UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO...

166
0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS - CESA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL: UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ FORTALEZA 2013

Transcript of UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO...

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

0

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS - CESA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA

TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL:

UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE

PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ

FORTALEZA

2013

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

1

PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA

TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL:

UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE

PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ

Dissertação submetida ao Mestrado Acadêmico em

Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do

Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de

mestra em Políticas Públicas e Sociedade.

Orientação: Prof.ª Dra. Maria Helena de Paula Frota.

FORTALEZA

2013

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho

Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3 / 919

L732t Lima, Priscila Nottingham de

Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual: um estudo no

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará /

Priscila Nottingham de Lima. — 2013.

CD-ROM. 160 f. ; 4 ¾ pol.

―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7

mm)‖.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro

de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em

Políticas Públicas e Sociedade, Fortaleza, 2012.

Área de Concentração: Políticas Públicas.

Orientação: Profa. Dra. Maria Helena de Paula Frota.

1. Tráfico de mulheres. 2. Violência de gênero. 3. Núcleo de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Título.

CDD: 306.74

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

3

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

4

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

5

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço à Deus, que trouxe crescimento espiritual para a minha vida e

nela realizou coisas maravilhosas durante esses últimos dois anos.

À minha querida e amada mãe, minha companheira e amiga, meu sustentáculo de força e

motivação para todas as horas;

À minha sobrinha Alicia, por trazer doçura, esperança e enorme alegria para minha vida;

A toda a equipe do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará, por

ter colaborado tão prontamente com essa investigação e por torcer sempre pelo meu sucesso;

À minha amiga Luana, pelo exemplo de força, perseverança e superação;

À minha amiga Lara, por compartilhar alegrias e angústias no percurso desse Mestrado;

À professora Helena Frota, pelas críticas e contribuições para o meu amadurecimento

acadêmico;

À professora Zelma Madeira, por ter acreditado na minha capacidade de avançar nessa

pesquisa e pelos anos de apoio e acompanhamento durante meu período de graduação;

À professora Dolores Mota, por tão prontamente ter aceitado participar da banca de defesa

dessa dissertação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por proporcionar

as condições necessárias para uma dedicação total aos estudos.

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

6

Duros mercadores se unem no mal,

E à meia-noite concedem o plano fatal;

Malham o primeiro elo da cadeia do terror,

Cujas vibrações se prolongam no reino da dor

[...]

Com ares enganosos dobravam a mente descuidada

Lançavam suas redes e colhiam sua presa.

Por fim, imputando-lhe uma dívida inventada,

A jogavam na masmorra, onde ficava indefesa.

[...]

Brancos ou pretos – livres ou cativos,

É tudo a mesma coisa nas mãos do malvado.

Respeito aos idosos, encanto delicado do sexo,

Lei ou sentimentos, nada detém o braço ensanguentado.

(STANFIEL apud REDIKER, 2011, p. 148; 158).

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

7

RESUMO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura a todas as pessoas, sem

distinção de raça, idade, religião, gênero ou classe social, proteção integral aos direitos

humanos, dentre os quais podemos citar à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Contudo, a

realidade atesta a violação sistemática desses princípios, cuja uma das corporificações têm se

transfigurado no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial. A prática foi

evidenciada nacionalmente pela primeira vez por meio da Pesquisa Nacional sobre o Tráfico

de Mulheres, Crianças e Adolescentes (Pestraf), publicada em 2002, que identificou a

existência de 241 rotas de tráfico para fins de exploração sexual no país. A visibilidade da

questão mobilizou o Estado a implantar políticas de enfrentamento por meio da criação de

Escritórios de Combate, Prevenção e Assistência as Vítimas. No Ceará, a instituição funciona

desde 2003, entretanto, devido ao decreto publicado em 2011, alterou sua nomenclatura para

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE). A

experiência da pesquisadora enquanto assistente social no referido Núcleo durante os anos de

2008-2011, tornou possível a observação de dificuldades no momento da identificação dos

casos de tráfico de seres humanos por parte da equipe multidisciplinar atuante naquele local,

ocasionando na interpretação distorcida das situações e em atendimentos pontuais. O objetivo

central da presente investigação consiste, portanto, em abordar a questão do tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual comercial através da perspectiva dos profissionais

atuantes no NETP/CE. Tal recorte deu-se em decorrência da predominância desse perfil entre

os atendimentos realizados pela instituição. Para alcançar o objetivo proposto, utilizamos a

análise dos discursos como método de interpretação, associado às seguintes técnicas:

entrevista semi-estruturada, pesquisa documental e observação em campo. Como objetivos

específicos, realizamos levantamento bibliográfico das manifestações do fenômeno no Brasil

e dos documentos internacionais dos quais o país tornou-se signatário, assim como das

normativas do Estado brasileiro que abordam a questão. Tal levantamento teve como foco

principal evidenciar as características plurais e complexas do tráfico de mulheres, por vezes

confundido com prostituição ou migração de prostitutas. Realizamos ainda, como objetivo

específico, pesquisa e análise documental nos processos arquivados no campo de pesquisa

com o intuito de identificar as características principais das vítimas e agressores no tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual. Como forma de subsidiar nossa análise, a dimensão

da violência de gênero foi considerada, tendo em vista que na realidade do Estado do Ceará,

há predominância de mulheres como possíveis principais vítimas desse tipo de violência, em

oposição aos homens, que têm sido apontados como principais exploradores, conforme

atestam os dados coletados por meio da referida análise documental. Assim, essa variedade de

abordagens metodológicas foram intercaladas para viabilizar o diagnóstico crítico proposto

nessa investigação de natureza qualitativa.

Palavras-Chave: Violência de Gênero, Tráfico de Mulheres, Núcleo de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas.

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

8

ABSTRACT

The Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988 ensure all persons irrespective

of race, age, religion, gender or social class, full protection of human rights, among which we

can mention to life, liberty and security of person. However, the reality attests to the

systematic violation of these principles, one of which embodiments have been transfigured in

the trafficking of women for sexual exploitation. The practice was highlighted nationally for

the first time by the National Research on Trafficking in Women, Children and Adolescents

(Pestraf), published in 2002, which identified the existence of 241 routes of trafficking for

sexual exploitation in the country. The visibility of the issue mobilized the State to implement

policies addressing to the creation of Offices of Combat, Victims Assistance and Prevention.

In Ceará, the institution works since 2003, however, because of a decree published in 2011,

the organization changed its nomenclature to the Center for Combating Trafficking in Persons

in the State of Ceará (NETP/CE). The researcher's experience as a social worker of the

institution during the years 2008-2011, made possible the observation of difficulties at the

time of identification of cases of human trafficking by the multidisciplinary team that active

structure, resulting in distorted interpretation of situations and punctual attendance. The

central objective of this research is therefore to address the issue of trafficking in women for

sexual exploitation through the perspective of professionals working in the NETP/CE. This

cut gave up due to the predominance of this profile between the care provided by the

institution. To achieve our objective, we use discourse analysis as a method of interpretation

associated with the following techniques: semi-structured interviews, desk research and field

observation. As specific objectives, we conducted bibliographic manifestations of the

phenomenon in Brazil and international documents to which the country became a signatory,

as well as the regulations of the Brazilian state addressing the issue. This survey focused on

highlighting the main features plural and complex trafficking of women, sometimes confused

with prostitution or migration of prostitutes. We also performed, as a specific objective,

document research and analysis in cases filed in the field of research in order to identify the

key characteristics of victims and perpetrators in the trafficking of women for sexual

exploitation. As a way to subsidize our analysis, the extent of gender violence was considered

in view of the fact that the State of Ceará, there is a predominance of women as the main of

possible victims of such violence, as opposed to men, who have been identified as major

explorers, as evidenced by the data collected through the said document analysis. Thus, the

variety of methodological approaches were merged to facilitate the diagnosis proposed in this

critical qualitative research

Keywords: Trafficking Women, Gender Violence, Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao

Tráfico de Pessoas.

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

9

SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS............................................................................10

LÍSTA DE GRÁFICOS..........................................................................................................11

LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................12

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERCURSO TEÓRICO - METODOLÓGICO........18

1.1. Aproximações e construção do objeto de estudo.....................................................18

1.2. Natureza e Instrumentos da Pesquisa.......................................................................39

1.3. Lócus da Pesquisa: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do

Ceará.............................................................................................................................45

2. TRÁFICO DE PESSOAS E ESCRAVIDÃO: DO BRASIL COLÔNIA AOS DIAS

ATUAIS....................................................................................................................................58

2.1. Escravidão e Tráfico Negreiro..................................................................................59

2.2. A Mulher Negra e Escravizadas no Brasil Colonial.................................................65

2.3. O Tráfico Negreiro no contexto do Estado do Ceará...............................................67

2.4. Tráfico de Mulheres na Belle Époque brasileira......................................................70

2.5. Fenômeno Polimórfico: múltiplas formas de exploração no Tráfico de Pessoas

contemporâneo.................................................................................................................81

3. ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS: INSTRUMENTOS

NORMATIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS.......................................................................95

3.1. Tratados Internacionais.............................................................................................98

3.2. Protocolo de Palermo e os Instrumentos Normativos Contemporâneos................104

4. ANÁLISE DOCUMENTAL E DOS DISCURSOS: PERCEPÇÕES SOBRE OS

DADOS COLETADOS NO NETP/CE...............................................................................113

4.1. Dados do Campo: Pesquisa e Análise Documental................................................113

4.2. Oralidade em questão: análise das entrevistas........................................................127

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................152

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

10

APÊNDICES

APÊNDICE A – Roteiro de entrevista....................................................................................163

ANEXOS

ANEXO A – Decreto Estadual nº 30.682 de 22 de setembro de 2011, que institui, no âmbito

do Estado do Ceará, o Programa Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e cria o

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/CE) junto à Secretaria da Justiça e

Cidadania................................................................................................................................164

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

10

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABIN – Agência Brasileira de Inteligência

CECRIA – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes

DDM – Delegacia de Defesa da Mulher

DECECA – Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente

EEPTSH – Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e

Assistência a Vítima

GGI – Gabinete de Gestão Integrada

GGI/CE – Gabinete de Gestão integrada do Estado do Ceará

LABVIDA – Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética

LMD – Liga Moçambicana de Direitos Humanos

NETP – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

NETP/CE – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará

NETP/SP – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo

NUCEPEC – Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PESTRAF – Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes

PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania

SEJUS – Secretaria da Justiça e Cidadania

SNJ – Secretaria Nacional de Justiça

UNICRIA – Instituto das Nações Unidas de Pesquisa sobre Justiça e Crime Interregional

UNODC – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

11

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 01 – Número de Processos arquivados no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 02 – Número de Ações realizadas pelo GGI/CE com a participação do NETP/CE,

por Município, em 2009.

GRÁFICO 03 – Número de Processos referentes aos casos e possíveis casos de Tráfico de

Pessoas arquivados no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 04 – Tipo de Tráfico de acordo com o levantamento documental realizado nos

processos do NETP/CE.

GRÁFICO 05 – Número de vítimas descritas nos processos de Tráfico de Pessoas arquivados

no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 06 – Possíveis Vítimas de Tráfico de Pessoas, por sexo, de acordo com os

processos arquivados no NETP/CE.

GRÁFICO 07 – Faixa etária das mulheres possíveis vítimas de Tráfico para fins de

Exploração Sexual nos Processos do NETP/CE entre os anos de 2003-2012

GRÁFICO 08 – Naturalidade das Mulheres Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de

Exploração Sexual descritas nos processos arquivados no NETP/CE.

GRÁFICO 09 – Escolaridade das Mulheres Vítima/Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de

Exploração Sexual catalogadas nos processos do NETP/CE.

GRÁFICO 10 – Estado Civil das Mulheres Vítimas/Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de

Exploração Sexual de Acordo com os processos do NETP/CE.

GRÁFICO 11 – Possíveis Agressores de Tráfico de Pessoas, por Sexo, de acordo com os

processos arquivados no NETP/CE.

GRAFICO 12 – Profissionais do NETP/CE entrevistados(as)

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

12

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – Panfleto distribuído nas ações preventivas desempenhadas pelo NETP/CE

FIGURA 02 - Panfleto (frente e verso) sobre tráfico de mulheres produzido pelo Ministério

da Justiça.

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

13

INTRODUÇÃO

O fenômeno central que impulsionou o desenvolvimento desta pesquisa foi tráfico

de mulheres para fins de exploração sexual comercial. O interesse pela temática surgiu a partir

da experiência profissional da pesquisadora durante o período de três anos em que atuou no

antigo Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência a

Vítima do Estado do Ceará (EEPTSH), hoje Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

(NETP/CE), sediado na Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará (SEJUS/CE).

Tal atuação tornou possível perceber a dificuldade da equipe multidisciplinar em

identificar os casos de tráfico, por vezes confundindo-os com prostituição, migração de

prostitutas ou exploração sexual. Nesse sentido, a inquietação basilar que norteou o

desenvolvimento dessa pesquisa foi a de identificar como esses profissionais percebem o

tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.

O recorte da temática deu-se em virtude da predominância de mulheres na posição

de possíveis vítimas, em oposição aos homens, que têm sido apontados como principais

exploradores de acordo com o cotidiano de atendimento do NETP/CE e conforme ratifica a

pesquisa documental realizada na instituição como etapa do processo investigativo proposto

nesse estudo.

Levando em consideração uma perspectiva histórica, enfatizamos que o tráfico de

seres humanos apresentou os primeiros indícios de sua existência no Brasil durante o período

colonial (1500-1822), quando milhares de negros e negras advindos(as) dos países africanos

foram trazidas à força de sua terra natal para executar trabalho forçado nas mais diversas

atividades de caráter braçal, com principal alocação nas fazendas canavieiras.

Nesse contexto, nossa ênfase recai sobre as mulheres negras e nas múltiplas e

diversas formas pelas quais foram exploradas naquele universo. Não apenas violadas em seu

direito de liberdade, mas por sua condição de mulher, muitas africanas e descendentes foram

violentadas sexualmente no cativeiro e/ou no translado para o Brasil. Expropriadas de seus

corpos, foram exploradas no trabalho escravo e na prostituição, sendo os rendimentos

adquiridos nessas atividades de propriedade do seu senhor, conforme atesta Joaquim Nabuco

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

14

(2010). Maltratadas também pelas sinhás, inúmeras mulheres negras foram mutiladas: olhos

furados, seios decepados e unhas arrancadas.

A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, apesar de representar um

marco legal para a abolição da escravatura, não foi capaz de extinguir os aspectos subjetivos

da prática: o(a) negro(a) permanece historicamente na posição de sujeição e exploração.

Associadas à esses(as) sujeitos(as), também em posição de menos favorecidos(as) na

sociedade, estão ainda o(a) pobre e a mulher.

A posição de gênero também se associa aos fatores que catalisam a ação dos

exploradores. Assim, conforme anunciado, os elementos de raça/etnia não são os únicos que

permeiam o tráfico de pessoas contemporâneo, aspectos relacionados a diversos tipos de

discriminação de origem socioeconômica e cultural se relacionam intimamente com a prática,

que tem por objetivo a sujeição e exploração das vítimas.

De acordo com o I Diagnóstico sobre o Tráfico de Seres Humanos: São Paulo,

Rio de Janeiro, Goiás e Ceará (2004), o tráfico de pessoas só é possível a partir de um longo

processo histórico e cultural de redução da humanidade do outro, que transforma, aos olhos

das redes criminosas e dos consumidores desses ―serviços‖, as vítimas em não-humanos, não-

detentores de direitos e não-iguais, permitindo a naturalização da violação dos direitos

humanos.

Embora relacionado com a escravidão, por definição1, o tráfico de seres humanos

é compreendido, resumidamente, como aquele que prevê o recrutamento ou sequestro de

pessoas, através de um aliciador, que pode lançar mão de vários tipos de estratégias;

deslocamento das mesmas e exploração no destino fim. Sendo, portanto, na minha perspectiva

de pesquisadora e profissional, o recrutamento/aliciamento, deslocamento e exploração no

destino final os elementos-chave para caracterizar a prática.

Enfatizamos ainda que o aliciamento/recrutamento pode ocorrer por meio de

coação, sequestro ou convencimento; o deslocamento deve compreender a mudança de

1 Definição baseada no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado

Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e

Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo, publicado no ano 2000.

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

15

domicílio, devendo ocorrer entre Municípios, Estados ou Países; a exploração atualmente é

múltipla, sendo mais comum no contexto do Estado do Ceará aquela que envolve a

exploração sexual de mulheres.

O problema tornou-se publicamente evidente no Brasil especialmente a partir da

publicação, em 2002, da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para

fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), que identificou rotas nacionais e

internacionais de tráfico de mulheres, meninas e adolescentes, evidenciando uma realidade até

então invisível. O estudo apresentou que as cidades mais afetadas pela prática são aquelas que

estão estrategicamente localizadas nas proximidades de rodovias, portos e aeroportos, pois são

pontos de fácil mobilidade. (PESTRAF, 2002, p. 71).

O Brasil, tendo em vista a vasta extensão de seu território – com várias regiões de

fronteira –, características socioeconômicas da população, formação histórico-cultural

machista e racista, concentra elevado número de pessoas passíveis a vivenciar situação de

tráfico. Tal realidade culminou no desenvolvimento de normativas e políticas públicas

voltadas para a questão no país. Contudo, essas iniciativas têm esbarrado em compreensões

enviesadas com relação à definição do fenômeno, culminado em práticas de perseguição de

prostitutas e deportação de imigrantes.

Diante desses paradoxos, estruturou-se toda uma rede de políticas públicas de

enfrentamento ao tráfico de seres humanos no país, tendo como principal organização o

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP). Tal estrutura foi criada com base na

Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, priorizando três áreas de atuação:

prevenção, assistência as vítimas e repressão aos criminosos.

Por considerar a identificação adequada dos casos de tráfico de mulheres para fins

de exploração sexual uma prerrogativa indispensável para o desenvolvimento de estratégias

de assistência e promoção dos direitos humanos fundamentais dessas pessoas, bem como para

evitar a reinserção delas no ciclo do tráfico, acreditamos ser de essencial relevância investigar

como a problemática tem sido percebida pelos profissionais que atuam no enfrentamento da

situação.

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

16

Dessa forma, o objetivo central desse estudo é identificar e analisar a percepção

dos profissionais atuantes no NETP/CE em relação ao tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual comercial. Por compreender que a instituição é fruto de políticas públicas

estatais, resultado de uma compreensão do Estado acerca do tráfico de pessoas (mulheres),

estabeleceu-se como um dos objetivos específicos compreender de que maneira esse Estado

percebe o fenômeno através de suas normativas legais (tratados internacionais dos quais

tornou-se signatário e legislação nacional). Como forma de complementar a análise,

estabelecemos ainda como objetivos específicos: identificar, por meio de pesquisa

bibliográfica, as manifestações históricas da questão e investigar o perfil de vítimas e

agressores descritos(as) nos processos arquivados pelo NETP/CE.

Em posse desses posicionamentos, o trabalho foi desenvolvido em quatro

capítulos. O primeiro, intitulado de ―Considerações sobre o percurso teórico-metodológico‖,

trata do percurso teórico-metodológico da pesquisa, apresentando as aproximações com o

campo, surgimento das primeiras indagações, amadurecimento na percepção do objeto,

categorias centrais de análise, aspectos importantes em relação às posturas interpretativas e

instrumentos técnicos de investigação.

O segundo capítulo – Tráfico de pessoas e escravidão: do Brasil colônia aos dias

atuais – trata da pesquisa bibliográfica direcionada ao resgate histórico do tráfico de seres

humanos, com destaque para o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Nesse

percurso, foram apresentados elementos referentes ao período colonial, com foco nas

mulheres negras, levando em consideração especialmente o contexto nacional. Apresentamos

ainda o tráfico de escravas brancas para o Brasil no período da Belle Époque (1871-1914). Por

fim, tratamos das características contemporâneas do tráfico de pessoas. A proposta não é

apresentar o fenômeno numa perspectiva evolutiva, ou mesmo identificar uma essência para o

mesmo, mas viabilizar a compreensão histórica a partir da concepção de descontinuidade,

complexidade e metamorfose.

O terceiro capítulo, cujo título adotado foi ―Enfrentamento ao tráfico de seres

humanos: instrumentos normativos e políticas públicas‖, aborda algumas iniciativas do

Estado frente à problemática, documentos internacionais que tiveram como pauta o

enfrentamento ao tráfico de seres humanos, suas fragilidades e as modificações angariadas na

definição construída e publicada através do Protocolo de Palermo (2000). Evidencia ainda as

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

17

incompatibilidades do mesmo em relação ao Código Penal Brasileiro (CPB) e a estruturação

das políticas de enfrentamento ao tráfico de seres humanos atuais, tendo em vista tais

fragilidades.

O quarto e último capítulo, intitulado de ―Análise documental e dos discursos:

percepções sobre os dados coletados no NETP/CE‖ apresenta a análise documental dos

processos arquivados no NETP/CE e a análise dos discursos dos profissionais atuantes na

referida instituição, evidenciando a percepção dos mesmos no que tange à temática do tráfico

de mulheres para fins de exploração sexual, ressaltando os principais avanços e impasses

decorrentes da prática desempenhada pelos mesmos, levando em consideração,

especialmente, as lacunas legais e a dificuldade na aplicação e interpretação da lei.

Por fim, as considerações finais expressam um apanhado geral da pesquisa no

sentido de refletir de que maneira as inquietações iniciais foram respondidas, evidenciando

apontamentos da pesquisadora e sinalizando novas inquietações, numa perspectiva de indicar

possíveis aprimoramentos que possam subsidiar o enfrentamento ao tráfico de mulheres para

fins de exploração sexual comercial.

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

18

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO E AS

INCURSÕES NO CAMPO DE PESQUISA

[...] não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou

tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo,

lancem sua primeira claridade. Mas essa dificuldade não é apenas negativa; não se

deve associá-la a um obstáculo cujo poder seria, exclusivamente, de cegar, perturbar,

impedir a descoberta [...] (FOUCAULT, 2008, p. 50)

1.1. Aproximações e construção do objeto de estudo

A construção do conhecimento no âmbito do tráfico de seres humanos tem sido

uma tarefa repleta de desafios: até o momento da conclusão desse estudo, não tomamos

conhecimento de nenhuma obra literária que discuta a questão em profundidade.

Identificamos alguns artigos, que pelo próprio formato que possuem, têm desenvolvimento

limitado; alguns relatórios de pesquisa de instituições como a Organização Internacional do

Trabalho (OIT), Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes (UNODC) e

Ministério da Justiça (MJ), que apresentam uma série de dados, mas categorizam o conceito

com elementos de pouca complexidade2; e os documentos legais – nacionais e internacionais

– que abordam a temática, todavia numa perspectiva demasiadamente jurisdicional.

Atualmente, contudo, o debate em torno da temática encontra-se em centralidade e

expansão. Exemplo disso é a exibição da telenovela ―Salve Jorge‖3 pela emissora Rede

Globo, cujo um dos núcleos de enredo envolve a história de jovens mulheres enganadas por

propostas de emprego, levadas para a Europa e exploradas no mercado de venda do sexo. As

personagens retratadas são aliciadas por uma articulada rede de criminosos, acabam

aprisionadas numa boate em Istambul, na Turquia, onde são submetidas ao cárcere privado e

obrigadas a realizar programas sexuais.

Embora a novela tenha uma representação fictícia, destacamos que a iniciativa

trouxe ao debate público aspectos de uma realidade até então desconhecida em muitos

aspectos. Identificamos, inclusive, que a propagação na mídia do fenômeno pode estar

2 Em todos os relatórios de pesquisa que tive acesso, a definição de tráfico de Pessoas esteve baseada no

Protocolo de Palermo, o qual também discutiremos mais adiante nesse trabalho.

3 Novela escrita por Glória Perez e dirigida por Marcos Schechtman.

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

19

repercutindo no aumento das denúncias recebidas pelo NETP/CE, conforme ressalta uma das

profissionais entrevistadas nesse estudo, nomeada de Lagosta4:

Nós recebemos também várias denúncias, é... a questão da novela, dobraram as

denúncias...é até.... nós tínhamos ano passado seis casos de tráfico, possíveis casos

de tráfico né, [...] eeee... até agora nós temos doze, ééé... e de vários atores, por isso

eu tenho, tô percebendo que a rede, a partir dessa novela, vem se identificando com

a existência do fenômeno, com a existência do crime [...] (Lagosta).

Em relação ao contato com os sujeitos envolvidos no tráfico de pessoas,

considero-me privilegiada devido à experiência adquirida durante os três anos de prática

profissional no NETP/CE. Contudo, as aproximações com a temática da exploração sexual

tiveram início ainda no período de graduação, quando em 2007 fui aprovada na seleção para

participar como bolsista do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento

da Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro (PAIR-expansão)5, realizado nos

municípios de Caucaia, Aracati, Milagres e Sobral.

Nesse mesmo direcionamento, em 2008 participei do Projeto Escola que Protege,

também coordenado em parceria entre UECE e UFC, direcionado à promoção e defesa dos

direitos da criança e adolescente através de ações realizadas no contexto escolar. Previa a

formação continuada de professores e demais profissionais da área da educação no espaço das

instituições públicas – onde inclusive organizamos capacitações – e elaboração de material

didático à respeito da promoção desses direitos.

Ainda no ano de 2008, surgiu a oportunidade de estágio na Secretaria da Justiça e

Cidadania do Estado do Ceará. Tal órgão agrega em sua estrutura uma unidade de prevenção

e enfrentamento ao tráfico de pessoas, na época intitulada de Escritório de Combate e

Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima, para fui encaminhada.

4 Nomeação fictícia atribuída como forma de garantir sigilo à sua identidade.

5 Projeto de Extensão que ocorreu em parceria da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Universidade

Federal do Ceará (UFC) através do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida/UECE),

Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (NUCEPEC/UFC) e Núcleo de Estudos e Pesquisas

sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF/UFC). Trata-se de um programa que visou articular o fortalecimento das

redes de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. As ações previam coleta de dados em

campo à respeito da situação dos municípios em relação à questão (número de denúncias, processos, perfil das

vítimas e agressores, etc.) capacitações para os profissionais da rede e fortalecimento dos Conselhos de Direitos.

Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

20

Tal contato despertou um profundo interesse em compreender melhor a realidade

que permeia o tráfico de pessoas, que se apresentou de forma intrigante e singular.

Questionamentos à respeito das motivações que levariam esses sujeitos à aceitarem a proposta

de um aliciador e compreender a predominância de mulheres na posição de vítimas e de

homens na posição de exploradores foram algumas das minhas inquietações preliminares.

Assim, as primeiras tentativas de desvendar o problema ocorreram durante a

pesquisa para o trabalho de conclusão do curso de Serviço Social6, que inclusive rendeu um

diário de campo cujo alguns trechos foram utilizados nessa dissertação. Contudo, os

elementos evidenciados nessa análise não foram capazes de oferecer respostas razoáveis à

vasta gama de inquietações da pesquisadora, que permaneceram latentes.

Em virtude dessas limitações, empreendeu-se uma segunda tentativa de desvelar a

complexidade desse objeto, numa experiência proporcionada a partir da elaboração do

trabalho de conclusão da Especialização em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos

Sociais7, apresentado e aprovado em fevereiro de 2011. Entretanto, devido ao curto prazo para

produção dessa pesquisa, muitos questionamentos permaneceram intocáveis.

Por fim, uma terceira tentativa de análise desenvolveu-se durante a experiência

desse Mestrado. Embora o recorte tenha sido redefinido, agora enfatizando o tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual, numa perspectiva de compreensão a partir dos

discursos dos profissionais atuantes na estrutura de enfrentamento, os vínculos com a temática

original permaneceram, o que favoreceu uma reaproximação mais amadurecida, partindo-se

do pressuposto de que a construção do conhecimento efetiva-se por sucessivas aproximações

com a realidade.

A nova redefinição dos elementos que tangenciam a temática deu-se em função de

observações empreendidas no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do

Ceará (NETP/CE), que revelaram a recorrente dificuldade dos profissionais envolvidos na

tarefa de identificação dos casos de tráfico.

6 Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE), cuja conclusão ocorreu no semestre de 2009.1.

7 Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE) pelo período de 2009 à 2011.1.

Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

21

Evidenciamos, contudo, que a confusão conceitual na caracterização do fenômeno

não é uma realidade vivenciada apenas pelos(as) profissionais do NETP/CE. A pesquisadora

Marina P. P. de Oliveira (2008), ao realizar estudos nas sentenças judiciais entre os anos de

2003 e 2008 nos tribunais federais e estaduais brasileiros, ressalta:

O primeiro grupo de condenações, no qual se concentra a maior parte das sentenças

encontradas, atinge claramente organizações ou indivíduos que atuam para facilitar a

prostituição de terceiros, seja no Brasil, seja no exterior. Em outras palavras, os

elementos definidores do tráfico que são: a violência ou o uso da força ou abuso de

situação de vulnerabilidade no processo de aliciamento, bem como a exploração a

qual a vítima foi submetida, seja na indústria do sexo, no serviço doméstico, na

plantação de cana, etc., sequer aparecem na maior parte dos casos. (OLIVEIRA,

2008, p. 138).

De acordo com a autora, a caracterização tem ocorrido de forma demasiadamente

subjetiva. Elementos essenciais na identificação do crime, tais como o aliciamento e a

exploração da vítima, não têm sido evidenciados nos processos, o que pode indicar imprecisão

na definição adequada dos casos.

Discussões mais aprofundadas em relação a dificuldade na caracterização do

tráfico serão retomadas no terceiro capítulo desse estudo com ênfase na legislação brasileira

deficiente que o país tem sustentado até o momento, ocasionando muitas vezes na perseguição

de prostitutas, deportação e inadmissão de imigrantes, dentre outras práticas discriminatórias.

Retomando a discussão das aproximações com o campo, e tendo em vista a

pertinência de alguns questionamentos, essa pesquisa pretende identificar como o tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual tem sido percebido pela equipe multidisciplinar.

Dentro desse contexto, tentamos evidenciar o perfil das vítimas e exploradores descritos nos

processos arquivados na instituição, o caráter histórico do fenômeno, algumas de suas

múltiplas manifestações sociais e a forma como alguns documentos oficiais e legais percebem

o problema.

Como tráfico de pessoas, consideramos a definição do Protocolo Adicional à

Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à

Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças

(Protocolo de Palermo), quando afirma:

Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

22

a) O tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a transferência, o

alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força

ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de

autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de

pagamentos ou benefícios para obter consentimento de uma pessoa que tenha

autoridade sobre outra, para fins de exploração. (CONVENÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, [s.d.], p. 42,43).

Entretanto, para compreender em profundidade essa categoria, a concepção de

exploração precisa ser discutida à luz da sociedade contemporânea. O Protocolo de Palermo

possui uma perspectiva limitada, porque descreve os tipos de exploração, sem contudo

explica-las: ―[...] A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou

outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas

similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos‖ (IDEM, p. 43).

O referido documento identifica práticas de tráfico de pessoas que podem ou não

estar ligadas às situações de escravatura ou servidão, centrado a finalidade do fenômeno na

exploração8 dos seres humanos. Devemos ressaltar que a situação de escravidão e servidão

contemporâneas diferem daquelas vivenciadas no sistema colonial escravocrata e na servidão

feudal, tendo em vista que não podemos ignorar o contexto socioeconômico em que vivemos,

que acaba imprimindo novos contornos à essas questões.

Nesse sentido, para esse estudo adotaremos a exploração sexual comercial, haja

vista que ocorrem outras manifestações de exploração sexual, com determinações múltiplas

que seriam inviáveis de abordar nesse momento, levando em consideração o caráter restrito

que uma pesquisa representa frente à realidade diversa e ampla que vivenciamos. Dessa

formas, apresentaremos adiante reflexões conceituais tecidas nesse universo.

De acordo com Marx (1996), o que difere o trabalho assalariado no capitalismo,

do sistema escravocrata e da servidão feudal, em linhas gerais, é a maneira pela qual os mais

favorecidos exploram seus subordinados. Essa exploração é exercida com o objetivo de

aquisição e acumulação de mais-valia, cujo modus operandi ocorre por meio da extensão da

jornada de trabalho, denominada pelo autor de mais-trabalho ou sobretrabalho. É exatamente

os limites – ou melhor, não-limites – da referida extensão que irão configurar o capitalismo:

―Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador,

diferencia as formações sócioeconômicas, por exemplo a sociedade da escravidão da do

8 O mercador de seres humanos visa o lucro.

Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

23

trabalho assalariado.‖ (MARX, 1996, p. 332). Tendo em vista as referidas considerações,

explicaremos tais elementos de forma mais detalhada.

Dentro do cenário de relações contraditórias e desiguais nas quais estamos

inseridos(as) ainda hoje, Marx (1996), ao analisar as relações de exploração que permeiam a

sociedade capitalista, em diversos momentos9 denunciou a condição degradante à qual

inúmeros(as) trabalhadores(as), mesmo considerados como ―livres‖, estiveram submetidos(as)

em meados do século XIX:

O sr. Broughton, um county magistrate, como presidente de uma reunião realizada

na prefeitura da cidade de Nottingham, em 14 de janeiro de 1860, declarou que no

setor da população urbana que vivia da fabricação de rendas reinava um grau de

sofrimento e miséria desconhecido no resto do mundo civilizado. (...) Às 2, 3, 4

horas da manhã, crianças de 9 a 10 anos são arrancadas de suas camas imundas e

obrigadas, para ganhar sua mera subsistência, a trabalhar até as 10, 11 ou 12 horas

da noite, enquanto seus membros definham, sua estatura se atrofia, suas linhas

faciais se embotam e sua essência se imobiliza num torpor pétreo, cuja aparência é

horripilante. [...] O sistema, como o reverendo Montagu Valpy o descreveu, é um

sistema de ilimitada escravidão, escravidão no sentido social, físico, moral e

intelectual. (LONDON DAILY TELEGRAPH apud MARX, 1996, p. 357-358).

Os relatos de Marx (1996) denunciam ainda a exploração de crianças e

adolescentes com jornadas de trabalho tão extenuantes quanto às dos adultos:

Wilhelm Wood, 9 anos de idade, tinha 7 anos e 10 meses quando começou a

trabalhar. ―Desde o começo, ele ran moulds (levava a peça modelada à câmara de

secagem e trazia de volta depois a fôrma vazia). Chega todos os dias da semana às 6

horas da manhã e pára por volta das 9 horas da noite. ‗Eu trabalho todos os dias da

semana até as 9 horas da noite. [...]‘. Portanto, 15 horas de trabalho para

uma criança de 7 anos! (MARX, 1996, p. 358).

Em relação ainda a esse primeiro momento do capitalismo industrial,

Castel (1998) descreve algumas das características aviltantes da situação enfrentada pelos(as)

assalariados(as):

Podem-se caracterizar assim os principais elementos dessa relação salarial do início

da industrialização [...]: uma remuneração próxima de uma renda mínima que

assegura apenas a reprodução do trabalhador e de sua família e que não permite

investir no consumo; uma ausência de garantias legais na situação de trabalho regida

pelo contrato de aluguel [...] (CASTEL, 1998, p. 419).

9 Vários relatos podem ser encontrados no Capítulo VIII do Livro I da obra O Capital, a partir do tópico 3,

intitulado ―Ramos da indústria inglesa sem limites legais da exploração‖ (MARX, 1996, p. 357-370).

Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

24

Marx (1996) explica que tal situação é fruto das disposições socioeconômicas

fomentada pelo sistema capitalista de produção. Todavia, longe de defender que a exploração

ocorreu apenas com a instituição da era capitalista: ―[...] toda história tem sido uma história de

lutas de classes, de lutas entre as classes exploradas e as classes exploradoras, entre as classes

dominantes e as classes dominadas [...]‖ (MARX; ENGELS, 2004, p. 29). Contudo, o autor

enfatiza que o sistema burguês de produção é aquele que proporciona o ápice das relações

predatórias de exploração.

Para defender tal posicionamento, Marx (1996) apresenta, por uma série de

cálculos, fórmulas e argumentos, que a exploração do trabalho humano pode ser

dimensionada pela quantidade de mais-valia (base do lucro) extraída do indivíduo que se

encontra em posição inferior. Para ilustrar de forma bastante resumida, nas palavras do

próprio intelectual: ―A taxa de mais-valia é, por isso, a expressão exata do grau de exploração

da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista.‖ (MARX, 1996, p. 332).

Isso ocorre porque para que seja possível extrair a mais-valia, é necessário impor

ao(à) trabalhador(a) um ritmo cotidiano extra de esforço – que extrapola o trabalho

necessáripara pagar o seu salário – denominado por Marx (1996), conforme já indicamos, de

mais-trabalho ou sobretrabalho (p. 350-351). Dessa forma, é essa atividade, na perspectiva do

estudioso, que possibilita a obtenção e acumulação de lucro para o burguês, conforme

apresentamos no seguinte trecho:

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos

limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força de

trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao

capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. Essa parte da jornada de

trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais-

trabalho. (MARX, 1996, p. 331).

Enfatizamos, contudo, que ao empreender tais explicações, o autor não quer

dizer que o mais-trabalho – método por excelência da exploração dos menos favorecidos –

seja criação do sistema capitalista, tanto é que salienta:

O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua

o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao

tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo de trabalho

excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos

meios de produção, seja ele proprietário ateniense, teocrata, etrusco, [...] barão

Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

25

normando, escravocrata americano, boiardo da Valáquia, [...] moderno ou

capitalista. (IDEM, p. 349, grifo nosso).

Marx (1996) indica, todavia, que o mais-trabalho no capitalismo encontra uma

margem ilimitada de necessidade pelo caráter próprio de produção que caracteriza esse

sistema (IBIDEM, p. 349). Ou seja, o capitalismo, devido aos aspectos que o configuram, no

qual há a constante necessidade de expansão dos mercados e acumulação de mais-valia,

demanda por altíssimas margens de sobretrabalho, sempre em ordem crescente de exigência:

Tão logo porém os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores do

trabalho escravo, corveia etc., são arrastados a um mercado mundial, dominado pelo

modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda de seus produtos no

exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da

servidão etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. (MARX,

1996, p. 350, grifo nosso).

Portanto, a exploração, numa perspectiva marxiana, alcança elevadíssimos

patamares dentro das configurações que apresenta o sistema capitalista, exigindo jornadas de

trabalho progressivamente mais prolongadas. Dessa maneira, coloca o autor que: ―[...] a

avidez do capitalista por mais-trabalho manifesta-se no empenho em prolongar

desmedidamente a jornada de trabalho [...]‖ (MARX, 1996, p. 350-351).

Nesse ponto de sua obra, o autor apresenta sucessivos relatos de super-exploração

dos(as) trabalhadores(ras) por meio do mais-trabalho, que em muitos locais àquela época não

possuía qualquer regulamentação jurídico-legal nesse sentido. Como um dos exemplos

extremos dessa prática predatória – ou vampiresca, como diria o próprio Marx (1999)10

apresentamos o caso da modista inglesa Mary Anne:

[...] essas moças trabalham em média 16 1/2 horas, porém, durante a temporada

freqüentemente 30 horas sem interrupção, sendo reanimadas por meio de oferta

oportuna de Sherry, vinho do Porto ou café, quando sua ―força de trabalho‖ fraqueja.

Estava-se então no ponto alto da temporada. [...]. Mary Anne Walkley tinha

trabalhado 26 1/2 horas ininterruptas, juntamente com 60 outras moças, cada 30

num quarto, cuja capacidade cúbica mal chegava para conter 1/3 do ar necessário,

enquanto à noite partilhavam, duas a duas, uma cama num dos buracos sufocantes

em que se subdivide um quarto de dormir, por meio de paredes de tábuas. Mary

Anne Walkley adoeceu na sexta-feira e morreu no domingo, [...] O médico, Dr.

Keys, chamado muito tarde ao leito de morte, testemunhou perante o Coroner’s Jury

em secas palavras: “Mary Anne Walkley morreu, por excesso de horas de

10

―O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto

mais quanto mais trabalho vivo chupa.‖ (MARX, 1999, p. 347).

Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

26

trabalho numa oficina superlotada e por dormir num cubículo superestreito e

mal ventilado” (MARX, 1996, p. 368-369, grifo nosso)

Embora com o decorrer dos anos, em muitos aspectos, as condições de trabalho

tenham sido adequadas e regulamentadas por meio de inúmeros manifestos e leis

trabalhistas11

, a situação de super-exploração pode facilmente ser identificada em inúmeras

disposições na sociedade atual. Formas de trabalho não documentado e não regulamentado

abrem margens ainda maiores para a manutenção da situação precária de milhões de pessoas.

O tráfico de seres humanos, sem dúvida, está entre elas. Como forma de ilustrar os

argumentos, citamos o caso das bolivianas nessa situação na cidade de São Paulo:

Geralmente trabalham em média, das 7 horas da manhã até a 1 hora da madrugada,

todos os dias, como costureiras, e recebem aproximadamente 30 centavos por cada

peça. A insalubridade provocada pelo local sem arejamento e pela poeira do tecido,

que é bastante tóxica, provoca doenças pulmonares. Entre elas é comum

apresentarem um quadro de tuberculose ou de outros problemas respiratórios

(TELES, 2007, p. 39).

Demonstramos ainda as considerações de Piscitelli (2008) que, baseada em

pesquisa da qual participou, realizada com os deportados e não admitidos no Aeroporto de

Guarulhos, São Paulo, apresenta o seguinte panorama sobre o tráfico internacional de pessoas:

Os relatos freqüentemente aludiam a pagamentos mais baixos que os oferecidos a

pessoas em situação regular, ou a combinação entre baixos valores e a exigência de

jornadas extenuantes, entre 12 e 16 horas diárias, praticamente sem descanso. Às

vezes, mais de 50% dos rendimentos ficavam nas mãos de intermediadores,

freqüentemente, brasileiros. (PISCITELLI, 2008, p. 48).

Apresentados os argumentos, podemos inferir que as vítimas de tráfico atualmente

encontram-se no limiar extremo de exploração, haja vista que são expropriadas de sua

condição de humanidade, submetidas à jornadas exaustivas de trabalho e comercializadas sem

receber em troca pagamento significativo. No caso da mulher em situação de tráfico para fins

de exploração sexual comercial, a maior parte dos rendimentos adquiridos no ―serviço‖ que

presta é convertido em mais-valia para o seu explorador; o seu corpo em si torna-se

mercadoria. Sua humanidade, portanto, reduzida a condição de objeto.

11

No Brasil, a regulamentação do trabalho indica como marco jurídico-legal os avanços empreendidos no

período de Getúlio Vargas (1930-1945), que culminarão na Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.

(ANTUNES, 2009, p. 86-85).

Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

27

Como mercadoria, ainda numa perspectiva marxiana, poderíamos pressupor que a

vítima assume um valor de uso e um valor de troca, tendo em vista que diante da concepção

de Marx (1996), para ser mercadoria, necessariamente seria preciso incorporar ambos os

aspectos: ―Elas são só mercadorias, entretanto, devido à sua duplicidade, objetos de uso e

simultaneamente portadores de valor.‖ (MARX, 1996, p. 176).

O valor de uso decorre das características que agregam utilidade ao produto, no

caso de objetos, seria considerado o material com o qual é feito, sua durabilidade e sua

finalidade, conforme reforça Marx (1996):

A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira

no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o

mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc. é, portanto,

um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas

propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. [...] O valor de uso

realiza-se somente no uso ou no consumo. (MARX, 1996, p. 164).

O valor de troca, ou simplesmente o valor da mercadoria, diz respeito ao tempo de

trabalho necessário para a produção da mesma no sistema capitalista, é o equivalente que

torna possível igualá-la a qualquer outra mercadoria, conforme expressa Marx (1996): ―[...] o

valor de troca é uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado numa coisa

[...]‖ (IDEM, p. 206).

Na realidade, Marx (1996) vai além, pois determina que a propriedade do valor de

troca é aquela que caracteriza de fato a mercadoria enquanto coisa mercantil, tendo em vista

que o valor de uso diz respeito ao interesse que o homem direciona ao objeto, enquanto o

valor de troca possibilita dimensionar quanto custa o produto. Portanto, é esse segundo valor

que possibilita que ela se relacione com outras mercadorias:

Se as mercadorias pudessem falar, diriam: É possível que nosso valor de uso

interesse ao homem. Ele não nos compete enquanto coisas. Mas o que nos compete

enquanto coisas é nosso valor. Nossa própria circulação como coisas mercantis

demonstra isso. Nós nos relacionamos umas com as outras somente como valores de

troca. (IBIDEM, p. 207).

No caso da mulher em situação de tráfico para fins de exploração sexual

comercial, poderíamos admitir que esse valor de uso decorre de características ligadas a sua

condição de mulher, raça, etnia e faixa etária, por exemplo. Já o valor de troca, poderíamos

interpretar que estaria ligado à performance que ela desempenha enquanto profissional do

Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

28

sexo, ou melhor, enquanto escrava sexual. Nessas condições, ela é explorada tanto pelo

cliente/consumidor como pelo(a) cafetão(ina), que se apropria dos rendimentos financeiros

adquiridos na super-exploração dessa atividade.

Marx (1996) se expressa de uma forma bastante interessante quando se refere à

relação estabelecida na sociedade burguesa entre as pessoas e as mercadorias, alegando que:

―As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas

não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-

las.‖ (MARX, 1996, p. 209). É bem o caso do explorador no tráfico de seres humanos: com o

claro objetivo de obter lucratividade, comercializa pessoas ―tomando-as‖ para si, podendo

fazer valer o seu intento por meio de inúmeras estratégias violentas: fraude, ameaça, coação,

cárcere, espancamento, violência sexual, dentre outras.

Contudo, a pessoa em situação de tráfico é além de mercadoria, ao mesmo tempo,

força de trabalho, à qual Marx (1996) define da seguinte maneira: ―A força de trabalho de um

homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva.‖ (p. 99). Podemos

ressaltar ainda, na perspectiva marxiana, que o valor atribuído a essa força de trabalho ―[...] se

fixa como o de outra mercadoria qualquer [...]‖ (MARX, 1996, p. 100).

Na condição de detentora da força de trabalho, a vítima de tráfico é

exaustivamente submetida pelo explorador àquilo, conforme anteriormente por nós discutido,

que Marx (1996) chama de mais-trabalho ou sobretrabalho (1996, p. 349-350). Uma pesquisa

realizada sobre o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual ilustra a fala

de uma vítima, nomeada ficticiamente de ―RO.‖, submetida às condições por nós indicadas:

Ah, nós ficávamos era trancadas na habitação e, quando chegavam os clientes,

tínhamos que atendê-los, nos obrigavam, os clientes e o dono também. Se nós

disséssemos que não, o cliente ia embora e o dono entrava, trabalhávamos de seis

horas até a hora que estivesse aberto o negócio. (RO. apud SODIREITOS, 2008, p.

166).

De acordo ainda com registro feitos no meu diário de campo no dia 12 de março

de 2008, por exemplo, também podemos identificar elementos que apontam para a super-

exploração do sobretrabalho no cotidiano enfrentado pela vítima de tráfico para fins sexuais:

Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

29

Conhecemos a vítima [...] que contou as rotinas da casa de prostituição onde

trabalhou por 8 meses na Aldeota. Contou que na casa todas as meninas são maiores

de 18 anos e que muitas são de outros Estados. Na casa todas tinham uma folga na

semana e eram obrigadas a fazer uma média de 10 à 15 programas diariamente.

(Trecho do Diário de Campo do dia 12 de março de 2008).

Tendo em vista os elementos indicados, poderíamos admitir que o(a) escravo(a)

contemporâneo, vítima de tráfico de pessoas, assume portanto posição bastante similar à do

proletariado no inicio da revolução industrial: aquém de qualquer proteção, permanece

submetido às múltiplas violações dos direitos humanos, sociais e trabalhistas. A diferença é

que aqueles(as) operários(as) foram explorados com a anuência política e legal do Estado; o

escravo(a) de hoje é explorado porque se encontra na clandestinidade, muitas vezes devido à

sua situação de imigrante ilegal ou trabalhador irregular12

.

Mediante todo o exposto, poderíamos resumir a caracterização do tráfico de seres

humanos pela associação das seguintes etapas: o primeiro momento, que seria a fase do

aliciamento, a principal estratégia utilizada pelos exploradores é o engano13

da vítima com

promessas de melhoria das condições de vida. No segundo momento, ocorre o deslocamento

para outra Cidade, Estado ou Nação. No terceiro momento, quando no destino final, as

vítimas são submetidas às condições de exploração.

Os elementos levantados nesse estudo, indicam que a chave do processo de

identificação do fenômeno poderia estar na associação dessas etapas, o que contudo nem

sempre é levado em consideração na elaboração e execução das políticas públicas de

enfrentamento, como perceberemos no decorrer dessa investigação mediante a fala dos(as)

entrevistados(as) e de outras evidências documentais e bibliográficas.

Salientamos ainda que a concepção de exploração considerada nesse trabalho,

decorre por meio da dominação exercida sobre os menos favorecidos(a) na sociedade atual

com o objetivo de obter sobre eles(as) algum tipo de vantagem. No caso do tráfico para fins

sexuais, podendo ser essa vantagem de ordem econômica, quando nos referimos ao aliciador e

12

Como(a) trabalhador(a) irregular consideramos aqueles(as) que não possuem carteira assinada ou que exercem

atividades que não são reconhecidas como trabalho pelo Estado, como por exemplo a prostituição.

13

Admitindo, contudo, que há outros meios para ―capturar‖ vítimas, como por exemplo através de rapto,

chantagem ou ameaça.

Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

30

cafetão(ina) por exemplo; ou da prática sexual das vítimas, quando nos referimos ao

―cliente/consumidor‖.

No caso do recorte que atribuímos às vítimas – mulheres pobres em situação de

tráfico para fins de exploração sexual comercial – a escolha do público explorado pelos

aliciadores não é determinada exclusivamente pela posição de classe que ocupam, mas

também por outras variáveis, tais como etnia, raça e geração (valor de uso), já que serão

direcionadas para atender a demanda baseada nos interesses do mercado (clientes).

Para Weber (1999), a posição social de classe que o indivíduo ocupa na sociedade

contemporânea tem essencialmente relação com o mercado econômico, a partir disso

estabelece relações de poder por meio daquilo que cada indivíduo tem condições de possuir,

ou seja, da propriedade:

Falamos de uma "classe" quando 1) uma pluralidade de pessoas tem em comum um

componente causal específico de suas oportunidades de vida, na medida em que 2)

este componente está representado, exclusivamente, por interesses econômicos, de

posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas pelo mercado de

bens ou de trabalho ("situação de classe"). (WEBER, 1999, p. 176).

O autor considera que os menos favorecidos na disposição de classe encontram-se

sujeitos a vender sua força de trabalho como meio de sobrevivência, submetendo-se por vezes

à situação de sujeição extrema: ―[...] não podem oferecer nada além de seus serviços em

forma de trabalho ou de produtos do trabalho próprio e estão obrigados a vendê-los a qualquer

preço, para garantir a mera existência.‖ (IDEM, p. 176).

Entretanto, como meio de ampliar a discussão, Weber (1999) considera os

estamentos como dimensão ampliada das relações de agremiação humanas (comunidades),

capazes de extrapolar a perspectiva restrita à renda (classe social):

Em oposição à "situação de classe", determinada por fatores puramente econômicos,

compreendemos por "situação estamental" aquele componente típico do destino vital

humano que está condicionado por uma específica avaliação social, positiva ou

negativa, da honra, vinculada a determinada qualidade comum a muitas pessoas.

(WEBER, 1999, p. 180).

Dessa forma, poderíamos dizer que associada à condição de classe, os menos

favorecidos na sociedade moderna estão submetidos também às disposições previstas nos

Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

31

estamentos, aos quais podem ser alocados com base nos múltiplos tipos de diferenças

socialmente e culturalmente hierarquizadas, tais como as étnicas, religiosas, raciais,

sexuais, etc. Weber (1999) afirma ainda que ―[...] a diferenciação estamental coincide, por

toda parte, com uma monopolização de bens ou oportunidades ideais e materiais [...].‖

(IDEM, p. 183).

Em posse dessas considerações, poderíamos compreender que os estamentos,

devido as posições hierárquicas que geram, favorecem situações de desigualdade social.

Enfatizamos que pobreza é um fator relacionado à desigualdade social, contudo não o único,

tendo em vista que a desigualdade social pode vincular-se à diversos outros fatores ligados às

dimensões sócio e culturalmente determinadas.

Nesse sentido, poderíamos afirmar que na cultura ocidental, o homem masculino,

heterossexual, branco, cristão e economicamente favorecido ocuparia o estamento

considerado como ápice na posição de dominante e dominador. Enquanto que as demais

características sociais estariam distribuídas em posições estamentais de graus

hierarquicamente inferiores. Dentre essas disposições, para esse estudo, conforme já

enfatizado, optamos pelas mulheres pobres brasileiras, por representarem o universo que tem

sido apontado como principal atingido em relação ao tráfico para fins de exploração sexual.

Weber (1999) considera que essas disposições – tanto as de classe como as

estamentais – estão relacionadas à distribuição de poder na comunidade. Para definir a

referida categoria, o autor enfatiza: ―Por "poder" entendemos, aqui, genericamente, a

probabilidade de uma pessoa ou várias impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo

contra a oposição de outros participantes desta.‖ (WEBER, 1999, p. 175).

Como meio de explicar essa imposição da vontade, Weber (1999) trata dos

mecanismos de dominação – como exercício de poder – que podem se operacionalizar das

mais variadas formas, destacando especialmente dois tipos: aquela em função de interesses e

aquela em virtude da autoridade:

A primeira, em seu tipo puro, fundamenta-se, exclusivamente, nas influências que

pode fazer valer, em virtude de uma propriedade garantida de alguma forma (ou de

uma habilidade disponível no mercado), e que exerce sobre a ação formalmente

"livre" e aparentemente voltada para interesses próprios dos dominados, enquanto a

Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

32

última se baseia num dever de obediência, sem mais, que é considerado sem atenção

a quaisquer motivos e interesses. (IDEM, p. 189).

Isso significa, essencialmente, que a dominação em função de interesses parte do

pressuposto da submissão voluntária do dominado (por acreditar que está sendo beneficiado

de alguma forma), já a dominação autoritária impõe a obediência dos dominados mesmo

contra a vontade desses (por meio, por exemplo, da lei, justiça, regulamento, ameaça, coação

ou força física). Embora distintas, essas formas de dominação podem se mesclar, conforme

indica o próprio autor: ―[...] toda forma típica de dominação, em virtude de situação de

interesses, particularmente em virtude de uma posição monopolizadora, pode transformar-se,

gradualmente, numa dominação autoritária.‖ (IBIDEM, p.189).

Vale ressaltar que Weber (1999), paradoxalmente, menciona que a dominação,

qualquer que seja sua modalidade, pressupõe o interesse mínimo do subordinado em

obedecer14

, inclusive nos casos de dominação autoritária. Se assim considerássemos o

fenômenos do tráfico de pessoas, esse interesse poderia ser em função da vontade em

continuar viva, ou para preservar a vida de alguém que ama, ou ainda para não ser presa ou

punida15

. Entretanto, o que dizer dos casos de tráfico onde não há o emprego da repressão?

Foucault (2011) aborda a questão do poder numa perspectiva mais ampliada, pois

considera a base de compreensão dessa categoria nas complexas relações que permeiam a

produção de coisas, indução do prazer, formação de saber, produção de discursos.

(FOUCAULT, 2011, p. 8). Ainda nas palavras do teórico: ―Deve-se considerá-lo como uma

rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa

que tem função de reprimir‖ (IDEM, p. 8, grifo nosso).

Percebendo o poder como essa rede produtiva, poderíamos compreender a

existência de casos de tráfico de seres humanos onde não é preciso que o explorador faça

necessariamente uso da violência física, ameaça, coação ou cárcere para que o fenômeno

esteja caracterizado, ou seja, poderíamos admitir que nem sempre estará presente a utilização

14

―[...] em toda relação de dever autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, por parte do submetido,

continua sendo, na prática, a força motriz normal e indispensável da obediência.‖ (WEBER, 1999, p. 190).

15

Punição no caso da imigração ilegal, inclusive sendo esse tipo de ameaça uma das estratégias utilizadas pelas

quadrilhas no tráfico de seres humanos, onde é comum assustarem as vítimas com o risco de serem deportadas

para o país de origem ao qual muitas não querem retornar.

Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

33

de mecanismos de repressão para que a exploração das vítimas se efetive. Em muitos casos,

conforme demonstraremos adiante, iremos identificar pessoas que se submetem(ram)

passivamente à essa exploração.

Encontraremos ocorrências onde as mulheres em situação de tráfico para fins de

exploração sexual comercial não se consideram vítimas do crime, conforme coloca a

pesquisa intitulada Jornadas Transatlânticas (2011), realizada em parceria do Ministério da

Justiça com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) e a União

Europeia:

Existem mulheres e transexuais que acreditam não sofrer exploração. Eles

expressaram gratidão pela pessoa que os ajuda(ou) a ganhar dinheiro e eles

percebem as transações econômicas com a cafetina como parte de uma troca justa. A

exploração é mantida como estratégia para melhorar as suas condições de vida.

(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p.175).

Tais posicionamentos podem indicar, na realidade, as múltiplas situações onde as

relações de dominação permeiam também campos bem diversos daqueles que acreditamos

serem os comumente mais utilizados pelas quadrilhas e redes de exploração de mulheres

(repressivos), designando que a percepção de valores (ou não-valores) vinculados às

disposições de classe e estamento social também entram nesse complexo jogo de dominação.

Como meio de ilustrar os elementos acima expostos, apresentamos trecho da

pesquisa Jornadas Transatlânticas (2011), que faz menção às formas como a maioria das

quadrilhas de tráfico de pessoas têm agido ultimamente:

[...] o processo de recrutamento parece ter evoluído, em alguns casos, do modelo

clássico – que utiliza as características típicas do tráfico de seres humanos como o

engano, o rapto ou a ameaça/violência física – para uma abordagem aparentemente

mais negociada na qual as vítimas percebem-se como parceiras de negócio em

relação aos recrutadores. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p. 17).

Outra pesquisa realizada sobre o tráfico internacional de mulheres para Guiana

Francesa e Suriname apresenta os seguintes argumentos em relação às vítimas escutadas na

investigação: ―A mulher traficada nem sempre se reconhece como vítima de um crime, dada

sua construção subjetiva de aceitar o subjugo. No máximo, ela sente-se explorada ou

Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

34

percebe-se apenas como uma trabalhadora migrante que teve má sorte [...]‖

(SODIREITOS, 2008, p. 25).

Discutir e repensar as relações sociais estabelecidas entre os mais favorecidos e

menos favorecidos na sociedade em que vivemos é prerrogativa fundamental para

desconstruir elementos de dominação e exploração simbolicamente introjetados e

naturalizados. No contexto do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é possível

indicar, portanto, que mecanismos de dominação estejam talvez repercutindo na percepção

dessas mulheres enquanto vítimas. Em relação à esse último aspecto, os autores Marrey e

Ribeiro (2010) informam:

Pessoas traficadas podem apenas querer esquecer o que aconteceu com elas, como se

isso fosse um pesadelo, uma escolha sem sorte mediante a qual elas carregam toda a

responsabilidade ou apenas registram mais uma etapa de vida repleta de violência e

exploração. Elas podem não perceber isso como uma violação dos seus direitos

humanos que necessita ser confrontada. (MARREY; RIBEIRO, 2010, p. 55).

A discussão pode apontar para um processo de autodepreciação vivenciado por

algumas mulheres que estiveram em situação de tráfico, como se pelo fato de serem

prostitutas ou imigrantes indocumentadas justificasse os maus-tratos sofridos. Não

acreditamos que tal processo seja espontâneo, mas fruto de relações de poder que por meio da

dominação sutilmente interferem no julgamento e percepção do indivíduo. Conforme ressalta

Foucault (2011),

[...] a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela institui

cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até

nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é

destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. (p. 25).

No que se refere ao recorte direcionado ao tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual comercial e a seleção da categoria violência de gênero se definiram a partir

das especificidades identificadas no próprio campo de pesquisa e atuação profissional da

pesquisadora. No cotidiano de trabalho, observou-se que a demanda recorrente referia-se à

jovens mulheres, garotas de programa, convidadas para exercer a prostituição em outras

localidades. Em contrapartida, percebia-se a predominância de homens na posição de

agressores (em geral, aliciador). A análise documental exposta capítulo quatro dessa pesquisa

demonstra e reafirma em números aquilo que já era percebido na prática.

Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

35

Aquém desses elementos, não podemos ignorar a demanda por esses serviços, ou

seja, a clientela que busca pelo mercado do sexo que, como se sabe (e demonstraremos), é

predominantemente masculina. Tais sujeitos não serão abordados em profundidade nessa

pesquisa, contudo salientamos que eles ocupam um papel fundamental na perpetuação desse

tipo de violência, já que o intuito do traficante de mulheres é lucrar e esse lucro só é possível

se existirem compradores para sua ―mercadoria‖.

Uma pesquisa realizada sobre a condição de mulheres em situação de tráfico no

Suriname estabelece ainda uma relação entre o perfil das vítimas e a demanda pelos serviços

sexuais: ―O perfil é estabelecido pelos traficantes em função da demanda do mercado (os

clientes), para eleger a mercadoria (as mulheres).‖ (SODIREITOS, 2008, p. 148).

Outro dado extremamente relevante em relação aos clientes que podemos pincelar

nesse primeiro momento, embora não seja nosso foco, diz respeito às informações publicadas

pelas pesquisadoras Anderson e Davidson (2002), respectivamente ligadas à Universidade

norte-americana de Oxford e a Universidade inglesa de Nottingham, em pesquisa intitulada

―The Demand Side of Trafficking? A Multi Country Pilot Study‖16

. Nesse estudo, que contou

com questionários e entrevistas direcionadas à homens que usufruem do mercado do sexo,

foram inqueridos, dentre outras coisas, se possuíam preferência por prostitutas

estrangeiras/imigrantes e por quais motivos. A pesquisa apontou que o clientes estabelecem

uma hierarquia para essas prostitutas de acordo com o país de origem e raça das mesmas.

Dessa forma, clientes indianos, por exemplo, consideram as prostitutas que trabalham em

Nova Deli (Capital da Índia) da seguinte forma:

In Delhi, most clients imagined dark-skinned women and girls from the Nat Bedia

community as standing at the bottom of this hierarchy, followed by dark-

skinned local sex workers, then by lighter-skinned Nepali sex workers. White

European sex workers were normally placed at the apex of the hierarchy.

Furthermore, some men perceived a link between the client’s social status and

the racial or ethnic identity of the sex worker whose services he consumes.17

(ANDERSON; DAVIDSON, 2002, p. 17).

16

O lado da Demanda do Tráfico? Um Estudo Piloto Multinacional. (Tradução livre da pesquisadora)

17

Em Nova Deli, a maioria dos clientes imagina mulheres de pele escura e meninas da comunidade Bedia Nat

como estando na base desta hierarquia, seguidas pelas prostitutas de pele escura locais, em seguida, pelas

trabalhadoras do sexo nepaleses de pele mais clara. Trabalhadoras do sexo brancas e europeias estavam

normalmente colocadas no topo da hierarquia. Além disso, alguns homens percebem uma ligação entre status

social do cliente e identidade racial ou étnica da trabalhadora do sexo cujos serviços que consome. (Tradução

livre da pesquisadora).

Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

36

Ou seja, de acordo com a pesquisa, o cliente sopesa o preço que paga pelo serviço,

considerando algumas raças/etnias como menos dignas, além de valorizar uma posição

hierárquica que garanta superioridade em relação à prostituta que contrata. Dessa forma, os

clientes consideram importante contratar uma prostituta que para eles seja barata e

considerada como de raça/etnia inferior. Isso garantiria a redução da despesa e o exercício da

dominação ainda mais ampliada.

Retomando o direcionamento da nossa investigação, no que se refere à violência

de gênero, faz-se necessário empreender algumas consideração à respeito, primeiramente, da

categoria gênero. De acordo com Scott (1995), gênero se constitui no âmbito das relações

socioculturais, onde os papeis atribuídos para homens e mulheres não são indicados por

aspectos biológicos e inclinações ―naturais‖ ou genéticas, mas por todo um processo subjetivo

– disciplinar, educativo, familiar, religioso, político, etc. – que atribui direcionamento ao

comportamento definido como mais adequado para ambos os sexos. Isso não significa,

contudo, que essas definições sejam estáticas, elas sofrem influencias das alterações,

modificações, gestadas no seio societário. Scott (1995) apresenta sua interpretação da

categoria da seguinte forma:

Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão

relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados: (1) o gênero é um

elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os

sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.

As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças

nas representações do poder [...] (SCOTT, 1995, p. 86).

A autora elenca ainda quatro elementos que constituem a estrutura do gênero:

os símbolos culturalmente disponíveis que traduzem representações simbólicas; os conceitos

normativos que expressam interpretações dos significados desses símbolos; a concepção de

política, assim também como uma referência às instituições e organização da sociedade; e a

identidade subjetiva. (IDEM, p. 86, 87). Para Scott (1995), portanto, compreender gênero,

longe de transformar o termo em sinônimo de mulher, deve permear a compreensão dos

múltiplos elementos e significados que constituem a organização e disposição das relações

sociais e daquelas empreendidas entre os sexos.

Para Castilho (2008), a concepção de gênero auxilia na análise dos papeis

desiguais, socialmente atribuídos para o masculino e feminino, que repercutem não apenas na

dimensão subjetiva desses sujeitos, mas também na objetiva: ―[...] gênero como categoria de

Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

37

análise capaz de evidenciar a subsistência do patriarcado, a dominação masculina, as relações

de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres.‖

(CASTILHO, 2008, p. 109).

Numa perspectiva mais moderna, temos a concepção de gênero trabalhada por

Judith Butler (1999). A autora se contrapõe à interpretações binárias entre masculino e

feminino e dispõe sobre as múltiplas formas pelas quais essas condições podem se manifestar,

sejam em corpos biologicamente de homens ou de mulheres. Nessa discussão, Butler (1999)

inclui as transgêneros e transexuais, admitindo que a discriminação de gênero também é

direcionada à elas pela identidade de gênero que assumem. Em relação às críticas ao sistema

de gênero binário, a autora salienta:

The presumption of a binary gender system implicitly retains the belief in a mimetic

relation of gender to sex whereby gender mirrors sex or is otherwise restricted by it.

When the constructed status of gender is theorized as radically independent of sex,

gender itself becomes a free-floating artifice, with the consequence that man and

masculine might just as easily signify a female body as a male one, and woman and

feminine a male body as easily as a female one.18

(BUTLER, 1999, p. 10).

Butler (1998) discute a categoria ―sexo‖, historicamente diferenciada entre

masculino e feminino, transcorrendo que representa, na realidade, construção social e cultural

que culmina em unidades fictícias e reguladoras: ―[...] o sexo não descreve uma materialidade

prévia, mas produz e regula a inteligibilidade da materialidade dos corpos. [...] a categoria

sexo impõe uma dualidade e uma uniformidade sobre os corpos a fim de manter a sexualidade

reprodutiva como uma ordem compulsória.‖ (IDEM, 1998, p. 26).

Nesse sentido, embora tenhamos feito o recorte dessa pesquisa no tráfico de

mulheres, afirmamos que compreendemos, a partir de perspectiva pautada em Butler (1998;

1999), uma dimensão ampliada das categorias ―gênero‖ e ―feminino‖, que percebem os

sujeito humanos sexuados para além das diferenças entre homem e mulher.

18

A pressuposição de um sistema de gênero binário mantém a crença em uma relação mimética entre gênero e

sexo pelo qual gênero reflete o sexo ou é aprisionado por ele. Quando o status construído do gênero é teorizado

como radicalmente independente do sexo, gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que

homem e masculino possam facilmente significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e

feminino um corpo masculino tão facilmente como um feminino. (Tradução livre da pesquisadora).

Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

38

No que diz respeito à concepção de violência, Piscitelli (2008) considera a

amplitude do termo, que necessita ser discutido com ênfase nas relações de poder

estabelecidas entre os(as) indivíduos(as):

A violência é um termo aberto a disputas de significado, que implica o

reconhecimento social mais amplo, não apenas legal, de que certos atos constituem

abuso. Para entender esses sentidos é necessário prestar atenção aos processos

interativos em que os envolvidos ocupam posições de poder desiguais. (PISCITELLI, 2008, p. 56).

Consideraremos, tendo em vista essa vasta gama de significados, para essa

pesquisa, a concepção formulada por Chauí (1985), que concebe a violência como uma

relação hierárquica entre os sujeitos, cujo objetivo reside na dominação, opressão, exploração,

assim também como numa atitude que concebe o outro como objeto, desprovido da

subjetividade característica do gênero humano. De forma mais detalhada, Chauí (2007)

define:

[...] violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força

para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a

espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger,

torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma

coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de

transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define

como justas e como um direito; 5) conseqüentemente, violência é um ato de

brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza

relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo

medo e pelo terror. (CHAUÍ, 2007, [s.p.], grifo nosso).

No que se refere mais especificamente à violência de gênero, Saffioti (1994)

dimensiona que embora não seja sinônimo de violência contra a mulher, elas têm sido as

principais prejudicadas nessa relação desproporcional de dominação: ―Trata-se de uma

correlação de forças, que muito raramente beneficia a mulher. Socialmente falando, o saldo

negativo da violência de gênero é tremendamente mais negativo para a mulher que para o

homem.‖ (SAFIOTTI, 1994, p. 446).

Na perspectiva de Bourdieu (2011), as relações de dominação masculina exercidas

historicamente sobre o feminino perpetuam-se na sociedade e são por vezes ―[...] vistas como

aceitáveis ou até mesmo como naturais.‖ (BOURDIEU, 2011, p. 7). Para o autor, essa

naturalização trata-se da transformação ―[...] da história em natureza, do arbitrário cultural em

natural.‖ (IDEM, p. 8).

Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

39

Retomando a discussão na perspectiva da violência de gênero, Faleiros (2007) se

posiciona numa definição que considera a relação de múltiplas interseções macrossociais,

conforme trecho apresentado na sequencia:

A violência de gênero estrutura-se – social, cultural, econômica e politicamente – a

partir da concepção de que os seres humanos estão divididos entre machos e fêmeas,

correspondendo a cada sexo lugares, papéis, status e poderes desiguais na vida

privada e na pública, na família, no trabalho e na política. (FALEIROS, 2007, p. 62).

Faleiros (2007), numa discussão ainda mais ampliada, identifica diversos tipos de

violência, que envolvem a perspectiva de gênero e relações de poder e dominação numa

sociedade patriarcal: ―A violência praticada pela sociedade patriarcal se realiza de diversas

formas: identitária, física, psicológica, sexual, institucional, social e politicamente.

Articuladas, elas constituem o arsenal de que dispõe o gênero masculino para manter seu

poder sobre os outros gêneros.‖ (IDEM, p. 63).

Realizadas tais considerações, indicamos que essa investigação leva em

consideração, conforme anteriormente indicado, a perspectiva de gênero de forma relacionada

ao contexto da violência no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial. No

Brasil, sociedade instituída numa cultura patriarcal e excludente, essa dimensão destaca-se,

conforme aponta a pesquisadora Pascual (2007):

No ponto mais baixo da escala social estão as mulheres pertencentes às camadas

populares pobres, de sociedades patriarcais, marcadas por um histórico de

dominação masculina intocável. É dessas sociedades que surge o drama das

mulheres levadas para o mercado clandestino da prostituição feminina e do tráfico

de seres humano com fins de exploração sexual. (PASCUAL, 2007, p. 43).

Vasconcelos e Bolzon (2008) reafirmam o tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual como uma das graves formas de sujeição contemporânea e violação de

direitos fundamentais no universo da violência de gênero:

Pode-se dizer que as complexas dinâmicas nas quais se assentam as relações de

gênero nas sociedades fornecem elementos para diferentes modalidades de

exploração. Apesar da dificuldade de gerar estimativas em relação às vítimas de

trabalho forçado, se observa uma predominância de mulheres e meninas em

situações de trabalho doméstico forçado, exploração sexual comercial e prostituição

forçada. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 79).

Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

40

Ressaltamos que a predominância de mulheres em situação de tráfico na realidade

do Estado do Ceará não difere em muito de outras localidades onde ocorre o fenômeno;

embora a finalidade – ou seja, o tipo de exploração – se altere. Piscitelli e Vasconcelos (2008)

elaboram considerações à respeito da questão:

Gênero marca as especificidades da inserção de imigrantes latino-americanas,

principalmente bolivianas, no trabalho forçado, em oficinas de costura de São Paulo

(Illes, Timóteo e Pereira, nv) e de brasileiras forçadas a trabalhar no serviço

doméstico e na indústria do sexo no exterior (Figueiredo et alii, nv). Gênero aparece

como distinção significativa também nos processos de contrabando de migrantes

mediante os quais pessoas indocumentadas ingressam nos Estados Unidos [...].

(PISCITELLI; VASCONCELOS, 2008, p. 24).

Como forma de diferir a prostituição autônoma e voluntária da exploração sexual

comercial vivenciada no tráfico de mulheres, a Pesquisa Tri-nacional sobre Tráfico de

Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname (2008) descreve as

características da escravidão sexual ao qual muitas brasileiras são submetidas:

É uma experiência comum vivida pelas mulheres tratadas em nível local e

internacional, é uma expressão do patriarcado. Obrigadas a vender seus corpos como

mercadoria, sem proteção, sem que se importem com o estado de saúde delas e,

durante largas jornadas, têm que atender aos clientes sem exceção. Com período

curto para descansar e dormir, isso se não aparecer nenhum cliente solicitando seus

serviços. As mulheres são mantidas em cativeiro, sem o direito de ir e vir.

(SODIREITOS, 2008, p.166).

Apresentadas tais considerações, o tópico em sequência trata dos elementos que

subsidiaram a pesquisa em relação aos instrumentos metodológicos utilizados e apresenta

considerações à respeito da natureza da investigação social proposta e da postura

interpretativa adotada como meio para análise dos dados teóricos e empíricos coletados pela

pesquisadora.

1.2. Natureza e Instrumentos da Pesquisa

A análise proposta nesse estudo trata-se de uma pesquisa social de natureza

qualitativa. De acordo com Groulx (2010), esse tipo de pesquisa está direcionada às análises

que valorizam as especificidades socioculturais e subjetivas da realidade, em detrimento de

indicadores de medidas numéricas, ―[...] a pesquisa qualitativa introduz um novo sentido dos

Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

41

problemas; ela substitui a pesquisa de fatores e determinantes pela compreensão dos

significados.‖ (GROULX, 2010, p. 98).

Goldemberg (2005) indica que a pesquisa qualitativa foi desenvolvida como uma

estratégia de análise para a pesquisa social em oposição à visão positivista na qual as ciências

da natureza estão pautadas. O positivismo, desenvolvido originalmente pelo filósofo Augusto

Comte, atribuía aos estudos sociais uma postura originalmente das ciências físicas, ou seja,

buscava descobrir regularidades ou leis em objetos eminentemente subjetivos. Assim, coloca

Goldemberg, ao eleger o método qualitativo, ―Os pesquisadores qualitativistas recusam o

modelo positivista aplicado ao estudo da vida social‖. (GOLDEMBERG, 2005, p.17).

Deslauriers e Kérisit (2010) indicam que os dados que recebem tratamento por

esse tipo de abordagem são aqueles que: ―[...] se apresentam como resistentes à conformação

estatística. São dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões,

as palavras, o sentido da ação e dos fenômenos.‖ (IDEM, p. 147). Portanto, incompreensíveis

em suas relações complexas se investigados sob uma fórmula previamente estabelecida, que

pressupõe aplicação a toda e qualquer situação, independente das determinações sociais,

regionais, econômicas, históricas e culturais.

Nesse mesmo direcionamento, a socióloga Teresa Haguette (1992) indica que a

pesquisa qualitativa é aquela capaz de oferecer os elementos para compreensão mais

aprofundada dos fenômenos sociais com foco nos aspectos subjetivos e estruturas complexas

socialmente postas. A autora elenca ainda alguns fatores característicos que diferenciam a

pesquisa qualitativa da quantitativa, enfatizando que ―[...] os métodos quantitativos supõem

uma população de objetos de observação comparável entre si e os métodos qualitativos

enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de

ser.‖ (HAGUETTE, 1992, p. 63).

Apresentada tais considerações, partimos para a explicitação das técnicas

utilizadas. Como forma de subsidiar as observações em campo, a primeira etapa do processo

proposto empreendeu-se através da pesquisa bibliográfica, indispensável na construção de

qualquer investigação. O percurso do diálogo construído entre o objeto escolhido e as fontes

bibliográficas existentes foi árduo e exaustivo. Tendo em vista tratar-se de tema que tomou

Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

42

centralidade de análise científica apenas na contemporaneidade, há escassez de material

direcionado ao objeto em questão, conforme ressaltado no início desse estudo.

De acordo com Deslauriers e Késlauriers (2010), o pesquisador deve utilizar a

pesquisa bibliográfica como um dos elementos que subsidiará as investigações, mas não o

único: ―[...] permanece sendo um instrumento ao qual ele não pretende se subordinar: sem

negligenciá-lo, nem ignorar suas vantagens, o pesquisador qualitativo recorre a ele para

construir seu objeto e elucidar a análise dos dados.‖ (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2010, p.

149).

As estratégias utilizadas como forma de subsidiar melhor as análises expostas no

estudo, tendo em vista a escassez literária apresentada, estiveram pautadas nas impressões da

coletas de dados do campo (NETP/CE) e pesquisa bibliográfica voltada para o resgate

histórico das manifestações da prática, que circunscreve aspectos socioculturais da nossa

sociedade, com base na naturalização da percepção do outro como ser coisificado,

comercializável e passível à exploração. Tal análise esteve direcionada ainda às características

desses atores sujeitados, pois foram alocados nessa situação por uma série de fatores

econômicos, culturais, raciais, étnicos e sexuais. Posições histórica e socialmente instituídas e

legitimadas por práticas e discursos.

Ressaltamos que o levantamento histórico baseado na pesquisa bibliográfica

ocorreu como meio de perceber elementos característicos de um tipo específico de exploração

que foi resignificada na ordem social contemporânea, conseguindo perpetuar a sujeição e

dominação de parcela da população de menos favorecidos. Indivíduos esses que não se

constituem de forma arbitrária, mas em virtude de uma situação étnica, de gênero, de raça, de

classe social, de geração, cujo ―não lugar‖ é legitimado por discursos hegemônicos.

Expostas tais considerações, enfatizamos a utilização da análise dos discursos

como método de interpretação na pesquisa. Tal perspectiva rejeita a noção de que a linguagem

é um meio neutro de expressão, concebendo-a como um importante mecanismo de construção

da vida social, que sofre interferências dos processos histórico-culturais. Nesse sentido, o

discurso é estruturado por uma construção social e, portanto, passível de análise e reflexão

como meio de superar seu caráter imediato e, por vezes, naturalizado.

Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

43

Enfatizamos, portanto, que os discursos possuem corporificação etérea, mutável,

conforme afirma Foucault (1996): ―[...] o discurso em sua realidade material de coisa

pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar,

sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence [...]‖ (FOUCAULT, 1996, p. 8).

Aqui Foucault (1996) distingue dois elementos: que o discurso supera o campo oral e permeia

também a escrita (e, evidente, relaciona-se com as práticas); e que seu momento de

dominação, embora transitório, não é determinado apenas pelos sujeitos.

Para Foucault (2008), o discurso não é apenas ideal, porque possui uma

materialidade que não é determinada através da ―[...] operação expressiva pela qual um

indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem [...]‖ (p. 133); e não é intemporal

porque sofre interferência da história, embora considerada em sua descontinuidade, mas não

ignorada na sua unidade quando refere-se ao discurso direcionado ao mesmo objeto. Dessa

forma, o autor define o que considera como um discurso:

[...] é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos

definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é

uma forma ideal e intemporal [...] é, de parte a parte, histórico – fragmento de

história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de

seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos

de sua temporalidade [...] (FOUCAULT, 2008, p. 133).

Como meio de explicar melhor a análise dos discursos, longe de especificar uma

receita-manual, Foucault (2008) indica ―regras de formação‖ para o enunciado – considerado

como componente fundamental na estrutura do discurso, também chamado pelo autor de

grupos de enunciados – por meio dos seguintes elementos: um referencial; um sujeito; um

campo associado e uma materialidade. (IDEM, p. 130).

Para definir o referencial, o autor citado indica que trata-se de um princípio de

diferenciação; em relação ao sujeito, alerta que não se trata da consciência que fala, mas

refere-se à uma posição ocupada sob certas condições por indivíduos diversos; já o campo

associado é o lugar onde se operacional a coexistência com outros enunciados; por fim, a

materialidade que ―[...] não é apenas a substância ou o suporte da articulação, mas um status,

regras de transição, possibilidades de uso ou reutilização‖ (IBIDEM, p. 130).

Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

44

Aplicando a referida compreensão ao contexto brasileiro, podemos citar o

enunciado que define o tráfico de pessoas no Código Penal Brasileiro, artigo 231, como

aquele direcionado à: ―Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que

nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém

que vá exercê-la no estrangeiro.‖

Levando em consideração os aspectos que importam para nosso estudo e de

acordo com os elementos indicados por Foucault (2008), o referencial corresponde à relação

estabelecida nesse enunciado entre o tráfico de pessoas e a prostituição; o sujeito diz respeito

aquele(s) que profere(m) – ou podem reproduzir – esse discurso, no caso o Estado Brasileiro,

mas também os agentes que atuam em nome desse Estado; o campo associado refere-se a

relação que essas palavras estabelecem com outros espaços discursivos que tratem da mesma

questão, como por exemplo, o discurso dos tratados internacionais; por fim, a materialidade,

que circunscreve a objetividade dessas palavra, as formas como se corporificam, por meio do

próprio Código Penal Brasileiro, através daquilo que é divulgado pela mídia, e,

especialmente, por aquilo que é dito pelos profissionais do NETP/CE.

Tendo apresentado tais considerações, utilizamos como meio de coleta dos

discursos orais a entrevista, cujo formato adotado foi a semi-estruturada, uma combinação

entre as modalidade de entrevista aberta e estruturada. No que se refere à tal caracterização,

apresentamos a definição de Neto (1994):

[...] torna-se possível trabalhar com a entrevista aberta ou não-estruturada, onde o

informante aborda livremente o tema proposto; bem como com as estruturadas que

pressupõem perguntas previamente formuladas. Há formas, no entanto, que

articulam duas modalidade, caracterizando-se como entrevistas semi-estruturadas.

(NETO, 1994, p.58).

A interpretação crítica realizada a partir da análise dos discursos, levará em

consideração ainda as palavras de Bourdieu (2009) quando afirma que ―A linguagem levanta

um problema [...] ela é, com efeito, um enorme depósito de pré-construções naturalizadas,

portanto, ignoradas como tal, que funcionam como instrumentos inconscientes de

construção.‖ (BOURDIEU, 2009, p. 39). Essas particularidades, expostas nas entrelinhas dos

discursos dos(as) entrevistado(as), foram analisadas nessa pesquisa.

Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

45

Dessa forma, a percepção das falas dos(as) participantes esteve atenta às

contradições e subjetividades. Sennet (2006) aponta para o cuidado que o pesquisador,

enquanto entrevistador, deve ter para captar esses aspectos: ―[...] aguça a audição para aquilo

que leva as pessoas a se contradizerem ou se meterem num beco sem saída do entendimento.

O entrevistador não está ouvindo um relato imperfeito, e sim prestando atenção a uma

investigação subjetiva da complexidade social.‖ (SENETT, 2006, p. 19).

Consideramos ainda que a pesquisa documental foi utilizada para a realização de

levantamento nas informações dos processos arquivados no Núcleo de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE), localizado na sede da Secretaria da

Justiça e Cidadania, campo desse estudo. Esse momento teve como objetivo identificar o

perfil de vítimas/possíveis vítimas e agressores/aliciadores identificados nesses documentos.

O contato com o campo, conforme já frisado, também fez parte do processo de

compreensão do objeto proposto. Tal etapa é de fundamental importância na construção da

pesquisa qualitativa, pois, conforme salientam Deslauriers et. al. (2010): ―[...] o projeto de

pesquisa qualitativa não se elabora somente no silêncio do escritório do pesquisador.‖

(DESLAURIERS; KÉRISIT, 2010, p. 133).

Bourdieu (2004) compreende que entre a conjuntura socioeconômica e histórica e

os textos científicos existe uma lacuna que deve ser preenchida pelas noções de campo. O

campo é compreendido como aquele no qual ―[...] estão inseridos os agentes e as instituições

que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência.‖ (BOURDIEU, 2004,

p. 20). Quanto à noção de campo, de acordo ainda com o autor, ―[...] está aí para designar esse

espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. [...]‖ (IDEM,

p. 20). Nesse sentido, Bourdieu (2004) afirma que compreender o grau de autonomia que o

campo analisado usufrui é aspecto chave do processo investigativo.

As aproximações com o campo, portanto, estiveram permeadas pela perspectiva

indicada por Bourdieu (2004) em compreender as influências externas e históricas que

interferem nesse espaço e como elas são apreendidas e reproduzidas pelos profissionais que

atuam no NETP/CE. Assim, o autor esclarece:

Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será o seu poder de

refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a ponto,

Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

46

frequentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecíveis. O grau de autonomia

de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, de retradução.

Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-se, essencialmente, pelo fato

de que os problemas exteriores, em especial, os problemas políticos, aí se exprimem

diretamente. (BOURDIEU, 2004, p. 22).

Tendo em vista a proximidade da pesquisadora com o campo, construída ao longo

da atuação técnica naquele local, consideramos as orientações de Roberto Da Matta (1978) ao

sugerir dois pressuposto na pesquisa qualitativa: o de transformar o exótico em algo familiar

ou, e é nesse segundo ponto que repousa nossa reflexão, o de transformar o familiar em

exótico. Os questionamentos e inquietações nesse universo só foram possíveis através da

aproximação científica com a temática, da leitura de pesquisas, artigos e legislação vigente,

que entrou profundamente em confronto com a prática desempenhada no Núcleo. Da Matta

(1978) alerta:

A segunda transformação parece corresponder ao momento presente, quando a

disciplina se volta para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante a um

auto-exorcismo, pois já não se trata de depositar no selvagem africano ou

melanésico o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar,

mas de descobri-las em nos, nas nossas instituições, na nossa prática política e

religiosa. O problema é, então, o de tirar a capa de membro de uma classe e de um

grupo social específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social

familiar e assim descobrir [...] o exótico no que está petrificado dentro de nós pela

reificação e pelos mecanismos de legitimação. (DA MATTA, p. 28,29).

A partir do exposto, construiu-se uma análise dos discursos com foco na

percepção dos profissionais do NETP/CE em relação ao tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual. Nesse processo investigativo, traçamos o perfil das vítimas/possíveis

vítimas e agressores, de acordo com dados da instituição; realizamos levantamento das

manifestações históricas do fenômeno no Brasil e do posicionamento legal e normativo do

país em relação à questão.

1.3. Lócus da Pesquisa: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

Para introduzir os aspectos propostos nesse tópico, cabe definir o que

consideramos como políticas públicas. Partindo da compreensão de que essa categoria possui

diversas concepções, adotamos aquela que a considera como uma ―[...] diretriz elaborada para

enfrentar um problema público‖. (SECCHI, 2010, p. 02, grifo nosso). Contudo, apesar das

políticas públicas não serem necessariamente elaboradas e desenvolvidas pelo Estado,

ressaltamos que nosso foco recairá sobre esse ator. Conforme Secchi (2010) ―Não há dúvidas,

Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

47

no entanto, de que o Estado moderno se destaca em relação a outros atores no estabelecimento

de políticas públicas.‖ (IDEM, p. 04).

No que se refere à relação existente entre problema público e a política pública,

reforçamos nas palavras do autor que: ―A essência conceitual de políticas públicas é o

problema público. Exatamente por isso, o que define se uma política é ou não público é a sua

intenção de responder a um problema público, e não se o tomador de decisão tem

personalidade jurídica estatal [...].‖ (SECCHI, 2010, p. 04).

Já a definição de problema público em si, perpassa pela sua relevância para o

coletivo da sociedade. Quando tal relevância atinge visibilidade político-social e jurídico-

legal, torna-se passível de ser objeto das políticas públicas. De acordo com Secchi (2010):

[...] a definição do que seja um ―problema público‖ depende da interpretação

normativa de base. Para um problema ser considerado ―público‖, este deve ter

implicações para uma quantidade ou qualidade notável de pessoas. Em síntese, um

problema só se torna público quando os atores políticos intersubjetivamente o

consideram problema (situação inadequada) e público (relevante para a

coletividade). (IDEM, p. 07,08).

Mais especificamente, para os objetivos específicos desse estudo, delimitamos a

análise na política pública desenvolvida pelo Estado na figura do NETP. Indicamos que a

publicização do tráfico de pessoas enquanto problema público, tal como se apresenta na

atualidade, conforme já explicado no início deste capítulo, ocorreu em função da publicação

da Pesquisa desenvolvida em 2002 pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre

Crianças e Adolescentes (Cecria), intitulada de Pesquisa sobre tráfico de Mulheres, Crianças e

Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf).

Tal investigação evidenciou 241 rotas de tráfico de meninas e mulheres, frisando

que as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam a maior parte das rotas de tráfico para

fins de exploração sexual. (PESTRAF, 2002, p. 55). Com relação ao tráfico internacional, o

estudo aponta ainda a Espanha como um forte destino e apresenta dados referentes a

predominância de mulheres em situação de migrante ilegal exercendo a prostituição naquele

país como um indicativo de possível situação de exploração e tráfico: ―Em 1999 foram

Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

48

expulsos 491 cidadãos brasileiros da Espanha, por permanência ilegal, dos quais a maioria é

mulheres ligadas à prostituição.‖19

(IDEM, p. 55-56).

Diante do exposto, o surgimento do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de

Pessoas (NETP) ocorreu como resposta do poder público ao problema latente. Criado num

primeiro momento sob a nomenclatura de Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico

de Seres Humanos e Assistência a Vítima, a iniciativa partiu de um projeto piloto intitulado

―Programa Global de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos‖, que surgiu mediante uma

parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça (do Ministério da Justiça) com o Escritório das

Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC)20

em 2003. Alguns estados foram

escolhidos para iniciar o projeto: Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Ceará. Para a

consolidação do mesmo, foi proposta a criação de unidades do Escritório em cada um desses

locais, com sede na capital dos referidos Estados.

O surgimento do Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres

Humanos e Assistência a Vítima no Estado do Ceará ocorreu em 2003, passando a realizar

suas ações em experiência pioneira de enfrentamento à questão no país. O órgão, a partir do

início de seu funcionamento, passou a receber denúncias e encaminhamentos de outras

instituições de possíveis casos de tráfico de seres humanos e, além de oferecer assessoria

jurídica e psicossocial, faz encaminhamento dos mesmos para o Ministério Público Federal

através Procuradoria da República do Estado do Ceará. Assim, o Escritório funcionou nos

anos de 2003 à 2006 na sede do Ministério Público Estadual, até que, em 2007, foi transferido

para a sede da Secretaria da Justiça e Cidadania do estado do Ceará (SEJUS).21

Até o ano de 2007, o projeto não possuía uma metodologia de atendimento

padrão, pois a coordenadora do mesmo pôde contar apenas com o trabalho voluntário

eventual de outros profissionais até aquele momento. Em março de 2008, entretanto, houve a

19

Dado inclusive que pode indicar também a postura preconceituosa da Espanha em relação à prostituição

feminina brasileira naqueles países.

20

O UNODC coopera com os países para promover treinamento para policiais, promotores, procuradores e

juízes. Ao mesmo tempo, o objetivo dos programas é melhorar os serviços de proteção das vítimas e das

testemunhas oferecidos por cada país.

21

A Sejus, por sua vez, é um órgão do Governo do Estado do Ceará que surgiu em 24 de setembro de 1891 com

a nomeação, por portaria, do primeiro secretário desse órgão: bacharel Waldomiro Cavalcante.

Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

49

contratação de 02 estagiárias de psicologia e 01 estagiária de serviço social. No mês de abril

do mesmo ano foi contratada uma turismóloga, em maio um estagiário de direito e, no mês de

agosto, duas profissionais formadas em psicologia. Com a equipe composta, houve uma

discussão e efetivação de metodologia de atendimento com a finalidade de padronizá-la.

Em relação ao panorama nacional, houve a publicação da Política Nacional de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas por meio do Decreto Presidencial nº 5.948, de 26 de

outubro de 2006. O documento prevê diretrizes específicas de atuação em três esferas:

Prevenção, Repressão e Assistência. Prevê ainda ações à serem implementadas nas áreas da

Justiça e Segurança Pública; Relações Exteriores; Educação; Saúde; Assistência Social;

Igualdade Racial; Direitos Humanos; Trabalho e Emprego; Desenvolvimento Agrário;

Proteção e Promoção dos Direitos da Mulher; Turismo; Cultura.

O I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas surge em decorrência

da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto

Presidencial nº 6.347, de 08 de janeiro de 2008. Nesse documento, estão discriminadas duas

atividades prioritárias que envolvem Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os

Escritórios, descritas respectivamente como 5.B.2 e 5.C.3. O texto da primeira prioridade

destacada explicita: ―Apoiar o desenvolvimento de núcleos de enfrentamento ao tráfico de

pessoas‖. Já a segunda coloca: ―Avaliar as atuações dos escritórios estaduais, entre outras

experiências, como subsídio para apoiar a criação ou o desenvolvimento de núcleos de

enfrentamento ao tráfico de pessoas‖. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p. 86, 87).

Estabeleceu-se ainda o Ministério da Justiça como instituição responsável por executar e

acompanhar o desenvolvimento das referidas prioridades.

Dessa forma, o Ministério da Justiça, ainda em 2008, articulou uma organização

de estrutura e atendimento para essas unidades, prevendo proposta de alteração das

nomenclatura de Escritório para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP),

além de estabelecer a meta de implantar outras unidades em território nacional. Dessa forma,

os NETP‘s foram contemplados por recursos destinados à programas do governo na área de

Apoio às Políticas Públicas e Áreas Especiais descritos no Plano Plurianual 2008-2011

(Anexo II, p. 223, 224).

Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

50

Embora a normativa nacional de apoio aos NETPS‘s tenha sido publicada em

2008 e as atividades no EEPTSH/CE viessem sendo realizadas desde 2003 na SEJUS/CE,

cabe destacar que é apenas no segundo semestre de 2011 que se publica o Decreto Estadual

oficializando o funcionamento da estrutura no Ceará. No documento, dentre outras medidas, a

nomenclatura é alterada de Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Pessoas e

Assistência a Vítima para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do

Ceará:

DECRETO Nº 30.682, de 22 de setembro de 2011.

INSTITUI, NO ÂMBITO DO ESTADO DO CEARÁ, [...] CRIA O NÚCLEO DE

ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS – NETP, JUNTO À

SECRETARIA DA JUSTIÇA E CIDADANIA [...]

Art.2º O Programa Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PETP fica

subordinado ao Gabinete do(a) Secretário(a) da Justiça e Cidadania, por meio do

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – NETP, composto de equipe

operacional multidisciplinar formada, no mínimo, por um(a) advogado(a), um(a)

assistente social e um(a) psicólogo(a). (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO

CEARÁ, 2011, p. 19).

A partir da publicação do decreto nº 30.682/2011, estabelece-se oficialmente as

atribuições do Núcleo, dentre elas podemos citar: articular e planejar o desenvolvimento das

ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas; operacionalizar, acompanhar e avaliar o

processo de gestão das ações, projetos e programas de enfrentamento ao tráfico de pessoas;

integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento; sistematizar, elaborar e

divulgar estudos, pesquisas e informações sobre o tráfico de pessoas; capacitar e formar atores

envolvidos direta ou indiretamente com o enfrentamento ao tráfico de pessoas na perspectiva

da promoção dos direitos humanos; impulsionar, em âmbito estadual, mecanismos de

repressão ao tráfico de pessoas e consequente responsabilização dos autores; definir, de forma

articulada, fluxo de encaminhamento que inclua competências e responsabilidades das

instituições inseridas no sistema estadual de disque denúncia; prestar auxílio às vítimas do

tráfico de pessoas, no retorno a localidade de origem, caso seja solicitado; (IDEM, p. 19,20).

Um aspecto que chamamos atenção no texto do decreto é o fato da atribuição

referente à assistência e auxílio às vítimas vir descrita apenas no tópico de número XIV, na

antepenúltima posição de atribuições, abaixo de atividades que envolvem o suporte à

repressão, por exemplo. Inclusive, um dos fatos que muito despertou inquietação durante

minha experiência profissional no NETP/CE foi a confusão existente, em especial por parte

dos usuários, em relação ao papel daquela estrutura, muitas vezes confundida com uma

Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

51

delegacia ou instancia do poder judiciário. Não por acaso, tendo em vista que os depoimentos

muitas vezes eram coletados pelo mesmo modus operandi de uma delegacia: enquanto um

profissional fazia os questionamentos, outro digitava as informações tal qual um escrivão da

policia, sem mencionar as buscas ativas através do Gabinete de Gestão Integrada.

Ocorreram inúmeros eventos ainda nos quais a equipe multidisciplinar esteve

presente na delegacia, participando do procedimento de coleta de depoimentos, conforme

ilustro de transcrição de trecho do meu diário de campo, quando ainda desempenhava as

atividades de estagiária de serviço social no Núcleo: ―Hoje acompanhei na delegacia *22

o

depoimento de um homem que trabalha como segurança no condomínio * [...] eu que digitei o

depoimento enquanto a delegada fazia o interrogatório [...].‖ (Trecho do Diário de Campo do

dia 24 de março de 2008).

Ressaltamos ainda que inúmeras das atividades realizadas pelo NETP/CE em

parceria com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) por meio do

Gabinete de Gestão Integrada do Estado do Ceará (GGI/CE) – das quais nos reportaremos

mais detalhadamente logo adiante – foram divulgadas pela mídia, em programas que tratam

especificamente de criminalidade, e quando publicadas por meio de jornal escrito apareciam

no caderno ―Polícia‖23

.

As atividades de repressão realizadas, associadas ao tipo de publicidade que

recebiam, gerou uma série de distorções em relação ao NETP/CE. Enquanto ainda trabalhava

na instituição, pude presenciar que várias possíveis vítimas de tráfico e seus familiares se

reportaram à alguns profissionais como delegados(as) de polícia ou policiais. Instituições

ligadas aos Direitos Humanos passaram também a repudiar essas ações, dificultando parceiras

e hostilizando os profissionais atuantes, conforme inclusive menciona uma de nossas

entrevistadas para essa pesquisa, nomeada ficticiamente de Arraia:

Encontrei, logo no início, algumas dificuldades, algumas dificuldades de

relacionamento mesmo, tendo em vista o Escritório à época, né, assumia uma

22

O símbolo indica a supressão da identificação do local mencionado como forma de garantir sigilo às

informações.

23

Ver matérias publicadas, por exemplo, no Diário do Nordeste, Caderno Polícia (Quinta-feira, 16 de março de

2009, p. 16; Terça-feira, 9 de junho de 2009, p. 14; Domingo, 04 de outubro de 2009, p. 03; Sábado, 17 de abril

de 2010, p. 18; etc).

Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

52

postura bastante repressiva. Encontrei muitas portas fechadas, principalmente das

ONGs, de, da rede de assistência, né, pública e as vezes até mesmo privada, de

ONGs, etc. (Arraia).

Em relação às atividades de prevenção, de acordo ainda com a experiência de

campo da pesquisadora, são efetuadas através da distribuição de material informativo nos

principais pontos de fluxo turístico24

e de prostituição da cidade. Camisinhas envidas pelo

Ministério da Justiça também foram distribuídas pela instituição até o ano de 2010, quando o

material se esgotou e o estoque não foi reposto. Os locais onde tais atividades são realizadas

são selecionados a partir dos registros de denúncias de possíveis casos de tráfico no

NETP/CE. No período em que trabalhei no local, foram principalmente realizadas no

calçadão da Beira-Mar, Espaço Cultural Dragão do Mar e mediações, Barracas da Praia do

Futuro e casas de prostituição.

Ainda no que tange as ações preventivas o NETP/CE, o órgão desempenha

atividades educativas através de palestras, seminários, e participação em simpósios.25

Conforme anteriormente mencionado, executa distribuição de material (folders, cartazes e

cartilhas) em locais de grande fluxo turístico da cidade ou em campanhas realizadas em datas

importantes como o 08 de março (dia internacional de mulher) e o 18 de maio (dia Nacional

de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), por exemplo.

Durante as visitas de campo em 2012, a equipe multidisciplinar do NETP/CE nos relatou

ainda que durante os anos de 2011 e 2012 realizaram atividades junto às escolas públicas de

ensino médio com o objetivo de alertar adolescentes à respeito da questão.

Destacamos, contudo, que nas atividades de prevenção desenvolvidas, a equipe do

NETP/CE utiliza material informativo voltado exclusivamente para o enfrentamento ao

tráfico de mulheres com fins de exploração sexual. Tanto o material elaborado pela Secretaria

da Justiça do Ceará (SEJUS) como o do Ministério da Justiça apresentam essa especificidade.

Apresentamos na sequencia o panfleto da SEJUS para ilustra a argumentação exposta:

24

Locais como aeroportos, rodoviárias, hotéis, praias, etc.

25

Os locais de realização dessas campanhas são selecionados a partir dos casos já identificados de tráfico de

seres humanos, as mulheres que estiveram em situação de trafico citam zonas de prostituição e locais de grande

fluxo turístico como pontos onde agem os aliciadores. Aeroportos e Rodoviárias também são alvos das

campanhas por serem à porta principal de saída e entrada de pessoas em situação de tráfico no Estado do Ceará.

Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

53

FIGURA 01 – PANFLETO DISTRIBUÍDO NAS AÇÕES PREVENTIVAS DESEMPENHADAS PELO NETP/CE

FONTE: Scanneado pela pesquisadora, 2012.

Conforme anteriormente indicado, no mesmo direcionamento encontra-se o

material produzido pelo Ministério da Justiça, que inclusive foi amplamente utilizado pelo

NETP/CE entre os anos de 2007-2010, cujo modelo segue abaixo:

FIGURA 02 - PANFLETO PRODUZIDO PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (FRENTE E VERSO)

FONTE: Scanneado pela pesquisadora, 2012.

Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

54

Durante o período de 2008-2010, no que se refere ao enfrentamento ou combate,

realizava-se especialmente de duas formas: através de ações com o Gabinete de Gestão

Integrada do Estado do Ceará26

(GGI/CE) e de acompanhamento das denúncias junto à

Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e à Delegacia de Combate à Exploração contra a

Criança e Adolescente (DCECA).

Em relação ao GGI/CE, trata-se de um colegiado de caráter deliberativo e

interventivo que se tornou extremamente atuante a partir de 2007, elegendo como prioridade

nas suas ações o combate permanente ao tráfico de drogas, de armas, de seres humanos e

exploração sexual de crianças e adolescentes. Daquele momento em diante, no Estado do

Ceará, o GGI/CE atuou, entre outras coisas, como um instrumento de repressão ao tráfico de

pessoas.

A composição do GGI/CE conta com membros natos27

e convidados28

– todos

provenientes do poder público estadual e federal. Possui ainda uma coordenação, que é

efetivada pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPD), uma secretaria

executiva29

, além de assessorias e comissões temáticas, todos previstos em lei.

No que tange ao planejamento e discussão das atividades à serem efetivadas, o

GGI/CE realiza reuniões em caráter ordinário a cada dois meses e, quando necessário,

26

O GGI-CE surgiu como consequência da adesão do Estado do Ceará ao Sistema Único de Segurança Pública,

com a finalidade de coordená-lo. Está vinculado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social.

27

São considerados membros natos: Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS); Comando-Geral

da Polícia Militar do Estado (PMCE); Superintendência da Polícia Civil; Comando-Geral do Corpo de

Bombeiros Militar (CBMCE); Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS); Secretaria Nacional de Segurança

Pública (SENASP); Superintendência Regional da Polícia Federal no Estado do Ceará (SRPF/CE);

Superintendência Estadual do Ceará da Agência de Inteligência (SECE/ABIN) e Superintendência Regional da

Polícia Rodoviária no Estado Ceará (SRPRF/CE). Novas entidades, a partir do ano de 2010, passaram a fazer

parte da equipe que compõe o Gabinete de Gestão Integrada no Estado do Ceará, tais como: a Marinha do Brasil;

Exército Brasileiro; Aeronáutica; Casa Militar; Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária

(INFRAERO) e Receita Federal.

28

Integram ainda essa mesma estrutura, como convidados: Perícia Forense do Ceará (PEFOCE), Diretoria da

Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza, que representa a Prefeitura Municipal; Coordenação do Núcleo

de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/CE) – como representante da Secretaria da Justiça e Cidadania –

e representantes do Poder Judiciário, Procuradoria Geral de Justiça (PGJ), Secretaria da Fazenda (SEFAZ),

Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), Defensoria Pública Geral (DPG) e Secretaria do

Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS).

29

Secretaria Executiva essa composta um Secretário Executivo e Gerentes de Gestão da Inteligência, Informação

e de Operações.

Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

55

extraordinário, que ocorrerem por convocação da Secretaria Executiva mediante solicitação

de qualquer um dos membros integrantes. Nessas reuniões, as partes se manifestam à respeito

de denúncias recebidas, podem fazer solicitações acerca de fiscalizações em determinados

locais, tecem avaliações sobre ações já efetivadas e realizam planejamento de ações futuras.

Tais encontros são comunicados a todos os membros com, pelo menos, oito dias de

antecedência, pela Secretaria Executiva do GGI/CE.

As atribuições do GGI/CE estão pautadas nas Comissões Temáticas e

regulamentadas pelas Diretrizes Operacionais nº 002/2007 e nº 003/2007. Afora tais

regulamentações, o GGI/CE possui Regimento Interno que foi elaborado em 2005. Suas

atividades de campo, que compreendem fiscalizações, são desempenhadas tanto na capital

(Fortaleza) quanto na região metropolitana e interior do Estado do Ceará.30

O Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará

(NETP/CE), por sua vez, executava em atividades de planejamento e ação junto ao GGI/CE,

atuando com o objetivo de identificar e acolher possíveis vítimas de tráfico, acompanhar seus

depoimentos na delegacia, coletar dados das mesmas e disseminar informações de caráter

preventivo ao fenômeno através da distribuição de material informativo e esclarecimento de

dúvidas.

A execução das ações em campo conta com a participação de integrantes das

instituições que compõe o GGI/CE e com um coordenador ou dois – dependendo da

quantidade de locais que deverão ser fiscalizados – designados em cada ocasião. Cada ação

conta ainda com a participação de um delegado ou delegada diferente, assim como uma

delegacia, que também muda em cada operação, onde são autuados os flagrantes e coletados

os depoimentos de testemunhas e demais pessoas envolvidas. A seguir apresento breve relato

da primeira ação do GGI/CE que participei enquanto estagiária de Serviço Social do

Escritório:

30

De acordo com balanço feito pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, no ano

de 2009, foram realizadas 31 (trinta e uma) operações, resultando em 31 (trinta e um) autos de prisão em

flagrante delito, 21 (vinte e um) termos circunstanciais de ocorrências e apreensão de 16 (dezesseis) armas de

fogo. Já em 2010, o referido balanço aponta que o GGI/CE realizou 50 (cinquenta) grandes operações que

desencadearam em 90 (noventa) autos de prisão em flagrante delito, 29 (vinte e nove) termos circunstanciais de

ocorrência e apreensão de 78 (setenta e oito) armas de fogo com a atuação da equipe em 20 (vinte) municípios

do Estado do Ceará.

Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

56

23h:25m - [...] foi me buscar em casa com motorista da SEJUS e fomos para a 2ª

DP no Meireles. Lá fomos para o auditório onde um coronel explicou a operação e

especificou os órgãos participantes [...] A equipe toda foi para a rua dos Tremembés

e se dividiu para entrar nas boates [...] o procedimento do TSH31

consiste em

solicitar os RG‘s das garotas de programa e verificar se são maiores de idade e se

são de outras Cidades/Municípios/Estados. [...] (Trecho do Diário de Campo do dia

25 de abril de 2008).

As referidas atividades são iniciadas normalmente durante o final da noite – entre

as 21:00 e 23:00 horas – e muitas vezes se estendem por toda a madrugada. Os locais à serem

fiscalizados não podem ser revelados com antecedência à maioria dos integrantes que atuarão

na execução dessas atividades por uma questão de sigilo, mesmo assim, já ocorrendo algumas

vezes vazamento de informações e o local à ser abordado estar de portas fechadas, como

algumas vezes presenciei.

Cada órgão que comparece à essas atividades fica encarregada de elaborar

relatório padrão com dados como número de participantes na ação, número de pessoas

apreendidas, nome dos locais fiscalizados, número de informativos distribuídos e outras

especificidades. As informações devem ser encaminhadas, via e-mail ou via fax, no primeiro

dia útil após a realização das ações, para a Secretaria Executiva do GGI/CE.

O NETP/CE, além de elaborar tais relatórios, coleta dados das pessoas abordadas

nas ações em instrumental de trabalho elaborado e manuseado por sua equipe multidisciplinar.

Entretanto, não os submete ao GGI/CE por tratarem-se de informações consideradas como

sigilosas. Tal instrumental contém dados como nome, naturalidade, data de nascimento, sexo,

profissão e escolaridade das mesmas. Essas informações são repassadas pelos profissionais da

instituição para uma tabela digitalizada.

No que tange à assistência, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do

Estado do Ceará (NETP/CE) realiza atendimento sistemático assistencial, psicossocial e

suporte jurídico às pessoas em situação de tráfico. A metodologia de atendimento nesse

âmbito, em linhas gerais, consiste no acolhimento à pessoa em situação de tráfico por

assistente social e psicólogo. Tais profissionais se encarregam de realizar entrevista

psicossocial que consiste num diagnóstico da situação psicológica e as condições econômicas

e sociais que aquela pessoa esta submetida naquele momento. Diante desses dados, uma visita

social é agendada e a partir da construção de relatório de atendimento buscam-se alternativas

31

Sigla pela qual o Escritório era chamado pela equipe profissional atuante e parceiros.

Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

57

para que o indivíduo possa superar aquela situação. É oferecido acompanhamento psicológico

e social sistemáticos e são feitos os encaminhamentos relativos à cada situação.

Em relação à equipe multidisciplinar que presta suporte na sede do NETP/CE

atualmente identificamos até janeiro de 2013: 01 (uma) coordenadora (bacharel em direito);

02 (duas) psicólogas; 01 (um) bacharel em direito; 01 (uma) assistente social; 02 (dois) apoios

à coordenação – com ensino médio completo –; 02 (duas) estagiárias do ensino médio do

Programa Jovem Primeiro Passo32

.

Com o objetivo de melhor demonstrar os casos registrados no NETP/CE realizou-

se levantamento documental no local com a finalidade de estabelecer alguns dados

quantitativos inportantes no que se refere ao tráfico de seres humanos no Estado do Ceará,

aspectos esses abordados mais adiante, no último capítulo desse estudo.

O capítulo seguinte tratará da pesquisa bibliográfica referente aos aspectos

históricos que envolvem manifestações do tráfico de seres humanos no Brasil, enfatizando a

posição da mulher nesse tipo de exploração, além de tratar das configurações contemporâneas

do fenômeno, descrito como complexo devido às suas múltiplas finalidades e polêmicos

elementos de caracterização.

32

Programa coordenado pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Estado

do Ceará que, dentre outras ações, encaminha jovens da rede de ensino publico para desenvolver atividades de

estágio em órgãos públicos.

Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

58

2. TRÁFICO DE PESSOAS E ESCRAVIDÃO: DO BRASIL COLÔNIA

AOS DIAS ATUAIS.

A perspectiva histórica apresentada nesse capítulo não pretende alocar o tráfico de

seres humanos numa dimensão evolutiva ou na busca por uma ―essência‖ que demonstraria

um retrato fiel do fenômeno. Em direcionamento pautado em Foucault (2011), percebemos

esses momentos como descontínuos, embora relacionados, que apresentam práticas e

definições diferenciadas em cada momento histórico. Segundo o autor:

[...] atrás das coisas há ―algo inteiramente diferente‖: não seu segredo essencial e

sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi

construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. [...] O que se

encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da

origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate. (FOUCAULT, 2011, p. 17,18).

Dessa forma, ainda na perspectiva foucaultiana, o acontecimento ao longo de seu

percurso histórico pode se atualizar, suscitando novos significados e, a partir daí, abrir outros

caminhos, inclusive contraditórios, para se corporificar (daí a noção de discórdia). A história,

portanto, longe de ocorrer por meio da continuidade, do determinismo entre o objeto e o que

se diz dele, se dá pelo movimento no qual as coisas se transformam (devir) e pela

descontinuidade, negando a perspectiva de ―naturalização‖, de metafísica e de imanência dos

fenômenos (FOUCAULT, 2011).

Perceber historicamente o fenômeno, ainda com base em Foucault (2011), trata-se

de estabelecer diálogo entre as relações de saber-poder em cada um dos espaços temporais

demonstrados, relações essas que fomentam ―realidades‖, vinculadas à saberes, pensamentos,

atitudes e sentimentos. Ou seja, saberes que estabelecem relações não-estáticas de poder entre

as palavras e as coisas. De acordo com Lemos e Cardoso Junior (2009):

Para Foucault, não haveria um objeto completamente original, mas somente práticas

de objetivação e, de modo imanente, de subjetivação. Dessa forma, os objetos

seriam correlatos de práticas, não havendo uma essência desses, mas múltiplas

objetivações de práticas heterogêneas. A prática é o fazer, e "o objeto, se explica

pelo que foi o fazer em cada momento da história" [...]. (LEMOS; CARDOSO

JUNIOR, 2009, p. 355)

Realizadas tais considerações, segue, a partir do tópico adiante, o levantamento

das manifestações históricas do tráfico de pessoas, com foco no tráfico de mulheres para fins

de exploração sexual.

Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

59

2.1. Escravidão e Tráfico Negreiro

No período colonial (sécs. XVI-XVII), milhares de negros e negras africanos(as)

foram sequestrados(as) e trazidos(as) ao Brasil para serem comercializados(as) como objetos

e explorados(as) de múltiplas formas por seus ―proprietários‖. Totalmente privados(as) de

qualquer dignidade humana, os africanos(as) escravizados e escravizadas transformaram-se

rapidamente em fonte de renda lucrativa para traficantes e fazendeiros. Em poucos anos, os

números dessa prática cresceram exponencialmente, como demonstra Marquese (2006):

[...] entre 1576 e 1600, desembarcaram em portos brasileiros cerca de 40 mil

africanos escravizados; no quarto de século seguinte (1601-1625), esse volume mais

que triplicou, passando para cerca de 150 mil os africanos aportados como escravos

na América portuguesa, a maior parte deles destinada a trabalhos em canaviais e

engenhos de açúcar. (MARQUESE, 2006, p.5)

O historiador José Murilo de Carvalho (2007) também faz referência à esses

números, indicando um contingente de cerca de três milhões de africanos(as) transportados

para o Brasil até 1822, com o acréscimo de mais um milhão até meados de 1850

(CARVALHO, 2007, p. 19-20). Sobre a origem específica dessas pessoas, indica: ―Vieram

escravos de várias etnias e de diferentes tradições culturais, saídos de regiões que iam da baía

de Benin, na costa ocidental da África, onde hoje fica a Nigéria, em direção ao sul, até

Moçambique, já na parte oriental daquele continente.‖ (IDEM, p. 20).

No mesmo direcionamento, Boris Fausto (1996) evidencia esses números:

―Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos, na

sua grande maioria jovens do sexo masculino.‖ (FAUSTO, 1996, p. 29). No que diz respeito

aos principais portos de entrada brasileiros, o autor ressalta: ―Os grandes centros importadores

de escravos foram Salvador e depois o Rio de Janeiro, cada qual com sua organização própria

e fortemente concorrentes.‖ (IDEM, p. 29).

No que diz respeito a forma como foram transportados(as) da África para outros

continentes, podemos indicar o exemplo emblemático do Brooks, um navio negreiro

construído no século XVIII, desenhado e publicado pelo movimento abolicionista na

Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

60

Inglaterra33

para demonstrar à sociedade as atrocidades pelas quais eram submetidos os

negros(as) e a maneira pela qual foram alojados nessas embarcações. O referido navio foi

considerado como um dos que possuía a menor área quadrada por escravo transportado,

dispondo apenas de 76 cm de altura (impedindo que um adulto ficasse de pé), onde as tábuas

dispostas no chão provocavam ferimentos nos corpos humanos devido ao balanço do mar,

assim também como as correntes aos quais estavam submetidos esfolavam seus membros.

(REDIKER, 2011, p. 324). De uma forma geral, essa era a realidade desse tipo de

embarcação, conforme atesta o poema de Stanfield:

Apinhados, em dor, os corpos malcheirosos, / Contidos por grilhões, conspurcam os

ares abafados. / Em dolorosas fileiras, com grande engenho amontoados, / Jazem

fumegantes, respirando a úmida fedentina: / Manchada de sangue, no chão de

madeira adamantina, / Articulações esfoladas, pelo balanço do mar / – e o navio

prossegue em seu funesto singrar. (STANFIELD apud REDIKER, 2011, p. 159).

O poeta Castro Alves (2007) também relata o sofrimento dos negros e negras

capturados(as) no continente africano, apresentando o contraste entre a forma como viviam

em sua terra natal e os maus tratos sofridos desde o momento da captura e travessia no navio

negreiro. Como meio de demonstrar o exposto, transpomos o trecho a seguir:

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!... (ALVES, 2007, p. 09).

33

Movimento intitulado de Society for Effecting the Abolition of the Slave Trade (Sociedade pela Efetivação da

Abolição do Tráfico de Escravos – tradução livre da pesquisadora).

Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

61

Conforme a escravidão cresceu em proporções, negros e negras já sabiam o que

teriam de enfrentar quando eram capturados em sua terra natal. Como forma de resistência,

alguns faziam greve de fome, motins e até cometiam suicídio ainda durante a jornada no mar:

Logo de saída o homem recusou qualquer alimentação. Desde o começo de seu

cativeiro a bordo do navio, ele simplesmente não se dispunha a comer. Também essa

reação era muito comum, mas ele foi mais longe. Certa manhã, ainda bem cedo,

quando os marujos desceram ao convés inferior para inspecionar os escravos,

acharam o homem todo ensanguentado. [...] o homem tentara cortar a garganta [...]

Trotter suturou o ferimento e considerou a possibilidade de alimentar o homem à

força. O ferimento, porém, ―nos impossibilitava de usar quaisquer meios

compulsórios‖, que eram, naturalmente, muito empregados pelos traficantes de

escravos. (REDIKER, 2011, p. 26).

As resistências empreendidas pelos cativos a bordo do navio acarretavam em

severas e cruéis punições aplicadas pela tripulação branca. Rediker (2011) apresenta alguns

exemplos desse tipo de punição e indica que além de açoites e torturas, os tubarões também

eram utilizados nas ameaças: ―[...] Outros capitães de navios negreiros praticavam um espécie

de terror esportivo, usando despojos humanos para atrair tubarões [...]‖ (IDEM, p. 49). O

autor complementa sua exposição explicando que os marujos atraiam os animais arrastando

pelo mar cadáveres de negros(as), que acabavam por ser devorados(as) pelos bichos. A prática

era realizada para servir de exemplo aos demais cativos(as). (REDIKER, 2011).

Na perspectiva dos(as) negros(as), Rediker (2011) trás o relato da história do

africano Olaudah Equiano, também conhecido como Gustavus Vassa, capturado na Nigéria

aos onze anos de idade em 1754, que escreveu anos depois sua autobiografia34

, relatando os

horrores que presenciou no navio negreiro no qual foi transportado para o ―Novo Mundo‖:

Foi levado para o convés inferior, onde um cheiro nauseabundo logo o fez sentir-se

mal. Quando dois membros da tripulação lhe ofereceram comida, ele esboçou uma

fraca recusa. Eles o arrastaram novamente para o convés superior, amarraram-no ao

molinete e o chicotearam. Quando a dor percorreu-lhe o pequeno corpo, seu

primeiro pensamento foi fugir pulando na água [...] ainda que não soubesse nadar. E

então descobriu que o navio negreiro era equipado com redes justamente para evitar

esse tipo de resistência desesperada. Assim, a primeira experiência no navio negreiro

e a lembrança que dela lhe ficou, caracterizava-se por violência, terror e impulso

para resistir. (IDEM, p. 119).

34

Gustavos Vassas tornou-se abolicionista, escreveu a primeira autobiografia na perspectiva de um escravizado a

bordo do navio negreiro, mas o relato é bem mais extenso, envolve aspectos da sua vida antes da capturo, o

momento do sequestro e o desenrolar de sua história quando no destino da viagem sombria.

Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

62

A violência sexual também esteve presente nessas embarcações. Nesse sentido,

Rediker (2011) apresenta o relato de James Field Stanfield35

, que além de contar em

pormenores as resistências, castigos e maus tratos que sofriam as escravas de uma forma

geral, fica extremamente horrorizado com a barbaridade que presencia contra uma criança:

Stanfield faz referência ao fato mas se recusa a descrevê-lo – o capitão estuprou uma

menina. Stanfield menciona apenas algo ―praticado pelo capitão contra uma infeliz

escrava de oito anos ou nove anos‖. Embora ele não tivesse coragem de nomear o

crime – ―não tenho palavras para descrevê-lo‖ –, insistiu ter sido ―por demais atroz e

sangrento para passar em silêncio‖. Ele considerou aquele ato um exemplar da

‗barbaridade e tirania‖ cotidianas do tráfico de escravos. (REDIKER, 2011, p. 161).

Quando em cativeiro na terra firme, as múltiplas violências sofridas eram

ratificadas pelo Estado. As escravas negras, por exemplo, de acordo com lei vigente no Brasil

de 1883, podiam ser comercializadas no mercado sexual como prostitutas e seus proprietários

tinham o direito assegurado de receber os rendimentos financeiros dessa prática. Joaquim

Nabuco denuncia esse fato: ―Os senhores podem empregar escravas na prostituição,

recebendo os lucros desse negócio, sem que isso lhes faça perder a propriedade sobre elas

[...]‖ (NABUCO, 2010, p. 119).

Carvalho (2007) menciona que a violência sexual se estendia as indígenas, pois

durante as primeiras décadas de colonização do país, a presença de mulheres brancas era

extremamente incomum: ―Dada a escassez de mulheres brancas, o colonizador miscigenava-

se com mulheres indígenas e africanas, processo em que estupro e consentimento se

misturavam de maneira indistinguível.‖ (CARVALHO, 2007, p. 20).

Funes (2007) também evidencia a utilização de africanas escravizadas na

prostituição, e tece sobre as múltiplas atividades desempenhadas pelos escravizados:

Na cidade, o trabalho do escravo ajudava na composição das rendas da família do

senhor, não apenas no ganho pelo seu valor, mas como escravo de aluguel, como

escravo de ganho e até como prostitutas. Encontra-se nos centros urbanos uma mão-

de-obra mais especializada como pedreiros, marceneiros, alfaiates, sapateiros entre

outros. (FUNES, 2000, p. 115).

35

Intitulado de Observations on a Guinea voyage, in a series of letters addressed to the Rev. Thomas Clarkson,

publicado em Londres, 1788.

Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

63

Ressaltamos ainda que a escravidão além da anuência proporcionada pelo suporte

jurídico-legal, também foi justificada por outras esferas sociais, como a igreja católica e

alguns intelectuais de respaldo na época, por exemplo, fomentando um campo de dominação

ideológica que permeou (e em certa medida ainda permeia) a sociedade brasileira. Nesse

direcionamento, apresentamos as considerações de Parron (2011):

Desde o início da colonização americana até o século XVIII, uma gama de lugares-

comuns jurídicos, teológicos e filosóficos justificara a escravidão de povos

africanos, como os justos títulos (casos de miséria extrema, condenação à morte,

ventre materno escravo e guerra justa), a maldição de Cam (passagem bíblica da

condenação de um dos filhos de Noé) e a releitura escolástica da teoria aristotélica

da escravidão natural. (PARRON, 2011, p. 51).

A Inglaterra, por ter se modernizado através da revolução industrial e pela

existência de movimentos abolicionistas religiosos36

, foi o país que mais exerceu pressão em

Portugal para abolir a escravidão. Através dos Tratados da Aliança e da Amizade e de

Navegação e Comércio, os ingleses tentaram induzir aquele país a cessar a prática naquele

território e em suas colônias. Entretanto, as medidas pioneiras não lograram muito sucesso.

Outra tentativa foi feita no Congresso de Viena, onde Portugal e Inglaterra assinaram novo

acordo, mas também não obteve resultados significantes. Fausto (1996) menciona esses

tratados e o posterior fracasso dos mesmos:

Uma cláusula adicional ao tratado concedeu à Inglaterra o "direito de visita" em

alto-mar a navios suspeitos de transportar cativos, autorizando sua apreensão.

Nenhuma dessas medidas impediu o tráfico que, pelo contrário, se tornou maior no

início de 1820 do que era no começo do século. (FAUSTO, 1996, p.78).

A primeira atitude legal brasileira eficiente, direcionada a abolir a escravidão,

incidiu sobre o tráfico negreiro. A lei Euzébio de Queiroz, de 04 de setembro de 1850,

reprimia o translado de escravizados da África para o Brasil, estabelecendo sua posterior

extinção. O autor da lei, senador Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, tinha

atuado anteriormente como Chefe de Polícia no Rio de Janeiro, cargo esse que lhe forneceu

subsídios suficientes para a repressão, pois obtinha ciência dos alojamentos que mantinham

africanos contrabandeados. Joaquim Nabuco (2010) referenda a empreitada:

36

Os Quakers, seita radical protestante na Inglaterra, consideravam a escravidão um pecado, por conta disso, em

1768, mobilizaram-se para enviar ao parlamento uma solicitação pedindo o fim do tráfico de escravizados. O

movimento metodista, através da pregação de seu fundador, John Wesley, disseminou idéias contra a escravidão,

afirmando que preferiam ver as colônias inglesas do Caribe naufragarem do que manter um sistema que ―violava

a justiça, a misericórdia, a verdade‖. (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 173).

Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

64

A primeira oposição nacional à escravidão foi promovida tão somente contra o

tráfico. Pretendia-se suprimir a escravidão lentamente, proibindo a importação de

novos escravos [...] Acabada a importação de africanos pela energia e decisão de

Eusébio de Queiroz, e pela vontade tenaz do imperador - o qual chegou a dizer em

despacho que preferia perder a coroa a consentir na continuação do tráfico -, seguiu-

se à deportação dos traficantes [...]. (NABUCO, 2010, p. 36)

Entretanto, devemos ressaltar que a iniciativa encontrou muita resistência,

conforme demonstra Parron (2011) por meio de texto escrito por José de Alencar (1867) em

defesa do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil:

[...] não havia outro meio de transportar aquela raça [os africanos] à América senão

o tráfico. Por conta da consciência individual correm as atrocidades cometidas. Não

carrega a ideia com a responsabilidade de semelhantes atos, como não se imputam à

religião católica, a sublime religião da caridade, as carnificinas da inquisição. O

tráfico, na sua essência, era o comércio de homens; a mancipatio dos romanos. Sem

a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda um vasto

deserto. (ALENCAR apud PARRON, 2011, p. 11).

Embora enfrentando resistências, outras medidas sucederam a lei Euzébio de

Queiroz, dentre elas podemos citar a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, que

considerava liberto todo aquele(a) nascido(a) de escrava. Contudo, mantinha esse(a) sob tutela

do senhor até os 21 (vinte e um) anos. Houve ainda a Lei dos Sexagenários, que decretava

livre o escravo ou escrava a partir dos 60 (sessenta) anos completos. Entretanto, muitos

escravizados sequer chegavam a tal idade e caso conseguissem, praticamente não possuíam

meios para sobreviver fora das fazendas.

Tais iniciativas inclusive foram severamente criticadas como insuficientes e

paliativas, sendo apenas em 1888 que a escravidão foi finalmente considerada como ilegal no

Brasil. Fruto de intensas lutas políticas e do movimento abolicionista liderado por Joaquim

Nabuco, a princesa Isabel, na época regente, promulga, enfim, a Lei Áurea.

Contudo, a referida lei não foi suficiente para extirpar da sociedade práticas de

degradação dos seres humanos com fins de exploração. Os pesquisadores Oliveira e Farias

(2008) evidenciam apontamentos sobre tal perpetuação:

Foi essa cultura de ―coisificar‖ pessoas que se firmou como uma herança

preconceituosa e estratificadora, fomentando ações de violência e segregação social

que perduram até os dias atuais. Uma dessas ações, de violação dos direitos

humanos, é o tráfico de pessoas para a exploração sexual ou o trabalho forçado,

Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

65

crime que rompe a barreira do tempo e que, para continuar existindo, revestiu-se de

formas diferentes, ―adaptadas‖ à modernidade. (OLIVEIRA; FARIA, 2008, p. 45).

O subtópico a seguir apresenta especificidades relacionadas a situação da mulher

escrava no período colonial brasileiro, com ênfase na violência de gênero sofrida por essas

sujeitas, com especificidades que trouxeram contornos diferenciados para a situação de

cativeiro vivenciada por elas.

2.2. A Mulher Negra e Escravizada no Brasil Colonial

De acordo com o relato da pesquisadora Maria Odila Dias (2012), houveram

constantes guerra internas entre tribos rivais africanas que favoreceram a captura, comércio e

tráfico de pessoas. Naquele mercado interno, as mulheres negras eram consideradas

mercadoria mais cara do que os homens negros africanos, em decorrência da sua função de

reprodutora e trabalhadora agrícola, ―[...] reservadas para consumo dos próprios africanos ou

revendidas para países árabes e a Índia‖ (DIAS, 2012, p. 361).

Contudo, quando inseridas no contexto brasileiro, a situação se invertia, pois os

homens, por conta da estrutura forte e robusta, eram mais valiosos e constantemente

disputados entre os fazendeiros, especialmente no período em que o tráfico foi proibido, em

1850. Segundo Dias (2012), ―Eles não valorizavam as mulheres, cujos preços, aliás, eram

cerca de 20% mais baixos do que os dos escravos do sexo masculino [...]‖ (IDEM, p. 362).

A autora enfatiza ainda que a mulher africana, mesmo quando inserida na sua

comunidade de origem, sofria com o domínio patriarcal: ―Essas mulheres estavam

acostumadas a suportar o trabalho de sol a sol, a dor, o cansaço e os castigos impostos por

maridos mais velhos.‖ (IBIDEM, p. 362).

Quando capturadas e vendidas para o comércio das Américas, elas enfrentavam

longas e exaustivas travessias à bordo do navio negreiro. Além de submetidas à fatores de

desnutrição, castigos físicos e humilhações, essas mulheres vivenciaram a violência de

gênero. Dias (2012) enfatiza a situação: ―Apesar de separadas em compartimentos só de

mulheres, as escravas eram bastante vulneráveis a estupros.‖ (DIAS, 2012, p. 361).

Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

66

Apartadas de sua comunidade, de seus laços familiares, da sua terra natal, a

mulher negra e escravizada esteve submetida, por gerações, aos maus tratos físicos e

psicológicos, além de vivenciar crueldades em decorrência da sua particular condição de

mulher. Dias (2012) relata, por exemplo, o tratamento que recebia quando na condição de

gestante:

Tanto nos engenhos de açúcar como nas fazendas de café, as escravas grávidas não

se livravam dos castigos violentos – como os pontapés na barriga aplicados pelos

capatazes –, que muitas vezes, eram responsáveis pela morte do bebê dentro da mãe.

Além disso, os senhores sujeitavam suas escravas grávidas ao serviço da roça e às

mesmas tarefas que faziam antes de engravidar, chegando algumas a dar à luz no

momento em que trabalhavam. (DIAS, 2012, p. 363).

Se por um lado elas estiveram sob o jugo escravocrata, por outro sofriam as

consequências de uma cultura machista advinda do próprio continente de origem, ou seja, os

homens africanos também assumiram o papel de perpetradores da violência no contexto do

cativeiro: ―A situação das mulheres ficava ainda mais difícil quando eram observados os

sentimentos de posse e de ciúmes cultivados pelos homens; elas sofriam violências, e muitas

chegavam a ser assassinadas pelos próprios companheiros de escravidão.‖ (IDEM, p. 363).

Contudo, Dias (2012) relata elementos que caracterizam também a iniciativa de

homens escravizados em defesa de suas companheiras e filhas: ―Uma das alegações mais

frequentes para o assassinato de capatazes por escravos era a reação contra o castigo

excessivo ou mesmo o estupro de suas mulheres ou filhas‖ (p. 365).

De acordo com Gilberto Freyre (2006) na clássica obra Casa Grande e Senzala, as

escravizadas foram alvo ainda de maus-tratos cruéis e mutilações por parte de suas patroas –

as Sinhás – que muitas vezes ficavam enciumadas pela beleza daquelas mulheres, belos

dentes e corpos que despertavam o interesse sexual de seus maridos:

Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho

contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas

bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira

de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou

despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras

que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar

os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de

judiadas. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. (FREYRE, 2006, p. 421).

Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

67

Outro aspecto que merece destaque é a continuidade dos aspectos de exclusão

social, preconceito e situação de violência sofrida após a conquista da liberdade:

Ser liberta não eximia as mulheres do ônus de viver em uma sociedade escravista.

As forras enfrentavam inúmeros preconceitos, eram acusadas de ―levar vida airada‖,

de não ter moral. Eram constantemente abordadas pelas autoridades como se fossem

escravas fugidas e algumas chegavam a ser presas várias vezes, amargando

processos judiciais para comprovar o seu status de liberta. Muitas chegaram mesmo

a ser raptadas, reescravizadas e revendidas como escravas. (DIAS, 2012, p. 377,

378).

Embora o sistema patriarcal brasileiro também tenha submetido a mulher branca

ao processo de violência, a negra vivenciou a desigualdade de forma mais acentuada,

proporcionada pelo preconceito étnico-racial e pelo brutal apartamento de suas raízes.

Nepomuceno (2012) tece considerações à respeito dessa condição particular vivenciada pela

mulher negra no contexto brasileiro:

Às mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de submissão vivido

pelas mulheres brancas de elite até inícios do século XX. Tampouco seu espaço de

atuação foi unicamente o privado, reservado às bem-nascidas, uma vez que, pobres e

discriminadas, se viram forçadas a lançar mão de ma gama de estratégias para

sobreviver e fazer frente aos desafios cotidianos. (NEPOMUCENO, 2012, p. 383).

Adiante trataremos das configurações particulares do tráfico negreiro e condição

escravocrata no Estado do Ceará, que assumiu contornos diferenciados daqueles comuns à

maior parte do território nacional.

2.3. O Tráfico Negreiro no contexto do Estado do Ceará

Embora historiadores indiquem um processo de ocupação diferenciado nas terras

cearenses, que exigiu emprego de mão de obra escravizada em menor escala do que em outras

regiões do país, ainda assim, é possível indicar expressivos números de seres humanos nessa

condição no Estado. Conforme Funes (2007) apresenta:

[...] a introdução da mão-de-obra africana não deixou de ocorrer, tornando-se mais

acentuada a partir das últimas décadas do século XVII, quando a lavoura algodoeira,

ao lado da pecuária, constitui-se num dos principais atrativos para a população

advinda de outras áreas nordestinas e da metrópole portuguesa. (FUNES, 2007, p.

106).

Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

68

Farias (2009) trata também da quantidade menos expressiva da mão de obra negra

escravizada no Ceará, indicando inclusive que esse fator contribuiu para a abolição pioneira

no Estado em 1884, já que no restante do país ela consolidou-se apenas em 188837

:

Um fator fundamental seria o pequeno número de cativos negros no Ceará (quando

comparado com outras áreas do País, como as açucareiras, a mineradora e cafeeira) e

o pouco peso da mão-de-obra escrava na economia local. A quantidade de escravos

negros no Ceará nunca foi expressiva – por exemplo, no ano de 1860, a província

apresentava uma população aproximadamente de 503 mil habitantes, dos quais 35

mil eram cativos. (FARIAS, 2009, p. 161)

Sobre a origem desse povo, capturado e contrabandeado do vasto território do

continente africano, alguns aspectos se destacam entre aqueles que foram direcionados ao

mercado das Américas:

Negros apanhados nos campos, matas e rios da distante África, em especial na

região congo-angolana, de cultura bantu. Separados de sua gente, expatriados, os

africanos vinham para o outro lado do oceano com o destino selado: ser força de

trabalho capaz de realizar os sonhos de muitos colonos europeus. (FUNES, 2007, p.

107,108).

O historiador cearense Airton de Farias (2009) também se refere à origem dos(as)

negros(as), contudo sua ênfase é para aqueles diretamente comercializados e utilizados como

mão de obra escravizada no Estado do Ceará:

Para cá vinham predominantemente africanos de etnia banto,embarcados em Angola

(existia também uma reduzida quantidade de sudaneses), embora por volta da

terceira década do século XIX escasseassem os negros de ―nação‖ (africanos) e

preponderassem os crioulos e mestiços nas importações. (FARIAS, 2009, p. 158).

Dentre as inúmeras atividades desempenhadas pelos(as) escravizados(as), Funes

(2007) destaca aquelas exercidas na cidade: ―[...] o trabalho do escravo ajudava na

composição das rendas da família, não apenas pelo seu valor, mas como escravo de aluguel,

como escravo de ganho e até com prostitutas.‖ (FUNES, 2007, p. 115).

37

Associado à isso, Farias (2009) indica ainda a venda de pessoas escravizadas para fora da região e a intensa

campanha abolicionista que se instaurou no Estado a partir de 1879 por influencia do ideário liberal europeu.

(FARIAS, 2009, p. 162).

Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

69

Cabe ressaltar nesse contexto, uma peculiaridade do Estado do Ceará: a figura do

vaqueiro, por vezes assumida também pelo negro. O historiador Funes (2007), evidencia a

inserção gradual desse personagem no cotidiano da história cearense:

À medida que a ocupação do Ceará foi-se efetivando, consequência natural da frente

de expansão, consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de

homens livres, em sua maioria pobres, negros e pardos, vindos de províncias

vizinhas, na condição de vaqueiros, trabalhando no sistema de quarta, ou como

morador agregado junto às fazendas de criar. (IDEM, p. 105).

Aquém do processo de importação da mão de obra escravizada e da figura do

vaqueiro, o Ceará também foi responsável por traficar negros e negras cativos(as) dentro do

território nacional a partir de 1850 (IDEM, p. 105). Contudo, nesse período, há um aumento

significativo de negros(as), já na condição de libertos, que também migram voluntariamente

para a região. Farias (2009) também trata da condição diversa dos(as) negros(as) no Ceará:

―Não vieram os africanos apenas como escravos, mas como fugitivos do litoral açucareiro,

alforriados e até como sesmeiros.‖ (FARIAS, 2009, p. 158).

O movimento de exportação de africanos(as) escravizados(as) da região cearense

também é um fato histórico relatado por Farias (2009), especialmente no período em que a

Lei Euzébio de Queiroz proíbe a importação de negros da África e o Sudeste expandia a

plantação de café, necessitando, portanto, de mais de mão de obra, que encontrava-se escassa

no mercado nacional: ―Ante a impossibilidade de trazer mais negros escravizados na África,

isso num momento de expansão do café no sudeste brasileiro, os cafeicultores passaram a

comprar cativos do Norte do Império, em especial do Ceará‖ (IDEM, p. 162), e mais adiante

complementa ―[...] especula-se em torno de sete mil os vendidos entre 1871 e 1881, sendo em

1877 foram exportados três mil só pelo porto de Fortaleza.‖ (IBIDEM).

Embora o sistema escravocrata tenha sido abolido, Funes (2007), ao tecer análises

desse momento histórico, destaca o ranço cultural profundamente arraigado na sociedade

brasileira, que repercute até os dias atuais:

[...] o senso comum vendo o escravo sem vontade própria, desprovido de sua

condição humana, percebida apenas como peça do sistema produtivo [...] Condena a

escravidão; mas continua a ver aquele como ser coisificado em sua subjetividade

[...]. (FUNES, 2007, p. 117).

Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

70

O(a) escravo(a) liberto(a), nesse sentido, livra-se dos grilhões físicos, mas

continua cativo(a) de uma sociedade segregadora. Antes escravo(a), agora excluído(a) e

desempregado(a). Assim, na palavras de Funes (2007):

O controle sobre o outro é mantido com todas as implicações sociais decorrentes

desse processo e relação de trabalho. A abolição, nos moldes em que foi realizada,

permitiu a passagem de uma coerção predominantemente física do trabalhador para

uma coerção predominantemente ideológica. No Ceará, em particular na cidade de

Fortaleza, há um aumento considerável daqueles indivíduos sujeitos à condição de

agregados e empregados domésticos. (IDEM, p. 132).

O subtópico a seguir traz uma abordagem do tráfico de pessoas no período pós-

abolição da escravatura no Brasil, onde mulheres de origem europeia tornaram-se a principal

fonte de renda lucrativa para criminosos especializados no aliciamento, recrutamento e

transporte dessas ―mercadorias‖, para fins de exploração sexual, cujo destino foi

especialmente o continente americano.

2.4. Tráfico de Mulheres na Belle Époque brasileira

Apesar do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra ter sido

oficialmente abolido em 1888, a prática, ainda que sob novas características, se perpetuou. A

abolição da escravidão e a modernização industrial transformaram os centros urbanos em

palcos atrativos para milhões de pessoas, não só àqueles que buscavam oportunidade de

trabalho, mas também para criminosos dispostos à obter lucratividade através das mais

diversificadas atividades ilícitas.

Hobsbawn (2011) indica que ―empresários da imigração‖ aproveitavam-se da

situação vulnerável de estrangeiros para explorá-los:

[...] quando o parente não podia ajudar, uma variedade de intermediários com

interesses financeiros entrava em ação. Onde havia uma grande demanda por

trabalho [...] de um lado, uma população ignorante das condições do país escolhido

de outro e uma longa distância pelo meio, o agente ou contratador prosperava.

(HOBSBAWN, 2011, p. 304).

Podemos inferir que a demanda por esses ―serviços‖ era enorme, pois de acordo

ainda com o historiador Hobsbawn (2011), o século XIX marcou a era de trânsito das grandes

massas migratórias ao redor do mundo, especialmente no sentido Europa-América: ―A metade

Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

71

do século XIX marca o começo da maior migração de povos na História. [...] entre 1846 e

1875, uma quantidade bem superior a 9 milhões de pessoas deixou a Europa [...].‖

(HOBSBAWN, 2011, p. 295-296).

Nesse contexto, mais especificamente da Belle Époque (1871-1914), algumas

jovens mulheres – confundindo-se entre aquelas que migravam em busca de oportunidades na

indústria ou trabalho doméstico, ou mesmo entre aquelas que tinham intenção de exercer a

prostituição voluntaria – foram enganadas, submetidas aos maus tratos, privação de liberdade

e violência sexual. Em relação ao perfil mais comum das imigrantes desse período, Hobsbawn

(2001) destaca: ―As mulheres migrantes entre países tornaram-se em sua maioria empregadas

domésticas, até que se casavam com um compatriota ou passavam para alguma ocupação

urbana. A migração de famílias ou mesmo de casais era incomum.‖ (IDEM, p. 300).

Contudo, Kushinir (1996) relata sobre a procedência das primeiras estrangeiras

que exerceram a prostituição no Brasil, reconhecendo que as negras africanas escravizadas –

na modalidade de prostituição forçada – e as portuguesas, na modalidade voluntária, foram as

pioneiras:

[...] a prostituição estrangeira já frequenta a cidade do Rio de Janeiro desde o inicio

do século XIX. Durante a primeira metade do século passado, a cidade possuía

prostitutas portuguesas [...] ou escravas de ganho induzidas a esse trabalho por seus

senhores. A partir de meados do século, o panorama modifica-se com a chegada de

mulheres vindas da Europa e que povoam tanto o Rio de Janeiro como Santos, São

Paulo e as principais cidades-porto do país. (KUSHINIR, 1996, p. 82)

Assim, prostitutas que desempenhavam suas atividades autônoma e

voluntariamente se confundiam com mulheres que foram obrigadas a exercê-la. Num primeiro

momento, meretrizes livres e negras escravizadas dividiam os espaços, sendo a exploração

dessas segundas legitimada pelo Estado; num segundo momento, brancas escravizadas

importadas pela atividade de redes criminosas confundiam-se com prostitutas imigrantes que

vieram tentar melhores oportunidades de sobrevivência no Brasil.

Sobre o período da Belle Époque, cabe indicar seu significado: apesar de possuir

raízes na França, influenciou inúmeros territórios aquém do continente europeu. O historiador

Ponte (2000) define esse período histórico como a tradução da ―[...] euforia europeia com as

novidades extasiantes decorrentes da revolução científico-tecnológica (1850-1870 em

diante).‖ (PONTE, 2000, p. 162). Dessa forma, tal momento no Brasil culminou num esforço

Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

72

em transformar a estrutura das cidades do país, assim também como a moda, a economia e os

costumes, de acordo com os padrões vigentes na Europa. Ponte (2000) indica as

metamorfoses trazidas nesse contexto:

Com efeito, esse período, momente fundante do nosso mundo contemporâneo, é

marcado por um intenso fluxo de mudanças que não só produziu transformações de

ordem urbana, política e econômica, como também afetou profundamente o

cotidiano e a subjetividade das pessoas, alterando seus comportamentos e condutas,

seus modos de perceber e de sentir. (PONTE, 2000, p. 163).

As reformas nacionais para adaptar-se aos padrões europeus, portanto, podemos

inferir, também afetou o ―comercio‖ da prostituição. Um bordel que dispusesse de cortesãs

estrangeiras provenientes do velho continente era muito frequentado, pois aludia à grande

status social e ao progresso. Rago (2008) salienta o interesse dos homens daquela época por

essas mulheres:

Relacionar-se com a prostituta estrangeira, mulher experiente e desconhecida,

satisfazia a expectativa burguesa de se ver introduzida nos hábitos sexuais

avançados das sociedades modernas. Fazendeiros e coronéis não mediam esforços

para tanto. Pelo mundo da prostituição, acreditava-se entrar no compasso da

História, absorvendo e consumindo práticas e mercadorias europeias, profundamente

mistificadas (RAGO, 2008, p. 197).

Rago (2008) tece ainda consideração sobre o caráter animalesco que as relações

com a prostituta (estrangeira ou não) podem despertar, e as motivações que levam os

fregueses a procurar por esses serviços, evidenciando características de uma cultura patriarcal

e machista:

[...] muitos dos frequentadores do mundo marginal eram homens de classe social

superior, cujas fantasias só poderiam ser compartilhadas por mulheres de posição

social inferior, que não evocam as imagens familiares da esposa, irmã ou mãe, e que

eram consideradas mais próximas do campo da animalidade e das perversões.

(IDEM, p. 260).

Entretanto, a figura da mulher europeia na prostituição brasileira não esteve

presente apenas no alto meretrício. Cafetões e cafetinas perceberam que poderiam ganhar

dinheiro também no baixo meretrício, levando o ―produto importado‖ para as camadas

populares. Foi nesse campo onde se proliferou o tráfico de escravas brancas. Aliado ainda às

precárias condições socioeconômicas enfrentadas por essas mulheres na Europa Ocidental

nesse período, inúmeras jovens foram facilmente cooptadas pelas redes criminosas. Sobre a

situação das mulheres inseridas no baixo meretrício, Rago (2008) coloca:

Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

73

No baixo meretrício, a rotatividade muito mais acelerada dos corpos implicava

encontros sexuais mais rápidos e diretos. As meretrizes deviam atender a uma

quantidade maior de fregueses [...]. as prostitutas tinham de enfrentar fregueses dos

mais diversos tipos, desde figuras agradáveis até bêbados, delinquentes,

vagabundos, ladrões, homens violentos e desequilibrados, que não podiam arcar

com os custos dos bordeis mais caros. Consideradas biologicamente inferiores e,

muitas vezes, sendo economicamente mais pobres, as prostitutas expunham-se a

muitas violências emocionais ou físicas. (IBIDEM, p. 261).

A vítima de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, nesse sentido, sofre

com fatores de violência ainda mais brutalizados, pois aliada às mazelas habitualmente

vivenciadas por qualquer prostituta, há ainda a decepção traumática produzida pelo engano e

a exploração sofrida não só por meio dos clientes, mas também através do(a) cafetão/cafetina

para os quais deve repassar a maior parte do dinheiro arrecadado na atividade. Tal figura

exercia sobre ela forte pressão emocional e por vezes violência física.38

Aliada a demanda pelos serviços sexuais de mulheres estrangeiras em países

como o Brasil e Argentina, o Leste Europeu, naquele período39

, esteve submerso em disputas

políticas, ondas antissemitas, desemprego e agudos abismos sociais. Assim, muitas mulheres40

daquela região migraram na esperança de encontrar melhores oportunidades de sobrevivência.

Sobre tais motivações, Kushinir (1996) reafirma: ―A crise econômica, a miséria, a

perseguição religiosa e a falta de trabalho são fatos que certamente se associaram para

explicar o aumento da migração antes e depois da guerra [...].‖ (KUSHINIR, 1996, p.100).

Rago (2008) descreve o movimento migratório dessa época para o Brasil,

colocando também em evidência prostitutas migrantes e escravas sexuais. A referida autora

enfatiza a dificuldade em diferenciar os dois casos no que diz respeito aos números e

estatísticas:

É praticamente impossível estimar a quantidade de prostitutas que vieram traficadas

da Europa, principalmente das aldeias pobres da Polônia, Rússia, Áustria, Hungria e

Romênia para a América do Sul. Também dificilmente saberemos quantas vieram

38

Aspectos esses, inclusive, deveras semelhantes com o contexto do tráfico de pessoas na atualidade.

39

Final do século XIX e início do século XX.

40

Não significa, evidentemente, que homens e crianças também não tenham vinda, assim também como não

significa que todas as mulheres que migraram para o Brasil foram com a intenção de prostituir-se, entretanto,

para os objetivos propostos nesse trabalho as prostitutas migrantes e as escravas sexuais são colocadas em

evidência.

Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

74

por vontade própria, ou iludidas com promessas de casamento e perspectivas

estimulantes de enriquecimento [...] (RAGO, 2008, p.282)

Embora a autora ressalte que definir essas diferenciações em números é inviável,

o importante para nossa análise é evidenciar que a problemática de fato ocorreu nesse período

e salientar as principais características que a envolve. Baseada no relato histórico verídico do

repórter francês Albert Londres41

, a estudiosa descreve, dentre outros aspectos, rotas de

tráfico de mulheres, especificidades das vítimas, além do modus operandi das redes

criminosas:

Como comerciantes especializados na venda de mercadorias, peles ou joias, os

rufiões mantinham absoluto controle sobre as moças durante o percurso da viagem,

instruindo-as quanto às formas de conduta, tipos de conversa, momentos de silêncio,

respostas, lugares onde poderiam aparecer publicamente e determinavam seu

relacionamento com a própria polícia alfandegária. (IDEM, p. 301).

Largman (2008) reflete sobre a mesma questão e é taxativa ao afirmar que a

presença de mulheres de origem judaica, advindas especialmente da Europa Ocidental para

exercer a prostituição, tanto na Argentina como no Brasil, tendo como principal destino

cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Santos, era fato amplamente

conhecido pela sociedade e autoridades governamentais. Assim como Rago (2008), a autora

admite que o número exato dessas mulheres é incerto, mas estima que mais de 10 mil judias

foram trazidas para o Brasil através do tráfico internacional, entre 1908 e 1930.

Dentre o perfil dos criminosos responsáveis por aliciar e explorar essas mulheres,

Largman (2008) evidencia os imigrantes judeus, manifestando que apesar da grande maioria

tratar-se de pessoas trabalhadoras e de boa índole, haviam também criminosos experientes e

exploradores de mulheres42

, que cruzaram as fronteiras trazendo suas ―mercadorias‖ para

expandir os ―negócios‖:

A partir de 1891, de acordo com Gerardo Bra, houve uma grande leva de imigrantes

judeus, vindos sobretudo da Europa Oriental [...] Infelizmente, no bolo da leva,

chegaram também os traficantes de mulheres destinadas à prostituição, elementos

tarimbados nos bordeis, sobretudo da Polônia, muitos já fichados em diversos

distritos como Lodz, Lemberg e Varsóvia. (LARGMAN, p. 208, 2008).

41

Albert Londres infiltrou-se na realidade do tráfico de escravas brancas em Buenos Aeres, incursão essa que

resultou na publicação do livro chamado Le Chemin de Buenos Aires em 1927.

42

O objetivo de Largman é demonstrar o fenômeno no universo judaico, ela tanto aponta caftens judeus, como

mulheres judias exploradas.

Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

75

No que se refere à atuação das redes criminosas, Rago (2008) relata que rufiões e

cafetinas não apenas faziam a travessia de suas vítimas, mas agiam também nas embarcações,

tentando cooptar jovens estrangeiras que já estivessem a caminho do Brasil. Para tanto, ilustra

suas afirmativas no relato do advogado Samuel Malamud, ucraniano que presenciou a

seguinte situação durante seu trajeto de migração:

Ao deparar com a moça, procurou entabular conversa, indagando de onde vinha e

para onde ia. Dizia ter vontade de lhe ser útil e estar pronta para ajudá-la, pois

residia no Rio de Janeiro há longos anos. Minha mãe, tão logo deparou essa mulher

e sua conversa com a oca, interveio e fez-lhe sentir que ela viajava em nossa

companhia, de modo que dispensava seus bons serviços. Em seguida, advertiu a

moça de que não tivesse qualquer contato com essa visitante da primeira classe.

Apesar de advertida por minha mãe e não mais se aproximar, essa mulher ousada

ainda procurou novos contatos com a moça e a convidou para visitá-la em sua

cabine. Conversava com todo mundo, dando preferência às mulheres. (MALAMUD

apud RAGO, 2008, p. 293).

A pesquisadora caracteriza ainda a ação mais ampliada de um traficante chamado

Victor ―o Vitorioso‖, que inicia sua ―carreira‖ ao casar-se com uma prostituta em Londres que

se torna, por influencia dele, ―acompanhante‖ de luxo. Ambos posteriormente mudam-se para

a Argentina, estabelecendo ali um rentável negócio clandestino, com foco no tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual comercial:

Ele se articula com outros caftens, amplia seus negócios, casa-se outras vezes,

importa novas mulheres da França para a Argentina, vende as que lhe desagradam

ou se insubordinam, sem deixar, no entanto, de continuar vinculado à primeira

esposa. Como seus companheiros de ―não-trabalho‖, Victor, ―o Vitorioso‖, circulava

pelas cidades próximas a Buenos Aires [...] mantendo prostitutas em Rosário, centro

comercial mais importante depois da capital, Mendonza, Córboda, Santa Fé, além

das que trabalhavam para ela na capital. (RAGO, 2008, p. 303).

Os criminosos, em sua maioria também estrangeiros, articulavam-se astutamente

entre si, formando verdadeiras organizações especializadas em explorar jovens mulheres e

comercializá-las, inclusive entre eles, com o objetivo de dar ―rotatividade‖ às suas

mercadorias e garantir maiores lucros. Essa articulação é retratada por Rago (2008):

Reunidos em seus pontos de encontro mais conhecidos, como os cafés Suisso e

Criterium, na praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, ou em São Paulo, no Bar do

Municipal, em cafés e restaurantes próximos às casinhas baixas do centro, esses

homens negociavam a importação de suas ―mercadorias‖, depois encerradas nos

prostíbulos cariocas ou paulistas, ou comercializadas nas principais cidades

argentinas. Vários haviam se tornado figuras tão conhecidas do submundo, no Brasil

ou no exterior, que os consulados enviavam cartas prevenindo contra sua atuação.

Mesmo assim, atreviam-se a operar livremente, burlando os poderes públicos com

muita agilidade e sem maiores constrangimentos. (IDEM, p.286).

Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

76

Rago (2008) relata ainda a existência de rotas de tráfico de mulheres bem

delineadas na época, onde atuavam essas máfias, já então altamente especializadas nesse tipo

de negócio. A autora apresenta uma estimativa do possível número de vítimas, remetendo-se a

relatos de autoridades da época:

Segundo o jurista Paul Appleton, Gênova embarcava anualmente cerca de 1.200

mulheres para a América do Sul, na maioria procedentes da Áustria, Hungria,

Rússia, Polônia e França. Marselha, Anvers e Hamburgo apareciam como portos

importantes do tráfico, enquanto Buenos Aires era considerado o principal porto de

chegada, seguido de Montevidéu e Rio de Janeiro. (IBIDEM, p. 288)

Kushinir (1996) também levanta aspectos sobre as redes criminosas

predominantemente compostas por estrangeiros, e declara que, assim como as mulheres

―traficadas‖, esses sujeitos também estiveram expostos aos fatores de vulnerabilidade social

antes de entrarem para redes clandestinas: ―Baseadas na proteção contra o caótico mundo dos

cortiços e na luta pela sobrevivência, essas gangues estabeleceram a noção da ―grande família

mafiosa‖, formada por imigrantes marginalizados do contexto sócio-econômico.‖

((KUSHINIR, 1996, p.43).

As europeias prostitutas, por sua vez, ficaram popularmente conhecidas como

―polacas‖. Submetidas à situação de pobreza no qual o leste europeu esteve imerso naquele

período, como anteriormente relatado nessa pesquisa, muitas jovens vinham voluntariamente

ao Brasil exercer o ofício. Entretanto haviam aquelas que eram enganadas por rapazes que se

passavam por pretendentes idôneos e bem intencionados. Ainda na Europa, casavam-se com

aqueles que, na realidade, seriam seus traficantes. Posteriormente, eram convencidas a tentar a

vida na América do Sul. Na esperança de um futuro melhor, a maioria aceitava o desafio.

Largman (2008), baseada em pesquisas e estudos científicos, constrói relatos do que deve ter

ocorrido com essas mulheres:

[...] O primeiro ano da guerra liquidou com o negocio da família [...] Sarah, com 15

anos, resolveu interromper o ginásio e começou a trabalhar como costureira numa

fábrica. Certo dia, apareceu um capataz novo, um rapaz moreno, muito elegante e

bonito, Benjamim Tarnow, que começou a dirigir-lhe a palavra, elogiou sua beleza

e, depois de algumas semanas, convidou-a para passear. Aos poucos Sarah

apaixonou-se. Tempos depois ficaram noivos e Benjamin avisou que iriam para a

América do Sul, onde tinha parentes com negócio montado e ricos. [...] No navio ela

percebeu que Benjamim conversava com alguns rapazes. Pareciam seus conhecidos

e olhavam para ela com expressão maliciosa. (LARGMAN, 2008, p. 18, 19).

Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

77

Segundo a estudiosa, assim teve início a saga de muitas jovens mulheres que

tiveram como destino países como o Brasil. Muitos dos aliciadores, conforme já indicado

neste trabalho por Rago (2008), também eram estrangeiros e as autoridades nacionais tinham

pleno conhecimento do fenômeno. Largman (2008) realiza levantamento no Arquivo

Nacional Público, localizado no Estado do Rio de Janeiro, e aponta:

Relatório de ocorrências na 4ª Delegacia Policial

Janeiro a Maio – 1917

[...]

Caftens presos:

Ezequiel Rodrigues, brasileiro, mulheres nas ruas Taylor e Conceição. Ex-guarda

civil.

Jean Lemnyon, francês, explora a esposa Coraline na rua Joaquim Silva.

Ângelo Mazarelia, argentino, explora a própria mulher, Carmem Fernandes.

Abraham Marmet, polaco, explora Rosita, na rua Senador Dantas, nº 3, e Helena, na

rua Conceição, nº 34.

Simon Lipscher, russo, explora Ema Sclep, na rua São Jorge, nº 79.

Jorge Abdula, turco, explora Rosita, na rua Morais e Valle, s/nº

José Maia, nacional, explora Elvira Viana, em Nictheroy.

A denúncia foi pela nossa delegacia.

Jacob Gant, polaco, explora a mulher, Sara Kolner.

David Braklin, polaco, explora Magdeleine Lencovet e Rosa Kapilov, na rua Luis de

Camões, nº 82. (IDEM, p. 37, 38).

A pesquisadora apontou ainda que as mulheres exploradas de origem judia não

eram aceitas pela comunidade judaica, consideradas impuras e impedidas de frequentar

sinagogas ou mesmo de serem sepultadas nos cemitérios judeus. Diante dessa realidade, elas

criaram meios de continuarem professando fé, tinham sinagogas próprias e foi criado

inclusive um cemitério para as mesmas, que existe até hoje no Rio de Janeiro capital, na Rua

Inhamúns, onde foram identificados 538 túmulos de ―escravas brancas‖. No tocante ao

cemitério, é válido indicar dados pertinentes: ―Na ala velha, a maioria dos túmulos indicava a

data de nascimento e a origem. Havia mulheres oriundas da Rússia, Polônia e Áustria. Outros

indicavam a cidade: Lodz, Lemberg e, sobretudo, Warszava.‖ (IBIDEM, p. 270, 271).

Kushinir (1996) também menciona a criação do cemitério, ressaltando que tinha

extrema importância para os judeus excluídos no Brasil, pois representava uma forma de

perpetuar seus costumes religiosos sem serem discriminados:

[...] dentro das normas judaicas, os suicidas e as prostitutas são enterrados junto aos

muros do cemitério, como forma de marcar o lugar de exclusão. [...] No caso do Rio

de Janeiro, por exemplo, o primeiro cemitério judaico da cidade pertence à

Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

78

sociedade de prostitutas judias, como uma resultante da expulsão destas pessoas das

entidades judaicas tidas como oficiais e pela estruturação de sua vida comunitária

ser anterior a da organização oficial. (KUSHINIR, 1996, p. 73)

O comércio de mulheres do Leste Europeu para a América Latina só começou a

esvair-se a partir de 1930. Relatos evidenciam que o chefe de polícia argentino Julio

Alsogaray, após receber a denúncia de Raquel Liberman, judia, explorada na Argentina pela

rede mafiosa Zwi Migdal, desmantelou a rede criminosa. A iniciativa resultou numa

publicação em jornal de circulação com o nome dos criminosos que compunham a rede,

resultando na prisão, deportação e fuga dos integrantes da quadrilha. Detalhes sobre o fato são

relatados por Kushinir (1996):

Raquel Liberman, nascida em Lodz, Polônia, segundo relatos da época, viveu na

prostituição por dez anos, tendo conseguido sair do baixo meretrício mediante um

processo de recompra de sua liberdade – algo comentado na literatura como

explicando os possíveis leilões de venda de prostitutas. A partir dessa possibilidade

de circulação de mercadoria expressa nos leilões, Raquel teria planejado sua

libertação do mundo da prostituição por meio da compra do seu ―passe‖, realizada

por um amigo. A partir daí, abre um negócio de móveis [...] a organização descobre

sua fraude e faz com que um de seus membros – Salomón José Korn – a seduza com

uma promessa de casamento, reintroduzindo-a no universo do baixo meretrício

portenho. Revoltada, Raquel teria denunciado a Ziw Migdal [...]. (IDEM, p. 81).

Assim, Buenos Aires, na Argentina, foi pioneira no enfrentamento ao tráfico de

mulheres através da publicação da Lei nº 9.143 de 23 de setembro de 1913, conhecida como

Lei Palácios43

. Rago (2008) chama atenção para a repercussão da referida iniciativa legal no

Brasil:

Em 1913, ano particularmente importante na perseguição aos rufiões na Argentina,

em virtude da decretação da Lei Palácios, que decidia pela deportação dos

―indesejáveis‖, a polícia marítima do Rio de Janeiro impedia a entrada de

aproximadamente 1.068 caftens procedentes de Buenos Aires. (RAGO, 2008, p.

298).

Em relação ao contexto brasileiro, Kushinir (1996) evidencia que ali, apesar de

existirem relatos de atividades de enfrentamento nesse sentido, mesmo com a repercussão do

que ocorreu na Argentina, de fato, não houveram, num primeiro momento, ações mais

enfáticas de enfrentamento à essas questões: ―[...] Em contraste com o processo argentino, no

Brasil jamais houve uma séria campanha de repressão tanto ao tráfico como ao caftismo.

Percebe-se apenas experiências pontuais [...]‖ (KUSHINIR, 1996, p.87).

43

Inclusive a data é hoje considerada como marco no enfrentamento da questão e tornou-se Dia Internacional

Contra a exploração sexual e o Tráfico de Pessoas.

Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

79

Um pratica comum no Brasil, era a realização de sensos com relação ao número

de prostitutas estrangeiras atuantes nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo como meio de

subsidiar o enfrentamento ao tráfico de escravas brancas. Rago (2008) descreve essas

atividades: ―o chefe de polícia, [...] mandara organizar uma relação das prostitutas européias

que viviam nesta capital44

, para ser enviado ao comitê berlinense encarregado do combate ao

tráfico.‖ (RAGO, 2008, p. 290). Chamamos atenção para o fato de que não há nenhuma

preocupação em diferenciar quais delas estariam ali voluntariamente ou quais estariam em

caráter de servidão. O levantamento é meramente numérico, identificando apenas prostitutas

estrangeiras.

Desse modo, cabe frisar que parte do ―saneamento moral‖ de combate à

prostituição foi desenvolvido sob o pretexto do enfrentamento ao tráfico de escravas brancas.

O controle da prostituição permeou tanto o campo da repressão policial quanto da tolerância,

pois desde que o exercício do meretrício ficasse restrito à determinados territórios dentro da

cidade era ―aceito‖. No campo da repressão, caftens estrangeiros e suas acompanhantes foram

detidos nos principais portos de circulação do país, sendo posteriormente deportados.

Assim, o combate ao ―tráfico de escravas brancas‖ esteve por vezes permeado por

noções moralistas e de perseguição às prostitutas. Além disso, na época em questão, Rago

(2008) evidencia que essas mulheres, vítimas de tráfico ou não, eram vistas como escória

social e por isso mais sujeitas às situações de violência e negligência por parte do Estado e da

sociedade: ―Consideradas biologicamente inferiores e, muitas vezes, sendo economicamente

mais pobres, as prostitutas expunham-se a muitas violências emocionais ou físicas.‖ (RAGO,

2008, p. 261).

Mais adiante, a autora aborda o tratamento que era empreendido à essas mulheres,

prostitutas do baixo meretrício, na ocorrência de conflitos, quando eram levadas pela polícia:

―[...] as mulheres [...] recebiam uma ducha de água fria, por vezes uma surra e, quase sempre,

saíam de lá com a cabeça raspada.‖ (PENTEADO apud RAGO, 2008, p. 276).

A pesquisadora relata ainda que membros da Polícia de Costumes da época

tornaram-se corruptos e faziam a proteção de caftens e cafetinas em detrimento das mulheres

44

Aqui a autora referia-se à cidade de São Paulo.

Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

80

exploradas: ―[...] profundamente irritado com a proteção que a cafetina [...] recebia por parte

da Polícia de Costumes, o jornal denunciava a agressão que ela praticara, tempos atrás, contra

a meretriz Odette de Camargo.‖ (IDEM, p. 265).

A assistência direcionada à essas mulheres portanto, ficou à cargo de entidades

não governamentais, que também surgiram para combater o ―tráfico de escravas brancas‖,

conforme sinaliza Rago (2008):

Internacionalmente, associações de combate ao lenocínio e à prostituição

mobilizaram a opinião pública e procuraram dotar os países envolvidos de uma

legislação adequada. Ao lado da associação filantrópica inglesa, a Nacional

Vigilance Association, fundada em 1885 pelos abolicionistas, surgiu em Londres a

Jewish Association for the Protection of Girl and Women, que progressivamente

construiu filiais nos principais países envolvidos pelo tráfico, especialmente em

Buenos Aeres. Na França, fundou-se, entre outras, a Associoation pou la Repression

de la traites des Blanches et la Preservation de la Jeune Fille, em 1910 [...] (RAGO,

2008, p. 347).

A autora evidencia que tais instituições realizavam atividades de inspeção nas

embarcações e trens em busca de jovens mulheres que pudessem estar em situação de perigo

para o tráfico de escravas brancas com o objetivo de ―resgatá-las‖. No Brasil, tais entidades

foram eminentemente organizadas pela comunidade israelita, como por exemplo, a Sociedade

Beneficente das Damas Israelitas, a Sociedade dos Amigos dos Pobres ou ainda a Sociedade

Beneficente Israelita e Amparo aos Imigrantes (Relief), ―[...] tendo em vista amparar as

famílias judias carentes e os imigrantes despossuídos [...]‖ (IDEM, p. 347).

É importante destacar que o tráfico de pessoas é fenômeno plural e admite outras

finalidades que não apenas a exploração sexual. O Suriname, por exemplo, ao libertar seus

escravizados(as), importou mão de obra asiática para suprir a demanda da lavoura. Entretanto

as condições de trabalho aos quais essas pessoas forma submetidas em muito se assemelhou à

escravidão, constituindo elementos suficientes para caracterizar o tráfico de seres humanos

para fins de exploração laboral naquela região ainda no século XIX:

Para suprir a demanda de mão-de-obra para as plantações, trabalhadores da Ásia

foram recrutados. Entre 1853 e 1873, 2.502 chineses foram levados para a colônia.

Entre 1873 e 1922, 34.024 trabalhadores do subcontinente Índia e, entre 1891 e

1939, 32.965 pessoas da Indonésia foram recrutadas. Estes migrantes chegaram

como trabalhadores endividados que assinaram contratos que os obrigavam a

permanecer no emprego por vários anos. (SODIREITOS, 2008, p. 44).

Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

81

Além de chineses e indonésios, os indianos também estiveram entre as vítimas. As

etapas de aliciamento/recrutamento e falsas promessas, características indispensáveis na

configuração do tráfico de pessoas, estiveram presentes, conforme ressalta trecho abaixo

descrito:

O recrutamento de trabalhadores na Índia e em Java ocorria através de aliciadores

que abordavam jovens masculinos com falsas promessas e os levavam através de

contratos de dívida às plantações no Suriname. Na Índia, existia muita revolta contra

os aliciadores, que eram perseguidos pela população, pois sua atuação de levar

pessoas, muitas vezes sem informar suas famílias, era considerada criminosa.

(IDEM, p. 45)

O historiador Hobsbawn (2011) também menciona a exploração de indianos e

chineses no período pós-abolição da escravidão, ressaltando a lucratividade do negócio para

contratadores e aliciadores: ―Podemos deduzir que eles geralmente exploravam a pobreza e a

ignorância, embora os extremos do contrato de trabalho e servidão de dívidas fossem talvez

incomuns nesse período, exceto entre os indianos e chineses enviados para as plantações.‖

(HOBSBAWN, 2011, p. 304).

O tópico a seguir trata das características contemporâneas do tráfico de pessoas,

identificando novas modalidades da prática e uma expansão considerável no que diz respeito

às vítimas, tendo em vista que não se delimitam mais ao campo feminino, embora elas ainda

representem a maioria, mas seres humanos de todas os sexos, raças, culturas e etnias, sujeitos

à fatores de vulnerabilidade social extrema, que facilitam a ação dos criminosos(as).

2.5. Fenômeno Polimórfico: múltiplas formas de exploração no Tráfico de Pessoas

Contemporâneo.

A questão é que, se as praticas de tráfico não são centrais nos mercados globais

transnacionais nem no mundo global em que vivemos, como outrora a

escravatura o foi, elas alojam‑se nas desigualdades e injustiças na distribuição

de riqueza promovidas e fomentadas por esse mesmo sistema mundo.

(SANTOS; et. al, 2009, p. 71).

Nesse tópico trataremos de algumas modalidades do tráfico de seres humanos –

para fins de exploração laboral, sexual comercial, tráfico de órgãos e casamento servil – na

compreensão de que seria impossível abordar todas elas, tendo em vista a amplitude de

manifestações que a prática tem apresentado.

Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

82

O mundo atual vivencia o capitalismo associado à fenômenos como a

globalização e o neoliberalismo. Para Boaventura de Sousa Santos (1997; 2001), a

globalização – que para o autor deveria ser nomeada no plural – é um fenômeno de definição

complexa que pode incorporar muitos significados. Privilegiando uma concepção direcionada

às dimensões culturais, políticas e sociais, o estudioso define que: ―[...] a globalização é o

processo pelo qual determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência

a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição

social ou entidade rival.‖ (SANTOS, 1997, p.108)

A globalização associada ou neoliberalismo gera, de acordo com o autor, a

seguinte situação:

[...] restrições drásticas à regulação estatal da economia; novos direitos de

propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de

inovações susceptíveis de serem objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995:

373); subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais tais como o

Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial

do Comércio. Dado o carácter geral deste consenso, as receitas em que ele se

traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor (o que designo por modo da jaula

de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da jaula de borracha). (SANTOS,

2011, p.35)

Tal contexto contemporâneo favorece fatores como a precarização das condições

de trabalho, baixos salários, enormes abismos sociais e globalização de processos culturais

localizados45

– gerando a sobreposição de uns sobre os outros – que ocasionam em situação

de pauperização e discriminação para boa parte da população mundial. Nessa perspectiva,

inúmeros indivíduos saem de seus países em busca de melhores oportunidades de vida nos

países ricos. Na realidade, de uma forma geral, deslocam-se de regiões mais precarizadas em

direção à outras mais produtivas, como é o caso, por exemplo, da movimentação de

nordestinos para o sul e sudeste do Brasil..

Para Santos, et.al (2009), existem três elementos desencadeados pela globalização

neoliberal, que favorecem o tráfico de seres humanos contemporâneo, sendo eles:

[...] criação de uma economia global privatizada, com um controlo estatal residual,

em que os mercados locais surgem ligados entre si; a liberalização da troca, com a

diluição das fronteiras para a circulação de pessoas, bens e serviços que sirvam a

45

Como por exemplo o fast food norte-americano ou o fenômeno da cultura cinematográfica hollywoodyana,

que dita certo perfil de atores(izes) e enredos, ocasionando em processo de estranhamento à outras produções

que assumem perfil diferenciado. (SANTOS, 1997).

Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

83

criação do tal mercado global; e a disseminação da produção através de investimento

estrangeiro em multinacionais. (SANTOS; et.al, 2009, p. 72).

De acordo com o autor, o panorama da globalização neoliberal contribui para a

geração de mercados internacionais do sexo que são sustentados especialmente pela mão-de

obra migrante: em parte, pessoas que buscam voluntariamente pela atividade, em parte por

meio do tráfico para fins de exploração sexual.

Favorecem ainda o turismo que busca por sexo, comumente conhecido por

turismo sexual, que em geral ocorre na movimentação inversa: pessoas de países ricos buscam

por mulheres nativas nos países pobres. Piscitelli (2002) elenca considerações à esse respeito

das relações desiguais estabelecidas nessa problemática:

As análises sobre a dinâmica do turismo sexual internacional apontam para o fato de

os bolsos dos turistas sexuais Ocidentais conterem suficiente poder para converter os

outros em Outros, meros atores num palco pornográfico, como uma expressão do

enorme desequilíbrio econômico, social e político entre nações pobres e ricas.

(PISCITELLI, 2002, p. 222).

Aliada as questões de caráter econômico (classe), situam-se aquelas de origem

sociocultural que legitimam historicamente discriminações de diversas naturezas,

anteriormente discutidas no primeiro capítulo desse estudo sob a nomenclatura de estamentos

(WEBER, 1999). Nesse direcionamento indicamos, tendo em vista a realidade brasileira,

conforme Carvalho (2007), que: ―A desigualdade incide sobretudo sobre os grupos da

população mais vitimados ao longo da história, os descendentes dos escravos, os

trabalhadores rurais, as mulheres, os nordestinos.‖ (CARVALHO, 2007, p. 29).

Entre esses grupos menos favorecidos, Saffioti (1987) elenca especialmente a

situação das mulheres, que ocupam posição social específica de fragilidade: ―Múltiplas

formas de trabalho clandestino existem no Brasil. Eles absorvem homens e mulheres, mas

estas últimas são mais numerosas nestes tipos de trabalho.‖ (SAFFIOTI, 1987, p. 49).

Dessa maneira, o tráfico de pessoas incorpora como vítimas em potencial o(a)

indivíduo(a) que se encontra em posição inferior na escala hierárquica de classe e estamento

social. Quanto às consequências dessa situação, coloca Arendt (2007) que ―A pobreza força o

homem livre a agir como escravo.‖ (ARENDT, 2007, p. 74). Isso ocorre porque a privação

Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

84

das condições mínimas de sobrevivência e a discriminação vivenciada cotidianamente,

tornam-se fortes catalizadores para que essas pessoas aceitem facilmente a oferta de um

estranho que proponha uma oportunidade de rendimento financeiro vantajoso em outra

localidade, além de interferir na percepção do sujeito enquanto vítima (ou melhor, não-vítima)

de exploração (facilitando o processo de submissão prolongada).

Tendo em vista tal perspectiva, o grupo dos menos favorecidos procura

mecanismos de sobrevivência na sociedade desigual, campo fértil para a inserção nas arestas

da marginalidade ou em atividades degradantes. Hazel (2008) assinala aspectos inerentes à

tais considerações, com foco nas mulheres exploradas sexualmente:

[...] dentro dos processos de exclusão as pessoas encontram formas de reivindicar e

procurar a sua inclusão, mesmo encontrando somente brechas deixadas pela lógica

excludente. A discriminação de gênero, a marginalização das culturas locais, a

precarização das relações de trabalho criaram realidades nas quais principalmente

mulheres pobres procuram estratégias de inclusão através do mercado de sexo.

(HAZEL, 2008, p. 01).

As aspirações desses seres humanos são frustradas nas piores condições de

exploração. Nessa perspectiva, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que

―O tráfico de pessoas é a antítese do trabalho em liberdade. Tal prática nega às pessoas a

oportunidade de desenvolverem suas habilidades e de contribuírem para o desenvolvimento

econômico e social do país.‖ (OIT, 2012, p. 09). A referida organização, em anuência com o

que temos indicado, aponta para fatores circunstanciais favorecedores dessa prática, dentre

outros, a pobreza, ausência de oportunidades de trabalho, discriminação de gênero, emigração

indocumentada, turismo sexual e leis deficientes. (IDEM, 2005, p. 15-17).

Tendo em vista tais considerações, países com menores índices de

desenvolvimento humano tendem a concentrar o maior número de pessoas vítimas desse tipo

de violência. Assim, a OIT (2005) estima que haja, em média, 2,4 milhões de indivíduos

vítimas de trabalho forçado em todo o mundo, com a região da América Latina ocupando a

segunda posição em incidência desse tipo de prática46

, perdendo apenas para a região da Ásia

e Pacífico e superando localidades como o Oriente Médio e o Norte da África.

46

Levando em consideração a proporção populacional.

Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

85

A prática do tráfico de pessoas, portanto, perpassa por uma lógica assentada na

―banalidade do mal‖ (ARENDT, 1989), onde os sujeitos não refletem sobre a humanidade do

outro, tornando-se indiferentes ao sofrimento daquele que para eles é considerado não-

humano, inferior. Embora Arendt (1989) tenha direcionado sua análise aos regimes

totalitários e às práticas perversas direcionadas ao povo judeu, a mesma lógica pode ser

correlacionada com empreitadas cruéis atuais, como o tráfico de pessoas.

Tal lógica não é apenas aplicável aos criminosos, mas a sociedade como um todo,

pois a partir do momento em que essa última torna-se indiferente a violência sofrida por

aqueles que já estão excluídos, por estarem enquadrados no patamar daqueles que não têm

utilidade, tornaram-se supérfluos para a sociedade egocêntrica:

O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o

aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas

constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em

termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte

conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar

os homens supérfluos. (ARENTD, 1989, p. 509).

No que se refere ao explorador, de acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de

Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (2002), esse

pode ser identificado nas seguintes posições: ―[...] do consumidor, do aliciador ou daquele que

ajuda a cooptar a vítima para a rede criminosa do tráfico. Esta é organizada por diferentes

atores, que desempenham papéis no crime organizado [...]‖ (PESTRAF, 2002, p. 51).

Tendo em vista tais considerações, cabe mencionar as manifestações do fenômeno

na atualidade. Uma pesquisa mais recente47

do que a Pestraf (2002) revelou que o Suriname

tem se mostrado como forte destino de tráfico internacional de muitas mulheres brasileiras,

especialmente daquelas que vivem na região Norte do país.

A investigação relata que o serviço de saúde do Suriname, que registra as

trabalhadoras de sexo atuantes em clubes da capital, para controlá-las em relação a doenças

sexualmente transmissíveis, destacou a presença de 308 brasileiras nos clubes do país,

47

Pesquisa Tri-Nacional sobre Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname,

2008.

Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

86

entretanto, o que mais nos chama atenção são os dados referentes a situação que as mulheres

exploradas enfrentam no local, muitas sendo levada para as regiões de garimpo:

A passagem do Brasil até o garimpo, transporte local e hospedagem ficam por conta

do dono de garimpo. As mulheres ficam à disposição dos garimpeiros durante três

meses, para relações sexuais. O dono desconta no final do mês 10% do salário dos

garimpeiros e paga às mulheres, depois dos três meses, um salário pré- estabelecido.

Elas não podem sair do garimpo, não podem recusar clientes e precisam conseguir

um número máximo de relações sexuais. (SODIREITOS, 2008, p. 51).

A referida pesquisa traz ainda o relato de 14 mulheres brasileiras que vivenciaram

a situação de tráfico para fins de exploração sexual, evidenciando a situação de

vulnerabilidade ao qual estiveram submetidas antes do recrutamento e descrevendo os maus

tratos e engano que sofreram quando vivenciaram a experiência do tráfico. Com o objetivo de

melhor ilustrar esse estudo, cabe demonstrar parte do relato de uma das vítimas identificadas

naquela pesquisa como ―D.I.‖:

Foi convidada a ir para o Suriname a fim de trabalhar num restaurante, mas na

verdade foi levada com mais sete meninas para um clube fechado, quando tinha 23

anos. 'Quando cheguei lá, fiquei assustada. Tinha até um micro-ônibus pra levar as

meninas. Chegando lá, eu olhei e vi um monte de mulheres num privê. Funciona de

dia, as meninas que querem trabalham pra pagar mais rápido (a dívida). Tem uma

que é obrigatório trabalhar. Quando foi à noite, ele (o dono do clube) chamou as

meninas no escritório, ele deu as boas vindas e disse que, se fôssemos obedientes,

poderíamos ser grandes amigas dele. Foi um inferno. Fazia programa até doente pra

pagar habitação, comida e limpeza', relata. (IDEM, p. 69).

Uma outra pesquisa realizada para identificar aspectos do tráfico de seres

humanos para fins de exploração sexual no Estado de Pernambuco, publicada em 2009,

analisou 17 inquéritos policiais e 07 procedimentos administrativos daquele Estado, com o

objetivo de identificar o perfil das vítimas e agressores. De acordo com o levantamento, foram

identificadas 23 mulheres, tendo a maioria entre 18 e 36 anos de idade, baixa escolaridade e

advindas da classe social baixa. (SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA, 2009, p. 99-10).

Em relação aos aliciadores, a pesquisa evidencia, mesmo que de forma vaga, uma

maioria de homens estrangeiros, com faixa etária entre 28 e 46 anos. Entretanto, a presença de

mulheres nessa atividade também é relatada com uma peculiar particularidade: algumas

residem em outros países, casadas com estrangeiros e, de acordo com a pesquisa, vinham ao

Brasil recrutar mulheres para serem exploradas sexualmente no exterior. (IDEM, p. 102-104).

Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

87

Um relatório publicado pelo Ministério da Justiça (2010) sobre o tráfico de

pessoas para fins de exploração sexual no Rio Grande do Sul, baseado em pesquisa

desenvolvida por Silva (2010), aponta o fluxo criminoso entre Brasil e países como a

Argentina, Paraguai e Uruguai. Ao evidenciar e analisar o fenômeno através dos inquéritos

policiais daquele Estado, o relatório constata:

No Rio Grande do Sul, os inquéritos mostram a atuação de redes organizadas de

tráfico na serra gaúcha e na fronteira com a Argentina. Os inquéritos indicam a

utilização tanto de rotas aéreas quanto terrestres para o tráfico de pessoas. As redes

se aproveitam das condições das regiões de fronteira e das possibilidades oferecidas

por pólos econômicos de influência regional. Isso porque nos dois casos existe um

grande fluxo de pessoas de diferentes nacionalidades e estados, mobilizados pelas

tramas comerciais e culturais (universidades, turismo, exportação) locais. Esse

contexto cria uma situação favorável ao aliciamento e, portanto, ao estabelecimento

de redes de tráfico de pessoas. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2010, p.39)

O relatório se faz valer ainda das notícias de jornais envolvendo a temática,

constatando uma alta discrepância entre o que tem sido publicado e o que está nos inquéritos

policiais, concluindo que o real número de casos pode estar sendo subestimado devido à

escassez de inquéritos nesse sentido: ―O pequeno número de inquéritos localizados se choca

com a quantidade de citações de jornais sobre o tráfico de pessoas. A primeira conclusão é de

que esse crime quase não chega ao sistema de responsabilização [...]‖ (IDEM, p. 40).

Entretanto, aqui levantamos uma outra hipótese, sem negar a existência dos casos

de tráfico de seres humanos naquela localidade, ou em qualquer outra: pelo caráter

eminentemente complexo do fenômeno, há de se considerar as margens de erro no momento

da caracterização da problemática por parte dos canais de publicação jornalística, fato esse

que pode, por outro lado, gerar um superávit nos casos evidenciados. Portanto, é sempre

necessária uma análise minuciosa das informações divulgadas por essas matérias para

descartar situações de outras naturezas.

Retomando o debate central do tópico, o tráfico de meninas e mulheres para fins

de exploração sexual também foi evidenciado em países como Nepal e Índia. De acordo com

relatório elaborado pelo Observatório de Direitos Humanos (Human Right Watch) o número

de crianças em bordeis localizados na capital da Índia, Bombaim, tem crescido

assombrosamente nos últimos anos, muitas provenientes do Nepal, vendidas pela própria

família aos aliciadores.

Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

88

[…] it is clear the percentage of Nepali girls in Indian brothels is very high, that

their numbers appear to be increasing, and that the average age at which they are

recruited is significantly lower than it was ten years ago, dropping from fourteen to

sixteen years in the 1980s to ten to fourteen years in 1994. Dr. Gilada of IHO told

our researcher that the youngest girl he had seen in a Bombay brothel was nine

years old.48 (HUMAN RIGHTS WATCH, 1995, p. 17)

O casamento servil também tem sido relatado como finalidade do tráfico de

mulheres e embora não existam relatos da prática no Brasil, países como a China e Coreia do

Norte apresentam dados nesse sentido. Uma pesquisa realizada também pelo Observatório de

Direitos Humanos naquela localidade evidencia a problemática:

Humanitarian groups working in China report the impression that there has been a

great increase in the numbers of women crossing the border since 1998, most of

them looking for opportunities to make money to send back to families in North

Korea. In most cases, the “opportunities” involve the sale of sexual services, either

through prostitution or arranged marriage, sometimes on the initiative of the woman

herself, but often through the agency of a third party who shelters, abducts, or in

some other way controls the woman. The rigors of agricultural and village life have

become less attractive to women in the border provinces in China as mobility and

industrialization have increased, which in turn has spurred the market for rural

brides. 49

(IDEM, 2002, p. 12).

O trecho acima aponta que o problema, além de envolver o casamento servil,

envolve ainda o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, mas também não exclui que

muitas delas migram voluntariamente para praticar a prostituição, portanto, temas que se

entrelaçam, mas que de maneira alguma são sinônimos, como já anteriormente mencionado

nesse capítulo.

No que se refere ao tráfico de órgãos, no Brasil podemos citar como exemplo um

famoso caso que, inclusive, foi noticiado na mídia. O fato ocorreu em Pernambuco, onde

vários nativos foram recrutados por uma organização criminosa composta por brasileiros,

48

Está claro que o percentual de meninas provenientes do Nepal nos bordeis indianos é muito alto, que parece

estar crescendo e que a idade com a qual elas tem sido recrutadas tem diminuído significativamente do que dez

anos atrás, caindo dos quatorze aos dezesseis anos nos anos 1980 para os dez à quatroze anos em 1994. Dr

Gilasa do IHO disse aos nossos pesquisadores que a garota mais jovem que ele viu em um bordel de Bombaim

tinha nove anos de idade. (Tradução livre da pesquisadora).

49

Grupos humanitários que atuam na China relatam a impressão que tem de que tem havido um grande aumento

no número de mulheres que atravessam a fronteira desde 1998, a maioria delas está procurando oportunidades de

ganhar dinheiro para enviar às suas famílias na Coreia do Norte. Na maioria dos casos as ―oportunidades‖

envolvem a venda de serviços sexuais, quer sejam através da prostituição ou casamento arranjado, às vezes por

iniciativa da própria mulher, mas muitas vezes por intermédio de um terceiro que aloja, rapta, ou de alguma

outra forma controla a mulher. Os rigores da agricultura e da vida no campo tornam-se menos atraentes para as

mulheres nas províncias de fronteira na China, ao mesmo tempo em que a industrialização tem crescido, o que,

por sua vez, impulsiona o mercado de noivas rurais. (Tradução livre da pesquisadora).

Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

89

israelitas, norte-americanos e africanos. As vítimas, por sua vez, provenientes de um bairro na

periferia da cidade de Recife, receberam até US$ 10.000,00 para entregarem um de seus

rins50

. A cirurgia para retirada do órgão era realizada em Durban, na África do Sul e os

―doadores‖ tinham todas as despesas de viagem pagas pela quadrilha.

A prática criminosa foi denunciada ao Ministério Público em 2003, que através da

atuação da Polícia Federal em ação denominada Operação Bisturi, descobriu todo o esquema.

Foi instaurada ainda uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2004, para apurar os fatos e

detalhes. A mesma recebeu o título de CPI dos Tráficos de Órgãos.

Em outros países também é possível constatar indícios desse tipo de crime. Na

Índia, em 2008, foi descoberta uma quadrilha composta por, pelo menos, cinqüenta pessoas,

incluindo médicos e outros profissionais da área da saúde. Os bandidos enganavam indianos

paupérrimos oferecendo cerca de US$ 2,5 mil às pessoas que teriam seus órgãos extraídos e

depois os vendiam por valores entre US$ 8 mil e US$ 9 mil à clientes árabes, americanos,

libaneses, britânicos, canadenses, etc. Possuíam uma clínica clandestina extremamente

equipada nos arredores de Nova Déli.51

A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LMD)52

realizou, em 2008, uma

pesquisa em Moçambique e na África do Sul evidenciando que o tráfico de pessoas com a

finalidade de remoção de órgãos ou partes do corpo naqueles territórios é frequente e está

ligada diretamente à rituais religiosos realizados por curandeiros. Em entrevistas realizadas

pela equipe de pesquisadores, vários relatos de práticas nesse sentido são relatadas. O trecho a

seguir retrata o testemunho de uma senhora que trabalha em casa de acolhimento à vítimas de

tráfico de pessoas na Província de Maputo:

[...] Uma senhora de cerca de 40 e tal anos foi apanhada a transportar uma cabeça e

os órgãos sexuais de uma criança do sexo masculino de cerca de dez anos. Ela trazia

com ela vários sacos com várias coisas dentro e trazia aquele material no meio

50

O valor inicial oferecido às vítimas foi de US$ 10.000,00, entretanto a procura de pessoas querendo vender o

rim foi tão grande que o valor caiu em pouco tempo para US$ 3.000,00.

51

Informações obtidas através da Agenzia Nazionale Stampa Associata (Agência ANSA) [online], acesso em

20/12/2010.

52

A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos é uma organização não governamental que foi fundada em 1995

e que se dedica a defender, proteger e promover os Direitos Humanos.

Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

90

dessas coisas dentro de sacos com gelo. O terceiro caso: foi no fim de Outubro, há

cerca de 2 semanas atrás. Um homem dos seus 27, 28 anos trazia carne dentro de um

colman em forma de saco. [...]. No fundo escondido tinha órgãos sexuais de cinco

homens adultos. O guarda de fronteira abriu aquilo e perguntou para onde é que ele

estava a levar aquela carne e depois vasculhou bem e foi quando ele viu aquilo ali.

(LMD, 2009, p. 25)

No que tange ao trabalho escravo no Brasil, está frequentemente associado à

agricultura e carvoaria. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam sua

ocorrência em Estados como o Pará, Maranhão e Mato Grosso53

. O recrutamento dos

trabalhadores é feito em localidades pobres, em geral nas cidades no interior do Nordeste, por

aliciadores conhecidos como ―gatos‖, que atraem as vítimas com falsas promessas de ótimos

salários e bons alojamentos em regiões longínquas.

Quando no local de destino é que os trabalhadores se deparam com a realidade:

alojamentos inadequados, ausência das mínimas condições de higiene, inexistência de

banheiros, carência de boa alimentação e água potável, ausência de equipamentos de trabalho

e de proteção. Em alguns casos, quando há equipamentos para a execução das atividades, os

empregados são obrigados pelos patrões a arcar com os custos dos mesmos, que por lei

deveriam ser de responsabilidade do empregador. Os trabalhadores são imputados ainda com

altos valores cobrados quanto à alimentação, moradia e vestuário, jamais conseguindo saldar

suas dívidas, sendo impedidos de deixar as propriedades que são constantemente vigiadas por

jagunços armados.

Apesar da maioria dos casos se concentrarem em regiões específicas, o Estado do

Ceará também aparece nas estatísticas como destino. Segundo dados divulgados pelo

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 2011, através do cadastro atualizado de

empregadores que foram flagrados submetendo trabalhadores à condição análoga á de

escravidão. O Ceará aparece na lista com 04 empregadores citados, que juntos totalizaram 260

trabalhadores explorados entre julho de 2009 e dezembro de 2010. Os quatro empregadores

são do ramo agrícola e as fazendas estão localizadas nas zonas rurais de Paracuru, Parambu,

Ubajara e São Gonçalo do Amarante.

53

Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2008), no Brasil, a maior parte do trabalho forçado

está concentrado nos Estados do Pará, Mato Grosso e Maranhão, sendo 53%, 26% e 19% respectivamente.

Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

91

Já o trabalho escravo em fábricas de costura é uma prática recorrente na cidade de

São Paulo, que ―importa‖ frequentemente mão de obra escrava da Bolívia. Esses imigrantes

são submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, variando entre 14 e 17 horas diárias, com

precárias condições de higiene, alojamento e alimentação. O patrão, em geral, não os deixava

sair, intimidando-os, declarando que a Polícia Federal estaria rondando por ali, podendo

prendê-los e deportá-los a qualquer momento54

. Trabalham meses sem receber pagamento

algum, pois, segundo o patrão, parte do dinheiro estaria sendo enviado para os seus familiares

na Bolívia e o restante seria para pagamento das despesas com a viagem, alimentação e

alojamento dos imigrantes. (SILVA, 2006, p. 03).

Dentro desse contexto das múltiplas e polimórficas manifestações do tráfico de

pessoas na atualidade algumas reflexões são extremamente pertinentes para trazer à luz

aspectos delicados que envolvem a temática e interferem diretamente na sua compreensão e

enfrentamento. Uma dessas reflexões repousa no posicionamento das vítimas em relação a sua

situação, ou seja, a questão do consenso. Muitas sabem, por exemplo, que vão exercer a

prostituição no local de destino e se submetem passivamente a exploração sofrida. Algumas,

inclusive, acreditam que é justo pagarem preços abusivos pelas ―despesas‖ de viagem,

hospedagem e alimentação, assim também como cederem uma porcentagem alta dos

programas que realizam ao(à) cafetão(ina), pois consideram a vida que levavam anteriormente

na miséria muito pior, algumas chegando inclusive a sentirem-se gratas pela ―oportunidade‖

que lhes foi dada.

O consentimento dado pelo explorado ao explorador, tendo em vista sua situação

de dominado, deve ser sempre considerado induzido. Inclusive, esse entendimento consta

como orientação no Protocolo de Palermo (2000) que expressa: ―O consentimento dado pela

vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração [...] será considerado

irrelevante [...]‖ (p. 47). Portanto, é importante observar atentamente o contexto que envolve

cada caso, em especial a situação vivenciada anteriormente da pessoa vítima de tráfico no seu

local de origem.

54

O Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980, permite apenas a entrada de mão-de-obra especializada e de

empreendedores no país. Para os que não se enquadram nesses critérios, as duas únicas possibilidades de

regularização são o casamento com cônjuge brasileiro ou o nascimento de um filho em território nacional, mas a

maioria dos estrangeiro não possuem essa informação.

Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

92

O fato da vítima estar ciente da atividade que vai executar no local de destino

também não descaracteriza a situação de violência sofrida, pois a mesma consiste na

exploração da mesma, que muitas vezes tem de submeter-se a realizar jornadas exaustivas de

trabalho, dividir seus ganhos com terceiros e, em alguns casos, tem seu direito de ir e vir

cerceado. Portanto, aspectos referentes ao consentimento ―dado‖ pelas pessoas envolvidas

nessa situação devem ser compreendidos de maneira aprofundada e essa compreensão é

essencial para uma atuação qualificada das instituições e atores sociais junto ao fenômeno.

Jesus (2003) destaca:

O tráfico pode envolver um indivíduo ou um grupo de indivíduos. O ilícito começa

com o aliciamento e termina com a pessoa que explora a vítima [...] observando-se

que o consentimento da vítima em seguir viagem não exclui a culpabilidade do

traficante ou do explorador, nem limita o direito que ela tem à proteção oficial.

(JESUS, 2003, p. 07).

Uma pesquisa sobre o tema, realizada no Estado de Pernambuco, com apoio do

governo federal através do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania

(PRONASCI) publicada em 2009, também manifestou preocupação com a questão do

consentimento, alegando que:

Há configuração do tráfico de pessoas ainda que o transporte seja feito com o

consentimento da vítima, uma vez que há a exploração dessa pessoa no destino final.

Entende-se que a vítima tem direito a proteção especial, porque sua vontade está

viciada pelos meios utilizados. O consentimento, assim, é irrelevante para a

caracterização do tráfico. (PRONASCI, 2009, p. 126)

A Pestraf (2002) também posiciona-se sobre tal ―consentimento induzido‖,

caracterizando-o da seguinte forma:

[...] a palavra induzir significa levar a, persuadir, instigar, incutir. No âmbito do

Direito é traduzida como crime que consiste em abusar da inexperiência, da

simplicidade ou da inferioridade de outrem sabendo ou devendo saber que a

operação proposta é ruinosa, ou seja, pode ser nociva e trazer prejuízos. Neste

sentido, também o que chamamos de ―consentimento induzido‖ diz respeito ao

conceito de cooptação que aqui adquire o significado de abuso por parte de um

grupo que domina um tipo de situação [...] em relação a uma pessoa ou grupo, para

levar a uma aparente escolha ou consentimento. (PESTRAF, 2002, p. 25).

Outro fator que facilita a atuação dos criminosos é a alocação das vítimas em

território estrangeiro. As redes clandestinas de tráfico internacional de pessoas submetem suas

vítimas à um contexto de situação ilegal de imigração, não domínio do idioma, não

Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

93

conhecimento do território e ausência de suporte familiar e comunitário – que costumo

intitular de apartamento da comunidade –, considerados fatores bastante favoráveis para a

manutenção do ciclo de exploração.

Entretanto, há de se atentar para o fato de que, apesar de serem temas co-

relacionados, imigração ilegal ou contrabando de imigrantes não corresponde, ou seja, não é

necessariamente sinônimo de tráfico de pessoas, uma vez que após a entrada ilegal no país ao

qual se pretende ir, o imigrante precisa estar submetido à uma situação de exploração sexual,

laboral, entre outras, para que o tráfico de seres humanos possa ser caracterizado. Ou seja, o

imigrante quando vítima de trafico de pessoas, já é aliciado pelos traficantes na sua terra natal

com o objetivo de ser explorado no país de destino. Já o contrabando de migrantes, que prevê

a figura do ―atravessador‖ para auxiliar na entrada ilícita de estrangeiros em pais diverso do

seu, não significa exploração do indivíduo no destino final, portanto, não sendo sinônimo de

tráfico de pessoas.

Em termos conceituais, de acordo com a OIT, o contrabando de migrantes é

compreendido como aquele que “[...] ocorre quando pessoas são impedidas de entrar

legalmente em um país e outras as ajudam (por pagamento ou não) para atravessar a fronteira.

É considerada pela legislação de muitos países como uma forma irregular de migração.‖ (OIT,

2009, p. 13).

Pesquisas recentes tem demonstrado preocupação com a proximidade dos temas,

pois a confusão entre eles leva à práticas de enfrentamento distorcidas, por vezes pautadas em

posturas moralistas ou xenofóbicas. O International Centre for Migration Policy

Development (ICMPD) inclusive alerta sobre a questão em conclusão de estudo transnacional

recentemente realizado e publicado:

As vítimas de tráfico não devem ser tratadas como imigrantes irregulares. Em geral,

considera-se que existe o risco do aumento do estigma contra a prostituição e o

combate ao tráfico de seres humanos conduzir à repressão da imigração. Os autores

da pesquisa brasileira consideram fundamental a existência de uma campanha

permanente de sensibilização sobre o tráfico de pessoas. (ICMPD, p. 18, 2011).

Caracterizar o tráfico de seres humanos, portanto, é tarefa extremamente

complexa e basear-se apenas nos instrumentos legais brasileiros parece insuficiente para

retratar de forma real como ocorre a referida prática. A publicação de pesquisas com foco na

Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

94

vivência profissional do enfrentamento à questão, o entendimento do contexto global, o

conhecimento do Protocolo de Palermo (2000) e o aprofundamento na compreensão de

algumas categorias como exploração e imigração são essenciais para complementar o

entendimento do fenômeno.

Aspectos inerentes a cultura dominante da sociedade globalizada, que sofre ainda

influencia da herança cultura racista e patriarcal, precisam ser também discutidas, pois

parecem legitimar, no contexto da atualidade, práticas de exploração do outro, considerado,

por vezes, como inferior. Conforme Vasconcelos e Bolzon (2008) salientam: ―Essa

desvalorização política e social da vida viabiliza a submissão dos corpos daqueles

considerados sem-valor a condições degradantes de trabalho e a quaisquer formas de

violência.‖ (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195).

Na perspectiva da violência de gênero, Saffioti (1987) salienta:

[...] segundo a ideologia dominante, ocupa o lugar de caçador. Deve perseguir, da

mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar. Para o poderoso

macho importa, em primeiro lugar, seu próprio desejo. Comporta-se, pois, como

sujeito desejante em busca de sua presa. Esta é o objeto de seu desejo. Para o macho

não importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante. Basta que

ela consinta em ser usada enquanto objeto. (SAFFIOTI, 1987, p. 18, grifo nosso).

Nesse sentido, a promoção dos direitos humanos e sexuais são fundamentais para

possibilitar o processo de desconstrução de posicionamentos enraizados na sociedade. Assim,

o desenvolvimento de qualquer ação de enfrentamento ao tráfico de pessoas deve trazer à tona

a perspectiva do respeito à vida, à diversidade sexual, à liberdade, às diferenças culturais, à

raça, etnia, geração, enfim, à diversidade própria e característica dos seres humanos, que os

tornam singulares e sujeitos com direito ao respeito e à proteção.

O próximo capítulo apresenta uma discussão histórica acerca dos instrumentos

normativos internacionais voltados para o enfrentamento ao tráfico de pessoas dos quais o

Brasil tornou-se signatário, com foco no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,

na perspectiva da paradoxal e controvérsia definição conceitual do fenômeno e nas medidas

estatais públicas direcionadas à questão.

Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

95

3. ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS:

INSTRUMENTOS NORMATIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral‖ de verdade: isto é,

os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os

mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos

falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que

são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo

de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2011, p. 12).

Numa retrospectiva do que apresentamos até o momento, colocamos as palavras

de Valconcelos e Bolzon (2008) à respeito do público atingido pelas consequências do tráfico

de pessoas na sociedade moderna, com efeitos direcionados a degradação da humanidade:

No período colonial, a vida sem valor e, portanto, o corpo a ser colocado à

disposição pertencia, especialmente, ao negro africano. Atualmente, a

desvalorização da vida não parece estar confinada a uma categoria social específica.

Critérios sociais, raciais, regionais e de gênero podem fazer do pobre, do negro, do

nordestino e da mulher os alvos preferenciais dessa desvalorização, o que é

acentuado quando suas vidas são percebidas como parte daquele processo de

desenraizamento social. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195)

Tendo em vista a desvalorização da humanidade do outro no contexto do tráfico

de pessoas, as políticas voltadas para enfrentar o problema, seja através da coibição do crime

ou do suporte e assistência as vítimas, devem estar intimamente relacionados com os

princípios de Direitos Humanos. Comparato (2010) enfatiza que a diversidade humana deve

ser objeto de proteção e não de discriminação:

O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e

tratar o outro – um indivíduo, uma classe, um povo – como um ser inferior, sob

pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial. Algumas

diferenças humanas, aliás, não são deficiências, mas bem ao contrário, fontes de

valores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas. (COMPARATO,

2010, p. 241)

Por Direitos Humanos, compreende-se aqueles ―[...] direitos que pertencem a

todos os seres humanos pelo simples fato de fazerem parte do gênero humano. [...] são

direitos pré-estatais, naturais, inatos e inerentes ao homem e de validade absoluta [...]‖.

(MALUSCHKE; et. al, 2004, p. 15). Nessa perspectiva, tais direitos se sobrepõem ao Estado,

devendo ser prioridade, encarregando-o de zelar por seus princípios.

Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

96

No contexto brasileiro, a Promulgação da Constituição Federal de 1988 representa

um marco histórico na garantia dos direitos humanos. O artigo 1º, inciso III, determina a

dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais que direciona as ações e

postura do Estado democrático de direito. Contudo, o cotidiano tem demonstrado que por

vezes essa garantia permanece no campo da formalidade: as múltiplas violações ocorrem

recorrentemente e por vezes, inclusive, perpetradas pelos próprios agentes do Estado.

A Carta Magna, por exemplo, em seu artigo 5º, incisos II e III, estabelece o

compromisso de que ―[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa

senão em virtude da lei [...] ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou

degradante‖. (BRASIL, 2010). A perpetuação de atividades ilícitas de exploração de pessoas

através do tráfico caracteriza-se, portanto, em grave violação desses princípios. O não efetivo

enfrentamento da questão por parte do Estado reforça essa dimensão.

Através da visibilidade que o fenômeno social adquiriu na contemporaneidade,

especialmente devido à publicação da Pestraf (2002)55

, fomentou-se o ponto de partida para a

inclusão do problema na agenda política. Houve, a partir de então, a ratificação, em 2004, do

Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado

Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial

Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo) pelo Brasil, da rediscussão e reestruturação do

Código Penal – com o objetivo de adequá-lo as características mais recentes do fenômeno – e

a construção de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que culminou

no desenvolvimento de um Plano Nacional voltado especificamente para a temática, aspectos

descritos no primeiro capítulo desse estudo.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, publicada por meio

do Decreto Nacional nº 6.347 de 08 de janeiro de 2008 – portanto, extremamente recente –

surgiu com o objetivo de estabelecer ―[...] princípios, diretrizes e ações de prevenção e

repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas, conforme as normas e

instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos e a legislação pátria.‖ (Art. 1º).

Com isso, o documento admite enquanto tráfico de pessoas a ampla definição apresentada

55

Pesquisa já apresentada no primeiro capítulo desse estudo no tópico que trata sobre o lócus da pesquisa.

Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

97

pelo Protocolo de Palermo, que será discutida posteriormente no ponto 2.2 deste capítulo para

problematiza-la com a definição ainda incipiente do Código Penal Brasileiro (CPB).

Já o Plano Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) foi

organizado, à exemplo de iniciativas internacionais anteriores, em três eixos: prevenção,

atenção às vítimas e combate; esse último envolvendo a repressão e responsabilização dos

criminosos. Cada um desses eixos foi desenvolvido através da estipulação de prioridades com

o objetivo de organizar as ações.

No eixo da prevenção foram estipuladas quatro prioridades: fomentar e divulgar

pesquisas e experiências sobre tráfico de pessoas; capacitar sujeitos envolvidos com o

enfrentamento da temática na perspectiva dos direitos humanos; mobilizar e sensibilizar a

comunidade; diminuir a vulnerabilidade ao tráfico de pessoas de grupos sociais específicos.

(PNETP, 2008, p. 11,12).

Já no eixo da atenção às vítimas existe apenas uma única prioridade: articular,

estruturar e consolidar, com base nos serviços e rede previamente existentes, um sistema

nacional de referência e atendimento às pessoas em situação de tráfico. (IDEM, p. 13).

Contudo, fomentou a criação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em vários

Estados do território nacional, tendo em vista que a ―rede previamente existente‖ não possuía

trabalho específico voltado para a questão e as vítimas desse tipo de crime apresentam

especificidades que demandam por formação especializada.

Por fim, o eixo de repressão e responsabilização dos criminosos prevê seis

prioridades: aperfeiçoar a legislação brasileira, ampliar o conhecimento sobre o fenômeno nas

instâncias e órgãos envolvidos na repressão e responsabilização dos autores, fomentar a

cooperação entre os órgãos federais, estaduais e municipais, criar e aprimorar instrumentos

para esse enfrentamento, estruturar os órgãos responsáveis por esse eixo, fomentar a

cooperação internacional para repressão ao tráfico de pessoas. (IBIDEM, p. 14-16).

Evidente que tais alterações são consideradas como avanços no enfrentamento ao

tráfico de pessoas, entretanto, como avaliaremos nos tópicos subsequentes, não foram capazes

de subsidiar a complexa gama que permeia a problemática do tráfico, tendo em vista as

contradições ainda presentes nos instrumentos normativos, o que dificulta a atividade dos

Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

98

profissionais posicionados nas linhas de frente, assim também como a aplicabilidade dos tipos

penais, gerando uma série de confusões no momento da identificação do crime e,

consequentemente, das vítimas.

Associada à tais considerações, temos ainda uma estrutura social culturalmente

excludente, machista, racista e classista, que embora pressuponha igualdade e equidade

asseguradas em lei, não legitima muitas conquista em virtude de uma formação histórica

vinculada à posicionamentos discriminatórios. Saffioti (1987) elenca elementos à respeito

desses aspectos, centrada na discriminação de gênero:

Estruturas de dominação não se transformam meramente através da legislação. Esta

é importante, na medida em que permite a qualquer cidadão prejudicado pelas

práticas discriminatórias recorrer à justiça. Todavia, enquanto perdurarem

discriminações legitimadas pela ideologia dominante, especialmente contra a

mulher, os próprios agentes da justiça tenderão a interpretar as ocorrências que

devem julgar à luz do sistema de ideias justificador do presente estado das coisas

(SAFFIOTI, 1987, p. 15,16).

O tópico a seguir traz uma análise documental dos instrumentos internacionais

dos quais o Brasil tornou-se signatário e que antecedem o Protocolo de Palermo. O objetivo

desse levantamento é demonstrar de que forma o fenômeno foi gradativamente sendo

percebido pelo Estado, assim também como mudanças de perspectiva nessa compreensão e

impasses apresentados por esses instrumentos legais no que tange a caracterização da

problemática.

3.1. A Definição do Tráfico de Pessoas nos Tratados Internacionais

O arquivo [...] Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio

confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio

do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os

especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2008, p. 147).

No percurso histórico do desenvolvimento do tráfico de pessoas, vários

instrumentos normativos de caráter transnacional foram elaborados como forma de reação dos

Estados na tentativa de coibir a prática. Após a extinção do tráfico negreiro, a principal

preocupação desses atores voltou-se para o tráfico de mulheres brancas. Rago (2008)

evidencia esse momento: ―Desde o final do século XIX, realizaram-se congressos

internacionais na Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, com a finalidade de reprimir o

Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

99

tráfico de ―brancas‖ e dotar os países envolvidos de uma legislação adequada e eficaz.‖

(RAGO, 2008, p. 287).

Tais eventos desencadearam na elaboração de vários documentos, dos quais alguns

o Brasil tornou-se signatário. Kempadoo (2008) trata sobre a constituição da definição do

tráfico de pessoas através desses tratados, evidenciando as influencias que esse processo

absorveu da conjuntura social.

O ―tráfico‖ está em geral ligado a tratados internacionais que tentavam lidar, entre

fins do século dezenove e início do vinte, com o surgimento de mulheres como

trabalhadoras migrantes no cenário internacional [...] As idéias sobre o tráfico foram

engendradas por ansiedades sobre a migração de mulheres sozinhas para o exterior,

e sobre a captura e escravização de mulheres para prostituição em terras

estrangeiras. A visão de uma sociedade moral subjacente ao cristianismo informava

a definição, e a política do abolicionismo da escravidão negra e do movimento pelo

sufrágio feminino tanto na Europa como nos Estados Unidos ajudaram a dar forma

ao paradigma do ―tráfico de pessoas‖. (KEMPADOO, 2008, p. 57).

Antes de adentrar na discussão do conteúdo desses documentos, cabe, para melhor

ilustrar as convenções e acordos internacionais aos quais o Brasil aderiu, o quadro elaborado

para essa pesquisa, a partir do levantamento documental realizado no endereço eletrônico da

Divisão de Atos Internacionais (DAI)56

do Governo Federal:

TABELA 1 – DOCUMENTOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS QUE TRATAM SOBRE O

TRÁFICO DE PESSOAS DOS QUAIS O BRASIL FOI/É SIGNATÁRIO.

TÍTULO DO DOCUMENTO DATA Nº DO DECRETO NO BRASIL

Acordo para a Repressão do Tráfico

de Mulheres Brancas 18/05/1904 5.591 de 13/07/1905

Convenção Internacional para a

Repressão do Tráfico de Mulheres e

de Crianças.

30/09/1921 23.812 de 30/01/1934

Convenção Internacional para

Repressão do Tráfico de Mulheres

Maiores

11/10/1933 2.954 de 10/08/1938

Protocolo de Emenda da Convenção

para a Repressão do Tráfico de

Mulheres e de Crianças, de 30 de

Setembro de 1921, e da Convenção

para a Repressão do Tráfico de

Mulheres Maiores, de 11 de Outubro

de 1933

12/11/1947 37.176 de 15/04/1955

Convenção para a Repressão do

Tráfico de Pessoas e do Lenocínio e

Protocolo Final

21/03/1950 46.981 de 08/10/1959

56

http://dai-mre.serpro.gov.br/

Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

100

Convenção Interamericana sobre o

Tráfico Internacional de Menores 18/03/1994 2.740 de 20/08/1998

Protocolo Adicional à Convenção das

Nações Unidas contra o Crime

Organizado Transnacional Relativo à

Prevenção, Repressão e Punição do

Tráfico de Pessoas, em Especial

Mulheres e Crianças.

15/11/2000 5.017 de 12/03/2004

Fonte: Elaboração da pesquisadora, 2012

De acordo com o quadro apresentado, em 1904, firma-se em Paris o Acordo para a

Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas do qual o Brasil tornou-se signatário

posteriormente, promulgando o decreto nacional nº 5.591 em 13 de julho de 1905. O referido

documento, que possui ao todo dez artigos e contou com a aderência de países como Rússia,

Portugal, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Irlanda, Inglaterra e França, prevê

atividades de repressão ao tráfico e, mesmo precariamente, alguma assistência às mulheres em

situação de prostituição no país estrangeiro. Entretanto, o documento não esclarece a

definição de tráfico de seres humanos, deixando muitas lacunas que o confundem com a

prostituição voluntária, gerando um controle dessa atividade:

Art 3º Os Governos se obrigam a mandar receber, quando assim acontecer e dentro

dos limites legaes, as declarações das mulheres, virgens ou não, de nacionalidade

estrangeira, que se entreguem à prostituição, no sentido de determinar sua identidade

e estado civil, e indagar quem as induziu a abandonar seu paiz. As informações

recolhidas, serão communicadas às autoridades do paiz de origem das ditas

mulheres, virgens ou não, para facilitar sua eventual repatriação. (ACORDO PARA

A REPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES BRANCAS, 1904)

Tal trecho evidencia a intenção em manter controle sobre as atividades das

prostitutas estrangeiras com o objetivo de saber quantas estão atuando e algumas

características referentes às mesmas. É possível perceber que ao detectá-las, a ação

recomendada é a ―repatriação‖, que na realidade representa a deportação dessas mulheres,

sem o oferecimento de suporte local. Desconsidera-se ainda a migração autônoma para o

exercício da prostituição, postura clara quando se afirma a intenção de ― [...] indagar quem as

induziu a abandonar seu paiz.‖ (IDEM).

O fato do documento sublinhar ainda a questão da virgindade, sugerindo que há

uma diferença entre mulheres virgens e não virgens, indica o caráter eminentemente moralista

dos Estados frente a questão da sexualidade da mulher, considerando esse aspecto como

requisito valorativo.

Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

101

O documento prevê ainda a fiscalização de estações férreas e portos, com o

objetivo de identificar homens conduzindo mulheres estrangeiras que venham exercer a

prostituição no destino, mas não especifica que elementos deveriam ser utilizados para tal

identificação. Essa fragilidade na indefinição do tráfico de mulheres acabou incidindo, mais

uma vez, sobre pessoas que viriam exercer a prostituição voluntariamente no Brasil.

Mais adiante, surge a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de

Mulheres e Crianças, discutida em Genebra no ano de 1921, mas promulgada no Brasil

apenas em 1934, através do Decreto Nacional nº 23.812 do governo Getúlio Vargas.57

A

referida Convenção propõe-se a fomentar medidas legais efetivas na repressão, assistência e

prevenção do tráfico de pessoas, essa última através da distribuição de informações por meio

de cartazes nos locais de fluxo migratório, conforme exposto do Artigo 7º:

Artigo 7º

As Altas Partes Contratantes comprometem-se no que concerne aos seus serviços de

imigração e emigração, a tomar as medidas administrativas e legislativas destinadas

a combater o tráfico das mulheres e crianças. Comprometem-se principalmente a

baixar os regulamentos necessários para a proteção das mulheres e crianças que

viajam a bordo de navios de emigrantes, não somente no embarque e desembarque,

mas ainda no decurso da viagem, e a tomar medidas concernentes à afixação, nas

estações ferroviárias e nos portos, de avisos chamando a atenção das mulheres e

crianças para os perigos do tráfico e indicando os lugares onde podem encontrar

abrigo, ajuda e assistência. (CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A

REPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS, 1921).

O documento prevê, conforme o trecho acima, que a proteção de mulheres e

crianças encontradas nessa situação deve contar com abrigos e ajuda especializada, mas não

entra em maiores detalhes nesses sentido, sendo inclusive esse o único artigo do texto que

trata da questão. Já o posicionamento em relação à prostituição, o documento, no mesmo

direcionamento do anterior, continua a considera-la como atentado à moral e aos bons

costumes. Quanto aos criminosos, a única medida prevista é a deportação dos estrangeiros

identificados cometendo o delito.

A Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, de

1938, já trás uma definição um pouco melhor elaborada daquele(a) que deveria ser

considerado(a) como traficante de mulheres. Entretanto, novamente há confusão entre tráfico

57

O referido decreto além de trazer o conteúdo da convenção na íntegra traduzido para o português, apresento-o

também na língua original em que foi elaborado, ou seja, em francês.

Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

102

para fins de exploração sexual e prostituição voluntária, conforme demonstra o trecho a

seguir:

Artigo primeiro

Quem quer que, para satisfazer as paixões de outrem, tenha aliciado, atraído ou

desencaminhado, ainda que com o seu consentimento, uma mulher ou solteira

maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido, mesmo quando os

vários atos, que são os elementos constitutivos da infração, forem praticados em

países diferentes. (CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A REPREÇÃO DO

TRÁFICO DE MULHERES MAIORES, 1938).

O documento reúne em um único artigo a prática do rufianismo e do tráfico de

mulheres, entretanto não esclarece que o rufianismo deve prever o ganho pecuniário do

explorador em cima dos programas sexual realizados pela explorada, deixando margem para

que seja considerado como criminoso qualquer pessoa que de qualquer forma tenha

convidado outra para exercer a prostituição, aspecto esse que persiste na caracterização atual

do tráfico de pessoas descrita no Código Penal Brasileiro.

Há ainda a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e

do Lenocínio, de 1949, concluída em Lake Success, Nova York, e assinada pelo Brasil em 5

de outubro de 1951, mas efetivamente instituída apenas através do decreto nacional de nº

46.981 apenas em 1959 no governo de Juscelino Kubitschek.

A referida Convenção trás avanços ao considerar como vítima de tráfico qualquer

pessoa, desvinculando-a da figura feminina ou mesmo de uma faixa etária específica. Mas

permanece estagnada quando à finalidade do crime, atribuindo às práticas de tráfico apenas

aquelas que levam outros à prostituição. Nesse sentido, mais uma vez, abre-se precedentes

para relacionar diretamente o tráfico de seres humanos com a prostituição voluntária,

conforme exposto no trecho:

Artigo 1

As Partes na presente Convenção convêm em punir tôda pessoa que, para satisfazer

às paixões de outrém:

1. aplicar, induzir ou desencaminhar para fins de prostituição, outra pessoa, ainda

que com seu consentimento; (CONVENÇÃO E PROTOCOLO FINAL PARA A

REPRESSÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS E LENOCÍNIO, 1959).

Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

103

De acordo com o referido artigo, portanto, e no mesmo direcionamento dos outros

documentos analisados, qualquer um(a) que de qualquer forma convide alguém para exercer a

prostituição – mesmo que essa última seja adulta e consciente de sua decisão e que aquela(e)

que a convidou não tenha intenções de explorá-la, sendo inclusive também prostituta – pode

ser considerado(a) como criminoso(a).

A tentativa de associar o tráfico de pessoas diretamente às práticas de

prostituição pode ter sido constituída como uma forma de controlar e impedir o

movimento dessas protagonistas para exercer tal atividade. Rago (1995), ao tratar da

dimensão histórica em relação ao posicionamento do poder público no tratamento à essas

mulheres, enfatiza que ―[...] a preocupação com a prostituição e com as mulheres pobres

do submundo prendeu-se muito mais à vontade de normatizar os comportamentos femininos

em geral [...].‖ (RAGO, 1995, p. 90).

Por fim, encerrando nossa análise na perspectiva histórica, apresentamos a

Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores que surgiu em 1994,

mas foi acatada pelo Brasil apenas em 1998. O documento considera como menor aquele que

possui idade inferior aos dezoito anos e define na alínea ―b‖ do artigo segundo o que seria o

tráfico internacional de menores: ―[...] a subtração, transferência ou retenção, ou a tentativa de

subtração, transferência ou retenção de um menor, com propósitos ou por meios ilícitos‖.

Na tentativa de esclarecer melhor esses pressupostos a Convenção complementa

na alínea ―c‖ do mesmo artigo o que compreende como propósitos ilícitos: ―[...] entre outros,

prostituição, exploração sexual, servidão ou qualquer outro propósito ilícito, seja no Estado

em que o menor resida habitualmente, ou no Estado Parte em que este se encontre‖.

Assim, a referida Convenção, como sua própria nomenclatura atesta, trata apenas

de aspectos do tráfico vinculado à criança e adolescente, não trazendo elementos no que tange

aos adultos que podem vivenciar a situação. Trás avanços porque prevê comunicação

transnacional entre os Estado com relação aos casos identificados, com o objetivo de

resguardar os direitos da criança/adolescente em situação de tráfico internacional, conforme

atesta o artigo 4º: ―[...] as autoridades competentes dos Estados Partes deverão notificar as

autoridades competentes de um Estado não Parte, nos casos em que se encontrar em seu

território um menor que tenha sido vítima do tráfico internacional de menores.‖

Page 106: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

104

O tópico a seguir apresenta aspectos normativos e a legislação nacional

relacionados à atualidade e evidencia algumas fragilidades que permanecem pertinentes no

contexto brasileiro, confluindo para práticas de combate a prostituição em nome do

enfrentamento ao tráfico de pessoas.

3.2. Protocolo de Palermo e a confusão conceitual no Tráfico de Pessoas

A confusão historicamente evidenciada entre o tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual, prostituição e migração persiste na atualidade. Por se tratar de prática

multifacetada, sabe-se que o fenômeno necessita, para seu efetivo enfrentamento, de ações

articuladas, intersetoriais e de equipes tecnicamente preparadas e devidamente qualificadas,

tanto para garantir a punição adequada dos agressores, como para identificar e acolher

corretamente as vítimas e realizar ações preventivas adequadas. Nessa perspectiva, colocam-

se Almeida e Nederstigt (2009):

[...] a maioria das pessoas traficadas não tem acesso a mecanismos efetivos de

proteção em razão da dificuldade de identificação de casos de tráfico por parte de

autoridades e organismos não governamentais. De fato, a identificação constitui,

hoje, um dos maiores desafios nessa área. (ALMEIDA; NEDERSTIGT, 2009, p. 6).

No que se refere à definição mais completa do que seria o tráfico de pessoas no

contexto atual, o documento considerado como referência, citado anteriormente no primeiro

capítulo desse estudo, é o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o

Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de

Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo, por

ter sido elaborado na cidade de Palermo, Itália, no ano 2000.

O referido Protocolo, do qual o Brasil tornou-se signatário apenas em 2004, tem

sido objeto de críticas na atualidade. A autora Piscitelli (2011), por exemplo, discorre à esse

respeito, ressaltando que não há clareza quanto ao posicionamento do tratado em relação à

exploração da prostituição, contribuindo para discrepâncias na caracterização do tráfico para

fins de exploração sexual:

Nas leituras críticas sobre o Protocolo de Palermo se observa que ele assume uma

posição de aparente neutralidade no que se refere ao debate sobre a prostituição,

obtida às custas da falta de precisão [...] A falta de precisão seria efeito da falta de

acordo dos delegados governamentais, que se alinharam em uma ou outra posição e

Page 107: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

105

seu efeito seria a dificuldade de trabalhar adequadamente com o Protocolo,

delimitando situações de tráfico de pessoas. (PISCITELLI, 2011, p.193)

Ou seja, o Protocolo trata da exploração da prostituição, mas não a define. Na

realidade não, o documento não caracteriza nenhuma das explorações descritas. Tal

indefinição, abriu precedentes para que cada país signatário definisse os parâmetros para

estabelecer aquilo o que considera como exploração no tráfico de pessoas. No caso do Brasil,

essa exploração foi associada à prostituição no Código Penal.

Como forma de ilustrar o exposto, apresentamos as considerações dos

pesquisadores Silva e Blanchette (2010), que demonstram preocupação em relação à esses

aspectos:

Uma leitura estrita do Protocolo indicaria que, minimamente, a prostituição tem que

incluir um terceiro, o explorador, para que ela seja considerada como tráfico

propriamente dito. No entanto, as formas dessa ―exploração de outrem‖ não são

explicitadas, e isto causa problemas graves na hora de aplicar medidas repressivas

orientadas pelo Protocolo. (SILVA; BLANCHETTE, 2010, p. 150).

Ainda assim, o Protocolo de Palermo, sem dúvida, representa um marco, pois os

instrumentos normativos existentes antes dele não foram capazes de trazer uma definição que

comportasse tantos aspectos específicos do crime, considerando as formas de violência que

necessitam estar presentes, as finalidades da prática e a ampliação das vítimas para qualquer

ser humano independente de sexo, cor ou faixa etária.

O Código Penal Brasileiro, contudo, conforme enfatizado, não se adequou à

ampla caracterização do tráfico de pessoas descrita no Protocolo de Palermo:

Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele

venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de

alguém que vá exercê-la no estrangeiro.

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa

traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-

la ou alojá-la.

§ 2o A pena é aumentada da metade se:

I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;

Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

106

II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário

discernimento para a prática do ato;

III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,

companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu,

por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou

IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude

§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se

também multa.

Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual

Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território

nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a

pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la,

transferi-la ou alojá-la. (CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, 2009).

Atualmente sabe-se que a finalidade do tráfico de pessoas – conforme

anteriormente demonstrado no segundo capítulo dessa pesquisa – abrange uma diversidade

extremamente ampla, tal como tráfico de órgãos, trabalho escravo em fazendas, trabalho

escravo em fábricas de costura, entre outros, contudo, o Código Penal Brasileiro (CPB), como

acima demonstrado, considera apenas a exploração sexual na caracterização do crime.

De acordo com o texto CPB, considera-se ainda a prostituição em si como uma

forma de exploração sexual, posicionamento claro quando no trecho: ―[...] para o exercício da

prostituição ou outra forma de exploração sexual‖. Tal postura parece negar a possibilidade

da escolha de uma mulher adulta em exercer a prostituição de forma autônoma em outro país

ou mesmo fora do seu Estado. Cabe indicar aquilo que pode estar implícito nas entrelinhas:

evitar a migração de prostitutas e legitimar a deportação/inadmissão das mesmas sob a

perspectiva de que estariam sendo sempre ―traficadas‖.

Outra fragilidade que pode ser apontada no que se refere ao documento é a vaga

definição do que deve ser considerado como traficante de pessoas, podendo abrir margem

para que qualquer indivíduo que auxilie outro, mesmo sem interesse pecuniário algum, à

migrar para exercer a prostituição voluntariamente em outra localidade seja considerado como

criminoso. Tal postura pode abrir precedentes para a repressão da prostituição em nome do

Page 109: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

107

enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, reforçando uma

discriminação histórica por parte do Estado aos sujeitos que decidem, de maneira autônoma,

migrar para praticar a atividade sem sofrer exploração de terceiros.

Os pesquisadores Silva e Blanchette (2010) fazem algumas considerações à

respeito dessa discrepância: ―De acordo com uma leitura literal do artigo 231-A do Código

Penal Brasileiro, pagar um taxi para uma prostituta ir para seu trabalho é suficiente para

qualificar um crime de tráfico de pessoas, independentemente de qualquer outras

considerações.‖ (SILVA; BLANCHETTE, 2012, p. 152).

Veja ainda que, de acordo com CPB, o ato condenável é ―facilitar‖ o exercício do

meretrício. Dessa forma, se a atividade à ser realizada for de outra natureza, o crime de tráfico

fica descaracterizado. Nesse sentido, podemos inferir que a prostituta está impedida de migrar

para exercer essa atividade em outro local, a menos que o faça sem o auxílio ou convite de

ninguém, o que, tratando-se de viajem internacional é praticamente impossível.

Castilho (2008), ao fazer uma análise das decisões judiciais brasileiras voltadas

para processos envolvendo casos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,

identificou que por vezes a falta de clareza do Código Penal fomenta a reprodução da

violência contra a mulher, por não respeitar a autonomia dos indivíduos e por perceber a

prostituição através da ótima moralista:

A análise das decisões judiciais revela a subsistência da concepção da mulher como

sexo frágil, e do seu papel tradicional no contexto familiar. É inadmissível nessa

concepção que a mulher exerça a prostituição por livre e espontânea vontade. Mas,

ao mesmo tempo, não há grande preocupação com essa mulher que se viu compelida

à prostituir-se. Se comportamento, inclusive, serve para reprovar com menos rigor a

conduta da pessoa acusada. (CASTILHO, 2008, p. 121).

As repercussões da ambiguidade legal entre o tráfico de seres humanos e a

prostituição na execução das ações do Estado também foi objeto de considerações da

pesquisadora Oliveira (2008),

É importante lembrar que o Sistema de Justiça e Responsabilização (polícias,

Ministério Público, Poder Judiciário) atua na esfera criminal sob a orientação do

Código Penal. Portanto, ainda que existam operadores de Direito cujo entendimento

do conceito de tráfico de pessoas tenha sido alargado pelo Protocolo de Palermo, a

atuação cotidiana desses agentes está limitada pelo Código Penal. Nesse sentido, a

Page 110: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

108

redação atual do marco normativo nacional reforça a armadilha da associação direta

entre o tráfico de pessoas e a prostituição. (OLIVEIRA, 2008, p. 137).

Oliveira (2008) demonstra que os profissionais atuantes, por mais que tenham

clareza nos conceitos hora considerados, restringem a atuação por falta de respaldo legal, pois

só é possível agir de acordo com os instrumentos disponíveis, dentro dos parâmetros da lei.

Entretanto, destacamos que há de se considerar nesse universo aqueles agentes que nem se

quer conhecem o Protocolo, tendo em vista a ampla gama de atuações no qual estão inseridos,

como, por exemplo, um(a) delegado(a) que trabalha na tipificação dos mais diversos crimes.

A tendência é que esse profissional se baseie estritamente pelo CPB por considera-lo como

único documento legítimo.

O sujeito, na armadilha da ação não refletida, nos faz em muito lembrar o

posicionamento de Bourdieu, quando afirma que: ―O que faz o poder das palavras e das

palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subverter, é a crença na legitimidade das

palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das

palavras.‖ (BOURDIEU, 2009, p. 15). Ou seja, discutir as discrepâncias do CPB é

fundamental para desconstruir estereótipos por vezes marcados pelo discurso oficial, que

acabam sendo legitimados por uma prática não refletida respaldada na ―letra da lei‖. Daí a

importância da capacitação continuada dos profissionais, com o objetivo de fomentar

inquietações que possam levar à mudanças substanciais nos posicionamentos junto à questão.

Cabe destacar que é importante levar sempre em consideração não apenas o

caráter complexo do fenômeno, mas também as características das pessoas mais vulneráveis à

vivenciar esse tipo de situação com o objetivo de estruturar políticas capazes de prestar

suporte adequado à esses indivíduos. Valconselos e Bolzon (2008) tecem algumas

considerações historicamente relacionadas sobre esses aspectos:

No período colonial, a vida sem valor e, portanto, o corpo a ser colocado à

disposição pertencia, especialmente, ao negro africano. Atualmente, a

desvalorização da vida não parece estar confinada a uma categoria social específica.

Critérios sociais, raciais, regionais e de gênero podem fazer do pobre, do negro, do

nordestino e da mulher os alvos preferenciais dessa desvalorização, o que é

acentuado quando suas vidas são percebidas como parte daquele processo de

desenraizamento social. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195).

Para a construção de instrumentos normativos e políticas públicas de qualidade,

que possam oferecer suporte adequado no tratamento às vítimas de tráfico de pessoas, deve-

Page 111: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

109

se, portanto, considerar aspectos peculiares das vítimas em potencial. A questão que circunda

esses termos repousa no fato de que o sujeito violentado é por vezes considerado ―escória

social‖, um estranho, ou mesmo um ―indesejável‖, por se tratar de uma prostituta, um travesti

ou um imigrante irregular, com origem em país pauperizado.

Esse entendimento enviesado tem culminado em políticas de deportação de

imigrantes e perseguição de garotas e garotos de programa. Tais políticas, por vezes

mascaradas em campanhas de combate e prevenção ao tráfico de seres humanos, tem ganhado

visibilidade no contexto contemporâneo. Reportagens recentes evidenciam, por exemplo, que

a Espanha tem impedido a entrada de mulheres brasileiras no seu território, impulsionada pela

discriminação de que elas possam estar indo exercer a prostituição naquela localidade:

Apesar de ter um advogado contratado pelo noivo e mostrar à polícia todos os

documentos requisitados - passaporte em vigor, 500 euros em dinheiro, seguro de

saúde, passagem de volta e reserva de hotel - a brasileira foi deportada. [...] Segundo

o noivo dela, José Lupiañez, a polícia disse que alguns documentos eram inválidos

por serem cópias sem demonstração dos originais, mas a razão da inadmissão teria

sido outra.

"Para mim, foi um caso de xenofobia mesmo, porque aqui (na Espanha) virou moda

dizer que os brasileiros vêm para cometer delitos, vêm para se prostituir e que todo

mundo que entra, quer ficar", disse Lupiañez à BBC Brasil. (BBC Brasil, 11 de

janeiro de 2010).

A Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude

(Asbrad) também aponta elementos que evidenciam a discriminação acentuada por parte do

controle migratório, justificadas por eles como iniciativas de ―proteção‖ ao viajante:

A discriminação de gênero no país de destino aparece com frequência nas narrativas

das mulheres deportadas e inadmitidas, que dizem terem sido tratadas como

prostitutas e por isso discriminadas, não só por funcionários de migração, mas

também pelos cidadãos estrangeiros. No caso das pessoas inadmitidas, percebe-se a

ausência de critérios para o impedimento de entrada no país de destino, o que abre

brechas para o abuso de autoridade e ações discriminatórias. O argumento da polícia

migratória estrangeira, principalmente a de países europeus, é que a pessoa sem

dinheiro torna-se ―vulnerável‖. Assim, a devolução dessas pessoas ao país de origem

teria o caráter de ―proteção‖ ao viajante. (ASBRAD, 2008, p. 256).

O discurso em prol da erradicação do tráfico de seres humanos se articula à tais

iniciativas, tendo em vista a forte correlação equivocada estabelecida entre a prostituição e o

tráfico de pessoas. A Asbrad (2008), ao apresentar o discurso de mulheres que foram

inadmitidas pela barreira migratória por terem sido consideradas prostitutas, considera: ―O

Page 112: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

110

discurso antitráfico que relaciona tráfico de pessoas à prostituição fortaleza tais ações

antimigratórias e xenofóbicas.‖ (IDEM, p. 257).

Representantes do governo brasileiro direcionam reiteradas críticas às ações de

combate ao tráfico de pessoas no exterior, como por exemplo, o ex-ministro da Justiça Luiz

Paulo Barreto, que de acordo com o boletim eletrônico da Agência do Estado declarou em

evento nacional sobre a temática:

[...] em muitas nações as penalidades recaem sobre os imigrantes ilegais e não sobre as

quadrilhas internacionais especializadas em tráfico de seres humanos. "Alguns países

ainda tentam criminalizar esse problema sob a ótica da vítima como co-autora do delito",

disse Barreto, durante abertura do I Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas, em Belo Horizonte. (AGÊNCIA DO ESTADO, 2010).

Entretanto, essa prática xenofóbica também é relatada no território nacional, tanto

em relação aos bolivianos que tem sido escravizados nas fábricas de costura do sudeste do

país, como nordestinos que vão exercer a prostituição (forçada eu não) em cidades como Rio

de Janeiro e São Paulo. Com relação aos primeiros, Silva (2006) coloca:

O problema da indocumentação tem sido um dos grandes desafios para os

imigrantes mais pobres no Brasil, particularmente para os bolivianos(as), uma vez

que o Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980 por decurso de prazo e num

contexto de Segurança Nacional, só permite a entrada de mão-de-obra especializada

e de empreendedores no país. (SILVA, 2006, 163).

Hazel (2008) alerta para a necessidade de se articular políticas diferenciadas no

enfrentamento de problema tão complexo, com vistas a garantir e preservar os direitos

daqueles mais afetados nessa situação:

Há três tipos de políticas que devem ser consideradas quando se trata de tráfico de

pessoas: políticas econômicas, políticas de migração e políticas de enfrentamento ao

tráfico de pessoas. As últimas só terão algum efeito se as outras duas estiverem em

consonância, fortalecendo as pessoas, ampliando suas oportunidades e acesso aos

seus direitos e tendo uma escolha real de permanecer num lugar ou de migrar.

(HAZEL, 2008, p. 23).

Contudo, na prática, essas políticas tem se operacionalizado de forma bastante

distanciada do ideal proposto. A perseguição de garotas de programa, por exemplo, tem

inclusive sido amplamente noticiada no Estado do Ceará como formas de combate ao tráfico

de pessoas. Podemos citar uma matéria, publicada em 2009, com os seguintes dizeres: “GGI58

58

GGI é a sigla que designa o Gabinete de Gestão Integrada. A estrutura, coordenado pela Secretaria de

Segurança Pública e Defesa Social, conta com a participação de inúmeros órgãos, dentre eles com o antigo

Page 113: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

111

prende cinco pessoas acusadas de prostituição‖ (Diário do Nordeste, 2009, p. 14) 59

. O título do artigo denota

que as pessoas foram presas por prostituir-se, e não que foram detidas aquelas que exploravam a prostituição de

outros. No texto, contudo, há a seguinte informação:

"Identificamos donos e gerentes de bares que funcionavam apenas de fachada e, na

verdade, eram bordéis. Nestes locais encontramos 11 mulheres que estavam sendo

submetidas a exploração e tinham sido cooptadas em outros Municípios. Havia até

uma mulher do Pará", destacou Eline Marques, coordenadora do Escritório de

combate ao tráfico de seres humanos. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2009, p. 14).

Outra matéria que descreve as atividades do Escritório de Enfrentamento e

Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência a Vítima (EEPTSH) possui o seguinte

subtítulo: “Quinze garotas com idades entre 23 e 30 anos foram encontradas nos locais. Elas

prestarão depoimento à Polícia.” (DIÁRO DO NORDESTE, 2009)60

. No corpo da matéria as

seguintes informações:

As garotas, de acordo com ela, são de Tejuçuoca, Canindé e Acopiara, o que

caracteriza o tráfico de seres humanos. Elas têm idades entre 23 e 30 anos. ―Já temos

informação de que elas fariam show de streap tease em um dos pontos. De lá,

sairiam com os ´clientes´ para o outro local, onde funcionaria um motel.‖ (DIÁRIO

DO NORDESTE, 2009).

A impressão que gera a leitura do artigo é de que o fato dessas mulheres

praticarem a prostituição culminou na prestação de esclarecimentos junto à delegacia. Outro

ponto importante à ser frisado é o fato das matérias estarem sempre posicionadas no caderno

―Polícia‖, denotando o caráter sempre repressivo das atividades voltadas para esse público.

Sob essa perspectiva, fomentou-se a construção das políticas públicas de

enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Para prestar apoio e assistência às vítimas,

foram criados Escritórios de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos no

Brasil. Estes escritórios foram instalados nos quatro Estados (Ceará, Rio de Janeiro, Goiás e

São Paulo) em que se desenvolveu o projeto piloto de combate ao tráfico de seres humanos,

intitulado ―Medidas contra o Tráfico de Seres Humanos no Brasil‖, realizado pela Secretária

Nacional de Justiça e pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime.

Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima (EEPTSH), hoje

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP).

59

Matéria publicada em 22 de setembro de 2009 no caderno Polícia.

60

Matéria publicada no caderno Polícia, no dia 09 de junho de 2009.

Page 114: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

112

O principal objetivo destes Escritórios seria o de fornecer auxílio jurídico,

psicológico e social às pessoas traficadas no momento de retorno ao país. Este foi o primeiro

programa nacional voltado especificamente para as vítimas de tráfico. Ele, de acordo com os

parâmetros norteadores da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, pôde

servir tanto ao atendimento das vítimas de exploração sexual quanto as de trabalho escravo.

Hoje, contudo, como meio de unificar as ações propostas nos escritórios, sua terminologia foi

alterada para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sendo ainda criadas outras

sedes em diversos Estados no Brasil.

O próximo capítulo trata das pesquisas e respectivas análises documentais e dos

discursos baseadas no levantamento e entrevistas realizadas no Núcleo de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE).

Page 115: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

113

4. ANÁLISE DOCUMENTAL E DOS DISCURSOS: PERCEPÇÕES SOBRE OS

DADOS COLETADOS NO NETP/CE

4.1 Dados do Campo: Pesquisa e Análise Documental

Os processos arquivados no NETP/CE ficam situados na sede da instituição,

localizada na Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará. Eles são fruto de

denúncias recebidas, onde cada uma delas, seja de tráfico de pessoas ou não, se transforma em

um processo que deve ser encaminhado – se for o caso – e/ou acompanhado pela equipe

multidisciplinar do local.

Os documentos estão organizados na sala da coordenação do NETP/CE em

caráter de sigilo. A classificação deles é feita por ano de recebimento da denúncia e ordem de

chegada na instituição, por exemplo, a primeira denúncia recebida em 2003, figura como

processo 001/2003; a segunda está catalogada como 002/2003, e assim por diante. No ano

seguinte, 2004, a primeira denúncia figura como 001/2004, seguindo sucessivamente até o

ano de 2012, quando esta pesquisa documental foi concluída.

As gavetas do armário que acomodam os processos possuem igualmente

identificação da numeração e ano dos mesmos em etiquetas externas, sendo que na mesma

gaveta não estão organizados processos de anos diferentes. Em 2008, a equipe

multidisciplinar da estrutura iniciou a tarefa de catalogação desses processos numa planilha

do Microsoft Excel, atividade essa que inclusive participei e acompanhei, conforme ilustrado

no meu diário de campo: ―Conheci a estagiária de psicologia da tarde. Resolvemos começar

na sexta (amanhã) a organização e catalogação dos processos do Escritório. Lemos alguns

casos e recebi a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.‖ (Trecho do

Diário de campo do dia 06 de março de 2008).

Para essa pesquisa, utilizamos as informações cadastradas nessa planilha, que vem

sendo atualizada conforme novos processos vão sendo abertos. Nessa planilha, os processos

referentes à anos diferentes ficam em tabelas separadas por abas no mesmo arquivo do

Microsoft Excel. As colunas das tabelas estão dispostas da seguinte forma: número do

processo; delito; ano; nome da vítima; data de nascimento da vítima; idade da vítima; sexo da

Page 116: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

114

vítima; naturalidade da vítima; escolaridade da vítima; bairro que a vítima mora/morava;

nome do aliciador/agenciador; história sobre o caso e sentido do tráfico.

Para a construção dos dados apresentados à diante, a pesquisadora realizou

contagem de caso à caso, gerando números nos quais transformou em gráficos para facilitar a

visualização dos mesmos. Nesse sentido, iniciei a empreitada contabilizando os processos de

uma forma geral, culminando na construção da seguinte representação:

GRÁFICO 01 – NÚMERO DE PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE

ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

1 110

52

11

29

65

48

14 18

0

10

20

30

40

50

60

70

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de Processos Arquivados no NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

Conforme os dados acima apresentados, indica-se a quantidade total de 249

(duzentos e quarenta e nove) processos, distribuídos da seguinte forma: 01 (um) processo para

cada um dos anos de 2003 e 2004; 10 (dez) processos no ano de 2005; 52 (cinquenta e dois)

processos no ano de 2006; 11 (onze) processos no ano de 2007; 29 (vinte e nove) processos

no ano de 2008; 65 (sessenta e cinco) processos no ano de 2009; 48 (quarenta e oito)

processos no ano de 2010; 14 (quatorze) processos no ano de 2011 e 18 (dezoito) processos

no ano de 201261

.

O ápice no aumento de denúncias no ano de 2009 pode ter ocorrido em

decorrência do aumento do número de atividades realizadas em campo, tanto no que diz

respeito às campanhas de prevenção, como no que diz respeito às buscas ativas por meio do

Gabinete de Gestão Integrada (GGI). De acordo com dados coletados no NETP/CE em

relação à tais atividades, podemos constatar que enquanto em 2008 foram realizadas 12 (doze)

61

Em relação à 2012, refere-se até o dia 20 de dezembro.

Page 117: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

115

ações, em 2009 o GGI/CE solicitou a participação do NETP/CE em 28 (vinte e oito)

atividades, conforme demonstra gráfico a seguir:

GRÁFICO 02 - NÚMERO DE AÇÕES REALIZADAS PELO GGI/CE COM A

PARTICIPAÇÃO DO NETP/CE, POR MUNICÍPIO, EM 2009.

Fortaleza - 17Canoa Quebrada - 1Brejo Santo - 1Juazeiro do Norte - 1Crato - 1Várzea Alegre - 1Pindoretama - 1Ibicuitinga - 1Milagres - 1Canindé - 1Pacajús - 1Pena Forte - 1

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

Já no ano de 2010, as atividades realizadas pelo GGI/CE em que houve

participação do NETP/CE sofreram drástica queda62

, passando de 28 (vinte e oito) para

apenas 10 (dez). Todas essas últimas atividades foram realizadas na cidade de Fortaleza,

sendo 02 (duas) em boates de streeper no Bairro José Walter, 01 (uma) em barracas da Praia

do Futuro, 01 (uma) no Centro Cultural Dragão do Mar e arredores e 06 (seis) em eventos e

shows de grande porte na cidade, tais como Ceará Music e Fortal63

.

Essas ações tanto proporcionaram a abertura de novos processos no NETP/CE –

resultado de ocorrências identificadas – como, em alguns casos, tais atividade foram

divulgadas pela mídia local, o que aumenta a visibilidade da questão junto à população,

ocasionando no crescimento de denúncias espontâneas ao órgão, o que, consequentemente,

também culmina na abertura de novos processos pela estrutura.

Em relação ao ano de 2011, o GGI/CE suspendeu suas atividades, em parte, por

conta da mudança na figura do Secretário de Segurança Pública e Defesa Social. Em 2012 as

atividades foram retomadas, mas em virtude de mudanças na coordenação do NETP/CE e

devido ao caráter repressivo e ―policialesco‖ dessas atividades, o NETP/CE optou por não

participar mais dessas ações. Esse fato pode ter contribuído para a redução drástica no número

de denúncias recebidas, conforme demonstramos anteriormente no Gráfico 02.

62

Um dos motivos para a redução na participação do Núcleo nas atividades do GGI/CE ocorreu porque aquela

primeira instituição passou a ter dificuldades em conseguir veículo para transportar a equipe multidisciplinar

junto à SEJUS/CE;

63

O Fortal é um carnaval fora de época realizada todos os anos na cidade de Fortaleza, sempre no final do mês

de julho. Conta com atrações que se apresentam em trio elétrico e atrai uma quantidade considerável de turistas.

Page 118: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

116

Como meio de especificar melhor as informações, realizamos uma diferenciação

entre os processos especificamente voltados para casos, ou possíveis casos, de tráfico de

pessoas arquivados no NETP/CE, conforme demonstra o gráfico em seguida:

GRÁFICO 03 – NÚMERO DE PROCESSOS REFERENTES À CASOS E POSSÍVEIS CASOS DE

TRÁFICO DE PESSOAS ARQUIVADOS NO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

0 03

40

915

41

116

9

0

10

20

30

40

50

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de Processos arquivados e classificados como Tráfico de Pessoas pelo NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

De acordo com a leitura do gráfico, indicamos que nenhum processo de tráfico de

pessoas foi registrado entre os anos de 2003 e 2004; em 2005, contabilizamos 03 (três)

processos; 40 (quarenta) processos em 2006; 09 (nove) processos em 2007; 15 (quinze)

processos em 2008; 41 (quarenta e um) processos em 2009; 11 (onze) processos em 2010; 6

(seis) processos em 2011 e 9 (nove) em 2012, totalizando 134 (cento e trinta e quatro)

processos referentes à casos ou possíveis casos de tráfico de seres humanos.

Em primeiro lugar, destacamos a desproporção existente entre a totalidade dos

casos registrados como denúncia pela estrutura, em relação àqueles que realmente foram

considerados como casos ou possíveis casos de tráfico de pessoas. Isso pode ter ocorrido em

função da confusão conceitual que ainda existe na sociedade acerca da definição do que seria

considerado como tráfico de pessoas. Nesse sentido, figuram como denúncias no NETP/CE

situações de sequestro, exploração sexual de crianças e adolescentes, abuso sexual, estupro,

homicídio e, especialmente, funcionamento de bares, boates e casas de massagem que

favorecem a prostituição.

Em segundo lugar, enfatizamos que consideramos os processos como possíveis

casos de tráfico porque os elementos que têm sido levados em consideração para classifica-los

Page 119: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

117

pelos profissionais atuantes no Núcleo são bastante questionáveis. Uma das entrevistadas

nessa pesquisa, inclusive, ilustra a situação:

A gente sempre trabalha aqui com possíveis vítimas... possível vítima de trafico,

afinal quem vai dar o desfecho final ééé... geralmente são os órgãos policiais, que

vão julgar, [...] e aí é que se vai concluir se de fato foi tráfico ou não foi tráfico...

porque a gente sempre fica naquela suspeita, [...] as vezes o crime é meio que

invisível, a gente tem o relato da vítima, mas não tem provas, as vezes de fato

concretas, que deixem tão claro [...]. (Garça).

Outra entrevistada, a Lagosta, também coloca essa dimensão, proferindo as

seguintes considerações: ―[...] porque você sabe que isso é muito fluido, ás vezes a gente

considera um caso de tráfico, ás vezes não considera, tudo muda, é muito fluido ess... essa...

essa... catalogação aqui do Núcleo [...].‖ (Lagosta).

Destacamos ainda que essa questão também é identificada por outros

pesquisadores que analisaram dados referentes aos casos que têm sido considerados como

tráfico de pessoas em outras localidades do país. Silva e Blanchete (2010), em

posicionamento que defende a existência de poucos casos, alegam:

[...] embora as principais organizações e indivíduos que estudam o tráfico afirmem

orientar-se pela definição do Protocolo de Palermo (tráfico = exploração sexual de

outrem e violação de direitos humanos), em quase todas as ocorrências, a atual

contagem de casos ou rotas de tráfico é parcial ou totalmente baseada em casos

definidos como tráfico de acordo com o artigo 231 do Código Penal brasileiro

(tráfico = ajudar uma prostituta a se movimentar internacionalmente) [...] (SILVA;

BLANCHETTE, 2010, p. 158).64

Os autores alertam ainda que esses dados, na perspectiva deles coletados de forma

distorcida, por vezes são veiculados na mídia como casos comprovados de tráfico de pessoas,

o que ocasiona num panorama nacional fictício, que pressupõe a ocorrência maciça de casos

de tráfico para fins de exploração sexual no país. Contudo, os pesquisadores não refutam

completamente a existência de alguns casos:

Obviamente, existem casos de escravidão sexual no exterior que envolvem

brasileiras e que até envolvem prostitutas brasileiras. Todavia, pelo menos no

presente momento, as indicações são de que a maior parte daquilo que é tido em

nosso país como tráfico de mulheres, de fato, são pessoas que foram trabalhar,

64

Considerações mais aprofundadas sobre a confusão conceitual fomentada a partir da definição legal do tráfico

de pessoas no Código Penal Brasileiro e no Protocolo de Palermo estão expostas no terceiro capítulo desse

estudo.

Page 120: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

118

conscientemente e por livre e espontânea vontade no mercado do sexo no exterior.

(IDEM, p. 161).

A questão dos números referentes aos casos de vítimas de tráfico também é

questionada por Boaventura de Sousa Santos, et. al. (2009) no contexto internacional. Indicam

os autores que as estatísticas diferem em milhares de casos e que isso pode ocorrer pela não

consensual caracterização que cada instituição/pesquisador atribui ao fenômeno:

A maior ou menor abrangência do conceito de trafico sexual influencia, desde logo,

os números que são apresentados [...] Os números sobre o trafico sexual, seja a nível

nacional, continental ou mundial, dificilmente são sólidos e fiáveis, o que tem

conduzido a duas posições que, por serem extremadas, efectivamente pouco podem

ajudar as mulheres traficadas. Cada organização internacional presenteia‑nos com

números que podem divergir em milhares ou em milhões. Por um lado, temos

instancias que fazem referencia a números muito elevados; por outro, aquelas que

contestam esses números e que entendem que o trafico sexual é um fenômeno

residual. (SANTOS; et. al., 2009, p. 70)

Ao demonstrar as duas desproporções, a preocupação dos autores direciona-se às

formas de enfrentamento: se por um lado consideram-se milhões de casos, pode-se acarretar

na perseguição de imigrantes e prostitutas em nome do tráfico de pessoas. Se por outro lado

consideram-se casos escassos, pode-se acarretar na negligência ao atendimento, suporte e

assistência necessária às vítimas. (SANTOS; et.al; 2009, p. 70).

Para os autores, o cerne da questão reside na necessidade de se discutir o conceito

de tráfico e alinhar a legislação aos demais documentos internacionais e nacionais para que se

possa alcançar um consenso que culmine na elaboração e aplicação de políticas públicas

coerentes. Percebemos, portanto, que esses impasses são enfrentados à nível transnacional,

tendo em vista que Santos, et.al. (2009) refere-se ao contexto de Portugal, sendo o mesmo

paradoxo também identificado no Brasil, conforme temos discutido em alguns pontos da

nossa investigação.

Retomando a pesquisa documental, outro dado relevante refere-se ao destino

dessas pessoas, realizamos levantamento para identificar se os possíveis casos mais comuns

têm sido em relação ao tráfico interno ou ao tráfico internacional de seres humanos. Tráfico

interno refere-se aos casos onde as possíveis vítimas são deslocadas para localidades dentro

do território brasileiro, já no tráfico internacional, o deslocamento ocorre envolvendo

Page 121: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

119

territórios estrangeiros. Nesse direcionamento, demonstramos o levantamento realizado a

partir do seguinte gráfico:

GRÁFICO 04 – TIPO DE TRÁFICO DE ACORDO COM O LEVANTAMENTO DOCUMENTAL

REALIZADO NOS PROCESSOS DO NETP/CE

79

51

3 1Tráfico Interno

Tráfico Internacional

Tráfico Interno e Internacional

Indefinido

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

No que se refere às vítimas de tráfico de seres humanos, os processos descrevem,

em geral, mais de uma pessoa nessa condição em cada situação. Ou seja, um único processo

geralmente envolve mais de uma vítima. Nesse sentido, representamos o quantitativo de

pessoas em situação de tráfico de seres humanos entre os anos de 2003-2012 no gráfico

adiante:

GRÁFICO 05 – NÚMERO DE VÍTIMAS DESCRITAS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE PESSOAS

ARQUIVADOS NO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

3

71

16 15

52

124 7

0

20

40

60

80

2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de vítimas descritas nos processos de tráfico de pessoas arquivados no NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

Conforme descrito acima, os dados apontam para a quantidade de 03 (três)

vítimas descritas nos processos de 2005; 71 (setenta e uma) vítimas em 2006; 16 (dezesseis)

vítimas em 2007; 15 (quinze) em 2008; 52 (cinquenta e duas) em 2009; 12 (doze) em 2010; 3

(três) em 2011 e 07 (sete) em 2012. Não consideramos os anos de 2003 e 2004 porque não

foram contabilizados processos referentes ao tráfico de pessoas nesse período.

Page 122: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

120

Embora alguns processos envolvam mais de uma vítima, como anteriormente

frisado, em contrapartida, outros não possuem vítimas descritas. É o caso, por exemplo, de

um dos processos em 2011, onde descreve apenas ―crianças entre 06 (seis) e 10 (dez) anos de

idade‖, ou ainda dois processos de 2012, que referiam-se ao recrutamento de mulheres, sem

descrição específica de nenhuma delas, pois tratavam-se de relatos sobre a atividade de

possíveis quadrilhas.

Outro dado que merece destaque diz respeito ao sexo das vítimas descritas nos

processos. Nesse direcionamento, o levantamento documental demonstrou em números,

aquilo que já era bastante visível pela experiência vivenciada na prática cotidiana de atuação

da pesquisadora no NETP/CE: apenas três processos, num universo de 134 (cento e trinta

quatro) ocorrências catalogadas como possíveis casos de tráfico, descrevem situações

envolvendo homens como vítimas para fins de trabalho escravo laboral. As demais situações

processuais, até o momento de conclusão desse estudo, envolvem mulheres, adolescentes ou

travestis, com a finalidade de exploração no mercado do sexo.

GRÁFICO 06 – POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS, POR SEXO, DE ACORDO COM

OS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE

171

21

Mulheres

Homens

Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com esses dados, 171 (cento e setenta e duas) mulheres foram descritas

como possíveis vítimas de tráfico de seres humanos, enquanto apenas 21 (vinte e um) homens

estiveram nessa situação. Percentualmente falando, as mulheres apresentam um universo de

aproximadamente 87% dos casos de tráfico.

Outras pesquisas realizadas ao redor do país, e mesmo em outros países, já

demonstram que as mulheres e as travestis têm sido os principais alvos do crime de tráfico de

Page 123: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

121

pessoas, quando a prática tem por fim a exploração sexual. De acordo com um relatório

publicado pelo Ministério da Justiça, em 2010, têm-se o seguinte panorama:

A questão da desigualdade de gênero na relação de poder entre homens e mulheres é

um forte componente do crime do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual,

pois as vítimas são, na sua maioria, mulheres, meninas e adolescentes. Uma pesquisa

realizada pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC),

concluída em 2009, indicou que 66% das vítimas eram mulheres, 13% eram

meninas, enquanto apenas 12% eram homens e 9% meninos. (MINISTÉRIO DA

JUSTIÇA, 2010, p. 23).

No que diz respeito à faixa etária descrita nesse universo feminino, e aqui

consideramos apenas as mulheres, elaboramos a seguinte representação gráfica:

GRÁFICO 07 – FAIXA ETÁRIA DAS MULHERES POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA FINS

DE EXPLORAÇÃO SEXUAL NOS PROCESSOS DO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

2 4

10

19

46

15

6

00

10

20

30

40

50

0 à 9 anos 10 à 12

anos

13 à 15

anos

16 à 18

anos

19 à 25

anos

26 à 30

anos

31 à 40

anos

Acima de

40 anos

Faixa Etária

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com a projeção acima, temos 02 (duas) mulheres com idades entre zero

e nove anos; 04 (quatro) com idades entre 10 e 12 anos; 10 (dez) com idades de 13 à 15 anos;

19 (dezenove) com faixa etária de 16 à 18 anos; 46 (quarenta e seis) com idades de 19 à 25

anos; 15 (quinze) com faixa etária de 26 à 30 anos; 06 (seis) com idades entre 31 e 40 anos;

por fim, nenhuma possível vítima esteve classificada com faixa etária acima de quarenta anos

de idade nos processo.

Observa-se predominância existente entre às idades de 19 e 25 anos, o que

corrobora com outras pesquisas já realizadas sobre tráfico de mulheres que apresentam o

perfil dessas vítimas como jovens mulheres. Uma pesquisa realizada pela união Europeia em

Page 124: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

122

parceria com o Ministério da Justiça, publicada em 2011, realizou as seguintes considerações

sobre o perfil das mulheres vítimas do fenômeno para fins de exploração sexual, levada para

países da Europa: ―Com efeito, as equipes de pesquisa encontraram alguns elementos comuns

e possíveis indicadores, tais como: baixa escolaridade, expectativas reduzidas de mobilidade

social e faixa etária entre 20 e 30 anos [...]‖ (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p. 16).

No que se refere à naturalidade das mulheres descritas como possíveis vítimas de

tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, elaboramos a seguinte representação:

GRÁFICO 08 – NATURALIDADE DAS MULHERES POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA

FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL DESCRITAS NOS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE.

0 10 20 30 40 50 60 70

Piauí

Maranhão

Ceará

Rio Grande do Norte

Pernambuco

Bahia

Alagoas

Pará

Amazonas

Distrito Federal

Roraima

Amapá

Mato Grosso

São Paulo

Naturalidade

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

Destaca-se uma predominância de mulheres com naturalidade cearense,

distribuídas da seguinte forma: 33 (trinta e três) de Fortaleza; 03 (três) de Juazeiro do Norte;

02 (duas) do Crato; 02 (duas) de Iguatu; 02 (duas) de Boa Viagem; e 01 (uma) para cada um

dos municípios de Antonina do Norte, Mauriti, Jardins, Apuiarés, Croatá, Brejo Santo,

Crateús, Barbalha, Assaré, Campos Sales, Missão Velha, Aquiraz, Jucás, Itapipoca, São

Gonçalo do Amarante e Paraipaba.

Page 125: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

123

Todos os outros Estados possuem pequena representatividade, inferior à 10(dez)

casos, com destaque para o Maranhão, com 07 (sete) mulheres; Pernambuco, com 05 (cinco)

mulheres; e o Piauí com 04 (quatro) mulheres. Destacamos que desses Estado, apenas há

existência de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em Pernambuco65

.

No que diz respeito à escolaridade das mulheres vítimas/possíveis vítimas de

tráfico para fins de exploração sexual descritas nos processos do NETP/CE, apenas em 24

(vinte e quatro) delas possuem informações à esse respeito, distribuídas da seguinte forma:

GRÁFICO 09 – ESCOLARIDADE DAS MULHERES VÍTIMA/POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO

PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL CATALOGADAS NOS PROCESSOS DO NETP/CE

6

5

4

6

3

Ens. Fundamental Incompleto

Ens. Fundamental Completo

Ens. Médio Incompleto

Ens. Médio Completo

Ens. Superior Incompleto

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com a representação acima demonstrada, podemos inferir que a maior

representatividade das vítimas/possíveis vítima possui baixa escolaridade, tendo em vista que

aquelas que declaram possuir Ensino Fundamental Incompleto e Completo representam a

maior parte dos casos. É importante destacar ainda a existência de mulheres que possuem o

Ensino Superior Incompleto, o que pode indicar um novo perfil de mulheres sendo recrutadas.

Programas de Governo, tais como o Programa Universidade para Todos (Prouni),

ou mesmo as políticas de cotas, que facilitam o acesso das camadas populares ao ensino

superior, podem ter relação com essa presença de mulheres vítimas/possíveis vítimas de

tráfico que declaram Ensino Superior Incompleto, tendo em vista que a grande maioria dos

estudos que tratam da questão do tráfico de pessoas apontam para um perfil de vítimas que

possui baixa renda familiar.

65

A lista dos NETP‘s em funcionamento no país pode ser conferida no site do Ministério da Justiça.

Page 126: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

124

Inclusive, embora o NETP/CE não catalogue informações em relação à renda

familiar dos casos atendidos, a vivência cotidiana da pesquisadora como profissional da

instituição atesta para a predominância de mulheres vítimas/possíveis vítimas em situação

socioeconômica precária.

No que se refere ao estado civil, em 55 (cinquenta e cinco) mulheres

vítimas/possíveis vítimas possui essa informação discriminada, contribuindo para a

elaboração do seguinte gráfico:

GRÁFICO 10 – ESTADO CIVIL DAS MULHERES VÍTIMAS/POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO

PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL DE ACORDO COM OS PROCESSOS DO NETP/CE

50

4 1

Solteiras

Casadas

Separadas

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012

Dessa forma, há uma maior representatividade de casos onde as mulheres estão

identificadas como solteiras, perfazendo um percentual de aproximadamente 91 % dos casos.

Tal realidade pode ocorrer porque favorece a probabilidade da vítima aceitar a proposta do

aliciador, pois é um fator que reduz os vínculos que possui com o local de origem, além de

fortalecer a ilusão na busca por um príncipe encantado.

Em relação aos agressores, o levantamento apontou um universo de 86 (oitenta e

seis) homens envolvidos, enquanto a quantidade de mulheres nesse papel foi de 45 (quarenta e

cinco). Dentre os homens exploradores identificados no relato das vítimas, 30 (trinta) foram

apontados como estrangeiros, cuja maior parcela de nacionalidade foi de italianos, nesse

sentido, evidencia-se que a maioria dos envolvidos com os possíveis casos de tráfico de fato

são brasileiros.

Page 127: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

125

Em relação à nacionalidade dos exploradores, outras pesquisas indicam a

predominância de brasileiros na atividade, sem contudo excluir a atuação de estrangeiros,

conforme atesta a publicação da Organização Internacional do Trabalho (OIT):

Quanto à nacionalidade, encontra-se a presença tanto de brasileiros como de

estrangeiros. Enquanto que a pesquisa MJ-UNODC traz larga predominância de

brasileiros entre os os indiciados (88,2%), a Pestraf aponta que 32,3% dos

recrutadores identificados em reportagens da mídia são do exterior (Espanha,

Holanda, Venezuela, Paraguai, Alemanha, França, Itália, Portugal, China, Israel,

Bélgica, Rússia, Polônia, Estados Unidos e Suíça). (OIT, 2005, p. 24).

Frisamos ainda que muitos processos não são conclusivos ou não possuem dados

consistentes em relação a esses sujeitos, por vezes indicando apenas o primeiro nome ou

apelido pelo qual era conhecido pelas vítimas ou denunciantes. Como forma de ilustrar o

levantamento realizado, construiu-se a seguinte representação gráfica:

GRÁFICO 11 – POSSÍVEIS AGRESSORES DE TRÁFICO DE PESSOAS, POR SEXO, DE ACORDO

COM OS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE

86

45

Homens

Mulheres

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

A superior representatividade do universo masculino em detrimento do feminino

no papel de explorador e a relação inversa estabelecida quando se trata de vítimas, demonstra

a já indicada e inegável existência da violência de gênero que permeia a realidade do tráfico

de pessoas no Estado do Ceará. Isso sem mencionar a demanda eminentemente masculina,

embora não tenhamos dados numéricos no NETP/CE que possam indicar essa afirmação, a

vivência de campo e a experiência da pesquisadora atestam esse fato.

Contudo, essa não tem sido realidade identificada apenas entre os

agressores/aliciadores no Estado do Ceará. Uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional

de Justiça à âmbito nacional, em 2004, relatou às seguintes informações: ―Ao contrário do

que se pode notar no tocante às vítimas, com relação aos acusados há uma variação expressiva

Page 128: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

126

no que diz respeito ao gênero, majoritariamente composto por homens.‖ (SECRETARIA

NACIONAL DE JUSTIÇA, 2004, p. 30).

Embora os dados disponíveis nos processos do Núcleo não tenham nos permitido

identificar a faixa etária desses agressores/aliciadores, indicamos os dados da mesma pesquisa

acima referenciada: ―Se há uma predominância de vítimas mais jovens, embora aqui a falta de

informações sobre a qualificação dos acusados também seja notada, presencia-se que a

maioria dos implicados possui mais de 30 anos de idade.‖ (IDEM, p.31).

Dessa forma, de uma maneira geral e com base no levantamento documental

apresentado, podemos concluir que o perfil das possíveis vítimas de tráfico registradas pelo

NETP/CE têm sido eminentemente feminino, com as mulheres representando em média 87%

dos casos, com faixa etária predominante de 19 à 25 anos de idade, recrutadas em sua maioria

para outras localidades dentro do próprio país (tráfico interno), com naturalidade

especialmente cearense, com especial destaque para a cidade de Fortaleza (33 casos), com

baixa escolaridade e solteiras.

Destacamos que existe a necessidade de incluir outras informações importantes no

momento do preenchimento dos dados processuais no NETP/CE, como por exemplo, raça,

religião, renda familiar, quantidade de filhos, pois são elementos importantes para construir o

perfil das vítimas/possíveis vítimas, indicando dados relevantes que podem auxiliar no

direcionamento de ações de prevenção e enfrentamento da questão.

Em relação aos agressores, não foi possível construir um perfil satisfatório, haja

vista a quantidade escassa de informações contidas nos processos analisados. Pudemos apenas

identificar que eles têm sido apontados pelas denúncias, em sua grande maioria, como do sexo

masculino e de nacionalidade brasileira. Ressaltamos que a predominância do sexo masculino

nessa posição, associada ao caráter predominante de mulheres na situação de

vítimas/possíveis vítimas, aponta para a perspectiva da violência de gênero.

O tópico a seguir apresenta a análise dos discursos baseada nas falas dos(as)

profissionais entrevistados(a) no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado

do Ceará. Ressaltamos que tal discussão apresenta apenas um recorte daquilo que pôde ser

percebido através da coleta desses dados, não indicando, de forma alguma, uma verdade

Page 129: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

127

absoluta, tendo em vista as inúmeras condições e variáveis, especialmente aquelas para mim

desconhecidas, que eventualmente possam ter interferido no pronunciamento dessas pessoas.

4.2. Oralidade em questão: análise das entrevistas

Os aspectos orais que proporcionaram a análise exposta nesse capítulo foram

coletados através de entrevistas semi-estruturadas66

, realizadas na sede do Núcleo de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará67

. Esse tipo de entrevista considera

algumas poucas perguntas previamente formuladas e admite a inclusão de outros

questionamentos durante a coleta do depoimento, conforme anteriormente especificado no

primeiro capítulo dessa pesquisa.

As entrevistas foram realizadas ao longo do ano de 2012, com exceção da

primeira delas que foi efetivada ainda em 2011. As duas entrevistas posteriores à primeira

ocorreram entre os meses de março e maio de 2012, e as três últimas entre os meses de

novembro e dezembro, representando um total de seis entrevistas. Por conta dos objetivos do

estudo, convidamos para participar apenas os profissionais do NETP/CE que realizam o

atendimento das vítimas de tráfico de pessoa: assistente social, psicólogas, e bacharéis em

direito68

. Nesse sentido, apresentamos o seguinte gráfico de entrevistas quanto à formação

profissional:

GRAFICO 12 – PROFISSIONAIS DO NETP/CE ENTREVISTADOS(AS)

2

1

3

Psicóloga

Assistente Social

Bacharel em Direito

Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

66

As entrevistas foram gravadas mediante prévia autorização dos(as) interlocutores(as)

67

Secretaria da Justiça e Cidadania, Rua Tenente Benévolo, nº 1055, Meireles.

68

Foram entrevistadas duas coordenadoras que possuem formação em Direito, uma que esteve à frente do

NETP/CE entre o período de março de 2011 à março de 2012, e outra que assumiu a função em abril de 2012 e

encontrava-se nela até o momento da conclusão desta pesquisa. As(os) outros(as) dois bacharéis em direito

trabalham junto à equipe multidisciplinar do local.

Page 130: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

128

No que se refere ao sexo dos componentes da equipe multidisciplinar, é composta

pela maioria de mulheres, sendo apenas um dos profissionais do sexo masculino. Em relação

à faixa etária, as idades oscilam entre 24 e 35 anos, com exceção de uma das profissionais que

possui mais de 40 (mais especificamente 44 anos). No tocante à renda familiar, 02

entrevistados(as) declararam renda superior à 10 salários mínimos; 02 participantes

declararam entre 07 e 10 salários mínimos; 01 declarou entre 04 e 06 salários mínimos e 01

não declarou essa informação.

Cinco dos entrevistados se declararam católicos(as), tendo duas delas enfatizado

que são praticantes, ou seja, frequentam periodicamente a igreja e seguem os preceitos

religiosos. Em relação ao estado civil, 03 profissionais explanaram que são casadas; 02

afirmaram serem solteiros(as); 01 não apresentou essa informação. No que se refere à cor da

pela, 04 se declararam como pardos(as); 01 como branca e 01 não apresentou esse dado.

Em relação à definição da cor de pele, podemos nos referir às palavras de

Schwartzman (1999), em interpretação às ideias defendidas por Oracy Nogueira:

No Brasil, [...] ao contrário, a cor da pele, mais do que sua origem, definiria as

pessoas socialmente — e serviria de base para preconceitos e discriminações. Isto

permitiria que as pessoas "passem" com mais facilidade de uma categoria racial a

outra e, ao mesmo tempo, reduziria a coesão e identidade interna dos grupos étnicos

ou raciais. (SCHWARTZMAN, 1999, p. 84).

Nesse sentido, negros(as) e descendentes africanos(as) passam a identificar-se

com frequência com o pardo(a), pois é uma categoria não definida – nem negro, nem branco

– portanto neutra, esconjurando qualquer relação que possam ter com a origem ―maldita‖ e

discriminada historicamente.

Retomando nossa discussão, diante do compromisso em resguardar a identidade

dos(as) sujeitos(as) colaboradores nas entrevistas, atribuímos nomes fictícios escolhidos

aleatoriamente com base em animais que podem ser encontrados na fauna brasileira, sendo

nossos(as) entrevistados(as) nomeados de Seriema, Arara, Iguana, Arraia, Lagosta e Garça.

Dessa forma, independente de qualquer dimensão valorativa, nos reportaremos à nossos(as)

interlocutores(as) de acordo com a nomenclatura do animal que o(a) representa, sem com isso

intencionar qualquer associação de personalidade ou moral.

Page 131: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

129

Devido aos objetivos do estudo, todos os questionamentos realizados estiveram

centrados na tentativa de identificar a compreensão dos(as) participantes em relação ao tráfico

de mulheres para fins de exploração sexual e sobre o cotidiano de atendimento e identificação

dos casos. Tento em vista tais considerações, a primeira solicitação – após a assinatura do

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorização para gravação da entrevista e a

coleta de informações acerca do perfil pessoal – foi que os(as) participantes relatassem a

experiência profissional individual vivenciada no NETP/CE desde o momento da contratação.

Todas as(os) entrevistadas(os) relataram que tiveram dificuldades para

desempenhar atividades quando ingressaram na instituição. Cinco delas(es) atribuíram essa

dificuldade à falta de conhecimento em relação ao fenômeno e metodologia de atendimento.

Nesse sentido, a Iguana, por exemplo, discorre sobre a seguinte situação: ―De início era um

pouco confuso, eu até tava falando essa semana sobre isso, [...] que no começo a gente nem

sabia direito qual era nossa função [...]‖ (Iguana).

A entrevistada indica ainda que não teve à quem pedir orientação quanto à esses

atendimentos, foi apenas ao participar de uma oficina sobre o assunto, um ano após sua

contratação, em seminário promovido pelo Instituto Aliança69

em parceria com a

Universidade Estadual do Ceará (UECE) e com a Secretaria de Direitos Humanos do

Município de Fortaleza70

, que pôde esclarecer algumas dúvidas, pois nesse evento estiveram

presentes profissionais ligados à uma ONG na Bahia que tinham experiência na questão.

A Seriema também expressa situação dificultosa semelhante, enfatizando

inclusive que embora possuísse ampla experiência em outras instituições, nunca havia tido

contato com nada semelhante ao tráfico de pessoas:

[...] na verdade o meu início do trabalho aqui no Núcleo né, foi realmente um

desafio, [...] quando cheguei na área de direitos humanos [...] foi uma novidade

assim e a gente sabe que é um leque, um leque de informações, né... e quando assim,

especificamente o trab... é... trabalhando no tráfico de pessoas, isso foi um desafio

bem maior, porque eu não conhecia a temática, tive que estudar, tive que pesquisar,

né... pra falar realmente e entender como é que se deu todo esse processo né [...]

(Seriema)

69

Instituto sem fins lucrativos intitulado como Organização da Sociedade civil de Interesse Público (OSCIP)

para mais informações, visitar o endereço eletrônico da organização: http://www.institutoalianca.org.br/. O

evento foi realizado como etapa do Projeto Disseminação.

70

Projeto Disseminação, ocorrido em Fortaleza nos dias 13 à 15 de julho de 2009.

Page 132: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

130

Outro elemento importante de ser ressaltado é que embora não tenham sido

questionadas diretamente sobre isso, todas as entrevistadas afirmaram que não receberam

nenhum tipo de treinamento ou capacitação específica promovida pela instituição que às

contratou, conforme saliente a Garça: ―[...] eu acho que a gente deveria passar por mais cursos

de capacitação, de... atualização, de re... eu mesmo estou aqui e nunca participei de nenhum

[...]‖ (Garça, grifo nosso).

A dificuldade inicial de atuação relatada pelas entrevistadas, além da relação com

a falta de capacitação, pode também estar relacionada à proposta pioneira de atividades

desenvolvidas pelo NETP/CE, primeira estrutura específica, em âmbito estadual, direcionada

ao enfrentamento do tráfico de pessoas. Contudo, a situação poderia ter sido amenizada se um

treinamento tivesse sido oferecido à esses(as) profissionais, o que na realidade constitui-se

como agente fundamental para garantir a oferta de um serviço de qualidade. Embora, contudo,

não acreditemos que apenas a capacitação seria suficiente para sanar os impasses que

circundam a caracterização do crime, tendo em vista que os documentos oficiais são

ambíguos à esse respeito, abrindo precedentes para uma série de problemas de aplicabilidade

da política de enfrentamento.

Apenas uma entrevistada, a Arraia, relacionou sua dificuldade inicial de atuação

no NETP/CE ao perfil repressivo que a instituição havia assumido e que ela gostaria de

desconstruir, conforme relata no trecho apresentado a seguir:

Encontrei, logo no início, algumas dificuldades, algumas dificuldades de

relacionamento mesmo, tendo em vista o Escritório à época, né, assumir uma

postura bastante repressiva. Encontrei muitas portas fechadas, principalmente das

ONGs, de, da rede de assistência, né, pública e as vezes até mesmo privada, de

ONGs, etc. (Arraia)

A referida entrevistada enfatizou ainda que a oportunidade de trabalho surgiu em

decorrência de estudos que já possuía na área e como fruto de atuação voluntária que já havia

realizado na estrutura enquanto ainda Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres

Humanos e Assistência a Vítima. Elementos esses que certamente justificam a maturidade

discursiva em relação especialmente à concepção de tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual e quanto à atuação do Estado frente à questão, apresentadas em vários

Page 133: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

131

momentos nas considerações feitas por ela, quando por exemplo, identifica a confusão que

existe entre tráfico-prostituição-migração:

Mas combater o tráfico no meu entendimento e é algo que eu sempre levo nas

capacitações e é uma das minhas falas,, combater o tráfico de pessoas não é

combater a prostituição, combater o tráfico de pessoas não é combater o direito a

migração, é um direito nosso, conquistado, a gente tem que ir. Se a gente tem

possibilidade, hoje é sim, algo muito positivo a gente ter pessoas de classe pobre

viajando, ótimo [...] (Arraia).

A entrevista transcorreu com o questionamento do que cada participante

compreendia sobre tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Quando perguntamos

para a Iguana, por exemplo, ela tece as seguintes reflexões:

[...] da questão da exploração sexual... usar pra obter renda... né... aí no caso teria

que ter um transporte, porque pra ser o tráfico teria que ter algum deslocamento,

né... e existe uma grande dificuldade assim pra quem trabalha é... diferenciar um

pouquinho, por exemplo, porque tem um adolescente que ela é vítima de exploração

sexual, que a gente tá acompanhando, ela é... participa de algumas casas de

prostituição, mas ela não saiu nunca de Fortaleza, são casas daqui, e... hum... ela

mora num bairro.. e... hum... fica rodando nos bairros, então nesse caso ela não seria

vítima de tráfico, não é? Ela seria vítima de exploração, no caso ela teria que ir pelo

menos para outro município, pra Caucaia, pra ser vítima de tráfico... aí esse tipo de

coisa talvez, eu acho, teria que ser melhor definido né, porque o que é que acontece

hoje, a principal característica pra definir se a pessoa é pra exploração sexual

ou se é tráfico, é meramente o transporte de um município pra outro, é uma

questão geográfica, porque se essa menina tivesse num cabaré em Caucaia ela já

era vítima de tráfico. (Iguana, grifo nosso).

A Iguana consegue identificar como é conflituosa a definição do fenômeno,

tecendo inclusive considerações críticas à respeito dessa definição. Ela expõe, aparentemente

contrapondo-se à essa questão, que de acordo com a concepção normativa na qual está

baseado o trabalho da equipe, o que diferencia efetivamente a exploração sexual, ou mesmo a

prostituição, do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é meramente uma questão

de deslocamento. Ressaltamos que o afastamento do indivíduo de sua comunidade original é

um aspecto chave no fenômeno, contudo, não deve ser considerado o único, tendo em vista

que essa percepção pode acarretar em distorções na identificação da problemática.

As pesquisadoras Sales e Alencar (2010) posicionam-se acerca de elementos que

reportam à questão conflituosa dessa caracterização, aparentemente percebidos parcialmente

pela Iguana:

São as condições de realização da prostituição, em que pode ocorrer excessiva

exploração, somadas ao deslocamento para o qual se utiliza de engano, coação ou

Page 134: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

132

outros meios que caracteriza o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, e

não apenas o exercício da prostituição ou outra atividade ligada ao sexo, que muitas

vezes acontece de forma voluntária e em condições razoavelmente adequadas.

(SALES, ALENCAR, 2010, p. 57).

De acordo com essas autoras, identificar o tráfico de pessoas como diretamente

relacionado à migração de prostitutas têm sido utilizado como justificativa para impedir e

discriminar o deslocamento dessas mulheres: ―[...] mulheres que se deslocam são

implicitamente suspeitas de atravessarem fronteiras para propósitos sexuais [...] Assim,

mulheres e seus movimentos são vistos através da lente de criminalidade e estigma [...]‖

(IDEM, p. 57).

Já a Arara, quando questionada sobre sua compreensão em relação à definição do

tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, articula as seguintes considerações:

[...] ao meu ver, o meu conceito seria o deslocamento de uma determinada pessoa,

é... o o recrutamento né, o aliciamento também, existem todos os requisitos que

compõem a [trecho incompreensível] do tráfico, para fins de exploração sexual, para

ser alojada em uma casa, se existe uma terceira pessoa que ganh.. é.. que obtenha

uma vantagem econômica é... através dos programas que são realizados com

determinada garota, pra mim o tráfico seria isso, essa transferência, o alojamento,

recrutamento e até mesmo o aliciamento, dessa pessoa com fins de exercer

programas sexuais e uma terceira pessoa estar ganhando em cima dessa pessoa.

(Arara).

A referida entrevistada, conforme exposto, consegue explanar construções

coerentes acerca do fenômeno, entretanto, em momento algum apresentou que considerava a

legislação brasileira deficiente. Quando questionada acerca dos elementos que levava em

consideração para identificar os casos na prática, a entrevistada salienta:

Quando a gente vai analisar o...o...os requisitos que existem no Código Penal, todos

os requisitos que compõem o crime de tráfico interno de pessoas não é? Que no caso

seria o recrutamento, o alojamento, o aliciamento, e ver realmente, [bocejo]

configurar e visualizar que existe uma terceira pessoa tendo algum tipo de vantagem

sobre... em cima do programa realizado pela garota. (Arara).

Nesse sentido, para Arara, a caracterização parece ser realizada de maneira muito

clara e pouco questionável, bastando, conforme considera, seguir as orientações do Código

Penal Brasileiro (CPB). Contudo, é interessante mencionar que o CPB não prevê todas essas

etapas, pois considera como traficante aquele que promove ou facilita a entrada, no território

nacional ou internacional, de alguém que irá exercer a prostituição, sendo, por conclusão,

Page 135: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

133

considerada vítima aquela que se desloca com o auxílio de alguém para essa finalidade (se

prostituir).

Certamente a Arara repercute um discurso que ouviu falar, mas parece não saber

bem de onde é proveniente, acreditando ser próprio do CPB. Outra entrevistada que

apresentou em sua fala elementos podem indicar uma dissociação entre o documento que cita

e a definição contida nele foi a Dignidade. Quando questionada à respeito do que ela percebe

sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, coloca:

[...] é... esse é uma questão meio que eu penso que a Política Nacional ela tem que

ser reformulada na definição porque realmente para que as políticas comecem

realmente a se efetivar [...]. e que realmente precisa hoje, precisa realmente existir,

é... que a política seja modificada, a política nacional seja modificada para que

a definição do tráfico de pessoas ela possa realmente ter esse amplo

entendimento, pra que tenha política realmente pra efetivação desses atendimentos,

e que os encaminhamentos que nós realizamos eles possam ser concluídos [...]

(Seriema, grifo nosso)

Através do trecho exposto, evidencia-se que ela parece conseguir perceber a

existência de uma concepção pouco abrangente do tráfico de pessoas, contudo, a interlocutora

não relaciona essa deficiência ao Código Penal Brasileiro, mas à Política Nacional de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas71

, que na verdade, adota a mesma concepção do

Protocolo de Palermo, ou seja, admite as múltiplas finalidades de exploração no tráfico:

Art. 2º. Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão ―tráfico de pessoas‖

conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime

Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de

Pessoas, em especial Mulheres e Crianças [...] (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008,

p. 67).

Não ignoramos as circunstâncias pontuais das entrevistas, que podem ter sofrido

interferências como nervosismo do entrevistado, mau-humor, preocupações de cunho pessoal,

dentre outras, que possam ter interferido na construção das respostas. Contudo, não podemos

ignorar os dados coletados, que podem indicar colocações incoerentes, reflexo,

possivelmente, de profissionais despreparados, que possuem apenas conhecimento superficial

em relação ao contexto problemático no qual atuam.

71

Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006.

Page 136: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

134

Acreditamos que a incapacidade de diferenciar o conteúdo dos documentos

normativos com os quais trabalhamos pode ser um indicativo de conhecimento superficial dos

mesmos. Certamente a efetivação de estudos mais minuciosos sobre a temática – a partir de

pesquisas concluídas, artigos científicos, documentos normativos e legislação – associados às

práticas cotidianas, forneceriam os requisitos mínimos de indicação para a identificação dos

reais problemas conceituais que o fenômeno apresenta e os paradoxos de aplicação da lei.

Retomando os discursos da equipe, no que se refere a percepção que Seriema

possui sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a entrevistada coloca:

[...] a definição de tráfico acredito que seja é...é.... [breve pausa] falta de perspectiva,

falta de oportunidade, né, que as mulheres, hoje a gente fala assim mulheres, a gente

sabe que o perfil muda muito, não é só mulheres hoje, né... hoje a gente tem

homens, né... tem agora a...a...as travestis né, [...] né, porque assim, quando a gente

atende uma vítima a gente sente a necessidade de ter algo mais consistente pro

atendimento, pra se efetivar no atendimento, nós atendemos uma vítima, por

exemplo, e a gente não tem pra onde encaminhar, se for uma vítima acima de

dezoito anos a gente não tem pra onde encaminhar, então assim, essa definição que

eu faço é...é... assim, falta de oportunidade, eu acredito que, que sejam vítimas é...

é.... que já tem um histórico familiar né....[...] e que os encaminhamentos que nós

realizamos eles possam ser concluídos, [...] mas assim essa definição que eu faço

é...é... é no geral, né... então, não sei se eu contemplei a sua pergunta. (Seriema)

Por considerar a resposta pouco objetiva na definição do que a entrevistada

entende por tráfico de mulheres, reformulei o questionamento em busca de obter uma

construção discursiva mais coerente. Nesse direcionamento, tentei refazer a pergunta através

das seguintes palavras: ―Veja bem, na tua concepção, o que você diria que é o tráfico de

mulheres, o conceito mesmo, quais são as características do tráfico?‖. A partir disso,

obtivemos a seguinte resposta:

[longa pausa] pronto... [longa pausa] a...a... exploração, de um modo geral, a

exploração, [pausa] né... e ...e.... valha meu Deus... é porque quando chega assim

né... eu acho que... que... a exploração.... eu acho que falta de oportunidade, acho

que não sei, acho que é isso... mais ou menos, dá pra..... (IDEM)

Diante das considerações acima descritas, insisti mais uma vez no

questionamento. Na tentativa de conseguir coletar respostas mais claras, coloquei-me da

seguinte maneira: ―Perguntando de uma outra forma, vamos supor, aqui no seu cotidiano de

trabalho, quando chega uma pessoa para você fazer o atendimento, quais são os elementos

que você se baseia para definir se aquele é um caso de tráfico ou não?‖ Diante dessas

colocações, obtive as seguintes considerações:

Page 137: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

135

Pronto, a partir do recrutamento, né, das ofertas, das ofertas, que são... que são

oferecidas, né e que .... o recrutamento, o deslocamento, a gente sempre se baseia na

definição do...do... do que é o tráfico, né.... do recrutamento... do aliciamento e a

exploração, dentro outros, né... na conversa a gente vai é...é... no atendimento a

gente vai encontrando mais elementos, mais perguntas, a gente termina definindo,

né, o que é realmente esse tráfico de... de... de...pessoas né... mas assim a definição

maior eu acredito que seja a exploração, a partir do momento que... que há o.... e que

há também o...o...o dinheiro, eu acredito também que é uma das características que a

gente pode tá incluindo pra determinar... é... não é determinar, mas assim tá

caracterizando também como tráfico, um dos elementos né. Eu não sei se foi... se

contemplou.... (IBIDEM)

Podemos perceber, conforme acima exposto, que na construção da resposta dessa

entrevistada, a ênfase parece recair sobre o aspecto da exploração, resolvi então questioná-la

sobre o significado dessa palavra, quando obtive a seguinte resposta:

A... o abuso, o abuso sexual, né.... é.... deixa eu ver o que mais.... [pausa longa]

violência....né, a violência, [pausa breve] todo o tipo de violência, né.... e, deixa eu

ver o que mais a gente poderia tá.... o abuso... violência... acho que a falta de

oportunidade também, né.... acho que.... [pausa longa]. (Seriema)

Dessa forma, percebe-se, no discurso proferido pela Seriema, definições vagas e

imprecisas do tráfico, não só de mulheres para fins de exploração sexual, mas do fenômeno e

das características do mesmo de uma forma geral. Destacamos que essa falta de precisão pode

comprometer a atuação profissional, pois se a definição do fenômeno não é clara para o(a)

agente que o enfrenta, pode interferir no processo de identificação prática dos casos, assim

também como nas atividades preventivas, já que estas preveem, dentre outros elementos, o

conhecimento em profundidade da questão, tendo em vista que o objetivo delas é baseado

principalmente na disseminação de informações que caracterizam o fenômeno.

Na perspectiva da importância na identificação correta dos casos, uma publicação

do Ministério da Justiça, que trata dos critérios e fatores de identificação em situações de

tráfico de pessoas, menciona as seguintes considerações:

[...] deve-se ter em mente que a falha na identificação correta de pessoas traficadas

pode resultar na negação dos direitos fundamentais delas. E, portanto, de acordo

com o Relatório do Alto Comissariado das Nações unidas para os Direitos Humanos

sobre os Princípios e Recomendações de Direitos humanos e Tráfico Humano [...]

―Estados têm a obrigação de assegurar que a identificação possa e seja feita.‖

(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 21).

Ou seja, a identificação inadequada dos casos pode culminar em negligência às

verdadeiras vítimas de tráfico. Destacamos contudo, que com exceção da Seriema, as demais

Page 138: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

136

entrevistadas parecem conseguir articular um conceito de tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual relativamente coerente, embora em alguns momentos desses discursos

proferidos, seja possível perceber pontos que podem indicar certa insegurança e dúvida,

especialmente quando as perguntas realizadas são relacionadas ao contexto de prática

cotidiana desempenhada no NETP/CE.

Nesse sentido, solicitamos aos(as) entrevistados(as) que relatassem alguns casos

de tráfico que acompanharam enquanto profissionais do NETP/CE. Iguana, por exemplo,

relata a seguinte situação:

Deixa eu ver aqui...ó, teve um caso, ago... que a gente acompanhou, ano passado, de

um rapaz é... travesti, certo... que voltou de São Paulo e... foi, não foi caracterizado

assim... formalmente, porque ainda tá em inquérito o caso, mas foi até noticiado

que ele foi resgatado de um local onde existiam vários travestis que estavam sendo

explorados, né, exploração sexual, então no caso o que é que se suspeita, que é uma

rede de tráfico pessoas que atua nessa rota Nordeste-São Paulo né, então a gente

acompanhou esse rapaz, né, com... fizemos visitas, a mãe foi que pediu ajuda,

porque ele ligou pra mãe, pedindo ajuda, que não aguentava mais, e não tinha como

vir embora, porque tava devendo muito dinheiro pra pessoa que levou, devendo o

dinheiro do megahair que ele tinha, né... é... é... aí falou que tinha que levar uma

quantia de dinheiro por dia, se não levasse não podia nem entrar, tinha que voltar pra

continuar fazendo os programas, fazia vários programas por noite [...] (Iguana)

Iguana cita de fato uma situação que possui inúmeros indicativos que apontam

para o crime de tráfico de pessoas para fins sexuais: deslocamento (no sentido Fortaleza – São

Paulo) e a exploração sexual no destino final, com o agravante do que parece ser uma

servidão por dívidas e jornadas exaustivas de trabalho. Entretanto, logo no início de sua fala,

ela menciona a preocupação com a não conclusão do inquérito policial, o que dá a impressão

de que isso poderia ser para ela um elemento fundamental na caracterização do fenômeno.

Alguns estudos e pesquisas indicam que os inquéritos policiais voltados para os

possíveis casos de tráfico de seres humanos, como não poderia deixar de ser, estão submetido

às ambiguidades legais brasileiras, conforme salienta Oliveira (2008): ―Como não cabe ao

policial mudar as leis [...] ele opta por investigar o crime dentro das possibilidades oferecidas

pelo Código Penal.‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 135). Dessa forma, a referida conduta abre

precedentes para que situações bastante questionáveis possam ser enquadradas como tráfico

(como no caso de pessoas que de qualquer forma ajudam ou facilitam a migração de

prostitutas), enquanto outros não serão assim considerados (como é o caso daqueles

explorados para outros fins que não os sexuais).

Page 139: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

137

Através dessa argumentação, pretendo indicar que é bastante possível que os

inquéritos policiais, em muitas situações, não apresentem conclusão confiável àquilo que

nesse estudo consideramos efetivamente como reais casos de tráfico de seres humanos,

recomendando-se portanto, que não devem ser utilizados como parâmetro na definição do

existência da problemática.

Outra entrevistada, a Garça, quando solicitada para relatar alguns casos de tráfico

para fins de exploração sexual que acompanhou no NETP/CE, menciona a seguinte situação:

Certo... vou falar do caso de uma menina... em que ela foi traficada para a Holanda

eee... infelizmente, ela...aliás, felizmente ela conseguiu se livrar do aliciador que

levou e caiu nas mãos de outro aliciador... esse primeiro aliciador deixou ela numa

estação de metrô, e aí... sem ajuda...sem dinheiro... sem nada...apareceu uma outra

pessoa pra ajuda-la e ela caiu novamente na...na rede do tráfico... e ela voltou ano

passado, grávida...de um...de um árabe,[...] Depois de apanhar muuuito, ela tava

negando a fazer o que eles queriam, que era programas sexuais, apanhou, apanhou,

apanhou, apanhou... e aí levaram ela pro motel e aí exploraram ela no motel de todas

as formas, eu acho que era uns... dois ou eram três rapazes...e aí... largaram depois

ela numa estação de metrô. (Garça).

Já a entrevistada Lagosta, quando solicitada à discorrer sobre a mesma questão, relata

o seguinte caso:

[...] uma jovem que veio do Pará, claro que tem toda um contexto que ainda tá

sendo analisado pela Polícia Federal, mas é... unindo as várias versões que

surgiram e o que eu posso te compilar é: que a jovem.... saiu des...des..desse Estado,

com promessas de trabalhar no..no...no trabalho doméstico no Suriname, foi aliciada

por uma pessoa, por uma... uma mulher adulta que prometeu...se aproximou da

comunidade, ééé... se da...das amigas desse bairro dela, solicitando mão de obra pra,

pro trabalho doméstico no Suriname, só que hã... todos se organizaram, tiraram

passaporte... hã... organizaram roupas, malas, é, ganharam celular dessa pessoa, que

isso já seria parte do pagamento desse patrão que estaria aguardando cada uma

dessas meninas, no Suriname, eee no dia dessa partida, essa menina, essa jovem que

foi atendida aqui pelo Núcleo, relatou que já numa oportunidade no aeroporto ouviu

que teria ligações dizendo que ―prepara o garimpo, as meninas estão chegando, hoje

vai ter festa no garimpo‖.... então nesse ―hoje vai ter festa no garimpo‖, ela

realmente ficou muito assustada, muito abalada, aí já veio outra versão, que ela diz

que essa moça já estava com o passaporte de todas elas na mão, ela deu um salto e

conseguiu pegar justamente o seu passaporte.... e saiu correndo num contexto de

fuga, é... entrou dentro dum caminhão baú, que transportava água mineral,

garrafinhas pequenas, e dentro desse contexto de fuga pro Ceará, teria passado três

dias viajando e aqui no Ceará chegou para o Núcleo por meio da Delegacia do

Turista, [...] (Lagosta, grifo nosso)

Destacamos que, diante dos depoimentos, é possível perceber que as

entrevistadas, de uma forma geral, parecem conseguir relatar casos práticos, por elas

Page 140: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

138

acompanhados, que correspondem àquilo que consideramos nesse estudo como tráfico para

fins de exploração sexual.

Prosseguimos as entrevistas perguntando aos(às) profissionais se sentiam dúvidas

para identificar os casos de tráfico de pessoas na prática cotidiana de atendimento no

NETP/CE. Todos(as) se posicionaram de forma afirmativa. Em relação à Seriema, enfatiza as

seguintes observações:

Já, e aqui acontece muito, porque, por exemplo, recentemente, recentemente

assim...em torno de seis meses, atendemos uma vítima que ela chegou, contava uma

história, né... e... e assim, nós ficamos na dúvida no atendimento, toda a equipe ficou

na duvida.... ―meu Deus, será que é tráfico?‖, porque ela contava uma história pra

mim né... pra[...] ela contava outra, né, e pra [...] ela contava outra, e quando a gente

sentava pra... pra fazer um estudo de caso, as informações não batiam, ―não mais aí

ela fugiu‖.... daqui a pouco ela vinha e me contava outra história [...] (Seriema).

Embora essa participante admita dificuldades para identificar os casos no seu

cotidiano de trabalho, ela parece não conseguir associar esse fato à compreensão que ela

própria possui da questão (conforme demonstramos nas páginas 130-132 dessa pesquisa),

direcionando o motivo para os múltiplos relatos conflitantes que as possíveis vítimas

verbalizam nos atendimentos.

Apenas 02 (duas) das entrevistadas fizeram associação entre a dificuldade prática

de identificação dos casos de tráfico de pessoas com a deficiência legal. Uma delas foi a

Arraia, que possui formação em Direito, pós-graduação e desenvolve estudos na área do

tráfico de seres humanos. Arraia reporta ainda sua ênfase à identificação problemática e

preconceituosa realizada por aqueles que compõem a estrutura jurídica e de repressão na rede

de enfrentamento:

[...] a gente não consegue ter uma responsabilização, não consegue ter um inquérito

finalizado. [...] eu tenho os inquéritos, eu tenho alguns que a gente conseguiu

garimpar, que a gente conseguiu identificar, mas eu já vou lhe dizendo: são

pouquíssimos. [...] o Brasil é procurado, as vítimas estão aqui, as meninas estão

indo, né e os criminosos não estão sendo responsabilizados... o Brasil é um terreno

fértil pra atuação da rede de tráfico de pessoas, entendeu? E as vítimas sofrem com

isso. Eu vou bem denunciar se eu vejo que a polícia não ta nem aí? No lugar de me

escutar ela vai ficar é rindo da minha cara porque eu sou prostituta? Né? (Arraia)

A outra entrevistada que associou a dificuldade prática de identificação dos casos

com a deficiência legal foi a Iguana, conforme demonstraremos no recorte abaixo:

Page 141: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

139

Aí eu acho que a principal dificuldade é essa, a questão do conceito mesmo, que

talvez seja abrangente demais, ou muito restrito, eu nem sei... eu acho que tem que

ser estudado melhor, né? A questão da legislação que eu acho que tá muito é...

resumido, né.... na nossa legislação tá resumido. A questão mesmo da gente... da

questão da vontade da vítima, por exemplo né, que é a vontade da vítima é... é...

independe da vontade da vítima pra configurar tráfico, aqui no Brasil, independe,

né.... mesmo que ele... ela consinta, a pessoa pode ser enquadrada no tráfico, [...], aí

a gente fica “não mas, essa menina ela sabia que ia pra trabalhar e que ia ser

explorada lá”, então é tráfico? Não é Tráfico? É isso que é a discussão. (Iguana,

grifo nosso)

Contudo, embora essa entrevistada perceba que há algo errado com a definição

legal do fenômeno, ela demonstra dúvidas em definir se a lei é abrangente demais ou restrita

demais. Iguana discorre ainda, de forma aparentemente contraditória, sobre a questão do

consentimento ―dado‖ pela possível vítima, pois num primeiro momento afirma que o mesmo

é irrelevante para a caracterização do crime e logo depois faz as considerações acima

destacadas em negrito.

Percebe-se, portanto, elementos que podem indicar que a entrevistada compreende

uma definição teórica que estabelece o consentimento da vítima como irrelevante. Todavia, na

prática, ela expõe que fica em dúvida no momento dessa caracterização – ―[...] aí a gente fica

―não mas, essa menina ela sabia que ia pra trabalhar e que ia ser explorada lá‖, então é

tráfico? Não é Tráfico?[...]‖ (Iguana) –; e ao que parece, essa dúvida é partilhada com os

companheiros de atuação profissional, já que ela menciona que há uma ―discussão‖.

Nesse sentido, Iguana parece verbalizar um discurso oficial (irrelevância do

consentimento da vítima), mas estabelece um conflito entre aquilo que diz e aquilo que

pratica. Na realidade, uma análise mais cuidadosa das palavras dessa participante, talvez

pudesse evidenciar uma certa falta de atenção contida na afirmação que indica ser possível

uma pessoa consentir, de forma consciente e esclarecida, com uma situação de exploração.

Vários autores indicam que esse consentimento não deve interferir na

caracterização do crime, pois muitas vezes a vítima sabe que irá realizar programas sexuais,

mas não imagina em que condições irá fazê-lo. Nesse direcionamento apresentamos as

considerações de Kempadoo (2005):

[...] mulheres e meninas tentam mudar para o exterior consciente e voluntariamente

para melhorar suas vidas e as de suas famílias. O que essas mulheres muitas vezes

não sabem, ou às vezes aceitam tacitamente, são os perigos das rotas subterrâneas

que têm que usar para atravessar a fronteira, os custos financeiros, o tipo de

Page 142: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

140

atividades, as condições de vida e de trabalho na chegada, o alto nível de

dependência de um conjunto específico de recrutadores, agentes ou empregadores,

os riscos de saúde, a duração do emprego, seu status criminoso no exterior, a

violência e/ou períodos de detenção ou encarceramento que poderão ter que

enfrentar. (KEMPADOO, 2005, p. 63-64)

Assim, muitas das mulheres que estiveram inseridas em contexto de pobreza e

discriminação no local onde foram aliciadas, concedem um consentimento que deve ser

considerado como induzido, tendo em vista que uma oportunidade de trabalho, seja ela no

exterior ou em outras localidades ao redor do país, desponta para elas como possibilidade de

melhoria na qualidade de vida.

As colocações da entrevistada podem demonstrar um aspecto ainda mais gravoso:

uma discriminação direcionada àquelas pessoas pelo fato de parecerem ter consentido com a

situação de exploração sexual. Tal suposição nos remete às reflexões empreendidas por Judith

Butler (1998), ao analisar a forma como casos de estupro foram tratados pelo Estado norte-

americano. A autora indica que muitos advogados de defesa dos estupradores têm exposto a

vítima como sujeito ativo na ação, ou seja, o estupro ocorre em decorrência da exposição

dessas mulheres aos elementos da violência, nesse sentido, Butler (1998) coloca:

A categoria sexo funciona aqui como um princípio de produção e regulação ao

mesmo tempo, a causa da violação instalada como o princípio formador do corpo e

da sexualidade. Aqui sexo é uma categoria, mas não apenas uma representação; é

um princípio de produção, inteligibilidade e regulação que impõe uma violência

e a racionaliza após o fato. (BUTLER, 1998, p. 27, grifo nosso)

No caso do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a categoria

prostituta pode estar sendo colocada como aspecto que justifica a situação de violência. A

discriminação pode ocorrer, portanto, de duas formas: através de medidas que pretendem

evitar a migração autônoma delas para o exercício da venda de sexo, assim também como por

meio de posturas que banalizam a situação dessas mulheres em outras localidades apenas

porque ―consentiram‖ em se prostituir.

Retomando os discursos coletados, uma das entrevistadas, a Arraia, expõe que

considera a equipe com a qual trabalha despreparada, e expõe que muitas vezes as colegas não

tem paciência na escuta por falta de qualificação adequada, impossibilitando um atendimento

e acompanhamento que leve em consideração as especificidades que uma vítima de tráfico de

mulheres para fins de exploração sexual possui:

Page 143: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

141

[...] os profissionais que lidam conhecem, tendo esse contexto eles vão cuidar [...]

vão cuidar [...] de serem mais, mais pacientes na ouvida. Uma vítima de tráfico

dificilmente vai sentar na sua frente e contar tudo de primeira, ela não vai fazer isso.

Pelo contrário, ela vai tentar mentir pra você o máximo pra guardar pra ela aquela

realidade e não abrir mais pra ninguém. [...] porque ela tem medo [...]. É algo que

ela quer guardar pra ela. Então um profissional, um técnico que atende uma vítima

de tráfico de pessoas... tem que saber disso, não, ―Ai porque eu vou ficar com

raiva‖, [...] ―eu já insisti muito, ela não quis falar pra mim!‖. E ela não vai querer,

você vai ter que conquistar. Entendeu? Então é necessária a capacitação [...]

(Arraia).

Reafirmamos que apenas duas das entrevistadas explanaram acerca da questão da

fragilidade conceitual legal. As demais conseguem admitir que sentem dificuldades na prática

em identificar os casos, mas atribuem os motivos às mais diversas questões, tais como falta de

capacitação profissional, ―invisibilidade‖ do crime e relatos incoerentes das possíveis vítimas.

Um relatório internacional publicado pela Internacional Organizacion for

Migration (IOM) trata da complexidade em estabelecer parâmetros de identificação dos casos

de tráfico de pessoas à âmbito mundial, dificultando o trabalho dos agentes envolvidos no

enfrentamento:

[…] there is no formal process of identification and screening. The process of victim

identification is largely conducted on an ad hoc basis by a range of agencies

involved in the counter-trafficking effort, without much of a formal systematic

approach. As a result, a clear understanding of how to identify victims of trafficking

(or offenders) is currently lacking among a large part of the actors who are directly

or indirectly involved in the identification process.72

(IOM, 2005, p. 13).

Outro elemento que é interessante destacar refere-se à maneira como a Europa, na

perspectiva da entrevistada Arraia, tem percebido e enfrentado o tráfico internacional de

mulheres para fins de exploração sexual: ―Muito, muito mal. Quem atua são as ONG‘s.

Brasileira no exterior fica sob custódia do Estado um tempozinho e tal, até serem deportadas.‖

(Arraia). Contudo, a participante considera que tem havido avanços: ―[...] a gente já vê a

Itália, Portugal e Brasil sentando pra conversar. Em encontros em Brasília a gente já vê

presença de policiais da Espanha, de Portugal e da Itália, que são os principais destinos das

brasileiras.‖ (IDEM).

72

[...] não há nenhum processo formal de identificação e triagem. O processo de identificação das vítimas é

amplamente realizado numa base ad hoc [situacional] por uma série de agências envolvidas no esforço de

combate ao tráfico, sem muito de uma abordagem formal e sistemática. Como resultado, uma clara compreensão

de como identificar vítimas de tráfico (ou autores), não existe entre uma grande parte dos atores que estão

diretamente ou indiretamente envolvidos no processo de identificação. (Tradução livre da pesquisadora)

Page 144: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

142

Indicamos, entretanto, que a presença de policiais nos encontros brasileiros sobre

tráfico de pessoas, embora seja considerado um avanço pela entrevistada, na realidade pode

representar apenas uma maneira de articular a repressão na intercepção de mulheres que

queiram exercer a prostituição fora das fronteiras do Brasil, tendo em vista que nem mesmo

nosso Código Penal contradiz essa prática, muito pelo contrário, a definição vaga que consta

nesse documento legitima tal postura.

Nesse direcionamento, podemos indicar as conclusões de Piscitelli (2008), que

considera a legislação da Espanha extremamente questionável nesse sentido, ocasionando na

associação direta e frequente entre prostituição e tráfico de mulheres para fins de exploração

sexual:

[...] a obtenção de lucros da prostituição, mesmo envolvendo maiores de idade que

agem de maneira autônoma passou a ser delito e, de acordo com a Ley de Extrajería,

se considera delito favorecer a imigração ilegal, com agravante se o fim é a

exploração sexual (Cantarero, 2007). A confluência entre essas duas disposições tem

como efeito que presença massiva de estrangeiras na indústria do sexo, muitas vezes

não documentada, seja lida de maneira automática como vinculada a atividades

delitivas. (PISCITELLI, 2008, p. 51).

Salientamos ainda que a perseguição de prostitutas pode estar repercutindo numa

questão ainda mais gravosa: a preocupação dos países em deportar essas mulheres acaba

negligenciando os reais casos de tráfico, conforme atesta a fala de uma das entrevistadas na

Espanha por Piscitelli (2008), nomeada de Verônica pela pesquisadora:

As escravas, essas sim são vítimas. Conheci uma, o pai a vendeu com 16 anos. Isso

acontece muito com romenas e búlgaras. Na rua, uma delas começou a chorar, pedia

por favor que a tirássemos dali. Essas querem fugir, voltar, mesmo que sejam

deportadas, Não conheço nenhuma latina que tenha sido forçada. Mas procuram no

lugar errado, porque buscam vítimas de tráfico entre as que vêm porque querem [...]

(VERÔNICA apud PISCITELLI, 2008, p. 55).

A associação entre migração de prostitutas e tráfico de mulheres para fins de

exploração sexual repercute também nas atividades do NETP/CE, conforme explana a Arara.

Ao tratar de outros artigos penais como parte do trabalho desenvolvido pela equipe em ações

de busca ativa junto ao Gabinete de Gestão Integrada (GGI), a entrevistada expõe as seguintes

palavras:

Bom, no caso, o Escritório, que é a... na verdade atual Núcleo, é fica...ficaria

responsável por é... é.... é as vítimas, as vítimas, as garotas que são, são consideradas

traficadas para fins de exploração sexual né, a gente vai ficar no trabalho de ir nessas

casas de massagem, se existir, ou então esses cabarés que funcionam no município e

Page 145: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

143

a gente vai averiguar se existem garotas que são de outros municípios e que

estão ali com fins de realizar programas sexuais. Vai ser averiguado se...se existe

o, a, o fav... os artigos que estão tipificados no Código Penal, que é o favorecimento

a prostituição, o rufianismo, tráfico interno ou até mesmo o tráfico internacional.

(Arara, grifo nosso).

Diante de tais considerações, é possível perceber que o NETP/CE preocupa-se em

verificar a presença de meretrizes de outros municípios realizando programas sexuais, o que

pode ser, na verdade, simplesmente um indicativo de migração de prostitutas. Contudo, como

o Código Penal Brasileiro (CPB) considera essa prerrogativa como suficiente para tipificar o

tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, o NETP/CE parece agir em conformidade

com o mesmo.

Dessa forma, podemos inferir que o sujeito interlocutor assume, através da lei

(respaldo institucional), as condições necessárias para proferir determinado discurso.

Observamos que esse tipo de declarações está ―esvaziada do sujeito‖, na medida em que se

repete na fala de outros sujeitos, constituindo-se o que Foucault (2008; 1996) chama de

enunciados: ―[...] algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano;

modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma

posição definida a qualquer sujeito possível, [...] estar dotado, enfim, de uma materialidade

repetível.‖ (FOUCAULT, 2008, p. 121,122).

A relação estabelecida entre tráfico de mulheres para fins de exploração sexual e

prostituição, portanto, é um discurso sustentado pelo CPB que repercute nas práticas (de

atuação e discursivas) desempenhas pela equipe do NETP/CE. Contudo, defendemos que isso

não significa dizer que essas sujeitas são escravas desse posicionamento, a pesquisa e o estudo

voltados para a questão fornecem os elementos necessários para possibilitar o rompimento

com essa visão de ―verdade‖.

Nesse sentido, a entrevistada Arraia, por exemplo, conseguiu verbalizar

indignação diretamente sobre as práticas de perseguição e discriminação dessas mulheres em

nome de um enfrentamento ao tráfico de pessoas:

É errado uma prostituta conseguir a ajuda de uma outra prostituta que ta na Europa,

ajuda financeira, pra ir pra lá e se prostituir lá? De jeito nenhum! Na minha

concepção, é direito dela! É direito dela! Né? como é que ela vai pagar essa amiga?

A amiga ta traficando? Não! Ela não ta explorando ninguém, ela ta ajudando a

pessoa a realizar um sonho, a mudar de vida. (IDEM).

Page 146: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

144

Retomando a explanação da Arara, outro elemento que é importante destacar

naquele discurso refere-se aos demais tipos penais citados pela mesma que são verificados

pelo NETP/CE na busca ativa, como por exemplo o favorecimento à prostituição e o

rufianismo. Na realidade, o NETP/CE deveria voltar suas ações para a identificação de

mulheres em situação de exploração num contexto de servidão por dívidas, cárcere ou

jornadas exaustivas de realização de programas sexuais, com o objetivo de prestar

acolhimento e assistência às vítimas. Entretanto, conforme inclusive demonstrado em algumas

matérias de jornal expostas no capítulo dois dessa pesquisa, o NETP/CE parece assumir uma

postura muito mais repressiva e coercitiva nessas atividades do que propriamente de

assistência e acolhimento a possíveis vítimas.

Destacamos, contudo, que esse posicionamento não é defendido por todas as

profissionais entrevistadas. A Lagosta, por exemplo, assim como a Arraia, admite que o

NETP/CE por muito tempo propagou uma postura excessivamente repressiva, quando deveria

prestar prioritariamente assistência às vítimas e possíveis vítimas de tráfico de pessoas,

postura essa que as duas últimas gestões73

vêm tentando desconstruir:

O Núcleo, felizmente, vem passando... vem passando por uma fase de

reconhecimento da sociedade, do seu trabalho, [...] essas duas últimas gestões estão

tentando construir de aproximação, de reconstrução da identidade do Núcleo pra

prevenção, atenção às vítimas, e não apenas uma imagem repressiva, [...]

policialesca que existia antigamente, que nessas duas últimas gestões estão

enfrentando bastante pra tentar desconstruir, inicialmente, antes de construir um

novo trabalho [...] (Lagosta).

Indicamos que para possibilitar a realização de um trabalho de qualidade no

âmbito do enfrentamento ao tráfico de pessoas, acreditamos ser necessário, em primeiro lugar,

conhecer e discutir a dimensão conceitual problemática e histórica que permeia a definição da

terminologia. Essa aproximação é necessária para que os(as) sujeitos(as) sociais possam se

apropriar das categorias envolvidas e ter condições de propor outras concepções mais

adequadas para o fenômeno, outras estruturas discursivas.

O discurso oficial não deve engessar a ação desses profissionais. Conhecer em

profundidade a questão, questionar, criticar, contrapor-se, são alguns elementos essenciais

73

O NETP/CE passou, ao todo, por três gestões, exercidas por três coordenadoras diferentes: a primeira

permaneceu no cargo entre os anos de 2003-2010, a segunda assumiu no início do ano de 2011 e permaneceu até

março de 2012 e a atual está na posição desde abril de 2012.

Page 147: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

145

para possibilitar mudanças efetivas que possam repercutir em âmbito mais ampliado. Essas

mudanças podem trazer avanços para a sociedade como um todo, na percepção e

enfrentamento do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim também como no

atendimento e assistência adequados às pessoas que vivenciaram essa situação. Butler (1998)

discute sobre as possibilidades de mobilidade e resignificação dos(as) indivíduos(as) dentro

da ordem socialmente pré-estabelecida:

[...] precisamos perguntar que possibilidades de mobilização são produzidas com

base nas configurações existentes de discurso e poder. Onde estão as possibilidades

de retrabalhar a matriz de poder pela qual somos constituídos, de reconstituir o

legado daquela constituição, e de trabalhar um contra o outro os processos de

regulação que podem desestabilizar regimes de poder existentes? Pois se o sujeito é

constituído pelo poder, esse poder não cessa no momento em que o sujeito é

constituído, pois esse sujeito nunca está plenamente constituído, mas é sujeitado e

produzido continuamente. Esse sujeito não é base nem produto, mas a possibilidade

permanente de um certo processo de re-significação, que é desviado e bloqueado

mediante outro mecanismo de poder, mas que é a possibilidade de retrabalhar o

poder. [...] (BUTLER, 1998, p. 22).

Essa possibilidade de retrabalhar o poder é possível graças a dimensão relacional

que possui – enquanto técnicas e estratégias que repercutem em efeito produtivos – conforme

explica Foucault (2011), afirmando ainda que longe de ocupar um lugar específico e estar

destinado meramente a interdição, o poder gera saber e produz discursos: ―O que faz com que

o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força

que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas [...] forma saber, produz discurso

[...]‖ (FOUCAULT, 2011, p. 8).

O poder, além de sua dimensão produtiva, não se trata de um atributo que apenas

alguns possuem em detrimento dos demais. De acordo com a perspectiva foucaultiana (1987),

todos(as) relacionam-se com ele, e podem lançar mão de estratégias para produzir seus efeitos

de dominação, conforme ressalta:

[...] Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que

não é o ―privilégio‖ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de

conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido

pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 1987, p. 30).

A aprovação das leis no nosso país, por exemplo, conforme regulamentação

estabelecida pela Constituição Federal de 1988, é realizada principalmente por meio do

Page 148: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

146

Congresso Nacional, composto por senadores e deputados federais74

eleitos pelo povo

brasileiro que posteriormente são submetidas à sanção presidencial. Entretanto, a elaboração e

reformulação dessas leis pode partir de propostas baseadas em discussões fomentadas por

resultados de pesquisas, debates públicos, experiências institucionais, reivindicações de

movimentos sociais, entidades profissionais, dentre outros.

Partindo dessas premissas, é possível compreender que ―a verdade‖ – considerada

aqui como o discurso oficial do Estado proferido por meio de leis e políticas, tendo em vista a

regulamentação de comportamentos e punições, assim como a definição de fenômenos –

nada mais é do que uma construção discursiva que emana poder. Enquanto tal, pode ser

questionada, desconstruída e transformada pelos diversos atores sociais. Nesse sentido,

enfatiza Foucault (2011): ―[...] a ―verdade‖ é centrada na forma do discurso científico e nas

instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política

[...] enfim, é objeto de debate político e de confronto social‖ (p. 13).

Dessa forma, para Foucault (2011) deve-se considerar que uma perspectiva

mais ampliada de mudança está direcionada a toda uma estrutura de sustentação

discursiva: ―O problema não é mudar a ―consciência‖ das pessoas, ou o que elas têm

na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.‖

(FOUCAULT, 2011, p. 14).

Sem negar a importância do papel ativo dos indivíduos, acreditamos que enquanto

a legislação nacional não for rediscutida e reformulada na tentativa de adequar o conceito de

tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim como os outros tipos de tráfico, à

um conceito mais coerente e adequado, afinado com todas as normativas estabelecidas, as

práticas equivocadas irão se perpetuar, embora alguns profissionais inseridos nesse contexto

tenham consciência dessas questões.

74

Com mandatos de oito e quatro anos respectivamente.

Page 149: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corroborando com as experiências de análises anteriores (monografia de

graduação e especialização), reafirmamos que o estudo do tráfico de pessoas continua a ser

um verdadeiro desafio acadêmico, haja vista a restrita literatura especializada diretamente

voltada ao assunto. Pudemos encontrar algumas pesquisas mais recentes e fizemos uso de

material originalmente escrito na língua inglesa como tentativa de trabalhar melhor alguns

elementos. Contudo, foram principalmente as impressões de campo e a pesquisa bibliográfica

de temas relacionais que proporcionaram os subsídios que viabilizaram o desenvolvimento de

boa parte dessa pesquisa.

Identificamos o tráfico de seres humanos a partir da perspectiva da exploração das

vítimas associada ao contexto capitalista globalizado, que ocorre por meio da submissão à

jornadas exaustivas de trabalho, ―salários‖ insignificantes e ingresso em atividades irregulares

ou não regulamentadas pelo Estado. Nesse fenômeno, incorrem ainda aspectos de dominação

determinados pelas relações de poder socialmente impostas.

Em relação ao exposto no segundo capítulo, o levantamento bibliográfico

histórico aponta que o tráfico de pessoas é fenômeno antigo na sociedade, presente no Brasil

desde o período colonial, onde o translado de negros(as) foi realizado de forma brutal do

continente Africano para inúmeras cidades emergente como Salvador, Rio de Janeiro e

Recife. Alocados nas mais diversificadas atividades, e com total respaldo do suporte jurídico-

legal nacional, esses seres humanos foram explorados por longos e sangrentos anos da história

brasileira.

Devemos ressaltar que as mulheres negras estiveram submetidas às brutais

situações de violência agravadas em virtude de condição de mulher: foram exploradas

sexualmente na atividade da prostituição por seus senhores, violentadas para satisfazer a

lascívia de traficantes, obrigadas ao trabalho extenuante quando gestantes e submetidas aos

maus-tratos de sinhás enciumadas.

No período da Belle Époque, a exploração tomou outros contornos, a finalidade da

prática envolveu naquele momento a exploração sexual de jovens mulheres de origem

europeia, com a presença de muitas judias entre as vítimas. Nesse momento histórico, o

Page 150: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

148

Estado se posicionou através de atividades de cunho higienista, realizando senso de prostitutas

e delimitando suas ações no campo da moral e dos bons costumes. Atitudes voltadas para a

deportação de imigrantes foram comuns, não houve preocupação em diferenciar tráfico de

mulheres (brancas) da prostituição voluntária, ou mesmo de prestar qualquer tipo de

assistência à essas pessoas.

As configurações do fenômeno na atualidade, contudo, redesenharam o tráfico de

seres humanos em outros contornos: vítimas alocadas na posição de menos favorecidas (em

função de sua classe e estamento social); e múltiplas finalidades, envolvendo especialmente a

exploração sexual, trabalho escravo em fazendas ou fábricas de costura, casamento servil e

tráfico de órgãos. Tal complexidade aproxima a temática de outras questões como a

prostituição e migração, campos de interseção que têm causado inúmeros equívocos

conceituais e operacionais por parte do Estado.

No caso específico do Estado do Ceará, foco de nossa análise, a predominância

dos casos, conforme demonstrado pela pesquisa documental, recai sobre o tráfico de mulheres

para fins de exploração sexual. Nessa perspectiva, há a dimensão da violência de gênero, haja

vista a desproporcional predominância de mulheres em situação de exploração sexual e a

posição de homens enquanto exploradores (aliciadores, caftens e clientes).

A análise documental – realizada no NETP/CE, entre os processos de 2003-2012

– evidencia, portanto, a existência predominante de jovens mulheres, com faixa etária

predominante entre 19 e 25 anos, aliciadas especialmente para o tráfico interno, de

naturalidade cearense, principalmente da cidade de Fortaleza (33 casos), com baixa

escolaridade e solteiras.

Em relação aos exploradores descritos nos referidos processos, constatou-se uma

predominância de brasileiros. Entre os estrangeiros identificados nessa posição, observou-se

uma incidência mais frequente de italianos. Contudo ressaltamos que a carência de dados é

bastante acentuada, não favorecendo a construção daquilo que poderia realmente ser

considerado como um perfil desses indivíduos.

Ressaltamos ainda, de uma forma geral, que o resultado dessa análise não

assegura um retrato fiel da realidade, tendo em vista que os profissionais que realizam a

Page 151: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

149

abertura e classificação dos processos possuem dificuldade para identificar os casos

(conforme constatado no quarto capítulo desse estudo), sem mencionar os casos baseados na

concepção do Código Penal Brasileiro, onde ocorre associação entre tráfico de pessoas para

fins de exploração sexual e migração de prostitutas.

No que se refere a pesquisa documental em relação aos tratados internacionais,

evidenciamos que avançaram na discussão do fenômeno, entretanto, o Estado Brasileiro,

embora signatário desses documentos, mantém uma postura legal pautada, conforme já

exaustivamente enfatizado, na associação direta do tráfico de pessoas com a migração de

prostitutas. Tal posicionamento tem perpetuado práticas históricas que envolvem posturas de

cunho moralista. Inclusive, matérias publicadas pela mídia, conforme apresentadas ao final do

segundo capítulo dessa pesquisa, demonstram que prostitutas têm sido confundidas não

apenas com vítimas de tráfico de pessoas, mas também com criminosas.

Não refutamos que a iniciativa governamental de instituir o Núcleo de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) é valida, pois articulou estrutura pioneira no

enfrentamento da questão, tendo em vista que até o momento não haviam instituições públicas

voltadas para a temática. Entretanto, a caracterização legal ambígua do fenômeno repercute

em uma série de problemas de compreensão de aplicabilidade da lei.

Em relação à coleta das falas, realizamos um total de 06 (seis) entrevistas com

profissionais que desempenham, dentre outras atividade, a função de atender e acompanhar as

vítimas e possíveis vítimas de tráfico de pessoas, universo esse composto por psicólogas,

assistente social e bacharéis em direito.

Todas relatam que sentiram dificuldade em atuar com a temática logo que

iniciaram as atividades no NETP/CE, principalmente por falta de conhecimento no assunto e

da metodologia adequada. Relataram ainda que não receberam nenhum tipo de treinamento ou

capacitação específica para trabalhar na estrutura, adquirindo conhecimento através de leituras

e participação em seminários promovidos por outras instituições.

No que se refere às percepções da equipe multidisciplinar entrevistada em relação

ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, identificamos que 05 (cinco) das 06

(seis) participantes conseguem articular uma definição que consideramos como coerente à

Page 152: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

150

respeito da questão, contudo, admitem que possuem dificuldade no momento da identificação

prática dos casos no cotidiana de atendimento.

Apenas 02 (duas) das entrevistadas relacionaram essa dificuldade com a

caracterização equivocada que existe no Código Penal Brasileiro, as demais vincularam à

questão especialmente ao depoimento conflitante das possíveis vítimas e à falta de

capacitação dos profissionais, tanto deles próprios, quanto daqueles que compõem outras

instituições ligadas à rede de enfrentamento.

Uma entrevistada específica, a Iguana, verbalizou que a identificação do

consentimento da vítima interfere na caracterização do crime que realiza no seu cotidiano de

atuação. Frisamos, conforme já evidenciam alguns documentos normativos da área75

, que esse

aspecto não deve, em hipótese alguma, interferir na caracterização do fenômeno, já que na

grande maioria das situações a vítima possui ciência de que irá realizar programas sexuais,

mas não imagina sob quais condições deverá fazê-lo.

Além disso, no local de origem, a grande maioria dessas pessoas vivenciam

situação de precarização das condições de sobrevivência, o que ocasiona em maiores

possibilidades no momento de assentir com a realização de programas sexuais, tendo em vista

que a proposta do aliciador aparece, muitas vezes, como única alternativa viável de possível

ascensão social e econômica. Baseada nos estudos e na experiência de campo que possuo,

acredito que os aspectos que deveriam centralizar a identificação dos casos de tráfico de

pessoas seriam o aliciamento, o deslocamento e a exploração. Caracterizados esses elementos,

os demais tornam-se adjacentes.

Para concluir, destacamos que a definição de exploração também precisa ser

discutida e as múltiplas finalidades da mesma precisam ser incluídas no Código Penal

Brasileiro para evitar mais ambiguidades, confusões conceituais e arbitrariedades nas ações de

repressão e assistência às vítimas repercutidas pelo NETP/CE. É necessário que exista

adequação dos conceitos e uniformidade entre eles para reestabelecer um discurso oficial mais

adequado às múltiplas e complexas formas pelas quais o fenômeno se apresenta na realidade.

75

Protocolo de Palermo (2000); Pestraf (2002); PRONASCI (2009).

Page 153: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

151

Devemos citar que pouco antes da defesa dessa dissertação, no dia 25 de fevereiro

de 2013, foi amplamente anunciado pela mídia o II Plano Nacional de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas, cujo um dos eixos é articular a reforma no Código Penal para ampliação

das finalidades do crime, com a inclusão do tráfico de órgãos, tecido ou partes do corpo e

trabalho escravo. Ainda assim, muitos elementos continuarão questionáveis, dentre eles, a

definição do que deve ser considerado como exploração sexual, por exemplo.

Não ignoramos, contudo, que os profissionais atuantes também necessitem

incluir-se nessas discussões para amadurecer o entendimento que possuem acerca da questão

e para participar na proposição de novas formas de tipificação legal e normativas de

enfrentamento ao fenômeno, na busca pela garantia dos direitos humanos, assegurando

acompanhamento adequado às reais vítimas de tráfico de pessoas e possibilitando a produção

confiável de dados em relação aos casos, proporcionando o desenho de um perfil mais realista

e confiável de vítimas e agressores.

É verdade ainda que o tráfico de mulheres é um negócio, e como todo negócio

pressupõe demanda e clientes dispostos à pagar, único meio de garantir o lucro das

quadrilhas. O negócio do tráfico de mulheres, portanto, não envolve apenas articuladas redes

criminosas e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, mas também uma vasta

demanda de clientes disposta à pagar para usufruir da ―mercadoria‖ humana, especialmente se

ela for ―importada‖ e exótica, mas isso é assunto para outra pesquisa.

Page 154: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FILHO, Walter Fraga. Uma História do Negro no

Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre de. Tráfico de Seres Humanos no Brasil: aspectos

sociojurídicos - o caso do Ceará. Dissertação – Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2007.

ÀLVARES, Luiza Miranda. A Questão de Gênero e a Violência Doméstica e Sexual.

Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida Moraes. Belém: UFPA, [s.d]. Disponível em:

<http://www.ufpa.br/projetogepem/administrator/questaodegenero.pdf> Acessado em: 10 set..

2012.

ALVES, Castro. O Navio Negreiro e Outros Poemas. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.

ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O‘Connell. Part II - The Demand Side of

Trafficking? A Multi Country Pilot Study. [s.l.]: Save the Children, 2002.

ANTUNES, Ricardo. De Vargas a Lula: caminhos e descaminhos da legislação trabalhista no

Brasil. In: Revista Pegada. n.2 vol. 7. São Paulo: 2006.

ARENTD, Hanna. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10 ed. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2007.

______. As Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 2 ed. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

BBC BRASIL. Brasileiros foram os mais barrados na Espanha em 2009. Disponível em:

<w w w . b b c . co . uk/portuguese/noticias/2010/01/100111_espanha_brasileiros_mv.shtml>.

Acesso em: 03 de fevereiro de 2012.

BEATO FILHO, Cláudio C.. Políticas públicas de segurança e a questão policial. vol.13,

n.4. São Paulo: Perspec,1999, p. 13-27.

BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula da. As American girls: migração,

sexo e status imperial em 1918. Horiz. antropol. [online]. 2009, vol.15, n.31, p. 75-99.

Page 155: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

153

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 10ª ed.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

______. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 12ª ed. Rio de Janeiro: Ed.

Bertrand Brasil, 2009.

______. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico.

Tradução de Denice Barbara Catani. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. 37. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.

______. Código Penal Brasileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03

/decreto-lei/del2848.htm> Acessado em: 10 agos. 2012.

______. Decreto nº 5.948 de 26 de outubro de 2006. Política Nacional de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas. Brasília: Ministério Público, 2006.

______. Ministério da Justiça. Portaria nº 31 de 20 de agosto de 2009. Estabelece a

articulação, estrutura e consolidação, a partir dos serviços e redes existentes, de um sistema

nacional de referência e atendimento às vítimas do tráfico de pessoas. Diário Oficial [da

República Federativa do Brasil], Brasília, DF, nº 166, 31 agost. 2009. Seção I, pág. 37.

BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do ―pós-modernismo‖.

In: Cadernos Pagu. n. 11. São Paulo: Unicamp, 1998, p. 11-28.

______. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge,

1999.

CARVALHO, José Murilo de. Fundamentos da política e da sociedade brasileira. In:

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio. Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São

Paulo: UNESP, 2007, pp. 19-31.

CASTILHO, Ela Wiecko. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de

Palermo. In: MINISTÉRIO, Público. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de

Pessoas. Brasília, Distrito Federal, 2007. pp. 10-15.

CAULFIELD, M. Sexuality in human evolution: What is ‘natural’ in sex? Feminist Studies,

11: 1985, p. 343-363.

Page 156: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

154

CHAUÍ, Marilena. Contra a Violência. Especial para o Portal do PT. abr. 2007. Disponível

em: <http://www.prevelexchile.cl/colaboraciones/documentos/Contra%20la%20violencia.

pdf> Acessado em: 13 set. 2012.

______. Participando do debate sobre mulher e violência. In: CHAUÍ, Marilena; CARDOSO,

Ruth; PAOLI, Maria Célia (orgs). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro:

Zahar, 1985.

CÓDIGO Penal: legislação complementar. São Paulo: IOB-Thompson, 2009 – Coleção

Códigos Universitários.

COLARES, Marcos. I Diagnóstico sobre tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de

Janeiro, Goiás e Ceará. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2004.

COMPARATO, Fábio. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010.

COMITÊ de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Mato Grosso do Sul. Tráfico de

Pessoas: responsabilizar é possível. 3 ed. Mato Grosso do Sul: 2007.

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Adicional à Convenção das Nações

Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição

do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças. In: MASSULA, Letícia; MELO,

Mônica de. Tráfico de Mulheres: prevenção, punição e proteção. São Paulo: BH gráfica

editora, [s.d.], pp. 41-56.

DA MATTA, Roberto. O Oficio de Etnólogo ou como ter ―Anthropological Blues‖. In:

NUNES, Edson de Oliveira (org.). A Aventura Sociológica: Objetividade, Paixão,

Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1978, p. 23-35.

DESLAURIERS, Jean-Pierre; KÉRISIT, Michèle. O delineamento de pesquisa qualitativa. In:

POUPART, Jean, DESLAURIERS, Jean-Pierre; GROULX, Lione-H; LAPERRIÈRE, Anne;

MAYER, Robert; PIRES, Alvaro. A Pesquisa Qualitativa: enfoques epistemológicos e

metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 127-153.

DIARIO DO NORDESTE. GGI prende cinco por prostituição. Primeira Folha: Polícia.

Fortaleza: 22 de setembro de 2009, p. 14.

_____________________. Fechadas mais duas casas de prostituição. Primeira Folha:

Polícia. Fortaleza: 09 de junho de 2009, p. 14.

Page 157: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

155

DIAS, Maria Odila. Resistir e Sobreviver. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana

Maria. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012, p. 360-381.

ESCRITÓRIO das Nações Unidas sobre Drogas e Crime: Brasil e Cone Sul. Protocolo

adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres

e Crianças. In: Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado. Brasília: Nações

Unidas, 2010, p. 45-55.

FALEIROS, Eva. Violência de gênero. In: TAQUETTE, Stella R. (org.). Violência contra a

mulher adolescente/jovem. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2007, p. 61-65.

FLICK, Uwe. Uma introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004.

FOUCAULT, Michael. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2008.

______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime

da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

FUNES, Eurípedes Antônio. Negros no Ceará. In: SOUSA, Simone (org.). Uma nova

História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000, p. 103-132.

GOLDEMBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências

Sociais. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania.

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Manual de Capacitação para o

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. São Paulo, 2010.

GOVERNO FEDERAL. Ministério da Justiça. Política Nacional de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas. Brasília, 2007.

Page 158: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

156

GROULX, Lionel-Henri. Contribuições da pesquisa qualitativa à pesquisa social. In:

POUPART, Jean, DESLAURIERS, Jean-Pierre; GROULX, Lione-H; LAPERRIÈRE, Anne;

MAYER, Robert; PIRES, Alvaro. A Pesquisa Qualitativa: enfoques epistemológicos e

metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 95-124.

HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. São Paulo:

Editora Vozes, 1992.

HAZEL, Marcel. Políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas: a quem interessa

enfrentar o tráfico de pessoas? In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Política Nacional

de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2008.

HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital, 1848-1857. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

INTERNACIONAL ORGANIZACION FOR MIGRATION (IOM). Identification and

Protection Schemes for Victims of Trafficking in Persons in Europe: Tools and Best

Practices. Bélgica: IOM, 2005.

JESUS, Damásio de. Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças - Brasil: aspectos

regionais e nacionais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.

KEMPADOO, Kamala. Mudando o Debate sobre Tráfico de Mulheres. In: Cadernos Pagu. N.

25. São Paulo: 2005, pp. 55-78.

KUSHINIR, Beatriz. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição: as Polacas e suas

associações de Ajuda Mútua. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.

LANDINI, Tatiana Savoia. Infâncias em Movimento (Reflexões sobre os Movimentos Sociais

do Século XX). In: LEAL, Maria Lúcia e LEAL, Maria de Fátima (Orgs.). Tráfico de

Pessoas e Violência Sexual. Brasília: 2007, p. 75-95.

LARGMAN, Esther. Jovens Polacas: da miséria na Europa a prostituição no Brasil. São

Paulo: Ed. Best Bolso, 2008.

LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres,

crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil. Brasília:

Cecria, 2002.

Page 159: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

157

LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima. Enfrentamento do tráfico de pessoas: uma

questão possível? In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Política Nacional de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2008.

LEAL, Maria Lúcia e PINHEIRO, Patrícia. A Pesquisa Social no contexto do Tráfico de

Pessoas: uma abordagem marxista. In: LEAL, Maria Lúcia e LEAL, Maria de Fátima (Orgs.).

Tráfico de Pessoas e Violência Sexual. Brasília: 2007, pp. 17-26.

LEMOS, Flavia Cristina Silveira and CARDOSO JUNIOR, Hélio Rebello. A genealogia em

Foucault: uma trajetória. Psicol. Soc.[online]. 2009, vol.21, n.3, pp. 353-357.

MALUSCHKE, Günther; et al. Apresentação. In: MALUSCHKE, Günther; BUCHER –

MALUSCHKE, Júlia S. N. F; HERMANNS, Klaus (org.). Direitos humanos e violência.

Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2004, pp. 15-18.

MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico

negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos - CEBRAP, n.74, 2006, p. 107-

123. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0101-33002006

000100007. Acesso em: 21 de dez. de 2010.

MARREY, Antônio Guimarães; RIBEIRO, Anália Belisa. O enfrentamento ao tráfico de

pessoas no Brasil. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fev. 2010, pp. 47-66.

MARTINS, Gilberto de Andrade. Manual para elaboração de monografias e dissertações.

3ª ed. São Paulo: Atlas, 1997.

MARTINS, Marcio Marinho. A Atualidade do Materialismo Histórico-Dialético para a

Compreensão do Espaço Geográfico. In: XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária. São

Paulo: 2009.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. vol. I. Tradução de Regis Barbosa e

Flávio R. Kothe. São Paulo: Ed. Nova Cultura, 1996.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Jornadas Transatlânticas: uma pesquisa exploratória sobre

tráfico de seres humanos do Brasil para Itália e Portugal. Brasília: UNODC, 2011.

______.Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2 ed. Brasília, Distrito

Federal: 2008.

Page 160: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

158

______. Tráfico de Pessoas: Critérios e Fatores de Identificação de Supostas Vítimas.

Brasília: Ministério da Justiça, UNODC, 2009.

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2010.

NEPOMUCENO, Bebel. Protagonismo ignorado. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO,

Joana Maria. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012, pp. 382-

409.

NETO, Otavio Cruz. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: DESLANDES,

Suely Ferreira; NETO, Otávio Cruz; GOMES, Romeu; MINAYO, Maria Cecília e Souza

(org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: Sugestão de

um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil.

Revista Tempo Social, USP, v. 19, n. 1, 2006, pp. 287-308.

OLIVEIRA, Marina P. P. Iniciativa Global Contra o Tráfico de Pessoas: O Desafio de

Mobilizar a Sociedade para o Tema, sem Simplificar o Debate. In: Tráfico de Pessoas e

Violência Sexual. Brasília: 2007, pp. 107-116.

OLIVEIRA, Pedro Américo Furtado de; FARIA, Thaís Dumêt. Do tráfico para o trabalho

forçado à caminhada para o trabalho descente. In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça.

Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2008.

ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. Cidadania, direitos humanos e tráfico de

pessoas – Manual para promotoras legais populares. Brasília: OIT, 2009.

______. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil (2004-2011): Avaliações e

Sugestões de Aprimoramento de Legislação e Políticas Públicas / Organização

Internacional do Trabalho (OIT). Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça

no Mundo do Trabalho. Projeto de Combate ao Tráfico de Pessoas (GTIP). Brasília: OIT,

2012.

______. Manual de capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. Projeto de

Combate ao Tráfico de Pessoas. Brasília: OIT, 2009.

______. Passaporte para a liberdade: um guia para as brasileiras no exterior. Brasília:

OIT, 2007.

Page 161: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

159

PADUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-

prática. São Paulo: Papirus, 1996.

PASCUAL, Alejandra. Mulheres Vítimas de Tráfico para fins de exploração sexual: entre o

discurso da lei e a realidade de violência contra as mulheres. In: LEAL, Maria Lúcia; LEAL,

Maria de Fátima; LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra (orgs.). Tráfico de Pessoas e Violência

Sexual. Brasília: UNB, 2007

PISCITELLI, Adriana. Exotismo e autenticidade: relatos de viajantes à procura de sexo. In:

Cadernos Pagu. n. 19, São Paulo: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2002, pp.

195-231.

______.Sujeição ou Subversão: migrantes brasileiras na indústria do sexo na Espanha. In:

História e Perspectivas. n. 35. Uberlândia: pp.13-55.

______. Brasileiras na indústria transnacional do sexo: migrações, direitos humanos e

antropologia. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Desafios e Perspectivas para o

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Brasília, 2011, pp. 189-207.

PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Apresentação. In: NÚCLEO DE

ESTUDOS DE GÊNERO. Cadernos Pagu: Trânsitos. Revista Semestral, n. 31, julho-

dezembro de 2008. São Paulo: Unicamp, 2008.

PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In:

SOUSA, Simone de (org.). Uma nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito

Rocha, 2000, pp. 162-191.

RAGO, Margareth. As Mulheres na historiografia brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.).

Cultura Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995.

______. Os Prazeres da Noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São

Paulo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2008.

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Tradução de Luciano Vieira

Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SAFFIOTI. Heleieth. O poder do macho. São Paulo: moderna, 1987.

Page 162: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

160

______. Violência de Gênero no Brasil Atual. In: Revista Estudos Feministas. ano 2, 1º

semestre, v. 2 (Número Especial). UFSC: 1994, pp. 443-461.

SALES, Lilia Maria de Moraes; ALENCAR, Emanuelle Cardoso Onofre. Contribuições para

o Debate sobre o Tráfico de Pessoas a Partir da Experiência do Escritório de Prevenção e

Combate ao Tráfico de Seres Humanos do Estado do Ceará. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA.

I Prêmio Libertas: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Séries Pesquisas e Estudos.

Brasília: Ministério da Justiça, 2010, p. 41-106.

SALVADORI, Fausto. Vendem-se Órgãos. Disponível em:

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu0EDG87015-7943-217,00VENDEMSE+ ORG

A OS.html. Acesso em: 10 de dez. de 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma concepção Multinacional de Direitos Humanos. Lua

Nova, n. 39. 1997, p. 105-124. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ln/n39/a07n39.pdf>

Acessado em: 10 de set. de 2012.

______. Os processos de globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.).

Globalização. Fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento, 2001, p. 31-106.

______. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade e vitimação. In: Revista

Crítica de Ciências Sociais, n. 87, Dezembro de 2009, p. 69‑94.

SCHWARTZMAN, Simon. Fora de Foco: diversidade e identidades étnicas no Brasil. Novos

Estudos, n. 55, nov. 1999, pp. 83-96.

SILVA, Ana Paula de; BLANCHETTE, Thadeus Gregory. Mulheres Vulneráveis e Meninas

Más. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. I Prêmio Libertas: Enfrentamento ao Tráfico de

Pessoas. Série Pesquisas e Estudos. Brasília: Ministério da Justiça, 2010, p. 147-188.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista Educação e

Realidade. jun/dez, 1995, p. 71-89.

SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Avaliação de Políticas e Programas Sociais. In: SILVA,

Maria Ozanira da Silva e (org.). Avaliação de Políticas e Programas Sociais: teoria e

prática. São Paulo: Veras Editora, 2001, p.37-93.

SILVA, Sidney Antônio da. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade.

Estudos Avançados, vol. 20, n. 57, 2006. Disponível em:

http://www.scielo.br/pdf/ea/v20n57/a12v2057.pdf. Acesso em: 22 de dez. de 2010.

Page 163: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

161

SIQUEIRA, Priscila. Tráfico de Mulheres: Oferta, Demanda e Impunidade. Serviço à

Mulher Marginalizada, São Paulo: 2004.

SODIREITOS. Pesquisa Tri-nacional sobre o Tráfico de Mulheres no Brasil e da

República Dominicana para o Suriname. Belém: Sodireitos, 2008.

TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O papel das Políticas Públicas no desenvolvimento local e na

transformação da realidade. Salvador: AATRBA, 2002.

TELLES, Maria Amélia de Almeida. As imigrantes Bolivianas em São Paulo: o silêncio

insuportável. In: LEAL, Maria Lúcia; et.al. (Org). Tráfico de Pessoas e Violência Sexual.

Brasília: VIOLES/UNB, 2007.

UNODC, United Nations Office on Drugs and Crime. Global Reporting of Trafficking in

Persons. UN.GIFT, 2009.

VASCONCELOS, Márcia; BOLZON, Andréa. Trabalho forçado, tráfico de pessoas e

gênero: algumas reflexões. Cadernos Pagu. n. 31, jul/dez. 2008, p. 65-87.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol. II.

Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, DF: Editora Universidade de

Brasília, 1999.

Page 164: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA

DADOS DA ENTREVISTA

DATA: _____/_______/_______ HORÁRIO:

LOCAL:

DADOS DO ENTREVISTADO

NOME:

DATA DE NASCIMENTO: FORMAÇÃO:

CARGO OCUPADO NO NETP/CE:

RELIGIÃO:

COR DA PELE:

RENDA FAMILIAR (em salários mínimos):

1. Fale sobre sua experiência no NETP/CE? (atividades que você

desempenha, há quanto tempo trabalha, etc).

2. Para você, o que é o tráfico de mulheres para fins de exploração

sexual?

3. Relate alguns casos que você já tenha acompanhado na sua

experiência aqui no NETP/CE.

4. Você sente dificuldades no momento da identificação prática dos

casos?

5. Quais os procedimentos tomados pela equipe ao se deparar com um

desses casos?

6. Quais são os principais parceiros do NETP/CE atualmente?

7. Na sua opinião, o que poderia ser feito para trazer melhorias no

enfrentamento ao tráfico de pessoas?

Page 165: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco

ANEXO A

Page 166: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE … · UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ ... Bibliotecário Responsável – Francisco