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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ MÉRCIA SOCORRO RIBEIRO CRUZ SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense. ILHÉUS BAHIA 2010

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

MÉRCIA SOCORRO RIBEIRO CRUZ

SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas

Sulbaianas, na cozinha ilheense.

ILHÉUS – BAHIA

2010

MÉRCIA SOCORRO RIBEIRO CRUZ

A SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas

Sulbaianas, na cozinha ilheense.

Dissertação apresentada, para obtenção do

título de Mestre em Cultura & Turismo, à

Universidade Estadual de Santa Cruz.

Área de Concentração: Memória, Identidade e

Expressões Culturais

Orientadora: Profa. Dr

a. Maria de Lourdes

Netto Simões

ILHÉUS – BAHIA

2010

MÉRCIA SOCORRO RIBEIRO CRUZ

A A SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas

Sulbaianas, na cozinha ilheense.

Dissertação apresentada, para obtenção do

título de Mestre em Cultura & Turismo, à

Universidade Estadual de Santa Cruz.

Área de Concentração: Memória, Identidade e

Expressões Culturais

Orientadora: Profa. Dr

a. Maria de Lourdes

Netto Simões

Ilhéus-Ba, 13/08/2010

_____________________________________________

Maria de Lourdes Netto Simões – Professora Dra

UESC - BA

(Orientadora)

_____________________________________________

Ricardo Gomes Lima – Professor Dr.

UERJ-RJ

_____________________________________________

Janete Ruiz Macedo – Professora Dra.

UESC- BA

À minha filha Mariana, luz na

minha vida. Pelo tempo que

cresceu e eu não pude estar junto.

À minha mãe,

pelo apoio e carinho.

AGRADECIMENTOS

À Deus, presença constante em minha vida. Sem Ele, eu não saberia caminhar com

tamanha coragem.

À Universidade Estadual de Santa Cruz, à CAPES pela oportunidade de realizar o

curso.

Aos coordenadores do Mestrado em Cultura e Turismo, Marco Aurélio e Gustavo,

pelo apoio.

À professora Maria de Lourdes Netto Simões (Tica Simões), querida em meu coração

desde a graduação. Luz na minha caminhada, pela compreensão, garra, sabedoria e exemplo,

por tudo que me ensinou na convivência diária, e ao Professor Henrique Simões pela atenção.

Aos professores do Mestrado em Cultura e Turismo pelo tempo dedicado e pelo

conhecimento, em especial à professora Janete Ruiz e professor Natanael.

Aos colegas do Mestrado em Cultura e Turismo, Saul, amigo irmão, Santina,

Gardênia, Luíza e todos os colegas da turma, especiais para mim.

À minha família, minha mãe Cleonice, sempre pioneira em tudo. À meu pai José

Carneiro (in memorian), Meus irmãos, Mara, José Augusto, Joseberto e Mirna, todo carinho

para vocês. Sobrinhos e parentes queridos também agradeço o apoio.

Ao primo Nuno Menezes, pelo incentivo e atenção e também à prima Gardênia pelo

apoio e amizade.

À família ICER, na qual encontro alento, esperança, união e certeza de uma amizade

com respeito sincero pelo outro, em especial à Aline Caldas, Mari, Gisane, Juliana e Jane,

sempre presentes. Valeu a força.

À família CEPE, amigos que sempre me deram esperança que tudo ficaria bem

melhor, bastava confiar e seguir em frente, em especial à: Lindomar, Ileana, Dona Linda,

Zete, Jorge, Dione, Zeneide.

Aos amigos queridos Rosa e Álvaro pela atenção.

Às amigas queridas, Gabriele, Ângelica (Geloca), Noca, Ellen, Claudinha. São tantas

amigas e amigos que quero agradecer, mas deixo um abraço sincero a todos que vibraram pela

minha vitória nesse mestrado.

À secretária do Mestrado em Cultura e Turismo, Ingrid pela atenção.

À todos os empresários de hotéis, restaurante e cabanas de praia que cederam o seu

tempo para que eu realizasse a minha pesquisa.

Às pessoas conhecedoras da gastronomia local que cederam seu tempo e atenção.

Aos turistas que concederam seus depoimentos para esta pesquisa.

À todos que contribuiram com meu trabalho, muito obrigada.

Caminante, son tus huellas

el camino y nada más;

Caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace el camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino

Sino estelas en la mar.

Antonio Machado

SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha

ilheense

Autora: Mércia Socorro Ribeiro Cruz

Orientadora: Maria de Lourdes Netto Simões

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo identificar as contribuições étnicas Sulbaianas para a

cozinha ilheense, visando à preservação da identidade gastronômica de Ilhéus, a fim de

contribuir para o turismo sustentável. Com base nos processos de hibridização, o estudo

investiga a gastronomia como um produto turístico ou atrativo local pouco explorado, porém

de grande potencial, com referência às características gastronômicas peculiares da região. O

estudo contextualiza, desse modo, a gastronomia como bem simbólico portador de hábitos,

costumes e tradição de um povo, revelando a sua cultura, identidades e sua relação com o

turismo de Ilhéus. Identifica algumas possibilidades de articulação e planejamento nas

atividades turísticas com interesse de alcance das esferas cultural e econômica.

Palavras-chave: Cultura – Turismo – Gastronomia - Sustentabilidade.

SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha

ilheense

Author: Mércia Socorro Ribeiro Cruz

Adviser: Maria de Lourdes Netto Simões

ABSTRACT

This thesis aims to identify the contributions ethnic Sulbaianas Ilheus to the kitchen, aiming to

preserve the identify gastronomic Islanders in order to contribute to sustainable tourism.

Based on the processes of hybridization, the study investigates the gastronomy as an attractive

tourism product or place little explored, but in great potential, with reference to gastronomic

characteristics peculiar to the region. The study contextualizes thus gastronomy well as the

symbolic bearer of habits, customs and traditions of a people, revealing their culture, identify

and its relation to tourism Islets. Identifies some possibilities for coordination and planning

with interest in tourism activities in the spheres of power and cultural economical.

Keywords: Culture – Tourism – Gastronomy – Sustainability.

LISTA DE FIGURAS

1. Figura 01: Ilustração rodoviária da Costa do cacau 02

2. Figura 02: Mandioca 15

3. Figura 03: Processo de colheita da mandioca e feitura da farinha

Rio do Engenho – Ilhéus 17

4. Figura 04: Farinha de mandioca, de goma e tapioca em flocos 19

5. Figura 05: Frutas regionais: caju, acerola, cupuaçu, cacau e abiu 21

6. Figura 06: Pimentas malagueta, pimenta de cheiro, pimenta murici 22

7. Figura 07: Pimenta doce, de cheiro e pimenta malagueta 25

8. Figura 08: Peixe na folha de bananeira: preparo 81

9. Figura 09: Peixe na folha assado 82

10. Figura 10: Temperos e a farofa que recheia e cobre o peixe 83

11. Figura 11: Peixe na folha 84

12. Figura 12: Preparo do beiju na casa de farinha – Rio do Engenho 85

13. Figura 13: Acarajé da Irene 87

14. Figura 14: Moqueca de peixe do Hotel Canabrava 92

15. Figura 15: Saladas: 93

16. Figura 16: Camarão e caldo verde 94

17. Figura 17: Hotel Jardim Atlântico 97

18. Figura 18: Moqueca arretada – Vesúvio 99

19. Figura 19: Quibe do Vesúvio 100

20. Figura 20: Bataclan 101

21. Figura 21: Iguarias do Restaurante Maria Machadão 105

22. Figura 22: Comida árabe feita por descendente de libanês 112

23. Figura 23: Moqueca de palmito 114

24. Figura 24: Camarão alho e óleo da Cabana Narigas 115

25. Figura 25: Peixe à Gabriela 116

26. Figura 26: Peixe à Nacib 117

27. Figura 27: Corante feito com urucum – Rio do Engenho 126

28. Figura 28: Doce: jambo, banana e outros 127

29. Figura 29: Bolos de milho,, cocadas de banana, coco,

Cacau, maracujá, bolo de fubá, licor artesanal Rio do Engenho 128

SUMÁRIO

RESUMO ...................................................................................................... IV

ABSTRACT ..................................................................................................... V

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 01

1. A FORMAÇÃO ÉTNICA DA REGIÃO SULBAIANA COM

FOCO NOS HÁBITOS GASTRONÔMICOS DE ILHÉUS ........................07

1.1 ASPECTOS GASTRONÔMICOS DAS CULTURAS

INDÍGENAS E DAS IMIGRAÇÕES DE ETNIAS PORTUGUESA,

AFRICANA E ÁRABE ..................................................................................... 14

1.2 GASTRONOMIA E HIBRIDISMO: COSTUMES, HÁBITOS,

RECEITAS, SABERES E SABORES ................................................................39

1.3 ALIMENTAÇÃO E CULTURA NO CONTEXTO ILHEENSE............54

2. IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO GASTRONÔMICO

NO CONTEXTO TURÍSTICO ILHEENSE: A ALIMENTAÇÃO

COMO MARCA IDENTITÁRIA DE UMA CULTURA E FOCO

DE INTERESSE TURÍSTICO ........................................................................ 63

2.1 A COZINHA ILHEENSE: VIVÊNCIAS DA HERANÇA

CULTURAL EM TEMPOS MODERNOS ..........................................................69

2.2 COMO OS CARDÁPIOS DE HOTEIS, RESTAURANTES

E CABANAS DE PRAIA REFLETEM AS IDENTIDADES

GASTRONÔMICAS EM PROL DO TURISMO ........................................ .......87

2.2.1 COMO OS CARDÁPIOS DE HOTEIS REFLETEM

AS IDENTIDADES GASTRONÔMICAS EM PROL DO TURISMO.............91

2.2.2 COMO O CARDÁPIO DO RESTAURANTE REFLETE

AS IDENTIDADES GASTRONÔMICAS EM PROL DO

TURISMO...............................................................................................................97

2.2.3 COMO OS CARDÁPIOS DE CABANAS DE PRAIA

REFLETEM AS IDENTIDADES GASTRONÔMICAS EM

PROL DO TURISMO .........................................................................................113

2.3 ASPECTOS ÉTNICOS E HIBRIDIZAÇÃO DOS ALIMENTOS..............119

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................129

REFERÊNCIAS TEÓRICO-CRÍTICAS ............................................................135

APÊNDICE I ...........................................................................................................140

APÊNDICE II..........................................................................................................144

APÊNDICE III ........................................................................................................146

INTRODUÇÃO

O município de Ilhéus está situado na Costa do Cacau, da Região Sulbaiana, a 400 km

de Salvador, capital do Estado da Bahia. Essa região possui vários locais de interesse turístico,

sobretudo pela diversidade de culturas provenientes das várias etnias que habitaram o espaço

geográfico citado. Primeiro, com a presença indígena e depois as etnias portuguesa, africanas

e árabes. Outras menos marcantes podem ser citadas - italiana, francesa, alemã, holandesa e

suíça - sendo essas últimas aqui referidas a título de conhecimento, mas não foram objeto

deste estudo.

Enfatizamos que tais etnias ficaram de fora desta pesquisa por não contemplarem o

período que marca o estudo aqui recortado, anterior a chegada das etnias que ficaram de fora,

as quais migraram para o Sul da Bahia, entre os séculos XVII e XIX, em busca de trabalho e

da conquista de terras, após a permanência dos portugueses (colonizadores) e dos africanos

(escravos) na região por ocasião da produção da cana de açúcar nos engenhos de Ilhéus.

Exceção se aplica a estudo para os árabes (sírios e libaneses) que chegaram à região alguns

séculos após a vinda dos europeus e fixaram residência em Ilhéus e entorno.

A pesquisa teve como recorte temático as comidas salgadas que resultaram das

contribuições étnicas (índios, português e africanos) que primeiro habitaram o Sul da Bahia e

contribuíram com as misturas de alimentos, os quais passaram a fazer parte da nossa cultura.

Cabe enfatizar que muitas das comidas trazidas pelos africanos integram os cardápios de

terreiros candomblés e seus rituais religiosos, sendo referendadas neste estudo apenas em

citações ao tratarmos sobre tais alimentos, não serão aprofundadas em sua culinária.

A microrregião Sul, na qual está localizada a cidade de Ilhéus, recebeu da África

muitos escravos, dentre eles os da região de Angola. Tais trânsitos determinaram que saberes

culinários desses povos com outras etnias contempladas neste estudo fossem assimilados pela

nossa cultura.

Sem dúvida, a presença dessas várias etnias no contexto histórico da região, sobretudo

a cidade de Ilhéus, antiga Capitania do Brasil, contribuiu para a hibridização cultural

(CANCLINI, 2006) entendida neste estudo como a tradução entre mestiçagem, sincretismo,

fusão e crioulização, designando misturas particulares e formação de uma identidade

dinâmica, admitindo transformações contínuas nos sistemas culturais.

FIGURA 01 Ilustração rodoviária da Costa do Cacau

Fonte: http://www.bahia.com.br/site/global/imgs/mapas/peq_costa_cacau.jpg

A razão pela qual Ilhéus foi escolhida para representar a região Sul da Bahia na

cozinha que traz a marca dos saberes de povos que migraram para a região se deu, como foi

dito anteriormente, pela importância histórico-social da mesma no contexto regional,

enquanto sede de Capitania hereditária no século XVI e desde então, a sua autonomia

econômica, política e cultural, resultado do cultivo da cana de açúcar e, após quatro séculos

do Descobrimento, do cultivo do cacau, o que favoreceu o trânsito de diversas culturas e as

trocas interculturais.

O objeto de estudo desta pesquisa é a gastronomia com o recorte na culinária

preservada no município de Ilhéus como herança cultural da alimentação assimilada no Sul da

Bahia. Para Friedman (1999, p. 330), “cada região tem para si um modo de fazer e saber

fazer”. Certamente esse modo de fazer é o que diferencia a cultura local em sua especificidade

e desperta a curiosidade de outros povos. Nessa compreensão, a pesquisa objetivou identificar

as contribuições étnicas para a cozinha ilheense, visando à preservação das identidades

gastronômicas de Ilhéus, a fim de contribuir para o turismo sustentável.

A pesquisa se justificou pela importância do patrimônio gastronômico ilheense no

contexto turístico, abarcando o aspecto cultural, social e econômico e a estreita relação entre a

culinária representativa de uma tradição local e a atividade turística, considerando a

alimentação como uma marca identitária de uma cultura.

Assim, ao abordarmos a culinária da Amazônia neste estudo, estamos tratando do

século XVI, anterior à chegada dos portugueses ao Brasil e quando a cultura indígena ainda

não utilizava o sal e o açúcar em sua culinária. Também relatamos algumas vivências com a

chegada dos portugueses e o contato dessas culturas a partir do século XVI. Ao abordarmos o

município de Ilhéus estamos contextualizando desde o século XVI até os tempos atuais.

Entendemos gastronomia neste estudo enquanto patrimônio imaterial (UNESCO,

2009), simbolizando as vivências cotidianas, práticas simbólicas, hábitos, crenças e rituais de

uma sociedade. Desse modo, constatamos que a comida é um diferenciador cultural entre

povos e nações.

Nessa perspectiva, o patrimônio cultural representa a imagem da região, os hábitos e

costumes da comunidade situada em um espaço/tempo geográfico e sua reconfiguração, pois

envolve um repertório de ingredientes – ora tradicionais, ora universais – e modos de

combiná-los que refletem a alma de um povo. Sendo assim, a culinária se constitui em um

elemento de identidade (HALL, 2004), pertencimento (HOBSBAWM, 1997) e

sustentabilidade (OMT, 2003) e, por certo, é reveladora da herança cultural de uma

localidade.

Compreendendo a culinária (campo do simbólico) como uma das manifestações

culturais mais expressivas, ela constitui um marco de importância inquestionável na

experiência turística pela possibilidade de suscitar a curiosidade pela cozinha tradicional, na

forma de combinar sabores e especiarias de um lugar. Está associada ao turismo cultural

(REIS, 2007) e permite que haja uma troca, no sentido da comunicação intercultural, sobre os

costumes e hábitos entre homens. Com isso, as atividades em torno da comida têm lugar de

destaque no setor turístico também por oferecer alternativa de lazer, informação e

entretenimento, além de constituir-se em campo de trabalho expansivo em mão de obra.

Para fundamentar este estudo foram selecionados teóricos e conceitos por eles

defendidos. Um dos conceitos de Cultura adotado neste projeto é o de Warnier (2000), que

compreende a cultura como uma totalidade complexa constituída por normas, por hábitos, por

repertórios de ação e de representação adquiridos pelo homem, enquanto membro de uma

sociedade. O outro conceito de cultura utilizado é de Geertz (1989), que compreende a cultura

como uma ciência interpretativa a procura de significado.

Orientaram ainda o trabalho as ideias de Yúdice (2006) que admite a cultura como

recurso para fortalecer o tecido social através de oportunidades de emprego em torno de

atividades culturais, buscando uma produção cultural organizada para a sustentabilidade; Da

Matta (1988), numa compreensão antropológica que prevê a relação do alimento com as

práticas sociais; Halbwachs (1990), com os conceitos de memória individual e coletiva e sua

ligação com as lembranças relacionadas à alimentação.

O estudo tomou como elemento norteador o conceito de turismo sustentável da OMT

(2003); por entendermos o turismo como um dos condutores do gerenciamento de todos os

recursos, foi que adotamos o conceito de Moesch (2000), que vê o turismo como uma

combinação complexa de inter-relacionamentos entre produção e serviços integrados a uma

prática social com base cultural e herança histórica.

Partindo do estudo da gastronomia na perspectiva da culinária também utilizamos o

conceito de Barretto (2001, p. 11) que concebe o patrimônio cultural como “o conjunto de

todos os utensílios, hábitos, usos e costumes, crenças e forma de vida cotidiana de todos os

segmentos que compuseram e compõem a sociedade”.

Para falarmos de memória, buscamos a compreensão em Le Goff (1996, p. 423): “a

memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para

servir o presente e o futuro”. Tal memória foi entendida neste estudo como aquela que é

reconfigurada pela re-elaboração de uma iguaria. Assim, a memória enquanto lembrança é

viva, se realiza e consolida com o pertencimento. Esse, por sua vez, está associado à memória

individual e coletiva (HALBWACHS, 1990), vinculado a um passado no qual o sujeito se

reconhece dentro das imagens sucessivas.

Em torno da comida há um comportamento que expressa toda trama de valores e

relações de significados (DA MATTA, 1988, p. 621), pode-se afirmar que “no caso brasileiro,

há normas precisas que definem a relação entre o alimento ingerido e o caráter ou o estado da

pessoa que o ingere”, de modo que certos alimentos falam precisamente de certas relações

sociais. Assim, a alimentação é um suporte para a identidade e contribui para a construção do

indivíduo sob aspectos social, territorial e religioso como apontam os estudos atuais.

A pesquisa consistiu num estudo etnográfico de natureza qualitativa, de caráter

exploratório-descritiva. O dimensionamento da amostra serviu apenas para a análise dos

dados com referência aos entrevistados. A pesquisa foi realizada em duas etapas:

Primeiro, fizemos um estudo bibliográfico, através de consulta a livros, artigos

científicos e acervo cultural, no qual foi observada a contextualização étnica da região

Sulbaiana com foco na culinária local, visando a reunir elementos teóricos sobre a mesma e

sua relação entre cultura, turismo e desenvolvimento. Concomitantemente, foi realizado um

estudo documental (DENCKER: 1999), no Centro de Documentação e Memória Regional –

CEDOC, da Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC, em consulta a jornais da cidade de

Ilhéus, a partir da década de 60, para um levantamento de dados históricos e culturais acerca

das contribuições culinárias referidas neste estudo na cidade de Ilhéus.

A segunda etapa foi realizada através da pesquisa exploratório-descritiva. Os dados

foram obtidos por meio da coleta de dados, no município de Ilhéus. A coleta foi realizada

através de entrevistas semi-estruturadas, com perguntas abertas. A amostra foi composta de

hotéis, restaurantes e cabanas tendo em conta a sua localização no trecho selecionado. Os

sujeitos da pesquisa foram: 3 empresários de hotéis, 5 donos de restaurantes e 6 cabaneiros da

Praia do Sul; além de três turistas de cada estabelecimento supracitado; totalizando 14

empresários e 42 turistas.

O número de entrevistas atendeu ao seu caráter de amostragem não-probabilística,

entendida neste estudo como aquela cujos elementos são escolhidos com a conveniência do

pesquisador (DENCKER, 1999) para análise qualitativa, tendo em conta o circuito geográfico

definido neste estudo. A quantidade dos entrevistados somou um total de 56, além das pessoas

da comunidade local, conhecedoras da cozinha local.

Ressaltamos que a estratégia de convite aos entrevistados contemplou a entrevista no

ambiente de trabalho da pessoa. O procedimento adotado para o recrutamento foi entrevista

marcada antecipadamente e autorizada pela pessoa entrevistada. A seleção levou em conta a

significação do conhecimento do recrutamento em relação à temática da pesquisa.

Com referência aos turistas, a entrevista objetivou conhecer o interesse e a opinião do

turista, ao visitar a cidade: sobre a culinária ilheense, se houve em sua viagem uma

curiosidade em conhecer a cozinha tradicional de Ilhéus. Já a entrevista realizada com pessoas

da comunidade, conhecedoras da cozinha ilheense (herança indígena, portuguesa, africana e

árabe), visou colher dados sobre os saberes que não puderam ser encontrados em registros ou

fontes documentárias; são saberes passados de geração a geração, vivos na memória, nos

costumes e hábitos das pessoas da comunidade.

Os dados recolhidos foram operacionalizados em análise qualitativo-descritiva do

tema proposto, apresentando e discutindo os resultados das entrevistas realizadas com

representantes de cada setor. A análise foi feita a partir da articulação entre as informações

obtidas na pesquisa bibliográfica e documental e em dados colhidos através das entrevistas.

Optamos pelo critério autor-data para as citações das entrevistas.

Destacamos que as fontes das figuras que constam neste trabalho são de autoria desta

pesquisadora. As fotografias foram tomadas em trabalho de campo nos locais onde se deram

as entrevistas durante a pesquisa; exceção a da figura 03, que faz parte do Projeto do ICER,

Rio do Engenho: festas, saberes e sabores.

Com base no exposto, o presente estudo foi estruturado em dois capítulos. Pensando

em uma comunicação dialógica e uma linguagem leve, rápida, exata, com visibilidade e

consistência (CALVINO, 1990), optamos por não fazer um capítulo de discussão conceitual.

A reflexão teórica deste estudo foi realizada simultaneamente à análise dos dados

encontrados.

No capítulo I, “A formação étnica da região Sulbaiana com foco nos hábitos

gastronômicos”, foram mostrados aspectos gastronômicos relacionados com as culturas

indígenas e demais etnias migradas para o Brasil que são objeto de estudo desta pesquisa.

Desse modo, contextualizamos os aspectos históricos e culturais mencionados na história da

alimentação (CASCUDO, 2007) desde a época em que Ilhéus foi sede de Capitania

Hereditária com a chegada dos portugueses no contato com os índios da terra até os tempos

atuais; fizemos um mapeamento do cruzamento de culturas e da fusão étnica que originou a

diversidade dos alimentos na cozinha ilheense.

Ainda no Capítulo I, fizemos uma abordagem sobre alimentação e cultura no contexto

ilheense, relacionando a teoria do Cru e o cozido de Lévi-Strauss (2004) que diferencia o

estado de natureza e o estado de cultura e, assim, enfatizamos a discussão entre o índio

brasileiro e o branco europeu, no entrecruzamento de culturas e novos olhares debruçados

sobre os mesmos.

No capítulo II, intitulado “Importância do patrimônio gastronômico no contexto

turístico ilheense: a alimentação como marca identitária de uma cultura e foco de interesse

turístico”, foi investigado, com base nos processos de hibridização discutidos no capítulo I, de

que modo as contribuições culinárias estudadas aparecem nos cardápios de hotéis,

restaurantes e cabanas da praia do Sul, no município de Ilhéus – Bahia.

Dentro do capítulo, discutimos a cozinha e as vivências da herança cultural ilheense.

Partimos das entrevistas realizadas com pessoas conhecedoras da cozinha local as quais,

através da memória individual e coletiva (HALBWACHS, 1990), relataram suas vivências

ligadas ao cotidiano da cidade, onde aprenderam saberes culinários transmitidos entre

gerações e reconfigurados no tempo. Vimos ainda, como os hotéis, restaurantes e cabanas dão

visibilidade às identidades gastronômicas em prol do turismo.

Ao final do texto dissertativo, foram acrescentados um apêndice e dois anexos:

Apêndice I, o questionário de perguntas, aplicado nesta pesquisa; Anexo 1, formulário do

termo de Consentimento Livre e Esclarecido, do Comitê de Ética da UESC; Anexo II,

formulário de Autorização do Uso de Imagem nesta pesquisa, do Comitê de Ética da UESC,

nas várias categorias de entrevistados: donos de hotéis, restaurantes, cabaneiros, turistas e

pessoas conhecedoras da culinária local. Vale esclarecer que todos os entrevistados assinaram

os referidos formulários.

Por fim, concluímos com uma breve reflexão sobre a exploração turística da

gastronomia em Ilhéus, relacionando-a aos aspectos étnicos, de hibridização dos alimentos,

que contribuíram para a configuração social do município de Ilhéus, através do processo de

acomodação e assimilação de várias culturas.

1. A FORMAÇÃO ÉTNICA DA REGIÃO SULBAIANA COM FOCO NOS HÁBITOS

GASTRONÔMICOS DE ILHÉUS.

Se os órgãos evoluem ao ritmo

da natureza, as percepções evoluem

ao ritmo das culturas

Louis Flandrin

O estudo desenvolvido neste capítulo discorre sobre as contribuições étnicas para a

cozinha ilheense, através da reflexão relacionada à presença de imigrantes oriundos de

diversas etnias que povoaram a região Sul da Bahia.

Como é sabido, os grupos étnicos referenciados são os índios, que habitavam o Brasil;

o português, no papel de colonizador; e os africanos, que vieram como escravos em torno de

1559. Posteriormente, somaram-se a esses, outros povos de outras etnias (CAMPOS, 2006).

Importa salientar que tais povos transmitiram seus saberes peculiares e, por meio de receitas

revelaram uma elaborada cultura comportamental, sem falar na complexidade cultural de um

povo capaz de produzir três cozinhas (indígena, portuguesa e africana).

Em se tratando do vocábulo “etnia”, Stuart Hall (2004, p.62) afirma que “a etnia é o

termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais – língua, religião,

costume, tradições, sentimento de “lugar” – que são partilhadas por um povo”. Alerta o autor

para o cuidado de se tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”, uma vez que no mundo

moderno essa crença acaba por ser um mito.

Tal concepção se fundamenta no fato de que “as nações modernas são, todas, híbridos

culturais” (HALL, 2004, p.62). Esse acontecimento se deve à migração dos viajantes desde a

época de exploração realizada por navegantes estrangeiros em prol da conquista de terras e

riquezas.

Por formação étnica compreendemos uma ideia não unificadora de nação, mas as

contribuições de diversas etnias no contexto, histórico, econômico, político, social e cultural

da região Sul da Bahia ao longo de sua existência e essa idéia não unificadora se alastra pelo

país. Assim, as culturas indígena, portuguesa, africana e, posteriormente, outras etnias que

migraram para o Brasil, a partir da colonização, cruzaram suas culturas e traçaram o perfil do

povo brasileiro; esse aspecto cultural está vivo na culinária brasileira, nos usos e costumes

regionais e em várias manifestações culturais que são percebidas constituindo um conjunto de

sentidos sobre processos de sociabilidade.

Consta da história local que, em meados do século XVI, teve início a miscigenação

étnica da região, berço do Brasil, onde está localizado o município de Ilhéus, foco desta

pesquisa.

A capitania de Ilhéus, quarta Capitania do Brasil, entre as oito Capitanias existentes

junto à Costa, foi fundada em 1535, estendendo-se da foz do rio Jequiriçá à foz do rio

Jequitinhonha. A propósito, a Capitania de Ilhéus foi doada a Jorge de Figueredo Correa,

fidalgo da casa de El Rey de Portugal. Em suas impressões sobre a Capitania, afirma Pero de

Magalhães Gandavo (1964, p.32) que “esta povoação é uma ilha muito formosa e de muitos

vizinhos, a qual está em cima de uma ladeira à vista do mar, situada ao longo de um rio onde

estão os navios”.

Consta, ainda, da história situada por Gandavo (1964), a abundância de águas

existente em Ilhéus, na qual pode transitar quaisquer naos, por maiores que sejam além da

infinidade de peixes grandes e pequenos. Há indícios de terras viçosas ao redor desta

Capitania, ressaltando por sua vez a riqueza da região.

Por volta de 1816, com a divisão da Província da Bahia em comarcas, o território da

ex-capitania hereditária também foi dividido (ANDRADE, 2003, p.19), sendo que o

município de Ilhéus abrangia terras que iam de Camamu a Belmonte. Somente com a

Proclamação da República, as Comarcas que formavam o Estado da Bahia foram divididas

em Municípios.

Mais precisamente, a partir de 1900 (século XX) foi sendo delimitado o Estado da

Bahia e a vasta extensão de terras que constituía o município de Ilhéus se desmembrou em

vários municípios. Andrade esclarece:

O município de Ilhéus abrangia, nessa época, uma área que corresponde hoje

aos municípios de Uruçuca, Itapitanga, Coaraci, Itajuípe, Alamadina,

Lomanto Júnior, Ibicaraí, Itabuna, Floresta Azul, Firmino Alves, Santa Cruz

da Vitória, e Itaju do Colônia. O município era tão grande que mais parecia

um Estado: possuía 8.000 km2. A redução do imenso território que se

constituiu na capitania de São Jorge dos Ilhéus teve início a partir do século

XIX (2003, p. 19).

A região na qual se localizava a comarca de Ilhéus abrangia Cairu, Boipeba, Camamu,

Maraú, Itacaré, Ilhéus e Poxim, com 75.569 habitantes (ANDRADE, 2003). Era a região mais

povoada da Bahia, depois de Salvador. Daí a sua importância histórica e cultural atribuída

pelo fluxo de imigrantes que povoaram a região e constituíram um vasto patrimônio cultural.

O Brasil no século XVI era povoado por inúmeras tribos indígenas e a chegada de

povos de outras etnias trouxe a diversidade cultural, o conflito e a mistura. Com menção a

condição e costumes dos índios da terra há relatos escritos por portugueses nos quais,

não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que

semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo

sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache

povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assim como

são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que

houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os

portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar

tamanho poder de gente (GANDAVO, 1964, p.87).

Entretanto, foi no enfrentamento com os índios mais valentes e, na conquista e

confiança de outros menos arredios ao contato, que os portugueses foram se adaptando e

estabelecendo moradia no novo mundo. Com esses últimos, no papel de colonizadores, novos

conhecimentos se consolidaram para ambos no convívio com os índios, também a vinda de

animais não existentes no Brasil e alimentos trazidos da África, Índia e Ásia contribuíram

para criar maior diversidade; a troca de alimentos com os índios por objetos de pesca como

anzóis e outros utensílios de uso pessoal, desconhecido pelos mesmos, facilitaram a

comunicação entre eles.

Por volta do século XVII, houve também a presença de holandeses na região Sul da

Bahia, segundo informações colhidas no JORNAL DIÁRIO DA TARDE DE ILHÉUS

(Edição de 28 de Junho de 1961 – 2º Caderno): “Lichthard no acesso de conquista holandesa

incendiou Camamu e saqueou Ilhéus no século XVII, mais precisamente em 1637”. Levados

pelo interesse de conquistar terras e riquezas, muitos estrangeiros migraram para o Brasil

naquela época.

Esse fato comprova a vinda de outras nações e a existência de europeus além dos

portugueses a circularem pelas Capitanias, explorando o que a terra tinha de melhor a

oferecer. “Esta província de Santa Cruz além se ser tão fértil como digo, e abastada de todos

os mantimentos necessários para a vida do homem, é certo ser também muito rica, e haver

nela muito ouro e pedraria, de que se têm grandes esperanças” (GANDAVO, 1964, p.68).

Na perspectiva abordada, ressaltamos a presença de povos e culturas diversas onde os

costumes e modo de vida dos que migraram para o país favoreceram trocas interculturais,

perfazendo uma nação híbrida (CANCLINI, 2003).

Benedict Anderson (1989, p.14) enuncia: “dentro de um espírito antropológico,

proponho, então, a seguinte definição para nação: ela é uma comunidade política imaginada –

e imaginada como implicitamente limitada e soberana”. O autor refere-se à imaginada porque

nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus

compatriotas, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.

Dentro dessa ordem, a nação se estruturou na sintaxe do esquecer. A vontade de

pertencimento parte da necessidade de adesão. Tal processo envolve: identidade da parte e do

todo, do passado e do presente, do esquecer ou do esquecer para lembrar. Conforme o referido

autor Anderson (1989), o “esquecer para lembrar” acaba por instaurar um lugar de

“identificação parcial”, que depende do “plebiscito diário” através do discurso performativo

do povo.

Assim, a narrativa deve ser contemplada como lugar de uma identificação

ambivalente, na margem incerta da acepção da cultura fragmentada; podendo, dessa maneira,

tornar-se espaço que angustia a menor parte da nação. Emerge, nesse processo, uma narrativa

nacional híbrida, transformando o passado e atenuando seus efeitos por uma nova concepção

favorável a outras histórias, novas vivências.

O espaço pós-colonial vem, portanto, redesenhar os limites da fronteira, ameaçando

agonicamente com sua diferença cultural que nunca soma e é sempre dupla em relação à

cultura oficial da nação. Nessa perspectiva, a memória nacional deve contemplar sempre o

hibridismo de histórias e o deslocamento de narrativas, enquanto ambivalentes da diferença

cultural. Uma vez que todas as narrativas de identificação e todos os atos de tradução cultural

passam por essas estruturas referendadas (ANDERSON, 1989).

Desse modo, podemos conferir no que concerne à alimentação do índio, que desde

primórdios, os mesmos já tinham costumes alimentares peculiares, no modo de preparar o seu

alimento; todavia, ao cruzar com os hábitos alimentares do português e do africano houve

alguns elementos inerentes a esses hábitos modificados; desse modo, o índio influenciou e foi

influenciado em sua cultura, embora mantendo alguns aspectos identitários.

Como afirma o antropólogo Raul Lody em Culinária Amazônica (2002, p.20) “sem

dúvida, a comida indígena permaneceu mais fiel à sua tradição do que a africana e a européia

que aqui chegaram”. O que facilmente pode ser notado nos costumes indígenas ao preferir a

carne crua ou assada a carne cozida, bem como o uso de peixes temperados com bastante

pimenta fresca e ardida, moderação nos condimentos, no uso de sal e na qualidade do

alimento consumido ainda fresco.

Segundo Pero de Magalhães Gandavo (1964, p.58), os índios tinham como

mantimentos em suas roças com que se sustentavam a mandioca e o milho zaburro. O autor

faz menção às carnes de animais que eram caçadas e serviam de alimento para os índios e da

mesma forma os mariscos e peixes abundantes na Costa. Quando os índios utilizavam a carne

tinham o costume de moquear a mesma. Conforme Jean de Lery, em 1557 os índios assim

procediam:

Os selvagens preparavam a carne à sua moda moqueando-a [...] enterram

profundamente no chão quatro forquilhas [...] formando uma grelha de

madeira e que chamam boucan. Nela colocam a carne cortada em pedaços,

acendendo um fogo lento por baixo [...]; como não salgam suas viandas para

guardá-las como nós fazemos, é esse o único meio de conservá-las (SENAC,

2002, p.20).

A esse respeito, há uma diferença entre o modo de fazer ou cozinhar a carne entre os

índios e os europeus. Para os índios o moquém serve tanto para conservar os alimentos quanto

no preparo imediato da comida. Vem dessa tradição indígena o uso do mocotó moqueado nas

feijoadas típicas do Brasil, o que revela um processo de hibridização pela mistura de

conhecimentos do índio e do africano. Em relação ao europeu o procedimento adotado é o

fumeiro. Assim, a diferença de tais processos é meramente cultural:

Na verdade, o moquém desidrata, conservando e ativando o sabor.

Certamente o grande diferencial da cozinha indígena está na descoberta e no

emprego do fogo, um elemento de forte conteúdo mítico, que integra

histórias de heróis fundadores; deuses que trouxeram algo capaz de

transformar a vida. Essa transformação muda o gosto do peixe, da tartaruga,

da capivara, da raiz da mandioca, entre muitas outras opções gastronômicas

(SENAC, 2002, p.20).

Com referência à alimentação, as misturas processadas ao longo da história entre

povos que migraram para o Brasil e os índios nativos, sofreu uma adaptação mais rápida e

menos conflituosa. O senhor do engenho, o português que dominava as terras, alimentava-se

de ingredientes que compunha a comida indígena, a exemplo da pimenta, também utilizada

pelos escravos. A mandioca e o milho, alimento indígena, dentre outros alimentos, também

foram sendo adaptados às receitas do português e do africano sem preconceito. A abóbora

que era cultivada pelo índio e servia de alimento foi, por sua vez, assimilada pelo português

em sua alimentação vindo a ser utilizada em doces e compotas de receitas portuguesas.

Assim, o surgimento de uma “etnia brasileira”, capaz de envolver e acolher a gente

variada que no país se juntou, passa pela interação das identidades étnicas de índios, africanos

e europeus, que este estudo trata como hibridização conforme enfatizado.

O termo hibridismo ou hibridização é próprio da Biologia. Segundo Canclini (2003)

não basta que seja uma palavra muito usada para a considerarmos respeitável. Há a

necessidade em alcançar todas as possíveis interações por parte do comunicador nas relações

polissêmicas (pluralidade de significações). Para esse autor, hibridismo são processos

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existe em forma separada, se

combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.

Nessa compreensão, destacamos que o presente estudo irá deter-se apenas nas etnias:

indígenas, portuguesa, africanas e árabes1 (sírios e libaneses), que, hibridizando-se, resultaram

uma cozinha multicultural presente no cotidiano de Ilhéus. Assim, sempre que houver

referência ao árabe estamos falando dos sírios e libaneses que habitaram a região Sul da Bahia

a partir do final do século XIX.

Ao tratar da hibridização dos alimentos, referimos às várias misturas presentes na

história da alimentação no Sul da Bahia. Nessa História conferimos a consolidação de uma

sociedade plural, tendo em vista o Brasil ter nascido historicamente plural. Desse modo, a

fusão dos alimentos entre etnias celebraram a migração e seu potencial desterritorializador e

produtor de mestiçagem.

Importa ressaltar que o fenômeno da desterritorialização foi associado à

reterritorialização, uma vez que as idéias e costumes saíram de um lugar e assentou-se em

outro. Nisso, a culinária é uma área onde tal processo pode ser verificado com bastante

nitidez.

1 Todos os imigrantes do Oriente Próximo foram classificados como turcos até 1892, quando os sírios passaram

a ser inscritos separadamente. Como o Líbano era considerado parte da Síria até a Primeira Guerra Mundial,

todos os libaneses foram incluídos como Sírios. Os libaneses foram alistados à parte pela primeira vez em 1926;

a grande maioria dos migrantes registrados como turcos eram de fato Sírios e libaneses, junto a um pequeno

grupo de armênios (KNOWTON, 1960, p.37).

O conceito de identidade cultural, conforme Hall (2004) não é unificado em torno de

um eu coerente, mas deslocado em várias direções. A identidade é dinâmica e admite

transformações contínuas nos sistemas culturais pelos quais somos representados. Nessa

perspectiva, não há uma identidade fixa e nem definida historicamente. O sujeito pós-

moderno é fragmentado, contraditório:

À medida que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos

identificar – ao menos temporariamente. O que faz parte da realidade do

sujeito pós-moderno conceitualizado como não tendo uma identidade fixa,

essencial ou permanente (HALL, 2004, p.13)

O que implica falar em identidades como identificação no contexto atual, uma vez que

as mesmas continuam sendo processadas em sua dinamicidade. Devido à nova configuração,

menos essencializada por permitir a vivência de diversas identidades culturais e não apenas

um conjunto de referências estáveis. Assim, traços culturais baseado na diferença de

alimentos, proveniente de várias culturas, imprimem um caráter mais aberto à formação das

identidades culturais.

De modo que, as identidades culturais são pontos de identificação feitos no interior

dos discursos da cultura e da história. Na opinião de Schlüter (2006, p.31):

Ao mesmo tempo em que a alimentação possibilita a ascensão a uma classe

social, ela atua como um fator de diferenciação cultural, pois, ao comer,

incorporam-se não apenas as características físicas dos alimentos, mas

também seus valores simbólicos e imaginários, que, à semelhança das

qualidades nutritivas, passam a fazer parte do próprio ser. Assim, a comida

não só é boa para comer e para pensar [na adjetivação de materialistas e

estruturalistas], mas, inclusive, muito boa para ser e se diferenciar.

Nesse sentido, o ato de comer guarda simbolismos intrínsecos. Mais do que matar a

fome biológica, diz o antropólogo Raul Lody, a boca sacia o apetite por símbolos, que

identificam povos e culturas (2008).

Com o propósito de uma contextualização social, histórica e cultural temos três

enfoques a pontuar neste capítulo: a princípio faremos na primeira parte uma retomada

histórica através das etnias que povoaram Ilhéus e contribuíram com a formação cultural da

região e, neste ínterim, identificaremos os hábitos gastronômicos, costumes e modo de vida

que constituíram identidades culturais processadas no tempo/espaço. Na segunda parte,

trataremos das questões que dizem respeito à gastronomia e hibridismo: como se processaram

as modificações nos hábitos alimentares, as misturas e adaptações de ingredientes em receitas

que foram sendo incorporadas no cotidiano local; e na terceira parte faremos algumas

considerações sobre alimentação e cultura.

1.1 Aspectos gastronômicos das culturas indígenas e das imigrações de etnias

portuguesa, africanas e árabe.

Feliz o homem que come comida, bebe bebida e, por

isso, tem alegria.

Fernando Pessoa – Poeta português

Durante as primeiras décadas que sucederam à chegada dos portugueses ao Brasil,

houve exploração das terras, as riquezas, os frutos naquele tempo desconhecidos pelos

estrangeiros, o conhecimento do que havia em seu solo para que fossem certificado a Portugal

as impressões do novo mundo e sua gente. Gandavo em seu Tratado da Terra do Brasil (1964,

p.83) confere: “esta terra é muito fértil e viscosa, toda coberta de altíssimos e frondosos

arvoredos, permanece sempre a verdura nela inverno e verão; isto causa chover-lhes muitas

vezes e não haver frio que ofenda ao que produz a terra”.

Desde então, notamos uma predisposição fértil nas terras do Brasil as quais receberam

em seu solo além dos alimentos nativos, outros oriundos de diversas partes do mundo com

fácil adaptação ao clima tropical. A vinda dos portugueses e o trânsito dos africanos no Brasil

acarretaram mudanças, especialmente no cultivo de alimentos que resultaram riquezas para

Portugal.

Um desses alimentos foi a cana de açúcar, largamente cultivada nos engenhos na

produção de açúcar, especiaria rara e de grande valor entre os europeus na época, fato que se

deu a partir da segunda década do Descobrimento.

Tal procedimento possibilitou a imigração de europeus vindos de outras regiões que

não necessariamente Portugal, passando posteriormente, a migrar para Ilhéus e outras

Capitanias criadas após o Descobrimento. Conforme Campos (2006):

Porque faltassem mantimentos, a tripulação da Capitanea alvorotou-se [lê-se

alvoroçou-se] mais uma vez, forçando o capitão a aproar para a costa, do que

resultou a nau enxorrar [ancorar] nos baixios da ponta da ilha de Boipeba,

até hoje, por este fato, denominada dos Castelhanos. Era dia de São Felipe e

Santiago, 1º de maio de 1535. Escapou-se a gente para a terra nas

embarcações de bordo. Bem acolhidos pelos índios, estes, dias depois

agrediram-nos à traição, trucidando a maior parte (CAMPOS, 2006, p. 33).

Tal fato confere uma multiplicidade de índios que habitavam a região nessa época.

Uma parte deles fazia-se de amigos dos portugueses e depois os atacavam. Assim, descreve o

português: “outros índios doutra nação diferente, se acham nestas partes ainda que mais

ferozes, e de menos razão que estes. Chamam-se Aimorés, os que andam por esta costa como

salteadores e habitam da capitania dos Ilheos até a de Porto Seguro” (GANDAVO, 1964,

p.65).

Os índios pertenciam a tribos variadas, eram portadores de costumes, hábitos e crenças

consolidados em séculos de existência. Os conhecimentos por parte da cultura indígena iam

desde a caça, o preparo dos alimentos, os rituais, ao remédio natural para cuidar do corpo e da

mente, sem contar que o índio tinha um modo peculiar de viver e se portar. É notório que

dentre os alimentos cultivados,

a mandioca – Manihot esculenta Cranz -, planta nativa da América, muito

provavelmente do Brasil, era o principal produto agrícola das nações

indígenas quando aqui aportaram os primeiros colonizadores. Padre

Anchieta batizou-a de “pão da terra”, e Gabriel Soares de Souza, Manoel da

Nóbrega, Hans Staden, Jean de Léry, Debret, Rugendas, entre outros,

deixaram vívidas descrições e riquíssimas ilustrações de seus diferentes usos

pelos nativos e povos adventícios, o que evidencia a importância do produto

local já nos primórdios da vida colonial (IPHAN, 2006, p. 9).

FIGURA 02: Mandioca (a; b) – colhida no Rio do Engenho – Ilhéus

Fonte: Mércia Cruz

O Sul da Bahia incorporou, por meio da alimentação indígena, o uso da mandioca,

essa, transformada em farinha ou processada a massa prensada, com a qual os índios faziam

os beijus comuns assados no forno de argila e, também, dependendo do modo de preparar a

mandioca em seu processo de fermentação, os índios obtinham a mandioca de puba, o beiju

com goma ou tapioca, polvilhos e ingredientes para os mingaus, já preparados por eles

(FERNANDES, 2007).

Esta é a razão pela qual ainda em tempos atuais nas tribos indígenas que habitam o Sul

da Bahia, tais como as de Olivença, o hábito em ingerir farinha de mandioca constitui uma

necessidade básica desses índios que foi assimilada também pela comunidade local e adotada

por toda região. De acordo com a antropóloga portuguesa Susana Viegas em pesquisa de

campo sobre os tupinambás de Olivença no Sul da Bahia:

De fato, entre os Tupinambás que vivem em Sapucaeira e no Acuípe, a

produção de farinha faz-se há várias décadas não só para o consumo próprio,

mas também para a venda. Foi-me dito que, em um período que é possível

situar na década de 1950-1960, havia unidades de residência de índios-

caboclos que chegavam a produzir quatro sacas de farinha por semana, que

eram levadas “de animal” para vender em Ilhéus (VIEGAS, 2007, p.89).

Cabe pontuar, segundo a referida antropóloga, ainda na década de 1960, um

fazendeiro que cultivou mandioca em grande quantidade contratou os serviços dos índios da

região recrutando a mão-de-obra dos mesmos, pois segundo afirmara, “caboclo sabe mais de

fazer farinha do que o povo branco” (VIEGAS, 2007, p.89). Tal observação vem confirmar a

experiência vivida de habitar em um lugar, cultivar e comer certos tipos de alimentos

derivados da mandioca numa teia de relações sociais e dos sentimentos de pertença comum.

O significado para aqueles que confeccionam a farinha de mandioca nas casas de

farinha, desde a colheita dos tubérculos, a raspagem da mandioca, o prensar da mesma, ralar,

torrar, peneirar e ensacar -, processo que decorre num espaço de 24 horas, traduz um sentido

simbólico que constitui em si um sentido de existência ao prover o alimento para comer, bem

como para aqueles que consomem esse alimento que faz parte do cotidiano e dos hábitos

alimentares da região.

Por ser um procedimento secular incorporado ao cotidiano de Ilhéus e região é que a

mandioca é um ingrediente básico, onipresente, resistente, potente e versátil, de onde se extrai

a matéria-prima para uma série de comidas e bebidas. Para Hue (2009, p.59), “ainda hoje

gomas, polvilhos, beijus, tapiocas, tacacás, bebidas fermentadas, farinhas e medicamentos

produzidos na região amazônica são um testemunho de sua brasileiríssima origem”. Tais

alimentos atravessaram séculos e continuam na mesa de muitos brasileiros.

Dados fornecidos pela referida autora, atestam que a mandioca é uma planta nativa do

sudoeste da Amazônia, foi domesticada por índios tupi a cerca de 5.000 anos, na vasta área do

Alto rio Madeira, de onde se espalhou pelo Brasil adentro, atingindo o Paraguai, a Bolívia, o

Peru e a Guiana. Todavia, foi somente no século XVI, com os Descobrimentos, que a

mandioca – especialmente na forma da farinha e do beiju - começa a se espalhar por outros

continentes (HUE, 2009, p. 59).

FIGURA 03: Processo de colheita da mandioca (a; b) e feitura da farinha (c; d)

Fonte: Projeto Rio do Engenho: Festas, saberes e sabores – ICER/UESC

Foto: Anabel Mascarenhas

Importa sublinhar, que as roças de mandioca eram plantadas pelas mulheres que eram

responsáveis pela confecção das farinhas e bebidas. Ainda hoje, notamos que o hábito de

fazer a farinha é mais disseminado entre mulheres, embora os homens também participem. Os

índios produziam três tipos de farinha: a de guerra, a fresca e a puba (também conhecida

como carimã), presentes ainda nos dias de hoje na mesa brasileira.

No entanto, para que fosse feita a farinha de mandioca, tradição indígena, saberes

milenares dessa cultura se revelaram, visto haver várias espécies de mandioca e, todas conter

veneno. Geralmente, chamam de aipim ou macaxeira os tipos mansos (com pouca quantidade

de ácido cianídrico), que se comem cozidos, já a mandioca que contém elevados teores de

veneno, após processadas, produz maior parte das farinhas e das bebidas.

Para que se efetivasse o processo acima citado,

os índios desenvolveram uma eficaz técnica para transformar uma planta

venenosa num alimento de fácil digestão, de longa durabilidade e fácil

armazenamento: o ácido cianídrico é eliminado pela evaporação provocada

pelos sucessivos cozimentos e secagens por que passam as raízes ao serem

transformadas em farinhas. Como explicava Anchieta: “São venenosas e

nocivas por natureza, a não ser pela indústria humana se preparem para

comer” (HUE, 2009, p.61).

Como verificamos neste estudo, a cozinha amazônica e sua extensão conduzida pelas

tribos indígenas no Brasil, é a mais patente prova da superioridade cultural das civilizações

indígenas na Amazônia. “Durante mais de duzentos anos, entre 1530 a 1790, os europeus

constataram a sua própria inferioridade. Para sobreviver tiveram os europeus que se adaptar

aos costumes da terra, despirem seus trajes de veludo e suas armaduras pesadas” (SENAC,

2002, p.10).

O que confirma à civilização indígena conhecimento para viver em terra considerada

selvagem. Senhores absolutos das terras do Brasil, conhecedores de técnicas para o consumo

de alimentos, remédios e caças dos quais se alimentavam, eles reinavam na região com seus

saberes milenares. Possivelmente, por esse fato, os índios representaram uma presença

inquietante aos primeiros colonos portugueses.

Por outro lado, a criatividade em combinar alimentos para sobreviver, com o tempo,

levou os moradores portugueses do Brasil Colônia a apropriar-se de ingredientes indígenas, a

base de mandioca e seus derivados, criando receitas de bolos variados e pratos assados

acompanhados da farinha de mandioca, também conhecida na época por farinha de pau.

Pero de Magalhães Gandavo (1964, p. 36), ressalta as maravilhas da mandioca: “outra

casta de mandioca que tem diferente propriedade, a que por outro nome chamam aipim, da

qual fazem uns bolos em algumas Capitanias que parecem no sabor que excedem o pão fresco

deste reino”. Outros colonos também deixaram observações sobre a mandioca:

O francês Jean de Lery era um admirador do mingau indígena: “Todavia

essas farinhas prestam-se para papas a que os selvagens dão o nome de

mingau e quando dissolvidas em caldo gordo tornam-se granuladas como o

arroz e são de ótimo paladar”. O senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa

também era um apreciador: “Molhada no caldo da carne ou do peixe fica

branda e tão saborosa como cuscuz” (HUE, 2009, p.63-64).

Da mandioca se faz a farinha de pão, como os portugueses costumavam chamar,

todavia o nome oficial é farinha de guerra, feita da mesma raiz. Tem como diferença da

farinha fresca ser muito seca e mais torrada o que garante uma durabilidade maior sem

estragar. Já a farinha fresca na opinião dos portugueses “é mais mimosa e de melhor gosto:

mas não dura mais do que dois ou três dias. Dessa mesma mandioca, fazem outra maneira de

mantimentos que se chamam beijus; destes usam muito os moradores da terra.” (GANDAVO,

1964, p.36).

Como todos os derivados da mandioca, a diferença entre o beiju e a tapioca está no

ponto de cozimento: enquanto a tapioca é úmida e flexível, o beiju é mais seco, como um

biscoito. O Sul da Bahia possui a tradição herdada dos índios, das casas de farinha, como

mencionado, e também, além da farinha de mandioca, temos a feitura da tapioca e dos beijus,

produtos ainda hoje, comercializados nas feiras e mercados de Ilhéus e região.

FIGURA 04: Farinha de mandioca (a; b), de goma (c) e tapioca em flocos (d)

Feira do Malhado – Ilhéus – Bahia

Fonte: Mércia Cruz

Raízes como o aipim ou macaxeiras, batata doce, carás roxo e branco (inhame) eram

alguns produtos largamente utilizados pelos índios2 e encontram-se presentes no preparo de

vários pratos, nos hábitos alimentares da região Sulbaiana. Conforme dados:

Ainda no início do século XVI, da África vieram espécies de inhames

introduzidos aqui a partir das ilhas de São Tomé, Cabo Verde e da Costa da

Guiné. Gabriel Soares de Sousa, em 1587, anota a excelente adaptação ao

bioma da mata atlântica baiana dos inhames africanos, cujo sabor não era

apreciado pelos indígenas, que continuavam preferindo os carás nativos,

como confirmaria séculos depois Câmara Cascudo. Conta Soares de Sousa:

“Da ilha de Cabo Verde e de São Tomé foram à Bahia inhames que se

plantaram na terra logo, onde se deram de maneira que pasmam os negros de

Guiné, que são os que usam mais dele; e colhem inhame que não pode um

negro fazer mais que tomar um às costas; o gentio da terra não usa deles

porque os seus, a que chamam carás, são mais saborosos, [de quem diremos

em seu lugar]” (HUE, 2008, p.75).

2 Até meados do século XX “nenhum brasileiro, em tempo algum confundiu inhame com cará e sabe, pelo

aspecto e sabor, diferenciá-los indiscutivelmente” – diz Câmara Cascudo, em seu livro, História da

Alimentação (2007). Contudo hoje em dia é bastante discutível essa diferença, afirma Sheila Moura Hue (2008,

p. 74). A palavra “inhame” vem de nyame, da língua worlof, falada na costa do Senegal, significando o verbo

comer. O vocábulo cará é de origem tupi: os indígenas da costa brasileira chamavam de cará os tubérculos

Dioscorea trifida, que hoje em dia encontramos nas feiras livres e mercados por todo o Brasil, muitas vezes com

o nome de inhame.

Além dessas raízes, trazia o índio, dentre seus costumes, o consumo de frutas como o

abacaxi, ananás, abacate, cajus e bananas. Assim, há indícios de que a banana é na verdade

originária do sudoeste asiático, e foi trazida para o Brasil pelos portugueses, das ilhas

Canárias. Com referência a banana, afirma Hue:

Conhecida na Índia como figo e pelos povos brasileiros como pacova, seu

nome hoje mais difundido é provavelmente de origem africana. Um de seus

nomes científicos é Musa paradisíaca, devido ao termo com que os árabes a

denominavam: musa, ou amusa. Pouco versado em árabe, porém um padre

católico afirmou que assim se chamava por ser a fruta das Musas... (HUE,

2009, p.33).

Como tantas outras frutas que viajaram para o Brasil, a banana se disseminou a tal

ponto que o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa acreditava que fosse nativa da

América. Passou esse fruto a fazer parte constante da alimentação brasileira. “Como registra

Gandavo, “assadas verdes passam por mantimento e quase têm substância de pão” (HUE,

2009, p. 33). Também os índios utilizavam largamente em algumas tribos o fruto da banana,

seguidos pelos negros que se alimentavam quase que exclusivamente de banana; em tempos

de fome o fruto era de grande valia até para os europeus.

Com referência ao abacaxi também conhecido como ananás, Ananas comosus, da

família das bromélias, provavelmente originária do Brasil e depois irradiada por toda América

do Sul e Central até os tempos atuais é uma fruta bastante apreciada pelo seu sabor especial;

“antes da descoberta de Colombo, o abacaxi já era cultivado em extensas regiões da América”

(HUE, 2009, p. 23).

Há indícios de que tenha sido uma das primeiras frutas a serem levadas para as

colônias portuguesas e espanholas; em 1518 já estava plantada no Oriente e logo foi

introduzida na África (HUE, 2009). O fruto se espalhou por todo globo, sendo largamente

apreciado, desde o Descobrimento os portugueses utilizava o abacaxi para doce e compota.

O caju, outra fruta típica do Brasil, foi descrita por Pero de Magalhães Gandavo em

História da Província de Santa Cruz (1964, p.86): “a esta fruta chamamos caju; tem muito

sumo, e come-se pela calma para refrescar, porque é ela por sua natureza muito fria, e de

maravilha faz mal, ainda que se desmande nela”. A castanha de caju também era bastante

apreciada, desde então, comparando-a assada a uma amêndoa, só que mais doce ainda.

FIGURA 05: Frutas regionais: caju (a; b), acerola (a; b), cupuaçu (c),

cacau (c), abiu (d).

Fonte: Mércia Cruz

Consta na história da alimentação que “o índio já utilizava a pimenta de todas as cores,

sabores e cheiros” em sua alimentação (FERNANDES, 2007), desde a Amazônia, por volta

de 1650 para cozinhar os peixes e mariscos e o uso de caldos na alimentação. A respeito dessa

especiaria ressaltamos que,

as pimentas do Novo Mundo suplantaram o milenar e exclusivo reinado da

pimenta-negra indiana, a que chamamos pimenta-do-reino. As nossas

pimentas (da mesma família da batata, do tomate, da berinjela, do jiló e do

fumo) são as únicas que “queimam”. As outras, como a pimenta-negra – um

dos impulsos das grandes navegações -, têm sabores muito mais discretos e

são apenas ardidas, possuem somente as moléculas das famílias das

Piperidinas, enquanto as nossas têm as potentes moléculas da Capsaicina.

Hoje as pimentas sul-americanas dominam o comércio das especiarias

picantes do mundo: cerca de um quarto da população mundial consome um

grande número de Capsicum fresca ou processada. A origem do gênero

Capsicum é a região compreendida entre o sudeste brasileiro, nas montanhas

da mata atlântica, e a parte baixa da Bolívia; registros arqueológicos mais

antigos de Capsicum remontam a 9 mil anos (HUE, 2009, p. 95-96).

Nessa perspectiva, as pimentas eram consumidas e, também utilizadas de diversos

modos pelos índios brasileiros e demais povos da América do Sul e Central. O conhecimento

que esses faziam das pimentas iam além dos culinários, sendo utilizadas também como

remédios. Os portugueses aprenderam com os índios a utilizá-la. É conveniente dizer que essa

especiaria é a alma da cozinha baiana que é também consagrada aos condimentos. Terra

povoada por índios e negros em grande quantidade, o Sul da Bahia e toda a sua extensão até o

Recôncavo têm na sua cozinha o uso da pimenta para destacar sabores, fazer a boca arder e

cobrir de graça os pratos elaborados com a tradição das cozinhas indígena e africanas.

FIGURA 06: Pimentas: malagueta (a), pimenta de cheiro (b; c),

pimenta murici (d)

Fonte: Mércia Cruz

Com base na história da alimentação podemos afirmar que “o uso abundante e

cotidiano da pimenta na cultura indígena brasileira é relatado por quase todos os que

escreveram sobre o Brasil no século XVI” (HUE, 2009, p. 96). O nome genérico na língua

tupi para pimenta era cuiém. Há relatos dos portugueses que essas pimentas de uma maneira

ou de outra queimavam muito, contudo os índios a usavam com bastante gosto. Em latim,

piper, originou o nome “pimenta”, especiaria de grande variedade e sabores próprios.

O tipo de pimenta cuiém era seca e pilada com sal pelos índios, quando estes passaram

a fazer uso do mesmo, formando uma mistura que chamavam juquiraí, a qual os portugueses

enchiam seus saleiros provando a mistura de alimentos provocada pelo contato de povos e

culturas tão diversas e pela necessidade de saciar a fome. Os índios também comiam a

pimenta com folhas de taioba cozidas com peixes, tinham o hábito de cozinhar o peixe na

água e sal com muita pimenta verde. Assim, a pimenta era consumida de modo variado até

mesmo com a farinha de mandioca e em caldos e pirão feito com farinha, denominado de

mingau pelos índios.

De modo que, quando os europeus chegaram ao Brasil, os naturais da terra consumiam

grande variedade de pimentas. “Foram observadas várias espécies. Hans Staden nos conta:

“Há duas qualidades de pimenta naquela terra. Uma é amarela. Outra vermelha. “Ambas as

qualidades porém crescem da mesma maneira” (HUE, 2009, p. 97). Tais pimentas são

comparadas ao tamanho do fruto da roseira brava, que cresce no espinheiro.

As pimentas miúdas são citadas como pimentinhas parecidas com a anterior. Não

obstante, os índios desenvolveram certa variedade de pimentas e as conheciam muito bem. Ao

contato com essa especiaria brasileira os portugueses afirmaram: “maravilhosas drogas, como

são pimentas de muitas sortes e castas, grandes e pequenas, e ainda outras que são doces no

sabor” como diz Ambrósio Fernandes Brandão, no Diálogo das grandezas do Brasil (HUE,

2009, p. 97).

Em consideração a variedade de pimenta e seu emprego na culinária dos tempos

coloniais notaram os viajantes navegadores que,

o condimento incomparável para o brasileiro é a pimenta, a pimentinha,

companheira sem rival, transformando o peixe cozido em obra-prima,

ressaltando os valores sápidos de todas as iguarias, aceleradora digestiva,

masculinizando o sabor. A malagueta esmagada simplesmente no vinagre, é

o prato permanente e de rigor para o brasileiro de todas as classes, escrevia

Debret, entre 1816 e 1831 (CASCUDO, 2007, p. 478).

Ainda com referência a essa especiaria, afirma Cascudo (1983) que, na África, a

pimenta mais antiga era a que denominou malagueta; a Afromomum melegueta (Roscoe).

Contudo, havia também na África as Piperáceas, pimenta-de-rabo, pimenta de Portugal,

trazidas inicialmente de Benin. A pimenta-do-reino, Piper nigrum, vinha da Índia.

Outro dado que interessa é sobre a difusão rápida que os portugueses fizeram das

pimentas brasileiras pelo mundo através de suas rotas marítimas e suas colônias

ultramarinhas. “Primeiro na África. Não se sabe ao certo quando e por qual porto as pimentas

Capsicum foram introduzidas nas colônias africanas, mas aceita-se que já lá estavam na

primeira década de 1500” (HUE, 2009, p. 100).

O curioso nessa história refere-se ao fato de quando as pimentas vermelhas sul-

americanas foram introduzidas nas colônias africanas, elas suplantaram as nativas, e se

tornaram um elemento fundamental na culinária do continente. Ao contrário do que muitos

afirmam a pimenta ardida não foi introduzida no Brasil pelos africanos, ela saiu do Brasil

levada pelos portugueses e se espalharam além da África para a Índia, para a China e todo o

sudeste asiático, onde se fundiram intimamente com a culinária local.

Então, não foram os africanos que apimentaram a cozinha brasileira (ou a mexicana ou

a caribenha), e sim o contrário3. Afirma Sheila Moura Hue em seu livro Delícias do

Descobrimento (2009): os povos nativos das Américas sempre comeram com muita pimenta,

desde o atual México até a parte sul do Brasil. Logo, torna-se imperioso pensar mais numa

3 Os primeiros botânicos, tendo conhecido as pimentas sul-americanas nos países asiáticos, onde eram usadas

abundantemente, pensaram que fossem originárias da Ásia e deduziram que tinham sido introduzidas na América

após o Descobrimento. A ilustração mais antiga de uma pimenta Capsicum foi publicada em 1542, na obra De

historia stirpium, de Leonhartus Fuchsius, médico e professor alemão e um dos patriarcas da botânica que

descreveu algumas variedades de pimentas sul-americanas, afirmando serem asiáticas, erro perpetuado por

vários séculos. (...) somente em 1882, o botânico francês De Candolle, em Origine dês plantes cultivées, fez

justiça à origem sul-americana das mundialmente apreciadas pimentas Capsicum (HUE, 2009, p. 100-101).

convergência de paladares do que numa influência alienígena no desenvolvimento de uma

cozinha apimentada brasileira.

Com referência a especiaria denominada “pimenta” relatada na História da

Alimentação encontramos:

A primeira que está reinando na África é uma americana, uma solanácea,

Capsicum, levada do Brasil pelos portugueses e que conquistou

indispensável e definitivo emprego na culinária africana, desde os fins do

século XVI. Ao fruto da Capsicum diz-se “malagueta”, numa transferência

de prestígio, porque a verdadeira malagueta aposentou-se na simpatia negra.

Essa pimenta brasileira, Capsicum frutescens, ficou sendo o mpile-mpile,

ataré, piri-piri, ndungo, uziza, senhora e dona da cozinha equatorial africana,

sertão e litoral, nas suas variedades ácidas e requeimantes, vencendo e quase

sempre afastando, açúcar e sal. Os Ibos da Nigéria tem uma sopa de

pimentas (CASCUDO, 2007, p.479-480).

Numa perspectiva antropológica, podemos dizer que há uma imensa variedade de

pimentas utilizadas na chamada “cozinha baiana” e na cozinha brasileira em geral, cuja

origem remete a América, a origem pré-colombiana e na sua grande maioria pertencem ao

gênero Capsicum da família das solanáceas. Com a introdução das cozinhas africanas no

Brasil, “o uso das pimentas dessa dupla influência – indígena e africana – se estendeu, já no

século XVIII, para as mesas das classes dominantes num habito gastronômico generalizado e

marcante” (FERNANDES, 2007, p.20).

Quanto à alimentação indígena, como foi dito, a multiplicidade de nações existentes,

possibilitou a multidiversidade de alimentos, onde a maior contribuição está na variedade de

preparo e modo de comê-los disseminados entre as tribos indígenas e, também nos

acompanhamentos e nas misturas, nas proibições e liberações que a sabedoria e os rituais da

cozinha permitem fazer.

FIGURA 07: Pimentas – pimenta doce, de cheiro (a; b; d) e pimenta malagueta (c)

Fonte: Mércia Cruz

Além desses alimentos, o milho cultivado pelos índios, uma espécie denominada “Zea

mayz, é uma revelação ameríndia, e nenhum outro povo da terra o provou antes que o Novo

Mundo aparecesse” (CASCUDO, 2007, p.109). Há indícios de que o milho integrava a

alimentação indígena, e era cultivado há cinqüenta séculos na América, contudo não

constituía determinante no Brasil como a onipoderosa mandioca e a macaxeira (aipim).

Cronistas portugueses, viajantes na época do Descobrimento, relatam que o milho

americano apresentava características de outras espigas que já conheciam, como:

O milho–painço (milhete), um cereal antigo já cultivado pelos egípcios, o

milho zaburro (sorgo), o milho miúdo (outro tipo de painço) e o milho de

Bissau (um painço africano), plantas do norte da África cultivadas na

península desde o tempo da ocupação árabe ou introduzidas pelas cruzadas.

O vocábulo “milho” já se encontra em antigas obras portuguesas como as

crônicas de Fernão Lopes, do século XIV, mas refere-se às espécies já

conhecidas e não ao milho da América, o zea mays, espécie domesticada no

centro-sul do México (HUE, 2009, p.84).

O milho cultivado em nosso país não teve o domínio da orla do Pacífico, América

Central e do Norte onde era soberano absoluto, mas pertencia à classe dos familiares que não

atingem o posto da indispensabilidade. Na língua tupi era designado como abati que significa

“cabelos brancos”, indicando os filamentos das espigas de milho. Para Cascudo (2007,

p.107),

alimento mesmo não era. Gabriel Soares de Sousa dava parcimoniosa

notícia: “Esse milho come o gentio assado por fruto, e fazem seus

vinhos com ele cozido, com o qual se embebedam, e os portugueses

que comunicam com o gentio, e os mestiços não se desprezam d’ele, e

bebem mui valentemente”. E não era muito apreciável aos escravos

africanos. Plantam os portugueses este milho para mantença dos

cavalos, e criação das galinhas e cabras, ovelhas e porcos, e aos negros

de Guiné o dão por fruta, os quais o não querem por mantimento

sendo o melhor o da sua terra.

No entanto, após cem anos de colonização o milho ganha o terceiro lugar na escala dos

mantimentos, antecedido pelo arroz, contrariando surpreendentemente todas as informações

anteriores. Por volta de 1618, o milho dava bolos, havendo ovos, leite, açúcar e a mão da

mulher portuguesa para a invenção, é o que ressalta Cascudo na sua História da Alimentação

(2007, p. 108).

Fato esse, que evidencia a influência indígena que gostava, ainda hoje gosta do milho;

tal alimento era utilizado mais como passatempo, quem fez melhor aproveitamento do milho

foram os portugueses (bolo, canjica, pudins) e os africanos (papas, angus, mungunzás).

Obviamente, tanto os portugueses quanto os africanos tiveram o milho da mão indígena e

aprimorou o seu sabor em receitas diferentes, herança de saberes ancestrais.

Desse modo, a hibridização do milho trouxe para o cardápio nordestino e,

evidentemente, o território brasileiro, uma variedade no modo de preparo do alimento que

serviu de base para receitas variadas, disseminando a criatividade entre portugueses e

africanos inspirados no contato culinário com a cultura indígena.

Segundo Câmara Cascudo (2007) os pratos de origem africana eram: mocotós, isto é,

mão de vaca, caruru, vatapá, acassá, acarajé, abará, arroz de coco, feijão de coco, angus,

mingaus, pamonhas, canjicas, ou papas de milho, pão de ló de arroz, o mesmo de milho,

mungunzá dos negros, peixe assado, angu, mingau de carimã, dentre outros. Cabe pontuar que

“o uso do milho pelo negro é produto da convergência e fusão das culinárias indígena,

africana e portuguesa” (CASCUDO, 2007, p. 111) e tais produtos continuam a ser vendidos

mesmo depois de duzentos anos, período em que o negro, livre, comercializava esses produtos

nas ruas da Bahia.

Sem dúvida, o milho ganhou grande importância e valor com o avanço dos séculos, até

mesmo com referência à sua origem, fator largamente discutido na América, pela incontável

variedade e soberania do produto na América pré e pós-colombiana e demais países latinos.

A contribuição do português, portador de hábitos eurocêntricos, fez-se através do uso

do azeite, dos queijos, marmeladas, vinhos, vinagre, paio, presunto4, aguardentes vinícolas, no

preparo de carnes salgadas além das especiarias, das receitas de doces e no preparo dos peixes

de água doce e salgada, o uso do tomate, da batata, base de sopas e ingrediente indispensável

do bacalhau cozido, assado e dos bolinhos (FERNANDES, 2007).

Para se ter uma ideia mais clara, a gastronomia está ligada à mineração e ao

desenvolvimento do comércio de importação e comercialização de alimentos. Esses, por sua

vez, são responsáveis pela criação de novos hábitos alimentares. O que denota a troca de

mercadorias, alimentos e especiarias vindos pelas mãos de portugueses, cuja origem procedia

da Índia, Europa, Ásia e África. Também eram levados alimentos do Brasil pelos portugueses

e estrangeiros que nesse território geográfico desembarcavam na época quinhentista rumo a

Portugal e outros países.

Notadamente, por ocasião da chegada do português, os índios passaram a ter

conhecimento do preparo de alimentos com sal e com açúcar. Novos temperos e misturas

foram incorporados aos poucos na alimentação de ambos. Conforme Andrade (2003):

Os tupis já estavam no litoral há mais de mil anos, quando os portugueses

chegaram com armas mais eficientes e táticas de guerra mais avançadas,

expulsando-os e exterminando-os.[...] Por ocasião da chegada dos

portugueses a Ilhéus, os tupinikins, que habitavam o litoral, eram pacíficos,

viviam de caça e de pesca, e além do cultivo da terra, construíam casas de

taipa e cobertas de palha. Inimigos mortais dos aimorés, foi fácil a aliança

com os portugueses. Os índios ensinaram os portugueses a comer alimentos

à base de milho e mandioca, por exemplo, cuscuz, beijus, farinha; de folhas,

como a taioba, bredo de veado. Passaram também ao uso de redes, canoas e

jangadas (ANDRADE, 2003, p. 34).

Notamos que a participação do português iniciou-se mesmo com a usufruição dos

produtos e revelação das potencialidades que transplantavam atribuir “valor de troca”. Além

disso, esse povo tinha conhecimento de práticas de cozinha enriquecida pelos produtos

atlânticos e índicos que manipulou por séculos.

A culinária portuguesa, por certo, contribuiu largamente na história do Brasil sob o

viés da gastronomia -, o que pode ser constatado nos textos de missionários, senhores de

engenho, aventureiros, cronistas e viajantes que por aqui aportaram. A mistura de

4 As variedades principais em Portugal são o presunto de Chaves e terras do Barroso em Trás-os-Montes e o

Alentejano (Ibérico) que em Olivença denominam “Jimão”. Os primeiros registros referentes ao presunto

remontam ao período do Império Romano, embora os primeiros porcos da Península Ibérica tenham sido

trazidos pelos Fenícios. As atuais raças resultam do cruzamento de porcos com os javalis que por cá existiam.

Fonte: http://://pt.wikipedia.org/wiki/presunto. Acesso em 24/11/2009.

ingredientes, transportados com as Navegações, possibilitou a criação de novos pratos e

hábitos alimentares que foram se reconfigurando e delineando a tradição da cozinha brasileira.

Conforme Cascudo (2007) no Portugal quinhentista se comia desde o manjar branco à

perna de veado, cação, tubarão, caldos de peixe, pão farto, muita caça e pescaria. A ceia de

dezembro era regada com perdiz, queijos e castanhas. Fazia o português o uso do azeite,

manteiga e leite. As receitas eram variadas com empadas de sardinha, acompanhadas de frutas

como o melão, ameixas, cerejas e uvas.

O uso de carnes como vacas, bois, cabras, carneiro e ovelha constitui parte do cardápio

português e foi trazido para o Brasil junto à instalação desses povos no novo mundo. De

acordo com Cascudo (2007, p.233), “a sardinha era rainha, exportada até para Constantinopla.

Cevada. Centeio. Aveia. Trigo. Trigo para pão branco, fermentado sob o sinal da Cruz pela

mão aldeã”. Há relatos de que os milhos-miúdos, milhetos e painços, dando broas e pães,

eram empregados na culinária, sendo substituído em momentos pelo Zea mays, milho grosso,

milhão.

O que mostra a tradição alimentar nesse período é que os portugueses prestaram

contribuições supremas ao domínio do paladar: valorizavam o sal e revelaram o açúcar aos

africanos e amerabas do Brasil. Tal influência mudou muito dos hábitos alimentares dos

referidos povos. Cabe pontuar que a mulher portuguesa valeu-se de um ingrediente que

sempre o negro ignorou e o indígena desatendeu: o ovo de galinha (CASCUDO, 2007).

Com o emprego do ovo de galinha, utilizado pela culinária portuguesa, muitas receitas

foram criadas tendo por base alimentos como a mandioca, o milho, o aipim, a puba e outros

alimentos que integravam a alimentação da região Sulbaiana na época das Capitanias

hereditárias, e, nos dias atuais, essas receitas compõem alguns dos cardápios de residências,

hotéis e restaurantes de Ilhéus e região.

Com base nas misturas e novas adaptações de alimentos, observamos que “os

portugueses eram apreciadores dos carás, de que faziam doces e também comiam em pratos

salgados” (HUE, 2009, p.75). Outros alimentos e especiarias cultivados pela cultura

portuguesa também foram inseridos no Brasil, a exemplo do gengibre que se adaptou com

facilidade ao solo brasileiro. Frutas tais como a melancia, o figo, a tâmara, limas e a uvas

também foram transportadas para o Brasil pelas mãos dos portugueses.

Além das aves, frutas, especiarias, alimentos diversos, e bebidas, trazidas pelos

portugueses para o Brasil, no mesmo ínterim chegaram com os portugueses: os temperos e as

hortaliças que não existiam no novo mundo. Hoje, esses ingredientes estão presentes na

cozinha brasileira no preparo de pratos variados que compõem a cozinha regional. Assim,

temos pelas mãos portuguesas, a alface, o coentro, salsa, cominho, hortelã, cebolinha, alho,

tanchagem, agrião, manjericão, alfavaca, chicória, cenoura, acelga, espinafre, dentre outros -

todos imperando na formação de iguarias características de uma culinária híbrida.

Importa ressaltar que “os recursos hortenses trazidos de Portugal eram suficientes, mas

a portuguesa lançou mão dos locais: o maxixe, os grelos, os bredos, os tomates, o tomilho,

tominho, enriquecendo a dieta diária de seu homem” (CASCUDO, 2007, p. 245). Os hábitos

cultivados na preferência dos sabores perfumados dos temperos e seus condimentos,

recusando desse modo, a comida seca, crua, dando prioridade aos ornamentos, caldos e

cheiros, são costumes alimentares que conferimos nos pratos da cozinha local.

Partindo dessa compreensão, uma fase de adaptação entre a cultura indígena e a

cultura portuguesa passa a ser processada, sem isolar a participação efetiva da cozinha

africana. Para Burke (2006, p. 91) “a adaptação cultural pode ser analisada como um

movimento duplo de des-contextualização e re-contextualização, retirando um item de seu

local original e modificando-o de forma a que se encaixe em seu novo ambiente”. O processo

de “tropicalização” também se referindo à culinária, é um exemplo de adaptação cultural. A

tropicalização, segundo Burke (2006), ocorre com a mudança de elementos inerentes a uma

cultura para serem adaptados à outra cultura.

O comércio a longa distância, especialmente o comércio entre a Europa e a Ásia no

início do período moderno, proporciona exemplos fascinantes de interação e hibridização

cultural. Todavia, até que se efetivasse uma troca de alimentos entre os povos que migraram

para o Brasil, o que se nota é um período de registro de impressões por parte do português em

relação à terra nova e constatação do modo simples de vida dos nativos. Fato que está

constatado na Carta de Caminha:

Neste ilhéu onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e

descobre muito a areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos, foram

alguns buscar mariscos e não acharam; só acharam alguns camarões grossos

e curtos, entre os quais vinha um camarão muito grande e grosso que em

nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de

ameijoas mas não toparam com nenhuma peça inteira (SIMÕES, 1999,

p.46).

De acordo com Simões, em O achamento do Brasil (1999), há de se pensar que

Caminha descrevia o nosso tão regionalmente conhecido pitu. Já com referência as cascas de

berbigões e de ameijoas, queria expressar nome vulgar de diversas espécies de moluscos

comestíveis e muito conhecidos por estes nomes em Portugal (mexilhões, búzios). Foi o

primeiro contato com os frutos dessa terra.

Na Carta de Caminha ao El- Rei D. Manuel consta também algumas impressões do

modo de vida do índio e da nova terra, onde plantando tudo se dá:

Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem

ovelha, nem galinha, nem nenhuma outra alimária que seja acostumada ao

viver dos homens. Nem comem senão desse inhame que aqui há muito e

dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto

andam tais e tão rijos e tão nédios, o que não somos nós tanto com quanto

comemos de trigo e legumes (SIMÕES, 1999, p.55).

Ainda referindo-se à carta de Caminha, observamos a impressão dos portugueses ao

explorarem as terras do Brasil: “Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e

muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muitos bons palmitos.

Colhemos e comemos deles muitos” (FERNANDES, 2007, p. 30). Em sua narrativa, dedica

bastante espaço aos palmitos descritos no famoso documento.

Afirma Campos, em ofício de 1802 contido em Crônica da Capitania de São Jorge

dos Ilhéus (2006), ao referir-se aos costumes e à psicologia dos povos daquela época, em fins

do século XVIII e início do XIX: eram vistos como povos inertes, desambiciosos, sem

estímulos. Sua alimentação consistia, especialmente, em mariscos, abundantes nos mangues e

que, sobretudo, apreciavam do saboroso peixe dos rios e do mar, também a caça era bastante

apreciada:

[...] compraziam-se perfeitamente com a inatividade e o desconforto,

preferindo ao mais fino guisado o camarão com limão e pimenta. Pois olhem

que nesse particular o desembargador de Lisboa carecia de razão em sua

crítica aos hábitos do povo da comarca de Ilhéus (CAMPOS, 2006, p. 273).

A idéia que os portugueses faziam dos habitantes locais mostra a diferença entre as

culturas indígena e européia. Os costumes, modo de vida, a conveniência local que segundo

Certeau (2008, p.49), “é simultaneamente o modo pelo qual se é percebido e o meio

obrigatório de se permanecer submisso a ela, no fundo, ela exige que se evite toda dissonância

no jogo dos comportamentos e toda ruptura qualitativa na percepção do meio social”.

A conveniência da cultura se encontra no lugar da lei. O que a um povo parece

familiar, específico e natural, a outro pode parecer estranho, avesso, e desconfortável. Na

análise antropológica entramos no terreno do simbólico que estabelece a “regra cultural”, e

como reitera Certeau (2008, p. 51) “da regularização interna dos comportamentos com efeito

de uma herança (afetiva, política, econômica, etc.)”.

Ao ser conduzido o raciocínio acima a uma reflexão sobre o que se come hoje em

Ilhéus, certos alimentos, a exemplo do pitu, estiveram no cardápio por séculos na convivência

diária e isso aparece na própria literatura da região narrando um fato real:

Come-se pitu com ovos escalfados em: Tieta do Agreste. Amigo de Jorge

Amado de toda a vida, o último coronel do cacau Raimundo de Sá Barreto,

alma generosa, gosta de dar presentes. Quando o escritor estava na Bahia,

não era surpresa ver desembarcar na porta da Rua Alagoinhas um isopor

enorme cheio de pitus. Eles vinham direto de Ilhéus, o fazendeiro sabia da

predileção do amigo pelos crustáceos d’água doce do rio Cachoeira. Às

vezes Raimundo vinha pessoalmente trazê-los, comia um bolo confeitado,

tomava um cafezinho, batia um papo animado; enquanto isso na cozinha,

Eunice já estava preparando os pitus. Era certo ter para a janta com ovos

escalfados, que é a maneira perfeita de prepará-los, na opinião geral da

família (AMADO, 2004, p. 162).

Numa ótica que explora o desenvolvimento econômico por volta do século XVIII,

informa Campos (2006), incrementava-se a agricultura e o comércio na região de Camamu, os

moradores exportavam farinha de mandioca e café; Maraú produzia farinha e açúcar; e no Rio

de Contas, o plantio de mandioca superava o dos outros distritos, ocupando as roças uma

extensão de sete a oito léguas pelo rio acima:

Das costas de Boipeba partiam navios carregados de certo molusco univalve,

o zimbo, para a costa d’África, onde, especialmente no Congo e em Angola,

corria como dinheiro. De tal sorte, o continente negro teve a sua “casa da

moeda” nas praias da Capitania dos Ilhéus. Depois de 1779, foi que os

traficantes de escravos entraram a explorar os ricos depósitos de Mar

Grande, de onde tiraram fartos carregamentos (CAMPOS, 2006, p.241).

A comercialização dos produtos plantados e colhidos na região Sulbaiana, e em

extensão em todo território do Brasil, caracteriza um momento de mudança na produção e

comercialização de tais produtos, gerando riqueza para Ilhéus e seu entorno, a exemplo do

cacau que aos poucos foi substituindo a cana-de-açúcar e, após um século do seu plantio

passou a ser o principal produto da região Sul da Bahia.

O plantio do cacau no município de Ilhéus se deu aproximadamente no ano de 1752.5

Com a consolidação do produto deu-se início a fase da “civilização cacaueira”, fase de

5 Há algumas divergências com referência ao início do plantio do cacau (Theobroma cacao) por autores e datas.

Para José Carlos Vinháes (2001, p. 213), admite-se que o cultivo oficial do cacau no Brasil teve lugar no início

de 1679, quando a Carta Régia dessa época autorizou que os colonos plantassem as amêndoas em suas terras, o

progresso e riqueza para Ilhéus e região. Há indícios na história de Ilhéus da vinda de colonos

alemães, em 1822, e de outras nacionalidades, que migravam em busca de trabalho, pois disso

resultaria prosperidade para a terra (CAMPOS, 2006, p.335).

É notório que os negros eram portadores de saberes ancestrais que foram incorporados

à alimentação do português e do índio, favorecendo o processo de assimilação desses

fenômenos alimentares. Devido à presença do negro na região Sul da Bahia, a comida do

azeite de dendê se fez notar; a dieta africana firmou-se e consolidou-se a cozinha baiana,

desde o Recôncavo, na região do mar, às portas do sertão.

Contudo, apesar da contribuição africana trazida pelos escravos em união com a

cozinha portuguesa, o que notamos é uma mistura processada no modo de fazer das

respectivas cozinhas sem deixar de contar com o conhecimento da cultura ameríndia. Foi

desse modo que surgiu a moqueca, ensopado de técnica portuguesa que se utiliza do dendê

africano e tem como resultado um prato tipicamente baiano.

Assim, a moqueca constitui um prato de ensopado de peixe, carne, mariscos ou

camarão, com leite de coco, azeite doce ou azeite dendê, temperos e muita pimenta-de-cheiro

(herança indígena), próprias para as comidas de peixe. Segundo dados colhidos pelo O Globo

(1995, p. 9) “o vatapá talvez seja filho direto da coroa portuguesa acrescido do dendê e

temperado com mil-e-um sabores apetecidos pelo paladar africano. Afirma-se que não há na

África nada igual à cozinha baiana, a não ser os chamados pratos brasileiros levados por

africanos”.

Dentre os alimentos que vieram para o Brasil com a chegada do negro africano,

especialmente para a Bahia, destaca-se, portanto, o dendê nativo da África. Segundo dados

colhidos por Edison Carneiro,

até o primeiro quartel deste século, o óleo era chamado universalmente

“azeite de cheiro”, expressão que atualmente, se designa o óleo mais

refinado. Parece, com efeito, muito recente este nome de dendê. O dendê

constitui um resultado benéfico do comércio negreiro com a África, pois

fornece um óleo ou azeite de grande riqueza em provitaminas A. Não

trouxeram os escravos, mas os traficantes. Parece viável a suposição de que

os primeiros indivíduos dessa espécie vegetal tenham vindo da Zona então

conhecida como Costa de Mina que na verdade abarcava a Costa de Ouro do

Marfim e a Costa dos Escravos, na segunda metade do século XVIII

(JORNAL DIÁRIO DA TARDE DE ILHÉUS, 28/6/1961 – 3º Caderno).

que parece ter sido feito no Pará, porém sem sucesso. Somente em 1746, Antônio Dias Ribeiro plantou na

fazenda Cubículo, na margem direita do Rio Pardo, então Capitania de São Jorge dos Ilhéus, hoje município de

Canavieiras, as sementes que recebera de Luís Frederico Warneau, provenientes do Pará. [...] Somente em1752 o

plantio chegou mais ao norte da Capitania, atingindo a zona da vila dos Ilhéus, onde encontrou solos férteis e

umidade adequada.

O habitat natural dessa palmeira denominada como Elaeis guineensis é originária da

costa ocidental africana, é considerada a mais importante palmeira da África e a vinda desse

produto para o Brasil se deu, conforme enfatizado, com os traficantes de escravos; esses

acrescentaram o dendezeiro à paisagem natural do Brasil, concentrando na Bahia uma das

plantas fundamentais da economia e da sociologia da costa ocidental da África.

Cabe pontuar que tal planta “tem inflorescências masculinas e femininas separadas,

crescendo, uma ou outra, na axila das folhas. Por certo os portugueses não podiam ficar

insensíveis a essa planta e ao seu valor” (LODY, 2009, p. 9). A maior prova disso são as

cartas da época das grandes navegações, ganhando destaque essa palmeira africana que

permanentemente aparecem nas ilustrações da época.

Por certo, o dendezeiro natural da costa africana, e nela se incluem Guiné-Bissau, São

Tomé e Príncipe e Angola tem na atualidade um avanço técnico que permitiu a expansão da

cultura da palmeira nos países ecologicamente favoráveis da África Ocidental, do Oriente e da

América do Sul (Lody, 2009).

É sabido que as trocas e intercâmbios que se deram, a princípio, pela mão dos

portugueses desde o século XVI possibilitaram a construção do paladar, das receitas, como foi

dito, o modo de fazer e servir da predominante população afrodescendente, especialmente no

Recôncavo baiano. De acordo com o antropólogo Lody (2009):

Embora europeu, o homem português que chega ao Brasil é um homem

africanizado, civilizado por povos do norte da África – o Mangreb -, visto a

marcante presença mouro-muçulmana por mais de sete séculos na Península

Ibérica. Trata-se, sem dúvida, de um conjunto de práticas culturais

associadas aos interesses econômicos não apenas por meio da comida, mas

também através de um conceito de mundialização, de ampliação real de

fronteiras além da Europa. É uma presença que se recupera no português que

falamos, nos cantos e danças tradicionais e, em especial, nas escolhas de

frutas cítricas, hortaliças, nos bons hábitos dos banhos, das fontes, dos

azulejos, dos jardins internos das casas, dos pomares (LODY, 2009, p. 11).

Nesse entendimento, a África chega ao Brasil por duas vertentes: a primeira

compreendendo do século VIII ao XV; a segunda, a partir do século XVI, estendendo-se por

mais de 350 anos com o hediondo tráfico de homens e mulheres na condição escrava, todos

chegados do continente africano (LODY, 2009, p. 11). Com isso, Portugal acumulou uma rica

experiência social e cultural na África por um período de mais de dez séculos, ou seja, mil

anos.

Constatamos com tal depoimento, acima, que o arcabouço cultural adquirido como

herança dos portugueses são traços da cultura baiana de modo particular, e de modo geral, de

outras regiões do Brasil, presentes na culinária e saberes próprios que atravessaram séculos de

existência se modificando, mas também preservando aspectos essenciais.

Foi assim que o dendê ao chegar à Bahia fez com que os nativos apropriando-se de

técnicas individuais desenvolvessem uma cozinha afrodescendente, considerada em verdade,

afrobaiana. Não obstante, essa cozinha impere entre gostos variados, ela convive

pacificamente com outras heranças gastronômicas, lembrando que não é todo dia que se come

com dendê na Bahia.

Apesar da confluência de tais etnias que gerou uma cozinha específica e variada,

muito antes desse encontro entre índios, portugueses e africanos, os índios já desenvolviam

técnicas no preparo de sua comida. Posteriormente, diante das dificuldades advindas da

escassez do alimento, o escravo valeu-se de sua criatividade e reunindo ingredientes

elaboraram novos pratos.

A feijoada, por exemplo, causa certa controvérsia, pois para alguns autores ela nasceu

nas senzalas, sendo uma criação culinária dos escravos para saciarem sua fome, para outros

autores não nasceu nas senzalas, o fato é que, hoje a feijoada integra um dos pratos

característicos da cozinha tradicional do Brasil.

Do mesmo modo, faz parte do cardápio baiano o acarajé e o abará – frutos da herança

ancestral dos escravos e da inventividade de saberes e de sabores testados pela necessidade do

alimento e pelas circunstâncias sócio-culturais vividas no Brasil colônia até tempos atuais.

Pratos como o xinxim de galinha, caruru, efó, arroz de Hauçá além dos já citados, mapeiam a

geografia do dendê ou apenas integram o gosto no uso da dosagem de temperos e mistura de

ingredientes; e na ausência do dendê, na elaboração de receitas feitas com outros ingredientes,

surge o sarapatel e a feijoada.

Convém notar que a presença dessas três primeiras etnias na história da alimentação

do Brasil, “reflete a base étnica iniciante, projetada e viva, tendo a justificativa do trabalho

grupal em sua modalidade específica” (CASCUDO, 2007, p. 372). Os nativos indígenas eram,

por assim dizer, fiéis aos crus e assados, já o negro trazido da África, comia o que lhe era

oferecido na condição de escravo, mas tinha um paladar específico e utilizava entre seus

hábitos alimentares muito mais o uso do alimento cozido e os temperos frescos, por influência

do colonizador português.

O certo é que os costumes e hábitos alimentares das três primeiras etnias que se

encontraram na Bahia e, de modo geral, espalharam-se pelo Brasil, possibilitaram misturas e

consequentemente, um cardápio variado e rico. De acordo Cascudo (2007, p. 377), “a cozinha

do português no Brasil exerceu uma influência irresistível sobre os africanos e amerabas, o

que não se verificou na África Ocidental e Oriental e Ásia”.

O fato de o Brasil ser possuidor de um extenso espaço geográfico contribuiu com o

povoamento de povos de culturas diferentes em suas regiões, e, consequentemente, vivências

cotidianas tais como morar e cozinhar moldaram peculiaridades aos hábitos alimentares e,

esses, passaram com o tempo a integrar um sistema simbólico mais abrangente.

O advento do cacau ao longo da história de Ilhéus permitiu, por sua vez, que o

município adquirisse uma nova dinâmica durante o século XIX, “com o gradativo abandono

de outras lavouras, sendo alvo de intenso fluxo migratório” (RIBEIRO, 2001, p.142), novas

famílias se formaram movidas pelo fenômeno migratório e fixaram residência em áreas

favoráveis ao cultivo da lavoura cacaueira.

A migração, fenômeno social de grande dimensão, trouxe para Ilhéus e região grupos

étnicos variados, cada um refletindo o significado de sua cultura, mesclou-se com a cultura

local, a princípio com certo estranhamento, desde o século XVI, no contato do índio com o

português. Encontro que causou perplexidade do colonizador diante “do outro”, do

desconhecido, em um tempo que surgia na História Ocidental, no pensamento humano “um

conjunto radical de novas questões, interesses e paradoxos. O mundo do “eu” se via obrigado,

frente ao “outro”, a pensar a diferença. O que significaria o novo mundo? (ROCHA, 2007,

p.24).

Com base nessa compreensão, surgem novos olhares e a curiosidade pelo outro leva ao

entendimento do local do eu, ponto de origem daquele que domina e do local do outro, o que

está sendo subjugado. O contato de culturas tão diferentes causa certo choque no primeiro

momento. De modo que:

A ausência de um pensamento sistemático sobre o “outro”, a visão caótica

do “outro”; o medo oculto, o espanto, a falta ou excesso de significações do

“outro”, podem ser mais etnocêntricos do que a reflexão sobre o “outro”. [...]

Aqui fica um dilema interessante: - o “espanto” do século XVI e o

“evolucionismo” do século XIX – são igualmente inadequados, pois que

ambos são etnocêntricos na sua maneira de ver o “outro”. Entretanto, entre si

apresentam diferenças e, me parece que nesse sentido, o evolucionismo, por

se propor a “pensar” o “outro” e discuti-lo como sócio do clube da

humanidade, já traz em si alguma semente de relativização (ROCHA, 2007,

p. 34-35).

A partir dessa ideia, novos conhecimentos em torno do modo de vida e hábitos

alimentares diferentes começam a ser assimilados, passando pela fase de adaptação, a qual

demanda um tempo em sociedade, para então ir reforçando e intensificando o processo de

hibridização (CANCLINI, 2003).

Nesse período de fins do século XIX e início do século XX a imigração ganhou um

vulto maior, dando início uma nova fase na história de Ilhéus. Assim, enriqueceu-se pela troca

cultural o cenário histórico na formação do povo Sulbaiano. Atualmente, o fruto do cacau em

Ilhéus é uma presença simbólica, está no imaginário do turista que vem a Ilhéus e nas

histórias contadas que remetem à época do fruto do ouro, como era chamado o cacau.

Os novos imigrantes eram, em sua maioria, “jovens e adultos do sexo masculino em

busca de emprego temporário ou permanente no país de recepção. “Fazer a América” era o

lema de quase todos os imigrantes que cruzavam o Atlântico” (FAUSTO, 2000, p. 24). Nessa

perspectiva, o interesse primordial ao realizar tal viagem era acumular certa quantia que tais

pessoas levariam de volta ao seu país de origem ou, efetivamente, como aconteceu com vários

imigrantes, desfrutar de uma vida melhor trazendo a família, que se encontrava distante, para

o Brasil.

Os primeiros imigrantes sírios e libaneses chegaram à região Sul da Bahia no final do

século XIX, justamente no período em que a Bahia estava delimitando seus municípios e

dando início a uma nova fase após um século de plantio do cacau.

Fica evidente, na Literatura de autores regionais, a confirmação de uma migração

orientada para o Sul da Bahia:

A Colônia de Almada, por exemplo, foi fundada por imigrantes alemães em

1912, mas esses colonos, alegando dificuldades diversas, não se fixaram ali

[...], até o final, do século passado “as migrações subvencionadas pelo

governo com o objetivo de colonizar as comarcas do Sul constituíram-se em

sucessivos fracassos e prejuízos” (PADILHA; PÓLVORA, 1979, p. 11).

A pesquisa nessa área aponta com referência à história da região, o modelo de

migração subsidiada: referindo-se àquela na qual há um encaminhamento do governo da

região de origem. Há também o registro de um tipo de migração não-orientada, ou

espontânea, onde as pessoas tinham a liberdade de escolha da região para qual se

encaminhariam. Assim, foram sendo povoadas outras regiões do Brasil, onde se concentraram

mais essa ou aquela etnia, de acordo com a adaptação ao local.

Em torno desse movimento migratório, fundamenta-se a compreensão de que as

práticas culturais expressivas e as políticas culturais em torno das mesmas não podem ser

pensadas a partir de um lugar apenas, uma vez que complexas relações com as cidadanias em

contextos históricos contemporâneos advêm das presenças de vários povos que migraram para

diversas regiões do Brasil, fato que se deu também em toda América, suas entradas e saídas

fixaram ou não residência, estabelecendo comunicações e trocas culturais.6

Curiosamente houve uma adaptação grande no processo migratório dos sírios e

libaneses vindos para o Brasil. Segundo Santos (2006, p. 55), “vale ressaltar que a imigração

dos povos árabes não se efetiva em apenas um determinado momento”.

O município de Ilhéus acolheu uma quantidade considerável de imigrantes sírios e

libaneses, incorporando na sociedade ilheense costumes e hábitos alimentares dessas culturas

numa convivência cordial e integrada, o que vem significar uma soma nos hábitos e costumes

alimentares vigentes na cultura local; possibilitaram, desse modo, processos de adaptação e

assimilação entre povos e culturas.

Contudo, a princípio houve certa dificuldade em compreender a questão da

identificação da condição de imigrante. De modo que:

As autoridades brasileiras antes de 1934 definiam como imigrantes todos os

estrangeiros de terceira classe que desembarcavam em portos brasileiros.

Estrangeiros viajando na primeira e segunda classe eram considerados

turistas ou visitantes (KNOWTON, 1960, p. 35).

Alguns imigrantes trouxeram consigo, em sua bagagem cultural, hábitos, crenças e

alimentos que lhes eram familiares; também facultaram misturas e trocas culturais nos locais

onde passaram ou fixaram residência. Nesse sentido, movimentos de idas e vindas dos

imigrantes, vieram reforçar o entendimento do hibridismo entre etnias.

Dentre os quitutes elaborados pela cozinha árabe, ainda hoje, presente na culinária

ilheense: o quibe cru e frito, famoso pelas histórias da Gabriela do Restaurante/Bar Vesúvio

em Ilhéus, cotado na literatura amadiana; o pão árabe, a espirra, os charutinhos (Merche), a

berinjela recheada com carne, o uso da lentilha, o tabule, o grão de bico, o uso do gergelim no

molho de peixe, entre temperos e especiarias próprios da cozinha árabe, são algumas receitas

herdadas dos árabes pelos moradores de Ilhéus.

Todavia, a forte influência sócio-histórica dos sírios e libaneses na região é pouco

aproveitada nos cardápios de restaurantes e hotéis ilheenses, aspecto constatado nos

depoimentos de alguns turistas com referência a falta de conhecimento ou informação da

existência de uma herança árabe na cozinha de Ilhéus. Atualmente, a cidade conta com três

6 Instituto Hemisférico de Performance y Política - Encuento Cultural en la Universidad Nacional de

la Columbia - Bogotá, (2009).

restaurantes de comida árabe, sendo que dois deles integraram esta pesquisa, um deles ocupa

o espaço terceirizado para promover a cozinha árabe em um dia da semana: a cozinha de

Eduardo Daneu no Iate Clube de Ilhéus; o outro é o Vesúvio que figura os romances de Jorge

Amado e é conhecido internacionalmente pela literatura do referido escritor.

De acordo Santos (2006, p.127),

Essas histórias da imigração e os cardápios árabes, bem como toda

miscigenação cultural, poderiam ser utilizadas numa perspectiva de fazer

publicidade sobre o município de Ilhéus também pela via de um turismo

cultural e gastronômico. Essa herança poderia ser divulgada através de

folhetos e outras formas de publicidade, intercâmbios universitários que

contemplassem cursos e programas de capacitação profissional versando

sobre essa história, a fundação de um memorial da cultura árabe e

principalmente via restaurantes árabes, atraindo o turista que se interessa

pelos aspectos culturais de uma região e pela gastronomia que muitas vezes

aponta aspectos relevantes da história do lugar.

Em se tratando da gastronomia ilheense, a riqueza da cozinha se alarga pela presença

variada de etnias que contribuíram para uma multiplicidade de gostos e preferências

gastronômicas. O que notamos é uma cozinha multicultural ainda não bem aproveitada em

prol de um turismo cultural sustentável.

O tema alimentação possibilita interfaces variadas que vai além da necessidade

biológica, como argumenta Bonin e Rolim (1991, p. 76), sobre alimentação enquanto prática

sócio-cultural: “os hábitos alimentares se traduzem na forma de seleção, preparo e ingestão de

alimentos, que não são o espelho, mas se constitui na própria imagem da sociedade”. Desse

modo, a marcante presença da alimentação na cultura de uma sociedade poderá ser definida

como um ato de identificação.

A partir de hábitos alimentares firmados pelo deslocamento (HALL, 2004, p. 17-18),

que “desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de

novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos”, sem

dúvida, propiciadores de mudança nos costumes e novos hábitos alimentares, e também pelo

conhecimento da história da alimentação reconfigurado, é que somos capazes de identificar as

misturas de saberes e sabores provenientes de vários povos que habitaram a região e suas

culturas, de forma a contribuir com uma cozinha rica e variada.

1.2 Gastronomia e hibridismo: costumes, hábitos, receitas, saberes e sabores

Quem conhece o ontem e o hoje, conhecerá o amanhã,

porque o fio do tecelão é o futuro,

o pano tecido é o presente,

e o pano tecido e dobrado é o passado.

Provérbio africano

A presença de etnias variadas no contexto histórico da região Sul da Bahia, sobretudo

o município de Ilhéus, antiga capitania do Brasil, contribuiu, por certo, para a hibridização

cultural e formação de uma identidade gastronômica dinâmica. De modo que é possível

afirmar a peculiaridade culinária de cada etnia como uma herança gastronômica resultante da

alimentação que veio para a região por força da presença desses povos.

Este estudo, ao abordar a gastronomia, entende a mesma no âmbito do patrimônio

cultural imaterial, que é considerado o “conjunto de todos os utensílios, hábitos, usos e

costumes, crenças e forma de vida cotidiana de todos os segmentos que compuseram e

compõem a sociedade” (BARRETTO, 2001, p.11); portanto um elemento capaz de vincular-

se à imagem de uma região, em ressonância com os hábitos e costumes da comunidade

situada em um espaço geográfico.

Assim, a gastronomia é de grande importância pela transversalidade subjacente, ou

seja, aspectos que envolvem o clima seus frutos peculiares, ingredientes e especiarias que são

preparados de modo específico, elementos históricos e culturais, as tradições e saberes

acumulados ao longo dos séculos.

A UNESCO define como Patrimônio Cultural Imaterial:

As práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto

com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são

associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os

indivíduos reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural

(Portal IPHAN, 2009).

Com esse raciocínio, o patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, sendo

constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua

interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e

continuidade, como vem sendo observado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional - IPHAN.

É sabido que o patrimônio cultural refere-se direta e indiretamente ao passado. Tal

como a tradição, é sempre considerado a partir do presente e reconfigurado em suas práticas e

simbologias no tempo-espaço. O que vem significar que o patrimônio cultural pode estar tanto

no museu, em um sítio arqueológico quanto nos saberes populares, na música, em uma dança,

no artesanato, em uma comida, em um saber fazer que abrange outras manifestações culturais.

Mas, por muito tempo o termo patrimônio era compreendido como o coletivo das

obras monumentais, os chamados pedra-e-cal, as grandes propriedades de luxo, as edificações

oficiais e igrejas. Na verdade essa seria a noção de patrimônio histórico, primeiro conceito

criado de patrimônio antes de considerar os bens intangíveis, conceito que foi alargado há

algumas décadas com a inclusão do aspecto cultural e das “dimensões testemunhais do

cotidiano e os feitos intangíveis” (PELLEGRINO, 2003, p.1), propiciando a transição da

noção de patrimônio histórico para patrimônio cultural.

A idéia de patrimônio se desdobra em natural, histórico e cultural. Londres (2004)

citando o anteprojeto da UNESCO, aprovado na 32° Conferência Geral, realizado em outubro

de 2003, aponta a seguinte definição de patrimônio imaterial:

O “patrimônio cultural intangível” é constituído por práticas, representações,

expressões, saberes e fazeres – assim como instrumentos, objetos, artefatos e

espaços culturais que lhe são associados – que comunidades, grupos e,

quando for o caso, indivíduos reconhecem como parte de sua herança

cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração em

geração, é constantemente recriado por comunidades e grupos em resposta

ao seu meio ambiente, sua interação com a natureza e suas condições

históricas de existência, e lhes proporciona um sentido de identidade e

continuidade, promovendo assim o respeito pela diversidade cultural e pela

criatividade humana (LONDRES, 2004, p. 22-3).

Nessa perspectiva, a gastronomia como patrimônio cultural refere-se aos sentidos e

significados que são transmitidos pelos bens tangíveis e intangíveis. A culinária enquanto um

elemento de transmissão do saber de uma comunidade é representativo de um contexto sócio,

histórico e cultural. É, portanto, essencial a preservação do patrimônio cultural uma vez que

esse está ligado intimamente à preservação da memória.

É com esse sentido que reiteramos Andreas Huyssen (2009) quando ele diz que a

ameaça a memória seria de fato uma ameaça à própria identidade humana – identidade

sempre moldada por um determinado tempo e espaço. Mesmo que os meios e o próprio local

da memória em uma cultura vá diferir muito ao longo do tempo e do espaço.

A era contemporânea assegura que a questão da memória ganha importância até

mesmo por causa do desdobramento fundamental sobre os estudos acerca do tema

“identidade”, hoje mais voltado para o sentido de identificação. As lembranças dos sabores de

algumas comidas da infância, de algumas situações vividas em torno de acontecimentos onde

a comida estava presente são marcas de um tempo com o qual nos identificamos e formam

conjuntos de intervalos de vida que foram vividos e armazenados em algum lugar do

subconsciente.

Tais lembranças são significativas para o ato de identificação, venham elas através da

comida, do paladar ou das preferências que definem um modo de fazer, morar, cozinhar e

constitui uma expressão cultural portadora de pertencimento. São elementos da cultura que

tratam da imaterialidade presente no cotidiano das pessoas, e no contexto sócio, histórico e

cultural das mesmas.

Cabe pontuar que o anteprojeto de criação do SPHAN de autoria do Mário de

Andrade, já previa em 1937 o interesse dos intelectuais modernistas em salvaguardar

elementos intangíveis da cultura brasileira. Nesse anteprojeto – cujo cerne acabou não sendo

integrado ao Decreto-Lei n 25 -, previa-se a distinção do Patrimônio Artístico-Nacional

envolvendo, além de outros elementos, o vocabulário, cantos, lendas, medicina e a culinária

das etnias formadoras do povo brasileiro (MACEDO, 2010).

As leis de proteção do patrimônio imaterial, também conhecido como patrimônio

intangível, pela UNESCO, passaram a ser reconhecidas e protegidas a partir da Constituição

Federal de 1988, todavia a regularização desse artigo se efetivou com a edição do Decreto

Federal n 3.551 do dia 04 de agosto de 2000.

Fazemos uma ressalva que a preservação do patrimônio imaterial é uma política

recente no cenário internacional e nacional, porém tem se desenvolvido de modo firme no

Brasil. Para Antonio Augusto Arantes Neto em depoimento para a revista IPHAN (2005),

algumas ponderações são pertinentes nesse sentido:

O principal sentido da preservação é garantir às gerações futuras condições

de desenvolvimento de seus horizontes morais, intelectuais e tecnológicos,

com pleno acesso ao que foi acumulado pelos que os antecederam. Por essa

razão, impõem-se a necessidade de refletir sobre os limites e limitações da

atividade consagrada. E nesse afã, uma vez mais, são realidades distantes e

distintas das que nos são mais familiares as que decisivamente podem

contribuir para a crítica e o conhecimento de nossas práticas e convicções

(IPHAN, 2005, p. 10-11).

Tendo por fundamento tal juízo é que identificamos, no cotidiano, através da

gastronomia, informações que traçaram um perfil histórico, social e cultural de uma região.

Por que se come mandioca e seus derivados? As comidas com dendê e pimenta são apreciadas

por todos em uma região? Por que os moradores de uma região desenvolvem o gosto por

determinada especiaria cultivada alguns séculos atrás? Também as frutas que são consumidas

em uma região e não em outra, marcando geográfica e culturalmente seu espaço e preferência

são elementos ligados as práticas cotidianas.

Por sua vez a gastronomia do grego antigo γαστρονομία; γαστρός ["estômago"] e

νομία ["lei"/"conhecimento"] é um ramo que abrange a culinária, as bebidas, os materiais

usados na alimentação e, em geral, todos os aspectos culturais a ela associados. Considerando

o fato da gastronomia envolver tanto a forma como o alimento é preparado, como também o

modo que é apresentado, isto é, todo aparato em torno de uma refeição, é que se diz que a

gastronomia tem um foro mais alargado que a culinária, uma vez que se ocupa com as

técnicas de confecção dos alimentos.

O antropólogo Roberto da Matta (1988, p. 620) discute aspectos simbólicos da

comida, ou seja, “aqueles aspectos que fazem que um conjunto mais ou menos universal de

alimentos se transforme para ser percebido e comido como “comida brasileira”, em oposição

a outras comidas de outras sociedades, etnias, nações e culturas”.

O alimento está presente na vida do homem desde a sua existência até a atualidade,

primeiro como uma necessidade básica, depois como algo que foi sendo elaborado no preparo

de receitas, gerando uma culinária diversificada, conforme o gosto, as preferências, o

território geográfico, as condições climáticas, aspectos religiosos, etc. O fato é que a comida,

assim como o idioma, a bandeira nacional e outros símbolos tidos como sagrados, pelo

motivo dos habitantes de uma nação lhe atribuir um significado igualmente sagrado

(OLIVEN, 2007), é um elemento que constitui pertencimento e representa um dos laços mais

difíceis de ser rompido em uma sociedade.

De acordo com Oliven (2007, p.79), “a comida [sinônimo de alimento] é material, mas

a culinária é imaterial. Como separar ambas?” (grifo nosso). Tal concepção leva a uma

reflexão de que a distinção entre bens materiais e bens imateriais não é pacífica. Elementos da

culinária ou outros, considerados patrimônio imaterial, têm essa denominação pelo poder e

pelo significado sagrado a eles atribuído. Um ritual e suas práticas simbólicas se modificam

com o tempo, novos elementos são incorporados àquelas práticas; um prato típico definido,

também, pode sofrer modificações com o tempo assimilando novos ingredientes, o que

implica uma análise de aspectos qualitativos diferente do patrimônio cultural e que necessita

ser elaborado do ponto de vista conceitual.

Por sua vez, pesquisadores contemporâneos discutem acerca da sutil diferença entre o

alimento e a comida:

La distinción básica que el código culinário brasileño establece y que, a su

vez, acaba constituyendo ese mismo código, es aquélla que contrasta

alimento y comida. Así, lo que llamamos alimento tiene como referente el

aspecto universal, el lado nutritivo y biológico de la comida. El alimento es

algo neutro, la comida es un alimento que se torna familiar y, por eso mismo,

definidor de carácter, de identidad social, de coletividad (DA MATTA,

1988, p. 626).

Com isso, ao discutir sobre a comida será evidenciado aspectos simbólicos uma vez

que um conjunto de alimentos mais ou menos universal se transforma para ser percebido e

comido como a “comida brasileira”. Evidentemente, ao falar das misturas processadas ao

longo de séculos, outras formas de comidas e a disposição de alimentos universais aparecem

evidenciando sociedades, etnias, nações e culturas.

Visto esse panorama, a presença de etnias variadas em um contexto sócio-cultural,

como ocorreu no Brasil, desde a época da colonização até a contemporaneidade, facultou que

a relação do alimento com a comida resultasse na transformação do universal no particular.

Em torno da comida há um comportamento que expressa toda trama de valores e relações de

significados (DA MATTA, 1988, p. 621).

Ao utilizar o alimento para preparar uma receita algumas regras de preparação serão

adotadas, algo familiar e particular, onde irá prevalecer certa intencionalidade. A relação do

alimento com a comida também pode acentuar estados especiais na vida de uma pessoa. No

Brasil, como defende Da Mata (1988), existe muitos tipos de comida: “de rico”, “de santo”,

“de pobre”, “de guloso”, “de enfermo”, de gente grosseira e sofisticada, etc. e todas elas são

definidoras de personalidades e relações com o grupo.

Partindo desse princípio, aquilo que é alimento (universal) para o brasileiro pode ser

comida para um estrangeiro. Um bom exemplo disso seria os sanduiches que em algumas

culturas é considerado comida, mas no Brasil é alimento. O brasileiro, geralmente, tem por

hábito almoçar, comer a comida de sua localidade ao meio-dia, ao passo que países como os

Estados Unidos adotam o hábito de comer sanduiches ao meio-dia significando uma refeição.

Conforme a região, a preferência alimentar obedecendo às variações usuais pode ser

identificada pela opção do alimento transformado em comida. Ao mencionar as comidas com

dendê imediatamente vem à mente a imagem da Bahia, quando falamos na feijoada com

feijão preto, lembramos dos cariocas e assim por diante. Também o modo de fazer

“constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas

técnicas de produção sócio-cultural” (CERTEAU, 2008, p.41).

Assim, o patrimônio cultural é portador de mensagens, todavia o valor simbólico está

intimamente relacionado com o conhecimento sobre a cultura por parte do indivíduo que o

percebe. Logo, a transformação do alimento em comida define o modo de fazer de cada

região, seus ingredientes específicos, o que faz de uma iguaria regional ou local, uma comida

especial para quem aprecia tal iguaria, diferenciando-a de outras regiões.

Tal aspecto passa a ser moldado pelos costumes locais, seja em um bairro, uma cidade,

uma região ou nação. Para Certeau (2008, p.47) “o bairro impõe um know-how da

coexistência indecidível e inevitável simultaneamente: os vizinhos aí estão, cruzo com eles na

escada do prédio, na minha rua; impossível evitá-los”. O contato com o “outro”, o diferente,

de certo modo estimula a curiosidade no convívio diário e possibilita a troca cultural.

Na opinião de Hobsbawm, (1997, p.10) “o costume, nas sociedades tradicionais, tem a

dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto,

embora evidentemente seja tolhido pela exigência do que deve parecer compatível”. As trocas

culturais possibilitam que as pessoas avaliem, experimentem, comparem e até re-inventem

práticas que estavam acomodadas.

O município de Ilhéus recebeu imigrantes que se aventuraram por séculos e fixaram

residência nas terras do sem fim, assim definida pelo escritor Sulbaiano Jorge Amado; com

eles, o “novo” surgia e se juntava com o que já fazia parte da cultura ilheense. Certamente,

de todos os rituais, a comida é o mais comum já que se pratica em todas as

partes e é uma fator de diferenciação tanto social como cultural baseado na

forma de preparar a comida e de ingeri-la, somando ao que e com quem se

come e os ciclos de alimentação diária (SCHLÜTER, 2006, p. 115).

O convívio diário, por certo, trouxe a interação e a aceitação entre culturas tão diversas

quanto à cultura árabe e as culturas já existentes em Ilhéus. As “identidades gastronômicas”

representadas pelas preferências nos hábitos alimentares locais ganharam maior amplitude; a

comida que trazia à contribuição indígena: o beiju, a farinha, a carne seca, as raízes, continuou

sendo utilizada pela cozinha ilheense tanto quanto a cozinha africana, apenas somou-se

àquela, novos saberes e uma “Nova História Cultural” (BURKE, 2008).

Os hábitos alimentares moldam costumes em sociedade. Segundo Thompson “o termo

“costume” foi empregado para denotar boa parte do que hoje está implicado na palavra

“cultura”. O costume era a segunda natureza do homem” (1998, p. 14). Assim, o costume

direciona a vida do homem e traduz hábitos que são incorporados no cotidiano de pessoas que

vivem em grupo ou sociedade.

Importa pontuar que:

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia [ou que nos cabe em partilha],

nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do

presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é peso

da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com

esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende

intimamente, a partir do interior. É uma história a meio- caminho de nós

mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este

“mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que

amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância,

memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (CERTEAU, 2008,

p.31).

O cotidiano na sua concretude vai materializar por meios dos costumes, espaços de

uma memória. Nesse aspecto, a gastronomia irá marcar com uma linguagem própria

preferências, gostos, hábitos em comunidade, práticas cotidianas e o prazer ao saborear uma

comida. As lembranças geradas pela memória de épocas nas quais vivências diárias estavam

relacionadas à comida emergem instantaneamente quando nos defrontamos com um prato que

foi saboreado na infância.

Segundo Le Goff (1996, p. 423), “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a

alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”; tal conceito de memória

delineia a memória viva, aquela que traz o passado para o presente, uma memória

reconfigurada no tempo na re-elaboração de uma receita tradicional; mostra que a própria

tradição não é estática, está em movimento assim como a cultura, é dinâmica. Logo, a

memória enquanto lembrança é viva e se realiza e consolida com o pertencimento.

Regina Schlüter, citando Bourdieu, afirma que o gosto ao igual, que o comportamento

frente ao consumo é uma expressão da classe social a qual se pertence. Nesse sentido,

Bourdieu introduz o conceito de hábito que constitui a relação entre os

componentes objetivos e subjetivos das classes sociais, ou seja, classe social

é um conjunto de práticas, disposições e sentimentos. Faz referência ao

cotidiano, as situações, ações, práticas e eleições associadas com as

características particulares de uma pessoa em seu contexto social. É algo que

se aprende inconscientemente, mas não obriga a um comportamento dado

sem que se realize com total naturalidade e confere segurança nas relações

sociais. Aqueles que integram uma mesma classe social comportam o

mesmo hábito pelo qual realizam eleições similares e compartilham o

mesmo juízo com respeito ao gosto (SCHLÜTER, 2006, p.66).

Nessa linha de pensamento, afirmam pesquisadores contemporâneos que Bourdieu

trouxe grande contribuição em torno dos conceitos de habitus ao pensamento sociológico.

Tais conceitos, afirmam pesquisadores modernos, têm sido utilizados como instrumentos

conceituais que possibilitam pensar as relações entre os condicionamentos sociais exteriores e

as subjetividades dos agentes. Eles adquirem um alcance universal na apreensão de certa

homogeneidade nas disposições ou gosto em matérias que podem ir, por exemplo, da música

sertaneja aos hábitos alimentares, das cirurgias estéticas ao comportamento político, das

preferências religiosas aos conflitos urbanos juvenis, pois procedem ao reconhecimento dos

processos históricos que demarcam a gênese e ampliação das práticas culturais na

modernidade (ALVES, 2008).

Como evidencia Certeau (2008, p. 234), “cada hábito compõe um minúsculo

cruzamento de histórias”. No que é chamado “invisível cotidiano” os hábitos vão sendo

modificados, novos conhecimentos são transmitidos, as misturas e adaptações vão sendo

processadas e uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos de ritmos e de opções de

hábitos herdados e de costumes repetidos vão se consolidando.

A convivência diária com o diverso reforça, em parte, o que nos é familiar, específico,

mas também cria oportunidade de mudança. Logicamente, esse processo é lento e, por isso, é

chamado de “invisível cotidiano” pela sutileza com que vai se infiltrando nas camadas sociais

e resultando novos conceitos, reconfigurando as idéias, saberes em torno de uma receita

tradicional, modo de fazer, morar e cozinhar, adaptações e novas modalidades na combinação

de alimentos e especiarias.

Essa afirmação vai encontrar eco em Jorge Amado através de seus personagens: Nacib

Saad e Fadul Abdala têm a uni-los a origem árabe, pois veio da Síria, o amor de Gabriela e é

libanês o herói de Tocaia Grande, ambos “turcos” no dizer baiano7. Desse modo, unindo a

ficção e a realidade o autor se fundamenta na história de Ilhéus, a qual vivenciou no passado

com cruzamentos de culturas para falar dessas modalidades na combinação dos alimentos:

Brasileiros xenófobos, só fazem concessões à comida árabe – o doce

preferido de Fadul Abdala é o araife, um pastel feito de amêndoas e mel. Os

esponsais de Adma é o romancinho dos turcos do Sul da Bahia. Como Nacib

Fadul, Jamil Bichara, Raduam Murad e Ibrahim Jafet não abrem mão do

quibe e da esfiha. Com um jantar árabe, “preparado por Samira com a ajuda

de Fárida”, o querubim, Ibrahim Jafet apresenta Jamil a Adma. O ouro do

dendê, a doçura da jaca, afeto e violência; o ardor da pimenta-de-cheiro, a

sensualidade das mulheres, baianas com suas batas de renda branca sobre a

7 Nota-se aqui, que este termo “turco” era utilizado pelo escritor Jorge Amado em sua literatura, contudo o

emprego do vocábulo “turco” até fins do século XIX era utilizado para designar Sírios e Libaneses.

pele cor de canela, formosas filhas de Oxum a vender acarajés: é todo um

universo de encantamento, cor, cheiro e sabor (AMADO, 2004, p.25).

Culturas diversas favoreceram, como enfatizado, a troca cultural e uma nova realidade

local. Esse fato é constatado na história de Ilhéus, nas crônicas escritas e nos romances dos

escritores regionais e suas literaturas.

O município de Ilhéus e entorno acolheram sírios e libaneses - famílias de sobrenome:

Halla, Maron, Midlej, Gedeon, Fahel, Hage, Ganem, Ocké e tantos outros, moradores de

campo, lavradores ou proprietários de terras. Assim, esses imigrantes têm a sua história dentro

da história do município de Ilhéus, constituindo parte do perfil identitário da mesma.

Conforme dados sobre os costumes árabes inseridos na história local,

consigo trouxeram as tradições e a cultura das terras do Oriente transmitidas

às gerações seguintes através de tantos hábitos, incorporados ao nosso dia a

dia – o cultivo de hortigranjeiros, o manuseio das lavouras de subsistências;

o respeito às datas religiosas com a tradição do Domingo de Páscoa e a Festa

dos Reis, quando são servidas iguarias próprias e à maneira antiga; a

hospitalidade no receber traduzida na expressão “harla ou Sarla” [Seja vem

vindo] mesmo em torno do convite para tomar um cafezinho; muitos hábitos

alimentares, hoje recomendados como salvação para a saúde, como o valor

dado aos grãos, o trigo, a lentilha, a fava, o arroz, o uso de carnes de

carneiro, aves e peixes; a utilização de temperos e especiarias, como a

cebola, o alho e a hortelã, o coentro, a salsa, a canela; a importância da

coalhada fresca ou seca, isolada ou no preparo de alimentos; o hábito, hoje

tão louvado, de ingerir legumes crus e com casca, bem como o uso constante

de folhagens na alimentação (COSTA, 1996, p.136).

São, por assim dizer, heranças gastronômicas que contribuíram para a formação étnica

da região Sulbaiana. Ao citar alguns hábitos cultivados pelos árabes, chegados na região Sul

da Bahia, há de se destacar o de agrupar todos os membros em torno do almoço do domingo,

com a mesa sempre farta, presidida pelo chefe da família, por onde se estendiam os mais

variados pratos da culinária árabe, preparados pelas mulheres da casa a quem,

tradicionalmente cabia a função de prover o alimento.

Esse costume, por sua vez, se modificou, pela escassez de tempo para preparar as

refeições em casa, devido a outras ocupações que hoje a mulher realiza fora de casa. Porém,

as pessoas ainda se reúnem, o encontro é sempre motivo de alegria, de fartura e de prazer ao

saborear um novo prato ou aquele prato tão saboroso que remete às lembranças de momentos

agradáveis do passado.

A memória olfativa ou visual é sempre um estímulo associado ao prazer e satisfação

por parte de quem prepara a refeição e cuida de servi-la e para quem aprecia, degusta ou

saboreia uma comida familiar. O momento de reunir é também para celebrar, um espaço para

ser vivido de modo especial, pois a comida exige um tempo especial, “um domínio no qual

algo relativamente extraordinário está ocorrendo e que todo ser humano independentemente

da sua condição de classe social e poder político tem o direito de gozar e ter” (DA MATTA,

1988, p.623).

Nesse sentido, ressaltamos que, para a tradição árabe, o ato de comer constituía, desde

a sua chegada a Ilhéus, um momento especial, quase sagrado – à hora de reunir toda a família

com alegria, vontade e satisfação, acolhendo a quem chegava com a habitual hospitalidade

que se transmitiu por gerações.

Conta Jorge Amado, no seu romance Tocaia Grande, o nascimento de uma

cidade desde seu princípio:

A comida mais agreste no acampamento inicial: Fadul Abdala assa a carne-

seca na brasa, a gordura pingando na farinha crua, a jaca colhida ali mesmo e

aberta com as mãos, mãos enormes do turco. O negro Tição Abduim,

Oxossi, traz a caça, e com a carne mais farta se pensa em salgá-la. A comida

traz mudanças de hábitos, propõe tarefas coletivas, trabalho e festa

(AMADO, 2004, p.24).

Trata-se da realidade contada pela ficção literária, porém de fato vivida na expressão

cultural do povo de Ilhéus, e que compôs o cenário real na chegada de inúmeros estrangeiros

que desembarcaram na região, perfazendo identidades que são traços culturais presentes nos

hábitos e costumes locais ainda nos tempos atuais. O processo de hibridização como afirma

Canclini (2003), situa-se em relações estruturais de causalidade, com a capacidade

hermenêutica, ou seja, tornando esse processo útil para interpretar as relações de sentido em

que se reconstroem as misturas.

O conhecimento de outros povos pelos navegadores portugueses se dava por meio do

idioma e da cozinha, pois a comida é um dos notáveis caminhos que levam à compreensão

plena e verdadeira do homem (Lody, 2008). No curso da história, meio a idas e vindas, povos

uniram-se em um mesmo local, traçaram caminhos históricos diferentes, comerciais, étnicos e

de civilizações, consolidou, sem dúvida, uma rica mistura no município de Ilhéus e região.

Nessa perspectiva, unem-se as cozinhas. Cada etnia deixou a sua contribuição no

modo de fazer, de morar e de cozinhar. O morador identifica-se com vários sabores, seu

paladar se amplia e já não há apenas a comida do sertão, a comida indígena, a comida

africana, a comida portuguesa de modo separado, mas a comida de todos. Ao falar da

culinária Sulbaiana o requinte das iguarias aparece na cozinha multicultural.

Marca do passado sempre presente nos hábitos alimentares, agora, com um cardápio

preparado de acordo com a criatividade que a arte de cozinhar requer. As receitas trazidas

pelos colonizadores, escravos e imigrantes foram adaptadas ao clima tropical, são reveladoras

de mudança cultural, sem dúvida. Novos conhecimentos foram reordenados no cotidiano

ilheense e entorno ao longo da sua história de quase cinco séculos.

Segundo Canclini (2006, p.19), “precisamos de ciências sociais nômades, capazes de

circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e

comuniquem horizontalmente”. Aqui se referindo a concepção em camadas do mundo da

cultura: tradicional versus moderno, culto versus popular. As culturas modernas se misturam

em seus hábitos, movimentos sociais, regimes políticos e transações de uns com os outros,

portanto, atualmente o que temos quando falamos em culturas é um processo de hibridização

(CANCLINI, 2003), que constituem a modernidade e lhe dão um perfil específico.

Para o autor citado, os processos incessantes, variados, de hibridização levam a

relativizar a noção de identidade. É sabido que as identidades, assim como as culturas, devido

à dinamicidade no contexto atual, não admitem mais as chamadas identidades “puras” ou

“autênticas”. As misturas e novas modalidades no modo de fazer uma receita ou uma comida

é produto da arte em criar e do prazer em servir e degustar; provam o quanto é possível falar

de identidades como ponto de identificação.

O ato de comer tem um sentido simbólico para o homem. Assim, toda cozinha tem a

marca do passado, da história, da sociedade, do povo e da nação a que pertence. De modo que

cozinhar é uma ação cultural e nos remete as origens dos primeiros alimentos transformados

em comida. Para Cascudo (2007, p.34) “ainda a refeição é elemento pacificante. Quem come

amansa. Não há Congresso ou Conferência de Paz que não termine com um banquete”.

A refeição ao ser servida concede àquele que prepara a comida, certo poder e, em

muitos lugares, o trabalho cotidiano de cozinhar depende de uma situação social e cultural e

da história das mentalidades como defende Luce Giard através da invenção do cotidiano

(CERTEAU, 2008). Ao considerar o ato de nutrir, notamos uma realidade imediata, contudo,

os homens alimentam-se mais de alimentos culturalizados, ou seja, aqueles que obedecem a

um código de compatibilidade e conveniência.

É justamente essa conveniência que irá diferenciar cada área cultural e fará

transparecer as chamadas cozinhas regionais, nessas, a invenção de “um modo de fazer” é

algo que vem responder a uma necessidade ou a uma lei do local. Portanto, as atividades

culinárias possuem alto grau de ritualização e traz um significado afetivo para aqueles que

amam cozinhar. “São coisas da vida que exigem tanta inteligência, imaginação e memória

quanto às atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas, como a música ou a arte de

tecer” (CERTEAU, 2008, p.212).

Nesse sentido, as manifestações culturais são representativas da voz social, “uma

forma subjetiva que o grupo de pessoas encontra para expor seu interior, expressar o que

pensam, o que desejam realizar ou modificar” (CARVALHO, 2007, p. 64). É nessa

conjuntura que nascem as tradições das culturas populares e com elas sempre vêm as

tradições gastronômicas presentes em toda comemoração, festejo ou acontecimento da vida

cotidiana.

Por festejos juninos compreendemos as festas de Santo Antônio (13 de junho), São

João (24 de junho) e São Pedro (29 de junho) que homenageia os três santos da igreja

católica, mas que em verdade, as origens das festividades juninas remontam a um passado

pagão europeu, quando aproveitando o solstício de verão no hemisfério norte, comemoravam

essas datas.

Assim, a igreja católica, ainda na Idade Média, apropria-se e cristianiza essa

celebração, dando-lhe outra significação: a comemoração do batizado de Cristo, através da

devoção a São João Batista. Por outro lado, no Nordeste tais festejos além do calendário

religioso trazem uma simbologia ligada ao plantio e a colheita e suas comemorações rurais.

Como afirma Cascudo (2007, p.111), “na tradição rural nortista o milho bem seco é

debulhado na folha da enxada (...) planta-se em janeiro e quebra-se em junho, pelo São João”.

Os festejos juninos, típico da Bahia e Nordeste, são expressões da cultura popular e

por longo período atraiu uma multidão ao redor do seu símbolo: a fogueira. Tradição ainda

preservada em muitas cidades do interior e, em outras, modificadas nessa modalidade. As

festas juninas são conhecidas pelas músicas, danças folclóricas, comidas típicas a base de

milho: canjicas, bolo de fubá, de aipim, de puba, pamonhas, mãe benta, curau, mungunzá de

milho, jenipapo cristalizado, amendoim cozido e torrado, licores e outras delícias que fazem a

alegria da região nessa época do ano.

Todavia, alguns traços vêm sendo modificados nessa tradição, como acontece com a

fogueira nem sempre presente nas festas juninas, hoje reconfiguradas por outras modalidades.

Como afirma Adorno (2004) há uma padronização com elemento constitutivo do avanço da

indústria cultural. Para ele a cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança.

Porém, com referência às comidas, os costumes são preservados no uso de receitas e licores

nesta época do ano.

Segundo Costa (1996, p. 86), Ilhéus, no passado, foi um verdadeiro palco de festas

juninas. Os compadres ricos, remediadores e pobres, enviavam de suas fazendas, ou sítios,

além de perus, frangos, leitões, presentes também de belos peixes, camarões, sacos de cocos,

quiabos, laranjas, milhos verdes para canjicas, e pamonhas. Apesar dos novos tempos, sem a

riqueza propiciada pelo fruto do cacau de outrora, a tradição não ficou perdida, não há quem

no mês de junho não comemore as festas juninas na região e em todo Nordeste.

O calendário das festas católicas é marcado por diversas comemorações de dias santos

e neles as comidas religiosas integram o cardápio das pessoas. Na tradição brasileira as

maiores festas são: Natal, Quaresma, Páscoa e São João. Tais festas, de cunho religioso foram

apropriadas pelo povo brasileiro a ponto de transformar o Carnaval, ritual de folia, que

antecede e marca o início da Quaresma, em uma das maiores expressões festivas do Brasil

(RANGEL, 2008).

Desse modo, as festas culturais são traços de um conjunto etnográfico da história e da

cultura de todos os povos, em todos os níveis e classes sociais. Assim, as misturas étnicas

entre negro, índio e branco resultaram em um alicerce etnográfico comum a todo território

com suas tradições de ordem religiosa e social, firmadas no Brasil.

Devido à confluência de diferentes culturas no Brasil, foram ampliadas as maneiras

com as quais o povo brasileiro celebra seus rituais, seus santos, suas festas de largo, suas

colheitas, suas datas comemorativas delineando ricas manifestações culturais.

É de interesse turístico conhecer, valorizar e utilizar-se dessas práticas culturais como

atrativo para a viagem. Para Moesch citando Mafessoli (2000),

pode-se dizer que o fato culinário, o jogo das aparências, os pequenos

momentos festivos, as deambulações diárias, os lazeres não podem ser

considerados elementos sem importância ou frívolos da vida social.

Expressão das emoções coletivas, eles constituem uma verdadeira

“centralidade subterrânea”, um irreprimível querer viver, que convém

analisar (MOESCH, 2000, p. 45).

Nessa vertente, cada povo busca viver e entrar em comunicação com outros povos.

Trata-se de uma ordem de comunicação simbólica na perspectiva de Moesch (2000, p. 45).

“Está presente na música, no consumo, no turismo, no esporte, nas diversas práticas que

estruturam a realidade social e não o supérfluo”. Dentre tais modalidades particulares se

encontra os costumes que são festejados, celebrados e registrados.

A gastronomia, na perspectiva do patrimônio cultural, remete à cultura que representa

tudo que o homem cria, faz, concebe como parte de sua vida. Cabe salientar que, a

hibridização, na concepção atual do antropólogo Canclini (2003) não deve limitar-se a

descrever misturas interculturais. Apesar do avanço, nesse sentido, ter começado como parte

da reconstrução sociocultural do conceito, pensar no termo hibridização é estudar os

processos de hibridização, buscando voltá-lo de modo útil para interpretar as relações de

sentido que se reconstroem nas misturas. No entanto, há também em algumas culturas a

resistência às mudanças e isso obviamente faz parte do processo de troca cultural e de

resistência ou adaptação ao novo.

Nessa visão, a formação étnica da região Sulbaiana teve, em seu processo de

hibridização, mudanças que aconteceram lentamente, de modo sutil, definindo o que Certeau

(2008, p.85), denomina de força inercial do hábito, isto é, se processa pela mera força do

tempo, institucionaliza silenciosamente (sem que se tenha em momento algum consciência da

queda de um sistema para outro: até se esquece que há passagem).

Os hábitos alimentares Sulbaiano foram se modificando, porém alguns elementos

culturais foram preservados no seu modo de fazer. O índio continuou tendo suas preferências

alimentares e manteve o costume de comer peixes deixando a carne assada para segundo

plano, do uso das pimentas, da mandioca, do milho, dos caldos e das bebidas peculiares aos

hábitos e crenças indígenas.

Pode-se então dizer que a não hierarquização das culturas, conduz a uma ótica da

valorização do diferente (BHABHA, 1998), e conseqüentemente, ao respeito às diferenças. O

que se observa atualmente é o convívio de culturas diversas em um mesmo espaço, onde cada

uma reproduz suas crenças, costumes, tradição, ritos e modo de vida singular.

Nessa vertente ainda, a comida, um dos elementos mais marcantes, demonstra o

convívio dessas diferenças. Ao entrar em um restaurante Sulbaiano ou outra região da Bahia,

podemos encontrar variedades nos cardápios que deixam transparecer a diversidade culinária,

proveniente das misturas que se processaram no território baiano. A comida, além do aspecto

biológico intrínseco às necessidades do homem, faz parte da trajetória do indivíduo e serve

para identificar quem é esse indivíduo. Conforme estudos antropológicos:

Sem dúvida, as grandes matrizes da diversa e variada cozinha brasileira –

diga-se melhor, das cozinhas brasileiras – estão em um Portugal ampliado

com a África e com o Oriente, com o próprio continente africano, em

diferentes regiões chamadas “costas”: costa ocidental, costa austral, costa do

sul e costa oriental e com as centenas de culturas indígenas, revelando uma

longa experiência devido ao seu convívio com o litoral e com a floresta

americana (LODY, 2008, p. 39).

É desse modo que o gosto pela comida foi sendo desenvolvido em nossas culturas

brasileira e, mais especificamente a baiana, se apóia na tradição de um conjunto de cozinhas

regionais por onde transitam origens diversas, conhecimentos milenares de muitos povos, que

se ampliaram com componentes trazidos pelos imigrantes. No Sul da Bahia, tais misturas

deixaram sua marca na cozinha que hibridizando-se, resultou um novo processo:

“influenciando-se mutuamente, como se misturam os ingredientes de um prato em

composições multiculturais e multi-étnicas” (LODY, 2008, p. 39).

Comer significa, portanto, não apenas um ato instintivo ou biológico, mas em casos

específicos, um ritual integrado, carregado de simbologia, de indicação de procedência mítica,

na qual o homem deu início a algumas práticas religiosas. Segundo Lody (2008, p. 73), seria

tal ritual, um “retorno à terra pela boca, um retorno que marca intimidade e pertencimento”.

À luz da antropologia comer é um ato de celebração e de significados e mesmo a

princípio, sendo uma necessidade básica, um ato biológico, pois para viver é preciso comer,

considera-se que é também um ritual cotidiano pleno de símbolos. Símbolos da casa, da rua,

das manifestações religiosas, das festas, dos restaurantes, da feira, do mercado, entre outros

lugares no gesto de morar da comunidade, da região, do país (LODY, 2008, p.191).

A visão antropológica, numa perspectiva patrimonial, ao referir-se cozinha ou a

comida apenas faz sentido por relacioná-las em seu contexto cultural. A comida marca as

identidades do grupo pelo modo come se come, se celebra a ancestralidade comendo comidas

regionais, isto é, aquelas comidas familiares que seduzem a nossa memória olfativa e visual e

traz à tona a memória reconfigurada.

Saborear uma comida que apreciamos e identificar-se com a mesma, remete,

eventualmente, as nossas origens, a educação recebida, ao cotidiano, aos alimentos familiares

e a terra na qual nascemos e/ou crescemos, reforçando o sentimento de pertencimento.

1.3 Alimentação e cultura no contexto ilheense

[...] Pode-se esperar descobrir,

Para cada caso particular,

como a culinária de uma sociedade é uma

linguagem na qual ela traduz inconscientemente

sua estrutura, a menos que,

limite-se a revelar nela suas contradições

Claude Lévi-Strauss

Comentando Lévi-Strauss no seu famoso livro Le cru et le cuit ( O cru e o cozido),

Roberto Da Matta (1988, p. 624-625) observa:

A culinária é um código importante para muitas sociedades, pois reproduz

valores fundamentais que se manifestam mais claramente em outros

domínios. Dentro desta teoria, é fundamental recordar a oposição polar e

crítica entre o cru e o cozido, oposição que, para Lévi-Strauss, vai mais além

de seu empirismo óbvio para denotar, uma passagem crucial na própria

condição humana: entre um estado de natureza e um estado de cultura. O

fogo conquistado e domesticado, portanto, seria um símbolo da própria

humanidade, servindo para diferenciar um momento em que os homens

estavam em um estado semi-animal e outro em que se transformaram

realmente em humanos.

Importa ressaltar que a discussão entre civilizado e incivilizado está relacionada com o

conceito que o homem fazia sobre cultura e natureza, uma vez que até o século XVIII, o

conceito de cultura estava vinculado a uma relação dos humanos com a natureza objetivando

torná-la habitável para os homens.

A partir do século XVIII, essa visão foi modificada, de acordo com Chauí (2006,

p.12), “cultura passa a opor-se a civilização. Esta, entendida como um estágio acabado do

desenvolvimento social, econômico, político e científico, opõe-se à barbárie. É história.

Natureza é o que fazem os deuses, enquanto história é o que podem fazer os homens”.

Dentro dessa concepção referendada o índio sofre uma descategorização ao ter a sua

cultura vista como oposta à civilização do homem branco que por aqui aportou, portanto, uma

cultura tratada como se fosse inferior, ignorante e supersticiosa desde os tempos da

colonização enquanto em realidade a civilização indígena guarda saberes milenares que vão

desde a gastronomia ao cultivo de plantas e diversos modos de fazer e morar, sinalizadores de

uma maneira diferenciada de estar no mundo.

Nesse entendimento, a cultura quando oposta à civilização pode significar o que é

“natural” nos homens em oposição ao artificialismo da civilização, ou seja, designa a

inferioridade humana (a consciência, o espírito, a subjetividade) contra a exterioridade das

convenções e das instituições civis-civilizadas (CHAUÍ, 2006).

Todavia, também pode significar que a cultura passa a ser a medida de uma civilização

e, nesta conotação, como afirma a autora citada anteriormente, “cultura não é o “natural”

qualquer, mas o que é específico da natureza humana, ou seja, o desenvolvimento autônomo

da razão no conhecimento dos homens, da natureza e da sociedade a fim de criar uma ordem

superior (civilizada).

Com referência ao alimento e seu uso, a grande contribuição de Lévy-Strauss foi no

que diz respeito à concepção de diferença homem-natureza. O surgimento de uma lei de

ordem universal criada pelos homens a partir da separação entre natureza e cultura impôs a

condição na qual a transgressão de determinados comportamentos implicaria a morte ou a

ruína da comunidade e do indivíduo: “a lei que separa o cru e o cozido, desconhecida dos

animais. Observa-se que Lévy-Strauss toma dois mitos – o de Édipo e o de Prometeu dando

fogo aos homens – para explicar a passagem da natureza à cultura” (CHAUÍ, 2006, p.111).

Assim, o cru simboliza o desgaste e a luta enquanto o cozido simboliza a recuperação

e o retorno da cultura. O alimento trazido pelo português ao chegar ao Brasil passava pelo

cozimento, vinha de uma cultura tida como civilizada, ao passo que o índio tinha como

costume comer o alimento cru, em estado de putrefação, o que pode ser comparado aos

queijos alemães e outros alimentos que hoje são apreciados por diversas culturas globais, ou

ainda o alimento assado (após o uso do fogo). Tal comportamento denota, dentro da

concepção do “cru e do cozido” um estado semi-animal. Conforme Lévi-Strauss (2006):

O assado pode, assim ser colocado do lado da natureza, e o ensopado, do

lado da cultura, em dois sentidos. Realmente, já que o ensopado exige a

utilização de um recipiente, que é um objeto cultural, e simbolicamente, na

medida em que a cultura exerce sua mediação entre o homem e o mundo, e a

fervura também exerce uma mediação, pela água, entre o que o homem

incorpora e o outro elemento do mundo físico que é o fogo (LÉVI-

STRAUSS, 2006, p.433).

Tal compreensão nos leva ao raciocínio de que o alimento é apresentado ao homem

em três estados: o cru, o cozido ou o podre. A grande diferença ao relacionarmos os tipos de

alimentos com a cultura, é que o alimento cru ou podre revela sua transformação natural, ao

passo que o alimento cozido é marcado como uma transformação cultural do cru.

Nessa visão, afirma Lévy-Strauss que,

tomadas em si mesmas, tais categorias se reduzem a formas vazias, que nada

nos ensinam acerca da culinária de uma determinada sociedade. Somente a

observação etnográfica pode precisar o que cada uma delas entende por cru,

cozido ou podre, e não há razão alguma para que seja as mesmas coisas para

todos (LÉVY-STRAUSS, 2006, p. 431).

Assim sendo, cada sociedade adquire seus hábitos próprios que independentemente da

categoria na qual o alimento se encaixe (cru, cozido ou podre), são reveladores de um modo

de vida, uma cultura dinâmica, formadora de normas de comportamentos, de crenças, ritos,

hábitos dotados de significação e sentido vivenciados na prática cotidiana.

O que percebemos em relação à cultura indígena, foi que aos poucos, alguns hábitos se

modificaram em relação a alguns alimentos; outros não; as mudanças alimentares se deram

em conseqüência das misturas e trocas culturais que se processaram no tempo/espaço

ilheense, de modo que o gosto e as preferências foram se reconfigurando na alimentação

local.

A idéia de homem selvagem ou semi-animal e homem humano mudou a partir dos

estudos da Antropologia. Para Geertz (2008, p. 32), “o homem é precisamente o animal mais

desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de

tais programas culturais, para ordenar seu comportamento”. É justamente dentro desta idéia

de mecanismo de controle que o conceito de cultura tem seu impacto sobre o conceito de

homem, já que a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes

de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um. Logo, o homem não pode ser

definido apenas por suas habilidades inatas, nem apenas por seu comportamento real, mas sim

pelo elo entre eles, pela forma em que o primeiro é transformado no segundo, suas

potencialidades genéricas focalizadas em suas atuações específicas.

Os alimentos constituem aspectos culturais e registram as preferências do homem,

como enfatizado, suas crenças, ritos, costumes e hábitos e, dar margem, a uma nuance de

comportamentos em torno da comida, da escolha do alimento, do modo de preparo, o

comportamento diferenciado ante a comida é cultural, iniciando até mesmo com o leite

materno, a criança na cultura. Tido como “um dos mais notáveis rituais de socialização o que

se dá pela boca ou indicada para ela, o encontro entre o corpo e o mundo” (LODY, 2008,

p.72).

A cultura, na concepção da antropologia social, deve possuir necessidade e

universalidade para separar-se da natureza. Através das leis de proibição ou de aceitação é que

certos alimentos crus, podres ou cozidos passaram a serem sentidos como uma necessidade

universal, embora resultado de uma decisão humana. O costume indígena da antropofagia se

encaixa dentro dessa lei de proibição estipulada pelos homens brancos. Partindo do princípio

onde a lei humana é um imperativo social. “A lei não é uma simples proibição para certas

coisas e obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar

uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física e biológica). Esta ordem é a

ordem simbólica” (CHAUÍ, 2006, p.112).

É por conta dos símbolos que os homens instituem o que é permitido e o que é

proibido numa ordem cultural. Assim, para os índios tais diferenças soam reveladoras de

valores atribuídos em sua cultura obedecendo a uma ordem do que é permitido ou proibido,

visível ou invisível, sagrado ou profano, bom ou mal determinam regras e normas que

traduzem os costumes e hábitos cultivados pelos mesmos.

A alimentação indígena seguia a ordem de cru e assado e como em qualquer outra

cultura, valorizava-se o gosto e as preferências da tribo, lembrando que o ato em torno da

comida pode, ainda, obedecer a um ritual religioso e a uma ordem social. A comida é por isso

familiar, específica e particular em cada cultura. Dentre os costumes indígenas em tempos

passados, em torno da comida, estavam a antropofagia, costume ligado aos rituais religiosos e

as crenças indígenas.

Todavia, importa enfatizar que os índios desenvolveram técnicas e habilidades ao lidar

com o fogo e criaram modos de conservação do alimento, como foi visto no capítulo I, além

de comidas e alimentos derivados da mandioca que integram a mesa de muitos brasileiros e

estrangeiros que se adaptaram ao uso de tais ingredientes.

No que concerne a aspectos da alimentação e cultura no contexto ilheense os

ingredientes que hoje compõem a base da cozinha multicultural, advinda de contribuições do

índio, do português, do africano e dos sírios e libaneses, constatamos, através da história da

alimentação, que tais alimentos “viajaram” no tempo e constitui a essência da cozinha

Sulbaiana

Nesse propósito, ao falarmos na cozinha ilheense, modalidades de várias cozinhas

surgem como referência. Além do dendê, presente em toda a Bahia, a presença de raízes,

assados, mariscos, peixes locais, pratos variados da cozinha árabe, as adaptações de pratos

como o “cozido” feito com verduras e carnes – trazido pelo português e reelaborado pelos

brasileiros integram a nossa cozinha.

Tal trânsito alimentar compõe a história da alimentação no Sul da Bahia com base nos

costumes e hábitos daqueles que viveram na região. Obviamente, o alimento, as especiarias,

os temperos, aves, peixes, carnes, legumes e demais ingredientes inseridos na cultura

Sulbaiana passaram por um processo de aceitação e adaptação por parte dos nativos. Ao

serem incorporados em nossa cultura, muitos alimentos adquiriram a feição de alimento

regional, são, portanto, fonte de identificação.

Outros alimentos como, feijões variados, inhames, quiabos, acréscimos de camarões

defumados e dendê, além de cebola, pimenta e gengibre, fazem a base de uma mesa em que

vigoram acarajés, abarás, vatapás de peixe e de galinha, bobós, carurus, entre outros pratos.

Ainda os cardápios sagrados dos terreiros de candomblé trazem alimentos como o ipeté,

amalá e acaçá e bebidas como o aluá, feita de milho, rapadura, gengibre e água (LODY,

2008).

Muitas são as frutas regionais tais como jaca, carambola, cacau, fruta-pão, jenipapo,

groselha, pitanga, graviola, laranjas, bananas e tantas mais que se adaptaram a terra e serviram

de base para as compotas e sucos variados e também in natura – ao natural. Desse modo, o

meio ambiente é princípio e opção para os alimentos.

Ao tratar da alimentação, esse fenômeno complexo no qual se inserem aspectos

biológicos, psicológicos e sociais, a partir das Ciências Sociais opinam pesquisadores:

O diálogo entre a Antropologia física e a Antropologia cultural recomeçou, a

partir dos anos sessenta (século XX), com o desenvolvimento da Genética, a

qual ofereceu as novas bases científicas para a exploração da variabilidade

humana. A humanidade passou a ser uma mesma espécie politípica. Uma

disciplina emergiu, a Genética das populações, voltando-se para a

Antropologia cultural. A cooperação entre a Biologia e a Antropologia pôde

novamente ocorrer para trabalhar as interações entre o cultural e o biológico

(POULAIN, J; PROENÇA, R. – Revista de Nutrição, Scielo – Brasil).

O que implica dizer que a cultura não está à margem do fato biológico, a cultura não é

o único determinante, porém é um diferenciador potencial quando se estuda as questões da

alimentação na história de vida do homem.

O homem, diferente dos animais, constrói a sua morada, caça e colhe o seu próprio

alimento, cultiva plantas, cria animais. O homem prepara de modo variado seu alimento

mediante diferentes processos que deram origem ao assado, o defumado, o salgado e o

fervido. Para Schlüter (2006), tudo isso influencia em tornar comestíveis produtos que

ordinariamente não o eram e o desenvolvimento de uma série de técnicas relacionadas com a

elaboração de recipientes e utensílios de cozinha e um arsenal de regras e etiquetas que

acompanham os hábitos gastronômicos inerentes a cada localidade.

De acordo com Laraia:

A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do

homem e justifica as suas realizações; o homem age de acordo com seus

padrões culturais. Os seus instintos foram anulados pelo processo evolutivo

por que passou; A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes

ecológicos. Em vez de modificar para isso o seu aparato biológico, o homem

modifica o seu equipamento superorgânico. Em decorrência da afirmação

anterior, o homem foi capaz de romper as barreiras das diferenças

ambientais e transformar toda a terra em seu hábitat. Adquirindo cultura, o

homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através

de atitudes geneticamente determinadas. Como já era do conhecimento da

humanidade, desde o iluminismo, é este o processo de aprendizagem

(socialização ou endoculturação, não importa o termo) que determina seu

comportamento e a sua capacidade artística ou profissional. A cultura é um

processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações

anteriores (LARAIA, 2008, p.48).

Assim, o homem faz o que aprendeu com seus semelhantes e não decorre de

imposições geradas fora da cultura. O uso do alimento em suas diversas modalidades é algo

que também varia de cultura para cultura. É a partir do uso de símbolos que todo

comportamento humano será gerado como afirmou o antropólogo norte-americano Leslie

White (LARAIA, 2008). Esse pensamento confere com o que disse Lévi-Strauss, o mais

destacado antropólogo francês, ao considerar que a cultura surgiu no momento em que o

homem convencionou a primeira regra, a primeira norma.

A diferença entre o alimento como algo neutro e a comida como um alimento que se

torna familiar carrega toda uma carga de significado simbólico, aprendido pelo homem e

também resultante de sua experiência histórica das gerações anteriores. O hábito de comer,

por exemplo, caruru, vatapá, fritadas de mariscos, moquecas de peixe, pirão – herança da

cozinha africana hibridizada no Sul da Bahia, citando apenas alguns -, traz um significado

singular na história cultural da Bahia. Tal procedimento é revelador de uma ordem simbólica

que confere a atribuição de valor ao alimento trazido pelo colonizador e pelos escravos a esta

região e os diferencia de locais, transmitidos por outros hábitos alimentares de outras culturas.

Contudo, o mundo pós-moderno é o mundo das diferenças culturais, da multiplicidade

de gostos, sabores e saberes. Para o antropólogo Roberto Da Matta (1988, p.625), no Brasil a

associação entre o cru e o cozido aparece da seguinte forma:

O cru está associado à natureza, a masculinidade, a crueldade, ao pai e,

certamente, ao mundo da rua. O cozido, ao contrário, se liga à mulher, à

civilização, aquilo que é suave, bem condimentado e saboroso de comer, a

mãe e, obviamente, ao mundo da casa. No cru há desgaste e luta; no cozido,

recuperação e retorno ao universo da cultura.

Tudo isso leva à compreensão de que o código culinário permite integrar de modo

palpável o que é sensível e o que é concebido. Trata-se de uma esfera da experiência humana,

onde dificilmente se pode separar a forma do conteúdo, o gosto da aparência, o pensar do

fazer. Assim, o alimento no Brasil demanda a mais perfeita união da forma e do conteúdo,

como bem assinalou o antropólogo brasileiro. Os alimentos no Brasil são rituais; na alquimia

da preparação dos alimentos há um domínio onde “pode reinar a harmonia entre brasileiros de

diferentes origens e posições sociais, o domínio é precisamente o da comida” (DA MATTA,

1988, p.625).

Desse modo, a culinária inserida na cultura, as formas de habitação, os hábitos à mesa,

entre outras modalidades comportamentais simbolizam uma invenção da relação com o

“Outro”, este se referindo: “a natureza, os deuses, os estrangeiros, as etnias, as classes sociais,

os antepassados, os inimigos e os amigos” (CHAUÍ, 2006, p. 114). O que significa dizer que a

comida é representativa de uma relação de poder nas camadas sociais além de grande

diferenciador cultural entre povos e nações.

O Sul da Bahia e mais pontualmente o município de Ilhéus traz, em seu cardápio

variado pelas culturas enfatizadas neste estudo, elementos que mapeiam a presença de outras

nacionalidades. A história, o alimento e a cultura levaram o homem da região a apreciar: tanto

o quibe cru, como o quibe frito, tanto o alimento cozido: moquecas de peixe, ensopados de

carnes, ensopados de frango e outros alimentos cozidos, quanto os assados de carnes: de

porco, de carneiro, de aves de várias espécies, das saladas cruas com folhas, ao “cozido de

carnes com legumes e verduras”. A aproximação do cru e do cozido nesse contexto traduz

também uma relação de poder uma vez que o alimento (universal) foi transformado em

comida (familiar) e passou a integrar a cultura Sulbaiana.

Considerando tais preferências onde o código brasileiro é relacional e intermediário,

“tal como somos ligados à idéia de sermos um país de três raças, um país mestiço, onde tudo

que é contrário lá fora aqui dentro fica combinado revela essa mesma lógica. Temos, então,

uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma sociedade igualmente

relacional” (DA MATTA, In: IPHAN, 2005).

Pensar na formação étnica da região em destaque e as contribuições herdadas na

alimentação, portanto, implica levar em consideração tal diversidade de saberes e sabores

enraizados nos hábitos e costumes locais, reconfigurado no espaço/tempo ao longo da história

de conquistas de terras, da produção da cana de açúcar, da prosperidade reinante do fruto do

cacau nas terras do sem fim, da queda do cacau e dos tempos atuais.

A história inicia na medida em que a tradição se perde. Partindo desse princípio, é que

pesquisadores afirmam a relevância dos estudos da História da Alimentação, no sentido de

registrar e analisar a dinâmica espaço-temporal da memória gustativa em contextos pontuais.

Com base nesse raciocínio é possível dizer que na história da alimentação há uma linha de

continuidade na tradição em seu processo de reconfiguração. O que constatamos é uma

ligação da memória gustativa, atuando como fio condutor, relacionando a história coletiva ao

nível individual.

No momento atual de padronização de paladares, verificados nas lojas de fast-food, a

peculiaridade e historicidade de culinárias tradicionais, mesmo reconfiguradas no tempo, se

tornam significativas fontes de rememoração, pois concebe a memória viva e re-alimenta essa

memória, desse modo, permite conteúdo concreto a memória social.

Sem a presença de cozinhas variadas e sua culinária tradicional, as referências do

passado se perderiam no tempo. O que observamos em tempos globalizados é a acessibilidade

de alimentos originados de diferentes locais, devido à mídia, à internet e às facilidades dos

meios de transporte. Notamos que as iguarias elaboradas por grandes chefs de restaurantes,

estão constantemente retomando a tradição daquelas cozinhas cuja referência está no passado.

A tendência é que o paladar acompanhe as disponibilidades naturais do hábitat onde

se instalaram o que explica essa extraordinária quantidade de comidas inventadas pela

tradição, não triviais, hoje importantíssimas para o chamado turismo gastronômico. O uso de

especiarias, os “novos alimentos”, que foram assimilados e reconfigurados no contexto

histórico e social ilheense, vivos no cotidiano, apontam como uma possibilidade de

sustentabilidade para a comunidade local e, também, como um produto turístico atrativo para

Ilhéus.

2. IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO GASTRONÔMICO NO CONTEXTO

TURÍSTICO ILHEENSE: A ALIMENTAÇÃO COMO MARCA IDENTITÁRIA DE

UMA CULTURA E FOCO DE INTERESSE TURÍSTICO.

O gosto, esse sentido, esse dom de distinguir

nossos alimentos, produziu em todas as

línguas conhecidas, a metáfora que com o termo gosto

expressa os sentimentos das belezas e dos defeitos

em todas as artes

Voltaire

Neste capítulo, será investigado, com base nos processos de hibridização discutidos na

etapa anterior, de que modo a gastronomia como um produto turístico ou atrativo local vem

sendo utilizada nos cardápios de hotéis, restaurantes e cabanas das praias do Sul do município

de Ilhéus – Bahia, com o propósito de valorizar a sua diversidade de maneira sustentável. Para

tal, foi realizada uma coleta de dados no município citado, no período de alta estação, no mês

de julho de 2009, assim considerado em atenção ao fluxo turístico e presença de atividade

comercial voltada para o turismo local.

Como é sabido, a culinária, como bem simbólico expressa costumes, hábitos, crenças e

tradição, reconfiguradas no tempo/espaço. Portanto, trata-se de um patrimônio gastronômico

herdado pela fusão étnica que originou história, sociabilidade, economia, política e cultura

com a dinamicidade que é própria da atribuição de significados das ações humanas. Por ser

considerado um dos campos mais representativos da cultura de um país é que se diz que o

repertório e ingredientes – ora tradicionais, ora universais - são fontes de identificação para a

cultura ilheense.

Ao abordarmos o termo “culinária tradicional” ou cozinha tradicional, enfatizamos o

alimento transformado em comida, de feitio familiar, ligada por vezes a uma região, cuja

dimensão vai além da perspectiva biológica da alimentação, portanto, trata-se de uma cozinha

vinculada a aspectos histórico, cultural, social, religioso e econômico.

Como é sabido, no Sul da Bahia e na Bahia como um todo, houve imigrantes

africanos. O dendê, ingrediente abordado na primeira parte desta pesquisa e um dos mais

disseminados na cultura baiana é presença marcante no preparo de pratos da cozinha africana.

Contudo, o modo de fazer diferencia de lugar para lugar. A presença do índio, nativo, está em

toda parte do território brasileiro, através das marcas de seus saberes e hábitos alimentares,

principalmente traduzidos no uso das raízes.

O que denominamos de culinária “tradicional” ou cozinha “tradicional” é a cozinha

reelaborada e ressemantizada. O que implica dizer que o gosto alimentar da cozinha regional

norteou-se tendo por base a herança cultural, o processo de hibridização e, no caso de Ilhéus,

foi acrescido da presença árabe e demais etnias que passaram pelo local e diversificaram a sua

culinária, criando um diferencial em comparação com outras cozinhas, conforme abordado.

Para Oliven (2006, p.34) “identidades são construções sociais formuladas a partir de

diferenças reais ou inventadas que operam como sinais diacríticos, sinais que conferem uma

marca de distinção”. Nesse sentido, afirmava Lévi-Strauss ser a identidade abstrata, porém

indispensável como ponto de referência (LÉVI-STRAUSS, 1977). A identidade, desse modo,

traduz pertencimento, simboliza saberes e preferências singulares.

Na perspectiva do turismo, refletir acerca da importância do patrimônio gastronômico

no contexto ilheense equivale pontuar qual a demanda da comunidade ou governo local para

que políticas culturais surjam a partir dessa necessidade. Será que o turismo em Ilhéus

acontece de modo que sejam valorizadas as representações simbólicas?

Por certo, a comunidade, empresários, governo e demais pessoas envolvidas no

comércio gastronômico necessitam conhecer as fontes de interesse que motivam visitantes ou

turistas a virem à cidade de Ilhéus a fim de propiciar uma oferta satisfatória, condizente com

as reais necessidades daquele que se desloca, seja por lazer, seja a negócios. Nesse foco, é

necessário dar ênfase a um ponto essencial: conhecer a história local no que concerne à

formação étnica, híbrida, na alimentação de Ilhéus e entorno, a fim de melhor aproveitar a

variada culinária local e utilizá-la de forma atrativa nos cardápios de hotéis, restaurantes e

cabanas de praia em prol do turismo gastronômico sustentável. Tal procedimento poderá

garantir mais uma possibilidade de turismo cultural para Ilhéus.

O turismo sustentável, atualmente voltado à proteção também do meio ambiente,

“inclui os recursos construídos pelo homem, tais como, casas, cidades, monumentos

históricos, sítios arqueológicos, e os padrões comportamentais das populações – folclore,

vestuário, comidas e o modo de vida geral” (RUSCHMANN, 2001, p.19), todos esses são

elementos que diferenciam as comunidades.

Para a Organização Mundial de Turismo – OMT, turismo sustentável é aquele

ecologicamente suportável em longo prazo, economicamente viável, assim como ética e

socialmente equitativo para as comunidades locais. É largamente divulgado pela mídia que o

desenvolvimento sustentável do turismo é atualmente uma preocupação geral e urge a

participação estratégica dos países que se utilizam do turismo a fim de reduzir a pobreza,

incentivando por meio de políticas públicas uma educação com base na inclusão social e na

valorização da mão de obra em recursos utilizados pelo turismo.

Contudo, na prática, o que se observa é uma carência efetiva de apoio e políticas

públicas voltadas para a educação patrimonial em Ilhéus e entorno, tendo por base o estudo do

patrimônio como uma categoria individualizada, seja quando trata do aspecto econômico e

financeiro, seja como patrimônio cultural. Logo, medidas e ações bem articuladas nessa

ordem são fundamentais para a perspectiva de um turismo sustentável.

Ainda com base nos princípios da Organização Mundial de Turismo (OMT, 2003, p.

24):

O desenvolvimento do turismo sustentável atende às necessidades do turista

de hoje e das regiões receptoras, ao mesmo tempo em que protege e amplia

as oportunidades para o futuro. É visto como um dos condutores do

gerenciamento de todos os recursos, de tal forma que as necessidades

econômicas, sociais e estéticas possam ser satisfeitas sem desprezar a

manutenção da integridade cultural dos processos ecológicos essenciais, da

diversidade biológica e dos sistemas que garantem a vida.

Nessa compreensão, o cuidado com o meio ambiente, buscando evitar a depreciação

de recursos naturais utilizados, deve ser rigorosamente obedecido no intuito de minimizar os

impactos. Para tal, ações de conscientização ambiental devem ser propagadas também junto à

comunidade. O cuidado com os rios, mar, mangues, florestas, etc., devem fazer parte de uma

educação patrimonial.

Devem, ainda, ser consideradas por parte dos gestores culturais, as questões

relacionadas ao ambiente natural em prol de interesses governamentais, empresariais e da

própria comunidade, por parte dos gestores culturais. Foi observado que o descuido com os

rios, os mangues, mares, poluição e desmatamento florestal acabaram por modificar a flora

ambiental e alteraram certos hábitos alimentares, pela escassez de certos produtos e extinção

de outros na flora ambiental de Ilhéus. É o caso do pitu, tão conhecido e consumido outrora na

região Sulbaiana, cuja pesca e venda está proibida atualmente.

Portanto, o planejamento turístico deve considerar as vivências cotidianas da

comunidade na qual o turismo está inserido, buscando reforçar as questões de ordem

socioeducacional. Muitos dos padrões comportamentais que constituem patrimônio imaterial

poderiam ser utilizados com mais eficácia de modo a favorecer o turismo sustentável para a

comunidade ilheense, empresários e governo.

Os bens culturais, representados pelas vivências cotidianas, devem estar ajustados com

as condições demográficas, geopolíticas e histórico-culturais, voltadas para um modo de vida

específico, próprio do lugar e seus moradores. Para tal, há de se considerar, por exemplo, os

direitos do índio quando esse produz a sua farinha de mandioca para a venda na feira local e a

luta pelo seu espaço e suas crenças como um direito constitucional. Também os produtos

alimentícios que são fabricados de modo ainda artesanal por membros de dada comunidade e

aparecem nas feiras de Ilhéus, contudo são pouco visíveis nos pontos turísticos.

Assim, ações com visibilidade ao turismo devem operar como instrumento

transformador de desigualdades econômicas e sociais. A parceria entre turismo e gastronomia

deve cultivar e revigorar o sentido de comunidade e lugar, buscar apreciar e apoiar a

criatividade, a inventividade dos pratos inventados pela cultura local e daqueles cozinheiros

que preparam e servem seus quitutes com arte e conhecimento específico da região em

restaurantes, hotéis e cabanas de praia.

Ao tratarmos de políticas culturais, inseridas nas políticas públicas, devemos ter claro

o exercício da “nova cidadania” (GASTAL; MOESCH, 2007). Em tempos de globalização, o

conceito de cidadania foi ressignificado e a cidade passou a ser vista não como um espaço

físico, mas como um espaço no qual circulam pessoas, idéias, saberes, e onde as culturas, o

imaginário urbano e o conceito de cidadania seriam pactuados.

Gastal e Moesch (2007), citando Demo, afirmam que:

Políticas públicas que incentivem a cidadania como acesso deveriam ser

redistributivas em termos de renda e poder, acrescentando-se que, hoje, tão

importante como a posse de bens materiais, é a posse e o manejo de bens

simbólicos; ser equalizadoras de oportunidades no sentido de instrumentar

desiguais para que tenham chances históricas pelo menos mais aproximadas;

ser emancipatórias, não no sentido de doar a emancipação ao outro, mas de

que ele possa emancipar-se; ser preventivas e não curativas. Deveriam supor,

ainda, o acesso as esferas públicas de debate e decisão, pois são elas que

garantem a cidadania (GASTAL; MOESCH, 2007, p.34).

Nesse sentido, ao abordarmos temas gastronômicos enfatizamos também as questões

que tratam da inclusão social. O comércio de produtos alimentícios a exemplo das barracas de

beiju, tapiocas, pamonhas – produtos de herança indígena; o comércio de acarajé e abará -

uma tradição que ultrapassa meio século na Praça Castro Alves de Ilhéus; e demais produtos

regionais: cocadas de cacau, frutas regionais cristalizadas ou desidratadas, vendidos por

pequenos produtores locais, de pouca circulação em pontos turísticos, são aspectos a serem

notificados, tendo em vista que tais produtos poderiam incrementar a oferta nos cardápios e

feiras gastronômicas de Ilhéus.

Conforme Yúdice (2006, p.25), “o papel da cultura expandiu-se como nunca para as

esferas política e econômica, ao mesmo tempo que as noções convencionais de cultura se

esvaziaram muito”. A abordagem cultural nos tempos de hoje, para o referido autor, é

caracterizada como uma cultura de globalização acelerada, como um recurso. É nessa ordem

que a cultura como recurso ganhou legitimidade e vem para fortalecer o tecido social através

de oportunidades de emprego em torno de atividades culturais, buscando uma produção

organizada para a sustentabilidade.

O conceito de recurso vem abolir distinções entre definições de alta cultura, da

antropologia e da cultura de massa (YÚDICE, 2006). Assim, tanto os museus promovem o

desenvolvimento urbano quanto os “rituais, práticas estéticas do dia-a-dia, tais como canções,

lendas populares, culinária, costumes e outras práticas simbólicas também são mobilizadas

como recurso para o turismo e para a promoção das indústrias do patrimônio” (YÚDICE,

2006, p.11).

Certamente, a gastronomia não é a principal forma de lazer e entretenimento para os

turistas que visitam Ilhéus hoje, embora a riqueza e variedade culinária, advinda de etnias que

habitaram Ilhéus em tempos passados, tenham deixado como legado, saberes que podem ser

atrativos ao turismo se bem aproveitados. Todavia, a importância do patrimônio gastronômico

é algo atribuído pelos moradores de um lugar. Não há nada mais revelador dos conceitos

básicos de uma cultura que os costumes da alimentação. De acordo com Schlüter (2006, p.

115), “No hay ritual que se practique en más lugares, que forme más identidad social ni que

diferencie mejor a los grupos sociales que los hábitos cotidianos a la hora de comer”.

Portanto, realçar o que uma cultura tem por peculiar em seus costumes e hábitos é

também levar um pouco da sua história para os cardápios e incentivar o visitante a conhecer

mais do lugar o qual ele está visitando. Naturalmente, nem todos irão se interessar pelas

comidas com dendê, pelos sabores apimentados, mas saberão reconhecer, se bem orientados

nesse sentido, por que esses elementos são valorizados e terão múltiplas opções de escolha

devido à variedade na oferta de alimentos regionais, além do alimento considerado universal.

O conceito de turismo empregado nesta pesquisa defende a seguinte ideia:

O turismo é uma combinação complexa de interrelacionamentos entre

produção e serviços, em cuja composição integram-se uma prática social

com base cultural, com herança histórica, a um meio ambiente diverso,

cartografia natural, relações sociais de hospitalidade, troca de informações

interculturais (MOESCH, 2000, p. 09).

Desse modo, o turismo é um elemento favorável a uma dimensão plural da cultura e

poderá ser fonte de renovação para a comunidade, através do produto turístico, que também

pode ser um elemento de identidade e pertencimento. Tal raciocínio permite reafirmar que em

torno da comida há um comportamento que expressa toda trama de valores e relações de

significados, como já dito por Da Matta (1988), delineadores de expressões culturais e

formadores de identidades culturais que despertam interesse ao turismo cultural.

Para Da Matta (1988, p. 621), “no caso brasileiro, há normas precisas que definem a

relação entre o alimento ingerido e o caráter ou estado da pessoa que o ingere”, de modo que

certos alimentos falam precisamente de certas relações sociais. Assim, a alimentação é um

suporte para a identidade e contribui para a construção do indivíduo sob aspectos social,

territorial e religioso como apontam estudos atuais.

Cabe ressaltar que a definição de turismo cultural é bastante variável de país para país,

não obstante, a gastronomia esteja presente em toda forma de turismo cultural espalhado pelo

globo. Na opinião de Reis (2007, p.248) “o turista quer ir além da situação tradicional de

expectador passivo”, caso que se aplica ao visitante ou turista que tem curiosidade pelas

atrações do local visitado. É o turista que busca a experiência, a interação.

Sendo assim, ao visitar uma cidade nova o visitante ou turista, dentro da ótica referida

acima, busca estreitar a convivência com os moradores e saber mais sobre a história local, os

hábitos e costumes, as receitas tradicionais, e outras manifestações culturais, pois ao

retornarem as suas casas não levarão apenas as fotos como lembranças, mas as experiências

compartilhadas pelos novos contatos.

É nessa concepção que o turismo cultural se diferencia do turismo de sol e mar:

A Organização Mundial de Turismo [OMT] entende por turismo cultural um

fluxo de pessoas cujo objetivo principal está relacionado aos festivais,

música, teatro, eventos, visitas a locais históricos, religiosos, ou a sítios

arqueológicos, exposições, museus, cursos, conferências etc. (REIS, 2007, p.

248).

Tais interesses, desencadeadores do turismo cultural, sempre envolvem a gastronomia.

Onde estão presentes as festas tradicionais surge, naturalmente, um pedaço de nosso cardápio

de manifestações culturais. É assim que nas festas juninas, nas festas de largo, nas

comemorações de padroeiros das cidades, dentre outros festejos, encontramos uma miríade de

manifestações relativamente restritas à comunidade local e, nelas todas, conferimos a

gastronomia como expressão viva de uma comunidade.

Essa fusão de crenças e saberes traz a memória de bens culturais e sua trajetória no

tempo, lembrando que tais manifestações culturais são processos culturais dinâmicos em

constante desenvolvimento e transformação e que “o registro de tais expressões permite

identificar de modo bastante preciso as maneiras mais adequadas de apoio à sua continuidade”

(SANT’ANNA, 2003, p. 52).

A proposta deste capítulo, portanto, está atrelada à valorização da herança cultural do

índio, do português, do africano e árabe nos cardápios dos locais turísticos como uma forma

de contemplar a história no tempo, ainda que o tempo atual já não seja o tempo passado. O

tempo atual é um convite à tradição reconfigurada, obedecendo à dinâmica cultural; somente

nessa concepção poderá haver respeito e valorização dos bens simbólicos locais e o

desenvolvimento do turismo cultural.

Nesse raciocínio, serão desenvolvidos três enfoques, neste capítulo: A cozinha

ilheense: vivências da herança cultural em tempos modernos; Como os cardápios de

hotéis, restaurantes e cabanas de praia refletem as identidades gastronômicas em prol

do turismo; Aspectos étnicos e hibridização dos alimentos.

2.1 A cozinha ilheense: vivências da herança cultural em tempos modernos

Suas memórias, como as minhas,

são como noite de São João:

Tudo aceso e quente, estrelas no chão,

devaneios no ar, coração na mão,

delícias sobre a nossa mesa, a gratidão a Deus,

o amor fraterno, a saúde no prazer

Maria Bethânia

Ao abordar traços da cozinha de Ilhéus no contexto atual, torna-se essencial um olhar

cuidadoso acerca da memória viva no cotidiano da comunidade. Muitas vezes, produtos e

serviços culturais representam uma mensagem simbólica, porém, são comercializados e

integram o contexto social, histórico e cultural da cidade sem que as pessoas envolvidas no

comércio e a própria comunidade local tenham a percepção da potencialidade de tais

produtos.

Desse modo, podemos conferir: o beiju, a tapioca, a farinha de mandioca, pamonha de

milho, doces artesanais, cocadas, licores regionais, pratos da cozinha local, entre outros

produtos são comercializados em feiras livres e mercados, contudo estão longe dos locais

turísticos frequentados em época de alta estação. É evidente que o valor social conferido a um

bem ou mercadoria reflete suas crenças, modo de viver e pensar e constitui identidades

culturais.

Logo, por que não valorizar essas heranças culturais representativas de um contexto

social e histórico em forma de saberes gastronômicos que através de objetos e utensílios

traduzem o modo de fazer e o cotidiano das pessoas de Ilhéus, dando valor de existência a

esses bens culturais, e, portanto, criando possibilidades de torná-los atrativos aos visitantes ou

turistas?

Throsby considera que,

há um mercado físico para as obras de arte e um mercado paralelo para as

ideias, que são um atributo ou produto necessário dessas obras. O mercado

físico determina o valor econômico da obra; o mercado das ideias determina

seu valor cultural. O fato de a obra física ser o veículo transmissor da ideia a

transforma de bem econômico ordinário em bem cultural (THROSBY citado

por REIS, 2007, p. 20).

É com base nessa concepção que desenvolvemos esta pesquisa, dando enfoque ao

valor econômico e ao valor cultural do patrimônio gastronômico do referido município,

legado de vivências cotidianas e saberes ancestrais, de experiências na forma de

conhecimento passado de uma geração a outra, a fim de que mecanismos de preservação

desse patrimônio sejam operados, tendo a Cultura como um grande vetor para o turismo. ´

Tal entendimento subentende a apropriação da cultura pela economia criativa e pelo

turismo graças à capacidade que o homem tem de criar símbolos. A partir do significado

atribuído por cada cultura aos símbolos criados em sociedade, teremos a produção da cultura.

Torna-se fundamental, portanto, que haja uma articulação entre comunidade, empresários e

poder público no momento de planejar as atividades atrativas de uma cidade, inserindo bens

simbólicos locais no roteiro de atividades que promovem a inclusão tanto social quanto

cultural.

Com base nessa compreensão, as pessoas conhecedoras de saberes culinários que

remetem à história local e moram em Ilhéus e entorno, se tiverem seus trabalhos valorizados e

forem apoiadas em suas expressões culturais, podem recriar uma ambiência favorável à troca

cultural, veiculada a presença da comunidade e de visitantes ou turistas que vêm conhecer

Ilhéus. Contudo, para que seja visível o modo de fazer, morar, se alimentar e existir revelados

por Certeau (1990) e lembrados nesta pesquisa, sem dúvida, àqueles que planejam e estão

envolvidos nas atividades turísticas devem considerar que: “o enfoque da cultura começa

quando o homem ordinário se torna o narrador, quando define o lugar (comum) do discurso e

o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento” (CERTEAU, 2008, vol. 1 p. 63, grifo do autor).

Assim, pessoas empreendedoras que vivem à margem, embora comercializem o

alimento de modo simples, tais produtos encontrados nas ruas, nas praias, nos tabuleiros de

mercado e feiras, têm ainda, um lugar modesto e necessitam alargar seus horizontes, aparecer

também nas praças de acarajé e nos espaços e circuitos frequentados por turistas que se

interessem em buscar a novidade, aquilo que constitui o diferencial do lugar visitado.

O município de Ilhéus, com quase cinco séculos de existência, possui uma história da

alimentação e tem cultura produzida. Todavia, “o fazer” que simboliza a produção cultural e

faz parte da realidade de um grupo, por conseguinte, está relacionado à memória coletiva e

individual deste último, ainda não é bem trabalhado como elemento que pode fortalecer o

tecido social. Para que isso ocorra, é necessário, por parte dos que planejam o turismo, a

articulação em forma de apoio financeiro ao bem produzido no incentivo do comércio ainda

incipiente, de produtos que integram o contexto histórico/cultural local.

Tais produtos se utilizados com propriedade podem ser favoráveis ao turismo

gastronômico na elaboração de cardápios, nas feiras gastronômicas, no aproveitamento do

bem simbólico local no desenvolvimento sustentável, na valorização da mão-de-obra local e

serviços prestados ao turismo pela comunidade.

Importa salientar que o homem faz parte de uma sociedade, composta de grupos que

tem experiências e vivências diversas, expressas por meio de gostos e preferências

alimentares, no uso de utensílios que servem à cozinha considerada familiar ao grupo. Desse

modo, o que é um acontecimento real, um modo de ser e de viver comum, outrora vivido, irá

evoluir de acordo com esse quadro de referência sendo reconfigurados pelo tempo/espaço.

Assim:

[...] o “eu” e sua duração situam-se no ponto de encontro de duas séries

diferentes e por vezes divergentes: aquela que atém aos aspectos vivos e

materiais da lembrança, aquela que reconstrói aquilo que não é mais se não

do passado. Que seria desse “eu”, senão fizesse parte de uma “comunidade

afetiva” de um “meio efervescente”, do qual tenta se afastar no momento em

que ele se “recorda”? Certo, a memória individual existe, mas ela está

enraizada dentro dos quadros diversos que a simultaneidade ou a

contingência reaproxima momentaneamente (HALBWACHS, 1990, p.13-

14).

Tal concepção pode ser conferida tratando-se da culinária, no modo de fazer uma

receita, no uso de ingredientes na cozinha, e de histórias contadas por moradores locais em

torno de um prato. Memórias individuais que remetem ao passado e através das lembranças

trazem à tona acontecimentos vividos, revelam uma época, registros de opulência do

cotidiano de Ilhéus, assim como a servidão por parte daqueles escravos/operários que

elaboravam sua comida e usavam da criatividade para aguçar paladares.

O que pode ser observado é que aspectos referentes à comida estão ligados à memória

desde a infância numa sucessão de lembranças e acontecimentos onde a experiência

individual e a relação de grupo, com os quais estamos interligados, estão a intermediar-se.

Embora, ocasionalmente, como afirma Halbwachs (1990) haja uma contradição entre o ser

histórico e o ser íntimo, esse último pode ser traído necessariamente socializando-se.

Com base nessa proposição é que compreendemos o quanto nas práticas cotidianas, a

exemplo do que diz Kant e reitera Certeau (2008, vol. 1, p.145), “a faculdade de julgar

ultrapassa o entendimento”. Então, o juízo não se refere apenas à conveniência social, na ótica

do referido autor, e, nessa ordem, a autoridade do discurso é sempre local e concreta: o

homem ordinário, meu lugar, minha terra, meu país.

Assim, tais referências implicam:

Em um saber (você pode fazer a mesma coisa quando conhece o truque), ao

passo que os que dançam a corda [Seiltänzer] dependem de uma arte. Dançar

sobre a corda é de momento em momento manter um equilíbrio, recriando-o

a cada passo graças a novas intervenções; significa conservar uma relação

nunca de todo adquirida e que por uma incessante invenção se renova com a

aparência de “conservá-la”. A arte de fazer fica assim admiravelmente

definida, ainda mais que efetivamente o próprio praticante faz parte do

equilíbrio que ele modifica sem comprometê-lo. Por essa capacidade de

fazer um conjunto novo a partir de um acordo preexistente e de manter uma

relação formal malgrado a variação dos elementos, tem uma afinidade com a

produção artística. Seria uma inventividade incessante de um gosto na

experiência prática (CERTEAU, 2008, vol. 1, p.146).

O modo de fazer é que vai criar o diferencial. Seja na cozinha, seja na arte que

acompanha o equilibrista, o dançarino, o músico, enfim. Um prato típico elaborado pode ser

modificado na composição de alguns ingredientes, sem com isso, necessariamente,

comprometer na essência o que ele culturalmente simboliza para a região. De modo que ao

referir-se à moqueca de peixe, ou mariscos, feita na Bahia, composta de temperos específicos

e com azeite de dendê, acompanhada do pirão feito do caldo da moqueca, temos um modo de

preparar que, de acordo com o local, pode ou não passar por variações, contudo não deixa de

ser uma moqueca baiana pelo uso obrigatório de um ingrediente: o azeite de dendê.

Por sua vez, alimentos referidos na primeira parte desta pesquisa, trazidos por

estrangeiros, ao incorporarem-se à sociedade ilheense da época foram acrescidos no seu

preparo de elementos que modificaram o modo de fazer. O acarajé é um desses alimentos que

encontrou variações no acréscimo de ingredientes e seus acompanhamentos ao ser inserido no

cotidiano baiano.

Na percepção de uma das entrevistadas na arte dos saberes culinários, descendente de

avô português e avó brasileira, mais especificamente baiana, conhecedora da arte de cozinhar,

herança adquirida de sua mãe, opina: “a comida sofre modificações com o tempo e causa-me

certa decepção alguns acréscimos como a salada no acarajé” (Maria do Carmo Manso

Cardoso e Silva)8.

Entretanto, temos ciência de que a comida é suscetível de outras influências no

convívio humano, não representa algo cristalizado, pelo contrário é permanentemente

transformado no modo de fazer o que se come, como se come e o seu preparo. O homem é

causador de tais mudanças na proximidade com seu semelhante, na curiosidade e na busca

incessante pelo novo. Todavia, esse homem sente necessidade de preservar a sua história

como identificação e pertencimento revitalizado em suas memórias.

É com base nessa concepção que as heranças culturais podem ser um atrativo a mais

para o turismo por promover uma compreensão da experiência do estilo de vida das

sociedades visitadas, os hábitos e costumes, as tradições, o ambiente físico, englobando

aspectos históricos e patrimoniais, indispensáveis a um planejamento turístico eficiente a

longo ou curto prazo.

Ao abordar a culinária, torna-se quase impossível não falarmos de memória e de

lembranças. E, ainda, reportamo-nos à fala da entrevistada citada anteriormente:

Na comida de minha mãe o dendê era apenas para dar cor; a base da comida

era o azeite doce [azeite de oliva]. Trazia a característica da comida

portuguesa. Dentre o cardápio utilizado no cotidiano, na época áurea do

cacau, estava o bacalhau, também a comida africana, o arroz de Hauçá e

outros. Minha mãe Olguinha usava a castanha e o camarão seco. Não usava

o amendoim. Em sua comida, só usava o pimentão vermelho e não o verde,

porque acreditava que o verde mudava a cor da comida. A aparência da

8 Entrevista realizada com dona de casa, conhecedora da culinária ilheense e neta de avô português, Maria do

Carmo Manso Cardoso e Silva em Ilhéus, Bahia, 23 de julho de 2009.

comida de minha mãe era bonita e cheirosa... (Maria do Carmo Manso

Cardoso e Silva)9.

No mais, quando o tempo refere-se à culinária, esse é um condutor entre o passado e o

presente. A comida através da lembrança, da memória olfativa e da memória visual, traz o

conhecimento e a história vivenciada por aqueles que recordam. Segundo Halbwachs (1990,

p.51): “a sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre

pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é,

em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte, e em seu

conjunto”.

Assim, o visitante ou turista levará consigo a memória do lugar visitado e uma das

impressões mais fortes relaciona-se com a gastronomia. Nesse sentido, a gastronomia e todo

aparato em torno dela é capaz de marcar nossas impressões a tal ponto que ao falarmos ou ao

vermos determinada iguaria imediatamente aludimos a uma lembrança ou ambiente onde

vivenciamos certas experiências. Naturalmente, se as mesmas forem agradáveis, o visitante ou

turista pode sentir-se motivado a repetir tais encontros.

Navegar é preciso, já dizia o grande poeta português Fernando Pessoa. Por meio da

viagem, o homem apreende outra realidade que não a sua; essa troca cultural enriquece tanto a

comunidade que recebe o visitante ou turista, quando está aberta e receptiva, quanto enriquece

aquele que vai a busca da aventura, do lazer e de novas experiências.

É nessa perspectiva que afirmam pesquisadores modernos serem as políticas turísticas

aquelas que encontram no destino a unidade base de gestão. Assim, o espaço geográfico,

características históricas, antropológicas e/ou sociológicas são atributos que devem configurar

na unidade turística como destino levando em consideração o momento de defini-lo.

O morador de uma cidade tem uma experiência de vida que possui um significado; não

somente para ele, a experiência de viver, morar e cozinhar, traduzida no cotidiano e

designada, algumas vezes, como uma “não-história” (CERTEAU, 2008); essa última interessa

ao turismo como um traço cultural justamente por conduzir o narrador e o espectador ao

“mundo-memória” – memória olfativa, memória dos lugares, da infância, memória do corpo,

dos gestos da infância, dos prazeres.

O prazer em apreciar uma iguaria é algo que precede à ideia de civilização, pois o

homem considerado selvagem há séculos atrás, na figura do índio, já sabia apreciar o alimento

que consumia e, verificamos que isso é algo cultural. A criatividade na arte de cozinhar é que

9 Entrevista realizada com dona de casa, conhecedora da culinária ilheense e neta de avô português, Maria do

Carmo Manso Cardoso e Silva em Ilhéus, Bahia, 23 de julho de 2009.

vem conformar a inventividade de pratos elaborados desde a época em que os portugueses

chegaram ao Brasil trazendo suas mulheres e aliaram, aos saberes ancestrais, o conhecimento

de novos ingredientes numa mistura que resultou na cozinha tradicional Sulbaiana.

Em suas memórias, a entrevistada acima, cuja descendência é portuguesa, assim

define: “Minha mãe sempre usava a moqueca de peixe, de ovo, de carne, de mariscos e muitas

vezes, inventava pratos com arte e simplicidade. A comida africana era a mais utilizada e

depois, a portuguesa. A minha mãe dizia que o milho era a única coisa que tinha sabor

próprio” (Maria do Carmo Manso Cardoso e Silva)10

.

Nesse universo de saberes e sabores é incorporado lembranças de uma época de caças

tais como: paca, tatu e outros que reportam a vivência indígena na região e vislumbra o

hibridismo cultural que responde por tamanha mistura de ingredientes, de especiarias e

alimentos na cozinha Sulbaiana e na cozinha brasileira de modo mais abrangente.

A herança culinária vem do conhecimento de uma receita que é passado de mãe para

filha(o), de uma geração à seguinte. Conforme entrevista realizada, o conhecimento do saber

culinário da cozinha tradicional, aqui entendendo por essa última a cozinha multicultural, por

vezes, nasceu da observação do cotidiano dos familiares:

Sou conhecedora da origem da cozinha étnica através de minha mãe, grande

conhecedora da herança cultural da fusão dessas cozinhas: portuguesa,

indígena e africana. Venho de uma família onde todos cozinham bem, não só

minha mãe. Sempre houve troca de receitas e as receitas se referiam ao nome

das tias. Há receitas cujo título se configura: arroz à Maricá [uma variação

do arroz de Hauçá], “Receitas Olguinha” e assim por diante (Maria do

Carmo Manso Cardoso e Silva)11

.

Cabe enfatizar que, em entrevista realizada no Restaurante Vesúvio, foi observado que

o prato da casa oferecido no cardápio tem como título o nome de uma pessoa amiga, que

frequenta o restaurante ou alguém que criou e/ou aprecia a receita. Tal frequentador do bar é

uma pessoa vinculada ao contexto sócio/cultural da cidade de Ilhéus. Assim se referiu o dono

do bar e restaurante Vesúvio, bar famoso nas histórias de Jorge Amado, que está completando

um século de existência.

Em séculos de existência a memória individual e a memória coletiva do município de

Ilhéus, ora se apóiam momentaneamente, ora seguem seu próprio caminho, contudo, uma não

10

Entrevista realizada com a dona de casa, conhecedora da culinária ilheense e neta de avô português, Maria do

Carmo Manso Cardoso e Silva em Ilhéus, Bahia, 23 de julho de 2009. 11

Entrevista realizada com a dona de casa, conhecedora da culinária ilheense e neta de avô português, Maria do

Carmo Manso Cardoso e Silva, em Ilhéus, Bahia, 23 de julho de 2009.

se confunde com a outra. Ao reportar o convívio de pessoas da comunidade que

compartilharam experiências passadas de morar e cozinhar, não obstante, atentamos que tais

memórias individuais não estão inteiramente isoladas e fechadas.

Segundo Halbwachs (1990, p.54) “um homem para evocar seu próprio passado tem

frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos

de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade”. Assim, nossa memória

é o registro de uma impressão vivida, sentida e pensada em um tempo/espaço e, mesmo sendo

uma lembrança singular e limitada pelo olhar individual, ela está atrelada à memória coletiva

do grupo o qual pertencemos.

Transcrever a fala daqueles que vivem em sociedade e possuem a experiência com

alimentos há pouco menos que um século ou metade dele, trabalharam ou ainda trabalham

com comida e, por isso, têm suas vidas vinculadas a uma história de alimentar-se, e alimentar

o outro é compreender parte da herança cultural que engloba o contexto histórico e social de

Ilhéus.

Por conseguinte, os registros das falas dos entrevistados remetem a uma história do

cotidiano que se apóia na memória viva e não na história aprendida; nesta última,

acontecimentos locais e nacionais são repassados, porém eles não integram a experiência da

sociedade de hoje. É desse modo que,

a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que

acaba ou decompõe a memória social. Enquanto uma lembrança subsiste, é

inútil fixá-la por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. Assim, a

necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade, e

mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles já estão muito distantes

no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar por muito tempo

ainda em torno de si muitas testemunhas que dela conservem alguma

lembrança (HALBWACHS, 1990, p.80).

O que a pesquisa configura, nesta abordagem, são experiências vividas por pessoas

detentoras do conhecimento da culinária local que, no ato de morar e cozinhar, narraram sua

história de vida, através de depoimentos e, dessa forma, mapearam o contexto sócio-histórico,

econômico e cultural de Ilhéus por intermédio da gastronomia em um espaço/tempo.

Além disso, o conhecimento e a interação da comunidade com a história local, o

sentimento de pertença que conscientiza acerca da importância cultural, social e econômica da

preservação do patrimônio cultural favorece o turismo cultural sustentável. O grande desafio,

portanto, é promover uma política cultural que beneficie o turismo em Ilhéus, entendendo que

nisso está vinculada a política educacional, social, econômica e turística de inclusão social e

cultural.

Pesquisas na área da economia da cultura apontam que:

É fundamental planejar o turismo cultural, do mapeamento à realidade e à

avaliação, de modo sustentável e integrado à comunidade. O turismo cultural

pode representar um importante fator de desenvolvimento sustentável, desde

que seus potenciais impactos negativos sejam identificados e controlados.

Conforme o turismo se firma como um dos setores econômicos mais

importantes do mundo, a preocupação com o respeito aos patrimônios

tangível e intangível deve receber atenção redobrada (REIS, 2007, p. 256-

257).

A comunidade de uma cidade turística precisa participar e sentir-se inserida no

contexto planejado. Ao receber o visitante ou turista, o morador local deve ter consciência de

que ele também é um cartão de visita da sua cidade. Tal procedimento implica um

comportamento que vai desde a informação prestada ao turista, ao modo como o mesmo é

acolhido e respeitado na cidade visitada.

Os que comercializam seus produtos alimentícios também devem estar preparados

para informar sobre o uso de tais produtos de modo que os mesmos sejam ofertados como um

bem simbólico da terra. Naturalmente, nem todos que viajam se interessam em conhecer as

frutas, os doces, as comidas do local visitado; mas está provado que na linha do turismo

cultural há de fato um desejo de compreensão do lugar e do povo visitado, sinalizados pela

experiência de aprendizado.

A diversidade cultural que permeia a Bahia, e o Brasil de forma mais ampla, é

resultado, como foi visto no primeiro capítulo, das culturas de povos que contribuíram na

formação do povo brasileiro. De acordo com o antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima

(2008) em prefácio do livro: O sal é um dom – Receitas de mãe Canô – a tradição culinária

da Bahia é marcada, como diz Manuel Bandeira, pelas estranhas misturas de azeite e pimenta,

pela tradição do índio, do português e do africano. Nesse contexto, afirma o referido

antropólogo:

O livro de Mabel é uma nova e preciosa colaboração ao estudo que se vem

ultimamente realizando no campo da cozinha brasileira: a codificação escrita

de um saber que vem da oralidade e do fazer. Cozinha que envolve a

tradição da dieta portuguesa, ela mesma formada de numerosos “estilos”

regionais. Da cozinha indígena brasileira, presente em tantos elementos da

comida popular, e a cozinha africana, grandemente ritualizada e simbólica.

Trata-se de identificar, nas diversas cozinhas regionais, as origens e as

mudanças por que elas têm passado. [...] Livros construídos com a

lembrança e a vivência. É uma cozinha que bem podemos chamar de

clássica, no sentido que essa palavra reflete o que é consagrado, indiscutível

– mas, ainda assim, aberta à mudança -, no corpo de uma cultura (LIMA in:

VELLOSO, 2008, p. 7-8).

Os habitantes de Ilhéus têm no seu cotidiano a vivência dessa cozinha marcada pela

tradição de saberes de culturas que moldaram preferências na escolha de cardápios que

processam mudanças com o tempo, mas preservam características peculiares que a tornam

uma cozinha marcada pela opulência de opções variadas em frutos do mar, peixes, carnes,

aves e caças, essas últimas, quando foram permitidas; os frutos diversos, condimentos,

temperos e especiarias utilizados pelos índios, portugueses, africanos e árabes de outrora.

Assim sendo, a comida, mesmo popular, contem elementos da tradição que, por vezes,

de tão impregnada no cotidiano das pessoas da cidade, acabam não sendo notadas como algo

atrativo e que tem potencialidade como uma mercadoria a serviço do turismo. Desse modo, o

produtor agrícola de pequeno porte que planta as suas frutas e faz o doce em compotas para

vender nas feiras e mercados de Ilhéus, a senhora que fabrica nas casas de farinha o beiju e

vende na cidade, os vendedores de cocadas, frutas regionais cristalizadas ou secas e

embaladas de modo artesanal, dentre outros, são aqueles que constituem a mão-de-obra

fundamental para a concretização do simbólico.

Tais empreendedores de pequeno porte podem atuar no comércio de sua mercadoria

do mesmo modo que os empresários em seus restaurantes e os cabaneiros das praias atuam no

comércio alimentício e nos festivais gastronômicos, sem que o produto de uma das partes

interceda na oferta e sucesso do outro. Conforme dito, para que tal ocorra, ações de

planejamento com efeito de apoio e incentivo por parte de gestores culturais e poder público

devem se efetivadas.

Órgãos tais como: SEBRAE, Fundação Cultural, Prefeitura, Associação de Turismo de

Ilhéus – ATIL e demais, que atuam na perspectiva do turismo mantém insuficiente atenção

sobre tais questões que envolvem o patrimônio cultural e o uso de saberes enraizados na

cultura local e nas expressões cotidianas da comunidade.

Nesse entendimento, modos de vida, diversos, se intercedem em um mesmo cenário

onde apenas a existência de um grupo, suas vivências e lembranças diferenciam das do outro

grupo. “A história é um quadro de mudanças, e é natural que ela se convença de que as

sociedades mudam sem cessar, porque ela fixa seu olhar sobre o conjunto, e não passam

muitos anos sem que dentro de uma região desse conjunto, alguma transformação se produza”

(HALBWACHS, 1990, p.88).

As lembranças de pessoas que foram entrevistadas e que trabalharam grande parte de

suas vidas e moraram em Ilhéus faz transluzir as mudanças referidas, quando muitas

transformações configuraram um cenário diferente daquele no qual moraram e cozinharam,

compartilharam suas vidas com coronéis do cacau, pessoas abastadas da cidade, ricos

fazendeiros que contratavam seus serviços e viviam de modo opulento, o que, em tempos

atuais, não constitui a realidade contextual de Ilhéus.

Nesse sentido, afirma Halbwachs (1990):

A memória coletiva, ao contrário [da história], é o grupo visto de dentro, e

durante um período que não ultrapassa a duração média da vida humana, que

lhe é, frequentemente, bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si

mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu

passado, mas de tal maneira que ele se reconhece sempre dentro dessas

imagens sucessivas (HALBWACHS, 1990, p. 88, grifo nosso).

É assim que Dona Adélia, cozinheira requisitada na sociedade ilheense em tempos

áureos, ao ser entrevistada, relembra o passado ao relatar suas experiências com a arte de

cozinhar, ofício que se deu ao longo de 50 anos em Ilhéus, no convívio com várias famílias,

árabes, coronéis ricos, pessoas da sociedade ilheense, descendentes de portugueses dentre

outros. Conta a entrevistada como foi se consolidando seu aprendizado com tais cozinhas,

árabe e a africana que originou a cozinha baiana; e o cotidiano alimentar da cidade ao fazer

uso de elementos da cozinha indígena, inseridos na culinária Sulbaiana, cuja feição dos pratos

é simples em alguns momentos e bastante elaborado em outros, como o peixe na folha.

Constituem as memórias individuais sublinhadas em seu discurso:

Aqui em Ilhéus eu entrava em todas as casas. Eu cozinhava na casa de Dr.

Orrico, Dr. João Aguiar, Coronel Manoel Nabuco, Dr. Acioli, D. Elvira

Ocké e outros. Cada casa tinha um hábito de comida. Eu aprendi a cozinhar

pela minha cabeça. O que aprendi de cozinha, eu ensinei para meu filho, ele

faz tudo como eu faço. A comida que predomina no gosto é a feijoada. Não

se come com dendê todos os dias na Bahia, principalmente o povo rico quase

não come dendê. As comidas baianas eram utilizadas em dias de festas: as

moquecas de peixe, de camarão, o caruru, o vatapá e o peixe na folha eram

bastante utilizados. Também aprendi com os árabes a sua comida, mas os

árabes comiam a comida da gente também. Eu aprendi a cozinhar comida

árabe olhando D. Elvira, que era árabe, cozinhando (Adélia Alves de

Souza)12

.

12

Entrevista realizada com a dona de casa, conhecedora da culinária ilheense, Adélia Alves de Souza, em Ilhéus,

Bahia, 28 de julho de 2009.

O conhecimento adquirido e passado de uma geração a outra, a experiência de viver,

morar e cozinhar para pessoas que contam histórias de vida, mesmo com feição isolada não é,

pois está intimamente relacionada com outras histórias do lugar e são heranças culturais a

serem reconhecidas e valorizadas pelos que integram e herdam esse patrimônio. Assim, “mais

importante do que ter nascido numa terra, é ver a terra nascer dentro da gente”... Já dizia o

poeta Manuel Bandeira (BANDEIRA apud VELLOSO, 2008, p. 21).

O sentimento de pertença daqueles que vêem a história acontecer não como meros

espectadores, mas como atores, agentes de transformações, os acompanha por toda a vida.

Pessoas simples que trabalharam, lavraram a terra, aprenderam com outras a cozinhar,

participaram de festas da tradição popular, dividiram momentos de alegria, de fartura e

também de pobreza, de desânimo e de tristeza são pessoas da comunidade que lembram

acontecimentos dos quais fizeram parte na sociedade ilheense, e suas lembranças tem um

significado para a cultura local.

Grande parte dos entrevistados nessa arte de cozinhar são pessoas que migraram para

Ilhéus em busca de trabalho. A imigração na Bahia, e em todo território geográfico do Brasil,

portanto, originou o fenômeno da desterritorialização e reterritorialização (OLIVEN, 2006, p.

201-202) conforme discutido no primeiro capítulo. Os saberes em forma de conhecimento

transmitidos de uma cultura a outra entre gerações solidificaram-se, resultando uma

identificação culinária de tais heranças culturais em Ilhéus.

FIGURA 08: Peixe na folha de bananeira – preparo: peixe vermelho temperado (a);

ingredientes para o preparo (b; c) e temperos refogados (d).

Fonte: Mércia Cruz

É notório que através da alimentação é possível visualizar e sentir tradições que não

são ditas. De acordo com Bhabha (2007), o reconhecimento que a tradição outorga é uma

forma parcial de identificação. Sempre que o passado é lembrado, esse introduz outras

temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.

Ao visitar um local, o indivíduo, muitas vezes, movido pela curiosidade, busca

experimentar novos sabores e conhecer saberes diferenciados, com eles, adquire novas

experiências sobre outros costumes que não os seus. É nesse aspecto que pesquisadores

contemporâneos reafirmam a noção de sistema culinário como algo que desloca o tema da

alimentação do ponto de vista biológico da nutrição e da satisfação das necessidades básicas,

para o conjunto de práticas e representações que revelam as maneiras de ser, agir e pensar de

grupos humanos singulares. Vale ressaltar que a “tradição inventada” (HOBSBAWM, 1997),

compreende um conjunto de práticas normalmente reguladas. Tais práticas são de natureza

ritual ou simbólica e visam dar a entender alguns valores e normas de comportamento de uma

sociedade.

FIGURA 09: Peixe na folha – assado

Fonte: Mércia Cruz

O homem de cada dia, na trama da vida coletiva, vai mapeando elementos do

cotidiano que revelam a cultura que é traçada numa teia de comportamentos, crenças, gostos,

modo de fazer, de morar e de estar no mundo. Através da culinária o homem pode expressar

as suas identidades culturais e memórias individuais e coletivas.

Desde o descobrimento do fogo, o homem aprimorou novas técnicas de preparar seu

alimento e, muito do que foi deixado pelo índio como herança cultural, hoje ainda faz parte

dos hábitos alimentares da sociedade moderna de Ilhéus e outras regiões do Brasil.

É herança do índio a técnica de passar a folha no fogo para eliminar as bactérias e

amolecer a mesma, antes de usá-la no preparo de alimentos, a exemplo do peixe na folha com

farofa de dendê, assado no forno. Também, constitui parte dos saberes da cultura indígena a

arte de assar o peixe embaixo da terra e o uso de bastante pimenta no preparo de caldos e

outras comidas. Assim, podemos considerar a oposição entre o cru e o cozido, como “uma

oposição entre a ausência e a presença da culinária” (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 433) que

compreende a história da alimentação.

FIGURA 10: Temperos (a) e a farofa (b) que recheia e cobre o peixe herança indígena.

Fonte: Mércia Cruz

A mistura de alimentos, temperos e especiarias resultaram novos pratos da cozinha

regional e os diferenciaram de outros trazidos para o Brasil por mãos estrangeiras. Assim, a

culinária específica de uma região tem um modo próprio de fazer, que acompanha a tradição

do lugar e o cotidiano da comunidade. Os índios são grandes contribuidores de grande parte

dos pratos da cozinha Sulbaiana e também do Brasil.

Em Ilhéus, desde o século XVI, com o Descobrimento e o surgimento das Capitanias

hereditárias, histórias diversas foram processadas no tempo. “Tempo que nos importa aqui

somente na medida em que deve nos permitir conservar e lembrar dos acontecimentos que ali

se produziram. Este é o serviço que esperamos dele. Isso é verdade para os acontecimentos do

passado (Halbwachs, 1990, p. 100, grifo nosso).

FIGURA 11: Peixe na folha – Antes de assar no forno (a); o peixe depois de assado:

(b; c; d) Fonte: Mércia Cruz

A literatura da região reflete desse modo, parte dessas vivências:

Também se dá o nome de moqueca de peixe àquele prato em que o peixe é

assado depois de enrolado em folhas de bananeira. Na realidade este peixe,

que hoje assamos no forno, originalmente era enterrado na areia, coberto por

pedras quentes, para que cozinhasse. Técnica primitiva de preparar os

alimentos, assim era feito pelos nossos índios; na Bahia os africanos

acrescentaram o azeite de dendê (AMADO, 2004, p. 110).

Com isso, a presença da alimentação como um ato social e cultural dimensiona as

escolhas individuais de uma localidade e, essas, estão relacionadas a uma teia de

representações, ritos e símbolos, conforme já enfatizado.

Segundo Luce Giard, em A Invenção do Cotidiano, Certeau (2008):

O fato de continuarem sendo, na França, as mulheres que em geral se

encarregam do trabalho cotidiano de cozinhar depende de uma situação

social e cultural e da história das mentalidades; não vejo nisso qualquer

manifestação de uma essência feminina. [...] Além disso, os hábitos

alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a

mesma importância, em que o presente e o passado se entrelaçam para

satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir

às circunstâncias. Com seu alto grau de ritualização e seu considerável

investimento afetivo, as atividades culinárias são para grande parte das

mulheres de todas as idades um lugar de felicidade, de prazer e de invenção.

São coisas da vida que exigem tanta inteligência, imaginação e memória

quanto as atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas, como

música ou arte de tecer. Neste sentido, constituem de fato um dos pontos

fortes da cultura comum (CERTEAU, 2008, p.212).

O ato de cozinhar desperta, também, a cada dia, a curiosidade e o interesse de grande

parte dos homens. Atualmente, chefs de cozinha aprimoram técnicas e adéquam receitas

tradicionais a um novo modo de fazer, reconfigurando o prato de maneira criativa e

inteligente. Para tal, utiliza-se da memória individual e coletiva para elaborar uma comida

com sabor e identidade na arte que une o saber, o prazer e a curiosidade de inovar.

Assim, cada cozinha de uma região tem a sua especificidade. Para Stuart Hall (1997,

p. 53), “as identidades coletivas nacionais, regionais ou locais são formadas e transformadas

no interior de uma larga rede de representações sociais”; nesse contexto, o turismo cultural

que tem maior interesse na gastronomia com patrimônio cultural tem como alicerce tais

identidades.

FIGURA 12: Preparo do beiju na casa de farinha – Rio do Engenho, Ilhéus:

Modo de fazer: primeiro, a massa da tapioca (a; b), depois enrolando os beijus na

folha de banana (c; d; e; f)

Fonte: Mércia Cruz

É com base nessa ideia é que o conhecimento em torno da culinária vive e se perpetua

entre gerações. Em entrevista concedida para esta pesquisa, Inês, filha de uma das mais

famosas quituteiras de Ilhéus, a Irene - conhecida pelo seu acarajé vendido na Avenida Soares

Lopes há seis décadas com a tradição que lhe é peculiar, conta-nos parte dessas vivências:

O acarajé da minha mãe começou em frente ao Colégio General Osório há

sessenta e hum anos, depois mudou para o pé de amêndoa na avenida e se

instalou no ponto da Praça Castro Alves, onde está até os dias de hoje. O

acarajé foi trazido pelos africanos como uma tradição; nós nascemos e nos

criamos fazendo acarajé e essa foi a maior herança que a nossa mãe deixou

pra gente, foi o maior aprendizado que ela nos deixou (Maria Inês Santana

dos Santos)13

.

Ao refletir suas memórias sobre a comida que gerou o sustento da família e foi fonte

de uma herança cultural, a referida entrevistada avalia a importância do acarajé, e a

preservação do mesmo como bem simbólico e mercadoria a serviço do turismo. Afirma a

necessidade de incentivar e preparar as pessoas conhecedoras de tais saberes para um bom

desempenho em suas atividades. Conta que houve um curso do SEBRAE de apoio as baianas

do acarajé há certo tempo atrás, mas que esse não teve continuidade e acabou sem maiores

aprofundamentos, o que seria muito bom se houvesse uma continuidade do curso para a

comunidade e o turismo em Ilhéus.

De acordo com Fonseca (2003):

A preservação da memória de manifestações, como interpretações musicais e

cênicas, rituais religiosos, conhecimentos tradicionais, práticas terapêuticas,

culinárias e lúdicas, técnicas de produção e de reciclagem, a que é atribuído

valor de patrimônio cultural, tem uma série de efeitos: 1) aproxima o

patrimônio da produção cultural, passada e presente; 2) viabiliza leituras da

produção cultural dos diferentes grupos sociais, sobretudo daqueles cuja

tradição é transmitida oralmente, que sejam mais próximas dos sentidos que

essa produção tem para seus produtores e consumidores, dando-lhes voz não

apenas na produção, mas também na leitura e preservação do sentido de seu

patrimônio; 3) cria melhores condições para que se cumpra o preceito

constitucional do “direito à memória” como parte dos “direitos culturais” de

toda a sociedade brasileira; 4) contribui para que a inserção, em novos

sistemas, como o mercado de bens culturais e do turismo, de bens

produzidos em contextos culturais tradicionais possa ocorrer sem o

comprometimento de sua continuidade histórica, contribuindo, ainda, para

que essa inserção aconteça sem o comprometimento dos valores que

distinguem esses bens e lhes dão sentido particular (FONSECA in ABREU,

2003, p. 72).

13

Entrevista realizada com Maria Inês Santana dos Santos, filha de “Irene do acarajé”, situado na Praça Castro

Alves, em Ilhéus, Bahia, 29 de julho de 2009.

FIGURA 13: Acarajé da Irene, modo de fazer: a massa (a), os bolinhos fritando no azeite de dendê (b;

d), os abarás (c), os acarajés fritos (e) e o camarão (f)

Fonte: Mércia Cruz

Assim, preservar o conhecimento tradicional é pensar nas gerações futuras, na forma

de transmissão de tais saberes que são reconfigurados no tempo e, também, em uma

consciência da importância da diversidade – seja a biodiversidade, seja a diversidade cultural

– para a sobrevivência da humanidade (FONSECA, 2003, p. 72, grifo da autora). É poder

vislumbrar melhores condições de vida com dignidade, inclusão social e respeito à cultura

local.

2.2 Como os cardápios de hotéis, restaurantes e cabanas de praia refletem as

identidades gastronômicas em prol do turismo

Os gostos apuram-se sem cessar,

a cozinha refina-se ininterruptamente

para satisfazê-los

Auguste Escoffier - cozinheiro francês

A Gastronomia é um tema amplo que abarca outros, a saber: culinária e ingredientes

utilizados na cozinha, o modo de fazer, o prazer de criar e saborear uma receita, além da

fabricação de bebidas. Tendo em vista os aspectos patrimoniais, ao abordá-lo consideramos,

nesta pesquisa, com recorte na culinária, a diversidade cultural para tratarmos de identidades e

memória em prol de um turismo que seja efetivamente sustentável.

Portanto, os cardápios de restaurantes da cozinha local que não apresente uma

reconfiguração dos quitutes servidos, precisam ser revistos. A falta de conhecimento da

cozinha local em seus aspectos peculiares, por parte dos que comercializam com a

gastronomia pode deixar uma lacuna em tais cardápios.

Deve ser considerado nesta ótica que os fluxos migratórios viabilizam os processos de

comunicação e criam a oportunidade de interpenetração de tradições culturais distintas

responsáveis pela desterritorialização da cultura. Todavia, não é atrativo para o turismo

gastronômico de Ilhéus que os empresários envolvidos nesse ramo, ao criar um cardápio de

restaurante, descuidem da valorização e inserção de pratos cotidianos da cozinha regional,

tendo em vista que tal procedimento não dá visibilidade à culinária local nos pontos turísticos.

Nesse entendimento, vislumbramos o pertencimento através da culinária regional, não

desconsiderando naturalmente que quando referimos o patrimônio cultural nas sociedades

contemporâneas faz-se necessário a ampliação do referido conceito de patrimônio, uma vez

que tal medida irá “aproximar as políticas culturais dos contextos multiétnicos,

multirreligiosos e extremamente heterogêneos, que caracterizam as sociedades

contemporâneas” (FONSECA, 2003, p.71).

Assim, o que enfatizamos nesta abordagem passa mais pela educação patrimonial e

valorização da cultura local como uma forma de reconhecer e apoiar as expressões culturais

decorrentes do contexto ilheense e o sentido produzido pelo produto consumido e um bem

simbólico de interesse da comunidade do referido município.

Cabe ressaltar, a exemplo do acarajé que se encontra registrado no livro de Registro de

Bens Culturais de Natureza Imaterial, que tal ação implica dizer: o alimento tem seus

ingredientes definidos e a forma “correta” de prepará-lo. Contudo, na culinária, o modo de

preparar alimentos se modifica com o tempo, conforme já discutido anteriormente. Em

verdade, o que define os “bens imateriais” dentro da complexidade que engloba são

justamente o sentido desse bem simbólico e o significado de uma prática regular.

Na compreensão de Abreu (2003, p.82, grifo do autor) “a Recomendação da UNESCO

entende que a natureza efêmera do patrimônio imaterial o torna vulnerável. É urgente agir

(1993). O objetivo é estimular que esse patrimônio continue vivo e não seja museificado. Para

isso, seria necessário identificá-lo e colocá-lo em valor”. Por outro lado, devemos considerar a

dinâmica cultural que se modifica, hibridiza-se e possibilita nova performance dos processos

do patrimônio imaterial.

Sob a ótica da concepção antropológica de cultura, a expressão referência cultural

reforça a diversidade não só da produção material, como também dos sentidos e valores

atribuídos, pelos diferentes sujeitos, a bens e práticas sociais. Nesse sentido, apreendemos a

concepção de uma identificação desse patrimônio cultural, sem tolher ou congelar as

manifestações culturais que devem ser espontâneas e imbuídas da ideia de continuidade

(FONSECA, 2008).

Desse modo, o valor atribuído à culinária regional parte da identificação de um grupo

dentro de um espaço geográfico e temporal. O que comemos cotidianamente e nossas

preferências na escolha e preparo do alimento está intimamente relacionado com certos

critérios e interesses historicamente condicionados. No entanto, tal procedimento não provoca

uma atitude de conservação uma vez que o homem mantém uma interrelação com seus

semelhantes que permite a troca e a mudança, fator que implica numa reescrita dos saberes

nos registros do patrimônio cultural a cada dez anos.

Assim, preservar os traços culturais implica autonomia e poder. A comida é algo que

está intimamente ligada a uma relação de poder. O conhecimento em torno da cozinha, como

uma herança cultural, predispõe a uma identificação que deseja preservar a marca de sua

identidade e, para isso, busca transmitir tais conhecimentos oralmente ou simplesmente

observando aqueles que dominam esses saberes, aprendendo com eles.

Entretanto, ao colocar em pauta a questão do poder e as diferentes versões da

identidade de um mesmo grupo quando se trata de identificar referências e proteger bens

culturais que reportam, também, ao saber, tais referências devem ser entendidas na

perspectiva do direito do cidadão, por vezes excluídos ou à margem, quando deveriam ser

apoiados em seu ofício diário.

Daí a necessidade fundamental de um planejamento turístico participativo e de

medidas a serem adotadas que visem o bem estar tanto daqueles que se apropriam do

patrimônio cultural como algo capaz de potencializar os interesses empresariais a favor do

turismo, quanto da própria comunidade que integra o contexto histórico, social, cultural e

econômico de Ilhéus.

À luz dessa compreensão efetivamente bem articulada é que o patrimônio cultural e,

inserido nele a gastronomia, traça a ponte de ligação entre o passado e o presente com

visibilidade e oportuniza a compreensão da diversidade culinária entre grupos sociais

diferentes, possibilitando, com isso, que a produção cultural desses grupos, tenha

representatividade na comunidade.

Nesse sentido, refletir sobre a elaboração de cardápios em hotéis, restaurantes e

cabanas de praia como um incremento a mais no turismo cultural ilheense é dar-se conta da

importância de saberes pertinentes da cultura Sulbaiana a fim de valorizá-los em seus aspectos

históricos, sociais e culturais, capazes de revelar os modos de vida e produção tradicionais

bem como a sua diversidade.

Naturalmente, a memória gustativa fará parte das lembranças na elaboração de um

cardápio, nas questões que se refiram a uma identificação com o tipo de comida regional.

Muito do que comemos remete a um passado onde aprendemos a gostar de determinado tipo

de comida que culturalmente integra uma comunidade. Portanto, é lógico dizer que nos

identificamos através da comida pelo pertencimento e este, transmite e traduz aspectos sociais

inerentes a uma comunidade.

O turista ao explorar lugares/destino pode fazê-lo por diversas razões. Todavia, a

gastronomia sempre irá mover a curiosidade do homem pelo fato de ser uma necessidade

biológica e uma fonte de prazer em qualquer cultura. É nesse sentido que,

a produção do saber turístico de modo geral, e de modo específico no Brasil,

tem se constituído num conjunto de iniciativas, prioritariamente, do setor

privado/empresarial e menos da academia, sejam universidades e/ou

faculdades, públicas ou privadas. O saber turístico assim produzido é

reduzido às informações e sistemáticas sobre o seu setor produtivo. Este

contexto permite delinear a hipótese de que o saber turístico é um fazer-

saber, não existindo saber além daquele que resulta de um fazer-saber

(MOESCH, 2000, p. 13).

Cabe, portanto, na pesquisa, a iniciativa de abarcar, de modo interdisciplinar, os

aspectos do turismo que envolvem: economia, antropologia, sociologia, comunicação, e

demais disciplinas, com o propósito de conscientizar gestores culturais, empresários,

comunidade e governo sobre a importância de conhecer e reconhecer nas práticas cotidianas,

envolvendo a culinária, e no sentido mais largo - a gastronomia, o valor não apenas de bem

mercadológico, mas, sobretudo o valor simbólico atribuído enquanto patrimônio cultural,

favorável ao desenvolvimento sustentável do turismo.

2.2.1 Como o cardápio do hotel reflete as identidades gastronômicas em prol do turismo

O que pode ser observado na pesquisa realizada em campo nos hotéis, restaurantes e

cabanas de praia, amiúde, nessa última, é a falta de conhecimento por parte dos que

comercializam alimentos acerca de trabalhos realizados no âmbito patrimonial envolvendo a

gastronomia e a prática exercida por alguns empresários que comercializam os produtos

alimentícios. Sem dúvida, tal procedimento denota uma carência de informação dos aspectos

históricos, sociais e culturais que permeiam a história da alimentação em Ilhéus e seu uso

capaz de gerar interrelações de importância social, econômica e cultural.

A pesquisa, neste intento, busca o saber-fazer no turismo (MOESCH, 2000),

entendendo com isso uma maior motivação, interesse, aprendizagem, comunicação

intercultural e compreensão do fenômeno da hibridização cultural na alimentação, por parte

daqueles que vivenciam as práticas mercadológicas incluindo a alimentação como foco de

interesse.

Para tal, é fundamental a reconstrução de novos conceitos, novas percepções no modo

de elaborar os cardápios ou até mesmo de incrementá-los com maior propriedade, o que

necessita de informação, cursos e uma educação valorativa do bem simbólico. De acordo com

Moesch (2000):

A reconstrução de novos conceitos incitam a busca de novas categorias

historicizadas, portanto, requerentes de uma abrangência de análise social,

movida por condições objetivas e subjetivas. A crise no estatuto do saber

científico, causada pela era pós-moderna, paradoxalmente, abre um espaço

analítico qualificado, para aprofundar as causas que gestaram um fazer-saber

no turismo, senão um saber-fazer. Avançar sobre o saber-fazer direciona

uma nova agenda para os estudos turísticos (MOESCH, 2000, p. 15).

O conhecimento em torno do uso de ingredientes, especiarias, alimentos e sua

combinação na arte de elaborar uma receita são elementos que denotam o saber-fazer. Assim,

“o somatório desta dinâmica sociocultural gera um fenômeno, recheado de

objetividade/subjetividade, consumido por milhões de pessoas, como síntese: o produto

turístico” (MOESCH, 2000, p. 11).

Entretanto, se não houver um preparo eficiente e adequado da mão-de-obra e dos

serviços prestados ao turismo, consequentemente ficará uma lacuna que irá prejudicar o

desempenho das atividades realizadas. Quando se trata da culinária, o conhecimento, a

tradição, a comunicação e a informação eficiente em torno do modo de fazer uma receita e

suas propriedades são relevantes.

Por conseguinte, saber empregar a mão de obra local, valorizando os saberes que são

transmitidos oralmente entre gerações, é também valorizar parte da cultura local inserindo

pessoas da comunidade no âmbito do turismo. É assim que, em entrevista realizada no Hotel

Opaba e Cana Brava em Ilhéus, o empresário Rafael, filho do proprietário e responsável pelo

setor comercial, opinou:

Com base na elaboração do cardápio oferecido pelos restaurantes do Hotel

Opaba e do Hotel Canabrava a importância da culinária Sulbaiana que

também tem uma marca na cultura ilheense é muito grande, porque o turista

quando vem a nossa cidade, ao destino, ele busca as praias, mas busca

também a culinária. Nós procuramos ter um cardápio variado para atender a

todos os gostos, temos as comidas baianas e tudo à base de frutos do mar:

caranguejo, peixe, camarão, polvo, etc. – são os pratos mais procurados

porque o turista vem para a praia e quer frutos do mar. É importante pra

gente esta culinária regional porque nós temos pessoas que trabalham na

cozinha que têm conhecimento dessas comidas, então buscamos a mão-de-

obra qualificada na região, pois as pessoas já têm aquele conhecimento que

vem de casa, eles sabem fazer uma boa moqueca, um caruru e outros pratos

locais, o que acaba sendo uma influência positiva; se fôssemos buscar uma

culinária francesa, por exemplo, teríamos que treinar pessoas para saber

fazer esse tipo de comida. (Rafael Espírito Santo)14

.

FIGURA 14: Moqueca de peixe do Hotel Canabrava – Servida com arroz branco,

pirão e farofa de dendê (a), moqueca de peixe (b; c)

Fonte: Mércia Cruz

Os aspectos étnicos da cozinha que tem por base as contribuições indígena,

portuguesa, africana e árabe como heranças culturais são bem utilizadas nos cardápios dos

14

Entrevista realizada com o empresário do Hotel Opaba e do Hotel Arraial Canabrava, localizado no município

de Ilhéus, Bahia, 10 de julho de 2009.

Hotéis Opaba e Canabrava. Apesar de ter clientes com perfis diferentes, o Hotel Opaba recebe

mais o executivo e o Hotel Canabrava recebe mais o turista que vem a lazer, os cardápios são

muito parecidos. Esse último hotel desenvolve as noites temáticas: a noite de comidas

portuguesas, a noite de comidas baianas, a noite italiana, a noite caribenha e assim por diante;

todavia, afirma o empresário entrevistado do Hotel Opaba e Canabrava, que alguns turistas

não conhecem certas comidas baiana, a exemplo do xinxim de galinha, e o caruru, porém tem

curiosidade em provar quando vêem tais pratos no cardápio da noite de comidas baiana.

Assim, a cozinha regional aparece no cardápio tendo cuidado de dosar certos

ingredientes como o dendê, sendo utilizados os condimentos de modo mais leve sem,

contudo, deixar de ser saboroso. Os produtos utilizados pela cozinha dos hotéis são todos

regionais, apenas algumas especiarias vêm de fora para a elaboração de pratos importados.

Pode ser notificado que tanto o Hotel Opaba quanto o Hotel Canabrava exploram o

uso de receitas que remetem à história e a tradição nos costumes alimentares da região: no

café da manhã há a presença de tapioca, cuscuz, raízes, banana frita e bolos da cozinha

regional – “são alimentos que os turistas mais apreciam”, confirma o entrevistado. Por outro

lado, eles nunca pedem de imediato o caranguejo por ser um alimento desconhecido, apreciam

mais as casquinhas de aratu e siri. Na piscina o prato mais pedido é o camarão e o peixe frito e

isso é atribuído à qualidade do peixe e do camarão, definido pelo turista como de excelente

qualidade.

FIGURA 15: Saladas: De folhas (a); de legumes (b; d) e de bacalhau (c)

Fonte: Mércia Cruz

FIGURA 16: Camarão (a) e caldo verde (b) na noite portuguesa – Hotel

Canabrava – Ilhéus

Fonte: Mércia Cruz

Segundo o empresário Rafael, “no café da manhã do Hotel Canabrava, quando está

cheio, chega a sair setecentas tapiocas feitas na hora, sempre tem o aipim, mingau de tapioca

ou puba, as frutas como o cacau, a graviola, caju e demais frutas regionais também são muito

empregadas”. Nos referidos hotéis há um cuidado especial nos pratos da culinária e os

critérios de escolha e avaliação de um prato; suas modificações passam por testes orientados

pelos chefs de cozinha, a exemplo do peixe que, de acordo com o empresário, no momento

está sendo modificado para o uso na moqueca, então é observado nesse processo qual o peixe

que vai se adequar melhor à mudança do prato, que tenha sabor agradável, boa aparência, boa

textura, bom preço de custo, são alguns aspectos avaliados para substituir ou inserir um novo

item no cardápio.

O Hotel Opaba, com treze anos de existência em Ilhéus, tem na baixa estação um

quadro de funcionários na média de oito pessoas entre cozinha e salão, ao passo que no Hotel

Canabrava com vinte anos de existência, conta somente na cozinha com trinta e duas pessoas

e entre salão e cozinha são setenta pessoas.

Conforme o empresário, os cardápios dos hotéis exploram os personagens de Jorge

Amado, dando nome a alguns pratos no cardápio: o quibe do Nacib, o sanduiche da Gabriela e

afirma que isso também desperta a curiosidade dos turistas que vêm aos hotéis de Ilhéus.

Cabe pontuar, desse modo, seja através da ficção narrada em obras de escritores

regionais, a exemplo de Jorge Amado e seus personagens, seja em realidade, o fato é que os

quitutes devidamente elaborados são largamente apreciados em horas de lazer ao saborear a

culinária local:

Os nossos cuscuzes não são como o árabe, de sêmola, regado com caldo

gordo de verduras e carneiro; nem como o paulista, de milho, salgado e com

ovos duros, sardinha e palmito. Os nossos ingredientes variam: além do

milho, a puba ou carimã, a farinha de arroz, a tapioca, molhados com leite de

coco. O que o cuscuz árabe e o paulista têm em comum com os feitos na

Bahia? A resposta é que o princípio básico de todos eles é o mesmo; isto é,

são massas de farinhas cozidas no vapor. Na Bahia há uma exceção para o

cuscuz de tapioca, que pode ser cru (AMADO, 2004, p. 236).

Assim sendo, o lugar cria seu diferencial no modo de elaborar a receita e segundo

entrevista do empresário dos hotéis acima15

, o turista aprecia bastante o cuscuz e os pratos que

trazem a marca da cozinha regional, composta dos produtos indígenas. Saber-fazer, nessa

lógica, conduz ao êxito da oferta nos cardápios, quando bem elaborados e atrativos, podem

chamar a atenção dos visitantes ou turistas.

Com base nesta perspectiva, o terceiro hotel entrevistado – o Hotel Jardim Atlântico –

traz uma nova concepção na valorização da culinária regional e do alimento típico local. Em

entrevista realizada com a proprietária do Hotel Jardim Atlântico, sobre a importância da

culinária Sulbaiana para o restaurante de seu hotel, a mesma afirmou:

Quando alguém viaja quer ver o diferente. Quem chega a Ilhéus a primeira

coisa que quer é tomar um suco de cacau. Nós priorizamos o alimento da

região em nosso hotel, principalmente as raízes, tapioca, beiju com coco e

queijo, mingau, puba, broa de milho são alguns produtos que

disponibilizamos. O nosso café é bem regional. O turista tem muita

curiosidade em conhecer a culinária típica e dentre os pratos preferidos está

a moqueca de peixe. Nosso hotel prioriza os fornecedores regionais que

atendem durante todo o ano. A nossa preocupação é usar ingredientes locais,

alimentos frescos e em boa condição de uso. No cardápio não falta o uso de

doces em compotas aproveitando as frutas da região: Jaca, caju, banana,

batata – os turistas amam o doce de jaca, querem comprar para levar com

eles na viagem. Também criei a mouse de graviola que tem uma textura

muito delicada e faz muito sucesso (Néa Machado)16

.

O Hotel Jardim Atlântico tem vinte e sete anos de existência e teve os suíços, na

década de 80, como seus primeiros proprietários. Hoje com novos proprietários, o hotel

prioriza a boa qualidade da culinária regional e usa da criatividade para atrair o turista. De

acordo com a proprietária: “quando o ambiente é aconchegante nós demoramos muito mais

tempo no lugar”.

Foi assim que um turista retornou a Ilhéus pela lembrança de um prato salgado, criado

pela cozinha do Jardim Atlântico com a fruta local, a jaca, especialmente para o cardápio do

hotel. O prato fez sucesso e o turista aprovou, colocando como condição para seu retorno ao

15

Entrevista realizada com o empresário Rafael Espírito Santo, do Hotel Opaba e do Hotel Arraial Canabrava,

localizado no município de Ilhéus, Bahia, 10 de julho de 2009. 16

Entrevista realizada com a empresária Néa Machado, do Hotel Jardim Atlântico, localizado no município de

Ilhéus, 30 de julho de 2009.

hotel em Ilhéus, que esse prato fizesse parte, ainda, do cardápio, pois a lembrança provocada

pelo prazer de saborear tal culinária o moveria a retornar ao local posteriormente – conta

desse modo a empresária entrevistada.

É nesse contexto que as lembranças de uma viagem tornam-se vívidas na memória

individual e/ou coletiva na medida em que compartilha de um momento de troca de

experiência. A gastronomia conduz a uma série de comportamentos que serão lembrados na

“bagagem de volta da viagem” e assim,

logo que nos lembramos dessa viagem, não nos colocamos, bem entendido,

no mesmo ponto de vista de nossos companheiros, posto que ele se resume a

nossos olhos numa sequência de impressões conhecidas unicamente por nós.

Mas não podemos dizer também que nos colocamos unicamente do ponto de

vista dos nossos amigos, de nossos parentes, de nossos autores preferidos,

cuja lembrança nos acompanhava (HALBWACHS, 1990, p. 44).

De fato, as impressões, as expectativas e experiências do visitante ou turista são

singulares e de grande importância na avaliação do planejamento turístico, a fim de que

medidas sejam adotadas no sentido de operar melhorias na cidade e nos locais por eles

frequentados. Os empresários e gestores culturais que se apropriam do turismo como

atividade principal capaz de gerar recursos econômicos e benfeitorias, devem estar atentos às

exigências daquele que sai do seu local de residência habitual para outro com o propósito do

lazer e entretenimento.

De acordo com a empresária entrevistada do Hotel Jardim Atlântico, ao viajar para a

África do Sul no período de treze dias em abril de 2009, houve uma curiosidade e expectativa

grande em relação à cozinha africana e a mesma percebeu certa semelhança com a nossa

cozinha do Brasil, definindo-a como uma culinária forte: “tudo que usamos aqui eles usam lá,

muita abóbora, pimenta e temperos como a nossa cozinha”17

. Todavia, eles não usam a

farinha de mandioca e não utilizam o pirão como nós usamos no Brasil.

17

Entrevista realizada com a empresária Néa Machado, do Hotel Jardim Atlântico, localizado no município de

Ilhéus, 30 de julho de 2009.

FIGURA 17: Hotel Jardim Atlântico: Peixe criado pelo hotel com

banana da terra, jaca (a; b), coco verde (c) e bar do hotel (d)

Fonte: Mércia Cruz

2.2.2 Como o cardápio do restaurante reflete as identidades gastronômicas em prol do

turismo

A culinária revela contribuições, hábitos e costumes incorporados na tradição e

reconfigurados no tempo. Para os que chegam de viagem a Ilhéus a cozinha regional é

lembrada por aqueles que desejam provar os sabores da terra.

Dentro da categoria de restaurantes em Ilhéus foram entrevistados cinco donos de

restaurantes: O Vesúvio com a tradição de cem anos de existência em Ilhéus; o Restaurante do

Bataclan, famoso na obra do escritor internacional Jorge Amado; o Restaurante Maria

Machadão; Agdá Restaurante com a especialidade em cozinha baiana e o Restaurante Mr.

Camarão. Além desses, foi criado um espaço nesta pesquisa, na categoria dos restaurantes,

para o descendente de árabe Eduardo Daneu que utiliza o Restaurante do Iate Clube de Ilhéus

todas as quartas-feiras com um bufê árabe rigorosamente elaborado por suas mãos e

conhecimento culinário herdado da cultura árabe.

O Restaurante e Bar Vesúvio, famoso internacionalmente, pelas histórias preconizadas

pelo escritor Jorge Amado, tem como proprietário e empresário Demócrito Paternostro Sabak,

mais conhecido por Guido. Em entrevista concedida para esta pesquisa, afirmou:

De modo geral a comida brasileira tem um pouco de cada etnia e também da

cozinha contemporânea. No caso específico do Sul da Bahia e

particularmente de Ilhéus, é fundamental a marca da cozinha libanesa e da

cozinha do azeite de dendê, presentes atualmente no restaurante Vesúvio.

Afirmo que há uma preocupação do meu restaurante na elaboração do

cardápio. Para elaboração da receitas árabes alguns ingredientes e

especiarias vêm de fora, são importados, a exemplo do gergelim, o queijo

árabe, e a zatra – que vêm de São Paulo pelas importadoras (Demócrito

Paternostro Sabak)18

.

Desse modo, a tradição árabe é mantida e novas configurações são permitidas no

tempo/espaço, uma vez que o restaurante abriga também um espaço para a cozinha local que

traz a contribuição do azeite de dendê, das moquecas e dos pratos elaborados à moda da casa.

Ao ser avaliado qual o prato mais pedido em seu restaurante pelos turistas e pela população

local, a unanimidade foi para o quibe, seguido do prato típico com camarão.

O quibe aparece em duas modalidades no cardápio do restaurante: frito e cru. O quibe

cru vem acompanhado de um pão árabe. Há também um sanduiche Nacib que é composto de

pão árabe com recheio de tabule e queijo. Pratos elaborados pela cozinha árabe a base de

peixe frito com molho de gergelim e cebola dourada na manteiga recebem o nome de Peixe à

Nacib.

O Restaurante Vesúvio mescla em seu cardápio os frutos do mar (caldo de sururu,

camarão, aratu) com caldo verde, um pouco da cozinha árabe os pratos de origem africana que

levam em sua composição o dendê, especialmente as moquecas. É com base nas misturas e no

interesses de tais cozinhas que a cozinha árabe compartilha seu espaço com outras cozinhas

na cidade de Ilhéus e nos romances dos escritores locais:

Quando Gabriela, cravo e canela foi lançado, há mais de trinta anos, muita

especulação houve para identificar os personagens entre os moradores de

Ilhéus e Itabuna. Imediatamente um senhor Maron, turco, casado com uma

mulata, dono de um bar, foi apontado como Nacib, e ficou furioso. Achava

que estava sendo chamado de cabrão etc. e tal. Outro turco da região, filho

de fazendeiro, o escritor e jornalista Jorge Medauar, foi a Ilhéus fazer uma

reportagem, tirar as coisas a limpo. Entrou no bar do Maron e entre um quibe

e outro falou de Gabriela: foi corrido a tiros da cidade. Histórias dos turcos

da Bahia (AMADO, 2004, p. 51).

Segundo o empresário do Restaurante Vesúvio, as receitas são inventadas e testadas na

mesa, entre amigos, antes de ser aprovada para o cardápio do Restaurante e Bar Vesúvio.

Afirma assim, que tenta criar uma harmonia na mistura de ingredientes. Foi desse modo que

surgiu a Moqueca Arretada – prato que participou da rede de Concurso do Brasil Sabor,

18

Entrevista realizada com o empresário do Restaurante Vesúvio, Demócrito Paternostro Sabak, em Ilhéus,

Bahia, 27 de julho de 2009.

Festival gastronômico realizado anualmente pela Associação Brasileira de Bares e

Restaurantes – ABRASEL, com restaurantes de todo Brasil, no ano de 2009.

A moqueca arretada é composta de moqueca de sururu com camarão seco, carne seca e

ovo acompanhado de pirão, arroz e farofa de dendê. Para o proprietário constitui uma das

maravilhas da cozinha ilheense aprovada pelos amigos e pela clientela e turistas de Ilhéus.

FIGURA 18: Moqueca arretada (a; b; e) - prato do Vesúvio que participou do

Festival Brasil Sabor (2009), pirão e farofa de dendê (c) e arroz (d)

Fonte: Mércia Cruz

É nessa perspectiva que ao inventar novas receitas o Restaurante e Bar Vesúvio cultiva

a sua tradição, hoje reconfigurada. Criado em 1910, há um século, tendo como os primeiros

proprietários dois italianos, hoje, o atual proprietário Guido, segundo depoimento para esta

pesquisa, busca homenagear nos pratos criados para o cardápio, os personagens do escritor

Jorge Amado, a exemplo: “Peixe à Gabriela”; Peixe a Jorge Amado; Peixe à Nacib; Couvert

de Nacib e Gabriela; Galinha ao Cabaré – são quitutes criados com base na cozinha local e

histórias de Ilhéus.

Conforme Raimundo Sá Barreto em Notas de um tabelião de Ilhéus (1982):

O Vesúvio mudava de dono constantemente. Lembro-me ainda dos seguintes

nomes dos antigos proprietários: Figueiredo; o velho Costa (avô de Carlos

Bichara), que morava defronte de minha casa; Armando, um espanhol amigo

de Isidoro que, em 1945 ou 46 passou a referida casa comercial para Emílio

Maron (BARRETO, 1982, p. 95).

O Vesúvio atualmente já não constitui apenas um restaurante de comidas árabes, mas

disponibiliza nas opções de cardápio uma linha diversificada de culinária, herança de

contribuições étnicas passada, muito embora o carro-chefe deste Restaurante/Bar ainda seja o

quibe do Nacib e os quitutes da Gabriela, a cozinha segue numa linha que também utiliza

alguns pratos com opção dos frutos do mar e a famosa moqueca de peixe e camarão.

Algumas novas iniciativas referentes a gastronomia em Ilhéus estão sendo articuladas,

segundo informação do proprietário do Vesúvio, o empresário Guido, que em entrevista

revelou que há uma previsão de um festival gastronômico entre restaurantes do município, em

agosto de 2010. Segundo o mesmo, tal iniciativa está sendo pensada em homenagem aos cem

anos do Restaurante/Bar Vesúvio, uma parceria entre a Associação Brasileira de Bares e

Restaurantes – ABRASEL e os restaurantes em questão.

FIGURA 19: Quibe do Vesúvio (a), com molho de pimenta (b)

Fonte: Mércia Cruz

A ideia dessa iniciativa é de que cada restaurante de Ilhéus crie um prato em

homenagem ao centenário do mais antigo bar da cidade. Além disso, existe uma proposta da

ABRASEL de fazer uma premiação a fim de oficializar “o dia do chefe de cozinha”.

Outro restaurante contemplado nesta pesquisa é o Bataclan que tem como proprietário

o empresário Gilson Ribeiro19

, em sociedade com Orlando e Simone; o referido empresário

revela em entrevista concedida que o seu restaurante, localizado na Avenida dois de julho,

antigo ponto onde funcionou o Bataclan dos tempos dos coronéis do cacau em Ilhéus, utiliza

um cardápio a base de peixes, camarão, lula, polvo e mariscos. O restaurante, segundo o

proprietário, não utiliza pratos temperados com dendê. O prato principal servido neste

restaurante é o “camarão na moranga”.

19

Entrevista realizada com o empresário do Restaurante Bataclan, Gilson Ribeiro de Santana, em Ilhéus, Bahia,

31 de julho de 2009.

Fazem parte do cardápio: mariscada do Bataclan; frutos do mar ao fumê,

acompanhado de feijão branco; arroz de polvo; camarão ao coronel entre outros com mariscos

e frutos do mar.

Embora o proprietário do Restaurante Bataclan afirme a preocupação em valorizar as

contribuições étnicas da cozinha Sulbaiana na elaboração do cardápio do restaurante, a

moqueca de peixe ou camarão não compõe o cardápio do restaurante, assim como as comidas

chamadas “baianas” de origem africana, pelo uso do dendê. A opção do cardápio segue entre

a culinária que valoriza os frutos do mar e a influência árabe nos petiscos, o quibe e o “pastel

Bataclan” que é um pastel com coalhada e queijo frescal.

O proprietário do Restaurante Bataclan revela que criou um novo quitute a ser

lançado, inspirado no acarajé, chama-se “carapioca”, uma espécie de acarajé de tapioca com a

opção de recheios a base de camarão, frango ou carne seca, tipo um bolinho de bacalhau,

menos denso que o feijão, é frito no azeite de dendê e os bolinhos ficam na tonalidade do

marrom avermelhado igual ao acarajé. É mais uma história de hibridismo na gastronomia de

Ilhéus, resultado da mudança de ingredientes e adaptação para gerar um “novo quitute”.

Importa salientar que apesar da beleza da decoração e do espaço físico agradável, o

restaurante tem pouca frequência de pessoas da cidade, sendo mais visitado em alta estação

pelos turistas que vêm visitar Ilhéus.

FIGURA 20: Bataclan (a; b)

Fonte: Mércia Cruz

O Bataclan é um patrimônio público do município que funciona há três anos (2009). O

espaço passou por uma revitalização, contou com o apoio do Projeto Petrobrás, com reforma

da estrutura arquitetônica, reforma do telhado, pintura, fachada e decoração.

Em 2007, foi coordenado um campo de revitalização no prédio e, com a participação

de vários arquitetos, o espaço interior do Bataclan foi decorado tipo a Casa Cor. O resultado

deu ao espaço uma nova feição que agrada bastante aos turistas que apreciam o lugar pela

história local, ambiência e pela qualidade dos peixes e camarões que são oferecidos no

cardápio do restaurante. Todavia, os moradores da cidade pouco circulam no Bataclan, isso

leva a uma reflexão acerca do espaço de lazer que é criado em Ilhéus enquanto cidade

turística e da falta de interação da comunidade com tal espaço.

O prato mais apreciado na culinária oferecida ao turista nos locais pesquisados foi,

sem dúvida, a moqueca de peixe, porém, o peixe frito, o camarão, muito farto na região,

frutos do mar e mariscos também estavam entre os pratos cotados. Aqueles que não

conheciam ainda o acarajé revelaram a sua preferência pelos bolinhos. Mas houve turistas que

elogiaram também alguns pratos oferecidos em cardápios de restaurantes e hotéis nos quais

estavam hospedados: “O prato que mais chamou a minha atenção em Ilhéus, foi no

restaurante Bataclan: “Camarões ao coronel”. Os camarões eram de excelente qualidade,

camarões pistola, estava muito bem feito. Também a esfirra árabe de queijo coalho, estava

perfeita”. (Giovana Prada)20

.

Segundo Candeas (1999, p. 136) “a cultura brasileira, pela diversidade de suas raízes,

pela miscigenação e pela criatividade na adaptação ao meio ambiente e na superação das

adversidades socioeconômicas, constitui o maior patrimônio do País, e seu melhor trunfo para

o desenvolvimento”. Saber vivenciar essas diferenças nas manifestações culturais e nos bens

patrimoniais é manter viva as tradições e suas inovações no tempo/espaço.

A gastronomia é um ramo que pode favorecer o desenvolvimento turístico, mas para

que ocorra é necessário saber-fazer, inovar e utilizar com propriedade os recursos disponíveis.

Nesse sentido, é correto afirmar que:

O desenvolvimento constitui um fim, e o crescimento econômico, um meio –

condição necessária, mas não suficiente. A cultura, por sua vez, é

considerada em sua acepção antropológica ampla: o fundamento

comportamental, ideológico e técnico da ação transformadora do homem

sobre si mesmo e sobre o ambiente. Da mesma forma que o meio ambiente

constitui a base física do desenvolvimento, dando-lhe insumos, limites e

paradigmas, a cultura é seu fundamento humano, e lhe confere princípios,

métodos e finalidades. Inversamente, o desenvolvimento também influencia

aspectos do universo cultural. Cultura e desenvolvimento são, pois, em larga

medida, causas e efeitos recíprocos (CANDEAS, 1999, p. 137).

A compreensão de tal concepção pode vir a integrar a comunidade, os empresários e o

poder público e conduzir ao sentimento de pertença de nossas raízes, a história local, a

20

Entrevista realizada com a turista Giovana Prada, em Ilhéus, Bahia, 31 de julho de 2009.

identidade e a memória da região. A partir disso, poderá haver uma identificação com a

cultura local, onde nascemos e crescemos ou simplesmente aprendemos a conhecer e apreciar.

Assim, “é a identidade cultural que nos serve de bússola para que possamos navegar por

tantas outras culturas, sem nunca esquecermos de quem somos, nesse processo constante de

autodescoberta e auto-invenção (REIS, 2007, p. 155).

Dentro do espaço geográfico dos restaurantes localizados no mesmo circuito da

Avenida dois de julho, entrevistamos para esta pesquisa o Restaurante Maria Machadão que

tem como proprietário o empresário Vladimir Sérgio, natural de São Paulo. O nome do

restaurante curiosamente homenageia uma personagem do romance de Jorge Amado que era

dona do antigo cabaré “Bataclan” nos tempos dos coronéis do cacau. Portanto, a ideia de criar

um restaurante dentro de Ilhéus com um nome que resgata a memória e a história real e

fictícia é algo que, de certo modo, reforça a identidade local:

Coisa complicada é a vida; ainda ontem tudo marchava tão bem, ele não

tinha preocupações, ganhava duas partidas de gamão seguidas contra um

parceiro da força do Capitão, comera uma moqueca de siris realmente divina

em casa de Maria Machadão e descobrira aquela novata, a Risoleta... –

Gabriela, cravo e canela (AMADO, 2004, p.110).

De acordo com o empresário, ao referir-se a importância da culinária Sulbaiana em seu

restaurante,

a cozinha Sulbaiana tem importância sim na elaboração do cardápio do meu

restaurante, uma vez que os turistas gostam dessa cozinha e quando chegam

à região, mais especificamente em Ilhéus, querem experimentar a moqueca

que é um prato típico da Bahia. O meu restaurante busca trazer novidades

para o público da cidade e para o turista. O nosso turista é muito sazonal.

Então no restaurante utilizamos alguns petiscos da cozinha árabe, o bacalhau

e vários tipos de peixe incluindo o salmão. O turista gosta muito da moqueca

e do salmão, já o morador de Ilhéus que frequenta o restaurante prefere a

carne vermelha, o filé e o peixe preferido é o salmão. Temos o cuidado de

avaliar os cardápios e criar pratos que priorize as frutas locais em molhos.

Um prato bastante apreciado pelos turistas também é o “peixe ao molho de

cajá”. Temos também um salmão que participou da primeira edição do

Festival Gastronômico Brasil Sabor (Vladimir Sérgio de Menezes)21

.

É de importância fundamental o uso de ingredientes e receitas que remetem à origem

da região. Pensar no estabelecimento como atrativo que identifique o lugar visitado com o

contexto sócio, histórico e cultural é também preservar e valer-se da cultura para desencadear

o desenvolvimento sustentável do turismo. Por outro lado, para o empresário que tem negócio

21

Entrevista realizada com o empresário do Restaurante Maria Machadão, Vladimir Sérgio de Menezes, em

Ilhéus, Bahia, 31 de julho.

com base na gastronomia nem sempre é fácil, pois não basta ter esses elementos

possivelmente “atrativos”. Muitas vezes, a frequência maior em restaurantes somente

acontece no período de alta estação com os turistas.

Sendo assim, cabe a seguinte reflexão:

O planejamento deve considerar a necessidade de sensibilizar a população

local quanto à importância de não descaracterizar suas tradições, nem

permitir danos ao patrimônio cultural tangível. A preservação cultural tem

como base a conscientização da população, integrando o tecido social,

valorizando seu patrimônio tangível e intangível e maximizando os

benefícios econômicos (REIS, 2007, p. 258).

Com referência ao menu escolhido, o empresário do Restaurante Maria Machadão

afirma que toda receita é testada inúmeras vezes antes de ser aprovada. Conta que também

gosta de cozinhar e, apesar de ter um chef no restaurante, costuma ele mesmo criar as receitas.

O restaurante tem o filé a parmeggiana e, atualmente criou o camarão a parmeggiana como

um dos pratos mais pedidos juntamente com a moqueca. Conta que oferece uma “paella

valenciana”, influência dos amigos espanhóis, mas acredita que a técnica para elaborar uma

receita vem do conhecimento que se tem de cozinha. Na realidade, reforça, “a culinária é uma

arte”.

Com um espaço físico que comporta dois ambientes (espaço interno e a calçada) e

com o número de funcionários cuja média anual contempla 16 pessoas, o empresário do

restaurante diz que ao pensar em um local para instalar a casa noturna que já existia há três

anos, estudou e planejou bastante e acabou escolhendo o local na Avenida dois de julho, em

funcionamento há nove anos neste endereço (2009).

FIGURA 21: Iguarias do Restaurante Maria Machadão;

Moqueca de peixe (a) macarrão ao creme (b) e filé (c)

Fonte: Mércia Cruz

Seguindo o circuito da Avenida dois de julho, temos mais um restaurante que integra a

pesquisa, trata-se do Agdá Restaurante com especialidade em cozinha baiana, sob a direção

do maitre Haroldo Fonseca. Conforme o proprietário do referido estabelecimento, a ideia de

ter um restaurante surgiu a mais de sessenta anos, tempo que tem de convivência com a

culinária. De origem soteropolitana, de bisavó e avó africana, aprendeu com a mãe e avós a

cozinhar. O conhecimento culinário foi passado entre gerações, achava bonita a transformação

de um alimento in natura para uma comida suculenta, bonita e saborosa.

Com vasto conhecimento de culinária e experiência vivenciada em grande parte do

Brasil, o maitre e, também, proprietário do restaurante diz que administra, a cerca de quarenta

anos, cursos de especialização para garçons, aulas de culinária e, também, já dirigiu grande

parte dos hotéis quatro e cinco estrelas de Ilhéus. Conta o maitre Haroldo, cujo restaurante é

originalmente decorado com pinturas na parede de baianas com tabuleiros na cabeça,

berimbaus, cacau e toalhas de chita na mesa, com simplicidade e muita eficiência:

Em Ilhéus, eu vim pra passar um dia e fazer um bufê de um casamento, e

esse um dia já faz 35 anos e não voltei mais pra minha terra. Já dizia a minha

avó: “a terra da gente é aonde a gente se dá bem” e, Ilhéus é uma terra

aconchegante, maravilhosa, com um povo fora de série. O povo daqui tem

uma diferencial a mais de outros povos que eu já conheci. O povo é ordeiro,

sincero, especulativo e cismado, quando deve ser cismado. Eu acho

maravilhosa a gastronomia. Hoje em Ilhéus o cacau é só simbólico e muito

pouco existe. Afirmo que sempre tive cuidado e preocupação muito grande

com a qualidade da comida que preparo para o cardápio do Agdá

Restaurante; faço pesquisa sobre alimentos, tenho vasta coleção de livros de

receitas e estou escrevendo um livro também. Estudo os temperos,

condimentos e a sua utilidade, buscando empregar os ingredientes regionais

na nossa cozinha. Eu acho que o importante da comida é o jogo, a mão leve

e o gosto de fazer. Em meu restaurante 80% da comida oferecida no

cardápio é a comida baiana de origem africana, pois trata-se das minhas

origens, apesar de saber fazer outros tipos de comida. A comida baiana, de

origem africana, é uma comida que deve ser balanceada na quantidade dos

temperos para não fazer mal (Haroldo Fonseca)22

.

Assim, a culinária produz e reforça identidades culturais de grupos sociais, estando

sempre vinculada a uma prática cotidiana e a representações simbólicas. De acordo com

depoimento colhido da Revista IPHAN (2005, p.299),

O patrimônio cultural popular, no qual está inserido o saber [das] pessoas

[...] implica vivências, memórias, visões de mundo, crenças, valores,

maneiras de viver, estilos de vida. Estudar e agir no sentido de preservar esse

saber vai muito além de efetuar um inventário sistematizado de elementos

culturais, sujeitos da vida social que produzem essas manifestações culturais

e, no caso, portadores de saberes e produtores de saberes.

O que implica refletir sobre o espaço que vem sendo ocupado pela gastronomia em

benefício do turismo cultural, tendo o cuidado de extrair benefícios econômicos desse último,

gerando empregos, resgate das tradições em proveito de interesses vários, todavia estando

atento para não tornar “a cultura uma mercadoria banal, depredar o patrimônio ou

descaracterizar as manifestações tradicionais. É preciso evitar o imediatismo, o círculo de

vida breve, que colhe benefícios no curto prazo, em detrimento da preservação da identidade

cultural” (REIS, 2007, p. 256).

É fundamental planejar o turismo cultural obedecendo ao direito às diferenças e a

diversidade de gostos alimentares que norteiam identidades gastronômicas em Ilhéus e,

quando enfatizamos esse aspecto, estamos tratando de um critério que priorize uma boa

avaliação dos hábitos e costumes alimentares da região, priorizando a fidelidade da culinária

local no cardápio, aliando a pesquisa, o interesse em inovar e saber utilizar os ingredientes

que são da região, sempre buscando realçar a gastronomia local, não desmerecendo a culinária

internacional dos restaurantes específicos nessa linha.

Sem dúvida, os donos de restaurantes, hotéis e cabanas de praia devem estar

atualizados e ter uma boa equipe de cozinheiros e chefs que conheçam a cozinha tradicional

22

Entrevista realizada com o empresário do Agdá Restaurante, Haroldo Fonseca, em Ilhéus, Bahia, 15 de julho

de 2009.

da região e saiba manipular com arte e prazer os alimentos que simbolicamente representam

parte da cultura de Ilhéus e região.

O Agdá Restaurante é um dos restaurantes pesquisados que traz, através do seu

proprietário, uma expressão original da vivência cotidiana da cozinha africana. O nome Agdá

cuidadosamente escolhido pelo empresário, na seita do candomblé significa “prato de barro

grande”, onde na época das festas de Cosme e Damião, reuniam sete crianças e elas comiam o

caruru no mesmo prato. Curiosamente, esse prato é único e consta no cardápio, sendo

preparado para servir a oito pessoas.

Temos nesse ritual, que é a comida, uma simbologia dos costumes e da tradição que

acompanham as crenças, as festas, o cotidiano os saberes, a identidade e a memória que

particulariza uma cultura e a torna única, singular e, ao mesmo tempo, plural e aberta a novas

contribuições, tal qual aconteceu e ainda acontece no Brasil e no mundo globalizado.

O cardápio do restaurante em questão prioriza a comida africana: a moqueca de peixe,

caruru, vatapá, efó, o ensopado de peixe com pirão, peixe escaldado com verduras/pirão e

arroz. Também há o prato Agdá que é uma criação do maitre Haroldo, uma receita que alia o

gosto da cozinha africana hibridizada por outros ingredientes, a base de peixe, camarão e ostra

- acompanhado de caruru, vatapá, pirão e arroz. No cardápio consta também mariscos

próprios da região, camarão e bacalhau preparados à moda da culinária local.

É essencial pontuar que o frango é oferecido no cardápio do Agdá Restaurante tem por

parte do maitre o cuidado de obedecer aos costumes locais: frango ao molho pardo, xinxim de

galinha, e outros, além do sarapatel, dobradinha, carne do sol, feijoada aos sábados também

faz parte do cardápio, numa confluência de saberes e sabores que refletem a variedade

culinária da referida cozinha.

No que tange a herança recolhida de Portugal, importa ressaltar que:

Come-se galinha de molho pardo em: Gabriela, cravo e canela; Os pastores

da noite; Dona Flor e seus dois maridos; Tieta do Agreste e Tocaia Grande.

Prato de origem portuguesa, manteve-se entre nós sem muitas alterações. No

Brasil, no entanto, não se faz a sua versão com arroz: o arroz de cabidela –

como aquele gostosíssimo que é feito por Clarinda Lima de Carvalho em

Lisboa -, em que o cereal é cozido é cozido no molho pardo da galinha.

Galinha de molho pardo – ou cabidela, como também é chamada – foi um

dos pratos que compôs o menu do primeiro almoço preparado por Gabriela

para Nacib. “Oh! – exclamava ante o aroma a exalar-se da galinha de

cabidela...” O molho pardo também faz fama de boa cozinheira de dona

Carmosina, a agente dos Correios amiga de Tieta. Uma cabidela bem-feita já

é um passo andado para garantir lugar no time de Dona Flor (AMADO,

2004, p. 137).

Conforme o proprietário do Agdá Restaurante, há constantemente uma curiosidade por

parte dos turistas em conhecer a comida baiana e a culinária regional, ainda pouco explorada

em alguns restaurantes e pontos turísticos de Ilhéus. Para o empresário do Agdá Restaurante é

importante conhecer parte dessa história:

A comida do português usava muito o azeite de oliva e temperos e tinha

bastante caldo. O africano usava o azeite de dendê e o índio usava bastante

pimenta para temperar sua comida. Assim: o peixe do português era cozido

com azeite de oliva, o peixe do africano com azeite de dendê e o peixe do

índio era feito com muita pimenta. O peixe à portuguesa é o escaldado de

peixe africano, só que o peixe de Portugal leva só batata e o peixe africano

leva verduras e pirão também, é o famoso cozido substituído pela carne e

utilizado na culinária local. O bredo era usado pelo português colonizador

sem dendê e isso é completamente diferente do uso feito da folha pelo

africano, que leva o dendê e o camarão seco para fazer o efô (Haroldo

Fonseca)23

.

Nesse contexto, o hibridismo cultural revela a base étnica que enriqueceu a culinária

regional e deu uma nova feição a comida do português e do africano no Brasil e possibilitou

que elementos da comida do índio, próprio da culinária regional fosse acrescida de

ingredientes que tornaram o sabor agradável ao paladar dos que habitaram a região na época,

a exemplo do uso do sal de cozinha. Ainda referindo-se ao cozido Paloma Amado (2004, p.

116), a escritora descreve em menção à obra de Jorge Amado: “come-se cozido em: São

Jorge dos Ilhéus; Dona Flor e seus dois maridos e Tocaia Grande; Com isso, deixa claro

que os personagens de Jorge Amado apreciavam o famoso prato”.

Segundo a referida autora, as variações de uma comida seguem os costumes da região:

O cozido é um prato que permite muitas variações, pois basta acrescentar ou

retirar verduras e legumes, basta colocar mais carnes gordas, ou, ao

contrário, somente carnes magras, para que o sabor varie e atenda a todos os

paladares. O tio de dona Flor, tio Porto, gosta de cozido com muita verdura.

Na casa do Rio Vermelho se aprecia o cozido com muita carne seca e carne

de fumeiro, não é necessário que seja gordo – com toucinho e paio -, mas

que tenha aquele gostinho de fumaça das carnes defumadas. Uma coisa, no

entanto, não muda: é a obrigatoriedade de se fazer um belo pirão com o

caldo fumegante, aquele que deixa Carybé lambendo os beiços (AMADO,

2004, p. 116).

23

Entrevista realizada com o empresário do Agdá Restaurante, Haroldo Fonseca, em Ilhéus, Bahia, 15 de julho

de 2009.

O conhecimento da história da alimentação conduz a um cuidado e critério maior na

escolha dos pratos de um cardápio de restaurante regional, quando há uma percepção da

culinária e suas contribuições, modo de fazer e especificidades. Para tal é indispensável uma

educação patrimonial nesse sentido, pois é inadmissível que o indivíduo que trabalha com a

gastronomia, desconheça certas modalidades no uso de ingredientes, especiarias e alimentos

familiares à comunidade e por vezes atrativos ao olhar do visitante ou turista.

É unanimidade a preferência dos turistas e, não só desses, mas da própria comunidade,

pelo peixe, seguido do camarão em todos os restaurantes entrevistados. Segundo o

proprietário do Agdá Restaurante 80% do seu faturamento é peixe. Afirma, ainda, que há sim

uma curiosidade dos turistas, inclusive da própria tripulação do navio que chega a Ilhéus, pela

comida que evidencia a marca da Bahia, um deles chegou a dizer: “o senhor não quer ir

cozinhar no navio?”

O restaurante Mr. Camarão, que tem como proprietários o empresário Pedro e sua

esposa Celeste trabalham com várias modalidades de receitas no preparo do camarão,

alimento largamente procurado pelos turistas e a comunidade que apreciam o marisco, farto

na região pela presença do mar e de rios que circundam a cidade. Com dois estabelecimentos

na cidade, um na Avenida dois de julho e o outro na Avenida Lomanto Júnior, no bairro

Pontal em Ilhéus, no ano de 2009.

Cabe pontuar que a iniciativa de criar um estabelecimento no qual a prioridade seja o

fruto do mar é importante dentro do contexto turístico, mas por outro lado, o restaurante sofre

restrições em época de baixa estação, não tendo uma frequência que sustente dois endereços

na cidade, tendo em vista ser o turista, e não o morador, o motivo maior da existência do

estabelecimento.

Nesse entendimento, apesar do movimento grande do restaurante e da qualidade do

produto oferecido, por vezes o local inicia suas atividades comerciais e tem curta duração,

sendo substituído por outro imediatamente no mesmo local. Desse modo, observamos,

no planejamento a longo prazo ocorre a decisão sobre a”concepção” do

produto ou a sua identidade mercadológica. A partir daí, determinam-se os

produtos que serão oferecidos ao mercado, quem participará da sua

composição, em que períodos e para quais segmentos do mercado. Todas as

decisões devem estar voltadas para esse objetivo, e as ações direcionadas

para a sua consecução, como, por exemplo, o planejamento urbano das

localidades turísticas e o zoneamento das áreas prioritárias para o

desenvolvimento de equipamentos e serviços (RUSCHMANN, 2001, p. 92).

Assim, um planejamento a longo prazo compreende um período maior e naturalmente

uma maturidade mais acurada por parte daqueles que planejam o destino turístico. O estudo e

planejamento a curto prazo requer ações e resultados imediatos, portanto, que não exija uma

espera longa. Ao planejar um restaurante, vários aspectos devem ser pensados onde a

prioridade não unicamente à culinária oferecida, mas também a durabilidade do local

comercial que reforça a marca do produto turístico e os serviços prestados à comunidade e ao

turista, condição que, algumas vezes, se torna inviável para o empresário pelos custos gerados

e pouco movimento na baixa estação.

Com base nessa ideia, algumas alternativas são criadas, a exemplo do empresário

Eduardo Daneu, neto de libanês, de pai árabe e mãe polonesa e morador de Ilhéus. Conta que

para continuar prestando serviço à comunidade e ao turista, sem, contudo, ter necessariamente

um restaurante funcionando todos os dias, o empresário negociou por um dia o restaurante do

Iate Clube de Ilhéus e todas as quartas-feiras servem um bufê elaborado por ele e muito bem

frequentado no restaurante por pessoas da comunidade de Ilhéus e turistas.

Segundo o empresário Eduardo Daneu, a ideia do restaurante de comida árabe surgiu

de uma brincadeira que ele fez. Revelou que, antes do espaço no restaurante do Iate Clube, ele

teve um restaurante em sua casa, cuja especialidade era a comida diet depois resolveu criar

uma vez por semana um cardápio árabe, então, foi crescendo o movimento e, com ele, a

procura da comida árabe também.

Assim, o empresário Daneu resolveu encerrar o restaurante diet e continuar somente

com o árabe. Afirma, com isso, que “está sendo bem interessante, porque através da comida

árabe eu consegui crescer bastante dentro da área da gastronomia e hoje em dia eu sou uma

pessoa que faço qualquer tipo de comida graças ao conhecimento que tenho”.

Dentre os saberes culinários que a cozinha agrega ao ser questionado sobre qual o tipo

de comida que mais utiliza no cotidiano, o empresário opina que é difícil dizer, pois ele

prefere a mistura, por vezes a sugestão de um bacalhau ou outra receita, o prato é sempre

inventado, ele diz que testa sempre a comida e que a cozinha tem muito de inventividade:

Na época do meu restaurante eu testava no próprio restaurante, às vezes

alguém dizia: mas você tomou prejuízo, como é que você montou esse bufê?

- Não, é a primeira vez, eu estou testando pra ver se dá certo. Uma vez eu

testei um filé com frutas e foi um sucesso. Mesmo o prato tradicional é

reinventado, às vezes você passa uma receita pra mim, eu olho, eu aprovei,

eu comi, eu gostei, mas só que eu modifico alguns ingredientes, eu vou fazer

diferente e fica uma maravilha. O macete da comida está aí, é o segredo de

cada um, o modo de fazer (Eduardo Daneu)24

.

O interessante na comida árabe desse descendente de libanês é que a culinária é a

leveza ao combinar ingredientes, o tempero não briga com o alimento. De fato, é uma arte

saber cozinhar realçando os ingredientes que compõem uma receita. Apesar da cozinha árabe

não ter sido uma cozinha que se misturou como a de outras etnias no Brasil, ela preservou a

sua especificidade, porém passou a conviver naturalmente com outros tipos de comidas

fazendo parte dos hábitos culinários da cultura ilheense.

A comida identifica e faz lembrar, remete à memória e aos costumes, o empresário

revive saberes da infância: “lembro-me da sopa de berinjela e lentilha que a minha mãe fazia.

O cardápio árabe é muito grande e um dos mais variados. Os kafta são bolinhos de carne

temperados com canela e outros temperos - também lembrados por seu uso e consumo na

infância. A cozinha árabe tem muitas sementes, especiarias e normalmente são produtos

importados para o uso nas receitas do restaurante em Ilhéus, completa o empresário.

Segundo Eduardo Daneu a comida árabe, a depender do lugar, tem um modo de fazer

peculiar e diferencia-se de uma região para outra, assim como ocorre em outras partes no

Brasil. A menjadra de lentilha, por exemplo, em algumas regiões árabes são mais grudentas,

parecendo uma papa, ao passo que, em outras, fica mais soltinha e isso vai muito do modo de

preparar a receita. Outro prato que acompanha o cardápio do bufê é a geléia de pimenta, além

da coalhada seca servida com os pastéis, bastante apreciada pelos moradores de Ilhéus e

turistas que vão ao restaurante de comida árabe do empresário Daneu.

24

Entrevista realizada com o empresário e conhecedor da cozinha árabe, descendente de libanês, Eduardo

Daneu, com serviço de restaurante nas quartas-feiras no Iate Clube de Ilhéus, ao meio-dia, 22 de julho de 2009.

FIGURA 22: Comida árabe feita por descendente

de libanês: tabule, geléia de pimenta,coalhada seca (a; b) arroz com lentilha (c),

berinjela (d) quibe cru (e)

Fonte: Mércia Cruz

À luz da análise dos cardápios discutidos anteriormente através da tabulação dos dados

da pesquisa e das falas temáticas de cada sujeito, notamos uma variedade imensa de alimentos

devido à quantidade de povos que se instalaram no Brasil em diversas regiões e deixaram suas

marcas na culinária brasileira. Conforme Canclini (2006):

Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoques teóricos que levam em

conta os processos de hibridização mostram que não é possível falar das

identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem

afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos

movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de

elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um

relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência (CANCLINI, 2006,

p. XXIII).

Nessa compreensão, ao abordarmos o patrimônio gastronômico no contexto turístico

de Ilhéus, na perspectiva da culinária, ressaltando o alimento como marca identitária local,

pontuamos nesta pesquisa, não uma identidade fixa, rígida e hegemônica, porque não a

entendemos assim, mas, sim abordamos o processo de identificação do alimento pelo

indivíduo conforme visto no capítulo 1. Assim, o objeto de estudo da identidade é deslocado

para a sua heterogeneidade e a hibridização (CANCLINI, 2006). Desse modo, as identidades

se movem acompanhando a dinâmica cultural.

O que a pesquisa enfatiza é a valorização da culinária por meio do conhecimento das

nossas raízes passadas, enquanto heranças culturais, ainda presentes nos hábitos, costumes e

tradições reconfigurados pelo tempo. Mesmo vivendo num contexto globalizado, o homem

tem necessidade de preservar o que gosta e o que produz conforto e pertencimento, enfim, o

que transmite a ideia de “lugar comum”, algo extremamente familiar.

Se bem pensado, a culinária com a qual nos identificamos está situada em meio à

heterogeneidade, visto a diversidade cultural que nos influenciou e contribuiu para entrar na

hibridez, assim como se entra na modernidade como sugere Canclini (2006). Saber-fazer, no

que tange o conhecimento e o uso da gastronomia, é potencializar os saberes e fazeres

localizados em espaços geográficos delimitados, porém, muitas vezes, dispersos pela falta de

visibilidade, de políticas turísticas e culturais inseridas na política pública ainda principiante

na região.

2.2.3 Como os cardápios de cabana de praia refletem as identidades gastronômicas em

prol do turismo

As cabanas da praia do Sul de Ilhéus foram visitadas e entrevistadas a respeito do

cardápio oferecido à comunidade e ao turista. Podemos notar que há uma semelhança no

cardápio de todas as seis cabanas entrevistadas. A Cabana Palmito, segundo o proprietário, ao

elaborar o cardápio, se baseou primeiro no que a população da região consome. O prato

destacado pela cabana foi a moqueca de palmito e o bolinho de palmito, uma criação do

estabelecimento. Afirma que a moqueca agrada tanto aos turistas que visitam a cabana quanto

às pessoas da cidade e entorno.

Como nos restaurantes, dentre os alimentos mais procurados o peixe está em primeiro

lugar. O cardápio se baseia em peixes, camarão, carnes e frango. A moqueca, também, é um

prato bastante solicitado, contudo, há uma preocupação em moderar no dendê para os turistas.

Ao ser indagado se a associação dos cabaneiros, a qual todas as cabanas de praia entrevistadas

para esta pesquisa estão associadas, promove uma espécie de curso sobre a utilização dos

cardápios de modo que haja uma interação entre os cabaneiros, foi respondido que não. Cada

dono de cabana cria seu próprio cardápio.

Por sua vez, a Cabana Soro Caseiro com uma tradição de mais de vinte anos em

Ilhéus, tem o seu cardápio baseado na culinária baiana. Neste espaço, a proprietária Rosa

afirma que o turista tem curiosidade em experimentar a lambreta e o caranguejo, ao contrário

do turista que vai para o hotel Cana Brava, por exemplo, que normalmente prefere a

casquinha de aratu ou siri, conforme dados em entrevista. Naturalmente, tais aspectos variam

bastante de turista para turista, pois as pessoas têm necessidades diferentes e vontades

diferentes e isso também deve ser pensado na oferta turística do destino a ser visitado.

Nessa cabana pode ser observado o uso frequente de caldos que, de acordo com a

proprietária da cabana, são mais solicitados pelos moradores locais e da região do que pelo

turista. Nessa relação de caldos estão: sururu, camarão, caldo de aipim com calabresa e

outros. Conforme entrevista realizada, há uma solicitação das bebidas tipo caipirosca à base

de cacau, caju, cajá, cupuaçu e frutas da região, que apresentam uma novidade para o turista.

FIGURA 23: Moqueca de palmito (a; b), bolinhos de palmito

Criação da Cabana Palmito

Fonte: Mércia Cruz

A Cabana Narigas, ao lado da Cabana Soro Caseiro, acompanha a tradição e o tempo

de existência, sendo uma das mais antigas de Ilhéus; a prioridade do cardápio é para o peixe,

mariscos, caranguejo, catados e o camarão - por sinal de qualidade muito boa. Para o

proprietário Danilo, as comidas que se identificam com a região, com uma tendência maior

para a cozinha africana, hoje adaptada e conhecida como baiana é a que predomina em sua

cabana de praia.

FIGURA 24: camarão alho e óleo da Cabana Narigas (a; b)

Fonte: Mércia Cruz

Quando questionado sobre o prato mais procurado pelo turista, a resposta foi para o

peixe e camarão, especialmente as moquecas e o peixe frito ou camarão alho e óleo. Em seu

cardápio, opina Danilo, ele utiliza alguns condimentos como a castanha de caju no pirão e a

pimenta de cheiro (que não arde) como tempero que, segundo ele, os turistas gostam.

A Cabana Renascer, uma das antigas de Ilhéus segue a linha das outras cabanas;

embora mais afastada, atende aos turistas muito mais que aos moradores locais. O cardápio é

baseado em frutos do mar e o peixe é o prato mais pedido. Basicamente segue a linha das

outras cabanas. Os proprietários da cabana arrendaram a mesma, mas eles convivem um

período fora do Brasil, na Noruega. Afirma que o turista que quer tranquilidade ou se hospeda

em hotéis próximos sempre busca essa cabana.

Uma das cabanas de praia que se destaca pelo espaço físico e a qualidade do cardápio

além do nome que homenageia a personagem do escritor Jorge Amado é a Cabana Gabriela.

De acordo com a proprietária entrevistada, Maria de Lourdes, o cardápio foi elaborado pelo

seu marido e prioriza a comida baiana, o pirão, a moqueca e a farofinha.

Para a proprietária Lourdes, a ideia dos caldos, que são oferecidos no cardápio, surgiu

a partir da observação dos turistas que queriam algo forte para comer, “beliscar” antes do

almoço. O cardápio revela critério e atenção com o alimento oferecido aos visitantes da

cabana e aos turistas. Conforme a empresária, que também cozinha na cabana, “os turistas

gostam de saber se o peixe está fresco e o cuidado dispensado aos frutos do mar”25

.

Tal procedimento é natural, uma vez que os frutos do mar, crustáceos e mariscos, de

modo geral, são alimentos perecíveis e fáceis de estragar. A pesquisa realizada confirmou o

zelo dos cabaneiros nesse sentido. A procura por peixes e camarão, além dos mariscos em

formato de casquinhas de aratu e siri, novidade para o turista que não conhece e o prato é

25

Entrevista realizada com a proprietária da Cabana Gabriela, Maria de Lourdes de Jesus Silva Moreno, Ilhéus,

Bahia, 22 de julho de 2009.

grande, o que justifica o cuidado que os donos de restaurantes, de modo geral e os cabaneiros

em particular, devem ter ao manusearem esses produtos, visto que a culinária,

simbolicamente, também traduz imagem do lugar visitado, sendo um cartão postal para quem

chega de viagem e para quem leva suas lembranças dessa viagem.

Ao ser questionado sobre o cardápio, a proprietária da cabana Gabriela revelou o

cuidado no uso do dendê e a preferência pela culinária regional: moqueca de peixe e camarão;

escabeche a Jorge Amado; mariscada, lagosta, caranguejo, lambretas, bobó de camarão, caldo

de sururu, de camarão, feijão e legumes. O prato mais procurado segundo Lourdes é o peixe à

Gabriela, peixe que traz o nome da cabana e da personagem de Jorge Amado que já encantou

Ilhéus e ainda desperta curiosidade a visitantes e turistas.

O turista aprecia o que está disponível seja nos hotéis ou nos restaurantes, nas cabanas

de praia, nos tabuleiros que circulam nas praias e nas praças da cidade. Conta um dos turistas

entrevistados que ao chegar a Ilhéus teve muita curiosidade em conhecer o cuscuz nordestino.

Outros revelaram a curiosidade em experimentar o suco do cacau e o quibe do restaurante

Vesúvio, famoso pelas histórias contadas no romance de Jorge Amado. Uma turista de São

Paulo chegou a dizer: “eu amo a comida baiana. O suco de cacau é muito mais gostoso aqui

em Ilhéus do que em Salvador” (Cláudia Marinho Carvalho)26

.

FIGURA 25: Peixe à Gabriela (a), caranguejo (b)

caldo de sururu (c) e lambretas (d) – Cabana Gabriela

Fonte: Mércia Cruz

Ao lado da Cabana Gabriela temos a Cabana Nacib de propriedade de Márcia e sua

família. Conta que a cabana existe há dezessete anos e que, em passeio turístico a Ilhéus,

gostou da cidade e resolveu ficar morando no local com a família e o marido. Conta a

26

Entrevista realizada com a turista Cláudia Marinho Carvalho, em Ilhéus, Bahia, 26 de julho de 2009.

empresária da cabana que conservou o cardápio que já existia, mas acrescentou novos pratos

como o Peixe à Nacib em homenagem ao nome da cabana e ao personagem de Jorge Amado.

O antigo nome da cabana era “Toca do luar”.

Em visita ao Rio do Engenho, relata a empresária da cabana Nacib que se interessou

bastante pelas receitas típicas da região oferecidas no cardápio dos restaurantes do referido

distrito de Ilhéus e gostaria de fazer uma adaptação dessas receitas em sua cabana de praia.

FIGURA 26: Peixe à Nacib (a; b) – Cabana Nacib

Fonte: Mércia Cruz

Assim, os cabaneiros da praia do Sul de Ilhéus buscam realçar alguns pratos da

cozinha local, muito embora, ainda haja ausência de pratos culinária ilheense, no cardápio de

boa parte das cabanas, que podem dar visibilidade à culinária tradicional local, de modo que

disponibilize a variedade e a riqueza das comidas.

Para tal, cursos preparatórios deveriam ser efetuados pelo SEBRAE e órgãos

competentes no sentido de informar sobre a história da alimentação em Ilhéus e entorno;

conscientizar moradores e empresários do valor não somente comercial dos quitutes

oferecidos nos cardápios, mas, sobretudo do valor simbólico do produto turístico que é

utilizado pela economia do município.

A amostragem do número de turistas nesta pesquisa foi formada fazendo recorte

qualitativo. Trata-se de uma amostragem não-probabilística (DENCKER, 1999)27

. De modo

geral, os turistas afirmaram nesta pesquisa que ao visitar Ilhéus têm interesse em conhecer a

culinária regional. A percepção desses turistas quanto ao que seja a cozinha tradicional de

27

Entende-se por amostragem não-probabilística qualquer tipo de amostragem em que a possibilidade de

escolher um determinado elemento do universo é desconhecida. Assim, temos a amostragem de conveniência,

utilizada em pesquisas piloto para levantamento de problemas, testes de questionário etc. Os elementos são

escolhidos de acordo com a conveniência do pesquisador. Outro tipo é a amostragem por julgamento, pela qual

um especialista seleciona o que acredita ser a melhor amostra para o estudo de um determinado problema

(DENCKER, 1999, p. 179).

Ilhéus varia bastante. Alguns demonstraram vontade de conhecer o acarajé, o abará e as

comidas com azeite de dendê, presente na Bahia como um todo, também demonstraram

curiosidade pelo catado de aratu, a farofa de banana da terra, a casquinha de siri e os produtos

da região. As frutas diferentes chamam sempre a atenção para os sabores da terra.

É curioso o depoimento dos turistas entrevistados, porque apesar do fenômeno da

globalização que permite que todos estejam a qualquer momento em qualquer lugar ou possa

comer a comida de uma região ou país diferente do seu, é singular a experiência de visitar o

lugar de origem daquele prato saboreado e conviver no contexto onde as histórias são

narradas e lembradas com pertencimento.

Contudo, houve turistas que demonstraram curiosidade pelo feijão fradinho, o pirão

que acompanha a moqueca e o caranguejo na Bahia, a tapioca, o aipim nas diversas

modalidades que são preparadas, os bolos e o cuscuz de tapioca. Desse modo, notamos que o

turista aprecia e tem curiosidade pela culinária local, quando ele não come um alimento é

muito mais pelo receio dos condimentos fortes, da pimenta e temperos diferentes do que pela

falta de curiosidade.

De acordo com a turista Ediley que visitava o restaurante Vesúvio, “é muito bom estar

na Bahia e comer em Ilhéus o peixe assado, o pirão, a moqueca, coisas que não se come em

São Paulo do mesmo modo. É muito bom estar no litoral com a família e apreciar o peixe

vermelho cozido ou frito”. Opinião que é reforçada por outro turista de São Paulo quando foi

perguntado sobre o prato mais apreciado e este, falou da excelente qualidade dos peixes

oferecidos em Ilhéus, destaque para o peixe vermelho (Eduardo Galvão)28

.

Apenas três turistas entrevistadas, nesse universo contemplado, disseram não ter

interesse ou curiosidade pela culinária local. Eram turistas de navio que vêm a Ilhéus e

passam rapidamente pela cidade. Obviamente, nem todos os visitantes ou turistas tem o

espírito de aventura, saem para explorar a cidade e os restaurantes. Mas, houve depoimentos,

dentro da pesquisa, de turistas que saíram do navio e foram comer a comida movidos pela

curiosidade.

Notamos que a motivação do visitante ou turista de Ilhéus se fundamenta na beleza das

praias e do litoral, mas também no fato de ser um lugar agradável para trazer a família em

busca do lazer e descanso, além do espírito alegre do baiano. É o que diz a turista: “o baiano

confia na gente, é um povo alegre e isso é bom para o turista” (Gercilene Florentino

Gomes)29

.

28

Entrevista realizada com o turista Eduardo Galvão, em Ilhéus, Bahia, 26 de julho de 2009. 29

Entrevista realizada com a turista Gercilene Florentino Gomes em Ilhéus, Bahia, 26 de julho de 2009.

Houve turistas que disseram ser Ilhéus uma cidade linda, mas ainda não foca no

turismo e, nisso, expressou o mau atendimento de funcionários em alguns estabelecimentos. O

que chama a atenção para a necessidade do preparo das pessoas que trabalham com o turismo,

a fim de cuidarem para que os funcionários façam cursos de atendimento ao público e estejam

bem informados sobre a sua cidade.

Compreendemos, desse modo, que acolher bem o turista requer, como enfatizado, um

bom planejamento, educação patrimonial, mas também interação da comunidade receptora

com o visitante que vem conhecer a cultura local. É assim que as palavras da turista Giovana

deixam um espaço à reflexão acerca do fenômeno social que é o turismo: “Quando venho à

Bahia, penso em sol e comida, em conhecer uma cultura diferente. Vou levar não só a

lembrança, mas literalmente, vou levar a tapioca comigo” (Giovana Prada)30

.

2.3 Aspectos étnicos e hibridização dos alimentos

É sabido que a tradição – entendida como

passado – nunca se nos dá feita: é

uma criação

Octavio Paz

Ao ponderar sobre a importância do alimento para a cultura de Ilhéus, encontramos

inúmeros acontecimentos ligados ao passado que transparecem nas sociedades e apontam

traços de distinção através dos hábitos e tradições. Importa salientar que tais traços culturais,

não sendo fixos, estão permanentemente sendo reconfigurados. É assim que:

Ao reduzir a hierarquia dos conceitos de identidade e heterogeneidade em

benefício da hibridação, tiramos o suporte das políticas de homogeneização

fundamentalista ou de simples reconhecimento (segregação) da “pluralidade

de culturas”. Cabe perguntar, então, para onde conduz a hibridação e se

serve para reformular a pesquisa intercultural e o projeto de políticas

culturais transnacionais e trans-étnicas, talvez globais. Uma dificuldade para

cumprir esses propósitos é que os estudos sobre hibridação costumam

limitar-se a descrever misturas interculturais. Mal começamos a avançar,

como parte da reconstrução sociocultural do conceito, para dar-lhe poder

explicativo: estudar os processos de hibridação situando-os em relações

estruturais de causalidade. E dar-lhe capacidade hermenêutica: torná-lo útil

para interpretar as relações de sentido que se reconstroem nas misturas

(CANCLINI, 2006, p. XXIV).

30

Entrevista realizada com a turista Giovana Prada, em Ilhéus, Bahia, 31 de julho de 2009.

Nessa aspecto, não enfocamos os tropismos fundamentalistas identitários, dando

abertura para a hibridação compreendida também como contradição, mestiçagem,

sincretismo, transculturação e crioulização (CANCLINI, 2006). O município de Ilhéus tem,

na alimentação, uma oportunidade de trabalhar o turismo cultural com êxito, devido à história

que tem se processado desde a chegada dos portugueses com a sua cultura fundida nos hábitos

gastronômicos de tantas etnias que passaram pela região, mas necessita, para que isso ocorra

de fato, conhecimento, gestão apropriada e políticas culturais que articulem medidas acertadas

nesse sentido.

Sem dúvida, existem alimentos que não se misturam, nem todo contato entre culturas

diferentes vai gerar a hibridez (CANCLINI, 2006) da culinária, a exemplo da comida árabe

em Ilhéus, não obstante, o novo formato que é dado a um prato pelo acréscimo de

ingredientes diferentes transforma esse prato em uma receita diferenciada, acrescida de

elementos peculiares e inovadores que realçam o sabor do alimento e os diferencia por isso.

As “comidas” contadas no romance de Jorge Amado e de fato uma experiência vivida

pelos imigrantes, eram compartilhadas; o árabe realmente provou a carne assada, a caça e a

jaca (típicos da região), ingredientes largamente utilizados pelos índios. É nesse sentido que a

comida oportuniza a mudança de hábitos, seja pela necessidade de saciar a fome, seja no

contato com uma nova cultura.

Ao serem processadas as misturas, um significado novo é dado a uma receita e a

relação de sentido vai sendo reconstruída a partir do contexto social, histórico, político,

econômico e cultural de um lugar. Foi assim que o alimento se acomodou e foi sendo

assimilado pelos moradores de Ilhéus e entorno e, hoje, ao coletar depoimentos, identificamos

tais alimentos como sendo tipicamente regionais.

De acordo com Burke, citando o antropólogo Ulf Hannerz (2006):

A respeito da “crioulização” de culturas inteiras [...] o antropólogo Ulf

Hannerz descreve culturas crioulas como aquelas que tiveram o tempo de “se

aproximar de certo grau de coerência” e “podem juntar as coisas de novas

maneiras”. Vários scholars sugeriram a relevância deste modelo linguístico

para o estudo do desenvolvimento da religião, da música, do estilo de

moradia, vestuário e culinária afro-americana. Eles estudaram o processo de

convergência cultural em locais e períodos específicos, como na Jamaica do

século XVII, novamente utilizando o termo “crioulização” para se referir à

emergência de novas formas culturais a partir da mistura de antigas formas.

Pode-se dizer a mesma coisa a respeito do Brasil, onde diferentes culturas

africanas se fundiram e se mesclaram com tradições nativas e portuguesas e

produziram uma nova ordem (BURKE, 2006, p. 61-62).

Assim, a culinária local continua processando transformações no tempo/espaço, pois o

homem criativo sempre está inventando, buscando novas opções, testando e verificando o

resultado de suas receitas, como comprovado nas entrevistas realizadas em restaurantes e com

pessoas detentoras de saberes da culinária Sulbaiana nos depoimentos dados em Ilhéus. É

assim que pesquisadores ligados a arte de cozinhar afirmam: “dificilmente se é um chef sem

ser um bom cozinheiro; inversamente, ser um bom cozinheiro não garante as qualidades de

Chef. Mas, como ambos se confundem na cozinha, é difícil distingui-los fora dela” 31

.

Para Burke (2006) quando ocorrem trocas culturais um período de fluidez (“liberdade”

no caso de você aprovar, “caos” no caso de desaprovar) é rapidamente seguido por um

período em que o que era fluido se solidifica, congela, vira rotina e se tona resistente a

mudanças posteriores. Mas, se bem observado são aqueles pequenos hábitos cotidianos que

irão modificar os costumes e, consequentemente, reconfigurar as tradições.

Assim, “formas híbridas de hoje não são necessariamente um estágio no caminho para

uma cultura global homogênea” (BURKE, 2006, p.115). Ao analisar as nossas culturas,

passada, presente e futura, uma nova ordem se impõe, novas formas surgem, a reconfiguração

das mesmas acompanha as transformações do globo; Surge o termo “crioulização do mundo”

referindo-se a essa nova ordem:

Sahlins esboça uma teoria dialética de mudança cultural na qual idéias,

objetos ou práticas de fora são absorvidas ou “ordenadas” por uma

determinada cultura, mas que no decorrer do processo (quando um

determinado limiar crítico é ultrapassado) a cultura é “reordenada”

(BURKE, 2006, p. 114).

Tal processo integra a história de todos os povos e faz parte das culturas reunidas

desde a primeira imigração, vinda para Ilhéus e seu entorno; o contato com línguas diferentes,

hábitos, costumes, modo de vida e preferências alimentares oportunizou mudanças contínuas.

Em consideração à definição do que seja identidade cultural no mundo pós-moderno, usamos

o plural para referirmos a uma “diversidade de identidades” em consonância com a dinâmica

cultural sob a ótica global.

A cidade de Ilhéus necessita “acordar” para suas potencialidades gastronômicas,

heranças culturais e turísticas. Buscar identificar, nesse sentido, serve para direcionar a

31

Federação Nacional de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares.

pesquisa na área que favoreça a criatividade dos empresários de restaurantes, hotéis, cabanas

de praia e pessoas da comunidade que já trabalham com o alimento. As identidades culinárias

são apontadas não de modo cristalizado, pois já vimos que não procede tal pensamento, mas

como uma forma de conhecer, valorizar e sentir-se parte do modo de viver e morar que

caracterizam a cultura local.

Ao analisar os aspectos étnicos que contribuíram para dar uma nova configuração

social a Ilhéus, enfatizamos nesta pesquisa a necessidade de chamar a atenção para a

importância de (re)conhecer, nos cardápios de pontos turísticos, a significação e sentido da

culinária ilheense como um atrativo cultural de importância e valor patrimonial.

Os alimentos assimilados, provenientes de culturas diferentes, trouxeram uma nova

dimensão ao paladar e à conduta comportamental da comunidade ilheense. Certos hábitos, tal

qual sentar no Bar Vesúvio para prosear com amigos e comer um quibe, uma esfirra ou

qualquer outro prato árabe, atravessou um século de existência e acompanhou histórias,

transmitindo hábitos e costumes implantados por culturas diferenciadas.

Assim, a história da alimentação permeia a história de qualquer povo e sua cultura,

pois o homem como ser social interage com outros e o contato gerado modifica, por vezes, os

costumes alimentares e dá uma nova configuração à tradição. O ex-ministro da Cultura,

Gilberto Gil, ao ser questionado qual a sua visão sobre cultura intangível afirma que:

A cultura intangível é a parte mais importante, mais substancial da cultura. É

a cultura que se processa pelos modos de comunicação. Com o crescimento

das populações, especialmente em lugares onde prevalecem os cânones

clássicos da cultura eurocêntrica, mas também na periferia do mundo, a

cultura intangível se torna mais eloquente, forte e flagrante. Trata-se da

cultura oral, dos saberes, dos processos e das trocas simbólicas cotidianas,

nas várias formas de linguagem utilizadas pelas pessoas. Essa dimensão é a

mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje. Eu

diria que bem mais da metade da população mundial tem nessa dimensão

cultural sua dimensão principal. Acho que o Brasil se encaixa com perfeição

nesse modelo de povos novos, povos que se construíram com base em uma

vivência cultural não formalizada (GIL, 2008, p. 12).

Tal modalidade contém uma base em vivência cultural não formalizada e mapeia a

diversidade cultural que caracteriza o Brasil. A região Sul da Bahia adquiriu suas heranças

culturais com base nas trocas e conhecimentos com os imigrantes, nos processos híbridos, na

assimilação de culturas variadas que enriqueceram Ilhéus e região com alimentos e receitas

culinárias diferentes que atravessaram séculos e atualmente compõe a cozinha local.

Por quase cinco séculos de existência, Ilhéus acolheu uma variedade grande de

estrangeiros que modificaram os costumes daqueles que moravam no município e,

naturalmente a culinária foi o ramo que mais refletiu as misturas e mudanças processadas no

percurso, porque o ato de comer mobiliza gostos, comportamentos, crenças e saberes

conforme amplamente discutido. É através das preferências alimentares que uma sociedade

vai delimitando aspectos culturais peculiares.

Culturas diferenciadas têm modo específico de escolher o alimento, de preparar e de

servir e tudo isso passa por um padrão comportamental que vai identificar o indivíduo através

da culinária. Portanto, conhecer e gostar de certos sabores e certos alimentos, caminha pelos

costumes e hábitos que foram assimilados por um lugar. Quando o turista vem a uma cidade,

ele pode se identificar ou não com tais sabores. Conforme depoimentos em entrevistas

realizadas em hoteis, turistas que vieram a Ilhéus tiveram curiosidade em conhecer o suco de

cacau, admiraram-se da cor e do sabor, pois imaginavam, pelo chocolate, que o cacau teria

uma cor e um sabor semelhante.

Todavia, o pertencimento surge a partir da identificação com aquilo que nos

habituamos a comer em dada região. O indivíduo nasce e cresce degustando certos alimentos,

sentindo o cheiro de determinadas frutas que não há em outros lugares, a não ser aquele em

que mora. Obviamente, as frutas, legumes, temperos e alimentos que consumimos na

atualidade estão em toda parte do globo, mas o diferencial surge junto com a história em torno

daquele alimento e o lugar onde ele é cultivado.

Assim, a cultura vai sendo elaborada, como definiu Geertz (2008) em um conceito

semântico ligado à interpretação dos significados da vida social. Enquanto parte integrante do

processo cotidiano de vida de um grupo, a culinária como símbolo tradicional torna-se

significativo, o que admite a concepção de patrimônio cultural. Para os imigrantes que vieram

às terras do cacau e antes desses (os conquistadores na época do engenho da cana de açúcar),

os alimentos que circularam no país, vindos de fora, se fundiram com os encontrados nas

terras novas e delinearam um novo modo de viver e cozinhar.

Com base nesse entendimento, é fundamental uma percepção clara, por parte de

gestores culturais e poder público, do valor mercadológico/simbólico do alimento, isto é, da

culinária da terra como um produto turístico e um atrativo propício a estar nos locais onde o

visitante ou turista passeia. Se focarmos as cabanas de praia, lá encontraremos vendedores

ambulantes circulando nas praias com seus tabuleiros de cocadas, de acarajés e abarás; doces

tipicamente regionais e frutas da região, sendo comercializados por iniciativa própria, mas

carentes de um apoio financeiro que viabilize a sustentabilidade tais produtos em uma escala

maior e em outras localidades que lhes dê visibilidade.

Segundo Freyre,

há comidas que não são as mesmas compradas nos tabuleiros que feitas em

casa. Arroz-doce, por exemplo, é quase sempre mais gostoso feito por mão

de negra de tabuleiro que em casa. E o mesmo é certo de outros doces e de

outros quitutes. Do peixe frito, por exemplo, que só tem graça feito por

negra de tabuleiro. Da tapioca molhada, que “de rua” e servida em folha de

bananeira é que é mais gostosa. Do sarapatel: outro prato que em mercado

ou quitanda é mais saboroso do que em casa finamente burguesa – opinião

que não é só minha, mas do meu amigo e companheiro de ceias no mercado

e no Dudu, o grande juiz e grande jornalista Manuel Caetano de

Albuquerque e Melo. As negras de tabuleiro e de quitanda como que, entre

as casas ilustres, umas famílias vêm escondendo das outras receitas de

velhos bolos e doces que se conservam durante anos especialidade ou

segredo ou singularidade de família (FREYRE, 2007, p. 191).

Foi assim que o escravo africano dominou a cozinha colonial e tornou-a enriquecida

de sabores novos. Ingredientes adicionados à culinária vigente desde a época dos escravos na

fusão com a cultura portuguesa e indígena deu singularidade a cozinha baiana. “Várias

comidas portuguesas ou indígenas foram no Brasil modificadas pela condimentação ou pela

técnica culinária do negro; alguns dos pratos mais característicos brasileiros são de técnica

africana” (FREYRE, 2007, p.193).

O fato é que a culinária é uma grande condutora de conhecimento, história e vivências;

traz uma simbologia impregnada em tudo que uma sociedade consome e aprecia como

alimento. Assim sendo, ao visitar lugares, as pessoas buscam conhecer de alguma forma algo

daquele lugar, fato relatado por uma empresária de hotel em Ilhéus, entrevistada para esta

pesquisa:

A comida é o maior atrativo da cidade. O turista pede muitas vezes para a

cozinheira do hotel ir para a feira com ele, para aprender o modo de preparar

alguns quitutes tipicamente baianos, e muitas vezes, o hotel libera quando

está bem tranquilo e eles ficam super curiosos em relação a alguns alimentos

e tiram fotos com os donos de tabuleiros. É uma folia. (Néa Machado)32

.

32

Entrevista realizada com a empresária Néa Machado, do Hotel Jardim Atlântico, localizado no município de

Ilhéus, 30 de julho de 2009.

Assim, torna-se indiscutível o quanto a gastronomia vem sendo um fator indispensável

em qualquer atividade turística. É nessa concepção que ao viajar o visitante ou turista cria

expectativas e busca um serviço de qualidade e um bom acolhimento. Conforme Avena,

o viajante deseja ser reconhecido como aquele que é desejado. Ora, é pelo

desejo que o homem toma consciência dele mesmo e quando ele deseja algo,

é ele que deseja e não um outro. Assim, no acolhimento desejamos,

sobretudo, ser desejados. Este sentimento de querer ser desejado é forte no

cliente de um hotel ou de um restaurante, e este serviço é em parte fabricado

pelo acolhimento em si mesmo. Ele se constrói na relação cliente-hoteleiro.

Por isso, enquanto o desejo material será facilmente satisfeito naquele que

quer comprar um objeto, o desejo do cliente de hotel ou do viajante não será

jamais totalmente satisfeito por um quarto confortável se ele foi mal-

acolhido. Sentir-se o “mal vindo” faz surgir no cliente uma grande

frustração, sentir-se, ao contrário, faz nascer uma grande alegria (AVENA,

2001, p.24).

O alimento é fonte de curiosidade sempre, em qualquer cultura. O Brasil é um país de

muitas culturas, cada região tem um modo específico de viver, de morar e existir. Tamanha

diversidade reflete a base étnica que alicerçou a nação. E quando nos referimos a uma região,

estamos nos reportando a um universo de várias contribuições e de uma nova ressignificação

nos hábitos, nas crenças, nos costumes e na tradição de um grupo de pessoas ou de vários

grupos num espaço/tempo globalizado, sem perder de vista o local.

Portanto, é tarefa das mais importantes para gestores culturais e aqueles que planejam

para turismo desenvolver, em conjunto com empresários, comunidade e poder público, meios

de reconhecer e valorizar as contribuições étnicas presentes de forma diluída na culinária

evidenciada neste estudo, realçando o que Ilhéus tem de mais enriquecedor na sua

gastronomia.

De acordo com Yúdice (2006, p.52) “a cultura é conveniente enquanto recurso para

atingir um fim. A cultura enquanto recurso é o componente principal do que poderia definir-se

como uma episteme pós-moderna”. Entendemos com isso que, a dinâmica cultural admite

flexibilidade no tempo e mudanças, sendo operadas continuamente nos padrões e normas

comportamentais que moldam a sociedade.

Entretanto, em meio a mudanças, alguns elementos marcaram fortemente a cultura

local, mas preservam, ainda hoje, características peculiares adquiridas há séculos. Mesmo

com avanços tecnológicos, certos produtos são fabricados com base na sabedoria popular;

exemplo disso são as casas de farinha da região que produzem, de modo artesanal, a farinha

de mandioca; por outro lado, o modo de preparar alguns condimentos, como o corante a base

de urucum, o azeite de dendê, a tapioca e outros, integra a história e o cotidiano de alguns

grupos que habitam o município de Ilhéus.

FIGURA 27: Corante feito com urucum – Rio do Engenho

modo de fazer: frita semente (a) acrescenta farinha (b; c; d) e leva

para pilar (e; f)

Fonte: Mércia Cruz

Através das figuras acima, podemos ver tal processo foi assimilado por heranças

ancestrais que passaram de uma geração a outra e continua a fazer parte dos costumes e do

cotidiano de pessoas da comunidade do distrito do Rio do Engenho que além de fabricar seus

produtos, seguindo uma tradição aprendida e preservada, vendem nas feiras de Ilhéus e

mercados de Ilhéus tais produtos que trazem uma feição artesanal.

Algumas casas de farinha do Rio do Engenho ainda conservam o aspecto artesanal e

nelas se admite o ritual que lembra o índio quando iniciou o processo da produção da farinha,

com maior parte das mulheres comandando o trabalho da colheita à prensa da mandioca e da

prosa em torno da fabricação da farinha. São hábitos que o tempo não dissolveu apesar das

mudanças e das novas tecnologias que trouxe para a época atual equipamentos mais

sofisticados e mudou a rotina de muitas casas de farinha por conta disso.

Certas tradições são reforçadas e continuam sendo transmitidas entre gerações como

se deu com os doces cultivados pelos pequenos produtores locais que comercializam seus

produtos nas feiras livres e tabuleiros. Frutas da região são artesanalmente preparadas nos

doces em compotas ou frutas desidratadas e são vendidas, todavia ainda falta um apoio maior

de órgãos competentes que poderiam utilizar tais produtos como incentivo a uma produção

que inserisse tais mercadorias como um produto turístico valorativo, o que por outro lado

também favoreceria a inclusão social e o aumento da mão de obra local em benefício do

turismo.

FIGURA 28: Doces: jambo (a; b; c; d; e), banana (e), outros doces regionais

groselha , jaca (f)

Fonte: Mércia Cruz

Alguns conhecimentos ainda sobrevivem em comunidades nas quais as pessoas vivem

de modo simples, cultivam certos hábitos seculares no modo de cozinhar, morar e no modo de

fazer que simboliza vivências cotidianas, heranças patrimoniais de uma localidade. Não

obstante a sociedade contemporânea conviva com o mundo da tecnologia e da velocidade que

contrasta, por vezes, com paisagens bucólicas, costumes e hábitos preservados, como uma

herança de saberes ancestrais, notamos uma carência à valorização dos saberes transmitidos

por essas comunidades enquanto patrimônio cultural.

Segundo Guattari (2008) ao referir-se a questão mercadológica:

As máquinas ganham uma importância cada vez maior nos processos de

produção. As relações de inteligência, de controle e de organização social

estão cada vez mais adjacentes aos processos maquínicos; é através dessa

produção de subjetividade capitalística que as classes e castas que detêm o

poder nas sociedades industriais tendem a assegurar um controle cada vez

mais despótico sobre os sistemas de produção e de vida social (GUATTARI,

F; ROLNIK, S. 2008, p.48).

Com isso, torna-se cada vez menos visível o trabalho artesanal nas sociedades

contemporâneas, produzido conforme a técnica e os saberes ancestrais que caracterizaram

povos e gerações passadas. No distrito do Rio do Engenho encontramos alguns desses

trabalhos manuais com marcas das etnias negra e indígena, que ainda sobrevivem à margem e

são comercializados no município de Ilhéus. A culinária é a condutora em primeira ordem das

heranças que foram deixadas pelo índio e pelo africano, além do português que desde a época

dos engenhos contribuíram com seus hábitos alimentares na formação da culinária Sulbaiana.

Nesse entendimento, fatos curiosos acontecem com aqueles que trabalham com o

fenômeno social que é o turismo: em entrevista realizada para esta pesquisa, a empresária do

Hotel Jardim Atlântico contou que os turistas se encantam com os doces das frutas regionais

que são servidos no hotel, e demais guloseimas sempre apreciadas, muitos deles querem

comprar o doce em compota para levar na viagem, mas esses não estão disponíveis para a

venda.

FIGURA 29: Bolos de milho (a; b), cocadas de banana, coco (c),

Cacau, maracujá (d), bolo de fubá (e),

Licor artesanal (f) – Rio do Engenho

Fonte: Mércia Cruz

O ato de comer revela sempre algo mais sobre o homem e a teia de significados por

ele criada em torno de si, sinalizando sua etnia. É assim que, apesar de parecer comum aos

olhos dos que internalizaram certos costumes e hábitos alimentares, o fato é que, quando

tratamos da gastronomia, um leque de possibilidades surge no horizonte dessa arte,

envolvendo saberes e sabores presentes de cada cultura. Tais conhecimentos se multiplicam

nas vivências diárias, no convívio com outras culturas que se misturam permanentemente e

geram novos saberes, novas modalidades no modo de temperar a vida, a cozinha e as

preferências alimentares que acompanham o homem enquanto ser social, político e cultural,

inventor de histórias, morador, viajante e turista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado mostrou novas possibilidades de desenvolvimento do turismo

cultural por meio da culinária, no município de Ilhéus.

A formação étnica da região Sulbaiana, com foco nos hábitos gastronômicos, sinalizou

a sua riqueza cultural. Ficou evidenciado uma diversidade de saberes e sabores enraizados nos

hábitos e costumes locais; tais hábitos alimentares foram reconfigurados, ao longo da história

das conquistas de terras: da produção da cana de açúcar, à prosperidade reinante do fruto do

cacau nas terras do sem fim, à queda do cacau, até os tempos atuais.

Em avaliação feita nos cardápios de hotéis, restaurantes e cabanas, notamos que as

heranças gastronômicas na cozinha ilheense dão lugar a uma diversidade culinária imensa.

Todavia, como qualquer outra atividade turística e comercial, essa, ligada à gastronomia,

requer uma educação patrimonial que valorize as contribuições das diversas cozinhas

acrescidas no cotidiano da cidade.

Ao ponderar sobre tal questão, enfatizamos a necessidade de diversificar o produto

turístico de modo que o mesmo se faça notar em todos os locais pesquisados e frequentados

pelos turistas e moradores da cidade. Dito isso, cabe avaliar o que pode ser feito para aquecer

o mercado gastronômico, ainda uma das grandes opções que acompanha o entretenimento e o

lazer de todo e qualquer local turístico e não apenas de Ilhéus.

Para que a gastronomia exerça as suas potencialidades através de cardápios, urge a

pesquisa, o conhecimento culinário e a valorização de ingredientes e receitas regionais,

algumas pouco utilizadas por “não serem vistas” como atrativas para a oferta do cardápio.

Os restaurantes dos hotéis entrevistados dão destaque ao café da manhã, valorizando o

alimento regional, o uso de sucos e frutas locais, raízes e demais receitas regionais, como foi

visto. Verificamos um cuidado esmerado por parte dos hoteleiros nas escolhas dos alimentos e

na preferência pelos produtos regionais, seguindo um planejamento de acordo com a proposta

do hotel.

Entretanto, ao avaliar os restaurantes das cabanas de praia, bastante frequentados pela

comunidade e pelos turistas que optaram por conhecer e explorar o litoral, com raras

exceções, pode ser observado que os cardápios são basicamente iguais na oferta dos produtos.

Constatamos pouca variedade das iguarias que poderiam aumentar a oferta da cozinha local,

dando maior visibilidade ao patrimônio gastronômico imaterial.

Conforme entrevistas realizadas, os turistas, em sua maioria, afirmam que, quando o

alimento regional é disponibilizado como oferta, ele pode despertar a curiosidade daquele que

está em busca da novidade. Nessa compreensão, os donos de restaurantes entrevistados

buscam realizar esse procedimento, acrescentando um novo prato ao cardápio anualmente,

com parcimônia no uso do dendê e temperos fortes; mas com criatividade própria, não deixam

de apresentar a cozinha baiana e suas variantes.

Considerando que o centro da cidade de Ilhéus não disponibiliza variedade de

restaurantes abertos aos domingos durante o dia, com exceção do Restaurante/Bar Vesúvio

que funciona normalmente, e raras opções temporárias, restam como alternativa, as cabanas

de praia. Portanto, caberia um curso preparatório criado por órgãos competentes, tipo o

SEBRAE em parceria com a Associação dos Cabaneiros e governo local com a determinação

de capacitar os cozinheiros e instruir os proprietários, a fim de oferecer uma culinária mais

variada e criativa.

Por outro lado, parece inconcebível que uma cidade turística não planeje o fim de

semana e o roteiro das atividades de lazer, deixando o centro da cidade, local histórico-

cultural, fechado, sem maiores opções aos domingos. Assim, observamos a urgência em

atender as exigências mercadológicas em função do turismo no período de alta estação, mas

também encontrar medidas viáveis ao atendimento em baixa estação. Desse modo, articular

ações que promovam o desenvolvimento como um aspecto que não se restringe ao

crescimento.

A proposta de desenvolvimento sustentável do turismo cultural em Ilhéus, envolvendo

a gastronomia como produto turístico, encontra-se em estágio inicial. Verificamos que

algumas iniciativas vêm sendo articuladas, porém necessita uma intervenção e integração

maior entre o poder público, empresários e comunidade no sentido de potencializar os saberes

simbolizados na culinária.

O incentivo sob a forma de apoio ao Festival do camarão em Ilhéus, coordenado pela

Associação dos Cabaneiros da praia do Sul, necessita de um planejamento anual por parte do

governo local a fim de valorizar a tradição e o encontro gastronômico como uma marca para o

turismo em uma época onde o produto pode ser consumido por um preço menor, visando

desenvolvimento econômico, turismo gastronômico e entretenimento para a cidade de modo a

beneficiar também o comércio local.

Nessa perspectiva, falta um calendário do Festival do Camarão em Ilhéus que obedeça

a uma data específica para que o mesmo aconteça de modo pontual. No ano de 2008, foi

realizado o 8° Festival do camarão. No ano de 2009, o 9° Festival do camarão não foi

efetivado no município de Ilhéus pela falta de apoio aos Cabaneiros da praia do Sul; devido a

isso, os Cabaneiros viram-se obrigados a suspender o mesmo.

O setor responsável pelo evento alega a urgência de um planejamento conjunto, entre

empresários e governo local, que vise reais necessidades atrativas da cidade no intuito de

apoiar iniciativas firmadas outrora, porém deixadas de lado, por dois anos consecutivos, com

a justificativa da ausência de recurso financeiro da prefeitura de Ilhéus.

Contudo, não deve ser esquecido o cuidado com a produção e conservação de frutos

do mar, e demais alimentos perecíveis oferecidos nesse tipo de festival, como atrativo

apreciado, com a intenção de proporcionar ao visitante ou turista e, também, aos moradores

locais, um produto de boa qualidade em sua cidade. Sem dúvida, é primordial que haja uma

política de incentivo às propostas de produção regional de uma agricultura sustentável na

intenção de fortalecer a segurança alimentar local e reduzir o desperdício de energia no

transporte.

Em depoimentos prestados por empresários de hotéis, situou-se a necessidade de

durante o ano, o estabelecimento manter um único fornecedor que abasteça o hotel, mesmo

com custos reduzidos da baixa estação, para que no período de alta estação não falte alimento,

devido à demanda que é muito grande nos meses que vão de novembro até fevereiro.

Em todos os setores pesquisados, o peixe, o camarão, os mariscos e os frutos do mar

foram apontados, em unanimidade, como a preferência em termos de alimento, entre os

turistas e também moradores da cidade. Por isso mesmo, o cuidado deve ser redobrado na

manipulação e uso de tais produtos. Outrossim, frutos do mar e crustáceos foram

considerados, pelos turistas que visitam Ilhéus, pratos muito caros para uma cidade litorânea.

Nesse sentido, o Festival do Camarão é também uma oportunidade de apreciar o alimento que

é preparado de modo diferenciado com um custo menor.

Pensamos numa política de turismo como forma de apoio às heranças culturais

gastronômicas que representam o cotidiano da cidade e entorno; porém, ainda não foram

reconhecidas e valorizadas nem mesmo pela comunidade ilheense, que desconhece a riqueza

de tais expressões. Exemplo disso é o Rio do Engenho, distrito de Ilhéus, que carece de

atenção especial para ações sustentáveis; com história e cultura de séculos de existência, é

local que recebeu primeiros africanos que vieram na condição de escravos dos engenhos de

cana de açúcar. Tal etnia em contato com a indígena e portuguesa que habitavam Ilhéus,

deixou saberes refletidos no modo de morar e cozinhar, apontados neste estudo.

Ao identificar tais entraves ao desenvolvimento turístico, há que, também, ser

considerado, o contexto histórico, político, social e cultural de Ilhéus cuja base econômica era

voltada para a agronomia desde a sua criação e, contudo, viu-se obrigada a mudar sua

economia por ocasião da queda do cacau, na qual o município encontrou como saída o

turismo. Ainda incipiente na sua existência nos dias atuais, as ações de promoção do turismo,

de modo geral, não consideram nos seus planejamentos aspectos indispensáveis à

sustentabilidade do patrimônio local; daí a urgência em rever o procedimento adotado e

mudar a longo e curto prazo essa condição para um turismo cultural sustentável.

Para tal, torna-se indispensável uma educação patrimonial, conforme enfatizado, numa

parceria entre setor público, setor privado e comunidade que vise conhecer, valorizar e

preservar a cultura local no que ela tem de mais precioso que é o seu patrimônio cultural e o

sentimento de pertencimento à região.

A gastronomia, no enfoque abordado da culinária, pode viabilizar a compreensão do

modo de viver e morar e, por certo, todo viajante ou turista busca compreender um pouco os

lugares por onde ele transita. A comida, os ingredientes utilizados no preparo, os utensílios, o

comportamento das pessoas, as preferências, o modo de vestir, a música, a dança, a religião e

todos os aspectos que identificam o homem causam curiosidade, principalmente quando

diverge dos padrões convencionais daqueles que estão a passeio ou a negócios em uma cidade

desconhecida.

É possível aliar o desenvolvimento e o crescimento do turismo em Ilhéus de modo a

favorecer a população, gerenciando a cultura como recurso e para que ocorra, de fato,

mudanças, essas devem ser operadas entre forças políticas e sociais internas, objetivando

novo alcance que supere obstáculos.

Outra forma de trilhar esse caminho que não seja a educação patrimonial não pode

existir; sem dúvida, isso aliado a uma conscientização dos moradores sobre a sua contribuição

na história, buscando identificar, conhecer e valorizar o seu mundo, a cultura e a memória e,

também, as transformações desencadeadas pelo tempo em parceria com os que operam no

planejamento turístico.

O sentido que atribuímos hoje ao município e às atividades voltadas para o turismo

não deve coexistir ignorando a história e seu percurso, a alimentação e suas contribuições

étnicas, a cultura e a memória local. Nesse propósito, é compatível uma avaliação sobre o que

vem sendo realizado no turismo visando o desenvolvimento sustentável, atentando antes de

tudo que o turismo, para ser estável por longo período, necessita ser sustentável

primeiramente para a comunidade que acolhe o visitante ou turista.

Assim sendo, o planejamento deve resultar em políticas públicas que dêem a

necessária sustentação ao potencial simbólico local. Essa medida delonga tempo e empenho

de todas as partes envolvidas nas atividades turísticas. É importante o trabalho iniciado pela

Associação dos Cabaneiros da praia do Sul com a ideia do Festival do Camarão, bem como a

ideia do Festival do chocolate em Ilhéus, em seu segundo ano consecutivo.

Entretanto, para que o turismo cultural adquira proporções mais consistentes necessita

de estratégias culturais mais amplas em consideração ao poder exercido pela gastronomia e

demais entretenimentos que podem acompanhá-la. Os festivais gastronômicos, as festas de

santos religiosos e demais comemorações que têm uma data específica como a semana santa,

os festejos juninos, o natal, o carnaval e outras, são sempre motivo para reviver a culinária e,

sob esse aspecto, surgem variações no modo de fazer a receita que torna singular a iguaria de

uma região.

Com base na compreensão dos dados desta pesquisa, podemos afirmar que o turismo,

para cumprir sua meta de modo favorável, visando o crescimento não somente econômico,

mas social, político e cultural, capaz de gerar benefícios para a comunidade e corroborar com

a inclusão social, exige que sejam criadas medidas que dê sustentabilidade ao bem simbólico

produzido em Ilhéus em detrimento do turismo cultural.

Nessa lógica, tratando-se da gastronomia, a informação contida no alimento traz a

marca de suas origens e particularmente da Bahia. Ter o conhecimento e apropriar-se dele em

outros quitutes representativos das contribuições étnicas na cozinha ilheense é fazer uso da

história, da memória e da cultura como um recurso para o turismo em vias do

desenvolvimento sustentável.

Por fim, entendemos que, a longo prazo, outras medidas poderão ser adotadas com a

deliberação de aquecer o mercado gastronômico e apoiar o turismo em suas variadas formas

de expressão e manifestação cultural. O patrimônio intangível ou imaterial representa um dos

recursos atrativos de um lugar, mas ele atua junto com outros elementos tidos na qualidade de

patrimônio cultural, sendo, ele considerado, a parte mais substancial da cultura.

Logo, as iguarias culinárias servidas em hotéis, restaurantes, cabanas e demais

ambientes podem reforçar as identidades de uma localidade e de seus moradores; servir de

atrativo ou marca local, fato que ganha grande interesse no contexto turístico. Também pode

contribuir para a coesão social e valorização das tradições, uma vez que atribui à comunidade

os saberes sobre a culinária local. Do mesmo modo, a gastronomia adquire, com isso, a

possibilidade de ganhar espaço na agenda sobre o desenvolvimento e a sustentabilidade do

turismo em Ilhéus.

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23/6/2009

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Anne Kremer. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

UNESCO

http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=10852&retorno=paginaIphan .

Acesso em 11/1/2009.

APÊNDICE I

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC

MESTRADO EM CULTURA & TURISMO

SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha

ilheense

Roteiro da entrevista semi-estruturada

Questionário

Com proprietários de Restaurantes (a serem selecionados) dentro do circuito turístico.

1) Com base na elaboração do cardápio oferecido pelo seu restaurante, qual a

importância da culinária Sulbaiana, que também tem sua marca na cozinha ilheense?

2) A contribuição das cozinhas étnicas (africana, indígena, portuguesa, árabe),

trazidas pelos imigrantes, é utilizada como elemento atrativo em seu restaurante?

3) Ao preparar os alimentos, é utilizada a matéria prima local ou são importados

ingredientes para a elaboração das receitas?

4) Qual o prato mais apreciado e pedido em seu restaurante pelo turista? E pela

população local?

5) Há interesse por parte do turista em conhecer a cozinha típica da região Sul da

Bahia, nos restaurantes de Ilhéus?

6) O seu restaurante explora o uso de receitas que remetem à história e à tradição

nos costumes alimentares da região? (Frutas da região no uso de sucos, doces e receitas locais,

raízes, assados, especiarias, temperos, crustáceos, peixes, etc.).

7) Qual o critério de escolha de ingredientes/receitas e quais as técnicas de

preparo?

8) Seu restaurante é composto por uma equipe de quantas pessoas?

9) Qual o critério de escolha da ambientação em seu restaurante?

10) Há quanto tempo funciona o seu restaurante? O estabelecimento sempre teve o

mesmo proprietário?

Com os cabaneiros (Praia do Sul).

1) O cardápio oferecido ao turista ou visitante de sua cabana é elaborado a partir

de quais critérios?

2) Quais são as preferências do turista ao visitar sua cabana com relação à

comida típica? São oferecidos, em seu cardápio, alimentos que representem a variada cozinha

da região?

3) Ao visitarem sua cabana de praia, os turistas têm curiosidade em provar os

sabores da região? Qual o prato mais procurado?

4) Por parte da Associação dos cabaneiros, há uma preocupação na elaboração do

cardápio com relação à identidade da gastronomia típica?

5) Qual a repercussão do Festival do Camarão para o turismo em Ilhéus - Ba?

6) Alguns alimentos típicos da cozinha Sulbaiana também aparecem nos romances de

Jorge Amado e em obras de outros escritores regionais, inclusive citando receitas de Ilhéus.

Há uma apropriação dessas receitas no cardápio elaborado no seu restaurante como mais um

atrativo turístico? (utilizar essa pergunta também para os proprietários de restaurantes)

Turistas –

1) Ao visitar a cidade de Ilhéus, há um interesse em conhecer a gastronomia

regional?

2) A curiosidade ao conferir um cardápio de comidas típicas da região é

satisfatória com relação aos produtos oferecidos nos pontos turísticos?

3) Qual foi o prato mais apreciado por você ao visitar restaurantes, cabanas e

hotéis de Ilhéus?

4) O que o motivou a visitar a cidade de Ilhéus?

Pessoas conhecedoras dos saberes gastronômicos locais –

1) Como se deu seu primeiro contato com a gastronomia da região

Sulbaiana/ilheense?

2) Dentre os saberes culinários que sua cozinha agrega qual o tipo de comida que

você mais utiliza no cotidiano?

3) A cozinha típica, fruto das contribuições indígena, africana, portuguesa e árabe

sempre fez parte de sua vivência? Dessas, qual a que mais predomina em seus hábitos

alimentares?

4) Quais as suas memórias com referência à culinária ilheense? Fale um pouco

desta vivência.

5) Você é uma conhecedor(a) das origens da cozinha étnica? Como se deu esse

conhecimento?

6) O conhecimento de uma receita muitas vezes é passado de geração a geração.

Fale um pouco sobre essa aquisição. Qual a sua experiência com relação à culinária local?

7) Como você percebe (em Ilhéus, na nossa cultura local, na atualidade) a cozinha

típica herdada pelos imigrantes?

8) Em sua opinião, o conhecimento gastronômico da comunidade local é bem

aproveitado como bom produto e atrativo nos pontos turísticos?

ANEXO I

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

Prezado Senhor(a),

Você está sendo convidado para participar, como voluntário, em uma pesquisa que objetiva a

valorização das expressões culturais da Região Sulbaiana e a discussão sobre a sua identidade

gastronômica. No caso de aceitar fazer parte da mesma, você deverá conceder entrevista

aberta que será gravada, à pesquisadora credenciada pelo projeto; também admitirá a

filmagem da sua imagem e que a mesma seja utilizada para fins culturais, tanto científicos,

como também para publicidade, ou divulgação em outras mídias (INTERNET, DVD ou TV),

tendo em vista a produção de um VT integrando o documentário do Projeto ECULT do Grupo

de Pesquisa Identidade Cultural e Expressões Regionais – ICER/DLA/UESC, conforme o

objetivo explicitado. Será também permitido o registro fotográfico das comidas que compõem

o cardápio do restaurante local, como um bem simbólico da Gastronomia ilheense, com o fim

de constituir registro do patrimônio imaterial da região, fruto da pesquisa, alimentará o Portal

Cultural (um produto previsto pelo Projeto ECULT). A pesquisadora compromete-se a prestar

os esclarecimentos que se fizerem necessários para a execução da sua participação. Você

poderá desistir de participar da pesquisa em qualquer momento que desejar, sem que isso

acarrete qualquer penalidade à sua pessoa.

Como responsável por esse estudo, tenho o compromisso de manter sigilo de todas as

informações pessoais e confidenciais, bem como de indenizá-lo se sofrer algum prejuízo

físico ou moral por causa do mesmo. Assim, se a finalidade desta pesquisa está clara para o

senhor e se concorda em participar da mesma, como voluntário, peço que dê a sua

concordância, assinando abaixo.

Agradeço a sua colaboração.

Mércia Socorro Ribeiro Cruz

Pesquisadora Responsável

Telefone de contato: 73-91910138 / (73) 3680-5363

Eu,________________________________________ RG ________________________,

Aceito participar das atividades da pesquisa “SABOR, CULTURA, TURISMO: as

contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”. Fui devidamente informado que a

minha imagem poderá ser veiculada na mídia. Foi-me garantido que posso retirar o meu

consentimento a qualquer momento, sem que isso leve à qualquer penalidade e que os dados

de identificação e outros pessoais não relacionados à pesquisa serão tratados

confidencialmente.

Local e data _________________________,________/__________/________

_______________________________________________________

Assinatura

ANEXO II

Ilhéus, 01 de julho de 2009.

(cidade)

Ao:

Comitê de Ética em Pesquisa c/ seres humanos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Senhor(a) Coordenador(a) do CEP-UESC

Eu, _____________________________________________, Responsável por uma cabana de

praia (da Associação dos cabaneiros da Praia do Sul – Ilhéus – Ba), (onde será realizada a pesquisa),

conheço o Protocolo de Pesquisa intitulado “SABOR, CULTURA, TURISMO: As contribuições

étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”, desenvolvido pela pesquisadora Mércia Socorro Ribeiro

Cruz, e concordo com a realização após a apresentação do Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido devidamente preenchido e assinado pelas partes.

O início desta pesquisa neste Serviço só poderá ocorrer, a partir da apresentação da carta de aprovação

do Comitê de Ética em Pesquisa da UESC.

Atenciosamente,

__________________________________________________

Nome & assinatura do Chefe do Serviço

Ilhéus, 01 de Julho de 2009.

Ao:

Comitê de Ética em Pesquisa c/ seres humanos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Senhor(a) Coordenador(a) do CEP-UESC

Eu, ___________________________________________________, responsável pelo

Hotel, (onde será realizada a pesquisa), conheço o Protocolo de Pesquisa intitulado

“SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”,

desenvolvido pela pesquisadora Mércia Socorro Ribeiro Cruz, concordo com a realização

após a apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido

e assinado pelas partes.

O início desta pesquisa neste Serviço só poderá ocorrer, a partir da apresentação da carta de

aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UESC.

Atenciosamente,

__________________________________________________

Nome & assinatura do Chefe do Serviço

Ilhéus, 01 de julho de 2009.

Ao:

Comitê de Ética em Pesquisa c/ seres humanos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Senhor(a) Coordenador(a) do CEP-UESC

Eu, ___________________________________________________, responsável pelo

Restaurante, ( onde será realizada a pesquisa), conheço o Protocolo de Pesquisa intitulado

“SABOR, CULTURA, TURISMO: as contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”,

desenvolvido pela pesquisadora Mércia Socorro Ribeiro Cruz, concordo com a realização

após a apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido

e assinado pelas partes.

O início desta pesquisa neste Serviço só poderá ocorrer, a partir da apresentação da carta de

aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UESC.

Atenciosamente,

__________________________________________________

Nome & assinatura do Chefe do Serviço

Ilhéus, _______ de ______________________ de 2009.

Ao:

Comitê de Ética em Pesquisa c/ seres humanos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Senhor(a) Coordenador(a) do CEP-UESC

Eu, ________________________________________________________________,

(pessoa conhecedor(a) da gastronomia local de Ilhéus que está contribuindo com a pesquisa),

conheço o Protocolo de Pesquisa intitulado “SABOR, CULTURA, TURISMO: as

contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”, desenvolvido pela pesquisadora

Mércia Socorro Ribeiro Cruz, concordo com a realização desta, após a apresentação do Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido e assinado pelas partes.

O início desta pesquisa neste Serviço só poderá ocorrer, a partir da apresentação da carta de

aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UESC.

Atenciosamente,

__________________________________________________

Nome & assinatura

Ilhéus, _______ de ____________________ de 2009.

Ao:

Comitê de Ética em Pesquisa c/ seres humanos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Senhor(a) Coordenador(a) do CEP-UESC

Eu, ________________________________________________________________,

(turista proveniente de _______________________________ que está contribuindo com a

pesquisa), conheço o Protocolo de Pesquisa intitulado “SABOR, CULTURA, TURISMO: as

contribuições étnicas Sulbaianas, na cozinha ilheense”, desenvolvido pela pesquisadora

Mércia Socorro Ribeiro Cruz, concordo com a realização desta, após a apresentação do Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido e assinado pelas partes.

O início desta pesquisa neste Serviço só poderá ocorrer, a partir da apresentação da carta de

aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UESC.

Atenciosamente,

__________________________________________________

Nome & assinatura