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EID&A Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação ISSN 2237-6984 Editores Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio Ferreira Endereço eletrônico: [email protected] Sítio eletrônico: http://www.uesc.br/revistas/eidea

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EID&A: Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz Departamento de Letras e Artes Rodovia Jorge Amado (BA-415), km 16 Campus Soane Nazaré de Andrade CEP 45662-900 – Ilhéus – Bahia – Brasil [email protected] Editores Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira Comitê Científico Ana Zandwais (UFRGS) • Anna Flora Brunelli (UNESP) • Carlos Piovezani (UFSCar) • Christian Plantin (ICAR/CNRS) • Cristian Tileaga (U.Loughborough) • Eduardo Chagas Oliveira (UEFS) • Emília Mendes Lopes (UFMG) • Eugenio Pagotti (UFS) • Fabiana Cristina Komesu (UNESP) • Galia Yanoshevsky (U.Tel-Aviv) • Guylaine Martel (U. Laval) • Helena Nagamine Brandão (USP) • John E. Richardson (U.Newcastle) • Lineide Salvador Mosca (USP) • Luciana Salazar Salgado (UFSCar) • Luciano Novaes Vidon (UFES) • Manuel Alexandre Júnior (U.Lisboa) • Marc Angenot (U.MacGill) • Maria Alejandra Vitale (UBA) • Marianne Doury (CNRS) • Marie-Anne Paveau (U.Paris XIII) • Marisa Grigoletto (USP) • Ricardo Henrique Resende de Andrade (UFRB) • Rui Alexandre Grácio (U.Nova de Lisboa) • Ruth Amossy (U.Tel-Aviv) • Ruth Wodak (U.Lancaster) • Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP) • Sírio Possenti (UNICAMP) • Sophie Moirand (U.Paris III) • Soraya Maria Romano Pacifico (USP) • Thierry Guilbert (U. Picardie) • Valdemir Miotello (UFSCar) • Valdir Heitor Barzotto (USP) • Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC) • Viviane Cristina Vieira Sebba Ramalho (UnB) • Viviane de Melo Resende (UnB) • Wander Emediato de Souza (UFMG) • William M. Keith (U.Wisconsin) Tradutores Inglês: Kelly Cristina de Oliveira • Laurenci Barros Esteves • Moisés Olímpio Ferreira

Francês: Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas • Jocilene Santana Prado • Moisés Olímpio Ferreira

Espanhol: Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas • Ludmila Scarano Coimbra

Revisores Denise Gonzaga dos Santos Brito • Mirélia Ramos Bastos Marcelino • Roberto Santos de Carvalho Capa e logotipo Laurenci Barros Esteves Diagramação Eduardo Lopes Piris

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SUMÁRIO

ARTIGOS INÉDITOS

05 As relações de tensão presentes na hibridez do discurso: uma tentativa de delimitar o objeto Ana Zandwais

13 A dimensão cognitiva da paixão em Aristóteles Christiani Margareth de Menezes e Silva

24 Emoção e falácias: o discurso retórico de Adolf Hitler Eliana Amarante de M. Mendes

35 Desenvolvimento de competências e capacidades de linguagem por meio da escrita de textos de opinião Isabel Cristina Michelan de Azevedo

48 Adaptações musicais e deslocamentos: um exercício de análise do discurso em diálogo com Michel Foucault Lucas Martins Gama Khalil

60 A construção discursiva da argumentação nas sociedades de controle: dizeres do discurso sobre a escolha do livro didático de inglês do PNLD 2011 Maria Dolores Wirts Braga

72 Conceito de família na representação discursiva de adolescentes em situação de rua Miguel Ângelo Moreira

89 O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação Noemi Lemes

102 Reflexões em torno do discurso escolar: uma análise sobre o trabalho com a leitura em sala de aula Viviane Netto Silva

TRADUÇÕES

112 Análise do Discurso e estudos retóricos Christopher Eisenhart & Barbara Johnstone

127 Pêcheux é reconciliável com a Análise do Discurso? Uma abordagem interdisciplinar Thierry Guilbert

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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AS RELAÇÕES DE TENSÃO PRESENTES NA HIBRIDEZ DO DISCURSO: UMA TENTATIVA DE DELIMITAR O OBJETO

Ana Zandwaisi

Resumo: Este estudo, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, a partir do Projeto ‘Mikhail Bakhtin: contribuições para os estudos semânticos e discursivos’ e apresentado em Mesa-Redonda durante o I Seminário de Estudos Sobre Discurso e Argumentação (UESC), tem como objetivo refletir sobre as condições de constituição e funcionamento do objeto discursivo com base na ótica de autores que expressam fundamentos importantes do pensamento russo-soviético acerca dos domínios da linguagem: Mikhail Bakhtin e Valentin Voloshinov. Com vistas a caracterizar, por outro lado, o funcionamento do discurso, como um objeto que é afetado, ao mesmo tempo, por questões de ordem social e histórica e por contingências empíricas que rompem com sua aparente estabilidade, buscamos também subsídios nos fundamentos da Semântica do Acontecimento, desenvolvidos por Eduardo Guimarães (2002). É a partir de tais relações que tentamos esboçar algumas características da condição de hibridez constitutiva do discurso. Palavras-chave: Discurso. Enunciação. Dialética. Sentido. Abstract: This study, developed at the Project ‘Mikhail Bakhtin: contributions to studies on semantics and discourse’ at Post-Graduate Center of languages studies (UFRGS), and presented in a round-table during the First Seminar On Discourse And Argumentation’ (UESC), aims to reflect on conditions of the way discourse, taken as an object, is constituted and functions according the point of view of authors who express important sources of Russian-soviet ideas around the domains of language: Mikhail Bakhtin and Valentin Voloshinov. On the other hand, proposing to characterize discourse as an object that is moved, at the same time, by social and historical questions which break of with its apparent stability, we also bring to this study foundations based on ‘Semantics of Event’, developed by Eduardo Guimarães (2002). By following these relationships we outlined some aspects of the hybrid condition, constitutive of discourse. Keywords: Discourse. Uttering. Dialectic. Sense.

i Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. E-mail: [email protected].

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Os seres humanos não se entendem entre si porque confiam realmente nos signos indicativos das coisas, ou

porque estabelecem que todos deverão produzir exatamente os mesmos conceitos.

Ernst Cassirer (A Filosofia das formas simbólicas) Pensar sobre a condição estruturante do

discurso, em seu funcionamento concreto, implica pensar sobre o modo como os sentidos trabalham na linguagem, sem que possam ser integralmente traduzidos pelas formas sintáticas. Mas esta tarefa implica também pressupor que há, na própria concepção do objeto discursivo, um espaço que precisa ser constituído por múltiplas relações transversas: a) as relações entre história e acontecimento; b) as relações entre temporalidade e enunciação; c) as relações entre sentido e linguagem.

Segundo nossa ótica, uma das maiores dificuldades para tratar com o objeto discursivo consiste no fato de que, mesmo sendo de natureza linguística, ele escapa ao olhar do linguista como ‘dado empírico’, já que o ordenamento do discurso é, ao mesmo tempo, constituído como reflexo das relações permanentes de contradição entre as superestruturas e a infraestrutura (as forças sociais) e como processo que precisa ser compreendido a partir de diferentes práticas que espelham as relações de produção de um determinado corpo social.

Ao inscrevermos, deste modo, o objeto discursivo nos âmbitos político-jurídico, social, histórico e simbólico, queremos colocar em destaque os fatos de que: a) a materialidade discursiva é constitutivamente heterogênea; b) a língua, enquanto um corpo material de um corpo social, conforme Bakhtin/Voloshinov (1986), está sempre na dependência de outro corpo que lhe é externo e, simultaneamente, precisa fundir-se a ele para significar. É este o princípio dialético que funda a condição da língua, ao mesmo tempo, como matéria estruturante, mas não autônoma do discurso.

O lugar da enunciação, no quadro dos estudos linguísticos, por outro lado, sempre foi

descrito de modo incerto pelos linguistas, conforme Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 140). Quanto maior a aproximação “com as fronteiras do discurso, da enunciação completa,” pelo linguista, “menos segura torna-se a sua posição”, já que as categorias morfológicas e sintáticas deixam de ser dominantes quando é preciso sair do âmbito da estrutura da língua, das categorizações e das determinações linguísticas. As condições que convertem as categorias linguísticas em enunciados concretos, segundo Bakhtin/Voloshinov, estão situadas fora do sistema da língua, e para tratar da enunciação como um fenômeno discursivo, é preciso, em primeiro lugar, superar as relações de fragmentação entre as ordens do linguístico e do ideológico, já que o discurso não pode ignorar nem seu conteúdo formal – a matéria linguística – nem suas formas de orientação sociológica que pressupõem interações dialógicas múltiplas e que retratam as tendências de inscrição dos signos em universos sociais e históricos complexos e heterogêneos.

Mikhail Bakhtin (1990, p. 85), em “O Discurso na Poesia e o Discurso no Romance”, coloca em pauta uma questão que entendemos ser fundamental para tratar do discurso. Ele observa que os fenômenos discursivos não podem ser reduzidos aos limites do discurso dialógico empírico, como fazem os linguistas, uma vez que a orientação dialógica do discurso envolve não somente relações de imbricação entre o discurso de outrem no discurso de cada um, mas também orientações para múltiplas linguagens sociais nos limites de um mesmo horizonte sócio-ideológico. É a partir desta acepção que podemos delimitar, na obra de Bakhtin, uma concepção de discurso que o caracteriza por sua hibridez. Desde esta ótica, o que define o objeto discursivo e as condições em que a enunciação se realiza como ato concreto de dizer seria, para Bakhtin, “a resistência substancial e multiforme do discurso de outrem”, que se interpõe,

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questiona, contesta, enfim, dá trabalho àquele que fala, aquele que tematiza um objeto já sedimentado por definições, avaliações, julgamentos de outros, mas, ao mesmo tempo, reconfigura este objeto.

De acordo com esta perspectiva, para Bakhtin, entre o enunciável e o objeto interpõe-se o processo de interlocução que orienta o percurso discursivo de um tema, tornando complexa a rede de relações e o modo como seus sentidos trabalham, reativando e reformulando “os fios dialógicos” já existentes, de tal modo que o “centro organizador de toda enunciação, de toda expressão não é interior, mas exterior” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1986, p. 121).

Esta problemática bem complexa é também retomada por Guimarães (2002) e colocamos em evidência, aqui, a concepção enunciativa dele com vistas a tangenciar uma questão que se constitui em objeto de reflexão tanto de Bakhtin (1990), como de Voloshinov (2011) e da qual nos ocuparemos, fundamentalmente, neste estudo. Trata-se das relações entre o acontecimento e a enunciação que possibilitam pensar a condição do objeto discursivo não como uma extensão do objeto linguístico, mas a partir de uma relação dialética com ele.

Segundo Guimarães (2002, p. 11), a enunciação precisa ser entendida a partir de sua inscrição no acontecimento: enquanto diferença tomada em sua própria ordem. E tomar a diferença em sua própria ordem implica tratar a enunciação para além dos paradigmas linguísticos, implica uma ancoragem em referências que seriam consideradas exotópicas para Bakhtin/Voloshinov (1986), convocando tanto uma reflexão sobre a condição de subjetividade do sujeito, como um estudo mais específico em torno das formas de inscrição dos enunciados no acontecimento.

A condição de subjetividade em Guimarães (2002, p. 12) nos remete para um sujeito “tomado na temporalidade do

acontecimento”, É, pois, o acontecimento que temporaliza e que se configura pela existência de um presente, o qual possibilita uma latência de futuro. É desta condição transversa que emergem sentidos outros, e dela deriva um “depois incontornável”.

Deste modo, o acontecimento instaura uma nova ordem do real que possibilita tematizar determinados objetos de modo a ressignificá-los, projetando novos sentidos que movimentam a enunciação para direções inesperadas.

Passar, portanto, do plano da língua para o plano do discurso implica ter de repensar, sobretudo os lugares a serem atribuídos ao sujeito, a temporalidade e a enunciação no objeto discursivo. Não há mais como ignorar, desde uma perspectiva enunciativa, o papel fundamental que os domínios da memória exercem sobre o sujeito e que se tornam determinantes para a produção dos sentidos, pois, conforme Guimarães (2002, p. 14), “o sujeito só é sujeito enquanto afetado pela memória de sentidos, pelo interdiscurso”.

Falar, portanto, é “estar na memória” e através dela penetrar no tempo. Deste modo, não há mais como preservar-se apenas uma dimensão empírica de temporalidade desde uma ótica discursiva. O acontecimento dentro do qual se fala, conforme Guimarães, constrói um espaço próprio de temporalização, de tal modo que este recorta o passado como memorável, conferindo-lhe outras interpretações, redefinindo-o à luz de novas articulações postas entre a memória e o contingente. E é esta singularidade de convergência entre o memorável e o presente, segundo nossa ótica, que movimenta a enunciação para a produção de novos sentidos, ou seja, para a latência de futuro. Trata-se, pois, em Guimarães, de focalizar o discurso como acontecimento a partir de domínios espaciais e temporais não lineares que ressoam na memória do sujeito e que movimentam a enunciação.

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Na perspectiva de Bakhtin (1990) esta questão também se coloca em toda sua plenitude. O discurso somente pode ser entendido como expressão de relações que inscrevem em seu funcionamento cruzamentos entre vozes sociais produzidas em tempos e espaços distintos, as quais, tomadas na contingência do acontecimento, produzem amálgamas, tornando opacas as fronteiras entre os conteúdos do enunciável, suas formas de propagação e de produção de sentidos.

É a esse processo de interligação entre relações temporais e espaciais que escapa a linearidade do próprio tempo e a linearidade do próprio espaço que Bakhtin (1990) denomina de chronotopos1.

É justamente nesta fusão que se cruzam vozes, tempo e espaço, concretizando-se sob a modalidade de enunciados complexos que os próprios enunciados tornam-se concretos; isto é, inscrevem-se em uma dimensão histórico-social, configurando o ordenamento do discurso como um objeto híbrido e dialético que se reveste de sentidos a partir da confluência de um anterior, de um exterior e de um interior heterogêneos.

É preciso, por outro lado, também considerar que, sob uma ótica sociológica, o discurso (rech) não pode abdicar de suas relações com o político, enquanto um espaço onde, na convergência entre o histórico e a contingência, são colocados em cena os embates sociais sob a forma de contradições. Desta forma, o político vem a constituir-se, conforme Bakhtin/Voloshinov (1986), “na arena” onde as contradições afloram, as correlações de força entre as classes se travam. E o seu material semiótico constitutivo não é homogêneo: por um lado, sustenta-se com práticas sociais distintas que representam os modos de produção das diferentes classes e, por outro, com signos ideológicos que atestam

1 Conforme Bakhtin (1990, p. 211), o termo chronotopo foi originalmente empregado nas ciências matemáticas e foi fundamentado a partir dos pressupostos da Teoria da Relatividade de Einstein.

os valores simbólicos que as práticas carregam consigo e inscrevem na enunciação.

Assim, o advento do político emerge na obra de Bakhtin/Voloshinov “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1986) como condição para explicar de que modo a contradição opera para caracterizar tanto as relações contraditórias entre Estado e sociedade – as superestruturas e a infraestrutura – como as formas através das quais a superestrutura coloca-se diante das forças sociais e de que modo estas constroem os imaginários com os quais se representam na ordem social, a partir das relações mais ou menos conflitantes que mantêm com a superestrutura.

Desde esta ótica, então, é pelo político que se pode compreender a divisão do real, a que Guimarães (2002) faz referência, enquanto um espaço-tempo em que se produz a representação dos modos de pertencimento dos sujeitos à sociedade, bem como se pode refletir sobre as condições em que a superestrutura pauta suas ações, promovendo a exclusão, a divisão, o silenciamento e o descaso para com as forças sociais; sobretudo, em circunstâncias em que a superestrutura paira acima e “além” da sociedade2, instaurando acontecimentos que intervêm no processo de subjetivação dos sujeitos, nas próprias relações do sujeito com o Estado, com consequências imprevisíveis.

Mas, se o signo somente pode trabalhar sobre os desdobramentos que os sentidos adquirem nos planos simbólico e histórico-social se inscrito em enunciações concretas produzidas em acontecimentos vividos, então, para que possamos pensar nas formas como o sujeito se subjetiva através de sua enunciação, é preciso que pensemos, antes de tudo, que o acontecimento, inscrito na ordem do político, precisa romper tanto com as condições “objetivas” que atestam a empiria da unicidade

2 É importante salientar que, nos regimes democráticos, a superestrutura precisa colocar-se a serviço da sociedade, ao invés de distanciar-se, de colocar suas metas divorciadas dos interesses desta.

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do sujeito, como desestruturar a estabilidade semântica das palavras (slovo) enquanto signos.

O acontecimento, desde esta ótica, constrói uma deontologia que divide os sujeitos tanto em relação aos sentidos que estes incorporam em sua enunciação, como em relação aos conjuntos de vozes sociais, as quais estes se filiam e que vem delimitar seus espaços de enunciação.

É, portanto, o modo como sujeito e sentido se constituem, ao mesmo tempo, na ordem simbólica e nas relações de conflito inscritas na ordem social, segundo nossa ótica, que permite representar, de forma empírica, as relações dialéticas entre a superestrutura e as forças sociais e o próprio processo de correlação de forças entre diferentes esferas de poder e da sociedade.

Tratar, deste modo, do “acontecimento do enunciado” – sobytie vizkazivanie – tal qual este é qualificado por Voloshinov (2011), implica compreender que enquanto as fronteiras entre as enunciações são tênues, porquanto a própria enunciação se constitui como um composto híbrido de espaço-tempo, de vozes e sentidos, as posições ideológicas, a que tais vozes remetem, são marcadas, ainda que não sejam transparentes no plano da materialidade linguística, porquanto o material semiótico discursivo se constitui nos limites das fronteiras entre os corpos estrutural e social.

Eis a condição do discurso, qualificado por Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 104): há um “abismo intransponível” entre a materialidade da língua – a sintaxe – e os problemas de constituição do discurso, porque a sintaxe se esgota no sistema linguístico e a materialidade que constitui os enunciados tomados no acontecimento somente pode ser percebida quando inscrita em um universo social e em um domínio ideológico. E nos domínios da ideologia, segundo Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 107) não há lugar para relações “objetivas” “universais”, capazes de delimitar os sentidos

que as palavras adquirem como decalque da realidade, já que as mesmas palavras, se tomadas, por exemplo, como réplicas de diálogos, podem figurar em contextos conflitantes e assumir valores totalmente distintos, estando em consonância ou em discordância com um determinado valor histórico já cristalizado na língua.

O que caracteriza o trabalho dos sentidos no discurso, desde esta ótica, é a pluralidade de acentos avaliativos, de valores que as palavras adquirem em condições de produção distintas, de tal modo que o fenômeno da polissemia passa a ser uma das condições estruturantes do funcionamento orgânico da língua. Só há oposição entre denotação e conotação quando se opõe a língua viva, a linguagem utilizada no cotidiano, as conversações concretas que se realizam nas diferentes esferas da vida social e onde se inscrevem diferentes acentos ideológicos, a uma língua cristalizada, dominantemente representada como sendo monossêmica, colocada fora de condições concretas de uso e de transformação. A língua, neste caso, é tomada como mero objeto de conhecimento, uma língua irreal porquanto incapaz de absorver, refletir as determinações causais que a afetam em virtude do modo como as forças sociais atuam sobre ela.

Os linguistas criam a ficção de que as significações constituem um recorte único da realidade no interior de um sistema, enquanto para os domínios do discurso nenhum significado é “objeto único, idêntico a si próprio” (1986, p.106), uma vez que as relações entre os signos e os significantes tanto se inscrevem em universos histórico-sociais distintos, como dependem da corrente dos acontecimentos dos quais os sujeitos são ao mesmo tempo protagonistas e experienciadores. E conforme Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 111), toda forma de expressão comporta duas facetas: um conteúdo interior e sua objetivação exterior para outrem, de tal modo que, ainda que

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indissociáveis, o conteúdo interior e suas formas de objetivação não se definem por um centro organizador comum.

É a expressão que organiza e determina o trabalho enunciativo, pois a “palavra viva” é aquela que tanto toma forma na memória porque tem origem em um outro, como porque se dirige ao outro. Ela é “função do outro”, ou seja, das representações simbólicas que ela adquire em horizontes sociais definidos a partir das experiências vividas pelo sujeito e dos campos de criatividade ideológica nos quais se inscreve (cultural, científico, jurídico, político, artístico, etc.).

Assim, para Bakhtin/Voloshinov, a palavra não é nem propriedade daquele que fala, nem daquele para quem se fala, seu lugar é constitutivamente o de uma fronteira, determinada, por um lado, pelo estoque social de signos que configuram os interesses das classes e dos grupos e, por outro, por situações sociais imediatas que lhe determinam as ressonâncias.

A palavra (slovo) pode ser comparada, desta forma, a uma ponte: território por onde todos passam, mas que não pertence a quem a atravessa, suas formas de orientação social expressam a relação dialética entre o vivido – o experienciado – o sentido – experimentado – e os valores que ela adquire configuram-se como valores que representam as formas através das quais os sujeitos se reconhecem no coletivo e orientam suas experiências conferindo-lhes determinados acentos axiológicos.

A fim de explicitar a condição do acento valorativo que as palavras adquirem nos acontecimentos, tomemos um exemplo de Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 115) quando se reportam a uma situação vivida por homens famintos, em meio a um contexto de outros homens famintos (desempregados, mendigos, sujeitos que vivem abaixo do limite da pobreza) que precisam alimentar-se. Um homem pode tomar consciência de sua condição de miséria: a) como um

acontecimento “fortuito”, independente da possibilidade de se reconhecer com os outros que sofrem as mesmas privações como uma classe. A pobreza, a miséria, para este sujeito será identificada à vergonha, ao sentimento de inferioridade, à rejeição individual, aos infortúnios de seu destino, mas jamais às formas de exclusão que a sociedade em que vive o condena.

Outro homem pode, no entanto, tomar consciência do lugar que ocupa na sociedade em que vive a partir do modo como a própria sociedade que o exclui o representa: pode, assim, reconhecer-se como um marginal, como um ladrão, alguém que vive à margem da lei.

No primeiro caso, o discurso sobre a pobreza se revestirá de um acento de resignação, de penitência, de sentimento de vergonha. Ele pode se aproximar de seu interlocutor relatando-lhe as privações sofridas, a infelicidade, as tragédias de sua vida, a fim de pedir-lhe auxílio. No segundo caso, o diálogo com o interlocutor não mais se configura como “um drama pessoal”, ele pode vir carregado pela necessidade de negação de uma imagem que lhe é conferida externamente e que ele “cola” à sua condição de miséria como sendo algo “natural”. Assim, pode aproximar-se de seu interlocutor para pedir auxílio, já negando que não rouba, não extorque, não pratica atos de maldade contra o próximo, mas pede porque necessita.

Conforme podemos observar, não é a fome, a privação em si, que organiza o eixo enunciativo destes sujeitos ao interpelarem seus interlocutores para obter auxílio material, mas os modos como eles tomam consciência das experiências vividas e do meio social em que vivem e passam a se representar a partir destes. O “modelo” de discurso de cada um, a forma de expressão, tomada, neste caso, na contingência do limite de privação social, será orientada, por um lado, de acordo com o grau de alienação do sujeito em relação às formas como a sociedade o exclui, ou ainda, de acordo com o modo como a sociedade produz

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ressonâncias para significar as condições de existência dos excluídos, e, por fim, com o próprio lugar que ele atribui a si para poder interpelar seu interlocutor. Assim, enquanto o primeiro homem pede desculpas por ter de pedir, o segundo age de forma coercitiva, intimidando o seu interlocutor.

Bakhtin observa que não há como pensar sobre o enunciado concreto sem considerar que “este surge de maneira significativa num determinado contexto social e histórico” tocando “milhares de fios ideológicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto” (1990, p. 86). É, pois, desde uma perspectiva heterofônica que o enunciado concreto inscreve-se de modo ativo nas formas de diálogo que presidem o corpo social, constituindo-se como participante ativo deste diálogo, na medida em que incorpora, em seu interior, as suas marcas: isto é, responde às falas do corpo social como uma réplica, como uma tentativa de dar consistência ao seu objeto, constituído por este corpo maior, e, ao mesmo tempo, imprimindo neste corpo suas marcas, na medida em que toma consciência do modo como as palavras “alheias” fazem eco ao seu discurso, e possibilitam reorganizá-lo como sentidos “próprios” que se engendram nos domínios da história e do acontecimento.

As diferentes facetas estilísticas e semânticas do discurso, sob esta ótica, são compiladas a partir de processos de interação dialógica com as relações de produção, com as experiências cotidianas, mediatizadas pelos signos que materializam modos de produção da consciência sobre a condição dos objetos3.

O interpretável na ordem do discurso, portanto, coloca-se como um trabalho de mediação entre os sentidos tomados da

3 É importante salientar, conforme Bakhtin (1990), que é no nível de produção de uma consciência sobre a relação do sujeito com os objetos que se pode configurar a condição inteligível, a partir da qual o “retorno” do objeto não se dá em relação a si mesmo, como ocorre nas formas de simbolização, de “consciências primitivas”.

experiência vivida, da palavra do outro, e os valores que estas adquirem na palavra de cada um dentro de um processo dialógico, onde os sentidos tornam-se complexos por não serem nem individuais, nem universais e por adquirirem contornos próprios. Trata-se, aqui, do que Guimarães (2002, p. 12) designa como o “depois incontornável”, isto é, trata-se dos novos sentidos que irrompem na consciência do sujeito a partir das condições em que suas experiências são mediatizadas pela ordem simbólica.

Os sentidos, desde esta ótica discursiva, que são notadamente materialista e dialética, não podem prender-se simplesmente às experiências mais imediatas do sujeito, às sensações e às percepções a que elas remetem, mas precisam encontrar sustentação nos modos como as formas simbólicas adquirem determinados valores e são mediatizados por condições heterogêneas.

A partir da ótica de Bakhtin/Voloshinov (1986), portanto, todas as condições de representação dos objetos precisam do trabalho de mediação que pressupõe um movimento na perspectiva de diluir as relações de imediatismo entre a realidade e a ordem do simbólico. Os domínios da “palavra interior”, enquanto da ordem do interpretável não existem sem que se conheçam as condições exotópicas que o determinam, sem que se considerem os diferentes constituintes que a compõem como uma forma de objetivar as sinapses entre a realidade vivida e os valores simbólicos que os significantes adquirem.

Para complementar, as questões propostas por Mikhail Bakhtin, em “O Discurso na Poesia e o Discurso no Romance” sobre o funcionamento discursivo, permitem que estabeleçamos também correlações entre os domínios do discurso e da dialogia: “O discurso nasce do diálogo como réplica viva”, constitui-se a partir de um conjunto de orientações que tanto encontram eco no discurso alheio como respondem a esse discurso. Deste modo, conforme Bakhtin,

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ZANDWAIS, Ana. As relações de tensão presentes na hibridez do discurso: uma tentativa de delimitar o objeto. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 5-12, jun.2013.

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mesmo se constituindo “na atmosfera do já dito” (1990, p. 89), o discurso é orientado, ao mesmo tempo, para o discurso-resposta – o que ainda não foi dito, mas que foi convocado a surgir e que já era esperado. É, na função responsiva, portanto, que reside a força essencial do discurso, na medida em que é ela que tira o locutor, que é ao mesmo tempo interlocutor, de uma função passiva e coloca o diálogo interno em contraponto com o diálogo externo, produzindo consequências importantes, abstraindo o dizer da esfera da reprodução. Este seria um dos argumentos fundamentais, de acordo com a ótica de Bakhtin/Voloshinov (1986, p. 47) de que a “verdade viva” está sempre permeada pela contradição entre o que se reproduz e o que se transforma, entre “a estabilidade do ontem e a instabilidade do amanhã”.

É esse processo, pois, que permite configurar as condições de funcionamento do discurso como um exercício de expressão regulado por uma lógica intersubjetiva orgânica que pode ser traduzida pelo princípio de que o fundamento da não-reprodução do já dito repousa no trabalho ativo da função responsiva. É este lugar – de contradição – que constitui o entrecruzamento entre o dizer e suas consequências, e que, segundo nossa ótica, é o lugar onde os sentidos tornam-se orgânicos porque estão implicados em respostas que convocam o exercício do deslocamento, da transformação da “palavra já cristalizada” em palavra mutável, sujeita a contingências externas que a convocam, de modo permanente, para um trabalho de metaforização.

Considerações finais

Este estudo buscou levantar algumas questões com vistas a caracterizar as condições concretas de funcionamento do discurso, a partir de pressupostos da Semiótica de vertente russa e da Semântica do Acontecimento. A partir de um olhar para as questões exotópicas e para o

trabalho das estruturas linguísticas, tentamos investigar as relações de complexidade que permitem caracterizar o objeto discursivo como uma unidade heterogênea. São tais questões, portanto, que nos permitiram compreender a condição do objeto discursivo como uma construção inegavelmente híbrida. Sendo, de um lado, orientado tanto social como historicamente, remete para os traços dominantes que caracterizam suas tendências ideológicas; de outro, é orientado em relação às condições materiais concretas – estruturais – sem as quais, não seria possível caracterizar seu funcionamento, e, que se transformam, adquirindo novos sentidos nas contingências em que se produz o “acontecimento do enunciado”.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Edições Hucitec, 1990. ______ (VOLOSHINOV, Valentin). Marxismo e filosofia da linguagem. Os problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud, Yara Frateschi Vieira et al. São Paulo: Ed. Hucitec, 1986. CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. A linguagem. Trad. Marion Fleischer São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001. VOLOSHINOV, Valentin Nikolaeviĉ. Marxisme et philosophie du langage. Les problems fondamentaux de la method sociologique dans la science du langage. Traduction du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowski-Ageeva. Limoges, Ed. Lambert-Lucas, 2011. GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Ed. Pontes, 2002. ZANDWAIS, Ana. Subjetividade, sentido e linguagem: desconstruindo o mito da homogeneidade da língua. In: ______ (Org.). História das idéias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2012.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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A DIMENSÃO COGNITIVA DA PAIXÃO EM ARISTÓTELES

Christiani Margareth de Menezes e Silvai

Resumo: Aristóteles é considerado um dos primeiros pensadores a procurar entender a dimensão irracional humana. Encontramos, no livro II de sua Retórica, um estudo sobre as paixões (pathe) que se tornou paradigmático em sua obra, especialmente por esclarecer como a cognição relaciona-se com elas. Na Retórica, as paixões são consideradas uma das três pisteis entechnai, uma das premissas do entimema (silogismo retórico), constituindo-se em enunciado da argumentação retórica como o assunto (pragma) do discurso, ao qual se referem os gêneros oratórios. Ao considerar que as paixões afetam o julgamento, Aristóteles procura compreender racionalmente aquilo que é da ordem do irracional, ampliando o campo da retórica, precisando, assim, o logos da persuasão. Tal análise aristotélica terá repercussões em diversos setores de suas investigações, como em sua psicologia, poética, ética e política. Este artigo tem o objetivo de apresentar a argumentação aristotélica a este respeito, principalmente a partir de suas reflexões na Retórica. Palavras-chave: Afecção. Paixão. Entimema. Retórica. Abstract: Aristotle is considered one of the first thinkers who attempted to understand the dimension of human irrationality. We find in the book II of his Rhetoric, a study of the passions (pathe) which became paradigmatic in his work, especially because it explains how cognition is related to the passions. In Rhetoric, passions are considered one of the three pisteis entechnai, one of the premises of the enthymeme (rhetorical syllogism), constituting a statement of rhetorical argument to the same extent that the matter of the speech (pragma), to which the oratorical genres refer. When considering the passions that affect judgment, Aristotle seeks to understand rationally what is the order of the irrational, expanding the field of rhetoric, needing thus the logos of persuasion. Such Aristotelian analysis will impact many sectors of his investigations, as in his psychology, poetry, ethics and politics. This paper aims to present the Aristotelian argumentation about it, especially from his reflections on Rhetoric. Keywords: Affection. Passion. Enthymeme. Rhetoric.

i Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil. E-mail: [email protected].

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MENEZES E SILVA, Christiani Margareth de. A dimensão cognitiva da paixão em Aristóteles. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 13-23, jun. 2013.

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Introdução

As paixões em Aristóteles são afecções psicológicas expressas pelos vocábulos pathos e pathema1. Nas Categorias VIII, 8 b25-10 a25, as pathe são qualidades produzidas em nós pelos sentidos, como é o caso do calor que o fogo nos causa, e ainda do que nos causam o frio, a palidez e a escuridão. Basicamente no De Anima, pathos apresenta três acepções: indica as emoções da pessoa, os atributos ou predicados e as formas de passividade em oposição à atividade.2 O termo pathema indicaria mais precisamente a emoção, mas pode também significar afecção e mesmo “fato”, “acontecimento”; nesse sentido, pode ser sinônimo de pragmata.3 A definição que abarca todos os sentidos da noção de pathos em Aristóteles encontra-se no seguinte trecho da Metafísica:

Afecção [pathos] significa (1) uma qualidade segundo a qual uma coisa pode ser alterada, como o branco, o preto, o doce e o amargo, o

1 Há toda uma discussão entre os comentadores da obra aristotélica sobre se é lícito, e possível, distinguir pathos (paixão) de pathema (emoção), já que Aristóteles não faz isso. Fernando Rey Puente nota uma passagem em Ética a Nicômaco II 4, 1105 b21-23, onde a distinção seria, segundo ele, nítida: “Sendo as paixões movimentos (kinesis) que atuam sobre a alma, os pathemata nada mais podem ser do que os estados passionais produzidos na alma em decorrência desses movimentos, ou seja, são as emoções […] Aristóteles geralmente não diferencia entre paixões e emoções, mas que essa diferenciação é possível, pois se baseia na diferença que o Estagirita sempre estabelece entre um X-sis e um X-ma, quer isso seja pensado no plano da sensação ou da intelecção.” Cf. F. R. Puente, “A katharsis em Platão e Aristóteles”. In DUARTE, Rodrigo (org.et al.) Kátharsis: reflexões de um conceito estético. Belo Horizonte: C/Arte, 2002, p.10-27, p. 22. 2 Cf. Aristóteles, De Anima 403 a3 e 403 b10 e 15; e 403 a16 para as duas primeiras acepções; e cf. observação de Maria Cecília Gomes dos Reis “Notas ao Livro I” de sua tradução do De Anima, São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 150. 3 Cf. Poética 24, 1459 b11; De Interpretatione, 1 16 a3-4; Cf. observação de Alexandre Nehamas, “Pity and fear in the Rhetoric and the Poetics”. In RORTY, Amélie Oksenberg. (ed) Essays on Aristotle’s Poetics. Princeton: Princeton University Press, p. 291-313, p. 307.

peso e a leveza, e todas as qualidades desta espécie. (2) Em outro sentido, afecção significa a atualização de tudo isso, as alterações que estão em ato. (3) Especialmente, chamam-se afecções [pathe] as alterações e mudanças danosas e, acima de tudo, os danos dolorosos. (4) Por fim, afecções se dizem também das grandes calamidades e dos grandes infortúnios4.

Em seu comentário a essa passagem da Metafísica, Giovanni Reale observa que o primeiro sentido de pathos indica “uma qualidade segundo a qual uma coisa pode se alterar”, enquanto o segundo sentido indica as alterações efetivadas, em ato: “o tornar-se branco, o tornar-se preto, o esfriar-se, o esquentar-se”; o terceiro indica o “que produz dor seja no corpo seja na alma”; e, por fim, o quarto significado de pathos apresenta o sentido de “atributo ou propriedade”5. As palavras dessa família de vocábulos apresentam uma gama de empregos em diversos contextos, desde figurando entre as categorias do ser até expressando o estado emocional de alguém. Ambos os termos indicam algum tipo de determinação que pode

4 Aristóteles, Metafísica V 21, 1022 b15-21. Tradução nossa com base no texto grego da Loeb e Loyola, cotejada pelas respectivas traduções e pela tradução da Globo. De acordo com Bernard Besnier, além de pathos e pathema para designar as afecções, Aristóteles emprega o neologismo pathesis como correlato das palavras poiesis ou praxis e, lembrando o que o filósofo considera em Física III 3, 202 a23-b3, ele diz que tal neologismo indica “o processo pelo qual um paciente sofre a ação de um agente externo […] é um termo raro e um pouco artificial que aqui serve para ressaltar que a paixão é considerada um movimento no sentido estrito, isto é, um processo que ainda não contém seu resultado (mesmo se o direcionamento para o resultado esteja inscrito de modo visível nele, como quando eu constato a locomoção de telhas para o alto de uma casa).” Cf. Bernard Besnier, “Aristóteles e as paixões”. In BESNIER, Bernard; MOREAU, Pierre-François; RENAULT, Laurence (org.). As paixões antigas e medievais: teorias e críticas das paixões. Tradução de Mirian Campolina Diniz Peixoto. São Paulo: Loyola, 2008, p. 37-108; nota 9, p. 41. 5 Cf. Giovanni Reale, “Sumário e Comentários” In Aristóteles. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de. Tradução para o português de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. vol. III, p. 281.

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resultar do contato de um paciente com um agente6.

Tais termos estão presentes em todo domínio das coisas naturais e na descrição da mobilidade destas, e em todo o domínio das coisas que são produzidas ou modificadas pela arte (techne).7 Quase todas as atividades da alma (psyche) são funções que ela exerce em conjunção com o corpo (soma);8 o mesmo pode ser dito das ações – praxeis ou poieseis – e mais geralmente das obras (erga). As atividades da alma são mudanças que têm lugar ao mesmo tempo nela e no corpo: todas essas obras são atos de vida que tendem à preservação do animal como um todo; algumas têm por objetivo um movimento do corpo – o deslocamento local, o sono e a vigília, a inspiração e a respiração –, outras têm por objetivo uma mudança na alma – a sensação (aisthesis), a memória (mneme) e a imaginação (phantasia).9

6 Baseando-se no Index de Bonitz, muitos intérpretes fizeram a distinção entre os termos, mas alguns acharam desnecessário distinguir entre ambos, especialmente porque diversas vezes os termos são sinônimos. Cf. Aristóteles, De Anima I 1, 403 a3-11. Onde Aristóteles analisa pathe usando também pathema. Ver nota 1. 7 De acordo com Besnier, dessa forma podemos entender a relação entre agente e paciente como uma categoria que estende seu domínio de pertinência a diversos contextos. Na Metafísica V 15, a relação entre agente e paciente pode ser compreendida como categoria segundo a distinção de ato e de potência, mas ela também pode ser integrada à divisão clássica das categorias, no caso, na categoria relação (pros ti). Cf. observação de B. Besnier, op. cit., p. 41 e nota 11, p. 42. 8 Cf. De Anima I 1, 403 a1-7. 9 Cf. as reflexões do Parva Naturalia, do De motum animalium e do De incessu animalium. Ver também B. Besnier, op. cit., p. 43. De acordo com Besnier, o fato de Aristóteles considerar as pathe como sendo experimentadas em união com o corpo, levou alguns a crer que Aristóteles as entendesse como experimentadas na dependência do corpo. Besnier recorda a passagem do De Anima, no exemplo do dialético e do físico e suas definições de cólera: não se trata simplesmente de dizer que esse estado é suscetível de uma dupla descrição, uma “psicológica” e outra fisiológica, supondo-se que esses dois aspectos coincidam sempre que se constata que alguém esteja colérico. Essa dupla maneira de considerar o pathos deixa em aberto também a eventualidade de que a

Na maioria das vezes, quando relacionado à alma, pathos é uma palavra com a qual se designa um movimento irracional, portanto, não deliberado, nem escolhido. Os movimentos próprios da alma são aqueles já atribuídos por Aristóteles às suas faculdades ou capacidades, a saber: a nutrição, a reprodução, a sensação, a memória, o desejo e o pensamento.10 Enfim, de acordo com o De Anima, para Aristóteles geralmente toda paixão é acompanhada de uma crença e de seu substrato fisiológico:

Parece também que todas as afecções da alma [pathe tes psyches] ocorrem com um corpo: ânimo, mansidão, medo, comiseração, ousadia, bem como a alegria, o amar e o odiar – pois o corpo é afetado de algum modo e simultaneamente a elas. Isto é indicado pelo fato de que algumas vezes mesmo emoções fortes e violentas não produzem em nós excitação ou temor; outras vezes, contudo, somos movidos por emoções pequenas e imperceptíveis (por exemplo, no caso em que o corpo irritado já está como que encolerizado). Isto se torna ainda mais evidente quando, não havendo ocorrido nada de temível, experimentamos o sentimento de temor11.

A relação entre paixão e cognição

Na Retórica, a análise das pathe se faz dentro de uma consideração sobre o papel da oratória. As pathe eram consideradas prejudiciais para os julgamentos feitos nos tribunais, ou para as discussões na assembleia, e mesmo nas conversações da vida comum; isso porque elas despertavam uma reação que

dupla face do fenômeno não esteja presente: alguém pode sentir cólera, ou qualquer emoção, sem nada para emocioná-lo, ou não se emocionar mesmo diante de algo que possa provocar a emoção. Cf. B. Besnier, op. cit., p. 43-44 e De Anima I 1, 403 a16-b2. 10 Para Aristóteles os seres que têm vida são aqueles que têm a capacidade de auto-alimentar-se e de crescer, por isso a vida é correlacionada ao movimento, o que define o ser vivo como entelequéia (atualidade), o que possui corpo (soma) e alma (psyche). A alma é a entelequéia primeira de um corpo natural organizado. Cf. De Anima 412 b5. 11 Cf. Aristóteles, De Anima I 1, 403 a16-23. Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006.

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fugia ao logos, ou seja, entendia-se que elas provocavam uma resposta meramente irracional. Ao poder do discurso suscitar as paixões, Górgias teceu um interessante texto intitulado Elogio de Helena. A emotividade é entendida como algo que simplesmente acontece a um indivíduo de forma parecida a uma doença (nosema), algo que o toma e que ele só pode lamentar passar de modo parecido a uma vítima que lastima o infortúnio.

Nesse estado, provocado pelo logos do orador, o sujeito encontra-se fora da esfera do elogio ou da censura, pois não é responsável pelo que lhe ocorre.12 Pelo menos esta é a compreensão que Aristóteles, e Platão, têm da retórica gorgiana. Górgias considerava o logos, devido à sua força de mover as pessoas a tomar determinada decisão, um “grande dominador” a quem nada pode resistir. Os discursos (logoi) dos oradores são, portanto, da ordem da racionalidade, – lembremos que logos significa “palavra”, “discurso”, “razão” –, mas provocam uma reação emocional, e esta é da ordem da irracionalidade, que, por sua vez, trabalha em favor do orador. Ao dirigir-se ao público que pretende persuadir, o orador utiliza esse subterfúgio que é a paixão, pois é característica da persuasão mover os afetos. Pode assim encantar a plateia que, vencida pela paixão provocada pelo discurso, reage conforme o pretendido pelo orador, sem ponderar reflexivamente sobre sua decisão.13

A definição inicial que Aristóteles faz das paixões na Retórica parece, à primeira vista, não ser tão distinta da de Górgias, pois ele menciona o poder que as paixões têm sobre a formação de opinião pela plateia. Vejamos a passagem:

As paixões [ta pathe] são todas as afecções que causam mudança [metaballoutes] nos seres humanos e introduzem alterações nos seus julgamentos na medida em que comportam dor e prazer, como a cólera, a piedade [eleos], o temor

12 Cf. Górgias, Elogio de Helena 19. 13 Id. Ibid., 10-15.

[phobos] e outras paixões semelhantes, assim como as suas contrárias.14

Mesmo admitindo a força que a reação emocional possa ter sobre o juízo de alguém, o filósofo observa que há um traço de racionalidade na emotividade que o orador deve bem conhecer ao tecer seu discurso. Diferentemente de Platão, Aristóteles considera a retórica uma techne, assim como Górgias, o que indica que esta atividade do orador apresenta racionalidade, mesmo não sendo de mesma natureza da racionalidade que a episteme pretende expressar. De modo geral, a noção de techne, indica certo conhecimento teórico que pode ser aplicado, e aproxima-se de episteme (ciência), sendo as duas palavras empregadas muitas vezes como sinônimas nos autores do século V a.C.

Platão assim as emprega, sem preocupar-se em distingui-las, o que resulta em não reconhecer as atividades dos oradores como verdadeiras technai, desqualificando-as como “práticas do discurso” que incitam a parte mais baixa da alma. Em obras como Górgias, por exemplo, vemos suas críticas à retórica sofística que, para ele, carece de rigor e este apenas o método dialético de sua filosofia possui. O sofista, por sua vez, não possui techne, ele é um “sábio aparente”, “bajulador de jovens ricos”, que ensina sobre tudo (polimatia) e, portanto, só pode ser um charlatão que se diz perito (teknites) na arte da linguagem.15

Já em Aristóteles, a noção tem aplicações próximas ao sentido de episteme, como vemos em Platão, mas este pensador parece especificar melhor o campo próprio de

14 Aristóteles, Retórica II 1378 a19-22. Tradução nossa com base no texto estabelecido e traduzido pela Loeb, cotejada por sua tradução e pelas traduções da Imprensa Nacional-Casa da Moeda e da Gredos. 15 No Íon, Platão tem como alvo a poesia, que também para ele não se fundamenta num conhecimento da própria arte/técnica, mas seria o resultado de uma “inspiração divina”, estranho ao campo que a noção de techne está circunscrita: a ordem da racionalidade humana.

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tal noção, especialmente em obras como Física, Metafísica e Ética a Nicômaco, além de reconhecer na Retórica e na Poética que tais artes são verdadeiras technai. Para não nos alongarmos na questão, devemos entender que toda arte é uma teoria que pode ser aplicada, implicando habilidade, perícia e talento, passível ainda de ser ensinada, traço distintivo daquele que possui tal perícia.

Enfim, em Aristóteles a retórica é uma verdadeira arte da linguagem, embora vejamos o estagirita censurar os sofistas de modo parecido ao de seu mestre. Na análise de Retórica II, o pathos da alma exprime o efeito agradável ou desagradável que o mundo exterior provoca em nós; por meio dele os sentidos e a imaginação (phantasia) suscitam certa reação emotiva, que não é a mesma das sensações e dos impulsos corporais. E por provocarem perturbações, podem modificar os juízos, elemento que mais interessa ao orador.16 No caso das sensações e dos impulsos corporais, podemos até explicar por que os temos – se sentimos fome, sede, etc. –, mas tais sensações não são explicadas como a paixão, pois esta envolve uma avaliação de certa situação por parte de quem a sente, mesmo que esta avaliação esteja equivocada.

Devemos ainda lembrar que a conexão entre paixão e cognição já era reconhecida pelos antecessores de Aristóteles. Platão no Filebo, por exemplo, reconheceu haver uma forte ligação entre a paixão e a cognição, mas, apesar disso, como nos diz William W. Fortenbaugh, ele não esclareceu o tipo de relação que ambas tinham, e isso é o que Aristóteles fará. Ainda de acordo com Fortenbaugh, o Filebo não tinha tornado precisa a relação entre cognição e paixão, mas enfatizado que havia aí uma forte conexão. Apesar disso, as reflexões platônicas a esse respeito serão levadas em consideração pelo

16 Besnier observou que nesta definição a emoção não é entendida meramente como o que modifica o juízo, mas que ela é “para o orador um meio de agir sobre o juízo dos ouvintes”. Cf. B. Besnier, loc. cit., nota 5, p. 39.

estagirita, como fica claro na afirmação inicial da Retórica sobre as paixões, onde Aristóteles assume certas distinções já feitas por Platão no Filebo.17 Em um dos textos aristotélicos do Órganon, os Tópicos, Aristóteles já havia considerado que a reação emocional implica a cognição:

[…] se julga geralmente que tanto a dor quanto a crença de desprezo são predicados da cólera na categoria de essência [o que é], pois o homem irado ao mesmo tempo experimenta dor e se julga menosprezado [tanto experimenta sofrimento quanto acredita ser objeto de desprezo]18

Aristóteles entende que o objetivo do orador é persuadir o auditório e, para tanto, ele deve apresentar enunciados persuasivos ou provas (pisteis) aos ouvintes, esperando fazê-los aderir ao seu discurso.19 Porém, o domínio da demonstração discursiva não é suficiente para a persuasão; é necessário, segundo Aristóteles, que o orador inspire confiança nos ouvintes por meio de sua postura, além de bem observar as propensões daqueles a quem se dirige para, daí, utilizar-se do aspecto emotivo.

Portanto, a persuasão se faz por meio de argumentos, por meio da atitude do orador diante de quem pretende persuadir, e por meio da capacidade que o orador deve ter para suscitar emoções nos ouvintes, e isso porque a

17 Cf. W. W. Fortenbaugh, “Aristotle’s Rhetoric on emotions” In BARNES, Jonathan; SCHOFIELD, Malcolm & SORABJI, Richard. (edd.) op. cit., p. 133-153. Nota 9, p. 135-136, nota 23, p. 141 e nota 29, p. 144. 18 Cf. Tópicos 127 b26ss. Tradução modificada com base nas traduções de Edison Bini e de Leonel Vallandro e Gerd Borheim. O livro de Fortenbaugh Aristotle on Emotion (2nd. Edition. London: Gerald Duckworth, 1975-2002), parece ter sido pioneiro no estudo do aspecto cognitivo envolvido na análise aristotélica das emoções. 19 Cf. Retórica 1355 b35-1356 a4. Aristóteles distingue as provas em duas categorias: em uma, estão as provas não-técnicas (atechnoi), que são as leis, as testemunhas, os depoimentos extraídos sob tortura, os contratos e os juramentos, ou seja, provas preexistentes ao discurso do orador; em outra, estão as provas técnicas (entechnoi): provas pelo logos elaborado pelo orador, pelo ethos deste e pelo pathos do auditório.

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postura de quem julga deve estar ao lado da postura do orador.20 Enquanto o logos produz no ouvinte uma convicção de verdade através de seu bom ordenamento, as provas pelo ethos do orador e pelo pathos do auditório levam à mesma convicção não apenas pelo discurso; elas apresentam o orador como digno de crédito, assim como possibilitam estados emocionais favoráveis ao seu discurso.21

Para então despertar a resposta emocional pretendida, é preciso entender como as pessoas são afetadas pelas paixões. Quanto a isto, Aristóteles nos diz que três fatores devem ser observados: a) a condição na qual a pessoa se encontra; b) por quem, ou contra quem ela sente a emoção (o que indica o objeto desta); c) e os motivos que despertam tal sentimento.22 Já dissemos que Aristóteles, assim como outros antes dele, observou que as pathe afetam o julgamento; ao destacar os três fatores elencados, o filósofo evidencia como as opiniões que alguém possui explicam e justificam sua reação emotiva.

Ao destacar o objeto (tisin) da paixão e os motivos (epy poiois), Aristóteles associa fortemente a cognição e a paixão, porque as opiniões, ou o que pensa a pessoa, apresentam os objetos e explicam os motivos das reações emocionais. Se fossem simples sensações, as paixões não seriam passíveis de apresentar 20 A credibilidade do orador é conseguida através de três elementos pertencentes ao seu caráter (ethos): prudência (phronesis), excelência (arete) e benevolência (eunoia). Cf. Política V 7 1309 a. Ver também M. Alexandre Jr., P. F. Alberto e A. N. Pena Aristóteles. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. Nota 2, p. 160. 21 As provas pelo ethos e pelo pahtos são as que singularizam a retórica em relação à dialética e à ciência (episteme). Segundo Francis Wolff, as três técnicas discursivas da verdade na Grécia clássica eram a ciência, a dialética e a retórica. F. Wolff, apud., Maria de Fátima Simões Francisco. Caráter, emoção e julgamento na Retórica de Aristóteles. Letras Clássicas. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, n. 4, p. 91-108, 2000, p. 92. 22 Cf. Retórica II 1378 a23-26, 1365 b21-5. Assim, de acordo com Fortenbaugh, Aristóteles forneceu um modo de persuadir no qual é necessário o conhecimento para despertar ou abrandar determinada emoção com sucesso. Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit, p. 139.

seus objetos e seus motivos. Elas podem até apresentar algum tipo de reação no corpo, como as sensações, mas, como consideramos antes, dizem respeito aos estados de alma e, portanto, além de reações físicas, as paixões apresentam motivos e objetos que as provocaram, o que é de ordem psicológica.23 Em vez de ver as paixões simplesmente como sentimentos que impelem alguém a se comportar de certa maneira, Aristóteles inclui a possibilidade de conhecermos e entendermos o estado emocional da pessoa.24

Ao se saber o porquê da paixão, temos a indicação daquilo que foi essencial para a reação emocional, como também temos a causa de tipo eficiente. Nos Segundos Analíticos e na Metafísica, Aristóteles entendeu que questões de essência e questões de causa são uma e a mesma coisa, e ilustrou este princípio parcialmente pela referência ao exemplo do eclipse da lua.25 Aristóteles define um eclipse da lua como a privação de luz por causa da obstrução da terra, e tal obstrução tanto é essencial ao eclipse, para ele ser o que é, quanto é a causa eficiente deste, isto é, explica o seu porquê. A causa eficiente de um eclipse está incluída, portanto, na definição de sua essência. Quando procuramos a causa da reação emocional temos algo similar à descrição do eclipse.26

O aspecto cognitivo de um estado emotivo apresenta tanto a essência desse estado como a causa eficiente dele e, portanto, é mencionada na definição da paixão e nos explica o porquê de tal reação. Na reação emotiva, deve-se observar qual pensamento ou qual crença levou alguém a reagir de determinada maneira. Aristóteles entende que

23 Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit, p. 141. Como diz Pierre Aubenque, elas dizem respeito ao estado da alma, em um corpo. Cf. P. Aubenque apud., S. Vernegières, op. cit., nota 82, p. 92. 24 Aristóteles, Retórica II 1378 a19-22. 25 Cf. Observação de W. W. Fortenbaugh, op. cit., p. 145. 26 Cf. Segundos Analíticos 90 a14-18, 93 a3-4 e 98 b21-24; Metafísica VIII 4, 1041 a28-29 e 1044 b15.

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alguns tipos de cognição tanto são essenciais quanto são causa eficiente da reação e, por isso, em cada paixão analisada, ele aponta aqueles mesmo três fatores anteriormente citados. Recordemo-los: a disposição da pessoa, por quem ela sente tal paixão – o que indica seu objeto –, e os motivos dessa.27

Podemos exemplificar isso tomando a primeira das paixões examinadas na Retórica, a cólera (orge), que é definida da seguinte forma na obra em questão:

Seja, então, a cólera o desejo, acompanhado de [dor], de vingar-se ostensivamente devido a algum desprezo manifestado contra nós, ou contra pessoas da nossa convivência, sem haver razão para isso.28

O pensamento de desprezo é essencial para provocar essa paixão: um homem sente cólera por um desrespeito, mesmo que seja insignificante, como o esquecimento de seu nome. O menosprezo apresentado por alguém cuja opinião é tida como importante por quem fica colérico explica a razão pela qual ele sente raiva, indica o porquê da paixão, já que sentir-se desprezado é, para Aristóteles, tanto

27 Cf. Retórica 1378 a19-24. Deve-se dizer aqui que o tratamento das emoções na Retórica não é exaustivo; mesmo o vocabulário empregado na maioria das definições (esto e não estin) parece levar a crer que Aristóteles está descrevendo as emoções apenas ratificando as opiniões do senso comum de sua época. Na verdade, apesar de não ser um tratamento rigoroso e de apresentar certas deficiências, isso não nos autoriza, como pensam alguns, a crer que o Livro II traga uma análise popularesca das emoções cuja importância filosófica seja nula. Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit., p. 139 e ss. Ver nota 30 abaixo. Para as diversas formas de racionalidade reconhecidas por Aristóteles ver Enrico Berti, As razões de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2002. 28 Retórica II 1378 a30-2. In Retórica das paixões. Livro II, Capítulos 1-11. Prefácio de Michel Meyer. Tradução bilíngüe grego-português de Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2003, que segue da seguinte maneira: “… de um manifesto desprezo por algo que diz respeito a determinada pessoa ou a algum dos seus, quando esse desprezo não é merecido”. O restante do trecho não destacado, conforme tradução de M. Alexandre Jr., P. F. Alberto e A. N. Pena em Aristóteles. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 161.

essencial à cólera quanto a causa eficiente dela.29

A cólera pode ser causada pela simples aparência de ultraje, isto é, não é necessário que ele tenha realmente ocorrido, basta pensar que ocorreu. Claro que quando o ultraje acontece de fato, é natural a referência ao ato ultrajante como a causa eficiente da paixão.30 Além disso, um homem colérico pode entender que foi menosprezado em uma situação particular, mas se julgar que se enganou quanto ao insulto que pensa ter sofrido, pode modificar seu julgamento e sua cólera será abrandada. No caso do orador precisar suscitar a cólera em seus ouvintes, ele deve demonstrar que alguém agiu de forma insultante, despertando tal paixão em quem o ouve. Já para obter o inverso, abrandar a cólera da plateia, a argumentação deve mostrar que o ultraje não ocorreu, assim o público ao qual o orador se dirige passará da cólera à calma: ao demonstrar que nada insultante ocorreu, o orador abranda a cólera e, ao demonstrar que o réu é uma vítima inocente, excita a piedade (eleos).31

29 Fortenbaugh sugere que esta passagem da Retórica deva ser comparada às do Segundos Analíticos 94 a36-b8, sobre o ataque ateniense a Sárdis, considerada por Aristóteles como a causa eficiente das guerras com os persas. Como o ataque realmente ocorreu, é natural reconhecê-lo como causa eficiente que induziu à retaliação persa. Apesar disso, o ultraje real não é essencial à cólera. Apenas o pensamento ou a imaginação do ultraje é essencial, tanto que sempre que um homem é induzido à cólera, ele pensa ou imagina-se desrespeitado. Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit., nota 30, p. 145. 30 Segundo Fortenbaugh, é apenas este tipo de definição que Aristóteles oferece quando diz, “Seja (esto) a cólera …”. Nesse sentido, não é verdade que quando define a cólera, Aristóteles evite esti e empregue esto porque o primeiro termo significa a essência (ti esti) no domínio da verdade, enquanto que o outro termo introduz uma definição que é apenas suficiente e plausível no domínio da opinião. Na verdade, Aristóteles nos dá uma definição que captura tanto a essência (ti esti) quanto a causa (dia ti). Esta definição concorda com o uso de esto nos Segundos Analíticos e, além disso, explica o porquê. Cf. crítica de Fortenbaugh a M. Dufour; op. cit., nota 31, p. 145. 31 Cf. Retórica 1379 b33-4.

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Como deixa claro Martha Nussbaum a respeito desse tratamento aristotélico do pathos:

Um emoção aristotélica típica é definida como a combinação de um sentimento de prazer ou dor com um tipo particular de crença sobre o mundo. A fúria [cólera, orge], por exemplo, é a combinação de um sentimento doloroso com a crença de ter sofrido uma injustiça. O sentimento e a crença não estão apenas incidentalmente ligados: a crença é o fundamento do sentimento. Se o agente a descobrisse falsa o sentimento não persistiria; ou, se persistisse, não seria mais como um componente daquela emoção. Se descubro que um menosprezo imaginado em verdade não ocorreu, posso esperar que meus dolorosos sentimentos de fúria se desvaneçam; se permanecer alguma irritação, hei de considerá-la como irritação ou como um resíduo de excitação irracional, não como fúria. É parte dessa concepção a idéia de que as emoções devem ser avaliadas como racionais ou irracionais, ‘verdadeiras’ ou ‘falsas’, dependendo da natureza das crenças que as fundamentam. Se minha fúria se baseia numa crença falsa, adotada com precipitação, de que cometeram uma injustiça contra mim, ela pode ser criticada tanto como irracional quanto como “falsa.”32

É curioso notar que a cólera (orge) envolve tanto dor (lype) como prazer (hedone): este reside na esperança de vingar-se daquele que provocou tal paixão; mas tal desejo de vingança pode ser doloroso, pois quando invocado recorda o motivo da vingança, isto é, aquilo que causou a cólera e tal recordação pode provocar sofrimento.

Considerações Finais

Na ausência de um exame da paixão que deixasse claro o envolvimento da cognição na reação emotiva, o apelo emocional era visto como um tipo de persuasão distinta e hostil à argumentação racional, e considerava-se a paixão o resultado de uma espécie de

32 Cf. M. C. Nussbaum, A fragilidade da bondade. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2009. p. 336.

encantamento que dominava o ouvinte, agindo sobre ele como uma droga ou feitiço. Enquanto essas opiniões a respeito da reação e do apelo às paixões não foram contestadas, era natural opor os argumentos da razão aos encantamentos do apelo emocional. É nesse sentido que se deve entender por que Platão fez Sócrates rejeitar na Apologia o apelo à emotividade em favor da instrução. Considerada uma aflição separada da razão, a reação emocional era completamente oposta ao comportamento guiado pela razão, e o campo da retórica, especialmente a sofística, era considerado oposto ao da dialética, esta sim, na perspectiva platônica, a verdadeira retórica filosófica.33

A análise aristotélica do pathos na Retórica ofereceu uma perspectiva diferente sobre a emotividade ao esclarecer o envolvimento da cognição na reação emocional e evidenciar o que há de racional e irracional no pathos. Longe de serem completamente hostis à razão, as paixões são, em certo sentido, receptíveis por ela, e por isso um orador pode despertar ou abrandar a paixão ao apresentar argumentos convincentes a seus ouvintes. Podemos mesmo considerar que Aristóteles exige do orador o conhecimento da alma humana para ser um bom retor.

Assim, as paixões constituem, para Aristóteles, enunciados da argumentação retórica semelhantes ao assunto (pragma) do discurso nos gêneros oratórios. A emotividade não é independente do raciocínio retórico, nem é um elemento apenas auxiliar e secundário da persuasão, como se pensava anteriormente. De 33 Cf. Platão, Apologia de Sócrates 35 b9-c2. Cf. observação de W. W. Fortenbaugh, op. cit., p. 147 e 149, respectivamente. Sobre a dialética como a “verdadeira retórica” cf. Fedro 265c-266b. Segundo Plebe, apesar de considerar as emoções de maneira distinta, a análise aristotélica dessas retoma a psicagogia das primeiras escolas de retórica, de sofística e dos pitagóricos, que consideravam as emoções tão importantes para o orador quanto a demonstração discursiva. Portanto, a função psicagógica da sedução da alma (psychagogein) continua a ter relevância para a demonstração (deloun). Cf. A. Plebe, op. cit., p. 43.

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uma retórica que considerava apenas o aspecto demonstrativo passa-se, com Aristóteles, à possibilidade de compreender os afetos envolvidos na persuasão retórica, e isso, segundo vários comentadores, permitiu a ele ampliar o campo da retórica e, ao mesmo tempo, melhor caracterizar o logos da persuasão34.

Enfim, Aristóteles salientou a ocorrência do julgamento na reação emocional e aliou a persuasão pela disposição dos ouvintes e pelo ethos do orador, à demonstração pelo logos. A análise que ele fez do envolvimento da cognição na emotividade esclarece que as paixões não são impulsos cegos, mas reações que envolvem certa cognição. O que essa análise das pathe no Livro II da Retórica nos legou foi a possibilidade de compreender as paixões humanas, e tal análise será importante em diversos contextos do pensamento aristotélico, além do retórico35. 34 Segundo os estudiosos da retórica aristotélica, o estagirita teria esboçado opiniões parecidas com as de seus antecessores, em especial os membros da Academia, no Grilo, diálogo de juventude perdido, do qual nos restam alguns fragmentos, onde Aristóteles defenderia uma retórica filosófica nos moldes de Platão no Fedro e no Filebo. Encontraríamos traços dessa “velha retórica”, ou “primeira retórica”, no livro I da Retórica. A “nova retórica”, ou “segunda retórica” de Aristóteles, encontra-se especialmente no livro II dessa obra, e o passo sobre as emoções indicaria essa novidade no entendimento da oratória. Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit., p. 133-135; Cf. Quintín Racionero, “Introdução” à sua tradução da Retórica. Madrid: Gredos, 1994, p. 37-67; Cf. Armando Plebe, Breve história da retórica antiga. Tradução e notas de Gilda Naécia Maciel de Barros. São Paulo: EPU, 1978, p. 35-43. Fortenbaugh também nos dá notícia de outra obra aristotélica, citada no catálogo de Diógenes Laércio, chamada Diaireseis, que exporia essa primeira retórica de Aristóteles. Ver nota 20, p. 140 e nota 33, p. 146 do artigo de Fortenbaugh citado aqui. 35 Como esclarece Fortenbaugh, foi primeiro necessário distinguir a reação emocional dos impulsos corporais, para destacar as pathe que envolvem necessariamente cognição, podendo-se então considerar a racionalidade e irracionalidade presentes nelas. Analisando a reação emocional, Aristóteles destacou as pathe tratáveis pela razão (Ética a Nicômaco 1102 b30-1103 a1) e que estão no contexto da virtude ética (Ética a Nicômaco 1105 b19-1106 a13). Ele desenvolveu, assim, uma psicologia necessária às suas posteriores investigações,

Referências

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principalmente nos campos da ética e da política. Cf. W. W. Fortenbaugh, op. cit., p. 153. Para o estudo dessas questões, ver a obra de Fortenbaugh, Aristotle on Emotion.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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EMOÇÃO E FALÁCIAS: A RETÓRICA DE ADOLF HITLER

Eliana Amarante de M. Mendesi

Resumo: A despeito das desordens da personalidade de Hitler, temos que reconhecer que ele foi um dos maiores oradores da história. Winston Churchill, talvez o mais notável de seus adversários, reconheceu que sua oratória era insuperável. Além de ter sido dotado de uma aptidão inata para a oratória, conhecia muito de retórica e soube dela se utilizar em sua propaganda política, buscando subsídios nos clássicos, principalmente em Cícero. Para Hitler, a persuasão deveria ser dirigida principalmente às emoções e muito pouco à razão, pois a grande maioria da população teria uma natureza feminina: seus pensamentos e ações seriam determinados mais pelos sentimentos do que pela lógica. Além da persuasão pelo pathos, ou se sobrepondo a ela, a estratégia retórica de Hitler era eivada de argumentação contenciosa, falaciosa. Não se pode negar que ele atingiu plenamente seus objetivos, a adesão incontestável de seu auditório. Neste trabalho, pretendo mostrar exemplos autênticos do uso dessas estratégias retóricas utilizadas por Adolf Hitler. Palavras-chave: Retórica. Hitler. Pathos. Falácias. Abstract: Despite the personality disorders of Adolf Hitler, we must recognize that he was one of the biggest orators of history. Winston Churchill, the most notable of his adversaries, recognized that his oratory was insuperable. Beyond the fact that Hitler was gifted with an innate aptitude for the oratory, he was a master in rhetoric and he knew how to use the old art in his political propaganda by searching subsidies in the classics, mainly in Cicero. For Hitler, the persuasion would have to be directed mainly to the emotions and little to the reason because the great majority of the population would have a feminine nature: its thoughts and actions would be determined more by the feelings than by the logic. Beyond the persuasion by pathos, or overlapping it, the rhetorical strategy of Hitler was contaminated of litigious, fallacious arguments. We cannot deny that he fully reached his objectives, the undisputed adhesion of his audience. Thus, in this work I intend to show authentic examples of the use of these rhetorical strategies used by Adolf Hitler. Keywords: Rhetoric. Hitler. Pathos. Fallacies.

i Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].

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MENDES, Eliana Amarante de M. Emoção e falácias: o discurso retórico de Adolf Hitler. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 24-34, jun.2013.

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Introdução

Segundo Aristóteles, a retórica é amoral. A retórica não é nem do bem nem do mal, mas pode ser usada para o bem ou para o mal. Hitler é um supremo exemplo da retórica usada para o mal.

No entanto, a despeito de sua retórica incontestavelmente do mal e das inúmeras deturpações da personalidade de Hitler, diabo em figura de gente, há que se reconhecer que ele foi um dos maiores oradores da história. Winston Churchill, talvez o mais notável de seus adversários reconheceu que a oratória de Hitler era insuperável.

Para um de seus biógrafos, Klaus Fisher, Hitler nunca teria alcançado tais alturas de poder sem seu notável dom de persuasão (FISCHER, 1991, p.141).

Segundo Kershaw (1998, p.535), o próprio Hitler uma vez declarou que tudo que ele conseguiu ele deveu à persuasão. Ele sabia que a retórica era o motivo de seu sucesso. De fato, além de ter sido dotado de uma aptidão inata para a oratória, conhecia muito de retórica e soube dela se utilizar em sua propaganda política, buscando subsídios nos clássicos.

Também importante na retórica de Hitler é sua convicção de que, para se conseguir a liderança, a palavra falada é superior à palavra escrita. Na introdução de seu livro Mein Kampf ele diz “Sei que as pessoas são conquistadas menos pela escrita do que pela palavra falada e que todos os grandes movimentos no mundo deveram sua força aos oradores e não aos escritores” (HITLER, 1943, Prefácio)1 (Tradução da autora)2.

Justifica-se, portanto, pesquisar a oratória de Hitler, por ser ele reconhecido

1 “I know that men are won over less by the written than by the spoken word, that every great movement on this earth owes its growth to orators and not to great writers.” 2 No âmbito deste trabalho, todos os trechos citados foram traduzidos pela autora. Considerando o grande número de citações, para facilitar a leitura, optou-se por deixar as traduções no corpo do texto e os originais em pé de página.

como retórico exemplar e por possibilitar o conhecimento do lado da recepção, muito pouco estudado. Estudamos técnicas de persuasão, analisamos discursos persuasivos, mas é raro dispormos de dados que nos esclareçam sobre sua efetividade para o convencimento. No caso de Hitler, não restam dúvidas de que seu discurso tenha persuadido seu povo. Esta pesquisa interessa também por focalizar textos orais. No mais das vezes nos restringimos a analisar textos escritos, nos esquecendo da importância da oralidade, da pronunciatio, como diziam os antigos.

Quanto a Hitler, é também importante e curioso o fato de ele, além de ter usado a retórica, ter deixado amplo material escrito, principalmente em seu livro Mein Kampf, em que comenta suas estratégias propagandísticas, sua retórica.

1. Hitler: suas ideias, sua linguagem, sua retórica

A linguagem de Hitler foi assim descrita pelo jornalista Richard Breiting, que o entrevistou em 1931:

Ele usava uma linguagem simples, direta que o povo comum podia entender, sentenças curtas, slogans emotivos e poderosos[...] Não havia adjetivações no que ele dizia, tudo era absoluto, descompromissado. Ele parecia falar direto do coração e expressar seus próprios medos e desejos mais profundos [...]3 (BREITING, apud CALIC, 1968, p. 233).

Na esteira do pensamento de Aristóteles, para Hitler a audiência é o fim ou objeto do discurso. Ele sabia que tinha que adequar seu discurso às massas e que para isso precisava conhecer seu povo. E ele não só o conhecia

3 He used simple, straightforward language that ordinary people could understand, short sentences, powerful, emotive slogans [...] There were no qualifications in what he said; everything was absolute, uncompromising, irrevocable, undeviating, unalterable, final. He seemed to speak straight from the heart, and to express their own deepest fear and desires [...]

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MENDES, Eliana Amarante de M. Emoção e falácias: o discurso retórico de Adolf Hitler. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 24-34, jun.2013.

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como o detestava e desprezava. Para o Führer, “As massas são lentas, sempre exigem um certo tempo para ficarem prontas para perceber algo, e é somente depois que as idéias mais simples são repetidas milhares de vezes que as massas vão ser capazes de as apreender” (HITLER, 1943, p. 114)4.

Grossos, mentalmente prejudicados, burros, são termos, segundo o historiador inglês Trevor Roper, usados por Hitler em seus textos orais e escritos para se referir ao povo alemão (HITLER, 2000, p. xxiii). E Hitler não escondeu seu desprezo pelo seu povo. Chegou até mesmo a dizer, em um discurso para 200.000 berlinenses, em 1926, que “[...] amplas massas são cegas e estúpidas e não sabem o que estão fazendo. Suas atitudes são primitivas”5 (KERSHAW, 1998, p.287). Foi muito aplaudido.

É esse desdém de Hitler para com seu povo que norteia sua retórica. Um princípio fundamental de sua propaganda é a repetição, uma figura retórica. Segundo ele, a melhor técnica propagandista não vai lograr êxito se não se tiver em mente um princípio fundamental ao qual se dá grande e constante atenção. Por isso, a propaganda deve limitar-se a alguns poucos pontos que devem ser repetidos inúmeras vezes. Ainda segundo Hitler,

[...] a receptividade das massas é muito limitada; sua inteligência é pequena, mas seu poder de esquecer é enorme. Por conseguinte, toda propaganda eficaz deve utilizar alguns slogans, repetidos inúmeras vezes até que o último membro do público entenda o que você quer que ele entenda com seu slogan” (HITLER, apud RAUSCHING, 1939, p.233)6.

4 The masses are slow moving and always require a certain time before they are ready even to notice something, and only after the simplest ideas are repeated thousands of times will the masses remember them.” 5 “the broad masses are blind and stupid and don’t know what they are doing. They are primitive in attitude.” 6 […] the receptivity of the masses is very limited; their intelligence is small, but their power of forgetting is

De fato, foram poucos os pontos em que Hitler focou sua propaganda nazista: a má situação econômica da Alemanha, o acordo de Versalhes, “corrupto e covarde”, os “criminosos de novembro”, que “esfaquearam a Alemanha pelas costas”, em 1918, o comunismo, e os judeus, para ele as piores criaturas do mundo. Segundo Hitler, convencer o povo a lutar contra vários inimigos ao mesmo tempo é contraproducente, uma vez que as massas podem questionar se realmente todos os outros estão errados e o seu movimento sozinho é o certo (HITLER, Discurso em Munique, 27/02/1925). Assim, segundo o Führer, é necessário indiciar um único inimigo e marchar contra um único inimigo. Como seus inimigos eram numerosos, Hitler acreditava que é parte do gênio de um grande líder fazer adversários de diferentes campos parecerem como de uma única categoria. A categoria eleita por Hitler foi a dos judeus (VON MALTITZ, 1973, p.129).

A Teoria retórica de Hitler também enfatiza o raciocínio preto no branco, tudo ou nada, porque "o pensamento do povo não é complicado, mas muito simples. Seu pensamento não tem vários matizes. Tem positivo e negativo, amor ou ódio, certo ou errado, verdade ou mentira, mas nunca o meio termo (HITLER, 1943, p.183).

Ele soube também usar muito bem a máxima ciceroniana que diz que o homem é movido mais pela paixão do que pela razão. Para Hitler, a persuasão deve ser dirigida principalmente às emoções e muito pouco à razão, pois a grande maioria da população teria uma natureza feminina: seus pensamentos e ações seriam determinados mais pelos sentimentos do que pela lógica (HITLER, 1943, p.183).

Hitler era principalmente preconceituoso em relação às mulheres. Declarou que

enormous. Consequently, all effective propaganda must harp on a few slogans until the last member of the public understands what you want him to understand by your slogan.

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convencer as mulheres com argumentos lógicos é sempre impossível (HITLER, 2000, p. 414).

Além da persuasão pelo pathos, ou se sobrepondo a ela, a estratégia retórica de Hitler era eivada de argumentação contenciosa, falaciosa. Para Hitler, um elemento indispensável da sua teoria retórica era a mentira. Hitler reconhece a vantagem de mentir e descreve sua estratégia retórica para contar a grande mentira:

Uma grande mentira tem grande credibilidade, porque, com a simplicidade primitiva de seus sentimentos, as massas são vítimas mais facilmente de uma grande mentira do que de uma pequena mentira. Por conseguinte, da mentira mais evidente algo permanecerá (HITLER, 1943, p. 231)7.

Entretanto, Hitler, para preservar seu ethos de honestidade, esclarece que em seu benefício próprio ele jamais contaria uma mentira, mas que não há nenhuma falsidade que ele não perpetuaria em prol da Alemanha (HITLER, 1943, p. 232).

Naturalmente que, para o Führer, consciência era irrelevante: a propósito disse que a consciência é uma invenção judaica como a circuncisão e que sua tarefa era libertar os homens das ideias sujas e degradantes de consciência e moralidade (WAITE, 1977, p. 16).

Sua maior mentira foi o antissemitismo. Hitler fez dos judeus estrategicamente seu bode expiatório. Em 1926 ele disse a um de seus assistentes:

O antissemitismo é um expediente revolucionário útil e conveniente. Meus judeus são reféns valiosos que me foram dados pelas democracias. Você vai ver quão pouco tempo precisaremos para perturbar as ideias de todo o mundo, simplesmente por atacar o judaísmo. O

7 “In the size of the lie there is a certain factor of credibility, because, with the primitive simplicity of their feelings the masses fall victim more easily to a big lie than to a small one. […] Consequently, from the most bold lie something will remain.”

antissemitismo é inquestionavelmente a arma mais importante no meu arsenal de propaganda e eu a uso com eficiência quase mortal (WAITE, 1977, p. 362)8.

Hitler referia-se aos judeus, metaforicamente, como parasitas, bactérias e vírus. A ideologia nazista foi fundada na ideia fantasiosa de que a Alemanha era um organismo vivo contaminado por uma doença − os judeus −, que acabaria por causar a morte da nação. Segundo Alexander Bein, as figuras e metáforas usadas na descrição dos judeus foram tão poderosas que levaram o povo alemão a não saber distinguir a realidade da imagem criada por Hitler (BEIN, 1980, p.237).

Em suma, ele construiu uma teoria retórica pragmática e maquiavélica, baseada numa análise cínica de sua audiência, enfatizando a repetição, o antissemitismo, o raciocínio em preto e branco, a mentira e o apelo emocional. Teve ainda como grande aliada sua voz, uma voz que ficou na história.

William Shirer, correspondente da CBS que sempre ouvia os discursos de Hitler pelo rádio disse que ele tinha o mágico poder de influenciar milhões com sua voz (SHIRER, 1961, p. 46).

H. Trevor Roper, estudioso do nazismo, disse que “Hitler, no início, tinha apenas sua voz [...] que era seu único instrumento de poder. Seu único ativo era seu poder demagógico sobre as massas, a sua voz”9 (TREVOR HOPER, 1974, p. 3).

Como se sabe, os antigos já pregavam a importância da voz para expressar as emoções.

Para Aristóteles,

8 Anti-Semitism is a useful revolutionary expedient. My Jews are a valuable hostage given to me by the Democracies. You will see how little time we need to upset the ideas of the whole world simply by attacking Judaism. Anti-Semitism is beyond question the most important weapon in my propaganda arsenal and I use it with almost deadly efficiency. 9 “Hitler, at the beginning, had only his voice.that was his only instrument of power. His only asset was his demagogic power over the masses, his voice.”

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É, essencialmente, uma questão de correto controle da voz para expressar as várias emoções ─ de falar em voz alta, macia, ou entre os dois tipos ; tom alto, baixo ou intermediário; de diversos ritmos que se adequam a vários assuntos. Estas são as três coisas - volume do som, modulação de Tom e ritmo ─ que um falante deve ter em mente (Aristóteles, Retórica, III, 1.4)10.

Também Quintiliano, no Institutio Oratoria, mostrou a importância da voz na expressão das emoções:

É levantando, abaixando ou inflexionando a voz que o orador agita as emoções de seus ouvintes, e é à medida que difere a voz e a frase que difere o que queremos despertar se a indignação ou a pena do juiz.

[…]

Mas a eloquência varia tom e ritmo, expressando pensamentos sublimes com elevação do tom, pensamentos agradáveis com doçura, e os comuns com enunciado suave e em cada expressão, sua arte está em sintonia com as emoções das quais é o porta-voz (Quintiliano, Institutio Oratoria, I, 24,25)11.

Também pela qualidade de sua voz, e por saber fazer bom uso dela, Hitler teve grande sucesso12. Não se pode negar que Hitler 10 It is, essentially, a matter of the right management of the voice to express the various emotions -- of speaking loudly, softly, or between the two; of high, low, or intermediate pitch; of the various rhythms that suit various subjects. These are the three things -- volume of sound, modulation of pitch, and rhythm -- that a speaker bears in mind. 11 It is by the raising, lowering or inflexion of the voice that the orator stirs the emotions of his hearers, and the measure, if I may repeat the term, of voice or phrase differs according as we wish to rouse the indignation or the pity of the judge. For, as we know, different emotions are roused even by the various musical instruments, which are incapable of reproducing speech. […]But eloquence does vary both tone and rhythm, expressing sublime thoughts with elevation, pleasing thoughts with sweetness, and ordinary with gentle utterance, and in every expression of its art is in sympathy with the emotions of which it is the mouthpiece. 12 Veja-se o vídeo do discurso de Hitler analisado neste artigo.

atingiu plenamente seus objetivos, a adesão incontestável de seu auditório. Daí a importância que se atribui à retórica de Hitler. Sua ampla e incontroversa recepção constitui evidência do alcance persuasivo da retórica para a propaganda.

2. O discurso de Hitler de 4 de maio de 194113

Vejamos então algumas considerações sobre um de seus discursos, pronunciado em 4 de maio de 1941, no Parlamento Alemão, em Berlim14.

No prólogo desse discurso, Hitler se dedica a condenar o inimigo e assegurar a seus ouvintes sua própria pureza e boas intenções. No primeiro parágrafo, ele elogia aqueles que estão em ação bélica e, humildemente, insinua que ele espera ser perdoado por tomar tempo daqueles que estão em atuação, fazendo-os ouvir seu discurso – e isto é dito de forma magistral. Ele não se refere abertamente aos militares cujos feitos são inúmeros e no seu entender, louváveis, nem a si mesmo como um líder humilde, merecedor de louvor, mas, apresentando-se todo encantador, sutilmente cria a impressão em seus ouvintes de que assim o é:

No momento em que contam apenas atos e em que palavras são de pouca importância, não é minha intenção aparecer diante de vós, os representantes eleitos do povo alemão, mais frequentemente do que o absolutamente necessário. A primeira vez que falei com vocês foi na eclosão da guerra quando, graças à conspiração anglo-francesa contra a paz, a cada tentativa de um entendimento com a Polônia, o

http://www.youtube.com/watch?v=joLcNUnIAi8 13 A íntegra deste discurso está disponível, em inglês, em http://www.humanitas-international.org/showcase/chronography/speeches/1941-05-04.html 14 Não se pretende aqui analisar a íntegra do discurso, em razão da limitação do espaço disponível. Busco no discurso amostras das estratégias mais utilizadas por Hitler e as análises se pautam nos parâmetros retóricos clássicos nos quais Hitler se inspirou.

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que de outra forma teria sido possível foi frustrado15 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

O apelo de Hitler ao ethos é constante, neste discurso ele não perde nenhuma oportunidade para se louvar, mas é mais intenso no prólogo, onde começa a construir seu ethos de pessoa superior, sugerindo que tem grande preocupação com a vida e a felicidade de cada indivíduo, sejam alemães ou não.

Considerei que eu devia isso ao nosso povo alemão e aos inúmeros homens e mulheres que estão em campos opostos, que, como indivíduos, foram tão dignos quanto inocentes de culpa, para apelar para o senso comum e a consciência destes estadistas [...] Eu, portanto, mais uma vez declarei publicamente que a Alemanha não exigiu nem pretendeu exigir qualquer coisa da Grã-Bretanha ou da França, que era loucura continuar a guerra e, acima de tudo, que o flagelo das armas modernas de guerra, uma vez colocadas em ação, seria inevitavelmente devastador de grandes territórios (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão)16.

Na sequência, Hitler continua aproveitando todas as oportunidades para se apresentar como uma pessoa que fez inúmeros

15 At a time when only deeds count and words are of little importance, it is not my intention to appear before you, the elected representatives of the German people, more often than absolutely necessary. The first time I spoke to you was at the outbreak of the war when, thanks to the Anglo-French conspiracy against peace, every attempt at an understanding with Poland, which otherwise would have been possible, had been frustrated. 16 …I considered that I owed it to our German people and countless men and women in the opposite camps, who as individuals were as decent as they were innocent of blame, to make yet another appeal to the common sense and the conscience of these statesmen… I therefore once more publicly stated that Germany had neither demanded nor intended to demand anything from Britain or from France, that it was madness to continue the war and, above all, that the scourge of modern weapons of warfare, once they were brought into action, would inevitably ravage vast territories.” (p. 3)

apelos pela paz, ou que buscou a paz acima de tudo. Sem dúvida esse discurso de Hitler faz um uso exemplar dessa estratégia retórica, para seu benefício, como se pode ver nos trechos seguintes:

Todos os meus esforços para chegar a um entendimento com a Grã-Bretanha foram destruídos pela determinação de um pequeno grupo que, quer se trate de motivos de ódio ou por uma questão de ganho material, rejeitou cada proposta alemã para um entendimento devido a sua vontade, que nunca escondeu, de recorrer à guerra, o que aconteceu17 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

[...]

Mais uma vez eu aproveitei a oportunidade de exortar o mundo para fazer as pazes. E aconteceu o que eu previa e profetizei naquele tempo. Minha oferta de paz foi interpretada como um sintoma de medo e covardia (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão)18.

[...]

Repetidas vezes eu proferi essas advertências contra esse tipo específico de combate aéreo, e o fiz por mais de três anos e meio (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão)19.

[…]

Deus sabe que eu queria a paz. Mas eu não posso fazer nada a não ser proteger os interesses do Reich com os meios que, graças a Deus, estão à

17 All my endeavors to come to an understanding with Britain were wrecked by the determination of a small clique which, whether from motives of hate or for the sake of material gain, rejected every German proposal for an understanding due to their resolve, which they never concealed, to resort to war, whatever happened. 18 Once again I seizes the opportunity of urging the world to make peace. I foresaw and prophesied at that time happened. My offer of peace was misconstrued as a symptom of fear and cowardice. 19 Again and again I uttered these warnings against this specific type of aerial warfare, and I did so for over three and a half months.

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nossa disposição 20 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

[...]

Além de construir seu ethos, vai, paralelamente, atribuindo a culpa dos danos causados pela guerra a Churchill e aos estadistas inimigos:

O homem por trás deste plano fanático e diabólico para fazer a guerra a todo o custo foi o Sr. Churchill. Seus associados foram homens que já formam o governo britânico. Estes esforços receberam o apoio mais poderoso, abertamente e secretamente, das chamadas grandes democracias em ambos os lados do Atlântico21 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

Começa então a atacar os judeus:

Por trás desses homens estavam os grandes interesses financeiros internacionais judaicos que controlam os bancos e a bolsa de valores bem como a indústria de armamento. E agora, como antes, eles farejaram a oportunidade de fazer seu negócio desagradável. E assim, justamente como antes, não houve nenhum escrúpulo de sacrificar o sangue dos povos. Este foi o início desta guerra. Algumas semanas mais tarde o estado que foi o terceiro país na Europa, a Polônia, mas tinha sido irresponsável o suficiente para permitir-se a ser usado para os interesses financeiros destes belicistas, foi aniquilado e destruído22 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

20 God Knows that wanted peace. But I can do nothing but protect the interests of the Reich with those means which, thank God, are at our disposal. 21 The man behind this fanatical and diabolical plan to bring about war at whatever cost was Mr. Churchill. His associates were the men who now form the British Government. These endeavors received most powerful support, both openly and secretly, from the so-called great democracies on both sides of the Atlantic. 22 Behind these men there stood the great international Jewish financial interests that control the banks and the Stock Exchange as well as the armament industry. And now, just as before, they scented the opportunity of doing their unsavory business. And so, just as before, there was no scruple about sacrificing the blood of the peoples. That was the beginning of this war. A few weeks later the State

Quanto ao apelo pelo pathos, este recurso é sem dúvida o mais utilizado por Hitler para mover seus ouvintes, sua maior ferramenta – para persuadir sem mostrar que está querendo persuadir.

O discurso em análise, apesar de aparentemente informativo, de fato o que pretende é persuadir a audiência de que Hitler (Alemanha) é do bem e Churchill (Grã-Bretanha) é do mal. E que todos os fatos que ocorreram são justificáveis por parte da Alemanha, e injustificáveis por parte dos ingleses.

Neste discurso ele apela pelo pathos de dois modos: de um modo positivo, atribuindo imagens e frases positivas em sua descrição da Alemanha, do Reich e de si mesmo, e de um modo negativo, criando emoções negativas quando fala de Winston Churchill. Seus ataques aos inimigos estão centrados na pessoa de Churchill. Alguns dos adjetivos que ele usa para descrever Churchill (ou as ações de Churchill) são fanático, diabólico, inescrupuloso, bêbado, conspirador, descuidado, criminoso, louco, paralítico, anormal, maldoso, egoísta, instigador, mau soldado, mau político, exagerado, distorcedor da verdade, desesperançoso e perdedor. Disse sobre Churchill: “O dom que possui o Sr. Churchill é o dom de mentir com uma expressão piedosa no rosto e distorcer a verdade, até finalmente transformar em gloriosas vitórias as derrotas mais terríveis”23.

Hitler primeiro denuncia as injustiças da guerra contra seu próprio povo, por exemplo, “não havia escrúpulo em sacrificar o sangue do nosso povo” e então dirige sua fúria a seu alvo preferido: Churchill. Entretanto, nem todos os ataques a Churchill neste discurso são

that was the third country in Europe, Poland, but had been reckless enough to allow herself to be used for the financial interests of these warmongers, was annihilated and destroyed. 23 “The gift Mr. Churchill possesses is the gift to lie with a pious expression on his face and to distort the truth until finally glorious victories are made out of the most terrible defeats.”

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explícitos, embora muitos o sejam. Muitas das invectivas são feitas por implicação e comparação. Por exemplo, Hitler fala repetidas vezes do desejo da Alemanha de beneficiar seus países vizinhos, e se expressa de uma forma que implica que a Grã-Bretanha e Churchill são maus por se esforçarem para impedir que os alemães justos propiciem a paz e a segurança a seus vizinhos: “As democracias sustentadas pelos judeus que só conseguem pensar em termos de capitalismo [...]” são, naturalmente, os inimigos do Reich, que “sempre tem se esforçado para construir e fortalecer. as nações vizinhas”. Portanto, se Churchill era um tal monstro, e se ele (Hitler) havia apelado incontáveis vezes pela paz e pela liberdade − sem nenhum aval do adversário −, a Alemanha é forçada a agir. Com esse argumento falacioso, Hitler consegue uma justificativa ao mesmo tempo lógica e emocional para suas ações, sem deixar também de reforçar seu ethos de grande estadista. Ele persuade, assim, seu auditório, o povo alemão, a acreditar que se justifica atacar seus inimigos pelo fato de eles serem do mal.

O restante deste discurso de Hitler é composto por meio dessa lógica emocionalmente conduzida. Ele descreve e justifica as ações do estado até o momento em que o discurso é proferido, seguindo este padrão: primeiro louva a Alemanha, apresentando-a como amável e benevolente e alega que todas as outras nações precisam desesperadamente de sua orientação e apoio. Ele ressalta então seu modo “exemplar” de agir: “acordo após acordo, que fez com as nações vizinhas”, “[...] não exigiu nada [...] mas só ofereceu vantagens” para os seus vizinhos. Depois de estabelecer a bondade da Alemanha e dele próprio, Hitler denuncia alguma traição de Winston Churchill como causa de lutas e mortes no continente. Por exemplo, A invasão da Grécia “não foi dirigida contra a Grécia”, assegura Hitler, mas contra as forças britânicas que a ameaçavam. Hitler disse: A propósito disso, eu devo

afirmar categoricamente que esta ação não foi dirigida à Grécia24:

A Alemanha não tinha intenção de iniciar uma guerra nos Balcãs. Ao contrário, era nossa intenção honesta, na medida do possível, contribuir para a resolução do conflito com a Grécia por meios que seriam toleráveis para os legítimos desejos da Itália 25 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

Hitler quis dar todas as oportunidades para a Iugoslávia participar do Pacto do Eixo e obter todas as vantagens disponíveis para os amigos do Reich, mas a “Iugoslávia foi vítima da intriga britânica”. A Alemanha foi forçada a invadi-la e Hitler diz: “Deus sabe que eu queria a paz”. Apelou também para o testemunho de seus ouvintes: “A maioria de vocês, especialmente meus antigos companheiros de partido que estão entre vocês, sabe quais os esforços que fiz para estabelecer um entendimento simples e relações de fato amigáveis entre Alemanha e Iugoslávia”26.

Na última parte do discurso, Hitler faz inúmeros apelos às emoções dos militares. Frases como “Nada é impossível para o soldado alemão” e “a formação dos nossos oficiais é excelente” são frequentemente ditas quando Hitler descreve as estatísticas das batalhas. Ao mesmo tempo, Hitler continua seus ataques a Churchill, concluindo assim a sua avaliação do primeiro-ministro britânico:

Churchill, um dos curiosos mais desesperados em estratégia, que conseguiu perder dois palcos

24 “In this connection I must state categorically that this action was not directed against Greece.” 25 Germany had no intention of starting a war in the Balkans. On the contrary, it was our honest intention as far as possible to contribute to a settlement of the conflict with Greece by means that would be tolerable to the legitimate wishes of Italy. 26 Most of you, especially my old Party comrades among you, know what efforts I have made to establish a straightforward understanding and indeed friendly relations between Germany and Yugoslavia.

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de guerra em um único golpe. O fato de este homem, que em qualquer outro país seria submetido à corte marcial, ter ganho a admiração como primeiro-ministro não pode ser interpretado como uma expressão de generosidade, como a que foi concedida por senadores romanos para generais honrosamente derrotados em batalha. É apenas a prova daquela cegueira perpétua com a qual os deuses afligem aqueles a quem estão prestes a destruir27 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

Hitler conclui seu discurso com algumas palavras sobre a nobreza do Reich, os desejos puros do povo e a moralidade de ambos:

Posso assegurar-lhes que eu olho para o futuro com grande confiança e perfeita tranquilidade O Reich alemão e seus aliados representam o poder, militar, econômico e, sobretudo, em aspectos morais, que é superior a qualquer possível coligação no mundo. As forças armadas alemãs sempre vão fazer a sua parte, sempre que for necessário. A confiança do povo alemão sempre acompanhará os seus soldados28 (HITLER, Discurso proferido em 04/05/1941 para o Parlamento Alemão).

Certamente deixando seus compatriotas exultantes e orgulhosos, cada vez mais motivados e dispostos a seguir os passos de seu Führer.

27 Churchill, one of the most hopeless dabblers in strategy, thus managed to lose two theaters of war at one single blow. The fact that this man, who in any other country would be court-martialed, gained fresh admiration as Prime Minister cannot be construed as an expression of magnanimity such as was accorded by Roman senators to generals honorably defeated in battle. It is merely proof of that perpetual blindness with which the gods afflict those whom they are about to destroy.” (p. 10) 28 I can assure you that I look into the future with perfect I can assure you that I look into the future with perfect tranquillity and great confidence. The German Reich and its allies represent power, military, economic and, above all, in moral respects, which is superior to any possible coalition in the world. The German armed forces will always do their part whenever it may be necessary. The confidence of the German people will always accompany their soldiers.

Considerações finais

Como se pôde ver, Adolf Hitler demonstra neste discurso uma magistral habilidade para o uso da persuasão retórica, especialmente do ethos, do pathos, eivados de falácias. De fato, suas maiores habilidades se baseiam em explorar as emoções de seus ouvintes para provocá-los à ação. Seu discurso demonstrou grande sutileza, e parece improvável que seus ouvintes tivessem plena consciência de que ele estava fazendo um esforço para desenvolver neles ódio a certos indivíduos e grupos. Quanto ao logos, seu uso foi mais restrito. Isso pode se dever ao fato de que não havia nenhuma lógica a que ele pudesse apelar para justificar suas ações. Hitler, no entanto, usava a estratégia emocional como seu trampolim para argumentos lógicos. Embora ele nunca tenha dito: “democracias são apoiadas pelos judeus e todos os judeus são do mal, portanto, democracias são o mal”, ele implicitamente utiliza essa lógica silogística.

Através da análise deste discurso de Hitler vê-se que apelos ao pathos e ethos podem substituir grande parte da necessidade de argumento lógico em uma situação persuasiva. E certamente estas e outras intervenções combinadas com as ações efetivas do Reich demonstram como a emoção e a confiança no ethos do orador podem motivar tão eficazmente (ou mais) que a lógica sozinha.

Entretanto, a habilidade do Führer não se restringe somente à elaboração de seus discursos conforme os preceitos da persuasão retórica. Cumpre lembrar a importância do kairós (opportunitas) no contexto da retórica. No caso em pauta, a retórica de Hitler teve sucesso não só por causa de seu carisma e seu domínio da pronunciatio, mas também por ter falado no tempo oportuno: tempo em que a Alemanha estava desmoralizada e desorganizada, após a Primeira Guerra Mundial, e em que o povo alemão ansiava por uma saída da falência econômica e da

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vergonha cultural. Hitler, com sua oratória nacionalista, manipulou, mais que persuadiu, o povo alemão e encarnou, naquele contexto, o papel de salvador da pátria.

Segundo Cialdini (2001, p. 78), manipulação é mais que persuasão: “é a habilidade de produzir um tipo distinto de resposta automática e estúpida do povo, uma disposição de dizer sim sem pensar primeiro”. Para Festinger (1957, p. 179), na manipulação o manipulador ultrapassaria o campo da consciência do manipulado, transformando-o num objeto.

Entendemos, no entanto, a despeito das posições desses estudiosos, que seria necessário relativizar o poder que se costuma atribuir à manipulação, não responsabilizando apenas o manipulador − dever-se-ia analisar a relação dialógica que se estabelece no par manipulador-manipulado, em que o último, dotado de livre-arbítrio, seria corresponsável pelo engano de que possa ser sido alvo.

Nesse sentido, afirma Souza (2000):

[...] à eventual mentira do orador não tem que, necessariamente, seguir-se o engano do auditor. O manipulado não pode ser visto como autómato ou presa fácil de um qualquer orador menos escrupuloso, sob pena disso ofender a sua própria dignidade de ser humano. É o exercício da sua autonomia e liberdade de formação pessoal que o constitui como responsável pelos seus actos. E o acto retórico corresponde apenas a uma entre tantas outras situações do seu percurso existencial, em que igualmente é chamado a compreender o que se passa à sua volta, a avaliar e a tomar decisões (SOUZA, 2000, p. 257).

Sob essa ótica, poder-se-ia entender que as atrocidades de Hitler teriam tido respostas positivas pelo menos por boa parte do povo alemão que teria se deixado manipular por uma retórica do mal, pela grande mentira de seu Führer.

Referências

ARISTOTLE. Art of Rhetoric. Trad. de J.H. Freese. Cambridge, London: Harvard University Press, 2000. BEIN, Alexander. Die Judenfrage : Biography and Weltproblems (2 volumes). Stuttgart: Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. CALIC, Edouard. Ohne Maske: Hitler-Breiting Geheimgespräche. Frankfurt: Frankfurter Societäts-Druckerei, 1968. CIALDINI, Robert B. Influence, Science and Practice. Boston, London: Allyn and Bacon, 2001. FESTINGER, Leon. A Theory of Cognitive Dissonance. Evanston, White Plains: Row, Peterson and Co., 1957. FISCHER , Klaus. Nazi Germany: A New History. New York: Continuum, 1995. HITLER, Adolf. Mein Kampf. Boston: Houghton Mifflin Company, 1943. HITLER, A. Hitler’s Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations, trad. Norman Cameron and R. H. Stevens. New York City:Enigma Books, 2000 KERSHAW, Ian . Hitler: 1889-1936 Hubris. New York-London: W.W. Norton & Company, 1998 QUINTILIAN. Institutio Oratoria. The Loeb Classical Library,Trad. H.E. Butler, 1920. RAUSCHING, H. Hitler Speaks. London: Thornton Butterworth, 1939. SHIRER, William. The Rise and Fall of the Third Reich: A History of Nazi Germany. New York: Simon and Schuster, 1960. SOUZA, Américo de. A Persuasão: Estratégias para uma comunicação influente. Tese de mestrado em Ciências da Comunicação inédita. Universidade da Beira Interior, 2000.

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TREVOR ROPER, H. Introduction to The Hitler File. A Social History of Germany and the Nazis, 1918-1945 London: Grunfield Books, 1974. VON MALTITZ, H. The Evolution of Hitler’s Germany. New York: McGraw-Hill, 1973 WAITE, G.L.R. The Pychopathic God, Adolf Hitler. New York: DaCapo Press, 1977.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS E CAPACIDADES DE LINGUAGEM POR MEIO DA ESCRITA DE TEXTOS DE OPINIÃO

Isabel Cristina Michelan de Azevedoi

Resumo: A intenção deste trabalho é discutir o desenvolvimento de competências e capacidades discursivas em atividades de escrita, tendo em vista as polêmicas teóricas existentes em torno desses termos (CHOMSKY, 1978; ROEGIERS & DE KETELE, 2004; CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004). Ao assumir a perspectiva dialógica e histórico-cultural da linguagem, os conhecimentos enunciativos, pragmáticos e linguísticos, entre outros, quando colocados em interação, promovem aprendizagens diversificadas, que ampliam os limites das práticas escolares. O corpus constituído por dissertações produzidas para o Exame Nacional do Ensino Médio/2004 evidencia que os gêneros (BAKHTIN, 2003), em particular os textos de opinião, como se vê no exemplar destacado no artigo, embora sejam relativamente estáveis, são eventos textuais dinâmicos e plásticos que impactam o exercício da autoria (TFOUNI & ASSOLINI, 2008), mas, ao mesmo tempo, estimulam os sujeitos a assumirem lugares discursivos que demarcam posições enunciativas. Isso porque os processos de negociação e sustentação estimulam o jogo interacional de natureza polifônica que permite articular os conhecimentos construídos ao longo do tempo a pontos de vista variados. Palavras-chave: Competências. Capacidades de linguagem. Gêneros discursivos. Argumentação. Abstract: The intention of this paper is to discuss the development of skills and abilities in discursive Portuguese language classes, in view of the existing theoretical controversies around these terms (CHOMSKY, 1978; ROEGIERS & DE KETELE, 2004; CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004). By taking a dialogical and historical-cultural perspective of the language, the enunciative, pragmatic and linguistic knowledges, among others, when placed on interaction, promote diversified learning, which considerably extend the boundaries of school practices. The corpus consists of dissertations produced for the National Secondary Education Examination Médio/2004 shows that genres (Bakhtin, 2003), in particular the texts of the opinion, as seen in the example highlighted in the article, although relatively stable, are dynamic and plastics textual events that impact the practice of authorship (TFOUNI & ASSOLINI, 2008), but at the same time stimulate the subject to take discursive places that mark their enunciative positions. For the process of negotiating and sustaining stimulate the interactive polyphonic game that allows articulation of knowledge built over time to varying views. Keywords: Competencies. Language skills. Genres. Argumentation.

i Docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: [email protected].

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Introdução

O interesse pelo desenvolvimento de capacidades argumentativas na educação básica tem proporcionado incursões em campos diversificados de pesquisa. Se, por um lado, exige rigor conceitual relativo aos termos que são utilizados em diferentes áreas científicas ou em variados contextos de aplicação, por outro, também requer a investigação de práticas que possibilitem o exercício dessas capacidades pelos sujeitos envolvidos em processos de ensino-aprendizagem.

Neste breve estudo, ao assumir a perspectiva da integração das aquisições, proposta por Xavier Roegiers e Jean-Marie De Ketele (2004), procurar-se-á analisar os conceitos de competência e capacidade, ainda que estejam inseridos em polêmicas discussões teóricas, para vislumbrar alternativas de intervenção na formação dos sujeitos discursivos. Isso se justifica pelo fato de as marcas de subjetividade emergirem pela e na linguagem, que se constitui nas interações humanas e sociais, estabelecidas nas diferentes esferas sociais.

Como a integração é uma operação que torna interdependente diferentes elementos (mesmo estando dissociados inicialmente), para que possam funcionar de uma maneira articulada em função de um determinado objetivo (ROEGIERS; DE KETELE, 2004, p. 18), este texto pretende superar dicotomias conceituais, embora sejam mantidos os limites e as especificidades de cada termo, para que possam ser colocados a serviço das pessoas que se dedicam aos estudos de língua(gem).

Relembrar que o termo competência parte do comportamentalismo (Skiner, Thorndike, Bloom, entre outros) e chega aos nossos dias associado a mecanismos de avaliação de desempenho de profissionais ou a formas de unificação de currículos nacionais não parece constituir um cenário muito favorável à discussão que se pretende realizar neste trabalho. No entanto, optar pelo

aprofundamento da temática parece ser uma alternativa para superar uma concepção mecanicista, linear e unilateral das relações entre saberes e sujeitos.

O fato de não haver unanimidade entre os pesquisadores (CHOMKSKY, 1965; DELL HYMES, 1984; LE BOTERF, 1995; PERRENOUD, 1999b; BRONCKART, 1999; ROEGIERS & DE KETELE, 2004; CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, entre outros), que propõem definições para o termo competência, não impossibilita a identificação de elementos comuns, tais como: o de mobilização de conhecimentos adquiridos, o de ação direcionada a finalidades e o de construção intersubjetiva.

No âmbito da educação básica, por exemplo, quando o governo federal decidiu avaliar o nível de aprendizagem dos estudantes brasileiros ao final do ensino médio, adotou um conceito de competência no qual as duas primeiras características destacam-se e indicam um direcionamento para o trabalho a ser realizado nas escolas: “competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer” (BRASIL, 1998).

Nessa definição, a mobilização de conhecimentos é tratada no nível cognitivo e na perspectiva piagetiana, indicando que um sujeito, ao estabelecer relações com objetos de conhecimento, realiza uma nova elaboração que depende da autorregulação orgânica e das interações ocorridas no mundo exterior. Dessa forma, desenvolvimento e aprendizagem são conceitos interligados, que se estabelecem no indivíduo ao reagir ao meio, e a competência revela a forma como cada um é capaz de atender a cada situação, podendo evoluir ao longo do tempo. A reorganização dos elementos de que o sujeito dispõe corresponde tanto aos estímulos recebidos quanto aos mecanismos internos. Como a reação aos elementos não é inata – visto que diferentes

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esquemas1 de regulação podem ser acionados –, são exigidas assimilação e acomodação de ações, tendo em vista um novo estado de equilíbrio. “A ação cognitiva não ocorrerá se o indivíduo não ajustar suas estruturas mentais receptoras às formas que a realidade externa lhe apresenta. A essência da acomodação está nessa adaptação às exigências que o mundo real impõe” (SILVA, 2008, p. 44).

Outro aspecto relevante na definição proposta pelo INEP2 é que se há desejo para conhecer, há intencionalidade e tomada de decisão. Isso significa ser capaz de interpretar fatos, analisar situações e correr riscos, como meios para realizar uma meta. Segundo Macedo (2007, p. 59), tomar decisão não é privilégio para algumas pessoas, pois todos precisam ser ativos e decididos para conseguirem regular as ações em favor dos objetivos pretendidos. Os posicionamentos decorrentes da decisão irão orientar ou regular as ações de uma pessoa em uma certa direção. Nesse processo, dados, informações e conhecimentos, que podem estar dispersos e fragmentados em diversas áreas, precisam ser relacionados aos modelos mentais.

A aproximação dessa definição ao trabalho de Perrenoud (1999, 1999b) é evidente. Tomar a competência como um processo no qual o sujeito evidencia ser capaz de mobilizar, de maneira eficaz, diversos recursos cognitivos para enfrentar situações diversificadas, é concebê-la como uma prática reflexiva, que requer estratégias de ação para cada situação singular, mesmo que possam ser

1 Para Piaget (1973, p. 105ss), um esquema é aquilo que é generalizável de uma situação para outra, por isso pode ser entendido como um conceito prático. A transferência depende de classificações (que permitem as equivalências) e dos relacionamentos concretos ou das representações conceituais. 2 O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, INEP, em 1998, encarregou-se da organização do documento básico que descreveu os princípios do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, aplicado aos alunos concluintes e aos egressos deste nível de ensino.

análogas a outras já utilizadas. Nesse caso, os esquemas de pensamento são adaptados para que os desafios cognitivos e práticos sejam enfrentados adequadamente. Trata-se, assim, de uma construção do sujeito ante o meio físico ou social.

Essas considerações apontam a ausência da efetiva participação do outro nos processos internos de desenvolvimento dos sujeitos. Como o foco deste trabalho está voltado às atividades de produção textual, é imprescindível agregar reflexões de Bakhtin e de analistas se compatibilizam com a noção de que o sujeito, a partir de diferentes referências e influências, constrói discursos direcionados a diferentes finalidades. Em função disso, buscou-se reunir trabalhos que possibilitassem o aprofundamento da discussão em torno do papel das competências e das capacidades de linguagem na formação dos estudantes, especialmente quando é preciso evidenciar posicionamentos discursivos.

1 O caráter polissêmico e multifacetado da noção de competência e de capacidade

O termo competência, na área de linguagem, remete necessariamente aos trabalhos de Chomsky (1978), que durante muito tempo sofreu a oposição de pesquisadores que buscavam integrar perspectivas comunicativas e sociolinguísticas.

É certo que, para Chomsky, competência e performance estão associados a um falante-ouvinte ideal e aproximam-se dos conceitos saussureanos de langue e parole. Competência diz respeito ao conhecimento da língua (conhecimento homogêneo e internalizado) e performance, ao uso da língua (conhecimento historicamente construído), havendo, portanto, uma distinção entre a natureza da linguagem e as características da linguagem na vida real.

Na abordagem chomskyana, as competências são entendidas como estruturas linguísticas lógicas, baseadas em regras de

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transformação básicas, visando à expressão de significados. São inatas em cada indivíduo (considerado um falante-ouvinte ideal) que pertence a uma comunidade de fala totalmente homogênea e tornam-se independentes dos erros que por vezes são cometidos no cotidiano (âmbito da performance), pois estão ligadas aos princípios altamente abstratos e constitutivos da linguagem.

Nessa perspectiva, a competência é de natureza biológica, isto é, está inscrita no potencial genético do sujeito; é um conhecimento formal (puramente sintático), independente dos conhecimentos de ordem pragmática ou que estejam relacionados aos contextos; emerge por meio de um processo de maturação do sistema nervoso; aplica-se às frases e não concerne a atitudes relativas aos textos ou aos discursos. Assim sendo, a competência, entendida como gramática internalizada, representa um modelo linguístico-psicológico.

No entanto, os questionamentos de Dell Hymes, desde a década de 60, apontam que o termo competência, ao receber a qualificação de comunicativa, passa a incluir um conjunto inteiro de conhecimentos – linguísticos, psicolinguísticos, sociolinguísticos e pragmáticos – e as habilidades que os falantes devem desenvolver nas atividades sociais.

A tentativa de Dell Hymes era desenvolver uma linguística útil, ancorada na percepção de que os problemas teóricos e práticos deveriam convergir. Essa abordagem tornou diferente a aceitação do trabalho Chomsky, cuja gramática passou a representar apenas um dos modos de organização da língua, não o único nem o fundamental.

Ao longo das últimas décadas, uma corrente de psicólogos cognitivistas generalizou a noção de competência a atitudes ligadas ao sujeito em todos os seus domínios, gerando a compreensão de que todos os seres humanos podem possuir estruturas mentais ou esquemas que favoreçam o entendimento e a memorização de certos conhecimentos.

Agregam ainda ao conceito a participação dos sujeitos em comunidades linguísticas, o que estimula a aplicação de recursos da fala/escrita em meios sociocomunicativos.

Como não se quer esgotar o assunto, mas apenas aprofundar alguns elementos que possibilitarão construir o conceito que será aplicado neste artigo, foram reunidas oito concepções que indicam um caminho conceitual para o termo competência e permitem a integração dos resultados de pesquisas de diferentes disciplinas científicas.

Pensador ano Conceito de competência

Chomsky 1965 Concebe-a como sendo de natureza biológica e diz respeito ao conhecimento da língua (homogêneo, internalizado, inato), distinguindo-a de performance (uso da língua).

Dell Hymes

1984 Acrescenta o adjetivo comunicativa à noção de competência, para agregar o viés psicológico, social e pragmático, pois reconhece que os membros de uma comunidade linguística partilham um saber linguístico e sociolinguístico, posto que necessitam conjugar as normas gramaticais às normas de emprego.

Le Boterf

1995 Define-a como um saber-agir, isto é, um saber integrar, mobilizar e transferir um conjunto de recursos (conhecimentos, saberes, aptidões, raciocínios, etc.) em um contexto para encarar os diferentes problemas encontrados ou para realizar uma tarefa.

Perrenoud 1999 Entende-a como a possibilidade, de cada indivíduo, mobilizar, de maneira interiorizada, um conjunto integrado de recursos com vistas a resolver uma família de situações-problema.

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De Ketele

1999 Adota-a como um conjunto ordenado de capacidades (atividades) que são exercidas sobre os conteúdos em uma determinada categoria de situações para resolver problemas apresentados por estas.

Bronckart 1999 Entende-a como o conjunto de capacidades que são mobilizadas quando os saberes e o domínio da língua são colocados em ação.

Roegiers 2004 Define-a como um conjunto integrado de capacidades que permite – de maneira espontânea – apreender uma situação e responder a ela mais ou menos pertinentemente.

Charau-deau/ Maingue-neau

2004 Transportaram a noção de competência para o plano dos modelos disponíveis na sociedade, a competência discursiva liga-se às regras de formação do discurso na consciência individual, mas se mantém subordinada a uma consciência interdiscursiva.

Quadro 1 – Conceitos de competência Fonte: elaboração própria

Observa-se no quadro 1 uma evolução no conceito de competência desde o trabalho de Chomsky. Por um lado, Dell Hymes, Le Boterf e Perrenoud enfatizam os aspectos pragmáticos, pois estão preocupados com as condições de adequação dos recursos individuais às circunstâncias sociais e com a participação efetiva dos sujeitos na sociedade.

Baltar (2003, p. 16ss), ao analisar essas proposições, salienta o fato de as comunidades se distinguirem pelos modos de desenvolvimento do potencial inerente aos sistemas linguísticos, pois a língua é o que aqueles que a falam podem fazer de seu uso. As ocasiões e os objetivos de usá-la, assim como os sistemas de valores e de crenças, que são manifestos pela linguagem, promovem as

distinções e definem o papel fundamental que possui na vida de cada indivíduo. A maneira como os sujeitos se inserem nos ambientes discursivos, estabelecidos pelas instituições sociais, indica domínio no manejo dos diversos gêneros textuais e níveis de interação social.

Nessa dinâmica, os sujeitos colocam em uso modelos de conhecimentos implícitos – que respeitam uma lógica estruturada de organização dos conteúdos, cujas regras determinam a estrutura sequencial das proposições do texto (superestrutura) – e estabelecem um diálogo direto ou indireto com o(s) interlocutor(es) com quem se relacionam.

Por outro lado, as formulações de De Ketele, Bronckart, Roegiers e Charaudeau/Maingueneau introduzem o conceito de capacidade em associação ao de competência, gerando uma nova discussão.

Se a capacidade é o poder e a aptidão para fazer algo, é uma atividade que se exerce e que permite realizar inúmeras operações mentais. Considerando os estudos de Leontiev (1979), que trabalhou na perspectiva da teoria histórico-cultural da atividade, o homem não reage mecanicamente aos estímulos do meio, mas, pela ação, transforma os objetos e fenômenos do mundo circundante, assim como os sujeitos presentes na interação. Na relação do homem com a realidade objetiva, também transforma a si mesmo e gera formas de organização que interferem continuamente na sociedade, sendo o sujeito, portanto, ao mesmo tempo, produto da vida externa e criador de realidades.

Quando o homem realiza uma atividade, coordena inúmeros componentes (necessidades, objetivos, ações, operações), que estão interligados de maneira complexa, em um constante estado de transformação e mudança, por isso as capacidades podem se desenvolver continuamente e evoluir à medida que as ações são realizadas, tendo em vista as necessidades que as desencadeiam e/ou os objetivos estabelecidos.

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Para Meirieu (1998, p. 130), experimentalmente essas duas realidades, competências e capacidades, não são isoláveis, pois uma competência só pode se exprimir através de uma capacidade e uma capacidade jamais pode funcionar sobre o nada; podem apenas ser isoladas por uma operação artificial. Tal artifício, contudo, tem um mérito: “permite que o prático se sirva desses conceitos para esclarecer sua atividade, ordenar suas abordagens, definir o alvo de seus dispositivos, avaliar seus resultados...” Apesar disso, a consciência das singularidades entre os conceitos auxilia a definir os meios mais apropriados para desenvolvê-las.

Capacidade Competência

1. Desenvolve-se segundo o eixo do tempo

1. Desenvolve-se segundo o eixo das situações

2. Evolutiva com o tempo

2. Interrompida em determinado momento

3. Relacionada a um conjunto não limitativo de conteúdos

3. Relacionada a uma categoria determinada de situações

4. Atividade que pode ser realizada livremente

4. Atividade finalizada, que entra no âmbito de uma tarefa

5. Caráter integrador, não necessariamente presente

5. Mobilização de um conjunto integrado de recursos, especialmente de capacidades

6. Especialização possível, mas em termos sensoriais e cognitivos

6. Especialização em termos de qualidade da execução de uma tarefa (“desempenho”)

Quadro 2 – Comparação entre os conceitos de capacidade e de competência Fonte: Roegiers; De Ketele (2004, p.50)

A análise do quadro 2 indica que as capacidades possuem três características principais: podem transitar entre as disciplinas

escolares ou áreas de conhecimento (transversalidade), são desenvolvidas ao longo da vida (evolutividade) e interagem, ou seja, combinam-se entre si, gerando novas capacidades (transformação), sempre em situações que colocam as pessoas em relação (relações interpessoais e sociais).

As capacidades de linguagem estão estritamente ligadas às atividades humanas, isto é, às estruturas materiais e simbólicas que se orientam de acordo com determinadas finalidades individuais ou de grupo. Como as atividades são objetos das ações humanas que estruturam o agir e as representações de um ser singular, estabelecem modalidades e condições de participação diante das mais variadas situações.

As competências, por sua vez, apresentam quatro características comuns: 1) conhecimentos, saberes de experiências, esquemas, automatismos, capacidades, habilidades de diferentes tipos, etc. são interligados em um conjunto integrado (mobilização de recursos); 2) são inseparáveis da possibilidade de agir e cumprem funções sociais, mesmo que sejam identificadas apenas pelo sujeito da ação (caráter finalizado); 3) só podem ser compreendidas em referência às situações em que são exercidas (ligação a famílias de relações); 4) podem ser medidas na qualidade da execução de tarefas e na qualidade dos resultados (avaliabilidade)3.

As competências discursivas, em particular, assumem valores diferentes, segundo o sentido dado ao termo discurso, mas é evidente sua oposição ao conceito de competência linguística, introduzido por Chomsky. Apesar da diversidade, designam o domínio das regras de uso da língua nas diversas situações (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 101).

Na perspectiva da integração de aprendizagens, os conceitos, as aquisições, as

3 A síntese das características das competências foi adaptada da obra de ROEGIERS & DE KETELE, 2004, p. 35ss.

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modalidades de formação, os métodos pedagógicos, as disciplinas e as próprias aprendizagens, entre outros aspectos, precisam ser interligados, quando se quer dar sentido às aprendizagens e permitir que o sujeito estabeleça vínculos entre suas aquisições.

1.1 Conceito de competência com foco na análise de produções textuais

Apesar do caráter polissêmico e multifacetado, a noção de competência é entendida aqui como a capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, que se apoia em conhecimentos específicos, mas não se limita a eles. Como acaba revelando a capacidade de gestão de situações cotidianas, requer ações concretas que integrem saber, poder, várias habilidades e esquemas mentais de regulação.

Em um processo interativo, a dialogicidade contribui sobremaneira para o desenvolvimento de competências e das capacidades cognitivas, socioafetivas e gestuais. Entre as habilidades intelectuais, por exemplo, a compreensão é ampliada pelas discriminações/identificações múltiplas e pela classificação das informações; a aplicação, que pressupõe relações diversas entre sujeitos e também com objetos, vem a ser o procedimento principal para a transferência de aprendizagens e para a generalização de ideias; enquanto a síntese, que requer a seleção e vinculação de informações a conteúdos, agrega partes variadas (de diferentes fontes) com a finalidade de criar um novo todo e revela posições do sujeito, pois desencadeia uma nova comunicação.

Como a linguagem humana é uma produção interativa, que decorre das atividades sociais, estabiliza progressivamente os signos, transforma as representações dos organismos humanos e permite a organização de textos, que se diversificam em gêneros do discurso (BRONCKART, 1999, p. 34-35).

Os gêneros são ações sociodiscursivas

que permitem agir no mundo e dizer o mundo. Embora sejam relativamente estáveis, os gêneros se constituem em eventos textuais dinâmicos e plásticos. Surgem com base em necessidades e atividades socioculturais, incluindo a relação com inovações tecnológicas, por isso são infinitos (existem tantos gêneros quanto as ações sociais humanas forem capazes de forjar) e estão integrados à vida cotidiana das pessoas. São determinados pela esfera de circulação, pelas necessidades temáticas, pelas interações do conjunto de participantes e pela vontade enunciativa do locutor. “É por meio dos gêneros que as práticas de linguagem encarnam-se nas atividades dos aprendizes” (SCHNEUWLY; DOLZ, 1999, p. 6).

Diante dessas reflexões, será assumido o seguinte conceito de competência discursiva:

• refere-se à possibilidade de adoção de posições enunciativas que refletem lugares sociais ocupados pelo sujeito (eixo das situações);

• por ser uma atividade linguageira, reúne diversas capacidades de

linguagem (de ação, discursiva, linguísticas, argumentativas...), relacionadas ao que é necessário saber e fazer na compreensão e produção de textos (evolução no eixo do tempo);

• em uma perspectiva bakhtiniana, associa-se às capacidades que dizem respeito a estruturas materiais e simbólicas, orientadas para finalidades

enunciativas e estabelecidas pelo sujeito em uma relação dialógica4

4 Na relação dialógica, o diálogo é entendido como uma relação entre os elementos constituintes e inseparáveis da interação, o que não se restringe em considerar quem são as pessoas envolvidas, mas tudo que configura a relação (as falas em si, para quem e para quê, incluindo, portanto, expectativas e valores que norteiam a ação simbólica). Ao considerar os motivos, explícitos ou não, conscientes ou não, das trocas verbais, percebe-se que o conteúdo da conversa é consensuado, dissensuado ou concluído na medida em que as ressignificações, praticadas pelos atores,

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(integração do eixo das situações ao eixo do tempo).

Os gêneros surgem e integram-se

funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem, caracterizam-se por suas funções comunicativas e cognitivas, além de possuírem peculiaridades linguísticas e institucionais. Como são elaborados por um determinado grupo social em certo momento histórico, investigar as competências discursivas é explicitar as capacidades de linguagem, que possibilitam a adaptação do sujeito a situações específicas de uso.

Quando o sujeito discursivo é capaz de acionar adequadamente os mecanismos requeridos pelas situações, que se diferenciam pelo grau de complexidade, revela competências que derivam do equilíbrio das estruturas cognitivas, obtido por meio dos processos de acomodação e assimilação na interação com o meio; das relações de um enunciado singular com outros, produzidos ao longo da história; das posições do sujeito que definem os lugares discursivos ocupados dentro do jogo interacional; do material recolhido na cultura pela memória social inscrita nas práticas; do manejo de conhecimentos e saberes que são construídos socialmente, entre outros aspectos.

são realizadas ao longo do processo interativo. Isso indica que o significado do diálogo supera o que foi dito e entendido no âmbito individual e no momento da enunciação, tornando o diálogo uma ação supra-individual, cujas relações espaço-temporais estão para além do aqui e agora (BAKHTIN, 1997).

Figura 1 – Características do sujeito discursivo Fonte: elaboração própria

O exercício de escrita, mesmo quando

submetido à condição de avaliação, evidencia como o sujeito elabora respostas, no sentido bakhtiniano5, às circunstâncias envolvidas na situação de produção. Por estar mergulhado na experiência de mundo, o sujeito mobiliza os mecanismos discursivos de modo a construir sentidos e significar-se.

2 Análise de texto

Ao tomar mais de duas mil escritas, produzidas em todo território nacional, durante o ENEM6 de 2004, adotou-se a autoria como a capacidade de escolher e ocupar diferentes lugares sociais em um espaço discursivo e histórico. Diante da problematização

5 Para Bakhtin (2010, p. 44), “cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular (postupok) responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir”. 6 O ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio - foi criado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em 1998, para avaliar o desempenho dos jovens ao término da escolaridade básica. Aplicado anualmente aos alunos concluintes e aos egressos do Ensino Médio, desde a primeira edição, o exame é organizado a partir de uma Matriz de Referência baseada em competências e habilidades.

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apresentada pela proposta de escrita7, o sujeito tem a oportunidade de revelar suas posições discursivas, ao estabelecer diálogos com o outro e com a vida. Embora seu modo de agir esteja cerceado pela situação de exame, o que submete a linguagem a novas regras e coerções (para a realização da tarefa e para o tratamento dos temas, quanto aos critérios de correção e à posição dos examinadores, etc.), os enunciados produzidos pelos sujeitos é uma resposta às condições postas (BAKHTIN, 2003), revelando como os autores concretizam suas posições.

A prova do ENEM sempre requer uma resposta a situações-problema (identificadas na sociedade brasileira). Diante disso, o sujeito realiza um exercício reflexivo no qual necessita mobilizar seus recursos variados e tomar decisões. Na produção textual de um texto dissertativo-argumentativo acerca de um tema proposto, os sujeitos são orientados a utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo dos estudos na educação básica, para selecionar, organizar e relacionar argumentos, fatos e opiniões com a intenção de defender o próprio ponto de vista e suas propostas de intervenção na realidade. As orientações oferecidas aos participantes indicam que os sujeitos devem mobilizar esquemas cognitivos, desejos e paixões (se querem provocar a adesão do outro), elaborar argumentos, selecionar elementos linguísticos adequados, entre outras atividades, para que consigam assumir os lugares discursivos e tomar decisões.

Os aspectos destacados até aqui motivam considerar a produção solicitada pelo ENEM

7 Em 2004, os sujeitos deveriam desenvolver o tema Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação? Para tanto, foram oferecidos os seguintes materiais de apoio: uma charge de Caco Galhardo (2001); um fragmento do texto de Eugênio Bucci (2000) Sobre ética e imprensa; um trecho retirado do site eticanatv, publicado no mesmo ano; outro fragmento adaptado de um material produzido pelo Observatório da Imprensa e os incisos do Artigo 5º da Constituição Federal de 1998.

um texto de opinião, entendido como um gênero escolar8. Por ser um gênero que favorece o desenvolvimento de diferentes capacidades, estimula o sujeito a colocar-se discursivamente como autor, a construir imagens relativas aos interlocutores, a considerar o lugar institucional e o momento social de onde se enuncia, entre outras possibilidades.

O texto de opinião solicita a discussão de um assunto em destaque na sociedade, a exploração de um tema cotidiano e a afirmação de um posicionamento enunciativo implicado na situação de produção. Por meio da discussão sobre as modalidades de construção de pontos de vista e do aprimoramento de recursos linguísticos, expressivos e estilísticos, sem os quais o texto perde muito de seu poder de persuasão, o enunciador necessita estabelecer relações que interfiram na constituição dos textos. É certo que esse gênero aproxima-se muito de um artigo de opinião e da coluna política, mas não é necessariamente escrito por profissionais do jornalismo.

O objetivo de persuadir o outro às posições apresentadas, inerente a toda argumentação, orienta as escolhas do sujeito em função dos efeitos de sentido que quer produzir pelo discurso. Na perspectiva dialógica e histórico-cultural, a capacidade argumentativa é desenvolvida por meio do processo de negociação e de sustentação. Na negociação, ocorre o jogo entre perspectivas contrárias, revelando as vozes que constituem o fenômeno dialógico; a revisão e até a transformação de concepções individuais e o exercício da

8 Conferir SCHNEUWLY; DOLZ (1999) e um estudo que aprofunda as características do texto de opinião como gênero escolar em: AZEVEDO; REMENCHE. A produção de textos de opinião como recurso para o desenvolvimento de capacidades socioculturais e sociocognitivas. Disponível em:<http://www.cchla.ufrn.br/ visiget/pgs/pt/anais/Artigos/Isabel%20Cristina%20Michelan%20de%20Azevedo%20(ABEC)%20e%20Maria%20de%20Lourdes%20Rossi%20Remenche%20(ABEC).pdf>. Acesso em: 20 jan. 2013.

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AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de. Desenvolvimento de competências e capacidades de linguagem por meio da escrita de textos de opinião. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 35-47, jun.2013.

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autorregulação do pensamento. Concomitantemente, a sustentação – entendida como atividade social que se realiza por meio da justificativa de pontos de vista – mobiliza operações específicas de raciocínio, acontece em uma sequência das fases teóricas e empiricamente distinguíveis, estimula respostas às possíveis críticas e solicita a previsão de perspectivas alternativas aos posicionamentos apresentados.

Entre 249 redações, que constituíram o corpus de pesquisa do doutorado, optou-se por eleger um texto que permitisse identificar as diferentes capacidades, como se vê a seguir, que podem ser desenvolvidas por meio dos processos de negociação e sustentação.

• Articular conhecimentos9 construídos ao longo do tempo e pontos de vista variados;

• Participar de um jogo interacional, reunindo elementos que marcam as posições enunciativas adotadas;

• Assumir a natureza polifônica da atividade discursiva;

• Dar “respostas” ao outro que está implicado na argumentação;

• Apropriar-se da estrutura argumentativa, composta por quatro fases básicas (tese, justificação, contra-argumentação, conclusão).

Na construção do discurso, o pleno

exercício da argumentação inter-relaciona os sujeitos, evidencia o domínio de recursos linguísticos e as coerções decorrentes das condições de produção do discurso (que poderão exigir elaborações bastante complexas), por isso o sujeito precisará colocar a materialidade linguística em movimento e produzir efeitos de sentido pelo

9 Os destaques (variados: negritos, sublinhos, sombreados, etc.) colocados nas palavras são utilizados no Anexo 1 para indicar os trechos que evidenciam os recursos utilizados pelo sujeito discursivo na construção do texto.

discurso, como pode ser visto na análise a seguir.

Figura 2 – Texto produzido para ENEM/2004 Fonte: INEP Nota: ver Anexo (texto na íntegra)

O título Educando para mudar o final

do filme gera no leitor curiosidade acerca de qual filme se trata, além de quebrar a expectativa de encontrar um título que remeta imediatamente ao tema da ação dos meios de comunicação na sociedade.

O assunto é contextualizado por meio de informações que não foram oferecidas diretamente no conjunto de textos de referência na prova, mas que foram acionadas pelo estudante, considerando suas experiências no mundo.

Ao posicionar-se como alguém

competente, o enunciador esforça-se em interpretar as variáveis implicadas na discussão acerca do papel da mídia na sociedade, recortando os fatos mais pertinentes para os objetivos estabelecidos na tese. São exemplos desse esforço a crítica aos abusos evidenciados na televisão, especialmente quando integram programas formatados para disseminar uma certa maneira de ver os fatos (linhas 17-19) e quando estão direcionados a

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expectadores com formação insuficiente para percebê-los (linhas 8-11). Esses recursos servem de justificativas para as posições assumidas na tese (1º parágrafo) e recuperadas na conclusão (1º parágrafo).

No final do primeiro parágrafo, o leitor entende a referência a um filme no título, porque o enunciador faz uma avaliação relativa ao abuso evidenciado nos meios de comunicação, constituindo uma resposta irônica ao problema apresentado pelo exame (linhas 4 e 5).

Diferentes tipos de conhecimentos são articulados ao longo do texto, como na comparação da liberdade de imprensa no período da ditadura e nos tempos atuais (linhas 12-19), utilizada com o objetivo de justificar a necessidade de controle da informação.

Por meio de aspas (linhas 18 e 28), por exemplo, o enunciador critica expressões identificadas em discursos alheios (em outras vozes), concretizando enunciados irônicos (portanto, polifônicos). Evidencia-se, em diferentes partes, o esforço em confrontar realidades diferentes para avaliar uma em relação à outra e defender seu ponto de vista.

O sujeito posiciona-se claramente contra os abusos praticados pela imprensa, apontando situações sociais consideradas equivocadas (linhas 17-28, 23-24). As marcas dessa posição podem ser percebidas na própria seleção situacional e lexical.

Embora não saibamos de quais processos de ensino-aprendizagem o sujeito-autor participou ao longo de sua formação, nessa breve análise percebe-se que o participante do ENEM é capaz de apresentar suas opiniões, argumentos, percepções, etc., indicando as condições que possui para concretizar leituras (mesmo que provisórias) das situações sociais e gestos de interpretação que evidenciam os diálogos estabelecidos pelos sujeitos dentro da cadeia infinita de enunciados na qual estão inseridos (BAKHTIN, 2010; TFOUNI & ASSOLINI, 2008).

Considerações finais

Como todo enunciado é uma resposta ao que já foi dito, percebe-se que o sujeito discursivo concretiza posições, modos de ser no mundo, mobiliza diferentes vozes, associa-se a estereótipos, entre outras possibilidades, evidenciando intenções e razões para as escolhas realizadas. O autor ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos desse acontecimento e por isso a sua obra também é um momento desse acontecimento (BAKHTIN, 2003, p. 175-176).

Diante disso, entende-se a produção textual como um dispositivo legítimo de questionamento do outro e afirmação de concepções, sobretudo quando direcionada à escrita de textos argumentativos, cujas características composicionais necessariamente exigirão estabelecer um processo de negociação que lida com os jogos de verdade e coloca à prova o si mesmo e o outro, o passado e o presente.

Como, ao longo da vida, o sujeito pode desenvolver competências e capacidades discursivas distintas, entre as quais se encontram as capacidades argumentativas, as práticas de produção de texto precisam favorecer espaço de reflexão, de conflito, de crítica e de modificação cognitiva, enfim espaço para múltiplas interações, mas isso requer novas estratégias de ensino-aprendizagem.

Além disso, na perspectiva de uma pedagogia de integração (ROGIERS & DE KETELE, 2004, p. 149-150), mesmo a situação de avaliação de competências pode favorecer a orientação, a regulação e a certificação das aprendizagens, desde que estejam claros os critérios para ação do sujeito-autor.

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LEONTIEV, Alexei. N. The problem of activity in psychology. In: WERTSCH, J. V. (Ed.). The concept of activity in Soviet psychology. New York: M. E. Sharpe, 1979, p. 37-71. Disponível em: <http://people.ucsc.edu/~gwells/Files/Courses_Folder/documents/ LeontievProblemofactivity.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2013. MACEDO, Lino. Esquemas de ação ou operações valorizadas na matriz ou prova do ENEM. In: Ministério da Educação. Eixos Cognitivos do Enem. Brasília: Inep/MEC, 2007. MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Trad. de Vanise Dresch. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. PERRENOUD, Philippe. Construir competências é virar as costas aos saberes? Pátio. Porto Alegre: Artes Médicas, ano 3, n. 11, nov. 1999/jan. 2000. ______. Construir as competências desde a escola. Trad. de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1999b. PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. Trad. Celia E. A. di Piero. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1973. ROEGIERS, Xavier; DE KETELE, Jean-Maire. Uma pedagogia da integração – Competências e aquisições no ensino. 2. ed. Trad. Carolina Huang. Porto Alegre: Artmed, 2004 [2001]. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação. n. 11, p. 5-16, maio/jun/jul/ag., 1999. SILVA, Monica R. Currículo e competências: a formação administrada. São Paulo: Cortez, 2008. TFOUNI, Leda. V.; ASSOLINI, Filomena. E. P. Interpretação, Autoria e prática pedagógica escolar. Odisséia (UFRN), v. 1, p. 1, 2008.

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Anexo – Texto produzido para ENEM/2004

Educando para mudar o final do filme

1 Meios de comunicação, trata-se das diversas maneiras que o homem utiliza para trocar informações. 2 Na aldeia global que é o século XXI os meios de comunicações são postos em evidência, à medida que a 3 expansão de mercados e a idéia de mundo globalizado fez crescer a necessidade de utilização dos veículos 4 informacionais. Não é diferente no Brasil onde a televisão torna-se o protagonista dessa trama traba- 5 lhando em um grande filme nacional chamado “Abuso do poder moderno”. 6 No Brasil a liberdade de expressão artística e o fim da censura, resultados de muita luta contra 7 um governo ditatorial e bárbaro, são direitos protegidos por lei. Presentes na constituição de 1988, 8 esses direitos vem sendo utilizados como uma importante arma pela imprensa, que além de apresentar 9 um lado positivo informacional de total necessidade para o país, aproveita desse benefício para também 10 mostrar conteúdos maliciosos, para um povo ainda subdesenvolvido de educação precária com obje- 11 tivo de alienar cada vez mais um povo já alienado. 12 Em décadas passadas, o Brasil passou por um modelo de governo muito cruel, a de Ditadu- 13 ra. Nesses tempos o Estado tinha total controle sobre a imprensa e os meios de comunicação e o 14 direito ao Hábeas Corpus fora suspendido, esse dentre outros fatores tornou o período alvo de 15 inúmeros conflitos. Naquela época a população encontrava-se em sua maior parte engajada e total- 16 mente a par da situação. Diferentemente de hoje em que a nossa nação passa por sérios problemas e 17 a mídia ao invés de honrar a árdua vitória do fim da censura, acaba sendo a grande responsável pela 18 alienação do povo, passando programas totalmente “industrializados” com pouca ou sem nenhum 19 fim social. 20 Portanto, enquanto muitos criticam um dos atuais projetos de nosso excelentíssimo tratar presidente 21 Lula que pretende de uma forma geral censurar um pouco mais a mídia, deveríamos pensar que mesmo 22 não sento tão positiva e progressista o projeto pode se mesmo que de forma infeliz de uma primeira 23 tentativa de amenizar o abuso de poder dos meios de comunicação. De forma alguma o direito a liberdade 24 de informação deve se atingido, o principal problema aliás a base de todos os problemas de nosso povo 25 está na educação. Só educando a população e dando condições dignas para sua criação a sociedade 26 brasileira irá aprender a filtrar o necessário das informações recebidas, só educando a população 27 poderemos por um fim bem interessante para o “abuso de poder moderno” em que o protagonista 28 perca toda sua força para o seu “vilão” o povo.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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ADAPTAÇÕES MUSICAIS E DESLOCAMENTOS: UM EXERCÍCIO DE

ANÁLISE DO DISCURSO EM DIÁLOGO COM MICHEL FOUCAULT

Lucas Martins Gama Khalili

Resumo: Este artigo objetiva desenvolver um estudo acerca de um fenômeno cultural em particular: a regravação nacional (em português) de canções cantadas em inglês. Para isso, analisaremos a canção Salve o nosso amor, do grupo Mulheres Perdidas, em contraponto com a canção que lhe serviu de base melódica, I remember you, do grupo norte-americano Skid Row. Além de analisar as duas canções, principalmente suas letras, propõe-se uma reflexão sobre a rede de enunciados que constitui os entornos dessas canções (com destaque para a recepção desse tipo de produto cultural). Defendemos que a atribuição qualitativa é determinada por aspectos da exterioridade e não meramente por uma “realidade” estética intrínseca de cada canção. Tal abordagem será realizada a partir da perspectiva teórica da Análise do Discurso francesa, mobilizando, sobretudo, estudos desenvolvidos por Michel Pêcheux e Michel Foucault, a partir dos quais serão discutidos os deslocamentos estilísticos e qualitativos atestados por dadas formações discursivas na recepção das canções. Palavras-chave: Discurso. Música. Linguagem. Brega. Abstract: This article aims to develop a study about a cultural phenomenon in particular: national rewriting (in Portuguese) of songs sung in English. For this, we will analyze the song Salve o nosso amor, by Mulheres Perdidas, in contrast with the song that served as a melodic base, I remember you, by the North American band Skid Row. Besides analyzing the two songs, especially their lyrics, it is proposed a reflection on the network of enunciation that constitutes the background of these songs (principally the reception of this kind of cultural product). We believe that the qualitative attribution is determined by aspects of exteriority and not merely by some intrinsic aesthetic “reality” of each song. This approach will consider the theoretical perspective of French Discourse Analysis, mobilizing especially studies by Michel Foucault and Michel Pêcheux; then we will discuss the stylistics and qualitative displacements attested by certain discursive formations in the reception of these songs. Keywords: Discourse. Music. Language. Brega.

i Mestrando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil, e Bolsista CAPES.

E-mail: [email protected].

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Introdução

Quando uma música – suficientemente conhecida por parte de um público determinado – é regravada por outro artista, podem ser observadas, na rede de enunciados gerada a partir desse acontecimento discursivo, relações que exprimem deslocamentos, tanto qualitativos, quanto concernentes às diversas categorizações estilísticas existentes no âmbito musical. Uma das facetas desse fenômeno tornou-se bastante comum na música brasileira contemporânea: trata-se da regravação de músicas internacionais, geralmente anglófonas, com letras em português, não se importando, na maioria dos casos, com a tradução das canções que lhe serviram de base melódica. Tendo em vista a recorrência de tal produção cultural, o corpus escolhido para a presente análise é constituído pela canção I remember you, da banda Skid Row, e por sua versão brasileira, Salve o nosso amor, da banda Mulheres Perdidas. Tal canção pode ser considerada uma versão por conservar basicamente a estrutura melódica de I remember you, embora as letras sejam diferentes. Em conjunção com as materialidades que constituem as produções musicais citadas, analisaremos também enunciados efetivamente produzidos sobre as duas canções, principalmente os que dizem respeito a questões como classificação estilística e valoração qualitativa. Acreditamos, com base em Foucault (2000a, p. 112), que “um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados”. Isso significa dizer que a singular produção de um enunciado reatualiza diversos enunciados outros, deslocando seus sentidos. Decorre desse embasamento a necessidade de recorrermos não apenas ao que é dito nas canções, mas também aos dizeres sobre as canções.

Na rede enunciativa que cerca tais produtos culturais, identifica-se, com recorrência, um deslocamento relativo a estilos e gêneros musicais. O grupo Skid Row é

geralmente classificado nos meios midiáticos como rock, hard rock ou glam rock, enquanto o grupo Mulheres Perdidas é geralmente classificado como forró, tecnobrega ou brega. Esse tipo de classificação é endossado tanto por obras de cunho enciclopédico (como Almanaque do rock, da Editora Ediouro, por exemplo), quanto por práticas que, quase desapercebidamente, figuram no cotidiano (placas indicativas de gênero musical em uma loja de CDs podem ser tomadas como exemplo). Que relações, entretanto, podem ser descritas considerando-se essas canções como objetos discursivos, cujos entornos são constituídos por vontades de verdades, representações imaginárias e relações identitárias? É com base na Análise do Discurso de linha francesa, sobretudo a partir de formulações teóricas de Michel Pêcheux e Michel Foucault, que objetivamos refletir sobre tais questionamentos. Como hipótese, supomos que a atribuição qualitativo-estilística relativa à circulação das canções em questão não parte estritamente de um essencialismo ligado a aspectos líricos e musicais intrínsecos. Tal atribuição é fundamentalmente determinada pelos pré-construídos – “o sempre-já-aí da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu sentido” (p.164), conforme Pêcheux (1997) – constituintes da rede enunciativa acerca desses produtos culturais.

É necessário salientar que o conceito de “rock” é geralmente associado à definição de um gênero musical, delimitando-se, por exemplo, pela regular utilização de determinada instrumentação e por determinados aspectos rítmicos. O conceito de “brega”, por sua vez, aproxima-se mais constantemente da noção de estilo, tendo em vista que é constituído por posturas, de certa forma, um pouco mais individualizadas, atravessando eventualmente diversos outros gêneros musicais, como o forró e o sertanejo. Entretanto, no contexto de emergência das versões brasileiras de canções anglófonas, os

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termos “brega” e “rock” frequentemente se antagonizam. Sendo assim, um dos nossos objetivos principais é refletir sobre tais conceitos como operadores classificatórios no âmbito musical, sem afirmar necessariamente uma relação paradigmática absoluta.

O que geralmente se entende por dada espécie de música de “baixa qualidade” – constituída por clichês românticos, falta de “originalidade” na linguagem e exageros sentimentais – costuma aproximar-se da noção de “brega” como estilo musical definido fundamentalmente pela parte lírica, mas também por conter uma estrutura melódica considerada simplória. Tendo em vista tal construção discursiva de “brega”, sustentada por enunciados que serão explicitados neste trabalho, propõe-se relacionar determinadas características da canção Salve o nosso amor com elementos presentes na canção I remember you, objetivando demonstrar que a aplicação de conceitos classificatórios no âmbito musical, sobretudo na recepção das canções, não perpassa apenas caracteres líricos, estilísticos e sonoros, mas funda-se essencialmente em um funcionamento discursivo que é determinado por posicionamentos de sujeito envolvidos.

1 A acepção das duas canções como acontecimentos discursivos

Quando se propõe analisar dois objetos em relação a uma construção conceitual marcada social e historicamente, como a de “brega”, é necessário situar tais objetos na esfera de acontecimentos discursivos, como domínios que propiciam a geração de enunciados e a constituição de embates no interdiscurso. Tal perspectiva de análise permite que seja estudado “o ponto de encontro de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2002, p. 17). Em relação ao corpus em questão, não basta conferir uma existência onipresente às duas canções, mas, a partir de um acontecimento discursivo que

transforma tais objetos em elementos dados a ver, discorrer sobre a rede de enunciados e pré-construídos (acerca do fazer artístico, do “modo elevado” de se usar a linguagem em uma canção, da concepção de música “brega”, dentre outros), que é suscitada, conjuntando, assim, um domínio de atualidade e um domínio de memória. Do mesmo modo que as letras das músicas possibilitarão relações com dada noção de “brega”, os enunciados que emergem na recepção das canções também explicitam a difusão de vontades de verdades em um âmbito mais generalizante.

Escolheu-se, diante do exposto, analisar enunciados decorrentes de duas aparições específicas das canções. Para a canção da banda Skid Row, consideraremos enunciados observados em uma publicação do videoclipe da canção no site de compartilhamento de vídeos Youtube. Tendo em vista que a relação com a versão sugere mais densamente a circulação dos discursos em uma esfera nacional, a publicação escolhida para a análise não contém somente o videoclipe, mas também legendas em português, fator que cativaria o interesse de um público mais restrito, público que teria mais possibilidade de deparar com a circulação do outro produto cultural em questão, a versão Salve o nosso amor. Para a análise da canção de Mulheres Perdidas, parte-se de uma publicação da canção em uma rede social da Internet, o Orkut, em janeiro de 2007. O elemento peculiar dessa publicação é o fato de ela ser postada em uma comunidade de usuários intitulada I Remember You – Skid Row, constituída, pode-se dizer, por fãs da canção anglófona, o que geraria diversos tipos de comparações. Dessa forma, não se coloca em questão apenas o fato de as duas canções existirem e serem apontadas em comparações a partir de suas análogas estruturas melódicas. É importante, sobretudo, observar como tais produtos culturais circulam, em que espaços, e sob o crivo de quais sujeitos elas passam a produzir efeitos de sentido. Fala-se em efeitos

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de sentido, pois defendemos que os sentidos são determinados “pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas” (PÊCHEUX, 1997, p. 190), isto é, eles não circulam como significados universais pré-estabelecidos frente à materialidade significante.

O Youtube, além de oferecer o serviço de compartilhamento de vídeos, permite que os usuários cadastrados comentem, na página do vídeo, o que é postado. A canção em análise, cujo videoclipe legendado tem postagem datada de maio de 2008 – quase vinte anos após o lançamento da música em LP, em 1989 –, incitou a emergência de diversos enunciados; citamos abaixo alguns deles, escolhidos por fazerem referência não só ao aspecto qualitativo, mas também, e principalmente, à atribuição estilística:

Comentário 1: Cara!!! Que saudade quando as musicas eram boas e o verdadeiro rock predominava!!!!

Comentário 2: Viva os bons tempos do hard rock: poison, withesnake, guns'n roses, bon jovi, kiss, Van Hallen e... Skid Row.

Comentário 3: Musica perfeita, como eu queria que o Rock bom voltasse :/

Comentário 4: Está de parabéns,essa música ficou maravilhosa,skid row é uma das melhores bandas de rock n´roll de todos os tempos!!!!!!!!!!1

Quando os comentários acima fazem referência ao gênero musical rock, são observadas quatro formulações distintas, mas que convergem quanto a um determinado posicionamento discursivo sobre um tipo de música e sua qualificação. Tais operadores classificatórios são expressos da seguinte forma, na ordem em que aparecem: verdadeiro rock, hard rock, Rock bom e rock’n’roll,

1 Em citações retiradas da Internet, a grafia foi preservada, assim como alguns aspectos relacionados à pontuação e ao espaçamento.

termos claramente ligados pela palavra rock. Complementarmente, destacam-se também os adjetivos utilizados no primeiro e terceiro termos pelo fato de eles suscitarem juízos de valor acerca desse gênero musical, como se houvesse desdobramentos identificáveis em uma perspectiva qualitativa. Se existem um verdadeiro rock e um Rock bom, é porque o enunciador defende, do mesmo modo, a existência de determinadas instâncias conflitantes no âmbito do fazer artístico-musical. O processo de identificação sempre pressupõe a diferença, conforme argumenta Silva (2011, p.82): “dizer “o que somos” significa também dizer “o que não somos”. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído”. Mesmo sem fazer referência direta ao outro, a nostalgia relativa aos “bons tempos do rock” alude a determinado posicionamento sobre a música que não se constitui como tal.

Nos enunciados supracitados, os sujeitos discursivos recorrem a diversas estratégias para caracterizar particularidades o conceito de “rock”. Enquanto os comentários 1, 3 e 4 recorrem a um saudosismo que provoca a impressão de um estilo “perdido”, cuja real apreciação remonta a um tempo em que houve habilidade por parte de dados artistas para produzir tal tipo de música; o comentário 2 procura, utilizando outra estratégia, validar a inserção da canção e do artista a um gênero musical por meio do apontamento de artistas considerados similares, recorrendo a um processo de identificação. Vale ressaltar que ambas as estratégias utilizadas exploram significativamente mecanismos de diferenciação. Tais mecanismos procuram alcançar certa coerência dentro de um sistema classificatório, tendo em vista que o termo rock, no campo discursivo musical, reúne aspectos de sentido quando relacionado com outros gêneros e estilos, inclusive por meio do não-dito. Na perspectiva do sujeito que

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enuncia a partir de uma identidade relacionada ao rock, esse outro musical é aquilo que desvia qualitativamente, afinal, a situação idealizada nos enunciados clama pelos bons tempos, quando, supostamente, as músicas eram boas. No comentário 3, por exemplo, o uso dos verbos queria e voltasse, exprimindo um passado impreciso e por ora inalcançável, reforça as ideias de saudosismo e de falta.

Não há referências explícitas a outros operadores classificatórios musicais; entretanto, pode-se afirmar que é instaurado um processo de constituição de determinado status para o gênero rock, tomado como objeto de conhecimento. Configura-se uma posição privilegiada para tal gênero, qualitativamente falando, mas essa posição no campo discursivo musical só é validada a partir de determinadas condições de produção de discursos, como, para citar o exemplo utilizado, o espaço virtual da publicação de um videoclipe direcionado para os fãs brasileiros da banda Skid Row e/ou de sua música de maior sucesso.

Voltando-se agora para uma específica publicação virtual da música Salve o nosso amor, é imperativo que se analise o espaço em que emerge tal acontecimento. O Orkut, uma das redes sociais da Internet, possui uma ferramenta, denominada “comunidade”, que reúne usuários a partir de interesses em comum. Dentro das comunidades, os usuários da rede social podem, dentre outras coisas, realizar debates e postar comentários sobre os temas afins. A ocorrência da canção Salve o nosso amor escolhida para análise, como já foi explicitado, está publicada em um fórum da comunidade intitulada I Remember You – Skid Row. Vale salientar que a referência feita à canção ocorre apenas pela transcrição de parte de sua letra, não apresentando nenhum link direcionado à audição da música. Primeiramente, é preciso pensar sobre os sujeitos, que, inscritos em dados posicionamentos, são incitados a agruparem-se em comunidade sobre tal tema. Se relacionarmos a publicação em questão com o

videoclipe já analisado, pode-se aferir a provável presença de perfis subjetivos que autoafirmem “fãs de rock” como aspecto identitário fundamental.

O título da postagem, “versão forró”, já previne um deslocamento quanto ao gênero musical. Os sujeitos que se posicionarão sobre o tema entram em contato com uma rede de enunciados anteriores e exteriores a sua avaliação. No interior dessa rede, considerando-se a atuação, nesse espaço, de sujeitos constituídos por dada identidade, são postas em cena relações do tipo: o que pensam os fãs de rock a respeito do gênero forró, o que leva os usuários da comunidade a classificarem a canção anglófona como rock e, por último, que efeitos de sentido são gerados quando se afirma o deslocamento de rock para forró. É nesse ponto que o lugar (comunidade voltada para os fãs de uma banda de rock) que dá suporte a essa publicação contribui de forma mais intensa para a produção de efeitos de sentido. Os enunciados que aparecem nessa comunidade da rede social citada não apareceriam da mesma forma se a canção, como um acontecimento discursivo, emergisse em outros espaços, como uma apresentação musical do grupo Mulheres Perdidas, hipoteticamente direcionada a apreciadores de seu estilo, ou outra comunidade na mesma rede social, porém direcionada a fãs de forró. Conforme explica Pêcheux (2002, p. 44):

O princípio dessas leituras consiste, como se sabe, em multiplicar as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim de se colocar em posição de “entender” a presença de não-ditos no interior do que é dito (PÊCHEUX, 2002, p. 44).

Considerando-se um mesmo objeto e seu possível aparecimento em diversos espaços discursivos, torna-se necessário não apenas afirmar a multiplicidade de efeitos de sentido, mas descrever o seu funcionamento de acordo com as especificidades engendradas por tais espaços. Na análise dos enunciados que serão

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evidenciados a seguir, levar-se-á em conta o posicionamento dos sujeitos no interior do campo discursivo musical. Quando se fala em identidades relativas a estilos ou gêneros musicais, é comum uma tensão protagonizada pelo rock: a partir de determinados posicionamentos, vê-se tal gênero como algo barulhento, sem sentido, sem “musicalidade”; por outro lado, dadas construções identitárias concebem o rock de forma quase idolátrica, assimilando-o como música suprema, tanto é que, dentre os variados tipos do estereótipo de rockeiro, alguns grupos são facilmente reconhecidos pela vestimenta ou por sinais regularmente utilizados, elevando o gosto musical a outras esferas do comportamento simbólico. Essa enredada relação que envolve o rock pode ser um dos fatores que faz com que o processo de identificação/diferenciação entre os enunciadores que se posicionam a favor do rock seja tão sublinhado e intenso, sobretudo no domínio da diferença.

Da publicação já anunciada – aparecimento da versão Salve o nosso amor em uma comunidade virtual –, recorta-se, aqui, alguns fragmentos, cada um deles produzido por usuários diferentes, mas inscritos em posicionamentos discursivos que se constituem com certa convergência:

Comentário 1 (abertura do tópico no fórum): Uma das coisas mais toscas que já vi. Observem a complexidade da letra: não vou te esquecer/ não vou te perder/agora pense/salve o nosso amor.

Comentário 2: Essa foi só mais uma vitima do mal gosto brasileiro junto com In a Dankned Room, Wind of change, Signs of the times, Your love e outros classicos do rock q foram estragados por esses "artistas" populares.

Comentário 3: La vai brasileiro fazer o que sabe de melhor, cagar nos clássicos... deplorável.

O primeiro enunciador, ao transcrever o refrão da música, incita uma discussão acerca

da qualidade da versão, comparando-a, consequentemente, ao tema da comunidade virtual, a música I remember you. A segunda frase utilizada no trecho – Observem a complexidade da letra –, dúbia em sua acepção primeira (já que o enunciador poderia evidenciar o termo complexidade com objetivo de afirmá-lo ou negá-lo), adquire um efeito de sentido mais validado quando relacionado ao adjetivo já utilizado anteriormente, tosco. O que parecia ser ambíguo no discurso desse enunciador, a suposta introdução de um convite à análise, transforma-se em uma ironia anunciada e quase que já compartilhada entre os demais membros da comunidade, tendo em vista a proximidade que o enunciatário se vê invocado na forma verbal observem. Esses enunciados presentes no primeiro comentário relacionam-se com uma anterioridade (o que se pensa de complexidade em música; por que a consideração da versão como algo “tosco”, dentre outros fatores), mas também com os enunciados que vão ser produzidos, já que a publicação propõe-se como um motivo, um ponto de partida para a atestação de verdades, pois, considerando-se o fato de a comunidade estar voltada para fãs do gênero rock, compartilham-se algumas das representações imaginárias pré-construídas sobre outros gêneros musicais existentes.

Os comentários 2 e 3 atestam com veemência um “desvio” de qualidade, relacionando-o com um fator que levanta a questão da construção de representações identitárias nacionais. No âmbito da criação artístico-musical, supõe-se que o brasileiro que se aventura na regravação de música estrangeira fatalmente está destinado a falhar em seu objetivo de fazer uma boa música, condição que é ainda mais ressaltada se houver identificação com noções tais como forró ou “brega”. A vitimização da canção supostamente estragada pela releitura partiria de um mau gosto inerente, e esse mau gosto é adjetivado no comentário 2, no qual se subentende que a cultura brasileira é o objeto

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julgado. O comentário 3, por sua vez, desloca o referente para dada representação identitária, o brasileiro, que porta essa cultura e difunde maus hábitos artísticos.

A introdução dos dois comentários produz um efeito de desprezo e de um falar soberano, acima do que anda a ser mal feito na música; essa foi só mais uma e lá vai fazem parte de estratégias enunciativas que elevam o enunciador a um nível de observador “de fora”, reduzindo o outro ao julgado em seu fazer, que, nesse caso, é considerado depreciativamente. Outra coincidência entre os comentários é o aparecimento da palavra clássico, referindo-se a canção I remember you; tal utilização gera a asseveração de dado cânone musical, a partir de onde se verificaria um abismo qualitativo entre a canção norte-americana e versão nacional, identificada com uma cultura inferior. Em relação ao domínio do cânone, está o questionamento sobre o que é fazer arte, sobre quem está habilitado para produzi-la. É nesse aspecto que incide a utilização das aspas na palavra artista (comentário 2). Tais aspas agem no sentido de diminuir ou até mesmo negar o status artístico dos que produziram e reproduzem a versão Salve o nosso amor. A baixa qualidade da versão serviria, desse modo, como índice de incapacidade artística para determinados cantores e grupos.

2 Uma análise das letras sob a ótica da construção discursiva “brega”

As reproduções/publicações das duas canções geram efeitos de sentidos diversos, considerando-se as condições de produção e as construções subjetivas envolvidas nos acontecimentos discursivos. Verificando-se a recorrência de enunciados que, com relação à versão Salve o nosso amor, atestam a não complexidade da letra, o desvio qualitativo e a saída de dado cânone de clássicos musicais, propõe-se, nesta parte da análise, focalizar as letras das duas canções sob o paradigma de

uma construção discursiva em particular, aquela que se refere ao estilo “brega”, ou a um determinado tipo de música de baixa qualidade, direcionada a um público concebido, em dado posicionamento discursivo, como culturalmente “médio” ou “baixo”, conforme referências utilizadas em estudos sobre o estilo musical “brega” e também sobre uma cultura considerada kitsch.

As questões que serão arroladas a seguir partem da suposta constatação de que falta complexidade à letra da canção Salve o nosso amor, fato que, em comparação à canção I remember you, justificaria, a priori, a afirmação de um evidente desvio qualitativo. À letra hipoteticamente sem complexidade e ao mau gosto atribuído à parcela do público brasileiro, associa-se, por sua vez, o objeto discursivo “brega”. Se há parâmetros, estabelecidos por dada formação discursiva, com relação à constatação de elementos bregas, eles precisam ser explicitados enquanto estratégias discursivas em funcionamento. Sabe-se que a utilização do termo “tecnobrega”, recorrentemente empregado na caracterização de bandas como Mulheres Perdidas, provém de dada concepção de “brega”; no entanto, é com a análise relativa às construções subjetivas e identitárias envolvidas nos acontecimentos discursivos que podem ser observadas as descontinuidades de sua aplicação.

O termo “brega”, no âmbito da música, costuma ser relacionado a três fatores: a) a utilização dos chamados clichês românticos, perpassados por uma maneira exagerada de o sujeito expressar os sentimentos; b) a falta de originalidade, tanto com relação à parte lírica quanto com relação à estrutura melódica; c) e a inabilidade do artista quando se fala em uso de uma linguagem elevada, literária. Todos esses elementos entrecruzam-se com o chamado “mau gosto”, expressão que, por si só, não evidenciaria com a mesma eficiência os parâmetros avaliativos. Tal construção conceitual é sustentada não apenas por

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enunciados produzidos no dia-a-dia, em conversas sobre música e estilo, mas também, e fundamentalmente, por instrumentos de divulgação cultural devidamente validados, que veiculam dizeres “autorizados” sobre o assunto. Um exemplo deles é o Dicionário Cravo Albin de Música Brasileiro; nele, afirma-se que a expressão música brega é “usada para designar a música de mau gosto, geralmente feita para as camadas populares, com exageros de dramaticidade e/ou letras de uma insuportável ingenuidade”.

A tentativa de definir-se determinada coerência interna para a aplicação do conceito “brega” é visualizada quando são feitas referências à dita falta de complexidade da letra de Salve o nosso amor. O que urge analisarmos, desse modo, provoca dois questionamentos: a) O primeiro diz respeito à relação entre as duas músicas em questão: de que tipo seria o deslocamento que possibilita a justificativa de um desvio qualitativo entre as duas canções a ponto de uma delas ser denominada “brega”? A partir de parâmetros relativamente estabelecidos, a identificação de elementos “bregas” apenas recairia, a priori, sobre a versão nacional? b) Em uma visualização mais ampla, pergunta-se: sendo a aplicabilidade do conceito “brega” passível de descontinuidades, como seu funcionamento se constituiria?

A letra da canção Salve o nosso amor explora como tema um amor ausente, acabado. O entrave que impede o sucesso da relação amorosa parece centrar-se no ser amado, já que o enunciador suplica ao ser a quem se dirige que este “conserte” o relacionamento, tal como pode ser observado na frase que compõe igualmente o título e o verso final do refrão: salve o nosso amor. Enquanto o sujeito enunciador expressa total dependência (Eu preciso ficar com você), o ser amado torna-se uma incógnita: Você decide se ainda vem me ver. Desse modo, a questão da ausência do amor transfigura-se em um dos motivos centrais da canção. Os versos Não vou te

esquecer/ não vou te perder demonstram, nesse sentido, certa convicção que neutralizaria uma hipotética desistência amorosa do sujeito enunciador construído na/pela letra da canção.

Como se discutiu anteriormente, o suposto “exagero” sentimental é um dos elementos que caracterizaria, de acordo com determinado posicionamento discursivo, a construção conceitual do estilo denominado “brega”. Na terceira estrofe de Salve o nosso amor, a sequência Tudo eu faria pelos seus carinhos parece validar tal perspectiva, no sentido de possibilitar a produção de enunciados do tipo Essa música pertence ao estilo x por conter característica y/ Essa música é “brega” por conter exagero sentimental. O verso Eu só queria ter você juntinho também expressariam tal exagero, na medida em que dão a entender que a presença do ser amado é a única coisa que importa na vida. A questão que se coloca não é exatamente relativa ao fato de uma classificação musical estar coerente ou não. No interior de dada formação discursiva, ela pode se sustentar, dando a impressão de uma homogeneidade estável. O que se questiona aqui, por outro lado, é o funcionamento da construção conceitual “brega” em relação às características de diversas músicas; seria esse conceito universalmente aplicado ou aplicável sem descontinuidades em um organograma classificatório musical indefectível?

Sendo a canção I remember you classificada quase que unanimemente como uma canção de rock, a análise de sua letra pode alimentar a reflexão sobre as descontinuidades da aplicação de um conceito. O tema principal da canção do grupo norte-americano também gira em torno de uma relação amorosa desfeita. Pode-se até mesmo traçar um paralelo entre não vou esquecer, do grupo brasileiro, e remember (“lembrar”), do título da canção em questão, sendo que as duas expressões provocam efeitos de sentido relacionados à falta, à saudade. A dependência

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com relação ao ser amado relaciona-se com o motivo principal da canção; podemos dizer, inclusive, que tal dependência é expressa com requintes do exagero sentimental conferido outrora como elemento caracterizador do estilo “brega”. No final da quarta estrofe, por exemplo, enuncia-se: Eu disse que daria minha vida por apenas um beijo/ Eu viveria por seu sorriso e morreria por seu beijo. A relação entre amor e morte, bastante recorrente quando quer se acentuar a dor de um sentimento, constitui-se como uma das possíveis relações da canção I remember you com os chamados clichês românticos, também conferidos como elementos caracterizados do “brega”2. No trecho em destaque, observa-se outro paralelo entre as canções: a recorrência de verbos no futuro do pretérito. Embora a formação desse tempo verbal seja pouco semelhante sonoramente no português (acréscimo de desinência específica no final do verbo) e no inglês (acréscimo da palavra would precedendo a forma verbal principal), fato que poderia influenciar na produção da versão (que tende a ser melodicamente semelhante à canção-base) os sentidos que tal forma verbal suscita coincidentemente nas canções é algo a ser ressaltado. Nas utilizações do futuro de pretérito em ambas as canções, é notável um desejo, por parte das construções subjetivas que enunciam, de consertar algo que possa estar errado, ou de dar garantias de uma relação sem problemas ou confusões: Tudo eu faria (Mulheres Perdidas); Daria minha vida e Ficaria uma vida inteira em seus olhos (Skid Row).

Quanto aos elementos “exploração do tema amoroso” e “exagero sentimental”, podemos perceber diversas semelhanças entre as duas canções. Não basta definir, portanto, o

2 A diferença entre o romantismo “brega” e os românticos do Romantismo é sustentada, em dadas formações discursivas, pelo suposto fato de o “brega” estar fadado a ser a cópia de um modelo que banalizaria o sentimento. Essa ideia se faz presente, por exemplo, no livro Do “brega” ao emergente, de Carmen Lúcia José (2002).

que afere a presença de um clichê romântico, mas descrever as condições de produção em que tais elementos poderiam ser apontados, ou apagados. Se na versão Salve o nosso amor, a referência da recepção ao estilo “brega” torna quase que imperativa a suposta presença de clichês românticos, o que dizer quando a canção em análise caracteriza-se por ser frequentemente descrita como uma canção de rock?

O clichê é costumeiramente relacionado, na música, a expressões que contém pouca ou nenhuma “originalidade”. Nessa perspectiva, a chamada música “brega”, conceito moldado no interior de certa formação discursiva, teria como um de seus principais elementos o “clichê romântico”, ou seja, chavões e expressões sentimentais que beirariam ao “lugar comum”. Observando a letra da canção I remember you, que, a priori, diferenciar-se-ia de Salve o nosso amor por conter mais complexidade (afastando-se supostamente da noção de “brega”), pode-se notar alguns trechos em que os chamados clichês românticos, em sua concepção mais usual, seriam presenciados. Os trechos em questão serão elencados levando-se em consideração o índice de repetibilidade de expressões similares em canções que tematizam o amor e sentimentos adjacentes:

a) Sleepless nights - noites sem dormir: No more sleepless nights. I gotta let you go3. (Michael Mind); Wasted days and sleepless nights. And I can't wait to see you again4. (Whitesnake); Quantas noites sem dormir. Alivia minha dor. (Arlindo Cruz)

b) Endless days - dias sem fim: Still endless days and nights. I wait for you5. (In This Moment); Why must I have

3 (Traduções nossas: notas 3 a 11) Sem mais noites acordado. Eu preciso te esquecer. 4 Dias desperdiçados e noites sem dormir. E eu não posso esperar para revê-la. 5 Ainda dias e noites intermináveis. Eu espero por você.

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theses sleepless nights. And endless days. But love, you took my soul6. (Mark Knopfler). Ainda lembro aquele dia sem fim sentindo a brisa, louco quando eu te vi. (CPM22).

c) Love letters in the sand - cartas de amor na areia: Now my broken heart aches with every wave that breaks over love letters in the sand7. (Sixpence None The Richer); Quero escrever na areia sua história. Junto com a minha. (Daniel); Escrevi seu nome na areia. (Falamansa).

d) Dream come true - sonho se realiza: I never had a dream come true, Till the day that I found you8. (Destiny’s Child); If dreams come true. I'll be with you9. (Billie Holiday); Que há em ti afugentaste a ilusão fizeste realização, meu bem. A beleza de um sonho realizado. Eu sinto agora. (Altemar Dutra).

e) Blind love - amor cego: When my love for you was blind. But I couldn't make you see it10. (Lifehouse); Any fool can see that love is blind. And here I am to prove it one more time11. (Lane Brody); O amor é cego. Só escuta o coração. Eu te amo e não nego. E assumo essa paixão (Só Pra Contrariar).

Em canções cujos temas envolvem sentimentos como amor, pode-se observar o elevado grau de repetibilidade de algumas expressões extraídas de I remember you. Muitas delas emergem em contextos bastante específicos e são ressignificadas a partir de sua utilização. Cita-se como exemplo a expressão 6 Por que eu tenho estas noites sem dormir. E dias sem fim. Mas, amor, você tocou minha alma. 7 Agora meu coração partido dói com cada onda que quebra sobre cartas de amor na areia. 8 Eu nunca tive um sonho realizado, até o dia em que te encontrei. 9 Se sonhos tornam-se realidade. Eu estarei com você. 10 Quando meu amor por você era cego. Eu não poderia fazer você compreender. 11 Qualquer tolo pode ver que o amor é cego. E aqui eu estou para provar isso novamente.

dias sem fim, muito utilizada também em canções religiosas, tomando-se como referencial, por vezes, a interminável passagem de Jesus pelo deserto, ou a própria espera do fiel por um dia de redenção. No contexto da música romântica, por outro lado, os dias sem fim, assim como as noites sem dormir, veem-se ligados à dor da falta, ao ser que ama e que não consegue passar seus dias tranquilamente por estar remoendo o amor ausente. Tal efeito de sentido pode ser observado tanto na canção I remember you quanto na versão brasileira Salve nosso amor.

Considerações finais

Visualizando a noção de clichê romântico como um dos pilares do chamado estilo “brega”, no interior de construções conceituais que sustentam dadas classificações musicais, e, em um segundo momento, estabelecendo comparação com certo comportamento das letras das duas canções com relação ao desenvolvimento da temática amorosa, abre-se um leque de questões necessárias, cujas possíveis respostas estabelecem diversas polêmicas no interdiscurso. Se a canção Salve o nosso amor é passível de receber a denominação “brega” pelo fato de “banalizar os sentimentos” ou “não conter originalidade artística”, os mesmos quesitos seriam, de igual forma, evidenciados e instrumentalizados em um hipotético juízo de valor acerca da canção I remember you? A arquitetura conceitual que é investida na utilização do termo “brega”, ao perpassar o clichê romântico como repetição de imagens, lugares comuns ou frases feitas, longe de ser uma estrutura fechada e sem falhas, possibilita a discussão sobre suas especificidades e modalidades de funcionamento. Como explica Pêcheux (2002, p. 28):

Objetos discursivos de talhe estável, detendo o aparente privilégio de serem, até certo ponto, largamente independentes dos enunciados que

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produzimos a seu respeito, vêm trocar seus trajetos com outros tipos de objetos, cujo modo de existência parece regido pela própria maneira com que falamos deles (PÊCHEUX, 2002, p. 28).

O “estilo brega”, apreendido como objeto discursivo, só é concebido como conceito em campos de conhecimento afins porque sua utilização é precedida por asserções exteriores que lhe concedem a impressão de aplicabilidade exata, sem quaisquer falhas, e universal, utilizável do mesmo modo nos mais variados contextos. O funcionamento da contradição, no entanto, precisa ser explicitado, até porque a apreensão objetiva e direta da realidade constitui-se como uma ilusão na perspectiva teórica que adotamos. Esse estatuto ao mesmo tempo “estável” e cambiante da avaliação qualitativa no âmbito musical permite que se trace dado regime enunciativo que alimenta a produção de determinados sentidos e não outros. Na avaliação do que é clichê e complexidade lírica, tem-se, por um lado, regras enunciativas que parecem se repetir, ligando-se por identidade e instrumentalizando parâmetros de aplicação; por outro lado, há lugares que não permitem o encontro de tal equivalência, ou silenciem aquilo que se instrumentalizaria do mesmo modo. É a partir desse caráter descontínuo que Foucault (2000a, p. 119) estuda a produção enunciativa:

Os esquemas de utilização, as regras de emprego, as constelações em que podem desempenhar um papel, suas virtualidades estratégicas, constituem para os enunciados um campo de estabilização que permite, apesar de todas as diferenças de enunciação, repeti-los em sua identidade; mas esse mesmo campo pode, também, sob as identidades semânticas, gramaticais ou formais, as mais manifestas, definir um limiar a partir do qual não há mais equivalência, sendo preciso reconhecer o aparecimento de um novo enunciado.

Considerando a descontinuidade constitutiva do funcionamento enunciativo aqui estudado, é preciso que se explore o que

diz respeito ao limiar a partir do qual a equivalência de um enunciado com aquilo que permite sua repetibilidade misteriosamente se desfaz, o ponto em que a analogia formal entre as canções não é mais perpassado por possíveis campos de estabilização. Por que aparece determinado enunciado e não outro em seu lugar significa perguntar também por que se coloca em suspenso, em contextos específicos, um funcionamento eventualmente defendido como universal e objetivo, sendo que, a partir de outros lugares, singulares regras de aplicabilidade parecem ser “mecanicamente” explicitadas. Baseando-nos em uma perspectiva foucaultiana, é necessário que o descontínuo passe de “obstáculo à prática” (FOUCAULT, 2000b, p. 85), pois justamente nessas fendas abertas por aspectos que desestabilizam o logicamente estabilizado é que se localizam as reflexões mais fundamentais sobre a singularidade de cada acontecimento discursivo.

Algumas hipóteses podem ser levantadas sobre o fato de a canção I remember you, considerando seus aspectos formais constitutivos e sua relação de certa proximidade temática com a canção Salve o nosso amor, não ser cogitada como um produto cultural “brega”. Explicações que coloquem a estrutura musical e a utilização de determinados instrumentos (como a guitarra elétrica distorcida) como pontos nodais nessa diferenciação não são suficientes, até porque, quando se coloca em questão a baixa qualidade da versão, o que muito se evidencia são críticas à complexidade da letra da canção e sua relação com determinada concepção de clichê romântico. Quando se olha especificamente para a letra das canções, um dos possíveis aspectos de diferenciação é logo posto em cena: em se tratando de avaliadores falantes da língua portuguesa, tendo em vista os aparecimentos das canções eleitas para análise, a questão do idioma parece ganhar importância. Até que ponto a familiaridade com a língua do outro se torna suficiente para

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se atestar a complexidade ou a falta de complexidade da letra? Tal ponto parece não ser subitamente determinado pelo simples conhecimento ou não da língua inglesa, mas sim por representações imaginárias que o falante tem desse idioma e de sua própria língua. É notável que a relação de avaliação que é proporcionada no contato com canções em língua portuguesa não se constitui do mesmo modo no contato com canções em língua inglesa; há certo deslocamento e, com ele, a dispersão de discursos bastante recorrentes, como o que visualiza certa superioridade de produtos estrangeiros em relação aos produtos brasileiros. Além da questão do idioma e das representações que se faz da cultura do outro, um aspecto que fica bastante marcado é a representação depreciativa da própria identidade nacional; faria parte da “essência” do brasileiro um mau gosto com relação a escolhas musicais e uma tendência a banalizar aquilo que é bem feito pelo estrangeiro.

Problematizando o estatuto intrínseco das avaliações qualitativas no âmbito musical, possibilita-se que esses aspectos e outros mais sejam descritos como aquilo que está no nível da exterioridade e da anterioridade em relação à produção enunciativa e funciona como determinante no aparecimento de certos enunciados e não outros em seu lugar. As classificações como “brega” e “rock”, bem como a conceituação de clichê romântico, pouco dizem se postas em relação objetiva de aplicabilidade, colocando em suspenso as específicas condições de produção e os variados contextos de recepção de canções.

Referências

DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DE MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Música “brega”. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/musica-brega/dados-artisticos. Acesso em 20/06/2012. JOSÉ, Carmen Lúcia. Do “brega” ao emergente. São Paulo: Nobel, 2002. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000a. FOUCAULT, Michel. Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo de epistemologia. In: Ditos e Escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000b, p. 82-118. PÊCHEUX, Michel. Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: Uma crítica à afirmação do óbvio. 3.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA ARGUMENTAÇÃO NAS

SOCIEDADES DE CONTROLE: DIZERES DO DISCURSO SOBRE A ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO DE INGLÊS DO PNLD 2011

Maria Dolores Wirts Bragai

Resumo: Nosso objetivo é observar o modo como a argumentação é discursivisada hoje em nossa sociedade. Gilles Deleuze ([1990] 2008) admite que já vivemos numa sociedade de controle, que Foucault ([1979] 2004) reconheceu ser a sucessora da sociedade disciplinar. Segundo Deleuze, após a Segunda Guerra Mundial, com a crise dos meios de confinamento (prisão, fábrica, caserna, escola, hospital e família), as sociedades de controle começam a tomar o lugar das sociedades disciplinares. O controle, antes exercido pelo confinamento dos corpos, agora se estende aos espaços abertos. A sociedade de controle não age por imperativos, mas por modulações, como moldagens auto-deformantes (DELEUZE, [1990] 2008), realizadas em práticas discursivas e não discursivas. Analisamos, pois, dizeres do discurso sobre o livro didático de inglês do Programa Nacional do Livro Didático 2011, para percebermos o modo como a argumentação é construída discursivamente em nossa atualidade, contrastando esse discurso com os dizeres do Decreto-lei n. 8.460 de 26 de dezembro de 1945, que estabelece as condições de produção, importação e de utilização do livro didático no Brasil. Interessa-nos perceber os efeitos discursivos dos princípios moduladores - dizeres que funcionam como modulações, demandando intermináveis atualizações - que nossa sociedade, caracterizada como sociedade de controle, mobiliza e que, defendemos, circulam no discurso sobre o livro didático de inglês. Palavras-chave: Argumentação. Discurso. Sociedade de controle. Livro didático de inglês. Abstract: We aim to observe how argumentation is discursivized in our society nowadays. Gilles Deleuze ([1990] 2008) claims we live in a society of control, which Foucault ([1979] 2004) recognized as a successor to disciplinary society. According to Deleuze, after World War II, all the environments of enclosure (prison, factory, barracks, school, hospital as well as the family) underwent a crisis which favored the establishment of societies of control over disciplinary societies. The control, once exerted over the bodies, is now extended to open spaces. Modulations and not commandments are the mode of action of societies of control. Modulations are “like a self-deforming cast” (DELEUZE, ([1990] 2008) activated in both discursive and non-discursive practices. Taking these concepts into consideration, we analyze sequences from the discourse about the English textbook, especially the textbooks proposed by the PNLD 2011- Brazilian Textbook National Program for the year of 2011 – so as to perceive how argumentation is built in discourse nowadays and contrast that discourse with the sayings extracted from Decree-Law no. 8.460 of 26 December 1945, which regulates the production, importation and use of textbooks in Brazil. We are interested in observing the discursive effects of modulating principles - or sayings which function as modulations, demanding endless updates – which our society, characterized as a society of control, shelters and as we believe circulate in the discourse about the English textbook. Keywords: Argumentation. Discourse. Society of control. English textbook.

i Doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil, e bolsita FAPESP.

E-mail: [email protected].

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BRAGA, Maria Dolores Wirts. A construção discursiva da argumentação nas sociedades de controle: dizeres do discurso sobre a escolha do livro didático de inglês do PNLD 2011. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 60-71, jun.2013.

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Introdução

Com o objetivo de perceber como o discurso tem se modificado através de elementos argumentativos, ao mesmo tempo, caracterizando e adaptando-se aos modos de funcionamento das sociedades, analisaremos os dizeres que se referem à escolha dos materiais didáticos feita pelos professores da escola pública brasileira. Para isso, destacaremos dois momentos selecionados a partir de nosso corpus de pesquisa1. O primeiro momento trata do artigo cinco do Decreto-lei n. 8.460 de 26 de dezembro de 1945, data que coincide com o período exato do término da Segunda Guerra Mundial, portanto, trazendo ainda características de um discurso redigido para uma sociedade classificada como sociedade disciplinar, segundo os estudos foucaultianos, como veremos adiante. O segundo momento recorta dizeres do Guia para a escolha do livro didático, e aqui precisamente o livro didático para o ensino de inglês na escola pública brasileira (doravante LDI), cuja primeira adoção em nível nacional se deu em 2011 através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2011).

Defendemos que, apesar da aparente democratização do processo de escolha, os elementos argumentativos operam no discurso com uma dupla função: enquanto a superfície textual espelha a transparência de ações, o cerne discursivo coíbe essas mesmas ações. Isso se dá de tal forma que as mudanças ocorrem, ao longo do tempo, no eixo discursivo-argumentativo muito mais que nas ações efetivas que envolvem o processo de ensino e aprendizagem de língua inglesa no Brasil.

Contextualizaremos ambas as sociedades aqui elencadas, disciplinar e de controle, antes de prosseguirmos com a análise dos excertos 1 Nossa pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “O discurso sobre o livro didático de inglês: a construção da verdade na sociedade de controle”, é financiada pela FAPESP.

mencionados acima, para que possamos localizar e caracterizar os modos de funcionamento discursivo-argumentativo de cada uma delas. Os dizeres que analisamos aqui pertencem ao segmento do discurso oficial2, parte integrante de nosso corpus de pesquisa.

Sociedade disciplinar e sociedade de controle

Segundo Michel Foucault, a sociedade disciplinar caracteriza-se por seus métodos que controlam minuciosamente as operações do corpo, obrigando-o à sujeição numa relação entre a docilidade e a utilidade; isto é, quanto mais dócil, mais útil. Diz Foucault,

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, [1975] 2004, p. 119).

Na sociedade disciplinar, esses métodos de controle do corpo são exercitados de tal forma que são internalizados e repetidos eficientemente, inculcando no indivíduo toda a sistemática disciplinar. Organizando o tempo e o espaço, classificando os corpos, as habilidades, as doenças etc., a sociedade disciplinar cultuava o detalhamento, a minuciosidade, a microfísica, possibilitando o controle detalhado e a intervenção pontual. Diz Foucault,

Ela [a tática disciplinar] permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica

2 Esse segmento do corpus de pesquisa foi construído a partir de documentos oficiais sobre o PNLD 2011 emitidos pelo MEC e/ou FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação).

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de um poder que poderíamos chamar “celular”. (FOUCAULT, [1975] 2004, p. 127).

Vemos que alguns dos principais aspectos que caracterizam os meios de funcionamento do poder na sociedade disciplinar, como a organização do tempo e do espaço e o controle do corpo, já não são tão eficazes no mundo atual ou não funcionam tão bem. Com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs), que vêm se desenvolvendo gradativa e irrevogavelmente desde meados da década de setenta, as noções de tempo, espaço e até mesmo a noção de corpo, com os avatares, os cibercorpos digitais, têm tomado outros contornos: menos visíveis, menos concretos. Porém, tal fluidez não implica a falta de controle, apenas exige adaptação: um controle que seja também fluido, menos visível, mas muito mais rígido e eficaz. Tal transição nos leva à noção de sociedade de controle.

De acordo com Gilles Deleuze ([1990] 2008), Foucault3 marca o período dos séculos XVIII e XIX como tendo sido caracterizado pelo funcionamento das sociedades disciplinares. No início do século XX, as sociedades disciplinares atingem seu apogeu. Porém, ainda segundo Deleuze, a crise dos meios de confinamento (fábrica, prisão, escola, hospital, família etc.), que se inicia após a Segunda Guerra Mundial, marca o início da substituição gradativa das sociedades disciplinares pelas sociedades de controle. O controle, antes exercido pelo confinamento dos corpos, agora se estende aos espaços abertos. Segundo Deleuze,

É certo que entramos em sociedades de ‘controle’, que já não são exatamente disciplinares. Foucault é com frequência considerado como o pensador das sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o hospital e a prisão, mas a

3 É preciso lembrar que Michel Foucault inclui, embora imprecisamente, o século XVII nesse período em que situa as sociedades disciplinares. Cf. FOUCAULT, [1975] 2004, p. 118 e p. 120, especialmente.

escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea. (DELEUZE, [1990] 2008, p. 216) [grifos do autor].

Uma sociedade que conhece os meios pelos quais o sujeito pode ser motivado e controlado e, circularmente, tem o poder de motivar a produção desse sujeito e controlar sua vida e sua morte, comprando suas ações e dele exigindo comportamentos. Tais características são muito semelhantes àquelas da sociedade de soberania em que o rei tinha sob seu poder a vida e a morte do súdito. Porém, agora, a sociedade de controle não age por imperativos, mas por modulações, como moldagens auto-deformantes4, realizadas em práticas discursivas (na escola, o discurso sobre a avaliação contínua, por exemplo) e não discursivas (correlatamente, a prática da avaliação como processo). De acordo com a conceitualização deleuziana, as modulações podem ser entendidas como princípios moduladores: dizeres que demandam intermináveis atualizações. Diz Deleuze,

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. (DELEUZE, [1990] 2008, p. 221-222).

Em outros termos, na sociedade de controle, o poder não age no enclausuramento dos moldes fixados pelos espaços repartidos da sociedade disciplinar, mas encontra-se agora adaptado aos moldes deformáveis da pós-modernidade. Um poder cujos meios confundem discursos e práticas, agindo

4 DELEUZE, [1990] 2008, p. 221.

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subrepticiamente na opacidade da suposta transparência que defende.

É precisamente nesse ponto que avaliamos a possibilidade de encontrarmos na materialidade discursiva pontos que remetam a um funcionamento que se possa caracterizar como já marcado por traços reconhecíveis como sendo da sociedade de controle e não mais predominantemente da sociedade disciplinar. Para isso, pesquisamos a presença de princípios moduladores na materialidade dos dizeres do discurso sobre o livro didático de inglês em nosso corpus de pesquisa. Mais precisamente, buscamos por elementos discursivos que, funcionando como princípios moduladores, contribuem à argumentação como um modo específico de circulação do poder na sociedade de controle.

A argumentação sobre a escolha do livro didático de inglês

O primeiro livro para o ensino de inglês no Brasil é o conhecido Grammatica pratica da Lingua Ingleza de Fillipe Maria da Motta d'Azevedo Corrêa, impresso em 18905 na França por Guillard, Aillaud & Cia e, desde então, comercializado no Brasil pela Livraria Clássica de Alves, Rio de Janeiro6. Interessa-nos sobre essa obra, "adoptada no Imperial Collegio de Pedro II, Instituto Commercial e nos principaes estabelecimentos, litterarios do Imperio"7, a informação de que ela, antes de ser adotada e utilizada em aula com os alunos, tenha sido “approvada pelo Conselho Director d'Instrucção publica"8. Ou seja, o primeiro livro didático de inglês já havia sido pré-selecionado e submetido à aprovação de um órgão oficial. Isso não foi alterado com a

5 Essa data corresponde à 8ª edição, utilizada no Brasil. A primeira edição desse livro é de 1863. 6 Segundo o banco de dados LIVRES da Faculdade de Educação da USP: http://paje.fe.usp.br/estrutura/livres/. Acesso em 15/06/2011. 7 Idem. 8 Idem.

promulgação da primeira constituição republicana no ano seguinte, em que o Estado assume, “de forma definitiva, as rédeas da educação, instituindo várias escolas públicas de ensino fundamental e intermediário”9.

Aquilo que ficará, daí em diante, alterado será o modo de argumentação sobre a aprovação dos títulos a serem adotados. Isto é, os dizeres sobre o primeiro livro de inglês adotado no Brasil que citamos acima ("adoptada no Imperial Collegio de Pedro II, Instituto Commercial e nos principaes estabelecimentos, litterarios do Imperio” e “approvada pelo Conselho Director d'Instrucção publica") estão impressos nas páginas do próprio livro e trazem em si as marcas argumentativas do poder soberano que age por imperativos, sem a necessidade de informar os detalhes envolvidos no processo de adoção. Ou seja, observamos que não há ao menos informação de que tenha ocorrido alguma seleção que pudesse ter, por sua vez, levado à escolha desse livro. Seja pela falta de detalhamento de informações (quando, onde, como, por que e sob quais circunstâncias e critérios essa obra foi aprovada para a adoção), seja pelo próprio uso da voz passiva, os dizeres se produzem no discurso como a argumentação que basta, que é suficiente, num regime que se quer ainda soberano. Não cabe, numa sociedade de soberania, colocar em questão a justificativa argumentativa, mesmo lacunar, do soberano.

Como não é nosso intuito, aqui, traçar o caminho histórico do livro didático de inglês no Brasil10, passaremos ao ano de 1945, data em que foi emitido o Decreto-lei cujo item cinco analisaremos. Nessa época, vigorava a 9 Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1891. Acesso em 28/01/2013. 10 Sobre isso, veja BITTENCOURT, C. Livro didático e saber escolar: 1810-1910. B. H.: Autêntica, 2008. Veja também http://www2.fe.usp.br/estrutura/livres/index.htm; http://www.helb.org.br e http://www.veramenezes.com/publicacoes.html, entre outros.

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Reforma Capanema que, com um total de seis reformas, definiu e implantou leis para gerir a educação em diversos setores, como por exemplo, a Lei Orgânica do Ensino Industrial em janeiro de 1942, a Lei Orgânica do Ensino Secundário em abril de 1942, a reformulação do ensino comercial em fevereiro de 1943, além da criação do Instituto Nacional do Livro (INL11) e do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP12). Até mesmo depois do período do Estado Novo (1937-1945), Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Cultura desde 1934, ainda determinou três Leis Orgânicas (Ensino Primário, Normal e Ensino Agrícola), estabelecendo programas e diretrizes.

De acordo com alguns estudos (XAVIER, 1990; BRITO13), a ênfase dada pela Reforma Capanema na questão nacional deve ser entendida com a consideração de que o cenário mundial da época favorecia o desenvolvimento do nacionalismo. Seria, então, ainda segundo as autoras, exagero afirmar que houve a construção de uma pedagogia autoritária, pois tais medidas não chegaram a se constituir em política de Estado e a organização da escola que foi criada não pode ser percebida como tendo gerado tal impacto na sociedade. Portanto, podemos entender que, mesmo nesse cenário político autoritário, as políticas já não se faziam mais pelos meios soberanos, mas agiam como formas disciplinadoras, como estratégias para organizar o caos e atingir os objetivos estabelecidos.

11 Criado pelo Decreto-lei n. 93 em 21 de dezembro de 1937, hoje com o nome de DNL – Departamento Nacional do Livro, Órgão da Fundação Biblioteca Nacional. Cf. www.planalto.gov.br, acesso em 10 de março de 2011. 12 Criado em 13 de janeiro de 1937, Lei n. 378, com o nome de Instituto Nacional de Pedagogia. Cf. http://www.inep.gov.br/institucional/historia.htm. Acesso em 10 de março de 2011. 13 BRITO, S. Disponível em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_101.html. Acesso em 28 de fevereiro de 2011.

É nesse cenário, brevemente descrito, que o Decreto-lei n. 8.460 de 26 de dezembro de 1945 consolida a legislação sobre as condições de produção, importação e de utilização do livro didático no país. Destacamos, para análise, o artigo cinco desse decreto14, que confere ao professor a escolha dos livros que deverão ser adotados. Diz o artigo,

(S115)

Os poderes públicos não poderão determinar a obrigatoriedade de adoção de um só livro ou de certos e determinados livros para cada grau ou ramo de ensino nem estabelecer preferência entre os livros didáticos de uso autorizado, sendo livre aos professores de ensino primário, secundário, normal e profissional a escolha de livros para uso dos alunos, uma vez que constem da relação oficial das obras de uso autorizado. Parágrafo único. A direção das escolas primárias, normais, profissionais e secundárias, sejam públicas ou particulares, não poderá, relativamente ao ensino dêsses estabelecimentos, praticar os atos vedados no presente artigo.

Nessa sequência discursiva, observamos que os elementos argumentativos, já sem o tom imperioso dos meios soberanos, se colocam como estratégias de organização através da disciplina, daquilo que se pode ou não fazer: “os poderes públicos não poderão”; “a direção das escolas [...] não poderá”. A argumentação, então, se dá através do estabelecimento da ordem, da disciplina, daquilo que pode ser feito e daquilo que é proibido.

Mesmo esse estabelecimento do proibido e do permitido não deixa de opacizar os detalhes e critérios que derivaram a “relação oficial das obras de uso autorizado”. Vemos 14 Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2617701/dou-secao-1-28-12-1945-pg-8/pdfView. Acesso em 15 de março de 2011. 15 S refere-se à sequência discursiva a ser analisada. S1 é a primeira sequência discursiva para a análise.

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que, agora em 1945, a escolha do livro didático é atribuída ao professor, ou melhor, é dita como sendo uma ação que o professor deverá realizar. Mas, mesmo sendo “livre aos professores de ensino primário, secundário, normal e profissional a escolha de livros para uso dos alunos”, a escolha deve ainda obedecer a uma exigência: o livro deve ser escolhido dentre aqueles que “constem da relação oficial das obras de uso autorizado”. Portanto, os poderes públicos devem respeitar a liberdade de escolha do professor desde que o professor escolha os livros que já foram selecionados e listados pelos poderes públicos para que sejam escolhidos. Em outros termos, a escolha já está, até certo ponto e discursivamente, determinada; pois, os poderes públicos só não podem determinar qual livro o professor irá escolher dentre aqueles já autorizados. Desse modo, fica garantido o controle governamental sobre os livros que circularão no país.

Desde a consolidação da legislação do livro didático em 1945 até o PNLD 2011, é possível perceber o controle que legitima alguns livros didáticos (os livros pré-aprovados) enquanto deslegitima outros e que deseja garantir as condições de sua produção, circulação e utilização em nossa sociedade. Neste momento, especificamente, o LDI marca sua presença na história do ensino de inglês como língua estrangeira no território brasileiro. Isso porque, a partir de 2011, para os últimos anos do Ensino Fundamental, e de 2012, para o Ensino Médio, através de uma iniciativa do governo federal, o LDI passa a compor a lista de materiais adotados pela escola pública em todo o território nacional. Apesar de o LDI já ter sido adotado localmente na rede pública por algumas escolas ou alguns professores, esta é a primeira vez que o governo federal, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), propõe títulos a serem adotados em âmbito nacional, patrocinando o alto custo

desses materiais consumíveis para o ensino de língua estrangeira (espanhol e inglês).

Esse acontecimento, a entrada maciça do LDI na escola pública, instigou-nos a pensar sobre o papel do LDI nesse momento, após mais de duzentos anos de ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil. Longe de seu domínio costumeiro, a rede privada e os institutos de idioma, o LDI pode estar representando uma grande mudança ou apenas garantindo velhos valores. Portanto, para analisarmos o modo de construção e de funcionamento dos elementos argumentativos no discurso sobre esse acontecimento, analisaremos os excertos referentes à escolha do professor presentes no Guia de Livros Didáticos – PNLD 2011, um documento que fala diretamente aos professores e que foi disponibilizado16 às escolas para a escolha das coleções didáticas.

Com cinquenta e duas páginas dedicadas ao componente Língua Estrangeira Moderna, o Guia de Livros Didáticos objetivou a “auxiliar os professores na escolha”17 do livro didático que seria utilizado em suas aulas. Destacamos, a seguir, os quatro únicos momentos do Guia em que o termo “escolha” se refere à escolha do livro didático de inglês pelo professor. Designamos esses excertos S2, S3 (com duas ocorrências) e S4 respectivamente.

O primeiro excerto (S2) encontra-se no final do primeiro item do Guia, denominado Apresentação. Esse item marca o

16 O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) publicou em 29 de abril de 2010, em seu portal na Internet, o Guia do Programa Nacional do Livro Didático 2011. A versão impressa do Guia foi enviada às escolas em maio do mesmo ano. 17 Como informado no item 6.3 do Edital de Convocação para Inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Coleções Didáticas para o Programa Nacional Do Livro Didático - PNLD 2011 do Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Secretaria de Educação Básica.

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endereçamento direto do documento aos professores logo em seu início, com a introdução: “Prezado Professor, Prezada Professora”. O último parágrafo da apresentação lê:

(S2)

Recomenda-se a leitura cuidadosa deste Guia e das resenhas nele contidas, pois, como já dito, cada resenha apresenta uma coleção, faz uma breve descrição e análise do conteúdo de cada um de seus volumes, além de apontar as qualidades em destaque na coleção e os cuidados necessários no seu uso. Dessa forma, você terá condições de avaliar e decidir qual é a coleção mais adequada para seus alunos, para você e para sua escola. Para decidir qual coleção adotar, converse com seus colegas da mesma área, a fim de que a escolha conjunta reflita os interesses coletivos. [grifos nossos]

Em S2, acima, vemos que a escolha que se objetiva é conjunta (“converse com seus colegas da mesma área”) e resultante de um processo que sugere a “leitura cuidadosa” do Guia e das resenhas produzidas por especialistas (professores avaliadores das obras). Nas resenhas, os especialistas descrevem, analisam os conteúdos e apontam “as qualidades em destaque na coleção”, além dos “cuidados necessários” no uso das coleções. Apenas após a “leitura cuidadosa” do Guia e das resenhas, o professor “terá condições de avaliar e decidir qual é a coleção mais adequada para seus alunos [...]”. Isto é, o saber profissional e a capacitação técnica do professor não são reconhecidos como requisitos suficientes para fazer a escolha, que deverá, ainda, ser discutida com os colegas para que, assim, não sejam refletidos apenas os interesses do professor, mas de toda a coletividade a que pertence. Salientamos, ainda, que a leitura das coleções propriamente ditas não é mencionada aqui, nem em outros momentos do Guia, como necessária para que o professor faça sua escolha.

Ainda nesse excerto, vemos que os elementos argumentativos funcionam no

discurso de modo bem diferente daqueles que analisamos em S1 e nos dizeres inscritos no livro Grammatica pratica da Lingua Ingleza. Lembramos que, em relação ao seu apoio na materialidade linguística, a argumentação das inscrições no livro de 1890 funcionava através da voz passiva, deixando as marcas do poder soberano; em S1, a argumentação se apoiava no modo imperativo do verbo poder, organizando, proibindo e disciplinando as ações. Agora, em S2, notamos a suavização dos elementos argumentativos através do efeito de modalização percebido no verbo que inicia o parágrafo: “Recomenda-se”, acrescido de articuladores discursivos como “pois”, “Dessa forma”, “além de”, “a fim de que” que apresentam uma série de razões e justificativas que fortalecem a “recomendação”. Porém, apesar desse fortalecimento, uma recomendação é ainda uma sugestão que poderá ser ou não aceita. Vemos aí os elementos discursivo-argumentativos corroborando as moldagens auto-deformantes, os princípios moduladores da sociedade de controle, em que há sempre um adiamento do término. Isto é, o professor que fará a escolha não é instruído para simplesmente ler as coleções, tomar sua decisão e escolher a coleção que mais lhe pareça adequada aos seus fins. Ao contrário, ele é levado por um longo processo em que, a cada passo, a escolha é adiada, pois depende de sua “leitura cuidadosa” das cinquenta e duas páginas do Guia, das resenhas constantes no Guia, de sua aceitação de todas as justificativas e apontamentos dos especialistas sobre as coleções, de sua conversa com os colegas até chegar a uma escolha que não seja só sua, mas que “reflita os interesses coletivos”. Marcando, ainda, o adiamento do fim desse processo, os dizeres do Guia garantem que tudo isso é apenas uma recomendação, que poderá ou não ser seguida.

Vejamos o próximo excerto, com duas ocorrências do termo “escolha”.

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(S3)

Considerando que esta é a primeira edição do PNLD de LEM18, é compreensível que este Guia apresente resenhas de um número reduzido de coleções para sua escolha. Assim mesmo, realize essa escolha de forma criteriosa. Esperamos, por fim, que os resultados desta avaliação contribuam para uma aprendizagem efetiva e significativa de línguas nas escolas públicas brasileiras. [grifos nossos]

A primeira ocorrência do substantivo “escolha” aparece ao final da justificativa para o “número reduzido de coleções”: “esta é a primeira edição”. A justificativa apela à compreensão do professor: “é compreensível”. A argumentação, portanto, funciona com a apresentação de uma justificativa seguida de um apelo. Nesse dizer, o apelo não é dirigido diretamente ao professor; ao contrário, ao mesmo tempo em que mantém o distanciamento (é compreensível = todos compreendem), convoca o professor a ocupar o lugar junto àqueles que compreendem: se é compreensível, você, o professor, deverá também compreender. Contudo, aquilo que a aparente transparência do dizer oculta é o motivo real do número reduzido de coleções selecionadas para comporem as opções de coleções. No Guia, o parágrafo anterior a S3 inicia e introduz o item sob o título de “Sobre as coleções selecionadas” e informa:

No PNLD 2011, 37 coleções participaram do processo de avaliação pedagógica, sendo 11 de espanhol e 26 de inglês. Das coleções avaliadas, foram aprovadas duas de cada uma das línguas. As demais coleções foram excluídas por não cumprirem os critérios do Edital, o que, em alguns casos, poderia inviabilizar seu uso em sala de aula (BRASIL, MEC/PNLD, 2011).

Contrastando com as informações precisas sobre os números das coleções participantes, a informação que explicaria o número reduzido de coleções aprovadas é vaga

18 Língua Estrangeira Moderna.

e geral, pois espera-se que as coleções aprovadas cumpram os critérios e que as reprovadas não o façam, como em qualquer processo seletivo. Essa falta de precisão acaba abrindo espaço para todo o tipo de especulação sobre o que teria acontecido.

É interessante notar a presença de outro elemento argumentativo que parece também funcionar, na materialidade linguística, como uma suavização; isto é, uma modalização, semelhante às moldagens deformáveis da pós-modernidade, para lembrar Deleuze mais uma vez. Referimo-nos a “em alguns casos”, que ocorre na última sentença desse excerto de apoio que analisamos. Ou seja, de acordo com esses dizeres, se “em alguns casos” as coleções excluídas poderiam “inviabilizar seu uso em sala de aula”, em outros casos, isso não ocorreria; as coleções reprovadas seriam ainda viáveis. Esse uso da modalização não chega a caracterizar, como vemos, uma contradição. O que ocorre é o oferecimento de uma outra possibilidade, com o adiamento do fim, da conclusão. Isto é, assim como a recomendação da “leitura cuidadosa”, que analisamos acima, poderá ou não ser seguida pelo professor, também as coleções reprovadas inviabilizariam seu uso em sala de aula somente “em alguns casos”. Esses dizeres que não se estabilizam oferecem uma possibilidade de ação, como uma rota alternativa, ou ainda uma alternativa de fuga. Segundo Deleuze ([1990] 2008, p. 212), “uma sociedade nos parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga”. Parece-nos, então, que seja esse o papel das modalizações que observamos nas argumentações: oferecer linhas de fuga, garantindo o lugar para o surgimento de outras possibilidades e adiando a estabilização e o término, como as modulações que demandam intermináveis atualizações.

De todo o modo, o que o professor tem à sua frente são duas coleções aprovadas pelo PNLD 2011, para que ele faça sua escolha. Ainda em S3, na sentença que comporta a

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BRAGA, Maria Dolores Wirts. A construção discursiva da argumentação nas sociedades de controle: dizeres do discurso sobre a escolha do livro didático de inglês do PNLD 2011. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 60-71, jun.2013.

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terceira ocorrência da palavra “escolha”, o professor é instruído a fazer “essa escolha de forma criteriosa”. Porém, devemos atentar aos fatos de que o FNDE divulgou o Guia pela internet em 29 de abril de 2010, o prazo para o registro da escolha foi de 21 de junho a 4 de julho de 2010 e a informação sobre a necessária indicação de duas coleções de língua estrangeira por escola foi feita através da Carta Circular - Orientações para o Registro da Escolha do PNLD 2011 (6º ao 9º ano), n.o 04/2010, de quatro de abril de 2010, emitida pelo FNDE/MEC. Portanto, a Carta Circular foi divulgada vinte e cinco dias antes do Guia. O texto da Carta Circular diz:

7.2. Para cada componente curricular, deverão ser escolhidas duas opções (1ª e 2ª), de editoras diferentes. Preenchida a 1ª opção, o responsável só poderá gravar o registro da escolha se a 2ª opção estiver preenchida. (BRASIL, MEC/FNDE, 2010) [grifos do texto original]

Portanto, antes da divulgação do Guia, a Carta Circular já havia informado sobre a necessidade de serem escolhidas duas coleções. Os dizeres do Guia, ao orientarem os professores na escolha das duas únicas coleções que se apresentam analisadas e resenhadas, parecem desconsiderar essa exigência. Ainda que a “escolha” feita pelos professores tivesse o objetivo prático de estabelecer qual coleção seria selecionada como primeira opção, os dizeres do próximo item da Carta Circular, de algum modo, garantem a sobrevivência da coleção que ficaria em segundo lugar. Diz a circular:

7.3. Caso não se concretize a aquisição com a editora da 1ª opção, serão enviados os livros da 2ª opção. Por esse motivo, a escolha da 2ª opção precisa ser tão cuidadosa quanto à da 1ª. (BRASIL, MEC/FNDE, 2010) [grifos do texto original]

As informações da Carta Circular já seriam suficientes para poupar todo o esforço de elaboração e divulgação do Guia que, por

apresentar apenas dois títulos para a “escolha”, torna-se desnecessário. Mesmo assim, os dizeres do Guia seguem sem referência à Carta Circular, nem ao fato de que os dois títulos ali sugeridos devem ambos ser “escolhidos”, fazendo crer que uma escolha será realmente realizada.

Neste momento, apresentamos nossa última sequência discursiva, a quarta ocorrência da palavra “escolha”, encontrada após as listas de critérios usados na avaliação e antes do Quadro Comparativo e Resenhas das obras no Guia de livros didáticos – PNLD 2011.

(S4)

Boa escolha e bom trabalho!

Considerando-se que não havia escolha a ser feita, pois, como concluímos acima, ambas as coleções deveriam ser “escolhidas”, os dizeres em S4 tornam-se ocos e até um tanto irônicos; pois, se cada escola já havia sido instruída a escolher exatamente duas coleções, a necessidade de escolha fica simplesmente anulada. Mesmo assim, o funcionamento discursivo-argumentativo de S4 produz o efeito de incentivo aos professores em relação à sua participação nesse processo de adoção do primeiro livro didático de inglês em todo o território brasileiro.

A voz do professor

Finalizaremos este artigo oferecendo a palavra ao professor que utiliza o livro didático de inglês do PNLD 2011, para que possamos perceber alguns efeitos nos dizeres desses professores sobre a “escolha” que fizeram. Esses dizeres são respostas a um questionário que está ainda sendo recolhido e, até o momento, contamos com a participação de apenas oito professores. Assim como procedemos com o texto do Guia, buscamos pela palavra/tema “escolha” nos dizeres desses professores e a encontramos em quatro respostas. Ou seja, até este momento de coleta

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de dados, metade dos professores menciona a escolha em seus dizeres. Vejamos os dizeres dos professores19 abaixo.

(P1)

O elenco de livros a serem adotados já é previamente determinado por uma equipe e isso faz com que os professores não tenham, efetivamente, uma autonomia na escolha do material de apoio de suas aulas. Há uma predileção por livros de mesmo perfil “amadeumarquesiano”, dentre outros autores, que seguem uma linha de apresentação de enunciados em língua materna (língua portuguesa) e desenvolvimento de atividades em língua-alvo (língua inglesa), o que não reforça o vínculo com a prática deste idioma. A prática da língua-meta fica, portanto, bastante circunscrita. Não defendo o hermetismo de estudo das línguas, mas quero dizer que o processo de leitura e compreensão dos enunciados na língua-alvo faz parte de um trabalho que traz, sem dúvida alguma, resultados bastante satisfatórios.

(P3)

Pontos a ser melhorados: precisamos de mais opções de livros, e muitas vezes os livros escolhidos não são os que vêm para a unidade. Eu me considero sortuda, pois o livro que escolhi foi o que chegou, mas meus demais colegas de outras unidades escolares não receberam suas primeiras opções.

(P6)

O acesso ao material é positivo, mas a escolha dos livros deveria ser mais criteriosa no que se refere ao trabalho que se propõe

19 P refere-se a professor. P1 corresponde ao primeiro professor que respondeu ao questionário de pesquisa, P2 ao segundo professor que nos devolveu o questionário e assim por diante.

desenvolver em sala. Os alunos recebem os livros, mas é inviável utilizá-los na prática.

(P7)

Nem no ensino fundamental nem no ensino médio, eu recebi todas as coleções para analisar em tempo hábil. Na primeira escolha do LD eu só recebi o keep in mind, logo só podia escolher ele. Na escolha do ensino médio, recebi mais coleções, no entanto, se tivesse recebido todas, teria escolhido outra, que só recebi depois da escolha oficial.

Não vamos, neste momento, analisar detalhadamente as declarações dos professores que, aqui, contribuem na formação de um quadro que nos permite observar a posição que o professor ocupou no processo de escolha. P1 afirma que a pré-determinação dos títulos a serem adotados retira do professor o próprio direito de escolher o material com o qual trabalhará em seu dia a dia com os alunos. P3 pede por mais opções de títulos e respeito pela “escolha” que fez: “muitas vezes os livros escolhidos não são os que vêm para a unidade”. É preciso dizer que o suprimento do livro que o professor considerou sua primeira opção não deveria depender de “sorte”; pois, afirma P3: “Eu me considero sortuda, pois o livro que escolhi foi o que chegou”. P6 nega a viabilidade de usar os livros com seus alunos, questionando os critérios, ou a falta deles, na escolha do livro recebido e aponta à incompatibilidade, portanto, entre o livro e a aula. É interessante observar que P7 declara ter participado de uma reunião organizada localmente para a escolha do livro a ser adotado por sua escola. No entanto, para que os professores pudessem opinar e discutir sobre os livros que estavam sendo adotados para o PNLD 2011, precisariam ter recebido as duas coleções selecionadas “a fim de que a escolha conjunta” refletisse “os interesses coletivos”, nas palavras do Guia, como vimos. No entanto, P7 afirma ter recebido apenas uma das coleções. Assim, e mesmo tendo que

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escolher ambas, P7 e seus colegas não chegaram a conhecer a outra coleção.

Finalmente, consideramos que os dizeres desses professores, que já utilizam o livro didático de inglês do PNLD 2011, protestam contra a posição passiva que tiveram de ocupar durante o processo de escolha. Além disso, parece-nos que a questão da viabilidade de uso do material na prática do ensino deve realmente ficar a cargo do professor. Afinal, é ele quem conhece seus alunos, sua comunidade. Não nos parece suficiente respeitar nossa diversidade seguindo por esses mesmos caminhos por tanto tempo.

Considerações finais

Analisamos os dizeres de dois momentos do discurso oficial sobre a escolha do livro didático pelo professor da escola de ensino regular brasileira, tendo ainda, como apoio, os dizeres inscritos no primeiro livro de inglês utilizado no Brasil. Cada um desses momentos nos ajudaram a observar os modos de funcionamento da argumentação no discurso de três épocas: o período ainda marcado pela sociedade de soberania, com os inscritos no livro Grammatica pratica da Lingua Ingleza de 1989; o período da sociedade disciplinar da Segunda Guerra Mundial, com o Decreto-lei n. 8.460 de 1945; e o período pós-Segunda Guerra, que instala lentamente a sociedade de controle, segundo Deleuze ([1990] 2008, p. 219-20), com os excertos do Guia de Livros Didáticos do PNLD de 2011.

Na materialidade linguística dos dizeres, pudemos observar os elementos argumentativos que, ao mesmo tempo, caracterizam e se adéquam aos funcionamentos das sociedades em cada época. Nas sociedades de soberania, prevalecia a decisão do soberano, com o discurso em tom performativo e sem detalhamento ou justificativas; nas sociedades disciplinares, a argumentação se marcava pelo uso de comandos e imperativos, para garantir a

ordem, o controle e inculcar a disciplina; nas sociedades de controle, percebemos que os elementos argumentativos do discurso parecem contar com a contribuição da modalização, para assegurar o adiamento do término, através de processos contínuos e intermináveis, e para garantir caminhos alternativos e modos de fuga.

Por outro lado, a análise discursiva nos permitiu observar, para além de mudanças no funcionamento argumentativo dos dizeres, que a escolha dos materiais didáticos jamais esteve nas mãos dos professores que os utilizam. Não estamos sugerindo que todos os professores do país sentem-se e leiam todas as coleções submetidas ao programa de avaliação de livros, o que seria impossível e incabível. Porém, fazê-los crer que há uma escolha a ser feita quando não há é, em nossa opinião, o outro extremo. Devemos, pois, continuar nossa busca por políticas educacionais que, ao investirem suas forças no professor, façam da educação um lugar onde a voz do professor é a que fala mais alto.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei NP 8.460, de 26 de dezembro de 1945. Consolida a legislação sobre as condições de produção, importação e utilização do livro didático e utilização do livro didático. Disponível em http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-historico. Acesso em 15 mar. 2011. ______. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação: FNDE. Guia de livros didáticos – PNLD 2011. Disponível em http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-livro-didatico/2349-guia-pnld-2011. Acesso em 10 jun. 2010. ______. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação: FNDE. Carta nº 070, de 23.12.2008. Disponível em www.fnde.gov.br. Acesso em 10 jun. 2010.

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BRAGA, Maria Dolores Wirts. A construção discursiva da argumentação nas sociedades de controle: dizeres do discurso sobre a escolha do livro didático de inglês do PNLD 2011. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 60-71, jun.2013.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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CONCEITO DE FAMÍLIA NA REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DE ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUAi

Miguel Ângelo Moreiraii

Resumo: Busco, neste trabalho, tanto representar o conceito de família sob a ótica de adolescentes, pertencentes a famílias pobres, quanto ilustrar como eles constroem suas identidades num contexto de desagregação familiar. O método de análise segue os parâmetros da ADC, que embora compreenda várias vertentes teóricas e técnicas, aqui se alinha à proposta de análise léxico-gramatical hallidayana (1985, 2004), pois a intenção é a de investigar não só a exterioridade da linguagem (discurso), mas também sua interioridade (gramática). Assim, propõe-se a análise de uma pesquisa, inscrita nos moldes qualitativos, cujos resultados apontam para uma nova conceituação de família, que define e configura novas identidades no contexto da família contemporânea. Palavras-chave: Família. Desagregação familiar. Discurso. Transitividade. Abstract: The aim of this paper is to represent the concept of family from the perspective of teenagers’ who belong to poor families, as well as to illustrate how they build up their identities in the context of family fragmentation. The method of analysis follows the framework of CDA, which despite comprising different theoretical paths and techniques, here it aligns itself with the proposal of Halliday's lexical-grammar analysis (1985, 2004), since the intention is not only to investigate the exteriority of language (discourse) but also its interiority (grammar). In order to achieve the research goals, a qualitative base analysis was adopted and the results point to a new concept of family which defines and establishes new identities in the context of the contemporary families. Keywords: Family. Family fragmentation. Discourse. Transitivity.

i Este artigo constitui parte dos estudos desenvolvidos no Grupo Brasileiro de Estudos de Discurso, Pobreza e Identidades, o qual integra a REDLAD. ii Doutorando em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de Língua Portuguesa da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, Brasil. E-mail: [email protected].

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Introdução

Vivemos num mundo globalizado, independente de nossas escolhas ou desejos. A sociedade contemporânea mostra-se em constante mutação e, de forma específica, o debate sobre as questões que tratam da concepção atual de família e de seu papel na sociedade representa uma engrenagem importante na engenharia da rede de poder que move a sociedade. Portanto falar em transformação ou mudança nos moldes tradicionais da família é mexer em “casa de abelha”, uma vez que historicamente esta pequena comunidade constitui o alicerce sobre o qual se sustenta toda a sociedade. Contudo, não há como negar os contornos que a globalização vem desenhando e remodelando uma nova concepção de família na atualidade.

De acordo com Castells (2003, p. 30), dois são os fatores determinantes para tal mudança: a globalização e a crise da família patriarcal. A primeira atua na dissolução da autonomia das instituições, organizações e sistemas de comunicação nos locais onde vivem as pessoas. Já a crise da família patriarcal, configura-se como o enfraquecimento do modelo familiar baseado na assimetria de autoridade/dominação do homem sobre toda a família. Ainda segundo esse autor, o enfraquecimento desencadeou-se a partir de alguns fatores, dentre eles: o declínio das taxas de fecundidade, o aumento do número de separações conjugais, a elevação do nível educacional das mulheres e sua maior participação no mercado de trabalho. Em outras palavras, as mudanças no código civil, os avanços na biomedicina e, principalmente, a mudança nos papéis sociais da mulher parecem contribuir decisivamente para a fragmentação do núcleo tradicional de família (pai, mãe e filhos), gerando rupturas. Uma das consequências imediatas é o que denominei, em trabalho anterior, de “desagregação familiar parcial”1. Tal processo sugere o

1 Para mais detalhes, confira Moreira (2009).

rompimento parcial no tempo de convivência entre mãe e filho(s); ou seja, enquanto as mulheres/mães “rompem as paredes do lar” para ganhar o mundo, parece afrouxarem também, gradativamente, os laços de convivência com os filhos. De acordo com Moreira (2009, p. 84), essa situação parece estar sendo “camuflada” pelas atuais conquistas feministas, uma vez que o indivíduo passou a ser mais importante que seu núcleo familiar. Ressalte-se que não se parte para a defesa do “machismo”, pois acreditamos que as conquistas da mulher são necessárias e positivas. Nesse sentido, o que se deve levar em conta são os efeitos colaterais gerados por esse processo gradativo de desagregação entre mãe e filho(s). Por isso, o tema “desagregação familiar parcial” tornou-se uma “chave de ignição” para se compreender o que os adolescentes pensam sobre família nos dias de hoje, e como a mudança na estrutura familiar (tradicional ou clássica) pode afetar as escolhas dos caminhos seguidos pelos jovens brasileiros.

Na tentativa de entender essa nova realidade, o presente estudo mergulha no universo da experiência de vida de adolescentes, pertencentes a famílias pobres, com o intuito de averiguar em que medida a “desagregação familiar parcial” e a experiência nas ruas se entrelaçam na construção identitária dos jovens de hoje, – que, a meu ver, movimenta um problema social, que tem sua origem na atualidade. Para tanto, trago a este trabalho um recorte da minha dissertação de mestrado, apresentada à Universidade de Brasília em 2007, que envolve uma análise linguístico-discursiva de relatos de adolescentes moradores do Município de Luziânia, Estado de Goiás, gerados mediante entrevistas realizadas nos moldes da pesquisa qualitativa. Os dados empíricos foram colhidos junto a duas instituições públicas responsáveis pela reintegração de jovens na sociedade2. 2 Para mais detalhes, confira Moreira (2007).

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Para a análise desses dados, toma-se como base de reflexão estudos voltados para o sistema de transitividade na perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF), o que será apresentado na próxima seção. Em seguida, apresento uma breve contextualização sobre família e destaco alguns posicionamentos que trazem à luz as atuais transformações consubstanciadas no universo familiar na atualidade. Por fim, apresento a análise de um recorte de entrevistas-narrativas feitas com 12 adolescentes, participantes da minha pesquisa de mestrado, tomando como instrumento de análise léxico-gramatical o sistema de transitividade, na vertente de Halliday & Matthiessen (2004).

1 LSF: sob a lupa do sistema de transitividade

O modelo da LSF, que vem sendo desenvolvido por Halliday (1976, 1978, 1985, 2004), implica uma teoria linguística voltada para a análise da gramática baseada na noção paradigmática de escolha. Para esse autor (1994, p. XIII), a linguagem é usada para diferentes propósitos e em diferentes contextos e situações que emolduram sua estrutura, ou seja, a LSF “analisa e explica como os sentidos são construídos nas interações linguísticas do dia-a-dia” (EGGINS, 2004, p. 1), em todas as atividades que envolvem a linguagem, isso sempre em torno de um propósito ou de uma função. Conforme observa Eggins (1994, p. 1-2), a abordagem sistêmica está sendo reconhecida como uma teoria que provê uma estrutura teórica para interpretação e descrição muito útil ao ver a linguagem como um recurso estratégico de produção de sentido. Essa é a razão da preocupação em verificar como a linguagem é usada pelas pessoas ou como ela é estruturada para o uso. Deve-se aclarar, aqui, que a concepção de linguagem como um potencial de significados à disposição dos atores sociais

tem sido difundida também por outros estudiosos da área, entre os quais Martin (1992) e Thompson (1996).

De acordo com Halliday (1978, p. 157), “gramática é o mecanismo linguístico que liga uma às outras as seleções significativas que derivam das várias funções da língua, e as realiza numa forma estrutural unificada”. Nesse sentido, a organização interna da estrutura linguística incorpora as funções que a língua desenvolveu para servir na vida do homem social, pois a linguagem deve ser compreendida como um sistema de comunicação entre pessoas.

Nessa perspectiva funcionalista, Halliday & Matthiessen (2004, p. 169) afirmam que “a palavra ou a oração constrói uma relação de significação entre um mundo e os seus significados”. Portanto os textos representam simultaneamente aspectos do mundo físico, social e mental. É nesse sentido que a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) mais se coaduna com a perspectiva da Análise de Discurso Crítica (ADC), uma vez que considera os componentes linguístico e social num escopo teórico dos estudos da linguagem.

Para representar os aspectos ligados aos mundos físico, social e mental, Halliday (1976) sugere a função ideacional, que organiza o sistema de transitividade da língua através dos processos (grupo verbal), participantes (grupo nominal) e circunstâncias (grupo adverbial ou preposicional)3. Ainda segundo Halliday & Mathiessen (2004, p. 169), “cada processo provê seu próprio modelo ou esquema, que constrói um domínio particular de experiência como uma figura de um tipo particular”, ou seja, cada processo dá corpo a esquemas conceituais, traduzidos pela gramática da experiência como significados discursivos. Nesse sentido, a “gramática da experiência” é constituída na relação entre a linguagem e o social, assim como propõe a ADC quando oscila entre um foco em textos 3 O sistema de transitividade realiza ou constrói o significado.

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específicos e um foco na estruturação social de uma língua/linguagem e sua parceria com determinadas práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2003). Para Halliday & Hasan (1985, p. 5), o conhecimento sócio-linguístico se transmite, se cria e se recria em contextos sociais (situacionais ou culturais), através de relações sociais (práticas discursivas) como “as de pais/filhos, ou professores/alunos, [relações] que são definidas pelas ideologias e pelos sistemas de valores de cultura”. Esses autores acrescentam que “as palavras que se intercambiam nestes contextos adquirem significados nas atividades em que se inserem, que também são atividades sociais”. Desse modo, a linguagem pode ser vista como uma forma de prática social que intervem, influencia ou constrói as nossas experiências, identidades e visões do mundo, apresentando-se não apenas como um meio de descrever o mundo e veicular informação, mas também como uma maneira de provocar mudanças no mundo e expressar visões e pensamentos.

2 Uma breve contextualização sobre as mudanças no contexto da instituição família

Segundo Woodward (1997, p. 18), “as mudanças e transformações globais nas estruturas políticas e econômicas no mundo contemporâneo colocam em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirmação e manutenção das identidades nacionais e étnicas”. De acordo com Hall, “um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX”. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.

Nesse contexto, a família, como uma instituição jurídica e social, também foi marcada por tais transformações, modificando-

se ou reestruturando-se, conforme veremos no próximo item. Desse modo, o tema família torna-se instigante quando a tradição está fragmentando-se e modificando-se. As recentes transformações no universo familiar apresentam-se, aqui, como um vetor na investigação do papel da família na formação identitária de crianças e adolescentes, o que será ilustrado nas próximas subseções.

2.1 Família como instituição socializadora primária

De acordo com Moreira (2007, p. 9), uma família, de modo geral, é um conjunto de indivíduos, com identidade de valores manifestados em preferências similares, além de encontrar-se vinculados por laços consanguíneos, consensuais, jurídicos, afetivos etc. Alinhada a esta perspectiva, também é um consenso afirmar que a família é o núcleo responsável por grande parte da construção das nossas crenças, comportamentos e, inclusive, identidade. Para Giddens (2002, p. 42), “desde os primeiros dias de vida, o hábito e a rotina desempenham um papel fundamental na construção de relações no espaço potencial entre a criança e os que cuidam dela”. Ainda segundo esse autor, “conexões centrais são estabelecidas entre a rotina, a reprodução de convenções coordenadoras e os sentimentos de segurança ontológica nas atividades posteriores do indivíduo”. Nesse sentido, a estrutura familiar envolve os mais diversos interesses, individuais ou coletivos, e se constitui numa das mais importantes instâncias da ordem hegemônica, sendo um dos principais núcleos de socialização.

Por assim dizer, a função básica da família seria a de preparar a criança, o jovem para se tornar um membro de convívio social, que respeita todas as regras e formas de condutas exigidas pela sociedade. De acordo com Giddens (2002), as famílias desenvolvem uma espécie de currículo de ensinamentos com os quais é possível delimitar as fronteiras da

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sexualidade, fundamentais para a inserção da criança na sociedade. Isso porque, segundo Vieira (2005, p. 224), “os pais são os primeiros responsáveis pela definição de modelos identitários, assim como pela reprodução cultural de valores e de princípios morais e éticos e também sexuais de cada sujeito”. A instituição família, dessa forma, prevalece na “primeira educação”, na repressão dos instintos, na aquisição da língua, na transmissão dos valores e comportamentos sociáveis, uma vez que transmite estruturas de comportamento e representação que ultrapassam os “limites da consciência” (WOORTMANN, 1987). Em resumo, é na família, então, que os indivíduos encontram suas primeiras referências identitárias. Trata-se de um valor de consenso que ecoa também nos estudos voltados para a Linguística, dentro da área de Análise do Discurso, como sugerem Pardo (2005) e Silva (2007), para quem a família constitui o eixo central na formação da identidade das pessoas. Dessa forma, a família torna-se a essência da sociedade. Por assim dizer, é uma instituição que a sociedade preza, porque é a partir dela que valores e princípios morais e éticos são disseminados. Ela é, por isso, uma das engrenagens da grande máquina de poder que move a sociedade. Um poder que pode estar sendo ameaçado pelos efeitos da globalização e de outros fatores, como se nota na próxima subseção.

2.2 A família contemporânea em um processo de transformação continuum

Para Castells (2003, p. 173), os estudos que enfocam as transformações das famílias, motivadas pelas mudanças advindas da pós-modernidade, apontam um enfraquecimento do modelo de família baseado na autoridade do homem sobre a mulher e os filhos no âmbito familiar, tendo o pai como provedor da base econômica e do sustento da família e a mãe como responsável pelos afazeres domésticos e pela educação (criação) dos

filhos, além do dever de submissão ao homem. Esse modelo de família constitui a base que sustentou por séculos a vigência do patriarcalismo, que ainda impera em alguns países, embora esteja se dissolvendo ou se modificando em quase todo o mundo. Sobre isso, comenta Castells, ao registrar que foi na década de 1990 que surgiram os primeiros indicadores da crise no modelo patriarcal em quase todas as sociedades, principalmente nos países mais desenvolvidos, mas que está difundindo-se também na América do Sul, como revela estudos de Maria Laura Pardo sobre família e pobreza. Em seus estudos voltados para o conceito de família, Pardo (2005, p. 1) afirma que a família de origem4 costuma agir expulsando seus membros do lar. Enfatiza a pesquisadora argentina que a perda da família de origem equivale ao encrave da ruptura ou crise do processo identitário. Parece que a crise instaurada no núcleo familiar, conforme apontam os autores, citados neste parágrafo, pode ser observada também no contexto brasileiro5, tornando-se uma “chave de ignição” para ligarmos as atuais representações discursivas de adolescentes sobre o conceito de família e como suas identidades têm sido construídas num contexto de desagregação familiar.

No âmbito da família de origem, estão se constituindo novas relações de convivência, que ocorrem de várias maneiras, conforme apontam os estudos de Machado (2001), cujas ideias destaco a seguir:

• relaxamento dos controles sociais sobre o comportamento dos cônjuges;

• deslocamento da relevância do grupo familiar face ao status de seus membros, ou seja, o indivíduo passou a

4 Considera-se “família de origem” aquela formada pela junção de pai, mãe e filhos, ligados por laços consanguíneos (cf. PARDO, 2005). Também chamada de Família Natural pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art, 25, da Lei nº 8.069 / 90). 5 Conforme apontam os estudos de Moreira (2007).

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ser mais importante que seu núcleo familiar;

• perda da ideia do “amor”, até mesmo como condição para a permanência conjugal;

• substituição de uma “educação retificadora”, corretora e moral das crianças, por uma “pedagogia da negociação”.

Além desses pontos, incluo aqui,

também, outro fator de transformação na família contemporânea, talvez fruto dessas questões apontadas acima, que é a desagregação dos laços de convivência entre mãe e filhos, que será comentado na próxima subseção deste artigo.

2.3 Até que ponto o efeito avassalador da Globalização e dos movimentos feministas modifica a estrutura familiar?

De acordo com Castells (1996, p. 16), “uma característica fundamental da nova sociedade refere-se à transformação da condição da mulher nos países mais desenvolvidos”. As recentes conquistas feministas estão cada vez mais alterando os espaços em que a mulher ocupa na sociedade e, portanto, no lar. Ainda segundo esse autor, “a necessidade econômica de incorporar a mulher dentro do mercado de trabalho e a pressão de um poderoso, ainda que difuso e dividido, movimento feminista combinam-se para criar um novo terreno histórico que já teve um impacto fundamental na totalidade do sistema social”. Conforme anunciado na seção anterior, o primeiro e mais importante impacto tem sido na família. Sugere Castells (2003, p. 5), esse autor sugere também que a busca de um projeto de identidade da mulher contemporânea foi o pilar mais sólido que sustentou a base do feminismo, cujo intuito era construir uma nova identidade capaz de redefinir a posição da mulher na sociedade.

Para tanto, esse fenômeno, englobado e sustentado pela globalização, vem enfrentando a tradição secular do patriarcalismo, ou seja, de toda a estrutura, reprodução, sexualidade e personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se estabeleceram.

De dona de casa, papel privatizado em alguns casos, a mulher assume um status definitivo no mercado de trabalho externo ao lar de origem. Em troca, ela vem rompendo gradativamente os laços de convivência com os filhos para dar conta dos novos papéis assumidos na sociedade como um todo. Em outros termos, ao buscar o seu espaço no mundo capitalista, a mulher entra em simbiose com os papéis historicamente masculinos para definitivamente romper as paredes do lar. De acordo com Vieira (2005, p. 235), “a luta feminista para a equiparação das mulheres aos homens no que toca ao trabalho não está favorecendo o sexo feminino, ao contrário, está masculinizando-a”. Desse modo, a mulher não apenas assume funções historicamente masculinas, mas tem que compartilhá-las com outras funções historicamente femininas, como os cuidados com o próprio corpo, com os afazeres domésticos e com os filhos. Nesse sentido, o aspecto temporal parece entrar em contradição com o espacial, pois quanto mais a mulher conquista espaço socioeconômico menos tempo terá para cuidar dos filhos – é o que anunciam e comprovam os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada entre os anos de 2001 a 2005. De acordo com Soares & Sabóia (2007), coordenadoras dessa pesquisa, os dados da PNAD mostram que a mulher ainda contribui mais que o homem nos afazeres domésticos, no entanto, o tempo de permanência com os filhos tende a se reduzir em função da participação no mercado de trabalho. Para essas pesquisadoras brasileiras:

as filhas mulheres gastam 14,9 horas semanais em afazeres domésticos e sua carga de trabalho aumenta ainda mais se elas vivem em um lar onde a mãe não tem cônjuge e tem filhos maiores

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e menores de 14 anos (17,5 horas semanais). Neste tipo de arranjo, geralmente recai sobre as meninas tais afazeres porque se a mãe não possui cônjuge e é responsável pelo sustento da família no mercado de trabalho, é praticamente inevitável para as meninas o trabalho doméstico e cuidado dos irmãos. [grifos meus] (SOARES & SABÓIA, 2007, p. 23).

Em outra palavras, a “independência” social, política e econômica da mulher (especialmente se esta é mãe) parece fazer com que o papel da figura materna esteja sendo gradativamente, delegado para outro membro (familiar ou não). Essa transferência de papéis sociais, tomando apenas como base o âmbito interior da família, atinge tanto as funções relativas aos cuidados com as atividades domésticas (como limpar, lavar, passar etc), quanto com a criação e educação dos jovens, pelo menos para essa situação apontada acima. Isso porque as condições de ausência ou indisponibilidade de equipamentos e serviços sociais públicos de atendimento à criança fazem com que ela seja entregue aos cuidados de parentes ou, em algumas condições, fiquem abandonas ou “soltas”, como veremos na seção 3.2 mais adiante. Em outros termos, as mudanças de papéis sociais (ou político ou econômicos) parecem ter vindo desacompanhadas de um sistema de proteção e acolhimento às crianças, principalmente em família onde a figura paterna inexiste (pelo menos no que diz respeito à convivência com os filhos, a exemplo das famílias monoparentais), como é o caso dos atores sociais que compõem os dados apresentados a seguir (seção 3.2).

3 Geração e análise de dados

Para a realização da pesquisa, optou-se pela abordagem qualitativa, com a intenção de trabalhar o sentido e o conteúdo das representações da vida social dos adolescentes que integram a nossa delimitação, além da observação dos significados atribuídos tanto à própria ação quanto à relação com o outro.

Para tanto, utilizo como técnica para coleta de dados entrevistas semiestruturadas com um único respondente, também conhecidas como entrevistas em profundidade, no intuito de obter narrativas espontâneas de jovens de famílias pobres. Esse tipo de entrevista, como bem observa Jovchelovitch & Bauer (2002, p. 93), possibilita o encorajamento do informante a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social.

Ao relacionar a Gramática Sistêmico-Funcional aos estudos sobre representação e discurso, apresentamos uma das formas pelas quais o gênero desencaixado entrevista narrativa pode ser explorado a partir da perspectiva sistêmico-funcional de linguagem, ilustrando a aplicação dos conceitos por meio de dados coletados com adolescentes em situação de rua. O propósito é vincular a gramática a representações discursivas sobre a construção da identidade de adolescentes num contexto de desagregação familiar. Nesse sentido, a LSF, conforme mencionamos na seção 1, será empregada na análise dos nossos dados pelo fato de ser uma corrente que tem como preocupação entender os modos pelos quais a linguagem é usada para diferentes propósitos e em diferentes contextos e situações que moldam sua estrutura.

3.1 A representação discursiva de adolescentes sobre o conceito de família

Os exemplos, apresentados nos tópicos seguintes, configuram um recorte das entrevistas-narrativas de adolescentes, colhidas entres os meses de fevereiro e junho de 2007 em duas instituições responsáveis pela reintegração de jovens na sociedade, ambas localizadas no município de Luziânia, Estado de Goiás6. Destaca-se, aqui, o discurso narrativo de adolescentes que deixam subjacentes as marcas da interação dialógica com o pesquisador (observador participante). 6 Para mais detalhes, consulte Moreira (2007, p. 76-77).

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Tal procedimento facilitou o mergulho analítico no sistema de transitividade hallidayano, com foco nos aspectos relacionados à representação da experiência de mundo dos entrevistados7. Entretanto, a análise será apresentada a partir de processos que tiveram um número expressivo de ocorrências nos exemplos, os quais compõem um fragmento da investigação realizada em minha pesquisa de mestrado.

O exemplo (1), a seguir, faz parte de um trecho de entrevista feita com o adolescente Felipe8 que, no momento da pesquisa, encontrava-se internado no Centro de Apoio Sócio-Educativo à Infância e à Adolescência (CASEIA) de Luziânia9. Esse adolescente define família da seguinte forma:

(1) Família é uma união, né... minha mãe... e meus irmão... só /.../ Ela me dava conselho, né... falava que... a vida do crime não compensa... falava pra mim não usá drogas... e caçá uma igreja como ela, que... / Falava que é... se deve sê honesto ((aí o que você falava pra ela?)) falava, mãe... um dia eu vou tomá jeito, né...

(FELIPE, 14 anos/CASEIA)

O exemplo (1) permite identificar um discurso de representação social, objetivado pela expressão verbal “ser” em família é uma união, que nos remete ao que o senso comum definiria como família ideal, conforme vimos na seção 2, ou seja, a união entre mãe, pai e filho(s) simbolizada como a única forma de estrutura familiar aceitável para a formação de um indivíduo (com suas devidas exceções como em casos de maus-tratos ou outras formas de violência doméstica). Esta união 7 Embora Halliday e seus seguidores tenham aplicado a teoria sistêmica ao inglês, propomo-nos, para este contexto, aplicá-la ao português com as devidas adaptações aos diferentes sistemas. 8 Por motivos éticos, os nomes citados neste trabalho são pseudônimos. 9 Cf. Moreira (2007).

representa a simbologia de uma instituição, ancorada na tradição familiar e difundida socialmente como modelo de família ideal. Entretanto, quando Felipe define família como uma união apenas entre mãe e filhos, logo no início da narrativa em destaque, o adolescente sugere uma mudança na concepção de família tradicional e indica pistas para o surgimento de um novo conceito, que vai ser definido principalmente pelas ações realizadas no mundo físico10. No exemplo acima, tem-se que a meta da família (ou da mãe), configurada na expressão dar conselho, é legitimada pelo adolescente como o principal laço que une e constitui uma família, conforme explicitado nas estruturas (1a), (1b) e (1c) abaixo:

1a) Ela me dava conselho, né

Ela [a mãe]

me dava conselho né (forma sincopada de não é)

ator bene-ficiá-rio

proc. mate-rial

meta conector pragmá-

tico

(1b) (ela) falava pra mim não usá drogas...

(ela) falava pra mim

não usá drogas

dizen-te

proc. verbal

recep-tor/ ator

circ. nega-ção

proc. mate-rial

Meta

(1c) e caçá uma igreja como ela

e caçá uma

igreja como ela

conec-tor

proc. material

meta conector ator

Do ponto de vista linguístico-textual, os

verbos utilizados configuram experiências de vida no mundo físico do narrador, que são traduzidas a partir da projeção de orações 10 Para Halliday & Mathiessen (2004, p. 179), o mundo físico é descrito pelo processo material, que constrói a realidade exterior do falante. Os autores afirmam que “as orações materiais são orações de fazendo-e-acontecendo”, as quais geralmente descrevem ações concretas ou tangíveis e eventos do mundo físico.

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materiais pelo processo verbal falar11. Ao narrar sua experiência de vida no contexto familiar, o adolescente revela que a proximidade ou união da mãe com os filhos, ensinando-os “o certo” e “o errado”, parece indicar um fator importante para a construção de sua identidade. Com isso, nota-se que esse adolescente tem consciência das regras de conduta impostas dentro do âmbito familiar, as quais conformam os princípios e valores morais e éticos adquiridos na educação primária. Tal fato pode ser evidenciado na avaliação do jovem sobre seu papel como filho e aprendiz. Esse duplo papel está marcado por um desejo implícito, caracterizado pelo processo relacional ser, como se pode observar na estrutura (1d) e (1e) a seguir. Vejamos as estruturas seguintes:

De acordo com Fairclough (2003), as

avaliações podem ser implícitas ou explícitas e declaradas em termos de valores, sendo que as declarações com juízo de valor referem-se a algo que é desejado ou não e a importância que se dá a algo. Seguindo essa linha de raciocínio, temos os processos relacionais, que, segundo Halliday & Matthiessen (2004), codificam significados sobre estado de ser, ou seja, esse tipo de processo aborda diferentes maneiras de se autoavaliar no discurso. Nessa perspectiva, ao fazer uma avaliação sobre o

11 Umas das características do processo verbal, segundo Halliday, é a de projetar outras orações (cf. GUIO & FERNÁNDEZ, 2005; EGGINS, 2004).

seu papel na família, o adolescente mostra que a escolha do certo e do errado passa por uma busca incessante pela construção de sua identidade, que se revela fragmentada no mundo das relações abstratas em função do desejo de atender aos conselhos da mãe e as ações praticadas no mundo físico, as quais pressupõem a sua atual realidade. Assim, quando afirma vou tomá (tomarei) jeito, o adolescente avalia sua conduta e expressa o desejo de ser honesto, embora a expressão circunstancial um dia aponte para a incerteza quanto ao seu papel no âmbito familiar e a que caminho seguir, o que sugere uma crise de identidade. Por assim dizer, a tentativa de construir sua identidade no contexto da família confronta com um mundo instável, em crise de valores, fragmentado, impondo-lhe uma

direção obscura sobre o que ser ou o que fazer. Portanto, a busca do que deve ser – honesto ou não – culmina nas ponderações do adolescente sobre o papel da família e o seu papel nesse contexto, gerando uma crise que pode estar ligada aos efeitos da desagregação familiar. O emprego da expressão circunstancial só – no segmento oracional Família é uma união, né... minha mãe... e meus irmão... só – evidencia a exclusão da figura paterna, que pressupõe uma desagregação no núcleo familiar, caracterizada pela ausência de um membro do convívio do adolescente.

Desse modo, a seleção de processos material, relacional e verbal configura as

(1d) (ela) falava que se deve sê honesto

(ela) falava que se deve sê honesto

dizente proc. verbal

conector forma finita

(verbo auxiliar)

proc. relacional atributo

clítico predicador

(1e) Um dia (eu) vou tomá (tomarei) jeito né

Um dia (eu) vou tomá (tomarei) jeito né

circunstância portador proc. relacional atributo conector

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escolhas lexicais que o adolescente faz para representar sua visão de mundo. Segundo Hall (2003, p. 378), as leituras que os atores sociais – no caso aqui os adolescentes – fazem “surgem da família em que foram criados”, dos lugares que frequentam. Desse modo, o indivíduo desenvolve suas habilidades no contexto a que tem acesso. Talvez isso justifique, pelo menos em parte, o motivo precípuo para Felipe, ao falar de família, trazer à tona, mesmo que implicitamente, sua experiência com a criminalidade, conforme expressa o segmento oracional – (eu) falava, mãe... um dia eu vou tomá jeito, né...12. Nesse enunciado, o jovem enfatiza uma informação que ele considera relevante, uma vez que representa um fato real em sua vida. Isso permite inferir que a perda do vínculo familiar afeta a identidade desse jovem de tal modo que pode interferir na opção pelo caminho a percorrer na vida e não a falta de discernimento entre o que é certo e o que é errado. Tal opção pode estar relacionada a processos de desagregação familiar que tendem a afastar “os filhos” do convívio com os pais de origem, como será evidenciado na próxima subseção.

3.2 A construção da identidade num contexto de desagregação familiar

Vimos, na seção 2, que estudos mostram que um dos fatores relativos ao enfraquecimento da família patriarcal justifica-se, relativamente, pela inserção da mulher/mãe no mercado de trabalho remunerado, o que tem obrigado a mulher a redefinir seu papel, inclusive, no contexto familiar. Se antes (na família tradicional/patriarcal) a mulher possuía como função inerente o cuidado com o lar, incluindo a criação e educação dos filhos, a

12 Em Moreira (2007, p. 115), Felipe atesta seu envolvimento com a criminalidade, materializado no elemento verbal “roubar”, o qual retrata uma experiência real vivenciada por esse adolescente no mundo da violência e talvez justifique sua internação no CASEIA.

complexidade da modernidade delegou, pelo menos com mais abrangência, outro papel: o de profissional. Essa situação, a qual eu tenho denominado de “desagregação familiar parcial”, refere-se ao afastamento temporário dos pais do convívio com os filhos, como quando a mulher-mãe sai de casa para trabalhar fora do ambiente em que se reúne sua família de origem. O resultado pode ser a perda de vínculos afetivos e de convivência, como bem observa Oliva (2003, p. 67) ao denunciar que “as preocupações com o amanhã, as pressões e as incertezas engendradas pelo mercado [de trabalho] globalizado vão gestando um significativo número de pessoas que não mais investem na afetividade, no apoio, no aconchego”, pelo menos em alguns casos. Por assim dizer, cada vez mais, as mães parecem distanciar-se ou desagregar-se gradativamente (e não exclusivamente), pelo menos no tocante ao tempo convivência com os filhos, como ficou ilustrado no excerto (2), a seguir:

(2) ((Com que você já morou?)) Minha tia... Morei três anos com a minha tia... /..../ Porque minha mãe trabalha num... setô de chácara... Ainda era longe da escola... Aí, como minha tia morava aqui no Jardim Ingá... Aí, tinha escola mais próxima, eu... ficava com minha tia... Morava com minha tia só pra eu ir estudá... Aí, só por isso... /..../ Era mei ruim, ficá sem a mãe, né... A mãe longe demais... pa estudá... tem que morá...

(SIMÃO, 16 ANOS)

Na entrevista-narrativa de Simão, a maioria dos segmentos oracionais, que tecem seu discurso, envolve processos materiais, os quais caracterizam a experiência do mundo físico do adolescente com relação à desagregação familiar por ele vivida. Como se a inclusão do adolescente na escola sobreviesse à desagregação, já que não havia escolas próximas ao trabalho da sua mãe. Nesse sentido, quando o participante ator é a figura materna, evidencia-se uma situação de

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rompimento dos vínculos que atam a convivência cotidiana entre mãe e filho(s). A ocorrência da forma verbal “trabalhar” parece ser um reflexo de uma ação que alimenta a ausência da mãe do convívio com o adolescente (já que a necessidade econômica prevaleceu), o que se faz sentir na avaliação do adolescente sobre a desagregação familiar parcial, evidenciada no comentário avaliativo seguinte – “era mei ruim ficá sem a mãe, né...” – examinado parcialmente na estrutura abaixo:

A ocorrência de orações com processos

relacionais, em (2a), aponta o significado representacional do discurso, traduzido como uma espécie de “grito” de alerta para a situação de “abandono” dos filhos, o que sugere a busca de políticas públicas voltadas para a aproximação de crianças e adolescentes às suas famílias de origem, tais como: redução de carga horária para mulher-mãe, criação de escolas em tempo integral, obrigatoriedade da presença de pais nas escolas periodicamente (como forma abono profissional) e assim por diante. Desse modo, acreditamos que os efeitos colaterais gestados pelas transformações por que passam os arranjos familiares no universo investigado não implantem “sementes” de descaso ou “abandono” na vida de crianças e adolescentes, particularmente de famílias pobres. Isso porque tais transformações têm ocorrido involuntariamente na vida desses jovens, restando-lhes a sujeição às regras que lhes são impostas, como fica patente no comentário avaliativo seguinte – “A mãe longe demais... pa estudá... tem que morá”. Essa situação explica, pelo menos em parte, um das razões para a circulação de crianças por outros

ambientes (fora do lar de origem). Ressalta-se, portanto, que a diminuição de tempo de convivência entre mãe e filho(s), pelas razões mencionadas acima (excerto 2, por exemplo), não é o único fator de desagregação familiar, mas parece ser um elemento novo que merece destaque pelas consequências negativas apontadas até o momento.

Nesse sentido, não defendemos aqui a culpa da desagregação familiar à mulher. O que deve ser avaliado é a consequência gerada

pela diminuição do tempo de convivência entre mãe e filho e a ausência de políticas públicas voltadas ao resgate de valores e princípios morais adquiridos na educação primária, possivelmente prejudicados pela situação de desagregação familiar parcial, como apontou o exemplo 3. Desse modo, é importante frisar que o foco não é a saída da mulher para trabalhar fora do âmbito doméstico (do lar de origem), mas sim os efeitos que a diminuição no tempo de convivência entre mãe e filhos exerce na construção da identidade de crianças e adolescentes de hoje.

Por isso, como ilustrou o discurso de Simão, a única alternativa pode ser a resignação e, às vezes, revolta ante a evolução do quadro de mudança da instituição familiar de origem (e suas consequências internas, como violência doméstica, alcoolismo, ausência do pai etc), somada à carência de políticas públicas de proteção à criança ou adolescente em situação de risco, como também se nota no próximo excerto. Vejamos:

(3) ((O que sua mãe gostava de conversar com você?)) Ela nunca conversô comigo, não... Vivia só bêbada, né... Nunca conversô

(2a) era mei ruim ficá sem a mãe, né...

era mei (meio) ruim ficá sem a mãe né (forma sincopada de não é)

proc. relacional

circ. de modo

atributo proc. relacional

atributo conector pragmático

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comigo, não ((E seus avós?)) Ah, me dava os conselho, né... Falava que eu tinha que estudá, meu!... Arrumá um curso... Saí dessa vida... Que eu andava roubano!... Pará com isso, né... ((E a sua tia, o que ela conversava com você?)) Era a mesma coisa, né... Pará de fazê coisa errada... Estudá... um monte de coisa... ((Por que você saiu da casa dela?)) Porque jogava na cara, rapaz... Ficava jogano na cara... Nem era obrigação deles cuidar de mim... porque minha tia já cuida de dois irmão meu já... Cuida dos meus irmão já... ((Mas você que decidiu sair (para a rua)?)) Foi!... Foi complicado, né... Depois que passava fome na rua. Frio!... É ruim... Arrumava um lugá ali debaixo e dormia... /..../ Aprende só coisa ruim, o que num presta, aprendia... Aprendia o que num prestava... Usá droga, roubá, né... Fazê umas coisa errada... ((Isso acontecia quando você estava em casa, quando tinha alguma pessoa pra conversar?)) NÃO, num acontecia!... Quanto eu tava ni minha tia... Ser amado, né... Bem cuidado, né... Era bom ((Quando você tinha todo esse cuidado, essa proteção, você num pensava em roubar, não?)) Num pensava, não... ((O que te levou a ser violento?)) Minha família que viraro as costa pra mim, quando eu mais precisava... quando eu era pequeno, né... porque eu queria um carinho... um calô de mãe, e num tive... ((Então você acha que a ausência dos seus pais fez você seguir esse caminho?)) Foi... Eu num recebi nenhum conselho, né, dos pais... ((Se seus pais fossem mais carinhosos e mostrassem o que é certo e errado, mesmo assim você se envolveria com violência?)) Acho que não... Se eles tivessem me dado (xxx), cuidasse de mim, né... viraria não... Num tinha não... Faltô carinho, faltô um colégio pra estudá, meu... num tinha não!

(JUDAS, 17 ANOS)

Logo no início do relato de Judas13, nota-se que os segmentos oracionais envolvem processos verbais, normalmente presentes em 13 Este jovem, na ocasião da entrevista, estava internado no CASEIA, acusado do cometimento de vários homicídios (ver MOREIRA, 2007).

narrativas conversacionais, os quais estão relacionados à interação entre o adolescente e sua mãe. Participantes neste tipo de processo são chamados de dizente e receptor (ou verbiagem). Para Halliday & Matthiessen (2004, p. 252), as orações com processo verbal “são um importante recurso nos vários tipos de discurso, pois contribuem para a criação de narrativas por tornar possível o estabelecimento de passagens dialógicas”, como nas entrevistas dos adolescentes colaboradores desta pesquisa. Nessa perspectiva, nota-se que quando a mãe é colocada como dizente, o adolescente revela a situação de desagregação na família de origem, em função da falta de interação mãe-filho, a qual é evidenciada pelas circunstâncias associadas aos atores sociais envolvidos. Os segmentos oracionais (3a) e (3b) a seguir mostram que a situação de desagregação é motivada pela razão negligência/alcoolismo, o que se traduz na falta de interação verbal, como exibem as estruturas seguintes:

(3a) Ela nunca conversô comigo, não...

Ela [a mãe]

nunca conver

sô comigo, não

dizente circuns-tância de negação

proc. verbal

receptor circuns-tância de negação

(3b) (ela/mãe) Vivia só bêbada, né...14

(ela/mãe) Vivia só bêbada né

portador proc. relacional

circuns-tância

atributo conector pragmá-

tico

No segmento oracional (3b), o elemento verbal “vivia”, nessa oração, foi empregado com o valor semântico do verbo “estar”, indicando o estado em que a mãe se encontrava, ou seja, “bêbada”. Para o adolescente, o

14 É importante frisar que esse adolescente afirmou em entrevista que não conheceu o pai biológico (MOREIRA, p.107).

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alcoolismo funcionou como mediador da desagregação, que culminou na saída do jovem de casa para morar em outros ambientes (avós e tia). A perda de lugar, no seio da família de origem, parece vir associada a uma necessidade constante de adaptação a novos lugares e a novas relações, que, de início, parecem fáceis, pois há uma aceitação prévia dos parentes, como demonstram as estruturas abaixo:

Como já foi ilustrado anteriormente em

nota, uma das características do processo verbal, segundo Halliday & Matthiessen (2004, p. 252), é a de projetar outras orações (cf. GUIO & FERNÁNDEZ, 2005; EGGINS, 2004). Do ponto de vista linguístico-textual, os segmentos oracionais (3c) e (3d) configuram a experiência de vida no mundo físico do narrador. As ações dos parentes, as quais são traduzidas a partir da projeção de orações materiais pelo processo verbal "falar”, como em (3d), revelam a aceitação inicial dos parentes pelo adolescente, “rejeitado” pela família de origem. Entretanto, os laços que atam a aceitação dos parentes parecem não sustentar a posição simbólica garantida apenas pelo laço sanguíneo, resultando na “expulsão” do adolescente também da família substituta, como se nota nos excertos abaixo:

Embora haja um predomínio de orações narrativas, que configuram processos materiais voltados para o mundo físico do narrador, um comentário avaliativo se destaca em (3e). Trata-se de um segmento oracional que envolve claramente um processo apontado para o mundo das relações abstratas (ou mundo do “ser”), mediante uma relação intensiva atributiva entre o portador (os parentes “cuidar de mim”)

e um atributo (“obrigação deles”), o que evidencia, no caso, um processo de autoexclusão do núcleo da família substituta, em função de uma suposta rejeição dos parentes pela condição do jovem (“Que eu andava roubano”). Nesse sentido, a identidade do adolescente é marcada pela “diferença”.

Segundo Woodward (1997, p. 29), “as identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social”. As orações analisadas apresentam tanto a representação simbólica (laços sanguíneos) quanto a tentativa de exclusão social (“expulsão” em razão da situação em que encontrava o adolescente – “Que eu andava roubano!”).

(3c) Ah, me dava os conselho, né...

Ah, [os avós] me dava os

conselhos, né

conector pragmático ator beneficiário

proc. material Meta

conec. pragmático

(3d) Falava que eu tinha que estudá, meu!... Arrumá um curso... Saí dessa vida...

(eles) falava que eu tinha que estudá,

meu! Arrumá um

curso... Saí dessa

vida...

dizente proc.

verbal conector orações (de processos materiais) projetadas

(3e) Nem era obrigação deles cuidar de mim... Nem era obrigação deles [avós, tios] cuidar de mim

circunstância proc. relacional

atributo circ. de posse proc. material meta

portador

(3f) porque minha tia já cuida de dois irmão meu já... Porque minha tia já cuida de dois irmão meu já

Conector ator circunstância proc. material meta circ. de tempo

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MOREIRA, Miguel Ângelo. Conceito de família na representação discursiva de adolescentes em situação de rua. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 72-88, jun.2013.

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A exclusão, por sua vez, atua como mola propulsora que “empurra” o jovem para as ruas sem lhe oferecer qualquer alternativa. Isso evoca o estudo feito por Pardo (2006), para quem as famílias atuam, hoje, empurrando os seus filhos para a rua, pelo menos num contexto de pobreza. Nesse contexto, a luta pela sobrevivência rege o seu destino e a rua torna-se o seu único educador, como se pode notar nas estruturas a seguir:

(3g) Foi complicado, né...

Foi complicado, né proc.

relacional atributo conector

pragmático

(3h) Depois que passava fome na rua, frio...

Depois que passava fome e frio na

rua circuns-tância conector

proc. material meta

(3i) é ruim

é ruim

proc. relacional atributo

(3j) Arrumava um lugá ali debaixo e dormia...

(eu) Arrumava um lugá ali

debaixo e dormia

ator proc. material

circunstância

conector

proc. materia

l

(3l) aprende só coisa ruim... usá droga, roubá, né...

Aprende

só coisa

ruim... usá drogas roubá né

proc. men-

tal

fenô-meno

proc. mate-rial

meta proc. mate-rial

Conec-tor

prag-mático

orações (materiais) projetadas

(3m) Fazê umas coisa errada... Fazê umas coisa errada...

processo material meta

No que concerne às escolhas lexicais que representam a experiência ou visão de mundo do adolescente, os segmentos oracionais iniciados pelo verbo “ser”, em (3g) e (3i), sugerem comentários avaliativos, os quais denunciam que os efeitos maléficos da desagregação familiar podem conduzi-lo ao envolvimento com a criminalidade, como exibem as estruturas (3l) e (3m). Nesse sentido, a correlação social: “ausência da mãe” e “permanência nas ruas” (ilustrada no exemplo 3) parece atar um destino cruel na vida desse adolescente: o envolvimento com a criminalidade. Desse modo, as ações descritas nos segmentos (3h), (3j), (3l) e (3m) envolvem processos materiais que trazem à tona experiências reais vivenciadas pelo narrador quando morava na rua. Quer dizer, na fala desse adolescente, a rua é uma realidade dele e essa realidade vai definir sua identidade nesse contexto.

Uma questão que chama a atenção na entrevista-narrativa do exemplo (3) vai revelar que o envolvimento com a violência parece não ser uma escolha pessoal do adolescente, embora saiba discernir entre o certo e o errado, como se pode observar no trecho seguinte – “Ah, me dava os conselho, né... Falava que eu tinha que estudá, meu!... Arrumá um curso...; Que eu andava roubano!...; Nem era obrigação deles cuidar de mim...; Aprendia o que num prestava... Usá droga, roubá, né... Fazê umas coisa errada...; eu num recebi nenhum conselho, né, dos pais... ; faltô carinho, faltô um colégio pra estudá, meu...”. Trata-se, a meu ver, de um processo construído em razão das consequências da desagregação familiar, como atestam os fragmentos seguintes – “quando eu tava ni minha tia... ser amado, né... bem cuidado, né... era bom; num pensava não...; minha família que viraro as costa pra mim, quando eu mais precisava... quando eu era pequeno, né... porque eu queria um carinho... um calô de mãe, e num tive...; eu num recebi nenhum conselho, né, dos pais...”. Portanto, infere-se

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MOREIRA, Miguel Ângelo. Conceito de família na representação discursiva de adolescentes em situação de rua. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 72-88, jun.2013.

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da análise desses segmentos oracionais, marcados por processos (relacionais e materiais), que a conotação que pode estar invadindo as ações sociais desse jovem é o de naturalização daquilo que veem ou vivem na sociedade ao derredor.

Destaque-se, aqui, a ocorrência de relações de identificação, regida por processos relacionais, que permite sugerir uma avaliação quanto à autoidentidade do jovem – “quando eu era pequeno”; “ser amado, bem cuidado”; “era bom” – bem como a busca de uma identidade familiar – “quando eu tava na minha tia” –, o que sugere uma situação de abandono causada pelo rompimento dos laços sanguíneos, de convivência e afetivos, justificando ainda mais a “busca” pelas ruas. Nesse processo avaliativo, parece transparecer uma insegurança do adolescente motivada pelo rompimento de vínculos, que o liga aos pais e parentes, o qual desencadeia uma perda de pontos de referência culturais, sociais e religiosos (valores e princípios éticos e morais), o que pode levar, entre outras coisas, ao que Giddens (2002, p. 42) chama de aceitação da ausência.

Desse modo, a nova identidade desse jovem agora se confronta com um mundo instável, em crise de valores, fragmentado, impondo-lhe uma direção obscura sobre o que ser, o que fazer, o que sentir e pensar, como também ficou ilustrado na gramática da experiência de todos os jovens citados neste trabalho, isso em função, principalmente, do rompimento de laços de convivência com a família de origem. Isso evoca um pensamento de Castells (1996), para quem essa nova realidade da família, no caso aqui famílias monoparentais, revela que o enfraquecimento e, consequentemente, a desagregação do modelo de família tradicional chegaram sem que haja um sistema de proteção às crianças. Nessa perspectiva, a família não mais pode ser vista como uma instituição estática, uma vez que se movimenta tanto nos espaços das construções ideológicas, voltadas para os

mundos “do fazer”, “do sentir” e “do ser”, quanto no papel que exerce na organização da vida social.

Considerações finais

As experiências registradas nas vozes de adolescentes pobres de Luziânia refletem uma realidade que precisa ser amplamente divulgada, seja pela mídia ou por pesquisadores, com o propósito de fortalecer a identidade de uma classe excluída socialmente em virtude do status pobreza. Identificar, por meio de uma análise linguístico-discursiva, o que os adolescentes pensam sobre família foi o primeiro passo para entender os efeitos que os problemas na estrutura familiar podem gerar na construção da identidade desses jovens.

Os resultados da análise de entrevistas com adolescentes revelaram a necessidade de se repensar o conceito de família nos dias de hoje, de modo a entender porque adolescentes de famílias pobres permanecem boa parte de seu tempo nas ruas. Os laços sanguíneos e afetivos afrouxam-se cada vez mais em razão da forte pressão centrífuga da modernidade, que distancia cada vez mais as mães e os pais dos filhos, pelo menos no tocante aos laços de convivência. Força tão intensa que esmaga, impiedosamente, o tempo de convivência de uma mãe com o seu filho, o que, na maioria dos casos, resulta na “entrega” do(s) filho(s) aos cuidados de “outros” (parentes ou instituições), incluindo também as ruas, como ficou evidenciado no excerto 3.

Este trabalho não parte para a defesa do patriarcalismo, haja vista não se tratar do objeto em estudo, busca-se, por outro lado, apenas retratar um dos efeitos da desagregação familiar na construção da identidade de crianças e adolescentes. Não me refiro à desagregação como um desligamento total de partes, mas como a abertura de um buraco, no qual se afunda cada vez mais os valores e crenças incrustados na tradição da instituição família. Desse modo, a ausência da família na

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transmissão de valores e princípios morais e éticos pode resultar na perda de lembranças da origem, cravando a estaca da falência da sociedade enquanto instituto de promoção de relações interpessoais, por assim dizer, benéficas, incluindo a educação primária.

Para finalizar este trabalho, acresce dizer, ainda, que apesar de alguns estudos alertarem para as mudanças na estrutura familiar, pouco se fez para enfrentar essa realidade. Por isso, a influência do discurso naturalizado da família tradicional é ainda extremamente forte e consistente, pois o poder da representação social construída ao longo do tempo em torno da unidade familiar criou raízes de difícil desconstrução e mudança, que têm encoberto as reais causas do aumento da subversão dos jovens dessa nova geração sob o pano de fundo de possíveis atos isolados ou gerados pela pobreza. A importância desse tema diz respeito a vidas que estão sendo construídas sem amparo de valores educacionais próprios da família. Tal afirmação reforça a necessidade de se repensar a formação de um sujeito, frente ao processo avassalador de uma desagregação familiar, mesmo que parcial, sob pena dos valores e princípios familiares caírem no esquecimento. Nesse cenário, os filhos são os maiores prejudicados. As novas gerações estão sendo socializadas à margem dos valores e princípios morais e éticos da família.

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MOREIRA, Miguel Ângelo. Conceito de família na representação discursiva de adolescentes em situação de rua. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 72-88, jun.2013.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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O TEXTO DISSERTATIVO-ARGUMENTATIVO NO LIVRO DIDÁTICO: O

DISCURSO JORNALÍSTICO SILENCIANDO A ARGUMENTAÇÃO

Noemi Lemesi

Resumo: Essa pesquisa busca analisar, ancorada na Análise de Discurso de filiação francesa, se/como a Escola vem fazendo uso do discurso midiático, principalmente quando esse último apresenta-se como modelo para que os sujeitos-alunos desenvolvam seus textos argumentativos. Assim, temos como ponto de partida para nossas análises o livro didático, isto é, o veículo através do qual o discurso midiático circula na escola e cuja voz se faz legitimada como sendo a voz da verdade única e absoluta. Partindo então desse instrumento, mais precisamente de livros didáticos de Língua Portuguesa, investigamos como a ausência de teorias da linguagem e a substituição dessas teorias por textos jornalísticos afetam a produção dos sentidos em textos argumentativos desenvolvidos por alunos do Ensino Médio. Pesquisamos o espaço destinado (ou não) ao ensino da produção de textos dissertativo-argumentativos em livros didáticos utilizados no Ensino Médio, em escolas públicas de Ribeirão Preto-SP, e também, as posições discursivas que são permitidas aos sujeitos-alunos dessas escolas de Ensino Médio ocuparem, em suas produções textuais argumentativas, de modo que, pelas marcas linguísticas presentes nas redações, possamos analisar como se dá a relação desses sujeitos com a argumentação e qual a implicação do discurso midiático e dos livros didáticos nessa questão. Palavras-chave: Análise de Discurso. Argumentação. Livro Didático. Discurso Midiático. Abstract: This research intent to analyze, anchored in Discourse Analysis of French parentage, if / how the school has been making use of the media discourse, especially when the last one works as a model for the students develop their argumentative texts. Thus we have as a starting point for our analysis the textbook that is the vehicle through which the media discourse circulates in school and whose voice becomes legitimized as the only voice of truth. Starting then this instrument, more precisely textbook of Portuguese Language, we investigate how the absence of theories of language and the replacement of these theories by journalistic texts affect the production of meaning in argumentative texts developed by high school students. We research the space allotted (or not) to the teaching of argumentation in textbooks used in the public schools of Ribeirão Preto-SP, and also the discourses that are permitted to these students in their textual productions, so that, by the brands present in newsrooms language can analyze how is the relationship of these students with argumentation and what the implication of media discourse and textbooks on this issue. Keywords: Discourse Analysis, Argumentation, Textbook, Media Discourse.

i Mestranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil. E-mail: [email protected].

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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Introdução

Sabendo que a atividade argumentativa inicia-se em nossas vidas ainda quando crianças, antes mesmo da idade escolar, e como estudiosas de temas relacionados à linguagem, com foco também no âmbito educacional, coube-nos, nesse trabalho, levantar uma questão que já há bastante tempo vem nos inquietando: o que acontece, então, na escola, com os sujeitos-alunos que, ao terem cobradas suas habilidades de produzir um texto argumentativo, mostram-se, por vezes, amedrontados ou até mesmo paralisados diante de tal tarefa?

Ora, entendemos que há uma diferença significativa entre o argumentar de uma criança e a argumentação “escolar”, pois, enquanto a primeira acontece de maneira espontânea e oral, na segunda faz-se necessário o domínio da escrita, já que a oralidade é quase sempre desprezada e há, também, a necessidade da definição de um tema, a mobilização de um “arquivo” (PÊCHEUX, 2010, p. 51) e o conhecimento de uma série de técnicas para, então, produzir um texto argumentativo que seja persuasivo.

Mesmo assim, podemos pensar na argumentação de uma criança e pressupor que, no caso de uma disputa com seus pais ou com algum adulto responsável, por mais convincentes que sejam os argumentos da criança, prevalecerá aquilo que o adulto julgar correto, podendo esse último, inclusive, fazendo uso de sua autoridade, encerrar a discussão sem levar em conta as opiniões da criança.

De modo correlato, assim como o adulto da situação acima, temos também no livro didático de Língua Portuguesa uma voz de autoridade que, através de propostas de redação rigidamente estruturadas, determina, “passo a passo”, como o aluno deve escrever seu texto argumentativo. No entanto, como temos visto, o livro didático propõe o trabalho de escrita sem oferecer ao aluno subsídios teóricos que lhe permita, de fato, compreender

o que é argumentação e como, a partir dessa teoria, produzir seu texto. Sobre isso, vale trazer os estudos de Maria Inês Campos:

Ao propor as atividades para o aluno, introduz outro gênero do discurso "Redação de vestibular". Sem estudo sistemático desse gênero, coloca-se como pressuposto que a linguagem é transparente e abstrata, portanto, basta pedir ao aluno para praticar a escrita de redações para vestibular, sem analisar suas exigências e etapas de produção, que ele será capaz de organizar linguística e discursivamente um texto argumentativo a partir do que foi solicitado. (CAMPOS, 2011, p. 227).

Fazendo parte de toda a problemática aqui delineada, temos visto ainda a propagação do discurso midiático. Esse, por sua vez, representando outra voz de verdade dentro do livro didático, é apresentado, muitas vezes, como um substituto das teorias sobre a argumentação, afastando ainda mais os sujeitos-alunos desse conhecimento e promovendo, na escola - lugar privilegiado da/para a circulação do saber científico - a difusão de um saber cada vez mais aproximativo, diluído.

Por essas razões e a fim de investigar quais as implicações disso para os alunos, apresentamos neste artigo a análise de uma proposta de redação trazida por um livro didático utilizado atualmente no ensino médio de uma escola pública da cidade de Ribeirão Preto, bem como a análise de um texto argumentativo produzido por um sujeito-aluno com base na proposta do livro didático analisado.

Antes, porém, de adentrarmos a análise, cabe destacar que abordamos a questão sob a perspectiva discursiva, ancorando nossos estudos na Análise de Discurso de matriz francesa, a qual não considera apenas a linguagem em si, mas leva também em conta a exterioridade como parte constitutiva de todo discurso. Nesse sentido, não buscamos, em nossa análise, a “exaustividade horizontal” (ORLANDI, 2007b, p. 62), ou seja, não

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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entendemos que seja preciso uma vastidão de textos para que possamos “concluir” algo. Pelo contrário, além de não acreditarmos que haja essa possibilidade de conclusão, sabemos, pela Análise de Discurso, que não estamos analisando discursos fechados, mas processos discursivos.

Outro ponto que merece destaque diz respeito ao próprio trabalho com a Análise de Discurso. Nesse sentido, sabemos que esse trabalho envolve sempre uma dificuldade relacionada ao fato de que o analista não tem diretamente diante de si o objeto de sua análise, qual seja, o discurso. Antes, a materialidade da qual parte o analista é o texto, o qual, remetido a um discurso, possibilita que se investiguem quais são as formações discursivas em questão, quais os sentidos derivados do jogo entre as formações ideológicas e as posições discursivas assumidas pelos sujeitos. É por esse motivo que, na Análise de Discurso, a teoria deve sempre permear as análises, possibilitando ao analista desenvolver um “dispositivo de interpretação” (ORLANDI, 2007b, p. 59) através do qual, diante da materialidade textual, o analista não objetive a busca por um sentido único e/ou verdadeiro, mas trabalhe justamente com a não transparência do texto. Vale destacar o que diz Orlandi sobre esse dispositivo:

O dispositivo, a escuta discursiva, deve explicitar os gestos de interpretação que se ligam aos processos de identificação dos sujeitos, suas filiações de sentidos: descrever a relação do sujeito com a memória. Nessa empreitada, descrição e interpretação se interrelacionam. E é também tarefa do analista distingui-las em seu propósito de compreensão (ORLANDI, 2007b, p. 60).

Foi, pois, dessa maneira que buscamos trabalhar nas análises que seguirão, tendo à mão esse dispositivo que possibilita que analisemos, naquilo que está dito em um texto, o que não está dito, mas que concorre igualmente para a construção dos sentidos ali

presentes. Valemo-nos, para tanto, do “paradigma indiciário” (GINZBURG, 1980, p. 83), que nos permite analisar, por meio de marcas linguísticas presentes na tessitura do discurso, como se dá o funcionamento tanto dos discursos presentes no livro didático quanto nos textos argumentativos dos sujeitos-alunos.

Análises discursivas

Passando, então, às análises, tomamos como ponto de partida uma proposta de produção textual trazida pelo livro didático intitulado “Linguagem em movimento”, utilizado no terceiro ano do ensino médio de uma escola pública de Ribeirão Preto. Temos, assim, o texto do livro didático nos Anexo I - Primeira parte da proposta de redação da Fuvest 2003 e Anexo II - Segunda parte da proposta de redação da Fuvest 2003.

Na soma dos Anexos I e II, temos, na íntegra, uma proposta de produção textual retirada do livro didático, mas que é, na verdade, uma reprodução da prova de redação do vestibular da Fuvest, realizado no ano de 2003. Nessa proposta, é apresentada uma coletânea de três pequenos textos que tratam da questão da autoestima relacionada, nesse caso, ao fato do indivíduo ser brasileiro e estar (ou não) satisfeito com essa condição.

Concordamos que seja pertinente apresentar aos alunos modelos das provas vestibulares as quais esses sujeitos poderão, futuramente, ser submetidos. Todavia, percebemos, em nossas análises, que o livro didático, esquivando-se de trabalhar previamente com a teoria da argumentação, usa essas propostas de redação não apenas como “exercícios”, mas como próprio meio de ensinar o aluno a argumentar, não diferenciando, assim, a atividade de ensino da atividade avaliativa, restringindo, portanto, o conhecimento desse sujeito-aluno.

Continuando nossas análises, sabemos que a proposta da Fuvest, justamente por

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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tratar-se de uma prova, tem como objetivo avaliar o repertório trazido pelo candidato bem como o modo como ele articula seus conhecimentos para argumentar em favor de um ponto de vista. Por isso, os textos de sua coletânea são curtos e buscam apenas delinear uma temática. Razão pela qual não se pode esperar de um aluno que tenha lido apenas alguns comentários genéricos sobre a argumentação e os breves textos da proposta de redação que ele já saiba, com isso, definir a temática e construir um bom texto dissertativo-argumentativo.

Voltando nosso olhar para a coletânea, vemos que o primeiro texto consiste em uma definição do dicionário Houaiss sobre o termo “autoestima”, contando também com um breve comentário, provavelmente feito pelo elaborador da prova. Já o segundo texto apresenta um excerto do poema “Explicação”, de Carlos Drummond de Andrade e, finalizando a coletânea, temos, como terceiro e último texto, o trecho de um artigo jornalístico publicado na revista Época, em maio de 2000, tratando da elevada autoestima brasileira mesmo diante da crise enfrentada pelo país.

Como dissemos, os textos que compõem a coletânea da proposta de redação da Fuvest não são suficientes para que o aluno forme uma opinião, até porque, não possibilitam o acesso a um “campo de documentos pertinentes” (PÊCHEUX, 2010, p. 51) sobre a questão posta e, por consequência, não assegurarão que a argumentação do sujeito-aluno tenha sustentação.

Assim, temos também, com base na Análise de Discurso pechetiana, uma importante discussão sobre os riscos trazidos pela interdição do acesso a esse campo de documentos, pois para interpretar - e o sujeito interpreta enquanto lê, escreve e fala – o aluno deve assumir a “função-leitor” (PACÍFICO, 2002, p. 36), ou seja, posição assumida pelo sujeito que reflete sobre o tema levando em conta que os sentidos do que lê podem sempre ser outros, diferentes; logo, para que isso seja

possível, o sujeito tem de ter acesso ao “arquivo” (PÊCHEUX, 2010, p. 51), a uma multiplicidade de sentidos sobre uma dada questão. Do contrário, a posição discursiva que o sujeito assumirá será apenas a “fôrma-leitor” (PACÍFICO, 2002, p. 35), que designa uma posição do sujeito na qual, por não ter, então, acesso a essa pluralidade de sentidos, ele apenas pode repetir um sentido que foi cristalizado e que é, muitas vezes, legitimado pelas instituições.

Para melhor entendermos o que estamos discutindo, vejamos, no Anexo III - Redação 1 - um texto argumentativo produzido por um aluno do terceiro ano do ensino médio a partir da proposta de redação acima analisada.

Nesse anexo, temos um texto sem título, no qual o sujeito-aluno marca, desde a primeira frase, o quanto “torna-se difícil afirmar ser contra ou a favor” da questão delineada pela proposta de redação. Compartilhamos dessa angústia manifestada pelo sujeito, pois temos visto, em nossas análises, que a escola não oferece os subsídios necessários para que o aluno confronte ideias e forme sua opinião, o que, nesse caso, colaborou para a dificuldade desse sujeito-aluno em posicionar-se diante da temática.

Notamos nessa produção textual, que, ao tentar assumir um ponto de vista diante do assunto, o sujeito-aluno acaba esbarrando nas opiniões já apresentadas pelo texto jornalístico. Observa-se isso, por exemplo, quando esse sujeito corrobora os dados citados pela revista Época, dizendo que “o país é sim subdesenvolvido”, porém, logo a seguir, ele usa a conjunção adversativa “mas”, criando no leitor a expectativa de que algo irá opor-se a essa ideia inicial. Segundo Ingedore Koch, “a estratégia do mas é, pois, a de frustrar uma expectativa que se criou no destinatário” (KOCH, 2001, p. 153), todavia, no texto do aluno, não é isso que acontece, pois ele continua, mesmo após o uso do “mas”, confirmando a noção de subdesenvolvimento ao afirmar que o país “também apresenta suas

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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dificuldades como todo e qualquer outro”. Ao mesmo tempo, percebemos, nessa última construção, que o aluno busca abrandar as ideias sobre a situação vivida pelo país, ou seja, sem a possibilidade do novo, o sujeito-aluno repete os sentidos comumente disseminados pela classe dominante de que todos os países têm seus problemas e o Brasil é apenas mais um entre tantos, por isso, talvez, seja saudável e recomendável para o povo brasileiro manter sua autoestima.

Para nós, essa repetição do sentido dominante ocorre porque o livro didático não oferece nenhum outro discurso que contraste as ideias da mídia - representante maior da classe abastada - ou que, pelo menos, provoque o questionamento, a dúvida. Pelo contrário, o próprio material didático, nesse caso, assume esse papel de propagador dos sentidos permitidos. Daí o aluno ter a impressão de que tudo que existe sobre a situação do Brasil e sobre a autoestima do povo brasileiro está resumido ali, na coletânea de textos da Fuvest, dentro do livro didático, como se ter uma elevada autoestima fosse mais importante que resolver a desigualdade social e todos os problemas derivados dela. Desse modo, “aprisionado” por essa ilusão de completude e de que existe apenas um sentido possível, não resta, para esse sujeito, outra alternativa a não ser reproduzir o que diz o jornalista. Nesse caso, se o professor não supera os limites das páginas do livro didático e não traz novos textos, novas discussões e possibilidades para o aluno, esse último, certamente, terá sua escrita e autoria comprometidas, como temos visto nas próprias análises.

Ainda tratando do texto do Anexo III, chama-nos a atenção o modo como esse sujeito-aluno, no segundo parágrafo, tenta atenuar o discurso sobre a crise no Brasil, porém, com argumentos que não se sustentam, uma vez que apenas pela “diversidade no seu mercado de trabalho”, o Brasil não seria capaz de sanar toda uma série de problemas que o

afetam, principalmente aqueles relacionados à pobreza.

Chegando, “então”, ao último parágrafo de seu texto, o sujeito-aluno retoma uma ideia muito conhecida e difundida pelo senso comum, qual seja, a de que devemos olhar preferencialmente para as “coisas boas que o país apresenta”, de modo a não nos abalarmos com as “dificuldades”. Desse modo, ele reproduz, mais uma vez, sentidos de que basta pensar positivo e tudo irá resolver-se; silenciando, assim, a responsabilidade das autoridades competentes a respeito da crise mencionada e atribuindo ao povo brasileiro a incumbência de “conscientizar-se” para, então, melhorar sua situação.

Outra redação que caminha para essa mesma região de sentidos encontra-se no próximo anexo, denominado Anexo IV – Redação 2 produzida por aluno.

Também nesse texto, vemos um sujeito capturado pela ideologia dominante e que, assim como o aluno do texto do anexo anterior, reforça a conhecida ideia de que o Brasil só irá crescer com “força de vontade e auto-estima”, como se, mais uma vez, fosse total responsabilidade do povo brasileiro superar seus problemas; como se o não desenvolvimento do país estivesse relacionado apenas ao fato da população não acreditar no Brasil.

Dessa forma, mesmo afirmando com veemência ser “sim” “a favor da autoestima”, o sujeito-aluno não consegue, apenas com o que lhe foi dado (ou melhor, tirado), munir-se de argumentos realmente persuasivos e, por isso, recorre a concepções corriqueiras e estereotipadas, de acordo com as quais o povo brasileiro é considerado um dos “povos mais alegres e felizes do mundo”. Nesse caso, vemos funcionar a “metáfora de uso” (MOSCA, 1999, p. 38), ou seja, aquela na qual o sujeito faz circular uma ideia já admitida pela voz coletiva, buscando, então, o consenso. Sobre isso, vale destacar os estudos de Pacífico (2002):

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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A metáfora de uso sustenta a “argumentatividade” da fôrma-leitor, pois é um sentido que já é previsto e de tanto ser repetido perde sua força argumentativo-persuasiva, pois neste caso é o interlocutor quem cria os mecanismos de antecipação do sentido do discurso que perde seu caráter persuasivo (PACÍFICO, 2002, p. 47-48).

Em contrapartida, para que a argumentatividade seja eficaz, o sujeito deve assumir a função-leitor, que permitirá que ele duvide de um sentido único e trabalhe com o novo, com o que Mosca, trazendo à tona os trabalhos de Fontanier, chama de “metáfora de invenção” (MOSCA, 1999, p. 39), ou, em outras palavras, com aquilo que, por seu caráter “inédito”, surpreende o interlocutor.

A partir disso e de nossas análises, observamos que há uma predominância das metáforas de uso nos textos desses sujeitos-alunos, fazendo ecoar, muitas vezes, a voz da classe dominante. Isso porque, embora, para a Análise de Discurso, tanto o sujeito quanto o sentido tenham uma natureza incompleta e, por isso, possam sempre se deslocar, sabemos, assim como Orlandi (2007b), que:

Entretanto, há também injunções à estabilização, bloqueando o movimento do significante. Nesse caso, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete (ORLANDI, 2007b, p. 54).

No entanto, o sujeito, que para a Análise de Discurso também é “sujeito à falha” (ORLANDI, 2007b, p. 61), pode, em alguns momentos, deslizar em seu dizer e deixar escapar outros e diferentes sentidos. Tomemos como exemplo disso o texto que compõe o Anexo V – Redação 3 produzida por aluno.

No texto do Anexo V, notamos que o sujeito-aluno, no início de seu dizer, se contradiz ao chamar o brasileiro primeiro de “pessimista” e, logo em seguida, de “confiante”. Essa contradição pode marcar

uma tentativa, por parte do sujeito, de expor sua “real” opinião (de que o brasileiro é pessimista), de quebrar com os sentidos impostos pelo livro didático e fugir, então, da repetição. Contudo, o aluno, que não teve subsídios que permitissem discordar do sentido dominante, volta para a reprodução das ideias apontadas pelo jornalista.

Notamos ainda que o sujeito-aluno altera o pronome pessoal com o qual inicia seu texto, passando da primeira pessoa do plural, “nós”, onde o sujeito estaria incluído, para a terceira pessoa do plural “eles” (“os brasileiros”). Essa mudança de posição do sujeito pode ser um indício de que ao afirmar o “comportamento pessimista” dos brasileiros, o sujeito inscreve-se em seu escrito, usando o “nós”, pois está falando de sua opinião, segundo a qual os brasileiros não são tão felizes quanto quer nos apregoar a classe dominante através da mídia. Todavia, voltando a corroborar os sentidos de autoestima e de “força de vontade” trazidos pelo discurso jornalístico, ele muda o pronome e, com isso, cria um efeito de afastamento do objeto discursivo, como se dali para frente esse sujeito fosse falar de uma opinião com a qual não concorda - a do jornalista -, porém se vê obrigado a reproduzi-la, uma vez que é a “garantida” e aceita pela escola.

Considerações finais

A partir, então, das análises realizadas, percebemos que os livros didáticos silenciam as teorias de linguagem e de argumentação que existem e que poderiam/deveriam ser apresentadas aos sujeitos-alunos.

Desse modo, a esses estudantes do ensino médio não vem sendo permitido ocupar a posição de quem questiona, debate e argumenta sobre os temas propostos, mas, ao contrário, notamos o que parece ser apenas uma injunção a seguir um esquema textual determinado e a repetir os sentidos privilegiados pela classe dominante e corroborados pelo livro didático.

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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Vale destacar que o trabalho com o livro didático se configurou como um riquíssimo aprendizado, na medida em que as investigações sobre o papel que o mesmo exerce na sala de aula, de sua autoridade na escola e da suposta legitimidade dos sentidos que traz proporcionaram uma nova forma de olhar para esse material tão utilizado em nosso modelo escolar.

Tendo em vista esse estudo sobre o funcionamento discursivo do livro didático, foi possível, então, analisar, de maneira menos ingênua, a presença do discurso jornalístico nesse material, o que, por sua vez, após nossas análises, permite-nos dizer que a forma como isso vem ocorrendo na escola não parece promover, de fato, o ensino da argumentação, mas, ao contrário, amplia uma realidade de desigual distribuição desse saber, afastando os sujeitos-alunos da escrita.

Diante dessa situação, analisando ainda as implicações desse modo de funcionamento do livro didático nas produções textuais dos alunos, observamos que, impedidos do contato com os conhecimentos teóricos sobre a argumentação, que nesse caso são “silenciados” (ORLANDI, 2007a, p. 73) e levados a uma leitura parafrástica do discurso midiático, os sujeitos-alunos não conseguem de fato levantar e sustentar, com argumentos consistentes, nenhum ponto de vista sobre as temáticas apresentadas. Ao invés disso, pudemos notar um constante retorno aos sentidos produzidos pelo discurso jornalístico, como se nesse último estivessem os sentidos corretos sobre o objeto em discussão.

Consideramos muito perigosa a situação que ora apresenta-se, pois entendemos que a escola deve ser o lugar de circulação das teorias sobre o argumentar e, além disso, é na escola que o aluno deve entrar em contato com o “discurso polêmico” (ORLANDI, 2003, p. 154), com leituras que lhe forneçam repertório para a construção de um ponto de vista e com a possibilidade de colocar-se diante de determinado assunto e não apenas de repetir

sentidos já produzidos - por algum jornalista - sobre as diversas temáticas.

No entanto, não buscamos, através desse estudo, atestar que a circulação do discurso jornalístico na escola é a única responsável pelo afastamento entre os sujeitos e a argumentação. Sabemos que a questão vai muito mais longe, podendo ser relacionada, inclusive, com práticas de letramento pautadas no modelo autônomo, ou seja, num modelo no qual a escrita seria “um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado” (KLEIMAN, 1995, p. 22).

Mesmo assim, não podemos nos abster de olhar com cautela para a atual circulação de textos midiáticos dentro da escola, até porque, como aponta Eni Orlandi, “não é só quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos” (ORLANDI, 1993, p. 101) e, portanto, ao terem acesso apenas aos sentidos produzidos pelos jornalistas, os sujeitos-alunos não têm acesso a vários outros sentidos e, como consequência, não conseguem exercer sua autoria nem argumentar sobre o objeto discursivo.

Podemos dizer, então, que a escola, embora seja tida como o lugar designado para a circulação do conhecimento científico - incluindo o da argumentação - e do discurso polêmico, não tem promovido a propagação desse saber e nem mesmo vem cumprindo seu papel de instaurar discussões e reflexões sobre as diversas temáticas. Ao contrário, vemos que a escola tem trabalhado com o “discurso autoritário” (ORLANDI, 2003, p. 154), no qual o sujeito-aluno tem limitada (ou praticamente anulada) a possibilidade de discordar e de argumentar a respeito do objeto de estudo. Entretanto entendemos que a argumentação só é possível quando ao aluno é permitida a contraposição de ideias e o debate.

Nesse contexto, vemos a importância do papel do professor na mediação entre os alunos e o livro didático, pois se o educador se ativer apenas a esse instrumento e não colocar

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em dúvida os discursos trazidos por ele, mais verdadeiros os sentidos inscritos nele parecerão e maior será a distância entre sujeitos e a escrita argumentativa. Entendemos ainda que também o professor é um escritor e consideramos, inclusive, que deve fazer parte de seu trabalho produzir textos e utilizá-los em sala de aula. Desse modo, esse próprio “autorizar-se” do professor já seria responsável por abrir espaço para que os alunos também se autorizem, tanto no sentido de produzirem leituras polissêmicas e formarem suas opiniões quanto no de tornarem-se, de fato, autores de seus textos.

Referências

CAMPOS, Maria Inês Batista. Textos argumentativos em materiais didáticos: que proposta seguir? DELTA [online], São Paulo, vol. 27, n.2, 2011.

GINZBURG, C. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinas: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1980.

KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.

KOCH, I.G.V. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

MOSCA, L. L. S. (Org.). Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas, 1999.

ORLANDI, E. P. O inteligível, o interpretável e o compreensível. In: ______. Discurso e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez; Ed. UNICAMP, 1993.

______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 2003.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Ed.UNICAMP, 2007a.

______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007b.

PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Ribeirão Preto, 2002. 190f. + anexos. Tese (Doutorado em Psicologia Educacional) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Gestos de leitura: da história do discurso. 3. ed. Tradução de Bethania S. C. Mariani. Campinas: Ed. UNICAMP, 2010.

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LEMES, Noemi. O texto dissertativo-argumentativo no livro didático: o discurso jornalístico silenciando a argumentação. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 89-101, jun.2013.

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Anexo I

Primeira parte da proposta de redação da Fuvest 2003

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Anexo II

Segunda parte da proposta de redação da Fuvest 2003

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Anexo III

Redação 1 produzida por aluno

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Anexo IV

Redação 2 produzida por aluno

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Anexo V

Redação 3 produzida por aluno

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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REFLEXÕES EM TORNO DO DISCURSO ESCOLAR: UMA ANÁLISE SOBRE O TRABALHO COM A LEITURA EM SALA DE AULA

Viviane Netto Silvai

Resumo: Este artigo apresenta dados de uma pesquisa realizada no âmbito do programa de Mestrado em Estudos Linguísticos na UFMG. Buscaremos refletir sobre como se dá o trabalho de leitura e interpretação de textos em manuais didáticos de língua portuguesa, tendo como foco específico a análise das perguntas sobre os textos para leitura. A pesquisa tem como objetivo investigar por que os alunos brasileiros têm dificuldades em ler e interpretar textos. Como teoria de base, temos a Análise do Discurso de linha francesa acrescida da contribuição de autores como Authier-Revuz e Oswald Ducrot, que enriqueceram o estudo. Palavras-chave: Livro didático. Leitura. Ensino. Análise do Discurso. Abstract: This article presents results of the research which was conducted under the auspices of the Master Program in Linguistics at UFMG. The work intends to reflect about the study with reading and interpretation of texts in Portuguese textbooks focusing in the analysis of the questions about reading texts. The aim of this study is to investigate the reasons why Brazilian students experience difficulty in reading and interpreting texts. This study is based upon the French Discourse Analysis complemented with the contributions of authors such as Authier-Revuz and Oswald Ducrot, that enriched the study. Keywords: Textbook. Reading. Teaching. Discourse Analysis.

i Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: [email protected].

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SILVA, Viviane Netto. Reflexões em torno do discurso escolar: uma análise sobre o trabalho com a leitura em sala de aula. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 102-111, jun.2013.

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Introdução

O período correspondente aos anos 1950 e 1960 foi muito importante no cenário educacional brasileiro, pois a partir daí deu-se a democratização do ensino. Nessa época o acesso à educação foi ampliado para todas as classes sociais, aumentando consequentemente o número de escolas e de professores para atender a tal demanda. Atualmente, oferecer um ensino de qualidade a um número tão amplo de alunos tem sido um dos grandes desafios dos gestores da educação. Com esse escopo, muitas têm sido as iniciativas para aperfeiçoar o modelo de ensino vigente em escala nacional.

Uma das iniciativas criadas foi o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Instituído em 1995, este tem como papel fundamental assegurar a distribuição gratuita dos livros nas escolas e gerir sua qualidade por meio de mecanismos de avaliação. Outra iniciativa importante foi a instauração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1998, pelo Ministério da Educação e do Desporto do Brasil. Esse documento tem como objetivo instituir diretrizes mais claras para as políticas educativas voltadas para o ensino fundamental. Os PCNs também buscam: estabelecer uma referência para o currículo das escolas; servir de apoio para o planejamento das aulas; e auxiliar na elaboração de projetos educativos.

Apesar de todos esses esforços, uma dura realidade com a qual nos defrontamos é o baixo nível educacional dos nossos aprendizes. Avaliações criadas com o objetivo de fornecer informações sobre a qualidade e eficiência da educação brasileira confirmam essa situação. Por exemplo, os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica1 (SAEB) de 2001 comprovam que a grande maioria dos alunos de nível fundamental conclui essa etapa 1 Os dados apresentados podem ser encontrados no portal do INEP, órgão ligado ao MEC, no site: http://www.inep.gov.br/download/saeb/2001/miolo_novas_perspectivas2001.pdf. Acesso em 15/09/2012.

sem as habilidades mínimas esperadas, em várias das disciplinas cursadas, dentre elas Língua Portuguesa.

No que diz respeito às provas que avaliam a performance dos alunos em análise de textos, o SAEB explicita que em itens como: 1) identificar os elementos que constroem as narrativas; 2) compreender a estrutura argumentativa de textos; e 3) reconhecer diferentes formas de tratar a informação na comparação de textos sobre o mesmo tema; os índices de acertos obtidos foram muito abaixo do esperado (inferiores a 60 %). A partir dos resultados do SAEB, a hipótese de nossa pesquisa é a de que as competências requeridas dos alunos, durante os trabalhos com a leitura na escola, são inadequadas para o desenvolvimento do seu raciocínio crítico. A nosso ver, essa falha existente no ensino de língua portuguesa apresenta-se como uma das razões para a deficiência dos aprendizes em ler e interpretar textos.

A nossa hipótese segue a mesma direção das pesquisas de Matêncio (2001) e Marcuschi (2002), que apontam para a necessidade de uma revisão dos procedimentos adotados nas atividades de leitura em sala de aula, as quais esteiam-se, principalmente, no livro didático. Matêncio (2001, p. 33), ao realizar um levantamento dos diversos trabalhos sobre o ensino de Língua Materna no Brasil, assinala que alguns deles “sugerem que as atividades de leitura em situação escolar se restringem com muita frequência a extrair as informações explícitas na superfície textual”, sem que o aluno reflita profundamente sobre o texto dado e realize uma análise crítica do que lhe é apresentado.

Marcuschi (2002), por sua vez, constata que, nos livros didáticos, “a compreensão é considerada, na maioria dos casos, como uma simples e natural atividade de decodificação de um conteúdo objetivamente inscrito no texto ou uma atividade de cópia”. Para ele, “é até fácil perceber que os exercícios de

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compreensão de textos nos manuais falham em vários aspectos e não atingem seus objetivos” (MARCUSCHI, 2002, p. 51).

Em uma investigação realizada com aproximadamente 25 livros do ensino fundamental e médio Marcuschi (2002) constatou vários problemas no que diz respeito ao formato dos exercícios de compreensão de texto. Segundo o autor:

[...] os exercícios de compreensão raramente levam a reflexões críticas sobre o texto e não permitem expansão ou construção de sentido, o que sugere a noção de que compreender é apenas identificar conteúdos [...]. Perde-se uma excelente oportunidade de treinar o raciocínio, o pensamento crítico e as habilidades argumentativas. Também perde-se a oportunidade de incentivar a formação de opinião. Pode-se dizer que os exercícios de compreensão constituem a evidência mais clara da perspectiva impositiva da escola (2002, p. 50) (grifo do autor).

Nessa pesquisa, Marcuschi (2002 p. 52) elaborou uma tipologia de questões encontradas nas seções dedicadas à compreensão textual com o objetivo de “indicar alguns aspectos interessantes da prática escolar”. Em seu trabalho uma triste realidade ficou explícita: a porcentagem de perguntas denominadas inferenciais, que “exigem conhecimentos textuais e outros, sejam pessoais, contextuais, enciclopédicos, bem como regras inferenciais e análise crítica para busca de respostas” corresponde apenas a 10% do total de perguntas analisadas, o que segundo o autor reflete uma situação “preocupante” e que “parece indicar falta de clareza quanto ao que se deve entender por compreensão de texto” (MARCUSCHI, 2002, p. 52 -53).

As constatações feitas por esses autores levam-nos a crer que, a partir da observação do modo como a leitura é trabalhada nos manuais, podemos identificar que tipo de formação está sendo oferecida pela instituição escolar. Para problematizar a questão da leitura selecionamos um manual didático de

língua portuguesa voltado para alunos de 7ª série (atual 8º ano) do ensino fundamental. Esse manual tem sido amplamente utilizado em escolas públicas de todo o Brasil. Nosso primeiro objetivo é examinar as perguntas sobre os textos dados para leitura nesse manual a fim de determinar as competências requeridas do aluno-leitor no decorrer das atividades. Nosso segundo objetivo é examinar o modelo de ensino de leitura adotado em nossas escolas e o perfil do aluno-leitor que subjaz a esse modelo.

Esse artigo se subdivide em três partes: a primeira tem como objetivo analisar as propostas dos PCNs para o trabalho com a leitura e interpretação de textos, no âmbito da segunda etapa do ensino fundamental (5ª a 8ª séries). Na segunda parte apresentaremos as contribuições teórico-metodológicas da Análise do Discurso de linha francesa, acrescida da contribuição de autores como Authier-Revuz e Oswald Ducrot, que enriqueceram o estudo. Já na terceira parte examinaremos as perguntas sobre os textos dados para leitura no manual, buscando identificar se as atividades propostas estimulam ou não o desenvolvimento de um raciocínio crítico nos estudantes. Nessa parte analisaremos: a) o perfil do aluno-leitor projetado no discurso do manual; e b) se a hipótese lançada pode ser comprovada. Explicitaremos, no item seguinte, as propostas dos PCNs relacionadas à leitura em sala de aula.

1 Os PCNs e o trabalho com a leitura

Formar alunos capazes de ler e interpretar criticamente textos significa formar cidadãos opinantes e ativos no processo de construção de sua própria cultura. A importância dessa formação é destacada nos PCNs de Língua Portuguesa no item “leitura e interpretação de textos”.

Segundo os PCNs, a sala de aula seria:

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[...] o espaço de desenvolvimento da capacidade intelectual e linguística dos alunos, oferecendo-lhes condições de desenvolvimento de sua competência discursiva, a qual lhes daria condições de reconhecer e explicitar pontos de vista e posicionamentos (1998, p. 30).

No item “leitura de textos escritos” os PCNs sugerem que se realize, junto aos alunos, um “levantamento e análise de indicadores linguísticos e extralinguísticos presentes no texto, para identificar as várias vozes no discurso e o ponto de vista (...) dado ao conteúdo” (1998, p. 56-57). Um segundo item interessante dos PCNs, denominado “valores e atitudes adjacentes às práticas de linguagem”, recomenda que seja realizado um trabalho voltado para o desenvolvimento de um:

[...] posicionamento crítico diante de textos por parte dos alunos, de modo que reconheçam a pertinência dos argumentos utilizados, posições ideológicas subjacentes e possíveis conteúdos discriminatórios neles veiculados (1998, p. 54).

No que se refere às habilidades a serem desenvolvidas nos alunos em sala de aula, o documento destaca a importância da “prática de compreensão de textos não limitada apenas à decodificação” e também do “desenvolvimento de uma atitude crítica diante de textos persuasivos dos quais os alunos são destinatários diretos ou indiretos” (1998, p. 70).

Esses tópicos nos permitem notar que nos PCNs há uma tendência à valorização das atividades de leitura não somente como uma simples atividade de extração de informações da superfície textual, mas como uma ferramenta para a formação de leitores proficientes. Observamos que as recomendações dadas têm a característica de enfatizar a formação de leitores realmente competentes em leitura, ou seja, capazes de ler e compreender textos simples e complexos, em seus diversos contextos de produção. Veremos, em seguida, o quadro teórico de que nos serviremos para a realização da pesquisa.

2 As marcas de heterogeneidade nos discursos

Conforme Maingueneau (1998, p. 78), “um discurso quase nunca é homogêneo: mistura diversos tipos de sequência, passa do plano embreado ao plano não-embreado, deixa transparecer de maneira bastante variável a subjetividade do enunciador etc.”. Essa afirmação remete a Authier-Revuz (1998, p. 183) para quem a enunciação, a manifestação dos discursos, deve ser pensada “como um lugar de uma inevitável heterogeneidade”. Seguindo essa direção, Possenti (apud LARA, 1999, p. 76) ressalta que a Análise do Discurso, nos últimos tempos, tem estudado a enunciação “sob o signo da heterogeneidade”, tomando a polifonia como uma “marca característica dos discursos”. Para o autor, nessa perspectiva:

[...] ser leitor não é apenas ser um decodificador dos sinais de uma cadeia linguística, mas um perspicaz “caçador” de pistas de interdiscursividade: daí porque ler um texto é, em grande parte, dar-se conta de como ele é construído, de que materiais ele é feito, isto é, de como outros textos estão no texto (POSSENTI, 1994, p. 76).

Possenti (1994, p. 76) ainda acrescenta que:

A palavra-chave relativa ao discurso ou à língua é a heterogeneidade (ou a polifonia, ou dialogismo) e ela representa uma posição teórica, um posto de observação, um mirante do qual os materiais discursivos serão analisados.

Dentre os pesquisadores que vêm utilizando a noção de heterogeneidade em seus trabalhos, destaca-se Maingueneau (1997, p. 75) que, na esteira de Authier-Revuz (1998), reconhece que há dois planos distintos, mas complementares, de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada. O autor afirma que a heterogeneidade mostrada “incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes da enunciação” e corresponde “à presença localizável de um

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SILVA, Viviane Netto. Reflexões em torno do discurso escolar: uma análise sobre o trabalho com a leitura em sala de aula. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 102-111, jun.2013.

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discurso outro no fio do discurso” (MAINGUENEAU, 2004, p. 261). Os fenômenos relacionados à heterogeneidade mostrada ultrapassam a noção tradicional de citação e de discurso relatado, abrangendo também os conceitos de parafrasagem, de negação, de pressuposição, etc.

A heterogeneidade mostrada pode ser marcada (por meio de elementos linguísticos ou tipográficos) ou não (em fenômenos como a ironia ou o discurso indireto livre). Podemos dizer que ela representa o encontro do enunciador com um dizer externo ao seu discurso. Esse discurso “outro” pode se manifestar de diferentes formas, ora articulando-se, ora opondo-se, ora mostrando-se indiferente ao discurso do locutor etc. Cabe, pois, a esse locutor uma atitude de constante negociação, de ajustamento aos dizeres que perpassam seu discurso. Já a heterogeneidade constitutiva “aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva”.

Nesse trabalho, examinaremos um fenômeno da heterogeneidade mostrada (marcada) que nos pareceu relevante no livro didático selecionado: a pressuposição. A nosso ver, esse fenômeno responde pela forma como as perguntas sobre os textos lidos são construídas pelo locutor e, com isso, se apresenta como uma ferramenta útil para identificarmos o perfil esperado do aluno-leitor no manual didático.

2.1 Os pressupostos

Estudaremos o fenômeno da pressuposição a partir da proposta de Ducrot (1987) e de outros autores que nele se baseiam. Buscaremos 1) conceituar o fenômeno; 2) analisar suas principais propriedades; 3) explicitar suas funções em meio ao universo discursivo.

No âmbito da teoria polifônica da enunciação, Ducrot toma o pressuposto como:

[...] uma evidência, como um quadro incontestável no interior do qual a conversação deve necessariamente inscrever-se, ou seja, como um elemento do universo do discurso. Introduzindo uma ideia sob forma de um pressuposto, procedo como se meu interlocutor e eu não pudéssemos deixar de aceitá-lo (DUCROT, 1987, p. 20).

Seguindo essa direção, Maingueneau (1996, p. 101) afirma que os pressupostos são pré-construídos por se caracterizarem como proposições já admitidas, não apenas pelo interlocutor (aquele a quem o locutor se dirige na interação verbal), mas pela comunidade discursiva como um todo. Sob a ótica de Kerbrat-Orecchioni (2004, p. 404), eles correspondem a realidades supostamente já conhecidas do sujeito destinatário, a “evidências partilhadas ou fatos decorrentes de seus saberes prévios”. Fiorin (apud LARA, 2009, p. 6), por sua vez, caracteriza o pressuposto como um valioso recurso argumentativo, pois o locutor torna o interlocutor cúmplice de um dado posicionamento.

A partir dos dizeres desses autores, notamos que os pressupostos não permitem ao destinatário do discurso a recusa, a negação e nem mesmo a dúvida sobre os dados que lhe foram, implicitamente, apresentados. Assim, ao co-enunciador não é dada qualquer possibilidade de escolha no decorrer da troca comunicativa: ele é colocado em situação de falta de liberdade, pois, se nega os pressupostos, impede a própria continuação do diálogo.

Por serem autônomos e se manifestarem independentemente do contexto enunciativo, os pressupostos se distinguem de um segundo tipo de conteúdo implícito: os subentendidos. Conforme Ducrot (1987, p. 41), enquanto os pressupostos são conteúdos internos aos enunciados, que constringem o destinatário a assimilar um sentido que lhe é imposto como

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único, os subentendidos são relacionados à atividade de decodificação e interpretação dos sujeitos.

Comentando as funções dos pressupostos no universo discursivo, Koch (2000) constata a existência de uma “retórica da pressuposição”. Trata-se, segundo ela, de um recurso argumentativo bastante comum em nosso cotidiano, que consiste em apresentar “como se fosse pressuposto justamente aquilo que se está querendo veicular como informação nova” (KOCH, 2000, p. 45) (grifo da autora). Desse modo, enunciados do tipo “lamentamos não aceitar cheques”, ou “lamentamos não poder atender à sua solicitação” – encontrados em estabelecimentos comerciais, postos de gasolina etc. – podem servir como uma forma de “atenuação”, como uma ferramenta para veicular, de maneira cordial ou branda, uma informação que não é de interesse do receptor.

Antes de passarmos ao item seguinte, acreditamos ser importante apresentar, mesmo que de forma rápida, a abordagem mais recente de Ducrot sobre a pressuposição. Na sua terceira versão sobre o fenômeno, apresentada no âmbito de sua teoria polifônica da enunciação (vide Capítulo VIII do livro O dizer e o Dito, 1987), o autor propõe uma revisão das propostas anteriores e reformula a noção a partir das noções de conteúdos postos e pressupostos.

Conforme destaca Lara (2009, p. 4), nessa nova perspectiva assumida por Ducrot, “a diferença entre a asserção posta e pressuposta reside no fato de que, embora realizadas ambas por um único locutor, cada ato de afirmar deve ser atribuído a um enunciador diferente”. Dessa forma numa asserção como “Jacques continua fumando”, existem dois enunciadores E1 e E2. O enunciador E1 seria responsável pelo conteúdo pressuposto (implícito = Jacques fumava antigamente) e o enunciador E2 pelo conteúdo posto (explícito = Jacques fuma atualmente). O enunciador E2 é assimilado pelo locutor,

enquanto E1 é assimilado por uma voz coletiva, no interior da qual o locutor está localizado.

Como aponta Maingueneau (1996, p. 101), no escopo da teoria ducrotiana, o locutor que faz uso dos pressupostos tem em vista, no mínimo, a aceitação por parte do seu interlocutor. O autor ressalta que esse locutor pode, por outro lado, manifestar, em seu discurso, uma crença com a qual não se solidariza, mas que a opinião pública toma como verdadeira. Essa perspectiva permite concluir que a enunciação surge “como uma encenação” onde a palavra é concedida, é permitida, a diversos personagens (MAINGUENEAU, 1997, p. 80). Passaremos, a seguir, à análise do manual didático selecionado.

3 Análise do fenômeno da pressuposição no manual Português: Linguagens, 7ª série (PL)

Conforme observamos anteriormente “embora os pressupostos possam ser questionados e mesmo negados, eles são feitos para não o serem” (LARA, 2009, p. 6). A partir de tal afirmação, podemos perceber que o locutor que veicula conteúdos pressupostos em seu discurso mostra, de antemão, sua posição de superioridade em relação ao interlocutor, instaurando o “quadro incontestável no interior do qual a conversação deve necessariamente inscrever-se”, como postula Ducrot (1987, p. 20). Na análise do corpus, notamos que o autor do manual faz uso desse recurso sobretudo para conferir aos enunciados um efeito de objetividade. Observamos que as perguntas são sempre orientadas para um tipo de resposta desejado. Esse modelo segue a contramão das indicações dos PCNs que sugerem o desenvolvimento, nos aprendizes, de “uma atitude crítica diante de textos persuasivos dos quais os alunos são destinatários diretos ou indiretos” (1998, p. 70).

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Vejamos a seguir alguns exemplos de perguntas que veiculam pressupostos para, em seguida, refletirmos sobre suas características e funções:

Quadro 1: Exemplos de perguntas que veiculam pressupostos

Ex.1) Q.3- O que podemos fazer para não sermos manipulados pelos anúncios publicitários? (PL, 2002, p.146).

Ex.2) Q.3- Você acha válido e justo haver um único padrão de beleza para todas as pessoas? Por quê? (PL, 2002, p.233).

Ex.3) Q.3- Se a competição social é inevitável, como devemos lidar com ela para não sofrermos tanto? (PL, 2002, p.102).

Ex.4) Q.1- Como conciliar os estudos sem que se percam as fases naturais do desenvolvimento humano, como a infância e a adolescência? (PL, 2002, p.167).

No exemplo 1 notamos que o enunciado

deixa implícito que somos manipulados pelos anúncios publicitários (pressuposto), devendo o aluno/leitor concordar necessariamente com isso para poder dar continuidade à tarefa (responder à questão). Os exemplos 2 e 3 também veiculam os conteúdos pressupostos a) existe um único padrão de beleza para todos, e b) a competição social é inevitável. Em todas essas situações, coloca-se o aluno/leitor em situação de falta de liberdade, já que não lhe são permitidas nem a recusa nem mesmo a dúvida sobre os conteúdos apresentados implicitamente.

Esses exemplos retratam claramente que os pressupostos se prestam a uma forma de manipulação. Eles são empregados para fazer com que o interlocutor torne-se cúmplice de um dado posicionamento, sem permitir-lhe a recusa, conforme assevera Fiorin (apud LARA, 2009, p. 6). Acreditamos que a opção do manual pelo uso da pressuposição no discurso que veicula teria como objetivo induzir o aluno-leitor a realizar a interpretação

desejada pela escola, o que vai de encontro à formação de um leitor crítico, capaz de contestar, de discordar do que leu. As informações implícitas (pressupostas) nas perguntas não deixam margem ao questionamento ou à discussão – são tidas como aceitas pelo locutor e pelo interlocutor –, o que leva este interlocutor a raciocinar de acordo com um modelo pré-estabelecido.

A análise do fenômeno da pressuposição nos permitiu identificar o perfil do aluno-leitor que o manual projeta em seu discurso. Vejamos no quadro abaixo:

Quadro 2: O fenômeno pressuposição e o perfil projetado do aluno-leitor

Marca de heterogeneidade do discurso

Pressuposição

Principal função no livro didático

Fazem com que o interlocutor aceite as informações que lhe são passadas de forma implícita pelo locutor, sem questioná-las.

Exemplo

O que podemos fazer para não sermos manipulados pelos anúncios publicitários? (PL, 2002, p. 146)

Perfil projetado do aluno-leitor

Aluno cúmplice

A leitura do quadro 2 revela que as

perguntas sobre os textos dados para leitura em Português: Linguagens criam o perfil de um aluno cúmplice, que segue comandos e que se limita a encontrar no texto as informações solicitadas. Ele se configura, portanto, como um “aluno repetidor”, “dependente” ou, então, meramente “identificador” do que se pede.

Conforme observamos, a análise realizada nos permitiu identificar a projeção do perfil de um aluno cúmplice, seguidor de instruções. É importante ressaltar que, por outro lado, notamos uma grande recorrência de perguntas do tipo inferenciais, correspondentes

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a mais da metade das perguntas do manual. Esse fato indica, a nosso ver, a projeção de um segundo perfil de aluno-leitor: um aluno problematizador, que é questionador e crítico. É interessante observar que as perguntas inferenciais situam-se, conforme Marcuschi (2002, p. 53), na classe de perguntas que “exigem reflexão mais acurada, ou seja, algum tipo de inferência ou raciocínio crítico” e, desse modo, demandam um raciocínio mais complexo do aprendiz. Vejamos alguns exemplos no quadro abaixo: Quadro 3: Exemplos de perguntas inferenciais

Ex.1) Q.4 - Que importância tem para a significação geral do texto o fato de em nenhum momento aparecer a voz do protagonista? (PL, 2002, p. 52) Ex.2) Q.8 - Em sua trajetória de vida, o ser humano sofre profundas mudanças. De acordo com o texto, essas mudanças fazem com que ele deixe de valorizar a liberdade? Justifique sua resposta. (PL, 2002, p. 115) Ex.3) Q.8 - O conto é um gênero literário que tem algumas semelhanças com a crônica: é curto e apresenta tempo, espaço e número de personagens limitados. O conto, porém, costuma ser mais denso e profundo, com personagens trabalhados psicologicamente. Tais características se verificam no conto lido? Justifique. (PL, 2002, p. 248) Ex.4) Q.4 - Pode-se dizer que o texto critica a influência dos meios de comunicação sobre o comportamento das pessoas? Por quê? (PL, 2002, p. 145) Ex.5) Q.3 – Compare as ocasiões em que o interlocutor é a mãe ou a esposa: a) Em que a mãe e a esposa se assemelham? b) Que papel cabe à mulher, na visão do texto? (PL, 2002, p. 52) Ex.6) Q.8 - Pelo que se vê no texto, a libertação feminina, nesse momento, era um problema do passado? (PL, 2002, p. 18)

Ex.7) Q.5- Além dos moradores da região em que aconteceu o acidente, outras pessoas se aproximam da vaca e também tentam tirar proveito da situação. Levante hipóteses: Por que o motorista é o único que nada diz ao açougueiro? (PL, 2002, p. 247) Ex.8) Q.2- No confronto de interesses entre os dois, o casal acaba discutindo sobre a vida profissional de cada um. Para rebater o argumento do marido, Sílvia cita o exemplo da mãe dele. O que você acha que pode ter ocorrido com os pais de Lúcio? (PL, 2002, p. 17)

A partir da análise das perguntas,

podemos notar que, em muitos momentos, o aprendiz é levado a posicionar-se criticamente diante do texto a ele apresentado. Veja-se o exemplo 4, que solicita do aprendiz a capacidade de identificar o ponto de vista do texto sobre os meios de comunicação, desenvolvendo, assim, sua competência de questionamento e argumentação. Nesse modelo o aluno-leitor deve utilizar não apenas as informações contidas nos textos, mas também seus conhecimentos extratextuais para responder às questões. No exemplo 8, por exemplo, cabe ao aluno inferir sobre a situação da família de Lúcio para que possa problematizar a questão com os demais colegas e professor.

Observamos que essa modalidade de pergunta tem como característica desenvolver o raciocínio crítico do aprendiz, pois implica a assunção de um posicionamento em relação aos conteúdos que lhe são apresentados. É um tipo de questão mais complexa, que exige que o aprendiz reflita sobre o que leu. O quadro abaixo explicita algumas características das perguntas do tipo inferenciais e apresenta o perfil projetado do aluno-leitor.

Vejamos:

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Quadro 4: As perguntas inferenciais e o perfil projetado do aluno-leitor

Modelo de pergunta:

Inferenciais

O que solicitam do aprendiz

O aprendiz deve posicionar-se de forma crítica em relação às perguntas apresentadas.

Exemplo

Pode-se dizer que o texto critica a influência dos meios de comunicação sobre o comportamento das pessoas? Por quê? (PL, 2002, p. 145)

Perfil projetado do aluno-leitor

Projeção de um aluno problematizador

A partir da leitura dos quadros 2 e 4

acima, notamos que as perguntas sobre os textos dados para leitura parecem apontar para a existência de dois perfis antagônicos de aprendizes: por um lado, as atividades projetam o perfil de um aprendiz contestador, crítico, que reflete sobre o que lê e que opina sobre assuntos atuais e/ou polêmicos – ou seja, um aluno problematizador. Por outro, elas constroem a representação de um aprendiz cúmplice, que segue comandos e que se limita a encontrar no texto as informações solicitadas e a raciocinar de acordo com um modelo pré-estabelecido, portanto, um aluno repetidor, dependente ou, então, meramente identificador do que se pede.

Após as constatações acima chegamos à seguinte conclusão: a hipótese de que as competências requeridas dos alunos durante os trabalhos com leitura são inadequadas para o desenvolvimento do seu raciocínio crítico não pode ser comprovada, dado que as perguntas inferenciais correspondem a mais da metade do total das questões sobre leitura no manual. A predominância dessas perguntas parece indicar que um esforço tem sido feito para formar alunos capazes de refletir e de posicionar-se criticamente diante dos textos

que lhes são apresentados. Passaremos, portanto, às considerações finais de nossa pesquisa.

Considerações finais

Acreditamos que a investigação aqui proposta tenha contribuído para problematizar a questão da forma como a leitura é trabalhada em manuais didáticos de ensino fundamental. Finalizamos esse artigo propondo uma reflexão possível, dentre o amplo leque de questionamentos que podem ser feitos acerca desse tema tão complexo, e tão permeado de possibilidades investigativas:

• se as estratégias de ensino e atividades de leitura propostas pelos manuais didáticos se apresentam como meios eficazes para o desenvolvimento do raciocínio críticos dos aprendizes, no que se refere às atividades de interpretação de textos, quais serão as razões para o baixo desempenho dos nossos alunos em avaliações em massa?

Referências

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SILVA, Viviane Netto. Reflexões em torno do discurso escolar: uma análise sobre o trabalho com a leitura em sala de aula. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 102-111, jun.2013.

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POSSENTI, Sírio. A heterogeneidade e a noção de interdiscurso, 1994. Xerox. Sistema de Avaliação da Educação Básica, (SAEB), 2001. Disponível em: http://www.inep.gov.br/download/saeb/2001/miolo_novas_perspectivas2001.pdf. Acesso em: 15/09/2012.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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ANÁLISE DO DISCURSO E ESTUDOS RETÓRICOSi

Christopher Eisenhartii Barbara Johnstoneiii

Visão global

Rhetoric in Detail reúne 12 estudos escritos por pesquisadores que se definem, principalmente, como retóricos que empregam teoria e/ou método da Análise do Discurso linguística. Esses estudos fazem uso de uma variedade de recursos de análise analítica, incluindo os da Análise Crítica do Discurso, da Sociolinguística Interacional, da Análise Narrativa e da análise de corpus informatizado. Eles ilustram a utilidade da Análise do Discurso em uma variedade de sites retóricos, incluindo os discursos da memória pública e da identidade coletiva, a retórica da ciência e da tecnologia, da argumentação vernácula, do discurso midiático, e dos estudos de imigração. O método que esses projetos compartilham entre si ancora-se na especial atenção dada aos detalhes linguísticos dos registros de discurso, sejam eles textos escritos ou transcrições de fala.

Os autores adotam, geralmente, uma abordagem interpretativa qualitativa e interpretativa, mas que difere das abordagens frequentemente adotadas em estudos retóricos, na medida em que ela é orientada mais na direção do corpus do que na das teorias. Trabalhando a partir de instâncias de texto e de discursos orais particulares e situados, e não a partir de modelos abstratos de discurso, eles escolhem abordagens sistemáticas para explorar por que determinados enunciados tomam as formas específicas que eles têm.

A abordagem em questão parte de uma atitude sintonizada com múltiplas fontes de coerção contextual, e não a partir da teoria e da busca de torná-la evidente. Embora os estudos dos capítulos tratem de várias questões retóricas de modos variados, todos eles partilham entre si três características metodológicas: eles são empíricos, no sentido de que se baseiam em observação e não em introspecção; eles são etnográficos, na medida em que buscam entender os funcionamentos

i N.T.: Este artigo é a tradução do capítulo 1, “Discourse analysis and rhetorical studies” (p. 3-21), introdutório à obra Rhetoric in detail: discourse analyses of rhetorical talk and text, organizado por Barbara Johnstone e Christopher Eisenhart, 2008, John Benjamins Publishing Company, Amsterdam/Philadelphia.

A parte final do capítulo (que contém os subtítulos Chapter themes e The intellectual history of this book) não foi traduzida para o português, em razão de se tratar da apresentação dos artigos reunidos na obra acima citada.

This paper is a translation of chapter 1, “Discourse analysis and rhetorical studies” (p. 3-21), the introductory work to Rhetoric in detail: discourse analyses of rhetorical talk and text, organized by Barbara Johnstone and Christopher Eisenhart, 2008, John Benjamins Publishing Company, Amsterdam/Philadelphia.

The final part of the chapter (which contains the subtitles Chapter themes and The intellectual history of this book) has not been translated into Portuguese because it concerns the presentation of articles gathered in the work cited above.

ii Docente da University of Massachusetts Dartmouth (UMass), Estados Unidos. E-mail: [email protected]. iii Docente da Carnegie Mellon University (CMU), Estados Unidos. E-mail: [email protected].

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EISENHART, Christopher; JOHNSTONE, Barbara. Análise do discurso e estudos retóricos. Trad. Kelly Cristina de Oliveira e Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 112-126, jun.2013.

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retóricos do discurso e de seu contexto por meio dos olhos e mentes das pessoas envolvidas neles; são fundamentados, retornando repetidamente aos dados, porque constróem uma teoria que dê conta deles.

Originários de uma heurística analítica em vez de um quadro teórico preexistente, esses estudos ilustram o potencial da construção de uma teoria, baseada no discurso e guiada pela observação, para os estudos retóricos e críticos. Como o foco da retórica se estende a partir do planejado na direção do espontâneo, e do público para o privado, os retóricos reconhecem a necessidade de novos métodos, e vão encontrar alguns ilustrados no livro.

Os analistas do discurso podem também descobrir algumas novas ferramentas. Os primeiros teóricos do discurso na tradição intelectual greco-romana foram os filósofos e os sofistas que descreveram e ensinaram o falar em público aos cidadãos, cujas vozes se materializavam numa recém-democrática Atenas do século V a.C, e os autores cujo trabalho aparece no livro representam o revigoramento dessa tradição, especialmente na América do Norte, na "nova retórica" do século XX.

Com novas maneiras, muitos desses estudos baseiam-se em ferramentas analíticas tradicionais da retórica - figuras de linguagem, topoi, linhas de argumentação, invenção e estilo, ethos, logos e pathos -, mostrando como eles podem informar e serem informados pela atenção que dão os analistas de discurso à forma como o léxico e a sintaxe podem evocar estilos, gêneros, textos e oradores prévios e, assim, criar relações sociais e mundos experienciais nos discursos oral e escrito.

Métodos e problemas nos estudos retóricos na América do Norte

Os retóricos sempre utilizaram uma abordagem inclusiva para o método analítico. Além de usarem o vocabulário analítico da

retórica clássica, os praticantes emprestaram e adaptaram métodos provenientes de outras disciplinas, tomando, por exemplo, como base intuitiva, o raciocínio da filosofia baseado na intuição, e as técnicas de explicações de texto e uma variedade de perspectivas crítico-teóricas da literatura e da teoria sociológica.

Essas ferramentas foram desenvolvidas para responder a perguntas a respeito dos gêneros, cuidadosamente planejados e frequentemente institucionais, que foram o objeto principal da crítica retórica. Entretanto, o foco de atenção dos retóricos está se expandindo da esfera pública para a privada, da retórica oficial para a retórica vernacular, da oratória para o discurso escrito e para a multimídia, do discurso cuidadosamente elaborado para o discurso espontâneo que emerge das situações retóricas fugazes do cotidiano.

Hoje em dia, não queremos apenas saber a respeito da retórica da política mas também da retórica da história e da retórica da cultura popular; não apenas da retórica da esfera pública mas também da retórica da rua, do salão de cabeleireiro ou da internet; não apenas a respeito da retoricidade do argumento formal mas também da retoricidade da identidade pessoal. Para responder a essas novas preocupações e a esses sites, precisamos continuar a complementar os modelos tradicionais de trabalho com novas técnicas de análise da linguagem do texto e da fala, e também com meios para descrever os contextos socioculturais e materiais do discurso.

Desde muito tempo, como na Conferência Wingspread, em 1970, avaliações sobre a saúde da retórica como disciplina salientaram a ampliação, o aprofundamento do objeto de estudo retórico, e a necessidade de métodos apropriados e conceitos estruturais para explorar esse objeto. No decorrer dessa conferência (BITZER e BLACK, 1971), particularmente nos artigos de Becker, Brockriede e Henry Johnstone, que discutem

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EISENHART, Christopher; JOHNSTONE, Barbara. Análise do discurso e estudos retóricos. Trad. Kelly Cristina de Oliveira e Moisés Olímpio Ferreira. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 112-126, jun.2013.

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as tendências na área, foi observado que o momentum1 na retórica está se deslocando de um diádico orador-auditório, modelo de estudo orientado a textos, para os estudos de processos de comunicação e interações, situados e constituídos em ricos contextos do mundo real.

Análises retóricas e críticas já não estavam sendo aplicadas apenas a obras históricas, mas também a comunicações contemporâneas. Estudos retóricos não enfatizavam apenas as situações de falas institucionalizadas, mas, cada vez mais, estavam voltados a experimentos, à interatividade e aos gêneros discursivos do cotidiano, e a outros estudos de construção de sentido como atividades situadas.

Como Brockriede (1971) observou, essa trajetória exigiria a flexibilidade conceitual e metodológica necessária para "deixar a operação em si [sob estudo] sugerir suas próprias categorias analíticas", enquanto mantém, de modo vigoroso, conexões com a investigação teórica estabelecida, de modo a não se tornar isolada e trivial. Essa trajetória na disciplina, reconhecida novamente em reflexões mais recentes (cf. BENSON, 1993; ENOS e McNABB, 1996; GROSS e KEITH, 1997; CHERWITZ e HIKINS, 2000; SCHIAPPA et al., 2002; SIMONS, 2003), tem exigido o desenvolvimento de quadros conceituais e metodológicos que vão mais longe, embora não totalmente independentes daqueles já institucionalizados, como os de Burkean e Neo-Aristotélico.

Onde essas abordagens tradicionais da crítica retórica têm sido discutidas como heurísticas para invenção e interpretação, e como métodos de análise sistemática (NOTHSTINE et al., 1994), alguns retóricos têm se voltado para a análise linguística do discurso por essa desejada flexibilidade conceitual e metodológica.

1 NT: momentum,i: movimento; mudança.

Tracy (2001) descreve as conexões que emergiram entre os estudos de Comunicação e de Análise do Discurso. Estudiosos em retórica e em estudos de composição também fizeram apelos para a inclusão de métodos analíticos de discurso. MacDonald chamou de estudos do discurso "os campos interconectados de retórica e composição e Linguística Aplicada” (2002). Barton (2002) sugeriu que os estudos de composição pudessem se beneficiar das abordagens analíticas do discurso, particularmente em "conexões entre textos e contextos, com um foco no uso repetido de características linguísticas..., e convenções associadas que estabelecem o seu sentido e significado no contexto" (285). Uma maneira de descrever a contribuição que a obra Rhetoric in detail traz é saber que, em termos de um conjunto de questões gerais, são atuais e férteis para a construção da teoria retórica: contexto, agentividade, e a relação entre estilo e argumento.

Na discussão a seguir, nós esboçamos trajetórias dentro dessas questões que visam a análises de discurso fundamentadas, que demonstram como retóricos têm e podem ainda beneficiar-se das abordagens analíticas do discurso.

Contexto e agentividade

Entre as práticas disciplinares mais fundamentais da retórica está o estudo do discurso em contexto. Em seu tratado sobre a retórica, Aristóteles discutiu os componentes de uma situação de fala e, de forma bem clara, estabeleceu a conexão da retórica com os discursos público e cívico. A limitação ao discurso cívico que a retórica se impôs já passou, mas não a sua premissa central de que o discurso deve ser modelado pelo contexto.

Semelhantemente fundamental é o interesse da retórica quanto ao poder e às escolhas que um retor (orador ou escritor) traz para uma situação dada. Algumas definições

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de discurso retórico distinguem-no, principalmente, pela suposição de que o discurso é aquele que pretende efetuar uma mudança, tendo a capacidade de mudar a situação para a qual foi designado. Portanto, a agentividade é uma característica essencial dos espaços em que são tratados os problemas retóricos.

Leff, por exemplo, discute a agentividade como fonte de tensão entre as concepções Iluministas do eu e as críticas pós-modernas dessas concepções na tradição sofística e ciceroniana que ele renomeia de “retórica humanista”: a abordagem humanista implica uma noção de agentividade produtivamente ambígua, que posiciona o orador, ao mesmo tempo, como um indivíduo que conduz o auditório e como membro de uma comunidade moldada e condicionada pelas exigências do auditório... [Essa tradição pode] incluir uma atitude suspeita quanto à teoria abstrata, não somente no que diz respeito à retórica, mas também à ética e à política; a convicção de que o discurso, especialmente aquele que permite a discussão de ambos os lados de uma questão, desempenha um papel constitutivo na vida cívica; uma valorização e idealização da eloquência que implica uma estreita ligação entre eloquência e virtude; e uma concepção de virtude que é decisivamente ligada à atividade política (LEFF, 2003, p. 135, 136).

A tentativa de definir e de estudar os espaços retóricos e as tensões entre a agentividade retórica presumida e as restrições de contexto reconhecidas tem provado ser um dos mais produtivos problemas teóricos da retórica contemporânea (cf. BITZER, 1968; VATZ, 1973). E é em relação a esse espaço de questionamento que os estudos retóricos se engajaram no desafio de descrever a interação de agentividade retórica e contexto. Nas últimas décadas, o trabalho advindo da teoria da esfera pública de Habermas (1989) permitiu uma maneira produtiva de pensar sobre essa intersecção. Nos estudos retóricos, a

preocupação central é o estudo do discurso concreto, do discurso de um agente na esfera pública, como Hauser escreveu:

Na melhor das hipóteses, a retórica da democracia é impura segundo os padrões Iluministas da razão. Consequentemente, alguns pensadores, como Habermas que foi um dos defensores mais leais do discurso como ponto de ancoragem conceptual da democracia, consideraram problemáticos os impulsos estratégicos da retórica.

Mas excluir os processos retóricos de nossa apreciação do diálogo contínuo da democracia também exclui a agentividade pela qual as decisões democráticas são tomadas. Antes que possamos reabilitar a vida pública, devemos primeiramente compreender o modo como ocorrem, de fato, as suas formas de discurso.

Caso contrário, qualquer crítica ou recurso que propusermos será totalmente de ordem analítica, produzindo conclusões que resultam, logicamente, de hipóteses a priori a respeito dos padrões racionais/ideológicos de um acordo “válido”, mas que falta um referente empírico no método discursivo vigente a que os membros da esfera pública recorrem (HAUSER, 1999, p. 273).

O programa positivo de Hauser, então, consiste em adotar uma atitude empírica no estudo do modo como os retores agem na esfera pública, valorizando o estudo dos discursos vernaculares em detrimento das generalizações teóricas baseadas na leitura solitária dos discursos institucionais. Isso está em ressonância com a advertência de Asen (2004), que sugere desenvolver um sentido de cidadão democrático que se desloca "do que constitui a cidadania para o como a cidadania se realiza", e com a advertência de Simons (2000) de "mover-se para o particular, o local, o único - para uma teoria do evento específico – a partir do que se poderia, então, derivar um sentido de limites, possibilidades e o

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compromisso envolvido na escolha dessa opção em vez de outra" (p. 448-9).

Ilustrando essa busca, Johnstone (1996) utiliza a Análise de Discurso para investigar como o complexo da agentividade retórica e do contexto é constituído no discurso, e McCormick (2003) concentra-se nas análises retóricas dos discursos vernaculares que poderiam se beneficiar da Análise Crítica do Discurso (ACD).

Estilo e Argumento

Ao longo de sua história, o forte relacionamento da retórica com o estilo tem se retraído e se expandido com o apoio de outras disciplinas. O escopo desse perpétuo interesse no estilo mudou, é claro. Grande parte do conflito entre as tradições sofistas e platônicas/aristotélicas girava em torno da importância do estilo e do papel do estilo como um componente central na prática retórica, no ensino e na teoria. Durante a Idade Média, quando filósofos, como Ramus, consideravam a invenção ser o reino da dialética e da filosofia, a retórica mantinha uma posição como arte de estilo controlado, juntamente com a elocução (CONLEY, 1990).

Mais recentemente, a “nova” retórica, da metade do século XX (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1969), pode ser posta em destaque, em parte, por seu interesse no estilo como constitutivo, mais do que meramente ornamental. Diversos desenvolvimentos conceituais, que não foram muitos nesse período enquanto disciplinarmente aderentes, marcam a atitude retórica atual em direção ao estilo. Tratamentos burkeanos sobre a metáfora (BURKE, 1945, 1950), por exemplo, partem, de forma mais dramática, da discussão aristotélica (1991) de metáforas como outros nomes, para uma apreciação do trabalho de tomada de conhecimento da metáfora e da natureza essencialmente metafórica das práticas retóricas.

Estudos retóricos de estilo deveriam incluir níveis de análises em que os estudos do discurso pudessem prover informações, envolvendo também as ressonâncias pelas quais o estilo permanece uma preocupação proveitosa aos estudos retóricos (MAcDONALD, 2002). Herndl, Fennell e Miller (1991) demonstram a necessidade de estudar os textos em vários níveis (linguístico, semântico, argumentativo), para envolver adequadamente tanto a evidência quanto a estrutura crítica do discurso.

Em análises retóricas de discursos políticos, as preocupações com o estilo são muitas vezes associadas a uma força constitutiva. Vários estudos seguiram a discussão de grande influência de Charland (1987) sobre como as escolhas linguísticas em textos políticos significativos constituem agentes e comunidades agentivas. Um exemplo recente é o estudo de Cordova (2004) sobre uma campanha populista porto-riquenha de meados do século XX.

O interesse retórico na invenção – a descoberta e a criação de argumentos e, mais geralmente, a produção de significado – tem sido tanto parte de seus fundamentos quanto, durante alguns períodos de sua história, banido de sua disciplina. Estudos retóricos contemporâneos têm renovado o interesse na invenção (YOUNG e LIU, 1994), tanto em relação aos estudos da composição quanto em termos da retórica epistêmica, ou no estudo de como o significado ou o conhecimento é feito via processos retóricos.

Vários estudos têm defendido métodos analíticos de discurso para analisar como se comporta a invenção nas aulas de redação (SPERLING, 1994; HODGES, 1994) e alguns focos nas características micro-retóricas que ocorrem nesses momentos, como oportunidades para estudar a invenção na sala de aula e na escrita pedagógica (HILLOCKS, 1994; STRAUSS e XIANG, 2006).

Além de conectarem o retor à comunidade, muitos retóricos e estudiosos de

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comunicação têm utilizado a intersecção de estilo e argumento como uma maneira de caracterizar o discurso retórico e os tipos de práticas. A classificação aristotélica de discursos públicos como judiciário, epidítico e deliberativo não só incluía componentes dos tipos de apelos que estavam sendo feitos (e os tipos de provas em que eles operavam), mas também discutia as expectativas das características estilísticas que tipificariam cada modalidade. Essa tradição persiste nos estudos de gênero ou tipificação, muitas vezes através de uma combinada atenção de estilo e argumento. Os trabalhos de Dunmire (2005, 2000), por exemplo, examinam o papel da construção da temporalidade em gêneros que envolvem a construção do futuro. Estudos ilustrativos de práticas típicas em disciplinas incluem Winsor (2000, 1999), Bazerman (2000), Myers (2003) e Fahnestock e Secor (1991).

O que é a Análise do Discurso?

Os linguistas que se referem a si mesmos como analistas do discurso exploram aquilo que pode ser aprendido sobre a linguagem e sobre os falantes ao estudarem a língua em uso. De encontro aos linguistas gerativistas da tradição de Chomsky, os analistas do discurso examinam os textos escritos, ou transcrições de discursos falados ou o discurso gestual, em vez de confiarem em suas próprias intuições a respeito das possibilidades gramaticais. Estão interessados na estrutura e função dos trechos de fala ou de texto que são maiores do que uma frase, e em como a estrutura das frases é influenciada por seu funcionamento nos contextos linguísticos e sociais em que estão inseridos. Por "discurso", querem dizer instâncias reais de conversação, de escrita, ou de comunicação linguística em qualquer que seja a mídia.

Alguns analistas de discurso tentam explicitamente ligar características do discurso, tomado nesse sentido, com aspectos

que estudiosos da tradição foucaultiana chamam "discursos": circulação de conjuntos de idéias e práticas sociais que podem incluir modos de fala. Outros têm objetivos diferentes. Alguns estão interessados nos tipos de questões em relação às quais os linguistas têm sempre se perguntado: como a linguagem é representada na mente, como a produção e interpretação do discurso podem ser melhor modeladas, como a língua muda e é adquirida etc. Outros, ainda, exploram as ligações entre os fenômenos discursivos e sociais em uma ampla variedade de contextos, incluindo a comunicação institucional, a construção discursiva da identidade e da memória, o discurso político, o comportamento organizacional, a comunicação em família etc.

Com outras vertentes da linguística contemporânea, a Análise do Discurso tem raízes históricas na Filologia do século XIX, ou seja, no estudo diacrônico (histórico) da língua, visando à exegese dos textos. Atendendo ao apelo de Ferdinand de Saussure (1916) para recentrar o estudo da língua na estrutura sincrônica, as abordagens dominantes da maior parte do século XX trataram dos sons, das frases e proposições, em vez do discurso conectado.

No início da década de 1960, no entanto, os linguistas que trabalhavam em várias tradições intelectuais começaram a convergir na direção de duas ideias sobre o discurso inter-relacionadas: (1) a ideia de que a estrutura de frases e sentenças é modelada, em parte, pela forma como elas funcionam nas conversações e textos; (2) a ideia de que os textos e as conversações são modelados, assim como as sentenças, por padrões reproduzíveis de estrutura que poderiam ser chamados "gramática”.

No Reino Unido, M.A.K. Halliday, baseado no trabalho de J.R. Firth, começou a desenvolver uma “gramática sistêmico-funcional” e a questionar como as sentenças se conectam nos textos (HALLIDAY, 1994; EGGINS, 1994). Nos Estados Unidos,

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Kenneth Pike e outros linguistas associados ao Summer Institute of Linguistics desenvolveram, similarmente, um método de compreensão da estrutura da sentença e do discurso baseado na função, que eles chamaram gramática tagmêmica (PIKE, 1967). Ao mesmo tempo, o surgimento da Sociolinguística Variacionista, da Análise da Conversação, da Sociolinguística Interacional e da Etnografia da Comunicação, colocou o discurso ao alcance dos estudantes de mudança da língua, da sociologia da língua e da antropologia linguística (LABOV, 1963, 1972; SACKS, SCHEGLOFF e JEFFERSON, 1974; TEN HAVE, 1999; GUMPERZ, 1982; GUMPERZ e HUMES, 1972).

Na França, linguistas marxistas começaram a explorar a maneira como a ideologia é construída e revelada por meio do discurso (PÊCHEUX, 1969). Um pouco mais tarde, linguistas, influenciados pela teoria social da escola de Birmingham, trouxeram, à atenção dos anglófonos, uma abordagem crítica semelhante, propondo que o seu objetivo, uma vez que a Análise do Discurso não poderia jamais ser simplesmente descritiva, deveria ser descobrir como o poder circula, normalmente de maneira invisível, no discurso (FAIRCLOUGH, 1992, 2003; WODAK, 1996, 2005[...]). Essa abordagem, geralmente chamada Análise Crítica do Discurso, permanece influente [...].

Recentes trabalhos feitos por analistas do discurso são mais ecléticos; são baseados na pragmática, na sociolinguística, na linguística interacional e em várias correntes da teoria da argumentação, da retórica, da sociologia, da literatura e da antropologia. Muitos analistas de discurso, particularmente aqueles cujas bases disciplinares estão na linguística, continuam interessados principalmente nas questões sobre a linguagem, mas o uso da Análise do Discurso, seja qual for sua definição, como um método de análise sistemático e fundamentado tornou-se cada vez mais interdisciplinar.

Os manuais já não pressupõem que todos os analistas de discurso sejam linguistas; uma formação em Análise de Discurso é oferecida, por vezes, no contexto de programas de "estudos do discurso" em diversas especializações acadêmicas; revistas como Discourse Studies, Discourse in Society, Discourse and Communication e Text and Talk publicam os trabalhos de pessoas de variadas filiações disciplinares.

Uma abordagem heurística do discurso

As análises de discurso ilustradas nos capítulos de Rhetoric in Detail partem do trabalho de A.L. Becker (1995, ver também JOHNSTONE, 2008). Iniciamos nosso trabalho com uma técnica heurística, partimos de uma abordagem particularista, interpretativa mas sistemática, para descobrir por que um texto dado é como ele é. Analistas do discurso trabalham com material de vários tipos, incluindo transcrições de interações gravadas em áudio ou filme, documentos escritos, textos transmitidos por meio da tradição oral, como provérbios e reproduções de comunicação on-line.

O material desses analistas, por vezes, é unicamente verbal e, às vezes, inclui fotografias, gestos, olhares e outras modalidades. Mas independentemente do tipo de discurso considerado, a questão de base que um analista de discurso se põe é: "Por que esse trecho do discurso é do jeito que é? Por que não há outra maneira? Por que essas palavras particulares e nessa ordem particular?

Para responder a essas questões, nós precisamos, obviamente, pensar a respeito do que é o nosso “texto”, visto que, evidentemente, o que uma pessoa fala tem influência sobre o que é dito e como é dito. Nós precisamos pensar, também, na pessoa que falou, escreveu ou assinou, que é considerada, em seu particular contexto sócio-cultural, responsável pelo que diz; quem era o público-alvo pretendido e quem eram os

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ouvintes ou leitores reais, porque os participantes de uma situação e como seus papéis são definidos influenciam, claramente, o que é dito e como é dito. Nós precisamos pensar a respeito do que motivou o texto, em que medida ele se encaixa no conjunto de coisas que as pessoas, em seus contextos, convencionalmente fazem com o discurso, e que meio (ou meios) de produção tem a ver com o que ele é. Precisamos pensar a respeito da linguagem empregada, sobre aquilo que a linguagem encoraja os oradores e os escritores a fazer, e naquilo que é relativamente difícil de fazer com essa linguagem. Precisamos pensar sobre a estrutura do texto e como ele se encaixa em estruturas maiores de conjuntos de textos e de interações.

Podemos dividir essas questões que precisam ser feitas a respeito de um texto em seis grandes categorias. Cada uma dessas categorias corresponde a uma das maneiras em que os contextos modelam os textos e vice-versa. Cada um desses aspectos de construção de texto é tanto uma fonte de coerção - razão pela qual os textos são tipicamente de certas formas e não de outras –, quanto uma fonte de criatividade em que oradores, signatários e escritores se expressam pela manipulação dos modelos que se tornaram convencionais.

• O discurso é modelado pelo mundo e

modela o mundo. • O discurso é modelado pela linguagem e

modela a linguagem. • O discurso é modelado pelos participantes e

modela os participantes. • O discurso é modelado por discurso anterior

e modela as possibilidades de discurso futuro.

• O discurso é modelado por seu meio de difusão e modela as possibilidades de seu meio de difusão.

• O discurso é modelado por seu propósito e modela os propósitos possíveis.

Figura 1: Como o discurso é modelado e modela seu contexto

A figura 1 lista esses seis aspectos de modelagem de textos. Essas seis observações sobre o discurso constituem uma heurística de exploração sistemática daquilo que é potencialmente interessante e importante a respeito de um texto ou de um conjunto de textos. Heurística é um conjunto de procedimentos de descoberta para aplicação sistemática, ou um conjunto de temas a serem levados em consideração sistematicamente.

Contrariamente aos procedimentos de um conjunto de instruções, os procedimentos de uma heurística não precisam ser seguidos em uma ordem específica, e não há uma maneira fixa de segui-los. Uma heurística não é um conjunto de etapas mecânicas, e não há garantia de que seu uso resulte em uma única e definitiva explicação.

Uma boa heurística baseia-se em várias teorias e não em uma única. A heurística que nós utilizamos aqui força-nos a pensar, por exemplo, em como o discurso é modelado pelas ideologias que fazem circular o poder na sociedade, mas isso força-nos também a pensar sobre como o discurso é modelado pelas memórias de discursos anteriores das pessoas, tanto quanto pelas outras fontes de criatividade e coerção.

Podemos acabar decidindo, em cada projeto particular, que a abordagem mais útil será aquela que nos dá maneiras de identificar como a ideologia circula por meio do discurso, ou aquela que nos ajuda a descrever a "intertextualidade", ou aquela que ajuda a descobrir as relações entre o texto e seu meio de difusão, a linguagem empregada, ou os objetivos de seus produtores ou suas relações sociais.

A heurística é um primeiro passo da análise que ajuda o analista a perceber quais são os tipos de teorias necessárias para conectar as observações particulares a respeito do discurso, feitas quando se usa a heurística, a afirmações gerais sobre a linguagem, a vida humana ou a sociedade. É uma forma de fundamentar a análise do discurso no discurso,

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em vez de partir de uma teoria pré-selecionada e utilizar textos para testar ou ilustrar a teoria.

Situando a heurística na teoria retórica

Cada um dos seis elementos da nossa heurística analítica baseia-se em um corpo de pensamento sobre a linguagem e a comunicação que, pelo menos em parte, já é familiar aos retóricos. A alegação de que os textos e suas interpretações, ao mesmo tempo, são modelados pelo mundo e modelam o mundo está enraizada na retórica e na teoria linguística sobre o papel da referência na produção e interpretação do discurso. O discurso nasce do mundo ou dos mundos que se presume existir fora do discurso, dos mundos dos produtores e intérpretes de textos.

Não importa se um discurso é ou não considerado alguma coisa, é relevante a maneira como ele será interpretado. O discurso que for tido como aquele que não se refere a nada poderá ser entendido como sem sentido ou louco; ele pode ser o resultado de um experimento linguístico, como o do dadaísmo na poesia; pode ser exigido em um ritual. A tradição do pensamento ocidental sobre a linguagem tende a privilegiar o discurso referencial e a imaginar que o discurso (pelo menos idealmente) reflete o mundo pré-existente. Entretanto, como os filósofos do século XX (FOUCAULT, 1980), retóricos (BURKE, 1945) e linguistas (SAPIR, 1949, WORF, 1941) mostraram-nos mais de uma vez, o inverso também é verdadeiro, ou talvez o mais verdadeiro: os mundos humanos são modelados pelo discurso.

Quando nós apontamos o modo como os textos e suas interpretações são modelados pelos recursos estruturais que estão disponíveis, nós estamos apontando para o fato (bem conhecido por retóricos interessados em estilo e disposição) que existem formas convencionais de estruturar textos em todos os níveis. Falar uma língua, como o inglês ou o coreano, significa usar meios convencionais de

estruturar sílabas (uma nova palavra inglesa pode começar com pri, mas não com ngi), palavras ( o –s, que mostra que uma palavra inglesa está no plural, vem depois da raiz e não antes), frases (nas frases declarativas em inglês, o sujeito normalmente precede o predicado).

Da mesma forma, existem maneiras convencionais de estruturar unidades maiores do discurso, algumas culturalmente específicas e outras resultantes do processo de cognição humana. Elas incluem maneiras de se mover, como por exemplo, da informação familiar à nova informação, do exemplo para a reivindicação geral, ou da reivindicação geral para o exemplo, ou mesmo da questão para a resposta.

A afirmação de que o discurso é modelado pelas relações interpessoais dos participantes e de que ele auxilia a modelar essas relações deve evocar os modos tradicionais de pensar sobre o auditório e o ethos retórico, bem como os novos modos de pensar sobre como as posições e papéis dos falantes são mutuamente modelados e capacitados no contexto de estruturas maiores de poder.

As relações interpessoais conectadas ao discurso incluem as relações entre oradores e escritores, auditórios, e overhearers2, que estão representados nos textos, como também as relações existentes entre eles na produção e interpretação de textos.

A próxima observação quanto à heurística, segundo a qual o discurso é modelado pelas expectativas criadas pelo discurso familiar e as novas instâncias de discurso nos ajudam a modelar nossas expectativas sobre o discurso futuro, deve também ser familiar aos retóricos envolvidos com as teorias contemporâneas sobre gênero (MILLER, 1984; SWALES, 1990) e intertextualidade (BAKHTIN, 1986).

2 Ouvintes não ratificados dos quais o orador tem consciência; ouvintes-terceiros.

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As relações intertextuais capacitam as pessoas a interpretar as novas instâncias de discurso em referência às atividades e categorias familiares de estilo e forma. Os usos do discurso são tão variados quanto as culturas humanas, mas as atividades, muitas vezes repetitivas que envolvem o discurso, dão origem a modos relativamente fixos de procedimentos que frequentemente incluem maneiras de falar e tipos de textos, relativamente fixos e rotineiros.

Especialistas em retórica visual (HANDA, 2004; PRELLI, 2006) e outros interessados na multimodalidade (HODGE e KRESS, 1988; LEVINE e SCOLLON, 2004; SCOLLON e SCOLLON, 2003) devem também ser solidários à alegação de que o discurso é modelado pelas limitações e possibilidades de seus suportes midiáticos e que, por sua vez, as possibilidades das mídias são modeladas por seus usos no discurso. Finalmente, a observação de que o discurso é também modelado por seu propósito está na raiz da disciplina da retórica, assim como a idéia de que o discurso também molda possíveis objetivos deve encontrar ressonâncias em qualquer um que pensa a respeito de como a retórica epidítica ou deliberativa opera em contextos contemporâneos.

Começar a interrogar os textos por meio de todos os modos sugeridos pela heurística significa que a análise parte dos textos e de um modo sistemático de pensar sobre contextos possivelmente relevantes. Isso resulta em uma ampla, multidimensional e "densa" descrição (GEERTZ, 1983). Tendo feito isso, o analista estará na posição de poder focalizar uma ou duas questões, tomando qualquer das diversas abordagens para consubstanciar os detalhes.

Os artigos de Rhetoric in detail ilustram algumas dessas abordagens, certas maneiras como a análise linguística do discurso pode prover uma fundamentação, um rigoroso conjunto de métodos analíticos para responder a uma série de perguntas retóricas. Diferentes

autores enfatizam diferentes elementos da heurística. Em cada caso, porém, os autores dão sistemática atenção aos modos como os textos e os discursos são modelados e habilitados, com atenção especial às características estruturais e semânticas de instâncias específicas de texto e fala.

Análise do discurso na pesquisa contemporânea em retórica

Embora muitos críticos retóricos não estejam familiarizados com a Análise do Discurso, eles têm colegas que estão. Especialistas do departamento inglês de retórica e composição têm olhado, durante muito tempo, para a Linguística como uma fonte de ideias e métodos (cf. COOPER e GREENBAUM, 1986; RASKIN e WEISER, 1987). Os composicionistas Barton e Stygall notam que "a Análise do Discurso é base para a empreitada de estudos de composição: cada estudo no campo baseia-se, implícita ou explicitamente, na análise de textos e/ou da fala em seus diversos contextos" (BARTON e STYGALL, 2002, p. 1). A obra de Barton e Stygall reúne trabalhos de linguistas e retóricos (ou de estudiosos que simultaneamente se ocupam dos dois domínios) que têm a ver com a escrita em geral, com a escrita acadêmica, com a escrita como uma segunda língua e com o discurso científico e profissional, além de análises do discurso nas aulas de redação.

O livro de Bazerman e Prior (2004) concentra-se nos métodos para o estudo da escrita, incluindo a Análise do Discurso linguística. Estudantes interessados em análise de texto quantitativo podem se dirigir ao livro de Geisler (2004) e de Kaufer e seus colegas (KAUFER e BUTLER, 2000; KAUFER et al., 2004) que têm desenvolvido um sistema automático de análise de texto baseado em princípios retóricos. A Análise Crítica do Discurso também tem tido ressonâncias entre estudantes de alfabetização (GEE, 2005).

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Em departamentos de comunicação norte-americanos, a Análise do Discurso é muitas vezes praticada não pelos retóricos, mas por pessoas que estudam a comunicação interpessoal ou organizacional, o discurso da mídia, ou a argumentação. Etnógrafos da comunicação, como Philipsen (1992) e Carbaugh (2005), praticam a Análise do Discurso, tanto quanto os estudiosos ligados à tradição da “linguagem como interação social”, como Tracy (2002) e Fitch (1998). Jacobs e Jackson (1982) desenvolveram uma teoria da argumentação baseada nos princípios da Análise da Conversação, e a Análise Crítica do Discurso é muito popular em programas de Comunicação. No entanto, as pessoas que consideram os seus trabalhos como crítica retórica ou teoria retórica precisam conhecer ainda uma coleção de artigos que os introduza na Análise do Discurso e que lhes mostre sua utilidade para responder aos tipos de perguntas que fazem. As abordagens da Análise do Discurso que Rhetoric in detail oferece e exemplifica destinam-se a ilustrar as muitas maneiras pelas quais uma atenção redobrada e rigorosa quanto à linguagem pode ser produtiva aos especialistas de retórica.

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

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PÊCHEUX É RECONCILIÁVEL COM A ANÁLISE DO DISCURSO? UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINARi

Thierry Guilbertii

Resumo: Este artigo questiona a herança nos trabalhos atuais em análise do discurso. O autor se interroga a respeito de seu próprio percurso, das razões da semiausência de M. Pêcheux, e ressalta que sua teoria do discurso não pode figurar como única fonte epistemológica para a análise do discurso, mesmo para o ramo disciplinar que se ocupa da ideologia. Assim, o artigo sustenta que apenas uma abordagem interdisciplinar é capaz de apreender este objeto complexo por natureza: o discurso. Por intermédio de alguns exemplos, mostra que se deve evitar opor os trabalhos essenciais de Pêcheux a outros tomados equivocadamente como advindos de epistemologias diferentes. Posteriormente, propõe pistas que permitem reconciliar e articular de maneira complementar esses trabalhos anteriores às ferramentas atuais da análise do discurso. Palavras-chave: Ideologia. Evidência. Discurso. Interdisciplinaridade. Epistemologia. Abstract: This article raises the question of inheritance in the current work in discourse analysis. The author asks, looking back on his own path in particular, the reasons for the near absence of M. Pêcheux, while asserting that his theory of discourse can’t figure epistemological single source for the analysis of discourse, even for the branch of the discipline that focuses on ideology. Thus the paper argues that only an interdisciplinary approach can understand this complex subject that is discourse. With few examples, it shows that we must stop opposing essential works of Pêcheux with others mistakenly perceived as coming from different epistemologies, then it suggests ways to reconcile and to articulate complementary these ancient works with the current tools of discourse analysis. Keywords: Ideology. Evidence. Discourse. Interdisciplinary. Epistemology.

i Referência da publicação original:

GUILBERT, Thierry. Pêcheux est-il réconciliable avec l’analyse du discours? Une approche interdisciplinaire. Semen [En ligne], Besançon, n. 29, mise en ligne le 21 octobre 2010.

Os editores da Revista EID&A agradecem sinceramente ao Professor Philippe Schepens, diretor da redação da revista Semen, pela autorização da publicação desta tradução. ii Docente da Université de Picardie, França. E-mail: [email protected].

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GUILBERT, Thierry. Pêcheux é reconciliável com a Análise do Discurso? Uma abordagem interdisciplinar. Trad. Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas e Jocilene Santana Prado. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 127-136, jun.2013.

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1 Introdução

Originalmente, este artigo nasce de uma discussão com Marie-Anne Paveau a respeito da integração de diferentes epistemologias e da transmissão da memória em análise do discurso; essa discussão foi iniciada por ocasião do Colóquio L’interpellation1 e retomada na resenha crítica do meu livro Le discours idéologique ou la force de l’évidence (GUILBERT, 2009). Assim, aproveito para agradecer a oportunidade de continuar esse debate e de repensar minha própria experiência enquanto “jovem pesquisador” (que aos 48 anos represento apenas de modo incompleto) no tocante à transmissão dos fundamentos epistemológicos da análise do discurso.

A questão da herança, o cerne do debate, pode ser resumida à compatibilidade entre a análise do discurso (ideológica) atual e a teoria do discurso de M. Pêcheux. No entanto, ao se verificar certa “(des) memória (esquecimento) da análise do discurso” (PAVEAU, 2009, p. 106), em outras palavras, quando se admite que a teoria do discurso é pouco ou nada conhecida e que os pesquisadores atuais recorrem a outras fontes epistemológicas, parece-me que a questão inicial pode então ser retomada: Pêcheux e a análise do discurso ideológica atual são compatíveis? A tese defendida, aqui, no que se refere à “atualidade” de Pêcheux, é que, embora a análise do discurso lhe deva enormemente, ele não deve ser considerado atualmente como sua principal e única fonte.

Sustentarei esta tese sob três pilares. O primeiro é que o esquecimento atual de Pêcheux e de sua contribuição epistemológica para a análise do discurso é real, mas pode ser relativizado se considerarmos as condições de produção quando da publicação de uma tese2.

1 Colóquio internacional e interdisciplinar L’interpellation - Perspectives linguistiques et didactiques, realizado em 16 e 17 de maio de 2008, em Paris. 2 “[...] o que o sujeito diz deve sempre ser referido às condições nas quais ele o diz” (PECHEUX, 1969, p. 131). As referências a Pêcheux remetem aos seus textos citados

O segundo se assenta no fato de que a abordagem do objeto discurso está intimamente relacionada à interdisciplinaridade. O terceiro defende que os trabalhos de Pêcheux não são incompatíveis, mas conciliáveis com outras epistemologias presentes na análise do discurso. Enfim, com base em meus próprios trabalhos, apresento, na conclusão, uma proposta que visa a articular as contribuições de Pêcheux para a análise do discurso atual. Aliás, parece-me que a atualidade da reflexão epistemológica repousa na articulação entre os conhecimentos epistemológicos e os trabalhos pessoais.

2 Transmissão de uma memória na análise do discurso

2.1 A publicação de uma tese: condições de produção

Como todo discurso, a publicação de uma tese de doutorado advém de suas condições de produção. Inicialmente, o sujeito-doutor negocia os gêneros: ele sabe que não se trata de publicar sua tese exatamente como foi concebida inicialmente: ele deve corrigir os erros, suprimir algumas referências, rever os aspectos demasiadamente acadêmicos... Em seguida, o editor, não desejando publicar um volume muito oneroso, no tocante à relação custo/benefício, impõe certo número de páginas, revê o título, tornando-o mais “atraente” que o título anteriormente proposto. O jovem doutor deve então realizar escolhas determinadas pelo “lugar” (no sentido de Pêcheux) que ele imagina ocupar: novamente reconhecido por seus pares, surge então investido de um status e de uma “autoridade” que ele pensa ser necessário provar. Sua escolha repousa “naturalmente” sobre o que ele acredita ser “essencial”, “inovador” e “pessoal”: os

por Maldidier (1990), embora eu apresente as datas originais.

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resultados obtidos3. Ele “escolhe”, portanto, ignorar certo número de elementos já mencionados, principalmente em sua própria tese, mas também em outras anteriores, e que ele acredita serem indevidamente considerados redundantes: o aspecto epistemológico pode ser o primeiro a ser atingido4.

Seria exagerado concluir que as questões epistemológicas são pouco interessantes para os jovens pesquisadores da análise do discurso (a partir de agora, denominada AD); pode-se simplesmente observar que tais questões ocupam um lugar reduzido em suas publicações, pois são direcionadas para outros fins5.

2.2 Uma primeira abordagem da análise do discurso

Espero que esta primeira experiência6 auxilie na reflexão sobre o processo de transmissão da herança; formação na “Escola de Rouen”, no final dos anos 90, não desprovida de heranças: sociolinguística francesa e americana, Goffman, Bakthin, mas também Austin, Benveniste e Bourdieu (1982). Pêcheux está totalmente ausente desta gama de pesquisadores. No DEA (Diplôme d’Études Appronfondi), B. Gardin sugeriu-me a leitura do n. 117 da revista Langages, sobre “As análises do discurso na França” (MAINGUENEAU, 1995).

Defino então meu projeto de tese como a pesquisa do funcionamento discursivo da ideologia (neoliberal), cujo objetivo é o de descartar o aspecto conotativo da ideologia e

3 Isso é o que orientou minha escolha e, parece-me, a de R. Kerzazi-Lasri (2003). 4 Esta “escolha” não é mecânica, assim von Münchow (2004) consagra uma parte importante de sua obra às questões epistemológicas. 5 Este é o caso dos recentes trabalhos que parecem ter o objetivo de apresentar a polifonia nórdica de Malin Roitman (2006) ou a orientação léxico-semântica de Julien Longhi (2008). 6 Minha própria experiência é com certeza puramente incidental.

sua abordagem política cientificamente suspeita7, sem, entretanto, negar sua função essencial no que se refere ao poder e considerando os avanços da AD: os questionamentos da dicotomia saussuriana língua/fala, da bivalência da relação significado/significante ou da unicidade do sujeito falante me parecem definitivamente comprovados. A questão que aqui se impõe reside no como8: como o discurso ideológico chega a se constituir sob a forma de evidência. Nisso que falta em Pêcheux, a leitura de Althusser (1970) confirmará minhas intuições no que tange à importância da evidência para o funcionamento ideológico.

2.3 A transmissão dos anos 1970

Antigos números da Langages e da Langue Française9, do início dos anos 1970, complementam essas primeiras abordagens epistemológicas da AD: elas surgem como uma história escrita ao mesmo tempo em que a disciplina se constrói. Como suspeitar do que está por trás de fórmulas como “teoria do discurso” (MALDIDIER et al., 1972), esse debate violento que produz esquecimentos e deformações já mencionados por Maldidier10 (1990), que opõe Pêcheux-Nanterre à Escola de Rouen? Do mesmo modo, todos estes artigos se baseiam na teoria althusseriana da interpelação:

7 Maingueneau (1995, p. 5) quer uma AD “que não coloque mais o discurso político no centro de sua reflexão”. Eu defino então a ideologia a minima como um “sistema de pensamento com vocação prosélita”, embora me pareça claro que, “ao tentar expulsar a ideologia pela porta, esta foi reintroduzida pela janela, especialmente com as noções de discursos constituintes e de posicionamento” (GUILBERT, 2007, 105). 8 Van Dijk (2006) opõe o “show how” ao “show that”. Conferir também a abordagem de Reboul (1980) e igualmente a de Harris (1969, p. 8): não estudar “o que o texto diz, mas [...] determinar como ele diz”. 9 Por exemplo: Langages n. 23 e n.24 de 1971, n. 36 e n. 37 de 1974, Langue française n. 15 de 1972. 10 Incluindo o lançamento do livro de Bakhtin/Volochinov em 1977.

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As formações políticas representativas dos grupos dominantes podem “funcionar como a ideologia”: não explicitar interpelando em sujeito os interlocutores, provocando neles o reconhecimento (GARDIN, 1974, p. 71).

Essas são as formas de assujeitamento ideológico que governam os mecanismos enunciativos (MALDIDIER et al, 1972, p. 123).

Pode-se observar que, quando Pêcheux é citado, aparece como um nome sem grande relevância, cuja importância não é ainda11 manifestada nem para AD nem para as noções utilizadas e mais ou menos definidas de discurso, formações discursivas, pré-construído etc.

Esta rápida retrospectiva resume-se a uma primeira interferência sobre tais noções, acompanhada de uma dificuldade de posicionamento. A substituição da análise do discurso pelas análises do discurso (MAINGUENEAU, 1995) ou pela análise de discurso (von MÜNCHOW, 2004) é sinal de uma segunda interferência com todos os riscos aferidos, com rupturas de obstáculos, e/ou dissoluções teóricas indo do geral ao particular.

3 Pêcheux e a análise do discurso atual

Por que Pêcheux é objeto de esquecimento12 enquanto que as noções por ele forjadas são regularmente utilizadas na AD atual? Sem ironia, pode-se pensar que o duplo processo de esquecimento que ele definiu se aplica a seu próprio trabalho: suas propostas “inquietantes” (MALDIDIER, 1990) e que seriam muitas vezes reprimidas ou ignoradas e deformadas pelas reformulações13. Entretanto,

11 Seria preciso estudar as referências a Pêcheux existentes nos anos 80. Está ele tão presente quanto em Orlandi (1989), que retoma a noção de esquecimento? 12 O único nome citado no prefácio de Charaudeau e Maingueneau (2002) é o de Foucault. O esq uecimento para Pêcheux é uma noção central, ver infra 3.1. 13 Por exemplo, a noção de “interdiscurso” como retomada de elementos do discurso de um outro e não do Outro.

seria inútil e absurdo tentar restaurá-las, principalmente porque, na opinião de Pêcheux, a formação discursiva na qual seu significado originalmente se constituiu é determinada hoje por novas condições de produção socio-históricas. Tais alterações de sentido serão consideradas, portanto, como evoluções.

3.1 Uma nova abordagem da análise do discurso

Retomo uma reflexão de Maldidier (1990, p. 8) que me parece útil para descrever essa nova abordagem. O discurso e a reflexão teórica - enquanto “cerne da questão” e objeto não empírico – desenvolvem-se sobre um “duplo plano”14 que pode ser esquematizado da seguinte forma:

Abordagem científica:

Dispositivo de análise do discurso

/ Reflexão teórica

Plano de Análise:

Análise do Discurso

/ Teoria do Discurso

Se Pêcheux tentou articular,

efetivamente, esses dois planos, ele procurou, sobretudo, desenvolver uma teoria do discurso, sem utilizar para este fim seus próprios conceitos (MAZIÈRE, 2005, p. 6).

Atualmente, por várias e complexas razões, sobre as quais não me deterei neste momento, priorizar-se-á a abordagem dispositiva. Mais que uma caixa de ferramentas, a AD é considerada, me parece, como uma grande oficina que comporta várias estantes cheias de caixas de ferramenta. As perguntas que o (jovem) pesquisador se faz, falando metaforicamente, se referem, em geral, a: “de que ferramenta eu preciso e em que caixa ela se encontra”, “como melhorar esta ferramenta”, ou “como conceber novas 14 Para um cotejamento, ver a distinção “ciências” vs “discurso sobre o discurso” (MALDIDIER et al, 1972, p. 127).

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GUILBERT, Thierry. Pêcheux é reconciliável com a Análise do Discurso? Uma abordagem interdisciplinar. Trad. Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas e Jocilene Santana Prado. Rev. Trad. Eduardo Lopes Piris. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.4, p. 127-136, jun.2013.

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ferramentas”15, em vez de “quem concebeu essa ferramenta” e se “estava de acordo com alguém que tenha concebido outras ferramentas”.

Por outro lado, esta nova abordagem é concomitante com a “diminuição” da importância, nas ciências humanas, do materialismo histórico, fundamento não apenas da AD, como também da teoria do discurso. É preciso reconhecer que o pensamento de Pêcheux não está isento de um dogmatismo no tocante ao seu anseio de nunca se separar da doutrina materialista16. Isto não seria se antecipar “ao conhecimento do resultado que se deseja atingir de fato” (PÊCHEUX, 1969, p. 132)? Esse dogmatismo postula um determinismo – do qual não se trata aqui de negar a existência – que pensa com dificuldade a respeito da criatividade discursiva ou da existência de revoltas contra a ideologia dominante (MALDIDIER, 1990, p. 63).

Trabalho com a hipótese de que o materialismo, quando dogmático, interfere na transmissão da memória da AD. Rejeitando tal dogmatismo, corre-se o risco de passar despercebida toda uma teoria do sujeito que por outro lado forma a base epistemológica desta disciplina. Não considerar os lugares dos sujeitos falantes ou do papel determinante das formações discursivas significa suprimir toda a especificidade da AD. Diante do exposto, não conceber mais o discurso através de um referencial único17 constitui uma fantástica evolução da disciplina. 15 Por exemplo: a nova argumentação, as interações verbais, a análise crítica do discurso, a análise do discurso político, os métodos quantitativos… 16 Segundo Maldidier (1990, p. 56), dogmatismo muito presente no início dos anos 1970, por exemplo: “no horizonte de toda a nossa pesquisa, estabelecemos a exigência de uma elaboração materialista e dialética desses problemas” (MALDIDIER et al., 1972, p. 117). 17 Em 1974, Laborit indica, por seu título La nouvelle grille, que é possível ter um outro referencial de análise: a sistêmica. Em Semântica e Discurso (1975), Pêcheux retoma inúmeros termos da sistêmica. Ele teria tido acesso a essa obra?

3.2 O diálogo com outras disciplinas

Essa nova abordagem atesta que a AD é um cruzamento que utiliza as ferramentas de disciplinas afins (sociologia, filosofia da linguagem, história...). A integração de conceitos-nômades é um risco de ecletismo, ou até mesmo de sincretismo, mas algumas precauções podem ser tomadas. Pode-se postular, como fez Darbellay (2005, p. 25), “que um processo de negociação está a serviço do desenvolvimento dos conhecimentos científicos” e que os saberes produzidos não são “verdades reveladas a priori”. Assim, tal processo é “um espaço intertextual pré-construído e em constante re-co-construção”.

Outra precaução consiste em não esquecer que os discursos são práticas sociais inscritas na esfera sócio-ideológica e que “[...] na sociedade moderna e contemporânea (pós-moderna), o discurso adquiriu uma importância maior na reprodução e na mudança socioculturais” (FAIRCLOUGH, 1995, p. 2).

Esses dois exemplos demonstram que a AD, ainda hoje, analisa seu próprio dispositivo, o que não é diferente das concepções de Pêcheux no tocante ao discurso científico (1975, p. 242-244), mas associa noções de autores diferentes: pré-construído, intertexto, co-construção do sentido, reprodução/transformação das relações de produção.

Aliás, desde sua origem, a AD postula “a exigência de uma nova forma de interdisciplinaridade” (MALDIDIER et al, 1972, p. 117); hoje, é necessário “admitir que o discurso não foi nem pode ser objeto de uma disciplina única – a análise do discurso” (MAINGUENEAU, 1995, p. 7). Darbellay (2005, p. 51) propõe favorecer uma “inter- e transdisciplinaridade” que articula conceitos oriundos de disciplinas diferentes relativas a um mesmo objeto complexo, ou seja, “um processo de co-construção dos saberes que permeia literalmente as disciplinas

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envolvidas”. Este “além das trocas disciplinares” não significa o desaparecimento das disciplinas, não apenas porque o diálogo com outras disciplinas prolonga e enriquece a AD (DARBELLAY 2005, p. 50), como também porque me parece que a AD é a base imprescindível para a reflexão sobre este objeto tão complexo que é o discurso.

Assim, em vez de conceituar previamente o que vem a ser discurso, a AD se apresenta como um dispositivo de pesquisa e um método heurístico e interpretativo (MAINGUENEAU, 1991; MAYAFFRE, 2002; von MÜNCHOW, 2004; DARBELLAY, 2005), método este que não se distancia muito do projeto inicial de Pêcheux (1969).

4 Utilizar Pêcheux hoje na análise do discurso

Levando-se em conta o que é a AD atualmente, parece-me que a teoria do discurso não pode ser considerada como a referência única, ou como um modelo para forjar outras ferramentas, e que é necessário parar de postular sua incompatibilidade, posto que o dogmatismo, considerado inerente a este pensamento, conduz à alternativa Pêcheux/não Pêcheux e, portanto, a seu esquecimento.

Por outro lado, mostrar como a AD pode ser compatível com outras epistemologias é algo salutar, mas no que se refere a seu esquecimento, ainda há muito que fazer. Alguns pontos essenciais de convergência entre Bakhtin/Volochinov e Fairclough serviram de exemplos18 de reconciliação. Trata-se unicamente de abrir algumas vias de reflexões epistemológicas.

4.1 Bakhtin vs Pêcheux?

A “incompatibilidade” entre Bakhtin/Volochinov e os trabalhos de Pêcheux

18 Parece-me que Pêcheux (1969) tem igualmente pontos comuns com as abordagens quantitativas da AD.

se deve, como se sabe (MALDIDIER, 1990, p. 51-53), aos mal-entendidos entre os proponentes da Escola de Rouen e os integrantes do “círculo de Pêcheux”. Ora, minha primeira observação é que os dois autores embasam seus trabalhos no materialismo histórico e retomam seus elementos principais: a luta de classes, a ideologia e a superestrutura.

Minha segunda observação repousa sobre a noção de pré-construído e a concepção das relações entre pensamento e linguagem. Pêcheux preconiza que “todo ‘conteúdo de pensamento’ existe na linguagem sob a forma do discursivo” e que falar sobre um elemento “pré-construído” significa: “como se esse elemento já estivesse lá” (1975, p. 194). Ora, Bakhtin (1977, p. 28 [2002, p. 34]) considera igualmente que pensamento e linguagem são indissociáveis e que a “consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico)”, ou ainda que se utiliza sempre um discurso pré-existente por intermédio do próprio discurso interior “impregnado” por “outras vozes” e “objetivações de signos ideológicos”. Analogamente, se a “forma-sujeito” não é um ponto de partida, mas sim um efeito para Pêcheux, se “todo ‘ponto de vista’ é o ponto de vista de um sujeito” (1975, p. 244), para Bakhtin, a consciência é produto da ideologia.

Minha terceira observação refere-se à noção de esquecimento, tão peculiar ao pensamento de Pêcheux: de maneira muito esquemática, a interpelação e a determinação do sujeito pela formação discursiva, esquecimento 1, ficam dissimuladas no sujeito (forma-sujeito), pela formulação-paráfrase do pré-construído, esquecimento 2 (1975, p. 241). Ora, isso não diverge do pensamento bakhtiniano (1984, p. 386 [1992, p. 406]):

O processo de esquecimento paulatino dos autores, depositários da palavra do outro. A palavra do outro torna-se anônima, familiar (numa forma reestruturada, claro); a consciência se monologiza. Esquece-se completamente a

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relação dialógica original com a palavra do outro: esta relação parece incorporar-se, assimilar-se à palavra do outro tornada familiar [...].

Com efeito, Bakhtin, diferentemente de Pêcheux, não recorre à psicanálise, mas as convergências são problemáticas; para os dois, o processo ideológico é esquecido pelos sujeitos/autores. Os elementos já-lá, sejam pré-construídos ou incorporados a um pensamento dotado de ideologia, são “reformulados”, “reestruturados”, em toda inconsciência de sua origem ideológica e aparecem como familiares e evidentes. Sem querer assimilar o pensamento dos dois autores, percebe-se aí a existência de uma base comum a partir da qual eles podem ser reconciliados ou até mesmo se complementar.

4.2 Fairclough e Pêcheux

A Análise Crítica do Discurso (ACD) fornece um exemplo da integração da AD em uma dimensão mais ampla. Desde a introdução de sua obra homônima, N. Fairclough (1995, p. 2) evidencia sua intenção de “integrar a AD à análise social das mudanças socioculturais”, dando-lhe o lugar central que ocupa o discurso “na reprodução e mudança socioculturais”.

Embora seu trabalho, que faz referência a Althusser, seja concernente à linguagem, à ideologia e ao poder, ele considera que as abordagens da AD e da ACD, que têm um viés ideacional [ideational] ([...] Pêcheux, 1982; van Dijk, 1988), não possuem os instrumentos necessários para apreender a interação entre cognição e prática, que é uma característica crucial da prática textual”19 (FAIRCLOUGH, 1995, p. 6), o que é uma verdadeira divergência de fundo.

Entretanto, Fairclough escreveu duas páginas antes que a “textura da evidência” fosse ao mesmo tempo “linguística” e

19 Uma única referência a Pêcheux (1982), versão inglesa de Pêcheux (1975).

“intertextual” (1995, p. 4-5), quando Pêcheux faz uma articulação entre a “relação de base (linguística)” e o “processo (discursivo-ideológico)” para a evidência do sentido: “o sentido se constitui em cada formação discursiva” (1975, p. 226) e não no sujeito. Assim como Pêcheux, Fairclough conclui que toda análise do sentido de um texto deve “se interessar pelo que se poderia chamar de conteúdo da estrutura (ou conteúdo de sua forma)” (1995, p. 5), ou seja, pelo que está implícito à ideologia inscrita na materialidade do discurso. Esse dispositivo pragmático põe em xeque a “incompatibilidade” da ACD em relação a Pêcheux, algo totalmente improdutivo para a pesquisa sobre a evidência da ideologia.

5 Conclusão: articular a teoria do discurso com a AD

Como conclusão, farei duas observações e uma proposta concernentes à integração entre Pêcheux e a AD atual. Para tanto, utilizarei meu próprio trabalho como exemplo. Ao invés de confirmar seu esquecimento, insisto sobre o fato de que Pêcheux tem muito a contribuir para a análise dos discursos ideológicos, sob a condição de que essas contribuições sejam articuladas, ou seja, trata-se de definir de forma explícita a coerência entre seu trabalho e outras correntes epistemológicas.

5.1 Duas observações

Observo, inicialmente, que descrever o funcionamento “da evidência” do discurso ideológico, sem fazê-lo à luz de Pêcheux, me permitiu ultrapassar algumas fronteiras. A “incompatibilidade” entre Bakthin/Volochinov e Althusser tem origem, em grande parte, na “desordem cronológica” da recepção dos textos. Mas é igualmente possível interessar-se por sua produção: ler a obra de 1929 sem relacioná-la, em um primeiro momento e de modo sistemático, à de Althusser permite ver

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aí uma formidável reflexão sobre filosofia da linguagem lançando as primeiras bases de uma análise da ideologia20. Althusser e Bakthin/Volochinov não se apresentam mais como inconciliáveis, mesmo se aquele não pôde ter acesso aos escritos destes, e vice-versa. Sua articulação teórica cabe aos pesquisadores atuais. O mesmo acontece com Reboul (1980), Bourdieu (1982, 2001) e a ACD21.

Seria necessário integrar a este quadro o trabalho de Pêcheux, com o qual minha proximidade – e esta é minha segunda observação – não deixa nenhuma dúvida: ela se encontra inclusive na vontade de analisar o funcionamento discursivo da ideologia: os processos dialéticos de “consentimento/imposição” e de “dupla dissimulação”22 do sujeito. Todavia, essa integração deve ser pensada no âmbito da abordagem atual da AD, a qual considera a Pragmática, por exemplo, como uma ferramenta complementar, o que me permite propor esta esquematização em dois níveis:

Formas de assujeitamento

consenti-mento

imposição

Procedimentos discursivos

implícito performativo

5.2 Proposta: articular a integração

Proponho, portanto, a distinção de dois níveis (presentes no esquema anterior) para a articulação entre Pêcheux e a AD atual. Por um lado, o funcionamento discursivo, ao qual pertence o binômio consentimento/imposição e

20 Este aqui é um exemplo: “A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas somente um locutor que habita o edifício social dos signos ideológicos” (1977, p. 31). 21 Trabalho que eu empreendi em minha tese defendida em 2005; ver Guilbert (2007, p. 70-96). 22 Ver Guilbert (2007, p. 9) e (idem, p. 95), respectivamente.

de uma maneira mais geral as formas complexas e os processos discursivos de assujeitamento; por outro, os procedimentos discursivos: implícitos e performativos. Estes últimos se inscrevem no funcionamento discursivo geral como “meios de superfície”, aos quais tem acesso, ao menos em parte, o sujeito-falante – as formas “reestruturadas” de Bakhtin ou a “formulação-paráfrase” do esquecimento 2 de Pêcheux –, assim como ressurgem de outras epistemologias (enunciação, pragmática, argumentação...), que, por sua vez, não questionam fundamentalmente as bases epistemológicas, tais como as determinações sociais, a concepção althusseriana do sujeito23 etc.

Os procedimentos se distinguem do funcionamento, já que não são constitutivos do discurso ideológico; a pressuposição, por exemplo, se encontra em outros tipos de discurso (DUCROT, 1984). No entanto, tais procedimentos possuem um papel importante na realização da evidência discursiva, assim como a pressuposição é um dos meios utilizados pelo discurso ideológico para dissimular e obter o consenso (GUILBERT, 2008).

A teoria do discurso, com sua contribuição psicanalítica específica, é, portanto, uma das abordagens do funcionamento e eu defendo a hipótese de que as abordagens epistemológicas presentes na AD atual lhe são complementares. A análise e a teorização do funcionamento discursivo global da ideologia – por definição, inacessível ao sujeito – não pode se contentar com uma abordagem única e necessita de pontos de vista diferentes.

Assim, a epistemologia interdisciplinar em análise do discurso pode ser concebida 23 Concepção que também fica a demonstrar. Assim os “quadros primários” de Goffman (1981) são compatíveis com o estudo da ideologia, como um dos meios do funcionamento ideológico, e até mesmo do assujeitamento, pois os quadros primários são culturais e ideológicos: eles permitem a ilusão, a representação imaginária do papel ou do lugar que o sujeito se assume (GUILBERT, 2007).

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como um ecletismo “racionalizado”, ou seja, a utilização e/ou a constituição de ferramentas advindas de outros domínios do conhecimento, mas que convergem para um mesmo objeto – o discurso – e que, se articula com uma base epistemológica sólida, a da AD. Mas ainda há muito que fazer para que as contribuições de Pêcheux tenham seu devido reconhecimento.

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