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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO Área de Concentração: Fundamentos da Educação A ÓTICA POLÍTICA DE TOCQUEVILLE: TRAÇOS E IDEALIZAÇÕES DA SOCIEDADE BURGUESA NO SÉCULO XIX JORGE ALBERTO DE FIGUEIREDO MARINGÁ 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO: MESTRADO

rea de Concentrao: Fundamentos da Educao

A TICA POLTICA DE TOCQUEVILLE: TRAOS E IDEALIZAES DA SOCIEDADE BURGUESA NO SCULO XIX

JORGE ALBERTO DE FIGUEIREDO

MARING 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO: MESTRADO

rea de Concentrao: Fundamentos da Educao

A TICA POLTICA DE TOCQUEVILLE: TRAOS E IDEALIZAES DA SOCIEDADE BURGUESA NO SCULO XIX

Dissertao apresentada por Jorge Alberto de Figueiredo ao Programa de Ps-Graduao em Educao, rea de Concentrao: Fundamentos da Educao, da Universidade Estadual de Maring como um dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Profa. Dra: Guaraciaba Aparecida Tullio.

MARING 2007

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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)

Fi guei r edo, Jor ge Al ber t o de F475o A t i ca pol t i ca de Tocquevi l l e: t r aos e i deal i zaes

da soci edade bur guesa no scul o XI X / Jor ge Al ber t o de Fi guei r edo. - - Mar i ng : [ s. n. ] , 2007.

101 f . Or i ent ador : Pr of . Dr . Guar aci aba Apar eci da Tl l i o. Di sser t ao ( mest r ado) - Uni ver si dade Est adual de

Mar i ng. Pr ogr ama de Ps- Gr aduao em Educao, r ea de Concent r ao: Fundament o da Educao, 2007.

1. Hi st r i a da Educao. 2. Pobr eza - Soci edade

bur guesa, scul o XI X. 3. Escr avi do - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 4. I gual dade - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 5. Li ber dade - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 6. Hi st r i a - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 7. Fi l osof i a - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 8. Pol t i ca - Soci edade bur guesa, scul o XI X. 9. Tocquevi l l e, Al x i s Char l es Henr i Cl er el Maur i ce de - 1805- 1859. I . Uni ver s i dade Est adual de Mar i ng. Pr ogr ama de Ps- Gr aduao em Educao. I I . T t ul o.

CDD 21. ed. 370. 9034

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JORGE ALBERTO DE FIGUEIREDO

A TICA POLTICA DE TOCQUEVILLE: TRAOS E IDEALIZAES DA SOCIEDADE BURGUESA NO SCULO XIX

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Profa. Dra. Guaraciaba Aparecida Tullio Orientadora.

Universidade Estadual de Maring.- UEM

___________________________________________

Prof. Dr. Geraldo Incio Filho Universidade Federal de Uberlncia - UFU

___________________________________________ Profa. Dra. Nerli Nonato Ribeiro Mori

Universidade Estadual de Maring - UEM

Data da Aprovao: Maring (PR), 29 de Maro de 2007.

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Dedico este trabalho ao meu filho Pedro Jorge

e a todos os homens que querem pensar

diferente.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais seres dedicados e inseparveis de minha existncia.

esposa companheira sempre ao meu lado neste trabalho.

Em especial minha orientadora Guaraciaba, que ensinou-me a pensar diferente e

conhecer o mundo atravs dos livros.

Universidade Estadual de Maring pelo acolhimento durante a realizao deste

trabalho.

Ao Programa de Ps Graduao,docentes e funcionrios pela dedicao e respeito,

sem eles no seria possvel a concluso deste trabalho.

Aos novos amigos que encontrei na realizao deste estudo.

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A revoluo comea quando o tirano acaba.

Sainte Just.

A igualdade sugere ao esprito humano vrias idias que no lhe ocorriam sem ela e modifica quase toda as que este j tinha. Tomo como exemplo a idia da perfectibilidade humana, porque ela uma das principais que a inteligncia capaz de conceber e constituir, por si s, uma grande teoria filosfica, cujas conseqncias se fazem ver a cada instante na prtica dos negcios.

Tocqueville.

Dove egualita non lucro.

Galiani.

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FIGUEIREDO, Jorge Alberto. A TICA POLTICA DE TOCQUEVILLE: TRAOS E IDEALIZAES DA SOCIEDADE BURGUESA NO SCULO XIX. 101 paginas. Dissertao de Mestrado em Educao Universidade Estadual de Maring. Orientadora : Guaraciaba Aparecida Tullio. Maring, 2007.

RESUMO

Esta uma pesquisa sobre educao. A mesma tem por objetivo analisar historicamente o pensamento de Alxis Charles Henri Clerel Maurice de Tocqueville (1805-1859) autor normando que no sculo XIX no fugiu da discusso em torno da explicao filosfica da liberdade e da igualdade no traado da vida democrtica. Buscou-se, mais especificamente, entender a participao de Tocqueville como intelectual e homem de Estado na luta poltica pela ordenao da nao francesa como democracia e nela, a educao da classe industrial. O perodo histrico em que Tocqueville estava inserido caracterizado por marcantes transformaes econmicas (a gestao da produo capitalista na forma da chamada grande industria) e sociais (a afirmao poltica da classe burguesa e os primeiros levantes da classe operria). Entende-se que a ordenao da produo social poca, j no traado da grande indstria, e as defesas filosficas que as expressam guarda uma estreita relao entre si e apontam para uma dada explicao da histria em curso. Em sua obra A Democracia na Amrica, Tocqueville, preocupado com o desenvolvimento da Frana, traduziu uma elaborada defesa da democracia como negao da tirania. Esta anlise se faz presente tambm nos seus estudos da maturidade e se impe como fundamento terico na crtica sobre a pobreza e a escravido. Como filsofo fez-se educador dos homens de seu tempo, particularmente da burguesia francesa, quando insistiu, de forma continuada, atravs de seus escritos ou como deputado do Parlamento Francs, que a liberdade no possvel de se fundamentar na desigualdade de condies entre os homens. Nesse alinhamento foi a favor da emancipao dos escravos nas colnias francesas, e teceu crticas formulao objetiva da pobreza no processo de produo da sociedade capitalista presente na Inglaterra e na Frana de seu tempo. Em suas obras, discursos polticos, correspondncias, bem como nos relatos de viagens est evidente a sua preocupao fundamental em encontrar na sociedade capitalista uma possvel coexistncia harmnica entre um processo de desenvolvimento igualitrio sem ferir a liberdade do homem. Foi neste sentido, defensor de uma educao oferecida a todos pelo Estado e do ensino livre. O papel atribudo ao sentimento de unidade entre os homens (unidade familiar, unidade nacional, unidade entre a Frana e suas colnias) nos ajudam a entender a questo da educao e do prprio papel da mesma na construo de uma sociedade igualitria. Partindo dessa proposio, duas vertentes do poder conduzem o raciocnio de Tocqueville: de um lado um governo democrtico com liberdade inclusive de negcios para todos, de outro lado, o poder absoluto de um s homem ou das massas. Afirmar a primeira forma de governo e denunciar evitando a segunda uma questo que ordena a educao poltica no seu pensamento em defesa da sociedade de mercado.

Palavras-chave: Educao, Histria, Filosofia, Igualdade, Liberdade.

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FIGUEIREDO, Jorge Alberto. THE PTIC POLTIC OF TOCQUEVILLE: LINES AND IDEALIZATIONS OF THE BOURGEOIS SOCIETY IN THE CENTURY XIX. 101 paginate. Dissertation Master's degree in Education - State University of Maring. Advisor: Guaraciaba Aparecida Tullio. Maring, 2007.

ABSTRACT

This is a research about education. The same has for objective to analyze Alxis Charles' thought historically Henri Clerel Maurice of Tocqueville (1805-1859) Norman author that in the century XIX didn't escape from the discussion around the philosophical explanation of the freedom and of the equality in the plan of the democratic life. It was looked for, more specifically, to understand the participation of Tocqueville as intellectual and man of State in the political fight for the ordination of the French nation as democracy and in her, the education of the industrial class. The historical period in that Tocqueville was inserted it is characterized by outstanding economical transformations (the gestation of the capitalist production in the form of the big call elaborates) and social (the political statement of the bourgeois class and the first revolts of the working class). He understands each other that the ordination of the social production to the time, already in the plan of the great industry, and the philosophical defenses that express them guard a narrow relationship to each other and they appear for a given explanation of the history in course. In your work the Democracy in America, Tocqueville, concerned with the development of France, he/she translated an elaborated defense of the democracy as denial of the tyranny. This analysis is also made present in your studies of the maturity and it is imposed as theoretical foundation in the critic on the poverty and the slavery. As philosopher was made the men's of your time educator, particularly of the French bourgeoisie, when it insisted, in a continuous way, through your writings or as deputy of the French Parliament, that the freedom is not possible of basing in the inequality of conditions among the men. In that alignment it was in favor of the slaves' emancipation in the French colonies, and he wove critics to the formulation it aims at of the poverty in the process of production of the present capitalist society in England and in France of your time. In your works, political speeches, correspondences, as well as in the reports of trips it is evident your fundamental concern in finding in the capitalist society a possible harmonic coexistence among a process of equalitarian development without hurting the man's freedom. It was in this sense, defender of an education offered to all by the State and of the free teaching. The paper attributed to the unit feeling among the men (family unit, national unit, unit between France and your colonies) they help us to understand the subject of the education and of the own paper of the same in the construction of an equalitarian society. Leaving of that proposition, two slopes of the power lead the reasoning of Tocqueville: on a side a democratic government with freedom besides of businesses for all, on another side, the absolute power of only one man or of the masses. To affirm the first government form and to denounce avoiding Monday is a subject that orders the political education in your thought in defense of the market society.

Word-key: Education, History, Philosophy, Equality, Freedom.

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SUMRIO

INTRODUO ............................................................................................. 11

1. TOCQUEVILLE: HISTRIA,VIDA E OBRA.............................................. 17

2. A REVOLUO INDUSTRIAL E ALGUNS TRAADOS

DO PENSAMENTO DE TOCQUEVILLE................................................... 35

3. SOBRE A POBREZA.................................................................................. 47

3.1. A explicao da Pobreza.................................................................... 52

3.2. A crtica ao princpio tico da caridade pblica.................................. 58

3.3. A defesa do princpio tico como fundamento da moral da vida

universal............................................................................................................64

4. POLTICA COLONIAL E ESCRAVIDO................................................... 68

4.1. Da Relao da Metrpole Francesa Com as Suas Colnias............. 69

4.2. A Defesa da Liberdade para os Escravos.......................................... 74

CONCLUSO................................................................................................. 94

REFERNCIAS.............................................................................................. 98

INTRODUO

A questo em torno da explicao do homem, na gnese da sociedade

capitalista, foi algo exaustivamente debatido pelos intelectuais deste perodo.

De forma geral, a explicao filosfica do homem como ser de liberdade e

igualdade sintetiza uma defesa que, desde estes tempos at hoje ainda se

(im)pe com poucas alteraes. Neste traado da filosofia poltica, prope-se,

na presente dissertao, analisar o pensamento de um autor francs do sculo

XIX que, sua poca, tambm no fugiu deste debate: Charles Alxis Henri

Clrel Maurice de Tocqueville (1805-1859).

Sobre o autor falar-se- mais frente. Basta, agora, lembrar que Tocqueville,

um pensador burgus conhecido na ordenao terica da democracia,

traduzido pelos seus estudiosos como ensasta, historiador, socilogo,

profeta do liberalismo, poltico francs, diplomata, parlamentar e outros

ttulos. Aristocrata por nascimento este intelectual francs, que nasceu apenas

dezesseis anos aps a Revoluo Francesa (1789), fez-se portador da defesa

do novo mundo que se impunha na Europa com o capitalismo1. No terreno

poltico esta defesa, de forma peculiar, comeou a ser traada na sua obra

mais conhecida, a chamada De la Dmocratie en Amrique escrita entre os

anos de1835 e1840 e marca continuidade em todas as outras, depois desta

escrita pelo autor, traduzindo um fundamento filosfico importante na

construo terica de seu pensamento.

Trazer o pensamento de Tocqueville como objeto de estudo, mais

particularmente, duas das obras por ele escritas pouco conhecidas dos leitores

brasileiros - Mmoire sur le Pauprisme(1835)2 e A Emancipao dos

Escravos(1865)3 - voltar a cabea para uma pesquisa bibliogrfica com vista

ao entendimento que o autor explicita sobre a histria em curso sua poca e, 1 Por todos os seus analistas Tocqueville conhecido por uma obstinada crtica ao poder absoluto de um s homem ou de uma classe sobre toda a nao, para ele o despotismo tirnico. 2 No ano de 2003 foi traduzido para a lngua portuguesa o Mmorie sur le pauprisme, conhecido como Ensaio sobre a Pobreza, um estudo sobre os paradoxos da pobreza e da desigualdade em pases em desenvolvimento. 3 A obra a Emancipao dos Escravos, que foi lanada no Brasil em 1980, uma traduo dos escritos e discursos de Tocqueville na Cmara dos Deputados em 1839, publicados em francs com o ttulo Oeuvres completes Tome III Premire partie. O texto foi reproduzido em 1865 por Beaumont no tomo IX das Obras Completas de Tocqueville.

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nela, apreender a sua participao como intelectual e homem de Estado, na

luta pela ordenao da nao francesa e nela da educao da classe industrial.

Tomar como objeto da pesquisa sobretudo duas obras escritas por Tocqueville

no faz da leitura destas obras uma coisa em si. Pelo contrrio, analiticamente,

buscou-se conhecer o pensamento poltico do autor observando os seus

determinantes histricos, comprometimentos de classe e proposies para a

sociedade de seu tempo. Entende-se neste esforo, que a estrutura social e a

idia que se expressa na filosofia poltica guardam uma estreita relao com a

produo econmica que as subsidiam. O presente estudo , neste sentido, um

desafio. No terreno do mtodo, parte-se de um princpio terico que prioriza a

histria como ponto efetivo de partida afastando-se, assim, da defesa da

conscincia como algo natural capaz de possibilitar aos homens a formulao

de uma virtude ideal como parmetro explicativo do prprio homem e/ou

sociedade. Em meados do sculo XIX, Karl Marx (1818 - 1883) j entregava

sociedade toda uma formulao crtica ao pensamento idealista. Em uma

significativa sntese escreveu este autor:

[...] A concluso geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode-se formular resumidamente assim: na produo social de sua existncia, os homens estabelecessem relaes determinadas, necessrias, independentes da sua vontade, relaes de produo que corresponde a um determinado grau de desenvolvimento das foras produtivas materiais. O conjunto destas relaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e a qual correspondem determinadas formas de conscincia social. O modo de produo da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual em geral. No a conscincia dos homens que determina o seu ser, o seu ser social que inversamente determina a sua conscincia. Em certo estgio de desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade entram em contradio com as relaes de produo existente ou o que a sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade no seio das quais se tinham movido at ento. Da forma de desenvolvimento das foras produtivas, estas relaes transformam-se no seu entrave. Surge ento uma poca de revoluo social (MARX. 1977 p. 24 - 25).

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Tambm um homem do sculo XIX, Tocqueville, apenas dezessete anos mais

velho que Marx, no s conviveu com a chamada Revoluo Industrial, 4 mas

tambm foi um homem que nunca se ops economia de mercado como

forma de vida. Em carta de 1835 afirmou toda uma convico __ comum sua

poca __ de que o mundo que estava a nascer como sociedade voltada para o

mercado traduzia uma forma de vida conduzida, em si, para o exerccio de

liberdade que apontava para uma igualdade nas oportunidades, quer das

pessoas, quer das naes. A convico de que o mundo, com o progresso,

caminhava para o exerccio poltico de igualdade social enquanto oportunidade

igual para todos, idia colhida pelo autor a partir da Revoluo Francesa de

1789, parece ter sido um dos motivos que o levou, ainda jovem, a conhecer os

Estados Unidos da Amrica. Sobre o assunto escreveram Chatelet et al:

Nos anos em que Tocqueville decide sua grande viagem, a Republica americana no pertence a seu patrimnio familiar. Ela encarna, ao contrrio, uma tradio poltica totalmente estranha ao ambiente legitimista no qual foi educado o jovem Alxis, j que ela eliminou a oposio a Lus XVIII e Carlos X: so os liberais avanados de todas as nuances, os francos-maons, os republicanos, que formam sob o cajado simblico do velho La Fayette o campo das simpatias americanas. Mesmo que o futuro autor de Dmocratie en Amrique tenha encontrado na mesa familiar antigos americanos como Chateaubriand, Hyde de Neuville ou Monsenhor de Cheverus e mesmo que seu companheiro de viagem, Gustave de Beaumont, fosse um parente longnquo de La Fayette, restaria que a referncia americana no era familiar tradio na qual os dois viajantes haviam sido educados(CHATELET, 1993, p.1222 -1223).

Chatelet et al. esto a mostrar que Tocqueville foi um homem de mente aberta.

E como intelectual estendeu seu pensamento para alm dos limites da

4 As opinies de Alxis de Tocqueville sobre a pobreza foram emitidas no perodo de 1830, na qualidade de viajante, tendo como campo de observao a Inglaterra. Aps visitar os Estados Unidos, a Inglaterra, a Esccia, a Sua e a Arglia, Tocqueville estava em condies de divulgar o resultado de suas observaes. [...]. A ordem mais geral de transformaes estruturais aponta pra o desenvolvimento da Revoluo Industrial na Inglaterra e sua expanso para algumas regies europias como a Frana, a Blgica, a Holanda, a Rennia e a Catalunha. Processo que a Inglaterra, j se iniciara por volta de 1750/60 e que fora ali precedido por modificaes tambm, estruturais na demografia e na produo agrcola. [...] Esse processo era visto por Tocqueville, ainda numa percepo historicista, como regido por leis imutveis, que governariam o crescimento das sociedades organizadas, concepo que vinha de Montesquieu, difundira-se sob a forma da ideologia do progresso com Turgot e Condorcet e era subscrita poca por homens como Saint Simon, Comte e outros.

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aristocracia onde nasceu. Aps a defesa da Republica Americana como

lembrou Chatelet et al., apenas dois modelos de governo passam a ser

estudados nas obras de Tocqueville: o governo democrtico e o governo

absoluto de um s:

Ela no existe tambm at uma data surpreendentemente tardia, na correspondncia do jovem Tocqueville, j que a Amrica s aparece a duas semanas antes da partida, na carta de 14 de maro de 1831, consagrada aos preparativos imediatos, sendo muda sobre objeto da viagem. No entanto, a idia de uma viagem improvisada, ligada s circunstncias polticas francesas e situao delicada na qual a necessidade de prestar juramento ao novo regime colocava dois descendentes de famlias legitimistas, s no verossmil se se refletir sobre a natureza do gnio de Tocqueville, mais levado deduo abstrata do que curiosidade gratuita. Ela contraditria com o tipo de notas que ele toma desde que coloca os ps em solo americano e que atestam a elaborao intelectual anterior viagem; incompatvel sobretudo com um testemunho formal, se bem que tardio, dado por ele mesmo sobre as razes da dita viagem. uma carta de janeiro de 1835, escrita conseqentemente bem depois de seu retorno, no momento da publicao do primeiro volume da Democratie. Tocqueville expe a a Kergolay sua convico de que o mundo irresistivelmente conduzido para uma igualao das condies. Ora, a partir da, dois tipos de governo, e apenas dois, so concebveis no futuro: ou o governo democrtico, isso , um estado de sociedade em que todo mundo tomaria mais ou menos parte nos negcios, ou a sujeio de todos, o poder absoluto de um s, como o Imprio deu uma primeira amostra. Como obter o primeiro tipo de governo, evitando o segundo, essa a questo que esta no centro de seu pensamento (CHATELET, et al,1993, p.1222 1223).

Entende-se na presente dissertao que a educao poltica da classe

burguesa, na obra de Tocqueville, vem marcada pelo desafio de construo da

vida como governo democrtico em negao ao despotismo tirnico. Sua

defesa da educao na sociedade capitalista traduz uma obstinada crtica ao

poder absoluto de um s homem ou de uma s classe sobre toda a nao e

pode ajudar a entender como ele traduziu politicamente esta sociedade.

O trabalho est dividido em quatro captulos. No primeiro captulo denominado

de Tocqueville: histria, vida e obra buscou-se mostrar o contexto histrico

onde Tocqueville viveu, seus laos familiares de origem aristocrtica e uma

aproximao terica de alguns dos princpios filsofos e econmicos que ele

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pleiteou para os franceses como sociedade democrtica em negao ao

despotismo tirnico. Comea, assim, ser traado o prprio sentido da educao

do homem poltico para o autor.

No segundo captulo que tem por ttulo A revoluo industrial e alguns traados

do pensamento de Tocqueville, buscou-se dar o contexto da revoluo

industrial poca do autor. Trata-se da produo da grande indstria gestando

o capitalismo como uma sociedade mais acabada no seu desenvolvimento. A

revoluo industrial iniciada em 1750/1760 ganhava fora na dcada de 1830,

traduzindo o incio dos movimentos sociais que marcaram o sculo XIX na

Europa. neste perodo que ocorreu os primeiros levantes da classe

trabalhadora moderna. O final do sculo XVIII traduz a acentuao da diferena

econmica entre as classes marcando a presena das condies de pobreza

que levaram os pobres aos levantes acontecidos a partir de 1830 e

intensificados entre 1846 -1848. Um elevado acmulo de capital estava sendo

criado e a poltica na Frana estava aderida ao permitido acmulo de riqueza.

No terceiro captulo estudou-se a obra Mmorie Sur L Pauprisme: que na

lngua portuguesa recebeu o titulo de Ensaio sobre a Pobreza. Este captulo

tem por titulo Sobre a pobreza e vem dividido em trs subitens: A explicao da

pobreza; A crtica ao principio tico da caridade pblica e A defesa do principio

tico como fundamento da moral da vida universal. Analisar a produo social

da pobreza na sociedade capitalista foi, para Tocqueville, lidar no s com algo

presente nesta sociedade, mas entend-la como um fenmeno que deveria ser

eliminado a partir da aprendizagem da democracia como exerccio da

inteligncia humana.

No quarto captulo intitulado Poltica colonial e escravido buscou-se entender

como Tocqueville analisou questes prprias da sociedade capitalista. No

est em jogo em sua obra a negao da sociedade voltada para o comrcio,

mas a prpria democratizao desse comrcio como uma questo importante

no jogo democrtico. A defesa da liberdade como condutora dos homens

igualdade perpassa a anlise das relaes entre colonos franceses e a Frana;

marca, tambm, a construo da crtica terica escravido. O captulo vem

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dividido em dois subitens: Da relao da metrpole francesa com as suas

colnias e A defesa da liberdade para os escravos.

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1. TOCQUEVILLE: HISTRIA, VIDA E OBRA

Buscou-se registrar aqui o contexto histrico onde Tocqueville viveu

destacando seus laos familiares de origem aristocrtica e uma aproximao

terica de alguns dos princpios filosficos e econmicos que ele pleiteou para

os franceses como sociedade democrtica em negao ao despotismo tirnico.

Tocqueville foi um intelectual e um homem de Estado comprometido com os

rumos da poltica francesa nos idos de 1830 a 1848. Num perodo anterior,

mas prximo, ou melhor, dezesseis anos antes do nascimento de Tocqueville,

iniciava-se na Frana uma revoluo que abalaria o Antigo Regime ainda

existente no pas. Apontada como marco divisrio da Histria, a Revoluo

Francesa de 1789 foi um fenmeno complexo que inclui no seu processo de

desenvolvimento histrico, vrios movimentos: diversos historiadores apontam

a Revolta Aristocrtica, acentuada entre os anos de 1786 a 1789, como um

movimento cujo desenvolvimento acabou favorecendo o desencadear das

foras burguesas, predominantes ao longo de todo o perodo revolucionrio. J

antes de 1789 iniciou-se movimentos populares de carter urbano tendo nos

sans-culottes, sobretudo de Paris, a vanguarda da massa pauperizada; sua

influncia, como fora de presso ou de apoio da Revoluo Burguesa, fez-se

presente em momentos, diversos, mas as conquistas populares poca foram

efmeras. Houve ainda a revolta camponesa, essencialmente dirigida contra a

opresso e os privilgios feudais. Esta revolta cuja violncia e amplitude

acarretaram o chamado Grande Medo, tendeu a se esvaziar na medida em

que se suprir os direitos feudais e se faz a partilha das grandes propriedades

feudais, permitindo a formao de numerosa classe de pequenos proprietrios

rurais. Essas revoltas revolues ligavam-se a camadas sociais mais diversas,

por vezes se contrapondo, mas sempre interligadas. Como ensinou

Hobsbawm:

A revoluo Francesa no foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por homens que tivessem tentado levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter lideres do tipo que as revolues do sculo XX nos tm apresentado, at o surgimento da figura ps revolucionaria de Napoleo. No obstante, um surpreendente consenso de idias gerais entre um grupo social bastante

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coerente deu ao movimento revolucionrio uma unidade efetiva. O grupo era a burguesia; suas idias eram as do liberalismo clssico, conforme formulados pelos filsofos e economistas e difundidas pela maonaria e associaes informais. At este ponto os filsofos podem ser, com justia, considerados responsveis pela revoluo. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituram a diferena entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituio rpida e efetiva por um novo (HOBSBAWM, 2005, p.90).

Entende-se que a Revoluo Francesa deve ser entendida no quadro geral das

revolues burguesas j iniciadas anteriormente na Europa. A Revoluo

Francesa, ao cortar a cabea do rei, traduziu a finalizao no campo poltico de

todo o Antigo Regime, facilitando o encaminhamento da histria como

capitalismo. Na prtica, representou o colapso do feudalismo, j subvertido

pelo crescimento demogrfico e pelo desenvolvimento de foras de produo

capitalista. Soma-se a isto uma conjuntura marcada por crises econmicas,

aprofundando as contradies entre duas formas de vida.

poca da Revoluo a agricultura, base da economia francesa, viu sua

produo agravada por fenmenos climticos que acarretaram baixos ndices

de colheita e, em conseqncia, a maior elevao dos preos dos gneros

alimentcios, levando fome e misria s classes populares. Alm do mais, um

desastroso tratado comercial com a Inglaterra, o chamado Tratado Eden-

Ryneval, de 1786, que assegurava baixos impostos de importao aos tecidos

e produtos metalrgicos ingleses em troca de tarifas preferenciais para o vinho

francs exportado para a Inglaterra, afetou profundamente a indstria

manufatureira francesa, incapaz de concorrer com a indstria inglesa, j na

fase da Revoluo Industrial, sucedendo-se falncias e uma onda de

desemprego, subemprego e queda dos salrios, justamente quando o custo de

vida estava em elevao.

Paralelamente fermentao social que ocorria, a Monarquia debatia-se em

grave crise financeira, devido aos gastos com as guerras em que se

empenhava e s despesas decorrentes de uma corte suntuosa. Da a

convocao dos Estados Gerais por Luis XVI, buscando uma soluo para a

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crise. interessante lembrar que foi esta deciso de Luiz XVI que proporcionou

a primeira vitria contra o Antigo Regime:

Cerca de seis semanas aps a abertura dos Estados Gerais, os Comuns, ansiosos por evitar a ao do rei, dos nobres e do clero constituiram-se eles mesmos, e todos os que estavam preparados para se juntarem a eles nos termos que ditasse, em Assemblia Nacional com direito de reformar a constituio. Foi feita uma tentativa contra-revolucionaria que os levou a formular suas exigncias praticamente nos termos da Cmara dos Comuns Inglesa. O Absolutismo atingia seus estertores, conforme Mirabeu, um brilhante e desacreditado ex-nobre, disse ao rei: vis sois um estranho nesta assemblia e no tendes o direito de se pronunciar aqui (HOBSBAWM, 2005, p.92).

O movimento da sociedade punha em crise a estrutura poltica vigente: a da

sociedade dividida em trs Estados ou Ordens: o Clero, integrando o Primeiro

Estado; A Nobreza, formando o Segundo Estado, e o Povo, comportando

inmeras classes reunidas no Terceiro Estado. Esta estrutura no correspondia

mais realidade existente. Chefiado pela burguesia, o Terceiro Estado

contrapunha-se aos privilgios das classes parasitrias. Nos campos os

camponeses, em situao de misria, tinham que pagar tributos absurdos ao

clero e decadente nobreza. Nas cidades, perambulavam pelas ruas massas

de desempregados, os sans-culottes, que sustentaram as grandes jornadas

populares da Revoluo Francesa.

Em relao poltica, a crise instalou-se porque o Absolutismo mostrava-se

incapaz de conter a aristocracia e de proceder s reformas necessrias. A

prpria base do poder era atacada pelos filsofos da razo: ao direito divino

dos reis opunha-se a soberania do povo; religio de Estado contrapunha-se a

liberdade de conscincia; ao dirigismo econmico do mercantilismo

contrapunha-se a liberdade econmica. Ainda segundo Hosbsbawm:

A burguesia dos penltimos 25 anos do sculo XIX era esmagadoramente liberal, no necessariamente num sentido partidrio (embora, como j vimos, os partidos liberais prevalecessem) mas num sentido ideolgico. Acreditava no capitalismo, empresa privada competitiva, tecnologia, cincia e razo. Acreditava no progresso, numa certa forma de governo representativo, numa certa quantidade de liberdades e direitos

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civis, desde que compatveis com a regra da lei e com o tipo de ordem que mantivesse os pobres no seu lugar. Acreditava na cultura como um adendo religio, que s vezes substitua __ em casos extremos substituindo a freqncia ritual igreja pela ida pera __ teatros e concertos. Acreditava na carreira aberta ao empreendimento e talento, e as prprias vidas de seus membros provavam esses mritos. Como j vimos, nesse tempo a f tradicional e puritana nas virtudes da moderao e absteno encontrava dificuldades no caminho de sua realizao mas tal fracasso no era muito lamentado (HOBSBAWM, 2004, p. 340 -341).

A Revoluo, como mostrou Hobsbawm, pode ser dividida em perodos

distintos. oportuno aqui relat-los, pois dois desses perodos tm importncia

na vida do autor tomado para estudo. O primeiro perodo da Revoluo

conhecido como A Era das Instituies, que vai de 1789 a1792 e representou

a primeira fase da Revoluo iniciada com a reunio dos Estados Gerais, uma

assemblia nacional cuja ltima reunio ocorrera nos primrdios do reinado de

Lus XIII.

O segundo perodo, A Era das Antecipaes, que vai de 1792 a 1794, uma

poca em que a vida de Tocqueville comea a sofrer a influncia deste

momento histrico. Com a reunio da Conveno ou Assemblia

Convencional, em setembro 1792, ocorreu a fase mais radical da Revoluo,

tambm conhecida como o perodo do terror. O radicalismo ligou-se

crescente presso popular sobre a aristocracia dirigente. Sofridas pela alta do

custo de vida e pelo desemprego e subemprego, as massas populares urbanas

agiram no sentido de radicalizar a Revoluo, e sob a liderana dos sans-

culottes, apoiaram os jacobinos, que eram representantes da pequena

burguesia em sua poltica igualitria5.

A Era das Consolidaes, de 1794 a 1815, representou a ltima fase da

Revoluo, caracterizada pelo empenho da classe dirigente em estabilizar as

conquistas liberais, no admitindo a restaurao do Antigo Regime e rejeitando

tambm a poltica igualitria dos jacobinos. Esta classe economicamente

dirigente buscava consolidar a obra da Revoluo como uma revoluo

burguesa, mediante a organizao de uma Repblica moderada, de regime 5 Sobre o tema, dentre outros, ver Jacobinos e Jacobinismo de Michel Vovelle.

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censitrio, excluindo das eleies os mais pobres e restaurando a plena

liberdade da indstria, do comrcio e dos bancos. Foi nesse perodo que

nasceu Tocqueville.

No se pode deixar de mencionar brevemente o perodo napolenico de 1799

a 1815, quando Tocqueville j tinha dez anos de idade. Foi nesse perodo que

se deu a consolidao das instituies burguesas. Napoleo fez um governo de

centralizao, atravs de medidas financeiras, organizando o cadastro dos

contribuintes. No campo da poltica estabeleceu a censura religiosa, que

auxiliou na educao oficial, e fundou instituies educacionais que

fomentavam a militarizao dos alunos.

Filho de famlia nobre inserida neste contexto, Tocqueville nasceu no dia 11

termidor do ano XII 29 de julho de 1805. Em Paris sua famlia sempre foi

ligada nobreza francesa de herana: seus pais eram Herv Louis Fraois

Jean Boaventura Clerel e Louise Marie Le Peletir Rosambo. A famlia Clerel,

ramo paterno de Tocqueville, provinha de uma nobreza normanda muito antiga.

Um antepassado seu, Guillume Clarel, foi companheiro de lutas de Guilherme o

Conquistador e muito provavelmente deu origem famlia inglesa dos Clarel.

Outro ramo da famlia Clarel ou Clerel estabeleceu-se a partir do sculo XII na

regio de Caux, tendo legado seus bens Abadia de Jumiges.

Em fins do sculo XIV essa famlia deslocou-se para o Leste. Em 1590, uma

parte da famlia Clerel estabeleceu-se no Cotentin, no feudo de Auville,

pertencente parquia de Tocqueville, da qual os Clerel tomariam o nome em

1661, aps a soluo favorvel da disputa na qual outra famlia, a dos

Laverrier, pretendia a posse do mesmo feudo. No sculo XVIII, a famlia

Tocqueville, graas a uma hbil poltica matrimonial, conquistou indiscutvel

preeminncia social nos quadros da nobreza: o av paterno de Alxis, Bertrand

Bonaventure, chamado de cavalheiro de Tocqueville, casou-se com Catherine

de Damas-Crux, pertencente antiga famlia Forez, por cujas veias corria o

sangue de So Luis e de Csar Brgia e que foi considerada pelo genealogista

Beaujon uma das mais antigas e importantes do reino. A me de Alxis, Louise

Marie L Peletir Rosambo, era neta por parte materna do ex-conselheiro real

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Malesherbes e filha de Rosambo, ex-presidente da Cmara dos Deputados do

Parlamento de Paris.

Em 1794 tanto o av materno de Louise-Marie, Malesherbes, quanto seus

pais,o casal L Peletir de Rosambo, foram guilhotinados junto com Jean

Baptiste de Chateaubriand e sua esposa, tendo os filhos deste ltimo ficado

sob guarda de Herv Bonaventure. O mesmo no aconteceu com seu pai:

Herv Bonaventure, esposo de Louise Marie, pais de Tocqueville (que se

tinham casado em maro de 1793), bem como as irms de Louise Marie e seus

maridos, ficaram presos durante trs meses disposio do tribunal

revolucionrio. Em virtude desses sofrimentos a atmosfera familiar da

juventude de Alxis de Tocqueville viu-se fortemente obscurecida. (JARDIM,

1984, p. 10) A me, Louise Marie, sofreria doravante de constantes depresses

at seu falecimento em 1836.6

Os avs maternos de nosso autor foram guilhotinados no processo da

revoluo Francesa, mais especificamente na chamada Era das Antecipaes

(17911794) conhecida como perodo do terror no qual a Frana, ficou sob o

domnio dos jacobinos dirigidos por Maximiliam Marie Isidore Robespierre. Vale

lembrar que Robespierre foi uma das figuras mais importantes da Revoluo

Francesa tendo ficado conhecido como lincorruptible (o incorrupto); em 1790

foi presidente do Clube dos Jacobinos, a mais famosa associao poltica da

Revoluo Francesa. Esta associao teve suas origens no Clube Breton,

criado aps a abertura dos estados gerais em 1789, e tomou este novo nome

de seu quartel-general em homenagem a um antigo mosteiro jacobino

(dominicano), em Paris. Seu quadro de associados cresceu grandemente e sua

poltica preparada cuidadosamente, teve forte influncia sobre a Assemblia

Nacional. Em 1791, abrangia varias associaes e tinha ramificaes em todo

pas. O alto indcio de adeses fez com que os seus membros se tornassem

profissionais que a princpio, no se distinguiam por pontos de vista

extremistas. Contudo, em 1792, Robespierre assumiu o controle e os

moderados foram expulsos. A associao tornou-se um foco do terror com a

6 Maiores detalhes sobre este perodo ver .Vlez, R.R. A Democracia Liberal Segundo Alxis de Tocqueville So Paulo: Mandarim, 2003.

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direo de Robespierre que presidiu o Comite ou Junta da Salvao Pblica,

tambm conhecida como ditadura montanhesa, em junho de 1793 foi um

instrumento na deposio dos girondinos. Seu sucesso baseava-se em uma

organizao impecvel e no apoio dos sans-cullotes. Teve seu fim depois da

queda de Robespierre e as diversas tentativas de reanim-lo foram

definitivamente contidas em 1799. A dificuldade econmica e militar, com a

constante ameaa de invases estrangeiras somadas insegurana da

populao provocada pelas sucessivas execues, levaram Robespierre a

perder progressivamente o prestigio como lder nacional. Ao que parece,

Robespierre enredara-se nas contradies da Revoluo, sem vislumbrar um

projeto factvel para um governo esquerda da burguesia, inviabilizando a

pratica da mxima poltica que ensinara aos seus seguidores Antes de se por

a caminho, preciso saber aonde se quer chegar e os caminhos que se deve

trilhar. Aproveitando-se disso, a burguesia se reorganizou e em 27 de julho de

1794 (09 de Termidor) retomou o poder na Conveno derrubando os lideres

da Montanha. Quase sem apoio, os jacobinos no puderam reagir eficazmente

e Robespierre e Sait-Just, entre outros foram guilhotinados. Os representantes

do pntano (alta burguesia girondina) assumiram, ento, o comando da

Revoluo. O golpe do termidor que devolvia o governo revolucionrio

burguesia foi chamado de reao termidora.

Filho deste tempo histrico Tocqueville iniciou sua formao intelectual em

Paris sob a orientao de um preceptor, o abade Lesuer. Em 1821, o jovem

deu continuidade a seus estudos com o curso de retrica no Liceu de Metz,

cidade onde o conde Herv era prefeito. Naquela poca, graas s mltiplas

leituras, especialmente das obras de Rousseau7 e Voltaire8, que ele realizou na

biblioteca da prefeitura municipal, Tocqueville se distanciou da f e da moral

tradicionais e teve lugar seu primeiro romance, que duraria cinco anos, com a

jovem Rosalie Malye, filha do arquivista local. Em 1823 o autor iniciou seus

estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, obtendo o ttulo de 7 Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filsofo francs do Iluminismo, suas obras Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade dentre os Homens, O Contrato Social (1762) e outras. 8 Fraoise Marie Auruet Voltaire (1694-1778) filosofo e escritor francs. Dentre suas obas destacam-se Cartas Filosficas (1734) e Tratado sobre a Tolerncia: a Proposta de Morte de Jean Calas (1763).

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licenciado em 1826. O currculo da faculdade, aps as reformas reacionrias

de 1822 que pretendiam banir as abordagens filosficas e humansticas em

prol da nfase no estudo do Direito Romano e de conhecimentos positivos e

usuais era bastante pobre, se comparado ao que tivera vigncia

anteriormente, inspirado nas reformas de Royer-Collard (1819).

Esse ensino reduzia-se aos institutos de Justiniano e s Pandectas, ao

comentrio do Cdigo Civil, ao procedimento civil e penal e ao direito

comercial. Certamente pesou mais na formao de Tocqueville, homem

preocupado com a compreenso dos grandes movimentos histricos e sociais,

a influncia de suas leituras de juventude, entre as quais, alm de Rousseau e

Voltaire, devem ter figurado os autores que achava na biblioteca paterna:

Montesquieu, Chateaubriand. Pesou de forma decisiva, na formao de seu

raciocnio, a influncia de Guizot (1787-1874). Em 1829 e 1830, nosso autor

freqentou os cursos do professor-historiador Guizot ministrados na

Universidade de Sorbone, sobre a histria da Frana. A respeito de Guizot

(1787-1874), cita-se aqui o dicionrio das obras de Chatelet et al:

Embaraoso Guizot. De um lado, o brilhante historiador da civilizao na Europa e na Frana, celebrado em todo o sculo XIX de Goethe e Marx e de Tocqueville e Renan. Do outro, o mau gnio da Monarquia de julho, crispado at o fracasso final em sua recusa de reformas, quase identificado com sua caricatura. Esquecimento, de uma s vez de sua obra de publicista, que se supe a priori estar resumida na frmula

enriquea !"#

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O jovem Tocqueville foi um ouvinte atento, que tomava nota das exposies e

ensinos ali ministrados. Em contrapartida, como um estudante crtico e que

tinha visto in loco as atribulaes sofridas pela sua famlia no perodo da

Revoluo e posteriormente a ela, encontrava dificuldade em aceitar a idia de

Guizot de superar o ciclo revolucionrio num regime fundado apenas no voto

censitrio.

9 Guizot Franois Pierre Guilherme (17871874). Estadista francs do Conselho de Ministro de 1840 a 1848.

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No se pode negar que a influncia de Guizot foi decisiva para a formao do

pensamento Tocqueville, apesar das dissenses que acabamos de mencionar.

O centro dessa influncia consistia na insistncia do velho doutrinador Guizot

em colocar para as jovens geraes o respeito ao passado, para estabelecer a

unidade da Nao ao longo dos sculos.

Tocqueville assimilou essa herana dos pensadores doutrinrios,

principalmente a de Guizot, mas tambm abraou outros aspectos, sobretudo a

defesa da liberdade. Assim, ele foi ao encontro da democracia que, segundo

ele, imperava de fato na Amrica. Pelos servios prestados por sua famlia

corte francesa, o jovem Tocqueville foi nomeado juiz e auditor nas cortes de

Versalhes.

Em 1827, com 22 anos de idade, serviu ao governo dos Bourbons, no

momento em que esta dinastia se encaminhava para ser destronada10. Com a

morte de Luiz XVIII, em 1824, subiu ao trono o irmo deste, o Conde de Artois,

que recebeu o titulo real de Carlos X. Nesse momento histrico havia na

Frana trs tendncias dominantes entre os partidos:

1. os ultra-realistas, em sua maioria pessoas emigradas que haviam antes

deixado o pas, em 1789, e buscavam recuperar os privilgios perdidos,

liderados pelo irmo do rei, o Conde de Artois;

2. os liberais ou independentes, coligao heterognea, com republicanos

e bonapartistas, que queriam preservar as conquistas revolucionrias,

liderados por La Fayette;

3. os constitucionalistas de centro, que pretendiam a aplicao estrita da

Carta Constitucional, liderados por Guizot.

10 Aps a queda de Napoleo e a restaurao dos Bourbon em 1815, na pessoa de Luis XVIII, monarquistas ultra-realistas passaram a conduzir a poltica interna da Frana. Eles instauraram o Terror Branco, perseguindo bonapartistas e revolucionrios. A carta constitucional outorgada por Luis XVIII tentava conciliar os princpios do Antigo Regime com as conquistas essenciais da Revoluo. Garantia a liberdade de pensamento, culto e imprensa; igualdade perante a lei e inviolabilidade dos bens nacionais. Respeitava a separao entre poderes, reservando ao rei o Executivo. Consagrava o regime eleitoral censitrio, isto , o eleitor devia ser contribuinte e pagar impostos delimitados por idade; por exemplo: um cidado com 30 anos de idade pagaria 300 francos; com 40 anos de idade 1000 francos, de forma que o eleitorado se compunha de apenas 90.000 franceses.

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Na conciliao destas tendncias, estabeleceu-se na Frana um governo nos

moldes do absolutismo do Antigo Regime, apoiado pelos conservadores,

restaurando, assim, os privilgios do clero e da nobreza. O rei Carlos X,

conduzido ao trono, encontrou uma forte oposio dos liberais, liderados pelo

duque Luis Felipe, e da imprensa, que mobilizou a sociedade, preparando o

terreno em que aconteceria a Revoluo de 183011, estimulada e liderada pela

alta burguesia francesa.

A queda de Carlos X promoveu a volta da dinastia orleanista ao poder, na

pessoa de Luis Felipe, conhecido como o rei burgus ou o rei das

barricadas, nos primeiros dias de julho de 1830, tendo ento incio o domnio

da aristocracia financeira na Frana:

monarquia burguesa de Lus Felipe s pode suceder uma repblica burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia governou em nome do rei, toda a burguesia governar agora em nome do povo.As reivindicaes do proletariado de Paris so devaneios utpicos, a que se deve por um paradeiro. A essa declarao da Assemblia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreio de Junho, o acontecimento de maior envergadura na histria das guerras civis na Europa. A republica burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe mdia, a pequena burguesia, o exrcito, o lumpem-proletariado organizado em Guarda Mvel, os intelectuais de prestigio, o clero e a populao rural. Do lado do proletariado de Paris no havia seno ele prprio. Mais de trs mil insurretos foram massacrados depois da vitria e quinze mil foram deportados sem julgamento. Com essa derrota o proletariado passa para o fundo da cena revolucionria. Tenta readquirir o terreno perdido em todas as oportunidades que se apresentam, sempre que o movimento parece ganhar novo impulso, mas com a energia cada vez menor e com resultados sempre menores (MARX e ENGELS, s/d p. 209).

Contrariado com o traado da poltica francesa, Tocqueville solicitou e obteve

licena para estudar o funcionamento do sistema penal norte-americano. Com

tal pretexto viajou para os Estados Unidos12, com seu amigo Gustave de

11 Sobre esta Revoluo ler pgina 36 da presente dissertao. 12 Admitindo-se esse tipo de motivao diplomtica, por que a Amrica? Observarmos que, naquela poca, os Estados Unidos da Amrica limitavam-se, basicamente, a 24 estados, concentrados na costa atlntica e em parte do Meio-Oeste. Territorialmente ocupavam um pouco mais de um tero dos atuais Estados Unidos, sendo que a sua populao no ultrapassava 13 milhes de habitantes (5,2% da de hoje). O restante do continente era

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Beaumont. A sua correspondncia particular havia de revelar que, na realidade,

o que nosso autor queria era examinar a estrutura e o fundamento da

democracia norte-americana, e que para isso havia preparado um minucioso

projeto, que evitou divulgar. Pode-se ler na introduo de sua obra:

H na viagem americana de Tocqueville um mistrio de origem: Em que data essa idia lhe ocorreu pela primeira vez? Quando o projeto tomou corpo? E por que a Amrica? Nem os fatos comuns, nem a documentao existente permitem responder de modo convincente a essas perguntas. Os fatos so claros, mas iluminam apenas o lado menor da questo: a misso penitenciaria. Quando Tocqueville e seu amigo Beaumont embarcaram no Havre, em abril de 1831, os dois jovens magistrados esto investidos de uma misso de exame das instituies penitenciarias americanas. Misso solicitada pelos interessados, mas no paga pelo governo Francs, de carter oficial, e que est coroada por um relatrio remetido aos poderes pblicos como manda a praxe, e publicada em seguida. Mas esse estudo seja qual for o interesse que apresenta para Tocqueville, que no cessar de se interessar pela reforma das prises francesas, no passa evidentemente, no plano

constitudo de territrios ndios, estados da Repblica Mexicana (Texas, Arizona, Novo Mxico, Califrnia) ou ainda se encontrava em mos das potncias colonialistas, como a Gr-Bretanha (Canad, Oregon) e a Rssia (Alasca). A escravido confinava-se aos estados do Sul, nas terras do tabaco e do algodo, enquanto o Norte e o Oeste recm-desbravado acolhiam a gente livre do mundo todo, que para l se dirigia em busca de oportunidades. Mas a Amrica estava longe de ser um mar de rosas. No oeste, o chefe indgena Falco Negro, em junho de 1831, relutava em remover sua tribo para o estado do Mississipi, enquanto na Virgnia, Nat Turner, em agosto daquele mesmo ano, rebelava os escravos da regio do Southampton, naquela que ficou como uma das mais sensacionais e violentas revoltas da histria da escravido americana. O que, num primeiro momento, mais chamou a ateno de Tocqueville, no seu contanto direto com os americanos, foi que a soberania do povo (que na maioria das demais organizaes polticas conhecidas jaz oculta, escondida ou sufocada pelas mais variadas artimanhas de reis ou de tiranos), l estava s claras para ele. O dogma da soberania popular no era algo retrico. A preponderncia dos interesses dos comuns saltara da vida comunal, estabelecida na poca da colonizao inglesa, e empalmara o governo estadual e o federal, depois da Revoluo de 1776. Mesmo em Maryland, observou ele um estado - desde a sua fundao dominado por grande proprietrios onde se proclamou o sufrgio universal e prticas democrticas. Os antigos mandes da Repblica se conformaram. Como no podiam impedir o acesso do povo s instituies e assemblias, o patriciado tratou de bajular as massas. Tanto era assim que dois anos antes de Tocqueville desembarcar, em 1829, Andrew Jackson assumira a presidncia dos Estados Unidos (um coronel da milcia da fronteira e plantador do Tennessee), claramente apoiado no voto das classes de menor renda da sociedade norte-americana. Muitos outros pases poderiam oferecer-se curiosidade de dois amigos e legitimar igualmente a sua ausncia. Entretanto a jovem Repblica americana constitui-se segundo o modelo de uma famlia, estranho tradio na qual eles foram educados e que constituiu a oposio liberal sob a Restaurao: so os liberais de todos os matizes, os francos-maons, os republicanos que formam sob a gide simblica de Lafayete, o campo das simpatias americanas. Verdade que Beaumont era parente afastado de Lafayete, e que no plano familiar o jovem Alxis tivera a oportunidade de encontrar antigos americanos, como Chateubriand, ou Hyde de Neuville, o antigo agente dos prncipes durante a Revoluo, ex-embaixador em Washington, amigo intimo do conde de Bordeaux e antigo bispo de Boston.

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intelectual, de um acessrio de sua grande viagem. A documentao disponvel no permite ter um testemunho irrecusvel a respeito de suas razes profundas: com efeito, a correspondncia de Tocqueville e de Gustave de Beaumont s lhes faz aluso por uma carta de Tocqueville de 14 de maro de 1831, exatamente vspera da partida: ainda assim esta carta menciona apenas razes circunstanciais ligadas a Revoluo de 1830 que colocou os dois candidatos viagem, descendentes de famlias legitimistas, numa posio delicada (TOCQUEVILLE, 2001, p. 11-12).

A viagem de Tocqueville Amrica foi de grande valor dentro de seus planos,

pois, alm de elaborar, junto com Beaumont, o relatrio proposto sobre o

sistema penitencirio, ele publicou, em 1835, a primeira parte da sua mais

conhecida obra, A Democracia na Amrica. Em seu complemento, conhecido

como volume dois, de 1840, Tocqueville continuou a analisar a questo da

democracia. Vale Lembrar que Tocqueville interessava-se muito pela questo

filosfica da democracia. A preocupao filosfica com o Estado de direito

sempre foi quase uma obsesso na vida do autor, que tambm foi um homem

ligado poltica na Frana. Em suas prprias palavras:

Portanto, no apenas para satisfazer a uma curiosidade, de resto legitima, que examinei a Amrica; quis encontrar ali ensinamentos que pudssemos aproveitar. Enganar-se-ia estranhamente quem pensasse que quis fazer um panegrico. Quem ler este livro ficar convencido de que no era esse o meu desgnio. Meu objetivo no foi tampouco preconizar determinada forma de governo geral, porque sou dos que acreditam que no h quase nunca uma qualidade absoluta nas leis; nem mesmo pretendi julgar se a revoluo social, cuja marcha parece-me irresistvel, era vantajosa ou funesta para a humanidade; admiti essa revoluo como um fato consumado ou prestes a consumar-se e, entre os povos que a viram produzir-se em seu seio, procurei aquele em que ela alcanou o desenvolvimento mais completo e mais pacifico, a fim de discernir claramente suas conseqncias naturais e perceber se possvel, os meios de torna-la proveitosa para os homens. Confesso que vi na Amrica mais que a Amrica; procurei nela uma imagem da prpria democracia, de suas propenses, de seu carter, de seus preconceitos, de suas paixes; quis conhece-la,ainda que s para saber pelo menos o que devamos dela esperar ou temer (TOCQUEVILLE, 2001, p. 20 - 21).

Esta primeira obra do autor foi considerada como um best seller. Sua

publicao ocasionou euforia nos crculos intelectuais da poca, fazendo

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adeptos. Neste contato, John Stuart Mill13, amigo de Toqueville, promoveu a

publicao desta obra na Inglaterra, passando Tocqueville, nesse momento, a

ser um dos colaboradores da revista presidida por Stuart Mill London and

Westmister Review, rgo terico que expressava, poca, o pensamento

liberal.

De volta Frana, Tocqueville dedicou-se carreira poltica, tendo sido eleito

deputado pelo seu distrito natal na Normandia, em 1839. Nesse cargo poltico

se manteve at a Revoluo de 1848. Conseguiu sua reeleio Assemblia

Constituinte da Segunda Repblica e nova assemblia legislativa de 1849, da

qual chegaria a ser vice-presidente. Em junho tornou-se titular do Ministrio dos

Negcios Estrangeiros, no gabinete de Odilon Barrot, at sua demisso do

governo, em 31 de outubro do mesmo ano.

No terreno da luta poltica, Tocqueville tinha a viso de uma democracia em

que se harmonizassem a igualdade e a liberdade, e acreditava firmemente que

a soluo s se daria na medida em que os cidados estivessem sempre alerta

e ativos na defesa da liberdade e procurassem, eles prprios, lutar em defesa

de seus ideais.

Sua vida poltica um exemplo claro desta luta. Vivendo desde o nascimento

em um ambiente marcado pelas transformaes sociais promovidas pela

Revoluo Francesa, via as revolues, em geral, com certa desconfiana,

mas era capaz tambm de analis-las, em alguns pontos de suas obras, como

necessrias, e de preconiz-las em determinados momentos:

Diz-se que no h perigo, por que no h agitao; diz-se que como no h desordem material na superfcie da sociedade, as revolues esto longe de ns. Senhores, permiti-me dizer-vos que creio que vos enganais [...] Olhai o que se passa no seio dessas classes operrias,que hoje,eu o reconheo esto tranqilas. verdade que no so atormentadas pelas paixes, de polticas propriamente ditas, no mesmo grau em que foram por elas atormentadas outrora; mas no vedes que suas

13 John Stuart Mill (1806-1873) Filsofo e economista ingls; Algumas de suas obras: Princpios da Economia Poltica (1848); Da Liberdade (1859) .

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paixes, de polticas, se tornaram sociais?[...] Dizia-vos ainda a pouco, que esse mal levar cedo ou tarde [...] a gravssimas revolues neste pas: podereis ficar disso convencidos (TOCQUEVILLE, 1991, p. 23).

Seu parmetro de anlise, como ser mostrado nos captulos seguintes, foi

sempre uma liberdade pessoal e capaz, para ele de conduzir a vida em

sociedade para uma maior igualdade entre os homens enriquecidos. Vem

neste sentido a prpria critica acima dirigida aos partidos burgueses ento

presentes ao Parlamento francs, no sentido de no perceber o interesse

traduzido no processo de luta de classes nas ruas de Paris.

No plano da educao dos homens a boa e correta vivncia poltica dos

homens para Tocqueville, sempre a vivncia daquilo que ele denomina de

democracia. As revolues no sculo XIX s aconteciam naquelas naes

onde os homens no so capazes de conduzir o processo democrtico com

liberdade e igualdade social. A educao poltica deve conduzir a vida para a

democracia em negao ao despotismo. Assim ele se impe contra no s o

imprio autocrtico de Napoleo Bonaparte, mas como se pode observar

acima, contra os movimentos operrios de 1846 e 1848.

A respeito da Revoluo de 1848, qual o autor faz meno em seu discurso

na Cmara dos Deputados, importante ler Marx, num longo trecho:

A Histria da Assemblia Nacional Constituinte a partir das jornadas de junho a histria do domnio e da desagregao da frao republicana da burguesia, da frao conhecida pelos nomes de republicanos tricolores, republicanos puros, republicanos polticos, republicanos formalistas etc. Sob a monarquia burguesa de Luis Felipe essa frao formara a oposio republicana oficial e era, conseqentemente parte integrante reconhecida do mundo poltico de ento. Tinha seus representantes nas cmaras e uma considervel esfera de ao na imprensa. Seu rgo parisiense, o National era considerado to respeitvel, em seu gnero, como Journal des Dbats. Seu carter correspondia posio que ocupava sob a monarquia constitucional. No era uma frao da burguesia unida por grandes interesses comuns e destacadas das outras por condies especificas da produo. Era um grupo de burgueses de idias republicanas escritores, advogados, oficiais e funcionrios de categoria que deviam sua influncia s

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antipatias pessoais do pas contra Luis Felipe memria da velha Repblica, f republicana de um grupo de entusiastas, e sobretudo ao nacionalismo francs. Cujo dio aos acordos de Viena e aliana com a Inglaterra eles atiavam constantemente. Grande parte dos partidrios com que contava o National durante o governo de Luis Felipe eram devidos a esse imperialismo camuflado, que pode conseqentemente enfrent-lo mais tarde, durante a Repblica, como um inimigo mortal na pessoa de Lus Bonaparte. Combatia a aristocracia financeira da mesma forma que todo o resto da oposio burguesa.As polemicas contra o oramento, que estavam na Frana,estreitamente ligadas luta contra a aristocracia financeira, proporcionavam uma popularidade demasiado barata e material para editoriais puritanos demasiado abundante para no ser explorado. A burguesia industrial estava-lhe agradecida por sua servil defesa do sistema protecionista francs, que ele aceitava, porm, mais por razes nacionais do que no interesse da economia nacional; a burguesia, como um todo estava-lhe agradecida por suas torpes denuncias contra o comunismo e o socialismo. Quanto ao mais, o partido do National era puramente republicano, ou seja, exigia que a dominao burguesa adotasse formas republicanas ao invs de monrquicas e, principalmente exigia a parte do leo nesse domnio. Relativamente s condies dessa transformao no tinha um plano claro de ao. O que pelo contrario, parecia-lhe como a luz do dia e era publicamente admitido nos banquetes reformistas dos ltimos tempos do reinado de Luis Felipe era a sua impopularidade entre os democratas pequenos burgueses e, em particular perante o proletariado revolucionrio. Esses republicanos puros - os republicanos so assim - estavam j a ponto de se contentar no momento com a regncia da duquesa de Orlans, quando irrompeu a Revoluo de Fevereiro e seus representantes mais fieis conhecidos foram apontados para postos no Governo Provisrio Desde o incio contavam, naturalmente, com o apoio da burguesia e com a maioria da Assemblia Nacional Constituinte. Os elementos socialistas do Governo Provisrio foram imediatamente excludos da Comisso Executiva formada pela Assemblia Nacional por ocasio da instalao, e o partido do National aproveitou a deflagrao da Insurreio de Junho para dissolver tambm a Comisso executiva, e livrar-se assim de seus rivais mais prximos, os republicanos pequeno-burgueses ou republicanos democratas (Ledru-Rolin,etc).Cavaignaic, o general do partido republicano burgus que comandara a batalha de junho tomou lugar da comisso Executiva, com poderes quase ditatoriais. Marrast, ex-redator chefe do National, tornou-se presidente perpetuo da Assemblia Nacional Constituinte, e os ministrios, bem como todos os demais postos importantes, caram em mos dos republicanos puros. A frao republicano-burguesa, que h muito se considerava a herdeira legitima da Monarquia de Julho, viu assim excedidas suas mais caras esperanas; alcanou o poder, no porm como sonhara sob o governo de Luis Felipe, atravs de uma revolta liberal da burguesia contra o trono, e sim atravs de um levante do proletariado contra o capital levante este foi sufocado a tiros de canho. O que imaginara como o acontecimento mais revolucionrio resultou, na realidade, no acontecimento mais contra-revolucionrio. O fato caiu-lhe nas mos, mas cado da arvore do conhecimento e no da arvore da vida. O domnio exclusivo dos republicanos burgueses durou apenas de 24 de junho a 10 de Dezembro de 1848, resumiu-se na elaborao da

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Constituio republicana e na proclamao do estado de sitio em Paris (MARX e ENGELS, s/d, p. 211- 212).

Como deputado e como representante do congresso em 1848, Tocqueville

procurava sempre defender posies que se mostrassem coerentes com tudo

aquilo que ele defendia em seus escritos. Como ministro, participando do

governo de Lus Napoleo Bonaparte14, elaborou um manifesto contra a nova

situao, sendo preso juntamente com outros parlamentares.

Era o fim de sua carreira poltica. Retirou-se para sua propriedade, e ali, em

profundas meditaes, escreveu o que ele julgaria ser a sua obra mais perfeita

sobre a Frana: uma histria da Revoluo Francesa, da qual s publicaria um

pequeno - mas memorvel - estudo da decadncia da aristocracia francesa: O

Antigo Regime e a Revoluo. O restante de suas notas seria publicado mais

tarde, completando um quadro de singular riqueza, o qual, no obstante. se

empalidece se comparado com a sua penetrante anlise da sociedade norte-

americana. Apesar de reduzidos em volume, seus escritos geraram obras que

alcanaram grande reconhecimento na histria do pensamento poltico. Entre

1826 e 1857 Tocqueville realizou 11 viagens de estudos: no ano de 1826 partiu

para a Itlia, em companhia de seu irmo Edouard. Em 1829 visitou a Sua,

com seu primo Louis Kerkolay.

De 02 de abril de 1831 a 20 de fevereiro de 1832, realizou viagem aos Estados

Unidos e ao Canad em companhia de seu amigo Gustave de Beumont; os

viajantes visitaram Nova York, Albany, a Ilha do Francs do lago Oneida,

14 Em 1852 foi publicada, por Marx, a obra O 18 de Brumrio de Luis Bonaparte, a respeito do golpe de Estado de dezembro de 1851. Com olhos aguados, Marx jamais perdeu o fio da meada da economia e consegue ver o que havia por trs de todo o espetculo de legitimistas, orleanistas, bonapartistas, republicanos e do Partido da Ordem, mostrando o que realmente acontecera na Frana aps a abdicao de Luis Felipe: os grandes industriais, os grandes proprietrios de terras e financistas haviam se unido contra a pequena burguesia e os trabalhadores. Todos os partidos polticos se viram frustrados em suas tentativas de atingir seus objetivos atravs do governo parlamentarista; e desse modo fora possvel a Lus Bonaparte assumir o poder, no pelas simples mgica do nome Napoleo, mas graas ao apoio de uma classe de camponeses proprietrios de terras que no haviam conseguido se organizar politicamente, porm queriam um pai e protetor para se colocar entre eles e a burguesia, juntamente com o apoio interesseiro de um grupo de burocratas profissionais, criado pela centralizao do governo. Por um momento, diz Marx, Lus Bonaparte conseguir manter todos os grupos em posio de equilbrio; porm, como lhe seria impossvel fazer qualquer coisa para um deles sem de algum modo prejudicar os outros, ele acabaria fazendo com que todos se voltassem contra ele.

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Auburn, Canadaigua, Saginaw, Detroit, os grandes lagos Quebec, no Canad e

de novo nos Estados Unidos, Boston, Filadlfia, Baltimore, Cincinatti, Sandy

Bridge na beira do rio Mississipi, Memphis, Nova Orleans e Washington. Em

1833, Tocqueville realizou sua primeira viagem Inglaterra. Em 1835, nosso

autor voltou a este pas em companhia de Gustave de Beaumont e foi at a

Irlanda. Em 1836, visitou novamente a Sua, em companhia de Madame

Tocqueville, a jovem inglesa Mary Mottley, com quem tinha se casado em

1835. Em 1841, realizou sua primeira viagem Arglia, novamente em

companhia de Beaumont. No ano de 1846 realizou a segunda viagem a essa

colnia francesa. 1849 foi o ano em que viajou Alemanha tendo visitado

Colnia, Frankfurt e Bonn.

Em 1854 visitou de novo esta ltima cidade, com o intuito de documentar seus

estudos sobre o direito feudal para a elaborao de sua obra O Antigo Regime

e a Revoluo que seria publicada em 1856. Em 1857 Tocqueville visitou pela

ultima vez Londres, onde completou a documentao para a redao da

segunda parte da obra O Antigo Regime e a Revoluo que deixou incompleta.

Em 1854 visitou de novo esta ltima cidade, com o intuito de documentar seus

estudos sobre o direito feudal para a elaborao de sua obra O Antigo Regime

e a Revoluo, que seria publicada em 1856. Em 1857 Tocqueville visitou pela

ultima vez Londres, onde completou a documentao para a redao da

segunda parte da obra O Antigo Regime e a Revoluo, que deixou

incompleta.

As viagens de estudos conferiram obra de Tocqueville uma etnologia

descritiva dos costumes polticos dos paises por ele visitados. O autor deu

continuidade a uma tendncia presente na ensastica poltica francesa revelada

nas obras de Montaigne15 (1533_1592) e continuada nas obras de

15 Michel de Montaigne (1533-1592) pensador e escritor francs sua obras o Ensaio V.1 e V.2 e outras.

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Montesquieu16 (1689-1755). Com a sade bastante debilitada, Tocqueville

faleceu em Cannes, Sul da Frana, em 16 de abril de 1859.

16 Charles Louis de Condat (1689-1755) Baro de Montesquieu, magistrado e escritor francs dentre suas obras O Espirito das Leis (1748).

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2. A REVOLUO INDUSTRIAL E ALGUNS TRAADOS DO PENSAMENTO

DE TOCQUEVILLE.

No processo de gestao da revoluo industrial na Inglaterra, o modo de

produo econmica agrrio foi substitudo pelo barulho das fbricas.

Traduzindo uma nova forma de vida para os homens, as chamins das

indstrias lanavam sem cessar fumaa aos cus ao seu redor, e acumulavam-

se vilas ou cidades que, ao traduzirem a forma burguesa de existncia,

expressavam, entre os trabalhadores, uma nova forma de trabalho: a diviso

tcnica do trabalho manufatureiro, que apontava para o trabalho assalariado.

Na metade do sculo XIX o domnio comercial ingls j estava estabelecido,

com seus bens manufaturados sendo comercializados em toda a Europa e

espalhando-se pelo resto do mundo. J era um desenvolvimento sem volta. As

contradies sociais eram inegveis.

Diante deste contexto na obra Mmorie Sur L Pauprisme, por exemplo, na

anlise terica da pobreza o autor partiu de um quadro evolutivo da histria.

Com a passagem da vida pautada na caa para a vida pautada na agricultura e

na sedentarizao estaria projetado o incio da propriedade privada, portanto,

da desigualdade entre os homens, gestando a pobreza. A igualdade no modo

de vida primitivo teria sido possvel pela abundncia ou escassez de recursos

necessrios sobrevivncia dos homens, mas no ao longo do processo

evolutivo da espcie. Esta anlise da histria Tocqueville aplicou na leitura das

condies concretas da Europa do sculo XII, quando escreveu sobre os

ltimos sculos do modo de produo feudal17. Vale lembrar que Tocqueville

nunca foi um autor que negasse a perspectiva da vida como algo diferente do

passado. Tambm, nunca radicalizou numa leitura desse passado. Tratou

17 Como escreveu HUBERMAN (1986,p.18) O feudalismo, organizao econmica, poltica social e cultural baseada na posse da terra, comeou a se formar no sculo V, na Europa ocidental, com a crise do Imprio Romano. Foi se articulando graas integrao de elementos romanos e germnicos e principalmente, a partir do momento em que as fronteiras do Imprio comearam a ruir, obrigando as populaes urbanas a se isolar no campo. O sistema feudal estaria plenamente consolidado apenas a partir do sculo IX. O sistema feudal teve como principio bsico a obrigao servil, apresentava as seguintes caractersticas: produo auto-suficiente, pois se destinava ao consumo local e no s trocas comerciais; poder poltico local e sociedade estamental.

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disso, sobretudo, numa obra intitulada O Antigo Regime e a Revoluo. Nestes

estudos explicou que, no perodo feudal, a sociedade estava dividida em trs

estamentos: o primeiro era composto pela nobreza, o segundo pelo clero e o

terceiro pelos aldees ou servos. Para o autor estudado, a presena histrica

do Terceiro Estado garantiria, no contexto da vida feudal, certo equilbrio na

sociedade, entre os proprietrios de terras (a Aristocracia e a Igreja) e os

agricultores (aldees ou servos), que cultivavam a terra atravs do prprio

trabalho e retiravam dela o seu sustento.

Havia al certo equilbrio social, como entendeu Tocqueville, porque tanto os

aristocratas - que viviam com luxo, mas no com conforto - como os

camponeses teriam os meios de sobrevivncia necessrios reproduo da

vida garantidos para ambos. Com o desenvolvimento do comrcio e,

correspondentemente, das manufaturas, gerando mais demanda de trabalho e

um correspondente crescimento concentrado das riquezas, ocorreu, para

Tocqueville, um paradoxo na evoluo humana: se no processo de produo

feudal estava assegurada a todos a sobrevivncia, na modernidade, com a

maioria da populao envolvida no processo industrial, os trabalhadores

assalariados no possuam a garantia de sobrevivncia e morreriam de fome

se no existisse a caridade pblica. Esta questo est presente no pensamento

do autor francs na anlise da pobreza e nos discursos que ele pronunciou no

Tocqueville no Parlamento quando ocupou a cadeira de deputado.

Como Tocqueville tinha os olhos voltados para a vida real mas no deixava de

lado um dado ideal como pressuposto para analisar a histria, a pobreza, que

ele de fato viu na Inglaterra como um produto da Revoluo Industrial,

correspondia, a seu ver, a uma etapa de um processo histrico marcado por

duas pocas de equalizao entre os homens: uma primitiva, pautada pela

igualdade social, e a outra, a de seu tempo, de busca de satisfao das

necessidades materiais. Esta ltima consolidava a viso de Tocqueville da

sociedade capitalista; uma viso de sociedade que, como observou Werling, j

era uma viso dominante poca:

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A pobreza da poca de Tocqueville correspondia, assim, etapa de um processo histrico balizado por duas pocas de equalizao, uma primitiva e outra de satisfao das necessidades materiais, mesmo que estas fossem mutveis e crescentes. Essa concepo da sociedade constituda por uma vasta classe mdia era prospectiva praticamente nica poca, j que os conservadores aps a restaurao,como muitos catlicos e a maioria dos romnticos, olhavam o passado rural com a profunda sensao de perda de um mundo idlico, enquanto os velhos jacobinos e os novos socialistas aspiravam pela revoluo que completaria o trabalho inacabado da Conveno (WERLING in TOCQUEVILLE, 2002. p.184 185)

O perodo de 1830 em que Tocqueville escreveu sobre a pobreza

considerado na Europa uma poca de prenncio dos movimentos sociais que

marcaram a sociedade capitalista na sua forma industrial. Anunciou os

primeiros levantes da classe trabalhadora moderna. O final do sculo XVIII

corresponde formao social das condies para os levantes acontecidos a

partir dos anos 30 do sculo XIX e intensificados a partir dos quarenta. Sobre a

estruturao da Revoluo Industrial na Inglaterra o historiador Hobsbawm

esclareceu:

A partir da metade do sculo XVIII, o processo de acumulao de velocidade para a partida to ntido que os historiadores mais velhos tenderam a datar a Revoluo Industrial de 1760. Mas uma investigao cuidadosa levou a maioria dos estudiosos a localizar como decisiva a dcada de 1780 e no a de 1760, pois foi ento que, at onde se pode distinguir, todos os ndices estatsticos relevantes deram uma guinada repentina, brusca e quase vertical para a partida. A economia, por assim dizer voava (HOBSBAWM, 2005, p.51)

A Revoluo Industrial iniciada em 1750/60 ganhava fora na dcada de 1830,

que apontou, tambm, para o incio dos movimentos sociais que marcaram o

sculo XIX na Europa. Traduz, no plano do pensamento, a defesa do self-

made-man18. neste contexto que Tocqueville analisou, por exemplo, a

questo da pobreza, traduzida no Ensaio sobre a Pobreza.

O boom industrial, que avanava de forma rpida, ocasionando mudanas

estruturais nunca vistas, teve incio no perodo da chamada Revoluo Gloriosa

18 O homem que se faz por si mesmo.

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(1689-89), quando o lucro privado e o desenvolvimento econmico tinham sido

aceitos como o principal objetivo da poltica governamental inglesa.

Antes da Revoluo Industrial, um conjunto de novos homens proprietrios

(que iram compor a classe burguesa em nascimento), com conhecimento

comercial, monopolizava as terras conquistadas no processo nada idlico de

acumulao primitiva, as quais passaram a ser cultivadas por arrendatrios,

empregando camponeses sem terras, ou por pequenos proprietrios.

Hobsbawm ainda esclarece que se tratava, antes de qualquer coisa, de uma

produo j na forma traada pelo capitalismo, em que as atividades agrcolas

no eram mais atividades coerentes com a forma feudal de vida, pois j se

impunham como produo predominantemente dirigida para o mercado:

Um bocado de resqucios verdadeiras relquias da antiga economia coletiva do interior ainda estava para ser removido pelo Decreto das Cercas (Enclousure Acts) e as transaes particulares, mas quase praticamente no se podia falar de um campesinato britnico da mesma maneira que um campesinato russo, alemo, ou francs. As atividades agrcolas j estavam predominantemente dirigidas para o mercado; as manufaturas de h muito se tinham disseminado por um interior no feudal. A agricultura j estava preparada para levar a termo suas trs funes fundamentais numa era de industrializao: aumentar a produo e a produtividade de modo a alimentar uma populao no agrcola em rpido crescimento; fornecer um grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as industrias; e fornecer um mecanismo para o estimulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia (HOBSBAWN, 2005, p. 54 - 55).

Assim, um elevado acmulo de capital estava sendo criado. A poltica estava

aderida ao permitido acmulo de riquezas; no havia mais barreiras para o

avano industrial da Inglaterra, a riqueza governava a nova vida. O que os

industriais, ou seja, os donos da riqueza acumulada na forma burguesa

necessitavam para serem aceitos como homens de poder poltico no

parlamento era, sobretudo, ter propriedade, ou seja, riqueza privadamente

acumulada.

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Neste processo, poucos prosperam tanto quanto os senhores do algodo. O

algodo cru, importado das plantaes escravas do Sul dos Estados Unidos

atravs do porto de Liverpool, transformava-se rapidamente em tecido. Em

1800, cerca de 56 milhes de libras esterlinas de algodo chegaram a todos os

lugares da Inglaterra. Dez anos depois, essa cifra alcanava 123 milhes. O

algodo, tecido leve, fcil de lavar e bom para tingir, encontrou o mercado

domstico aberto e, o que o mais importante, alta aceitao nas terras do

Imprio Britnico na sia.

Nunca foi simples o processo de produzir o tecido a partir do algodo cru. Seu

fruto tinha que ser aberto e espalhado, depois as fibras deviam ser limpadas e

separadas das sementes e penteadas antes de serem enroladas. Isto era feito

primeiro em fio grosseiro, depois em linha fina. Apesar da complexidade, em

todos esses processos, a mo-de-obra humana podia agora ser substituda por

mquinas.

Essa era a fora do sistema fabril que substitua a mo-de-obra habilidosa de

uma ampla fora de trabalho pela superviso de umas poucas mos, operando

diversas mquinas movidas por uma nica fonte de energia. Ainda eram

precisos trabalhadores diretos, homens ou mulheres, para vigiarem o processo

de trabalho das mquinas. Cabia ainda s crianas o trabalho infantil de entrar

embaixo do maquinrio para remover bloqueios, limpar as partes mais

inacessveis ou coletar pedaos de algodo cados pelo cho.

Diante do sistema fabril, os trabalhadores diretos, como fiandeiras e teceles,

passaram a ser dispensados, e neste processo, com a morte dos velhos

ofcios, uma nova classe, o proletariado industrial, comeou a tomar forma,

engrossada pelo fluxo de homens retirados da terra.

Nesse sentido, dizer que a Revoluo Industrial inglesa teve na sua base inicial

a indstria do algodo precisamente correto. No obstante, a expanso da

indstria do algodo e a economia industrial no permaneceram slidas

durante muito tempo. Na dcada de 30 do sculo XIX houve um estancamento

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na economia. Essa crise econmica, que para muitos historiadores

considerada a primeira do sistema capitalista, acarretou srias conseqncias

sociais. Provocou, como foi dito acima, levantes dos trabalhadores da indstria

e das populaes pobres das cidades, preparando o campo para os

movimentos revolucionrios no continente europeu e o movimento cartista na

Inglaterra. Tocqueville, no ano de 1848, no contexto dos levantes, advertiu os

deputados franceses sobre o que entendeu como um perigo para a sociedade,

relembrando o que vira na Inglaterra em anos anteriores:

A Revoluo Industrial que, h trinta anos, fez de Paris a primeira cidade manufatureira da Frana e atraiu a seus muros uma nova populao de operrios, a quem as obras das fortificaes acrescentaram todo um povo de agricultores agora sem trabalho; o ardor dos gozos materiais que, sob o arguilho do governo, excitava cada vez mais essa multido; a inquietao democrtica da inveja que a minava surdamente; as teorias econmicas e polticas que surgiam e que tendiam a fazer crer que as misrias humanas eram obra das lei e no da providncia e que a pobreza podia ser suprimida mudando-se a base da sociedade; o desprezo que se devotava classe governante, sobretudo aos homens que a encabeavam. Desprezo to geral e profundo que paralisou a resistncia daqueles a quem mais interessava a manuteno do poder que se derrubava (TOCQUEVILLE, 1991, p. 84).

Nos anos anteriores a 1830 os preos dos produtos manufaturados j haviam

sofrido altas e baixas, no comprometendo a expanso da produo industrial.

Isso muito bem explicado pela atitude eficaz tomada pelos donos dos meios

de produo. Aplicando seus capitais em investimentos extra-europeus e

resgatando-os em momentos de crise, no mercado interno, em longo prazo,

fizeram baixar os preos dos bens e servios, aumentando, assim, a faixa de

consumidores. Sobre esse fenmeno, Lsourd demonstrou o custo do frete de

uma tonelada de mercadoria entre 1819 e 1850:

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EVOLUO DO CUSTO DE TRANSPORTE DE UMA TONELADA DE MERCADORIA (EM FRANCOS)

Anos Anturpia- Nova York Anturpia Rio de

Janeiro

1819 80 80

1830 68 62

1850 20 34

Fonte: J.L Mige, L taux du fret ai XIXe. Siecle, apud J. Lesourd e C.Grard, op.cit., vol. I, p.131.

E, ainda, comparando ao ndice de salrios:

INDICES DOS SLRIOS REAIS POR PERODO

FRANA INGLATERRA ESTADOS UNIDOS

Anos ndices Anos ndices Anos ndices

1789 -1799 54 1809 - 1818 43 1811 - 1820 61

1810 -1814 73 1819 - 1828 47 1821 - 1826 69

1824 -1833 68 1828 - 1832 48 1827 - 1842 72

1833 -1839 64 1833 - 1842 51 1843 - 1848 83

1852 -1858 55 1849 - 1858 57 1848 - 1858 79

1868 -1878 70 1869 - 1878 74 1868 - 1878 87

1879 -1886 82 1880 -1886 80 1878 - 1885 92

1895 -1903 97 1895 -1903 93 1897 - 1908 102

Fonte: Kuczynski, apud J. A . Lsourd e C. Gerard, op.cit.,Vol., pa. 138.

Tocqueville via esse processo como se a sociedade, ou melhor, a produo

capitalista, fosse um processo posto em curso e regido pela descoberta de leis

naturais que regiam o crescimento da sociedade vigente. Esta concepo, que

traduzia a ordenao do pensamento liberal, vinha, dentre outros, de

pensadores como Montesquieu (1689 - 1755) autor da obra O Esprito da Leis.

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Do ponto de vista estrutural a Revoluo Industrial promovia progressos, se

entendermos progresso como aumento de gerao de riquezas privadas e

inovaes cientificas e como crescimento da capacidade produtiva. A este

respeito escreveu Hobsbawm, apontando para as contradies sociais que

estavam sendo gestadas:

Em termos de produtividade econmica, esta transformao social foi um imenso sucesso: em termos de sofrimento humano uma tragdia aprofundada pela depresso agrcola depois de 1815, que reduziu os camponeses pobres a uma massa destituda e desmoralizada. Depois de 1800, at mesmo um campeo to entusiasmado do progresso agrcola e do movimento das cercas como Arthur Young ficou abalado com seus efeitos sociais. Mas do ponto de vista da industrializao, esses efeitos tambm eram desejveis; pois uma economia industrial necessita de mo de obra, e de onde mais poderia vir esta mo-de-obra seno do antigo setor no industrial? A populao rural domstica ou estrangeira era a fonte mais bvia, suplementada pela mistura de pequenos produtores e trabalhadores pobres (HOBSBAWN, 2005, p. 78).

Entre as inovaes causadas pela Revoluo Industrial no sculo XIX

nenhuma foi to intensa quanto o desenvolvimento das ferrovias. As primeiras

linhas foram abertas na Inglaterra por volta de 1825, nos Estados Unidos em

1827, em seguida na Frana, em 1828, na Alemanha e na Blgica em 1835,

chegando Rssia em 1837. Ao levar a rede ferroviria ao corao da cidade,

os engenheiros tornaram a via de resistncia menor, abrindo caminho atravs

de moradias de aluguel degradadas e deixando sem lar milhares de

trabalhadores.

H que se lembrar que a Revoluo Industrial foi precedida de duas outras

mudanas de carter estrutural. A primeira foi o processo de acumulao

primitiva, em que a posse das terras passou para as mos da classe burguesa

em nascimento, liberando-se uma populao da terra que servir de ponto de

partida para o trabalho regido pelo capital. Neste encaminhamento, pode-se

dizer que, sob a tutela da produo burguesa voltada para o mercado, a

produtividade aumentou nos campos, em virtude de novas tcnicas de plantio e

adubagem, bem como se implantou a pecuria, ocasionando o crescimento de

estoque de alimentos:

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Essa mudana agrcola tinha precedido a revoluo industrial e tornou possvel os primeiros estgios de rpidos aumentos populacionais, e o mpeto naturalmente continuou, embora as atividades agrcolas britnicas tivessem sofrido pesadamente com a queda que se seguiu aos preos anormalmente altos das guerras napolenicas. Em termos de tecnologia e de investimento de capital, as mudanas de nosso perodo foram provavelmente bastante modestas at a dcada de 1840, o perodo em que se pode dizer que a cincia e a engenharia agrcolas atingiram a maturidade. O vasto aumento da produo, que capacitou as atividades agrcolas britnicas da dcada de 1830 a fornecer 98% dos cereais consumidos por uma populao duas ou trs vezes maior que a de meados do sculo XVIII foi obtida pela adoo geral de mtodos descobertos no inicio do sculo XVIII, pela racionalizao e pela expanso da rea cultivada (HOBSBAWN, 2005, p. 77).

A outra mudana que vale aqui ser lembrado foi marcada, primeiro, pela

descoberta da vacina contra a varola, que propiciou a diminuio da

mortalidade infantil, e segundo, pelo fortalecimento dos homens, em vista das

boas condies de alimentao.

Outra con