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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL
MESTRADO ACADÊMICO INTERCAMPI EM EDUCAÇÃO E ENSINO
ELENICE RABELO COSTA
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: INTERRELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO,
FORMAÇÃO E CONSCIÊNCIA EMANCIPATÓRIA
LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ
2017
1
ELENICE RABELO COSTA
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: INTERRELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO,
FORMAÇÃO E CONSCIÊNCIA EMANCIPATÓRIA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Educação e Ensino Intercampi do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos e da Faculdade de Educação Ciências e Letras do Sertão Central como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação. Área de concentração: Trabalho, Educação e Movimentos Sociais. Orientador: Prof. Dr. José Ernandi Mendes
Co-orientadora: Profa. Dra. Sandra Maria Gadelha de Carvalho.
LIMOEIRO DO NORTE-CEARÁ
2017
3
ELENICE RABELO COSTA
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: INTERRELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO,
FORMAÇÃO E CONSCIÊNCIA EMANCIPATÓRIA
Dissertação apresentada ao Mestrado Intercampi em Educação e Ensino do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino da Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador: Prof. Dr. José Ernandi Mendes
APROVADA EM: 17 / 04 / 2016.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Prof. Dr. Jose Ernandi Mendes (orientador) Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_________________________________________________________
Profª. Dr.ª Sandra Maria Gadelha de Carvalho (co-orientadora) Universidade Estadual do Ceará - UECE
__________________________________________________________
Profª. Drª. Eliane Dayse Pontes Furtado Universidade Federal do Ceará - UFC
_______________________________________________________
Professora Dra. Célia Maria Machado de Brito Universidade Estadual do Ceará - UECE
5
AGRADECIMENTOS
A Deus pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Minha espiritualidade que me fez
mais forte, juntamente com o amor pelas Escrituras Sagradas.
Á minha família, base forte da minha vida. Meus pais Elizabeth e José e minha irmã
Edilene. Eles sempre me apoiaram em tudo. Quando eu desanimava tinha sempre
uma palavra de incentivo para me oferecer. Eles são minha vida e tudo de mais
importante que Deus me deu.
Ao meu orientador José Ernandi Mendes, exemplo de luta contra a opressão. E um
grande ser humano. Obrigada por sua firme orientação. Sempre disposto a ajudar.
Nossa, quando paro para pensar nas diversas oportunidades que demonstrou
solidariedade comigo e com minha história de vida, meus olhos se enchem de
lágrimas. Incentivou-me, aconselhou-me sempre. Ele é um educador para vida!
A minha co-orientadora Sandra Maria Gadelha de Carvalho, mulher forte e
professora que marcou toda a minha trajetória como graduanda e pós-graduanda.
Primeiramente, agradeço pelas contribuições e firme co-orientação nessa pesquisa.
Iniciei minha trajetória como pesquisadora na Pedagogia com ela. Mostrou-me um
mundo novo de possibilidades. Dispensou-me sua generosidade. Sou grata por ter
tido oportunidade de aprender e de me tornar a educadora que sou com ela.
Á professora Eliane Dayse, obrigada pela disponibilidade em participar da minha
banca, desde a qualificação. Mulher que eu admiro por sua luta pela Educação de
Jovens e Adultos. Não tem como esquecer, da sua luta incessante com o NEJHAM
para resgatar a História da EJA. Sinto-me honrada em tê-la presente neste
momento.
À professora Célia Brito por aceitar amavelmente o convite para compor esta seleta
banca de defesa.
Á coordenação do MAIE, na pessoa da professora Maria das Dores Mendes
Segundo, que esteve empenhada em atender todas as demandas dos alunos e
professores. Ela sempre esteve atenta em nos proporcionar ensino, pesquisa e
extensão de qualidade. Com certeza seu trabalho é digno de honra e vem
produzindo muitos frutos.
A todos os meus colegas de Mestrado, turma do MAIE de 2015, e em especial aos
que pude conviver mais de perto: Diana Nara, Renata, Luciana, Janine e João
Paulo, um companheiro de luta e irmão acadêmico.
6
Aos professores do mestrado que contribuíram para a nossa formação crítica e
reflexiva, Eudes Baima, Claudiana Alencar, Luís Távora, Deribaldo Santos, Catarina
Oliveira, Gilvanise Pontes, Olivenor Chaves, Solange Xerez, Jorge Rodriguez (in
memorian).
Á meu anjo Márcio Mendes que está sempre comigo. Ele é como um rio que
deságua no mar continuamente. Sua paz e seu cuidado me fazem alguém diferente.
Amigos desde 2012, seu amor, sua compreensão me trouxeram calmaria em meio à
tempestade. Feliz por ter esse anjo em minha vida. Mesmo a distância é como se
tivesse presente comigo todos os dias.
Ao meu amigo Welington Silva, Deus te abençoe em sua nova jornada junto ao povo
ribeirinho na Amazônia, levando a Palavra de Deus. Obrigada por sua amizade e
carinho.
Ao meu irmão e camarada de alma Francisco Fábio da Silva. Sou grata por ter sua
presença e sua alegria em minha vida, e sua fé e prática de querer mudar o mundo!
A FUNCAP, pela bolsa concedida para realizar esse sonho de concluir a Pós-
graduação.
7
“Não podemos esquecer que um dos
alicerces indeléveis da prática e da teoria
de Paulo Freire é a questão da
democracia”.
(Afonso Scocuglia)
8
RESUMO
Paulo Freire é um teórico brasileiro respeitado internacionalmente. Sua principal
obra Pedagogia do Oprimido é uma das obras mais citadas no mundo. No Brasil,
sobretudo na academia, há ainda muita discussão sobre o seu pensamento, os
pressupostos teóricos e contribuição para o processo de emancipação das classes
populares. Pedagogia do Oprimido é resultado das suas experiências de educação
popular, reflexões e interlocução com diversas matizes do pensamento educacional
e filosófico. Esta pesquisa tem como o objetivo refletir sobre as interrelações entre
educação, formação e consciência emancipatória em Pedagogia do Oprimido. Trata-
se de uma pesquisa de cunho qualitativo e bibliográfico. Para isto recorro a diversos
teóricos, como o próprio Freire em outras dezenas de obras, Marx (1983), Scocuglia
(1999, 2005), Brandão (2006), Gadotti (1996), Paiva (1987), Ana Maria Freire
(1996), Torres (2008), dentre outros. A partir das reflexões realizadas conclui-se que
Freire desenvolve uma fecunda reflexão teórica que conjuga uma análise crítica da
sociedade de classes, da educação bancária e opressora que ela veicula, com a
proposta de uma educação libertadora, formadora de consciência crítica e orientada
para a emancipação social.
Palavras-chave: Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire. Educação Libertadora.
Consciência Social. Emancipação Humana.
9
RESUMEN
Paulo Freire es un teórico brasileña internacionalmente respetado. Su principal obra
Pedagogía del oprimido es una de las obras más citadas en el mundo. En Brasil,
especialmente en el mundo académico, todavía hay mucho debate acerca de su
forma de pensar, los supuestos teóricos y su contribución al proceso de
emancipación de las clases trabajadoras. Pedagogía del oprimido es el resultado de
sus experiencias de educación popular, las reflexiones y el diálogo con diversos
matices del pensamiento pedagógico y filosófico. Esta investigación tiene como
objetivo reflexionar sobre la interacción entre la educación, la formación y la
emancipadora en Pedagogía del oprimido. Es un carácter cualitativo y bibliográfica
de la investigación. Para este complejo a varios teóricos, como el Freire en otras
obras de decenas, Marx (1983), Scocuglia (1999, 2005), Brandão (2006), Gadotti
(1996), Paiva (1987), Ana Maria Freire (1996) , Torres (2008), entre otros. A partir de
las reflexiones realizadas se deduce que Freire desarrolla una reflexión teórica
fructífera que combina un análisis crítico de la sociedad de clases, la banca y la
educación opresivo que lleva consigo la propuesta de una educación liberadora,
formar la conciencia orientada a la crítica para emancipación social.
Palabras clave: Pedagogía del oprimido. Paulo Freire. Educación liberadora. La
conciencia social. La emancipación humana.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................... 11
2 PAULO FREIRE: VIDA, EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA DO
OPRIMIDO.............................................................................................
16
2.1 VIDA, OBRA E CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E DE HOMEM DE
PAULO FREIRE....................................................................................
16
2.2 ANÁLISE CRÍTICA E REFLEXIVA SOBRE A OBRA PEDAGOGIA
DO OPRIMIDO......................................................................................
34
3 SOCIEDADE E EDUCAÇÃO EM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO......... 49
3.1 SOCIEDADE, ALIENAÇÃO E EDUCAÇÃO.......................................... 49
3.2 A EDUCAÇÃO BANCÁRIA E EDUCAÇÃO LIBERTADORA:
PROJETOS EM DISPUTA.....................................................................
59
4 A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E EMANCIPAÇÃO HUMANA
EM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO.........................................................
72
4.1 INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS EM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO........ 72
4.2 A EDUCAÇÃO DIALÓGICA COMO FUNDAMENTAÇÃO POLÍTICA
DA OBRA PEDAGÓGICA DO OPRIMIDO............................................
78
4.3 A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NOS SUJEITOS SOCIAIS............ 82
4.4 SOCIEDADE E EMANCIPAÇÃO HUMANA NA LUTA DOS
OPRIMIDOS..........................................................................................
86
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................. 97
REFERÊNCIAS..................................................................................... 103
11
1 INTRODUÇÃO
Ao se refletir sobre as concepções de educação, formação e consciência
emancipatória em Paulo Freire é necessário fazer um recorte histórico da trajetória
política, profissional e pedagógica deste educador que durante sua vida se
empenhou em construir uma proposta de educação libertadora voltada para a
emancipação dos oprimidos das estruturas do sistema capitalista. Suas análises se
baseiam na construção de uma nova sociedade, um novo homem, um novo ser,
empenhado em transformar sua própria realidade.
Com o avanço das ideias conservadoras no país, em que jovens vão à
rua para protestar pedindo a volta da Ditadura Militar e rechaçando o pensamento
crítico nas escolas com a falsa acusação de ser uma doutrina marxista e freireana,
faz-se necessário fazer conhecer e debater sobre teóricos como Freire e Marx. A
intenção dessa pesquisa é dar uma contribuição para discussão sobre Freire como
reafirmação das suas bandeiras de lutas por uma sociedade mais justa, e que
resiste a toda investida da direita em termos de alienação da juventude. O debate
deve ser amplo, o silêncio deve ser quebrado e o processo de alienação da
consciência deve ser desvendado.
Para tanto é necessário uma incursão sobre o pensamento de Freire,
analisando categorias que o fundamentam, pressupostos filosóficos e relação com a
realidade.
As concepções teóricas de Freire e a pedagogia que protagonizou não se
situam num campo fechado. Entendo que a compreensão de sua obra se dá tanto
na teoria e conceitos que elaborou quanto na prática por uma educação que propicie
a conscientização dos sujeitos educativos envolvidos no processo de ação e
reflexão da realidade.
A filosofia da educação de Freire remete a transformação dos sujeitos
sociais e da sociedade. A educação proposta por ele valoriza os saberes e cultura
da população, do campo ou da cidade, sobretudo, os setores empobrecidos. A
educação que se anuncia libertadora e emancipatória contribui com a formação
crítica de educandos e educandas. Trata-se de uma educação que colabora para a
construção de um novo ser, um ser mais humanizado, mais pleno, mais feliz, e
acima de tudo, mais conscientizado de suas capacidades de transformar a
sociedade em que vive.
12
A conjuntura brasileira atual1 é de exacerbação do conservadorismo
sendo o pensamento de Freire atacado pelas elites conservadoras, as quais
abominam a ideia de uma educação revolucionária. É preciso divulgar e debater as
ideias de Freire, como forma de esclarecimento às pessoas que não o conhecem e
estão sendo manipuladas pela grande mídia.
A presente investigação justifica-se a partir de uma trajetória percorrida
durante minha graduação no curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia Dom
Aureliano Matos (FAFIDAM) em Limoeiro do Norte - CE, vinculada á Universidade
Estadual do Ceará (UECE). Aqui destaco os principais fatos que marcaram este
percurso, cheio de indagações, anseios e transformações. Ao pensar na História que
vivi nesta universidade e o que construí, alegro-me dos frutos nascidos: raízes
teóricas estabelecidas, discussões entre colegas e professores. Desta teia de
conhecimentos e relações com as disciplinas, os professores e os colegas fincadas
em uma perspectiva de transformação da sociedade. Vamos aos fatos da minha
trajetória acadêmica e como eles mudaram e aprofundaram a minha formação
pessoal e profissional.
No período de outubro de 2010 a março de 2012, fui bolsista de Iniciação
Cientifica (IC/UECE) no Laboratório de Estudos da Educação no Campo
(LECAMPO/FAFIDAM), tendo a oportunidade de participar de pesquisas
relacionadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nesta experiência pude
interagir com professores universitários, alunos e militantes da EJA em Seminários
focais realizados na Universidade Federal do Ceará (UFC), e na Faculdade de
Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC/UECE), em Quixadá.
No ano de 2012, na condição de monitora acadêmica da disciplina de
Pesquisa Educacional do curso de Pedagogia da (FAFIDAM), sob a orientação da
professora Dra. Marly Medeiros de Miranda, além da rica prática de iniciação à
docência, propiciada pela experiência, eu tive a oportunidade de realizar uma
pesquisa sobre o estado da arte da EJA nos Anais do Fórum Internacional de
Pedagogia (FIPED) dos anos de 2008, 2009 e 20102. Foi um trabalho de grande
1 O avanço do pensamento político conservador no Brasil colaborou para que a presidente eleita democraticamente Dilma Rousseff sofresse o impeachment em 31 de agosto de 2016. Anteriormente a isso, as elites organizaram protestos e passeatas a favor da volta da Ditadura Militar, onde muitos seguravam cartazes pedindo a volta do Regime Militar e se opondo ao pensamento de teóricos como Paulo Freire e Marx.
2 As edições do FIPED ocorreram respectivamente nas cidades de Pau dos Ferros–RN, Campina Grande–PB e Quixadá-CE.
13
significado na minha formação profissional como pesquisadora na área de
educação.
Também ministrei3 minicursos nas semanas acadêmicas dos cursos de
graduação da FAFIDAM sobre o método Paulo Freire, procurando difundir ainda
mais sua obra entre os estudantes de graduação, de uma maneira simples e
objetiva. Esses momentos se revelaram muito ricos em conhecimento e
aprendizagem, nos quais pude trocar experiência sobre a teoria e a prática em Paulo
Freire.
Concluo a trajetória de pesquisa em EJA na graduação com o Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) sobre o conceito de ‘Conscientização em Paulo
Freire, suas interrelações com a educação e movimentos sociais na
contemporaneidade’. A investigação constituiu-se a partir da minha inserção
enquanto bolsista no Projeto de Pesquisa (IC/CNPQ) ‘A Educação do Campo e o
Movimento 21: novas formas de resistência social à lógica do mercado’, coordenado
pela professora Dra. Sandra Maria Gadelha de Carvalho e desenvolvido no âmbito
do LECAMPO, no período de setembro de 2013 a julho de 2014. Na oportunidade
tive contato com os movimentos sociais do campo e suas lutas por terra e água de
qualidade no contexto dos conflitos ocasionados pelo modelo de desenvolvimento,
fundado no agronegócio, na Chapada do Apodi. Nessa experiência pude refletir
sobre as pedagogias de conscientização dos sujeitos sociais coletivos.
Em 2015, ingressei no Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e
Ensino (MAIE) da UECE, e a participação nas disciplinas, discussões, seminários
realizados contribuiu para aprofundar um entendimento dialético da realidade e do
papel histórico que os sujeitos têm na transformação da sociedade. Os estudos
ratificaram a convicção de que a educação na perspectiva de Paulo Freire apresenta
elementos emancipatórios que apontam para ruptura dos moldes capitalistas de
produção do trabalho e do conhecimento.
Inspirada no respeito aos movimentos sociais emancipatórios e nas
experiências e vivências acadêmicas supracitadas, o presente estudo tem o objetivo
geral de refletir sobre as interrelações entre educação, formação e consciência
emancipatória na obra de Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. Para dialogar sobre
os fundamentos que perpassem estas três categorias. Defini como objetivos
3 Ao lado do meu colega de graduação e atualmente da pós-graduação João Paulo Guerreiro de Almeida.
14
específicos: analisar o conceito de consciência para a emancipação social e sua
interrelação com as práticas educativas e identificar a relação de consciência de
classe com a educação libertadora na superação da sociabilidade capitalista.
Ao longo do texto, quando utilizo a expressão opressores e oprimidos, se
referem a sujeitos, que podem estar no masculino e ou feminino. Em alguns casos
para que fique claro a abrangência da opressão de gênero, a qual a própria língua
não dá conta da complexidade envolvida, recorro diretamente as referências
masculinas e femininas simultaneamente, como opressores(as), oprimidos(as),
educador(a), educando(a) etc.
A partir desta obra, pretendo responder as seguintes questões durante a
pesquisa: qual a concepção de educação de Paulo Freire? O conceito de
consciência trabalhado por ele se refere a uma perspectiva individual ou coletiva?
Ele contempla uma ideia emancipatória ou somente interpretativa? O entendimento
de Freire sobre educação aponta para a formação de uma consciência voltada para
a emancipação humana e social? Em que medida a compreensão de formação da
consciência se relaciona com a construção da consciência de classe para si e para
os outros? A educação libertadora proclamada por Freire aponta para uma
consciência emancipatória?
A pesquisa é de cunho qualitativo e bibliográfico que segundo Gil (1999) é
feita através de estudos teóricos já realizados que nos possibilitam adquirir uma
gama de conhecimentos muito maior de fenômenos ou questionamentos que não se
podem pesquisar diretamente. A fonte principal de pesquisa é o livro Pedagogia do
Oprimido, do educador Paulo Freire nas edições dos anos de 2001 e 1983.
Entretanto, dialogo tanto com o próprio autor em outras obras, quanto com autores
que o interpretaram e com ele estabeleceram um diálogo para compreender suas
ideias em geral e a obra em foco. Neste sentido desenvolvo interlocuções com as
bases filosóficas do materialismo histórico e dialético de Karl Marx (1983). No campo
das ciências da educação procuro interagir com os seguintes autores Scocuglia
(1999, 2005), Carlos Rodrigues Brandão (2006), Moacir Gadotti (1996), Vanilda
Paiva (1987), Ana Maria Freire (1996), Carlos Alberto Torres (2008) e entre outros.
Após leitura das fontes bibliográficas, com realização de fichamentos dos
aspectos concernentes a questão da educação, formação e consciência
emancipatória em Paulo Freire, com foco na obra Pedagogia do Oprimido, apresento
a produção científica nos moldes que se segue.
15
Inicialmente, procuro dar ciência ao leitor sobre quem é Paulo Freire, o
lugar do seu pensamento na educação brasileira e internacional, destacando as
principais categorias por ele disseminadas, a contextualização histórica de suas
primeiras produções e suas influências teóricas e metodológicas. Neste segundo
capítulo apresento a obra Pedagogia do Oprimido, trazendo um resumo analítico dos
principais aspectos contidos em cada capitulo desta importante obra de Freire para
que o leitor tenha clareza quanto à análise que se faz em seguida.
No terceiro capítulo, reflito sobre os conceitos de educação e sociedade,
apresentados por Freire na obra em questão. Busco entender os significados que
ele atribui à educação no sentido amplo e restrito, no âmbito individual e coletivo,
bem como o entendimento que apresenta sobre a sociedade, às vezes definida, de
forma clara ou genérica, de concepção de mundo e de realidade. Neste sentido,
adentro-me aos conceitos relativos à ideologia que caracterizam a pedagogia do
opressor. Aqui também procuro evidenciar o lugar da educação escolar no
pensamento de Freire na obra em foco.
No quarto e último capítulo, procuro entender como é compreendida a
formação da consciência por toda Pedagogia do Oprimido e em que medida a
referência à consciência relaciona-se a uma produção coletiva na perspectiva da
emancipação humana. Aqui também analiso a pedagogia libertadora e a relação que
tem com a construção de uma consciência anticapitalista, na perspectiva de uma
sociabilidade sem exploração e opressão. Perscruto o significado de emancipação e
sua relação com a constituição de uma perspectiva de classe a favor dos explorados
e oprimidos.
Tenho a convicção e a expectativa que ao evidenciar importantes
conceitos de um dos teóricos brasileiros mais discutidos no nosso tempo, possa
estar contribuindo para renovar o entusiasmo por práticas educativas libertárias e
emancipatórias no Estado do Ceará e na região Jaguaribana, onde moro e atuo
profissionalmente.
16
2 PAULO FREIRE: VIDA, EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
Divido este capítulo em duas seções: na primeira faço uma breve síntese
sobre a vida e obra do Paulo Freire, além de apresentar sua concepção de
educação e de ser humano presente no seu pensamento em geral; na segunda
seção, para melhor situar o leitor sobre o estudo que faço em Pedagogia do
Oprimido, descrevo sucintamente as partes que compõe esta obra.
2.1 VIDA, OBRA E CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E DE HOMEM DE PAULO
FREIRE NO SENTIDO GERAL.
A filosofia de Freire, base constituinte de seu método e de concepções de
educação, homem e sociedade é resultante do seu compromisso com a denúncia da
injustiça e desigualdade social, e anúncio de uma sociabilidade sem opressores e
oprimidos, decorrente de suas experiências de alfabetização de jovens e adultos, de
sua prática militante até o último dia de vida, e, das referências teóricas diversas que
adotou e compartilhou. As reflexões, os pensamentos e as teorias sobre o ser
humano, a educação e a sociedade assentam-se em dezenas de livros e artigos que
Freire escreveu e comunicou. Neles, apresenta suas inquietudes, aprendizados,
lições e categorias, que contribuem para pensar os processos educativos dos
sujeitos sociais. A obra Pedagogia do Oprimido constitui-se um momento
particularmente inspirado do educador pernambucano.
Neste capítulo, inicialmente, destaco a biografia de Paulo Freire e suas
memórias sobre diversos momentos de sua vida, falas e acontecimentos que
marcaram sua existência, sua prática e trabalho como educador. Segue-se a
menção as suas principais obras, suas fontes teóricas primárias que influenciaram
seu pensamento.
Em seguida, teço um breve contexto histórico em que se desenrolaram as
primeiras produções de Paulo Freire, destacando fatos históricos, políticos, sociais e
econômicos que caracterizam as décadas de 50 e 60 no Brasil e no mundo, nas
quais se fundam sua prática filosófica e pedagógica, bem como suas ideias sobre
educação e liberdade.
17
Por fim, repercuto as categorias do pensamento freireano que fazem
parte das práticas pedagógicas de sujeitos coletivos diversos no Brasil e no mundo,
destacando sua contemporaneidade no contexto atual do capitalismo em crise.
No diálogo com as questões relativas à vida e obra de Paulo Freire,
reveladas por ele próprio em suas obras ou nos teóricos que o interpretam e o
analisam no seu tempo, é possível compreender as possibilidades, os limites e os
desafios postos pelas práticas educativas populares.
Em 19 de setembro de 1921 na cidade de Recife, capital de Pernambuco,
nascia Paulo Reglus Neves Freire, mas popularmente, conhecido como Paulo
Freire, um educador que atravessaria fronteiras internacionais, com suas ideias
sobre educação, política e filosofia, tornando-se conhecido mundialmente e
homenageado em universidades de vários países. Ele foi o quarto filho de Joaquim
Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire. Teve uma infância classificada por ele
de alegre, apesar das dificuldades financeiras de sua família, pois brincava sem
medo, sem preconceitos sociais e culturais. Segundo relata o autor:
Paulo Freire brincou muito na infância. Brincadeiras de rua, com os irmãos e outros companheiros, nas quais não existiam barreiras de classe social, etnia, cor, credo no relacionamento dos brincantes. Brincadeiras que
viveram para sempre em sua memória (VALE; JORGE; BENEDETTI, 2005,
p. 9).
Segundo o próprio Freire, a experiência pessoal de alfabetização
aconteceu em contato, com a natureza, na sombra de uma mangueira. Esse estilo
de vida no campo trouxe marcas profundas que ele utilizaria em seu método
décadas depois. As experiências vividas e a leitura do mundo ao seu redor lhe
possibilitaram uma sensibilidade poética, como se pode observar nas suas próprias
palavras: “Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa, à sombra das
mangueiras, com palavras do meu mundo, não do mundo maior dos meus pais. O
chão foi o meu quadro-negro, gravetos, o meu giz” (FREIRE, P., 1988, p. 15).
A crise econômica de âmbito internacional, no ano de 1929, repercute na
realidade brasileira, nos mais distantes recantos. Em decorrência dos nefastos
efeitos ocasionados por ela, Freire e sua família tiveram que mudar para Jaboatão,
cidade próxima da capital do estado de Pernambuco, Recife. As dificuldades
financeiras, pelas quais passaram sua família, marcaram esta época.
18
Freire teve as mesmas angústias de qualquer adolescente pobre que
queria ser aceito na escola, a qual era privilégio de poucos. A condição de bolsista
possibilitou a permanência na escola, algo pouco provável para jovens da mesma
condição social dele. Como muitos adolescentes, Freire era inseguro quanto a sua
imagem pessoal, temeroso quanto às possibilidades na vida e impaciente e até
revoltado na interlocução com colegas de melhor situação financeira. Sobre isso o
autor relatou:
Estava sendo um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio, percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito, mas mal humorado do que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava. Qualquer consideração feita por um colega rico, já me parecia o chamamento à atenção de minhas fragilidades, de minha insegurança (FREIRE, P., 1996, p. 48).
No colégio particular Osvaldo Cruz, de Recife, no qual terminou os
estudos secundários, tornou-se professor de Língua Portuguesa, a partir de 1941.
Apesar do modesto salário, sua obstinação pelo universo educativo, o levava a
empregar parte considerável do que ganhava na compra de livros e revistas, ficando
em segundo plano as outras despesas de natureza pessoal. Ele relata:
(...) Vivi um tempo intensamente dedicado a leituras (...) de gramáticos brasileiros e portugueses. Parte que me cabia do que eu ganhava dedicava às compras de livros e de velhas revistas especializadas (...). Não andava sujo, é verdade, mas andava feiamente vestido (FREIRE, P., 1994, p. 103-104).
No ano de 1944, Freire casou-se com Elza Maia Costa de Oliveira,
professora da educação fundamental, e tiveram cinco filhos: Maria Madalena, Maria
Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes. Freire sempre ressaltou o quanto
Elza foi grande incentivadora dos seus projetos. Nas palavras do autor Elza é
considerada
[...] partícipe das primeiras experiências com Educação Popular, por meio dos Círculos de Cultura, [sistematizou o uso] das palavras geradoras para a Educação de Adultos; precursora na formação de professores com inovações didático-pedagógicas ao atuar nos movimentos de base e no Plano Nacional de Alfabetização [...]. [...] como professora, despertou no marido a vocação para o trabalho com Educação ao possibilitar sua aproximação com questões pedagógicas (SPIGOLON, 2010, p. 4-5).
19
A Elza foi uma educadora que em sua prática educativa e cotidiana com
seu companheiro propiciou elementos pedagógicos na constituição do pensamento
de Freire.
Em 1947, Paulo Freire graduou-se em Direito pela Faculdade de Recife.
Entretanto, sua carreira como advogado não resiste ao primeiro caso. Logo em
seguida, aceitou um convite de um amigo para trabalhar no Serviço Social da
Indústria (SESI), na Divisão de Educação e Cultura, onde trabalhou até 1957.
Durante seu trabalho como diretor no SESI, ele idealiza os círculos de
cultura com operários, construindo experiências educativas que promoviam a
organização social. No SESI, desenvolveu experiências de alfabetização com
trabalhadores da indústria, as quais forneceram as bases para a consolidação do
seu método e filosofia educacional. É a partir daí, que emerge o Movimento de
Cultura Popular (MCP), do qual emerge as bases para a histórica experiência de
alfabetização em Angicos-RN, que tornará conhecido o ‘método Paulo Freire de
alfabetização’ para o Brasil, e, posteriormente para o mundo.
Da experiência de alfabetização de jovens e adultos em Angicos no
Estado do Rio Grande do Norte, sobressaiu-se a eficácia de um método que obtém
a proeza de alfabetizar 300 trabalhadores rurais, em apenas 45 dias, no período de
janeiro e março de 1963, proporcionando ao seu mentor, prestígio, honra e fama. A
visibilidade decorrente dos resultados levou Paulo Freire a ser convidado para
coordenar o Programa Nacional de Alfabetização, recém-criado pelo Presidente
João Goulart, que pressionado internamente por forças reacionárias, viu no
Programa a possibilidade de alfabetizar cinco milhões de pessoas em mais de 20 mil
círculos de cultura, num contexto que exigia urgência. Infelizmente, o tempo se
apresentou como inimigo e, o Programa foi extinto logo em seguida pelo golpe
empresarial militar de 31 de março de 1964, antes mesmo de começar,
efetivamente.
Instalado o estado de exceção, Paulo Freire foi preso, em 16 de junho de
1964, pelo 14º Regimento de Infantaria em Recife, acusado de atividades
subversivas, portanto, sendo enquadrado nos temíveis atos institucionais,
decretados pela Ditadura Empresarial-Militar, intimidar as vozes dissonantes ao
regime autoritário, caçar a imunidade parlamentar e os direitos políticos e, extinguir
os direitos trabalhistas dos funcionários públicos. O Brasil passava por um absoluto
20
contexto de censura, e, todos aqueles que fossem contra o regime e o sistema
estabelecidos eram considerados como ameaças à ordem pública, podendo ser
presos, torturados, desaparecidos, exilados ou assassinados.
Paulo Freire, suas ideias de transformação e libertação presentes na
pedagogia de conscientização dos sujeitos sociais constituía-se numa ameaça
direta. Por isso é preso. Após 70 dias na prisão, contrária a sua vontade teimosa de
ficar, ele parte para o exílio. O autor narra às dificuldades vivenciadas pelo
educador, neste momento:
Ainda no ano de 1964, por duas vezes, no Recife, Paulo foi convidado a explicar-se; primeiro aos acadêmicos e, depois, aos militares, respondendo a inquéritos administrativo e policial-militar. Mesmo sem haver culpa formal alguma a seu respeito, ele permaneceu detido durante setenta dias. Com 43 anos, cinco filhos, uma carreira promissora pela frente e o sentimento de que, mais do que nunca, cada uma de suas palavras e gestos continha um profundo sentido e falava de uma enorme urgência, ele se viu obrigado a pedir asilo junto à Embaixada da Bolívia. Viajou para lá sozinho e a família uniu-se a ele meses mais tarde. Era o mês de setembro. De algum modo, Paulo e Elza sabiam que haveriam de viverem longos anos longe do Brasil. De fato, eles retornariam definitivamente ao país apenas em 1980 (BRANDÃO 2005, p. 69, grifo nosso).
O exílio constituiu-se numa verdadeira saga por vários países, conforme
se pode constatar na sequência: Bolívia (1964); Chile (1964/1969), Estados Unidos
(1969/1970), onde trabalhou como professor convidado na Universidade de Harvard,
por fim, Suíça (1970/1980), atuando como consultor especial no Departamento de
Educação do Conselho Mundial de Igrejas. Freire foi, portanto, obrigado a ficar longe
do Brasil e, por conseguinte, do povo brasileiro por quase dezesseis anos.
No trabalho que Freire desenvolvia para a Igreja teve oportunidade de
viajar pela Ásia, Oceania e outros países da América Latina. Ele tinha firme crença
que seu trabalho formativo correspondia a de um andarilho, que partilharia suas
experiências de educação popular marcadas pelo convívio com a diversidade
cultural pelo mundo. Esta missão consolidou sua prática e filosofia pedagógicas,
contribuindo para o conhecimento de suas ideias no âmbito internacional.
Em 1971, Paulo Freire e Elza Freire, Claudius Ceccon, Miguel e Rosiska
Darcy de Oliveira, brasileiros exilados pela Ditadura Militar, criaram o Instituto de
Ação Cultural (IDAC), encarregado de realizar trabalhos de assessoramento em
projetos de educação na África. Este funcionou, aproximadamente, por cinco anos
em Guiné-Bissau na África. Freire viajou várias vezes com a equipe do IDAC para o
21
continente africano. Eles realizaram projetos de alfabetização de adultos em Cabo
Verde, São Tomé e Príncipe e em Guiné-Bissau. Anos mais tarde, ao retornar ao
Brasil, a sede do IDAC se transferiria para Rio de Janeiro e São Paulo.
Em Guiné-Bissau o projeto de assessoria educacional se desenvolveu
durante a década de 1970, assumindo, inclusive, a coordenadoria de alfabetização
do Ministério de Educação, em 1976. Resultante desta prática político-pedagógica,
em 1977, Freire escreve Cartas a Guiné-Bissau – Registros de uma experiência
em processo.
Todo esse trabalho fez de Freire um cidadão do mundo, obtendo
reconhecimento internacional, materializado nos diversos títulos de Doutor Honoris
Causa, os quais ele recebeu em universidades dos vários continentes, somados a
inúmeros prêmios e homenagens. Entretanto, apesar de ser reconhecido mundo
afora, seu nome, suas ideias, seus livros eram proibidos de circular nas
universidades e escolas públicas brasileiras pelos militares instalados no poder.
Sobre este processo de reconhecimento e negação de Freire, expõe:
Durante boa parte dos anos dos governos militares no Brasil, os seus livros foram proibidos, as suas ideias foram consideradas perigosas e o seu próprio nome foi impedido de ser pronunciado em nossas escolas e universidades. No entanto, ao longo desse mesmo tempo sombrio, e depois dele, poucos brasileiros receberam tantas homenagens e tantos títulos aqui e fora do Brasil. Ao professor Paulo Freire foi concedido o título de Doutor Honoris Causa por quase quarenta universidades do Brasil e de outros países. De Sul a Norte de nosso país, mais de três centenas de escolas públicas e particulares têm o seu nome (BRANDÃO, 2005, p. 9).
O desgaste da Ditadura e o fortalecimento do processo de
redemocratização e luta pela Anistia põem fim aos anos de exílio. Em 1979, Freire
recebe a anistia e volta definitivamente em 1980 com toda a sua família, para morar
na cidade de São Paulo, como professor da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP). Também em 1980, após reivindicação de estudantes e
professores, tornou-se professor da Universidade de Campinas (UNICAMP), onde
ensinou de 1980 até 1990. Entretanto, a condição de professor titular da UNICAMP
só lhe foi conferida, mediante uma solicitação do Reitor de um parecer sobre Paulo
Freire, o qual foi elaborado pelo professor Rubem Alves. Vejamos um fragmento, no
qual o autor brinca sobre a significância do parecer frente à grandeza do nome de
22
Freire e das ideias de Freire no universo educacional. Relatado por Ana Maria
Freire, ao escrever sobre a biografia de Paulo Freire:
Seus livros, [eu] não sei em quantas línguas estarão publicados. Imagino (e bem pode ser que eu esteja errado) que nenhum outro dos nossos docentes terá publicado tanto, em tantas línguas. As teses que já se escreveram sobre seu pensamento formam bibliografias de muitas páginas. E os artigos escritos sobre seu pensamento e a sua prática, se publicados, seriam livros. O seu nome, por si só, sem pareceres domésticos que o avalizem, transita pelas universidades da América do Norte e da Europa. E quem quisesse acrescentar a este nome a sua própria ‘carta de apresentação’ só faria papel ridículo. Não. Não posso pressupor que este nome não seja conhecido na UNICAMP. Isto seria ofender aqueles que compõem seus órgãos decisórios. Por isso meu parecer é uma recusa em dar um parecer. E nesta recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu nome, ele não se sustentasse. Mas ele se sustenta sozinho. Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir. A questão é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado. É bom dizer aos amigos: ‘- Paulo Freire é meu colega. Temos salas no mesmo corredor da Faculdade de Educação da UNICAMP’. Era o que me cumpria dizer. Rubem Alves (FREIRE, A., 1996, p. 44-45, grifo do autor).
Após quase quarenta anos de casados, sua esposa e companheira Elza,
após enfarto, falece em 1986. Em 1988, Freire reencontra o amor e se casa com
Ana Maria Araújo Hasche (Nita), amiga e companheira desde a infância, também
aluna na adolescência, e posteriormente no curso de mestrado da PUC/SP, no qual
Freire foi seu orientador. Partilhou com Nita, apelido carinhoso dado a ela, seus
últimos dez anos de vida.
Logo após a eleição da assistente social, também nordestina, Luiza
Erundina para prefeita de São Paulo, Freire foi convidado por ela a assumir a
Secretaria de Educação, cargo que ocupou até 1991. Freire teve muitas conquistas
em sua gestão tais como a implementação efetiva dos Conselhos de Escola, a
criação do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos de São Paulo (MOVA),
aumento nos índices de aprovação dos alunos e por fim a criação do Estatuto do
Magistério em São Paulo. Ainda em 1991, Paulo Freire volta a trabalhar na PUC/SP
como professor convidado, proferindo palestras e conferências.
A afirmação do professor, como educador, faz parte da práxis educativa
de Freire. Nela, ele dialoga com a realidade, seus pensamentos e utopias. Incentiva
o debate político e coletivo ininterrupto, inclusive de suas próprias ideias, a busca
curiosa pelo conteúdo relacionado ao questionamento da realidade, a luta pela
libertação do ser humano. Amorosamente, Freire nos convida a lutar e a sonhar com
23
um futuro, uma educação e uma sociedade diferentes e livres da opressão
capitalista, a partir dos significados da docência em forma de testemunho
pedagógico.
Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de descriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou essa aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que anima apesar de tudo, sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza (FREIRE, P., 1996, p. 103).
Em 02 de maio de 1997, ao sofrer um enfarto fulminante, Paulo Freire
falece. A consternação com seu falecimento atravessam fronteiras, sobretudo, dos e
das que fizeram sua vida, a prática de formar para a liberdade. A família do
educador recebeu mais de 600 mensagens de condolências de intelectuais e
personagens, de aproximadamente 150 universidades por todo o mundo.
Durante toda sua caminhada de vida, construiu uma proposta de
educação e sociedade emancipatórias, empenhada em elevar a consciência do
homem e da mulher à criticidade. O seu legado continua vivo, e a inspirar a luta de
todos oprimidos contra a violência da opressão.
Além de seu exemplo de vida como homem e educador, sua clara opção
pelos oprimidos, sua práxis transformadora, as categorias teóricas, que muito nos
ajuda a ler a realidade educacional, seu acervo bibliográfico constitui-se numa
grande obra para as atuais e futuras gerações.
Em relação aos livros escritos por Paulo Freire, podemos destacar:
‘Educação como prática da Liberdade’ (1965), ‘Ação Cultural para a Liberdade’
(1968), e sua obra prima, escrita no começo do exílio, no Chile (1967-1968), a
‘Pedagogia do Oprimido’, publicada em 1971. Em 1977, escreve ‘Cartas à Guiné-
Bissau – Registros de uma experiência em processo’, já referida anteriormente, e já
na volta do exílio, ele escreve ‘Pedagogia da Esperança: um reencontro com a
Pedagogia do Oprimido’ (1992) e ‘Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática educativa’ (1996), um ano antes de sua morte.
No seu processo de formação intelectual e política, Freire recebe
influências de correntes diversas do pensamento e procura realizar a síntese de
todas elas através da práxis de cunho teórico e político, como se procurasse uma
unidade no inédito viável que superasse as históricas dicotomias teorias-práticas.
24
Dispondo de uma ousada curiosidade epistemológica, suas leituras e referências
teóricas têm característica interdisciplinar, abarcando as áreas de: Psicologia,
Filosofia, Antropologia, Pedagogia, Sociologia, Serviço Social, Teologia da
Libertação. Além do materialismo histórico e dialético é perceptível e confessável por
ele próprio as influências do idealismo e personalismo cristão. Há inúmeras
referências explícitas e implícitas em seus livros sobre os filósofos destas correntes
e teóricos das áreas, conforme atesta o autor:
Em seus escritos, aparecem não raro referências – é claro que a uns mais e com maior densidade do que a outros – a autores tais como Sócrates, Aristóteles, Hegel, Marx, Lênin, Mao Tsé-Tung, Jaspers, Makarenko, Gramsci, Ivan lllich, Fromn, Emanuel Mounir, Piaget, Tristão de Athayde, Elza freire, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Fernando de Azevedo, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Lauro de Oliveira Lima, Celso de Rui Beisiegel, Carlos Rodrigues Brandão, Francisco Weffort, C. Wright Mills, Amílcar Cabal, Samora Machel, Zevedei Barbu, Camilo Torres, Che Guevara, Georges Snyders, KarelKosic, Adam Schaff, Fiori, Clodomir Moraes, entre [tantos] personagens (CALADO, 2001, p. 15-16).
Em um sentido amplo e específico, a educação em Freire busca dar um
significado para cada ato dos sujeitos em suas vidas cotidianas, nas suas relações
sociais com o mundo, as pessoas e os segmentos sociais que os representam. É
uma educação com a realidade que em movimento, busca a prática social
transformadora.
A educação freireana concretiza-se na solidariedade entre os homens, de
seus pensamentos, atos, ideias e sentimentos. Embora essa solidariedade apareça
de forma genérica, à maioria das vezes pressupõe uma relação entre sujeitos das
classes exploradas e ou grupos sociais oprimidos.
Contumaz crítico da realidade injusta e desigual, Freire nega
enfaticamente a possibilidade da neutralidade política. Concebe uma educação que
assume uma postura revolucionária frente à realidade, sem omissões e indiferenças.
Gadotti sintetiza:
Educar é sempre impregnar de sentido todos os atos de nossa vida cotidiana. É entender e transformar o mundo e a si mesmo. É compartilhar o mundo: compartilhar mais do que conhecimentos, ideias [...] compartilhar o coração. Numa sociedade violenta como a nossa é preciso educar para o entendimento. Educar é também desequilibrar, duvidar, suspeitar, lutar, tomar partido, estar presente no mundo. Educar é posicionar-se, não se omitir (GADOTTI, 2007, p. 42).
25
As repercussões do pensamento freireano na educação e nas lutas dos
movimentos sociais se fazem sentir na conclamação a todos a se engajarem na
realidade social e se libertarem das imposições políticas, econômicas e sociais da
ordem social capitalista. Seu legado continua vivo em defesa de uma educação
crítica e libertadora e de uma sociedade emancipada, através das lutas sociais, da
formação, da auto formação e da auto-organização dos oprimidos.
Às ideias e práticas freireanas impõem uma ressignificação a cada
contexto que vivemos, pois elas próprias se alimentam no diálogo constante com a
realidade. É preciso a cada dia ampliar o debate sobre uma educação voltada para a
superação das contradições da realidade.
O entendimento de Paulo Freire, como pessoa e educador, suas ideias e
práticas, requer situá-lo historicamente na realidade brasileira, o contexto político e
econômico pós-segunda guerra mundial, que marcou o cenário internacional e
brasileiro nas décadas de 1950 e 1960, com repercussões na sua história pessoal e
profissional.
Após a I Grande Guerra Mundial (1914-1918), o comércio em termos
mundiais entrou em declínio severo, trazendo a desvalorização econômica de
produtos manufaturados e agrícolas de diversos países. O ápice desta crise se
expressou na grande queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em outubro de
1929, repercutindo numa forte recessão e, por conseguinte, na constituição de um
desemprego em massa. As exportações do café brasileiro caíram quase 70%, o que
trouxe graves consequências para a economia brasileira, já fundada na primarização
de suas atividades básicas. Houve muitas falências e perdas de poder das
oligarquias (VALE; JORGE, BENEDETTI, 2005), consolidadas com a ascensão de
Getúlio Vargas ao poder, como presidente do Brasil.
Na década de 1930, no âmbito internacional, consolida-se a ascensão do
nazi-fascismo e o consequente desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. No
Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas redireciona a base produtiva, com incentivo à
indústria nacional, motivando o fluxo de populações para os centros urbanos. O
contexto político é de crescimento da versão brasileira do fascismo, o integralismo,
e perseguição aos comunistas.
É neste cenário de avanço do populismo ideológico dos anos 1950
marcados pelas figuras de Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek, este também
26
personificando a ideologia do nacional-desenvolvimentismo, que emerge a
pedagogia do educador Paulo Freire e suas primeiras elaborações teórico-
metodológicas (GADOTTI, 1996). É também neste contexto que se sobressai o
otimismo pedagógico, o qual atribuía à educação o papel de redimir o país e salvá-
lo das mazelas sociais. Neste espírito de euforia quanto às possibilidades quase
ilimitadas da educação, uma quantidade significativa de intelectuais se envolve uma
melhor das intenções, com grande convicção de ver a realidade se transformar
(PAIVA, 1980).
É nesse contexto histórico que o educador Paulo Freire conceberá um
método pedagógico na alfabetização de adultos com a intenção de contribuir na
superação do analfabetismo vigente, da ignorância e alienação predominantes, e na
elevação das consciências dos sujeitos sociais da realidade, na qual se inserem. A
educação de jovens e adultos, proposta por Freire conclamava a emancipação do
sujeito e sua conscientização mediante uma educação crítica e libertadora,
chamando-o a pensar e refletir sobre o seu contexto, tornando-se um agente
transformador de sua própria história, na luta contra as amarras ideológicas,
opressão e exploração da sociedade capitalista.
A proposta pedagógica de Paulo Freire é ampla, assim como é sua
concepção de educação. No que se refere à educação formal, ela baseia-se na
construção de uma relação dialógica entre aluno e professor, mediada pela leitura
do mundo, a qual se expressa na reflexão e na crítica do sujeito sobre sua cultura e
seu modo de vida. Há uma compreensão do processo de alfabetização com intensa
participação dos alfabetizandos, a partir de uma didática que dialogue com a
realidade dos sujeitos em sala de aula, valorizando o saber popular e sua cultura.
Daí, que afirma:
Paulo Freire pensou [...] um método de educação construído em cima da ideia de um diálogo entre educador e educando, onde há sempre partes de cada um no outro, não poderia começar com o educador trazendo pronto, do seu mundo, do seu saber, o seu método e o material de fala dele (BRANDÃO 2006, p. 21).
A partir de uma concepção recriadora do processo de alfabetização, os
educandos dialogam com sua existência. Nos ciclos de cultura, que são rodas de
conversas entre educandos, educadores e animadores, ocorre um processo
27
educativo, formativo, no qual o diálogo dos sujeitos envolvidos se constitui no
fundamento do processo de alfabetização, emergindo linguagens, experiências
vividas e modos de vida, geradoras de reflexões e práticas.
Nesta proposta de alfabetização, o ser humano e seu papel na sociedade
ganha destaque, através do processo de conscientização sobre a realidade, na qual
se insere, e sobre as tarefas que tem para superação dos problemas sociais e
construção de uma nova sociedade. A compreensão da realidade impõe às pessoas
o entendimento da causalidade dos fatos de forma autêntica, ao passo que as
tarefas de superação da realidade impõem práticas de decisões e lutas coletivas,
inclusive relacionadas, a sua própria formação. No processo educativo dialógico, o
sujeito torna-se cônscio de suas demandas coletivas e não somente individuais:
Na medida em que o homem cria, recria e decide, vão se formando as épocas históricas. E é também criando, recriando; decidindo como deve participar nessas épocas. É por isso que obtém melhor resultado toda vez, integrando-se no espírito delas, se apropria de seus temas e reconhece suas tarefas concluídas. Ponha-se ênfase, desde já, na necessidade de uma atitude crítica [...] (FREIRE, P., 1982, p. 64).
Num contexto de industrialização acelerada e modernização das relações
sociais e de trabalho, a pedagogia freireana propõe uma educação libertadora que
almeja a elevação do nível de consciência das massas trabalhadoras do país.
Instiga as massas a refletirem sobre os problemas sociais de forma não passiva,
mas sim consciente de suas aspirações individuais e acima de tudo coletivas.
A filosofia educacional construída por Freire tem suas limitações
históricas, subjetivas e objetivas, nas quais transitam os sujeitos, durante as
décadas de 1950 e 1960, em torno de projetos mais ou menos nacionais, os quais
escamoteiam, de uma forma consciente ou não, ás contradições entre classes
sociais.
Apesar do reconhecimento geral do pensamento de Freire no âmbito
internacional e nacional, as principais críticas aos fundamentos da concepção de
educação e sociedade que apresenta foram realizadas pela Vanilda Paiva.
Na concepção de Paiva (1980) Paulo Freire desenvolveu uma pedagogia
que se adequava a fase de transição política, econômica e social que o Brasil
atravessava. Em suas palavras, a autora destaca que Freire procurava articular o
desenvolvimento econômico e a participação popular nesse período histórico.
28
Entretanto, ela faz uma crítica aos limites da mudança proposta por Freire no
decorrer do período nacional desenvolvimentista:
Os limites em que a mudança é pensada por Freire, até o início dos anos 60, ficam ainda mais claros quando vemos que, para ele, a mudança exige reformas sociais que devem ser promovidas através do consenso entre grupos sociais. Não é a luta que determina a transformação social, mas o esclarecimento das classes dominantes a respeito da funcionalidade das reformas ás novas características da ‘fase’ histórico cultural, atravessada pelo País e das demais classes a respeito não somente de tal funcionalidade, mas da sua importância enquanto meio para o atendimento de alguns de seus interesses e a conquista de seus direitos (especialmente direitos políticos). É a conciliação e não a luta de classes o motor da mudança social. (PAIVA, 1980, p. 126, grifo do autor).
Ela enfatiza que Freire pensou a transformação no interior da estrutura
social. Compreendo que a crítica da autora, tem sentido se observado o contexto da
época e de seus limites históricos.
Neste período, a defesa da criticidade por Freire não passava pela
questão da consciência de classe, uma vez que não havia se apropriado da
concepção do materialismo histórico-dialético. Tratava-se ainda de uma mediação
política-educativa em que os oprimidos e todos os indivíduos poderiam chegar ao
bem comum e desenvolvimento de todos, a partir do enfrentamento dos problemas
sociais, contradições e opressões que tão mal faziam a humanidade. A crítica
aparecia como algo inerente ao diálogo e não estava associada aos interesses de
uma determinada classe.
Para Freire, a conquista da criticidade não passava (ainda) pela questão dos conflitos entre as classes sociais e, assim, não significava a busca da ‘consciência da classe’ para os subalternos. Não se tratava (como o autor advogará, posteriormente, pela via lukcasiana) de engendrar a ‘consciência da situação histórica das classes trabalhadoras’. A conscientização como intermediação político-pedagógica, poderia atingir todas as classes e o diálogo deveria conduzir o ‘entendimento geral para o desenvolvimento de todos’, da nação. Tal objetivo estaria acima de todos os interesses particulares, inclusive dos interesses classistas (SCOCUGLIA, 1999, p. 324, grifo do autor).
Freire de fato ainda não compreendia a estrutura da sociedade, a partir do
método do materialismo histórico e dialético, embora sua prática há muito
confrontava com a ordem e toda espécie de injustiça, opressão e desigualdade
social produzida por esta sociedade. Mesmo que não concebesse o papel histórico-
29
ontológico das classes trabalhadoras, sua perspectiva era carregada de humanismo
e alteridade. Na sua acepção de conscientização, decorrente de uma educação
crítica, ele sempre apontou para o empoderamento dos mais sofridos na sociedade
de classes. Portanto, a crítica feita por Vanilda Paiva, quanto à adequação de seu
pensamento às estruturas da sociedade de classe, não se materializa na prática e
nas ideias de Freire. Em Pedagogia do Oprimido, Freire ao discorrer sobre mudança
social aponta numa direção oposta a constatada pela autora. Ele é enfático na
afirmação de uma educação da educação libertadora e nas ações de homens e de
mulheres no sentido da transformação da sociedade. Conforme a seguir:
A educação problematizadora, que não é fixíssimo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos - como “projetos” -, como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro (FREIRE, P., 1983, p. 84).
Contrário a uma visão determinista e objetivista, Freire atribui aos próprios
homens (e mulheres) o papel do fazer histórico. Romão (2015), especialista na obra
de Freire, em entrevista à Corporação Britânica de Radiodifusão (BBC) do Brasil,
destaca o caráter histórico de sua produção teórica, a partir do próprio Freire: “não
me repita, mas se considerar que alguma ideia minha resolve algum problema da
realidade, reinvente essa ideia em cada contexto". As ideias estão ai para ser
reinventadas conforme o contexto social, político e econômico de cada época
histórica. As ideias freireana estão aí para ser retomadas, analisadas criticamente e
experimentadas na construção de uma nova sociedade com um homem emancipado
e libertado das amarras da opressão capitalista. Para Gadotti (2007), Freire nos fez
sonhar, por que o seu olhar e o seu ponto de vista estava voltado para o oprimido,
nos colocando um novo modelo humanitário, de civilização, e, por conseguinte, um
novo mundo possível e melhor.
Nesse processo de ressignificação do homem e dessa nova sociedade, o
pensamento freireano inspira educadores e educadoras populares, professores (as),
trabalhadores (as), movimentos sociais a lutarem como sujeitos históricos, dispostos
30
a contribuir com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária ao longo da
história da luta de classes.
Os fundamentos da educação freireana apontam para a construção da
emancipação humana. Dentre eles destacamos o diálogo, a pluralidade de ideias, o
contexto político social dos sujeitos sociais, a conscientização e criticidade. Estes
aspectos são relevantes para a construção de uma educação crítica e libertadora
que corrobora para a libertação do ser humano da opressão capitalista. A pedagogia
freireana corrobora para a construção de uma educação crítica e libertadora do
homem, dada à ênfase que dá a conscientização dos sujeitos sociais, bem como a
importância da luta dos oprimidos neste processo.
O pensamento freireano, porque trata da filosofia da práxis é base
educativa para as lutas dos movimentos sociais organizados e sujeitos oprimidos,
com demandas específicas da contemporaneidade. Isso propicia um novo panorama
teórico e ideológico para os novos sujeitos históricos no contexto atual, que não
eram considerados agentes revolucionários pelo arcabouço teórico no interior do
marxismo tradicional.
Portanto, de uma perspectiva crítica não radical, no início, influenciada
pelo contexto nacionalista, Freire, já num segundo momento, aprofunda o
entendimento das relações sociais na sociedade capitalista e passa a conceber a
crítica associada a uma prática coletiva transformadora. Desta forma, o sujeito crítico
é entendido como aquele que tem a consciência mediatizada pelo diálogo coerente
e reflexivo, dos fenômenos sociais, sem considerar-se o dono da verdade. O
desenvolvimento real e efetivo da consciência crítica é a conscientização que aguça
a reflexão e o comprometimento histórico dos sujeitos não só com necessidades
individuais ou da esfera da sobrevivência, mas sim com as causas coletivas.
A conquista da consciência crítica resulta na humanização, e, libertação
das amarras da opressão capitalista. Obviamente, que essa humanização e
libertação são parte de um processo de postura crítica e reflexiva, nas lutas sociais
para anunciar uma nova realidade. É o que ressalta as palavras a seguir:
A humanização implica a descoberta da realidade, a mostra do antagonismo entre diferentes classes sociais e a negação da possibilidade de neutralidade nas atuações sociais. Não há possiblidade de humanizar na opressão, assim como não pode haver desumanização onde há libertação, e está só se dará na práxis dos homens da História (RIBEIRO, 2010, p. 76).
31
Pode-se afirmar que o contexto histórico das primeiras produções do
Freire é importante para definir e compreender os limites históricos das práticas e
ideias de homens e mulheres, instituições, entidades coletivas e movimentos sociais.
Isto também se aplica para compreensão das análises realizadas por Freire, a partir
de uma perspectiva idealista, comum na época, frequente no campo da educação. O
exemplo de como ele próprio encarava suas reflexões filosóficas e pedagógicas,
enquanto processo e sempre em movimento, os dias atuais impõem a todos e todas
que almejam a emancipação social, uma reinvenção dialética do legado de Freire.
As concepções de homem e educação presentes na pedagogia freireana
se dão na relação que elas têm com a concepção de formação e consciência
emancipatória na obra do educador.
A educação para o pensamento freireano não é neutra e tampouco
omissa, frente aos problemas e contradições postas pela realidade. Entende que a
dimensão educativa está em constante movimento e deve ser debatida tanto na sala
de aula, quanto na prática social mais ampla. Educação pressupõe, assim, posição
política dos sujeitos frente a uma sociedade marcada pela desigualdade social.
Instiga homens e mulheres a se colocarem contra as mazelas da opressão
capitalista, dialogarem sobre os problemas e contradições postos por esta realidade
e lutarem por uma sociedade justa e igualitária (RIBEIRO, 2010).
A educação na perspectiva freireana, baseia-se na coletividade. Trata-se
de uma troca de saberes coletivos entre sujeitos, baseados em princípios da
autoeducação dialogal. Todos aprendem e todos ensinam. Conforme destaca a
seguir:
A educação, que deve ser um ato coletivo, solidário – um ato de amor, dá pra pensar em susto -, não pode ser imposta. Porque educar é uma tarefa de trocas entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um sujeito isolado (até a autoeducação é um diálogo à distância), não pode ser também o resultado do despejo de quem supõe que possui todo o saber, sobre aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum. Não há educadores puros, pensou Paulo Freire. Nem educandos. De um lado e de outro do trabalho em que se ensina e se aprende, há sempre educadores-educandos e educandos-educadores. De lado a lado se ensina. De lado a lado se aprende (BRANDÃO, 2006, p. 22).
A educação é um processo relacional, no qual os sujeitos, educandos(as)
e educadores(as) aprendem na simples prática da comunicação. Isto, porque Freire
compreende o homem (ser humano), como um ser que se faz nas relações sociais
32
localizadas no mundo, com o mundo e com os outros, pela ação do trabalho livre,
graças à criticidade e curiosidade dos seres humanos para com as descobertas
acerca de suas próprias realidades, sejam elas econômicas, sociais ou culturais
(CALADO, 2010).
A filosofia educacional de Paulo Freire é baseada no diálogo, no
pluralismo das ideias. Isso não significa como pode parecer aos mais desavisados,
que ele compactua com posições políticas mais moderadas, mas sim, que
compreende as diferenças entre indivíduos só emerge mediante o diálogo, sendo
este é imprescindível para leitura e transformação da sociedade, em prol de uma
humanidade roubada pela opressão capitalista. Sobre a Pedagogia de Freire,
ressalta o autor:
A pedagogia do diálogo, que pensou e praticou, fundamenta-se em uma filosofia pluralista. O pluralismo não significa ecletismo ou posições adocicadas, como ele costumava dizer. Significa ter um ponto de vista e, a partir dele, dialogar com os demais. É o que mantinha a coerência da sua prática e da sua teoria. Paulo era, acima de tudo, um humanista. Seria a única forma de classificá-lo hoje. É preciso reiterar que a força da obra de Paulo Freire não está na sua teoria do conhecimento, mas em ter insistido na ideia que é possível, urgente e necessário mudar a ordem das coisas (GADOTTI, 2007, p. 101).
A ideia de pluralismo em Freire não se confunde com ecletismo, pois é
entendida como oportunidade das diferenças culturais, sociais, étnico-raciais, de
gênero, regionais e sexuais possa emergir, propiciando aos sujeitos antes invisíveis
ocuparem um lugar de autoria no processo educativo. Contudo, o diferencial da
concepção de educação do teórico em foco é a práxis, inerente a ela. O humanismo
de Freire na sua filosofia educacional ganha força e sentido em ações concretas
para mudar e transformar a ordem das coisas estabelecidas. Por sua vez, a
concepção de educação transformadora está associada à construção de
consciências individuais e coletivas, e, a processos históricos. A educação freireana,
pressupõe conscientização. Segundo as ideias a seguir:
Conscientização é um compromisso histórico e também uma consciência histórica; é inserção crítica na história, implicando que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Esta não está baseada sobre a consciência de um lado e o mundo noutro, ao contrário, está baseada, sim, na relação consciência/mundo (RIBEIRO, 2010, p. 71).
33
A perspectiva freireana da consciência é prática educativa coletiva,
construída a partir do diálogo da realidade dos sujeitos que se educam entre si.
Como anunciado nas palavras do autor:
A conquista da consciência crítica ocorre, sobretudo mediante a dialogicidade. Portanto, ser crítico não é em nenhuma hipótese uma oposição arrogante de ser o dono da verdade ao contrário, implica estar aberto à verdade do outro. Aquele que tudo crítica, ou o faz de forma destrutiva, pode até ter uma boa visão dos fenômenos, mas não tem consciência crítica (RIBEIRO, 2010, p. 74).
Para desvelar, a sociedade de modo crítico é preciso uma educação
crítica, na concepção de Freire. Uma educação, que não se paute pela crítica,
domestica a consciência do ser humano, formando uma consciência que falseia a
realidade. Somente uma educação libertadora pode levar o homem para os
caminhos de sua própria libertação. A educação crítica parte do pressuposto que os
homens são seres que não param de aprender, estando em constante processo de
ser mais. Educação crítica em Freire constitui-se uma prática social efetiva na práxis
diária, da construção de uma nova realidade que está em constante movimento. A
educação compreendida por Freire nos traz um caráter revolucionário e confronta-se
com outros tipos de educação, cuja função é manter os indivíduos presos e
dependentes das relações de opressão. Conforme enfatiza o autor:
Paulo Freire crê que, mediante a educação crítica e libertadora, os homens podem adquirir a consciência crítica que lhes permite descobrir a sociedade de modo crítico. Assim, a educação “domesticadora” estimula a falsa consciência, ao passo que a educação libertadora se esforça para levar os educandos a compreender os caminhos da libertação. A educação crítica considera os homens como seres em devir permanente, como sujeitos inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada. O caráter da plasticidade evolutiva dos homens e o caráter mutante da realidade exigem que a educação seja uma atividade contínua, sendo permanentemente refeita pela práxis. Este modelo de educação enraizado no presente dinâmico, sem aceitar a ideia de estabilidade do presente e predeterminação do futuro, desta forma, torna-se uma educação revolucionária (RIBEIRO, 2010, p. 73).
Uma lógica dialética no pensamento freireano sobre as possibilidades da
educação. A sociedade desigual, fomentadora de seres humanos fragmentados pela
opressão/exploração, produz uma educação que os tenta domesticar, formando
falsas consciências sobre a realidade, como forma de mantê-los subjugados a
34
ordem opressora. Os seres humanos que não se deixam domesticar confrontam a
realidade com uma perspectiva de educação crítica sobre o mundo, que, por
conseguinte, corrobora para a formação de consciências críticas que desvendam as
teias que compõem a sociedade. Esta educação pode lograr êxito, porque é
processual, é práxis, fundada na ação-reflexão, que concebe o futuro como um
devir, que somente os sujeitos organizados coletivamente podem construir.
As ideias e categorias em educação, elaboradas e socializadas pelo
educador Paulo Freire, apresentadas acima, refletem sua visão de mundo, marcada
pela denúncia social, rejeição da neutralidade política frente ao mundo e
compromisso na transformação das relações sociais capitalistas opressoras.
2.2 ANÁLISE CRÍTICA E REFLEXIVA SOBRE A OBRA PEDAGOGIA DO
OPRIMIDO
Neste ponto, descrevo o conteúdo do livro de Paulo Freire, Pedagogia do
Oprimido, realizando um resumo analítico dos capítulos, e enfatizando, sob a minha
perspectiva, as principais ideias e categorias trabalhadas nessa obra.
O livro Pedagogia do Oprimido foi escrito no Chile, quando Freire se
encontrava no exílio, trabalhando como assessor da UNESCO junto ao Instituto de
Capacitação em Reforma Agrária do Chile4 (GADOTTI, 1996).
Freire vivenciou um período intenso (1967/1968) de reflexões e
aprendizados que culminaram na escrita de Pedagogia do Oprimido. Na construção
da escrita demonstrou rigorosidade e planejamento sistemático na compilação de
reflexões acumuladas. Nela, Freire apresenta uma novidade ao referenciar-se
constantemente em sua prática pedagógica. A consciência que apresenta sobre o
mundo, a consistência política e filosófica em suas ideias refletem, portanto,
vivências acadêmicas, políticas, pedagógicas e sociais experimentadas até então.
Para o autor:
O desenvolvimento da escrita do livro em destaque foi embalado por um período denominado por Freire de oralidade da Pedagogia do Oprimido. Foi um ano de reflexões com amigos, discussões em seminários, conferências e cursos tratando de aspectos de sua proposta educativa. Paralelo a discussões e diálogos, Freire fazia anotações em fichas que em seguida foram reunidas, sistematizadas, propiciando a escrita resultante de um
4 Tradução livre para o português.
35
aprendizado e de reflexões sobre sua prática enquanto educador (PIO 2015, p. 75).
Scocuglia (1999) entende a Pedagogia do Oprimido como ponto de
partida para a afirmação de uma perspectiva mais radical de educação, que também
contemple uma análise mais radical. Nos diálogos e discussões que desenvolveu
com intelectuais de diferentes matizes teóricas e com sua própria prática, Freire
começa a colocar em foco questões que se relacionam com a análise da realidade,
em relação aos conflitos e lutas sociais. Freire constrói o entendimento do ato
educativo como ato político com mais nitidez, mesmo que ainda não expresse a
compreensão da educação em sua complexidade estrutural e política. Segundo o
autor:
No entanto, ao investigarmos a obra de Freire em sua globalidade, devemos entender a Pedagogia do Oprimido como ponto de partida de uma elaboração teórica mais aprofundada, mais consistente e mais rigorosa, especialmente quanto á sua base de fundamentação socioeconômica e política. Nessa obra, a aproximação aos pensamentos marxiano e marxistas é notória, principalmente quanto á leitura da realidade que leva em consideração, por exemplo, as questões relativas às classes sociais e ao conflito entre elas – resultando, daí, uma visão educacional mergulhada (mas, não aprisionada) em tal conceituação. Também é na Pedagogia do Oprimido que Freire ‘começa a ver’ (segundo suas palavras) a politicidade do ato educativo com maior nitidez, embora a educação ainda não seja explicitada em sua inteireza política, mas apenas em seus aspectos políticos (SCOCUGLIA, 1999, p. 327, grifo do autor).
A aproximação com o pensamento marxista não é realizada a partir de
um viés dogmático das relações entre educação-consciência-ideologia-política.
Nunca é demais lembrar que no âmbito mundial há uma forte crítica e até rejeição
ao que se apresentava como experiência marxista de sociedade – o stalinismo. A
aproximação de Freire com as ideias marxistas ocorre em meio à influência do
humanismo e idealismo cristão há muito instalado nele. Freire (2007) em uma das
suas últimas entrevistas refere-se à dupla influência no seu pensamento: “Quanto
mais eu lia Marx, eu encontrei uma certa fundamentação objetiva pra continuar
camarada de Cristo”. Sobre isto Scocuglia analisa:
Enfatiza-se, de passagem, que a aproximação marxiana-marxista é feita (não dogmaticamente) através de parâmetros superestruturais relativos ao entendimento das conexões educação-consciência-ideologia-política. Coloque-se, ainda, que as correntes existencialistas e personalistas
36
(definidoras do seu ‘humanismo idealista’ inicial) continuam presentes, agora misturadas com as incorporações do pensamento marxista (SCOCUGLIA, 1999, p. 327, grifo do autor).
Na concepção de Scocuglia (1999) o livro Pedagogia do Oprimido
constitui-se num divisor de águas na afirmação da visão marxista e gramsciana em
Paulo Freire. Essa visão se consolidaria nos seus escritos, durante e em decorrência
do período que esteve no continente africano. Para ele:
[Destaca-se] a importância estrutural do livro Pedagogia do Oprimido enquanto núcleo irradiador da sua virada marxista (e gramsciana) que desemboca nos ‘escritos africanos’ - nos quais se destaca a relação educação-trabalho. Essas mudanças identificam a tensão permanente entre suas preocupações psico-pedagógicas (relativas ao cotidiano das relações educador-educando, inclusive escolares) e sua essência político-pedagógica (como marca estrutural) (SCOCUGLIA, 1999, p. 323, grifo do autor).
Das primeiras reflexões sobre a realidade brasileira, Freire aprimora-se
teórica e metodologicamente, ao longo de sua prática educativa, a começar pela
Pedagogia do Oprimido.
Esta mudança de perspectiva teórico-metodológica de Freire é notada
também na preocupação dele com a relação educação-trabalho, identificando a
essência política e educativa nas relações de trabalho.
Torres (2014) comenta que a educação na perspectiva freireana voltou-se
para os oprimidos, com o objetivo de fazê-los questionar o seu sentido e finalidade
no mundo. A educação como fundamentação da orientação do homem e da mulher
oprimida para sua vida, no enfrentamento dos problemas postos pela realidade.
Conforme destaca o autor:
A educação deve orientar o homem em sua vida. A pedagogia, enquanto ciência da educação deve ajudá-lo a refletir sobre seu sentido, finalidade e objeto, definindo, ao mesmo tempo, as respostas teóricas aos problemas que a realidade propõe à práxis educativa. Paulo Freire não elabora uma pedagogia geral. Seu trabalho educativo foi fundar uma ‘Pedagogia do Oprimido’ (TORRES, 2014, p. 210, grifo do autor).
No primeiro capítulo do livro, Paulo Freire apresenta uma justificativa
para a construção de uma pedagogia do oprimido. Por que e para que uma
pedagogia identificada com os oprimidos? Qual a pretensão desta identificação?
37
Ele resgata a contradição permanente entre oprimidos e opressores na
sociedade. A opressão torna o ser humano um ser menos na sociedade, ou seja,
um ser desumanizado nas condições materiais e espirituais, violentado na sua
sobrevivência biológica, reduzido a uma consciência ingênua do mundo e alienado
do seu poder de transformação. A desumanização ocorre a partir da negação da
subjetividade própria do indivíduo, da alienação de sua humanização e de sua
capacidade de contrapor-se a sua própria condição de opressão.
Entretanto, Freire reafirma que está na essência do ser humano ser mais,
pois é a humanidade e não a desumanidade que o caracteriza. No ser humano
encontram-se as possibilidades de um ser livre, liberto e emancipado da opressão,
em pleno desenvolvimento de sua consciência crítica.
A recuperação da humanidade pelos oprimidos é uma forma de criação
de uma nova realidade para eles e para os opressores. Freire traz à tona a ideia de
que todos e todas, oprimidos (as) e opressores (as), são vítimas do sistema de
opressão, e que a luta contra a opressão pode libertar a todos (as). Para o autor:
A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura [outra] vocação – a do ser menos, como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E ai está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos- libertar-se a si e aos opressores (FREIRE, P., 1983, p. 30-31).
Portanto, há uma compreensão de que a desumanização afeta a ambos,
oprimidos e opressores, mas que a tarefa de libertação pertence aos oprimidos, pois
os opressores não reconhecem que haja desumanidade em eles, tampouco aceitam
que ela seja produto da opressão que protagonizam. Freire acredita firmemente que
os oprimidos se reconhecem na luta por sua libertação e superação de sua condição
de opressão a partir da construção de uma pedagogia que sirva aos seus interesses
e não dos opressores. Eles necessitam ser libertos, mas não antes de se
encontrarem a si próprios, e se reconhecerem ávidos em construir uma práxis, que
corrobore para sua própria emancipação e libertação. Conforme anuncia:
Quem melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para estender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que
38
eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, P., 1983, p. 32).
A compreensão da sociedade e suas características de exclusão
precisam ser compreendidas e refletidas pelos oprimidos para que eles possam se
encaminhar para o seu próprio processo de libertação.
Freire nos apresenta, nesta primeira parte, os fundamentos de sua
pedagogia, destacando a necessidade de se construir uma teoria pedagógica,
política e social baseada na dimensão educativa, cultural dos sujeitos oprimidos, que
objetivamente necessitam lutar por sua libertação. Trata-se de uma pedagogia que
tem como fundamento principal a luta pela humanização de todos os indivíduos.
Para ele:
A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vimos chamando de pedagógica do oprimido: aquela que tem ser forjada com ele não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante recuperação de sua humanidade (FREIRE, P., 1983, p. 32).
Freire nos conclama a construir uma educação voltada para os
oprimidos, mas com eles, os escutando, trazendo para essa pedagogia, os
fundamentos culturais, sociais e políticos dos oprimidos para serem debatidos
coletivamente pelos sujeitos. Isso nos revela um determinado nível de
comprometimento com a transformação das relações de contradições da sociedade
capitalista. Finaliza o primeiro capítulo, arrematando com a seguinte indagação “a
presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é
o que deve ser: engajamento” (FREIRE, P., 1983, p. 61).
No segundo capítulo, a partir do seu olhar sobre o sistema educacional,
Freire denomina a educação predominante na instituição escolar como bancária, por
considerar a lógica de transmissão de conteúdo dos professores aos alunos, similar
ao ato de depositar numa conta bancária. Ele considera que essa lógica de
educação corrobora para a manutenção do status quo da opressão capitalista. Uma
educação alienante, que nega a relação criadora e recriadora do homem com o
mundo e seu poder de transformação da sociedade. Segundo suas palavras:
39
Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes” (FREIRE, P., 1983, p. 71).
A educação bancária está a serviço do acúmulo de conhecimentos
abstratos, sem questionamentos acerca da realidade social, por parte dos sujeitos
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Tanto alunos quanto professores
se relacionam com o saber sistematizado, veiculado pela tradição escolar, de forma
complacente, sem estabelecer uma postura crítica frente a ele. Na educação
bancária, o papel do educador é reproduzir o mundo existente. Conforme o autor
entende:
[...] para a concepção bancária a consciência é, em sua relação com o mundo, esta peça passivamente escancarada a ele, à espera [que] entre nela, coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordem ordenar o que já se faz espontaneamente. O de encher os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de comunicados – falso saber – que ele considera como verdadeiro (FREIRE, P., 1983, p. 72).
O professor, consciente ou não, desenvolve o papel de formar o indivíduo
disciplinado e enquadrado para a sociedade, marcada pela opressão. Os conteúdos
escolares e a forma de repassá-los propiciam a formação de sujeitos para o mundo
do trabalho, necessários a sociedade de mercado. A escola se apresenta como
síntese da produção científica acumulada pela humanidade, porém subjugada a uma
prática da educação bancária. Sobre isso diz Scocuglia:
Interessante verificar que nessas preocupações escolares pedagógicas e educativas, a síntese escola-produção, como manifestação da ligação educação-trabalho, dá a tônica fundamental do discurso de Freire, neste instante. Não podemos deixar de perceber que, os princípios da proposta pedagógica de Freire estão presentes, como, por exemplo, a preocupação permanente com a “educação bancária”, isto é, com a transmissão do conhecimento em “depósitos” supostamente ignorantes e vazios (SCOCUGLIA, 1999, p. 340).
A educação bancária constitui-se numa forma de reprodução da
sociedade encontrada num determinado tempo histórico pelas classes dirigentes.
Conteúdos, formas e ideologias presentes nesta educação tendem a formar
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indivíduos obedientes a ordem social predominante. Nela ocorre um tipo de prática
pedagógica que não questiona a realidade, nem os conteúdos escolares,
previamente estabelecidos e “organizados historicamente pela humanidade”.
Centrada na ideia de propiciar aos alunos a aquisição do patrimônio cultural da
humanidade, a educação bancária forma sujeitos não críticos e passivos frente á
realidade em constante movimento.
Há também uma discussão sobre a prática problematizadora, que
distingue a dinâmica da aula entre educador e educando. O educador bancário se
apropria do objeto cognoscível, ou seja, os conteúdos prescritos para a sala e os
veicula. Já o educador problematizador dialoga com os conteúdos, com os
educandos e suas vivências para que possam construir novos conhecimentos,
indagações e reflexões acerca da realidade próxima e distante (FREIRE, 1983).
Freire conclui o capitulo defendendo uma educação para o Ser Mais, sob
a égide do humanismo, diálogo e criticidade para superar as crenças alienantes da
educação bancária e suas práticas na formação da consciência dos educandos (as),
calcadas na ideologia capitalista do Ter Mais.
No terceiro capítulo, Freire apresenta o diálogo como instrumento para se
alcançar a construção da liberdade e também como elemento do processo de
conscientização. O diálogo constitui-se um princípio presente em vários momentos
do processo educativo: pesquisa do universo vocabular, palavras geradoras, leitura
de mundo dos oprimidos, prática em sala de aula etc. O diálogo se justifica mais
ainda a partir da busca incessante da formação de uma consciência crítica e da
libertação das opressões sociais.
O momento [para a busca] é o que inaugura o diálogo da educação como prática de liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores. Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Dai que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizador também, proporcione, ao mesmo tempo, a apreensão dos temas geradores e tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos (FREIRE, 2001, p. 87).
Freire relaciona o desenvolvimento de seu método com a construção de
um novo sujeito, que não é oprimido e nem subjugado pela opressão da sociedade
capitalista. A visão de educação e o lugar que atribui ao diálogo contribuem para a
41
formação política e social do homem, ao destacar a realidade, na qual o sujeito
oprimido vive e produz. Ele enfatiza:
Esta é a razão pela qual (em coerência ainda com finalidade libertadora da educação dialógica) não se trata de ter nos homens o objeto de investigação, de que o investigado seria o sujeito. O que pretende investigar, realmente, não são realmente os homens, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se encontram envolvidos seus temas geradores (FREIRE, P., 2001, p. 87-88).
Freire tem particular interesse em desvendar as relações entre ideias,
representações sociais e consciência dos sujeitos sociais e a materialidade do real.
Para ele a educação só se justifica frente à realidade. Educação, conscientização e
realidade dialogam na construção de novos sujeitos libertadores e emancipados.
A dialogicidade constitui a essência da filosofia freireana. Através de um
diálogo aberto, socializado e questionador acerca da realidade, pode-se construir
uma práxis política, pedagógica e revolucionária para transformar a educação, o ser
humano e a sociedade, superando as relações de opressão.
Para Freire (1983), o papel do educador dialógico é lutar com o povo para
que ele possa resgatar a sua humanidade roubada e não o ato de conquistá-lo. A
expressão “conquistar” é adequada à lógica da linguagem das elites dominantes,
que não pretende a libertação dos oprimidos, mas sua dominação.
As elites dominantes baseiam sua atuação na educação escolar numa
concepção bancária, que profundamente ideológica, tem a conquista dos oprimidos
como um de seus instrumentos de manipulação da consciência da classe
trabalhadora e poder na sociedade.
Uma educação realmente libertadora não é compatível com a prática
opressora. A educação libertadora trabalha para que os educandos possam imergir
em suas consciências. A luta dos educadores humanistas revolucionários baseia-se
no combate aos slogans, discursos e práticas dos opressores que manipulam a
consciência da classe trabalhadora (FREIRE, 1983).
No último capítulo, comunicam-se os aspectos da Teoria da Ação Anti-
dialógica, dentre os quais destacamos os conceitos de conquista, divisão e invasão
cultural dos sujeitos oprimidos em sociedade.
A conquista supõe um lado que domina e o outro, o qual sempre é o
dominado. O que domina sempre determina os objetivos e os fins do objeto
42
dominado, que passa a ser parte dessa dominação, tornando-se uma peça na
engrenagem sistêmica que colabora com a situação de opressão vivida. O sujeito
conquistado, ou colonizado, não tem um propósito e objetivo de vida coletiva, ele se
põe inconscientemente a serviço dos interesses do conquistador, ou colonizador,
trabalhando em conformidade com seu interesse. Conforme destaca o autor:
Todo ato de conquista implica um sujeito que conquista e um objeto dominado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador. Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo. Um ser como dissemos já, hospedeiro do outro (FREIRE, P., 1983, p. 162).
Os opressores elaboram diversas estratégias de perpetuação no poder.
Além de seduzir os oprimidos para que defendam seus interesses, apresentam um
falso mundo, acompanhado da ideia de que não pode ser mudado. Tentam
consolidar na consciência dos oprimidos de que o mundo é algo dado, estagnado,
no qual os homens devem se ajustar. Freire demonstra que há várias formas do
opressor se hospedar na consciência do oprimido, orientando sua prática de
conformação às estruturas sociais. Destaca os mitos que a sociedade capitalista se
utiliza para concretizar a manutenção do status quo, tais como o mito da moralidade,
da ascensão social e financeira, da inferioridade ontológica e entre outros.
Daí que os opressores desenvolvam uma série de recursos através dos quais propõem à admiração das massas conquistadas e oprimidas num falso mundo. Um mundo de engodos que, alienando-os mais ainda, as mantenha passivas em face dele. Daí que na ação da conquista, não seja possível apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que os homens se devem ajustar (FREIRE, P., 2001, p. 163).
A lógica da manutenção do status quo é a constituição de um senso
comum, que fortaleça a ideia da naturalidade da ordem e inculta a ideia da fatalidade
social de uma realidade imutável.
Outro aspecto da Teoria Anti-dialógica é a divisão da classe trabalhadora
para assim manter a opressão e manutenção do sistema capitalista. As elites não
podem permitir a união da classe trabalhadora, pois se agisse assim estaria pondo
em risco a sua dominação e hegemonia. Conforme enfatiza:
43
Esta é outra dimensão fundamental da teoria da ação opressora, [tanto] quanto à opressão mesma. Na medida em que as minorias, submetendo a maiorias ao seu domínio, as oprimem dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à continuidade de seu poder. Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares, que significaria indiscutivelmente, uma séria ameaça a sua hegemonia (FREIRE, P., 2001, p. 165).
A conquista e divisão dos oprimidos fazem parte do processo de
dominação capitalista. As elites que governam o país e as instituições do aparelho
de estado utilizam estratégias diversas para conservação e perpetuação no poder.
As estratégias são de natureza material e ideológica, podendo ser implícitas ou
explícitas, para garantir a defesa econômica ou moldar consciências passivas e
pouco reflexivas.
Neste quarto capítulo, Freire desenvolve o conceito de invasão cultural, a
qual implica na superioridade de um mundo sobre o outro, de povos de determinado
continente identificado com o capitalismo central sobre outros povos de continentes
diferentes, identificados com o bloco de países periféricos. Freire é enfático no
questionamento a superioridade cultural de um povo sobre outro. Os critérios
sempre são definidos pelos dominantes.
A invasão cultural está a serviço de quem? Sem dúvida, não se põe na
perspectiva da classe trabalhadora, tampouco na defesa dos povos colonizados. A
invasão cultural constitui-se num instrumento de reprodução da divisão internacional
do trabalho, quando relacionada aos países e subordinação de determinada região a
outra, no interior de um mesmo país, ambas pressupostas na superioridade
econômica e cultural. Trata-se de uma importante ideologia da opressão, da
adaptação e do jugo da cultura dos povos oprimidos. Analisa o autor:
A invasão cultural, que serve à conquista e à manutenção da opressão, implica sempre na visão focal da realidade, na percepção desta como estática, na superposição de uma visão do mundo na outra. Na superposição de uma visão do mundo na outra. Na superioridade do invasor. Na inferioridade do invadido. Na imposição de critérios. Na posse do invadido. No medo de perdê-lo (FREIRE, P., 1983, p.186).
Há uma ideia que o povo oprimido é totalmente dependente de uma
cultura superior para se desenvolver. Seus saberes e culturas não são considerados
suficientes para o seu próprio crescimento. Trata-se de uma ideia arcaica e
positivista de que a periferia precisa do centro para se desenvolver. A dicotomia
44
entre sociedade superior-sociedade inferior é insuficiente para entender as relações
de dependência, de exploração e de opressão existentes na sociedade atual. Por
um lado, concretamente a realidade nos fornece os antagonismos dominantes-
dominados, invasor-invadidos, colonizadores-colonizados, opressores e oprimidos,
capital-trabalho – todos importantes na análise do real. De outro, é impossível
pensar em uma nova sociedade, preservando as estruturas socioeconômicas em
meio a tantas contradições que expressam o real. Uma nova sociedade só poderá
ser gestada a partir de uma ruptura das relações de exploração e de opressão,
muitas vezes traduzidas na superioridade de uma cultura sobre a outra. Conforme
reflete o autor:
Se, agora, analisamos uma sociedade também como ser, parece-nos concludente que, somente como sociedade ser para si, sociedade livre, poderá desenvolver-se. Não é possível desenvolvimento de sociedades duais, reflexas, invadidas, dependentes da sociedade metropolitana, pois que são sociedades alienadas, cujo ponto de decisão política, econômica e cultural se encontra fora delas – na sociedade metropolitana. Esta é que decide dos destinos, em última análise, daquelas, que apenas se transformam (FREIRE, P., 1983, p. 189).
Freire mostra que a solução de desenvolvimento no capitalismo não é
satisfatória, uma vez que preserva as estruturas da desigualdade social e da
exploração econômica. A sociedade como um todo precisa se libertar da
dependência e avançar na soberania e na autonomia frente aos setores/países
dominantes, ser reescrita através de homens livres, que assumam suas próprias
decisões, buscando alternativas de libertação da opressão. Para ele:
A sociedade simplesmente modernizada, mas não desenvolvida, continua dependente do centro externo, mesmo que assuma, por mera delegação, algumas áreas mínimas de decisão. Isto é o que ocorre e ocorrerá qualquer sociedade dependente, enquanto dependente (FREIRE, P., 1983, p. 189).
A superação da dependência e da ideia de desenvolvimento linear nos
trilhos dos países capitalistas centrais somente é possível quando os sujeitos sociais
no âmbito interno de um país decidir democraticamente sobre a sociedade e o
modelo de desenvolvimento compatível com a justiça e igualdade social e com
respeito à natureza.
45
Na teoria dialógica proposta por Freire (2001), ainda se destaca os
conceitos de colaboração e organização da classe trabalhadora em sociedade.
Ambos sugerem a solidariedade dos oprimidos na luta contra a injusta divisão de
classes na sociedade.
A colaboração é uma das estratégias de luta entre os oprimidos e se dá
em determinados momentos históricos em que os oprimidos, num processo de
construção de consciência, problematizam a sua própria opressão. A colaboração
tem como base o fortalecimento da coletividade na perspectiva da transformação da
sociedade. Pressupõe a união da classe trabalhadora na construção de alternativas
de luta para se ver livre do jugo da opressão. Na prática dos oprimidos contra a
opressão é inadmissível a reprodução da opressão, os sujeitos são iguais, como
bem esclarece Paulo Freire (2001, p. 166): “Não há, portanto na Teoria Dialógica da
ação, um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto,
[existem] sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para sua
transformação”.
Na concretização da colaboração entre oprimidos, a liderança
revolucionária, consciente do seu importante papel na libertação dos oprimidos, não
pode comandar cegamente a classe trabalhadora, por que cairia no mesmo erro do
messianismo das elites dominadoras, que vendem o mito da melhoria de vida
pessoal através do desenvolvimento a qualquer custo, ambiental ou social, por
exemplo. Não se pode pensar em liderança revolucionária que não escute o povo,
que não considere as demandas da classe trabalhadora, por mais intelectualizada
que a mesma possa ser. Conforme destaca Freire:
A importância de seu papel, contudo, não lhe dá o direito de comandar as massas populares, cegamente, para a sua libertação. Se assim fosse, esta liderança repetiria o messianismo salvador das elites dominadoras, ainda que, no seu caso, estivessem tentando a “salvação” das massas populares (FREIRE, P., 1983, p. 197).
Freire (2001) se dirige tanto aos oprimidos, quanto aos que lutam com
eles por emancipação social. Elabora uma crítica a algumas práticas no âmbito da
esquerda5 que apesar de apontarem contra a injustiça e a desigualdade social, não
5 Freire se refere a uma esquerda dogmática que não valoriza todos os sujeitos sociais e seus
diferentes saberes. Uma esquerda que põe condições para considerar determinados sujeitos como revolucionários.
46
valorizam os saberes, as experiências e culturas dos sujeitos sociais, reproduzindo
dependência, hierarquias e opressões.
A colaboração, segundo Freire (1983), é fundada no diálogo comunicativo
e horizontal entre os oprimidos, os quais não podem ser massa de manobra nas
mãos de supostos lideres revolucionários. A adesão às causas revolucionárias,
verdadeiramente classistas, deve se dar de forma consciente, através de práticas
formativas e auto formativas que fomentem o diálogo entre iguais, que têm como
propósito uma crítica radical a toda forma de opressão, materializada na práxis de
mudança da realidade injusta, resultado das relações capitalistas. Segundo as
ideias do autor a seguir:
O diálogo que é sempre comunicação funda a colaboração. Na teoria da ação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideais revolucionários, mas para sua adesão. O diálogo não impõe, não maneja, não domestica não sloganiza. Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Como também não significa deixar de ter o dialógico uma consciência clara do que quer dos objetivos com os quais se comprometeu (FREIRE, P., 1983, p. 183).
O diálogo não se esgota nele mesmo, pois tem objetivos voltados a
emancipação humana e social. Ele é meio e não entra em contradição com os fins
de libertação.
A partir do apoio das lideranças efetivamente revolucionárias, as massas
populares aderem ao diálogo, ao problematizarem sua opressão. Há dois tipos de
adesão, quando se trabalha na formação da consciência dos oprimidos: 1) Adesão
conquistada – nela, a liderança faz dos oprimidos massa de manobra de suas
próprias causas, repassando decisões às massas, sem que elas tenham o direito de
questionamento ou reflexão apurada das opções; 2) Adesão verdadeira – nela, os
oprimidos questionam as opções, e refletem sobre os caminhos a seguir.
Adesão conquistada não é adesão, porque é aderência do conquistado ao conquistador através da prescrição das opções deste aquele. A adesão verdadeira é a coincidência livre de opções. Não pode verificar-se a não ser na intercomunicação dos homens, mediatizados pela realidade (FREIRE, P., 1983, p. 197-198).
Frente a uma adesão que manipula sujeitos e reproduz a opressão, os
oprimidos apresentam outra adesão, pautada na consciência do real e dos seus
objetivos, e assumem o papel de protagonista, trocando saberes e refletindo sobre
47
seu próprio contexto com as lideranças para assim poderem julgar as opções
coletivamente tendo a união como base da construção histórica coletiva.
Este processo de adesão à luta, pelos oprimidos, é consequência de sua
problematização da realidade e da percepção da opressão no sistema capitalista.
Trata-se de um processo de formação que é expressão da consciência sobre a
história da humanidade, de luta de classes, de antagonismos, de divisões e
estratificações sociais.
De acordo com a Teoria Dialógica, a organização da classe trabalhadora
e dos oprimidos em geral é resultado da colaboração e unidade entre oprimidos de
naturezas diversas, subjugados pelas relações capitalistas. Para Freire (2001, p.
175): “a organização não apenas está diretamente ligada à sua unidade, mas é um
desdobramento natural desta unidade das massas populares”.
Uma das formas de dominação encontradas pela elite é a influência
ideológica sobre a forma e o conteúdo da prática das lideranças da luta social,
aprimorando seu poder de manipulação sobre as massas populares. Entretanto, a
liderança revolucionária não pode cair na tentação de apenas conduzir a classe
trabalhadora, sem que ela tenha uma adesão verdadeira à luta revolucionária,
decorrente de sua consciência do papel histórico. Freire tem clareza, que no
confronto de interesses ocorre uma disputa de hegemonia entre classes
antagônicas, as quais procuram se organizar para o exercício do poder. Conforme
destaca Freire a seguir:
Se, para a elite dominadora, a organização é a de si mesma, para a liderança revolucionária, a organização é a dela com as massas populares. No primeiro, organizando-se, a elite dominadora estrutura cada vez mais o seu poder com que melhor domina e coisifica; no segundo, a organização só corresponde á sua natureza e a seu objetivo se é, em si, prática da liberdade. Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina indispensável à organização com condução pura das massas (FREIRE, P., 1983, p. 209).
Nesta disputa de hegemonias, o objetivo final da organização da classe
trabalhadora é a liberdade, o banimento da opressão. Para ela, a organização só
será verdadeira se conduzir para a libertação do ser humano e a construção de uma
sociedade mais justa e solidária. Ela não pode se perder na manipulação das elites
dominadoras e nem na própria condução cega por uma pretensa liderança popular,
que burocratizada perdeu a real perspectiva da emancipação. A libertação se dá no
48
processo de superação das contradições vigentes na sociedade, e nele se forja um
novo homem e uma nova mulher para uma nova sociedade para o futuro (FREIRE,
2001).
A colaboração e a organização são fundamentais para a unidade da
classe trabalhadora e outros sujeitos sociais em constante processo de luta. A
educação fundada nos processos de luta de classes e dos movimentos sociais dos
oprimidos e resultado das tensões sociais que ultrapassam os muros da escola pode
contribuir para a construção de uma sociedade diferente, justa e igualitária.
Na Teoria Dialógica em Paulo Freire, a colaboração e a organização são
estratégias da expressão da luta das classes oprimidas. O autor entende que a
libertação do ser humano, nesta sociedade, ocorrerá mediante uma educação
plena6, na qual o homem problematiza seu contexto e opressão capitalista em que
vive.
Em Pedagogia do Oprimido, Freire compreende que a educação não é
responsável sozinha pela transformação da sociedade, é parte importante do
processo. A conscientização é importante, para que homens e mulheres dialoguem
sobre seu próprio mundo e a sociedade que lhes foi imposta.
A partir das reflexões aqui realizadas, no próximo item, pretende-se
refletir sobre as relações entre educação e sociedade em Pedagogia do Oprimido,
buscando refletir de que maneira a compreensão de educação em Paulo Freire
corrobora para entender a reprodução social e a luta pela construção de uma
sociedade livre? Quais os princípios da educação bancária para a manutenção da
sociedade capitalista? Quais elementos da educação libertadora, defendida por ele,
estão intrinsecamente relacionados à negação da sociedade capitalista e construção
de uma sociedade socialista?
6 Paulo Freire (2001) defende que a educação é um processo humanizante e trabalha todos os aspectos da formação integral do homem: social, político, ético, histórico, cultural. Ao partir dessa perspectiva Freire reforça a ideia de uma educação para plenitude do homem, entretanto que esse processo perdura por toda a vida, não tem fim.
49
3 SOCIEDADE E EDUCAÇÃO EM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
Neste capítulo procuro emergir o entendimento de Freire sobre a
compreensão que tem de sociedade e de educação na obra em foco. Neste sentido
discuto as ideias que revelam sua percepção da sociedade existente no contexto da
elaboração da obra. Na discussão que faço sobre sociedade e educação torna-se
necessário evidenciar o lugar da alienação no seu pensamento. Na compreensão
freireana de educação ganha destaque o confronto que realiza entre duas formas de
educação: educação bancária e educação libertadora.
3.1 SOCIEDADE, ALIENAÇÃO E EDUCAÇÃO
A compreensão de sociedade em Pedagogia do Oprimido é atravessada
pelo dilema central da filosofia acerca do materialismo e do idealismo. Este dilema,
na obra e no autor, nem sempre tem clara resolução, sendo, portanto, também um
dos objetivos deste trabalho emergir os elementos que possibilitem clarear esta
questão.
A percepção de Freire (2001) sobre sociedade oscila sobre dois tipos
diferentes e opostos. Uma, pauta-se na denúncia das relações sociais
predominantes, as quais se constituem base material da produção de opressões e a
outra funda-se no anúncio da sociedade almejada, em contraposição a existente.
Em ambas é perceptível o lugar de indignação que Freire ocupa como um humanista
sedento de justiça.
A realidade social não está parada, tem uma dinâmica própria. Ela é
produto de determinantes históricos, econômicos, sociais e políticos. O indivíduo só
é sujeito dessa realidade, através de uma prática educativa que conscientize que
inquiete e o insira criticamente na história de sua própria transformação. Falar da
realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, é o
mesmo que dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial.
O mundo humano é formado por uma teia de relações sociais entre
indivíduos, grupos e classes, que se educam em conflitos e contradições. A política,
a economia, a educação são dimensões do real que compõem essa teia de
relações, fazendo o mundo humano e formando as pessoas, contribuindo para os
50
processos de desumanização. Os espaços educativos são ocupados por diferentes
interesses presentes nas relações sociais.
Desta forma, ao se interpretar a realidade não se pode interpretá-la como
algo que não se movimenta. As relações sociais estão constantemente se
modificando, tanto pelas contradições da estrutura econômica, quanto pela
conjuntura política e social. A historicidade dos sujeitos não é um processo linear,
ela se constrói a partir de experiências vividas na prática social em cada época
histórica.
A perspectiva de Freire sobre a sociedade concreta aparece em forma de
denúncia. Sobre a sociedade por ele denunciada, Freire foca na dinâmica da
opressão, que a caracteriza. A compreensão apresentada por ele se revela em
grande parte nas relações de opressão que denuncia. Qual o sentido do “mundo de
opressão” ou “sociedade opressora” que leva os oprimidos a criarem uma
pedagogia7? Quais opressões estão presentes neste mundo? Em que medida,
essas opressões são associadas à sociedade capitalista?
Para Freire (2001), os oprimidos estão em busca do conhecimento e
significado do seu papel na sociedade. Os oprimidos sentem o mundo de opressão a
partir da relação de exploração que estão submetidos através do sistema produtivo
de trabalho e na própria educação não crítica e bancária hegemonicamente
transmitida na escola e dos espaços não formais em sociedade. A classe
trabalhadora quer discutir e entender sua condição de oprimidos para poderem se
libertar.
O caráter antagônico dos interesses econômicos e a certeza que as elites
têm de preservar o sistema de opressão e sua posição social de dominação frente
aos explorados é marcada por um conjunto de estratégias para ampliar o senso
comum em torno de sua aprovação tais como mitos e estratégicas de manipulação
ideológica da consciência dos trabalhadores (FREIRE, 2001).
Quanto à terceira questão é perceptível a denúncia de Freire à atuação
das “elites dominadoras” ou “classes dominantes” para a manutenção do status quo,
conforme podem observar abaixo:
Através da manutenção, as elites dominadoras vão tentando conformar as massas populares a seus objetivos... Muitas vezes, esta manipulação,
7 Refere-se a um tipo de educação que sirva aos interesses dos oprimidos.
51
dentro de certas condições históricas especiais, se verifica através de pactos entre as classes dominantes e massas dominadas (FREIRE, P., 2001, p. 145),
A transição filosófica entre idealismo e materialismo histórico e dialético
também é visível aqui, uma vez que há uma denúncia à sociedade de classes,
capitalista, ao identificar as “classes dominantes” como sujeito da opressão e da
manipulação das “massas populares”, entretanto, ainda pouco enfatizada na
dimensão econômica da exploração, protagonizada pelo capital.
Sobre a sociedade projetada, idealizada, que também compõe sua
concepção de sociedade, Freire vislumbra a possibilidade de banimento de toda
forma de opressão, através de uma insistente pregação baseada no inconformismo
e enorme espírito humanista. Qual a concepção de sociedade futura, na qual as
pessoas estarão ‘libertas individual e coletivamente’? Em que medida ‘a estrutura
nova’ fundada em relações sem opressões, e decorrente das ‘transformações
revolucionárias’ está associada à luta por uma sociedade sem classes? Até que
ponto o humanismo de Freire se identifica com o humanismo socialista?
Freire (2001) vislumbra uma sociedade, cuja estrutura represente uma
superação das desigualdades, injustiças e contradições inerentes a uma sociedade
de classes. Mesmo sem deixar muito claro como esta passagem ocorre, Freire
defende uma sociedade sem opressões, na qual as pessoas sejam livres e fraternas
e cultivem o respeito de uns para com os outros.
A educação desenvolve um importante papel na construção desta outra e
nova sociedade. A educação fundada no diálogo e pautada no respeito à cultura e
ao saber popular se constrói, considerando a diversidade dos sujeitos e preparando
os indivíduos para uma vida sem opressões e sem explorações. A prática de
educadores fundada na humanização forma a sociedade mais humanizada.
Embora o humanismo de Freire enfatize a transformação das
consciências e não a prática de lutas dos explorados e oprimidos para
transformação da realidade apresenta grande convicção de que o banimento das
explorações e opressões somente é possível através de uma ação coletiva da
classe trabalhadora e dos oprimidos em geral.
Freire (2001) parte do pressuposto que a sociedade e a realidade como
estão postas é resultado da ação dos seres humanos. A estrutura social e política
não se modificam e nem se transformam sozinhas. Somente a práxis humana é
52
capaz de superar as contradições da sociedade de classes e das opressões, através
da construção de uma sociedade de sujeitos que se inserem criticamente e se
comprometem historicamente com a transformação da realidade, criando e recriando
conhecimentos.
A ideia de Freire (2001) representada na concepção de uma educação
libertadora é a construção de uma sociedade livre e autônoma em suas relações, na
qual os seres humanos estejam juntos, se formando. A educação libertadora está no
interior da sociedade opressora, em disputa com a educação bancária, de um lado,
e com as relações de opressão na sociedade, de outro. Os oprimidos que têm
interesses comuns constroem através de suas práticas sociais e educativas as
possibilidades da sociedade futura, ao lutar contra a alienação que se espalha pela
vida social.
Em Pedagogia do Oprimido o conceito de alienação transita entre o
universo material e espiritual, expressando a tensão entre uma concepção
materialista e fenomenológica, entre marxismo e idealismo cristão. Freire (2001)
incorpora esta tensão apresentando-o situado entre os conceitos de sociedade e de
educação. Daí a minha opção de apresentá-lo neste trabalho posterior a discussão
de sociedade e anterior a reflexão sobre educação.
Para Marx (1964), os processos de alienação da classe trabalhadora se
materializam no processo de trabalho. No modo de produção capitalista, baseado na
produção de mercadoria, o trabalhador é expropriado dos instrumentos de produção,
dos conhecimentos adquiridos no processo de trabalho e do próprio produto que
produz obrigando-se a vender sua força de trabalho, igualmente a uma mercadoria.
Desta forma, a força de trabalho torna-se alheia ao trabalhador, deixando de ser
uma atividade livre que realiza sua existência.
A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto [assumindo] uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição com ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica (MARX, 1964, p. 160).
A alienação se concretiza na divisão social do trabalho produtivo,
materializada na separação efetiva entre os que gerenciam o trabalho e os que
executam o trabalho. O trabalhador empenhado em garantir suas necessidades
53
mais vitais: comer, vestir, beber e entre outas. Ele se vê obrigado a negar-se numa
atividade na qual não mais se reconhece. O trabalhador se vê impedido de dialogar
com relações de trabalho que lhe propicie conhecimento e identidade no processo
produtivo. Esta condição lhe propiciará novas contradições que lhe ensejarão novo
papel histórico.
A partir das referências de Marx (1964) o processo da alienação do valor
do seu trabalho no modo de produção capitalista se concretiza na medida em que o
trabalhador não toma para si o valor do objeto de trabalho que ele produz. Esse
valor é expropriado por aqueles que têm os meios de produção, adquirindo para si
mesmos os valores reais e concretos daquilo que o trabalhador produziu com sua
força de trabalho. O modo de produção capitalista constrói uma nova subjetividade
para o ser humano que vive do trabalho, tornando-o uma peça produtiva no
processo acumulativo de riquezas, que não se reconhece como produtor da riqueza
que produz.
Entretanto, esta realidade sendo uma construção histórica, cabe aos
sujeitos sociais à resolução das contradições inerentes a esta sociedade, mediante
união e organização da classe trabalhadora como um todo (MARX, 1983). As elites
sempre vão usar de estratégias para dividir a classe trabalhadora e impedir sua
organização e inserção transformadora na realidade. Elas utilizam de todos os meios
escusos, pois o que importa é a própria manutenção e conservação de seu poder.
Após, materializada no processo produtivo, a alienação se efetiva na
submissão à estrutura econômica, política e jurídica, e à subjugação do trabalhador
às condições de trabalho e a negação de direitos. A alienação também se concretiza
na ideologia veiculada pelas instituições para forjar o conformismo das pessoas
frente à ordem social injusta.
Enquanto Marx compreende a alienação material vinculada diretamente
ao processo de produção de mercadorias na sociedade capitalista, a alienação em
Freire (2001) tem uma perspectiva mais geral, e relaciona-se diretamente ao
processo de dominação ideológica e ao processo construído na consciência dos
oprimidos. Os oprimidos são alienados ao serem enganados por falácias políticas,
sociais e econômicas que as elites dominantes impregnam na realidade através dos
discursos que impossibilitam o desvendamento do real e ou promovem ilusões,
como pleno emprego e ascensão social (FREIRE, 2001). Então, a alienação, apesar
de ser objetiva no sistema capitalista, é também um conjunto de práticas das classes
54
dominantes para se perpetuarem no poder, através da construção de um senso
comum e manipulação das massas.
Como resultado deste processo, o Estado e as instituições que o
compõem se organizam para garantir a reprodução do capital e a reprodução social.
As classes dominantes podem e induzem sutilmente as massas populares a
conformarem-se aos seus objetivos de perpetuação no poder. Elas valem-se de
diversas estratégias, algumas até aparentam interesse por simbolizar algum diálogo,
mas na verdade, o que querem é a manutenção do sistema e do modo de produção
capitalista. Freire alerta: “E quanto mais imaturas, politicamente, estejam elas (rurais
ou urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites dominadoras
que não querem que se esgote seu poder” (FREIRE, P., 2001, p. 145).
A luta contra a alienação deve resultar na extinção do trabalho alienado, e
instauração de uma sociedade sem exploração, resultando na concretização da
humanidade de todos os sujeitos. A própria luta já é um processo de humanização,
de desalienação, pois nela os sujeitos oprimidos forjam-se como sujeitos históricos.
Conforme analisa Freire:
A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível por que a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores, e esta, o ser menos (FREIRE, P., 2001, p. 174).
O comprometimento histórico só ocorre mediante uma práxis política e
revolucionária que corrobore no processo de libertação social. Tarefa nada fácil, pois
as amarras ideológicas da alienação necessitam ser rompidas. O processo de
construção de uma consciência coletiva emancipatória é longo e está
intrinsicamente ligado a formação da consciência dos oprimidos e explorados.
Somente a formação desta consciência leva os trabalhadores a romper as
amarras ideológicas da alienação do trabalho. Para que isso ocorra é necessária
uma educação presente e crítica nos locais de trabalho e onde houver relações de
opressão, realizada pelos próprios oprimidos ou sujeitos que com eles se aliam.
Obviamente, que não há linearidade nesse processo. A consciência dos
sujeitos constrói-se conforme o movimento da realidade. Conforme destaca Freire,
55
ao analisar a tipificação da consciência em ingênua, crítica transitiva e intransitiva,
ela (a consciência) não é estática.
É importante, salientar que para Freire, a libertação dos oprimidos é a
libertação do ‘SER’, sobretudo, do seu pensar ingênuo, sendo obra deles próprios.
Esta libertação decorre de prática político-educativa autônoma reflexiva e coletiva
produzida pelos sujeitos históricos, os novos e os clássicos (HOUTART, 2007).
É importante a união da classe trabalhadora e a percepção de que outros
sujeitos coletivos com demandas específicas como os negros, indígenas, mulheres,
gays, juventude, camponeses são imprescindíveis na superação dos processos de
alienação na produção e na superestrutura social, com vista, a construção de uma
emancipação humana. Freire avalia que os sujeitos sociais devem abandonar a
consciência individualista, mágica, e, partir para uma visão dialética da realidade.
A união dos oprimidos é um quefazer que se dá no domínio do humano e não no das coisas. Verifica-se, por isto mesmo, na realidade, que só estará sendo autenticamente compreendida quando captada na dialeticidade entre a infra e superestrutura. Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, através do qual se encontrava ligados ao mundo da opressão (FREIRE, 1983, p. 206).
Os oprimidos quando se libertam trazem para si pensamentos e ações de
intervenção na realidade. A prática e o conhecimento político de suas ações é fruto
de um processo de formação, ocorrido nas lutas sociais nas quais estão engajados.
Para Paulo Freire (1983, p. 50) “Os oprimidos, como objetos, como quase
coisas, não tem finalidades. As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os
opressores”. Na realidade opressora, os homens são considerados como objetos,
destituídos de propósitos. Na sociedade capitalista, os opressores é quem
determinam o que os oprimidos são e quais suas finalidades. Eles também definem
os instrumentos e os moldes da manipulação ideológica.
O indivíduo só se efetiva, nas suas relações com o mundo e as pessoas,
quando ele é Ser para si, reconhecendo sua subjetividade e sua condição de
produtor da riqueza. Isso só é possível quando se reconhece como ser individual e
coletivo capaz de realizar transformações da realidade.
Freire vislumbra uma consciência crítica que propicie a clareza acerca da
alienação do trabalho, esboçando a condição de que a pessoa humana não pode
ser vendida. Ele analisa:
56
Ter a consciência crítica de que é preciso ser o proprietário de seu trabalho e de que este constitui uma parte da pessoa humana e que a pessoa humana não pode ser vendida e não vender-se é dar um passo mais além das soluções paliativas e enganosas. É inscrever-se numa ação de verdadeira transformação da realidade para, humanizando-a, humanizar os homens (FREIRE, P., 2001, p.183).
A alienação deve ser combatida em todas as esferas da sociedade. É
preciso disputar as consciências dos sujeitos, e iniciar o confronto através das
tensões sociais políticas e econômicas, decorrentes da realidade existente. A
superação da alienação é obra, tanto das classes trabalhadoras, quanto dos novos
sujeitos sociais (HOUTART, 2007). Corroboro com as ideias de Arroyo (2013), no
que se refere à importância do combate a alienação das consciências e respeito à
diversidade e identidade dos sujeitos para assim promover uma educação que
propicie uma formação crítica dos indivíduos, rumo a sua própria emancipação,
humana e social.
As relações entre educação e alienação se condensam em uma disputa
ideológica e política de dois projetos de sociedade antagônicos. Um a favor de uma
sociedade livre e radicalmente democrática e outro a favor da reprodução da
sociedade capitalista. Na sociedade da alienação, há uma constante tensão dos
oprimidos e explorados por sua humanização, frustrada pela desumanização
inerente a sociedade alienada.
Na perspectiva de Freire (2001), a humanização está na capacidade dos
sujeitos de se produzirem reflexivos e históricos, na prática de transformação na
realidade. Desta forma, a luta por uma sociedade mais humana é a mesma luta
contra a alienação da classe trabalhadora e dos oprimidos em geral.
A busca pela libertação dos oprimidos, só tem sentido quando ela se volta
para a humanização do indivíduo. Homens e mulheres como sujeitos de sua prática
educativa e de sua própria autonomia, livres para dialogar sobre o mundo e
transformá-lo, buscam incessantemente as possibilidades de ser mais: “Este
movimento de busca, porém, só se justifica na medida em que se dirige ao Ser Mais,
à humanização dos homens” (FREIRE, P., 1983, p. 85).
Se a práxis humana é condicionada para a libertação, para a construção
histórica de uma sociabilidade sem opressões. Ela é fruto do aprimoramento da
57
consciência humana sobre a realidade, de um pensar crítico e reflexivo,
comprometido com o ser mais para toda sociedade. Como lembra Paulo Freire
(1983, p. 58), a libertação dos oprimidos é libertação de homens não de “coisas”.
Por isto, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho, também não é
libertação individual, é essencialmente coletiva. É, pois necessário criar novas
possibilidades educativas para as classes trabalhadoras e movimentos sociais
diversos, porque a essência da educação está para além da escola, em todos os
espaços permeados por práticas sociais. A partir da apreensão da realidade e
tomada de consciência, os oprimidos se engajam em um processo de auto
formação, num diálogo de troca de experiências com lideranças dos movimentos
sociais e sindicais, efetivamente revolucionárias.
Os sujeitos se educam em suas experiências formativas, auto formativas
e auto organizativas. Os processos de luta educam a consciência dos sujeitos, tanto
os que se caracterizam como massa, como os que se caracterizam como liderança
desta. Conforme destaca Freire:
Porque assim é, a educação a ser praticada pela liderança revolucionária se faz co-intencionalidade. Educador e educando liderança e massas, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento (FREIRE, P., 1983, p.61).
A formação crítica e emancipatória dos indivíduos não é um processo
linear. Arroyo (2013) enfatiza que a formação do indivíduo depende de uma série de
tensões sociais, políticas e econômicas que ele enfrenta na sociedade.
Torres (2014) mostra que a perspectiva integral do pensamento freireano
sobre a educação está para além dos muros da escola. Esta representa uma
vivência importante que pode contribuir na formação integral do aluno para uma
perspectiva crítica e emancipatória. Cada educador(a) deve reconhecer que sozinho
não pode mudar a consciência dos educandos e nem a própria escola em si. É
importante entender também, que cada educando é resultado de diversas
experiências, na família, no trabalho e nos espaços que ele ocupa.
Freire (2001) acredita que uma das ferramentas para o desenvolvimento
da sociedade é a educação. Entretanto, não é qualquer educação. Sua concepção
de educação se põe a serviço da libertação dos oprimidos, do aprimoramento de
58
suas consciências e do seu engajamento e comprometimento com a transformação
da realidade.
A educação para a consciência das massas, segundo Freire, deve ser
trabalhada em uma perspectiva essencialmente coletiva. As lideranças sindicais,
comunitárias e populares, se pretendem ser efetivamente revolucionárias, não
devem impor, nem se colocar como superiores às massas. Lideranças e massas,
educadores e educandos, se imbuídos de um mesmo projeto de sociabilidade,
conforme se apregoa nos discursos, devem se sentir como sujeitos iguais, capazes
de se auto libertarem coletivamente. A partir da solidariedade compartilhada, juntos
como sujeitos que recriam o conhecimento, assumem para si mesmos a
responsabilidade de transformar a realidade, na qual estão inseridos. Conforme
reflete o autor:
Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permamentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação é o que deve ser: engajamento (FREIRE, P., 1983, p. 61).
Ao se tornarem cientes, da libertação individual e coletiva, compreendem
que o processo de transformação da realidade é permanente, assim como é também
inconcluso o processo de formação do ser. Sujeitos baseados na prática dialética
entendem que a cada dia aprende-se mais nas lutas sociais, nas relações sociais e
no diálogo com o saber formal e não formal. Freire nos mostra que a inserção nas
lutas, mediante o engajamento, propicia a constituição de um novo ser, cuja
consciência se abre para desvelamento do mundo, encontrando o sentido e o
significado para as suas ações. Quando movidos pelo sentimento de solidariedade
os indivíduos passam a perceber a realidade de uma maneira mais complexa, e se
comprometem com sua transformação.
A formação desta consciência potencializa a prática, com ampliação das
possibilidades e estratégias do engajamento. Para Freire, os que vivem a teoria
abstratamente, distante da prática comprometida, sucumbem aos utopismos e a
ausência de esperança concreta necessária a disputa na luta de classes. Freire
identifica dois momentos da pedagogia do oprimido na formação da consciência,
correspondentes às tarefas em duas sociedades estruturalmente diferentes. Sobre
isto analisa o autor:
59
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da transformação revolucionária (FREIRE, P., 1983, p. 44).
São dois momentos da pedagogia libertadora dos oprimidos destacados
por Freire: o primeiro ocorre na sociedade presente, capitalista, que opressora,
injusta e desigual, impõe aos sujeitos oprimidos e explorados a necessária prática
de resistência, de luta por sua transformação; o segundo, já noutra sociedade,
igualitária e livre, os sujeitos devem manter a luta contra as opressões históricas e
estruturais que não cessam somente com a transformação estrutural da sociedade,
como é o caso do machismo, racismo, homofobia e entre outras. Portanto, percebe-
se que no primeiro momento, o foco está no desvelamento, apreensão e percepção
dos oprimidos sobre sua própria condição de opressão. Os oprimidos transitam da
percepção à práxis diária sobre o mundo. No segundo momento, os oprimidos
começam a expulsar todas as ideias e concepções que serviram de base para sua
própria manipulação ideológica e política. Os sujeitos sociais passam de uma
consciência ingênua a uma dimensão crítica da realidade, através de práticas
revolucionárias contra as opressões diversas.
3.2 A EDUCAÇÃO BANCÁRIA E EDUCAÇÃO LIBERTADORA: PROJETOS EM
DISPUTA
A maneira como se pensa e se faz educação interfere direta e
indiretamente na ação dos indivíduos em sociedade. Freire parte do entendimento
de que a educação do ser humano acontece em todos os espaços da vida social e
se manifesta diferentemente em diferentes momentos históricos, podendo se
orientar para sua libertação ou para a manutenção de sua condição de oprimido. A
prática educativa é profundamente relacionada ao contexto político, econômico e
social de dada sociedade.
No que tange a perspectiva freireana de educação em Pedagogia do
Oprimido, Torres (2014) a compreende intrinsecamente ao contexto político e a
60
forma como o poder era exercido no âmbito do estado e da sociedade. Nesta obra,
Freire já manifestava seu entendimento desta relação, na constatação de que
somente pela educação a sociedade não muda, mais sem ela não tem como ocorrer
mudanças. A mudança na sociedade só é possível através de ações revolucionárias,
sendo a educação importante e necessário elemento na constituição da consciência
social de classe e constituição de outro poder. Segundo as ideias do autor:
Embora a educação dependa do político ela pode ser instrumento limitado para questionar esse poder. Não é uma alavanca para a transformação da realidade, mas é um espaço onde também se trava a luta pelo poder. Freire, apesar de cético quanto as possibilidades de uma educação libertadora antes de realizada a transformação revolucionária da sociedade, não despreza os esforços que se podem realizar neste sentido. Os conteúdos antropológicos e políticos unificam-se, portanto, no método. Por isso, a conscientização não é entendida por Freire como um processo de consciência psicológica individual, mas, ao contrário, é um processo de consciência social que culmina na consciência de classe (TORRES, 2014, p. 212).
Em Pedagogia do Oprimido, Freire compreende a educação como
instrumento para o processo de formação da consciência. A inserção histórica dos
indivíduos nas lutas sociais, através de práticas educativas (formais e não formais) e
políticas, contribuem para o processo de pertencimento e reconhecimento de classe.
A construção de uma educação que liberta se depara com uma educação
encastrada no sistema educacional, cuja finalidade é formar indivíduos adaptados a
ordem social vigente, através da transmissão de conteúdos aos alunos, análoga ao
depósito bancário. Daí, Freire denominá-la de educação bancária.
Arroyo (2013) alerta que a educação formal, bem representada na
educação bancária, deve considerar o tempo e experiência de vida dos indivíduos
para que eles possam apreender, respeitando-se o processo de cada um, no tempo
adequado e considerando as vivências sociais. Educadores vivenciam tensões
sociais, políticas e ideológicas provocadas pela lógica do sistema educacional.
O sistema escolar não tem direito a tentar interromper tempos humanos em nome de não ter dominado aprendizagens básicas para o prosseguimento dos estudos escolares. Aos percursos escolares cabe o dever de respeitar os tempos humanos de formação, sem violentá-los com retenções. Ai está uma das tensões mais complexas (ARROYO, 2013, p. 320).
61
O sistema formal de educação rege-se por uma lógica formativa e
disciplinar sem tempo para valorizar as experiências cotidianas. As aprovações ou
reprovações estão relacionadas ao modelo formativo de indivíduo que se enquadre
na expectativa da lógica de mercado dos educandos.
Acho que uma das grandes dificuldades que um professor que tenha uma perspectiva democrática pode ter é que ele ou ela podem encontrar-se sozinhos. É importante lembrar que não é capaz de apoiar os alunos e as alunas na reconstrução da posição deles no mundo. É sala apenas um momento da experiência social e individual total do aluno. O aluno acorda, tem sua primeira interação com seus pais. A socialização que ele ou ela recebe cotidianamente pode representar uma negação do entendimento humanístico da vida (FREIRE, P., 2001, p. 75).
Freire (2001) destaca que o professor que tem uma perspectiva
democrática pode enfrentar muitos problemas no sistema formal de ensino, dentre
os principais está a solidão, promovida pelo envolvimento integral com um currículo
escolar pautado em conhecimentos que passam ao largo dos problemas de seus
alunos. A escola nesta perspectiva formal da educação bancária não consegue
apoiar os educandos nas suas dúvidas e inquietações, frente a um contexto de
negação de sua humanidade.
A educação formal, segundo a perspectiva freireana, tem caráter
essencialmente narrativo, sobre a égide do narrador (educador) e o receptor
(educando) (Freire, 2001). Através de uma relação dissertativa, na qual a vida e o
debate se perdem, e a crítica é abolida da sala de aula, produz-se a manipulação da
consciência dos educandos.
É uma educação fundada na transmissão e na recepção, pautada na
transmissão de ideologias e conhecimentos acumulados e selecionados que
reproduz os interesses das classes dominantes, ajudando-as a se manterem no
poder político-econômico. O educador bancário concebe o ensino como transmissão
de conteúdo a ser absorvido e memorizado.
Atenta ao tipo de ser humano necessário à manutenção do status quo, à
educação formal que se estabelece é caracteristicamente bancária, ou seja,
conhecimentos movimentados numa só direção, do professor (e do livro) para o
aluno. Afinal, o pensar autônomo do indivíduo é considerado perigoso. Freire
anuncia:
62
A questão está em que, pensar autenticamente, é perigoso. O estranho humanismo desta concepção bancária se reduz à tentativa de fazer dos homens o seu contrário – o autômato, que é a negação da sua ontológica vocação do Ser Mais (FREIRE, P., 2001, p. 70).
A concepção bancária de educação corrobora para o processo de
desumanização do ser humano, negando sua essência humanizadora de “Ser” mais
nas relações sociais e na comunicação sobre o mundo. Ela forma um ser autômato
que acrítico à realidade funciona como um aparelho reprodutor de movimentos
controlados por meios eletrônicos.
Nesta perspectiva de educação ratifica-se a opressão galgada na
superioridade de um saber sobre outros, e, por conseguinte na arrogância de ideias,
as quais culminam no exercício de práticas políticas e educativas fundadas na
intolerância, conforme destaca as palavras do autor:
[...] o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro (FREIRE, P., 1983, p. 67).
Fundada numa concepção eurocêntrica de humanidade, a educação
bancária se constitui o ato de depositar (FREIRE, 1983), transmitir valores e
conhecimentos acumulados pela humanidade, cujo berço civilizacional é a Europa.
Entretanto, reafirmo o pensamento social latino-americano em contraposição a
hegemonia desta visão colonial/eurocêntrica. Como destaca o autor:
No pensamento social latino-americano, seja do interior do continente ou de fora dele – e sem chegar a constituir um corpo coerente – produziu-se uma ampla gama de buscas, de formas alternativas do conhecer, questionando-se o caráter colonial/eurocêntrico dos saberes sociais sobre o continente, o regime de separação que lhes servem de fundamentos e a ideia mesma da modernidade como modelo civilizatório (LANDER, 2005, p. 15).
Sem uma perspectiva crítica desses “conhecimentos”, a prática desta
educação mitifica-os, considerando válidos somente os que são transmitidos pelo
professor, ao passo que se desvaloriza os inerentes à vida dos educandos e dos
próprios professores. Desta forma, perdura a contradição entre educador e
educando, posto que hierarquicamente desiguais, inviabiliza-se a prática do diálogo.
Conforme destaca Paulo Freire:
63
[...] a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a educação bancária mantém e estimula a contradição (FREIRE, 1983, P., p. 67).
O educador é apresentado como um sujeito superior ao educando, ao
qual cabe a absorção dos conhecimentos veiculados por aquele. O educando é
concebido como ser da adaptação que passivo às contradições da sociedade deve
se ajustar a posição dominante. A partir da retenção de conteúdos previamente
programados, cabe ao educando não questionar a realidade, e, por conseguinte,
não se comprometer com sua contestação. Conforme as ideias a seguir:
Não é de estranhar, pois, que nesta visão bancária da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele (FREIRE, P., 1983, p. 68).
Ao arquivar conhecimentos depositados pelos educadores necessários a
sua formação, os educandos se distanciam de uma perspectiva crítica e reflexiva.
Os conteúdos “são retalhos da realidade desconectada da totalidade em que se
engendram” (FREIRE, P., 1983, p. 65) estáticos, sem perspectiva de transformação
social.
A educação bancária trabalha para manter a realidade da forma como se
encontra. Ela não propicia um ambiente de crítica e denúncia da realidade social,
sendo inerente a sua filosofia, o engessamento da consciência da classe
trabalhadora.
A Ciência pode ser considerada como conquista histórica da humanidade
e também resultado do pensar e agir humano e deve está a serviço do povo (PIZZI,
2010). A prática da educação dos opressores não considera os saberes dos
educandos como fonte para a discussão curricular dos conteúdos. O conhecimento
científico não é superior ao saber popular, pois ambos se caracterizam não pela
hierarquia, mas pela diferença.
O educador que trabalha na perspectiva bancária colabora para a
preservação da relação de contradição entre conhecimento científico e popular.
64
Quando se fortalece uma educação domesticadora, também se trabalha para a
formação de seres silenciados que se adaptam à realidade, sem compromisso de
mudá-la. Sobre isto enfatiza:
No momento em que o educador bancário vivesse a superação da contradição já não seria bancário. Já não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já não prescreveria saber com os educandos, enquanto estes soubessem com ele, seria sua tarefa. Já não estaria a serviço da desumanização. A serviço da opressão, mas a serviço da libertação (FREIRE, P., 1983, p. 71).
Numa concepção bancária, educador e educando são determinados por
uma educação, que por sua vez é determinada pelo sistema econômico e relações
sociais predominantes. Escolas e práticas educativas reproduzem a educação
dominante. Freire é implacável quando se refere ao programa de conteúdos e a
prática educativa bancária. Sobre isto reflete:
Para o educador bancário, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa (FREIRE, P., 1983, p. 98).
Na prática bancária, o professor referencia-se no conteúdo a ser
transmitido em sala de aula, a partir do que se convencionou ser o significado de
escola. Os elementos sociais, políticos e culturais vinculados ao mundo do
educando não informam ao educador a sua missão de ministrar o que já está
prescrito. As possibilidades das dúvidas dos educandos se limitam aos conteúdos
programados. Há uma desresponsabilização do educador em trabalhar os
conteúdos criticamente. Os professores se limitam a repassar o conteúdo e cumprir
um currículo pré-estabelecido.
Desta forma, sem realizar e tampouco aprofundar reflexões, a prática
bancária colabora para a alienação dos indivíduos. A alienação tem sua base em
uma visão reducionista da realidade, na qual os sujeitos não conseguem perceber e
entender o que há por trás dos fenômenos determinantes da sociedade. Desta
forma, o indivíduo não se reconhece enquanto ser histórico e crítico capaz de intervir
na transformação da realidade. A formação destes professores é precária, e precisa
ser refeita para que contemple as necessidades da formação integral dos alunos.
65
Se por um lado, a prática da educação bancária impõe uma percepção
fatalista da própria situação do homem, por outro a prática problematizadora
enxerga o homem como um ser capaz de superar as contradições sociais e
transformar sua própria realidade, mediante leitura crítica do mundo. O homem se
percebe como ser para si no mundo, capaz de transformar a realidade, mediante
nova postura política e ideológica, capaz de superar a consciência mágica ou
ingênua, através de uma leitura crítica do mundo. Ai se dá o inicio do processo de
conscientização. Segundo as ideias a seguir:
Enquanto a prática bancária, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta ou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens sua situação como problema. Propõe a eles sua situação como incidência de seu ato cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou ingênua que dela tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetiva-la. Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se apropriam dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles (FREIRE, P., 1983, p. 85).
A educação bancária está ligada intrinsecamente a perspectiva de uma
sociedade determinista em que os indivíduos não questionam a ordem das coisas.
Entretanto, essa perspectiva ingênua pode ser substituída por uma educação
libertadora, instigante e capaz de colaborar na formação da consciência crítica dos
sujeitos. Uma educação a serviço da classe trabalhadora e de suas pautas de luta,
em que se questione o cotidiano dos oprimidos, ou seja, uma educação para a
formação de uma consciência política acerca da realidade.
A conquista de uma sociedade e de uma educação vinculada aos
oprimidos decorre das contradições que elas encerram entre oprimidos e
opressores, explorados e exploradores. A construção de uma educação para os
oprimidos da sociedade de classes se dá a partir de uma relação horizontal
educador-educando voltada à libertação, à emancipação social, portanto uma
educação construída com os próprios oprimidos e não destinada a eles. Como
reflete Scocuglia:
Ao tratar da relação entre educador e o educando, de maneira semelhante à relação entre as lideranças e as camadas oprimidas, propõe uma pedagogia com o oprimido (subalterno) e não para o oprimido, o que significaria sobre
66
ele. Na mesma trilha, indica a opressão e suas causas como mediação reflexiva dos oprimidos em busca do engajamento na luta libertadora. Esse movimento metodológico desencadearia a consciência crítica e a participação político-organizativa contra a opressão (SCOCUGLIA, 2005, p. 27).
Na perspectiva freireana, a educação é instrumento de comprometimento
com os oprimidos na luta, no engajamento e na auto organização contra a opressão
capitalista. Desta forma, o educando, como sujeito de costumes, crenças e culturas,
não pode ser considerado como um recipiente vazio a ser preenchido de conteúdos
sistematizados e selecionados. Ele, de fato, é um sujeito repleto de possibilidades
conscientes e libertadoras. Segundo o autor:
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo encha de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como corpos conscientes e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo (FREIRE, P., 1983, p. 77).
A educação antítese da perspectiva bancária compreende o ser humano
nas suas possibilidades, reconhecendo experiências e conhecimentos de homens e
mulheres para além dos muros da escola. A educação libertadora ao valorizar a vida
dos educandos põe para si mesma o desafio de problematizá-la para que se forje
uma consciência ampla, compatível com um novo mundo e novas relações sociais.
A perspectiva anunciada não compartilha da prática educativa, a qual concebe a
consciência de forma compartimentada, antidialogal.
A educação para libertação do homem, antes de tudo, acredita na própria
capacidade que o homem tem de se libertar, de construir novas relações sociais
para si e para o mundo ao seu redor. A partir do ser humano livre é possível, pensar
uma nova sociedade, baseada nos princípios de justiça e de igualdade social. Sobre
isso analisa Freire:
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas. A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo
67
ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade (FREIRE, P., 1983, p. 38-39).
Na concepção de uma realidade concreta há de se considerar suas
dimensões objetiva e subjetiva. A dimensão objetiva representa a estrutura da
sociedade e suas complexas relações sociais. A dimensão subjetiva indica a
potencialidade dos sujeitos às reflexões, as ideias, a produção espiritual e cultural, e,
as ações decorrentes de uma posição consciente do real. Essas dimensões são
interdependentes, caminham juntas num processo dialético de formação da
consciência. Portanto, para superar a relação de contradição entre realidade objetiva
e realidade subjetiva da consciência, a perspectiva de educação conscientizadora e
libertadora em Freire é um instrumento poderoso no desvelamento e transformação
da realidade.
Scocuglia (2005) enfatiza que a educação conscientizadora em Freire em
sua essência é dialógica, sendo a única alternativa de formação que liberta os
indivíduos da opressão. É através dela que o povo resiste a condição de massa de
manobra para a manutenção da sociedade capitalista. Essa é a perspectiva
defendida por Scocuglia:
Para essa conquista, Freire defende o diálogo como veículo pedagógico principal da educação conscientizadora que busca a liberdade como alternativa de construção da pessoa, contra a massificação e alienação e contra a introjeção da sombra opressiva (SCOCUGLIA, 2005, p. 25).
Nesta perspectiva, o oprimido é uma categoria política que denota
resistência a uma ordem injusta e desigual, e, que orienta para uma ação
revolucionária identificada com classes e grupos sociais oprimidos. Entretanto nesta
construção há muitas dificuldades a serem superadas, como a concretização de
discurso e, práticas coerentes e revolucionárias. A ação política está além do
discurso, é efetivação da práxis com a inserção crítica e engajamento na realidade.
Os oprimidos só poderão se libertar quando organizados a partir do diálogo entre
iguais e práxis transformadora. Segundo o autor:
Neste sentido, foca o oprimido como categoria política numa prática educativa que prioriza suas necessidades e interesses de classe e nela tenta construir a sua pedagogia no próprio processo de resistência à opressão donde decorrem suas dificuldades de concretizar sua libertação. Torna-se relevante perceber a mudança no discurso de liberdade para
68
libertação, não é só semântica, mas, sim, política (SCOCUGLIA, 2005, p. 26).
A práxis e politização do oprimido é um passo importante para a
concretização de sua vocação ontológica. O homem torna-se um ser que transforma
a sua realidade a partir de um processo de reflexão e ação na realidade. Este
processo culminará na sua humanização, como destaca Freire:
É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a educação bancária pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação (FREIRE, P., 1983, p. 70).
Há uma crença grande de Freire que o caminho natural do ser humano é
o aprofundamento de sua humanização e que ela só se concretiza na luta pela
libertação de todos os homens, principalmente dos que são vítimas do sistema de
dominação. Neste processo, eles se deparam frente à constatação que a
contradição entre ser menos e ser mais está em constante tensão. Concretamente,
os oprimidos nunca irão superar essa contradição por meio de uma educação
domesticadora. É preciso o engajamento consciente para romper com essa
educação desumanizante que está a serviço da manutenção do sistema capitalista.
Como enuncia o autor:
Sua ação, identificando-se, desde logo, com as dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador (FREIRE, P., 1983, p. 71).
A educação libertadora está fundada numa visão positiva sobre as
possibilidades humanas de refletir, criticar, praticar e transformar o real. A educação
libertadora manifesta profunda confiança na concretização do processo de
humanização, acreditando na capacidade e potencialidade de autonomia dos
indivíduos, frente às estruturas sócio econômicas.
Em Pedagogia do Oprimido, o educador pernambucano demonstra a
interligação entre práticas pedagógicas específicas e projetos de sociedade: “A
educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da
contradição educador-educandos” (FREIRE, P., 1983, p. 78). Ele enfatiza que
69
qualquer projeto de sociedade libertária deve antes de qualquer outra coisa
desanuviar das contradições basilares da relação professor-alunos, nos moldes da
educação tradicional.
De forma implícita ou explícita, a educação libertadora considera que
deve haver uma nova relação entre professor e aluno, na qual ambos baseiem-se
nos princípios da troca de experiência, da coletividade, de um debate das ideias e da
criação e recriação de novos conhecimentos e novos saberes. Por isso que a
educação libertadora não se coaduna com posturas autoritárias próprias de um
estado de exceção, que reproduz autoritarismos, intimidações e repressões. A
autonomia de pensamento é condição para a articulação/formação de sujeitos livres.
A educação libertadora forma sujeitos críticos, que dialéticos e também históricos
não temem contribuir com a complexidade do real e enfrentá-lo na busca de sua
transformação. Conforme a seguir:
O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autentica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (FREIRE, P., 1983, p. 77).
Ao analisar o pensamento de Freire, Scocuglia (2005) ressalta a
radicalidade democrática que o acompanha. O processo de humanização é
incompatível com uma sociedade que explora e domina seres humanos. O processo
de humanização é o mesmo da libertação e se relaciona com o amadurecimento da
formação voltada para a emancipação dos oprimidos. Sobre isto reflete o autor:
A radicalidade democrática foi sempre uma das suas posições mais firmes e permanentes. Assim, se nos seus escritos a humanização não se fará sem a destruição da sociedade de exploração e da dominação humana, o itinerário da consecução de tal possibilidade será sempre democrático (SCOCUGLIA, 2005, p. 34).
A prática democrática e horizontal das relações sociais é condição para o
alcance de uma sociedade que efetivamente propicie o fim da exploração e
dominação humana. Por outro lado, essa possibilidade só se concretiza se os
sujeitos que a constrói tiverem na sua formação os princípios da autonomia e da
liberdade. A libertação dos oprimidos é obra dos próprios oprimidos e sua
70
concretização está alinhada à perspectiva do humanismo e da formação humana
para a emancipação.
. A concepção bancária e libertadora de educação localizam-se em lados
diametralmente opostos, uma na “ênfase a permanência” e outra “[no reforço] a
mudança” (FREIRE, P., 1983, p. 84). A educação bancária coloca a consciência em
uma dimensão passiva, incapaz de refletir criticamente, servindo apenas para a
manutenção da sociedade capitalista e depósitos de conteúdos transmitidos pelos
professores. Já a educação libertadora entende a importância da mudança, da
transformação e elevação da consciência humana e também da importância dos
sujeitos saírem do pensamento ingênuo para o crítico.
No que se refere à prática dialogal libertadora Freire enfatiza “o diálogo é
este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se
esgotando, portanto na relação eu-tu (FREIRE, P., 1983, p. 93)”. Para ele o dialogo
tem um aspecto que transcende a relação do falar entre os indivíduos, nele se
reflete sobre o mundo e a realidade como são, toma-se decisões para a intervenção
ou manutenção da ordem vigente. A partir da prática dialógica, podendo criar ou não
um novo mundo.
A educação libertadora questiona a ordem das coisas através do debate e
reflexão das ideias. Ela é um discurso inconformado que representa a
intencionalidade e a luta pela transformação do mundo. Trata-se de uma educação
incompatível com qualquer estrutura social opressora. Segundo Freire:
Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação não pode servir ao opressor. Nenhuma ordem opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”. Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pela sociedade que fez a revolução, isto não significa que a liderança revolucionária espera a chegada ao poder para aplicá-la. No processo revolucionário, a liderança não pode ser bancária, para depois deixar de sê-lo (FREIRE, P., 1983, p. 87).
A pedagogia da pergunta impulsiona o diálogo, e este serve somente aos
oprimidos, pois a ordem opressora não suporta uma pedagogia que questione a
ordem das coisas. Essa educação que compõe o processo de conscientização se
materializa antes e depois de uma ruptura revolucionária. As lideranças
revolucionárias devem estar atentas às contradições do seu discurso, pois a
71
educação bancária não se coaduna com a Pedagogia do Oprimido, seja durante as
lutas antissistema ou na consolidação da nova sociabilidade.
No enfrentamento ao pensamento ingênuo, Freire também combate o
pessimismo sociológico que imprime a inevitabilidade da reprodução da sociedade,
através da educação. A perspectiva freireana de educação é incansável na
construção de possibilidades discursivas e práticas na transformação das estruturas
desiguais da sociedade (GADOTTI, 2007).
Retomando que já foi dito anteriormente, para perspectiva freireana a
escola é um espaço importante de disputa na formação da consciência humana. Os
sujeitos ao dialogarem com o conhecimento científico sistematizado com sua
realidade vivida potencializam a escola como instrumento de construção de uma
sociedade livre e democrática.
A educação formal é poderoso instrumento de sistematização da
formação intelectual e acadêmica dos homens, todavia a potencialidade
revolucionária se desenvolve quando dialoga com as vivências sociais de
educandos e educadores. A proposta freireana reafirma a necessidade da
construção de um currículo que vá além dos conhecimentos estabelecidos pela
tradição escolar ocidental, mas que considere os elementos da realidade cotidiana
de todos os sujeitos envolvidos no processo educativo, sob a pena de reprodução de
uma educação livresca, também bancária. Não se pode fazer e pensar uma
educação que deixe de fora os elementos relacionados à identidade de educadores
e educandos (ARROYO, 2013).
As interlocuções teóricas e práticas entre educação e currículo são
indissociáveis de uma prática transformadora do professor em sala de aula, a partir
de ferramentas metodológicas que promovam a formação e consciência crítica dos
educandos.
No último capítulo, reflito sobre os processos de formação da consciência
dos sujeitos sociais e projetos de emancipação humana dos sujeitos sociais em
Pedagogia do Oprimido.
72
4 A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E EMANCIPAÇÃO HUMANA EM
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
No último capítulo, realizo uma reflexão crítica sobre as relações entre
educação e formação para a consciência emancipatória na obra em estudo.
Organizo este capítulo da seguinte forma: primeiramente, destaco as influências
filosóficas de Marx (1983) e Mounier (1972) no pensamento de Freire em Pedagogia
do Oprimido; num segundo momento, realizo reflexão sobre a educação dialógica
em Freire, e seu papel político no projeto de sociedade; em seguida destaco as
relações da educação e a formação da consciência dos sujeitos sociais; por fim
discuto a perspectiva de sociedade e emancipação humana em Pedagogia do
Oprimido.
4.1 INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS EM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
A obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, pode ser considerada
uma reafirmação da cultura latino-americana, tendo em vista que a academia tem
muito se voltado para as concepções pedagógicas desenvolvidas no continente
europeu. Neste sentido, tal obra é reflexão e a discussão acerca da realidade latino-
americana, não é uma cópia de realidades europeizadas. Conforme destaca a
autora:
A Pedagogia do Oprimido readquire singular importância se levarmos em conta que toda a nossa cultura – a cultura acadêmica – foi elaborada no centro. Nossos intelectuais sempre tiveram os olhos voltados para a Europa ou os Estados Unidos. Nossa literatura, em geral, não foi senão uma cópia da francesa. Nossa educação imitou a americana. Nossa filosofia repetiu constantemente os pensadores franceses, belgas, alemães (BARDARO, 2014, p. 231).
O saber e a experiência europeia são considerados superiores ao
pensamento acadêmico latino-americano. Para o autor “[...] há um tempo histórico
‘normal’ e universal, que é o europeu. A modernidade entendida como universal tem
como modelo ‘puro’ a experiência europeia” (LANDER, 2005, p. 15, grifo do autor).
Para o autor é necessário reafirmar o pensamento social acadêmico latino-
americano como alternativa em contraposição ao conhecimento eurocêntrico.
73
O impacto e o trauma de duas grandes guerras mundiais próximas uma
da outra levaram muitos intelectuais a questionarem a perspectiva filosófica
estruturalista, da qual fazia parte o positivismo visto como a ideologia e a ciência que
instrumentalizou a racionalidade do nazismo/fascismo e também o pensamento
hegemônico no interior do marxismo sob a liderança de Stalin que perseguiam os
socialistas democráticos e radicais.
As consequências disso são o grande reconhecimento e adesão ao
existencialismo, por reconhecerem nele uma forte preocupação com a subjetividade
dos indivíduos, negada pelos totalitarismos de direita e de esquerda. Paulo Freire é
um destes intelectuais que também receberá esta influência do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), influenciando os teóricos da educação a partir do
contexto do nacional desenvolvimentismo proeminente no Brasil na época e também
o contexto internacional que punha em cheque as perspectivas estruturalistas, como
por sua história de vida vinculada a igreja católica e engajamento social em defesa e
respeito pelos mais pobres.
O encontro de perspectivas diferentes nega os limites de cada uma delas
quando isoladas e brota um olhar atento sobre a complexidade do real e da
sociedade opressora e desigual. Elementos destas perspectivas de matrizes
diferentes interagem na compreensão do mundo objetivo e subjetivo e no papel dos
sujeitos sociais na sua transformação.
Paulo Freire (2001) sob a influência do existencialismo aprofunda essa
reflexão ao afirmar que a sociedade não é algo dado, mas resultado das relações
sociais e da ação humana, construídas historicamente. Sobre isto destaca a autora:
Um dos pontos em que o pensamento existencialista mais tem insistido é considerar o homem como “ser-no-mundo”. Pressupondo esta condição, Freire vai mais fundo ao afirmar que a realidade social objetiva, isto é, o mundo em que o homem vive, não existe por acaso, mas é um produto da ação humana. Essa realidade, ao fazer-se opressora – e Freire não duvida que esta seja a nota fundamental da realidade latino-americana – volta-se contra o homem e o condiciona: modifica o seu ser (BARDARO, 2014, p. 233).
O pensamento existencialista, no que pese a importância que atribui ao
ser humano na constituição da realidade e o sentimento de solidariedade ao
sofrimento dos que são oprimidos, não enxerga a realidade como produto histórico
74
de classes antagônicas em disputa8, apontando de uma forma ou de outra a
adaptação dos indivíduos à estrutura social. O existencialismo enxerga no ser
humano a possibilidade de avançar para seu aprimoramento pessoal e intelectual,
entretanto está sujeito às contradições da sociedade opressora, que o orienta ao
imobilismo.
O pensamento existencialista salienta o caráter dinâmico da existência, o homem não é, mas vai sendo, vai conquistando seu ser. Quer dizer, a filosofia existencialista admite um processo de vir a ser em relação a vida humana. Mas esse processo não é extensivo ao mundo nem á humanidade em seu conjunto. Dá-se no contexto, de um mundo estático e de uma humanidade que, em vez de avançar pra sua [plenitude] parece [continuar] nas mesmas eternas contradições a que está sujeita desde suas origens. Isto limita a atitude do homem frente ao mundo à mera contemplação. (BARDARO, 2014, p.34)
A realidade historicamente opressora volta-se contra o ser humano,
modificando seu ser, negando-lhe a sua humanidade, sua capacidade de reflexão
sobre o mundo que o rodeia. Ela manipula a consciência dos homens, tornando-os
passivos, restritos à contemplação da realidade e não sujeitos de práxis
transformadora.
O existencialismo (cristão) seduz Freire, sobretudo, porque ele se
identifica com a sensibilidade social que esta perspectiva filosófica aponta. Contudo,
os limites da constatação e da compreensão o incomodam na Pedagogia do
Oprimido, levando-o a uma contraposição ao existencialismo. Conforme analisa a
autora:
Surge aqui ponto fundamental do Pensamento de Paulo Freire: a superação do dualismo ação-contemplação que, desde a metafísica grega, impregna o pensar ocidental, mantendo-se vigente na Filosofia Existencialista. Em Freire, ao contrário, a ação e a reflexão, o agir e o saber encontram-se indissoluvelmente unidos no quefazer humano (BARDARO, 2014, p. 237).
Paulo Freire (2001) apoia-se no existencialismo cristão partindo da ideia
da superação da dualidade ação-contemplação. Sob a influência de Mounier, suas
ideias repercutem sob o viés do espírito comunitário e solidariedade humana,
culminando em uma influência direta no seu pensamento acerca da prática
educativa em Pedagogia do Oprimido.
8 O termo faz referência à história da luta de classes.
75
Mounier faz uma crítica à sociedade dividida em classes e traz à tona um
sentindo mais coletivo, comunitário e em oposição ao materialismo consumista
hegemônico no capitalista. Ele defende um personalismo baseado no espírito
comunitário, em que todos devem sofrer e lutar juntos, promovendo a mudança na
sociedade, superando suas contradições (KLENK, 2015).
De acordo com Lorenzon (1996), Mounier ao fundar o personalismo
buscava diagnosticar a civilização em que vivia uma sociedade marcada por um
espírito capitalista e burguês, na qual se demandava práticas coletivas como forma
de se contrapor à ideologia individualista. As ideias de Mounier (1972) contribuíram
para um movimento que renovou a filosofia e a mentalidade dos indivíduos em
diversos âmbitos da sociedade, como destaca o autor:
[...] ao fundar o movimento denominado Espírito e o personalismo, Mounier como filosofo e como cristão, preocupado com o diagnóstico da civilização do seu tempo, fortemente marcada por um espírito burguês individualista de um lado e, do outro, por um coletivismo arrasador, empreendeu um movimento amplo de renovação filosófica e de transformação de mentalidade e de estruturas em todos os níveis [social, econômico, político, religioso, educacional, jurídico, familiar] (LORENZON, 1996, p. 5).
Mounier (1972) entendia que o mundo fornece as condições para que o
homem possa emergir sua consciência. Para o autor, o homem não deve buscar se
tornar um ser contemplativo, ou seja, não pode perder-se na prática da
contemplação e adquirir uma postura passiva na sociedade. Como ele enuncia:
O homem é no mundo, e inseparável do mundo, que sua condição concreta neste mundo fornece a cada um de nós, os quadros e os pontos de apoio de sua tomada de consciência sobre si mesmo, assim como de sua tomada de posse do mundo. Por isso, se o homem deve sem cessar velar para não se enterrar, para não se objetivar no mundo, para não se deixar abordar como um objeto passivo, igualmente é interdito dissociar-se do mundo, evadir-se nas regiões incertas do sono, do remorso das ilusões interiores, das utopias, da automistificação [...] (MOUNIER, 1972, p. 118).
As ideias de Mounier muito influenciaram Paulo Freire em Pedagogia do
Oprimido, entretanto o autor se distancia da perspectiva fenomenológica de
compreender a realidade, contudo, sem vislumbrar as possibilidades políticas de
destruição das estruturas sociais opressoras e construção de outra sociabilidade a
partir das ações dos sujeitos.
76
Portanto, no pensamento freireano, o existencialismo cristão constitui-se
num importante instrumento metodológico para o entendimento do real conjugado
com a necessidade de transformá-lo, do qual o diálogo é motor. Desta forma, a
reflexão vem indissociável da ação, ambas se efetivam na práxis de intervenção
transformadora na realidade. Trata-se de uma atividade dos indivíduos enquanto
sujeitos históricos, conscientes do poder de transformação da prática. Tal percepção
aproxima-se da perspectiva marxiana da relação entre compreensão e
transformação da realidade: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de
maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” (MARX, 1982).
Marx mostra nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, que a
sociedade capitalista forma todos os sentidos humanos, tanto os físicos como os
intelectuais para a ideia do “Ter” e não do “Ser” (BARDARO, 2014).
Na perspectiva apresentada por Paulo Freire é recorrente a ênfase do ter
na sociedade. O educador brasileiro considera a lógica do ter como um modo
determinante da consciência opressora. Para Freire, a consciência do opressor
entende que o “Ter” é mais importante que o “Ser”, e o considera como fator
preponderante para a sua classe. Esclarece a autora:
Freire é mais claro em sua análise do ter. Considera-o a nota fundamental de um modo de ser determinado: o modo de ser opressor. Os opressores percebem claramente que o ter é necessário para o ser, mas limitam-nos à sua classe. Por outro lado não admitem que essa possa ser uma condição necessária para todos os homens. Ao se produzir uma mudança que supere a situação de opressão os antigos opressores, na nova situação, sentir-se-ão oprimidos, [...], ou seja, para a consciência opressora, a humanizada também faz parte de suas posses. É um direito que lhe pertence exclusivamente (BARDARO, 2014, p.234).
As classes dominantes reconhecem o ter como condição de poder e o
nega a maioria da sociedade. Ao negá-lo impossibilita o desenvolvimento de sua
humanidade, pois a destituição completa do ter inviabiliza ás condições de
desenvolvimento da essência humana.
A consciência tem uma subjetividade própria conforme a visão de Freire.
Para o autor, objetividade e subjetividade não podem ser dissociadas da condição
humana. Ambas as dimensões estão ligadas pelo quefazer da consciência presente
nas decisões e ações dos indivíduos em sociedade. A absolutização de uma ou
outra incorre no fatalismo determinista ou no voluntarismo subjetivista. A experiência
77
é essencial a toda prática educativa, sobretudo, frente à concepção objetiva de
conhecimento. Contudo, posições teóricas ou práticas firmadas somente nas
experiências desembocam num subjetivismo precário de direção política e científica.
Freire considera que a relação entre objetividade e subjetividade deve
estar em movimento, em um processo constante, orientando as leituras e práticas de
transformação. Conforme a seguir:
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são produtores desta realidade e se esta, na ‘invasão da práxis’, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (FREIRE, P., 1983, p. 39, grifo do autor).
Freire defende a educação como um processo permanente de reflexão,
na qual os homens vão apreendendo a realidade objetiva criticamente até se
conscientizarem do seu papel na transformação da sociedade. Diante disto, a
educação se efetiva tanto em espaços formais quanto não formais, tem parte neste
processo de criação e recriação do ser humano, o qual perdura por toda a sua vida.
A pedagogia apresentada na obra em foco é fundamentada no diálogo e
na pluralidade de ideias. Paulo Freire concebe uma filosofia pluralista, em oposição
ao marxismo determinista de um determinado tempo histórico e ao subjetivismo
idealista restrito à contemplação da realidade. Ele é enfático na defesa de uma
prática educativa baseada na capacidade de diálogo sobre diferentes pontos de
vista quanto à realidade, sem ceder ao retrocesso nem capitular às posições
educacionais, políticas e econômicas hegemônicas.
Em Pedagogia do Oprimido, Freire é recorrente na ideia de transformação
e libertação do homem e mudança da ordem das coisas. Sua teoria do
conhecimento reflete seu humanismo, seu comprometimento histórico e sua prática
social na transformação da realidade. Ele busca entender o processo de
conscientização como algo gradual, passo a passo e que ocorre infinitamente, a
partir da ideia do homem como ser inconcluso que segue sempre aprendendo.
Paulo Freire entende que o sujeito, a partir da leitura e reflexão de sua
própria realidade, alarga sua percepção das coisas e do mundo. A educação
envolve o cotidiano da realidade social do sujeito para que este possa refletir sobre o
seu contexto social, político e econômico e suas constantes variáveis como fruto de
78
um processo de luta de classes que configura a história da humanidade. Como
enunciado em suas palavras:
É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como ‘coisas’. É precisamente porque reduzidos a quase ‘coisas’, na relação de opressão em que estão que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante que ultrapassem o estado de quase ‘coisas’ (FREIRE, P., 1983, p. 60, grifo do autor).
A percepção da realidade se amplia, quando o indivíduo compreende as
relações de opressão nas quais está inserido. Numa sociedade capitalista repleta de
contradições, na qual riquezas e conhecimentos são representados desigualmente,
o indivíduo só pode ter consciência de sua situação social através da educação
dialógica, formal ou não formal.
4.2 A EDUCAÇÃO DIALÓGICA COMO FUNDAMENTAÇÃO POLÍTICA DA OBRA
PEDAGÓGICA DO OPRIMIDO
No contexto brasileiro atual9 têm crescido movimentos conservadores,
inclusive de características fascistas. Em 2015, nas manifestações organizadas por
partidos e movimentos de direita tornaram-se frequente a presença de faixas com
mensagens favoráveis ao retorno do Regime Militar.
Uma delas chamou a atenção, sobretudo de educadores e educadoras:
“Chega de doutrinação marxista e basta de Paulo Freire” (Vide abaixo). Na mesma
faixa ainda era visível uma logomarca anticomunista.
9 No momento, no qual esta dissertação é elaborada, o Brasil atravessa um momento delicado de sua história. A presidenta Dilma Rousseff teve seu mandato interrompido, mediante um golpe institucional-parlamentar, que alça ao poder o vice-presidente Michel Temer, vinculado ao fisiologista PMDB, que passa a implementar uma política econômica de retirada de direitos dos trabalhadores e de cortes de gastos na educação e na saúde, para garantir recursos para o mercado financeiro.
79
Figura 1 - Protesto nas ruas em 2015
Fonte: <http://www.planocritico.com/fora-de-plano-14-chega-de-doutrinacao-marxista-basta-de-paulo-
freire/>
Por que a pedagogia freireana incomoda tanto às elites que foram às
ruas, a ponto de terem necessidade de demarcar oposição de um educador numa
manifestação caracteristicamente de natureza política? Porque essas elites
enxergam nas ideias de Freire um perigo à sociedade? Em Pedagogia do Oprimido
a ideia de educação é efetivamente revolucionária a ponto de representar um perigo
à ordem estabelecida, tão bem representada pelos grupos conservadores acima
referidos? Por que na academia os teóricos críticos não percebem Freire da mesma
forma? Independente das respostas, uns se posicionam por medo do potencial
transformador das ideias freireana, outros, porque se limitam a analisá-las dentro de
modelos fixos, opostos ao materialismo histórico e dialético professado.
A educação deve seguir uma perspectiva crítica, para que assim faça
emergir a consciência do sujeito. A educação libertadora de Freire objetiva abrir
caminhos para que os seres humanos possam se livrar da opressão capitalista,
mediante relação consciente com o mundo e os fenômenos sociais. Desta forma, é
imprescindível que o ser humano esteja ciente de seu inacabamento enquanto
sujeito que dialoga com a realidade através de sua prática política e social. O ser
humano é criado e recriado através de prática problematizante, questionadora da
realidade em constante transformação.
80
Portanto, a educação na perspectiva freireana não está desvinculada da
realidade ou possibilidade da luta de classes. Uma de suas marcas é a recusa a
qualquer postura que privilegie a suposta neutralidade da prática docente ou práxis
educativa em geral.
Freire (2001) compreende a educação como fenômeno coletivo,
construída a partir da dialogicidade dos sujeitos. Ela é fruto do debate sobre a
realidade e suas variáveis históricas, bem como da troca de experiências e saberes
entre sujeitos, os quais concebem que um conhecimento nunca deve se apresentar
superior a outro. A proposta educativa freireana se constitui como instrumento de
conscientização e luta produzido por sujeitos coletivos organizados.
A efetivação das mudanças necessárias à educação se dá a partir da
prática dialogal com as classes trabalhadoras e grupos sociais oprimidos, reprimidos
nos direitos e vivências sociais. As classes trabalhadoras precisam ter voz e vez nos
espaços educativos e organizativos do trabalho e das práticas sociais. Assim, a
exploração e alienação precisam ser discutidas e refletidas por aqueles que são
submetidos a este processo de desumanização.
Há grandes desafios históricos a serem superados pelas classes
oprimidas: superar um Estado que põe a educação a serviço do capital e da
desumanização da maioria da população, negando-lhe as condições mínimas
materiais e direitos diversos bem como explorar as contradições desta sociedade de
classes e construir a emancipação humana. A classe trabalhadora só poderá lutar
pela superação desta estrutura social tão desigual através da sua união como
classe, com estratégias que rompam com o sistema capitalista. Neste sentido, a
educação dialogal, crítica, contextualizada e pluralista de Freire é um instrumento de
desvelamento das determinações históricas da opressão, assim como é práxis com
vistas à construção de outra sociabilidade.
A educação dialógica para Paulo Freire é muito mais que uma simples
troca de ideias entre professor e aluno na sala de aula ou troca de ideias ou um
discurso entre os sujeitos de uma interlocução. Ela tem um propósito de refletir e
agir sobre a realidade, ligando-se diretamente à existência humana. O diálogo
denuncia uma realidade de opressão e anuncia uma nova realidade social, a qual se
constrói a partir da prática política, práxis educativa, fundada na ação-reflexão dos
sujeitos oprimidos e ou explorados.
81
Trata-se de uma prática educativa que pressupõe a escuta do outro, suas
verdades e suas ideias, ou seja, um mergulho no mundo do outro, entendendo sua
cultura e contextualizando sua realidade.
O diálogo tem como pressuposto o amor à existência humana e a
perspectiva de relações sociais humanizadas. Ele é “o encontro em que solidarizam
o refletir e o agir de seus sujeitos” (FREIRE, P., 2001, p. 79). A reflexão do ser
humano sobre o contexto social, econômico e político o põe na perspectiva de
transformação da sociedade.
O diálogo freireano tem como objetivo a “conquista do mundo pelos
sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro, conquista do mundo para a libertação
dos homens (FREIRE, P., 2001, p. 79)”. Busca dialogar com a realidade, com o
oprimido e com todos inseridos no sistema de opressão capitalista. Exemplo disso é
o método criado por Freire, no qual se destaca o uso de temas e palavras geradoras
como meios de possibilitar uma prática educativa e política, que contextualiza a
realidade do sujeito em processo de alfabetização, propiciando-lhe uma formação
consciente de seu papel histórico.
A construção de relações dialógicas sob os fundamentos da ética universal dos seres humanos, enquanto prática especifica humana implica a conscientização dos seres humanos, para que possam de fato inserir-se no processo histórico como sujeitos fazedores de sua própria história (FREIRE, P., 1996, p. 10).
Na coletivização dos saberes dos sujeitos, uma educação baseada em
relações dialógicas só pode ser construída sem a dominação, exploração ou
opressão entre classes. O compromisso com o desenvolvimento da humanidade faz
do diálogo um ato de amor e coragem, e principalmente de luta pela transformação
da sociedade, pois parte do princípio de escuta amorosa do outro.
Sendo o fundamento do diálogo, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa dos sujeitos que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia do amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico (FREIRE, P., 2001, p. 80).
82
A construção de uma educação dialogal, mediada entre os homens como
ato de intervenção no mundo, ato político, propicia uma conscientização dos
sujeitos, tanto em processos formais como não formais. Assim, a partir da
problematização da sociedade os seres humanos desvelam sua realidade.
A educação dialógica em Freire também é humanizante, porque afirma
uma perspectiva descolonialista, na qual os sujeitos descobrem a si mesmos como
sujeitos capazes de transformar sua realidade, caso seja colonizada por interesses
dominantes. Há uma firme intenção que os sujeitos sociais e educativos entendam
sua situação de opressão social, cultural e política, despertando em si uma
consciência crítica que se volta para libertação das amarras ideológicas impostas
pela sociedade capitalista.
A humanidade apresentada e defendida na relação dialogal está
relacionada ao reconhecimento da opressão que prevalece no todo de uma
sociedade de classes. O diálogo impõe-se aos que lutam em defesa da
emancipação social a prática revolucionária.
Desta forma torna-se fundamental refletir mais sobre a formação da
consciência na sociedade, conforme as ideias centrais de Pedagogia do Oprimido.
4.3 A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NOS SUJEITOS SOCIAIS
Freire nos conclama para a construção de uma educação crítica baseada
em uma esperança futura de um mundo mais justo e solidário, uma educação que
pressupõe uma superação dialética dos homens rumo a sua própria libertação e
emancipação da opressão. Obviamente que está concepção de educação não
compreende os seres humanos como seres limitados, mas com possibilidades de
serem conscientes da sua própria trajetória nos processos formativos enquanto
sujeitos que estão em movimento na própria história da humanidade. Conforme
ressaltado pelo autor:
A educação crítica é a futuridade revolucionária. Ela é profética – e, como tal, portadora da esperança – e corresponde à natureza histórica do homem. Ela afirma que os homens são seres que se superam, que vão para frente e olham para o futuro, seres para os quais a imobilidade representa uma ameaça fatal, para os quais verem o passado não deve ser mais que um meio para compreender claramente quem são e o que são. Ela compromete os homens como seres conscientes de sua limitação,
83
movimento que é histórico e que tem como ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo (FREIRE, P., 1980, p. 82).
É claro que esses processos educativos dependem não só da formação
teórica dos sujeitos, mas também de prática política dos mesmos como um dos
fatores que movimentam a história da luta de classes. É uma educação voltada para
os direitos humanos daqueles indivíduos que lutam pelo direito de viver, na qual se
propõe enxergar a realidade de forma objetiva, deixando de lado as sombras do
pensamento ingênuo. Trata-se de uma educação, que partindo das limitações
impostas por uma sociedade de classes pauta-se na criação e na recriação de
indivíduos históricos e críticos. Conforme reflete o autor:
Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, tem que ser abrangente totalizante; de viver. E não apenas com a rigorosidade da análise de como a sociedade se move, se mexe, caminha, mas ela tem a ver também com a festa que é a vida mesma. Mas é preciso fazer isso de forma crítica e não de forma ingênua. Não aceitar o todo-poderosíssimo ingênuo de uma educação que faz tudo, nem aceitar a negação da educação como algo que nada faz, mas assumir a educação nas suas limitações e, portanto, fazer o que é possível, historicamente ser feito com e através, também, da educação (FREIRE, P., 2001, p. 102).
É uma educação das relações humanas, na qual os indivíduos
transformam-se a partir da sua inserção histórica no mundo. A partir da prática do
questionamento e da curiosidade se adquire conhecimento de objetos, fatos e
questões ainda não conhecidos. A educação libertadora gera possibilidades de
atuação e reflexão dos sujeitos, com a criação e recriação dos conhecimentos e
saberes em diversas áreas. Conforme analisa o autor:
Também acredito na força das verdadeiras relações entre as pessoas para a soma de esforços no sentido da reinvenção das gentes e do mundo. E não há como negar que a experiência dessas relações envolve, de um lado, a curiosidade humana, centrada na própria prática relacional, de outro, a curiosidade alongando-se a outros campos. O envolvimento necessário da curiosidade humana gera, indiscutivelmente, achados que, no fundo, são ora objetos cognoscíveis, em processo de desvelamento, ora o próprio processo relacional, que abre possibilidade aos sujeitos da relação da produção de interconhecimentos (FREIRE, P., 2001, p. 53).
Para Freire, o diálogo se finda na autonomia do sujeito, e baseando-se no
respeito ao outro e no desenvolvimento da capacidade de escuta. A prática dialogal
84
não legitima as diferenças sociais, nem promove o nivelamento das subjetividades e
tampouco nega as identidades culturais.
A dialogicidade freireana tem um caráter político, humanizante e contribui
para a formação crítica e consciente dos sujeitos. Ela decorre de uma prática
amorosa voltada para a libertação de uma situação opressora ocasionada pelo
modo capitalista de ser. Freire destaca em suas palavras o amor à causa dos
oprimidos “como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade. A não
ser assim, não é amor (FREIRE, P., 2001, p. 80)”.
A educação e o diálogo em Freire objetivam a construção de um novo
homem e uma nova mulher, libertados da opressão interior, e exterior na efetivação
de práticas de vida transformadoras. Ele propõe um ser humano mais humanizado e
consciente do processo de formação social e política, empenhada em formar
sujeitos críticos, mas, sobretudo mais humanos. Ao pretender um novo sujeito e uma
nova sociedade, Freire se posiciona favoravelmente por uma sociabilidade
emancipatória.
O pensamento freireano em Pedagogia do Oprimido mostra seu vigor e
contemporaneidade no que se refere a uma educação conscientizadora que reflete
sobre a realidade. Para ele a educação deve se preocupar em desenvolver a
consciência crítica dos sujeitos, quer seja no campo ou na cidade, na escola e
espaços não formais. E se esta consciência está associada a práticas contra a
opressão, então ela é profundamente revolucionária.
A superação das contradições entre oprimidos e opressores implica na
superação das contradições históricas entre as classes. Isto vai além dos aspectos
concernentes à divisão de classes, sendo necessário considerar também outras
opressões decorrentes de questões sociais, políticas e econômicas. A superação da
exploração/opressão é um processo permanente gestado através do processo de
ação e reflexão dos homens. A libertação é um processo difícil:
A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição, opressor-oprimidos que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se (FREIRE, P., 2001, p. 36).
85
Para se entender a consciência tem que se considerar a realidade e seus
determinantes históricos que podem corroborar tanto para avanços ou retrocessos
no que tange a reflexão e a inserção crítica na sociedade. A libertação pressupõe o
entendimento da realidade em constante movimento. Cada época histórica está
marcada por uma dialética, isto é um reconhecimento dos indivíduos como sujeitos
ativos no processo histórico, no qual as relações sociais dialogam entre si e se
transformam pela luta de classes.
A História se transforma a partir da tomada de consciência dos sujeitos
históricos de seu papel transformador na sociedade. Freire associa a formação da
consciência a uma visão classista dos oprimidos e explorados. Daí a categoria de
classe social ser insuficiente para abarcar o universo da opressão, tendo-se que
considerar o protagonismo dos movimentos sociais como porta-voz e porta-práxis de
toda a opressão do sistema capitalista.
A filosofia educacional de Paulo Freire está em diferentes frentes e
influencia movimentos sociais e suas bandeiras políticas. Algumas de suas
contribuições teóricas e práticas apontam para a conscientização dos sujeitos
envolvidos em diferentes causas sociais.
Os movimentos sociais são ações de cunho social e político voltado para
os interesses dos sujeitos envolvidos nas lutas sociais. Segundo GOHN (2011) estes
sujeitos coletivos podem ter ou não uma agenda emancipatória quando intervêm na
realidade.
Os movimentos com ações transformadoras/emancipadoras têm suas
bandeiras em defesa das classes de trabalhadores e, de todos os segmentos sociais
oprimidos pelo sistema capitalista. Suas pautas de luta propõem uma mudança
social em todos os âmbitos da sociedade tais como a economia, a estrutura
fundiária, a educação, a política e a ética.
Estes movimentos sociais organizados demonstram ser capazes de se
colocar contra a lógica da opressão e destruição imposta pelo sistema capitalista,
denunciando a negação de direitos e anunciando para toda a sociedade suas
demandas e bandeiras coletivas, tendo como objetivo a afirmação de direitos e a
construção de uma sociedade diferente, justa e igualitária.
Para Freire, a conscientização dos movimentos sociais se dá, quando os
mesmos se descobrem como força capaz de transformar a realidade. Freire tem
firme crença na luta contra a opressão, entendendo sempre ser necessária, a práxis
86
enquanto ação reflexiva dos movimentos sociais diversos no processo de
transformação social. Para isto se faz necessário à prática política e educativa dos
homens sobre o mundo. Conforme analisa o autor:
O importante, porém, é reconhecer que os quilombos tanto quanto os camponeses das ligas e os sem-terra de hoje todos em seu tempo, anteontem, ontem e agora sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditam e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história com façanha da liberdade. [...] Apostaram na intervenção no mundo para retificá-lo e não apenas para mantê-lo mais ou menos como está (FREIRE, P., 2000, p. 60-61).
Nessa dialética de intervenção no mundo, Freire evidencia quanto sua
filosofia e pedagogia têm compromisso com as classes populares. Na Educação
Popular dos movimentos sociais, Freire concretiza sua ação cultural que aponta para
um processo de conscientização construído nas relações do conhecimento
mediatizadas pela prática educativa de problematização da realidade.
4.4 SOCIEDADE E EMANCIPAÇÃO HUMANA NA LUTA DOS OPRIMIDOS
O projeto de emancipação social acompanha Freire, inclusive, no
momento inicial de sua produção teórica em que o contexto social, político e
econômico da década de 1950 e 1960 havia uma efervescência política e os
trabalhadores começaram a se organizar politicamente para lutar por direitos sociais.
Então ele realiza as tipificações das três dimensões da consciência em ingênua,
intransitiva e crítica.
A dimensão ingênua da consciência, o homem não se compromete
historicamente com a transformação da sua realidade. O sujeito tem uma
interpretação simplista dos problemas sociais que o rodeia, não os analisa
criticamente. Paulo Freire destaca que a consciência ingênua:
Revela uma certa simplicidade, tendente a um simplismo, na interpretação dos problemas, isto é, encara um desafio de maneira simplista ou com simplicidade. Não se aprofunda na causalidade do próprio fato. Suas conclusões são apressadas, superficiais (FREIRE, P., 1987, p. 40).
Já na dimensão intransitiva o homem concentra seus interesses na esfera
das necessidades biológicas da vida tais como alimentação, vestuário, moradia e
87
entre outras. O individuo não tem interesse nas lutas políticas e sociais, suas
preocupações giram em torno da sobrevivência pelo trabalho, e acaba por não lutar
para superar sua condição de oprimido (FREIRE, 1987).
E por último a dimensão crítica da consciência, em que se destaca a
relação dialogal entre os sujeitos. O homem analisa criticamente os problemas
sociais, políticos e econômicos, nos quais está envolvido e inserido, e constrói uma
postura de compromisso e engajamento na transformação de sua própria realidade.
Ele se compromete com si mesmo, sua família, seu grupo social, sua ideologia
política e a construção histórica social, política e coletiva.
A partir desta perspectiva, Freire (2001) compreende a conscientização
como um processo permanente que perdura durante toda a vida, pois sempre estão
a emergir novas práticas e questões as quais nos exigem reflexão e atuação política.
A perspectiva freireana mostra-se atualíssima, uma vez que também se mantém
atual a luta dos sujeitos para se libertar da opressão do sistema capitalista. A ênfase
em defesa dos oprimidos em geral, num primeiro momento, constitui-se numa
importante contribuição a construção de uma consciência coletiva. Conforme
destaca o autor:
A opção em favor dos oprimidos é um passo pré-científico e ideológico, que vai guiar a eleição do tipo de análise, entretanto este último pertence à ordem científica sem concessão possível. É um saber novo que ajudará a criar a consciência coletiva (HOUTART, 2007, p. 426).
A ideia de formação de consciência para emancipação humana frente a
opressão em geral da sociedade, num primeiro momento, e a opressão/exploração
de uma classe sobre as outras, ganham destaque as influências filosóficas
comprometidas com a construção de outra sociabilidade. Elas possibilitarão a Freire
a criação de importantes conceitos para o entendimento dos processos formativos
das consciências coletivas.
Dentre estes conceitos, é importante destacar o de consciência social ou
de classe, com ênfase na humanização, como aspecto fundamental da verdadeira
conscientização que culminará na real conquista da libertação e emancipação
humana. Para Freire, a conscientização se dá no processo de ação e reflexão do
homem sobre a realidade, noutras palavras, na práxis política e educativa. A ideia de
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consciência social impõe a educação, uma pauta de desvelamento da realidade e da
emancipação humana.
A percepção do real na sua complexidade representa um passo rumo à
libertação dos sujeitos do julgo da opressão e, por conseguinte, de sua inserção
numa práxis que poderá transformar a sociedade.
Dentre as perspectivas comprometidas com a emancipação humana, o
pensamento marxista traz para a pedagogia de Freire um alargamento dos sujeitos
históricos no que se refere a identificação com o lugar das classes sociais na
sociedade capitalista. Como é refletido nas palavras do autor:
Sob influência do pensamento marxista, Freire passa de um enfoque, em parte subjetivo, de análise do tipo de consciência presente em decorrência da conscientização, para uma avaliação mais ideológica e social. Surge o conceito de consciência social ou de classe, mas aflora um dado novo, a ênfase no aspecto revolucionário da humanização ou hominização da pessoa humana, só assim, seria atingida uma autentica conscientização e a conquista da libertação (RIBEIRO, 2010, p. 76).
O processo de conscientização do homem e da mulher acontece na
relação que têm com o mundo, na ação mediatizada pela reflexão, que os fazem
conscientes da sua própria exploração e alienação. Trata-se de um processo
formativo não linear e permanente por todas suas vidas.
Segundo o pensamento Freireano, a pedagogia da conscientização dos
sujeitos na luta dos movimentos sociais por um mundo ressignificado, transformado
para construção da liberdade e emancipação humana, requer uma reflexão sobre as
condições históricas e contraditórias da sociedade de classe.
A luta contra a opressão está na reflexão e na ação dos homens sobre o
mundo. Freire reconhece o lugar dos movimentos sociais ao longo da história da
humanidade e ao mesmo tempo compreende e valoriza seu papel no contexto atual,
o seu protagonismo na formação dos sujeitos sociais em luta.
Os espaços formativos para a transformação social estão em vários
âmbitos da sociedade. A educação está além da escola, como quer e tenta as elites
hegemônicas. Os sujeitos sociais se educam através da tomada de consciência que
desemboca em práticas sociais de resistência contra a opressão capitalista. A
prática política é o resultado e objeto da reflexão desses sujeitos conscientizados.
89
Quanto a educação formal, os movimentos sociais podem transformá-la em
instrumento de luta para desvelar a realidade e anunciar nova realidade social.
A conscientização é o resultado do desenvolvimento da consciência
crítica. O sujeito conscientizado apreende a realidade para além do objeto em si, ele
toma para si uma postura critica e reveladora dos determinantes históricos dos
fenômenos. Ele se insere criticamente como agente de transformação da realidade,
e assume seu papel histórico de consciência no mundo, nas relações sociais.
Para que a sociedade justa e solidária exista, faz-se exigência a formação
da consciência crítica dos sujeitos, porque é através dessa dimensão da
consciência, que os seres humanos podem chegar à autonomia de seu pensamento,
juntamente com a problematização da realidade e, por conseguinte, o banimento de
toda opressão.
A consciência crítica pode ser trabalhada a partir de ferramentas
pedagógicas educacionais diversas que se relacionam com o cotidiano vivido dos
sujeitos. Ela pode estar nas rodas de conversas, nos círculos de cultura, nas peças
de teatro, nas músicas, nas místicas, nas manifestações políticas, nos debates, nas
culturas populares etc.
Como enfatizava Freire, o homem, do ponto de vista filosófico, é um ser
inconcluso, em construção ao logo de toda sua caminhada. Quando o homem e a
mulher adquirem um olhar macro para a realidade que os rodeiam, sem perderem a
identidade (cultural e social) que os caracteriza no grupo social ao qual pertence,
passam a ter consciência do seu papel histórico na sociedade, tornando-se sujeitos
de sua própria história.
A consciência ingênua em que já fiz referência é a expressão do processo
de coisificação do ser humano, que se transforma em um mero objeto a serviço dos
interesses capitalistas. A passagem para a consciência crítica se dá através do
processo de libertação do indivíduo. A consciência volta-se do ser para si e para o
outro, consolidando a verdadeira solidariedade de classe na transformação objetiva
da realidade. Conforme destaca o autor:
Se o que caracteriza os oprimidos, como consciência servil em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e transformar-se, como salienta Hegel, em consciência para outro, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este ser para outro (FREIRE, P., 1983, p. 37-38).
90
Os oprimidos necessitam reconhecer sua capacidade de libertarem-se da
opressão, de tornarem-se seres reflexivos capazes de transformar sua realidade. A
reflexão sobre sua condição de oprimidos se coloca no processo de
conscientização. Eles precisam se desenvolver enquanto seres históricos, porque
são humanos capazes de se formarem na luta de classes e no seu processo de
libertação. Conforme anuncia as palavras do autor:
Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e história do Ser Mais. A reflexão e a ação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem (FREIRE, P., 1983, p. 57).
Na perspectiva freireana, a consciência se compõe de elementos
concretos da vida dos indivíduos e elementos abstratos que os remetem a um
entendimento para além da realidade imediata. A consciência é um resultado da
conjunção das experiências com abstrações do meio, o qual se encontra os
indivíduos. Os caminhos de construção da consciência revelam a essência do ser e
sua subjetividade. Para os sujeitos elevarem o entendimento da realidade, e, por
conseguinte, suas consciências, precisam se preparar no desvelamento das
relações imediatas e na construção de uma nova sociabilidade. Enuncia o autor:
[...], a consciência é em sua essência, um caminho para algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, continua o professor brasileiro, a consciência é, pois, método, entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é a essência da consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica (FREIRE, P., 1983, p. 61).
A consciência se dá no plano da ideação, portanto, sua principal
característica é sua imaterialidade. Ela representa a visão individual ou coletiva dos
sujeitos sociais, o que a aproxima do conceito marxiano de método, como tão bem
explica compreende o autor:
Marx deixou apenas dez páginas sistematicamente escritas sobre seu método (Cf. Marx,1983). Nelas afirma que é necessário aprofundar nosso conhecimento abstrato (visão sincrética de mundo) em direção ao concreto como “síntese de múltiplas determinações”. No primeiro nível estão os fatos e as versões e visões que temos destes, como representações. Pelo pensamento, construindo os conceitos e categorias científicos, vamos ‘pintando’ um quadro mais ‘real’, no sentido de mais abrangente e objetivo
91
daquela área investigada, na forma de um sistema conceitual que supera a visão inicial sincrética. Se o nível abstrato das representações ainda aparece velado, o nível do concreto emerge desvelando as relações investigadas (FREITAS, 2007, p.51).
O entendimento de Freire sobre consciência o aproxima da concepção de
método do materialismo histórico-dialético. Para ele, a constituição da verdadeira
consciência exige um distanciamento do real, no qual ela está assentada. A
consciência se efetiva ao ser capaz de situar a si própria no contexto de relações
não muito visíveis e perceptíveis no cotidiano. Ela se efetiva quando é capaz de
entender as relações de totalidade, nas quais se inserem os sujeitos e suas
consciências específicas. Este entendimento corresponde a um exercício de
abstração que estudos e ou lutas políticas não sistêmicas são capazes de oferecer.
A crítica freireana a concepção de educação bancária fundamenta-se na
consciência que esta produz, estagnando a formação dos seres humanos,
impedindo-os de se desenvolverem crítica e humanamente. A educação bancária
não se trata de uma experiência ultrapassada pela história, continua viva em todas
as práticas educativas que não valorizam as vivências sociais de alunos,
professoras e professores. Desta forma, ela se apresenta de forma hegemônica no
contexto atual na lógica de escola que repassa ideologias e conteúdos fragmentados
apartados da vida real, apregoando o individualismo, o consumismo, a disciplina
para o mercado e o conformismo. Daí que, a consciência libertadora é incompatível
com a educação bancária ou qualquer prática educativa que reproduza uma
desigualdade pedagógica. Conforme destaca o autor:
Exatamente por que não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio a ser cheio, um dos fundamentos implícitos na visão bancária criticada, é que não podemos aceitar também que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos depósitos (FREIRE, P., 1983, p. 77).
Os homens como sujeitos de sua atividade histórica no mundo buscam
envolver-se em um processo de transformação das relações sociais em que estão
inseridos. Essa busca por recriar o conhecimento e sua práxis diária tem um
propósito de entender a existência humana e sua intervenção no mundo. A
constituição do ser sujeito histórico com capacidade de decidir seu destino acontece
com o seu comprometimento e engajamento numa prática transformadora.
92
Os processos educativos pelos quais os homens vivenciam são
essenciais para sua conscientização e formação crítica na realidade. A realidade é
transformada a partir de ações concretas da sua consciência real sobre a mesma.
Quando o homem toma ciência do seu papel, ele age a partir do seu entendimento e
compreensão sobre a realidade. Ele passa a apreender a realidade, desvelando o
que há por trás dos determinantes sociais e históricos. A atividade que ele realiza no
seu cotidiano ganha significado e práticas na realidade. Declara o autor:
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão ao atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão da sua busca em si e em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica (FREIRE, P., 1983, p. 105).
Os homens como seres livres e conscientes de suas relações frente as
contradições da realidade, agem historicamente. As situações limites da realidade
apresentam obstáculos, os quais homens e mulheres devem ultrapassá-los com
ações conscientes e coletivas. A consciência é resultado de um desenvolvimento
histórico sócio econômico e da subjetividade humana, que tocada pelas
contradições sociais impulsiona ações objetivas de transformação ou manutenção
da realidade. Freire (1983) anuncia em suas palavras:
Desta forma, o próprio dos homens é estar, como consciência de si e do mundo, em relação de enfrentamento com sua realidade em que, historicamente, se dão as situações-limites. E este enfrentamento com a realidade para a superação dos obstáculos só pode ser feito historicamente, como historicamente se objetivam as situações-limites (FREIRE, 1983, p. 107).
A consciência ingênua, sob a ótica de Freire, não é capaz de captar a
integralidade das situações-limites: problemas, condições de opressão, interesses,
ideologias, insatisfações e possíveis bandeiras de luta. A consciência que está sob o
domínio dos opressores não carrega a percepção da realidade como ela é, trata-se
de uma percepção subjugada pela situação-limite e não consegue enxergar e
desvelar o que há por trás dos fenômenos, ou para além da aparência.
93
De modo geral, a consciência dominada, não só popular, que não captou ainda a situação-limite em sua globalidade, fica na apreensão de suas manifestações periféricas ás quais empresta a força inibidora que cabe, contudo, a situação-limite (FREIRE, P., 1983, p. 112).
Por isso é preciso avaliar as realidades que as situações-limites colocam
para os indivíduos, temores, incompreensões e questões, para que possam dialogar
com elas, entendendo as condições objetivas, para que os oprimidos consigam
desvendá-las e refletir sobre elas. A relação dialogal entre o indivíduo e sua
realidade é a mola para o desvelamento de sua condição opressora. Sobre isto
Freire reflete:
Por isto é que, embora as situações limites sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades dos indivíduos, e impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham. Uma situação limite, como realidade concreta pode provocar em indivíduos de áreas diferentes e até de subáreas de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para seu desvelamento (FREIRE, P., 1983, p. 125-126).
A partir desse entendimento, é necessária a construção de uma educação
como prática formativa voltada para emancipação dos indivíduos. Não se pode
mudar as contradições que a realidade apresenta, com indivíduos passivos, que não
lutam para modificá-la, que não enfrentam as relações sociais engendradas pela
ordem capitalista.
O processo de conscientização não é algo meramente subjetivo, ele é o
pontapé para o processo de humanização dos seres humanos. Quando o individuo
está consciente de sua condição de desumanização, ele luta para superar os
obstáculos na busca de se tornar um novo ser numa sociabilidade também a se
construir. Enfatiza o autor:
Consciência é obvio, que não para, estoicamente, no reconhecimento puro, de caráter subjetivo, da situação, mas pelo contrário, que prepara os homens, no plano da ação, para a luta contra os obstáculos á sua humanização (FREIRE, P., 1983, p.134).
Neste processo de mudança, os oprimidos terão que lutar com suas
próprias angústias, pois “a consciência dominada existe, dual, ambígua, com seus
temores e suas desconfianças” (FREIRE, P., 1983, p.195), tendo em mente a
94
esperança concreta na transformação da realidade. A consciência crítica é fruto de
um processo de formação na prática de uma educação transformadora, permeada
pelas lutas sociais e intervenções na dinâmica da realidade. Ela não é algo dado,
tampouco linear, estando sujeita a diversos determinantes políticos, econômicos e
sociais. Para o autor a consciência crítica se põe contra todo o sistema da mais valia
e alienação dinamizado pelo capital. Conforme a seguir:
Ter a consciência crítica de que é preciso ser o proprietário de seu trabalho e de que este constitui uma parte da pessoa humana e que a pessoa humana não pode ser vendida nem vender-se e dar um passo mais além das soluções paliativas e enganosas. É inscrever-se numa ação de verdadeira transformação da realidade para, humanizando-a, humanizar os homens (FREIRE, P., 1983, p. 217).
A constituição da consciência crítica pressupõe a apreensão constante da
realidade e os seus determinantes num processo que perdura por toda a vida. Os
indivíduos se tornam “Ser” de si mesmo e da sua condição de agentes da
transformação e libertação, quando se compreendem no mundo e se comprometem
com sua existência histórica e coletiva, na perspectiva da conscientização e
emancipação. Não se pode pensar uma formação consciente que não discuta as
relações que oprimem a classe trabalhadora.
O processo de formação das consciências está associado e dependente
da conjuntura política, econômica e social de cada sociedade específica. Condições
sociais adversas como ausência de diálogo e de democracia, populismo e
clientelismo têm forte peso na peculiaridade da alienação, retardando o processo de
conscientização, conforme analisa o autor:
O processo de modificação das consciências ocorria, assim, sob os condicionamentos de uma sociedade particular: a centralização, o autoritarismo, o assistencialismo, esses traços dominantes na vida política, administrativa ou mesmo educacional da nação, bem como as suas contrapartidas inevitáveis na ausência do diálogo, na passividade de homens que não participam, enfim, na inexperiência de democracia, encaminhavam a ingenuidade então preponderante nas populações urbanas mais para a massificação do que para a realização da consciência crítica (BEISEGEL, 2008, p. 127).
Na concepção de Beisiegel (2008), Freire entendia que a escola tem que
dar conta da formação humana, não podendo centrar-se na transmissão de
conteúdos, valorizando apenas conhecimentos instituídos. A escola deve dialogar
95
sobre a realidade dos alunos para influir na formação de suas consciências para a
libertação. As exigências de uma formação integral estão para além dos conteúdos.
Paulo Freire advertia que uma escola verbalista, palavrosa, rigidamente programada em matérias, decorativa, nocional, voltada para o torneio da frase e para a seleção de um mandar inato de letras, das ciências e da tecnologia, uma escola estereotipada, propedêutica, bacharelesca, acadêmica.... Uma escola com tais características poderia responder às exigências [da] formação (BEISIEGEL, 2008, p.127).
A consciência emancipatória é fruto de um processo de luta pela
transformação da realidade, no qual os indivíduos coletivamente criam e recriam as
relações e contradições sociedades da sociedade, buscando um aprimoramento
formativo de suas consciências a partir da inserção crítica nas lutas de resistências e
por direitos. O processo de formação da consciência é complexo e desafiador para
os oprimidos e suas lideranças, movimentos sociais do campo e da cidade, e
classes trabalhadoras organizadas.
A alienação existirá sempre nos moldes de produção do sistema
capitalista. A sua superação requer uma ruptura com o próprio sistema do capital, o
qual depende do trabalho alienado. Os sujeitos históricos, movimentos sociais e
classes trabalhadoras necessitam conceber a construção de estratégias de luta para
uma nova sociedade com mais justiça e igualdade sociais, democracia, respeito à
diversidade, respeito à natureza, emancipação humana e educação libertadora.
A luta contra a opressão e a existência do trabalho alienado no sistema
capitalista impõe aos sujeitos históricos a construção de uma nova sociabilidade, na
qual os oprimidos decidem através de um planejamento coletivo e democrático. Este
planejamento pressupõe uma organização coletiva em âmbito local, nacional e
internacional, anticapitalista, fundada no debate plural de ideias de todos os
segmentos sociais da sociedade. A partir da análise do autor:
O planejamento socialista deve ser fundado no debate democrático e pluralista, em cada nível de decisão. Organizados sob a forma de partidos, de plataformas ou de qualquer outro movimento político, os delegados dos organismos de planejamento são eleitos e as diversas propostas são apresentadas a todos aqueles a quem elas concernem. Dito de outra forma, a democracia representativa deve ser enriquecida – e melhorada – pela democracia direta que permite às pessoas escolher diretamente – em nível local, nacional e, por último, internacional – entre diferentes propostas (LÖWY, 2009, p. 49).
96
Löwy (2009) defende que o planejamento socialista tenha como premissa
a democracia plural, com a efetiva participação da organização social do povo, a
partir de partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais. Na tomada de
decisões os níveis local, regional, nacional e internacional os sujeitos devem ter voz
ativa para que a democracia seja efetiva. O planejamento democrático é um passo
que aponta para o caminho da emancipação dos sujeitos sociais.
A emancipação é o caminho para que os homens possam se libertar das
amarras da opressão capitalista no que se relaciona o aprimoramento das suas
próprias consciências e sua intervenção na prática.
A formação da consciência para a emancipação humana se dá através de
uma prática educativa transformadora e não se restringe à escola formal,
contemplando também os espaços não formais das lutas sociais, dos locais de
trabalho, dos sindicatos, das comunidades, das pastorais populares. Onde a classe
trabalhadora estiver e onde houver opressão é espaço de luta, de formação de
consciência para a emancipação e educação libertadora.
A educação crítica e dialógica defendida por Freire constitui-se num
importante instrumento de emancipação humana e social. O aspecto humanista de
sua pedagogia colabora para a formação do homem como ser histórico e reflexivo,
na perspectiva de uma consciência coletiva libertadora.
97
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ideias de Paulo Freire são o resultado de toda trajetória política,
profissional e social que vivenciou. Suas primeiras práticas educativas e produções
teóricas foram influenciadas pelo contexto do nacional desenvolvimentismo das
décadas de 1950 e 1960 no Brasil. A partir da prática educativa com populações
empobrecidas, ele elabora uma pedagogia voltada aos oprimidos, fundada no
respeito as suas realidades sociais e culturais, apontando a necessidade de
conscientização para transformar a sociedade. Com o golpe militar de 1964, a
Ditadura Empresarial-Militar o persegue e o põe no exílio por dezesseis anos. Suas
experiências práticas e teóricas fora do Brasil lançaram as bases para que pudesse
escrever sua obra prima Pedagogia do Oprimido em 1969.
De formação cristã e influenciado pelo humanismo cristão de Mounier,
Freire traz à sua prática e às suas ideias grande sensibilidade aos problemas
sociais, os quais penalizam, sobretudo os setores marginalizados e oprimidos da
sociedade. Durante o tempo que ficou exilado, Paulo Freire continuou a desenvolver
sua filosofia educacional, organizar socialmente a classe trabalhadora, socializar
suas ideias e experiências de alfabetização de adultos por todo mundo. Esta
formação o levou a uma aproximação com as ideias do filósofo Karl Marx,
incorporando fundamentos teórico-metodológicos acerca dos conflitos e
contradições na sociedade capitalista. Freire promove nele próprio uma fusão das
duas perspectivas, por um lado, arrefecendo o idealismo cristão e incorporando
categorias marxianas que favoreciam a uma melhor compreensão do mundo e, por
outro, rejeitando os resquícios da compreensão dogmática e sectária de uma
tradição da esquerda, associada a uma prática stalinista.
O autor elabora uma concepção de educação que confronta a pretensa
neutralidade política, questionando a realidade e suas contradições. Freire
compreende a educação como resultante de uma prática dialogal, fundada no
respeito à diversidade humana, com o objetivo de promover a humanização dos
oprimidos.
Além da própria prática educativa do próprio Freire, Pedagogia do
Oprimido recebe influência de campos científicos diversos, como filosofia, sociologia,
economia, antropologia etc. Assim torna-se um marco inicial da filosofia educacional
98
de Paulo Freire que o torna respeitado em todo mundo. Nesta obra, de originalidade
ímpar, Freire desenvolve um conjunto de conceitos que orientam educadores e
educadoras que se indignam com as práticas educativas opressoras e acreditam
nos processos de humanização da educação. A partir de uma concepção de
homem, sociedade e educação voltada para a libertação e a consciência crítica,
Freire se coloca contra os processos desumanizantes da educação tradicional,
denominada por ele de educação bancária.
Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire discute as estratégicas
ideológicas das elites dominantes em relação às classes trabalhadoras: dominação,
manipulação, divisão da classe trabalhadora e invasão cultural, mostrando que elas
trazem o firme propósito de subjugar sua consciência a um conformismo com a
realidade, preservando-se as relações de poder. Ele dirige-se às classes
trabalhadoras e aos oprimidos da sociedade, compartilhando-lhes a possibilidade de
uma inserção crítica e histórica na realidade, proporcionando-lhes a esperança de
emancipação social.
A partir de uma análise da educação veiculada unanimemente pelo
sistema educacional, a qual Freire denomina de bancária, desenvolve fecunda
reflexão sobre as consequências dessa educação na formação social. Em
Pedagogia do Oprimido, Freire demonstra que a educação bancária, em forma e em
conteúdo, contribui imensamente para a manutenção da sociedade capitalista. Isto é
possível, porque se trata de uma educação que imprime uma transmissão de
conteúdos curriculares prescritos e mecanizados, a qual inviabiliza as possibilidades
de reflexão dos mesmos. A educação imposta pelos setores dominantes não
valoriza os saberes e vivências dos oprimidos, retira-lhes a oportunidade de uma
educação crítica para uma formação emancipatória.
Ao longo da obra, Freire também traz a tona elementos de reflexão sobre
a relação educação e trabalho, revelando assim sua preocupação política e
educativa frente ao processo de alienação pelo qual os trabalhadores são
submetidos. Contra a alienação imposta pelas relações desumanizadoras dos
processos de opressão, Freire apresenta uma proposta de educação
problematizadora e libertadora da condição desumana.
Para a efetivação desse processo de humanização do indivíduo, a
alienação deve ser enfrentada através da construção política e coletiva de um novo
99
modelo de educação que rompa com a escola bancária, que em última instância
presta-se ao serviço de manutenção das relações sociais capitalistas.
Apesar da influência marxista no seu pensamento, ao discutir a alienação,
e também a necessidade histórica de superá-la, Freire (1983) a concebe num campo
das ideias e da consciência, e não na materialidade da exploração do trabalho,
conforme compreendida por Marx (1983). Constata-se que a compreensão freireana
desse conceito é caracteristicamente filosófica e menos econômica, marcada pela
influência do existencialismo cristão. Num certo sentido, a concepção de alienação
de Freire, sendo mais idealista, é também mais difusa e abrangente, tendo um uso
bem apropriado para a compreensão da educação, negada aos oprimidos. É a partir
desse entendimento que Freire desenvolve uma dimensão educativa na disputa da
consciência da classe trabalhadora e dos oprimidos. Frente a perspectiva ingênua
da consciência individual e social reproduzida pela educação bancária no sistema
formal de ensino e educação para a dominação na sociedade em geral, Freire
sugere uma prática educativa orientada para a liberdade que possibilitem a
construção de uma consciência crítica.
Em Pedagogia do Oprimido, Freire vislumbra vários espaços de
conscientização dos indivíduos na sociedade tais como escola, locais de trabalho, as
lutas dos movimentos sociais e demais lugares ocupados pelos seres humanos no
palco da luta de classes. É recorrente o apelo que Freire realiza para que os
oprimidos e suas lideranças resistam a situação de alienação – do trabalho e
ideológica, através de uma educação crítica e transformadora. a partir da ruptura
com a alienação ideológica e o pensamento ingênuo dos fenômenos na realidade.
Freire é esperançoso e otimista quanto as possibilidades dos indivíduos em
contradição com a estrutura desigual e injusta da sociedade superarem o
pensamento ingênuo e se libertarem das amarras da exploração e opressão
capitalistas.
É recorrente o apelo a perspectiva revolucionária de educação no
pensamento freireano. Frente a situação de opressão, Freire conclama os sujeitos
individuais e coletivos a se envolverem nas causas, ideias e lutas por transformação
social. Em defesa de uma práxis político educativa efetivamente revolucionária,
porque é também dialogal, alerta lideranças para uma postura não contraditória em
relação a superação das opressões.
100
A educação libertadora pressupõe consciências e práticas educativas que
apontem para a ruptura com a opressão capitalista que se manifesta nas mais
variadas relações dos grupos e classes sociais, com vistas a emancipação humana.
A obra Pedagogia do Oprimido reafirma enfaticamente a relação entre educação e
consciência, posicionando-se claramente por uma formação crítica que consiga
banir a opressão da sociedade capitalista. Assim, Freire não dissocia formação para
a consciência emancipatória de práxis de intervenção social e política na realidade.
É a dimensão prática da educação que modifica a realidade.
A formação dos indivíduos, a educação no sentido amplo, decorre de
inúmeras experiências que os indivíduos vivem em sociedade. Na prática educativa
dialogal, a escuta, o debate e a reflexão se tornam instrumentos de conscientização
e libertação dos indivíduos.
Outro aspecto recorrente em Pedagogia do Oprimido é a ênfase que
Freire dá a relação entre ação educativa e reflexão. Nela o educador e a educadora
escolar ou social deve construir um processo crítico e reflexivo em sala de aula ou
na prática social e educacional mais ampla, respeitando a cultura e os saberes dos
educandos e educandas.
Existem muitos espaços que contribuem ou não para a formação do
sujeito crítico, sendo a escola apenas um deles. Apesar do destaque que dá na
contraposição entre educação bancária e educação problematizadora em Pedagogia
do Oprimido, Freire compreende que a escola por si só não pode ser
responsabilizada pela formação da consciência crítica, tampouco transformação do
homem e da sociedade, embora ela seja um grande espaço de disputa para a
consciência e formação humana.
Freire demonstra que muito há de se fazer para que a escola seja
autônoma, crítica e libertadora. Sujeitos sociais diversos, classes trabalhadoras,
movimentos sociais, organização de educadores terão que avançar rumo às
conquistas democráticas relacionadas a justiça e igualdade social para que a lógica
excludente e reprodutora de um sistema escolar seja superada. Apesar da
importância que atribui a pedagogia crítica frente a educação bancária, Freire
entende que a prática educativa fundamental não ocorre no âmbito da escola, pois a
transformação da realidade parte das contradições das relações sociais mais
amplas.
101
Portanto, a dialética de transformação da educação e da realidade
presente na filosofia educacional de Freire torna-se cada vez mais atual, posto o
sistema de alienação, que além de explorar, oprimir e desumanizar, cria as
contradições entre opressores e oprimidos, as quais emergem os sujeitos históricos
armados de compromisso na construção da humanização. A práxis educativa
transformadora está intrinsecamente associada a uma ação política de caráter
coletivo e dinâmico.
Destaco também o poder das lideranças revolucionárias para fazerem, as
massas populares aderirem ao diálogo, problematizando a sua própria opressão.
Freire faz referência a dois tipos de adesão: a conquistada, em que a liderança faz
dos oprimidos apenas massa de manobra para os seus propósitos sem provocar o
questionamento da sua própria realidade e dos caminhos e estratégias de luta, e a
verdadeira, em que os oprimidos discutem e escolhem mediante as opções
disponíveis.
Num contexto em que o pensamento crítico na educação enfatiza o
caráter reprodutor da escola, as ideias freireanas emergem a filosofia da práxis,
alimentando utopias de novo mundo, novas consciências, outra educação para
novos homens e novas mulheres, numa sociedade democrática e livre dos grilhões
da opressão e exploração capitalista.
Na obra Pedagogia do Oprimido perpassa o dilema do idealismo e do
materialismo histórico dialético, a filosofia da práxis, em toda a sua extensão. Isso dá
a obra uma complexidade contraditória, atraente e intrigante, com diferentes
nuances entre as perspectivas, as quais se unificam num pensamento educacional
inovador, pautando inquietas e desafiadoras questões para o desvendamento da
realidade objetiva e subjetiva na perspectiva da transformação social e emancipação
humana.
A conjunção de conceitos relacionados ao devir humano, a construção da
humanidade, como: educação libertadora, consciência crítica, práxis revolucionária,
liberdade e emancipação fazem da obra Pedagogia do Oprimido uma contribuição
pedagógica a todos e todas que desejam e lutam por uma sociabilidade sem
opressões, sem exploração.
De tudo que foi dito e analisado em Pedagogia do Oprimido, espero que
este trabalho contribua para a discussão e atualização do pensamento freireano.
Compreendo que no interior da postura dialética todo pensamento deve debatido,
102
considerado e melhorado. A luta pela transformação social tão necessária aos
tempos de hoje parte do diálogo.
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REFERÊNCIAS
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