criar peças de acordo

com esse tipo de teatro. A partir disso, esse teatro cômico-lírico começou a ganhar

características próprias, como é o caso da paródia das operetas francesas, gênero criado por

artistas brasileiros que se apropriavam do modelo francês, mas o adaptavam para a realidade

brasileira buscando destacar os costumes nacionais. As inovações primeiramente no campo do

conteúdo seguem para a forma, visto que os modelos franceses destoavam de nossa realidade.

A primeira peça desse gênero à brasileira foi de Francisco Correia Vasques, em 1868, embora

o mais habilidoso autor tenha sido Artur Azevedo, que não apenas criou paródias das operetas

francesas, mas também nacionalizou o gênero por completo, ao aliar o enredo brasileiro e a

música nacional nas operetas Os Noivos e A Princesa dos Cajueiros, em 1880. De acordo

3 A tradução seria Orfeu no inferno, o que deixa evidente a pretensão da paródia Orfeu na roça, de Artur

Azevedo.

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com Veneziano (1991), as modificações causadas no teatro pela tradição cômica e musicada

impulsionaram transformações que já estavam em curso no teatro brasileiro.

O sucesso das operetas trouxe também outro tipo de espetáculo de variedade, a

mágica, que continuou agradando ao público. Números que se destacavam pela grandiosidade

das apresentações, do figurino e dos recursos de ilusão cênica. Segundo Veneziano (1996, p.

27) as mágicas têm “enredos extremamente simples e personagens sem nenhum

aprofundamento ou complicação”, e se caracterizam por “um tipo de encenação de histórias

fantásticas, fabulosas, repletas de truques cênicos destinados a maravilhar públicos ingênuos”.

Outro gênero que se beneficiou do caminho já trilhado e de algumas características

formais dos gêneros destacados foi o Teatro de Revista, denominado “teatro popular ligeiro”

(RUIZ, 1988, p. 15). Esse teatro chegou ao Brasil por meio das Revistas de Ano, gênero

musical e cômico que teve origem na França, no início do século XIX, com a montagem de

acontecimentos ocorridos ao longo do ano através de uma revue de fin d’anne.

Conforme Roberto Ruiz (1988, p. 16), a Revista de Ano “era, a princípio, uma mistura

de comédia e opereta, com intuitos de sátira social e política e foi logo adotada na vizinha

Espanha, passou a Portugal, à Inglaterra, à Alemanha e aos Estados Unidos”. Embora de

origem francesa, esse teatro chega ao Rio de Janeiro via Portugal, o que ocorre devido à

grande influência desse país nos palcos brasileiros.

O Teatro de Revista, segundo Ruiz (1991, p. 12), é por definição “uma revisão, de

fatos e fantasias”, um “autêntico teatro de costumes”, que aportou no Rio de Janeiro em 1859.

Desde então, teve intensa difusão num período de cem anos “até entrar em progressivo

desgaste, minado especialmente pela Censura dos períodos ditatoriais e pelas dificuldades

econômicas que lhe cercearam a criatividade e as montagens cada vez mais arrojadas”. A

título de curiosidade, o Teatro de Revista, depois de aportar no Rio de Janeiro, seguiu também

para São Paulo. Todavia, não teve a mesma efervescência que na cidade fluminense, pois a

cena teatral paulistana estava mais ligada ao teatro cantante (óperas) e dirigida principalmente

à colônia italiana. Nesse sentido, o Teatro de Revista4, embora seguisse a mesma forma

francesa, era adequado ao pano de fundo da cidade de São Paulo, isto é, retratava os italianos,

os turcos e os caipiras que transitavam por ela, e com isso, o linguajar, os costumes e os

espaços eram distintos das revistas de ano cariocas (RUIZ, 1991).

4 Conforme Ruiz (1991, p. 47), São Paulo teve a criação de apenas uma Revista de Ano, O boato, de Arlindo

Leal. Embora retrate a realidade paulista, ela se aproxima muito da Capital Federal de Artur Azevedo, isto é,

“nela [...] uma família de roceiros (vinda de Araras) chegava em São Paulo e se deparava com as maravilhas e os

problemas da capital”.

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No Brasil, a revista sofreu alterações, transformando-se num gênero

autenticamente nacional, com regras e padrões de realização. Apesar de ser

um gênero importado, adquiriu aqui fisionomia nacional com estrutura e

convenções que foram se modificando com o passar do tempo. Estruturas e

convenções cujas raízes absorveram a seiva popular, peculiar à sua natureza.

(VENEZIANO, 1991, p. 24)

Embora seja longo o período de atuação do Teatro de Revista5 no cenário teatral

brasileiro, interessa-nos investigar exclusivamente a Revista de Ano, devido às suas inovações

formais. Ao acompanharmos o percurso desse gênero, veremos que primeiramente o conteúdo

foi nacionalizado para depois, paulatinamente, nacionalizar a forma. Essa apropriação colocou

nos palcos a realidade social brasileira, realizando um teatro calcado em fontes populares.

Outra expressão dos costumes brasileiros será desenvolvida pelas comédias de

costumes, que tornaram a ganhar espaço na segunda metade do século XIX. Depois de

Martins Pena, foi França Júnior quem melhor explorou a pretensão literária desse gênero

cômico. Suas comédias calcadas na sátira social e política eram voltadas muitas vezes para a

“armação de intrigas” que giravam em torno de “alguns exemplares das nossas classes

dominantes”, como também a expressão dos costumes cariocas e de tipos sociais, como o

malandro, os políticos, o estrangeiro etc. (COSTA, 1998, p. 158).

Depois de uma apresentação dos gêneros cômicos e musicados, convém observar que

estes gêneros se inserem no cenário teatral brasileiro não por acaso. Eles começam a ganhar

espaço no teatro brasileiro no lugar das comédias e dramas realistas, que dominavam os

palcos no teatro Ginásio Dramático. O público, fatigado pela moral do teatro realista, foi

seduzido pela grandiosidade dos espetáculos fundamentados no cômico, na música, na dança,

na malícia empregada e na representação de uma realidade mais próxima dos espectadores.

Esse teatro foi aos poucos conquistando seu espaço na cena teatral nacional. Porém, o

seu crescente sucesso não agradou e inquietou a massa de intelectuais formada pelo rigor das

normas dramáticas, a qual primava por uma arte educadora e civilizadora que seria exposta

por um teatro com preocupação literária e de caráter moralizador dos valores burgueses.

Os comentadores da arte teatral, com grande espaço nos jornais, acusavam o gênero

cômico de pôr fim a um teatro sério, isto é, nacional com pretensão literária. Todavia, Iná

Camargo Costa (1998), conforme o estudo de Vilma Arêas sobre a comédia de costumes de

Martins Pena, evidencia que a formação da sociedade brasileira propicia justamente o

5 Para um estudo mais aprofundado sobre a trajetória do Teatro de Revista no Brasil, Cf.: RUIZ, Roberto. O

teatro de revista no Brasil: do início à I Guerra Mundial. Rio de Janeiro: INACEN, 1988. E, VENEZIANO,

Neyde. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade

Estadual de Campinas, 1991.

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surgimento do gênero cômico, ao invés do dramático, uma vez que o mundo burguês, seus

valores e instituições, ainda não tinham alcançado o chão social brasileiro.

Podemos acrescentar que havia um abismo entre as exigências formais do

drama (dados os seus pressupostos sociais) e a matéria social com que

candidatos a dramaturgo no Brasil podiam trabalhar. Por isso o reincidente

fracasso, ao menos de crítica, de quase todas as tentativas de criação do

nosso “teatro nacional” em chave dramática, quando esse mesmo teatro ia

sendo feito em chave cômica. Daí a espécie de mal-estar com que a

intelectualidade contemporânea e mesmo póstera sempre viu o sucesso de

público de certa comédia, sempre relegada a um grau inferior na hierarquia

da arte dramática. (COSTA, 1998, p. 126)

Sobretudo, antes de destacarmos e problematizarmos a posição dos intelectuais e

críticos da época em relação ao surgimento desse teatro, torna-se necessário abordar o gênero

defendido por eles, as comédias realistas, classificadas como gênero sério. Buscaremos expor

brevemente essas questões, visto que apesar dos autores em foco nesta dissertação terem

superado os limites da estética realista, uma peça como A moratória, de Jorge Andrade, tem

aspectos que se aproximam do realismo, isto é, personagens com psicologia definida,

presença de conflito na história, linguagem crível, etc. Contudo, a peça em questão não

apresenta uma história moralista e nem faz uso da personagem raisonneur6. Em suma, há

pontos de contato que exigem o conhecimento do realismo para sua avaliação.

Feitas estas ressalvas, buscamos mostrar, resumidamente, o que foi o Realismo teatral

no Brasil, sua inadequação com a realidade brasileira e a desvalorização equivocada da

tradição cômica do século XIX. As comédias realistas chegaram ao Brasil por meio do Teatro

Ginásio Dramático7, que importou da França um estilo, anteriormente, iniciado por Alexandre

Dumas Filho e outros escritores. O gênero apresenta como características formais o debate e a

defesa de questões burguesas, assim como os valores da ética burguesa, que primava pela

honestidade, pelo trabalho, pelo casamento e pela família. Todavia, estes valores destoam da

realidade brasileira, um país de modernização tardia, com uma população predominantemente

rural e com estrutura social calcada na escravidão, mesmo depois da lei áurea, pois a abolição

não resolve os problemas que, aliás, estão em pauta até hoje.

Embora haja uma classe social abastada e que, aos poucos, se dedica às atividades

como o comércio, ela não corresponde ao que se compreende por burguesia em países mais

6 Personagem característico das comédias realistas. Tem função de porta-voz do dramaturgo e de seus

posicionamentos ideológicos; tem a função de comentar a ação dramática, com o objetivo de dar lições morais

com base no certo e errado a ser seguido pelo indivíduo burguês. 7 Teatro criado em 1855, na cidade do Rio de Janeiro.

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desenvolvidos. No Brasil, essa nova classe busca se aburguesar e um dos caminhos desse

percurso se daria através da arte. Portanto, a burguesia emergente, bem como o teatro realista

brasileiro, reconhecem no modelo francês os caminhos para a sua modernização social e

cultural.

O Realismo no Brasil teve seu período áureo de 1855 a 1865, isto é, 10 anos de

relativa dominância. O porta-voz brasileiro dos ideias burgueses desse gênero foi José de

Alencar, que se interessou pelo gênero na medida em que o Ginásio Dramático começou a

representar peças da “escola realista”. Por volta de 1857 escreveu, rapidamente, diversas

peças dentro dessa estrutura, mas o êxito tanto de crítica como de público adveio com a peça

O Demônio Familiar.

Para melhor compreensão do gênero, faremos uma breve análise da peça de José de

Alencar, com o intuito de evidenciar a forma aburguesada e a incompatibilidade formal e de

conteúdo desse modelo francês com a realidade brasileira. A peça O Demônio Familiar

(1857), de José de Alencar, originou-se da pretensão de se criar uma forma de comédia que

apresentasse características moralizantes, aburguesadas, próprias da alta comédia, e que se

distanciasse das comédias de Martins Pena e de Joaquim Manuel de Macedo, tidas como

inferiores ou rebaixadas. As escolhas estilísticas de José de Alencar deixam evidente uma

clara hierarquização entre os gêneros para ele.

Essa estrutura hierárquica, estabelecida por críticos e intelectuais, acabou

questionando, equivocadamente, a legitimidade de obras como as dos comediógrafos citados

acima, pois estas estavam voltadas para a crítica social e o exame aprofundado de costumes

populares; não se resumiam a fazer uma versão leve, superficial e bem-humorada do drama

burguês (COSTA, 1998). Deste modo, os aspectos menosprezados por Alencar são de grande

importância para este estudo, uma vez que a não-aceitação dos modelos franceses possibilitou

a procura por novas formas e pela representação da matéria cultural local, dando origem ao

que podemos chamar de início de um teatro nacional.

O Demônio Familiar defende os valores éticos burgueses por intermédio do

pensamento moralizador do raisonneur Eduardo, que dá voz à posição crítica do

escritor/dramaturgo com relação a vários temas. Entre eles, acompanhamos a crítica ao

casamento por dinheiro, uma posição algo emancipada da mulher na sociedade, a perdição do

homem romântico, entre outros itens. Valoriza o casamento burguês (comedido e

racionalista), a defesa da virtude burguesa, da moral e dos bons costumes, dentre outros

aspectos. Cada uma de suas longas falas equivale a uma aula de como se tornar um bom

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burguês, e tem como tema a preservação dos valores familiares de todo o mal que lhe

circunda.

Embora a peça introduza algumas questões nacionais decisivas (como o lugar do

escravo na sociedade), o autor se mantém muito preso à escola francesa e, em virtude disso,

ela acaba por divergir da real condição social brasileira. Essas discrepâncias ficam evidentes

na condenação do casamento por dinheiro, embora fosse um hábito ainda visto com grande

normalidade na época e, primordialmente, na libertação do escravo Pedro. Sua alforria é

concedida como punição pelas confusões familiares que causou. A alforria entregue a Pedro

não é motivada por humanidade ou por valorização do negro, contra seu abuso e exploração,

mas para purificar a família burguesa, bem como libertar o Brasil do problema que obstruía

sua modernização, a escravidão.

A escravidão, portanto, precisava ser eliminada para que os escravos fossem

responsáveis pelos próprios atos, entre eles encontrar trabalho para ganhar a vida – não se

pergunta em que mercado de trabalho, nem nada a partir da perspectiva do escravo. São tantas

reviravoltas ideológicas para acompanhar o liberalismo burguês do centro que mesmo uma

demanda positiva e louvável, o fim da escravidão, acaba sendo defendida pelos motivos

errados, pelo ângulo da burguesia, por uma visão de classe exposta sem meios-termos. Essas

incongruências evidenciam a impossibilidade e a incompatibilidade desse ideal francês no

Brasil, bem como desse modelo formal, isto é, a liberdade para Pedro não lhe serve, visto que

não tem formação nenhuma para desenvolver qualquer trabalho; e consequentemente

retornará à sua condição de escravo ou se submeterá a condições análogas de trabalho.

Em suas comédias realistas, José de Alencar defende ideais liberais já difundidos na

França como, por exemplo, a constituição de mercado de trabalho, com indivíduos

assalariados e livres para realizar suas escolhas. Nesse sentido, o Realismo no Brasil poderia

ser entendido como uma “ideia fora do lugar”8, na expressão de Roberto Schwarz, conforme

sua incompatibilidade com a realidade nacional da época. Trata-se de uma sociedade que

ainda se mantinha ligada à lógica e dinâmica escravagistas, predominantemente rural e

marcada pelos grandes coronéis. Contudo, não é intuito negar a existência da burguesia no

Brasil, visto que esse processo faz parte de sua formação, mas entender que esta constituição

ocorreu tardiamente e por caminhos distintos dos percorridos pela burguesia europeia.

8 Título de uma das seções do livro Ao vencedor as batatas (2008), no qual o autor analisa obras de Machado de

Assis. Schwarz discute como as formas europeias (sejam estéticas, sejam políticas, sejam sociais) entram em

contradição com o contexto sócio-histórico brasileiro quando aqui aportam.

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Em alguma medida, o Realismo no Brasil realizava um projeto romântico, de

contribuir para a escrita de uma história literária brasileira, criando assim uma história sobre o

Brasil através de uma forma francesa já consagrada literariamente. Mas a arte, ao conferir

expressão a esse material histórico, termina por evidenciar as inadequações de uma forma que

não comporta essas questões.

Essa situação é perceptível no primeiro romance realista brasileiro, Memórias

Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, marcado por suas inadequações formais com

o modelo francês, visto que, ao optar esteticamente por formalizar um conteúdo nacional,

depara-se com limitações formais do modelo e percebe que o novo assunto implicaria também

uma nova forma. Machado de Assis imprimiu ao romance realista configurações próprias, que

amplamente se distanciam da forma do romance realista de origem europeia.

Conforme Candido (1973) e Adorno (2008), a forma literária é expressão de uma

matéria social determinada e, nesse sentido, podemos compreender as variantes formais em

Memórias Póstumas, haja vista o descompasso de ideologias e valores do modelo francês ante

a realidade brasileira. O romance de Machado ganha expressão por meio de um defunto-

narrador (um defunto-autor), sendo marcado pela falta de credibilidade do narrador, por uma

narrativa curta interrompida por digressões, expondo questões que entram em contradição

com o modelo francês: narrador confiável, vivo de preferência, capítulos longos, função

moralizadora, entre outros itens. Em síntese, poderíamos entendê-las como um vislumbre do

destino fugaz do realismo e como o caminho próprio do desenvolvimento do romance no

Brasil.

A pretensão literária desse gênero teve o apoio de vários intelectuais e críticos que se

dedicaram a explicar a forma francesa e a introduzi-la no cenário teatral brasileiro, com o

intuito de criar uma história literária brasileira. Todavia, é importante destacar que o teatro

ligeiro, também de origem francesa, é visto pela crítica e pelos defensores do Realismo como

um gênero rebaixado, sem valor literário, dependente do mercado e, consequentemente, do

público. Dentre esses posicionamentos destacam-se os de José de Alencar e de Machado de

Assis9, o qual analisa, no texto Notícia da atual literatura brasileira: instinto de

nacionalidade (1994, p. 6), a notável contribuição de José de Alencar, de Pinheiro Guimarães

e de Quintino Bocaiúva para o teatro brasileiro, bem como a “decadência” da cena teatral

brasileira por meio da inserção do teatro cômico e musicado e de seus “espetáculos de feira”. 9 Recorte pertinente visto serem autores de grande renome nacional e, em virtude disso, suas críticas são tomadas

como balizas. Contudo, esses posicionamentos, com o avanço dos estudos literários, foram entendidos como

equivocados. Mas ainda hoje norteiam erroneamente muitos estudos sobre o teatro cômico brasileiro da segunda

metade do século XIX.

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Os críticos acreditavam que a grande aceitação e o crescimento do gênero cômico e musicado

ameaçariam os dramas e as comédias realistas. E, como mecanismos de defesa, acusam os

novos gêneros da decadência do teatro sério, de caráter reformador, ainda ligado à literatura.

Machado de Assis vai além, ao suprimir essa tradição do teatro brasileiro, visto que afirma

que a parte do teatro na literatura brasileira:

[...] pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro

brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se

representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que

não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia.

Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão,

nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras

severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca

ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos

instintos inferiores? (ASSIS, 1994, p. 6)

Discordamos desses posicionamentos, pois se mostram mais normativos do que

literários, isto é, estão ligados, mais especificadamente, a questões e estruturas sociais que são

transpostas aos palcos como norma rígida do que expressam questões da sociedade brasileira.

Os autores que temos acompanhado (Ruiz, Veneziano, Costa) já realizam a revalorização

desses gêneros, mostrando tanto sua riqueza formal (no campo da estética) quanto sua

pertinência na apropriação dos gêneros estrangeiros para as circunstâncias brasileiras (no

campo da relação entre arte e sociedade). Esse aspecto será fundamental para a recepção

positiva desses gêneros no século XX. Iná Camargo Costa (1998) analisa como a crítica

machadiana julgava os trabalhos de Martins Pena e José de Alencar, em chave comparativa,

deixando transparecer a crítica aburguesada e a modernização conservadora guiada pelos

intelectuais da época:

O problema do “teatro nacional”, neste caso da comédia do Pena, não estava

em suas raízes, ou nas raízes de seu modelo, e sim no material social

selecionado pelo dramaturgo. Enquanto Martins Pena, na linguagem da

comédia popular, punha no palco estratos das classes subalternas, inclusive

escravos [...] José de Alencar, com os “progressos da arte moderna”,

desconsiderava os usos e costumes “dessa gente” em favor dos problemas

(mais “família”) da “sociedade polida” e, ainda por cima, com conhecimento

da “fina cortesia de salão”. Em outras palavras, “selecionava o melhor”, com

um pouco mais de “bom gosto”, fórmulas, temas, assuntos, etc. [...] Enfim,

devolver a “chusma” a seu devido lugar, a saber, a plateia, de onde poderia

aprender “boas maneiras” e “delicadezas de sentimentos” com os bons

exemplares do drama e da comédia dramática que já vinham anunciados na

obra de Alencar. Esta é a face teatral do processo ideológico da

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modernização conservadora em andamento naqueles tempos. (COSTA,

1998, p. 129)

Essa distinção entre autores evidencia, no fundo, um problema de classes, de

hierarquia sobre as formas literárias, que determina qual a melhor ou pior, e Machado

defenderia a acima chamada sociedade polida neste caso. Com base nisso, não podemos, de

modo algum, atribuir ao Teatro Ligeiro à responsabilidade de interromper o avanço do Teatro

Realista Brasileiro (e, com isso, do Naturalismo), visto que o que envolve a não-continuidade

de um e a continuidade do outro até o século XX advém de outras questões como, por

exemplo, os gêneros em voga e, também, a questões ligadas aos planos social e histórico

brasileiros.

Na França e na Europa em geral, o Realismo deu lugar ao Naturalismo, este ao

Expressionismo; novos gêneros foram ganhando a cena e outros a deixando, sempre em

estreita articulação com as questões históricas de cada momento. Esse percurso ocorreu, na

França, em paralelo ao desenvolvimento da Opereta, da Revista de Ano, do Vaudeville. Ou

seja, esse é um primeiro ponto que merece destaque: não foram as formas musicadas e

cômicas da segunda metade do século XIX que frearam o desenvolvimento do dito teatro

sério no Brasil, mas sim outros fatores, mais ligados ao grau de amadurecimento e

consciência de nossa burguesia do que pelo sucesso de formas artísticas menos elevadas.

Divergimos da posição de Décio Almeida Prado (1986) que, por assim dizer, culpa a

preferência do público ao Teatro Cômico e Musicado pelo não-desenvolvimento do

Naturalismo no teatro brasileiro:

O teatro brasileiro parecia estar pronto para receber o Naturalismo: contava

com um núcleo relativamente forte de autores dramáticos e passara pela

indispensável iniciação realista. Mas esse passo, lógico e natural, nunca

chegou a ser dado. O novo movimento de ideias, apesar da imediata

influência que exerceu sobre o romance brasileiro, e sobre a poesia, jamais

alcançou os palcos. Tivemos discípulos de Zola romancista; não de Zola

dramaturgo, e muito menos de Antoine. É que o gosto do público dera uma

nova guinada, preferindo desta vez importar de Paris, diretamente ou via

Portugal, outros gêneros de espetáculo, de natureza bem menos literária: os

vaudeville, a revista, o café-concerto, a mágica (adaptação nacional da

feérie) e a opereta. (PRADO, 1986, p. 21 a 23)

Da citação desponta uma indagação: se, na França, o naturalismo surge como

resultado da crise da sociedade burguesa como poderia esse gênero expor no Brasil crise

análoga, se no Brasil nem ao mesmo se chegou a formar uma burguesia? Questionamento que

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nos leva à segunda opção, isto é, a não-continuidade desse gênero está relacionada a

organização social diversa. A questão central é social, os gêneros estão ligados a uma

engrenagem que gira conforme um contexto sócio-histórico. Segundo Antonio Candido

(1973), com a incorporação do social na obra, o externo passa a fazer parte da estrutura, do

todo, tornando-se assim interno.

A avaliação crítica negativa foi paulatinamente superada pela crítica, que legitimou a

riqueza artística da obra de Martins Pena, de Artur Azevedo e de França Júnior. Esses autores

realizam obras formalmente inovadoras e com pretensão literária.

Elaborado o panorama crítico, teórico e histórico do teatro realista e do teatro ligeiro,

resta entrar um pouco mais fundo nesses subgêneros para poder, mais adiante, atualizá-los nos

capítulos seguintes. Para isso contribui fazer alguns apontamentos sobre a Revista de Ano O

Tribofe, de Artur Azevedo, de 1891, e da comédia de costumes Como se fazia um deputado,

de França Júnior, de 1881.

1.2 Apropriação crítica da Revista de Ano e da Comédia de Costumes

A Revista de Ano incorpora da Opereta e da Mágica a música alegre e ligeira, o tom

cômico e farsesco, a linguagem maliciosa e, também, as encenações suntuosas da segunda.

Assim como as operetas, é um gênero que surgiu na França, no século XVIII, e era

correspondente ao teatro feito nas feiras. A Revista de Ano era “um tipo de teatro musical e

divertido que passava em revista os acontecimentos do ano anterior” (VENEZIANO, 2010, p.

54).

No Brasil, diferentemente da Opereta, a Revista de Ano passa por um processo de

inserção lento, pois ocorreram três tentativas iniciais10 até se dar, de fato, sua fixação na cena

nacional. Esse processo se deu assim pois, ao contrário das operetas, a Revista de Ano não

contou com um modelo para se basear, visto que não tínhamos companhias estrangeiras

encenando Revistas de Ano nos palcos brasileiros – não faria sentido uma Revista de Ano de

Paris nos palcos cariocas.

10 A primeira revista à brasileira foi As surpresas do senhor José da Piedade, de Figueiredo Novaes, encenada

em 1859. No entanto, a primeira revista de ano “não obteve público e foi proibida pela censura após as primeiras

apresentações” (VENEZIANO, 1996, p. 34). A segunda tentativa, de 1875, apresentou duas revistas de ano de

Joaquim Serra, Revista do Ano de 1875 e Rei Morto, Rei Posto, mas nenhuma das duas obteve público. A

terceira, no ano de 1878, através da revista O Rio de Janeiro em 1877, foi o primeiro texto de Artur Azevedo em

parceria com Lino d’Assunção. Embora obtivesse melhor público, não foi com essa revista que Artur Azevedo

conseguiu atingir fama e fortuna (Idem, 1996).

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Roberto Ruiz (1988) aponta a relevância da viagem realizada por Artur Azevedo à

Europa, em 1882, onde pôde observar e analisar as características do gênero. Este estudo

possibilitou, quando da sua volta, a criação da revista de ano O Mandarim, com parceria de

Moreira Sampaio. Foi encenada em janeiro de 1884, e inseriu em nossos palcos a caricatura

pessoal. A revista revelou “um trabalho bem-feito, burilado, calculado para o êxito,

apresentando definitivamente dois mestres, que iriam contribuir de forma categórica para o

gênero, um deles sem favor o maior autor de revistas do Brasil, Artur Azevedo” (RUIZ, 1988,

p. 19). A boa recepção da crítica e do público motivou o surgimento de uma nova geração de

autores, marcando a incorporação desse gênero no Teatro Brasileiro.

A revista de ano brasileira, [...], consistia num resumo crítico dos

acontecimentos do ano anterior. Às vistas do público, desfilavam os

principais fatos do ano findo relativos ao dia a dia, à moda, à política, à

economia, ao transporte, aos grandes inventos, aos pequenos crimes, às

desgraças, à imprensa, ao teatro, à cidade, ao país. Era uma história

miniaturizada sob o painel anual, em linguagem popular, teatralizada.

Equilibrava-se entre o registro factual e a ficcionalização cômica.

(VENEZIANO, 1991, p. 88)

A possível adaptação à realidade brasileira ocorre, visto que a Revista de Ano,

diferentemente de outros gêneros, é regida pela atualidade (sua condição existencial) e

necessita acompanhá-la, isto é, “aproveitar seus impasses, realizar pequenas subversões. O

que significa, ao nível do texto, dos temas e da própria fala, decalcar ideias, gírias, modas,

para a obtenção do efeito cômico” (BRANDÃO, 1988, p. 10). A fragmentação viabiliza a

atualização da revista, fato que permitiu no Brasil a inserção de assuntos locais e de fontes

populares, como é o caso da música.

O tempo, os fatos, o clima, a música, os acontecimentos político-sociais no

Brasil fizeram com que ela passasse por uma metamorfose de

abrasileiramento. E virou mania nacional. Tornou-se uma das formas mais

expressivas de teatro. Pouco a pouco, fomos definindo um modelo

tipicamente nosso. Modelo que se afastava daquele francês que recebêramos

via Portugal do século XIX, para adequar-se a alma carioca e ao jeito

brasileiro de ser. (VENEZIANO, 1996, p. 29)

A caracterização dos tipos brasileiros, o registro fiel dos acontecimentos, a sátira

social e política são algumas das características da Revista de Ano, que tem como objetivo

comentar, criticar, ironizar, modalizar, explorar, problematizar, em forma de revista, os

acontecimentos políticos, artísticos, econômicos e sociais do ano anterior.

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Artur Azevedo, em suas Revistas de Ano, buscava explorar elementos artísticos que

pudessem elevá-las à preocupação literária. De acordo com Neves (2008, p. 33), “a

experiência de Artur Azevedo com os gêneros musicados favoreceu a elaboração” desse tipo

de peça; e por meio de seu conhecimento e estudo sobre o gênero, empregou nas revistas um

ritmo alucinante, que acaba por favorecer a “literariedade, presente na linguagem coloquial

bem trabalhada, na refinada transposição da realidade para o texto por meio do uso dos

recursos cômicos convencionais e na crítica velada, porém bastante ferina, aos costumes

sociais” (Neves, 2008, p. 33). Em decorrência disso, pretendia articular o plano social e o

artístico à realidade social brasileira.

Azevedo era um dramaturgo “capaz de estruturar um diálogo colorido e eficiente,

objetivo, com registro sagaz da linguagem das ruas, trocadilhos, modismos, jogos de sentido e

de segundas intenções” (BRANDÃO, 2008, p. 10). A Revista de Ano permite a inserção de

assuntos de interesse popular; e, nesse sentido, se orienta a crítica desmerecedora dos

defensores do Realismo, visto que na Revista e em outros gêneros dessa tradição temos a

representação de todas as classes, não enfocando apenas a burguesa.

A revista de ano O Tribofe, de Artur Azevedo, representa a diversidade de camadas

sociais ao colocar em cena a movimentação, as perdas e os desencontros de uma família do

campo que vem para a cidade. A ação envolve tipos sociais como o caipira, o malandro, a

mulata, o fazendeiro rico. Segundo Tibaji (2008, p. 25), o fio narrativo das revistas

corresponde a uma ação em movimento, “em geral uma visita ou uma perseguição dentro da

cidade que será passada em revista, o que significa que os personagens da espinha dorsal

deverão circular pela cidade, deparando-se com aspectos diversos da mesma”.

O corre-corre da família de Eusébio atrás do futuro noivo (pois estava apalavrado com

a filha Quinota), na Capital Federal (Rio de Janeiro) serve de pretexto para comentar,

apresentar e criticar os principais acontecimentos do ano de 1891. Esses acontecimentos são

apresentados de várias maneiras, em questões como: a crise econômica (o encilhamento) e

política, o papel da imprensa, a especulação financeira e imobiliária, a corrupção, os

conchavos, a falsa formação da indústria nacional, bem como os principais eventos teatrais,

passando até por uma passeata escolar. Esses fatos são apresentados ao público, na maior

parte das vezes em perspectiva crítica, usando de ironia, paródia e mesmo da sátira.

Como dito, a apresentação dos acontecimentos pode ocorrer de diferentes formas: por

vezes, o processo é alegórico, e personagens como o “Câmbio”, a “Febre Amarela”, a

“Varíola”, a "Imprensa", a “Liberdade” entre outros, ganham expressão direta. Mas também

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podem ocorrer pela mediação de duas figuras, na função de Comadre e Compadre (no caso,

Frivolina e Tribofe) que nos apresentam algumas passagens, comentam e participam de outras

e assim fazem a ligação dos quadros. Por exemplo, será Frivolina quem nos contará os

eventos mais importantes de 1891 com a ajuda de Tribofe, que de naturalista russo Triboff

perde um “f” e ganha um “e”, tornando-se jovem como Fausto e participando como mestre de

cerimônias. De certa maneira, sua função envolve também a crítica à figura moralista do

raisonneur da comédia realista, uma vez que são personagens marcadas pela malandragem e

pela volubilidade. Além disso, há um núcleo dramático, consequentemente, um enredo, que

acompanha essa Revista de Ano, e os episódios vão sendo construídos no entorno desse

núcleo. Trata-se de quadros isolados que, com a mediação dos mestres de cerimônia e

interligados pelo frágil núcleo dramático, vão construindo a peça, também entremeada por

muitos números musicais e fechando com apoteose.

O Tribofe apresenta três atos, que se desenvolvem por meio de quadros e cenas,

levados por uma forma fragmentária, que possibilita ao espectador acompanhar a grande

quantidade de informação apresentada. A narratividade, do mesmo modo, é marcada pela

fragmentação: ora vemos as próprias personagens agindo, ora o coro, ora a música, ora as

alegorias que passam, ora a apoteose comemorativa, ora o compadre e a comadre. Aos dois

últimos, cabe a função de “aglutinador, apresentador, comentarista, dançarino, cantor, bufão,

contador de piadas”, eles atravessam “a revista de ponta a ponta como a costurar os diversos

quadros, cristalizando a dinâmica do pacto com a plateia, característica própria do teatro

popular” (VENEZIANO, 1991, p. 117). Além disso, a proximidade com a plateia, muitas

vezes movida por um diálogo sobre a estrutura da Revista, tem como finalidade a quebra da

ilusão e da quarta-parede. Logo, o teatro mostra-se teatro graças às instâncias narrativas,

sejam estas exercidas pelos compadres, pela música, pela paródia ou pela remissão à história

recente.

Falemos um pouco do núcleo dramático, o “fio condutor” da narratividade, o qual é

“frágil, tênue e, principalmente, dotado de bastante elasticidade, a fim de possibilitar a

inclusão dos mais diferentes quadros ou canções” (VENEZIANO, 1991, p. 88). Ele é

configurado pela família de Eusébio, mineiro dono de fazenda, que decide ir à Capital Federal

(Rio de Janeiro) à procura do prometido da filha (Quinota), que sumiu na cidade do Rio de

Janeiro, para onde viera resolver algumas pendências antes de mudar-se para o interior.

Eusébio não vem sozinho para a Capital, pelo contrário, traz consigo todo o seu mundo, com

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seus tipos: Eusébio, sua esposa Fortunata, a filha Quinota, o irmão Juquinha e a mulata

Benvinda.

A situação já é cômica por si só: os caipiras que chegam à capital irão, por força das

circunstâncias, sentir-se deslocados nela, sendo engolidos pelo torvelinho que são os sabores e

atrações de um mundo novo. Segundo Tibaji (2008, p. 27), “aos poucos, alguns integrantes da

família são contaminados pelo ‘micróbio da pândega’ e perdem-se na cidade”.

Gouveia, o noivo fugido, era de fato amante de Ernestina (libertina francesa) e logo

que os caipiras encontrem Gouveia, o quiproquó está formado. Instauradas as confusões,

Eusébio se afasta (atrás de Ernestina), Benvinda aceita ser lançada como mulata por

Figueiredo, entre outras peripécias até que tudo se resolve. Para isso é preciso que Gouveia,

que ganhava dinheiro especulando no encilhamento, perca tudo e resolva voltar para Quinota.

O encilhamento que surge em virtude de uma tentativa do governo de aumentar o dinheiro em

circulação para permitir empréstimos para implantar a indústria nacional, que falha e se torna

mero objeto de especulação, gerando uma grave crise econômica no período. Por aí, vemos

que a peça não está para brincadeira, apesar de ser uma comédia. Eusébio cai em si e pede

perdão à Fortunata, assim como a escrava Benvinda, que já era amante de Eusébio.

N’O Tribofe, não há um conflito cerrado, forte, marcado por posições firmes de

psicologias bem formadas; estamos diante de tipos, e tipos rebaixados, que oscilam muito

entre os campos da ordem e da desordem, usando os termos consagrados por Candido (1970).

Além disso, essa busca não é central, visto que o cerne da Revista era a apresentação das

ocorrências dignas de destaque do ano anterior, como o nome deixa claro, e também a

proposta.

O núcleo dramático enfraquecido serve à estrutura épica da Revista, para sermos

diretos. O que importa é a remissão à história, em chave crítica, pelo uso dos mais diversos

mecanismos, sem deixar pedra sobre pedra. Em meio a isso tudo, os personagens alegóricos e

alguns episódicos desfilam diante de nós, com força garantida por sua própria aparição. Como

um exemplo, dentre muitos, citamos a sétima cena – terceiro quadro – primeiro ato, que após

o revezamento da Varíola com a Febre Amarela entra em cena a Liberdade:

CENA VII – Tribofe, Frivolina, a Liberdade

(A Liberdade entra, e Tribofe, Frivolina e os figurantes descem com ela ao

proscênio)

A Liberdade — Deixem-me respirar! Deixem-me respirar! Ah! como agora

respiro a vontade! Já não podia! Tantos meses de ditadura!... (Respirando)

Ah!...

Frivolina — Quem é esta senhora que precisa tanto de ar?

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Tribofe — Não sei.

A Liberdade — Eu sou a Liberdade!...

Todos — A Liberdade!...

Tribofe — Não admira que não a conhecessemos. V. Exa vende-se tão caro!

A Liberdade — Estou satisfeita! muito satisfeita! satisfeitíssima!...

Todos — Por quê?

A Liberdade — Acaba de ser promulgada a Constituição da República!

Todos — Ah!

A Liberdade — Agora, cumpre aos brasileiros respeitá-la e engrandecê-la!

(Aponta para o fundo. Música. Mutação) (AZEVEDO, 1892, p. 26).

Podemos notar, acima, a remissão à ditadura, à promulgação da Constituição da

República, à censura, a fatos expressos pela sátira no diálogo e pela crítica implícita. Esses

personagens alegóricos e alguns episódicos são muito numerosos, mas vale a pena elencá-los

para perceber que não são fugidios. São tantos e com tanto espaço que assomam ao plano da

forma, marcada pela fragmentação e colagem. São eles: A Liberdade, Bug-Jargal, Carmosina,

Catelvecchio, O Tempo, Um Espectador, A Imprensa, Sotero, Dona Branca, Um Sujeito,

Cazuza, Condor, Uma Senhora, Um Filantropo, A Varíola, Um Visitante, Baronesa de Z,

Visconde de A, Uma Velha, Um Sportman, A Companhia Gargano, João Caetano,

Viscondessa de Y, Outro Filantropo, A Legalidade, O Comendador, Uma Companhia, Vieira,

A Companhia Maresca, Visconde de B, Outra Velha, Um Soldado da Polícia, A Companhia

Lambiasi, Frei Satanás, A Febre Amarela, Um Banqueiro, Um Proprietário, Outro Visitante,

Anacleto, Ambrósio, O Barão, Um Pastor, Desiré, Zé, O Delegado, Outro Sportman, Mota,

Outro Gaspar, Visconde de C, Outro Zangão, Um Conquistador, Outro Gaspar, Visconti,

Outro Zangão, Um Senhorio, Outro Gaspar, Pinheiro, Outro, O Secretário, Um Menino, Um

Gaspar, O Câmbio, Um Maluco, Um Condutor de Bond, Barão de X, além de visitantes do

panorama do Rio de Janeiro, vítimas de uma agência de alugar casas, compradores e

vendedores de títulos, pessoas do povo, os Estados, membros do high-Iife, soldados de

polícia, amadores de corridas, admiradores do Visconti, as praças do Batalhão Tiradentes.

A quantidade exacerbada de personagens causa na revista um entrecruzamento de

vários diálogos, de várias vozes, oriundas de vários lugares e posições ideológicas. A

concepção de linguagem pode nos levar facilmente a Bakhtin, para quem a linguagem (a

palavra) é o lugar por excelência da luta ideológica. Neste sentido, cada frase parte de um

ponto de vista específico sobre a realidade, colocando-se em luta contra outros discursos que

também lutam por se fazerem dominantes. Para Bakhtin (1997, p. 34), “a palavra é o modo

mais puro e sensível de relação social”. Em outra passagem:

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O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes [...] Na

verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo

e móvel, capaz de evoluir. [...] Mas aquilo mesmo que torna o signo

ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de

deformação do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico

um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de

ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o

signo monovalente. (Bakhtin, 1992, p. 46)

A linguagem popular, a música ligeira, a comédia rebaixada fazem parte dessa luta em

torno do sentido do signo. Em O tribofe, é sintomático que o título seja explicado aos

espectadores por Frivolina, justamente ao fazer com que o naturalista russo Triboff se

transforme em seu companheiro Tribofe:

Frivolina: — Ouve...

RONDÓ RECITADO

Sabichão que se estafe e se esbofe,

Desejoso de tudo saber,

O novíssimo termo tribofe –

Em nenhum dicionário há de ver.

[...]

Mas a tudo se aplica a palavra,

Pois em tudo o tribofe se vê;

Qual moléstia epidêmica lavra,

E não há quem remédio lhe dê.

Na política há muito tribofe,

Muito herói que não sente o que diz,

E o que quer é fazer regabofe,

Muito embora padeça o país.

[...]

No comércio, nas letras, nas artes,

Há tribofe, tribofe haverá,

Que o tribofe por todas as partes

E por todas as classes irá!

Mas nenhum sabichão que se esbofe,

Desejoso de tudo saber,

O novíssimo termo - tribofe

- Em nenhum dicionário há de ver (AZEVEDO, 1892, p. 9).

Tribofe significa originalmente trapaça em corridas de cavalo, mas aqui temos uma

ampliação semântica para poder envolver o encilhamento, a corrupção política, qualquer tipo

de enganação que se faz passar por algo correto, belo e verdadeiro. Em suma, estaremos nessa

Revista no âmbito dos tribofes, desmascarando-os ao tirar a pátina de justificação que recobre

a cidade, o país – a ditadura, a crise econômica, a especulação financeira, a farra dos

investidores que ganham cada vez mais com a miséria alheia (o desemprego sobe, etc.). Os

bancos, o câmbio, os investimentos, são todos apresentados como fazendo parte dos que

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ganham com a crise, os verdadeiros tribofes que se pintam como arautos do progresso para

toda a nação. Infelizmente a discussão é atualíssima, embora faltem peças como O tribofe

fazendo sucesso: o signo se tornou monovalente, a luta dos índices sociais de valor foi quase

abafada no momento atual.

O desfile dos personagens na peça ocorre por meio de uma estrutura fragmentária e

ágil entre os atos, quadros e cenas, os quais são diretos e objetivos, envoltos pela música

ligeira (que dá agilidade às cenas), pelas mutações e pelas apoteoses. Além da quantidade

exacerbada de personagens, também temos a circulação entre diversos cenários. Por exemplo,

no quinto quadro a ação se desenvolve no “Largo de São Francisco de Paula” e no quadro

seguinte a ação já se passa “Na Rua do Conde” (AZEVEDO, 1892, p. 27 e p. 37). O cenário

se desenvolve num espaço público, trazendo cenários nacionais, isto é, espaços da cidade do

Rio de Janeiro, construídos por meio dos quadros que vão mudando conforme as cenas. De

acordo com Neves (2008, p. 32), o ritmo cênico acelerado “propiciou um efeito de vivacidade

e rapidez no desenrolar dos acontecimentos, inédito nas peças dos comediógrafos anteriores”.

Ao aliar os principais acontecimentos do ano findo ao enredo cômico familiar, o

espectador ao mesmo tempo se diverte com as estripulias da família do interior na cidade

grande e assiste à retrospectiva dos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais.

Eles são apresentados através da sátira, da ironia e da crítica mordaz de Artur Azevedo,

observador criterioso da sociedade do século XIX. Portanto, a revista de ano O Tribofe pode

ser compreendida como uma alegorização do Brasil, visto que, por meio do enredo cômico, o

dramaturgo insere a caricatura e personagens tipos que constituem um retrato amplo da

sociedade da época.

Ao assumir essa identidade brasileira, o teatro de revista transformou-se,

durante um longo período, no gênero que melhor representou a ideia que o

Brasil tinha de si: Deus é brasileiro e este é o melhor país que há. Como

prova, a revista mostrou os melhores produtos nacionais: samba, mulher,

carnaval e malandragem. (VENEZIANO, 2010, p. 56)

A revista de ano O Tribofe apresenta, por meio do enredo e dos acontecimentos, uma

crítica mordaz ao sistema econômico; a compra e venda de títulos/papéis, representada pela

intensa especulação com ações e as apostas crescentes nas corridas de cavalo; a arte; a vida

pecaminosa na cidade; a máfia dos imóveis para alugar; a prostituição; a precariedade da

saúde pública – personificada na Varíola e na Febre Amarela, que se revezam de tempos em

tempos e se congratulam pelo descaso das autoridades sanitárias. Uma obra construída com

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base em montagens, com a presença de alegorias, tipos, narradores, uma interlocução quase

direta com o público, no plano do conteúdo realiza críticas políticas e sociais contundentes e

uma análise fina do Brasil, tudo isso sem perder a compreensão do público: difícil dizer que é

um gênero esteticamente despretensioso.

Em suma, a revista de Artur Azevedo trabalha com elementos críticos de nossa

sociedade em uma perspectiva épica que, embora não mirasse uma revolução formal, ao

menos não se escondia atrás de conceitos como arte pura, ou arte esteticamente elevada, ou

drama burguês, ou comédia burguesa. Desenvolve-se por meio de uma forma complexa e

desconhecida, porém esta complexidade não impediu o gênero de ser compreendido e de

atingir um enorme público.

A partir da análise, podemos perceber que muitos elementos aqui destacados aparecem

com força na peça Café, de Mário de Andrade. Por exemplo, a alegoria, a personagem-tipo, a

fragmentação, a visão crítica, a forma musical totalmente oposta à dramática, isto é, a ópera

tradicional e o épico. Além disso, a utilização do cômico para apresentar criticamente um

acontecimento, seja ele político, cultural ou social, pode ser visto na peça Café, de Mário de

Andrade. Este, como observador atento do século XX, recorre ao cômico no segundo ato de

sua peça (mais especificamente na Câmera-Ballet), de modo a satirizar o sistema político e,

com isso, evidenciar os vícios, as arbitrariedades e a falta de juízo de cidadania que marcam a

democracia como a conhecemos, o que será assunto para mais tarde. Nesse sentido, alguns

elementos desse teatro do século XIX combinarão muito bem com o espírito popular e

iconoclasta do modernismo, ainda mais conjugado à ênfase política no pós-30. Não se trata de

uma utilização completa do gênero, o que dificulta que se veja a apropriação, mas uma análise

mais detida do gênero cômico e musicado no Brasil do século XIX evidencia a interlocução.

A Revista pode ser caracterizada como gênero musical de enorme abertura e

diversidade. Temos nas revistas “músicas de ópera que eram, em teoria, destinadas a um

público mais erudito (...) e a charanga, o jongo e o lundu, destinados a um público de poucos

recursos econômicos” (TIBAJI, 2008, p. 25).

Nas Revistas de Ano, a música passa a assumir “novas funções dramáticas ou realça

atributos tradicionais”, sendo empregada para “abrir e fechar cenas e quadros, apresentar

personagens, atribuir um caráter cômico às situações, fazer passagens de cenas, dar suporte à

coreografia, efeitos cenográficos ou apoteoses, intervir na ação dramática, sustentar mutações

de cena ou cenas mudas” (BRITO, 2012, p. 228). Na peça Café, a orquestra é utilizada para

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romper com a identificação dos espectadores em relação à ação e, com isso, Mário de

Andrade lhe atribui à finalidade de introduzir e comentar a ação dramática.

Embora esteja nítido o valor da obra de Artur Azevedo, é importante destacar que ele

foi muitas vezes atingido por avaliações negativas. Acusado, pelos intelectuais de seu tempo,

da:

destruição de um teatro brasileiro nobre, distinto, de fina extração artística, o

teatro de arte que iria conduzir as almas do país a um paraíso cultural

autêntico, a civilização. Ou – falta tão grave quanto a primeira – ele teria

impedido que este teatro redentor viesse à luz (BRANDÃO, 2008, p. 09).

Ele também foi acusado de se dirigir somente a uma plateia que procura riso fácil, de

só possuir “virtudes secundárias” e “nenhuma das virtudes essenciais do grande escritor”,

entre outras que não merecem créditos. Assim como Brandão, discordamos dessas críticas,

pois reconhecemos o importante papel de Artur Azevedo para o teatro brasileiro.

Segundo Sábato Magaldi (2004, p. 157), desmerecer a obra desse comediógrafo acaba

por ratificar os preconceitos da crítica do século XIX, que com sua “ideia de ‘teatro sério’

vive a ofuscar a simpatia e a compreensão pelas obras ligeiras, como se elas, na transparência

das intenções, não pudesse guardar outras e importantes virtudes”. Assim Magaldi (2004)

contrapõe-se à crítica dominante na imprensa do século XIX, destacando a importância da

chegada de Artur Azevedo ao Rio de Janeiro, em 1873, e de suas comédias de ambição

literária. Nas palavras muito pertinentes de Ruiz, que merecem destaque:

Esse preconceito “culturalista” abateu-se sobre o gênero através dos tempos,

marcando posições estreitas e elitistas, impedindo a sua compreensão como

teatro popular, de intenções transparentes, promovendo o desconhecimento

de suas virtudes em que se juntam o comentário de atualidade com a tônica

predominantemente política – que sempre lhe atraiu a ira dos donos do poder

– mas igualmente social, econômica, literária e, às vezes, até religiosa,

investindo em todos os setores, como fiéis reproduções ao tempo de sua

elaboração, num constante registro das mutações naturais dos costumes e até

da linguagem imperantes. (RUIZ, 1991, p. 12)

Com base no estudo de Neyde Veneziano (1991, p. 185), que comprova a riqueza

formal do Teatro de Revista, “deve-se questionar o desprezo absurdo e o preconceito

obsessivo de que tem sido vítima”. Essa riqueza formal fica evidente no empreendimento,

inédito no teatro brasileiro, realizado por Artur Azevedo, de extrair da revista de ano O

Tribofe um novo gênero.

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O resultado foi A Capital Federal, “a sua peça mais popular, uma burleta – melhor

dito: uma opereta à brasileira”, logo, “a primeira peça genuinamente brasileira” (RUIZ, 1988,

p. 73 e 41). Artur Azevedo deve ser lembrado pela sua dramaturgia sensível às

transformações relacionadas as estruturas sociais, na dialética entre arte e sociedade, com

pretensão literária e pelas suas produções que acabam por criar uma estética própria.

O tempo confirmou a grande contribuição de Artur Azevedo ao teatro do século XIX e

para os seguintes. Foi o dramaturgo que melhor expressou as modificações tanto artísticas

quanto históricas daquele século. Segundo Neves (2008, p. 41), Artur Azevedo “realiza uma

crítica contundente a problemas sociais importantes à época. Isso só foi possível por meio de

um trabalho literário minucioso, voltado para o texto, para a linguagem, para a criação de

personagens e para a elaboração de uma trama complexa e bem estruturada”.

O Teatro Cômico e Musicado tem grande proximidade com o mundo social, o que

também pode ser notado nas comédias de costumes de Martins Pena e nas obras cômicas de

França Júnior e Artur Azevedo. De França Júnior, destacamos a comédia de costumes Como

se fazia um Deputado (1881), visto tratar de tema análogo ao da peça Café, de Mário de

Andrade: ambas apresentam, todavia de forma diferente, uma crítica ao sistema político

viciado, descompromissado e sem um processo político ideológico formado.

Questões expressas, em França Júnior, através da aliança entre major Limoeiro

(liberal) e o tenente-coronel Chico Bento (conservador), os quais superam suas supostas

diferenças (que não são ideológicas, pois eles não se prendem a nenhum princípio além dos

que lhes confiram o poder) para firmar parceria e apoiar a eleição a deputado de Henrique

(sobrinho do primeiro), que retorna formado bacharel em direito.

Para completar a aliança, determinam que Rosinha (filha do segundo) se case com

Henrique, o qual mostra ser o candidato perfeito ao acatar todas as ordens de Limoeiro.

Chegam ao ponto de decidir que, caso surja uma terceira frente no campo político (os

republicanos), o sobrinho Henrique se filiará a esse partido. Uma das muitas cenas da peça

que chama a atenção (inclusive pela sua atualidade) é a disputa entre os coronéis para decidir

qual dos dois é liberal e qual é conservador, tal a falta de qualquer lastro ideológico.

Rosinha e Henrique, em um primeiro momento, melindrados com o casamento

arranjado às pressas, acabam aceitando a decisão sem contestação. Até mesmo a rapidez com

que se apaixonam torna-se risível como representação desse cenário em que ninguém tem

princípios férreos e irredutíveis; da rejeição à paixão não se gasta uma página, e isso não é

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indicativo de defeito de fatura, mas de acerto social e estético – dependentes como são, não

são sujeitos na plena acepção da palavra.

Feitos os acordos, a eleição ocorre no segundo ato em meio à pancadaria, fraudes e

muitos incidentes. Parece que estamos em meio a uma guerra, não em uma eleição. Alguns

lugares são vedados às mulheres dado o perigo do enfrentamento físico. Essa verdadeira

guerra campal não deixa dúvida sobre qual é o espaço dessa suposta democracia

representativa: a lei do mais forte, a violência, o abuso, a troca de favores, a dependência, o

compadrio, a malandragem, a ameaça, a corrupção.

O jovem eleito decide abandonar a carreira política, devido à fraudulenta eleição e um

pouco de escrúpulos que ainda guardava. Limoeiro reverte, rapidamente, a situação

solicitando a ajuda de Rosinha, que convence Henrique a assumir o posto. Novamente, a

rapidez com que Henrique aceita os fracos e frívolos argumentos de Rosinha (queria muito

conhecer a corte, mas não só a passeio, morar na corte, andar de carruagem, participar da vida

das festas etc., isso tudo na condição de esposa de deputado) mostra que sua posição nunca foi

firme, pelo contrário, era da solidez de um castelo de areia.

O final da peça é emblemático de nossa sociedade patriarcal escravocrata: o escravo

fiel, pau para toda obra, que se mostra completamente esvaziado subjetivamente, recebe a

alforria e, ao mesmo tempo, a garantia de que isso não vai mudar a sua vida, ou seja, que tudo

continuará como antes, o que o faz beijar a mão de seu dono. A felicidade, ao que parece, vem

menos da alforria (que poderia ser um selo para a miséria, pois quem iria empregá-lo?) do que

da manutenção de sua situação, ou seja, um escravo de fato, embora não mais de direito.

Domingos: Meu sinhô; se vosmecê nos dá licença, nós vem saudar também

sinhozinho com a nossa festa.

Limoeiro: Chegaste a propósito. (com ar solene) Domingos, de hoje em

diante serás um cidadão livre. Aqui tens a tua carta, e na minha fazenda

encontrarás o pão e o trabalho que nobilita.

Domingos: (ajoelhando-se e abraçando as pernas de Limoeiro): Meu senhor!

Limoeiro: Levanta-te. (levanta-o e dá-lhe um abraço) Venha agora a festa.

(entram os negros e as negras e dançam o batuque)

(FRANÇA JR., 1985, p. 53).

Segundo Magaldi (2004, p. 148), a peça “pode ser considerada um marco da nossa

comédia e da observação do temperamento nacional”. França Júnior, em todas as comédias

que produziu:

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[...] não esmoreceu na crítica divertida dos costumes brasileiros. Mas de

quando em quando acrescenta às cenas de bom humor certo toque amargo,

de desilusão com o país. Sua visada cômica abrange os tipos que acha

característicos da sociedade brasileira, quase sempre tendendo para o

caricaturo ou grotesco. Mesmo a ingenuidade não escapa desse

daguerreótipo severo de nossa sociedade do século XIX. (AGUIAR, 2012, p.

235)

O dramaturgo concilia ao enredo “a tradicional intriga amorosa da comédia com os

quadros típicos dos arranjos eleitorais do tempo do império”, sobre o qual insere um olhar

crítico como forma de indicar as mazelas e a podridão dos que se envolvem nesse sistema

inescrupuloso (AGUIAR, 2012, p. 240). Podemos notar a atualidade desse assunto exposto

por França Júnior, o qual pode ser compreendido como um retrato válido da situação política

que se perpetua até a época atual.

A partir das revistas de ano de Artur Azevedo e das comédias de costumes de França

Júnior, temos a inserção de assuntos nacionais e de crítica social. Essas questões, de início

não se limitam ao plano do conteúdo, mas suscitaram mudanças no plano da forma dessas

peças. A originalidade das produções artísticas brasileiras configura-se pela incongruência

entre a forma importada e o assunto nacional, o que leva à busca pela inovação. Por

intermédio dessas transformações, o teatro se modifica e passa a ter interesse por assuntos

nacionais sem intenção moralizadora e civilizadora, como os praticados pelas comédias

realistas.

Segundo Costa (1998, p. 134), enquanto os intelectuais do século XIX defendiam a

criação do “teatro nacional”, este já está “sendo feito nas feiras, praças, nos circos e teatros

que a intelectualidade evita registrar em nome dos duvidosos critérios de bom gosto,

elegância e dignidade alardeados por nossas classes dominantes”. A leitura equivocada do

século XIX, por meio do drama burguês tradicional, explica a desvalorização da comédia de

Martins Pena, de Artur Azevedo e de França Jr., para ficar apenas em três exemplos

inequívocos, bem como todo o teatro do século XIX, pelas vozes críticas da época.

Destacamos a importância desse teatro por uma nova matriz da leitura da comédia e de

outros gêneros que não pretendiam seguir o carimbo francês de qualidade. Como, também,

para o desenvolvimento do teatro brasileiro, que sofre implicações desses gêneros e a

reafirmação de sua importância com o surgimento do modernismo, que crê não haver

“gêneros inferiores, nem mesmo os chamados primitivos” (COSTA, 1998, p. 133). Logo, terá

repercussão no trabalho desenvolvido por Mário de Andrade, grande conhecedor do nosso

espólio cultural.

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Há uma enorme necessidade de se realizar uma reavaliação histórica do teatro do

século XIX, visto que boa parte da produção se afastava de modelos repisados e propunha um

teatro nacional; com isso, contribuiu amplamente para a história teatral literária e artística

brasileiras. Sobretudo nos interessa, com essa retomada, observar como as inovações

apresentadas pelos gêneros cômicos e musicados foram apropriadas pelo teatro brasileiro,

percurso que tem Mário de Andrade como um dos nomes principais. Pesquisador da cultura e

da música populares, acaba por receber influência desses elementos cômicos e,

principalmente, musicais, visto que escreve uma peça-coral. Além disso, os processos

alegóricos, a valorização do popular, do coletivo por meio dos corais, o uso da sátira, da

crítica social, dentre outros elementos, têm ligação com essa linhagem.

Por outro lado, as produções cômicas e musicadas ocorriam, concomitantemente, com

a presença de companhias estrangeiras voltadas para o teatro cantado, ou melhor, lírico, que

atraia um público aburguesado, visto ser considerado um gênero aprimorado e sofisticado. O

Teatro Lírico chegou ao Brasil por volta da segunda metade do século XIX e permaneceu em

cena até as décadas iniciais do século XX, período no qual os intelectuais brasileiros o

frequentavam, dentre eles Mário de Andrade. A peça Café começa, justamente, por uma

discussão sobre a função social da arte, a ideologia inscrita nas formas consagradas, tornada

naturalizada, e a necessidade de lutar contra esse estado de coisas.

Músico, escritor e pesquisador, Mário de Andrade, já em sua fase madura11, passa a

estudar e a aventar os problemas do gênero Ópera, considerada de enorme valor estético, na

medida em que passa a buscar um diálogo com o mundo social e a pensar como que este

gênero aburguesado e individualizado poderia se transformar em instrumento de emancipação

e de um senso coletivo12. Café é a materialização desse estudo, como veremos nos capítulos

seguintes, peça constituída através da ruptura e da inovação sobre o gênero Ópera. Deste

modo, temos, na obra de Mário de Andrade, reverberações do Teatro Cômico e Musicado,

bem como do Teatro Lírico.

Os desdobramentos da segunda metade século XIX para o século XX fazem sentido,

pois autores como Martins Pena, Artur Azevedo e França Júnior nos auxiliam a entender o

11 Quando passa a aliar dois projetos, estético e ideológico, assim como o Movimento Modernista. Segundo

Lafetá (2000), o primeiro projeto era marcado por uma postura criadora nacional e, com isso, tinha como

objetivo romper com a linguagem tradicional e propor uma renovação formal. Em primeiro momento,

corresponde à atualização das artes plásticas e da literatura; posteriormente, chegará ao teatro através de Mário e

Oswald de Andrade. O segundo é caracterizado pela formação de um pensamento crítico, ideológico e político.

Mário de Andrade passa por um amadurecimento das preocupações estéticas, fase na qual prevalece a dialética

entre os projetos modernistas. 12 Para mais informações, consultar a livre-docência de Flávia Camargo Toni: Café, uma ópera de Mário de

Andrade: estudo e edição anotada. USP, 2004.

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projeto e o resultado do trabalho teatral de Mário de Andrade. Além disso, obras como as de

Mário de Andrade são poderosos materiais para colocar em evidência a complexidade das

obras produzidas nessa tradição do século anterior. Isso nos permite retomá-lo e verificar a

predominância de características modernas como o enfraquecimento do núcleo dramático

principal, por meio de conflitos frágeis e de personagens sem identidade, pela exposição do

contexto social em primeiro plano, pela remissão ao entrave social brasileiro, pela

alegorização do Brasil etc.

O teatro da segunda metade do século XIX apresenta mecanismos de modernização

estética que também poderão ser notadas no teatro de Chico Buarque e de Augusto Boal13,

obras essas que provam e atestam, a contrapelo, a importância e qualidade estética dessa

produção. Em síntese, essa retomada demonstra que o teatro brasileiro do século XX se

beneficiou dos recursos estéticos largamente utilizados pelas nossas comédias e pelo Teatro

de Revista. Todavia, esses autores não os utilizam como cópia, mas para alcançar objetivos

diversos, lutando contra outras formas consagradas, em um tempo com novas demandas

históricas e estéticas.

Se até agora pouco foi dito a respeito de Jorge Andrade é porque a tradição de onde

seu projeto deriva é outra, mas que também tem relação com o que discutimos até aqui. Até

porque estamos apresentando alguns elementos do teatro do século XIX que são decisivos

para a apropriação do teatro épico no Brasil – como um olhar para o Brasil em perspectiva

crítica. Mas o percurso para se chegar a Jorge Andrade passa por outras mediações, que serão

apresentadas a seu tempo.

13 Embora esse seja só um apontamento, pois não temos tempo hábil para nos enveredarmos numa análise mais

aprofundada.

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Capítulo 2. A modernização do teatro brasileiro em Mário e Jorge Andrade

Neste capítulo, faremos algumas considerações sobre o teatro modernista e vertentes

desenvolvidas de movimentos estéticos como o Nacionalismo, Expressionismo, Primitivismo

e o Épico, importantes para a localização histórica da obra de Mário de Andrade. Em seguida,

discutiremos aspectos fundamentais para a efetivação de um segundo momento de

modernização estética no teatro brasileiro, a partir dos anos 1940, passando pelas inovações

dos grupos amadores, pelo surgimento da EAD (Escola de Arte Dramática) e com a

profissionalização do teatro brasileiro por grupos como o TBC e TMDC. Esse percurso é

necessário para chegarmos a Jorge Andrade, um dos expoentes desse período.

Além disso, buscaremos compreender Mário de Andrade e Jorge Andrade como

pensadores críticos do teatro brasileiro. A obra deles articula questões estéticas e históricas,

pautadas por uma preocupação autêntica sobre a função social da arte. Eles criticam uma

concepção de arte como mero entretenimento ou como forma estética pura, entendendo-a

como lugar para o pensamento crítico.

2.1 Mário de Andrade: modernismo, dramaturgia e teatro

A influência da arte do século XIX na produção de Mário de Andrade ocorre devido

sua consciência da necessidade de revisitação histórica, que está ligada ao próprio espírito do

modernismo. Ele era comprovadamente um grande pesquisador, que refletia continuamente

sobre a construção artística. Essa reflexão é marcada e auxiliada pelo diálogo com textos de

outros pensadores, pois para Mário de Andrade “não é possível [...] conceber a formação dum

espírito sem influências, fruto unicamente de experiência pessoal”14 (ANDRADE, M., 1976,

p. 81).

De acordo com a tese desenvolvida por Rosângela Asche de Paula (2007), o diálogo

com outras obras tinha origem na riquíssima biblioteca15 mantida por Mário de Andrade,

dando destaque a títulos sobre o expressionismo alemão16 e as marginálias17. Segundo a

14 Crônica Influência (1929). In: ANDRADE, M. de. Táxi e cônicas do Diário Nacional. São Paulo, Duas

Cidades, Secretária da Cultura, Ciência e tecnologia, p. 81, 1976. 15 Para ter conhecimento dos títulos presentes na biblioteca de Mário de Andrade deve-se consultar: PAULA, R.

A. de. O expressionismo na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação. USP, 2007. 16 Conforme a tese de doutoramento de Paula (2007, p. 35), as leituras realizadas por Mário de Andrade acerca

do expressionismo alemão eram ligadas a quatro fontes, a saber: a coletânea de poesia expressionista

Menschheitsdämmerung, de Kurt Pinthus; da mesma obra o prefácio de Pinthus; o livro teórico Impressionismus

und Expressionismus, de Franz Landsberger, e o artigo de Wilhelm Worringer, “Natur und Expressionismus”.

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autora, Mário de Andrade compreendia que o fazer artístico ocorria “a partir de relações, do

contato com outras obras e culturas, com diferentes formas de expressão artística, assim como

no contato com as manifestações artísticas populares” (PAULA, 2007, p. 3). Todavia, essa

absorção deveria ser seletiva e significativa para abordar a realidade nacional.

Mário de Andrade pode ser considerado uma espécie de esponja cultural, absorvedor

das mais variadas influências. Para ele, se a originalidade é “historicamente [...] duma

importância capital na evolução das artes, ela não tem nenhum valor conceitual na verificação

da obra-prima” (ANDRADE, M., 1976, p. 81). Em suas produções, recobra o passado de

modo a entender o presente e, em virtude disso, passa a absorver questões e a apresentar

implicações diante de um novo contexto literário, isto é, o do Modernismo brasileiro.

Nessa seção procuramos compreender como as inovações estéticas e literárias do

Modernismo tiveram desdobramentos posteriores na dramaturgia de Mário de Andrade. E,

posteriormente, o diálogo da dramaturgia andradiana com vertentes como a do Nacionalismo,

do Primitivismo, do Expressionismo e do Épico. Esse enfoque se justifica por ser primordial

para o estudo da peça-coral Café.

O Movimento Modernista, proveniente da Semana de Arte Moderna de 1922, foi

marcado por uma atualização formal e por uma força criadora na prosa e na poesia. Esse

esquecimento é estrutural em nossa historiografia literária também: Alfredo Bosi, em seu livro

História concisa da literatura brasileira (2006), pouco se refere ao teatro como parte efetiva

para a formação da literatura brasileira. Contudo, podemos partir das inovações propostas

nesses gêneros para compreendermos as bases para um teatro modernista – que não chegou

propriamente a sair do papel para a cena.

As discussões realizadas ao longo da Semana discutiam como realizar uma renovação

formal na arte brasileira para romper com a predominância de valores e de modelos

hegemônicos. Seu objetivo era corrigir anos de atraso em comparação à Europa, e para isso se

apropria dos modelos europeus com a finalidade de remodelá-los à realidade nacional,

desenvolvendo temas e questões sociais locais.

Essa busca de uma expressão literária culminou no projeto consciente de exprimir a

realidade local dos modernistas. De acordo com Candido (1999, p. 90), os modernistas

refundiram “a perspectiva que se definiu no século XIX como nacional” de modo a atualizá-la

Além da revista parisiense L’Esprit Nouveau, que contribuiu para sua pesquisa, visto que, de início, não tinha

conhecimento da língua alemã. 17 Conforme o dicionário Aurélio, corresponde a um conjunto de anotações nas margens de um livro ou de outro

documento.

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“conforme as inspirações de vanguarda”. A realização da Semana disseminou uma

efervescência cultural e modernizadora que preparou o ambiente para transformações futuras.

A prosa e a poesia no modernismo se depararam com o passadismo de formas como o

Parnasianismo e o Simbolismo, enquanto o teatro ficou de fora, apesar da rica tradição da

Revista que ainda se fazia presente. Neyde Veneziano (1996, p. 70), ao tecer relações entre o

Teatro de Revista e o Movimento Modernista, suspeita que “se a Semana de Arte Moderna

tivesse se realizado no Rio de Janeiro, ou que, de forma inversa, se o Teatro de Revista fosse

igualmente expressivo em São Paulo, o teatro, naquela jornada abrasileirante, teria contado”.

Este cenário contribui para explicar o retardamento do impulso modernizador

principiar no teatro. Embora a reformulação do teatro, no Modernismo, tenha demorado mais

do que outras formas literárias, isso não quer dizer que os modernistas não demonstrassem

efetiva preocupação com os rumos da arte dramática, visto que, suas produções buscaram

interferir nesse cenário (LEVIN, 2013).

Dentre eles, destaca-se Antônio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário

de Andrade. O primeiro18, inserido na fase heroica do movimento19, contribuiu para o campo

crítico e teórico ao elencar vários problemas do teatro brasileiro como, por exemplo, o sistema

mercadológico da arte e a estrangeirização dos palcos; fatores que, para o autor, impediam a

renovação da arte dramática. Diante desse cenário, Antônio de Alcântara Machado propôs um

projeto de modernização para o teatro, que se pautava pela atualização estética e pela

valorização do popular. Depois de uma guinada crítica, passa a defender a Revista de Ano

como uma “tradição efetivamente nacional”, visto que representava os tipos brasileiros, e

assim “acreditava na possibilidade de a geração de 1922 criar um teatro nacional a partir da

rica matéria virgem, ainda inexplorada” (LEVIN, 2013, p. 25-6). Em síntese, a crítica de

Antônio de Alcântara Machado, pautada pela originalidade e pela nacionalidade, fomentou

aspectos do teatro modernista.

Todavia, antes de destacarmos o surgimento de um teatro modernista, deve-se

compreender que este não surgiu isoladamente ou desconectado do que vinha ocorrendo no

teatro brasileiro. Compreendemos que muito da dramaturgia ligada ao modernismo se deve às

tentativas de modernização empreendidas pós-Semana, por nomes como Renato Vianna,

18 Mais informações sobre o papel da crítica de Alcântara Machado. Cf. LEVIN, O. M. O teatro dos escritores

modernistas. In: FARIA, J. R. (dir.). História do teatro brasileiro, volume 2: do modernismo às tendências

contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2013, p. 21-42. 19 Definição empregada por Mário de Andrade ao reavaliar em 1942 a Semana de Arte Moderna (1922) e que

caracteriza a primeira fase do movimento modernista. ANDRADE, M. de. O Movimento Modernista. In:

______. Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Martins; Brasília, INL, 1972a, p. 231-255.

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Álvaro Moreyra e Flávio de Carvalho. Cada um buscou, a seu modo, empreender uma

alteração na dramaturgia brasileira, de modo a desprendê-la da “velha tipologia dramática”

(FERNANDES, 2013a, p. 43).

Em breve análise, Renato Vianna dedicou-se à formação de profissionais de teatro por

meio de sua atuação na Escola de Arte Dramática (Rio Grande do Sul) e, posteriormente, na

Escola Dramática Martins Pena (Rio de Janeiro). Sua atuação nesses espaços contribuiu para

disseminar a carência de uma atualização cênica na dramaturgia brasileira e para postular a

necessidade do trabalho de um diretor teatral, de modo a livrar o teatro de suas amarras.

Álvaro Moreyra, por meio do Teatro de Brinquedo (de 1927), contribuiu para a

modernização do teatro brasileiro, ao menos pelo alargamento de repertório, pela pesquisa dos

meios de produção teatral e, até mesmo, pela expansão do público (FERNANDES, 2013a). O

apuro crítico também foi defendido por Flávio de Carvalho em suas experiências; embora de

curta incursão na dramaturgia, discutiu a necessidade de formação de um público crítico e

ativo. Embora efêmeras, estas tentativas destacam-se por evidenciar a obsoleta cena teatral

brasileira de então.

As tentativas de modernização propostas pelos nomes citados acima realizaram uma

ruptura inicial no campo da linguagem, como também deram início a uma reflexão crítica, o

que terá efetividade no teatro modernista de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade.

Resumidamente, o teatro modernista une o caráter experimental à discussão crítica, como

também apresenta implicações resultantes da agitação cultural e do espírito inventivo

promulgados pela Semana.

Contudo, esse teatro se desenvolveu posteriormente, por volta dos anos 1930. O final

da década de 20 foi um período marcado por transformações econômicas e sociais decorrentes

da crise econômica mundial (e brasileira). Nesta época, o movimento modernista adentra sua

segunda fase, a fase pessimista. Ela objetiva, por meio da arte, olhar criticamente para as

incongruências sociais decorrentes desse período de mudança que se inicia em 1929.

Neste período, o teatro torna-se mais consciente de seu papel estético e político e, com

isso, busca unir dialeticamente os dois projetos do modernismo, pois um ataque a linguagem é

sempre um ataque ao mundo. Com isso, temos uma nova tentativa de nacionalização da

linguagem guiada por fontes populares e por uma refuncionalização da arte. De acordo com

Sérgio de Carvalho (2011, p. 01), o teatro desenvolvido pelo modernismo representa o

primeiro momento em que se observa a presença de um teatro engajado, de vertente crítica,

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entre nós, em que escritores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade realizam “um dos

mais avançados projetos de pesquisa de forma antiburguesa já tentado no país”.

Mário de Andrade e Oswald de Andrade, integrantes do Movimento Modernista,

dedicaram-se, de início, a modernizar a prosa e a poesia brasileira. E, posteriormente,

dirigiram o mesmo olhar inovador e criativo, aliado a uma perspectiva social e crítica, para o

teatro. Como resultado disso, temos o surgimento de peças como: O Rei da Vela (1933), O

Homem e o Cavalo (1934), A Morta (1937), de Oswald de Andrade, e Café (1933-1942), de

Mário de Andrade. Essas peças buscam dialogar com questões que envolvem a crença

religiosa, a desigualdade no plano social, a crise política e, com isso, evidenciar o

subdesenvolvimento do Brasil, país da periferia do capitalismo, que se modernizava

conservando estruturas arcaicas.

Os temas desenvolvidos pelos dois dramaturgos não se encaixam mais nas formas

predominantemente encenadas, isto é, nos dramas burgueses, nas comédias realistas, no riso

fácil. Eles inauguram uma dialética, ainda não vista no teatro, entre forma e conteúdo. São

obras que buscam desenvolver questões históricas por meio de uma concepção épica

anticapitalista, de maneira a evidenciar que a matéria histórica não se enquadra mais na forma

dramática, pois com o desenvolvimento do capitalismo esses ideais formais são questionados

e extrapolados. Entre outras questões, podemos dizer que, nelas, o indivíduo não é livre, mas

sim mercadoria ao vender sua força de trabalho; as sociedades não são autônomas e sim

problemáticas, berço de injustiças sociais. O próprio conceito de antropofagia artística deve

ser entendido como uma atualização das vanguardas para o lugar periférico do Brasil na

ordem capitalista, e a exposição disso como "espinafração", como sátira desabusada, aparece

materializada em O Rei da Vela, pela figura ímpar de Abelardo (no caso, tanto o I como o II).

Diante das incongruências históricas, o teatro necessita mostrar-se teatro, questionar o

objeto estético, formar um público crítico, dentre outros pontos. Numa análise circunstancial

das peças citadas acima, poderíamos compreendê-las como a articulação entre reformulação

estética, consciência criadora nacional e engajamento político.

O teatro modernista buscava esquivar-se do viés comercial e de formas consagradas,

recorrendo a recursos esteticamente modernos, já desenvolvidos no século XIX. Deste modo,

empreendem uma valorização de formas populares, curiosamente valorizadas pela tradição

cômica e musicada e desvalorizadas pela crítica do século XIX. Discordante da posição crítica

anterior, enxerga nessas formas populares e na absorção dessas “expressões autênticas” o

caminho para o desenvolvimento de um teatro nacional e moderno (LEVIN, 2013, p. 25).

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Todavia, o ganho de consciência crítica e ideológica dificultou a sua efetividade em

cena, visto que as peças modernistas abordaram momentos incisivos e pontuais em nossa

sociedade brasileira e, com isso, questionavam e problematizavam o governo operante. Por

exemplo, a peça-coral Café (1933-1942) e seus ideais revolucionários não seriam bem vistos

pela ditadura getulista. Ademais, sua virtualidade20 decorre, também, da história do teatro,

que desde o século XIX vem sendo marcada por um ambiente cultural que limitava as

tentativas de realizar peças que não fossem voltadas para o mercado teatral.

O teatro modernista é fruto desse contexto cultural restrito, e “não podemos perder de

vista que, àquela altura, nem tudo o que o papel aceitava, o teatro aceitava” (PERUCHI, 2016,

p. 39). Essas limitações justificam, de antemão, a não-efetividade da encenação de peças

desse teatro. Além disso, foi mais um fenômeno literário que teatral, pois a não-modernização

histórica brasileira impossibilitou a modernização estética do teatro modernista, assim como a

do teatro brasileiro. Contudo, sua importância na história do teatro se justifica, embora

afastado da ribalta, por assinalar o desenvolvimento de um teatro caracterizado por uma

preocupação crítica, social e política, que será retomado em outros momentos históricos.

Embora Mário de Andrade tenha produzido apenas a peça Café, esta não surgiu por

um mero impulso, mas como fruto de um primoroso e cuidadoso trabalho que se estendeu por

uma década (entre 1933 e 1942). Nesse período, buscou produzir artística e criticamente uma

obra dramática que explorasse uma matéria histórica brasileira. Mário de Andrade elaborou-a

conforme a matéria histórica ainda incandescente – a crise econômica e política tanto mundial

quanto brasileira –, mas tomando o cuidado de, com o lastro da alegoria, conseguir remeter

também a outras constelações históricas de crise e, com isso, ampliar as possibilidades de

atualização. Café se destaca por sua riqueza de assunto e de forma, sendo esta inovadora,

crítica, formalmente híbrida e engajada social e politicamente.

Com base no percurso histórico do teatro modernista, interessa-nos analisar como

Mário de Andrade, na construção de seu teatro, dialogou com vertentes: a) do Nacionalismo,

b) do Primitivismo, c) do Expressionismo e d) do Teatro Épico, e a contribuição destas

articulações na concepção da peça Café.

a) Nacionalismo

O teatro de Mário de Andrade beneficiou-se de sua ampla produção como pesquisador

crítico, escritor e cronista. Sua produção, de início, pautava-se por alguns aspectos, como: a

20 Termo postulado por Sérgio de Carvalho ao analisar a não-realização cênica das peças modernistas. In: Atitude

modernista no teatro brasileiro, 2011.

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ruptura formal da linguagem na construção literária; a reformulação do conceito nacionalista

desenvolvido pelos românticos, empenhada em sua crítica literária pela “cura de Peri”21

(BIRELLI, 2012, p. 25); interesse nacional, defendido pelo abrasileiramento da linguagem e

da cena; e o retorno às formas populares, pois, para alcançar a modernidade, era necessário

lançar-se ao Brasil do passado e do presente.

Segundo José Augusto Avancini (1998, p. 23), o sentimento de brasilidade acompanha

Mário de Andrade desde o início de suas produções, porque “crescera num momento histórico

marcado por discussões em torno do nacionalismo e da questão nacional”. Esse debate,

revivido desde a Proclamação da República, foi acentuado com a Primeira Guerra Mundial e

acirrado no centenário da Independência em 1922. Ainda conforme Avancini (1998, p. 94), a

“Semana não escapou ao clima e não deixou de ser uma resposta de parte dos jovens

intelectuais de então” sobre esta polêmica.

Mário de Andrade, ligado à questão nacional, buscou pesquisar manifestações

culturais ligadas à fontes populares e vertentes estéticas que também primavam por estes

pressupostos, dando destaque ao expressionismo alemão. Esta conjuntura determinou os

estudos andradianos, sendo estes correlacionados à regressão ao período colonial nas artes

plásticas, por meio do barroco de Aleijadinho22, às pesquisas etnográficas realizadas pelo

Brasil e à análise da condição social brasileira, tendo como objetivo inicial construir uma

poética marcada por temas nacionais.

Todavia, o trabalho com a matéria nacional corria o risco de ser tomado como um

discurso nacionalista, na acepção comum do termo, de ufanismo e exaltação patriótica. Como

retratar o nacional sem ser nacionalista, sem cair em regionalismos? Pois, segundo Gilda de

Mello e Souza (2008a, p. 344), à medida que o Nacionalismo tornava-se um programa

artístico “imperioso e pragmático”, ele cerceava o impulso criador dos escritores, isto é,

tirava-lhes a liberdade de abordar o Brasil sem necessariamente utilizar elementos e temas que

os localizassem geograficamente. Mário de Andrade desvencilhou-se desse problema ao

21 Sobre Mário como cronista consultar: BIRELLI, Beatriz Simonaio. A França nas crônicas de Mário de

Andrade: o nacional e o estrangeiro no período do Diário Nacional (1929-1932). Dissertação. Assis - SP, 2012. 22 Aleijadinho é considerado por Mário de Andrade, em 1930, “o maior gênio artístico” do Brasil, tido como

artista pré-histórico e primitivo de uma nova era. A partir do Barroco de Aleijadinho ele estuda as ligações entre

barroco – primitivismo – nacionalismo e expressionismo. Considerando este último a partir de suas fontes

populares e de seu caráter deformativo, atributos de nossa cultura e de nossa nacionalidade. Além disso, o

considera, de acordo com Lopes (2013, p. 13), a “tendência estética mais viva do momento; e a deformação

como categoria estética dominante da arte moderna”. Sobre o artista Aleijadinho, ver: ANDRADE, M. de.

Aleijadinho. In: ______. Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Cultura,

Ciência e Tecnologia, 1976, p. 205-207. Também AVANCINI, J. A. Expressão plástica e consciência nacional

na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998. Sobre o Expressionismo ver:

LOPES, V. C. F. Traços do expressionismo alemão em Mário de Andrade. Dissertação. USP, 2013.

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trazer para suas produções questões de interesse social, problematizando e criticando a

sociedade.

Mário pretendia falar do Brasil sem precisar necessariamente usar, para isto, assunto

nacional, ou seja, a forma expressa o Brasil e não tanto o conteúdo. Questão complexa quando

nos deparamos com a peça Café, visto que dificilmente se poderia pensar em tema mais

nacional; porém, de antemão, Mário defende, no texto Introdução23 (sobre o processo criativo

de Café) que o interesse da obra não está em falar apenas sobre o produto café, e que não

devemos ligar geograficamente o café ao sudeste paulista, o porto ao de Santos, a cidade à de

São Paulo, pois para o autor são meras casualidades históricas. O que deseja de fato é

trabalhar a universalidade da crise, que poderia se estender a inúmeros outros produtos-base

de uma economia e como esta repercute nos indivíduos, destacando por meio de uma forma

coletivista o que eles têm essencialmente de universal e humano. Conforme Marta Morais da

Costa (1988), foi “esta a base do pensamento que norteou Macunaíma, ‘o herói sem nenhum

caráter’ e sob esta ótica é que se deve entender Café”.

O projeto de nacionalismo defendido por Mário de Andrade pode ser encontrado

também em seu livro Ensaio sobre a música brasileira (1972b), além de muitas outras

produções. Nesse ensaio-manifesto24 sobre o nacionalismo na música, ele acaba por defender

objetivo análogo ao de Machado de Assis, isto é, de articular as produções brasileiras à

realidade nacional. Essa aproximação nos leva ao tópico seguinte.

b) Primitivismo

Para Mário de Andrade as relações entre arte e sociedade estavam ligadas a

valorização do Primitivismo, que era de ordem social, pois “toda arte socialmente primitiva

que nem a nossa, é arte social, tribal, religiosa, comemorativa. É arte de circunstância. É

interessada” (ANDRADE, 1972b, p. 18). Portanto, suas produções necessitavam compreender

as manifestações de nossa cultura primitiva para que assim alcançassem sua funcionalidade

social.

A arte primitiva foi objeto de estudo de Mário de Andrade em viagens que realizou a

Minas Gerais (1919), ao Norte (1927/8) e ao Nordeste (1929). Por meio delas investigou a

fundo o Brasil, suas manifestações artísticas e religiosas, bem como suas festas populares. A

partir disso, teve a oportunidade de dar continuidade, em campo, à sua pesquisa etnográfica,

23 ANDRADE, M. de. Introdução. São Paulo, 18 de dezembro de 1942. In: TONI, F. C. Café, uma ópera de

Mário de Andrade Estudo e edição anotada. (Livre-Docência) São Paulo: USP, 2004, 171-189p. 24 Termo utilizado por José Augusto Avancini (1998) ao argumentar sobre esta produção de Mário de Andrade.

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que abarcou o recolhimento de materiais folclóricos e populares como, por exemplo, a

música, a dança, a narratividade do contador de histórias, os costumes, as tradições, a língua

etc. A valorização do primitivo permeia suas obras por meio do vasto material recolhido em

suas viagens, como podemos notar em Macunaíma: um herói sem caráter e, também, em

Café, romance inacabado e em Café, peça-coral25.

Da peça-coral destacamos a presença de fontes primitivas através da narratividade do

contador de histórias e de ritmos populares e folclóricos, da dança dramática26, da embolada27

e da endeixa28. Mário de Andrade empreendeu uma valorização da música nacional por meio

da adaptação de uma forma que, embora aburguesada, serviu para expressar interesses

coletivos.

O dramaturgo viu como saída para uma renovada função social para o teatro a

exposição do coletivo e, em resposta à forma burguesa da ópera, escreve uma ópera-coral,

ópera-coletiva, uma peça-coral que se abre para expressões dos povos e do popular, através da

música, da fala, de provérbios, de jogos como o truco, etc.29 Café dá voz aos oprimidos de

maneira a questionar valores sociais, morais e políticos de uma sociedade, culminando

utopicamente na Revolução que cria uma nova conjuntura social.

c) Expressionismo

Mário de Andrade não se desligou totalmente da Europa, visto que suas obras

mantinham uma ligação inevitável com a cultura alemã30, que se justificava por vê-la como

recurso para o afastamento da arte clássica. O Expressionismo possibilitou a Mário de

25 Há dois materiais diversos sob o título Café. Um romance inacabado que foi publicado em 2015, em edição

comentada, e a peça-coral que nos serve de objeto. De princípio, podemos notar um diálogo entre o romance e a

peça pelos títulos homônimos, mas também por demais fatores que destacaremos mais adiante. 26 Termo criado por Mário de Andrade, e organizado em livro por Oneida Alvarenga (após a morte do autor)

com o nome de Danças Dramáticas do Brasil (1982), que representa números musicais cantados solo e em coro,

ora acompanhados por instrumentos, ou não, e por coreografias. São bailados, “providos de maior ou menor

entrecho dramático, textos, musicas e danças próprias”, marcados pela espontaneidade e flexibilidade de seu

caráter festivo e por serem, muito mais do que um evento de apreciação artística, um fenômeno popular

(ANDRADE, M., 1982, p. 23). 27 Com base no dicionário de música Houaiss, embolada é um “gênero musical originário do Nordeste brasileiro

[...]. Em sua simplicidade, não possui nenhuma norma quanto ao número e disposição dos versos, a melodia é

quase declamatória. [...] A letra é geralmente cômica, satírica ou descritiva”. Cf: Dicionário Houaiss ilustrado

[da] música popular brasileira. – Rio de Janeiro: Paracatu, 2006, p. 258. 28 De acordo com Flávia Camargo Toni (2004, p. 124), o termo musical endeixa pode também ser encontrado

como endecha, e abarca cantigas, melodias de lamentações; foi cultivado “na Península Ibérica durante o século

XV e tinha, em geral, sete sílabas por verso” e a “repetição de versos”. 29 Essas questões serão retomadas na análise da peça, no terceiro capítulo. 30 O primeiro contato de Mário de Andrade com a cultura alemã adveio da exposição de quadros expressionistas

de Anita Malfatti (1917), que ficou marcada pelo incentivo à renovação estética da arte brasileira. Segundo

Lopes (2013, p. 15), “as obras expostas e a aproximação dos amigos estimularam o aprofundamento intelectual

de Mário de Andrade na cultura alemã, especialmente no expressionismo”.

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Andrade o repensar da literatura e, posteriormente, do teatro brasileiro no século XX, os quais

ainda seguiam os passos e modelos de uma arte aburguesada, sem manifestações do popular.

Seu interesse pelo Expressionismo deve-se a sua atenção voltada para o homem, para a

sociedade, e não para a máquina, louvada pelos futuristas31.

Ele encontra nessa vertente uma alternativa humanista para as suas produções, pois o

expressionismo enxerga o mundo como expressão de uma subjetividade, ou seja, realiza a

deformação da realidade para exprimir de maneira subjetiva a natureza e o ser humano. Essa

volta subjetiva, no entanto, não resulta num fechamento solipsista, pois o ‘eu’ não é formado

autonomamente; ele está inserido numa dada sociedade, cuja cisão é sentida subjetivamente.

Essa é a vertente de um expressionismo social, nas palavras bem postas de Raymond

Williams (2011, p. 82). Vale a pena acompanhar a citação:

As duas direções decisivamente diferentes do que poderia ser agrupado

como a vanguarda, e por certo, de modo mais restrito, como o

expressionismo, podem ser vistas em duas declarações contrastantes

daqueles anos. Theodor Däubler escreveu em 1919: “O nosso tempo tem um

projeto grandioso: uma nova erupção da alma! O eu cria o mundo”. Um

pouco mais tarde, Piscator escreveu: “Não é mais o indivíduo, com o seu

destino privado e pessoal, o fator heroico do novo drama, mas o próprio

Tempo, o destino das massas”. É a partir dessas ênfases opostas que

podemos definir, dentro do drama e do teatro experimental, ambos vigorosos

e sobrepostos, as formas por fim distinguíveis do expressionismo “subjetivo”

e do expressionismo “social”. (WILLIAMS, 2011, p. 82)

Além disso, essa alternativa também se acentuou pela busca de uma marca nacional,

que demonstrou que o popular tanto em suas manifestações artísticas quanto na expressão do

cotidiano tinha espaço nas produções modernistas (PAULA, 2007). A construção de uma

identidade brasileira, em Mário de Andrade, decorre, resumidamente, do exame da cultura

alemã e da pesquisa etnográfica e folclórica brasileira, tudo isso permeado por um estudo das

formas estéticas à disposição e a sua utilização crítica.

Gilda de Mello e Souza (2008a) destaca que era de se imaginar que Mário, no

progresso de seu raciocínio, iria se aproximar do Expressionismo para assim elaborar o seu

conceito de Nacionalismo. Embora ambos tenham propostas paralelas, isto é:

31 O Futurismo corresponde ao movimento modernista lançado em 1909 por Marinetti (autor italiano) e que se

baseia numa concepção exasperadamente dinâmica da vida, toda voltada para o futuro, combatendo o culto do

passado e da tradição e o sentimentalismo; com isso, prega o amor das formas nítidas, concisas e velozes; é

nacionalista e antipacifista.

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A volta à realidade brasileira tinha por objetivo “destruir a europeização do

brasileiro educado”, para poder desentranhar os traços inconscientes e fatais

da nacionalidade; a do Expressionismo visava a “destruição de homem

clássico” (na conceituação de Hermann Bahr) e a valorização das

características que tinham se desenvolvido fora do âmbito de influência da

cultura mediterrânea. Nacionalismo e Expressionismo se empenhavam, por

conseguinte, na descoberta de um homem novo, atormentado, dividido,

alógico, deformador, cuja arte acolhia, como mais congeniais ao seu espírito,

as manifestações do gótico, do barroco, da arte primitiva e popular, em vez

das manifestações centradas no ideal da beleza e imitação, próprio da arte

clássica. (SOUZA, 2008a, p. 317-8)

Segundo Avancini (1998, p. 190), a cultura alemã revelou a Mário de Andrade a sua

“profunda ligação com o seu ambiente nacional”. A aproximação entre as duas culturas

“favoreceu o surgimento de uma modalidade de sentimento de brasilidade, que assumiu em

Mário de Andrade e em mais alguns modernistas uma conotação crítica, que foi se acentuando

com o tempo e a crescente politização do movimento em seus diversos grupos.” (AVANCINI,

1998, p. 190).

Essa ligação de Mário de Andrade ao Expressionismo é justificável, pois a Alemanha

tem, em sua formação social e política, uma peculiaridade que, inclusive, fez Pasta Jr. (2000)

aproximá-la do Brasil: ambos os países foram marcados por modernizações tardias, o que

resultou em atraso econômico, político e intelectual devido ao fato de não ter contado em sua

formação social com uma revolução burguesa, que permitiria sua solidificação nessas esferas.

Como resultado desse contexto socioeconômico, Brasil e Alemanha viveram

desenvolvimentos análogos, com nós e conflitos principais semelhantes: uma transição para o

capitalismo sem rupturas violentas e sem qualquer participação popular. A relação entre essas

circunstâncias culturais e esse fundo comum que se oculta entre os dois países é chamada, por

Pasta Jr., de afinidades eletivas. A arte não se abstém de analisar e expressar essas condições

históricas, por meio de um olhar crítico sobre as contradições sociais.

O encontro desse peculiar concurso de circunstâncias fere de imediato a

atenção de quem observa a situação brasileira. Este logo reconhece, aí, não

obstante as diferenças, coordenadas análogas àquelas que constituem o solo

histórico da própria experiência intelectual que lhe diz respeito de mais

perto. Sobre um fundo de fragmentação e descontinuidade dos esforços

produtivos, é inegável ao brasileiro, que se não ilude, o sentimento de uma

permanência perversa de situações arcaicas, que se ultrapassam sem que

sejam superadas. Nesse contexto, é central a experiência do deslocamento de

ideias socialmente avançadas, simultaneamente presentes e descabidas –

situação peculiar para a qual Roberto Schwarz encontrou a fórmula das

“ideias fora do lugar”. (PASTA JR., 2000, p. 24)

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Mário de Andrade, consciente de seu lugar como escritor, olha para a matéria histórica

brasileira e, num exame crítico e distanciado, percebe as incongruências das estruturas sociais,

que não são exclusivas ao Brasil. Nessa lógica, podemos analisar, brevemente, como esta

estrutura análoga possibilita o diálogo de Mário de Andrade com o expressionismo alemão e

com o expressionismo social.

Raymond Williams (2011) analisa o desenvolvimento do drama moderno por meio das

possibilidades naturalistas e expressionistas e, em síntese, evidencia a superação dialética da

primeira vertente pela segunda. Ao observar o expressionismo na forma do drama e do teatro

experimental, distingue duas tendências expressionistas, uma subjetiva e outra social, como

vimos. Dessas duas, a última nos fornece material para compreender os recursos

expressionistas utilizados por Mário de Andrade na peça-coral Café, como veremos.

Segundo Williams (2011), essa tendência social liga-se ao teatro de Piscator, Toller e,

posteriormente, a Brecht. Embora não se tenha indício de que Mário de Andrade leu Brecht

ou Piscator, não podemos dizer o mesmo de Toller. De acordo com Rosângela Asche de Paula

(2007), Mário de Andrade continha, em sua biblioteca, exemplares de Toller e recorreu ao

estudo deles para a compreensão do expressionismo alemão e da função social da arte. A

interlocução com Toller se incorporou às suas produções tanto epistolar (onde recomenda o

escritor aos amigos) quanto nos artigos críticos publicados no Diário Nacional32, além da

influência do expressionismo social e político de Toller em Café.

Iná Camargo Costa, no livro A hora do teatro épico no Brasil (1996), dá indícios dessa

possível correlação, visto que evidencia a carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira

(1929) na qual Mário expõe ao amigo seu projeto de escrever Café, e lhe faz sugestão de

leitura da obra de Ernst Toller. A autora analisa que essas duas referências:

[...] são indício de que se Mário não entrou em contato com a própria obra

brechtiana (não só a poética, como já indicou Raúl Antelo, mas a teórica e

teatral), pelo menos tomou conhecimento das tendências de que Brecht

participava: Ernst Toller foi figura importante na história do teatro épico

alemão, e Café, originalmente pensado como um romance descomunal,

resultou numa ópera que até hoje espera por um estudo à sua altura

(COSTA, 2016, p. 52).

32 No artigo Incompetência, de 30 de outubro de 1929, Mário de Andrade cita E. Toller: “Existe em geral nos

artistas uma incompetência formidável pra viver. Mesmo o que se entrega de corpo e alma a um desiderato

social, a uma função pragmática qualquer, vem um momento em que a incompetência o desvia pro seu hospício

legítimo, e Ernst Toller, preso político, cheio de ódios, cheio de ideais, cheio de interesses imediatos, se bota

cantando as taperas que foram fazer ninho na cela dele. É assim. Não tem dúvida que Toller pôs muito de

preocupações sociais no livro Andorinha, porém este não deixa de ser por isso uma inocente e graciosa evasão”.

In: ANDRADE, M. de. Táxis e crônicas no Diário Nacional; estabelecimento de texto, introdução e notas de

Têle Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 153.

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Com base na citação e na peça Café, podemos compreender uma interlocução desta

com a peça expressionista Massa-Homem, de Ernst Toller. Entre outras coisas, embora por

caminhos diversos, a dimensão de sonho de alguns quadros da peça de Toller pode ser

aproximada do terceiro ato da peça Café, em que se acompanha uma revolução popular

vencedora; também as personagens de Toller, que são construídas como tipos sociais no

contexto da revolução alemã (1918-1923), são em algum grau análogas às de Café, na qual

nenhuma tem nome, e apenas a Mãe tem fala individual – mas ela é alegoricamente vista

como a representação de séculos de opressão e humilhação, depois como alegoria da

revolução.

O diálogo com o expressionismo social e político contribui para que Mário de

Andrade pudesse realizar seu projeto de revolução estética e ideológica, e, além disso, de

formalizar um conteúdo histórico. Deste modo, o Expressionismo deságua na gênese da

criação de Mário de Andrade e podemos perceber a inserção desses recursos desde seus os

primeiros escritos33. Conforme Lopes (2013), essa inserção ocorre por três categorias

expressionistas: primitivismo, deformação e preocupação social. Todas estão presentes na

peça-coral Café, a primeira categoria por meio de elementos populares, como a música, a

narração e a dança dramática; a segunda, através da deformação da Câmara dos Deputados

aliada à farsa e à sátira e; por fim, o assunto histórico proveniente de um momento de crise,

além da revolução utópica.

d) Teatro Épico

A possibilidade de desenvolver artisticamente a matéria histórica brasileira é resultante

do primeiro contato de teatro modernista com o teatro épico, embora ainda frágil, pois não

consegue romper com os modelos majoritários. Café encontra no teatro épico recursos para

dar possibilidade ao diálogo entre forma literária e conteúdo social. Todavia, é importante

deixar claro que o épico a que nos referimos não é o Teatro Épico de Bertolt Brecht34, mas

uma contraposição ao teatro dramático e seu efeito ilusionista.

O épico, neste caso, está ligado à quebra da ilusão, ao teatro mostrar-se teatro, a arte e

a linguagem sendo expostas como produtos ideológicos. De acordo com T. Adorno, no texto

Posição do narrador no romance contemporâneo de 1954, a crise da linguagem ganha

33 De acordo com Paula (2007) desde a escrita do Prefácio interessantíssimo. 34 O estudo desse teatro será iniciado somente, por volta de 1950, quando os livros de Brecht começam a chegar

ao Brasil.

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expressão inicialmente na forma do romance contemporâneo, através da impossibilidade de se

narrar conforme a forma do romance tradicional – neutra e objetiva em um contexto histórico

em constante transformação econômica e social. Nesse impasse, a forma do romance

contemporâneo busca questionar a linguagem de modo a explodir com a instrumentalidade

típica do século XIX, e assim diminuir a distância estética. Esse recurso fez com que se

instalasse uma abertura reflexiva, possibilitando a dialética entre forma e conteúdo, bem como

a discussão sobre a função social da arte.

Um processo análogo ocorre com o teatro, por meio da criação de instâncias narrativas

que rompem com a forma do drama burguês. Este exige o conflito cerrado entre personagens

psicologicamente bem construídos, em torno dos quais surge um conflito que será

desenvolvido diante dos espectadores. O teatro épico exige que se leve em conta o contexto

histórico e social, os conflitos não são resolvidos (pois não dependem de subjetividades, mas

de situações complexas do âmbito da vida política e social), e com isso o diálogo perde a

centralidade, cedendo espaço para o elemento narrativo, objetificador. Tanto a narrativa como

o teatro, cada um a seu modo, expressam a crise do mundo burguês após a primeira guerra

mundial – e a lista poderia ser ampliada para a poesia, a música, a pintura, pois todas as artes

se relacionam com a vida social.

Esse percurso é de extrema importância para a modernização do teatro brasileiro. Vê-

se que não se trata apenas de gêneros da moda que serão copiados no Brasil (embora essa

dimensão sempre exista), mas também desenvolvimentos da arte em determinados contextos

sociais. Mário de Andrade explica, em texto introdutório à peça-coral Café, os motivos que o

levaram a buscar a forma coral, contra o culto da individualidade da Ópera (que defende o

mundo burguês, de acordo com ele), e percebemos que havia já maturação suficiente para a

proposta teatral inovadora que ele fez.

Mário de Andrade recorre ao épico, assim como ao expressionismo, para romper com

a predominância de uma arte burguesa e trazer para suas produções o sentimento de

humanidade e de utilidade da arte. Por meio dessas vertentes, coloca em pauta manifestações

populares e problemas sociais e históricos pelo olhar dos desvalidos, isto é, pela fala, canto,

dança e música, de maneira a questionar valores incompatíveis cantados e afirmados pela

nossa intelectualidade.

Na contramão de seu tempo, perante uma intelectualidade que ainda se deliciava em

repisar modelos burgueses europeus, Mário de Andrade preocupa-se em valorizar a cultura

oriunda de formas populares, relegadas ao esquecimento, pois estas poderiam “desaparecer à

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medida que o capitalismo avançava” (FRAGELLI, 2013, p. 86). O interessante é que Mário

de Andrade realiza esse feito através da utilização inovadora da ópera, gênero que se

transformou “numa exclusiva arma de classe dominante”. Todavia, procurou observar a ópera

pelo seu “valor estético”, pela sua “importância social” e pela sua funcionalidade; para

retomar essa tradição, ele rompe com o aburguesamento desta forma ao expressar o coletivo e

a matéria histórica brasileira (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 166).

O teatro modernista, ligado à tradição da comédia, foi responsável por uma renovação

formal crítica e consciente, ainda pouco estudada no teatro brasileiro. Escritores como Mário

de Andrade estavam conscientes da necessidade da discussão sobre aposição de escritor, da

arte como fator estético, da crise da linguagem e da função social da arte. Além disso, estava

aberto a vertentes estéticas inovadoras, que buscavam problematizar a arte como mercadoria e

encontrar caminhos para a modernização do teatro. Mário de Andrade não acreditava que a

modernização da arte brasileira viria pela mera cópia de outras formas, mas mediante ao

diálogo e a assimilação ponderada de outras ideias e culturas, pois, o objetivo principal é a

realidade brasileira, visto que somos outra terra, outro povo, outros problemas.

Segundo João Luiz Lafetá (2000, p. 153), a obra de Mário foi o esforço mais bem

sucedida da segunda fase do Modernismo, que se inicia nos anos 30, “compondo na mesma

linha a revolução estética e ideológica, a renovação dos procedimentos literários e a

redescoberta do país, a linguagem da vanguarda e a formação de uma literatura nacional”. A

crescente consciência de seu país possibilitou a Mário de Andrade formar sua crítica

antiburguesa. Nesse sentido, temos um abrasileiramento da cena por meio do popular,

ocorrência que se tornaria uma das principais conquistas do teatro moderno (LEVIN, 2013).

Em síntese, a peça-coral Café pode ser entendida como resultado do caráter inovador

do teatro modernista e, por ser uma das últimas produções de Mário de Andrade, ela é,

certamente, uma reprodução de diálogos35 muito produtivos com o século XIX, com o

expressionismo alemão, como teatro cantado e sua paródia da ópera, com formas populares

como a música, a dança dramática e a narrativa, com o primitivismo e com a narrativa épica.

A materialização desses diálogos, assim como a inserção do épico e de sua perspectiva

anticapitalista, podem ser compreendidos como a procura por novos caminhos para a

modernização do teatro brasileiro. Embora esta não tenha se concretizado com o modernismo,

ela se efetivou no capítulo seguinte dessa história.

35 Assim como as obras: Macunaíma, Paulicéia Desvairada, A Escrava que não é Isaura, Clã do Jabuti,

Losango Caqui, Amor, verbo intransitivo, etc. Já averiguadas por pesquisadores, como Paula (2007) e Lopes

(2013).

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2.2 O papel de Jorge Andrade para a modernização do Teatro Brasileiro

Diferentemente da dramaturgia de Mário de Andrade, a de Jorge Andrade não

desenvolve relações diretas com alguma tradição do século XIX, muito embora estabeleça

relações críticas com o realismo. Em contrapartida, apropria-se de questões provenientes do

moderno teatro europeu, isto é, o naturalismo, o realismo psicológico, o expressionismo, o

teatro épico, bem como está localizada no contexto da modernização do teatro brasileiro, que

começou a ser empreendida por grupos de teatro amador.

Antes de destacarmos a importância de Jorge Andrade para o Teatro Brasileiro é

necessário compreendermos o cenário teatral que se formou depois do Modernismo,

retomando algumas linhas apresentadas nas páginas anteriores. O período em destaque é

proveniente do momento histórico teatral entre Mário de Andrade e Jorge Andrade, isto é, a

década de 1940. Essa recuperação histórica é relevante na medida em que podemos notar as

transformações posteriores ocorridas no Teatro Brasileiro, assim como o desenvolvimento das

sementes lançadas pelo Modernismo. Houve um processo marcado por algumas tentativas de

modernização que, enfim, chegaram a cabo com a formação de alguns grupos teatrais

amadores e, logo depois, profissionais, momento em que podemos falar em uma formação do

teatro nacional.

No final dos anos 1950, havia desde escolas de teatro (como a EAD) quanto uma série

de grupos como o TBC, TMDC, Arena, bem como um público que frequentava esses espaços.

A peça de Jorge Andrade que estudaremos se encontra um pouco antes da consolidação dessa

formação, que está intimamente ligada à modernização do teatro brasileiro. Tanto é um

processo amplo e diversificado que a crítica não tem unanimidade em dizer qual o momento

que marca em definitivo a modernidade do teatro brasileiro: com a encenação de Vestido de

Noiva, em 1943, pelo grupo Os comediantes dirigidos por Ziembinski (Magaldi), ou com a

criação do TBC, em 1948, ou com a encenação de nossa primeira obra-prima, A moratória,

em 1955, pelo TMDC (a julgar por Gilda de Mello e Souza). Essa dificuldade não indica a

falta de qualidade da crítica, pelo contrário: ela é expressão da riqueza desse momento

histórico para o teatro brasileiro.

O desejo de romper com os modelos ultrapassados e de modernizar-se começa nas

décadas de 1920/1930 a germinar devido às transformações da sociedade brasileira com a

queda da economia rural, o crescimento das cidades, a industrialização, a formação de

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intelectuais atentos às alterações no âmbito social, etc. Ao compreender que a arte é

proveniente de matéria social e histórica, compreendemos que essas transformações

repercutiram no campo artístico. Fernandes (2013a), ao olhar em retrospecto a formação

teatral brasileira, afirma que:

[...] a pré-modernização teatral brasileira afigura-se-nos como um longo

processo, cheio de percalços e descaminhos. Se não teve a homogeneidade

de um programa objetivo e certeiro, foi, mais que tudo, o reflexo da própria

caminhada do país numa etapa histórica importante, qual seja, a da

sedimentação da tradição herdada do século XIX às vésperas das grandes

mudanças geradas pelas transformações econômicas, políticas, sociais e

culturais do século XX. (FERNANDES, 2013a, p. 56)

No final dos anos 30, o teatro é marcado pelo surgimento de grupos amadores, os

quais buscavam a modernização do repertório e da forma de se fazer teatro e, segundo

Brandão (2013, p, 83), foram responsáveis pelo “primeiro gesto moderno” no teatro

brasileiro, o que não ocorreu por acaso. Os primeiros passos foram dados por Renato Viana,

Álvaro Moreyra e Flávio de Camargo; um pouco adiante, as tentativas de modernização

difundidas pelo teatro modernista, em especial Mário de Andrade e Oswald de Andrade,

foram tateantes – até porque não foram sequer encenadas. Nos anos finais da década de 30,

surgem grupos amadores como o Teatro do Estudante do Brasil (TEB, 1938-1952), de

Paschoal Carlos Magno, Os Comediantes (1938-1947), o Teatro do Estudante de Pernambuco

(TEP, 1940-1952), mais tarde o Grupo de Teatro Experimental (GTE, 1942-1948), de Alfredo

Mesquita, e o Grupo Universitário de Teatro (GUT, 1943-1947), do qual fazia parte Décio de

Almeida Prado, o Teatro Experimental do Negro (TEN, 1944-1961), que aos poucos foram

mudando o cenário teatral brasileiro, com destaque para os Estados do Rio de Janeiro, São

Paulo e Pernambuco.

Os grupos amadores se contrapunham ao modelo tradicional do teatro brasileiro então

dominante, em torno da figura do primeiro ator, com enredos simples, feitos à medida para o

brilho das estrelas principais. Entre os nomes mais importantes desse teatro estão Procópio

Ferreira e Jayme Costa, para citar apenas dois. Eles não se atreviam a montar os nomes do

teatro moderno ocidental, que não cabiam nessa fórmula adocicada. Foi apenas com a

chegada dos grupos amadores que o quadro começou a mudar. Evidentemente foi de início

tímida a mudança, mas aos poucos ela se impôs.

Segundo Iná Camargo Costa (1996, p. 37), o teatro brasileiro “só veio a conhecer de

modo sistemático o sopro dos ventos modernistas no Brasil durante e após a Segunda Guerra

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Mundial”. Em virtude disso, segundo ela, para dramaturgos como Nelson Rodrigues, Abílio

Pereira de Almeida e Jorge Andrade, “a forma do drama – cuja crise assinala o início do

modernismo no teatro europeu – apareceu [...] como uma espécie de ideal a ser realizado”. No

caso de Jorge Andrade, a mera aproximação já o fará questionar o drama em seus primeiros

trabalhos.

A modernização, mesmo que literária, do teatro modernista começa por volta de 1940

a ter efetividade nos palcos com grupos de teatro amador. Todavia, o movimento amador

seguia rumos contrários ao sistema capitalista do mercado teatral, isto é, fazia teatro por

interesses próprios e desligados da lógica mercantil, fato que possibilitou a “disseminação das

referências do teatro moderno no universo amador” (BRANDÃO, 2013, p. 84). Sua

desvinculação do intuito comercial possibilita a montagem de autores ainda desconhecidos

nos palcos brasileiros como Shakespeare, Racine, Gil Vicente, Camões, Pirandello, Molière,

Musset, Maeterlinck, Eugene O’Neill, Ibsen, dentre inúmeros outros, além da encenação de

dramaturgos brasileiros, dentre eles Martins Pena, Gonçalves Dias e Nelson Rodrigues

(FERNANDES, 2013b).

Os grupos amadores empreendem também uma valorização da dramaturgia nacional.

Dramaturgia que buscava se espelhar no moderno teatro europeu, de modo a explorar

maneiras distintas de se fazer teatro e de se afastar do que permeava os palcos brasileiros.

Segundo Fernandes (2013b), o amadorismo emerge da aspiração de renovação do teatro

brasileiro e do desprendimento do teatro em vigência, isto é, comercial, calcado no

protagonismo, na oratória, na fala carregada de sotaque europeu, ainda preso ao ponto36,

dentre outros aspectos.

Surge assim a necessidade de repensar a encenação e de recorrer a um repertório

melhor acabado. De acordo com Fernandes (2013b, p. 57), o “amadorismo como forma de

teatro alternativo, com preocupações artísticas e nada comerciais, surge nesse contexto e

constrói as bases sobre as quais se edificará a nossa modernidade teatral”.

Todavia, não nos deteremos, especificamente, em estudar os grupos amadores37, mas

em enaltecer as renovações perpetradas por estes e os episódios históricos significativos desse

período. Com isso podemos acompanhar o desenvolvimento do teatro moderno e o lugar de

36 Caixa de ressonância que ficava no palco onde uma pessoa, invisível e inaudível ao público, podia sussurrar as

falas aos atores no palco durante a apresentação, de modo que estes não precisassem decorar o texto. 37 Para um estudo detalhado dos grupos, Cf. : DORIA, G. A. Moderno teatro brasileiro. Crônica de suas raízes.

Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Teatro, 1975. CAFEZEIRO, E.; GADELHA, C. História do teatro

brasileiro: um percurso de Anchieta a Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. Também é útil o

ensaio de: FERNANDES, N. Os grupos amadores. In: FARIA, J. R. (dir.). História do teatro brasileiro, volume

2: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2013b, 57-80p.

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Jorge Andrade nesse cenário. Dentre muitos outros, destacaremos a criação da Revista Clima

e sua relevância para o pensamento crítico teatral, sob o cuidado de Décio de Almeida Prado;

a passagem do amadorismo para a profissionalização com a criação do Teatro Brasileiro de

Comédia (TBC) e da Escola de Arte Dramática (EAD), ambientes em que transitou Jorge

Andrade; por fim, mas não mesmo importante, a companhia de Teatro Maria Della Costa,

considerada como grande adversária pelo TBC, companhia em que estreia A moratória. Para

alguns, o TMDC chega a superar o modelo em alguns pontos, como na valorização de uma

dramaturgia nacional.

De princípio, reconhecemos o importante papel realizado pelos grupos amadores para

o Teatro Brasileiro e para a sua modernização pelo surgimento da figura do diretor como

responsável pelo espetáculo, pelo fim da utilização do ponto, pela renovação cênica, pela

ampliação do repertório, pela recepção do moderno teatro europeu, pela valorização dos

ofícios teatrais, pela expansão do público-alvo, pela incorporação efetiva do falar brasileiro

nos espetáculos38, pela importância da seleção de repertório e do fazer artístico, pela

incorporação de assuntos nacionais, pelo interesse por questões sociais, culturais e populares,

pela reflexão teatral, pela valorização da dramaturgia nacional, dentre outras questões. Pelo

simples elenco dos tópicos já se vê que não foi de pouca monta o trabalho desses grupos.

Um exemplo da valorização da dramaturgia nacional ocorre com a encenação da peça

Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, pelo grupo amador Os Comediantes, em 1943. O

interesse do grupo em distanciar-se do que estava sendo encenado e aproximar-se do teatro

moderno europeu viu-se auxiliado pela chegada do diretor polonês Zygmunt Ziembinski ao

Brasil e pelas inovações do texto teatral de Nelson Rodrigues, mesclando expressionismo e

realismo. Segundo Fernandes (2013b), a peça de Nelson Rodrigues transformou-se em um:

[...] marco fundamental tanto na trajetória de Os Comediantes quanto na

própria história do teatro brasileiro: nosso primeiro espetáculo

verdadeiramente moderno, em termos de concepção e realização, com texto

brasileiro também moderno. A direção de Ziembinski, o cenário de Santa

Rosa, a iluminação, o bom desempenho do elenco, tudo contribuiu para o

enorme sucesso que foi a representação da peça no Teatro Municipal do Rio

de Janeiro. O espetáculo foi ovacionado, comentado e discutido sob todos os

aspectos: depois dele, o teatro brasileiro não foi mais o mesmo.

(FERNANDES, 2013b, p. 66)

38 Em contraponto com o que ainda ocorria em cena: a fala carregada de sotaque europeu, quando não calcada no

idioma de origem da peça.

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A articulação da dramaturgia de Nelson Rodrigues à encenação de Ziembinski

transformou-se em um marco histórico no teatro brasileiro, pois o que estava surgindo era

completamente novo na cena teatral brasileira. Em 1948, o TEB (Teatro do Estudante do

Brasil) encena, com enorme sucesso, Hamlet, protagonizado por Sérgio Cardoso, outro

exemplo da importância dos grupos amadores para a modernização do nosso teatro.

Esse contexto de modernização da dramaturgia brasileira iniciada nos anos 1940 segue

seu percurso nos anos 50, por meio do surgimento de grupos profissionais como o Teatro

Brasileiro de Comédia (TBC, 1948), o Teatro Maria Della Costa (primeiro TPA, em 1948,

muda para TMDC, 1954) e da Escola de Arte Dramática (EAD, 1948). Eles possibilitam

inovações e encenações de peças ainda não empreendidas na cena teatral brasileira devido ao

nível de dificuldade que apresentavam como, por exemplo, Ibsen, Arthur Miller, o que ocorre

graças à formação significativa de profissionais de teatro.

O sucesso de Vestido de Noiva mostrara que havia público para esse teatro, o que

incentivou empreendedores como Franco Zampari a atuar no mercado, criando o TBC. Em

um primeiro momento, o TBC encenava as peças dos grupos amadores como o GUT e o GTE

e, aos poucos, foi contratando profissionais de todas as áreas ligadas ás artes cênicas, como

diretores, atores, cenógrafos, iluminadores, entre outros. Esse teatro só se estabelece porque

tem um significativo mercado da burguesia ascendente em São Paulo. Mas esse teatro

profissional é em tudo diverso dos empreendimentos anteriores, bastante ultrapassados. Foi

preciso passar por um forte movimento amador para que se constituísse um público para esse

teatro moderno.

Com esse quadro estabelecido é possível realizar a guinada rumo às outras

possibilidades, mais antenadas com a representação de questões de outros grupos sociais,

especialmente das classes baixas. Ou seja, o TBC e os grupos com estrutura semelhante

conseguiram amadurecer o nosso teatro moderno, mas ele ainda estava bastante preso à

replicação das peças de maior apelo e sucesso internacional. As nacionais, quando tinham

espaço, precisavam se adaptar ao gosto desse mercado. Iná Camargo Costa mostra, em

Panorama do rio vermelho (2001), livro sobre o teatro de esquerda norte-americano na

primeira metade do século XX, que os textos vinham despidos das questões dos contextos

históricos em que foram criados. Será preciso algum tempo até que uma visada do Brasil em

perspectiva crítica voltasse ao primeiro plano. O marco de consolidação desse projeto é o

Teatro de Arena (1953-1971) e o teatro do Centro Popular de Cultura (CPC, 1961-1964), por

dramaturgos como Augusto Boal, Vaninha, Gianfrancesco Guarnieri e Chico de Assis. Isso

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merece explicação: a partir da encenação de Eles não usam Black-tie, em 1958, o Arena inicia

um Seminário de Dramaturgia que produzirá muitas peças nessa perspectiva reflexiva sobre o

Brasil e sobre o teatro, numa estética que se entende também política.

O Arena ainda tinha um modo de produção colaborativo, com discussão sobre

encenação, dramaturgia, história do teatro, entre outras coisas, o que garante o seu lugar

especial nesse processo de acumulação crítica que vem das Revistas de Ano e da Comédia de

Costumes, passa pela renovação dos grupos amadores, pela modernização e

profissionalização do TBC e, daí, com isso na bagagem, volta-se para o Brasil em um novo

modo de trabalho. De certa maneira, foi preciso todo esse percurso para que peças de teatro

épico como Café pudessem ser concebidas, lidas, ensaiadas, encontrasse um palco e um

público, e daí ganhasse vida cênica. Ou seja, na época de Café não havia atores, diretores,

espaço teatral e nem mesmo público para esse teatro. Para amadurecer esse projeto foi preciso

todo esse tempo e trabalho, mas se vê que não foi em vão; os modernistas têm o seu quinhão

nesse projeto.

Interessa mais ainda, para essa dissertação, voltar alguns anos antes do Black-tie e

perceber que muitos consideram a encenação de A moratória, pelo TMDC, em 1955, como

um ponto de partida para o último passo desse projeto, com o que concordamos. No que segue

fazemos um percurso até Jorge Andrade, mas não chegaremos ao Arena ou ao CPC por

estarem fora do escopo temporal dessa dissertação.

Nesse sentido, deve-se notar que a peça A moratória, escrita em1954 e com estreia em

1955, Jorge Andrade não realiza completamente o projeto meramente comercial que se

esperaria dele, mais um indício de ter funcionado como ponte entre esses dois projetos. A

dramaturgia que ele tinha como referência nesses primeiros anos (Arthur Miller e Tennessee

Williams, por exemplo) também se situa entre o realismo psicológico subjetivo e o

expressionismo social do qual falamos faz pouco. Isso faz com que a peça possa ser

confundida com um drama tradicional, mas nunca limitado a isso. Procuraremos mostrar essa

posição contraditória – no bom sentido dialético do termo – da dramaturgia de Jorge Andrade.

Adiantando um pouco, iremos discutir como o plano épico (histórico, do nível da luta de

classes e da mudança histórica) confere perspectiva ao plano subjetivo dos personagens,

superando o drama burguês – e, para isso, passando por ele.

Os episódios históricos que contribuíram para a modernização do teatro brasileiro

formam muitos, em diversas regiões, e não é possível para os limites dessa pesquisa estudar

todos a fundo. Por delimitação de análise, enfocaremos determinados eventos no âmbito

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teatral paulistano, para assim entender a importância desses episódios para a inserção de Jorge

Andrade nesse ambiente teatral e na dramaturgia brasileira.

No início do século XX, a cidade de São Paulo torna-se a maior economia brasileira,

devido à produção cafeeira, sucedida pelo avanço da industrialização e da urbanização. Com

isso, as estruturas sociais paulistanas passam por crescente transformação. Todavia, esse

centro irradiador de modernizações apresentava-se atrasado no campo artístico. Para formar

um status de grande centro, deveria dispor de ideias, de cultura e de arte (BRANDÃO, 2013).

O projeto da revista Clima contribuiu para esse desenvolvimento, ao proporcionar um

espaço fértil para pensar o desenvolvimento cultural e a modernização da cultura na capital

paulista. A revista contou com a participação de inúmeros intelectuais da época, dentre eles

Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes

Machado, Décio de Almeida Prado, entre outros. Esse último se destaca pela sua larga

contribuição no campo do teatro, seção em que atuava como coordenador. Ele desenvolveu

seu pensamento crítico sobre “os meios e modos de se alcançar um teatro diferenciado em

relação àquele praticado pelo profissionalismo brasileiro” (FERNANDES, 2013b, p. 69).

Curiosamente, esta revista tinha como patrono intelectual Mário de Andrade, escolha que

corrobora a importância desse modernista para a literatura e para o teatro brasileiro

(ARANTES, 2008).

Mas a efetividade da modernização do teatro brasileiro carecia, dentre outras coisas,

da criação de um espaço dedicado à formação de artistas para o teatro e para as representações

dos grupos amadores. Tendo isso em mente, Alfredo Mesquita (do GTE) desenha seu novo

projeto, a Escola de Arte Dramática. Criada em 1948, a EAD nasceu com o propósito de

preencher uma lacuna de formação para profissionais nas áreas de direção, dramaturgia e

atuação (VARGAS, 2013).

A criação da EAD surge em um período no qual “novas carreiras passaram a ser

valorizadas diante de uma crescente urbanização, que exigia, entre outras coisas, novos tipos

de profissionais, como dramaturgo, ator, diretor, entre outros, formados em bancos de escola”

(ARANTES, 2008, p. 35). Seu projeto deformação de profissionais de teatro se pautava pelo

apuro técnico e pela atitude de reflexão sobre as formas teatrais, por uma dramaturgia voltada

para a realidade local e por novos caminhos para o teatro.

O projeto de formação da EAD foi muito propício por conta da fundação do Teatro

Brasileiro de Comédia (TBC), no mesmo ano, pelo empresário Franco Zampari. Embora as

propostas dos dois projetos sejam muito distintas, eles estavam juntos nesse processo de

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modernização e, em muitos casos, os estudantes da EAD estavam à vontade com os diretores

e autores do TBC, o que fazia com que muitos entrassem no elenco do grupo profissional.

Armando Sérgio da Silva fez um estudo comparativo no qual mostra que em mais de 30

encenações, o TBC e a EAD usaram os mesmos autores em suas peças39.

O que moveu seu fundador e diretor Alfredo Mesquita foi a ideia de que para

iniciar e dar continuidade à formação de um novo teatro era necessário que

surgissem novos atores, formados dentro de uma disciplina de trabalho, de

uma ética, e de uma rígida formação especializada. Esses atores deveriam

estar aptos a enfrentar repertório diversificado, de nível mais alto, exigindo

novas técnicas e visões ampliadas do fenômeno teatral. (VARGAS, 2013, p.

110)

Para formar o quadro de professores da EAD, Alfredo Mesquita recorreu à

profissionais de formações distintas, de modo a aliar as propostas inovadoras dos anos 1940 à

importância da figura do diretor. Com isso, pretendia aprimorar as técnicas teatrais

(VARGAS, 2013). Será nessa escola que se dará a formação de Jorge Andrade – que, embora

ingressasse para a carreira de ator, descobriu seu talento no campo da dramaturgia.

A origem do TBC (1948), em breve resumo40, advém da proposta do homem da

indústria Franco Zampari aos grupos amadores de São Paulo de criar um teatro, no qual

poderiam encenar suas peças, devido à falta de local para realizarem seus espetáculos. Da

parceria firmada temos o surgimento do TBC, um teatro luxuoso e amplo. Todavia, esse

espaço não combina com a realidade vivenciada pelos grupos amadores. Logo Zampari irá

concentrar suas forças em um projeto particular: criar o seu próprio teatro profissional. De

acordo com Brandão (2013, p. 88), o nome escolhido por Zampari já sintetizava seu “projeto

de poder”. Deixando de lado os interesses de seu criador, convém destacar a importância do

TBC na evolução do teatro brasileiro, visto que encaminhou o teatro amador à

profissionalização e “se tornou um polo de produção de teatro em moldes inéditos na história

do país e, em tais condições, foi influência decisiva para tudo o que acontecia a sua volta e na

posteridade” (BRANDÃO, 2013, p. 89).

O teatro profissional herdou, por assim dizer, as experiências amadoras dos grupos que

se juntaram para formar o TBC, a saber o Grupo de Teatro Experimental (GTE) e o Grupo

Universitário de Teatro (GUT), que trilhavam caminhos alternativos ao seguido pelo “velho

39 Cf., a esse respeito, de Armando Sérgio da Silva, o livro Uma oficina de atores: a Escola de Arte Dramática de

Alfredo Mesquita, p. 225. São Paulo: Edusp, 1989. 40 Mais informações sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) Cf.: GUZIK, A. TBC: crônica de um sonho. O

Teatro Brasileiro de Comédia – 1948-1964. Editora Perspectiva, São Paulo, 1986.

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teatro profissional”. Aos poucos, esse teatro absorveu elementos de uma nova forma de se

fazer teatro. Um caminho foi trazer diretores estrangeiros para o Brasil, característica que

seria a marca do TBC. Além disso, criou a oportunidade de se formarem ali diretores

nacionais, fato que colaborou para a modernização do teatro brasileiro. De tal forma, o TBC

instaurou:

[...] um conceito de teatro como carpintaria, artesanato e requinte, formou

profissionais de diversas especializações teatrais (e não por acaso abrigou

em seu prédio a Escola de Arte Dramática fundada por Alfredo Mesquita, a

primeira escola de teatro moderna do país), lançou cenógrafos, diretores,

figurinistas, formou a primeira geração de diretores nacionais, dignificou a

profissão no teatro a partir de condições trabalhistas decentes. (BRANDÃO,

2013, p. 90)41

Embora as contribuições do Teatro Brasileiro de Comédia para a modernização do

teatro brasileiro sejam notáveis e inquestionáveis, esse teatro preocupou-se em nos colocar à

altura do teatro europeu e, com isso, acabou por afastar-se da realidade brasileira. Mais do que

isso, a modernização tinha como perspectiva a produção de um teatro para a burguesia

paulista que queria produtos análogos aos que sabia estarem em cartaz nesses centros de

destaque. Segundo Catarina Sant’Anna (1997, p. 200), foi à negligência do TBC em

“abrasileirar o teatro” que o levou “a perder terreno para as novas companhias concorrentes,

às quais coube dar prosseguimento à evolução do processo: procurar retratar a realidade

brasileira no palco”.

A valorização da brasilidade e de uma dramaturgia nacional demorou a subir aos

palcos do TBC. Curiosamente, é com a peça Pedreira das Almas (escrita em 1957, encenada

em 1958), de Jorge Andrade, no final dos anos 1950, que os tebecistas buscam sanar esse

déficit. A peça é do mesmo ano de Eles não usam Black-tie, no Arena. Segundo Arantes

(2008, p. 65), a encenação da peça, em comemoração aos dez anos da companhia teatral,

marcava para Alfredo Mesquita uma nova fase dessa casa de espetáculos, a “valorização da

dramaturgia nacional no repertório do TBC”. Mas, ainda segundo Arantes (Idem, p. 230), “a

consolidação de Jorge Andrade no TBC, com sua dramaturgia que valoriza as raízes do

homem brasileiro, só ocorrerá com a chegada da década de 1960, quando várias de suas peças

são encenadas, com sucesso de público”.

41 Sobre a Escola de Arte Dramática Cf., o material organizado pela Secretaria de Estado da Cultura de São

Paulo e pela Fundação Padre Anchieta: EAD – Escola de Arte Dramática de 1948 a 1968: Alfredo Mesquita. São

Paulo: Secretaria de Estado da Cultura. Fundação Padre Anchieta, 1985.

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Anos antes, no entanto, o teatro de Jorge Andrade já subia à cena, em 195542, pelo

Teatro Maria Della Costa43, com A moratória (1954), objeto de análise dessa dissertação. A

história da companhia teatral, fundada por Sandro Polônio e Maria Della Costa e que acaba

por receber o nome da atriz, começa muito antes da construção do teatro em São Paulo, com o

Teatro Popular de Arte (TPA), grupo fundado por Sandro Polônio em 1948, ainda no Rio de

Janeiro. O TPA tinha como objetivo “a profissionalização do novo, do teatro moderno, sob a

aura de continuidade de Os comediantes” (BRANDÃO, 2009, p. 177). O núcleo de origem do

grupo contava com Itália Fausta, Maria Della Costa, Ziembinski e Nelson Rodrigues (Idem,

2009).

A busca pelo profissionalismo fez com que grupos do Rio de Janeiro migrassem para

São Paulo, como é o caso do TPA, que na capital paulista teve projeção e estabilidade. Este

teatro é considerado, por Tania Brandão (2009, p. 216), o precursor do teatro moderno, visto

que “levou à inserção do sonho moderno no princípio de realidade”. Em São Paulo, o TPA é

incorporado a Companhia Maria Della Costa.

Não existiu nenhuma outra empresa teatral no Brasil com densidade

comparável à Companhia Maria Della Costa, um nome novo que suplantará

rapidamente o original Teatro Popular de Arte. Mas a vertiginosa ascensão

foi concretizada, na verdade, em São Paulo: o Rio de Janeiro fora uma

iniciação e uma impossibilidade, era a moderna capital de um velho modo de

cena. (BRANDÃO, 2009, p. 222)

A construção do Teatro Maria Della Costa na cidade de São Paulo ocorreu devido à

expansão da construção civil e de estabelecimentos teatrais. Embora tenham surgido

empreendimentos teatrais em São Paulo no final dos anos 1940 e na década seguinte, é

importante destacar que estes foram patrocinados pela burguesia (como é o caso do TBC) e

por particulares (caso do TMDC), não havendo nenhum interesse do Estado em corrigir seu

atraso cultural.

O TMDC foi considerado moderno pela sociedade paulista em todos os sentidos. Sua

estrutura buscava romper com o edifício teatral do século XIX e trazer o novo, a

“emancipação da arte e do moderno, impondo o nascimento de uma cena adequada ao puro

42 Interessante destacar que, concomitante à encenação de A Moratória, era encenada no TBC Santa Marta

Fabril S.A. de Abílio Pereira de Almeida. Embora a peça de Jorge Andrade não fosse a única a representar um

assunto nacional, ela destaca-se pela riqueza formal, enquanto a outra ainda segue pautada pelos modelos

hegemônicos. Cf. SOUZA, G. de M. e. Teatro ao sul. In: ______. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas cidades;

Ed. 34, 2008. 131-140p. 43 Para uma análise minuciosa da trajetória da Companhia Maria Della Costa, Cf. BRANDÃO, T. Uma empresa

e seus segredos: Companhia Maria Della Costa. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Petrobras, 2009.

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exercício da encenação e, mais tarde, da visibilidade”. O mesmo princípio foi usado para a

sua formação como grupo teatral, calcado numa noção de elenco e numa orientação social

(BRANDÃO, 2009, p. 262). Além disso, foi o primeiro empreendimento teatral construído

por um casal do ramo.

Segundo Tania Brandão (2009, p. 266), “com a inauguração de seu teatro [1954], a

contratação do diretor Gianni Ratto e a definição de sua estrutura, o Teatro Popular de Arte

despontou aqui como um autêntico teatro moderno de orientação social”. Com isso, a

Companhia Maria Della Costa, com seu teatro calcado no interesse pela função social do

teatro e na acessibilidade a um novo público, configurou-se como grande adversário para o

TBC, tendo o superado em várias categorias como, por exemplo, no repertório, na estrutura,

no aparato tecnológico, na orientação social, no alargamento de público, na noção de elenco e

de cenografia etc.

Ainda segundo Brandão (2009, p. 270), a estreia da companhia foi responsável por

uma “reviravolta histórica” nos palcos brasileiros, “uma guinada decisiva nas condições

gerais vigentes no palco nacional”. Contribuiu com seu ímpeto para a constituição do

moderno teatro brasileiro ao lançar Jorge Andrade em 1955, como também para a encenação

do teatro épico de Brecht no Brasil, pela primeira vez por um grupo profissional, com a

representação da peça A Alma Boa de Setsuan, em 1958. Além disso, aderiu à poética

esquerdizante de dramaturgos brasileiros como Guarnieri e à poesia realista de Arthur Miller

(BRANDÃO, 2009; 2013).

Um ano após a estreia, o TMDC encenou A moratória, de Jorge Andrade, com direção

de Gianni Ratto. O projeto chamou atenção por encenar uma dramaturgia nacional e por se

tratar de um autor que ainda não tivera a oportunidade de galgar os palcos. A encenação de

Gianni Ratto trabalhou com desenvoltura a noção de tempo e espaço e conseguiu, com três

meses de ensaio, formar um elenco envolvido com a peça. Eles obtiveram um parecer

favorável da crítica, que pontuou a coragem da estreante companhia em encenar um

dramaturgo nacional, também estreante, diante da dificuldade de consolidar um espaço na

cena teatral brasileira. Além disso, enalteceu o movimento de renovação do teatro brasileiro, a

renovação da arte dramática no país, a dramaturgia nacional e o desejo de brasilidade no

teatro (BRANDÃO, 2009).

Como se percebe, o dramaturgo que, nos anos 1950, acabara de deixar a

escola levou pouco tempo para cair nas mãos de um diretor reconhecido. Ao

lado disso, um expoente da crítica teatral do período também ressaltou sua

adequação às necessidades da cena nacional do período. Não bastando, os

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temas explorados nas suas peças iniciais dialogavam com os debates postos

na sociedade brasileira do período, tais como a retomada dos anos 1930 e a

questão da nacionalidade. (ARANTES, 2008, p. 62)

A moratória, de Jorge Andrade, desenvolveu primorosamente o drama do café no

sudeste paulista por meio de recursos formais oriundos de diálogo com movimentos estéticos

contemporâneos, isto é, com o que estava acontecendo de moderno no teatro europeu, norte-

americano e, porque não, brasileiro. Diante disso, a peça de Jorge Andrade é considerada por

Gilda de Mello e Souza (2008b, p. 140) como “a primeira obra de arte verdadeira do moderno

teatro brasileiro”.

A encenação de A moratória é tão importante que, assim como Gilda de Mello e

Souza, outra crítica decisiva como Iná Camargo Costa (1996) considera-a como marco inicial

do teatro brasileiro moderno. A autora justifica sua posição ao considerar que, depois do

contexto de modernização conservadora em 1930, abriu-se novamente a possibilidade de

discutir problemas sociais como a quebra da economia cafeeira, o êxodo rural e a crescente

urbanização sem condições estruturais mínimas de sobrevivência no Brasil.

Os aspectos louvados pela crítica na obra de Jorge Andrade têm importante ligação

com seu ambiente de formação, isto é, a Escola de Arte Dramática, o Teatro Brasileiro de

Comédia e o Teatro Maria Della Costa, que lhe apresentaram novas maneiras de olhar, de

pensar e de fazer teatro. A EAD, no início de sua formação, deu-lhe fundamentos para

compreender o momento de transição que vivia o teatro, isto é, a criação do teatro moderno

em oposição à velha forma dramática, e para compreender a necessidade de modernizar a

dramaturgia nacional, contribuindo assim para a gênese de um profissional atento e crítico à

realidade brasileira. Segundo Arantes (2008, p. 229), foi neste ambiente de formação que

Jorge Andrade “travou contato com autores brasileiros e estrangeiros, com teorias e críticos

teatrais e, principalmente, com um latente desejo de constituição e valorização de uma

dramaturgia nacional moderna”.

Segundo Iná Camargo Costa (1998, p. 14), “o conceito de teatro moderno compreende

o processo histórico desencadeado pela crise da forma do drama”, que se iniciou na Europa

do século XIX. Esta crise resultou numa “progressiva adoção de recursos próprios dos

gêneros lírico e épico”, culminando no “aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o

teatro épico” (ibidem). Essas questões chegam tardiamente ao Brasil e, por consequência

disso, não se expressam como na Europa. Pois quando finalmente o teatro em vias de

modernização começou a ser produzido pelas companhias teatrais brasileiras, o contexto de

produção e recepção era formado por uma burguesia que patrocinava e consumia teatro de

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acordo com o padrão internacional já submetido à indústria cultural, ou seja, mera

mercadoria: não havia ainda a necessária mediação crítica com a sociedade brasileira,

fundamental para o teatro épico.

O teatro era mantido por empresas privadas, de tal modo que a modernização

brasileira não se deu por meio de saltos ou rupturas como, por exemplo, na Alemanha, mas

por meio da manutenção da base de uma estrutura social opressora, isto é, modernizou-se

conservando estruturas arcaicas. Deste modo, o moderno teatro brasileiro se inicia nos moldes

capitalistas, para os quais bens culturais se tornam “bens de consumo”, resultando na

mercantilização da arte (COSTA, 1998, p. 35). Contudo, esse padrão internacional começa a

ser combatido pela valorização de uma dramaturgia nacional e a busca de novas formas

estéticas e de relações de produção, cujo primeiro representante foi o teatro de Arena, como já

visto.

Através dos episódios históricos destacados podemos afirmar que, desde o início da

década de 1950, tivemos a participação de várias frentes no projeto de modernização estética

do teatro brasileiro e de fortalecimento de uma dramaturgia nacional. A dramaturgia de Jorge

Andrade, bem como sua encenação, são expoentes desse projeto. Depois de um primeiro ciclo

de politização do teatro brasileiro pelos modernistas, o dramaturgo paulista faz parte de um

grupo que representa o início de um segundo ciclo de politização da dramaturgia brasileira,

que busca compreender as implicações provenientes da crise do teatro do século XIX e XX na

Europa, expressa por meio do naturalismo, do expressionismo e do teatro épico brechtiano.

Além disso, sua dramaturgia expressa outro momento no teatro brasileiro, isto é, o contato e a

leitura de vertentes realistas norte-americanas, como Arthur Miller, Tennessee Williams e

Eugene O’Neill.

Esse segundo ciclo de politização, de engajamento e de nacionalismo crítico por meio

de uma dramaturgia moderna. Como visto, esse processo culminara em grupos como o Teatro

de Arena de São Paulo (1953), o que possibilitou a reflexão sobre possibilidades épicas no

teatro brasileiro, bem como instaurar “uma nova relação com o público, [...] projetando e

encontrando um novo espectador, crítico da mercantilização, interessado no debate sobre as

transformações políticas do Brasil” (CARVALHO, 2011, p. 03).

Embora Jorge Andrade não tenha feito parte do Teatro de Arena – grupo mais

explicitamente engajado – nem tenha sido um autor típico do TBC, representante de um teatro

feito para a burguesia, defendendo seus valores, estes fatos não retiram o mérito de sua

dramaturgia e de seu teatro de questionamento social e de repertório nacional, o qual será

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fortalecido posteriormente pelo Teatro de Arena (TA). Já se falou da importância de Black Tie

para esse projeto; falta dizer que uma das influências de Guarnieri foi a peça A moratória.

Depois de assistir à encenação do texto de Andrade, Guarnieri se motivou a escrever sobre a

realidade local por meio da temática grevista – a julgar por Sant’Anna (1997). Contudo, esse

momento histórico, de fixação do teatro de grupos, extrapola os limites dessa pesquisa e, com

isso, pode ser entendido apenas como apontamento para a continuidade do teatro moderno

brasileiro, para o surgimento de um teatro brasileiro politizado e para a continuação do

sentimento de brasilidade, por meio de escritores como Vianinha, Augusto Boal, Chico de

Assis, além de Guarnieri.

Em síntese, Jorge Andrade liga-se a um estágio inicial de modernização e

profissionalização num segundo ciclo de politização do teatro brasileiro. Realizou uma obra

crítica das leituras tradicionais de nossa história, em formas muito originais e nunca repetidas.

Esse processo criativo se expressa a partir de novos recursos formais, oriundos do estudo de

outras vertentes, como a do naturalismo de A. Miller e de Ibsen, do realismo psicológico de T.

Williams e do teatro épico de Brecht. Por meio dessa pesquisa formativa, Jorge Andrade

busca empreender uma forma original, que se alie a seu interesse de discutir a matéria social

brasileira. Vale lembrar que seus temas sempre se guiavam por uma localização histórica

ampla, em uma leitura distanciada (o que não quer dizer objetiva/ neutra, mas sem

identificação). Com base na história do teatro brasileiro e na análise de como a obra de Jorge

Andrade contribuiu para os diálogos e para os projetos do movimento estético em que estava

inserido, interessa-nos compreender, na seção seguinte, Jorge Andrade como pensador de seu

fazer teatral, buscando dialogar por meio da obra com questões estéticas e históricas,

refletindo sobre a relação entre arte e sociedade e sobre a função social da arte e do artista na

sociedade brasileira.

2.3 Mário e Jorge Andrade: pensadores do teatro brasileiro

É importante destacar que Mário de Andrade e Jorge Andrade não foram apenas

escritores de teatro e de literatura – mesmo autores sensíveis aos acontecimentos históricos e

estéticos do teatro e da sociedade brasileira poderiam fazer uma obra excelente sem discutir

sua criação. Não é o caso dos autores aqui em tela: suas obras buscam debater e refletir sobre

questões que abrangem a função da arte na sociedade e sobre o desenvolvimento de um teatro

crítico. Eles a fizeram tanto internamente, em algumas obras, como por textos próprios sobre

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seu fazer artístico. Desta forma, o termo pensador é utilizado para indicar uma pessoa que

reflete, avalia, analisa e medita sobre seu fazer teatral, ou seu processo criativo, e que

consegue agir não só no nível da obra, mas sobre a obra, comentando-a internamente ou

externamente, por meio de textos críticos. Nesse sentido, percebe-se que ambos tinham

projetos literários de grande alcance. A análise buscará compreender, inicialmente, Mário de

Andrade e, posteriormente, Jorge Andrade como pensadores do Teatro Brasileiro.

Mário de Andrade se propusera a problematizar o papel da arte na sociedade, a função

social do artista e das formas estéticas hegemônicas, através dos distintos meios de produção

que desenvolveu: literário, musical, crítico e teatral. Sendo assim, não se eximiu de discutir a

responsabilidade social do artista.

Para compreender Mário de Andrade como pensador do teatro devemos analisar

rapidamente o ganho de consciência crítica que a obra do autor adquiriu ao longo do tempo,

para, na sequência, analisar como esse posicionamento crítico e engajado é incorporado no

processo de criação da peça-coral e nos textos Introdução (1942a), Concepção

Melodramática (1942b) e Marcação (1942d), que comentam a constituição de Café (1942c)44.

A formação de um posicionamento crítico em Mário de Andrade foi decorrente de

transformações sociais, políticas e econômicas que provocaram uma modernização na

sociedade brasileira, embora esta ainda estivesse calcada nas contradições entre o

conservadorismo e os ideais liberais.

Ao estudar a evolução ideológica de Mário de Andrade no texto Mário de Andrade:

Ramais e caminhos (1972), Telê Ancona Lopez analisa três momentos significativos. O

primeiro é marcado pela ingenuidade e pelos ideais cristãos. O segundo pela atualização

crítica, embora ainda subjetiva, pautada pela modernização estética proveniente da fase

heroica do modernismo – nesse momento o autor observa o Brasil literariamente, ou seja,

sabe da existência de problemas sociais e econômicos, mas não os focaliza criticamente,

mostrando de maneira implícita suas contradições. O terceiro momento é marcado pelo

crescente engajamento social, expresso por um nacionalismo crítico e por um expressionismo

social (e pelo teatro épico). De antemão, esta última fase nos interessa para entender o

surgimento da peça-coral Café, visto que ela é resultante do interesse de Mário expor, por

meio do teatro, as contradições da sociedade capitalista brasileira, isto é, a crise do capital, a

quebra da economia, as injustiças sociais – isso pela perspectiva dos excluídos, realizando

44 Para o acesso a todas as partes da peça-coral Café, Cf.: TONI, F. C. Café, uma ópera de Mário de Andrade:

estudo e edição anotada (2004). Por meio da Livre-Docência de Flávia Camargo Toni pudemos observar o

diálogo que permeia todos os textos sobre a obra Café, de Mário de Andrade.

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uma crítica social ao momento histórico e político de 1929/30 no mesmo movimento em que

inova no campo estético.

Essa evolução ideológica, analisada por Lopez (1972), pode ser observada pelas

crônicas e pelos artigos críticos publicados na coluna ‘Táxi’ e no Diário Nacional, reunidos no

livro Taxi e crônicas no Diário Nacional (1976), e pelo livro O Banquete (1989). Embora não

seja nosso objetivo fazer uma análise aprofundada destas produções, iremos destacar

rapidamente alguns aspectos que as caracterizam. Os textos críticos, reunidos em livro, tratam

dentre outras questões, de temáticas variadas como arte, literatura, teatro, fala brasileira e

política. De início eles revelam uma crítica mais amena que, no pós-30, assume uma postura

mais feroz e engajada politicamente, exigindo uma arte que expressasse questões sociais.

Tomemos como exemplo da crítica mais engajada os artigos críticos: Intelectual I e

Intelectual II45, de abril de 1932. Nestes textos Mário de Andrade elabora uma crítica à

condição da arte como mercadoria, dos intelectuais patrocinados pela burguesia, do

desprendimento da arte do mundo e do embelezamento de mazelas sociais. A partir desses

assuntos analisa a constituição do artista na sociedade brasileira, da qual destacamos um

parágrafo que sintetiza seu posicionamento:

Na realidade a situação pra quem queria se tornar um intelectual legítimo, é

terrível. Hoje mais que nunca o intelectual ideal é o protótipo do fora-da-lei,

fora de qualquer lei. O intelectual é o ser livre em busca da verdade. A

verdade é a paixão dele. E de fato o ser humano socializado, as sociedades,

as nações, nada tem que ver com a Verdade. Elas se explicam, ou melhor, se

justificam, não pela Verdade, mas por um sem número de verdades locais,

episódicas, temporárias, que, estas, são frutos de ideologias e idealizações. O

intelectual pode bem, e deverá sempre, se por a serviço dumas dessas

ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por isso mesmo que é

um cultivado, e um ser livre, por mais que minta em proveito da verdade

temporária que defende, nada no mundo o impedirá de ver, de recolher e

reconhecer a Verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O

intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado

e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei. (ANDRADE,

M., 1976, p. 516)

Esse posicionamento de Mário de Andrade e a ideia de artista “fora da lei” são

transpostos para Café; veremos adiante, nos textos sobre seu processo criativo, que a noção de

artista verdadeiro segue na base do pensamento de Mário de Andrade. No trecho, aliás,

percebemos que por trás das verdades temporárias, com minúscula, está para o intelectual a

Verdade, com maiúscula, da miséria do mundo, da miséria dos homens. Isso tem menos a ver

45 Os artigos podem ser localizados nas páginas 515 a 520 no livro Taxi e crônicas no Diário Nacional (1976).

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com uma posição existencialista do que materialista, no ano de 1932, para Mário de Andrade,

e será desenvolvido a partir de 1933 em Café. Assim sendo, podemos compreender que os

textos críticos confirmam o desenvolvimento das ideias estéticas de Mário de Andrade. Além

disso, o livro O Banquete46 pode ser tomado como referência da consciência crítica da posição

do artista na sociedade e como um painel de suas preocupações sobre arte e literatura. Neste

livro, Janjão (compositor e artista brasileiro) é o personagem que expressa o pensamento, os

questionamentos e as contradições do autor sobre a função social da arte e do artista na

sociedade. Portanto, os textos indicam o panorama crítico que as produções de Mário de

Andrade foram tomando e essa guinada crítica é de extrema importância para se compreender

Café.

Com o passar dos anos, o aprofundado estudo sobre o Brasil e o crescente interesse

pelo social produziram em Mário de Andrade um ganho de consciência criativa, o qual deve

ser entendido à luz da segunda fase Movimento Modernista. Ao reavaliar a Semana de Arte

Moderna no ensaio Movimento Modernista em 1942 (e, consequentemente, a sua própria

obra), ele reconhece que a primeira fase do Modernismo estava desvinculada de uma

preocupação social que os anos posteriores exigiram. Ao fazer um balanço sobre a alienação

inicial, conclui que: “[...] apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa

universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o

amilhoramento político-social do homem” (ANDRADE, M., 1972a, p. 255).

Essa perspectiva inicial do Movimento se defronta com as transformações sócio-

históricas do Brasil, isto é, a crise do liberalismo de 1929, o Golpe de Estado de 1930, o

Governo Vargas, a transição do Brasil-Colônia para uma sociedade urbanizada, a

modernização dos grandes centros, dos processos de trabalho, o desenvolvimento da

sociedade capitalista, a Primeira Guerra Mundial, a República Velha. Transformações que

passam a exigir, a partir de 1930, uma perspectiva crítica dos escritores e do Movimento.

Depois de 1930, Mário de Andrade passa a unir em suas produções artísticas os dois

projetos modernistas – estético e ideológico. Esses dois projetos ganham na produção teatral

de Mário de Andrade uma dimensão de engajamento, pois ele compreende o teatro “não como

um processo de descrição e análise, mas como a mais independente e a mais social das artes,

capaz de nacionalizar, socializar, conduzir atitudes éticas para a humanidade” (LOPEZ, 1972,

p. 241).

46 Escrito entre 1944 e 1945, mas que permaneceu inacabado por Mário de Andrade. O livro teve publicação

póstuma em 1977 e ganhou uma segunda edição em 1989.

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Segundo Pedro Fragelli (2013), a queda da economia cafeeira (e da utopia envolvida

nela) fez com que Mário ganhasse mais consciência sobre o papel da arte na sociedade, visto

que nesse período pós-30 fica evidente o “subdesenvolvimento” do Brasil. Nesse contexto, o

autor passa a acreditar que uma formação social só viria por meio de uma formação política

(FRAGELLI, 2013, p. 87). Ele passa a expressar uma reflexão sobre as relações entre cultura

e política e, para isso, busca realizar uma arte interessada, atuante, de modo a unificar seu

pensamento estético à função social da arte.

Para marcar seu posicionamento engajado, Mário de Andrade concentra-se, a partir de

1930 até o final da vida em 1945, em produzir uma arte ativista. E, por meio dela, pretende

realizar uma “transformação sociopolítica” do Brasil, e esse “processo, que inclui uma

aproximação com o comunismo, consuma-se na elaboração da ópera Café, em que se encena

uma grandiosa revolução popular, a revolução que o movimento de 1930 ficara devendo”

(FRAGELLI, 2013, p. 87). Deste modo, Mário de Andrade não se liga a história factual, de

ocorrência de acontecimentos históricos, mas busca por meio da forma artística mostrar o que

poderia ter acontecido, pois a arte possibilita esta liberdade de criação. Analisa com

distanciamento crítico o desenvolvimento histórico e utiliza-se da forma teatral para realizar

esse projeto crítico e ideológico, uma grande ousadia frente ao contexto histórico brasileiro.

O pensamento crítico de Mário de Andrade, que passa pela responsabilidade social do

artista e pela a função social da arte, se estende para o campo artístico, seja pela temática, seja

pela forma como expressa a matéria histórica. O início do século XX, marcado pela

experiência devastadora da Primeira Guerra Mundial, viu o questionamento da função social

da obra de arte, de sua suposta autonomia. A arte teve que expressar um mundo

convulsionado e em constantes transformações. Consequentemente, a arte como campo

isolado de uma dada matéria histórica perde força. O indivíduo fruto desse contexto histórico

é um ser híbrido e problemático, que necessita vender sua força de trabalho para sobreviver,

condição essa que precisa ser formalizada na obra de arte.

Nessa dissertação, o lugar por excelência da apresentação de Mário de Andrade como

pensador do teatro é seu projeto de formalização estética da matéria histórica brasileira, em

torno da peça-coral Café. Ali, consciente de seu papel de artista na sociedade brasileira e de

seu processo criativo, busca realizar uma peça que dialogue com o momento histórico,

concomitante ao início de seu projeto, da crise da economia cafeeira de 1929 a 1932 e que

problematize a obra de arte e as formas estéticas.

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O processo criativo de Mário de Andrade não deriva apenas da escrita da peça-coral

ou de poemas (na terminologia de Mário de Andrade), mas de um complexo de textos críticos

em que comenta o longo processo de escrita (1933-1942), os objetivos, o porquê da escolha

temática, as dúvidas, as incertezas, as soluções estéticas, contra o que se insurge etc.

Como já visto, essa ópera-coral ou peça-coral está ligada a no mínimo quatro

materiais, a saber a Introdução (1942a), a Concepção Melodramática (1942b), o Poema

(1942c) e a Marcação (1942d). Vale dizer, inclusive, que desses quatro textos apenas a

“Introdução” poderia ficar de fora da vasta riqueza formal que é Café: “Concepção

Melodramática” funciona como uma rubrica em forma narrativa, “Marcação” fala da

disposição cênica, e o “Poema” é o texto a ser cantado. Mas a “Concepção Melodramática”

também comenta, de fora, a peça (como no seu final, por exemplo) e a “Introdução” traz

elementos que contribuem para a estrutura formal da mesma, de modo que podemos

considerá-la como sendo formada pelos quatro materiais diversos, contendo portanto um

processo de exposição de sua história de criação estética, como também a que gêneros

dramáticos respondia (melhor seria dizer quais atacava), e como isso tudo parte de uma

discussão ampla sobre a função social da arte naquele momento crítico do Brasil e do mundo.

Nesse sentido, Café adquire uma dimensão formadora, didática e epistemológica, além

de estética, e se constrói como uma obra que envolve dialeticamente o ficcional e o

comentário, por vezes a crítica ao mesmo, bem como expõe o lugar ideológico de onde se

fala. Sua estrutura fragmentária não impede, no entanto, que cada um dos materiais tenha vida

própria, como também as partes de um mesmo material – é possível ler e discutir as cinco

cenas independentes umas das outras, ou até mesmo uma determinada sequência. Isso porque,

totalmente à vontade com a discussão sobre teatro épico (mesmo que não nesses termos), as

passagens não ocorrem umas por causa das outras, num encadeamento inevitável para um

enredo fechado, mas são relativamente independentes.

Vale lembrar que antes da parte I está a Dedicatória47, o que também indica como ela

faz parte da peça. É uma estrutura complexa, depois dialetizada pela parte coral. Como visto,

embora o texto Introdução possa parecer independente da obra, nós o consideramos como

parte dela porque nos possibilita perspectivá-la, isto é, localizá-la historicamente na própria

obra. Para esta pesquisa, justamente essa Introdução e a Concepção Melodramática contém

os elementos mais decisivos para discutirmos esse nível de análise, Mário de Andrade como 47 Mário de Andrade dedica a peça-coral Café para Liddy Chiaffarelli, esposa de Francisco Mignone. “Aquela a

quem nosso trabalho vai dedicado e a quem devemos tanto incitamento e tamanha compreensão das nossas

almas imperfeitas” (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 166-7). Mignone fora escolhido para compor a

partitura coral da peça, mas também contribui com ideias que depois foram inseridas na obra.

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pensador do teatro. Do primeiro texto destacaremos trechos que expõem uma espécie de

filosofia da composição de Café, e do segundo o balanço final que o autor faz da obra como

projeto épico, primordial para se compreender questões pontuais da peça-coral. Além disso,

podemos identificar Mário de Andrade como artista que reflete sobre o percurso de formação

de sua obra pelo longo processo de sua escrita: são várias as versões dos poemas, o que

remete ao longo processo de maturação da obra (que se estende de 1933 a 1942, portanto 10

anos). Também é importante frisar que sua concepção de teatro não se limita apenas ao texto

dramático: tanto na “Concepção Dramática” como, especialmente, na “Marcação”, vemos um

autor que concebe o teatro como um projeto transmidiático, ou seja, que tem como elemento

primordial a cenografia, a disposição cênica, os figurinos, a música, além do texto. Essas

categorias se relacionam de forma bastante complexa, de tal modo que a própria ocupação dos

espaços cênicos (bem definidos) e dos espaços dramáticos (campo, cidade, Câmara dos

Deputados etc.) já nos trazem novos elementos de análise. Com isso se percebe que não

estamos diante de um autor diletante, que pensa apenas na dimensão textual, mas um autor

versado em teatro.

No texto Introdução, Mário de Andrade discorre sobre a filosofia da composição de

Café, deixando já de início marcada sua posição de artista numa dada sociedade, buscando

perspectivar a obra de modo a elucidar seus procedimentos de escrita, suas escolhas, angústias

e formalizações na escritura teatral. De início justifica os objetivos do texto: “O oratório

secular que eu publico agora é fruto de uma lenta gestação. Curiosa talvez e talvez digna de

ser contada pelo que poderá trazer de esclarecimento, de incentivo e auxílio a artistas jovens”

(ANDRADE, M., 1942a, apud TONI, 2004, p. 165). A partir desse trecho podemos

compreender a noção de projeto que Café constituía para o autor, o qual foi iniciado,

interrompido, retomado por longos dez anos; além disso, carrega a ideia de uma arte atuante

que pudesse produzir uma lição social e artística para uma nova geração de autores e

dramaturgos.

Café origina-se de reflexões de Mário de Andrade sobre o gênero Ópera. Ele

compreende a ópera por duas perspectivas: a primeira estética, reconhecendo-a como gênero

musical; a segunda pelo espetáculo, como acontecimento social. Ao fazer um exame crítico

sobre seu posicionamento frente à ópera tradicional observa que:

[...] aos poucos os problemas do teatro cantado se impunham a mim e ao

mesmo tempo que sempre desconfiado mas egoistamente eu me convertia à

ópera como valor estético (por nota sobre beleza vocal, o poder humano de

encantamento da voz dramatizada etc.), me perseguiam como

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prodigiosamente grave a importância social da ópera. (ANDRADE, M.,

1942a apud TONI, 2004, p. 166)

O que passa a importar e se impor para Mário de Andrade é a segunda perspectiva, a

importância do acontecimento social que a ópera envolve. Nesse sentido, reconhece

qualitativamente o gênero Ópera, visto que este “sempre existira e estava na base mais

importante das forças artísticas que ordenam as sociedades” (Ibidem). No entanto, “seus

princípios mais profundamente humanos e gerais, de definição coletiva, de cultivo dos heróis,

de rito e comemoração religiosa ou nacional” foram desvirtuados e tornaram-se “numa arma

exclusiva de classe dominante”, isto é, um “instrumento de classe”, perdendo assim toda sua

carga social e socializante (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 166-7).

Além disso, Mário de Andrade desmistifica a Ópera como primeiro gênero a contar

história cantando, porque “nas civilizações da Antiguidade, nas extra-europeias, o teatro

medieval, mistérios, farsas, o teatro popular, nossas danças dramáticas, reisados, congadas,

todo teatro verdadeiro é cantado”. Com base nisso, Mário de Andrade realiza uma crítica

social sobre a utilização da ópera na e pela sociedade: esta “se acanalhara” quando deixou de

servir aos “princípios humanos mais gerais” de “religião, raça, cultos” e “ritos”. Perante essas

questões, Mário de Andrade busca na escrita teatral a socialização do gênero, e se pergunta,

retoricamente: “não seria possível ‘reformar’ a ópera mais uma vez?” ou “não se poderia

acaso tentar uma ópera coletiva tendo como base o assunto o café?” (ANDRADE, M., 1942a

apud TONI, 2004, p. 167). E, com isso, explica suas escolhas formais:

Ópera “coletiva” teve uma resposta, além de social, estética e artística, que

será talvez a originalidade mais essencial do meu trabalho. Não se tratava

apenas de fazer uma ópera que interessasse coletivamente a uma sociedade,

mas que tivesse uma forma, uma técnica mesma derivada do conceito de

coletividade. Uma ópera coral, adivinhei. Um melodrama que em vez de

indivíduos, lidasse com as massas, em vez dos solistas virtuosísticos que

foram sempre a morte do valor social da arte, convertidos a semideuses de

culto na Grécia como a semideuses de ouro em nossos dias: em vez de

solistas, coros, personagens corais, corais solistas. Enfim uma ópera inteira,

exclusivamente coral. (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 167-8)

Com base na citação, podemos compreender contra o quê Mário de Andrade se

insurge: o valor estético elitista da ópera e seu desvirtuamento enquanto força social. Assim

sendo, justifica que em Café sua intenção não é realizar uma cópia estilística da ópera, mas

fazer uso de uma prática (de contar história cantando) que ocorre desde o início dos tempos

em diversas sociedades. Busca romper com o gênero Ópera, com o lirismo e a individualidade

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estilística, ao expressar um conteúdo social por meio de massas corais. Assim alteraria a

perspectiva elitista incrustada ao gênero, ao pautar-se pela perspectiva dos de baixo, dos

excluídos: colono, estivador, mulheres, etc., culminando, inclusive, em uma revolução

socialista. Logo, socializa o texto teatral tanto pela forma quanto pelo conteúdo.

Tendo como fundamento o pensamento de Mário de Andrade, podemos denominar

Café não como ópera, mas como ópera-coral e, pensando no âmbito do teatro, como peça-

coral48. Ele tem plena consciência de que não pode replicar a forma da ópera para a

coletividade, pois isso significaria manter intacta uma estrutura que, em si, tem um enunciado

a favor da ideologia burguesa (do indivíduo, do virtuosismo, etc.). Quando diz: “Não se

tratava apenas de fazer uma ópera que interessasse coletivamente a uma sociedade, mas que

tivesse uma forma, uma técnica mesma derivada do conceito de coletividade” ele deixa claro

que sabe serem as formas também históricas, e com conteúdo já sedimentado (ANDRADE,

M., 1942a apud TONI, 2004, p. 167-8). É preciso reinventar a forma da ópera, e para isso

propõe quase que uma anti-ópera, toda ela coral, quase uma provocação. Deste modo, não se

trata somente do material que tinha em mente (a saber, a crise social advinda da crise de 1929

e do Café, da posição das elites brasileiras e da corrupção), mas também de não deixar pedra

sobre pedra em uma forma que considerava perniciosa.

O que Mário de Andrade diz sobre a ópera pode, sem qualquer dificuldade, remeter à

situação do drama tradicional burguês; este, embora não seja cantado, tem uma estrutura que

defende com todo fervor a ideologia burguesa, a manutenção do status quo. Contra isso, como

sabemos, se insurge a teoria do teatro épico, marcado pela fragmentação, pela centralidade da

exposição de uma situação social travada, de conflitos que não podem ser resolvidos

individualmente. À diferença de Brecht, é que aqui não havia um movimento social forte para

dar lastro à sua experiência, nem mesmo um acúmulo crítico e estético no campo teatral para

levá-la ao palco (mesmo que fosse o burguês), além das próprias dificuldades que essa peça-

coral trazia. No entanto, isso não diminui o projeto, que mesmo hoje (talvez

significativamente hoje) faz muito sentido49.

Mário de Andrade, consciente de que as formas são ideológicas e de que nossas

fraturas sociais tornar-se-iam problemas estéticos, buscou problematizar a utilização social de

uma forma artística. Além disso, discute o valor da obra de arte, que não pode mais se pautar

por critérios como autonomia, perfeição e pureza. O autor compreende, num balanço final da 48 Adotamos as duas denominações devido ao hibridismo de Mário de Andrade. Estas designações permeiam o

texto. 49 Seria possível dizer que o Congresso Nacional hoje faz a passagem da Câmera-Ballet poder ser lida em chave

realista...

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ópera-coral, que a obra de arte verdadeira não pode ser autônoma – desprendida do mundo ou

bem acabada, porque dadas as condições históricas (fraturadas, em crise) essa perfeição soaria

falsa, como engodo. Nesse texto, Mário de Andrade considera a criação artística como

expressão do social, e se os novos conteúdos sociais apontam para uma sociedade imperfeita,

nada mais evidente que as produções artísticas expressem-na por meio de imperfeições: logo,

para o autor a obra de arte verdadeira é imperfeita, ao menos enquanto durar essa situação

social de opressão e miséria naturalizada. Em suas próprias palavras:

Eu me sinto mais recompensado de ter feito está épica. Dei tudo o que pude

a ela, pra torná-la eficaz no que pretende dizer, lhe dei mesmo com paciência

os mil cuidados de técnica, para converter também pelo encantamento da

beleza. Mas duma beleza que nunca perdi o senso, a intenção de que devia

ser bruta, cheia de imperfeições épicas. Nada de bilros nem de buril. Pelo

contrário, muitas vezes a perversidade tosca da voluntária imperfeição

estética. (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 206)

Mário de Andrade objetivou, neste processo criativo, trabalhar cuidadosamente a

matéria social bruta, por meio de inúmeros recursos técnicos (plasticidade, beleza), mas

consciente de que esta matéria era imperfeita e de que a forma deveria expressá-la assim.

Deste modo, ele sabe que busca uma beleza “bruta” e “cheia de imperfeições épicas”.

Mediante essas “imperfeições” podemos compreender como o material bruto da história

adentra na forma de arte; se insere nas arestas da coletividade, do espaço, da plasticidade que

exige ao leitor uma revisitação de determinado contexto histórico para que compreenda a

obra. Portanto, depende dessa relação com o social, não se bastando nos limites de uma

perfeição estética.

Outro ponto digno de destaque é a denominação que ele atribui ao projeto, agora

terminado, de “épica”. Com isso remete, com certeza, ao gênero épico, que nunca deixa de

lado uma perspectivação tanto histórica quanto de uma determinada instância narrativa, em

um painel amplo, com determinações que fogem ao indivíduo isolado. Mas Mário de Andrade

sabe que não fez uma obra narrativa, mas uma peça teatral, com suas rubricas, sua disposição

cênica, o significado da música dentro de um enredo. Sendo assim, por mais esse caminho,

chegamos ao teatro épico.

Ele tem ciência de que, ao realizar uma arte social, terá limitações históricas e,

consequentemente, formais. E, com isso, observa que “há de ser sempre amargo ao artista

verdadeiro, não sei se artista bom, mas verdadeiro, sentir que se esperdiça deste jeito em

problemas transitórios, criados pela estupidez da ambição desmedida”. Embora seja “amargo”

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tem-se a necessidade de debruçar-se sobre os problemas históricos para que um dia o cenário

social mude e o artista passe a ser “mais verdadeiro”, desprendido da ideologia que falseia os

“sofrimentos verdadeiros” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 206). Mas enquanto

isso não acontece, Mário de Andrade, em Café, busca expressar as fraturas históricas e o

Brasil em chave crítica.

Ao encerrar a Concepção Melodramática, discorre sobre seu sentimento final e sobre

seu protesto contra as “imperfeições” sociais: “Me sinto recompensado por ter escrito esta

épica. Mas lavro o meu protesto contra os crimes que me deixaram assim imperfeito. Não das

minhas imperfeições naturais. Mas de imperfeições voluntárias, conscientes, lúcidas, que

mentem no que verdadeiramente eu sou” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 206-

7). Este ponto nos interessa para compreender que as “imperfeições” não são relacionadas ao

autor, em chave psicologista, mas sim sociais, visto que a peça resulta de uma realidade

problemática, de um momento de ruptura. Assim, são criações sociais objetivas, às quais o

artista verdadeiro não pode voltar as costas, e daí, voluntariamente, lucidamente,

conscientemente, fazê-las imperfeitas. Essa transitoriedade histórica exige um questionamento

das formas artísticas, que se expressa em Café pelas possibilidades formais:

Drama? Melodrama? Tragédia lírica... Mas eu carecia da apoteose... A

minha intenção não era, nunca fora livremente estética desde as primeiras

preocupações que me tomaram com intenção criadora. Eu carecia da

apoteose como uma definição que era. Enfim, se tratava muito

conscientemente de um aproveitamento dos valores estéticos da beleza para

criar uma obra de arte que iria servir de lição. E uma lição, eu imaginava, tão

intencional, que deveria se tornar bem clara, bem legível e principalmente

bem impregnante. (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 170)

Mário de Andrade não se detém em uma forma pronta e predeterminada, mas na

utilização de recursos formais que possam dialogar com a matéria histórica e expressar a

função social da arte. Em Café a forma expressa essas “imperfeições épicas” e, por serem

históricas, Mário de Andrade necessita passar por todas de modo a analisá-las frente ao seu

período de origem e perante o momento histórico que se predispôs a tratar. Com isso, passa

por formas, como a da tragédia, para mostrar sua incompatibilidade com o mundo

problemático do século XX. A dimensão da “lição” é ainda fundamental para o projeto da

peça, e traz à tona uma preocupação didática e epistemológica, já apontada. Para isso, a obra

tinha de ser clara, legível: daí a sua estrutura que cria algo como uma provocação formal à

estrutura conhecida da ópera e do teatro tradicional.

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Desde que Mário de Andrade pensou em criar a peça-coral Café lhe veio a visão geral

do enredo: “um terceiro ato com revolução vitoriosa, nos outros dois atos os choques de

classes provocados pela depressão econômica, choques rurais e urbanos” (ANDRADE, M.,

1942a apud TONI, 2004, p. 168). Depois de definir seu enredo em linhas gerais, passou a

buscar formas para expressá-lo. Recorreu ao teatro épico ao adotar uma perspectiva coletiva,

muito consciente de que não queria personagens subjetivos ou indivíduos. Entre outras coisas,

buscou como solução formal substituir “o fazendeiro por uma Companhia Cafeeira S.A,

grupo de donos entregando, por dívida, a Companhia aos comissários” (Ibidem). Deve ao

expressionismo, como modo de fugir da estética realista, a deformação da cena do Êxodo

(marcha para morte), na qual surgem “grupos lastimosos, se arrastando ritmicamente, uivos,

largas queixas enormes, partindo, atravessando a cena...”, e o trabalho plástico das cenas, em

que as tonalidades de cores contrastantes dariam a deformação subjetiva, a dramaticidade, o

tom trágico, que estaria também inserido na utilização da linguagem proverbial (Idem, p.

172). Além disso, recorre ao expressionismo social para compor a farsa e a comicidade

mordaz da Câmara-Ballet, primeira cena do segundo ato. Como também a apoteose, no fim

do terceiro ato, com as massas corais em festa comemorando a conquista da revolução.

Mário de Andrade, embora empregue dramaticidade na cena do Êxodo, busca

desenvolvê-la pela interlocução com elementos expressionistas e em contraposição à farsa da

Câmara dos deputados. Deste modo, não objetiva o sentimentalismo nem a identificação do

leitor ou sonhado espectador, mas deseja despertar o senso crítico para as duas cenas do

segundo ato. Essa contraposição e as escolhas formais perante a matéria histórica podem ser

observadas no trecho abaixo:

Enfim: eu pessoalmente não devo (nem posso!) pretender ao sublime da obra

de arte, porém tenho o dever de atingir no sublime grandioso do assunto, o

sublime do teatro bem com ribalta, nada realista, da tragédia e da farsa. O

Êxodo será trágico, tem de dar a noção de fatalidade, das forças superiores à

vontade humana. [...] A cena da câmara, em contraste, terminará o segundo

ato com uma farsa total, mas total, a maior vaia que eu possa passar numa

câmara dos deputados. (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004, p. 173)

Embora sejam patentes as limitações históricas do teatro e do contexto histórico

brasileiro da época em que a peça foi escrita, Mário de Andrade tinha intenção de vê-la

encenada. O texto Marcação, que tinha a finalidade de auxiliá-lo na visualização e na

constituição das cenas, mediante o detalhamento das movimentações cênicas no palco, é uma

das indicações desse interesse. De acordo com Flávia Camargo Toni, a ópera-coral Café é de

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“fundamental importância na afirmação de um ideário de tom socialista e bem brasileiro em

meio à Segunda Guerra Mundial. Mário de Andrade recorreu à a estrutura de uma dança

dramática, propondo inclusive movimentações de palco para os grupos corais”, pensando

minuciosamente em cada detalhe (TONI, 2004, p. 03).

A partir dos textos em que Mário de Andrade se propôs a analisar e explicar o

andamento de seu processo criativo, e dos muitos anos que levou para finalizar a parte dos

poemas (da peça), podemos observá-lo como pensador tanto de sua obra quanto da função

social da arte por meio da escrita teatral. Além disso, o processo de maturação da obra, as

várias versões50 que escreveu ao longo dos anos nos mostram Mário de Andrade como

pensador.

A peça-coral Café surgiu como ideia de um projeto de escrita e aos poucos foi

tomando forma. No início da criação, Mário de Andrade sentiu-se dominado pelo “sentimento

plástico” e afirma que: “a primeira coisa que ‘escrevi’ foram os desenhos das únicas cenas da

ópera”. Posteriormente, dedicou-se à elaboração da concepção melodramática, que foi

acompanhada pela escrita das marcações cênicas; após refletir e analisar as possibilidades

estilísticas e formais escreveu Café. Para finalizar, escreveu a Introdução, um exame crítico

sobre seu processo criativo51. Todavia, essa sequência de textos não se dá de modo

programado; ele os escreve quase concomitantemente e em vários momentos interrompe o

processo criativo, embora não consiga se desligar da peça-coral. Portanto, a ausência de

pressa em concluir Café pode ser entendida como um elemento claro do projeto teatral e

social de Mário de Andrade.

Em síntese, Café torna-se uma obra complexa, visto que devemos analisá-la com base

nessa interlocução entre materiais que Mário de Andrade criou. Essa qualidade não nos

permite um mergulho total na obra, desprendendo-a do mundo, mas exige perspectivá-la de

modo a compreendê-la em seu tempo histórico e mediante o processo criativo de Mário de

Andrade. Com base nisso, podemos compreender Café, uma das últimas produções em vida

de Mário de Andrade, como uma resposta à primeira fase modernista, “heroica” e alienada.

50 Por exemplo, a “Endeixa da Mãe” teve onze versões, e apenas a última foi inserida na peça-coral. O “Madrigal

do Truco” foi refeito três vezes por completo, e muitas outras cenas e personagem mudaram completamente

conforme as reflexões sobre a forma (ANDRADE, M., 1942a apud TONI, 2004). 51 Flávia Camargo Toni (2004, p. 94) elenca três fases principais e cronologicamente distintas na escrita da peça

Café: 1) Em 1933, durante a temporada lírica não oficial da cidade de São Paulo, Mário de Andrade idealiza os

planos visuais e temáticos (desenha os cenários); 2) Sete anos depois a coreografia de Kurt Jooss possibilita

soluções para a constituição de algumas cenas (principalmente, a cena da Câmara-Ballet); 3) Segundo semestre

de 1942, Mário de Andrade redige a peça em duas etapas: na primeira escreve cenas e poemas em várias versões,

mas com uma estrutura já preestabelecida, e na segunda, realiza uma revisão e enquadramento de cenas e novas

versões para algumas partes do libreto.

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Uma obra militante que buscou expressar “a crise da monocultura exportadora pela óptica dos

trabalhadores braçais empobrecidos, entendendo que da miséria extrema nasceria a força da

transformação social” (LEVIN, 2013, p. 40).

A alienação da primeira fase tem como réplica uma obra engajada e crítica, buscando

na crise superprodutiva do café uma revolução popular, que foge do panfleto fácil ao enfocar

o “grão pequenino” do café pelos ciclos da natureza e ao recorrer às formas estéticas que

contribuam para a análise crítica dessa matéria histórica brasileira. Portanto, o compromisso

social e as “imperfeições épicas” de seu projeto Café são fundamentais para se compreender

Mário de Andrade como pensador.

Dando sequência, buscaremos compreender Jorge Andrade como pensador do teatro

brasileiro. Diferentemente de Mário de Andrade, Jorge Andrade não escreveu textos críticos

sobre sua obra que pudessem ser visto como um conjunto, mas, consciente de seu projeto

teatral, acaba por refletir sobre o processo criativo e o propósito de seu fazer artístico em

textos críticos externos a obra. Além disso, o ciclo Marta, a árvore e o relógio, composto por

dez peças ao longo de quase duas décadas, constitui-se ele mesmo como um projeto de

intervenção estética e social dos mais impactantes do teatro brasileiro, infelizmente pouco

estudado, seja em suas partes, seja como um complexo.

Para essa seção sobre Jorge Andrade como pensador do teatro brasileiro, destacamos o

livro Jorge Andrade 90 Anos: (Re)leituras – Volume I: a Voz de Jorge (2012), que reúne

textos críticos, textos jornalísticos, entrevistas e depoimentos. Buscaremos destacar alguns

trechos em que Jorge Andrade sintetiza suas concepções de arte, suas intenções e seu processo

criativo, de modo a evidenciar sua posição de pensador do teatro brasileiro e da interlocução

entre arte e sociedade, visto que, para Jorge Andrade, o “teatro é expressão de um povo, de

um[a] sociedade, de um meio” (ANDRADE, J., 2012, p. 10).

Os trechos em destaque derivam de um texto crítico do próprio Jorge Andrade: Os

Ossos do Barão, escrito em 1965, e de duas entrevistas por ele concedidas: Rastro Atrás, fim

de um ciclo e novo início e Jorge Andrade, o repórter da decadência. No primeiro texto,

Jorge Andrade destaca que o plano de seu processo criativo estava organizado desde quando

estava na Escola de Arte Dramática:

Evidentemente que não estavam todas programadas. Algumas foram

substituídas, outras apareceram depois, duas ou três resultaram de outros

trabalhos. Mas todas tentavam exprimir uma mesma realidade.

Posteriormente, dividi este plano de trabalho em “peças rurais” e “peças

urbanas”, procurando mostrar sempre os dois lados do mesmo problema. No

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campo – o lado do fazendeiro e o do colono. Na cidade – o lado do

tradicionalista e o das novas classes. Procurei também não tomar partido,

registrando apenas as fases de um ameno processo. Por sua vez, todo o

conjunto seria uma peça conclusiva. Nas peças rurais incluí A Moratória, O

Telescópio, Pedreira das Almas, Os Coronéis e Vereda da Salvação.

As peças urbanas – As Colunas do Templo, As Moças da Rua 14, O

Incêndio, A Escada, Os Ossos do Barão e Allegro ma non troppo – seguiram

o mesmo desenvolvimento das peças rurais. Para esclarecer melhor, eu diria

que escrevi Os Ossos do Barão porque havia escrito A Escada. Uma conta a

história do aristocrata que caiu e a outra a do emigrante que sobe – partes de

uma mesma realidade social (ANDRADE, J., 2012, p. 39-40).

A noção de projeto fica evidente e, aos poucos, ela vai originando uma noção de ciclo

na obra de Jorge Andrade. Das peças citadas acima, Jorge Andrade reúne as que detêm a ideia

de um ciclo em desenvolvimento, com começo, meio e fim – formando assim o decálogo

Marta, a árvore e o relógio. Os ciclos buscam compreender distanciadamente como

momentos de crise e rupturas históricas resultaram em transformações sociais e como estas

influem na formação do indivíduo na sociedade. Para trabalhar essas questões, Jorge Andrade

parte de dois polos: o campo e a cidade.

As peças rurais e urbanas tratariam em bloco – tomando dois lados

antagônicos, mas profundamente enraizados na mesma realidade – da

decadência de uma sociedade e o nascimento de outra. Como misturar em

um todo conflitos rurais e urbanos? Somos um país de tradição de

monocultura e, em São Paulo, o café foi o fator preponderante na formação

da sociedade, ligando cidade e campo numa mesma expressão econômica e

política. Mas, como todo processo já traz em si o gérmen de sua própria

morte – aquela nova sociedade fatalmente encontrará a decadência, se as leis

que a regem continuarem as mesmas. A visão pessimista que pode encontrar

contida aí, não se refere aos destinos do homem, mas sim à sociedade que o

congrega.

[...]

Eu diria que o trabalho obedece a duas linhas-mestras: uma que parte de

Pedreira das Almas, determinada pelo fim do ciclo do ouro e vai terminar

em A Moratória, que anuncia o fim do ciclo do café e o começo do ciclo da

máquina. A outra parte de O Sumidouro – começo da formação das elites

paulistas, essencialmente agrárias – e vai terminar em A Escada, que por sua

vez anuncia a ascensão do emigrante, em Os Ossos do Barão – começo de

formação de uma nova elite essencialmente industrial, pois a ascensão do

emigrante coincide com o início do ciclo da máquina. O próprio movimento

determina a intenção do trabalho, pois ele parte das sesmarias e das

bandeiras e vai terminar no sítio, nas repartições públicas, nas seções dos

Bancos ou nas Fábricas.

Essas linhas aparentemente desligadas se entrelaçam em algumas falas em

todo o conjunto, ou em rememorações de família, citações de fatos e,

principalmente, na menção constante de três acontecimentos capitais: a crise

de 1929, a revolução de 1930 e a ascensão do emigrante. [...] transformando-

se assim, numa procura de “causa para a colocação problemática de uma

realidade brasileira”.

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Todo o meu trabalho tem se baseado e continuará se baseando nesta ideia.

(ANDRADE, J., 2012, p. 40-1)

A longa citação acima dá-nos base para compreender Jorge Andrade como pensador

de seu projeto teatral e de seu longo processo criativo. A ideia de ciclo, de painel da história

brasileira, também é corroborada em algumas entrevistas. Destas destacamos o trecho em que

diz: “Sempre afirmei, inclusive na peça [Rastro atrás], que pretendia fazer um painel do

mundo a que pertenci. Ambição e pretensão desmedidas? Loucura? Não sei. Mas pretendi isso

mesmo” (ELIZABTH et al. (Orgs.), 2012, p. 47). Todavia, é importante destacar que esse

painel é formado e guiado por uma perspectiva crítica e distanciada do mundo. Em

entrevistas, Jorge Andrade busca esclarecer seu ponto de vista crítico e seu engajamento

social diante da matéria histórica brasileira:

É uma vivência, mas não uma vivência integral. Há também uma grande

dose de crítica, que parte de dentro para fora. Eu não estou querendo destruir

aquilo que estou criticando. Criando uma coisa que existe como valor

fundamental da nossa sociedade. Eu acho que não se pode negar um tempo

que passou. E, sim, aceitar esse tempo, para poder criticar um presente, que é

sempre um fruto de um passado. Eu acho que a crítica só é realmente política

quando ela não é partidária, mas sim, quando há a compreensão de uma

realidade imediata. (ELIZABTH et al. (Orgs.), 2012, p. 61)

Além dos textos em que comenta sua criação, podemos considerar o decálogo Marta,

a árvore e o relógio (1970), e mais especificamente as peças metateatrais, Rastro atrás e O

sumidouro, como expoentes do dramaturgo como pensador do teatro. Isso se justifica porque

o decálogo é resultado de um projeto tanto estético e histórico quanto de discussão sobre a

função social da arte. No decálogo temos a articulação entre memória social e memória

individual, entre história e teatro. Além disso, o romance autobiográfico Labirinto (2009) traz

elementos para compreendermos Jorge Andrade como pensador, visto que nele discorre sobre

sua obra teatral pela forma narrativa do romance.

A partir dessas referências poderemos compreender o pensar sobre o processo criativo

interno à obra. Nesse sentido, a análise se desenvolve a partir de dois pontos cruciais. De

início iremos destacar passagens representativas da própria obra de Jorge Andrade em que o

autor discorre sobre a importância do papel do artista e da função social da arte, discussão

essa que não se restringe ao nível do conteúdo, mas também a forma artística. Não é por acaso

que esses momentos apareçam mais nas peças finais do decálogo Marta, a árvore e o relógio

e no romance autobiográfico: nesses materiais já se vê uma decantação de seu projeto

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estético-histórico, como a consolidação de um projeto. Nelas o autor se coloca na própria

obra, e exige um olhar distanciado sobre o todo.

Na sequência, iremos analisar como a crítica teatral pontuava a consciência criativa de

Jorge Andrade. Focaremos em críticos como Catarina Sant’Anna (1997) e Anatol Rosenfeld

(1970), pois analisam o ciclo Marta, a árvore e o relógio como um projeto de formação,

destacando a importância deste para compreender a postura de Jorge Andrade como pensador

de seu fazer teatral. A variedade formal do ciclo em torno de um projeto criado no embate

com o tempo histórico evidencia um dramaturgo preocupado com a dialética entre forma e

conteúdo (no campo interno à obra) (1), bem como na relação da obra com a sociedade (2),

atento e influenciado pelas estéticas do teatro moderno europeu e norte-americano (3), bem

como na sua apropriação brasileira (4). São quatro tópicos que constroem a perspectiva do

projeto de Jorge Andrade. Para isso estudaremos o dramaturgo paulista como pensador

atuando em três frentes no teatro brasileiro: pela formalização estética da matéria histórica

brasileira, pelo diálogo com as várias formas estéticas (utilizando-as conforme sua

compatibilidade com o conteúdo) e pela reflexão sobre os caminhos de modernização do

teatro brasileiro.

A princípio, é imprescindível observar que Jorge Andrade começou sua atividade

dramatúrgica ainda aluno da EAD. Depois de escritas algumas peças (como, por exemplo, O

telescópio (1951) e A moratória (1954)), percebeu que tinha em suas mãos o fio condutor de

uma história mais ampla, de tal modo que sua dramaturgia poderia se encaminhar para a

formação de um ciclo vasto e descontínuo da História Brasileira. Para isso, precisava

encontrar alguns momentos representativos dessa história, em que identificasse rupturas

claras, para então buscar uma forma nova para levar ao palco as questões ali inscritas.

Principalmente nas peças finais, fica evidente que Jorge Andrade expressa a História, não dos

vencedores, mas dos vencidos, em suas diversas modalidades, de modo que observa e analisa

a história a contrapelo (BENJAMIN, 1987).

Jorge Andrade se debruça na constituição do projeto por duas décadas e, num amplo

trabalho de revisitação, cria e modifica as peças conforme seu projeto teatral se torna claro,

fato que pode ser verificado na organização de seu processo criativo. Já pelo contraste entre a

ordem de escrita das peças e a localização histórica da diegese isso ganha expressão. A ordem

de escrita é: O telescópio (1951), A moratória (1954), Pedreira das almas (1957), Vereda da

salvação (1957/63), A escada (1960), Os ossos do barão (1962), Senhora na boca do lixo

(1963), Rastro atrás (1966), As confrarias (1969) e O Sumidouro (1969). Já a ordem

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diegética, ou seja, o tempo histórico da ação narrada, é assim constituído: O Sumidouro (séc.

XVII-XX), As confrarias (séc. XVIII), Pedreira das almas (séc. XIX – 1842), A moratória

(sec. XX – 1929/32), O telescópio (séc. XX – pós-1930), Vereda da salvação, A escada, Os

ossos do barão, Senhora na boca do lixo e Rastro atrás (1922/65).

O sumidouro, de fato, fecha e reabre o ciclo, visto que temos dois tempos diegéticos:

Fernão Dias em sua busca das esmeraldas, por um lado, e Vicente, o autor da peça, nos anos

1970, argumentando com o personagem sobre seu papel histórico, seus limites, seus enganos.

Deste modo, ela se encontra no início e no final do ciclo, e todas as outras peças ganham,

depois dela, uma perspectiva a partir da instância autoral. Esta não é neutra, mas crítica: não

há nem idealização do passado como tempo melhor do que o presente, nem uma acusação do

passado como lugar de um pensamento retrógrado. Antes se percebe o questionamento de

qualquer posição unânime e clara sobre o passado e sua atualidade gritante (em Jorge

Andrade o passado é muito vivo, ativo, não funciona como tradição gasta, acabada, pronta

para os museus). A impossibilidade da definição clara, contudo, não se faz a partir de alguma

ideologia pós-moderna que requeresse um vale-tudo significativo a partir de posições

idiossincráticas, subjetivas, mas o contrário disso: as posições dos sujeitos são objetivas, da

ordem da constituição de uma cultura a partir de relações de base, de infraestrutura, mas sem

nenhum determinismo. Afinal, os homens que refletem sobre sua condição objetiva podem

mudar seus pontos-de-vista. Isso permite, ou exige, que se investigue os pressupostos para a

formação de uma dada visão de mundo, que é tanto política, econômica, cultural, subjetiva.

A perspectiva de O sumidouro acaba se alastrando para as demais peças, por seu

caráter de jogo crítico entre o passado e sua apropriação pelo discurso dominante, o que

precisa ser feita pelo presente que já tem distância suficiente desse passado (uma das

discussões entre Vicente e Fernão Dias debate justamente o quanto este último foi um joguete

nas mãos da corte portuguesa). O jogo de contaminação entre as peças é formalmente

estabelecido, seja com as personagens que são mencionadas em várias peças, seja com os

objetos metafóricos recorrentes (os óbvios árvore e relógio, por exemplo), seja com uma

notação algo realista que se mantém entre as obras, seja pelo poema que fala de uma formação

entre as peças, seja pela sucessão temporal de crises históricas. Assim, a perspectiva

metateatral acaba se estendendo e alastrando pelas demais peças, entre as quais,

evidentemente, A moratória.

No processo criativo importam as transformações históricas do Segundo pós-guerra

(no mundo e no Brasil) e as inovações teatrais com o estudo e inserção de novas estéticas. Em

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virtude disso, Marta, a árvore e o relógio é considerado por muitos críticos como um painel

de quatrocentos anos da História Brasileira, formado pelo olhar minucioso e crítico da história

paulista. No qual o autor apresenta, comenta, explica, avalia e reinterpreta fatos históricos e as

preocupações estéticas do teatro brasileiro.

Para Décio de Almeida Prado (2009, p. 91), o centro da dramaturgia de Jorge Andrade

é “ele mesmo – e por extensão o Brasil. As experiências e vivências pessoais formam o

núcleo de uma reflexão que se foi dilatando através da geografia e da história até construir um

painel como não há outro pela extensão e coerência em nosso teatro”. Dessa forma, o longo

processo criativo e de constituição do decálogo expressa à posição de Jorge Andrade como

pensador, ao perceber que existe algumas constantes em nossa história, nas relações sociais

brasileiras e nas estruturas econômicas, que mantém a estrutura básica sempre a mesma.

Esse percurso de formação do decálogo, como do próprio autor e de sua consciência

histórica, pode ser observado no poema que inicia o ciclo e que finaliza o romance

autobiográfico, materializando a noção processual desse projeto:

Veio das sombras,

Da memória de todos os tempos.

Do menino nascendo, veio.

Veio das novenas, das lajes, dos terços

E dos sinos tangendo em monjolos e moinhos.

Do menino crescendo, veio.

Veio do orgulho, das árvores, das raízes

E de relógios sem ponteiros e máquinas Singer.

Do menino caminhando, veio.

Veio de estrelas já extintas e tão distantes

E de chuvas tão inúteis e de terras sem sementes.

Do menino falando, veio.

Veio do suor nas enxadas e das lágrimas nas peneiras

E da injustiça feita homem-Deus-colono.

Do menino observando, veio.

Veio de perfumes, leques, retratos

E de mulheres com camafeus e de cortinas de filé.

Do menino sonhando, veio.

Veio de balaústre, demandas, heranças, lustres

E do sangue feito canga ou coroa de espinhos.

Do menino amando, veio.

Veio de rastelos cantando canções estrangeiras

E de todos os sangues que não correm em mim.

Do menino sofrendo, veio.

Veio de tábuas largas, melindrosas, telha-vã

E do menino ouvindo os vissi darte e os vissi damore

Entre latidos de cães, pés na enxurrada e mangas no chão.

Do menino humilhado, veio.

Veio de livros roubados e de pedras procuradas.

Veio de momentos vividos e sonhados.

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Veio das sombras,

Da memória de todos os tempos.

Do menino libertado, veio! (ANDRADE, J., 1970, s/p.)

Como podemos notar, o poema representa o percurso de formação de um menino

(Jorge Andrade), que se organiza pelos verbos nascer, crescer, caminhar, falar, observar,

sonhar, amar, sofrer, humilhar e libertar. Menino esse, no entanto, que tem em si as memórias

de todos os tempos, de momentos sonhados, e “de todos os sangues que não correm em mim”

(Ibidem), de tal modo que pela expressão desse menino-adulto-escritor-pensador se fala da

História; essa só pode ser entrevista objetivamente quando trespassada pelo sujeito. Além

disso, representa o percurso de formação de sua obra, calcada na “memória de todos os

tempos”, sendo esta, individual e coletiva.

Podemos destacar alguns elementos rememorativos do poema que fazem parte da

formação do decálogo, isto é, as “árvores”, as “raízes” (árvore genealógica que permeia os

ciclos), os “relógios sem ponteiros” (representando a estagnação, o tempo parado, sem retorno

à condição econômica de determinado grupo), a presença marcante das mulheres (por

exemplo, Marta). Três elementos, ou melhor, imagens-elo52 que nomeiam o decálogo e que

ligam as peças. Também de temas que se inserem nas peças, como “as chuvas tão inúteis”

para A moratória, a “injustiça feita homem-Deus-colono” de Vereda da Salvação, a “herança”

de tradições obsoletas que permeia várias peças, as “pedras procuradas” d’O sumidouro, etc.

(ANDRADE, J., 1970). Em síntese, o percurso exposto no poema de Jorge Andrade pode ser

entendido como uma das expressões do projeto de sua obra, em constante análise, pesquisa,

observação (memória) e na busca por libertação da arte e do indivíduo. Interessante como um

projeto de 20 anos e mais de 600 páginas ganha concisão e contundência num poema de uma

página, e que não será mais explorado por já ter servido a seu propósito nos limites dessa

dissertação.

A consciência desse projeto estético-histórico, de grande envergadura, está bem

consolidada em Jorge Andrade. Isso pode ser atestado pelas peças com teor autobiográfico

que encerram o decálogo: Rastro atrás e O sumidouro. Ele busca, por meio delas, dar

arremate a seu trabalho. Depois de analisar o mundo de seus ancestrais e de seu grupo social,

para compreensão do tempo presente, o autor se debruça sobre seu papel como artista na

sociedade, bem como sobre os problemas que enfrentou para romper com esse mundo do

passado e da memória. Nestas peças, o dramaturgo paulista perspectiva, brechtianamente, sua

52 Termo empregado por Catarina Sant’Anna no livro Metalinguagem e teatro: a obra de Jorge Andrade.

Cuiabá: EdUFMT, 1997, 390p.

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posição de escritor nos anos 1960. O personagem Vicente funciona como um raisonneur

crítico, único aceitável no século XX, que coloca não uma moral a ser seguida, mas questões a

partir das quais se pode pensar sobre o passado, o presente e, por extensão, a construção do

futuro. Por meio deste personagem formaliza esteticamente questões como a função social da

arte, o papel do artista na sociedade, as escolhas formais (principalmente na última peça), o

ofício de escritor/dramaturgo no contexto histórico conturbado e a resistência artística pós-

golpe militar de 1964.

Em Rastro atrás (a partir de agora, R. A.), metáfora do escritor que retorna pelo

caminho trilhado para compreender sua obra através de um olhar crítico e distanciado (sem

nostalgia ou acusações), temos a formalização da problemática sobre a função social da arte e

do artista na sociedade brasileira. Isso se dá por meio do diálogo de Vicente com sua esposa

Lavínia, com seu pai João José, com sua avó Mariana e, sobretudo, consigo mesmo (Vicente

está com 43 anos no presente da diegese, mas ele se confronta consigo mesmo aos 05, 15 e 23

anos, por vezes concomitantemente no palco – e não como mero devaneio).

Desses momentos destacamos alguns trechos, dentre eles a conversa entre Vicente

(43anos) e Lavínia (sua esposa) em torno do recebimento de um prêmio teatral. Diante do

reconhecimento, Vicente avalia criticamente a posição do escritor teatral na sociedade

brasileira e a dificuldade de fazer teatro no contexto de ditadura militar:

Vicente: (Olha o prêmio em suas mãos) Com esse são oito em meu

escritório... e estou só diante deles. E como eu, muitos! Com encenações que

não obedecem a nenhum objetivo, ninguém pode se sentir realizado. Cada

espetáculo se transforma em questões de lucros e perdas! Como um autor

pode criar, se precisa pensar em número de personagens, temas proibidos,

censura, intolerância política...? (R. A., 1970, p. 187)

Vicente também dialoga com sua esposa sobre o encaminhamento de seu teatro e as

dúvidas que surgem perante a relevância social de seu trabalho. Lavínia discorda do receio do

marido e busca reforçar o valor de seu papel como artista e de seu projeto para o teatro

brasileiro, dizendo: “Tem muita importância, Vicente! Seu trabalho fala de uma realidade

nossa. Uma estória sua! Importante ou não, é a que tem para contar...!” (R. A., 1970, p. 498-

9). Além disso Vicente expressa, na conversa com a esposa, a consciência de seu dever como

escritor, dizendo que sua obrigação “é denunciar o que está errado, é dizer a verdade [...]. Doa

a quem doer”, visto que o teatro não pode “fazer tudo o que o público quer” (R. A., 1970, p.

507-8). E, no último trecho em destaque, Vicente faz uma análise crítica sobre seu trabalho e

a necessidade de andar rastro atrás para compreender a função social da arte e de seu teatro:

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Vicente: Compreenda, meu bem! Estou com mais de quarenta anos e ainda

lutando para me realizar. Preciso me comunicar... de uma maneira ou de

outra! Mas, sinto que falta sentido em tudo! (Subitamente, atormentado e

consigo mesmo) Será que estou no caminho errado, Lavínia? Vivemos numa

sociedade em crise, de estruturas abaladas, valores negados, soluções

salvadoras que não levaram a nada! (Obsessivo) Qual o caminho certo?

Onde achar reposta? No presente? No passado? Será que fiquei apenas em

lamentações sobre a decadência... sem ter saído dela?

Lavínia: Você está no caminho certo, Vicente! Se não vencer seus

fantasmas, não terá paz. (R. A., 1970, p. 507-8)

Vicente precisa repisar seus passos para entender porque um artista é tão importante

quanto um caçador, ou um fazendeiro, haja vista que ele vive no mundo da lua, ou seja, da

ficção. De que modo a ficção pode nos fazer compreender melhor nossa posição no mundo

das coisas, no mundo material, e se tornar vital? Isso em uma sociedade cada vez mais

alienada, em que cada um vive um mundo próprio, fechado em seus afazeres, profissões,

limitações, sem sequer ter tempo para entender as determinações mais amplas dessa estrutura

social? Pode a arte, nesse contexto, ser mais do que um campo para o entretenimento? Essas

são questões fundamentais para essa peça.

Em Rastro atrás, o dramaturgo Vicente se volta para dentro de sua vida. Em O

sumidouro (a partir de agora, S.), Vicente (não se fala que seja o mesmo personagem, embora

essa leitura seja muito plausível) analisa que “depois de acabar com os demônios familiares, é

preciso exterminar os [demônios] culturais” (S., 1970, p. 534). Nesse sentido, o dramaturgo

Vicente volta ‘rastro atrás’ na vida de sua personagem Fernão Dias, sendo esta retirada da

historiografia brasileira, que já lhe conferiu certos traços fundamentais – e todas essas

dimensões participam da obra teatral. Na peça, Vicente busca compreender e explicar para a

personagem Fernão Dias o seu lugar na história do Brasil, mostrando-lhe como foi

manipulado pela coroa portuguesa e que tomou decisões equivocadas ao defender a coroa – e

não o seu filho e seu povo.

A revisitação da matéria histórica dos bandeirantes é formalizada por Jorge Andrade

pelo personagem-dramaturgo Vicente, especialmente no momento em que este dá vida à

Fernão Dias. Mas essa revisitação não é guiada pela perspectiva histórica dos ganhadores,

mas sim pela busca de compreender, distanciadamente, os erros e os equívocos de

personalidades tomadas como heroicas. Assim sendo, Vicente dialoga (nos dois trechos

seguintes) com sua criação, de maneira a explicar sua perspectiva de historiador materialista e

os recursos formais que utilizará para interpretar a História:

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Fernão Dias: Por que começar pelo fim?

Vicente: Porque se trata de sua vida e precisa voltar dentro dela. Estou diante

de você, porque voltei dentro da minha. Podemos vê-la, inteira, no instante

de morrer.

Fernão Dias: Ver para quê?

Vicente: Para salvá-lo da mentira. Deseja viver só na imaginação de

historiadores medíocres que pactuaram com toda sorte de injustiças?

Compiladores que o apresentam como desbravador heroico, alargando

fronteiras? Não é melhor viver na verdade? Mesmo que seja amarga?

[...]

Vicente: [...] a história tem sido escrita pelos ganhadores! Nela José Dias só

existiu no crime. Isto também é matar. Seu filho precisava mesmo

desaparecer, era necessário apagar a imagem dele. (Cochicha) É muito

perigosa. (S., 1970, p. 536 e 563)

Com base na citação podemos perceber que a discussão sobre a função social da arte

não se restringe ao nível do conteúdo (Fernão Dias no Brasil atrás das esmeraldas etc.), mas

também da forma teatral, absolutamente inovadora e aberta. Isto é, Jorge Andrade formaliza

na obra, por meio do personagem Vicente, a discussão sobre como a historiografia tradicional

usa o discurso dos dominantes para inscrever a sua verdade como única possível. Isso é feito a

partir de uma suposta neutralidade científica e pelo silêncio sobre a leitura de outras

perspectivas. Uma das maneiras de ir contra essa escrita da história é a perspectiva da arte,

especialmente se ela não requerer a mesma neutralidade. Vicente tem uma visão de mundo, e

ele a coloca como ponto de partida para suas considerações. Sendo assim, a matéria da peça

não é apenas a história de um dramaturgo atormentado, sonhando com seus personagens, ou

de Fernão Dias simplesmente. A matéria da peça é a possibilidade da arte (da construção

estética) de escrever a história contra a corrente dominante. Para isso, a discussão é

metateatral: discute-se os pressupostos das formas, sejam elas da escrita da história ou da

escrita artística. Esse material exige o teatro épico, pois evidentemente não pode se restringir

ao conflito entre subjetividades. Aliás, Vicente e Fernão nem estão no mesmo plano histórico

ou diegético: cada um está em seu tempo, sendo o segundo (Fernão) criação do primeiro

(Vicente). O conflito é sobre a operação de um aparelho ideológico pelas formas tradicionais

de escrita.

Esta peça pretende dar o arremate em seu projeto teatral (guiado pelo signo da

procura) por meio da revisitação da história dos bandeirantes, constituída pela perspectiva dos

vencedores, para assim observá-la pela perspectiva dos vencidos, a de José Dias (filho de

Fernão Dias). Nesse percurso Vicente (dramaturgo) e Fernão Dias (personagem) dialogam

sobre o processo criativo da obra e sobre a relação entre arte e sociedade, visto que a arte não

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apenas reproduz conceitos predeterminados, mas produz, age sobre o mundo material –

discussão formal essa que pode ser analisada à luz de Raymond Williams53. Todavia, é

importante destacar que esse diálogo entre dramaturgo e sua personagem é baseado em um

distanciamento crítico, que está evidente em falas de Vicente como: “Você é a minha

personagem mais querida, o trabalho de longos anos” e “Você é personagem porque foi usado

em nome de coisas falsas” (S., 1970, p. 556 e 566).

A peça O sumidouro evidencia a relação entre arte e sociedade ao passo que formaliza,

esteticamente, a revisitação da matéria histórica brasileira através de uma visão distanciada da

história (como podemos ver no trecho abaixo) e de modo a formar novos pontos de vista:

Fernão Dias: (Para, cansado) Por favor... não continue. Não quero mais

saber.

Vicente: Estamos estranhamente ligados! Dependemos um do outro... e seu

filho de nós. Nossa verdade é uma só. Precisamos saber o que foi que ele

encontrou.

[...]

Vicente: Compreenda que você só terá importância na medida em que

descobrir isto, não pelo heroísmo de sua bandeira. Ela, em si, é apenas mais

uma aventura. A história está cheia de aventuras, e mais importantes que a

sua. Quem vai manter você vivo, não será o filho que foi cópia, que

mergulhou no rio para buscar seus ossos, mas que cometeu traição por

acreditar. Esta é a vingança dos filhos diferentes... e é neles que as

contradições se manifestam. Não quer conhecê-las? Não precisa temer. As

minas eram necessárias, não para fazer o rei depender de seus filhos, mas

para que um dia ele deixasse de existir, agora, comporte-se como a grande

personagem que é... e ouça.

Fernão Dias: Sou prisioneiro seu.

Vicente: E eu de você. (S., 1970, p. 566)

Vicente tenta descobrir o significado de sua procura no mergulho no outro e Fernão

Dias, ao procurar suas pedras, acaba encontrando verdades amargas no mergulho em si. Na

busca de respostas ao revisitar o passado, Vicente encontra o que procurava – a libertação dos

mortos e de seu teatro, isto é, encontrou “o sentido de tudo”, a necessidade de compreender o

homem brasileiro e suas problemáticas no tempo e no espaço (S., 1970, p. 585).

No romance autobiográfico Labirinto, de 1978, Jorge Andrade (narrador), em meio ao

fluxo de consciência, deixa bem marcado o projeto de sua obra, ao discorrer sobre: sua

relação com a história, o processo criativo, os interesses em jogo, suas influências etc. Jorge

53 Para o aprofundamento dessa questão, Cf: CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo, Paz e

Terra, 2001, especialmente sobre o tópico materialismo cultural, na acepção de Williams. O qual desenvolve que

a cultura não é apenas reprodução de relações de base, de nível infraestrutural, mas também é produção ela

mesma, agindo sobre a sociedade e contribuindo com o modo como os homens pensam e agem. Essa discussão é

fundamental para uma obra como a de Jorge Andrade, sendo o limite dela a obra O sumidouro.

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Andrade era consciente de sua posição de escritor e da necessidade de, teatralmente, voltar

criticamente ao passado para compreender o mundo atual e como isso moldou o homem em

sociedade. Nesse sentido, podemos destacar um longo trecho no romance, no qual reflete

sobre a relação entre arte e sociedade e a necessidade de desmistificar o passado:

Vejo-me entrando embaixo da cama branca para esconder meus preciosos

livros. Olho à minha volta e compreendo que foi nos livros que busquei a

verdade. Foi lendo dezenas deles que consegui encontrar a verdadeira face

do bandeirante, nos livros que são “comprimidos de vida”. Neles, procurei e

encontrei o tema das “bandeiras”. Mais do que isto: a desmistificação da

gesta paulista da busca do ouro e das esmeraldas, da terra fosforescente.

Mais do que isso ainda: eles permitiram a mais funda descida às minhas

profundezas. Compreendo por que me coloquei em cena, dialogando com os

personagens, refratadas, analisadas à luz dos resultados históricos da sua

ação. Mergulhando até às raízes da aventura colonial – mas sempre com

perspectiva dialética – dei, em sangue e em raciocínio, as misérias e

grandezas do Brasil épico, que principia a separar-se de Portugal. [...] [José

Dias] Espécie de Brutus sertanejo, debate-se entre o amor filial e o

imperativo de uma justiça nova, que os usos da época ainda não consentem.

E é nesta angústia que a sua identidade brasileira se afirma. [...] Certas

personagens morrem enforcadas na árvore da história já feita, petrificada,

que deve servir de exemplo esclarecedor, ou de aviso, ao presente.

Compreendo que critiquei o fato histórico à luz de uma ideologia, mas

jamais obliterei ou diminuí o que, na altura própria, era como que inevitável,

decorrente das condições sociais e econômicas (ANDRADE, J., 2009, 254-

5).

Com base na citação, podemos afirmar que a obra de Jorge Andrade se inscreve na

literatura social ao partir de uma memória tanto individual quanto coletiva para compreender

as transformações sociais, históricas e estéticas, visto que “tudo o que há de melhor ou pior no

Brasil de hoje nasceu no de ontem. Daí a necessidade de se localizar o passado no presente”

(ANDRADE, J., 2009, p. 256). Em síntese, seu projeto de obra é explicado em suas palavras:

“Buscando a mim mesmo e o meu chão na engrenagem da sociedade moderna, tentei fixar o

drama do homem e da terra paulista dentro da história” (Ibidem, p. 292).

Críticos como Anatol Rosenfeld e Catarina Sant’Anna distinguem Jorge Andrade

como um pensador do teatro que passou a ter compreensão da magnitude de seu projeto

estético e histórico. Partindo daí, buscou trabalhar a matéria histórica empregando todas as

possibilidades estéticas com que teve contato. Isso confere uma noção da totalidade que

marca seu projeto. Isto, contudo, não se deu de início, pois ao escrever O telescópio, drama

realista sobre a decadência da aristocracia rural, ainda não supunha chegar a O Sumidouro,

distante da estética realista e marcada por recursos expressionistas e do Teatro Épico.

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Marta, a árvore e o relógio, ao expressar momentos de rupturas, crises e

transformações sociais, não utiliza seguidamente uma mesma forma estética, visto que as

modificações no âmbito do conteúdo exigiram mudanças formais. Nesse sentido, o ciclo se

desenvolve por meio de peças com elementos de tragédias (As confrarias, Pedreira das

almas), por peças marcadas por recursos realistas (O telescópio, A moratória) e por recursos

épicos (Vereda da salvação, O sumidouro), de comédias (Os ossos do Barão) e de peças

metalinguísticas (A escada, Rastro atrás, O sumidouro). Cabe notar que essas formas sempre

são perspectivadas por um autor consciente da ideologia nelas inscritas, de tal modo que o

resultado final carrega sempre um elemento do teatro épico: um distanciamento crítico em

todos os níveis da composição artística.

A compreensão do projeto inteiro fica evidente, por exemplo, no fato de Jorge

Andrade não iniciar Marta, a árvore e o relógio com sua primeira produção, mas por uma das

suas últimas peças, As confrarias, uma tragédia que busca romper com a forma do gênero. Ao

colocar a personagem Marta como uma instância narrativa da peça, já o faz propositalmente:

esse nome representa mães e uma posição crítica ao longo de todo o ciclo, aparecendo em

várias peças, chegando ao título do próprio decálogo. Logo de início insere uma personagem

como mola propulsora do ciclo, que mantém distância crítica sobre os fatos narrados, expressa

o pensamento crítico de Jorge Andrade e incorpora o espírito crítico e revolucionário do povo.

Além disso, também insere os outros elementos que, com Marta, dão nome ao ciclo: o relógio

(tempo fixo/parado, estagnado, além de um passado vivo) e a árvore (natureza, árvore

genealógica, raízes). Em virtude disso, os críticos observam a consciência que o escritor tinha

da importância da ideia de ciclo.

De acordo com Catarina Sant’Anna a ideia de ciclo54 e a consciência de que estaria

construindo um amplo painel da História do Brasil começou a se formar “à medida que as

peças iam sendo publicadas separadamente e provocando comentários dos críticos a respeito

de seu conteúdo”. A partir dessa tomada de consciência, Jorge Andrade passa a unir as peças

por temáticas com sequências interligadas, com começo, meio e fim (SANT’ANNA, 1997, p.

26).

54 No texto Metalinguagem e teatro: a obra de Jorge Andrade (1997), Catarina Sant’Anna pesquisa e analisa

todo o percurso dramatúrgico de Jorge Andrade, o qual separa em dois ciclos. O primeiro ciclo (o que nos

interessa mais de perto aqui) ela denomina de “ciclo 1”, “ciclo do passado”, “ciclo da memória” e “ciclo

paulista”. Não nos debruçaremos sobre o que ela denomina de segundo ciclo (pós-1970), mas, a título de

curiosidade, as peças que o compõem são: Milagre na Cela (1977); O Incêndio (1979); As Colunas do Templo

(1952 – apesar da data, essa peça não foi incorporada ao ciclo Marta...); A Receita (1968); Zebra (1978); A Loba

(1978) e A Corrente (1980).

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Sant’Anna (1997) acredita que essa consciência se formou já em 1957, visto que a

partir desse momento as produções de Jorge Andrade são guiadas pela organização do ciclo.

Por exemplo, a peça Pedreira das almas é escrita com a finalidade de empreender a passagem

de um ciclo para outro, isto é, do esgotamento da vias áureas em Minas Gerais à esperança de

colonização do sudeste paulista – marcando o início do ciclo do café, aprofundado por A

moratória e O Telescópio (peças anteriormente escritas). Pedreira das almas é uma tragédia

que coloca em choque frentes antagônicas – forças conservadoras e ideais libertários – através

de um diálogo solene que acaba se distanciando da estética realista e do realismo psicológico

das peças iniciais.

Ainda em 1957, outra peça que começou a ser escrita foi Vereda da salvação,

finalizada após oito versões apenas em 1964 (Magaldi, 1970, p.634). Ela marcou uma guinada

de tema, perspectiva e recursos estéticos. Nesta peça marcada por recursos épicos surge como

tema o messianismo – fanatismo religioso como caminho libertário para opressão –, narrado

pela perspectiva épica dos de baixo, os trabalhadores do campo (diferentemente das

anteriores, narradas pela perspectiva dos de cima, dos donos de terras). Assim sendo, em

Vereda temos a mudança de primazia da matriz realista pelo teatro épico, mudança que se

justifica pelo fato de Jorge Andrade, no início de seu processo criativo (1951), não conhecer

ainda o teatro de Bertolt Brecht, visto que este só foi encenado profissionalmente pelo TMDC

em 1958. Essa guinada em seu projeto pode ser entendida à luz da história do teatro brasileiro

e de seu envolvimento com o movimento de modernização do teatro, pois a partir do final dos

anos 1960 o teatro brasileiro já procurava formas para discutir os temas até então deixados de

lado, das classes menos favorecidas; busca que encontrou um diálogo muito produtivo com o

Teatro Épico de Brecht. Em suma, segundo Sant’Anna (1997, p. 63), a “fricção de formas

teatrais diversas (tragédia, comédia, metalinguagem) se dá exatamente no meio do ciclo,

numa virada de década em que o teatro brasileiro já sofre transformações substanciais” e que

levam Jorge Andrade a “ensaiar novos caminhos formais”.

Esses novos caminhos são pontuados por Anatol Rosenfeld no ensaio Visão do ciclo

(1970). Neste texto, o crítico discorre sobre a presença de múltiplas influências no decálogo

Marta, a árvore e o relógio, como podemos ver na significativa citação abaixo:

Debruçado sobre a realidade paulista e brasileira e seus aspectos históricos,

sociais e psicológicos, o autor tende na recriação e interpretação deste

mundo a variadas formas de realismo, desde o psicológico até o poético

(pondo de lado uma peça de rigor quase clássico como Pedreira das Almas).

É um realismo maleável, capaz de assimilar recursos expressionistas e

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simbólicos e abrir-se a processos do teatro épico e anti-ilusionista. O diálogo

é forte, seco, incisivo, cuidadosamente trabalhado para reproduzir, de forma

estilizada, a fala dos personagens segundo a origem e o status social –

diálogo, aliás, que pela sua retórica contida e muito pessoal, pelo jogo de

metáforas e por certa ênfase disciplinada, revela ambição literária superior à

maioria dos dramaturgos brasileiros contemporâneos. Os caracteres,

situações, tensões e conflitos são, da mesma forma, solidamente elaborados

por quem conhece o ofício do dramaturgo. Apesar da multiplicidade de

recursos dramático-cênicos empregados, as peças de Jorge Andrade não são

o resultado de experiências formais gratuitas. A amplitude e variedade de

seu realismo, que não teme a inovação ousada, chegando por vezes a romper

todos os cânones tradicionais, corresponde exatamente aos problemas

dramatúrgicos propostos pela temática e pela experiência a ser comunicada.

(ROSENFELD, 1970, p. 600)

Conforme Rosenfeld (1970), o realismo crítico de Jorge Andrade abre-se, a partir da

dialética entre forma e conteúdo, para a utilização de novos recursos dramático-cênicos como,

por exemplo, do naturalismo, do realismo psicológico, do expressionismo e do teatro épico.

Assim sendo, a dramaturgia de Jorge Andrade passa seguidamente por vertentes estéticas

diferentes, cada uma com suas particularidades. Logo, é presumível que as influências não se

limitem a uma peça, mas que variem de acordo com o trabalho sobre a matéria histórica,

conforme veremos a seguir. Portanto, a escolha formal não ocorre ao acaso, mas depende de

todo um trabalho de pesquisa e reflexão sobre a relação entre arte e sociedade. Nesse sentido,

podemos compreender Jorge Andrade como pensador do teatro em três frentes principais: na

formalização da matéria social brasileira, na pesquisa de novas formas estéticas e no caminho

de renovação do teatro brasileiro.

Na frente brasileira, o teatro de Jorge Andrade busca formalizar esteticamente

momentos de ruptura, de crise econômica e de transformações nas relações sociais brasileiras,

marcado no ciclo Marta, a árvore e o relógio por temas como o apresamento do índio, o

depauperamento das vias áureas, o início e a derrocada da economia cafeeira e da aristocracia

rural, a urbanização, a colonização por imigrantes e a industrialização. Esse trabalho no plano

temático é guiado por um distanciamento crítico, de modo a evitar o panfleto fácil, expondo

as contradições sociais em passagens históricas que a sociedade brasileira necessita observar

para assim compreender seus reflexos na estruturas atuais.

O compromisso com o momento histórico é bem visível se levarmos em

consideração o enredo de suas peças e a forte ligação que elas tinham com a

História brasileira, tentando, por exemplo, retratar a realidade com uma

profundidade que levava à crítica social, fazendo com que o homem tivesse

consciência de seu passado e de sua função dentro de um mundo novo

repleto de desafios. Era uma nova temática que nascia no teatro brasileiro,

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mostrando as tensões sociais e os dramas que existiam por trás da máscara

da tradição. (NAZÁRIO, 2012, p. 59)

A investigação de Jorge Andrade sobre a matéria histórica brasileira foi impulsionada

pela interlocução com críticos e intelectuais de literatura e de teatro brasileiro e com

historiadores. Do diálogo com os historiadores, Jorge Andrade estabeleceu os alicerces para

compreender a formação histórica das estruturas sociais brasileiras e, consequentemente,

recolheu material para entender o homem brasileiro.

O dramaturgo paulista fundamentou-se em nomes como Sérgio Buarque de Holanda,

Gilberto Freyre e Caio Prado Junior, especialmente em suas obras básicas para a formação da

intelectualidade brasileira após a revolução de 1930. Por meio desses autores e de suas

pesquisas acerca da nacionalidade brasileira pôde absorver a “busca das origens da identidade

brasileira, alicerçada na questão da ruralidade, principalmente quando se trata da

colonização”. Com isso, reivindica a valorização do passado para se compreender o presente e

caminho para se localizar também o contexto histórico de modernização do país. País este

constituído sobre bases conservadoras, visto que as estruturas do passado eram mantidas no

presente, contribuindo para a constituição da inserção brasileira na economia capitalista

(ARANTES, 2008, p. 45 e 50).

Para discorrer sobre questões da sociedade brasileira, Jorge Andrade vai buscar

elementos das formas estéticas mais relevantes do teatro moderno europeu e norte-americano.

Para compreendermos sua dramaturgia devemos sempre ter em mente que o dramaturgo

brasileiro insere-se num contexto histórico do teatro brasileiro (marcado pela Escola de Arte

Dramática e pela profissionalização do teatro) que parte de um plano europeu e americano.

Isto é, remete à leitura e à pesquisa, mais especificadamente, do teatro norte-americano e dos

seus dramas modernos, de modo a buscar um novo repertório formal que dialogasse com o

contexto histórico de pós-Segunda Guerra Mundial. Para fazer uma lista rápida, o teatro de

Jorge Andrade se destaca pela interlocução crítica com a dramaturgia de Ibsen, Eugene

O’Neill, Anton Tchekhov, Arthur Miller, Tennessee Williams e Bertolt Brecht. Não nos

deteremos em aprofundar todas as influências, mas de observar brevemente o desdobramento

de algumas, em especial, na formalização estética da matéria histórica presente no decálogo

Marta, a árvore e o relógio.

As primeiras peças escritas por Jorge Andrade, O telescópio e A moratória, são

marcadas pela interlocução com as vertentes do naturalismo, do realismo e do realismo

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psicológico. Com base nessas vertentes pode dialogar com a matéria histórica de um contexto

de crise – queda da economia cafeeira e derrocada da classe dos grandes aristocratas rurais.

Tomando A moratória como exemplo, ela é uma peça nitidamente realista, pois coloca

no palco as ações que levaram à crise uma família de fazendeiros. Com isso trabalha, por uma

variante do realismo de Arthur Miller, os conflitos entre o indivíduo e a sociedade na crise das

relações familiares. A peça narra esse travamento do mundo nas relações pessoais de maneira

distanciada, pois não culpa as personagens por suas ações, mas as observa em seu lugar de

fala, em seu grupo social. Deste modo, utiliza um elemento tipicamente naturalista, da

memória (individual e coletiva) de um passado recente e do grupo social que pertence à

família de Joaquim.

A interlocução da peça A moratória com A morte de um caixeiro viajante de Arthur

Miller é inegável, devido ao trabalho primoroso dos conflitos familiares encarnando os

sociais, além do cuidado com a questão do tempo e da memória. Além disso, para a

construção das personagens a peça recorre a aspectos do realismo psicológico norte-

americano, de Tennessee Williams, embora essa construção não se limite a discursos

individuais, pois se trata de personagens que também representam discursos que extrapolam o

âmbito do indivíduo. Portanto, Jorge Andrade recorre a estéticas que buscavam dar conta dos

novos conteúdos sociais que estavam surgindo, para trabalhar uma matéria histórica ainda em

discussão no teatro brasileiro, a decadência da aristocracia rural e o crescimento dos centros

urbanos impulsionado pela Revolução Industrial.

Depois da interlocução com o naturalismo e o realismo psicológico, o realismo crítico

de Jorge Andrade abre-se com uma ênfase cada vez maior para os recursos épicos – que, no

entanto, já estavam presentes em A moratória, por exemplo, no modo como os dois tempos da

peça (1929 e 1932) se perspectivam mutuamente. Isso ocorre, como já destacado, pela

chegada de Brecht ao Brasil, autor que passou a ser decisivo nas produções de Jorge Andrade.

Os primeiros recursos expressionistas utilizados por Jorge Andrade podem ser vistos

já entre 1957/64 com Vereda da Salvação, no distanciamento da matéria histórica; na

perspectiva dos de baixo (trabalhadores do campo), no espaço aberto (floresta), na quantidade

de personagens em cena, etc. A utilização desses recursos estéticos contribui para a

formalização da matéria história em Vereda: a decadência do meio rural, o fanatismo que

ganhava força perante as estruturas sociais injustas, a discussão sobre a posse da terra, os

conflitos familiares, a realidade urbana, etc. – temas que reaparecem em outras peças.

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Em Rastro atrás, peça escrita em 1966, Jorge Andrade passa a utilizar recursos

expressionistas com maior vigor, embora ainda utilize recursos épicos e realistas. O

expressionismo na peça pode ser observado pelo fato do dramaturgo colocar em cena quatro

Vicentes, isto é, o Vicente (43 anos) narra os acontecimentos e busca entendê-los ao

contracenar consigo mesmo com cinco, quinze e vinte e três anos de idade. Além disso, utiliza

de flashes e de projeções que são trabalhadas em “chave expressionista” (R. A., 1970), o que

está marcado nas próprias rubricas da peça.

O retorno rastro atrás (caminho de volta) busca respostas para compreender os

problemas da arte e do artista no contexto histórico brasileiro da década de 1960. Esse

contexto histórico é formalizado pelo travamento das relações familiares e, principalmente,

pela incompreensão entre as personagens, que estão em presença mas em mundos isolados

uns dos outros. Isso indica a influência de A. Tchekhov, especificamente da peça Três irmãs,

visto que ambas expõem mundos travados, diálogos quebrados, que parecem não funcionar.

A peça As confrarias (penúltima a ser escrita, mas a primeira no tempo ficcional)

apresenta os traços de um dramaturgo maduro, experimentado e vivido. Ela trabalha o tema

da luta dos excluídos sociais por meio da peregrinação de Marta com o cadáver insepulto do

filho, o que é realizado por recursos épicos os mais variados. Marta, personagem que narra os

acontecimentos, busca enterrar seu filho nas Confrarias mineiras e, passando por essas

Confrarias, conta a história do filho e a sua própria. Deste modo, Marta utiliza o corpo

insepulto do filho para pensar sobre a hipocrisia das estruturas que aprisionam: no caso, o

Estado e a Igreja. Escrita em 1969, sua diegese remonta ao século XVIII, servindo como

metáfora para a crítica ao atual momento pelo qual o Brasil vinha passando, da Ditadura

Militar – em que um Governo de caráter repressor feria a liberdade de expressão artística.

Portanto, podemos ver que, além de Jorge Andrade fazer uma revisitação crítica da história de

nosso país, ele realiza uma crítica indireta ao atual momento da sociedade, atribuindo assim

ao teatro brasileiro uma função que vai além de apenas entreter a sociedade burguesa.

O Sumidouro, última peça escrita, tem também a diegese mais atual cronologicamente,

embora discorra sobre os bandeirantes e o apresamento dos índios. Como vimos, ela se passa

concomitantemente no século XVII e no XX. Com função de fecho e de arremate, o

dramaturgo Vicente tem em seu escritório fotografias grandes de Tchekhov e Eugene O’Neill,

e menores de Arthur Miller e Bertolt Brecht, como homenagem a dramaturgos que lhe

forneceram inspiração para seu processo criativo.

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Jorge Andrade, em O sumidouro, busca localizar historicamente, por meio de recursos

épicos e metalinguísticos, a figura de Fernão Dias, a chegada dos bandeirantes ao Brasil e a

apropriação dessa história em chave crítica. Esse plano temático é guiado por uma relação

distanciada que busca, via Brecht e teatro épico, discutir o mal nacional que é o apagamento

da história. Com isso, pretende mostrar que é preciso fazer uma revisitação histórica sem

preconceitos e sem buscar heróis ou também vilãos – mas tentar entendê-los, ao passo que

dialetiza a posição desses personagens históricos. Segundo Sábato Magaldi (2010, p. 52), O

sumidouro “materializa a metáfora de um grande país colonizado, que se escraviza pela

exploração multinacional”.

Na dramaturgia de Jorge Andrade, o percurso de pesquisa e de assimilação das

vertentes estéticas – europeias e norte-americanas do teatro moderno, pode ser observado com

base na recepção de autores dessa linhagem no Brasil. O dramaturgo paulista, assim como o

teatro brasileiro, busca nestas formas caminhos para a renovação, pensando no início de um

moderno teatro brasileiro. Jorge Andrade, atento ao emprego das formas modernas no teatro

brasileiro e interessado em desenvolver uma dramaturgia nacional e moderna, pode ser

compreendido com base na influência da Escola de Arte Dramática, do Teatro Brasileiro de

Comédia, do Teatro de Arena e do diálogo posterior com Augusto Boal.

Em síntese, Jorge Andrade realiza um teatro crítico que procura, no retorno ao

passado, entender os impasses de momentos de crise e de rupturas históricas, bem como as

reverberações no tempo presente. A relação com o passado, porém, não é baseada numa visão

nostálgica ou de culpabilidade, mas de distanciamento crítico, por meio do qual problematiza

a História e foge do panfletário. Portanto Jorge Andrade, como pensador do teatro, avalia e

interpreta a matéria histórica brasileira pela perspectiva do historiador materialista e realiza a

formalização de temáticas brasileiras por apropriações estéticas do teatro moderno europeu e

norte-americano de sua época.

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Capítulo 3. Café e A moratória: formalização estética da crise de 1929/30

Este capítulo tem como objetivo analisar a formalização estética da crise de 1929/30

em Café, de Mário de Andrade e em A moratória, de Jorge Andrade. Todavia, o estudo não

tem o intuito de realizar uma análise sistematicamente comparada pelas categorias de espaço,

tempo, ação, mas compreendê-las numa perspectiva dialética, procurando analisar como

recursos épicos distintos operam em cada uma delas; o que se deve tanto às diferenças

pessoais dos autores como, também, da relação com as estéticas então dominantes. Isso

permitirá entender que o teatro épico não deve ser entendido como uma forma pronta,

aplicável a qualquer situação, limitado à mera técnica, mas necessariamente histórico.

Interessa-nos verificar como os dois autores trataram do mesmo processo histórico de

decadência e de processos estéticos muito diferentes, remetendo-se a materiais e a formas

críticas diversas, mas tendo em comum uma concepção de arte interessada e engajada e a

consciência que as discussões não poderiam se limitar ao âmbito dos assuntos, precisando

chegar à forma.

De alguma maneira esse projeto já vem sendo realizado ao longo dessa dissertação.

Revisitamos sem pressa alguns momentos representativos do teatro brasileiro, a partir do

século XIX, que foram úteis para a dramaturgia de Mário de Andrade numa segunda fase

modernista, e fizemos algo análogo para colocar Jorge Andrade no contexto da complexa

dinâmica da modernização do nosso teatro, tanto texto como cena. Depois, fizemos uma

discussão sobre os dois autores enquanto pensadores do teatro brasileiro; para isso, foi

fundamental verificar os motivos e o modo como Mário de Andrade se insurge contra a forma

da ópera, passando pelo expressionismo de Toller, a pintura de Portinari, e também como

Jorge Andrade consegue fugir do realismo fotográfico para uma perspectiva mais social,

calcada em Brecht, Miller, Tchekhov, entre outros. Sendo assim, chegamos a esse momento já

aparelhados para saber que não é possível isolar as obras dos contextos de seus respectivos

ciclos de modernização, e portanto a análise não toma as peças por suas categorias fora dessa

história.

Deste modo, o capítulo será dividido em duas seções. Na primeira iremos analisar a

peça Café, de Mário de Andrade, buscando compreender como a história entra no teatro e a

sua formalização por meio de recursos épicos e expressionistas. E na segunda seção faremos o

processo análogo com A moratória, de Jorge Andrade, discutindo sua formalização histórica,

o realismo crítico e psicológico, bem como os recursos épicos, naturalistas e expressionistas.

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Enfim, compete ver o exercício da crise do drama nas peças, isto é, Café rompe pela

objetividade, perspectiva coletiva, etc. e A moratória pela perspectivação da psicologia do

indivíduo, etc. Mário de Andrade, ligado a um contexto do século XIX e no diálogo com

vertentes estrangeiras que fossem mais compatíveis com seu nacionalismo crítico, e Jorge

Andrade, num plano europeu e norte-americano de modo a produzir sua própria dramaturgia,

desligada dos modelos hegemônicos.

3.1 O épico em Café: forma teatral e impossibilidade cênica

Muito já foi dito nessa dissertação sobre a peça-coral Café, de Mário de Andrade, que

atestam seu caráter épico indiscutível e programático. Alguns dos resultados podem ser

resumidos para darmos o passo seguinte e analisar a peça, entrando em seus meandros. O

tema da crise do café não foi abordado com as normas do teatro tradicional, ou seja, por

poucos personagens entrando em conflitos individuais. Como queria um musical, Mário

questiona o enunciado da forma da Ópera que se convencionou tradicional, discutindo seus

caminhos em um texto chamado Introdução, no qual discorre sobre seu processo criativo,

sobre os pressupostos de suas escolhas formas e temáticas, e sobre a relação entre arte e

sociedade, numa espécie de filosofia da composição. Para isso, faz o que chama de uma ópera

coletiva, em que se ouve apenas coros, grupos coletivos em conflito político, social e

econômico. Os quatro materiais que podem ser considerados como parte do projeto de Café,

são também importantes: além dessa Introdução, há uma Concepção Melodramática, em

prosa, que funciona como uma enorme didascália que, no entanto, ao invés de discutir a

psicologia fina dos personagens, faz um estudo de psicologia social dos grupos envolvidos.

Depois, em O Poema, temos em versos e por gêneros de música populares (como a Endeixa, a

Embolada etc.) o texto a ser cantado em coro que constitui a cena propriamente dita. Por fim,

no texto Marcação vê-se indicações cenográficas, disposição cênica dos objetos e dos grupos.

Interessa-nos, na análise que iremos realizar, discutir sobretudo o Poema (com apoio da

Concepção Melodramática).

A peça Café, iniciada em 1933 e finalizada em 1942, retoma o passado de 1929 com a

finalidade de retratar a crise cafeeira e os grupos sociais envolvidos, em especial os

trabalhadores (tanto no campo quanto no porto/cidade, ambos os grupos sem trabalho – o

primeiro deles sendo despedido e direcionando-se para a cidade e o segundo revoltando-se

pela falta de perspectiva futura). A crise também atinge os proprietários e a classe política,

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porém esses conseguem permanecer relativamente alheios aos desdobramentos da crise, que é

toda paga pelos menos favorecidos.

Os acontecimentos são iniciados pela contradição que se instaura no campo, pois ele já

não sustenta os que dele necessitam. Sem tocar diretamente nesses assuntos, a peça remete ao

quadro histórico marcado pela política do café com leite (que dominou o cenário nacional até

1930) e pelo êxodo forçado para as capitais atrás do emprego na indústria, culminando numa

crítica ao sistema que favorece e apóia os grandes. Na segunda cena do primeiro ato,

Companhia Cafeeira S. A., os colonos quase avançam contra os donos das terras que as

vendem para o capital estrangeiro. O conluio dos “donos da vida” pede paciência para os que

têm fome, enquanto eles têm como aguardar o tempo que for necessário. Mas os colonos

param pouco antes do passo final, que será retomado no terceiro ato, Dia Novo, como uma

revolução vitoriosa, que não houve na história.

Diante disso, essa abordagem torna-se irrealizável mediante a forma dramática

tradicional. Embora não tenha sido encenada, Café objetivou romper com a forma do drama

burguês, com a ópera tradicional; recorreu, para isso, aos ismos do Modernismo e à forma

anti-ilusionista do teatro épico, visto que esta permite trazer para o texto concepções coletivas,

a função social da música, a quebra da ilusão e o contexto social, tensionando as forças

ideológicas em jogo.

A análise de Café partirá da interlocução entre a Concepção Melodramática (1942b) e

O Poema (1942c), de modo a compreender como o pensamento e as escolhas criativas de

Mário Andrade são formalizados na peça. Essa articulação é imprescindível, visto que a

Concepção Melodramática faz parte da composição dos poemas, funcionando como rubricas

antecipadas (em forma narrativa) que analisam o desenvolvimento da peça, indicam e

comentam sobre elementos da encenação, do figurino, da música, da plasticidade de cenas, da

movimentação, mas também sobre o sentido da peça. Ao levar em consideração a

complexidade da estrutura criativa da peça Café, faremos uma análise imanente da peça, de

modo a compreender como ocorre a formalização estética da matéria histórica brasileira por

meio de elementos épico-narrativos. A análise terá como referencial teórico: Flávia Camargo

Toni (2004), Marta Morais da Costa (1988), Tatiana Longo Figueiredo (2015), Anatol

Rosenfeld (2011), Sérgio de Carvalho (2002), Raymond Williams (2011), Walter Benjamin

(1987), Jeanne Marie Gagnebin (2009), dentre outros.

Antes de partirmos para a análise é preciso compreender que o teatro a partir do

Modernismo iniciou, mesmo que de modo virtual, um rompimento com o drama burguês. O

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teatro modernista tinha como objetivo criar novas formas e, com isso, poder expressar, através

da criação artística, modificações sociais e históricas. Sérgio de Carvalho, em sua tese de

doutorado O drama impossível: teatro modernista de Antônio de Alcântara Machado, Oswald

de Andrade e Mário de Andrade (2002), analisa frente aos acontecimentos históricos e teatrais

a inviabilidade cênica desse teatro. Ele observa que esta se devia ao fato de a dramaturgia

modernista apresentar contradições dentro do processo histórico de aburguesamento do teatro,

e extraía “sua orientação estética modernizante da percepção de uma crise na ordem social

burguesa” (CARVALHO, 2002, p. 7). Portanto, o teatro modernista problematizava questões

pontuais da sociedade brasileira, colocando o dedo na ferida ao expor a “crise da ordem

liberal” (Idem, p. 8). Assim sendo, Carvalho classifica esse teatro de drama impossível ao

analisar que:

Sua irrealização teatral corresponde, assim, a uma irrealização burguesa, o

que, num nível íntimo, frustrava alguns dos interesses dramatúrgicos dos

escritores, mas se adequava a seus propósitos estéticos e políticos mais

avançados. Dentre os vários elementos que tornam seus escritos teatrais uma

grande reunião de materiais para uma poética antiburguesa brasileira, merece

destaque uma certa verificação de impossibilidade dramática. Muito da

potência crítica dos projetos teatrais modernistas está no fato de Alcântara

Machado, Mário e Oswald de Andrade não terem conseguido resolver na

forma dramática o problema da representação brasileira, como veio a fazer a

dramaturgia seguinte, capaz de dramatizar e heroificar tipos mais ou menos

populares e escrever, assim, os primeiros dramas do país. (CARVALHO,

2002, p. 8)

Mário de Andrade busca fazer uma crítica antiburguesa, na qual a burguesia se torna

quadro, pintado como forma de denúncia social. Tem como matéria de expressão ou matéria-

prima as fontes de cultura popular, a expressão do povo, da dança, da música, da fala, dos

jogos, etc.; material colhido nas viagens etnográficas de Mário de Andrade e que serviram

para a elaboração da peça Café. Além disso, o próprio título já indica a formalização de

assuntos contemporâneos, a crise de superprodução em 1929, a queima do café, o

desemprego, o êxodo forçado, dentre outros temas. Segundo Carvalho (2002, p, 179), a

escolha pelo assunto foi determinada pela “necessidade ética de esquerdização da poesia”.

A peça Café, todavia, não é a única produção de Mário de Andrade sobre esse tema, o

qual passou a instigar sua escrita desde 1929. Desse período temos o início do projeto de um

romance Café (1929-1944), que iria narrar a história da personagem Chico Antônio –

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cantador popular – mas que permaneceu inacabado55. Além dos títulos homônimos podemos

reconhecer desdobramentos do romance na peça. Embora Marta Morais da Costa (1988)

afirme que a ligação entre a peça e o romance ocorra apenas no título, visto serem dois textos

diferentes, consideramos que Mário de Andrade transporta o material da pesquisa

etnográfica56 formadora do romance para a peça Café. Nela podemos notar tradições e

costumes populares, bem como o cantador popular, sua função na coletividade – cantadores

de sua própria história, de sua permanência sobre a terra, colocando em evidência a

perspectiva histórica dos vencidos, cantando sua vitória utópica.

O estudo de Tatiana Longo Figueiredo (2015) acerca do romance expõe o diálogo

entre as duas produções, fato que pode ser comprovado por meio do próprio discurso de

Mário de Andrade que, ao ser indagado sobre o ato de abandonar os escritos do romance,

responde: “Sim e Não. Sim, porque morreu como romance. Não, porque vai ser uma ópera.

[...] Dele extraí elementos para um trabalho desse gênero” (ANDRADE, M., apud

FIGUEIREDO, 2015, p. 31). A prova inicial de diálogo advém de elementos da peça, como a

Revolução, a vitória e o desfecho serem provenientes da parte final do romance, que previa

em sua cronologia o rebento da Revolução, o desespero da cidade e o triunfo. Todavia, temos

uma mudança de perspectiva de um gênero para o outro decorrente de modificações históricas

e sociais, bem como da maturidade artística adquirida pelo escritor.

Mário de Andrade explorou formas de se aproximar do material histórico e social, que

principiaram pela narrativa, e posteriormente se efetivaram no teatro. De acordo com Gilda de

Mello e Souza (2008b), o teatro representou, para a região sudeste, a forma mais adequada de

expressar questões sociais pontuais e uma matéria social que muda bruscamente. Noutras

palavras, a crise lenta e gradual dos engenhos do nordeste teria expressão mais adequada pelo

romance, que consegue avançar lenta – e inexoravelmente, como se vê no ciclo da cana de

açúcar em romances de José Lins do Rego. Já uma crise abrupta como a gerada pela quebra

da bolsa de Nova Iorque e seu impacto no Brasil com a crise do café têm uma estrutura que se

articula bem com a tensão dramática típica do teatro, e temos tanto Café quanto A moratória

para dar suporte à essa argumentação.

O material social e popular colhido por Mário de Andrade ganha potencialidade

socializante por meio do teatro, da dança e da música, mas à medida que o escritor leva-os

55 Isso ocorre devido à magnitude que o projeto tomava, isto é, Mário de Andrade pretendia criar um romance

com oitocentas páginas. Sobre o romance pesquisar: ANDRADE, M. Café / Mário de Andrade; estabelecimento

do texto, introdução, posfácio e seleção de imagens por Tatiana Longo Figueiredo. I. Ed. – Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2015. 56 Coletada nos anos de 1927 e 1928 em viagem para o Norte e Nordeste brasileiro.

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para o texto teatral e opta pela forma coletivizante se depara com a limitação das formas. Com

isso, teve a necessidade de fazer uma reinvenção crítica, para assim encontrar lugar para o

popular e o social na encenação moderna (CARVALHO, 2002). A partir dessas questões

podemos compreender o hibridismo de uma peça como Café, pois, para formalizar suas

intenções, utilizou de formas as mais variadas como a tragédia, o drama, o melodrama, o

teatro épico, o expressionismo, o primitivismo, o nacionalismo crítico.

A formalização estética da temática social é exposta no processo criativo de Café.

Segundo Carvalho (2002, p. 184), “poucos dramaturgos pensaram com tanto cuidado nos

possíveis efeitos psicológicos que a disposição dos elementos cênicos poderia causar”. Iremos

analisar esse trabalho artístico e ideológico de Mário de Andrade nos textos Concepção

Melodramática (1942b) e O Poema (1942c), de modo a compreender como a descrição

detalhada das cenas, do primeiro, é formalizada na escritura teatral, do segundo. Dessa forma,

a análise seguirá cena por cena fazendo um paralelo entre as intenções criativas de Mário de

Andrade e as soluções formais, estéticas, bem como as influências, na elaboração de Café.

O primeiro ato divide-se em duas cenas. No Porto Parado, a primeira, Mário de

Andrade pretendia expor o outro lado da história, a perspectiva dos trabalhadores, dos

estivadores, dos colonos e a interrupção da “marcha natural do comércio do café”, que há

muito tempo sofria com as perturbações e com o “crime nojento” dos “donos da vida”. Estes

exploravam as riquezas do produto e, como resultado da superprodução, o grão perdeu valor e

a lógica irracional do capital decidiu queimá-lo. Porém a solução não resolveria o problema e,

como resultado, a “fome batera na terra tão farta e boa” e os primeiros atingidos são

normalmente os que têm ligação direta de sobrevivência com o grão (ANDRADE, M., 1942b

apud TONI, 2004, p. 188 a 190).

O sofrimento e o medo expresso no rosto dos estivadores são reforçados pela

orquestra, que deveria iniciar a cena com música agitadíssima e entrar repentinamente “quase

tão irrespirável como o turbilhão que agita interiormente os estivadores”. Ao subir o pano

teríamos no palco o armazém do cais e suas muitas e muitas pilhas de café (que chegam até o

teto). A descrição detalhada do cenário, das vestimentas, do cais e das cores que praticamente

colorem um quadro, são mecanismos para expressar um grupo social frente à imobilidade do

porto.

De começo, os estivadores permanecem sentados nas pilhas de café e no chão do cais;

a imobilidade dos homens lhes serve para alimentar internamente a raiva sobre o “turbilhão”

que se forma no peito diante da decisão a tomar. Esperam notícia dos jornais, mas o homem

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que teria ido buscar o jornal não trouxera notícia nenhuma e os estivadores são contaminados

pelo desânimo, pois “o que fazer, agora que o café está baixo, sem valor”. A omissão dos

estivadores é contraposta com a ação raivosa das mulheres, que apareceriam “quase

delirantes, elas não podem mais, os filhos choram em casa pedindo pão, elas também estão

famintas, e os maridos e os companheiros, o que fazem?”. Nesse trecho, podemos notar que

Mário de Andrade recorre a recursos expressionistas para expor a revolta quase animalizada

das mulheres que “correm a porta do armazém em toda a extensão”, que “gritam, quase

desvairadas” por pão e que se enlaçam às sacas de café e “segredam seu segredo de miséria”,

mas nessas confidências “o grão pequenino lhes segreda o segredo que eles não animavam a

se revelar”, que a fome que sentiam era a fome dos subjugados (ANDRADE, M., 1942b apud

TONI, 2004, p. 189-190).

Mário de Andrade, ao retratar a crise da superprodução, busca tematizar a fome, visto

que o grão parado (mantido em abundância no cais) nega pão a estes trabalhadores. Mas não

só tematiza como, também, alegoriza a fome, pois não é apenas por alimento, “mas outra

maior, a fome milenar dos subjugados, a fome de outra justiça na terra, de outra igualdade de

direitos para lutar e vencer”. Entendemos alegoria pelo conceito benjaminiano, isto é, um

significante, uma palavra que não tem o significado pré-dado, isto é, um significante que pode

se referir a vários significados possíveis. Logo, necessita ser entendido historicamente, num

conflito entre forças sociais que ajudarão a construir significados possíveis. Em síntese, os

processos alegóricos são materialistas, ligados a um sentido mundano, o qual é expresso pela

imperfeição, pela fragmentação e pela alteridade das coisas. Deste modo, temos na cena um

significado externo e histórico para o significante fome. Por fim “o pano desce lentamente,

dando tempo a que o segredo que a cena revelou, se grave pra sempre no coração de todos os

oprimidos” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 190).

O texto coral formaliza essas questões através do Coral do Queixume, formado pelos

estivadores, que cantam a desvalorização do grão e a incerteza de futuro para o grupo: “Que

farei agora que o café não vale mais!”. O desânimo e a imobilidade do Porto se expressam no

Madrigal do truco, no qual Mário de Andrade recorre à cultura popular e aos jogos que

servem de disfarce para distrair e esquecer as angústias. Neste caso temos o jogo de truco e de

morra (jogo italiano), o que poderia se estender para diversos outros. A revolta das mulheres é

expressa pelo Coral das Famintas, de cujas bocas “nasce a palavra da decisão!” e depois da

última pergunta: “– Quem pode dar pão!...” os homens juntam-se às mulheres e, ao olharem

as sacas inúteis de café, cantam “delirantes, quase sensuais de amor” a Imploração da Fome

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(ANDRADE, M., 1942c, apud TONI, 2004, p. 210 a 214). Nesses versos, como se pode ver

abaixo, temos a tematização da fome:

EU SOU AQUELE QUE DISSE:

Eu tenho fome! eu tenho muita fome!/ Grão pequenino

É uma fome antiga, de milhões de anos que renasce/ Grão pequenino

Nem todo trigo do universo feito de pão

Acalmava esta fome antiga e multiplicada

Fome de fome / Fome de justiça

Fome de equiparação/ Fome de pão! Fome de pão!

(ANDRADE, M., 1942c, apud TONI, 2004, p. 213-4)

De início podemos notar que o problema da crise do café não é restrito a poucos, mas

a toda uma coletividade, a qual na peça é representada por personagens sociais (estivadores,

mulheres) que formam grupos vocais. Esse recurso é utilizado por Mário de Andrade para

fugir da individualização proveniente da forma aburguesada da ópera – rompendo com o que

ela tem de mais característico, a virtuosidade de solistas, bem como a utilização de uma

maneira mais simples de cantar visando à compreensão do texto. Além disso, por meio da

utilização de um espaço como o cais, o dramaturgo busca evidenciar que a quebra da

economia cafeeira não se deu apenas no campo (cena seguinte), mas também no ambiente

urbano.

Na segunda cena do primeiro ato, Mário de Andrade buscou mostrar a extensão da

“fome e da angústia” na Companhia Cafeeira S. A. – nome que já indica um recurso para

fugir da individualização. A música deveria trazer esses sentimentos através da orquestra que

viria “muito triste e abafada chegando coleando, fazendo esforço para saber o que será da

existência” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 190). A cena, constituída

plasticamente por Mário de Andrade, parece compor uma série de telas com características

expressionistas à moda de Cândido Portinari. De acordo com o próprio Mário de Andrade, os

trajes das mulheres casadas lembram o quadro A Colona Sentada, de Portinari. Pensando na

plasticidade da cena, e ainda para contrastar com o cenário neutro do cafezal com seu verde

forte, Mário de Andrade recorreu à uma laranjeira carregada, acompanhada pelo provérbio

“Laranja no café, é azeda ou tem vespeira”, que amarra o nível linguístico ao nível social

(CANDIDO, 1993). Embora não tenha ligação com o que vai se passar, o provérbio expressa

o tom trágico dos acontecimentos seguintes.

A ação se inicia com a movimentação dos colonos que, ao terminar um almoço

precário, voltam de má vontade à lida e “um velho se exaspera, dá um ponta-pé na saia do

cafeeiro, justo quando aparecem os donos da Companhia Cafeeira S.A e seus comissários”. A

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confusão está armada. Embora as terras tenham sido vendidas para estrangeiros, os antigos

donos ficam ofendidos. Eles se revoltam contra o velho e lhe aplicam uma bronca. Quando os

colonos estão para abaixar a cabeça, as mulheres se revoltam e tomam a frente na discussão,

que está quase por estourar.

Nesse confronto, Mário de Andrade explora a tensão entre os dois grupos. Falta pouco

para os colonos perderem “o tino, vão ‘amassar’ aqueles senhores impiedosos que não

arranjam nada, não querem pagar os ordenados de meses, pouco estão se amolando com a

fome dos pobres”. Mas os donos também se preparam para a briga, “buscando sem disfarce os

revólveres no bolso traseiro da calça ou na cinta”. A tensão se finda quando os colonos

decidem partir, embora esta não seja a reação esperada pelos donos, pois “queriam era a

submissão, a sujeição total”. Ao finalizar esta cena, na Concepção Melodramática, o texto

observa que “parece que tem momentos nesta vida dura em que a gente se revolta, não é

porque queira decididamente se revoltar, mas porque uma força maior move a gente e se fica

sem capacidade mais pra não se revoltar” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 190-

2).

O Poema formaliza esteticamente as intenções de Mário de Andrade pela instância

narrativa, desempenhada pelo Coral do Provérbio, que exprime o provérbio da terra, pelo

coral d’A Discussão entre colonos e donos que desenvolve uma tensão entre os envolvidos,

sendo esta expressa pelo silêncio das massas-corais e da orquestra, mas desfeita subitamente

pela entrada da música orquestral e do canto de todos os colonos: “– EU SOU AQUELE QUE

DISSE: Não fico mais neste pouso maldito! Eu parto! Eu vou-me embora! Adeus! Adeus!”. E

termina com o Coral do Abandono, que expõe o temor pelo que está por vir, pelo tenebroso

caminho até a cidade etc. A observação final de Mário de Andrade, na Concepção

Melodramática, é formalizada nos versos finais do coral dos colonos: “Muitas vezes a gente

se revolta/ Não que falte a paciência de lutar/ Muitas vezes a gente se revolta/ Por incapaz de

não se revoltar” (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 214 a 218).

Em síntese, o primeiro ato busca expor as fraturas sociais que surgiram com a crise de

uma base econômica. Além disso, na segunda cena temos a incorporação das modificações

históricas do capitalismo brasileiro. Mediante o confronto entre os colonos e os ex-

proprietários, Mário de Andrade insere a exploração do capital e o comércio de riquezas

brasileiras para o capitalismo norte-americano.

O segundo ato também se divide em duas cenas. A primeira, Câmara-Ballet,

representa a intenção de vaia do dramaturgo à classe dos políticos, denunciando a falsificação,

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o ridículo, o servilismo do ambiente e de seus representantes. Mário de Andrade objetivou

expor o sentido das câmaras políticas, “ineficientes, traidoras e postas a serviço dos chefes”

(ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 193). Além disso, buscou denunciar a

inoperância do sistema político pelos recursos da sátira, do farsesco e do cômico, deixando

em evidência os discursos vazios do “Deputado do Som-Só” e na “Embolada da Ferrugem”,

bem como o desinteresse da câmara a problemas sociais e econômicos da crise do café.

Mário de Andrade desenvolve esta cena minuciosamente através da plasticidade de

cores, de gestos, de modo a capturá-la numa pintura, num quadro, que vai sendo emoldurado

pouco a pouco. A cena tem a ideia de uma dança dramática, na qual todos os deputados e

jornalistas seguem um movimento de pêndulo. Mário de Andrade encontrou recursos para a

constituição da cena no balé expressionista de Kurt Joss e em seu espetáculo La Table Verte57

de 1940 (TONI, 2004; CARVALHO, 2002).

Os recursos utilizados por Mário de Andrade podem ser entendidos por meio de um

expressionismo social, pois, assim como a tendência europeia, objetiva a “renúncia total da

burguesia, com o propósito de passar da dissidência para a afiliação consciente à classe

trabalhadora” (WILLIAMS, 2011, p. 82-3). Café, por intermédio de seu expressionismo

social, não realiza apenas uma deformação subjetiva e autocentrada, mas mostra o indivíduo

inserido em uma sociedade e sua deformação como expressão dela, uma deformação crítica,

de modo a capturar uma expressão social.

A sessão da Câmara está repleta: há políticos, jornalistas, escrivães e, até mesmo, o

povo que enche as galerias. A cena deveria iniciar “em plena farsa”, de tal modo que até o

pano tem a intenção de vaia, pois não sobe totalmente, depois cai de repente, como se não

quisesse mostrar o que vai se passar. Para termos uma ideia da grandiosidade da cena, do

ambiente de farsa e da intenção de vaia, nos mínimos detalhes, segue a concepção da cena:

A sala de sessões é bem chique, todos os móveis, mesa, bancada, parapeito

das galerias, até o chão, tudo branquinho, dum branco alvar. Ao passo que

todos os personagens da câmara estão de preto, Mesa e deputados de

sobrecasaca, e um plastron gordo com uma enorme pérola branca de enfeite.

Os serventes também de preto, com os botões de prata no dólmã. E os

jornalistas? Se os serventes são cinco, de-pé, do lado direito da cena, na

mesma linha ainda da Mesa, mas do outro lado, os jornalistas também são

cinco, sentados em cadeiras enfileiradas, uma atrás da outra. Sucede que as

57 A mesa verde (tradução de La Table Verte) é, de acordo com Flávia Camargo Toni (2004, p. 151), “uma

paródica dança macabra” expondo com clareza “a política alemã que conduz Adolf Hitler ao poder, um

espetáculo que mescla dança e teatro”. No espetáculo, bailarinos trajados de fraques e com máscaras grotescas

dançam em volta de uma mesa retangular verde. A coreografia pode ser compreendida como uma crítica política

à futilidade dos tratados de paz e aos horrores da guerra.

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cadeiras jornalísticas estão de perfil para o público, não deixando por

enquanto ler o título do jornal a que cada um pertence, por honra e graça

inusitada e inusada dessa força enorme e tão facilmente servil que é o

jornal. [...] Os jornalistas também se vestem seriamente de preto, mas não

usam sobrecasaca mais, são modernos. Usam um paletozinho curto, calças

apertadas ainda mais curtas acabando um palmo acima do tornozelo,

deixando ver suas lindíssimas meias brancas de seda e os escarpins de

verniz. E quanto as gravatas, airosamente, os jornalistas só aceitam enormes

gravatas cor-de-rosa, com um laço borboleta bem pintor, são lindos.

Francamente, esse tal de jornalista é um amor. (ANDRADE, M., 1942b

apud TONI, 2004, p. 194, grifos nossos)

A câmara é toda descrita em branco e preto, efeito que serve para contrastar com o

colorido do povo nas galerias, embora advirta “nada de tecido duma cor só, logo se perceberá

porque”. A farsa tem início quando o pano sobe e tem a palavra o Deputado do Som-Só, que

profere seu discurso vazio e cômico: “– ...Plápláplá chirirí cocô pum...”. O farsesco desse

discurso vem desde sua origem: “escrito num papel gigantesco, difícil de manejar de

tamanho” e que serve para embalar o sono, visto que “todos dormem e as falcatruas se fazem

com mais facilidades”. Os únicos que permanecem acordados são os serventes que comentam

sobre “coisas deputadais, jogatinas, cambalachos, amantes, gorjetas”. O discurso do Deputado

do Som-Só se faria longo se não fosse à ânsia por falar do “deputadinho estreante filho de

papai”, o Deputadinho da Ferrugem, que discorre sobre a ferrugem nas panelas da cozinha

(ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 194-5). Mário de Andrade elaborou

minuciosamente e primorosamente esta cena, por meio da sátira, da farsa, da dança dramática,

da ironia etc. Essa cena merece destaque, pois evidencia a sátira mordaz de Mário de Andrade

à inoperância e ao descomprometimento da Câmara, sua total desvinculação dos reais

problemas do país e sua ânsia por construir jogos de poder que os mantenham em seus cargos.

No momento em que o deputado está para falar:

[...] todos acordam, menos o Secretário Dormido, sempre de bruços,

sonhando sobre a mesa. O resto não, quer escutar a estreia do Deputadinho

da Ferrugem. Os jornalistas aspiram tomar notas. Pegam do chão, ao lado, os

seus maços de papel para notas, que pelo maço e o tamanho servem também

para outra coisa, e os lápis, que lápis! Desses gigantescos, feitos pra anúncio

nos mostradores das papelarias. Mas vamos ter o discurso, porque entrou um

polícia muito lindo, até polainas brancas, bateu no ombro do Som-Só e fez

pra ele parar. Ele para que é só pra isso mesmo que ele existe e principiará

dobrando o discurso, dobrando que mais dobrando até o fim do “Câmara-

Ballet”.

O Deputadinho da Ferrugem fala enfim. Fala bem, fala verdade, e é tão

gostosa a fala “andantino grazioso” dele, que entre aplausos e gostosa

satisfação toda a câmara entra no movimentinho suave se movendo

pendularmente de cá pra lá, de lá pra cá. Menos o povo das galerias que

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procura saber o que se decide da vida. Um operário não se contém afinal.

“Praque falar em ferrugem de panela, si não tem o que cozinhar!” ele

estoura. Outros querem que se trate do problema do café. Os deputados se

contrariam muito, o presidente bate no senão enorme. Ora, no princípio do

discurso da ferrugem, o Secretário Dormido, que já estava cansado da

posição, se aninhara no colo do secretário seu vizinho e lhe dormira no

ombro. Meio que acorda com a bagunçinha do povo, muda de posição outra

vez. Se ajoelha no chão, com a bunda nos calcanhares e se debruça no

assento da própria cadeira, aí pondo sobre os braços, a cabeça dormida.

(ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 195)

O povo se revolta e, nesse meio tempo, nos bastidores espera o Deputado Cinza – que

assim como a cor é neutro, isto é, busca não se comprometer fazendo discursos, pois gosta

“muito de estar bem com todos”. Ele traz consigo a Mãe, “uma colona cheia de filhos” que

ele faz “decorar um discursinho bem comodamente feliz, contando que os filhos tinham

escola dada pelo Governo, roupa de inverno dada pela Liga das Senhoras Desusadas e muito

arroz e feijão que o Ministério da Abastança iria plantar no ano que vem”, mas era custoso

para a personagem decorar o final, que dizia “que a vida estava triste e o Governo era muito

bom” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 195-6).

A Mãe, assustada com a bagunça, resiste a entrar na Câmara, mas o deputado lhe

arrasta para o interior do recinto. Como ela não consegue se lembrar do discurso decorado,

rompe-se com a farsa comandada pelos integrantes da câmara e as atenções se voltam para

Mãe. Mário de Andrade recorre às vestimentas da personagem para refazer toda a plasticidade

da cena: o que era branco, preto e colorido entra em contraste com seu vestido cor-de-carne,

com seu lenço de um verde-vivo nos cabelos e o chale amarelo cor-de-ovo que usava para

envolver seu recém-nascido. Além disso, Mário de Andrade explora o sentido alegórico dessa

personagem pois, ao esquecer o discurso programado, ela é “apenas movida por um martírio

secular que a desgraça transmite a seus herdeiros, [...] [e] se põe a falar”. Seu discurso-solo

rompe as barreiras do individualismo e representa a voz dos oprimidos, dos subjugados, da

miséria de uma classe. Mas, a Câmara continua inoperante e esse efeito é expresso na farsa

do Secretário Dormido, que muda novamente de posição e agora se mostra ao público,

dormindo com a bunda erguida ao vento. Além dele, os serventes dançam ciranda, os

jornalistas fazem de suas cadeiras cavalos e se movimentam dando pulinhos, formando uma

roda e o Presidente que, em vez de colocar ordem na casa, brinca “com o sino, jogando ele no

ar” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p. 195-6).

O povo das galerias é o único que se importa com a fala da Mãe e “lhe devoram as

palavras”, as quais fomentam a revolta popular. Como resultado, a personagem é presa pela

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polícia e a cena termina com a instauração de um campo de batalha nas galerias, sobre o qual

a polícia se impõe pela manutenção da ordem (ANDRADE, M., 1942b apud TONI, 2004, p.

196-7).

O Poema formaliza as ações já descritas no Quinteto dos Serventes, que engloba a

conversa despretenciosa dos serventes e o discurso vazio do Deputado do Som-Só, na

Embolada da Ferrugem, pronunciamento do deputado estreante que utiliza de uma forma

poético-musical popular58, mais especificadamente do Nordeste brasileiro, e que expressa à

inutilidade do assunto diante o contexto histórico de crise. As galerias irritadas com o

discurso gritam num ritmo de vaia “Café, café, café – Café, café, café”. Mas a farsa só é

interrompida com a Endeixa da Mãe, que canta a voz dos subjugados e anuncia a mensagem

profética de que os culpados serão destruídos com a chegada da Revolução: “EU SOU

AQUELA QUE DISSE:/ Raça culpada, a vossa destruição está próxima” (ANDRADE, M.,

1942c apud TONI, 2004, p. 223).

Em resumo, a magnitude desta cena expõe o descrédito e a inoperância do sistema

político, satirizados pela farsa e pela vaia do dramaturgo. Deste modo, apresenta uma alegoria

do socialismo como saída anticapitalista ao sistema que aprisiona e oprime os de baixo.

Ademais, esta cena se sobrepõe por sua atualidade, visto que o modus operante continua nesta

mesma linha.

Em Êxodo, segunda cena do segundo ato, Mário de Andrade desejou retratar o ritmo

lento da “marcha pesada, arrastada, fatigadíssima” dos colonos, que seguem até a estação de

trem e esperam pela chegada do “Trem de Segunda Classe”, mas são surpreendidos com o

anúncio de que este não mais haverá. O sofrimento é geral, nem os mais jovens conseguem

conter as lágrimas, “escondem os rostos, gesticulam desesperados, se contorcem”. A marcha

segue “horrenda, de uivos, de imprecações, marcha de morte”, com isso, podemos perceber a

construção dessa cena por meio de recursos expressionistas, isto é, gritos, uivos, a deformação

da realidade para expressar o sentimento subjetivo. Essas questões se materializam na peça

pelo Coral Puríssimo, que expressa a marcha dos solteiros, ainda dispostos a recomeçar e

com força para o trabalho; no Mimodrama, que retrata os jogos enamorados dos mais jovens

para passar o tempo enquanto esperam o trem; no Coral da Vida, que retrata a chegada dos

58 Em compasso binário e andamento rápido, com refrão coral. Para exemplificar, seguem as duas estrofes

iniciais da embolada: “Sobre a ferrugem/ Das panelas de cozinha/ Do país maior mistério/ Diremos uma

coisinha/ o assunto é sério/ Que as cozinheiras já rugem/ Coléricas com a ferrugem/ Das panelas da cozinha.”.

“Sobre a cozinha/ Com ferrugem na panela/ tragédia gloriosa e bela/ Desta pátria queridinha/ Ouvide! Embora/

Noussas palavras se sujem/ No tremendal da ferrugem/ Das panelas de cozinha.” (ANDRADE, M., 1942c apud

TONI, 2004, p. 220). Definição retirada do dicionário Dicio. Disponível em:

<https://www.dicio.com.br/embolada> Acesso em: 18 de novembro de 2016.

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casais ao terminal e o cântico de suas experiências de vida e, por fim, no Coral do Êxodo, que

expõe o fim das esperanças e a marcha fúnebre que se segue (ANDRADE, M., 1942c apud

TONI, 2004, p. 224 a p. 228).

No Dia Novo, terceiro ato com cena única, Mário de Andrade tem como objetivo

cantar a vitória da revolução socialista, pois “chegara enfim o tempo em que o povo não tivera

capacidade mais para não se revoltar, se revoltara” e, dessa maneira “vai haver luta, briga

brava em cena, que estamos num desses tentáculos de guerra com que a revolução se

espraiando pela cidade convulsionada, a domina afinal” (ANDRADE, M., 1942b apud TONI,

2004, p. 200). A imagem que Mário de Andrade formou dessa cena foi à única do processo

criativo do escritor que permaneceu sem alteração e sem novas versões.

No Poema, a revolta é visualizada, em cena, por meio do pátio de um cortiço, que tem

como pano de fundo a descrição da cidade, com o centro urbano ao longe e um amontoado de

arranha-céus. Esse cenário emprega recursos expressionistas, que podem ser observados no

modo como a cidade é retratada: imponente, assustadora, a “cidade terrível”.

Mário de Andrade utiliza o rádio como aparato tecnológico para trazer notícias da

revolução que acontece em toda a cidade. As mulheres do cortiço compõem o Cânone das

Assustadas e cantam apavoradas o rebentar da revolução; na sequência a Estância de

Combate é cantada pelos revolucionários, que na revolta tem um combatente atingido e

correm até à porta do cortiço à procura de abrigo para socorrer seu sargento, que não resiste

aos ferimentos. As mulheres, com “a visão do morto, perdem o medo, reagem sanhudas,

animalizadas”, indo à luta junto com os revolucionários, e cantam: “EU SOU AQUELE QUE

DISSE:/ O segredo da paz se fez guerra!/ Chegou! Chegou! Chegou!/ O momento dos filhos

da terra!” (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 230).

O Rádio continua a veicular a notícia e anuncia que a vitória está próxima. Com isso,

todos se juntam no Grande Coral de Luta cantando os versos: “É guerra! É guerra!/ É

revolução!/ É de parte a parte/ Fogo na nação!” (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p.

232). Na sequência, o Rádio da Vitória traz a notícia:

O Rádio (rapidíssimo, gritadíssimo):

– Alô! Alô!... Vitória! VI-TÓ-RIAAAA!... O Bairro Dourado caiu! Caiu! Os

gigantes morreram! Alô! Patriotas! Patriotas! O presidente suicidou-se o

Quegê se entregou, se entregou! Os anões se converteram à grande causa

pública! A vitória é completa! Vi-tó-ria! VI-TÓ-RIA!... VI-TÓÓÓÓÓ-RIA!

(ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 232)

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A peça termina em apoteose, um recurso do teatro da segunda metade do século XIX,

e a personagem alegórica Mãe retorna à cena e canta (solo) e com todos o Coral misto: o Hino

da Fonte da Vida. A imagem da alegoria final é descrita pela rubrica:

(Durante o Rádio da Vitória principiam entrando pelo pátio, fugindo

desvairados deputados, gente chique, que caem por aí mortos. Nisto,

ferocíssima, inteiramente irracional, desgrenhada, o rosto horrendo de

volúpia sanhuda, entra correndo a Mãe. Está rasgada, um seio a mostra, nas

mãos uma bandeira enorme, vermelha e branca. Entra correndo, e pula a

posta sangrenta do soldado estraçalhado. E canta estática, na apoteose).

(ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 233)

A personagem canta a vitória dos oprimidos e em coro misto repetem: “Eu sou a fonte

da vida, Força, Amor, Trabalho, Paz!...”; e o pano cai com “estrondo” (ANDRADE, M.,

1942c apud TONI, 2004, p. 206). No fim, podemos compreender, por meio da personagem

Mãe, uma alegoria do Brasil, visto que tem a voz de milhões de oprimidos, os quais

permanecem assim por séculos no Brasil.

A partir da análise pudemos compreender Café, peça-coral em três atos, que se

desenvolve pela perspectiva épica anticapitalista, ética e popular ao expressar a matéria

histórica brasileira. Embora Mário de Andrade tenha se baseado em fatos históricos, a

constituição de Café não optou em seguir uma verdade histórica ou de expressar sua

aceitação, pelo contrário, elaborou um final utópico, uma revolução socialista que poderia ter

acontecido caso o povo se revoltasse. Assim sendo, o teatro mostra-se teatro visto que não

precisa seguir por um caminho histórico predeterminado. De acordo com Sérgio de Carvalho

(2002, p. 186), Café segue um “roteiro que não trabalha de modo histórico, que naturaliza o

comércio porque intui um mito da Natureza, compreendendo o nascimento da arte como

reflexão mística da experiência primitiva do homem com a Terra”.

Dia Novo, terceiro ato, expressa uma nova versão histórica, mas esta é

cuidadosamente trabalhada por Mário de Andrade, que busca pela matéria social dar suporte

ao sentido simbólico da crise do café, expresso pelos ciclos da natureza (outono/inverno,

primavera/verão) e pelos ciclos místicos de morte (café queimado) e ressurreição (vitória da

revolução); através desse recurso a peça se exime de um sentido político e panfletário. Com

isso compreendemos o posicionamento de Décio de Almeida Prado (2009) ao dizer que Café

é mais social que política, mais poética que panfletária.

Seguiremos à análise buscando compreender como o teatro épico e as formas épico-

narrativas foram fundamentais para a expressão da crise da sociedade à época do

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modernismo. Nesse sentido, iremos analisar a presença de elementos narrativos como a

instância narrativa, a estrutura fragmentária, a linguagem, a construção da paródia e do

cômico, os quadros épicos, o assunto histórico etc.

A instância narrativa é proveniente das massas-corais, isto é, dos coros. Eles são

conduzidos por um ponto de vista de esquerda, do proletário, do camponês, e têm função

coletivizante na peça. Ao formar uma coletividade, Mário de Andrade tinha a finalidade de

levar a ação para além do conflito individual e, com isso, refletir sobre as classes sociais que

se vêem afetadas pela situação econômica e não têm como fugir a isso. O interesse de fazer

uma ópera exclusivamente coral é materializada na peça pela constituição de oito corais:

Coral do Queixume, Coral das Famintas, Coral do Provérbio, Coral do Abandono, Coral

Puríssimo, Coral da Vida, Coral do Êxodo e Grande Coral de Luta, além dos grupos

menores: Madrigal do Truco, Quinteto dos Serventes, etc. (ANDRADE, M., 1942c apud

TONI, 2004, p. 210-231).

Os corais também são uma das instâncias responsáveis pelo recurso de distanciamento

que, assim como no romance, instaura um jogo reflexivo entre o leitor/expectador frente ao

objeto. Segundo Rosenfeld (2011), o distanciamento apresenta a sociedade como se estivesse

distanciada de nós tanto pelo tempo histórico como pelo espaço geográfico, para causar

estranhamento e suscitar reflexão crítica. Sendo os corais “um dos recursos mais importantes

do distanciamento” (ROSENFELD, 2011, p. 159).

Ao iniciar a peça com o Coral do Queixume, inspirado na leitura de obras épicas e nos

bardos celtas59, o autor teve o objetivo de inserir uma distância estética do objeto narrado. Ao

apresentar queixa ao cenário de uma terra que já não tem mais “seu porte de grandeza”, do

produto que apodrece nos portos, do grão que trouxe riquezas, mas que “nada mais vale”

(ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 210), ele faz um diálogo crítico sobre o assunto

histórico da crise do café em 1929. Neste cenário inicial de porto parado, Mário de Andrade

evidencia a lógica capitalista ao colocar em cena milhares de pilhas de café no armazém do

cais (o café vale pouco, por isso fica estocado, e depois será queimado para que agregue

valor), em contraposição ao canto de queixa dos estivadores, que não tem o que comer, pois o

café lhes “nega o pão”. Como já citado, nesse trecho Mário de Andrade tematiza a fome e a

hipocrisia desse sistema, questões evidentes no canto coral: “O café que alevanta os homens

59 Povo que narra suas histórias pela forma oral, recitativa e cantada; seus poemas são predominantemente

histórias tristes. A partir dessa influência, para não dizer plágio, Mário de Andrade conseguiu imprimir a carga

dramática que desejava para este poema, como também para Imploração da Fome e Êxodo (TONI, 2004).

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apodrece/ Escravizado pela ambição dos gigantes da mina de ouro” (ANDRADE, M., 1942c

apud TONI, 2004, p. 210).

Além da presença dos coros, a peça mantém o distanciamento crítico por meio da

estrutura fragmentária, que rompe com a continuidade do drama burguês tradicional, no qual

um fato estava fortemente conectado ao próximo até a resolução do conflito. Na peça, o

enredo se desenvolve sem um encadeamento linear cronológico entre as cenas, de modo a

poder misturar presente e passado. Uma não tem continuidade na outra; por exemplo, no

primeiro ato temos duas cenas: a primeira nos apresenta os estivadores e suas esposas no cais,

lamentando-se de o porto estar vazio e com fome; na segunda entram em cena os colonos que

trabalham na fazenda de café, sua irritação frente à falta de pagamento, a qual aumenta com a

chegada dos novos donos da fazenda gerando assim um embate entre opressores e oprimidos.

Podemos notar que uma não necessita da outra para fazer sentido, o que fica mais evidente

quando, no final de cada cena, temos a descida do pano. Além disso, é importante destacar

que o pano não tem a função de apenas fechar ou abri uma cena, mas de comentar, de meditar,

de encobrir, de dissimular, de vaiar, de expressar sentimentos como, por exemplo, desânimo,

má vontade, desilusão. Mário de Andrade, conforme podemos observar no texto Marcação,

pensou em cada detalhe, desde o pano, a luz, os cenários, as vestimentas, até as

movimentações de palco.

Embora a peça se desenvolva por uma estrutura fragmentária, ela parte da mesma

situação de aporia, de falta de movimento, de travamento econômico e social. Essa autonomia

relativa serve-nos para compreender como se dão os processos de epicização e seu efeito na

peça. Nela não há um conflito no sentido tradicional, que possa ser resolvido por uma

negociação, por um lance de esperteza, ou sorte, ou mesmo inteligência. A peça deixa isso

claro, depois de mostrar que os políticos querem mesmo é que tudo fique como está, e que os

donos do poder e do dinheiro (os donos da fazenda) estão fazendo seus negócios do mesmo

jeito. Não há como lutar contra isso como um Dom Quixote contemporâneo. Nesse quadro a

única saída é coletiva, no caso da peça a revolução.

A peça expressa que não se espere um líder que resolva nossos problemas (estamos

com Getúlio Vargas no poder) ou que basta esperar o tempo passar para que tudo se resolva.

Não; a única solução para acabar com essa miséria, exploração e alienação secular é com uma

revolução socialista. Qualquer outra saída seria ideológica (se positiva) ou se rebaixaria à

mera descrição da situação (o que já seria um ganho), mas Mário de Andrade prefere seguir o

que prometera: uma forma coletiva, não apenas falar para o coletivo e do coletivo. Essa forma

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precisa passar por uma solução não-individual, precisa contar com um desfecho que não deixe

os de sempre ganhando, e daí a revolução.

De algum modo, a construção estética de Mário de Andrade está ligada ao momento

revolucionário pautado pelos conselhos durante a revolução alemã, que teve muita força entre

1918 e 1923. Em meio a ela estava o dramaturgo Ernst Toller, que chegou inclusive a ser

integrante do governo revolucionário de Munique, sob a direção de Eisner (LOUREIRO,

2005, p. 89). Logo depois, derrotados, Toller é enviado para a prisão, onde escreve a sua peça

Massa-Homem (1921). Mário de Andrade, conhecedor da obra Toller, recorre ao teatro do

expressionismo político e social de peças como Maquinoclastas e Massa-Homem para dar

conta da matéria histórica brasileira. Estes recursos expressionistas o ajudam a elaborar

soluções cênicas para a perspectiva coletiva, como para a cena da Câmara-Ballet, para o

Êxodo e para o ato final. Segundo Carvalho (2002, p. 188), estas influências decorrem de

Ernst Toller ter “associado à revolta social as motivações ligadas a uma nostalgia da Natureza,

juntando luta social e expectativa de um acordo sagrado com a Vida”, questões que

desenvolve “em Maquinoclastas, mas também na peça ainda mais religiosa Homem-Massa,

coreográfica e musical, uma ‘ópera vermelha’”, a qual, de acordo com o crítico, influenciou o

conceito de “personagem-massa” em Café.

Embora seja nítido o elemento utópico dado o avançado do relógio histórico em 1933

(quando, por exemplo, para ficar na Alemanha, Hitler chega ao poder), a revolução socialista

não está tão distante das possibilidades que foram aventadas. Com isso, Mário de Andrade

quer menos levar ao engajamento imediato para a revolução do que encontrar o caminho

formal para sair do seu impasse – o que, como já sabemos, tem implicações sociais que

operam por dentro do conceito de estética.

A não-continuidade entre as cenas é necessária para que o espectador não crie

identificação com o objeto representado, permanecendo distanciado dele. A não-identificação

é mantida também pelas interrupções tanto do gesto quanto da música. Essas paralisações

formam quadros épicos. Um exemplo disso sucede por meio do gesto, no segundo ato –

primeira cena: “Câmara-ballet”, onde temos de início todos os deputados dormindo e, à

medida que a música do “Quinteto dos serventes” segue, eles mudam de posição, todos juntos

sem acordarem. No texto Marcação, Mário de Andrade deixa evidente sua intenção com os

gestos:

2 – QUINTETO DOS SERVENTES [...]

[...]

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2 – b) Num determinado ponto rítmico do QUINTETO, todas as

pessoas em cena, que estão todas dormindo, mudam de posição em

sonho. Os jornalistas, por exemplo, que inicialmente estarão com a

perna esquerda cruzada sobre a direita, num movimento unânime

cruzam a perna direita sobre a esquerda. Como assustado com esse

movimento coletivo o pano cai de chofre até um metro de altura mais

ou menos do chão. E agora irá se erguendo lentamente, como de má

vontade, desiludido com a democracia (ANDRADE, M., 1942d apud

TONI, 2004, p, 242).

Mediante a citação podemos perceber que os quadros se alteram conforme a mudança

de posição dos personagens, e a sucessão desses movimentos cria novos quadros épicos,

através dos quais se produz um emolduramento da Câmara dos Deputados, que é pincelado

pela sátira e pelo farsesco. O texto Marcação foi criado pelo escritor como ferramenta de seu

processo criativo, para imaginar em cena as suas intenções formais. Como não havia um

teatro capaz de abarcar o projeto de Mário de Andrade, o texto nos permite imaginar a

cenografia e movimentação cênica da peça, visto que o autor elaborou minuciosamente como

esta deveria ser encenada.

Outro procedimento épico importante é expresso pelas categorias teatrais que se

tensionam. Por exemplo, a disposição espacial, na Câmera-Ballet, tem sentido próprio. Além

de simular a Câmera dos Deputados, faz a sua paródia, que é constantemente revigorada pela

música e pelo texto, formando assim uma ridicularização institucionalizada da situação. Mas

também comporta o espaço das galerias, abarrotadas de trabalhadores, um exército quieto e

interessado, que interpela pela sua própria presença os deputados que teimam em só fazer o

que não tem importância para ninguém. E após a personagem Mãe entrar em cena, o espaço

torna-se um ringue de luta. De acordo com Sérgio de Carvalho (2002, p. 185), a

“personificação individualizada” da personagem Mãe, embora represente além de questões

individuais, só é possível pela “dimensão grotesca” que Mário de Andrade cria na Câmara-

Ballet, e isso faz com que não “implique falsificação, devido às coordenadas absurdas que

regem a cena”.

Nesse espaço de enfrentamento temos muitas vozes em disputa, provocando tensão.

Com isso, o texto aponta para a polifonia, que em alguns momentos também é expressa pela

música. O discurso da personagem Mãe rompe com o jogo de cena ridículo do espetáculo

rebaixado que é o funcionamento da Câmara e profere verdades seculares e coletivas que

estavam engasgadas no seu corpo, na sua sensibilidade, na sua voz. A partir daí não há como

retomar a paz das instituições burguesas.

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Além do gesto, a música, produzida pela orquestra, é utilizada de modo a romper com

a identificação e a direcionar para o social, através da “polifonia musical dos versos”, que tem

a finalidade de esboçar “outras vozes da sociedade, que estilhaçam subjetividades onde não

existem sujeitos da ação” (CARVALHO, 2002, p. 199). Assim sendo, tem a função de

introduzir e comentar a ação. Por exemplo, na segunda cena do primeiro ato, a orquestra tem

o objetivo descrito pela rubrica de romper o silêncio de “súbito, numa violenta rajada”,

quebrando assim a identificação frente ao conflito entre colonos versus comissário e ex-donos

da fazenda. Outro exemplo ocorre na segunda cena do segundo ato, onde ela tem o papel de

comentar e sublinhar sobre os moços que “gastam o tempo entrebrincando”. E, por fim,

apresenta o cenário dramático do terceiro ato frente à revolução: “Na soturnidade apreensiva

da orquestra ainda pobre, arrepiada de frases inquietas, o rádio explode” (ANDRADE, M.,

1942c apud TONI, 2004, p. 217; 224 e 229). Esses recursos são fundamentais para manter o

distanciamento frente ao espectador, levando-o ao objetivo principal do teatro épico, a

reflexão crítica.

A paródia, do mesmo modo, é usada como recurso de distanciamento, visto que

apresenta uma inadequação entre forma e conteúdo. Café é classificada de várias formas:

tragédia, drama, melodrama, etc. e seu hibridismo formal tem por finalidade expor as

limitações dessas formas para se tratar esteticamente de um assunto social. Por exemplo, Café

é denominada como tragédia coral em três atos, no Poema, embora rompa totalmente com o

efeito trágico pautado pela dimensão individual, isto é, do homem regido por forças supremas

e com ações determinadas pelo destino. A peça utiliza a forma clássica para tratar questões

sociais do plano coletivo, através de uma concepção esquerdizante, mostrando que o homem

não é um ser fixo, mas capaz de transformar-se e ser transformado pelo mundo. Nesse

sentido, Mário de Andrade acaba por adotar a forma épica, pois segundo Rosenfeld (2011, p.

150) “o fito principal do teatro épico é a ‘desmistificação’, a revelação de que as desgraças do

homem não são eternas e sim históricas, podendo por isso ser superadas”.

A linguagem representa uma forma de explodir com o estilo estrutural tradicional que

pretendia transmitir mensagens, de modo neutro e objetivo. Na peça, ela não é fixa,

característica da primeira fase do Movimento Modernista, que tinha como objetivo reformular

a linguagem e fugir do modelo arcaico. Em virtude disso, a linguagem, em Café, oscila entre

estilo rebuscado (e linguagem poética), como por exemplo, em: “Muitas vezes a gente se

revolta/ Não que falte a paciência de lutar/ Muitas vezes a gente se revolta/ Por incapaz de não

se revoltar (p. 218) e as gírias, como por exemplo: “Seis papudo! Sai tapera/ Seis seu cara de

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tatu [...]” (p. 211). Usa o falar cotidiano, mas também a empáfia e falta de sentido do discurso

político; passa pelo estrangeirismo, como por exemplo, em “[...] Falafalar é prata mas a

paciência é oiro. Ora sulcamos o mare magnum encapelado duma crise mundial que ameaça

subverter a santa ordem das cousas...” (p. 215) (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004).

Portanto, assim como a forma, a linguagem é híbrida, diversificada, adequando-se a

determinados contextos de produção de fala.

Com base na inadequação entre forma e conteúdo tem-se a possibilidade de utilizar

outros recursos, como por exemplo, o cômico. Este recurso é notável na Câmera-Ballet

(segundo ato – primeira cena), quando o Deputado do Som-Só entra em cena e principia o seu

discurso para a Câmera dos Deputados:

– ... Plápláplá chirirí cocô pum. Blimblimblim téréré xixi pum. Furrun-fun-

fun, furrun-fun-fum. Pipi pipi pipi pipi a caridade popô. Porque zunzum

zunzum zunzum baile das rosas lerolero lerolero lerolero lerolero! Cacá cacá

cacá cacá cacá cá-pum?... Pois tatáca tetéca titíca totóca tutuca! Pum!... Cocô

pum! Xixi pum! Pipi pum!... [...] (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004,

p. 219).

Por meio deste, digamos, texto, percebemos sua posição frente à Câmara:

desimportante, infantilizada, que está ali para enrolar enquanto os outros deputados dormem

no recinto. Esta cena e a seguinte do discurso do Deputadinho da Ferrugem expressam,

através do efeito cômico, a desilusão em relação à democracia e uma severa crítica à estrutura

política do país, a qual não está interessada com os problemas sociais do Brasil. De acordo

com Rosenfeld (2011, p. 157), esse efeito “exige no momento certa insensibilidade

emocional”, para que o espectador possa rir da cena, mas que na sequência ative um

pensamento crítico: “há um momento de incompreensão, imediatamente seguido de um

choque de iluminação”. Toda a Câmara-Ballet é paródia, sátira da Câmara, com intenção de

vaia do autor, exceto quando a personagem Mãe canta o canto dos oprimidos e insista a

revolução na Endeixa da Mãe.

Para finalizar, todos esses recursos também são uma forma de colocar em cena o

assunto histórico da crise cafeeira em 1929. Por meio deles podemos compreender como a

História entra na peça: êxodo rural, superpopulação das cidades, queima do café etc. Esse

panorama é abordado pela perspectiva do explorado, buscando mostrar como essas

modificações sociais causaram interferência direta em suas vidas.

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A segunda cena do primeiro ato evidencia o desgosto dos colonos frente à crise, e

depois de um deles dar um pontapé na saia do cafeeiro se instaura uma discussão entre

colonos e donos.

Os Donos (solenes):

– A ordem é de expulsar o que maltrata as árvores inocentes!

Colonos (homens, melancólicos e mansos):

– Malvado o que abusou da inocência do fruto, o encarcerando nos armazéns

insaciáveis, o queimando nas caiêiras clandestinas da madrugada!

Os Donos (ásperos):

– Tonto é o que fala sem saber as altas leis da História!

Colonas (se abespinhando, entrando na resposta das mulheres):

– História! A fraqueza do humilde, a esperteza do sábio!

– Não posso mais! Não posso mais! [...] (ANDRADE, M., 1942c apud

TONI, 2004, p. 214).

Neste trecho temos a denúncia de um fato histórico, o da queima do café nas

madrugadas e em caieiras clandestinas, recurso esse utilizado pelos donos das fazendas para

que com isso houvesse aumento no preço do grão. Além disso, nos revela o conceito de

História que será destacada na peça, isto é, a do humilde, do explorado, deixando de lado a

perspectiva do historiador que tenha empatia com o vencedor (BENJAMIN, 1987).

Mário de Andrade adota a postura de um historiador materialista benjaminiano, pois

traz as marcas do tempo histórico para a peça, de modo a analisar como elas trouxeram

modificações no cenário nacional e como isso interferiu diretamente na sociedade atual. De

acordo com Benjamin (1987, p. 225) o Materialista Histórico tem a função de “escovar a

história a contrapelo”.

O assunto histórico também é exposto pelo uso da alegoria, que segundo Benjamin, é

uma apreciação do valor do tempo e da história (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 2009). Ela é

expressa, na peça, pela personagem “Mãe”. Esta se destaca na primeira cena do segundo ato,

ao discorrer sobre um mundo em transformação, o estado de abandono que vive o campo e,

com isso, a verdade dos séculos de opressão vem à sua boca e apresenta como caminho de

libertação a revolta socialista, sendo assim presa no final da cena. Mas, quando estoura a

Revolução no terceiro ato e os Revolucionários saem vitoriosos, a personagem retorna, como

já descrito, “ferocíssima, inteiramente irracional, desgrenhada, o rosto horrendo de volúpia

sanhuda, [...]. Está rasgada, um seio a mostra, nas mãos uma bandeira enorme, vermelha e

branca [...]” (ANDRADE, M., 1942c apud TONI, 2004, p. 233). A partir da construção da

personagem apresentada na rubrica é possível se construir um quadro e, através dele, perceber

uma “imagem dialética”. Esta dialoga com outro momento histórico, isto é, com a Revolução

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Francesa: a descrição se aproxima do quadro de Eugène Delacroix La Liberté guidant le

peuple, (traduzindo literalmente, A liberdade guiando o povo), de 1830. Este quadro retrata a

liberdade pela figura alegórica de uma mulher do povo, podendo ser entendida como a Mãe

Pátria ao comemorar a derrota da Monarquia e a instalação da República.

Willi Bole (1994, p. 412), em seu estudo sobre Benjamin, destaca que “tal

superposição de épocas diferentes, como imagens comparativas, que fazem com que o póstero

‘desperte’ e conheça sua própria época, caracteriza a historiografia alegórica”. A alegoria é

caracterizada pela “impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na

temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias” (GAGNEBIN,

2009, p. 38). A peça utiliza da alegoria para através do passado entender o presente e a

personagem “Mãe” não consegue se furtar à passagem do tempo, estando inserida na história.

Ela representa a liberdade, quando as massas renascem no utópico terceiro ato, livres da fome,

em um mundo que as desigualdades sociais não existem, pois os interesses individuais são

substituídos pelos coletivos.

Em síntese, Mãe é uma personagem de extrema importância para se compreender a

peça Café. O próprio Mário de Andrade considera a Endeixa da Mãe “um poema lindíssimo,

o mais belo poema que eu já compusera em minha vida” (ANDRADE, M., 1942a apud

TONI, 2004, p. 175) – e sabemos que, para ele, o conceito de beleza não envolve somente

categorias estéticas.

Segundo Carvalho (2002, p. 200), Mário de Andrade conseguiu em Café “expressar o

sentimento trágico da anulação social, num país em que a precariedade do auto-

reconhecimento burguês levou a tantas outras indefinições sociais”. Deste modo, sua

dramaturgia expõe contradições sociais e históricas, por meio da experimentação infindável,

buscando “proletarizar não apenas sua consciência, mas todo seu trabalho” (Ibidem).

Concluindo, a peça Café, de Mário de Andrade, faz parte do início de um pensamento

crítico e político no teatro e na literatura nacional. Retrata, por meio de um ponto de vista de

esquerda, os problemas sociais ocorridos devido à crise cafeeira de 1929 e as relações

conflituosas entre os indivíduos envolvidos. Por meio de uma forma híbrida, marcada pela

dialética entre forma e conteúdo, e de uma apropriação muito característica do teatro épico, o

dramaturgo expressou questões pontuais para o desenvolvimento sócio-histórico do Brasil.

Contudo, recorre a uma liberdade artística ao expor um final vitorioso, uma revolução

socialista, que se poderia possível. Em síntese, o projeto teatral de Mário de Andrade pode ser

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considerado uma parcela de contribuição para a constituição de um teatro crítico, social e

político na história do teatro brasileiro.

3.2 A moratória de Jorge Andrade: teatro, história e memória

A peça A moratória, escrita em 1954 por Jorge Andrade, atualiza historicamente a

crise de superprodução da economia cafeeira de 1929, sendo esta exposta pela perspectiva do

dono da fazenda. A peça é disposta em três atos e dois planos cênico-temporais, que nos

apresentam a família de Joaquim em 1932, num ambiente urbano à espera da conquista da

moratória (e, portanto, de postergar o pagamento das dívidas em 10 anos e recuperar a

fazenda), e em 1929, ainda na fazenda, logo antes de perdê-la por dívidas impagáveis dadas as

circunstâncias da crise do café. Em cena há quatro personagens principais, todos da mesma

família: o patriarca Joaquim, sua esposa Helena e os filhos Lucília e Marcelo, ainda

aparecendo à irmã de Joaquim, Elvira, e o novo de Lucília, Olímpio. Eles se revezam entre os

dois planos nos quais se desenrolam, em registro realista, os conflitos em torno da perda da

fazenda (1929) e da possibilidade de sua recuperação (1932). Todavia, a peça não se limita a

um enredo simples sobre problemas familiares que levam ao envolvimento dramático (embora

essa dimensão compareça), mas remete a questões históricas que partem dos conflitos

familiares para expressar temas mais amplos como, por exemplo, a derrocada de uma classe, a

dos aristocratas rurais. Deste modo, a peça provém de memórias individuais, mas que também

representam uma classe social em declínio. Nesse sentido, há uma ampliação do enredo para

dar conta de expressar conflitos históricos e sociais como, por exemplo, os embates entre o

campo e a cidade, entre o mundo patriarcal e o anonimato da cidade, entre o ritmo e a

estrutura de poder da fazenda e a civilização da indústria.

Em suma, A moratória é uma peça na qual há muitas camadas de significação no nível

das entrelinhas e do não-dito, que precisam ser analisadas minuciosamente para não se perder

no engano da superfície. Isso se dá no modo como usa a linguagem, na construção dos

personagens entre o típico e a individualização psicologizante, na projeção em horizonte

amplo de todos os conflitos entre os personagens, o que será discutido mais adiante. Por

agora, fica como exemplo o mais óbvio: ao colocar os dois tempos (1929 e 1932) lado a lado

no palco, dividindo-o, isso por si só tem um efeito de distanciamento dos mais pronunciados.

Porque temos conhecimento de que todas as expectativas de 1929 serão frustradas: sabemos

que, em 1932, estão na cidade, à espera de voltar para a fazenda. Isso quebra, ou ao menos

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matiza, a expectativa em torno dos acontecimentos, e no lugar da tensão dramática coloca a

averiguação épica de como se dará a perda da fazenda.

Ao analisar A moratória não podemos desprendê-la de sua relação com o mundo, com

a História paulista assim como brasileira, com a inserção da memória individual e memória

coletiva de Jorge Andrade, pois estas forneceram matéria-prima para seu teatro. Desta

maneira, buscaremos, por meio de uma análise imanente, compreender como ocorre a

formalização estética dessa matéria histórica brasileira. Para isso, tomaremos como base os

estudos sobre a memória e a expressão artística, bem como a análise das categorias teatrais

(ação, tempo, espaço, personagem, linguagem, etc.) pela perspectiva épica, de modo a

entender como história e memória são formalizadas em A moratória.

A análise envolverá concomitantemente esses dois caminhos analíticos, que se

fundamentam em críticos como Catarina Sant’Anna (1997), Gilda de Mello e Souza (2008b),

Anatol Rosenfeld (1970), Sábato Magaldi (2010), Luiz Humberto Martins Arantes (2001),

Antonio Candido (1993), Décio de Almeida Prado (1970), Maurice Halbwachs (2004), M.

Pollak (1992), Carlos Antônio Rahal (2015), dentre muito outros.

A princípio, devemos considerar que Jorge Andrade, nascido em 1922, era filho de

grandes produtores de café na região sudeste do país, tendo passado a infância e a

adolescência no meio agrário. Ao longo desse tempo presenciou acontecimentos e fatos

históricos como, por exemplo, em 1929, com sete anos de idade, a perda de grande parte da

fazenda de café de seu avô, em decorrência da crise do produto, como resultado do crash da

bolsa de valores de Nova York. Desta vivência pessoal trouxe para a peça uma referência

factual: Arlindo, responsável pela perda da fazenda da família do dramaturgo e da família de

Joaquim em A moratória (SANT’ANNA, 1997). No Brasil, a crise de 1929 se agravou ainda

mais com a revolução de trinta e com a subida de Getúlio Vargas ao poder.

O dramaturgo acompanhou de perto a passagem do Brasil agrário para o urbano e,

com base em suas experiências, guardou inúmeras memórias, as quais mais tarde se tornaram

material para o teatro, o que podemos comprovar a partir da fala do próprio dramaturgo: “A

moratória [...] pertence entranhadamente à minha memória familiar. Nas colônias que

conheci, nos bailes que frequentei, nas ruas de café que trabalhei, [...]”60.

60 Falas destacadas por Delmiro Gonçalves na “Introdução” do ciclo Marta, a Árvore e o Relógio. In: Andrade, J.

Marta, a Árvore e o Relógio, 1970, p. 13.

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E, de acordo com Décio de Almeida Prado (1970, p. 627), Jorge Andrade não apenas

observou o drama da decadência da economia cafeeira61, ele “intuiu-o, sentiu-o na própria

pele, testemunha ou protagonista que foi, na infância, de tantas e tantas histórias semelhantes

a esta”. Todavia, sua dramaturgia não se restringe em expressar questões subjetivas, mas a

entender a si mesmo e aos seus como parte de um contexto social brasileiro mais amplo.

Segundo Rosenfeld (1970), a dramaturgia de Jorge Andrade baseia-se em experiências

próprias aliadas a dados históricos da realidade nacional. O dramaturgo buscou compreender a

fundo a história brasileira da qual fazia parte e, neste estudo, guiou-se por influências de

historiadores, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Junior,

fundamentais para a formação do pensamento crítico e histórico de Jorge Andrade.

A moratória, escrita após a Segunda Guerra Mundial, é sensível às indagações sociais

e históricas e busca, numa análise crítica e distanciada da História, desnudar suas

incongruências. Conforme Sábato Magaldi (1986, p. 680), “o preparo histórico e social de

Jorge Andrade forneceu a dimensão de seu teatro” e “nenhuma outra obra, em nossa

dramaturgia, construiu tão laboriosamente a sua unidade”.

Ao atualizar historicamente a crise de 1929, a peça liga-se à memória individual e à

memória coletiva do dramaturgo, e também ao tempo histórico. Segundo Rahal (2015, p. 188-

9), nesta peça Jorge Andrade trabalha a “História brasileira e paulista” como “pano de fundo

dos acontecimentos familiares”, e acrescenta ao seu “rigor histórico” a “sua própria

memória”, pois:

[...] a história familiar de Jorge Andrade, da qual ele retira vasto material

para suas peças, se confunde com a formação do povo paulista. Nesse ponto,

o processo histórico mescla-se às questões íntimas do autor; para resolver o

imperativo categórico de compreender seu passado e passar a limpo questões

que o atormentavam, ele precisou revisar as duas histórias – a de sua família

e a de São Paulo. Sob esse prisma, Jorge Andrade talvez seja único na

dramaturgia brasileira. (RAHAL, 2015, p. 32)

Para compreender como estas memórias entram na peça e como expressam fatos

históricos, teremos como base os estudos de memória e a teoria de Maurice Halbwachs

(2004), que revolucionou, nos anos 1920-1930, os estudos desse gênero ao analisar que,

embora a memória parecesse ser um fenômeno individual, ela deveria ser entendida

61 Todavia, a decadência dessa economia não pode ser entendida como a marca de seu término. Jorge Andrade

fala da crise do produto, mas mesmo durante esse período de quebra o café continuou forte, embora não como

produto base, sendo fonte de renda para economia brasileira.

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basicamente como um fenômeno coletivo e social, visto que nenhum indivíduo está sozinho e

o que nos cerca é, em determinado ponto, formador de nossa memória.

A teoria halbwachiana busca entender a formação da consciência social, visto que a

“memória dever ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social,

ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,

transformações, mudanças constantes” (POLLAK, 1992, p. 201). Assim sendo, nossa

memória se apóia na história em que vivemos, isto é, em “tudo aquilo que faz com que um

período se distinga dos outros”62 (HALBWACHS, 2004, p. 64).

Como dramaturgo, Jorge Andrade faz uma seleção de suas memórias, tanto

individuais quanto coletivas, e consequentemente o apagamento de outras. Esta triagem “tem

como referente direto os quadros sociais em que se constitui” e as “vivências de grupo do

passado” (ARANTES, 2008, p. 31). Todavia, Andrade, ao formalizar esteticamente vivências

pessoais, corria o risco de subjetivar sua memória e, assim, limitar sua obra a um acerto de

contas com seu avô e com seu pai, pois estes não perceberam que o desenvolvimento dos

fatos históricos indicava um fim desastroso. Contudo, o dramaturgo, ao escrever A moratória

em 1954, não se preocupou em descrever ou tematizar essas questões, mas sim em formalizar

uma ruptura histórica, mostrando-a no tempo histórico como uma crise inexorável e não

apenas conjuntural, como a passagem de um mundo para outro.

Jorge Andrade trabalha com períodos decisivos para a história brasileira. Em 1929

tem-se a quebra da bolsa de valores de Nova York, e como os Estados Unidos era o maior

comprador de café do Brasil, a interrupção da venda faz o preço do produto despencar. Porém

essa crise da bolsa não aparece como tema em A moratória; ela é referenciada a partir do

diálogo entre os personagens, aonde o autor insere indícios dessa crise. Somos informados

que de fato o café perdeu valor, e Joaquim, que entregou o produto para um intermediário,

não recebe o que lhe era de direito. Em decorrência disso, não consegue honrar suas próprias

dívidas, contraídas para o plantio do café, e sua fazenda é colocada à venda. Já 1932 é o ano

da Revolução Constitucionalista, disputa entre São Paulo e o governo de Getúlio Vargas. São

Paulo não aceitava a tomada de poder pela aliança controlada por Minas Gerais, Paraíba e Rio

Grande do Sul, que saíra vitoriosa em 1930. O Partido Republicano Paulista (PRP), que havia

feito o presidente eleito Júlio Prestes, não assumiu a presidência e, julgando-se preterido pelo

governo central, entra em guerra contra o Governo Federal. A Revolução Constitucionalista

teve o envolvimento de vários partidos políticos, inclusive e principalmente do PRP, ao qual o

62 A análise de como a memória apresenta fatos históricos não está ligada ao que Halbwachs (2004) define como

“memória histórica”, visto que o próprio autor não considera o termo adequado.

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personagem Joaquim era ligado. Mas, assim como a quebra da bolsa de 1929, esses

acontecimentos não são tematizados na peça, mas apenas mencionados lateralmente. Importa

que, em 1932, o pedido de moratória das dívidas ligadas ao café foi negado à família de

Joaquim (embora algumas famílias tenham conseguido) que, com isso, saem do campo de

forças histórico armado pela peça.

Mesmo sendo pano de fundo, esses períodos representam uma memória social e,

também, evidenciam uma história nacional, a qual pode ser entendida como “um resumo fiel

dos acontecimentos mais importantes que modificaram a vida de uma nação”

(HALBWACHS, 2004, p. 83). Jorge Andrade fez com que essas datas fossem importantes em

A moratória tanto no plano individual, pois a família perde em 29 a fazenda e em 32 eles a

perdem de vez, quanto no coletivo, indicando a decadência de uma classe social. Os dois

planos, aliás, estão ligados: a perda da fazenda em 1932 mostra em que medida Jorge Andrade

não tem interesse em fazer concessões à uma espécie de compensação simbólica que a arte

poderia fazer, devolvendo-lhes a fazenda. Isso traria à peça um final feliz no âmbito

individual, mas seria falso no sentido da memória histórica do fim de um ciclo agrário e o

início de um processo de industrialização.

O primordial, para Jorge Andrade, é mostrar que o ano de 1932 marca um momento

em que o quadro pós-29 mudou. Para isso, ele cria um enredo em registro realista. Deste

modo, podemos compreender o que acontece com a família por temas que reforçam o apelo

dramático como, por exemplo, a perda da fazenda, a mudança para a cidade, a situação difícil

da família na cidade, etc., mas sem nunca se limitar a isso. Em três atos, a peça apresenta o

drama da família de Joaquim e da sociedade baseada na monocultura do café. A partir desses

elementos pode-se suceder uma leitura dramática da peça. Todavia, é um entendimento

tortuoso e limitado dela, pois Jorge Andrade não pretendia que o espectador/leitor criasse uma

identificação com os personagens, com a memória apresentada por eles e que não

mergulhasse na ação dramática, e usou de vários mecanismos para isso.

A utilização de recursos realistas e épicos desse deve à sua formação na Escola de

Arte Dramática (EAD) e de participar de uma fase do teatro brasileiro que passou a buscar, no

teatro norte-americano e europeu, novas formas artísticas que dialogassem com novos

conteúdos sociais. Assim sendo, os recursos realistas utilizados por Jorge Andrade têm

fundamento na interlocução fecunda com o realismo norte-americano de Arthur Miller e

Tennessee Williams. O realismo crítico e psicológico destes autores teve importante papel na

produção dramatúrgica de Jorge Andrade, visto que os têm como base na construção de suas

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personagens – embora não se limite a isso, pois também elabora personagens que representam

discursos coletivos.

Da interlocução com a dramaturgia de Arthur Miller, podemos destacar alguns

recursos estéticos que se assemelham entre A morte de um caixeiro viajante, do dramaturgo

norte-americano, e A moratória, de Jorge Andrade. Como exemplo o fato de as duas

expressarem, por meio de suas personagens, “o impacto que a crise econômica pós-1930

impõe a sociedade” tanto norte-americana quanto brasileira (ARANTES, 2001, p. 460). Além

disso, podemos destacar o contato que Jorge Andrade teve com Arthur Miller, o qual

incentivou o dramaturgo brasileiro a escrever sobre seu povo, de modo a compreender o que

são o que gostariam de ser, e a partir daí escrever sobre a diferença.

A questão social e esse realismo crítico se efetivam na peça por intermédio de vários

recursos épicos, mas também pelo trabalho com a linguagem, pela construção dos

personagens, dentre outros. Um desses recursos épicos é expresso pela construção do espaço

cênico, que opta em dividir o palco diagonalmente, de maneira a expressar simultaneamente

passado e presente (1929 e 1932). Essa divisão espacial possibilita o jogo entre os tempos,

resultando na quebra da linearidade, do tempo e da ação. Conforme Magaldi (2004), esse

recurso dialoga com os planos de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, mas as diferenças

são mais significativas que as aproximações. Isso porque, na última, os planos estão

relacionados à psicologia fraturada e distorcida de Alaíde, que alucina à beira da morte, e cada

plano ocupa o palco por vez. Em A moratória, os planos são relacionados à objetividade

histórica, estando ambos à vista, todo o tempo. Apesar das distinções, nos dois casos esses

recursos rompem com a cena ilusionista e apresentam os fatos distanciados do público leitor.

Para a dramaturgia de Jorge Andrade, a manipulação livre do tempo,

impossível no teatro tradicional [...], é recurso fundamental, visto que sua

obra é, em essência, escavação do passado, rastro atrás, volta às origens,

iluminação crítica do passado pelo presente e do presente pelo passado.

(ROSENFELD, 1970, p. 615)

Embora tenhamos no palco dois planos temporais, estes não têm por finalidade fazer

uma projeção do que irá acontecer, (a ação, inclusive, começa em 1932) mas mostrar que

todos os desejos e expectativas de 1929 não alcançarão êxito. Deste modo, a disposição

cênica impede uma leitura dramática, restando apenas a expectativa pelo que ocorrerá em

1932 e, embora não saibamos pela trama o resultado de 32 – que a moratória foi negada –

antes do final, a estrutura criada impede uma saída que não seja a da perda da fazenda.

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Todavia, essa compreensão deve ser construída pelos espectadores/leitores, pois não nos é

dada pela peça.

A divisão espacial sustenta a memória de duas casas, dois mundos e duas realidades,

que podem ocorrem simultânea ou alternadamente. Essa divisão cria uma instância narrativa,

como se dissesse “primeiro plano”, “segundo plano” a cada passagem. Além disso, esta

ligação entre os planos pode ocorre mediante o diálogo entre as personagens. Segundo

Rosenfeld (1970, p. 614) essa justaposição de dois planos temporais, isto é, presente e

passado, é um “recurso épico”, pois

só um narrador, no caso encoberto, pode manipular dois níveis de tempo,

fazendo com que as personagens vivam simultaneamente em ambos. Na

dramaturgia tradicional, em que não há esta possibilidade, as personagens

avançam irremediavelmente para o futuro, como na realidade, inseridas no

decurso linear do tempo, podendo apenas evocar o passado pelo diálogo,

nunca cenicamente. Muito menos podem viver simultaneamente em dois

planos temporais, como ocorre nesta peça (ROSENFELD, 1970, p. 614).

Os planos tornam os fatos passados em presente e, em consequência disso, “o passado

é permanentemente reconstruído e vivificado enquanto é resignificado” (SCHIMIDT;

MAHFOUD, 1993, p. 292-3). Contudo, a instância narrativa não faz adesão a nenhum dos

planos, apresentando-os de maneira objetiva e sem sentimentalismos. O primeiro plano, 1932,

se desenvolve na cidade em decorrência da família ter perdido a fazenda há três anos. E

mesmo passado todo esse tempo, Joaquim ainda tem esperança de voltar, olha toda manhã o

jornal em busca de notícias sobre uma possível moratória, que permitiria o retorno à fazenda,

mas ela não sai. A família sobrevive por meio do trabalho de Lucília, que costura para fora.

Ela é a única que se adapta à realidade da cidade e à mudança brutal na sociedade, pois os

demais ainda estão presos à fazenda.

O segundo plano, 1929, apresenta a família ainda na fazenda de café, mas de início

sabemos que sua situação financeira é complicada. Joaquim reclama da falta de chuva e da

queda do preço do café; além disso, somos informados que contraiu dívidas no banco,

deixando a fazenda como garantia e, para piorar a situação, vendeu o café a prazo. Seu

objetivo é viver na fazenda até o dia de sua morte. Com base nisso, podemos notar que o

espaço e o tempo, isto é, 1929-fazenda e 1932-cidade, “são o espaço e o tempo da memória”,

sobre os quais os personagens circulam (RAHAL, 2015, p. 190).

A fuga do sentimentalismo é trabalhada também por Jorge Andrade na constituição

primorosa das personagens por meio de uma linguagem em chave realista que, em

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determinados momentos, beira o clichê e o provérbio. Com isso, marca discursos

representativos de uma coletividade, que acabam por expressar um mundo estagnado. Ou seja,

a linguagem realista indicaria personagens psicologicamente aprofundados, mas a sua

cristalização em provérbios e em frases-feitas (também caros ao realismo) leva da psicologia à

sociologia, de características individualizantes à representação de discursos sociais já

sedimentados. A ironia está no fato desses lugares-comuns já não servirem para a situação na

qual estão inseridos. Quando Quim brada: “Nós ainda somos o que fomos!”, em várias

passagens da peça, está claro para todos que não são mais o que eram, nem como indivíduos

nem como representação de classe. Nesse sentido, a linguagem busca perspectivar as

personagens de modo a mostrar visões de mundos díspares, que as evidenciem como

indivíduos em crise inseridos numa sociedade de classes que se reorganiza. Desta maneira, as

ações são regidas por questões que extrapolam o indivíduo e passam para o âmbito do

coletivo.

Como podemos observar, a peça A moratória deve muito à estética realista, porém é

importante compreender que Jorge Andrade utiliza, justamente, esses recursos para superá-los

através de um realismo crítico. Com isso, afasta-se de um realismo à moda do teatro de

Alencar, isto é, moralista e nostálgico. Deste modo, Jorge Andrade emprega elementos do

realismo apenas como recurso cênico, para assim contrapô-lo a outras possibilidades.

Os recursos formais da peça A moratória, de Jorge Andrade, como por exemplo a

criação de uma instância narrativa pelo espaço, a perspectivação das personagens e o realismo

crítico são também recursos estilísticos característicos do romance brasileiro de 1930/45. A

ruptura formal que estes elementos proporcionam a peça já se dava no romance desde o

século XIX, com a crise do gênero. Mesmo que tardiamente, a ruptura formal iniciada pelo

gênero romance chega ao teatro, de tal modo que o estudo do romance ilumina questões

relativas ao teatro. Embora nosso assunto seja o teatro, faremos uma pausa na análise d’A

moratória e iremos observar uma interlocução entre os gêneros por meio da análise de alguns

aspectos do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos63.

Depois dessa análise, iremos identificar como os recursos formais do romance

brasileiro dialogam com a peça de Jorge Andrade. O objetivo da análise é demonstrar como a

mudança de perspectiva da narrativa é análoga em ambos os gêneros64.

63 Para uma análise do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, Cf. LAFETÁ, J. L. O mundo à revelia. In:

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 42ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1984, 213p. Ainda CANDIDO, A. Ficção e

confissão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 64 O processo que pretendemos mostrar com a análise do romance, aproximando alguns elementos formais com a

peça, poderia se estender para qualquer forma de arte para observar movimento análogo. Como já expomos no

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O romance São Bernardo (1934) se inicia com um narrador (ainda não identificável)

que evidencia o objetivo primário do livro, isto é, “construí-lo pela divisão de trabalho”. Mas

as partes incumbidas a João Nogueira (advogado) e a Padre Silvestre não se realizaram por

desentendimento com o organizador, visto que Nogueira queria escrever o romance em língua

de Camões e Padre Silvestre tinha ideais revolucionários. Apenas Azevedo Gondim começou

a empreitada, mas logo foi rechaçado, pois entendia que “um artista não pode escrever como

fala” (RAMOS, 1984, p. 07; 09). Em virtude disso, o narrador abandona o objetivo primário

e, por meio de um diálogo rico em metalinguagem, explica seus recursos estilísticos (ou

carência destes) e seus procedimentos de escrita.

No terceiro capítulo, o narrador, que se mostrou seco, direto e objetivo, se revela para

o leitor: “Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e

completei cinquenta anos pelo São Pedro”; irá narrar os acontecimentos de sua vida e se

impacienta com “dois capítulos perdidos” (RAMOS, 1984, p. 07 a 12). Todavia, podemos

extrair desses capítulos iniciais a figura dominadora de Paulo Honório, que não desiste no

primeiro obstáculo e faz de tudo para conseguir realizar seus objetivos, mesmo que tenha que

usar de meios ilícitos para isso.

Antes de sabermos quem é o narrador da história, somos lançados pela narrativa a um

mundo desconhecido, em que nada nos é explicado, mas está nitidamente marcado por uma

voz autoral muito pronunciada. E, depois que Paulo Honório principia a narrar sua história de

vida, essa é profundamente marcada pela sua subjetividade. Por incrível que pareça, ela forja

uma suposta objetividade, visto que vemos os acontecimentos históricos e pessoais a partir de

sua perspectiva. E Paulo Honório, que não é escritor e preza pelo enfrentamento direto dos

problemas, pela resolução, pelo menor caminho, nos apresenta apenas os fatos principais, sem

sentimentalismos, sem explicações minuciosas, sem delongas, por meio de uma narrativa seca

e objetiva (LAFETÁ, 1984).

caso da peça Café, de Mário de Andrade, que dialoga com formas determinadas de modo a romper com as

formas hegemônicas recorrendo ao épico com características modernistas. O mesmo ocorre com Jorge Andrade,

embora num contexto de formação distinto, isto é, de formação do TBC e da modernização do teatro, procura

dialogar com seu tempo histórico ao recorrer a uma linguagem que puxa para o lado psicológico, mas que, pela

tipologia dos personagens e pela objetividade narrativa, matiza o realismo. Segundo Rosenfeld (1976) o romance

contemporâneo passa por uma mudança de perspectiva na passagem do século XIX para o XX: o narrador que

antes era neutro passa a se intrometer e inserir sua perspectiva de mundo. Continua ele: se é verdade que a obra

de arte expressa questões do momento histórico em que foi concebida, deve haver analogia entre as mais

diversas formas de arte num mesmo contexto histórico, cada qual por seus materiais e lidando com uma

determinada tradição. Portanto, se o século XX é marcado pelo questionamento da arte absoluta, esse

questionamento poderia se estender para as mais diversas formas de expressão artística. Por exemplo, no

romance ele ocorre pelo questionamento da figura do narrador, no teatro pela intromissão de instâncias

narrativas.

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Em síntese, a secura da linguagem tem a ver com a economia do homem prático, que

não se detém no lirismo da vida ou nas digressões do intelectual. Ele é econômico, duro,

inclemente com os demais personagens e com o leitor mesmo, o que se configura como

aspectos de sua subjetividade mesmo. Sua objetividade não é a do romance do século XIX,

que se fingia neutra, objetiva e impessoal, como se o romance se narrasse a si mesmo. Mas da

formação inconclusa do sujeito no contexto do capitalismo à brasileira. Sua mediação é tão

importante quanto os assuntos que narra. Sua perspectiva marcante é notada mesmo quando

se mantém distante, tão potente é o lugar de onde fala. Algo análogo pode ser visto em A

moratória. As personagens da peça, enquanto tipos sociais, apontam para sua formação no

seio de uma sociedade em vias de extinção, pautada pelo patriarcalismo. À beira do

precipício, os lugares-comuns de Helena, a mãe que se anula em função da família, já dizem

pouco. Joaquim vive num mundo permeado por fantasmas, sendo ele próprio o mais

deslocado do mundo real de agora. Lá, a ascensão de Paulo Honório, que ganha poder,

compra a fazenda, casa-se com Madalena, e depois a sua derrocada paulatina até a escrita do

romance, depois de uma vida. Em A moratória, a derrocada da família de Quim também nos é

apresentada em perspectiva pelo espaço, como já foi dito, e pela linguagem proverbial que já

está fora do lugar (a menos de Lucília, a bem da verdade) e pela construção dos personagens.

As técnicas narrativas são diversas, mas podemos ver projetos análogos sendo construídos.

A linguagem reforça a objetividade narrativa e o relato histórico. O romance é

permeado por uma linguagem popular, realista, repleta de inovações estilísticas. O emprego

da linguagem por Graciliano Ramos, no romance São Bernardo, dialoga com seu contexto

histórico de produção, isto é, a segunda fase do Modernismo65. São Bernardo une a

preocupação com a expressão de novas formas de linguagem e com o seu contexto histórico e

social de produção.

A partir do terceiro capítulo sabemos que a história será narrada em primeira pessoa.

A instância narrativa é guiada pelo espaço, isto é, a fazenda São Bernardo, a cidade e os

lugarejos por onde passou. O romance não tenta plasmar ou reproduzir a realidade como ela é,

mas sim perspectivá-la através de um narrador realista e crítico ao mesmo tempo. O realismo

crítico do romance não possibilita que o leitor se identifique com os acontecimentos

perspectivados por Paulo Honório. Isso introduz na narrativa uma objetividade, uma rapidez,

um dinamismo, um torvelinho em que somos lançados. Os acontecimentos não são

apresentados por um narrador neutro como o do romance do século XIX, mas um narrador

65 Fase na qual Mário de Andrade também se insere. E, assim como Mário de Andrade, Graciliano Ramos

buscou romper com as formas hegemônicas por meio de uma revolução estética e ideológica.

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intruso, intrometido, que quer falar a todo custo e, com isso, acaba embrutecendo os

acontecimentos e as ações.

Destacados estes aspectos formais, seguimos enfatizando o enredo. No terceiro

capítulo Paulo Honório inicia a sua narrativa com a mesma objetividade de antes; com um

salto temporal de cinquenta anos e em apenas um capítulo narra sua infância pobre, o crime

que lhe deixou três anos, nove meses e quinze dias preso, e depois de soltos descreve os

meios ilícitos que usava para ganhar dinheiro. Rapidamente e de forma brusca passa da

infância à fase adulta, transição que deixa transparecer o caráter violento e o determinismo do

narrador, o qual destaca desse período apenas os fatos que lhe eram de interesse.

Na sequência apresenta o objetivo principal da narrativa: sua ida para São Bernardo

com a intenção de tomar a fazenda de Padilha moço. As ações de Paulo Honório se justificam

pelo seu interesse de vida: “apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa,

plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nessas

brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular” (RAMOS, 1984, p.

11). O sentimento que guia a narrativa é o sentimento de posse ou o de propriedade (Candido,

1956).

Em poucas páginas, Paulo Honório descreve como conseguiu as terras de São

Bernardo. A conquista da escritura foi planejada minuciosamente e Padilha moço deixou-se

cair na armadilha ao tomar dinheiro emprestado de Paulo Honório, o qual exigiu como

pagamento a posse da fazenda. Depois que Padilha se vê sem saída, Paulo Honório age rápido

e, em apenas um dia, toma posse de São Bernardo. O recurso de marcação temporal da

narrativa é constantemente empregado por Paulo Honório, uma forma de dar mais

credibilidade e mais rapidez, por meio dos saltos temporais, à sua narrativa.

Essa marcação temporal é feita muito naturalmente pelo narrador, muito de

passagem. Mas sua importância é evidente, em vários níveis. Primeiro,

porque confere exatidão e veracidade à história narrada, objetivando-a em

um tempo preciso e conhecido. Depois, porque o jogo de Paulo Honório

depende, para seu êxito, do enredamento de Padilha em um tipo especial de

tempo – o dia em que as promissórias vencem, o prazo. (LAFETÁ, 1984, p.

194)

Quando assumiu as terras de São Bernardo, Paulo Honório encontrou-as arrasadas e

ainda com o problema da apropriação ilícita de terras pelo fazendeiro vizinho (Mendonça).

Mas, assim como conquistou seu objetivo principal, superou brevemente essa dificuldade e,

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em uma nota, anuncia que Mendonça levou um tiro no peito e morreu. A morte de Mendonça

só ganha menção pois, por meio dela, se completou a prosperidade de Paulo Honório.

A partir desse panorama inicial da narrativa podemos formar a personalidade do

narrador: egocêntrico, determinado, burguês, capitalista, seco, bruto, etc. De acordo com João

Luiz Lafetá (1984, p. 191), a imagem que o romance nos fornece de Paulo Honório é de “um

homem empreendedor, dinâmico, dominador, obstinado, que concebe uma empresa, trata de

executá-la, utiliza os outros para isso e não se desanima com os fracassos”. Paulo Honório

representa a passagem de um mundo arcaico para um mundo moderno, industrializado.

Guiado pela perspectiva capitalista, anula os outros à sua volta e os toma como objetos,

mercadoria.

Ação transformadora, velocidade enérgica, posse total: aí estão três

características e três ideais da burguesia. [...] A objetividade do romance

nasce da postura do narrador face ao mundo: ele nada problematiza, de nada

duvida, em ponto algum vacila. Tudo que importa é possuir e dirigir o

mundo. Para tanto, ele conhece os meios. E não pensa sobre eles: aplica-os.

(LAFETÁ, 1984, p. 197)

As ações de Paulo Honório estão sempre voltadas para o acúmulo de capital e para as

gratificações que possa tirar de suas realizações. Por exemplo, constrói na fazenda uma igreja

e uma escola, a primeira para que os trabalhadores da fazenda tivessem uma religião

“decente” e a segunda, mais especificadamente, para que tirassem o título de eleitor. Ações

voltadas para obter apoio do governador e, assim, facilitar melhorias a São Bernardo.

Depois do objetivo principal alcançado parte para outro interesse, o de casar-se e de

dar um herdeiro para São Bernardo. Até o casamento é visto como negócio por Paulo

Honório, o qual se interessa pela bela Madalena (professora de escola normal) e esta aceita a

empreitada, visto que o negócio era vantajoso para os dois: Paulo Honório arrumava uma

companheira e uma progenitora, e Madalena iria para o campo e daria aula na escola da

fazenda. Acertado o acordo os dois casam-se rapidamente. Madalena dá um herdeiro para

Paulo Honório, mas este não tem afinidade com o filho (que pouco é mencionado na

narrativa).

Até o momento, Paulo Honório se vê vitorioso e aparentemente com a posse de

Madalena. Mas a rapidez da narrativa começa a modificar-se. Paulo Honório e Madalena

passam a brigar por questões financeiras. Paulo Honório não a compreende e se irrita com a

generosidade de sua esposa para com os trabalhadores da fazenda e com os gastos excessivos

na escola. O fato é que Madalena não aceita “alienar-se” e, com isso, tornar-se

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posse/propriedade de Paulo Honório. Por isso, ele a toma por comunista e materialista,

embora não entenda o significado do termo. A incompreensão da esposa gera-lhe ciúmes

obsessivos. A recusa de Madalena é materializada pelo ato contra a sua vida. Após este fato, a

narrativa segue num ziguezague entre passado e presente, entre fatos e alucinações movidos

pelo ciúme; “o desnorteamento é paralelo à perda de mando” do narrador-personagem

(LAFETÁ, 1984, p. 204 e 209).

Paulo Honório termina sozinho e com a fazenda debilitada com o avanço da

Revolução. E nisso surge o objetivo de criar o livro, isto é, descobrir onde foi que errou, mas

continua a embrutecer tudo e nada que faça mudará seu destino. O narrador-personagem

segue por um percurso histórico, suas ações são determinadas pelo meio em que vive, pela

sociedade que representa. A vida agrária o embruteceu e o fez um “explorador feroz”. Mesmo

que sinta amor por Madalena e ainda que volte no tempo “aconteceria exatamente o que

aconteceu”. O seu modo de vida o “inutilizou”, o embruteceu, e o tornou incapaz de

modificar-se (RAMOS, 1984, p. 182 a 187).

O romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, e a peça A moratória, de Jorge

Andrade apresentam recursos formais que possibilitam sua aproximação, a começar pela

perspectivação da realidade através de um realismo crítico – o que cada um faz à sua maneira

e materiais disponíveis. Mas a forma de expressão varia conforme o gênero, ou seja, no

romance a perspectivação é criada pelo narrador (Paulo Honório) e, na peça, por várias

instâncias narrativas: espaço cênico e dramático, tempo, tipologia das personagens e criação

da linguagem. Além disso, a perspectiva donde se fala são distintas em ambos os gêneros. São

Bernardo narra a história de um homem pobre que cresceu economicamente. Em A moratória

essa transição é inversa, fala-se em 1929 de uma rica família de fazendeiros já em crise, que

se encontra em 1932 sem nada e termina sem ao menos ter alguma saída a não ser aceitar a

sua nova situação. Embora sejam personagens-tipo que representam um contexto social mais

amplo, não caindo em subjetivismos, Paulo Honório, assim como Joaquim, representam a

sociedade de que são oriundos – assim, é evidente que as tentativas de mudança estão fadadas

ao fracasso. Portanto, as semelhanças e distinções são decorrentes do contexto histórico de

produção de cada obra, visto que Graciliano Ramos e Jorge Andrade mesmo ligados a

movimentos estéticos distintos, o primeiro à 2ª fase do Modernismo (1930 em diante) e o

segundo a um movimento de modernização do teatro brasileiro (1948 em diante). Cada um

busca em suas obras dialogar criticamente com os acontecimentos de seu tempo histórico.

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Retornando à análise d’A moratória, de Jorge Andrade: a peça formaliza a passagem

de um mundo para outro, isto é, do mundo arcaico para um mundo urbano, agrário para

industrial, que é expressa pela constituição dos personagens. Por exemplo, Joaquim (pai) e

Helena (mãe) pertencem ao mundo agrário e Lucília (filha) e Marcelo (filho) representam o

mundo industrial exigindo passagem na peça. Lucília, ao costurar em 1932, representa o ritmo

da máquina, que em determinados momentos substitui, com sua agilidade e rapidez

cronometrada, o ritmo lento da fazenda. Marcelo busca se adaptar, em 1932, à nova realidade

e passa a trabalhar em um frigorífico, representando a urbanização e a industrialização dessa

sociedade – e não nos esqueçamos que ele fracassa nessa tentativa, enquanto Lucília consegue

se adaptar. As situações que a família enfrenta são, também, resultado de questões históricas.

De acordo com Décio de Almeida Prado (1970, p. 626), a peça mostra “a agonia de

uma sociedade em vias de transição, aquela dolorosa passagem do Brasil dos fazendeiros para

o Brasil urbano”. Rosenfeld (1970) destaca, também, que A moratória tem como tema:

a decadência dos latifúndios cafeeiros tradicionais, de toda uma classe

patriarcal e semifeudal de fazendeiros aristocráticos, devido à crise de 1929

e à revolução de 1930, enquanto se manifestam vivamente o conflito entre as

gerações, o abalo dos valores tradicionais numa cultura em rápida mudança,

e as tensões entre o mundo rural e urbano (ROSENFELD, 1970, p. 602).

Jorge Andrade buscou na dramaturgia tchekhoviana base para sua formação

dramatúrgica. Ela lhe forneceu “matéria-prima formal”, visto que possibilitou a abordagem de

temáticas como a decadência, a “alteração de um modo de vida rural” e a desagregação de

segmentos sociais; assuntos que, nos anos 1950, estavam “pulsando no meio teatral paulista”

(ARANTES, 2001, p. 461). Catarina Sant’Anna (1997, p. 42) também destaca essa influência

tchekhoviana na dramaturgia de Jorge Andrade e pontua que, em A moratória, temos uma

interlocução com as peças O Jardim das Cerejeiras e As três irmãs, de A. Tchekhov. O

diálogo estaria na representação da perda da propriedade e na “imobilidade da ação presa à

esperança inútil da volta ao lugar perdido”.

Além disso, a “inadequação entre passado e presente” e a “patética solidão do

indivíduo ilhado em seu fracasso” são expressos em A moratória com base no realismo

psicológico de Arthur Miller e Tennessee Williams (BETTI, 1998, p. 15). Isso possibilitou a

Jorge Andrade pensar:

[...] no impacto da crise de 1930 na esfera dos personagens

(Marcelo/Joaquim). Diferentemente na realidade brasileira, as rupturas

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oriundas das transformações eram decorrentes da desestruturação de um

sistema produtor calcado na propriedade agrícola monocultora. É, portanto, a

carpintaria teatral do realismo psicológico amalgamando-se ao tema da

decadência rural. Em outras palavras, a serviço de uma memória individual

que, ficcionalmente, refaz a trajetória do rural ao urbano. (ARANTES, 2001,

p. 461)

Segundo João Roberto Faria (1998, p. 146), Jorge Andrade desenvolve em A

moratória um “equilíbrio perfeito entre o maior aprofundamento psicológico dado às

personagens e o registro histórico da crise econômica que atingiu os cafeicultores paulistas na

década de 30”. A partir de acontecimentos familiares, a peça aborda questões do âmbito social

e apresenta uma memória nacional, se ponderarmos o contexto sócio-histórico brasileiro; se

formos mais além, faz também referência a uma crise mundial, que originou modificações na

sociedade da época.

Um objeto que marca essa transição do mundo agrário para o urbano é, certamente,

máquina de costura. Ela está em evidência no centro do cenário do primeiro plano (1932) e,

por meio do seu funcionamento se inicia a ação da peça. A partir disso, já podemos observar

que o mundo urbano e industrial domina a cena e, com base nos diálogos, podemos perceber o

rompimento de uma sociedade patriarcal, visto que quem sustenta a casa é Lucília e não mais

Joaquim. Essa questão é nítida quando Joaquim fala à filha que ela vai poder ter tudo o que

desejar depois que sair a nulidade do processo e eles voltarem para a fazenda, mas Lucília não

nutre essa ilusão, e diz:

Lucília: Só depois disto, que poderemos pensar em recompensa... e outras

coisas. Até lá preciso costurar e com calma.

Joaquim: É exatamente o que não suporto.

Lucília: O quê?

Joaquim: Ver você costurando para esta gente. Gente que não merecia nem

limpar nossos sapatos!

Lucília: Não reparo neles. Não sei quem são, nem me interessa. Trabalho,

apenas. [...].

Joaquim: Gentinha! Só tem dinheiro...

Lucília: (Seca) É o que não temos mais. (ANDRADE, J., 1970, p. 124)

A partir desse diálogo, podemos perceber duas realidades sociais: a rememoração de

uma condição anterior, quando a família ainda possuía bens, marcada na fala de Joaquim, que

não aceita a outra (atual), isto é, quando Lucília tem que vender sua força de trabalho para

garantir o sustento da família. Ademais, qual seria o papel da máquina de costura quando

pensado no patriarcado de uma família rica? Poderíamos compreendê-la como um objeto que

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serve para preparar as moças para o matrimônio, para que sejam prendadas, mas de modo

algum elas deveriam retirar desse objeto o seu sustento.

O tempo dessas máquinas na cidade é outro: o tempo da produção em série. Isso vale

também para Marcelo que, ao trabalhar no frigorífico, também precisa acompanhar o tempo

da máquina. Já o pai e a mãe não aceitam esse tempo: Helena vê com preocupação o trabalho

de Marcelo e rememora que “Antigamente o trabalho era tão simples! Agora é preciso fazer

tudo com máquinas” (ANDRADE, J., 1970, p. 133). Todas as ações e pensamentos do casal

estão voltados para recuperar a fazenda e, assim, voltar no tempo e ao grupo que pertenciam.

A perda da fazenda modifica a relação do grupo com o lugar, pois, segundo Halbwachs (2004,

p. 140), “a partir desse momento, não será mais exatamente o mesmo grupo, nem a mesma

memória coletiva; mas, ao mesmo tempo, o ambiente material não será mais o mesmo”.

No segundo ato, primeiro plano (1932), Marcelo, por meio de uma discussão que tem

com Joaquim, expõe ao pai que o mundo que eles vivem é outro, que o contexto mudou, e que

o peso do nome não representa mais nada; agora o que comanda é à força de trabalho e o

acúmulo de capital. Essas questões ficam evidentes nos seguintes trechos da fala de Marcelo:

“Vivemos num mundo diferente, onde o nome não conta mais... e nós só

temos nome” (p. 159); “[...] o senhor mostrou o caminho errado. [...] O

senhor não me educou para ser operário” (p. 159); “[...] Era lá [fábrica] que a

saudade, a consciência do que fomos, mais me oprimia” (p. 159); “[...] O

senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que o nosso

mundo está irremediavelmente destruído” (p. 160) e; “[...] As regras para

viver são outras, regras que não compreendemos nem aceitamos. O mundo,

as pessoas, tudo! Tudo agora é diferente! Tudo mudou. Só nós é que não” (p.

161) (ANDRADE, J., 1970).

Com base nesses trechos podemos perceber que Joaquim está preso ao espaço da

fazenda, visto que “ele se fecha no quadro que construiu”, ou seja, não acompanhou as

transformações dos grupos, pois ainda está ligado à memória e aos costumes de um tempo e a

modificação deste é vista de forma trágica, tornando-se assim inaceitável (HALBWACHS,

2004, p. 139).

Joaquim e Helena se veem diante de modificações históricas, mas não conseguem se

encaixar nelas. Estão presos à fazenda, ao passado da palavra empenhada e, com isso, não se

reconhecem no presente do valor da força de trabalho e do acúmulo de capital (MACIEL;

SILVA, 2005). As personagens se encontram em 1932 frente a uma sociedade que lhes é

completamente estranha.

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Halbwachs (2004) reconhece que um indivíduo pode pertencer a inúmeros grupos, e

que a memória destes pode ser localizada através do tempo e do espaço e, sendo assim, ela é

suscetível a mudanças e também a transformações. Sobre a constante adequação da memória

aos fatores sociais, o autor afirma que:

Em todo caso, uma vez que a memória de uma sociedade se esgota

lentamente, sobre as bordas que assinalam seus limites, à medida que seus

membros individuais, sobretudo os mais velhos, desapareçam ou se isolem,

ela não cessa de se transformar, e o grupo, ele próprio, muda sem cessar. É,

aliás, difícil dizer em que momento uma lembrança coletiva desapareceu, e

se decididamente deixou a consciência do grupo, precisamente porque, basta

que se conserve numa parte limitada do corpo social, para que possamos

encontrá-la sempre ali. (HALBWACHS, 2004, p. 89)

A memória de um mundo e de seu grupo não se adéqua inicialmente a outro, podendo

às vezes seguir não a aceitando. Dessa forma, a transição entre mundos gera embate nas

relações familiares, como pudemos notar nos trechos destacados acima. A personagem que

concentra esses conflitos é Joaquim, grande produtor de café em 1929 e que se vê obrigado a

aceitar as doações minguadas de café de sua irmã Elvira, em 1932. Esta, mesmo com toda a

crise, ainda é dona de sua propriedade rural, o que dificulta a relação entre os dois irmãos.

Além disso, Joaquim expressa em suas ações e diálogos familiares – com a irmã, com o filho

Marcelo, com o cunhado e com a filha Lucília – a não-aceitação de sua posição de

rebaixamento em 1932. Em 1929 ele tinha a fazenda, o peso do nome, terras para o cultivo;

em 1932 só lhe resta um cubículo na cidade, pois o nome perdeu o significado e das terras só

sobraram ferramentas e sementes (adquiridas por meio da troca de um prendedor de gravata).

A inadequação entre mundos e os conflitos familiares são expressos pela escolha

formal do palco dividido, que faz com que surjam duas unidades de tempo e espaço: 1932-

cidade e 1929-fazenda. A partir dessas unidades temos a presença de um tempo cortado, isto

é, o tempo presente e o tempo passado, os quais seguem uma estrutura épica, em “curvas”,

onde muitas vezes se encontram, mas também se separam.

Na peça o dramaturgo, por meio das duas unidades de tempo, estabelece uma dialética

entre o passado e o presente, que, de acordo com Souza (2008b), transforma-os em uma única

temporalidade, pois n’A moratória

[...] é o passado que congrega as pessoas, funcionando como a memória

coletiva e dando sentido ao presente. Daí a importância enorme [...] do

tempo intemporal em que a peça escoa e a fazenda ora é perdida, ora

recuperada, num movimento idêntico a dos dois pratos numa balança.

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Constituindo este tempo reversivo, sem antes e sem depois, Jorge Andrade

nos deu, magistralmente, o tom trágico da obra, tom de desespero, onde não

há propriamente crescimento na ação, pois ela volta sempre ao ponto de

partida, enclausurando os quatro personagens principais num círculo de ferro

– o tempo intemporal do grupo (SOUZA, 2008b, p. 137-8).

Como vimos, essa articulação em dois planos temporais pode ser lida de diversas

maneiras. Por um lado, ela instaura a história como categoria fundadora do teatro, haja vista

que a peça não caminha por si só, mas ancorada na crise do café e na ruptura histórica que daí

advém. Por outro lado, como acabamos de acompanhar na citação acima, há quem veja nesse

jogo entre os dois planos uma remissão a um plano intemporal, a um enclausuramento

autocentrado. Essas leituras contraditórias, ao invés de diminuir a força da peça, antes a

reforçam, justamente porque a dialética que a peça produz engendra leituras em tensão.

De algum modo, esse enclausuramento intemporal também fala de uma sociedade em

crise, mas que não têm controle sobre o seu desenvolvimento, dependente que é de dinâmicas

do capitalismo que são alheias à nossa sociedade. Nesta, vemos os movimentos políticos e

estéticos chegarem, tomarem conta de corações e mentes, mesmo que não tenham relação

com nossa experiência social, e serem concluídos sem que tivessem se desenvolvido

adequadamente. Em suma, A moratória não nos apresenta personagens que conseguem se

localizar no turbilhão de um tempo histórico que assola o mundo e o Brasil. Esse vazio

cognitivo, no entanto, faz parte de nossa construção histórica, dos desmandos que continuam

em primeiro plano. Nesse sentido, A moratória consegue capturar os dois momentos dessa

dialética esquisita de nossa modernização.

Segundo Seligmann-Silva (2003, p. 65), a ascensão do registro da memória está

calcada “na experiência individual e da comunidade, no apego a locais simbólicos, e não tem

como meta a tradução integral do passado”. Com isso, destaca-se as memórias relevantes para

o indivíduo e para o grupo frente a um quadro de interesses e preocupações atuais.

Na memória, o presente não se opõe ao passado, mas este se estende

naquele: entre os dois, não há corte abrupto, mas continuidade do passado no

presente; é o que permite falar de um passado vivo. Um passado vivo

carregado pela consciência de um grupo que busca manter sua identidade, ou

seja, seus traços próprios e fundamentais, através do tempo... (DOUEK,

2003, p. 28)

Esse tempo intemporal que impossibilita o crescimento do conflito é oriundo de uma

ação semelhante que circunda os dois planos, isto é, nos dois, o assunto está basicamente

voltado para a fazenda, visto que o tempo é demasiadamente curto para haver modificações

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no plano histórico. Deste modo, conforme Rahal (2015, p. 191), podemos observar que “a

ação principal é a mesma” – a permanência e a tentativa de retorno a fazenda. Portanto, não

temos uma perspectiva de futuro, mas a presença de um passado pesado, o qual, para o velho

Joaquim, representa toda sua história e de seus antepassados, isto é, de uma classe social.

As unidades de espaço reafirmam a temporalidade, isto é, passado–fazenda, presente–

cidade. E colocam em foco a questão social: rural versus urbano, e histórica: decadência da

aristocracia rural e formação da nova burguesia industrial. Segundo Arantes (2001, p. 478-9),

a escolha de Jorge Andrade por essa matéria histórica brasileira se justifica duplamente, pois,

“num primeiro momento, é a atualização, para o texto teatral, de uma memória

individual/coletiva”, e “num segundo momento, A moratória representa específica leitura

acerca da passagem rural/urbano pós 1930, que o teatro brasileiro da década de 50 [...] não se

isentou de fazer”.

Para Sábato Magaldi (1986, p. 673), “o cenário, dividido diagonalmente em duas

partes, correspondendo à opulenta fazenda de café do passado e à modesta casa na cidade do

presente, sugeria a paralisação do tempo numa realidade superior e esmagadora”. Através da

diferenciação dos espaços, podemos perceber o peso que o ambiente rural tem para os

personagens, os quais não conseguem se desvencilhar dele nem mesmo na cidade, pois este

está presente na memória e nos objetos que trouxeram consigo; contudo, não serão suficientes

para recriá-lo (SOUZA, 2008b).

Os espaços contêm a marca dos indivíduos e do grupo, e isso ocorre pois “cada

aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para

os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro

tanto de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade” e, com isso, recorda o

modo de viver de uma família ou grupo. Além disso, o espaço descortina costumes e

distinções sociais antigas, de modo que “as formas dos objetos que nos cercam” são repletos

de significado, tornando-se assim “uma sociedade muda e imóvel. Se não falam, entretanto os

compreendemos, já que têm um sentido que deciframos familiarmente” (HALBWACHS,

2004, p. 138-9).

Temos na peça objetos que carregam consigo a memória de outra realidade, como o

galho de jabuticabeira, que separa os planos, remete ao tempo da fazenda e à lembrança da

plantação de café, da sociedade dos grandes fazendeiros e da decadência dos mesmos. O

relógio parado, nos dois planos, representa um tempo sem futuro, sem melhora, o fim de uma

classe. Além disso, mostra que Joaquim mantém, na cidade, o mesmo caráter e os valores

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antigos do homem, do campo, frente ao tempo. A máquina de costura, como já destacado,

reflete um novo mundo, o do trabalho, e aborda também a modificação nas relações familiares

e sociais. Esse objeto representa o avanço da cidade sobre o mundo bucólico da fazenda

(RAHAL, 2015). E quando o ruído desse objeto sobressai, temos a supremacia do mundo

industrial e o tempo da máquina.

De acordo Gilda de Mello e Souza (2008b, p. 140), o crescente barulho da máquina

comandada pela agilidade de Lucília irá soterrar “com seu terrível ruído urbano o espaço e o

tempo do campo, a memória, as caçadas, os galos da madrugada”. Além disso, o relógio e o

galho de jabuticabeira (árvore) representam as imagens-elos que ligam o projeto do decálogo

Marta, a árvore e o relógio, no qual A moratória se insere. Embora Marta não apareça como

personagem, o nome é mencionado no diálogo entre Helena e Joaquim, quando este pede o

retorno da filha para a fazenda e que pare de fazer o curso de corte e costura. Nesse momento,

Helena informa que Marta é a costureira que ensina Lucília a costurar. Segundo Sant’Anna

(1997, p. 116), “Marta está por trás de Lucília, a primeira personagem do ciclo que reage à

decadência econômica e se adapta com lucidez à nova situação”, expressando assim a gênese

desse elemento simbólico.

Os quadros de coração de Maria e de Jesus, nos dois planos, remetem à religiosidade,

à fé católica depositada na personagem Helena. No entanto, a função dos quadros se modifica,

isto é, em 1929 eles serviam para a personagem como se fossem a sua igreja, mas em 1932

perdem essa função. Isso ocorre, segundo Rahal (2015, p. 47), pois o “hábito adquiriu um

simbolismo muito forte: o solo de sua fazenda tornou-se sagrado para ela. Perdido esse solo,

os quadros perdem a função de ‘altar’”. Além disso, a retirada destes quadros, no terceiro ato,

revela marcas na parede, as quais podem ser entendidas como marcas do tempo e de

lembranças que ficaram.

A cena, do segundo plano (1929), em que a casa da fazenda está sendo esvaziada está

carregada de memória. Por exemplo, os móveis que ficam na fazenda representam uma não-

continuidade, pois eles pertencem àquele espaço; além disso, temos objetos que representam a

solidão e abandono dos velhos, como o balaústre que está descascado, o vidro quebrado da

janela e as formigas que roem as madeiras da casa, “uma bela metáfora desse estado de

passagem do tempo que Joaquim está sofrendo” (ARANTES, 2001, p. 476). E, por fim, a

despedida da fazenda gera a exaltação das coisas antigas, isto é, das festas, das caças, da

qualidade do forro, etc. Esses objetos e o mundo da fazenda só serão revistos por meio da

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lembrança e da rememoração, pois, segundo Helena, “as recordações... essas, ninguém poderá

nos tomar”, visto que a fazenda já lhes foi (ANDRADE, J., 1970, p. 183).

A fazenda acaba por se tornar personagem, estando no palco como elemento de cena e

no discurso dos personagens, principalmente no de Joaquim, que ressalta a importância da

fazenda que foi herança de seus antepassados; os quais, segundo ele, “vieram de Pedreira das

Almas para aqui, [quando] ainda não existia nada. Nem gente dessa espécie. (Pausa) Era um

sertão virgem (Sorri) [...] Foram eles que, mais tarde, cederam as terras para se fundar esta

cidade [...]”. E também, “são terras que pertenceram a meus pais. Que são de meus filhos. São

minhas! (Anda, desorientado, pela sala) Isto é sagrado! Só Deus... só Deus... (Pára,

ofegante)” (ANDRADE, J., 1970, p. 124; 167). A partir desses trechos podemos notar o afeto

que o personagem carrega por essa terra, o qual, de acordo com Aleida Assmann (2011, p.

270; 283; 284), “é um estabilizador de recordações extremamente importante”, pois reconstrói

a “pressão específica” de determinado momento e, além disso, os “quadros institucionais

específicos” que operam na seleção desses momentos. O afeto é que vai determinar quais as

recordações ficarão disponíveis para o indivíduo e quais serão apagadas.

No entanto, Jorge Andrade não desejava que o público/espectador criasse identificação

com Joaquim ou com qualquer outro personagem. Para isso criou personagens com

características individuais, mas que também possuem traços típicos, pois são acima de tudo

Pai, Mãe, Filho e Filha e suas ações e desejos derivam menos de questões individuais e mais

com o meio social de que são oriundos.

A composição da linguagem tem papel fundamental na construção dos personagens.

Embora seja uma linguagem acessível, em notação realista a partir de um sujeito, em vários

momentos indica lugar-comum, chega a beirar o clichê e quase se materializa em provérbios;

através desses recursos a linguagem passa a expressar um discurso que está além dos

personagens, determinados pelo âmbito da cultura.

Segundo Antonio Candido (1993, p. 110), esses traços estilísticos são formas “de

petrificar a língua, de confinar o seu dinamismo a um código imutável, cujo principal papel é

eliminar a surpresa e, portanto, a abertura para novas experiências”.

Eles formam um sistema coeso, na medida em que o provérbio é na verdade

o lugar-comum mais elevado pela repetição a um alto grau de formalidade.

[...] No limite, o dito proverbial reveste um caráter frequentemente semi-

religioso de sentença e oráculo, quase sacralizando as normas de sustentação

do grupo. Assim, podemos estabelecer no plano da análise literária uma certa

convergência entre a estrutura social e a linguagem (CANDIDO, 1993, p.

110-111).

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Através da utilização de provérbios e de lugares-comuns, Jorge Andrade amarra o

nível linguístico ao nível social. Podemos destacar alguns destes recursos na fala dos

personagens como, por exemplo, na de Helena (p. 138; 169): “Os anjos que digam amém”,

“Deus sabe o que faz”; na de Lucília (p. 124; 128; 130): “O que não tem remédio, remediado

está”, “Trabalho é para comprar o que for necessário”, “Não se pode estragar o que já está

estragado”; na de Joaquim (p. 124; 131; 136): “Esperança nunca é demais”, “Se tivesse

estudado, não precisava ser empregado dos outros”, “Nós ainda somos o que fomos”, etc.; na

de Olímpio (p. 155): “certos fatos são irremediáveis”, “o momento é difícil para todos”; na de

Elvira (p. 179): “Dou o que quiser, a quem quiser”, (ANDRADE, J., 1970). Além disso,

temos a presença de um provérbio que permeia a peça, mas que não chega a ser proferido, isto

é, Deus ajuda quem cedo madruga, em especial na conturbada relação entre pai e filho.

Contudo, os discursos sociais que advém dessas construções de linguagem são

negados no decorrer da peça, visto que deus não ajuda quem cedo madruga, certos fatos são

remediados, o que não tem remédio remediado não está. Portanto, o dramaturgo apresenta

estes pensamentos ideológicos dos provérbios como forma de contrapô-los ao plano da

história, mostrando que estes já não cabem mais no contexto em que são proferidos.

O provérbio, exprimindo a fixidez do discurso e do mundo, é um

instrumento de que o homem dispõe a fim de interpretar e julgar, de

identificar e prever. [...] Os provérbios costuram o mundo segundo um corte

definitivo, que imobiliza a vida, os sentimentos, a ação; ou aparecem como

símbolos de uma vida, de uma ação ou de sentimento já imobilizados. [...] A

existência dos indivíduos acaba dando a impressão de um contrassenso

monstruoso e alienador, pois ela só se engrena com o que a sabedoria

proverbial anuncia ou estatui quando cada um renuncia ao seu próprio

destino para manter a estrutura imutável do grupo (CANDIDO, 1993, p.

115-116).

Jorge Andrade, mediante estes recursos, elabora personagens que são ao mesmo tempo

indivíduos e tipos, como é o caso de Joaquim. Dessa maneira os discursos e ações de Joaquim

são criados de modo a representar questões sociais. Em 1929 a personagem representa, num

sentido mais amplo, as oligarquias rurais que tinham determinado peso na economia da época;

seu pensamento afirma ideologias de uma sociedade patriarcal, isto é, não aceita que se

questione a sua posição de mando e de chefe de família. Isso fica evidente quando fala para

Helena: “Na minha casa e na minha família mando eu. Sei perfeitamente o que é de direito ou

não. Sei também o que serve para a minha filha. [...]” (ANDRADE, J., 1970, p. 137).

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Nas palavras de Joaquim transparece nítida a ideologia como tentativa de

salvaguardar a imagem decalcada no prestígio da terra como razão de ser o

que era e agir daquela forma contra todos os fatos históricos propulsores da

desintegração aristocrático rural dos fazendeiros. A memória dessas raízes é

transmitida de geração em geração na forma de culto às árvores genealógicas

(GUIDARINI, 1992, p. 73).

Adorno (2003, p. 56), em Posição do narrador no romance contemporâneo, já

destacava que “antes de qualquer mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a própria

pretensão” de quem a profere. É por meio da linguagem que a ideologia se expressa, pois,

segundo Bakhtin (2010, p. 36; 38), “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência”, isto

é, “funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual

for”.

A peça expressa a ideologia de um sistema patriarcal, no qual o patriarca, dono de

inúmeras terras, plantava a base da economia brasileira, isto é, o café. Esse sistema é pautado

na situação de mando do homem, que decide sobre tudo e todos. Porém, este discurso

ideológico é posto em contradição frente a outro sistema, frente às regras de uma sociedade

urbanizada, formada por meio de classes e que tem como princípio a industrialização.

Portanto, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si

mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe

ideologia.” (BAKHTIN, 2010, p. 31).

As questões ideológicas refletem e remetem a uma realidade social, ou seja, fora de si

mesmas. Além disso, como já destacamos, na peça há objetos (galho de jabuticabeira, relógio,

máquina de costura e quadros) que funcionam como signos ideológicos, que refletem a outra

realidade. Assim sendo, “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da

realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 2010, p. 33).

Continuando, Joaquim representa o pensamento de uma época, como também

apresenta a memória de um tempo no qual a “palavra empenhada” e o sobrenome tinham

peso. Representa um grupo social que se vê diante de modificações históricas, mas que segue

proferindo um discurso sobre outro mundo, o mundo do passado, o qual refrata “milhares de

outros rostos” e tem a força de muitas vozes (GUIDARINI, 1992, p. 13). Por exemplo: “As

colheitas andam más. Não há mais café como antigamente” (p. 125); “Se continuar assim, não

sei onde vamos parar!” (p. 125); “Entre dois homens de bem, a palavra empenhada basta.” (p.

127); “O homem que trabalha pode fazer o que quiser nas horas de folga. Não precisa dar

satisfação de seus atos a ninguém.” (p. 135); “É preciso guardar as aparências” (p. 141);

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“Ainda somos o que fomos!” (p. 141); “Somente aqueles que não têm esperança é que

morrem lentamente.” (p. 162) etc. (ANDRADE, J., 1970). O dramaturgo insere no discurso de

Joaquim clichês e provérbios difíceis de serem aceitos na situação dada, pois estes

contaminam “as outras formas e revigora a sua tendência repetitiva, fazendo que as próprias

imagens ganhem um ar de sabedoria imemorial [...]” (CANDIDO, 1993, p. 115).

Suas ações e seus pensamentos estão ligados a um mundo arcaico, agrário, ao mundo

da fazenda e, mesmo morando na cidade, em 1932, faz de tudo para reaver a sua propriedade.

Esse apego ao passado é verbalizado, mais de uma vez ao longo da peça, por uma frase que é

falsa e se opõe a realidade história, mas que indica bem as dificuldades de se compreender as

mudanças que estão ocorrendo, de modo objetivo e inexorável: "Nós ainda somos o que

fomos!" Soa a epitáfio de uma classe. Portanto, a memória dos mais velhos e do nome rotula a

perspectiva dos ganhadores se vê contestada pelas novas gerações.

Além disso, os discursos proferidos pelos diálogos entre os demais personagens

também se direcionam para o âmbito coletivo e, com isso, expressam questões sociais e

históricas. Tomemos como exemplo o final do primeiro ato, quando Elvira (no segundo

plano) informa Helena de que “O Governo não pode sustentar a política de defesa do café e...

[...] os preços caíram vertiginosamente. Vamos todos à ruína”. Ao ouvir isso, Helena se

desespera, e afirma: “Será o fim de tudo!”, o fim de uma família e de uma classe. A queda do

café representa a abertura para o plano social, visto que aborda uma crise que provocou

modificações na sociedade brasileira (ANDRADE, J., 1970, p. 145-6).

Todavia, e isso é fundamental para a obra em chave épica, Jorge Andrade retira a

dramaticidade dessa cena ao colocar os dois planos ocorrendo simultaneamente. Enquanto o

primeiro plano (1932) termina no auge da alegria de Joaquim e Lucília frente à possibilidade

de conseguirem a moratória, o segundo (1929) se fecha no auge do desespero de Helena,

causado pela notícia da crise. Podemos perceber que as ações simultâneas não permitem que o

leitor/espectador tenha plena compaixão ou piedade de Helena nem se contagie pela alegria de

Joaquim e Lucília; cada um deles, isoladamente, operaria em chave dramática, mas ao mesmo

tempo soa irônico pelo contraste dos sentimentos, como se um colocasse o outro em

perspectiva. Assim, pode-se observar o objeto narrado de forma crítica e, com isso, refletir

sobre este momento histórico.

A utilização dos dois planos propicia o confronto de sentimentos antagônicos, por

exemplo, alegria/tristeza, esperança/desespero, otimismo/pessimismo, etc. (FARIA, 1998).

Com isso, o dramaturgo não possibilita que o espectador se identifique com a memória

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individual e com a memória coletiva postas em cena, mas chama a atenção em como, a partir

do olhar desse grupo, temos um quadro de mudança, ou seja, de transformações sociais.

Cada tempo/espaço perspectiva o outro, instaura a distância crítica e impede tanto a

empatia com os proprietários que estão decaindo, como a sua culpabilização subjetiva, na

figura de vilões. Isto porque os personagens não são apresentados de maneira idealizada. Por

exemplo, Joaquim é apresentado como patriarca da família, se endivida todo, toma ações sem

perguntar a ninguém, é inflexível, turrão, expulsa o próprio filho de casa, evita os alertas de

Helena, proíbe o casamento de Lucília com Olímpio em 1929; porém, em 1932, necessita de

seus favores, isto é, de sua formação em advocacia, para recuperar a fazenda por meio da

moratória. A força e o poder que marcavam a sua posição em 1929 não funcionam mais em

1932, seja com respeito à Lucília, à Marcelo, à sua irmã, e se torna um discurso fora do lugar.

Apesar disso, é muito difícil confrontá-lo diretamente, haja vista a força da ideologia que está

entranhada nas instituições. Com base nisso, é apresentado como um personagem em suas

fraquezas, que comete erros e, por isso, não pode ser tomado como modelo. Logo, não pode

ser considerado culpado pelo fracasso da família, e nem pintado como vilão por Jorge

Andrade.

A não-culpabilização ocorre porque os personagens seguem por um percurso histórico,

isto é, Marcelo (filho), acostumado com a liberdade do campo, não se adapta à nova

existência na cidade, pois não foi formado para ela; Helena (mãe) amacia a relação entre os

filhos e o pai, e, com isso, se anula; Joaquim (pai) vive o mundo da fazenda, a qual representa

a responsabilidade que lhe é empenhada; busca através da moratória ir contra o contexto de

mudança social, no entanto, essa ação é apenas uma forma de adiar o que está por vir; Lucília

(filha) é uma personagem turrona, que chega a culpar o pai pela situação, inflexível, acusa o

irmão, mas é também a única que está preparada para a nova existência no ambiente urbano.

Segundo Souza (2008b), para a mulher a mudança é de quem está no polo de sua dominação:

antes a dominação do pai ou do marido, trocada agora pela da máquina de costura. Neste

sentido, ela está mais apta a se adaptar, sendo a única que conseguirá se libertar da fazenda e

penetrar no novo universo que se constrói – não é preciso dizer que essa adaptação se dá em

chave negativa, pelo lugar de submissão a que a mulher é relegada em uma como em outra

ordem.

Toda essa estrutura é montada através de uma linguagem magistral, na qual Jorge

Andrade ora nos faz sentir pena de Joaquim, ora o culparmos pela perda da fazenda. O

resultado de tudo o que acontece, no entanto, não é responsabilidade deles, sendo antes um

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resultado histórico; a situação não depende de indivíduos específicos, e o decorrer das ações é

mais amplo do que qualquer conflito entre os personagens e seus interesses individuais.

O conflito principal é épico: a peça expressa um mundo que está se desmanchando e

os personagens, nada podendo fazer, são entregues a um percurso histórico já traçado de

antemão pela lógica da forma épica-dialética. Portanto, na peça não temos a perspectiva de

um futuro, de melhora, visto que nem a moratória é apresentada como uma solução, pois já

podemos antever que não será conseguida ao final da peça. Para evidenciar isto, o

dramaturgo, na última cena do terceiro ato, apresenta a perda da fazenda nos dois planos, isto

é, tanto em 29 como em 32. Segundo Rosenfeld (1970):

[...] a moratória não pode impedir a decadência de uma classe condenada

pela história – ela é apenas uma procrastinação. O relógio parado na parede

indica que os sinos dobraram. Os dois planos temporais, que no fundo

repetem a mesma situação irremediável, sugerindo a estagnação e a

paralisação sem futuro, ilustram a própria estrutura simultânea (o tempo

espacializado) o fulcro do tema: o tempo parado, a moratória e a sua

inutilidade (ROSENFELD, 1970, p. 614).

Com a elaboração dos dois planos, o dramaturgo deixa bem marcado a queda

irremediável da aristocracia rural. Isso porque o ano de 1929 não configura a queda da família

e de sua classe por completo; caso a peça se passasse apenas nesse período acabaria

apresentando somente um retrato da crise. Mas ao encená-lo mutuamente com 1932,

evidencia o início da recessão e o esfacelamento de uma família/classe. Essa materialização

de uma dupla temporalidade ocorre porque, segundo Magaldi (2004, p. 229), um “grupo não

morre de uma vez, a não ser pela revolução, e A moratória compraz-se em consignar os

estertores, a última tentativa de sobrevivência” que se expressa pela esperança de

parcelamento da dívida.

A decadência da classe dos aristocratas rurais é expressa pela inalterabilidade

psicológica das personagens na passagem de um mundo para outro. Joaquim continua agindo

como fazendeiro, embora não lhe reste terras; Marcelo, que foi criado livre, agora não se

adapta na clausura do frigorífico; Helena se anula para juntar os cacos da família na cidade;

apenas Lucília se adapta ao novo ambiente, partindo dela a única fonte de sustento da família.

Por meio dos contornos das personagens, Jorge Andrade monta um painel familiar de modo a

sacrificar as individualidades pelo grupo, criando uma dramaturgia de cunho social.

A moratória evidencia um processo de “decomposição”, no qual Jorge Andrade, sem

propor uma solução para a crise, alia os depoimentos históricos que comprovam os erros

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sociais dessa classe e, com isso, testemunha, sem escolher lado, uma história que estava

fadada ao fracasso. De acordo com Gilda de Mello e Souza (2008b, p. 135), “a grandeza d’A

moratória deriva em parte de Jorge Andrade não tomar partido no conflito que descreve e

permitir, de braços cruzados, que se cumpra o destino doloroso das suas personagens”.

Como vimos nas últimas páginas, Jorge Andrade inova ao se debruçar sobre uma

memória que em parte era sua, mas que também pertenceu a toda uma classe e, por meio dela,

buscar entender as modificações sociais num plano mais abrangente. Isso se dá pelo trabalho

com a linguagem, pela construção do espaço, dos personagens, etc. Pois, para o dramaturgo, a

“memória familiar pessoal só interessa na medida em que deixa de ser nossa para ser de todos.

A arte consiste em descobrir o pessoal que é a memória do coletivo” (GONÇALVES, 1970, p.

12).

A peça narra os acontecimentos pelo olhar dos de cima, embora por uma perspectiva

épica que impede a identificação direta, e não tem como objetivo expressar a ascensão de um

grupo social, mas a sua derrocada. Além disso, com olhar pessimista, narra a transformação

do mercado de trabalho, que no tempo presente (1932) opera somente por máquina.

Dentro da situação de crise do país, Jorge Andrade localiza personagens que têm

construção psicológica caras ao realismo, mas sem perder o caráter de expressão de tipos

sociais mais amplos e, também, dos discursos que passam através deles. Com isso, mantém

uma linha tênue entre o teatro realista e o teatro dialético, muito embora essa seja uma leitura

equivocada. Isso porque o seu timbre realista precisa ser matizado pela distância crítica que o

plano da história e da memória instauram.

Caso o leitor/espectador perca de vista essa perspectiva de soslaio, e faça uma leitura

meramente realista (no sentido de drama realista do século XIX) do teatro e da cena, estará

cometendo um erro de avaliação. Pois o procedimento de Jorge Andrade é absolutamente

dialético: nos personagens, nos conflitos, nas situações apresentadas, na disposição do espaço

cênico estão presentes as duas linhas de força, tensionando-se e impedindo que uma delas

prevaleça, apontando para a superação dialética. Ou seja, o plano social e o individual, o

dramático e o épico, a estrutura fechada e aberta, essas questões não devem ser resolvidas

para um lado ou para outro, mas devem atuar para criar um ponto de vista complexo e crítico

para o que é apresentado.

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Considerações Finais

As peças Café, de Mário de Andrade, e A moratória, de Jorge Andrade, deram

expressão artística à crise econômica e política que se seguiu à quebra da economia cafeeira

em 1929/30. Projetos cuidadosamente elaborados e que se destacam pela perspectiva crítica,

pelo engajamento social e pela busca estética. Embora as peças tratem da mesma matéria

histórica, essa analogia não se estende à formalização estética, visto que são duas peças

completamente distintas, e cada dramaturgo está envolvido em um contexto artístico muito

diverso, com o qual dialoga. Como vimos ao longo dos capítulos dois e três, Café, de Mário

de Andrade, expressa o assunto histórico, embora não se restrinja a ele, criando uma

revolução socialista – utópica, por intermédio de novos recursos estéticos que objetivavam

romper com o gênero Ópera ao utilizar uma perspectiva coletivizante. E A moratória, de

Jorge Andrade, o faz pela crise da família de proprietários rurais que representam a queda de

uma aristocracia rural, por meio de um realismo crítico que não tenta plasmar a realidade, mas

expressar o percurso histórico de uma classe por uma perspectiva crítica, sem sentimentalismo

ou acusação.

As características próprias de cada peça são provenientes da ligação que cada uma

delas tem com seu momento histórico de produção e de se relacionarem com discussões

estéticas ativas nos momentos em que atuaram. Isto é, para compreendermos Café, de Mário

de Andrade, e o Teatro Modernista foi necessário, no primeiro capítulo, realizar uma

revisitação teórico-histórica do Teatro Épico no Brasil, de modo a entender os

desdobramentos de inovações estéticas já modernas no século XIX como, por exemplo, o

enfraquecimento dos conflitos, a alegoria, a quebra da quarta-parede, a fala brasileira, o

personagem-tipo brasileiro, o assunto nacional, dentre outros itens supracitados. Além disso,

foi preciso compreender a revalorização das tradições populares e da perspectiva crítica de

formas teatrais, como as Revistas de Ano e as Comédias de Costumes. A valorização de

fontes primitivas, o nacionalismo crítico, a alegoria, a música popular, dentre outros aspectos,

são formas estimadas pela dramaturgia modernista e que tiveram desdobramentos na peça de

Mário de Andrade

Café, além de repercutir desdobramentos da tradição cômica e musicada do século

XIX, está ligada ao Teatro Modernista e à uma segunda fase do Movimento Modernista.

Nesse sentido, no segundo capítulo, buscamos compreender a relação de cada peça com seu

tempo histórico e com vertentes estéticas em vigência. Além disso, os autores se destacam por

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pensar suas peças conforme as preocupações estéticas de cada período, isto é, pós-1930 e pós-

1950, e de refletirem sobre a função social da arte e do artista na sociedade. Mário de Andrade

e Jorge Andrade buscavam realizar uma arte que trabalhasse questões sociais, através do

estudo de formas brasileiras, europeias e norte-americanas. Essa interlocução com questões e

recursos formais pontuais para cada período histórico possibilitaram às peças realizar uma

dialética entre forma literária e conteúdo social. Essa dinâmica não se restringiu às peças em

estudo, mas fazem parte de projetos artísticos (e de discussão sobre o conceito de arte) de

amplo alcance. Com base nisso, buscamos compreender as peças mediante a ideia de projeto e

os autores como pensadores do teatro brasileiro.

O teatro de Mário de Andrade se pauta pelo caráter inovador do Movimento

Modernista, inaugurando uma segunda fase mais engajada socialmente do movimento, ao

aliar os projetos estético e ideológico (LAFETÁ, 2000). Café expressa esse dois projetos, o

ideológico por meio de uma arte militante, de um projeto social e político que buscava tratar

de um assunto social, a crise do café. E o estético pudemos observar em vários momentos da

peça, como por exemplo, no terceiro ato (Dia Novo), através dos recursos expressionistas,

épicos, da alegoria, da apoteose, do poema, da música, das massas-corais e da construção

plástica. O momento histórico no qual surge Café possibilita a interlocução com os ismos do

início do século XX, isto é, nacionalismo, primitivismo, expressionismo e com o que seria o

Teatro Épico.

Todas as inovações que Mário de Andrade realizou em Café, com o intuito de romper

com o teatro tradicional e com o aburguesamento cada vez maior do gênero Ópera, não

chegaram a alcançar a ribalta: assim como as do teatro modernista em geral. Isso porque

indicava as incongruências da sociedade da época, de uma modernização conservadora que

seguia a lógica do capital. Em suma, seu projeto teatral não se limitava à inovação estética, se

estendendo para a discussão da função social da arte, posicionando-se politicamente – o que,

com certeza, não era bem visto pelo Estado Novo. Deste modo, o engajamento social, crítico

e, porque não, político, deste teatro impactou com seu tempo histórico: ditadura getulista,

Estado Novo. Além do contexto histórico e político conturbado, a impossibilidade cênica

também se liga à situação do teatro brasileiro, que não contava nem com atores e nem com

grupos que estariam dispostos a encená-lo. Embora não tenha subido aos palcos, Café, de

Mário de Andrade, é a expressão de um nacionalismo crítico e de uma literatura social sobre o

tema histórico da quebra da economia cafeeira no sudeste paulista; tema este que teve sua

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efetivação nos palcos na década de 50 com A moratória. Portanto, posterior à morte de Mário

de Andrade (1893-1945).

O momento histórico em que Jorge Andrade se insere corresponde a outro período da

história do teatro brasileiro. O ano de 1950 marca um segundo momento de modernização do

teatro, após as tentativas do teatro amador nos anos 1940. Nesse período o teatro contou com

a criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC, 1948), que realizou a transição entre o

amadorismo e a profissionalização do teatro, além de impulsionar a formação de diretores

brasileiros ao trazer profissionais estrangeiros; da Escola de Arte Dramática (EAD, 1948), que

se dedicou em formar profissionais de teatro para o teatro local; e do Teatro Maria Della

Costa (TMDC, 1954), criado por Sandro Polônio e Maria Della Costa, na fase de

profissionalização, que marcou uma abertura para o que melhor estava se fazendo nos palcos

pelo mundo. Portanto, a partir dos anos 1950 temos a criação de espaços e o surgimento de

pessoas dispostas a realizar um teatro nacional crítico e moderno, e que para isso buscou

dialogar com o moderno teatro norte-americano e com o Teatro Épico de Brecht.

A moratória expressa o diálogo com esse período histórico e com estas vertentes, visto

que Jorge Andrade a escreve durante seu período como aluno da EAD. No segundo e no

terceiro capítulo pudemos observar a interlocução das peças de Jorge Andrade com vertentes

como a do realismo crítico e psicológico de Artur Miller e de Tennessee Williams, do

naturalismo de Ibsen, da dramaturgia de Tchekhov, do Teatro Épico de Brecht e do

expressionismo. O que vimos pelo estudo das categorias teatrais de A moratória, no terceiro

capítulo, nos permite afirmar que Jorge Andrade, ao dar expressão ao drama do café, faz uso

de recursos dramáticos para problematizá-los, visto que não objetivava que o espectador/leitor

se identificasse com a situação de crise da família e de seus quatro personagens principais,

mas que os visse em certa medida presos aos papeis sociais em que tinham sido criados –

menos Lucília, que consegue romper e se adaptar à nova situação.

A problematização do dramático em A moratória se dá logo de início, pelo palco

dividido diagonalmente (1932/1929), o qual comporta dois mundos, dois espaços, dois

tempos postos diante do espectador/leitor e que poderão estar ativos separados ou

simultâneos, de modo a perspectivar as ações e os discursos das personagens. Além disso, a

construção das personagens e da linguagem entre o realismo e o seu exagero no lugar-comum

não nos permite criar uma identificação com o desenvolvimento da peça, visto que os

personagens são, além de indivíduos, tipos sociais. E a linguagem ideológica, proverbial,

baseada em lugares-comuns extrapola o discurso subjetivo e encaminha-se para o âmbito

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coletivo. Jorge Andrade elaborou personagens cheios de psicologismo, mas que fraturam seu

individualismo pela identidade coletiva, dos aristocratas rurais. Logo não podem ser

culpabilizados individualmente pelo destino histórico do grupo. Assim sendo, pudemos

observar que Jorge Andrade, em seu projeto, recorre ao realismo crítico e aos recursos épicos

para fugir do efeito dramático. Além disso, os utiliza para formalizar o assunto social, de

maneira a observar as ações historicamente, isto é, como a história se imiscui na forma da

peça.

Portanto, são contextos históricos totalmente diferentes. Enquanto Sérgio de Carvalho

(2002) denomina Café, de Mário de Andrade, como um drama impossível, devido à limitação

histórica e técnica do teatro brasileiro à época, já no período em que Jorge Andrade se insere,

a condição social e política do país permite a encenação de seu projeto crítico, como de fato

ocorreu em 1955 no TMDC.

Concluindo, o que aconteceu na cena teatral paulista nos anos 1930, com as tentativas

inovadoras do Teatro Modernista, embora longe da ribalta, e nos anos 1940, com os grupos

amadores, e no início dos anos 1950, com a profissionalização e a modernização, transformou

toda a arte teatral brasileira. Esses acontecimentos históricos marcaram o encaminhamento

dos palcos para os estudos sociais, de modo a compreender as transformações históricas

decorrentes de 1929/30. O trabalho crítico desenvolvido por Mário de Andrade e Jorge

Andrade sobre a matéria histórica brasileira revelou a atualidade de peças como Café e A

moratória: podemos relacionar a Câmara-Ballet com a situação política atual, na qual o

farsesco de lá ganha contornos de realidade aqui (como na votação do impeachment de Dilma

Rousseff); encontramos resquícios do patriarcalismo d’A moratória na sociedade moderna,

entre muitas outras possibilidades.

Sentimos hoje uma necessidade enorme de revisitar projetos literários de grande

envergadura como os que acompanhamos nessa dissertação. Como temos visto pelas reformas

curriculares aprovadas por Medida Provisória, o papel relegado às artes é cada vez mais

instrumental, não as considerando importantes como prática crítica em uma sociedade cada

vez mais preocupada com a quantificação de todos os setores da vida. Os artistas e os críticos

(como pesquisadores) precisam retomar essas perspectivas como forma, inclusive, de luta.

Nesse sentido, Café, de Mário de Andrade, e A moratória, de Jorge Andrade, são duas peças

carregadas de teor crítico, que vão muito além do que simplesmente retratar a história da crise

cafeeira, expressando sua atualidade pelo questionamento dos pressupostos sociais e estéticos

desse processo. Peças que têm pontos em comum por buscar romper com as formas do teatro

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tradicional, mas formas estéticas diversas. Apesar de suas distinções, elas podem ser

compreendidas como expressão da necessidade de formação de um teatro crítico e moderno

para o Brasil e como percurso fundamental para compreendermos a evolução da dramaturgia

brasileira em direção ao teatro épico e moderno. Esperamos ter contribuído para a fortuna

crítica dos autores e para os estudos teatrais.

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