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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS NATURAIS CURSO DE HISTÓRIA NAS ASAS DO CARCARÁ: Uma Análise social do disco o Poeta do Povo de João do Vale São Luis 2010

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS NATURAIS

CURSO DE HISTÓRIA

NAS ASAS DO CARCARÁ:

Uma Análise social do disco o Poeta do Povo de João do Vale

São Luis

2010

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LUIS HENRIQUE VIEGAS RODRIGUES

NAS ASAS DO CARCARÁ:

Uma análise social do Disco O Poeta do Povo de João do Vale

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão para obtenção do título de Graduado em História. Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho

São Luis

2010

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LUIS HENRIQUE VIEGAS RODRIGUES

NAS ASAS DO CARCARÁ:

Uma análise social do Disco O Poeta do Povo de João do Vale

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão para obtenção do título de Graduado em História.

Aprovada em: _____/_____/2010

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________ Prof. José Henrique de Paula Borralho (Orientador)

Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão

_______________________________________ Alan Kardec Gomes Pacheco Filho

Mestre em História Universidade Estadual do Maranhão

_______________________________________ Júlia Constança Pereira Camêlo

Mestre em História Universidade estadual do Maranhão

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Aos meus familiares.

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AGRADECIMENTOS

É difícil agradecer a tantas pessoas, que deram suas colaborações para a realização

desse trabalho, que em si guarda uma jornada muito longa. Sendo, porém inevitável fazê-lo,

gostaria de começar por meus país: Maria Zilda Carvalho Viegas, uma guerreira obstinada,

que nunca mediu esforços para ver os meus sonhos realizados e Cecílio de Almeida dos

Santos Rodrigues, que, mesmo distante por muito tempo, e, agora, para sempre, deu-me a

alegria de revê-lo e abraçá-lo brevemente.

As minhas tias, Maria José e Maria dos Santos, as quais sou eternamente grato por

tudo, que fizeram e ainda fazem por mim. A minha avó, Neusa Carvalho Viegas, que nunca

esquecerei o amor que me dedicou durante toda a vida. Ao meu irmão Cláudio, pelo apoio e

conselhos. Ao professor José Henrique de Paula Borralho, pela confiança e pela grande

oportunidade de tê-lo como orientador. A dona Roberta, secretária do curso de História a

quem devo tanto.

A todos os professores do Curso de História, por suas contribuições para minha

formação. Agradeço também aqueles que, por culpa única e exclusiva minha, não constam

aqui. Obrigado a todos.

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Todo compositor brasileiro é complexado, por que então essa mania danada de falar tão sério (...) E por que essa vontade de parecer herói ou professor universitário (aquela tal classe que passa a aprender com os alunos – quer dizer com a rua – ou não vai sobreviver)?

Tom Zé

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RESUMO

O presente texto é um estudo do disco O Poeta do povo, do cantor e compositor João do Vale.

Procura-se abordar o contexto cultural e político em que o disco é produzido, com destaque

para a interpretação das canções com temáticas engajadas e regionalistas. Com uma leitura de

quem viu e viveu tudo que é descrito nas canções, o autor canta a realidade do homem

humilde do interior do nordeste e dos centros urbanos, trazendo a tona o ambiente de

exploração, injustiças e abandono aos quais esses atores estão submetidos.

Palavras-Chaves: João do Vale. Música do Nordeste. Música de Protesto. Anos 60.

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RÉSUMÉ

Ce texte est une étude du Poète disque du peuple, du chanteur et compositeur John Valley. Nous

cherchons à répondre au contexte culturel et politique dans lequel le disque est produit, en mettant

l'accent sur l'interprétation de chansons avec des thèmes engagés et du régionalisme. Avec une

lecture de l'OMS a vu et vécu tout ce qui est décrit dans les chansons, le poète chante la réalité de

l'homme humble du Nord-Est et des centres urbains, mettant en valeur l'environnement

d'exploitation, l'injustice et la négligence dans laquelle ces acteurs sont soumis.

Mots clés: John Valley. la musique du Nord-Est. la musique de protestation. 60 ans.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 09

2 PASSEIO EM UM CÉU DE CARCARÁS ........................................................ 17

2.1 A música do Nordeste no cenário nacional ........................................................ 17

2.2 A Música de protesto .......................................................................................... 20

3 QUEM A PACA CARA COMPRA CARA A PACA PAGARÁ: análise

das canções ........................................................................................................... 26

3.1 A Luta Contra a Exploração .............................................................................. 27

3.2 A migração .......................................................................................................... 31

3.3 Os Infortúnios da Vida e as Estratégias para Enfrentá-los ............................... 34

3.4 Resistência como Bandeira ................................................................................. 39

3.5 A nostalgia ........................................................................................................... 44

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 48

REFERENCIAS ................................................................................................... 50

ANEXOS............................................................................................................... 52

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1 INTRODUÇÃO

Ao longo da sua História, a Música Popular Brasileira em sua heterogeneidade foi

bastante fecunda, ocupou um lugar privilegiado como pólo difusor de movimentos estéticos e

culturais, por outro lado fazendo-se presente de maneira significativa cantou e decantou a

realidade social e política da nação, cujo desenvolvimento esteve e tem estado vinculada

intrinsecamente a todos os episódios formadores de nossa identidade.

Uma visita na história da MPB, nos mostra sua relação com a sociedade de forma

influente e influenciável. Na verdade é assim, desde a fase colonial em que canções populares,

foram se imbricando com as manifestações artísticas populares nas festas religiosas, oficiais e

comemorativas. Da crescente urbanização da colônia portuguesa, resultou uma estreita

convivência das raças que a constituíam. Seria inevitável que os costumes se inter-

relacionassem e disso pudessem surgir manifestações culturais populares cuja formação

continha caracteres de traços portugueses, negros e índios.

Daí, da mistura e combinação de sons e violas, guitarras, gaitas, atabaques e

tambores foi emergindo uma música popular original, em contraste com os cantos, hinos

religiosos e bandas militares cultuados pela igreja, pelos aristocratas e cortesãos. Principiava

desse modo a formação da música popular brasileira:

A novidade de uma música produzida pelo povo das cidades, para atender as expectativas do lazer urbano, estava nascendo em Portugal de Quinhentos. E, tal como mais tarde viria a confirmar-se no Brasil, essa música popular surgia como criação das camadas mais humildes dos negros e brancos pobres das cidades, talvez por isso mesmo chamados de patifes (TINHORÃO, 1998, p. 29).

A história da música popular brasileira dá-nos conta da evolução dessa nova

forma musical que, vultosa e rica em detalhes de acontecimentos e episódios, realiza-se desse

momento em diante ao longo dos séculos subseqüentes.

No percurso dessa história vamos encontrar Gregório de Matos, nosso mais

eminente poeta barroco como também um dos mais proeminentes compositores de canções

populares as quais são apontadas pelos estudiosos como lundu1. Posteriormente, no século

XVIII, o lundu, embora não fosse abandonado, vai perdendo hegemonia, à medida que se

1 Dança e canto de origem africana trazidos pelos escravos bantos, especialmente de angola para o Brasil. É um

exemplo típico do fenômeno de difusão da uma manifestação folclórica. Percorrendo caminhos que passaram do popular ao erudito com plena aceitação de todas as camadas da sociedade brasileira, diferencia-se do samba primitivo e do batuque, danças da mesma origem. CASCUDO, Luis de Câmara. Dicionário de Folclore Brasileiro. São Paulo: global, 2001, p.341.

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impõe outro tipo de canção mais praticada, a modinha2. Afirmam os estudiosos que a

modinha, ao contrário do lundu, que conjugava dança e canto, é eminentemente um canto de

salão lírico e sentimental. O interessante é que tanto a modinha, de matriz européia, quanto o

lundu, de origem africana, com o passar do tempo vão impregnando-se de outros elementos

que se misturaram e influíam, dando então uma mostra de como a música brasileira vai se

configurar mais tarde, da mescla de traços culturais distintos e da mistura de elementos

populares e eruditos.

A essa altura segundo Tinhorão (1998) a música popular brasileira já atingira

certo grau de depuração, tanto que a criação se fazia pelo sistema de parcerias entre música e

poesia. O caráter da música popular urbana advinda das camadas rústicas da população,

constituídas, sobretudo, por negros e mestiços que viviam de pequenos ganhos provindos de

serviços braçais, se evidencia com o aparecimento, disseminação e duradoura permanência,

por sua grande aceitação, na denominada música de barbeiro.

Adiante nas transformações decorrentes dessa viva ebulição musical popular sabe-

se que houve uma certa incorporação estatal da música popular instrumental por iniciativa das

corporações militares que passaram a instituir suas bandas musicais e com elas acabam

mesmo competindo entre si. Por falta de habilitados para tal fim em seus quadros, tornam-se

músicos militares, na sua grande maioria, aqueles barbeiros músicos. E este parece ter sido a

principal razão da progressiva rarefação desses músicos, na medida em que crescia a atuante

presença de bandas musicais militares.

A acentuada disputa entre elas suscita em seus componentes a criação de ritmos,

melodias inclusive passos de movimentação. O desenvolvimento e aprofundamento dos

mesmos resultarão as músicas e danças atuais como o maxixe e o frevo e daí a pouco o samba

Porém, antes que o samba se configure como tal, haverá forte incidência do que

se pode dizer seu precursor, o choro, gênero genuinamente brasileiro e delineador da nossa

cultura musical. Desde então desenvolvimento se faz com a desenvoltura de uma música

amadurecida, arraigada nos princípios de uma identidade plural. Afirmam os estudiosos da

Música Popular Brasileira que a essa altura a elite voltava sua atenção ao que julgava

conferir-lhe melhor prestígio cultural, ou seja, às músicas e musicais europeus como a ópera,

a opereta, as valsas e polcas. O povo compreendido pela classe média e baixa mantinha seus

saraus musicais. E na inevitável absorção da música estrangeira, transformava-a com

2 Canção brasileira de gênero tradicional, geralmente amorosa. As mais antigas tinham mesmo um sabor sensual. Modinha é um diminutivo de moda, tipo mais antigo de canção portuguesa, cuja denominação coexiste no Brasil com a moda de viola moda paulista etc. logo em seguida por uma distinção perfeitamente definida: a modinha portuguesa e a modinha brasileira.

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acentuados caracteres brasileiros. A mais acentuada e principal conseqüência foi essa música

peculiar à base do cavaquinho, violão e flauta.

Mas, sem dúvida o acontecimento artístico-musical que será o conduto para o

samba e sua consolidação é outra importação, trata-se do carnaval. De origem européia, o

carnaval foi tão assimilado que se tornou a nossa maior festa nacional e um dos traços dos

caracteres do povo brasileiro, incrementado pelas formas musicais existentes, o maxixe, o

choro, o frevo e o que seria sua insígnia, o samba, outra genuína marca brasileira.

O presente trabalho monográfico tem como propósito analisar as canções do

álbum O Poeta do povo, do cantor e compositor maranhense João do Vale. Lançado em 1965

pela gravadora Philips. João do Vale emerge no cenário nacional da nossa MPB, meio a

reboque do sucesso e trilhando inicialmente o caminho traçado por Luiz Gonzaga. Todavia o

que de fato vai projetá-lo na esfera dos notáveis compositores será sua participação nos

musicais apresentados pelo Show Opinião, nos anos de 1964 e 1965 e de que adiante

trataremos de forma mais detalhada.

João do Vale foi um dos muitos interpretes do Brasil, mais precisamente da região

de onde era oriundo, o Nordeste brasileiro, narrou através da canção a realidade que viveu,

com uma linguagem própria, irreverente algumas vezes, mas, também contundente, visitando

diversos temas que estavam ligados à realidade do nordeste. Entre os temas frequentados pelo

compositor podemos escolher diversos, entretanto, ateremo-nos àqueles que explicitam

experiências coletivas do povo com qual o artista se identificava. Entre essas experiências

podemos citar: a questão da seca, a necessidade de uma reforma agrária, a exploração dos

camponeses pobres pelos proprietários de terra, a emigração, a nostalgia dos amigos da

infância e a resistência do homem simples em busca de uma vida melhor e espaço para ser

reconhecido como cidadão.

Trabalhar com um único disco, dentre uma obra bastante considerável, como é a

do autor em questão tem dois motivos: primeiro por tratar-se do primeiro trabalho gravado,

mesmo este já possuindo uma carreira visível no meio artístico, o que sugere um adensamento

das temáticas por ele abordadas e assim contendo muito das primeiras impressões do

compositor sobre os problemas sociais que afligem o povo humilde do sertão nordestino e do

Brasil.

O segundo motivo dessa escolha é também por acreditar que a referida obra em

parte seja uma verdadeira crônica do cotidiano e guarde na maioria das canções que a

integram e de forma marcante uma multiplicidade de perfis sociais que lhe serviram de

inspiração. Ao mesmo tempo fizeram parte do universo social de João do Vale como a figura

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do jangadeiro, do lavrador, da lavadeira do retirante. Essas são figuras constantes na literatura

sobre o Nordeste, e não raro são apresentadas de forma estereotipadas, em suma, as canções

dessa obra, são uma leitura da realidade.

João do Vale nasceu no dia 11 de Outubro de 1933, em Lago da Onça (hoje

Trizidela do Vale) localidade afastada 6 km de Pedreiras, filho de Leogevilda e Cirilo Vale.

Desde muito cedo João teve uma vida dura, aos doze anos foi obrigado a deixar a escola para

dar lugar ao filho de um funcionário público graduado, aos dezessete anos fugiu de casa,

percorreu varias cidades do Nordeste, até chegar ao Rio de Janeiro, um dos lugares mais

procurados ainda hoje, na região Sudeste por de emigrantes nordestinos.

Trabalhou durante algum tempo como servente de construção civil e, à noite,

percorria as rádios e gravadoras para mostrar suas primeiras composições, até que começou a

ser reconhecido no meio musical quando em 1952, foi lançada Estrela Miúda em parceria

com Luiz Vieira. A partir daí a construção civil perdia um servente e a música ganhava um

grande compositor.

O universo social nordestino norteia todas as suas composições, as quais são uma

representação de tudo aquilo que viu e viveu: miséria, exploração e injustiças, retirou sua

matéria dos fatos, acontecimentos, costumes e praticas que vivenciou as canções de cunho

mais politizado descrevem e refletem sobre os problemas e as dificuldades sofridas por um

povo com o qual João do Vale se identifica e de uma certa forma foram essas canções as

responsáveis por dar-lhe projeção no cenário musical, a seguinte citação que é uma fala do

próprio João do Vale em depoimento a Natale Vieira Danelli, pesquisadora da coleção Nova

Musica Popular Brasileira, explicita de forma inequívoca o que fora a pouco afirmado:

Na época eu cursava o primário, foi nomeado um coletor novo para Pedreiras ele levou um filho em idade escolar. Na escola tinha uns trezentos alunos, mas escolheram logo eu para dar lugar ao filho do homem. E eu senti é claro! Resolvi nunca mais estudar. Não tinha por quê. Então de manhã, eu pegava o meu saco de merenda e enchia de pedra, ia para cima do muro do colégio e na hora do recreio mandava pedra em todo mundo. Por estar com inveja por não concordar com aquela injustiça (DANELLI, 1980).

Esse tipo de acontecimento irá contribuir de maneira definitiva com os rumos que

João do Vale dará as suas canções, assemelhando-as aos problemas sociais do povo,

incorporando-se desta feita o político sem deixar de lado o estético, “[...] a arte deve não só

representar o real, mas explicá-lo, descobrindo o processo social que a determina [...] para

Lukacs, a arte faria parte daquilo que chamamos o estilo de vida de uma época, isto é uma

concepção e ação sobre ele (ALBUQUERQUE, 2006, p. 91)

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A principal proposta deste trabalho é focalizar o sentido social e político das

canções, identificando os elementos estruturantes que fazem parte das temáticas das canções e

interpretando-as no contexto em que foram produzidas e estão inseridas, buscando assim

refazer a leitura do mundo descrita pelo autor em sua obra. Com essa noção, busca-se

observar o que João do Vale selecionou e como reinterpretou a matéria por ele apropriada

para fazer suas canções.

O disco O Poeta do Povo acontece em um período bastante frutífero de debates e

rupturas na música brasileira, sejam para fins estéticos sejam para fins políticos, de forma que

no campo musical, teremos os chamados puristas; intelectuais e artistas que entendiam a

verdadeira musica brasileira (diga-se, o Samba de morro, o Choro, e os ritmos do interior do

País, principalmente o Nordeste) precisava ser separada ou melhor protegida da influência do

mercado musical que gradualmente introduzia ritmos estrangeiros no Brasil como o Jazz, a

Rumba, o Bolero etc. e poderiam desoriginalizar os nossos ritmos mais caros, tidos como a

essência musical do nosso povo.

Do outro lado a Bossa Nova um movimento inovador, romperia com as amarras

estéticas. Segundo seus precursores, esses engessamentos estéticos impediam um resgate

cultural do samba em direção a modernidade, por isso os bossanovistas voltavam-se para

outras influências musicais, principalmente os jazz americano e com isso tentavam pensar a

música brasileira de uma forma mais totalizante.

Além dos debates estéticos musicais, no campo político o clima era de ebulição, o

golpe de 1964 derrubara o governo de João Goulart e dava inicio a ditadura militar. Esse

acontecimento significará uma quebra nas expectativas reformistas idealizadas pelo governo

deposto, o capítulo seguinte que se delineou nesse cenário foi o surgimento de diversas

formas de resistência, parte da produção cultural brasileira voltou-se para as questões de

ordem política. Essa postura era encampada por intelectuais e artistas em sua maioria de

coloração esquerdista e os movimentos sociais. Assim algumas manifestações artísticas

passaram a ser uma trincheira de luta contra a ditadura e contra os problemas que assolavam a

população brasileira.

Um exemplo desse engajamento da classe artística é o show Opinião de 1964,

montado no Rio de Janeiro por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, com a participação de

João do Vale, representando o homem sertanejo do interior do país; Zé Kéti representando o

morro carioca e Nara Leão, representante da classe média. O objetivo era, em primeiro lugar,

criticar o regime de exceção; em segundo lugar, destacar a ação, a vivência e os problemas do

homem do povo, encarnado no trabalhador rural e no assalariado urbano. As apresentações do

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Opinião percorreram diversas cidades brasileiras, as músicas de João do Vale que fazem parte

do espetáculo tiveram bastante aceitação por parte do público, principalmente, Carcará que o

tornara nacionalmente conhecido, sendo que para muitos era um verdadeiro hino contra a

ditadura militar.

A tônica das novas abordagens, que possuem seu foco voltado para a música

popular, tenta compreender a música urbana, integrada aos movimentos sociais e históricos,

com uma abrangência aos diversos setores da sociedade excluídos pela historiografia

tradicional, com o objetivo de superar o distanciamento imposto por uma linha de pesquisa

mais tradicional que focava apenas gêneros mais lineares, ou, que evocavam sentimentos

nacionalistas como é o caso dos gêneros folclóricos. E assim entender esse espaço de

produção e os diversos contextos em que se inserem o artista popular e seu referencial.

É claro que foi preciso percorrer um longo caminho para a música ganhar

inserção, e se transformar em uma importante fonte de conhecimento histórico e ser objeto de

estudo em diversas áreas das Ciências Sociais. Para Marcos Napolitano esse interesse pela

música como fonte histórica em especial a musica popular é muito recente:

A História no seu frenesi contemporâneo por novos objetos e novas fontes, tem se debruçado sobre o fenômeno da musica popular. Mas esse namoro é recente, ao menos no Brasil. A musica popular se tornou tema presente nos programas de pós-graduação, sistematicamente, só a partir do final dos anos 70, sendo que o boom de pesquisas, no Brasil ocorreu a partir dos anos 80. Apesar da presença constante do tema nos trabalho acadêmicos, há muito o que discutir, debater, investigar (NAPOLITANO, 2005, p. 7).

A razão desse lento avanço nas pesquisas sobre música popular deve-se a vários

fatores: falta de uma bibliografia consistente, dispersão ou inexistência de arquivos

organizados sobre o assunto e falta de apoio institucional. As agências financiadoras e as

universidades priorizavam as investigações sobre música erudita ou musica folclórica,

negligenciando o universo musical popular urbano.

Essa historiografia tradicional da música sempre se desenvolveu de uma maneira

desintegrada, analisando a música de uma forma bastante compartimentada sem interligá-la

ao seu contexto histórico, distante de tê-la como uma ferramenta para entender o cotidiano

representado nas canções e as diversas realidades ali representadas. Essa analise tradicional da

música tinha como foco uma investigação voltada para as manifestações folclóricas e os

gêneros rurais e, deixando em segundo plano a produção musical urbana. Segundo José

Geraldo Vinci de Moraes (2000, p. 3), na análise da música urbana feita por tradicionalistas

priorizava-se três aspectos principais:

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[...] a biografia do grande artista, compreendido como uma figura extraordinária e único capaz de realizar a obra, ou seja, o gênio criador e realizador tão comum à historiografia tradicional. Outra postura bastante comum é a que centraliza suas atenções exclusivamente na obra de arte. Por tanto ela está interessada na obra individual, que contem uma verdade em si mesma, distante das questões do “mundo comum”, geralmente, essa análise estabelece uma concepção da obra de arte fora do tempo e da História concedendo-lhe uma aura de eternidade. Finalmente, mas não por ultimo existe uma linha que foca suas explicações nos estilos, gêneros ou escolas artísticas, que contém uma temporalidade própria e estruturas modelares “perfeitamente” estabelecidas fundada nos modelos e com forte característica evolucionista, os gêneros e escolas se sucedem em ritmo progressivo e parecem ter vida própria transcorrendo independente do tempo histórico a que estão submetidos.

Hoje a produção documental salta aos olhos do historiador como um corpo

documental instigante, possuidor de “[...] grande potencial para a revelação do cotidiano, das

sensibilidades e das paixões, como algo que todos os dias penetram pelos ouvidos e está na

boca de todos” (MATOS, 2001, p. 61).

Podemos destacar como exemplo as produções historiográficas referentes a

grandes historiadores, que usam a música como objeto de estudo. É exemplo dessa tendência,

Eric Hobsbawn (1990) História Social do Jazz; Marcos Napolitano (1998) A Invenção da

Música Popular brasileira: Um campo de reflexões para a História social; José Ramos

Tinhorão (1999) História Social da Música Popular; portanto, essas transformações na

moderna historiografia possibilitaram a abertura de um vasto espaço na Academia para

pesquisas em várias áreas da cultura.

A escolha da música como objeto de estudo foi, primeiro pela identidade afetiva

que mantemos com essa forma de expressão artística a qual fomenta grande apreço e especial

interesse pela chamada Música Popular Brasileira. Sigla essa que se tornou quase um conceito

estético, inspirado nos gêneros mais populares como o samba.

Nosso trabalho sobre música popular contempla uma das obras do cantor e

compositor maranhense João do Vale, chamada O Poeta do Povo, lançada em 1965, pela

gravadora Philips. Para uma melhor compreensão do trabalho foi preciso dividi-lo em dois

capítulos. O primeiro faz um levantamento da música do nordeste e sua inserção no cenário

nacional, em seguida fazemos um breve balanço da chamada música de protesto, muito

difundida na época devido ao contexto político do país. O objetivo dessa análise é aproximar-

se das características de cada uma das vertentes musicais, a importância de ambas na cena

musical dos anos 60, e por fim, avaliar a influência que a música de protesto pode ter

desenvolvido na carreira e na obra de João do Vale.

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O segundo capítulo faz uma análise mais detida das canções por temáticas,

procurando destacar a linguagem utilizada na elaboração das mesmas, que neste caso revela-

se bastante politizadas, contestadoras, e irreverentes, todas dotadas de versos e palavras

simples, sem compromisso com formalidades gramaticais, construídas por um homem do

povo .Com isso, pretendemos nos aproximar do universo existencial de João do Vale, calcado

em uma reflexão poética das questões humanas.

Politicamente essas canções do disco O Poeta do Povo em sua maioria serão

enquadradas naquilo que se convencionou chamar de canções participantes, não só por

cotejarem um posicionamento de resistência, aos infortúnios de uma vida cheia injustiças e

limitações à plena cidadania, mas, por fazer frente aos ditames do regime militar que se

instalara no Brasil.

Por outro lado, as canções do disco também têm um lado mais nostálgico onde o

poeta aproveita toda sua criatividade para narrar as suas lembranças da infância, os costumes

de sua terra, o jeito de viver do homem simples do interior do Maranhão e a forma como ele

se relaciona com a natureza e o meio a sua volta.

Com esse procedimento no trato das canções será possível se aproximar da visão de

mundo incorporada por João do Vale e que ele traduz, a forma como ele enxerga a realidade a

sua volta, um homem simples do povo que é alçado à condição de artista renomado, como a

sua experiência de vida contribuiu para a construção dessas imagens que são trazidas à luz por

meio das temáticas que enredam sua obra tais como a situação dos retirantes, a seca, a

violência do latifúndio contra os despossuídos, a negligencia das autoridades com os pobres e

essa revolta manifestada nas canções. Por fim, tentaremos entender as expectativas sociais e

históricas que ele revela e procura construir por meio de suas canções.

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2 PASSEIO EM UM CÉU DE CARCARÁS

2.1 A música do Nordeste no cenário nacional

O Baião torna-se nacionalmente conhecido nos anos 40, por intermédio de quem é

considerado o seu maior representante o cantor e compositor Luis Gonzaga, o rei do Baião.

Apesar do ritmo que lhe deu projeção tenha sido o acima mencionado, ele iniciara sua

carreira, no Rio de Janeiro, na zona do meretrício, conhecido como mangue, executando

diversos ritmos dançantes estrangeiros, valsas, tangos e polcas. Ainda nesse período participa

de um programa de calouros na rádio nacional, onde é contratado. Na mesma rádio é

convencido a encarnar um personagem que representasse o Nordeste, para tanto ele vai trajar-

se com a indumentária de vaqueiro e um chapéu de cangaceiro.

“O sucesso de Gonzaga foi fruto, Por um lado, de um código de gosto que

valorizava as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outro, atendia ao consumo

crescente de signos nordestinos e regionais como signos da nacionalidade”

(ALBUQUERQUE, 2006, p. 157). Levando assim música nordestina para os migrantes

saudosos de sua terra natal, como um representante do povo do sertão e, ao mesmo tempo

afirmando os valores nacionalistas pregados pelo governo Vargas. Gonzaga com o seu

trabalho abrira as portas para várias gerações de artistas oriundos de sua região que

posteriormente seguiriam os seus passos, inclusive na principal temática, a seca.

Esta é apresentada por Gonzaga como uma forma de chamar atenção das

autoridades, sendo a principal responsável pela migração para as grandes cidades do

centro/sul, a canção mais conhecida desse tema é Asa Branca, de 1950,3 a qual ele chamou

mais tarde de musica de protesto cristão. Nessa mesma linha aparece vozes da seca4, onde ele

cobra proteção e providência por parte do Estado, inclusive soluções a serem dadas para o

problema da seca, agenciando claramente enunciados e imagens do já quase secular discurso

da seca (ALBUQUERQUE, 2006, p. 158).

Outro tema constante em sua música é a nostalgia, do migrante da sua terra natal,

onde o sertão é representado como um lugar da saudade, onde o migrante deixou suas raízes,

um lugar quase estático no tempo, uma oposição à vida na cidade grande, onde a sensação do

migrante é de um estrangeiro, numa terra estranha, onde tudo gira em torno do consumo, onde

se perdem os valores regionais, ainda latentes na memória de quem migra.

3 Asa Branca, (Luis Gonzaga, Humberto Teixeira) RCA, 1950. 4 Vozes da seca, (Luis Gonzaga, Zé Dantas) RCA, 1953

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Entretanto, à situação que os nordestinos enfrentavam, totalmente desassistidos

em tempos de seca, vulneráveis à exploração por parte dos grandes proprietários, ansiosos por

uma reforma agrária que garantisse terra ao homem do campo, para que este pudesse plantar e

depender apenas de suas forças gerou algumas críticas quanto à falta de uma postura mais

crítica do seu trabalho. Considerando o alcance que tinha Gonzaga.

Por outro lado, a sua proximidade com as oligarquias do Nordeste, e o seu fácil

trânsito entre autoridades, gerou-lhe alguns desgastes. Gonzaga ao que parece, além de artista

incontestável, sonhava também com uma carreira na política, em duas oportunidades pensou

em se candidatar a Deputado, sendo desaconselhado posteriormente por amigos a não levar o

propósito adiante (DAMAZO, 2004, p. 62) ao que parece, também, foi um artista que nunca

teve constrangimentos junto dos militares do golpe, ele próprio havia servido o exercito

chegando ao posto de sargento.

Tudo indica que a familiarização com o poder, posteriormente causou-lhe

problemas em família, Ficou durante um tempo de relações estremecidas com Gonzaguinha,

por sua postura amigável em relação ao regime do qual o filho era um ferrenho combatente. O

próprio Gonzaga em depoimento a um de seus biógrafos relata o acontecido:

O Gonzaguinha sabia que eu era mais pelos militares. Eu tinha sido soldado durante quase nove anos, e eu sentia naquele meio um engrandecimento muito grande para a minha pessoa. Eles me chamavam para cantar para eles e eu me apresento diante de 20, 30 generais, cantando as coisas do Sertão, porque militar gosta muito de musica que decanta o trabalho, a força, a coragem, a capacidade de desenvolver a terra, tudo que minha música cantava. Uma vez eu cantei para Castelo Branco, numa festa grande que houve em Fortaleza. No final ele me cumprimentou e disse. “Gosto muito de você, Luis” (DREYFUS, 1996, p. 261-262).

A opção em não confrontar a ordem política estabelecida, sendo ela militar ou

civil, nem o sistema capitalista não representa nenhum demérito para o artista que é

considerado um parâmetro para diversos artistas, em especial aqueles oriundos do nordeste,

Gonzaga, reinventou o baião inserindo-lhe elementos de outros ritmos5,assim como ajudou a

difundir outras expressões musicais do nordeste como o xote e o xaxado, por muitos anos foi

a voz do povo do Nordeste, cantou seus hábitos e costumes alegrias e tristezas, contudo não

polemizou, não criticava as causas da migração, e a famigerada indústria da seca, não ousou

deixar claro os motivos da miséria e sofrimento do povo de sua região.

5 Nos anos 40, o Baião chegava ao rio de janeiro por intermédio de Luis Gonzaga, este o divulgara nas estações de rádio e, aos poucos foi acrescentando-lhe elementos do Samba e das Congas cubanas. CASCUDO, Luis de Câmara. Dicionário de Folclore Brasileiro. São Paulo: global, 2001, p.42.

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Gonzaga experimentou aproximadamente uma década no topo das paradas de

sucesso, como um dos melhores artistas de musica popular, entre os anos de 1946 a 1954,

após isso, a musica nordestina representada pelo Baião e por seu maior nome, entrarão em

declínio, tendo maior aceitação somente em sua região de origem.

Mesmo com o seu relativo esquecimento, o baião continuou sendo cultivado por

inúmeros artistas e músicos nacionais, como Dominguinhos, Zito Borborema, João do Vale,

Quinteto Violado, Jorge de Altinho. Na década de 60, com o surgimento do movimento

Tropicalista, inovador, em sua leitura da evolução da musica brasileira, irão resgatá-lo,os

artistas desse movimento em especial Gilberto Gil, reconhecerão a sua importância para a

construção da história da música brasileira.

As razões para esse declínio segundo Durval Muniz Albuquerque, foi justamente

o seu regionalismo, a sua identificação com uma região atrasada marginalizada pela própria

forma como se desenvolveu a economia do país e como foi gestada discursivamente

(ALBUQUERQUE, 2006, p. 159).

É claro que existem no Nordeste outros ritmos além do baião como o xote o

xaxado e uma infinidade de outras manifestações culturais, nordestinas, que

concomitantemente ao período estudado e devido a uma maior difusão, terão o seu

reconhecimento, mais nenhum outro artista conseguiu dar destaque ao baião, igual ao

destaque alcançado, na voz de Luis Gonzaga, que foi o grande precursor, que procurou dar-

lhe um caráter comercial e assim o tornou mais popular nos grandes centros urbanos do país.

João do Vale trilhou caminho diferente, optou por denunciar, protestando contra

tudo aquilo que acreditava ser o responsável pela situação que afligia o homem do campo e da

cidade, mostrando-se sempre incomodado com as injustiças, com tudo que tinha certeza que

poderia ser modificado por ação do homem.

Eu faço o que sempre fiz e como sei fazer. Desde que me entendo por gente faço verso e sou assim. Falo de problemas da minha terra, de injustiças que vi e sofri na carcaça, de coisas que me magoam e chocam da exploração do homem pelo homem. Não posso ficar fazendo só musiquinhas de amor-e-flor se isso ai não é o importante na minha vida. Por isso eu continuo batalhando, porque a gente não pode parar. Eu continuo na briga, mesmo sabendo que ela não está mole, não. (NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, 1977, p.10)

Nota-se então que se configura nas canções de João do Vale, toda a cultura de um

povo humilde. E esse povo, se é mais especificamente do Maranhão ou do Nordeste, não

deixa de ser o povo brasileiro, simples e pobre como um todo, personagem central da obra de

um típico artista da música popular brasileira de origem popular.

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A realidade social é, pois, na obra de João do Vale, essencial para suas

composições, todas as dificuldades sofridas pelos que são submetidos a toda sorte de

privação, situação em que se encontra ainda grande parte da população brasileira, estão na

base da sua criação musical. Logo, também o universo cultural, as crenças e os costumes.

Observa-se que, assim como Luis Gonzaga, João do Vale é um cronista do povo

com o qual se identifica, mas, politicamente, constrói uma abordagem diferente para as

temáticas cantadas por Gonzaga. João é parte daquilo representado nas canções, sente-se

compelido a ir além de lamuriar-se e, toma uma posição combativa nas questões que assolam

o povo mais sofrido. Sem dúvida foi esse o seu passaporte para o reconhecimento do público

nos agitados anos 60, e entre os artistas integrantes do grupo que produziam musica

participante.

2.2 A Música de protesto

A música de protesto no Brasil tem seu auge na década de 60 e 70, coincidindo

como a tomada de poder, pelo do Golpe Militar de 64. Vários artistas, compositores e

cantores passaram a discutir e propor formas de ação de resistência e de combate. Esse tipo de

canção tem uma forte identificação com as idéias defendidas pelos CPC, s da UNE, que bem

antes da chegada ao poder dos militares, dava suporte as propostas reformistas do presidente

João Goulart.

O ponto onde as idéias de todas essas vanguardas se encontravam, era na busca de

um paradigma que abarcasse os anseios nacionais e populares desenvolvidos nas propostas de

reformas de base estipuladas pelo governo Jango. Para tanto se entendia como prioridade;

combater o imperialismo e o latifúndio, entendidos com responsáveis pelo atraso nacional.

Como não se faz revolução apenas com intelectuais e pessoas bem intencionadas,

era preciso desenvolver estratégias que despertasse a maioria da população do seu sono

letárgico, do seu desinteresse pelas questões políticas do país. Foi então que, chegou-se a

conclusão que a arte podia ser um meio para tomada de consciência política das camadas

populares, sobre o seu papel na sociedade. Com o golpe diversos artistas passam a buscar uma

função social para sua música, era uma forma de intervir politicamente na realidade,

contribuindo para a transformação da sociedade. Nas palavras de Arnaldo Contier

ideologizou-se o signo musical:

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Muitos compositores foram sacralizando normas, critérios de suas escrituras, que se transfiguraram num modelo dogmático, válido e inquestionável estética e politicamente. Por essa razão muitos críticos, historiadores, envolvidos com essa verdade, passaram a censurar ou patrulhar tendências que não se harmonizavam com essa leitura da História do Brasil. E, assim consciente ou inconsciente, foram construindo uma nova memória sobre a cultura, de um lado, o mundo rural (sertanejo, retirante, moda-de-viola, frevo, baião, embolada, bumba-meu-boi) e, de outro o mundo urbano representado pelo morro (samba, pandeiro, ritmo sincopado) (CONTIER, 1998, p. 3).

É preciso frisar que, a busca de uma superação desse modelo de desenvolvimento

considerado arcaico por meio da arte, tinha um critério, norteador, a exaltação da brasilidade,

manifesta em elementos culturais tipicamente brasileiros. Dessa forma, com essa concepção

de arte engajada mitificou-se duas categorias que agregavam elementos do então entendido

verdadeiro povo brasileiro que vivia esquecido e marginalizado; o morro como símbolo do

favelado e das periferias dos grandes centros urbanos industrializados; o outro lado o sertão

com populações famintas, manipuladas pelo imaginário conservador, o messianismo

religioso, culturas afro-brasileiras e o mandonismo político local.

Essas produções artísticas externavam-se em forma de denuncia, revelando um

Brasil que o povo não conhecia, o fim desse trabalho era a conscientização do povo, por meio

de uma critica contundente à situação em que se encontrava a maior parte da população,

expondo as contradições nacionais, o autoritarismo dos poderosos representados pela elite

conservadora, e os militares. Tudo isso era envolto de um caráter pedagógico, uma tentativa

de aproximação com as pessoas simples para conquistar o seu apoio por meio de uma ação ao

mesmo tempo cultural, mas, também política conscientizadora.

As canções tinham aqui uma característica marcante, uma preocupação com o

conteúdo, e certo desdém com a renovação das formas, que ganhava corpo ao som da Bossa-

Nova, Jovem guarda e Tropicália. Os principais representantes dessa produção engajada, ou

de protesto são Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré e Carlos Lyra. Chico Buarque vai

representar nas suas canções a sociedade da época, seu cotidiano, suas angústias e seus

anseios por dias melhores, ou, como se costumava caracterizar as mensagens dessas canções,

pelo dia que virá.

Músicas como construção6, onde o autor utiliza-se de um exercício poético

refinado para apresentar o cotidiano de um operário numa construção, culminando com sua

queda e morte, metáfora da opressão social e existencial que se abatia sobre as classes

populares do Brasil.

6 Construção (Chico Buarque de Holanda) Philips, 1971

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Essa música, além de ser uma extraordinária construção artística, reflete uma face

trágica do homem visualizada num momento de vida (em construção). Mas, ao construir, o

homem é destruído por todo um sistema desumano, por toda uma concepção egoísta. Passa

por um processo de coisificação, desde a primeira estrofe:

Amou daquela vez como se fosse máquina

O que se confirma pelo resultado desse processo:

E acabou no chão feito um pacote flácido

E acabou no chão feito um pacote tímido

E acabou no chão feito um pacote bêbado.

Reafirmando que o ser humano é visto diante da coletividade, de forma irônica. Já

que o sábado é um dia convencionalmente feito para o lazer, consagrado pela burguesia como

festa, aventura etc. E esse homem que nem nome tem, tão coisa que é, tão nada, não poderia

ficar impune.

Sua desgraça foi morrer num sábado, na contramão, atrapalhando a vida, os

divertimentos. “Contudo esse anônimo atrapalhou a sociedade, perturbou o sistema, destruiu o

instituído, desestabeleceu o estabelecido, desfez o que estava feito, desarmou o que estava

armado. Por isso mesmo Construção desencanta o encantado, desmistifica o mito, ordena o

caótico” (SILVA, 1980, p. 17).

O compositor questiona a insensatez da sociedade, seu desdém pelo próximo, seu

desinteresse comunitário. E confirmando a lenta eliminação dos valores essenciais do homem,

durante essa existência triste, o amor é praticamente anulado, enquanto possibilidade de

concretização. Chico Buarque ainda critica a indiferença, a opressão exercida sobre os

humildes, redução cada vez maior da individualidade humana. Registra o homem esquecido

perdido em seu anonimato.

Mesmo sendo um discurso altamente poético, percebe-se que na canção são

preservados os ideais de resistência que moviam o artista, não permitindo dessa forma que se

percam também os significados presentes na dimensão social. A preocupação com o social em

Construção como em toda sua obra é evidente. Sabe o artista que a poesia é o seu

instrumento, o veículo de denuncia e de crítica, de representação de uma realidade desumana

e injusta. Pois é preciso que o homem não seja máquina nem pacote. Mas que signifique. Que

também possa exercer sua liberdade.

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Assim deve ser visto pela sociedade, assim deve ser entendido por todos. Chico

Buarque aponta para uma estrutura social que não gostaria que existisse para uma coisificação

do homem que não deve persistir. Em Construção, o sujeito é generalizado, o homem é visto

em relação à sociedade de maneira trágica, oprimido, marcado pela inutilidade. Ele constrói,

mas é destruído.

Geraldo Vandré fora outro grande exemplo de canção engajada, a canção Pra não

dizer que não falei das flores 7, considerada por muitos a marselhesa brasileira, chamando o

povo para uma ação mais efetiva contra a ditadura e, por outro lado, tentando mostrar que em

todos os setores da sociedade havia o inconformismo com a situação brasileira. Essa música

foi tomada como hino principalmente por aqueles que criticavam os que acreditavam no lema

só o povo organizado conquista o poder. Muitos tomaram essa canção como uma chamada

para a luta armada.

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Aprendendo e ensinando

Uma nova lição...

Vem, vamos embora

Que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer

Em alguns aspectos a poesia de Vandré se apresenta diversificada, praticamente

por dois caminhos, encontramos a temática nordestina e, um certo lirismo em que prevalece o

amor. Contudo esses dois caminhos convergem para um mesmo ponto de partida, dirigem-se

para um único ideal o canto coletivo. Daí o caráter universal das canções de Vandré numa

busca de incessante atualização da realidade brasileira.

Em tudo isso a presença do social, do político, do contestatório é evidente na obra

de Vandré o que naturalmente na época lha trouxe notória popularidade, principalmente, por

suas desavenças com o sistema político após 64, o que vai culminar com a proibição de Pra

não dizer que não falei das flores, apresentada, no 3º festival internacional da canção.

O nome de Vandré passou a gerar uma série de controvérsias, surgindo as mais

diferentes versões sobre seu afastamento do cenário musical e cultural do país. De qualquer

maneira, ficou a imagem do poeta que tinha o protesto social acima de qualquer proposta.

7 Pra não Dizer que não Falei das Flores (Geraldo Vandré) Som Maior, 1979.

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Tanto na temática nordestina como no lirismo trazia a mensagem de participação coletiva, de

movimentação conjunta. No amor, na luta, na canção. O poeta se mostra estimulado pela

possibilidade de encontro entre os homens, de união.

Com a temática voltada para criticar a dependência econômica e o

subdesenvolvimento que, segundo o entendimento dos intelectuais ligados aos CPC’s e

oposicionistas à ditadura era uma das razões para nossas desventuras, temos a canção do

subdesenvolvido8, de Carlos Lyra e Chico de Assis, ambos ligados às atividades do CPC.

O Brasil é uma terra de amores

Alcatifada de flores

Onde a brisa fala amores

Em lindas tardes de abril

Correi pras bandas do sul

Debaixo de um céu de anil

Encontrareis um gigante deitado

Santa Cruz, hoje o Brasil

Mas um dia o gigante despertou

Deixou de ser gigante adormecido

E dele um anão se levantou

Era um país subdesenvolvido

Subdesenvolvido, subdesenvolvido, etc. (refrão)

E passado o período colonial

O país se transformou num bom quintal

E depois de dadas as contas a Portugal

Instaurou-se o latifúndio nacional, ai!

Subdesenvolvido, subdesenvolvido

Então o bravo povo brasileiro

Em perigos e guerras esforçado

Mais que prometia a força humana

Plantou couve, colheu banana

Bravo esforço do povo brasileiro

Que importou capital lá do estrangeiro

Subdesenvolvido, subdesenvolvido

8 Canção do Subdesenvolvido (Carlos Lyra e Chico de Assis) Philips, 1969.

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Na musica os autores fazem criticas e referências à dependência econômica e

cultural do Brasil com relação aos Estados Unidos. Críticas essas que ganham tons explícitos

em vários trechos, e logo em seguida uma retrospectiva da História Colonial e imperial

Brasileira e da dominação portuguesa e inglesa.

Assim a música popular é tomada como uma forma de despertar as consciências

para a realidade brasileira. Fazer música de protesto é compreender que o problema do

analfabetismo,assim como o da deficiência de vagas nas Universidades não está dissociado da

condição de miséria do camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país.

Ser artista engajado nesse momento é compreender que as dificuldades para um

superdimensionamento das atividades intelectuais são frutos da deficiência do ensino e da

cultura que fortalece os privilégios de uma reduzida faixa da população.

Pode-se abstrair que todos os artistas que participaram do movimento de

resistência à ditadura compreendiam que os problemas só encontrarão solução mediante

profundas transformações na estrutura sócio-econômica e, conseqüentemente, no sistema de

poder.

Foram muitos os artistas e várias as canções que ilustram esse período da História

brasileira, e que tiveram importância na luta contra a Ditadura Militar, não cabendo aqui fazer

uma alusão a todos os artistas e canções, que embalaram esse período detalhadamente.

Concomitantemente à produção fértil, havia reconhecidamente um público que consumia o

que era produzido por esses artistas, eram diversos festivais organizados com música desse

conteúdo.

Esse tipo de produção ganhará importância principalmente na mídia, devido

exatamente às restrições institucionais que muitos desses artistas engajados vão sofrer, o que

além de ocasionar prejuízos profissionais, econômicos para os mesmos, irá também

evidenciar a face autoritária da ditadura em relação a produção cultural nacional. Além de ser

a forma mais representativa de combate à opressão e à censura impostas pela Ditadura Militar

é inegável suas influências nas produções musicais posteriores.

João do Vale, coincidentemente, foi um dos artistas mais representativos desse

período, não por sua militância constante nos movimentos que lutavam contra a Ditadura, mas

por canções de conteúdo contestador até anteriores à Ditadura. O que para época era o

suficiente para ganhar um lugar de destaque.

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3 QUEM A PACA CARA COMPRA CARA A PACA PAGARÁ: análise das canções

É nesse cenário conflitante de posturas ideológicas e autoritarismo político que

surge João do Vale, visto com um artista do povo com músicas de uma poesia simples, cheia

de picardia e ao mesmo tempo tocante. Embalado pelo sucesso do Show Opinião9, João do

Vale aproveitava para gravar o seu tão esperado primeiro disco, O LP O Poeta do Povo

(PHILIPS, 1965). O disco não possui uma uniformidade de gênero musical, apesar do ritmo

que João mais se identificava ser o baião, é possível a presença de outros ritmos como o xote

e o samba.

As canções são fruto de diversas parcerias e foram compostas em momentos

diferentes do início da carreira do artista de forma que não obedecem a uma ordem

cronológica e não foram feitas com objetivo de um projeto a ser materializado no disco: O

Poeta do Povo.

As músicas que compõem o disco são as seguintes: A Voz do Povo, um Samba de

1964, feita em parceria com Luiz Vieira; Carcará, samba-batuque de 1965, feita em parceria

com José Candido, Pra Mim Não, baião de 1965, em parceria com Marília Bernardes, Peba

na Pimenta, xote de 1957, com as participações de José Batista e Adelino Rivera; Minha

História, Toada-Baião de 1960, com Raymundo Batista, A Lavadeira e o lavrador, baião de

1965, em parceira com Ary Monteiro; Pisa na Fulô, baião de 1957, com as participações de

Ernesto Pires e Silveira Jr; O Jangadeiro, toada de 1957, feita em parceria com Dulce Brito;

Fogo no Paraná, baião de 1964, com Helena Cavalcante do Nascimento; Ouricuri, baião de

1958, feita em parceria com José Candido. O Bom Filho a Casa Sempre Torna, xote de 1965 ,

com Eraldo Monteiro; Sina de Caboclo, Samba de 1958, com Jocastro Bezerra de Aquino.

Como se pode ver todas as músicas que fazem parte da obra O Poeta do Povo são

assinadas por João do Vale com uma infinidade de parceiros. Essa realidade é constatada em

quase toda a sua obra. João era um artista semi-analfabeto, sem nenhum conhecimento

musical, migrante nordestino, meio que perdido, logo sempre foi muito dependente de outras

pessoas para ajudá-lo a escrever suas músicas e a divulgar seu trabalho. Lógico que ninguém

chegaria aonde ele chegou, lutando contra todas as dificuldades sem um pouco de malícia e

jogo de cintura como se extrai da citação seguinte:

9 A Opinião foi uma peça teatral montada no Rio de Janeiro em 1964, por Oduvaldo Viana Filho, como forma de resistência pela arte contra a ditadura militar. A peça misturava encenação teatral e música tinha como protagonistas João do Vale que representava um homem do nordeste, Zé Kéti, que representava o trabalhador urbano favelado e Nara Leão que representava a classe média.

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Eu fui à gravadora receber, mas quando souberam minha idade, não quiseram me pagar. Diziam que era muito dinheiro para um garoto levar. Falei com o dono da gravadora e ele me disse para arranjar alguém de maior, mais responsável. Olhei bem para ele e disse: ‘ vim do Maranhão sozinho, tô morando no Rio sozinho, trabalho e fiz a música. Será que uma pessoa assim sabe onde mete o nariz ou não sabe?’ Ele então virou e falou: paga o garoto (Paschoal, 2000, p. 40).

Porém, em um mercado fonográfico em formação como era o nosso, nos idos dos

anos 50, não era difícil encontrar quem quisesse tirar vantagem de alguém com pouco

conhecimento sobre diretos autorias e os caminhos que têm que ser traçados desde a

composição de uma canção até a sua distribuição pelas gravadoras e João não sabia quase

nada sobre isso. Recebia aquilo que os donos de gravadora consideravam justo pelo seu

trabalho, talvez venha daí a razão de ter vendido tantas participações para terceiros em suas

composições.

3.1 A Luta Contra a Exploração

João do Vale foi um desses homens que nunca aceitou as injustiças como regra,

sempre lutou e desenvolveu meios de lutar contra todo tipo de infortúnio que lhe foi posto ao

longo de sua vida, ainda adolescente decidiu que não levaria uma vida igual à de muito de

seus conterrâneos e partiu para enfrentar o desconhecido com um circo, que estava se

apresentando em Pedreiras, e adulto lutou para conseguir espaço no meio onde melhor se

identificara: o meio artístico, nunca esqueceu suas raízes, sabia de sua origem, a qual nunca

perdera os elos, e por isso sempre encontrou através da sua arte uma forma de dar voz a essa

gente com quem desde cedo se identificava e seguiu fazendo o que mais gostava, cantar a

realidade que viu e viveu.

A partir da leitura dos versos que formam as canções do disco podem-se

identificar as temáticas mais recorrentes em sua obra, vez por outra é possível encontrar nas

canções mais de uma temática, assim como algumas temáticas atravessam varias canções. O

tema da resistência talvez seja o que mais se familiarizava com o autor.

As canções que tratam de outros temas como a seca, a migração e a exploração do

trabalhador. Mesmo guardando suas especificidades não deixam de ser de alguma maneira,

forma de resistência de um artista convicto do seu papel, por fim, temos as canções que

revelam um João do Vale mais nostálgico das coisas boas e ruins de sua infância, das

lembranças de sua terra natal, onde talvez ele mais se aproxime do seu mestre e amigo Luis

Gonzaga, o rei do Baião.

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O trecho a seguir pertence à música a Voz do Povo10

.É a música que abre o disco,

nela João afasta-se do ritmo que o consagrou, o Baião, e aventura-se muito bem pelos

territórios do Samba, mostrando na música boa cadência, uma linguagem simples e bastante

tocante.

Eu fui pedir aumento ao patrão

Fui piorar minha situação

O meu nome foi pra lista

Na mesma hora

Dos que iam ser mandados embora

Podemos destacar nesses versos, que remetem à questão da exploração contra os

mais despossuídos a costumeira prepotência dos donos dos meios de produção. No enredo da

música o patrão não admite o pleito de um empregado, que deve ter-lhe sondado com um

pedido de aumento, para melhor recompensar o uso de sua mão-de-obra. Joao trabalhou

durante um tempo como servente de construção civil no Rio de Janeiro, isso que é narrado

talvez não tenha acontecido necessariamente com ele mais com outra pessoa com a qual

conviveu e partilhou esse tipo de experiência. O que se destaca aqui é sua verve de bom

cronista social,transformando um momento de infortúnio em um verso, que espõe o tipo de

tratamento dispensado ao trabalhador.

Essa leitura da realidade está em qualquer, manual de Sociologia, ensinando que a

desigualdade quase sempre gerou exploração sendo algo quase natural nas sociedades, sejam

elas ocidentais e orientais. No capitalismo essa naturalidade é ainda mais sutil, pelo

acortinamento imposto pela ideologia burguesa que dita padrões de consumo e regras de

comportamento, induzindo os indivíduos a acreditar que isso é assim mesmo. E, talvez seja. O

que não obriga todo mundo a concordar com essa mentalidade.

Joao do Vale do alto do seu inconformismo não entendia e dificilmente aceitava

essas regras tão bem cristalizadas na maioria das cabeças. Ironias a parte, devemos lembrar

que o inconformado em questão é um sujeito semi-analfabeto que nunca teve grandes

convicções políticas ou ideológicas, passava longe de debates teóricos sobre o marxismo e

outros ismos porém era muito claro em suas composições a sua preferência pelos menos

favorecidos. Acompanhemos esse trecho da música pra mim não11, onde é claro o seu ponto

de vista sobre a questão da desigualdade e da exploração.

10 A Voz do povo (João do Vale e Luiz Vieira) Philips, 1964. 11 Pra Mim Não (João do Vale e Marília Bernardes) Philips, 1965

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Eu conheço dito assim

Todos nós somos irmão

Que o sol nasceu pra todos

Mais pra mim não

Mais pra mim não

Trabalhou de sol a sol

Os meus calos é só nas mãos

Só um cego que não vê

Que eu dou lucro a meu irmão

Mais pra mim não

Parece que não era preciso ter ao alcance certas teorias para ter a percepção dessas

coisas, principalmente, para alguém que traz isso no rosto, vivenciou tudo de perto, logo a

mensagem não poderia ser mais clara: por que eu trabalho e, só ele enriquece? Afinal, não

somos todos irmãos? Não somos todos iguais? Não é esse o ideal cristão? Por quê esse

privilégio onde alguns não têm que trabalhar e ainda assim ficam com a maior parte? Essa

mentalidade e entendimento da realidade beira o clássico comunismo primitivo onde tudo é de

todos. Vai ver fosse isso que João realmente desejasse e entendia como justo.

O universo do trabalho, a vida do trabalhador humilde são uma das temáticas mais

fortes na produção musical de João do Vale. O ganhar a vida em condições adversas e

desiguais, se torna na obra de João do Vale algo nobre, o artista mostra-se solidário para com

quem exerce um trabalho desprestigiado por ser braçal e por viver seus riscos. A tônica da

canção O jangadeiro12 é dada pela necessidade de sobrevivência do personagem e de sua

família. Para isso ele precisa enfrentar os perigos do mar e a exploração, quando vai vender o

fruto da pesca.

Jangadeiro vai ganhar a vida em alto-mar

Vai sem saber se volta

Mas tem que a vida ganhar

Quando ele vem voltando

Na beira da praia fica logo assim de gente pro peixe comprar

Peixe a cem mil-réis ninguém quer pagar

Todos querem peixe bonito no preço do fiscal

Quem nunca enfrentou temporal

Mais ele enfrenta tudo porque tem Zezinho

Filho de estimação que quer aprender a ler

12 O Jangadeiro, (João do Vale e Dulce Nunes) Philips, 1957.

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A razão dessa submissão do pescador aos ditames de quem controla o preço do

seu trabalho que tudo indica deva ser algum funcionário público investido do poder do Estado

deve-se a necessidade de sustentar a família e o sonho de ver o filho crescer em uma profissão

que não demande tantos riscos. Apesar de o pescador ser o protagonista na captura do

pescado, o preço final é determinado por alguém que não entrou no mar e enfrentou seus

perigos. O Jangadeiro aproxima-se muito de outras canções que têm como tema o mar ou

quem leva a vida no mar. Dorival Caymmi é o maior representante dessa temática com

destaque para sua Suíte de Pescadores13

.

Nessa canção Caymmi recorre a uma tragédia para contar o drama ao qual muitos

pescadores estão sujeitos: naufrágios, afogamentos etc. João não tinha muitos vínculos com o

mar, não era um dos seus temas favoritos, por isso na canção limita-se a uma composição

lírico-social subjetivando o problema vivido por esse representante dessa categoria de

trabalhadores. Revoltar-se contra as imposições do meio, parecia ser a sina desse caboclo de

Pedreiras que não aceitou levar uma vida submetida ao julgo dos proprietários de terra,

obrigado a plantar para dividir com que não plantou nada.

Eu sou um pobre caboclo,

Ganho a vida na enxada.

O que eu colho é dividido

Com quem não plantou nada

Infelizmente essa realidade retratada em um dos versos da canção sina de

caboclo14, ainda é a realidade de milhares de brasileiros Brasil a fora, que não possuem terra

para tirar o seu próprio sustento restando-lhes duas opções: esperar por uma reforma agrária

que anda a passos muito lentos, ou migrar para a ilusão das grandes cidades em busca de uma

vida melhor e com mais liberdade.

13 Suíte de pescadores (Dorival Caymmi) Odeon, 1957. 14 Sina de Caboclo (João do Vale, Zélia Barbosa, J. B. de Aquino) Philips, 1958.

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3.2 A migração

A não aceitação das condições degradantes no campo obrigou milhares de pessoas

a migrar para as cidades grandes. Migrar aparece aqui como uma forma de rebelar-se contra a

exploração, de mostrar que se é livre para escolher o seu destino, mesmo que seja para ser

explorado de outra forma. Os versos da canção Sina de caboclo a pouco trabalhada traz

também um pouco desse cosmos, de realidades pessoais que se entrecruzam no fenômeno

migratório.

Se assim continuar

vou deixar o meu sertão,

mesmos os olhos cheios d'água

e com dor no coração.

Vou pró Rio carregar massas

prós pedreiros em construção

Apesar da transumância ser uma das característica dos homens livres e pobres,

este fenômeno tem marcas indeléveis, a mais traumática é a perda das relações sociais que se

tinha com o seu lugar de origem, constitutiva dos referenciais que formam a identidade.

(GUILLEN, 2001, p. 1). As razões expostas na canção que explicam os motivos que levam o

sertanejo a distanciar-se do seu lugar de origem são diferentes do binômio tradicional

seca/imigração João é oriundo de uma parte do sertão que é farto em água, o Maranhão

cortado por grandes rios, as condições que criam a migração, são definidas pela exclusão

social, provocada pela concentração de muitas terras nas mãos de uma minoria que, de posse

dos meios de produção, impõe uma vida de privações e desconforto material para quem se

sujeita a uma situação injusta de ter que produzir para dividir com quem não plantou nada.

A canção também toca em um outro ponto que pode ser considerado um dos

causadores das migrações do povo da região Nordeste em direção ao Centro/Sul do país, a

necessidade de uma Reforma Agrária Joao como grande conhecedor das reivindicações do

caboclo do sertão entendia que o homem do campo também queria participar do

desenvolvimento do País de forma ativa, sem precisar sair da sua terra, assim como não queria

viver como um peso que precisa ser carregado e sempre dependente da ajuda governamental,

seja por meio de sestas básicas, seja por qualquer outro benefício que o deixe em uma

situação de alguém que precisa sempre ser ajudado, o que não deixa de ser um grande

constrangimento para o homem do campo, que prefere depender de sua enxada e de suas

próprias forças.

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Porém não devemos, de todo, creditar ao fenômeno da seca à concentração de

terras nas mãos de poucos como o único motivo para a migração. Muitas vezes o desejo de

aventurar-se mundo a fora em busca de maiores confortos leva o migrante sertanejo ou não,

buscar novos horizontes. Veja o exemplo dos seguintes versos da música O Bom Filho a

Casa Torna15 onde o personagem migra de sua terra natal para tentar a vida na cidade grande,

o que inevitavelmente, leva-nos a imaginar que se trata de uma concidência com a história de

vida do próprio autor da canção.

Eu vou contar seu moço

Por que deixei meu sertão

Não foi pru falta de inverno

Não foi pra fazer baião

Não foi pra fazer baião

Essas aventuras muitas vezes acabam em desilusão, pois a cidade grande tem uma

dinâmica Própria irrefreável, o que para quem migra encontra muitas vezes dificuldades para

adptar-se, tornando esse processo um tanto quanto traumático.

É que todo sertanejo

Sempre tem essa ilusão

Conhecer cidade grande

E põe nas costas um matulão

Deixa que cá na cidade

Não existe exploração

Daí o arrependimento e o desejo de voltar para seu lugar de origem, onde

aprendeu a viver e a relacionar-se com seus semelhantes, pessoas de hábitos e costumes

parecidos com os seus. Diferente da cidade grande onde as condições de estranho são latentes,

onde as pessoas tem relações apenas amistosas e pragmáticas, onde todos têm pressa e se

dedicam a ir e vir do trabalho para casa.

15 O Bom Filho a Casa Torna ( João do Vale ) Philips, 1965.

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Acontece é que vi tudo

Arranha-céu muita grandeza

Móio de ferro voando

Remexendo a natureza

mais o cheirim de mato verde

Pra mim tem mais beleza

Entretanto são muitos os casos de migrantes que em sua luta diária para

sobreviver, longe da sua terra natal, superam obstáculos que lhes são impostos pelo meio, e

realizam o sonho de ter uma vida melhor, conseguindo adptar-se à nova realidade é o que se

pode ver nos versos da canção fogo no paraná16 que retrata a vida de um migrante exitoso

materialmente.

Seu Zé Paraíba, Seu "Zé das Criança"

foi pro Paraná, cheio de esperança

levou a "muié", e seis "barriguidin"

Pedro, Joca e Mané

Ceverina, Zefa e Toin

No Norte do Paraná

todo serviço enfrentou

batendo enxada no chão

mostrou que tinha valor

dois anos de bom trabalho

até cavalo comprou

Sem aquela idéia fixa de voltar quando tudo melhorasse lá pelo sertão, algo que

chega a ser um lugar comum na cabeça de muitos migrantes e enrreda muito do cancionário

sobre o nordestino, a saudade da terra natal. Os personagens parecem estar muito bem

adaptados e inseridos no mundo sulista.

a meninada crescia

robusta e muito animada

a "muié" sempre dizia

ninguém tá com pança inchada

tudo igualzim a sulista

de buchechinha rosada

16 Fogo no Paraná (João do Vale e Helena Cavalcanti do Nascimento) Philips, 1964

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Mas com a ação irrefreável do destino, uma tragédia abate-se sobre aquela

família, frequente má sorte do nordestino vem à tona por intermédio das chamas que leva tudo

embora, inclusive um dos membros da prole de Zé Paraíba, Reforçando na obra de João do

vale, a concepção de fatalidade a que parece estar fadado o nordestino.

aquele fogo maldito

que o Paraná quase engole

José lutava com ele

acompanhado da prole

vós misse fiquem sabendo

que José nunca foi mole

depois de tudo perdido

José voltou pro ranchinho

foi conferir os meninos

tava faltando Toinho

Deus quando dá a farinha o diabo vem e rasga o saco.A canção revela uma

situação de um migrante nordestino mas que poderia ser de boa parte da população brasileira,

a permanente vulnerabilidade do homem aos imperativos da natureza, o fracasso que

dissemina o conformismo e a miséria que relega a maioria do povo a pobreza, sem condições

de responder às adversidades quando os poderes estabelecidos não intervêm.

3.3 Os Infortúnios da Vida e as Estratégias para Enfrentá-los

Ao longo do tempo, o povo das regiões mais desasistidas do país, desenvolveu

estratégias próprias de sobrevivência. Assolados pela miséria, pela falta de saúde, falta de

educação, a quase total ausência dos poderes constituídos que, muitas vezes, só aparecem

em épocá de eleição ou pra fazer cumprir a lei, os moradores dessas regiões do país são

obrigados a desenvolverem estratégias próprias para poderem sobreviver.

É aquilo que pode ser definido como sabedoria popular, Uma forma de

conhecimento baseada na experiência, na observação da natureza, em seus ciclos,

conhecimento que é passado de geração para geração, oralmente. A canção uricuri (segredos

do sertanejo)17 tem essa perspectiva de mostrar o sertanejo como alguém que desenvolveu um

convívio harmonizado com a natureza. Esses conhecimentos adquiridos de uma forma não

17 Uricuri: Segredo do Sertanejo, (João do Vale e José Candido) Philips, 1958.

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convencional, isto é, nos bancos da escola, não deixam de ser uma forma de educação

adaptada às necessidades do homem do interior.

Uricuri madurou ô é sinal

Que arapuá já fez mel

Catingueira fulôro lá no sertão

Vai cair chuva granel

Arapuá esperando

Oricuri "maduricer"

Catingueira fulôrando sertanejo

Esperando chover.

Outras vezes, essa educação engendrada longe dos bancos escolares e das

formalidades é muito importante para que o sertanejo possa desvendar alguns mistérios que

cercam seu habitat. Esse conhecimento muitas vezes é cercado de significados que beiram o

mito, muitos organizam suas vidas em torno dessas análises, que aceitam inclusive

deslocamentos no tempo e no espaço, permitindo-lhes fazer previsões sobre a natureza e o

futuro. É o que se abstrai da segunda estrofe da canção Uricuri.

Lá no sertão, quase ninguém tem estudo

Um ou outro que lá aprendeu ler

Mas tem homem capaz de fazer tudo doutor

E antecipa o que vai acontecer

Catingueira fulora vai chover

Andorinha voou vai ter verão

Gavião se cantar é estiada

Vai haver boa safra no sertão

Se o galo cantar fora de hora

É mulher dando fora pode crer

A cauã se cantar perto de casa

É agoro é alguém que vai morrer

Isso claro não deixa de ser um interessante objeto de estudo, porém esconde algo

perverso e intencional, construido ao longo de décadas por autoridades ávidas por recursos

federais para suas regiões, legando às polulações, a do Nordeste, em particular ,e ao sertanejo,

o maior índice de analfabetismo do país. Ainda nos dias de hoje, são poucas as pessoas que

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tiveram acesso à educação formal, que ao que nos parece é a única maneira de redimir com

dignidade ou pelo ao menos minimizar o sofrimento de quem não tem muitas perspectivas.

Na canção Minha História18, é narrada uma situação pessoal, vivida por João do

Vale, mas que não é só sua, é a arealidade de muitos, de sua terra e de outras que tiveram que

deixar o banco da escola para ajudar no próprio sustento das suas famílias. A miséria nesse

aspecto torna-se um fator determinante para frustar a continuidade dos estudos, interferindo

por meio de outros imperativos, na vida de quem almejava melhorar sua condição, tornar-se

letrado, para fugir da pobreza.

Eu vendia pirulito

Arroz doce, mungunzá

Enquanto eu ia vender doce

Meus colegas iam estudar

A minha mãe tão pobrezinha

Não podia me educar

Apesar do relato desalentador e revoltante, João não se deixou abater, não desistiu

dos seus sonhos, mesmo que naqueles dias tivera de abandonar os estudos, saiu mundo a fora,

em busca de realização, primeiro com ajudante de predeiro, até alcançar seu objetivo: tornar-

se um compositor respeitado. Joao não sente inveja dos amigos que se tornaram doutores, ao

contrário sente-se bem, talvez por aceitar o fatalismo: quem nasce pra pataca nunca pode ser

vintém” conformado com o passado desventurado para os estudos, algo que lhe foi imposto,

mas que a vida tratou de compensar-lhe com talento para a arte.

Ver meus amigos doutor

Basta pra me sentir bem

Mas todos eles quando ouvem

Um baiãozinho que eu fiz

Ficam todos satisfeitos

Batem palma, pedem bis

E dizem: João foi meu colega

Como eu me sinto feliz

Ainda assim, com problemas de ordens diversas, Joao volta-se para aqueles que

ele considera ainda excluídos, dando a entender que a questão é social, já que nem todos têm

18 Minha História (João do Vale e Raimundo evangelista) Philips, 1960.

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talento para a arte.O que poderia ser a história de João do Vale é a história de todos que são

excluídos.

Mas o negócio não é bem eu

É Mane, Pedro e Romão

Que também foi meus colegas

E ficaram no sertão

Não puderam estudar

E nem sabem fazer baião.

Ainda hoje no Maranhão e em qualquer lugar dito civilizado, a única maneira das

pessoas de origem humilde ascender socialmente é por meio dos estudos. Em minha história

entra outro ingrediente além do esforço pessoal, a sorte. João foi arrancado do convívio

escolar para dar lugar ao filho de um funcionário público. Poderia ser só mais uma entre

tantas injustiças que se tem notícia. Por que logo João? Por que era negro? De família muito

humilde e, tinha que trabalhar para ajudar no sustento da família? o que levou as autoridades

escolares a supor que não teria tempo para estudar. Assim decidiram que isso não lhe teria

importância, à cena pertence à infância do jovem poeta do povo, na qual ele narra essa

passagem com um certo rancor:

Tenho vários colegas que hoje são doutô. Mas eu estudei primário só. Um negocio que me marcou [...]minha cidade vive fazendo de um tudo para tirar isso de mim. Tem um grupo escolar com meu nome, tem mais não sei o quê, um parque, uma rua [...] mas nada, nem ninguém, me faz esquecer o dia em que me tiraram da escola. Parece que me escolheram a dedo. Fiquei morrendo de raiva. Com o tempo fui ficando conhecido e quis saber o culpado. Primeiro achei que era a professora. Ai, descobri que não era. Pensei que fosse o diretor, não era. Depois o prefeito. Não era. Fui adiante e fui ver se era o governador. Fui botando culpa, e não achando. Até hoje não achei [...] ( Paschoal, 2000, p.70).

João sempre foi um arguto observador de tudo aquilo que o cercava, pessoas

simples do campo, compenetradas em seu cotidiano, que levavam uma vida dura, atraiam-no

e foram matéria para suas composições talvez por ter convivido com elas o suficiente para

entender seus anseios e esperanças. Na canção A lavadeira e o lavrador19 João apresentava

duas figuras que dividem um espaço comum e com perspectivas diferentes para conseguirem

o seu sustento. Tais perspectivas encerram-se na vinda ou não da chuva.

19 A Lavadeira e o Lavrador (João do Vale) Philips, 1965.

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Eu vi a lavadeira pedindo sol

E o lavrador pra chover

Os dois com a mesma razão

Todos precisam viver

Enquanto para a lavadeira a chuva representa um empecilho, pois impede que a

roupa seque para o lavrador, assolado pela seca, a chuva é a promissão, por isso clama por ela

para ele começar o seu plantio e alimentar o gado. Apesar do trabalho do lavrador ganhar

mais relevância, pois lida diretamente com subsistência, de uma quantidade maior de pessoas,

até mesmo da cidade, que dependem do que é produzido no campo, a lavadeira lida com um

universo econômico mais limitado, porém, ambos têm o seu trabalho regulado pelas

condições climáticas.

Eu vi o lavrador com o joelho no chão

O pranto banhando o rosto

Seu filho pedindo pão

O gado todo morrendo

Ó Deus poderoso

Faça chover no sertão

Não se trata aqui de dar maior ou menor importância, às atividades desenvolvidas

por essas duas personagens, tão comuns no Nordeste brasileiro, o interessante que vale como

registro são a forma como essas existências tão próximas espacialmente dependem dos fatores

climáticos para sobreviverem, embora tão distantespelas diferentes formas de ganhar a vida.

Em seguida temos o verso que representa a súplica da lavadeira que é muito parecida com a

do lavrador, mas com razões diferentes.

Depois, veio a lavadeira

Soluçando a reclamar

Dez dias que não faz sol

Pra minha roupa secar

Se eu não entrego a roupa toda

Doutor não vai me pagar

Se amanhã não fizer sol

Ai, meu Deus, o que será

A exemplo do que ocorre na vida com outras categorias sociais, acontece na

canção aqui apresentada, por razões pessoais, setoriais ou grupais, elementos de uma mesma

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categoria social se opõem, assim os meios para obtenção dos seus víveres mais essenciais

igualmente são opostos. Lavrar a terra nessa perspectiva aparece em oposição a lavar a roupa,

um precisa de sol, o outro de chuva. Essas demandas opostas por fenômenos, no fim tem

objetivos iguais.

Como se pode perceber a canção A lavadeira e o lavrador é composta por um

texto bastante expresivo e, se diferencia justamente pelo fato de que não é uma mera repetição

de temas e motivos ja explorados pelo compositor, ao contrário, desenvolve um tema

recorrente ao cancioneiro nordestino, todavia com uma perpectiva mais complexa onde a fé

aparece como uma extratégia contra os infortúnios.

Passa-se para uma outra conclusão: a dependência do sertanejo dos desígnios de

Deus atribuindo-lhe a seca ou a cheia, ambas aceitas com resignação, diante da sabedoria

divina, a cólera que se manifesta devido ao sofrimento causado pelas intepéries, logo é

sobrepujada por uma tomada de consciência, que é seguida de um arrependimento e, um

pedido de perdão.deixando assim subtendido que esse gesto é fruto da ignorância do homem

por não conhecer os planos do criador. Ironias a parte, o cancionário nordestino está repleto

destas súplicas ao divino para trazer uma solução ao problema da seca, pedindo que a chuva

venha, no entanto quando a chuva cai demais e motivo para novas orações pedindo para parar.

Isso se observa em A Triste Partida20 de Patativa do Assaré interpretada por Luis Gonzaga.

Nessa hora eu queria ter força e poder

Pra acabar com a miséria

E fazer no sertão chover

Vocês vão me censurar

Mas veio na imaginação

Nem tudo é santo de Deus

Pois Deus não tem coração

Aí, eu vi que Deus é toda a perfeição

3.4 Resistência como Bandeira

O sertanejo por si só já é um resistente, enfrenta os infortúnios da seca, da

exploração por parte dos mais poderosos e a falta de atenção das autoridades. A música de

João do Vale trás tudo isso, erguendo essa causa como bandeira de luta, sem se importar com

qualquer tipo de preconceito por ser nordestino, ou implicações legais por parte das

20 ASSARÉ, Patativa. Cante lá Que Eu canto Cá: Filosofia de Trovador Nordestino. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 89.

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autoridades. Com a tomada do poder pelos militares em 64, esse tipo de canção que fala de

coisas inconvenientes para os mandatários passará a ser mal vista, e muitos artistas que faziam

críticas em forma de canções, passaram a ser perseguidos, inclusive essa perseguição

estendeu-se para alguns autores que, em princípio, não se identificavam diretamente com os

movimentos de resistência, ou arte engajada. É o caso de João do Vale que, do dia pra noite

vê-se vigiado pelos sensores do golpe.

Antes de 64, ninguém via minha música como protesto. Eu cantava a verdade sobre o nordeste: a seca, a fome, o homem de lá, não como protesto. Depois de 64, passaram a achar que era protesto. A censura cortava aqui e ali, proibiu várias músicas minhas, e eu não estava protestando. Pelo contrário achava que estava até colaborando, mostrando a real situação do Nordeste o estrago da seca, a miséria de lá [...] (Paschoal, 2000, p. 103).

Talvez isso que é acima relatado, só serviu para aguçar-lhe o senso crítico,

fazendo-lhe compreender que os problemas regionais tinham uma dimensão universal, a

exploração a miséria e as injustiças estavam igualmente em quase todos os lugares, eram

muitas realidades interpenetrando-se, não havia problemas e dificuldades localizadas, mas,

uma confluência, matéria-prima de qualidade para um artista de boa cepa.

Lógico que João do Vale sabia que o que ele fazia era denúncia, porém as

circunstâncias deram a esse tipo de manifestação uma conotação de enfretamento, de protesto.

João sabia que o seu show tinha a capacidade de mobilizar as pessoas, principalmente os

estudantes era um dos artistas preferidos dos circuitos universitários de música devido a sua

simpatia e espontaneidade.

O sucesso de Carcará foi o principal catalisador desse seu reconhecimento. Até

os dias que correm é sua canção mais conhecida, não apenas por ter se tornado quase um hino

contra a ditadura militar, mas por em si guardar uma gama de interpretações, permitindo fazer

a seguite pergunta: afinal quem é o carcará? Seria uma metáfora para a resistência do homem

sertanejo diante dos infortúnios naturais ( a seca), ou contra uma vida de exploração por parte

dos latifundiários, contra a pobreza do homem nordestino abandonado pelas autoridades, ou

ainda, será que ela mira exclusivamente na ditadura militar?

Uma coisa fica latente, as temáticas da canção, Carcará atravessa muitas das

canções compostas por Joao do Vale nesse período, por isso vale o seu registro integralmente

para uma visão panorâmica de sua proposta.

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Carcará21

Lá no sertão

um bicho que avoa que nem avião

É um pássaro malvado

Tem o bico volteado que nem gavião

Carcará

Quando vê roça queimada

Sai voando, cantando,

Carcará

Vai fazer sua caçada

Carcará come inté cobra queimada

Quando chega o tempo da invernada

O sertão não tem mais roça queimada

Carcará mesmo assim num passa fome

Os burrego que nasce na baixada

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come

Carcará é malvado, é valentão

É a águia de lá do meu sertão

Os burrego novinho num pode andá

Ele puxa o umbigo inté matá

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come...

A música é um samba-batuque, feita em plena ditadura militar, sua estrutura e a

força dos seus versos densos de um ritmo quase marcial, foge totalmente do padrão

21 Carcará (João do Vale e José Candido) Philips, 1965.

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estabelecido por artistas nordestinos que fizeram sucesso no sudeste do país como Luiz

Gonzaga, não é uma canção lamurienta e nostálgica, sobre todos os ângulos em que a canção

permite interpretações, existe um lugar comum: a resistência, em vez da fuga, seja em busca

de um lugar melhor, longe das adversidades climáticas, da exploração, ou em um âmbito de

posicionamento político contra algo que oprime. No dizer de francisco Antonio Ferreira Tito

Damazo: “[...] carcará não migra, sua ação é a de por-se a defender o direito de ali

permanecer. Razão por que sai em busca do que garanta sobrevivência, uma ação que deve ser

seguida pelo próprio homem” (DAMAZO, 2004, p. 72).

Contudo, o sentido do texto está associado ao contexto social com que se

relaciona, por isso a leitura que se faz, conforme as intenções e proposições são de um

momento em que se busca de alguma forma, contestar o regime ditatorial instalado e o carcará

nessa leitura é a metáfora do opressor. De outro modo, considerando ainda o contexto em que

aconteceu o golpe, no qual a atuação dos Estados Unidos era reconhecida, Metaforicamente

essa águia lá do meu sertão pode significar também a intervenção americana nos assuntos do

Brasil, já que este país desenvolvia no momento do golpe uma política que ia de encontro aos

interesses americanos.

Isso só reafirma uma das marcas das canções do disco que é a mutiplicidade de

sentidos, muitas tématicas na mesma canção, diversas possibilidades de interpretação, tendo

como ponto de partida as situações históricas e sociais do meio com o qual o autor e a canções

se relacionam. Constituindo uma experiência, de combate é o homem lutando para ter

garantida a sobreviviência em um ambiente hostil político e social.

Enquanto isso, o cerco ia se fechando em todo país, para todos que de alguma

forma eram contrários ao regime militar e a forma como os generais viam a realidade. Aqui

pela terra natal de João do vale, o Maranhão, as coisas não estavam lá muito boas.

O Jornal do Povo e a Tribuna do Povo (jornal do PCB) foram fechados. Foram efetuadas prisões de dirigentes comunistas, lideres sindicais e outras pessoas consideradas “subversivas”. Comícios, passeatas, e outras quaisquer manifestações públicas foram proibidos. Com a edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), o deputado Neiva Moreira teve decretada a cassação de seu mandato e a perda de seus direitos políticos. Neiva ainda foi preso, partindo para o exílio (julho de 1964), somente retornando a pós a anistia em 1979 (COSTA, 2006, p. 80).

Mesmo se dizendo apartidário, João do vale sempre se manisfetou a sua simpatia

pelos excluídose pela consciência política daqueles que lutavam contra os regimes ditos e

asumidos como opressores. Um bom exemplo foi o samba a Voz do povo. Ali estava sua

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firme contestaçãoà ditadura e a convicção de que a repressão não abafariaas vozes de protesto

e de luta.

A música em questão é dedicada a alguém, do seu círculo de relacionamento,

alguém que foi vítima de uma injustiça, alguém que foi perseguido por discordar da maneira

truculenta como se conduzia a política, que por seu teor, pode ser estendida solidariamente

para aqueles que lutavam em favor dos ideais de justiça e de liberdade, por uma

conscientização dos mais oprimidos frente a realidade que era vivida no Brasil naqueles anos

obscuros.

A Voz do Povo22

Eu sou a flor

que o vento jogou no chão

Mas ficou um galho

Pra outra flor brotar

A minha flor o vento pode levar

Mas o meu perfume

fica boiando no ar

Depreende-se do jogo de oposições entre a flor e o vento, uma metáfora, da tensão

existente nos dois movimentos que lutavam naquele contexto dos anos 60, sendo interpretado

dessa forma, mesmo que um vento irresistível arraste a flor, que aqui representa o lado mais

fraco desse embate, ainda assim o seu perfume simbolizando uma resistência, permaneceria

na conciência dos que acreditavam na luta por dia melhores, ficando ali guardadas as idéias e

os ideiais, um lugar intangível, para os opressores.

Como poeta só é aquele que vive sua poesia, João do Vale como artista

participante começou também a ser perseguido pela ditadura militar, era vigiado de perto

pelos agentes de repressão, tinha músicas sensuradas pelo seu teor questionador. Nesse

período encontrava dificuldades para fazer show por conseguinte sustentar-se junto com sua

família. Mas isso era só o começo, foi preso, interrogado e mantido incomunicável, só

conseguindo receber auxílio, quando se deu a intervenção do então governador do Maranhão

Jósé Sarney, que deu um jeito de transferi-lo para a cidade de Pedreiras em prisão domiciliar.

Eram tempos difíceis para a maioria do povo brasileiro, o governo militar pouco a

pouco, restringia os direitos civis, pautava os jornais, o rádio e a tv, prendia e expulsava

representantes políticos e estudantis, reprimia com violência qualquer tipo de manifestação

22 A Voz do Povo (João do Vale e Luiz Vieira) Philips, 1964.

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que representasse ou parecesse representar opinião dissonante do poder estabelecido, a

principal voz da sociedade nesse período foi a arte, através de peças de teatro, montadas para

denunciar o autoritarismo e a falta de liberdade. Mas foi através da canção que se desenvolveu

a principal forma de protestar contra a ditadura. Os artistas desenvolveram diversas estratégias

para driblar a censura usando metáforas e palavras de sentido ambíguo.

Foi nas costas da música popular que o chicote bateu mais forte, até porque nenhuma arte, tinha como ela, tamanha capacidade de mobilização. A música lotava estádios, tinha torcida, levantava esperançastores. Os compositores traduziam os recados do povo que vibrava com sutileza, cada rasteira passada na censura. Eram heróis populares (BAHIANA, 2005, p. 7).

Esse tipo de canção achou terreno fértil no Brasil, devido à ação do DOPS

(Departamento de Ordem Política e Social) e sua principal arma contra os protestantes: a

censura. Esse movimento musical não apenas restrito ao que convencionalmente passou a

denominar-se MPB, mas que incluía diversos outros ritmos, via-se na música uma forma de

criticar a política e de instigar a população para lutar contra a ditadura.

3.5 A nostalgia

Saindo um pouco desse ambiente de canção participante e engajamento político

contra as diversas formas de opressão, encontramos com a canção Peba na Pimenta23, de

1965, que também faz parte do disco O Poeta do Povo. No entanto a razão de ter caído no

gosto popular é outro. Sua letra cheia de duplo sentidos e o seu ritmo convidativo para a

dança foram o motivo do seu sucesso.

Seu Malaquia preparou

Cinco peba na pimenta

Só do povo de Campinas

Seu Malaquia convidou mais de quarenta

Entre todos os convidados

Pra comer peba foi também Maria Benta

Percebe-se um Joao do Vale de alma mais descontraída, cheia de picardia e ao

mesmo tempo nostálgico de sua terra natal, no qual se permite desfilar alguns elementos da

sua cultura regional com muito bom humor: o arrasta pé sob a luz do candeeiro, a comida

exótica da mata, o sanfoneiro etc. Depois de carcará essa foi sua canção mais gravada,

23 Peba na Pimenta (João do Vale, José batista e Adelino Rivera) Philips, 1957.

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principalmente por artistas nordestinos; entre eles Jackson do Pandeiro e Marinéz e sua gente.

A canção avança com uma certa malícia, na maneira em que as frase são postas, mesmo

tratando-se obviamente de uma dessas muitas festas do interior e seus elementos lúdicos, o

duplo sentido dita o ritmo, deixando o tema da música em segundo plano.

Benta foi logo dizendo

Se ardê, num quero não

Seu Malaquia então lhe disse

Pode comê sem susto

Pimentão não arde não

Benta começou a comê

A pimenta era da braba

Danou-se a ardê

Ela chorava, se maldizia

Se eu soubesse, desse peba não comia

Ai, ai, ai seu Malaquia

Ai, ai, você disse que não ardia

Ai, ai, tá ardendo pra daná

Ai, ai, tá me dando uma agonia

Ai, ai, que tá bom eu sei que tá

Ai, ai, mas tá fazendo uma arrelia

Para os ouvidos mais conservadores, Peba na pimenta, soa bastante pornográfica

com seus gemidos, mas revela a face brejeira do artista que não só protesta mais também se

mostra sensual e porque não, feliz. A saudade, em Joao do Vale, tem uma característica,

interessante, diferente, da saudade expressa por outros artista que se aventuram nos domínios

do Baião. A saudade de Joao é festeira, converte-te em uma reunião de pessoas amigas,

nada de lamúrias tristes ou vontade de retornar aterra natal.

Depois houve arrasta-pé

O forró tava esquentando

O sanfoneiro então me disse

Tem gente aí que tá dançando soluçando

Procurei pra ver quem era

Pois não era Benta

Que inda estava reclamando?

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Assim como Peba na Pimenta a canção Pisa na Fulô24 tem a intenção de

aproximar o ouvinte dos constumes do sertão, levá-lo para um arrasta pé, onde todos podem

dançar ao som da sanfona. A semelhança não para aí, o gosto pelo duplo sentido é uma marca

registrada nas canções do Nordeste. Então Pisa na Fulô pode ser a dança bem agarradinha,

onde o par desfruta um do aconchego do outro, ou pode ter um sentido mais erotizado, onde

todos querem provar das delicícias de ‘pisar na fulô’. Composição:

Pisa na fulô, pisa na fulô

Pisa na fulô

Não maltrata o meu amor

Um dia desses

Fui dançar lá em Pedreiras

Na rua da Golada

Eu gostei da brincadeira

Zé Cachangá era o tocador

Mas só tocava

Pisa na fulô

Pisa na fulô, pisa na fulô...

Seu Serafim cochichava com Dió

Sou capaz de jurar

Que nunca vi forró mió

Inté vovó

Garrou na mão do vovô

vamos embora meu veinho

Pisa na fulô

Pisa na fulô, pisa na fulô...

Eu vi menina que tinha doze anos

Agarrar seu par

E também sair dançando

Satisfeita, dizendo

"Meu amor ai como

É gostoso pisa na fulô"

Pisa na fulô, pisa na fulô...

De magrugada Zeca Cachangá

Disse ao dono da casa

"Não precisa me pagar

Mas por favor

Arranja outro tocador

24 Pisa na Fulô (João do Vale, Silveira Jr. e Ernesto Pires) Philips, 1957.

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Que eu também quero

Pisa na fulô"

Desde os mais idosos que conhecem o ‘pisa na fulô’ e não perderam o jeito, até os

jovens, que querem descobrir a volúpia de também ‘pisar na fulô’. A canção de duplo sentido

definitivamente não é para ouvidos mais pudorados, inclusive pode parecer uma certa

apologia à libertinagem sexual. Mas é claro, a sugestão da música passa ao largo dessa

implicação. Pisar na Fulô tem uma áurea de igenuidade e despretensão, quando coloca no

mesmo salão, tipos variados, em faixas etárias diferentes, com objetivos diferentes, como é o

caso do sanfoneiro que a princípio estava ali para trabalhar e ganhar dinheiro, mas deixa tudo

de lado e vai ‘Pisar na Fulô’.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho, procuramos desenvolver às temáticas que dão enredo as

canções do disco O Poeta do Povo de João do Vale. Como se pode perceber as canções estão

voltadas para a defesa de um povo relegado a condições de vida inaceitáveis.São canções

contruídas com a voz da resistência do povo, formuladas por um poeta comprometido com a

sua causa. João do Vale foi um desses artistas que a obra não se dissocia de sua vida, não lhe

agradava muito o cotidiano da vida política, no entanto não lhe faltou a vocação libertária,foi

sempre inconformado com as injustiças. Por isso, essa ligação irrevogável com as pessoas de

sua origem e de sua condição social.

Para alguém que nasceu e foi criado sob condições de pobreza, ter conseguido

chegar aonde chegou, para levar a sua voz como se fosse a voz de todos aqueles personagens

de vida real que estão representados nas suas canções, não era definitivamente para qualquer

um. Era preciso ter coragem, mais acima de tudo talento para traduzir em forma de música,

todas as suas angústias, frustrações, esperanças e revolta. Sua obra está inscrita como a de um

dos maiores compositores da música popular brasileira de todos os tempos.

Durante toda a vida João do Vale compôs mais de 300 canções, algumas delas

célebres por sua postura critica frente aos problemas sociais que aflingiam o povo do

Nordeste, outras por um posicionamento de resitência à ditadura militar e por fim aquelas de

ritmo mais dançante cheias de picardia e palavras de duplo sentido, que tanto animavam as

platéias. Foi um artista que não dá para negar-lhe autenticidade, mesmo que, seguindo os

passos de um ícone da música do Nordeste. Soube criar sua própria identidade musical, sem

nenhum revanchismo, pelo contrário sempre foi um grande admirador do trabalho do seu

antigo mestre.

É importante dizer que antes desses acontecimentos que dariam rumo a sua

carreira, João do Vale recém iniciado no mundo musical com o sucesso de sua canção Estrela

Miúda e Na asa do vento, compostas em parceria com Luiz Vieira, participou do mundo do

cinema na condição de assistente de produção, ator figurante compositor de trilha sonora.

Percebe-se uma interação indispensável,com o mundo da arte, o que com certeza o

credibilizou junto a seus pares.

Foi priorizada uma parte desse trabalho, para dar destaque a alguns artistas como

Chico Buarque, Carlos Lyra e Geraldo Vandré que, mesmo não sendo todos do Nordeste,

mas, faziam musica voltadas para uma crítica social do que acontecia com o povo daquela

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região, por estarem engajados em um movimento de contestação encaixam-se na forma como

João do Vale interpretava a realidade, sendo o contrário tambem verdadeiro.

Por tudo isso, além de popular é consciente e participante a obra do poeta

trabalhado aqui nessas linhas. Ressalta-se que o objetivo maior desse trabalho é a consciência

social poética e suas incursões pelos destinos do homem, lançando-se assim o poeta sobre a

vida, os costumes e a sociedade para argui-la dos seus própositos.

Sabe-se que muitos reprovam musica popular, cosiderando-a mero

entretenimento uma forma de manipulação, de mercadoria de consumo (música ligeira é

assim que chamam) raciocinam com a dicotomia arte pura X arte popular, acreditando ser

esse um processo castrador da imaginação produtiva. Nesse sentido, por má vontade ou puro

pedantismo intelectual evidenciando suas posições elitistas, e evulgarizam o homem comum

em seu cotidiano.

Por fim, faz-se necessário reconhecer os limites temporais e espaciais que

nortearam a condução da pesquisa, muito aspectos da obra aqui estudada não puderam ser

exploradas a contento, o que não impede de ser feito em uma outra oportunidade, desde que

haja um alargamento dos objetivos a serem cotejados. Sendo assim foi-nos possível apenas

eleger algumas abordagens, que devidamente colocamos em primeiro plano, algo típico de

quem aventura-se pelos campos da História, onde muitas vezes precisa priorizar por alguns

aspectos das fontes que lhe dão suporte.

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REFERÊNCIAS

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ALBIN, Ricardo C. O livro de ouro da MPB – a história de nossa música popular de sua origem até hoje. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 2003.

BAHIANA, Ana Maria. AUTRAN, Margarida. WISNIK, José Miguel Anos 70: Música Popular. Rio de Janeiro: Europa, 1980.

CAVALCANTE, Berenice. STARLING, Heloisa Maria Murgel. EISEMBERGER, José. (Org). Decantando a República: Outras Conversas Sobre os Jeitos da Canção. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Fundação Perseu Abramo, 2004.

CHARTIER, Roger. A História cultural Entre praticas e representações. Lisboa: Difel, 2002.

CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998.

COSTA, Wagner Cabral da. Sob o Signo Morte: O Poder Oligárquico de Vitorino a Sarney. São Luis: EDUFMA, 2006.

DREYFUS, Dominique. Vida de Viajante: A Saga de Luis Gonzaga. São Paulo: Editora 54, 1997.

CRUZ, Rubem Silva. João do Vale. O Poeta do Povo: Biografia e Composições. 2008. 69 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História – Universidade Federal do Maranhão, São Luis, 2008).

DAMAZO, Francisco Antonio Ferreira Tito. Canto do Povo de um Lugar: uma Leitura das Canções de João do Vale. 2004. 155f. Tese (Doutorado em Lingüística ) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2004.

DANELLI, Natali, Vieira. Nova História da Musica Popular Brasileira. Fascículo 33, João do Vale. Abril: São Paulo,1980.

FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Seca e Migração no Nordeste: Reflexões Sobre o Processo de Banalização de sua Dimensão Histórica. Trabalho de Discussão. n.111/2001.

LINDOSO, Diva. A Trajetória de João do Vale. 1997.55 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Maranhão, São Luis, 1997.

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MATOS, Maria Izilda S. História e Oralidade: A música nos Territórios de Adoniram Barbosa. São Paulo: Educ, 2001.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História e Música: Canção Popular e Conhecimento Histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20. n. 39, 2000.

NAPOLITANO, Marcos. História e Música. História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

______. A MPB Sob Suspeita: A Censura Musical Vista pela Ótica dos Serviços de Vigilância Política. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, 2007.

PASCHOAL. Marcos. Pisa na Fulô, mas não Maltrata o Carcará. Vida e Obra do Compositor João do Vale, o Poeta do Povo, Rio de Janeiro: Lumiar, 2000.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do Povo Brasileiro, Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000

______. Cultura e Política: os Anos 1960-1970 e sua e Herança. In: O Tempo da Ditadura Militar: Regime Militar e movimentos Sociais em fins do Século XX. (Org). FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (O Brasil Republicano; V.4)

TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: um Tema em Debate. Rio de Janeiro: Saga, 1997.

_______. História Social da Música popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998.

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A Poética de Chico Buarque. Rio de Janeiro: SUAM, 1980.

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ANEXO: Letras das canções

A Voz do Povo Composição: Luiz Vieira / João do Vale Meu samba é a voz do povo

Se alguém gostou

Eu posso cantar de novo

Eu fui pedir aumento ao patrão

Fui piorar minha situação

O meu nome foi pra lista

na mesma hora dos que iam

ser mandados embora

Meu samba é a voz do povo...

Eu sou a flor

que o vento jogou no chão

Mas ficou um galho

Pra outra flor brotar

A minha flor o vento pode levar

Mas o meu perfume

fica boiando no ar

meu samba é avoz do povo...

Carcará

Composição: João do Vale / José Cândido Carcará

Lá no sertão

um bicho que avoa que nem avião

É um pássaro malvado

Tem o bico volteado que nem gavião

Carcará

Quando vê roça queimada

Sai voando, cantando,

Carcará

Vai fazer sua caçada

Carcará come inté cobra queimada

Quando chega o tempo da invernada

O sertão não tem mais roça queimada

Carcará mesmo assim num passa fome

Os burrego que nasce na baixada

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come

Carcará é malvado, é valentão

É a águia de lá do meu sertão

Os burrego novinho num pode andá

Ele puxa o umbigo inté matá

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come...

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Pra não mim Composição:Joao do vale e marilia bernardes

Dizem que acabou a escravidão

mais pra mim não

mais pra mim não

mais pra mim não

Eu conheço dito assim

Todos nós somos irmão

Que o sol nasceu pra todos

Mais pra mim não

Mais pra mim não

mais pra mim não

trabalhou de sol a sol

os meu calos é só nas mão

só um cego que não

que eu dou lucro a meu irmão

mais pra mim não

mais pra mim não

mais pra mim não

Peba na Pimenta

Composição: João do Vale, José Batista e Adelino Rivera Seu Malaquia preparou

Cinco peba na pimenta

Só do povo de Campinas

Seu Malaquia convidou mais de quarenta

Entre todos os convidados

Pra comer peba foi também Maria Benta

Benta foi logo dizendo

Se ardê, num quero não

Seu Malaquia então lhe disse

Pode comê sem susto

Pimentão não arde não

Benta começou a comê

A pimenta era da braba

Danou-se a ardê

Ela chorava, se maldizia

Se eu soubesse, desse peba não comia

Ai, ai, ai seu Malaquia

Ai, ai, você disse que não ardia

Ai, ai, tá ardendo pra daná

Ai, ai, tá me dando uma agonia

Ai, ai, que tá bom eu sei que tá

Ai, ai, mas tá fazendo uma arrelia

Depois houve arrasta-pé

O forró tava esquentando

O sanfoneiro então me disse

Tem gente aí que tá dançando soluçando

Procurei pra ver quem era

Pois não era Benta

Que inda estava reclamando?

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Minha História (Raimundo Evangelista e João do Vale) Seu moço quer saber

Eu vou cantar num baião

Minha história pro senhor

Seu moço preste atenção

Eu vendia pirulito

Arroz doce, mungunzá

Enquanto eu ia vender doce

Meus colegas iam estudar

A minha mãe tão pobrezinha

Não podia me educar

E quando era noitinha

A meninada ia brincar

Vige, como eu tinha inveja

De ver Zezinho contar

- O professor ralhou comigo

Porque eu não quis estudar

Hoje todos são doutor

E eu continuo um João ninguém

Mas quem nasce pra pataca

Nunca pode ser vintém

Ver meus amigos doutor

Basta pra me sentir bem

Mas todos eles quando ouvem

Um baiãozinho que eu fiz

Ficam todos satisfeitos

Batem palma, pedem bis

E dizem: João foi meu colega

Como eu me sinto feliz

Mas o negócio não é bem eu

É Mane, Pedro e Romão

Que também foi meus colegas

E ficaram no sertão

Não puderam estudar

E nem sabem fazer baião.

A Lavadeira e o Lavrador (João do vale / Ary monteiro) Eu vi a lavadeira pedindo sol

E o lavrador pra chover

Os dois com a mesma razão

Todos precisam viver

Eu vi o lavrador com o joelho no chão

O pranto banhando o rosto

Seu filho pedindo pão

O gado todo morrendo

Ó Deus poderoso

Faça chover no sertão

Nessa hora eu queria ter força e poder

Pra acabar com a miséria

E fazer no sertão chover

Vocês vão me censurar

Mas veio na imaginação

Nem tudo é santo de Deus

Pois Deus não tem coração

Depois, veio a lavadeira

Soluçando a reclamar

Dez dias que não faz sol

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Pra minha roupa secar

Se eu não entrego a roupa toda

Doutor não vai me pagar

Se amanhã não fizer sol

Ai, meu Deus, o que será

Aí, eu vi que Deus é toda a perfeição

O que eu pensei ainda há pouco

Agora peço perdão

Só uma força de cima

Um povo querendo inverno

Outro querendo verão.

Pisa na Fulô ( João do Vale/ Silveira jr/ Ernesto Pires)

Pisa na fulô Não maltrata o meu amô

Um dia desse

Fui dança lá em Pedreira

Na rua da Golada

E gostei da brincadeira

Zé Caxangá

Era o tocadô

Mas só tocava

Pisa na fulô

Pisa na fulô...

Sô Sarafim

Cuchichava mais Dió

Sô capaz de jura

Que eu nunca vi forró mio

Inté vovó

Garro na mão de vovô

Vamo embora meu veinho

Pisa na fulô

Pisa na fulô...

Eu vi menina

Que nem tinha 12 ano

Agarra seu par

Também sai dançando

Satisfeita e dizendo:

Meu amô, aí como é gostoso

Pisa na fulô

Pisa na fulô...

De madrugada

Zé Caxangá

Disse ao dono da casa:

Num precisa me pagá

Mas por favô

Arranje outro tocadô

Que eu também quero

Pisa na fulô

Pisa na fulô...

As ciposa que as meninas que dançaram

quando chegaram em casa todas elas

apanham

a mais novinha foi perguntar pra vovô

se é pecado pisar na fulô

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O Jangadeiro ( João do Vale / Dulce Nunes)

Jangadeiro vai ganhar a vida em alto-mar

Vai sem saber se volta

Mas tem que a vida ganhar

Quando ele vem voltando

Na beira da praia fica logo assim de gente

pro peixe comprar

Peixe a cem mil-réis ninguém quer pagar

Todos querem peixe bonito no preço do

fiscal

Quem nunca enfrentou temporal

Mais ele enfrenta tudo porque tem

zezizinho

Filho de estimação que quer aprender a ler

Ver ele estudando é seu maior prazer

É a razão de ir pro mar sem medo de

morrer

Nunca temeu o mar mas sempre respeitou

Pois vive sempre do mar ele lhe dar amor

Tem orgulho do que é mas o que ele não

quer

É que seu filho pra viver

Tenha que enfrentar o mar

E a vida inteira ser pescador.

Fogo no Paraná

Composição: João do Vale/Helena Gonzaga

Seu Zé Paraíba, Seu "Zé das Criança"

foi pro Paraná, cheio de esperança

levou a "muié", e seis "barriguidin"

Pedro, Joca e Mané

Ceverina, Zefa e Toin

No Norte do Paraná

todo serviço enfrentou

batendo enchada no chão

mostrou que tinha valor

dois anos de bom trabalho

até cavalo comprou

a meninada crescia

robusta e muito animada

a "muié" sempre dizia

ninguém tá com pança inchada

tudo igualzim a sulista

de buchechinha rosada

se nordestino é pesado

é do outro vicio o cavaco

é como diz o ditado

porta só quebra no fraco

deus quando dá a farinha

o diabo vem e rouba o saco

aquele fogo maldito

que o Paraná quase engole

José lutava com ele

acompanhado da prole

vós misse fiquem sabendo

que José nunca foi mole

depois de tudo perdido

José voltou pro ranchinho

foi conferir os meninos

tava faltando Toinho

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voltou em cima do rastro

gritando pelo caminho

cadê Toinho

Oricuri (O Segredo do Sertanejo) Composição: João do Vale/José Cândido

Oricuri madurou ô é sinal

Que arapuá já fez mel

Catingueira fulôro lá no sertão

Vai cair chuva granel

Arapuá esperando

Oricuri "maduricer"

Catingueira fulôrando sertanejo

Esperando chover

Lá no sertão, quase ninguém tem estudo

Um ou outro que lá aprendeu ler

Mas tem homem capaz de fazer tudo

doutor

E antecipa o que vai acontecer

Catingueira fulora vai chover

Andorinha voou vai ter verão

Gavião se cantar é estiada

Vai haver boa safra no sertão

Se o galo cantar fora de hora

É mulher dando fora pode crer

A cauã se cantar perto de casa

É agoro é alguém que vai morrer

São segredos que o sertanejo sabe

E não teve o prazer de aprender ler

Oricuri madurou ô é sinal

Que arapuá já fez mel...

O Bom Filho a Casa Torna (João do vale e Eraldo monteiro)

Eu vou contar seu moço

Por que deixei meu certão

Não foi pru falta de inverno

Não foi pra fazer baião

Não foi pra fazer baião

É que todo sertanejo

Sempre tem essa ilusão

Conhecer cidade grande

E põe nas costas um matulão

Deixa que cá na cidade

Não existe exploração

Ó ia os bens que eu deixei

um roçado de algodão

bem cheinho de mandioca

de arroz e de feijão

mas também só na mulher

é que não tinha sócio não

Acontece é que vi tudo

Arranha-céu muita grandeza

Móio de ferro voando

Remexendo a natureza

mais o cheirim de mato verde

Pra mim tem mais beleza

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Sina do caboclo Composição: Zélia Barbosa/João do Vale/J.B. de Aquino

Mas plantar prá dividir

Não faço mais isso, não.

Eu sou um pobre caboclo,

Ganho a vida na enxada.

O que eu colho é dividido

Com quem não planta nada.

Se assim continuar

vou deixar o meu sertão,

mesmos os olhos cheios d'água

e com dor no coração.

Vou pró Rio carregar massas

prós pedreiros em construção.

Deus até está ajudando :

está chovendo no sertão !

Mas plantar ...

Quer ver eu bater enxada no chão,

com força, coragem , com satisfação ?

e só me dar terra prá ver como é :

eu planto feijão, arroz e café ;

vai ser bom prá mim e bom pró doutor.

eu mando feijão, ele manda trator .

vocês vai ver o que é produção !

modéstia á parte, eu bato no peito :

eu sou bom lavrador !

Mas plantar pra dividir....

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