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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN

DEPARTAMENTO DE HISTÓTIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA

SANDRO RIBEIRO ARAUJO DA SILVA

DISPUTAS PRIVADAS PELA POSSE DA ORDEM PÚBLICA NO PÓS-INDEPENDÊNCIA: A “GUERRA DOS TRÊS BÊS” NO MARANHÃO

(1824)

São Luís 2007

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SANDRO RIBEIRO ARAUJO DA SILVA

DISPUTAS PRIVADAS PELA POSSE DA ORDEM PÚBLICA NO PÓS-INDEPENDÊNCIA: A “GUERRA DOS TRÊS BÊS” NO MARANHÃO

(1824)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito para obtenção do grau de Licenciatura em História.

Orientadora: Profª. Drª. Adriana de Souza Zierer

São Luís 2007

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Silva, Sandro Ribeiro Araujo da.

Disputas privadas pela posse da Ordem Pública no pós-indepedência: a “Guerra dos Três Bês” no Maranhão (1824)/ Sandro Ribeiro Araujo da Silva, 2007.

94 f. : il.

Monografia (Graduação) – Curso de História – Universidade Estadual do Maranhão, 2007.

1. Famílias. 2. Disputas. 3. Política. 4. Poder. I. Título.

CDU: 94(812.1).

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SANDRO RIBEIRO ARAUJO DA SILVA

DISPUTAS PRIVADAS PELA POSSE DA ORDEM PÚBLICA NO PÓS-INDEPENDÊNCIA: A “GUERRA DOS TRÊS BÊS” NO MARANHÃO (1824)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito para obtenção do grau de Licenciatura em História.

Aprovado em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________ Profª. Adriana de Souza Zierer (Orientadora)

Drª. em História Medieval - UFF

________________________________________________________

Profª. Elisabeth Sousa Abrantes Ms. em História do Brasil – UFPE

_______________________________________________________ Prof. Marcelo Cheche Galves

Ms. em História Social – UNESP

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A Deus. A meus pais, familiares e amigo(a)s.

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AGRADECIMENTOS

Sem sonhos, as perdas que temos durante os percalços das nossas vidas, se tornam

insuportáveis; as pedras que temos que ultrapassar se transformam em verdadeiras montanhas

e as lições, deixam de ser lições para se tornarem fracassos. Os sonhos, juntamente com as

suas realizações, nos mostram que os desafios são, na verdade, oportunidades de galgar mais

um degrau de nossa vida. E ao longo desses degraus, surgem pessoas que nos ajudam a

enfrentar com mais coragem e alegria esse longo percurso. A primeira delas é Deus, que nos

deu a benção da vida e renova a cada dia nossas forças para que jamais desistamos dos nossos

sonhos; as famílias, que sempre estão do nosso lado nos momentos difíceis, não nos deixando

desistir jamais e os Amigos que se entristecem com a nossa tristeza e se alegram com a nossa

felicidade.

Dessa forma, meus agradecimentos vão a todos aqueles que de alguma forma

contribuíram para a concretização de mais um sonho, não só meu, mas de todos que tenho a

alegria de chamar de Amigo, em especial a Deus, por me permitir lutar; a meus pais, Maria

Lúcia Ribeiro Araujo da Silva e José Henrique Alves da Silva, por me ensinarem valores

morais e idôneos para a vida e estarem sempre ao meu lado em todos os caminhos da minha

vida; ao meu irmão, Leandro Ribeiro, por me incentivar a sorrir nos momentos de

descontrole; a minha namorada Esmênia Miranda, que mais que namorada, se tornou mais um

forte alicerce onde posso me apoiar em qualquer momento que necessitar.

Agradeço também aos professores do curso se História da Universidade Estadual

do Maranhão que além de compartilhar seus conhecimentos, se mostraram verdadeiros

amigos em uma grande família; aos amigos, Eloy Barbosa e Edyene Moraes, pela ajuda nas

pesquisas realizadas na Biblioteca Pública Benedito Leite, sempre com uma grande dose de

alegria; à bibliotecária e grande amiga Vanessa Gomes, pelas várias palavras de incentivo; à

FAPEMA, pelo incentivo à pesquisa no Maranhão, viabilizando a produção deste trabalho e a

todos que contribuíram para mais esse degrau alcançado em minha vida.

Obrigado a todos!

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“O passado é uma cortina de vidro. Felizes os que observam o passado para poder caminhar no futuro.”

Augusto Cury

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RESUMO

Este trabalho visa discutir como a ânsia pelo poder político, traduzido em uma “perpetuidade

sangüínea” nos órgãos administrativos, tomou forma na sociedade brasileira, passando por

uma intensificação com o processo de independência e posterior adesão maranhense a essa

manobra política ocorrida em 7 de setembro 1822. Porém, a conformação política desse

projeto se deu após inúmeros conflitos intra-elites e entre as diferentes classes, inseridos no

próprio processo de construção do Estado Nacional Monárquico, fazendo eclodir diversos

conflitos entre famílias, e em especial na província maranhenses, sendo um dos mais

significativos o que ocorreu em 1824, denominado de “Guerra dos Três Bês”, que

representou, de forma categórica, uma das características da vida política brasileira desde a

colonização até os dias atuais: a estreita separação do público e do privado.

Palavras-chaves: Famílias. Disputas. Política. Poder.

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SUMMARY

This work aims to arque as the ansciety for the power politician, translated a "sanguine

perpetuity" in the administrative agencies, took form in the Brazilian society, passing for an

intensification with the process politics in 7 of setember 1822. However, the conformation

politics of this project if after gave to innumerable conflicts the intra-elites and between the

different classrooms, inserted in the proper process of construction of the Monarchic National

State, making to come out diverse conflicts between families, and in special in the province

maranhense, being one of most significant what it occurred in 1824, called of "War of the

Three Bês", that it represented, of categorical form, one of the characteristics of the life

Brazilian politics since the settling until the current days: the narrow separation of the public

and the private one.

Word-Keys: Families. Disputes. Politics. To be able.

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ILUSTRAÇÕES

1. Jornal O Estado de São Paulo (9/12/2001)...................................................................87 2. Jornal Folha de São Paulo (8/04/1999).........................................................................88 3. Jornal Folha de São Paulo (3/10/1998).........................................................................88 4. Jornal O Estado do Maranhão (12/03/2007).................................................................89

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12

1. DISPUTAS PRIVADAS PELA POSSE DA ORDEM PÚBLICA NO BRASIL........................................................................................................................17 . 1.1. A Gênese da Confrontação Público/Privada no Brasil.....................................17 1.2. O Surgimento do Estado como prosseguimento da Esfera Familar

Brasileira...............................................................................................................28 1.3. Lutas “sanguíneas” pelo poder local no Brasil..................................................35

2. DISPUTAS POLÍTICAS ENTRE FAMÍLIAS NA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA MARANHENSE............................................................................47 2.1. Independência de pena e guerra civil de "sangue": lutas político/familiares

pelo poder local no Maranhão............................................................................47 2.2. Disputas pelo poder político na "Guerra dos Três Bês" no Maranhão

independente.........................................................................................................61

CONCLUSÃO Política no Maranhão: Reflexo de uma História de Dominação Facciosista/Familiar....................................................................................................79 REFERÊNCIAS............................................................................................................83 ANEXOA – ..................................................................................................................91 ANEXOB – ..................................................................................................................93 ANEXO C – .................................................................................................................95

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INTRODUÇÃO

Grande é a discussão, não só nos meios acadêmicos, mas também em muitos

outros círculos de sociabilidade, sobre o problema do atual estado de subdesenvolvimento em

que se encontra o Brasil frente a outros países, mesmo os da América Latina1. Este ponto foi

um dos principais alicerce da campanha política à presidência da República do candidato do

partido do PSDB Geraldo Alckmin, nos meios de comunicação, quando colocava que o Brasil

cresceu somente 2% no ano de 2006, ao passo que outros países da parte sul da América

cresceram mais, dentre eles a Argentina que cresceu 9 %. Este candidato preferiu definir o

atual Estado brasileiro como uma “nação em desenvolvimento”, discordando da real proposta

do sistema capitalista, no qual o Brasil está inserido, que é a existência dos explorados para

que haja os exploradores.

São muitas as causas apontadas para explicar o subdesenvolvimento, sendo muitas

delas reinantes no senso comum da maioria da população, mas que por causa disso, não deve

ser desmerecido totalmente, pois ele é resultante da herança de um grupo social e das

experiências passadas que continuam sendo efetuadas. Marilena Chauí2 assim explica a

relevância do senso comum:

O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. Para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. Depois de cerca de quatro séculos, desde que surgiu com seus fundadores, curiosamente a ciência está apresentando sérias ameaças à nossa sobrevivência.3

Portanto, o que se tem na mentalidade da maior parte da população sobre as

possíveis causas do nosso subdesenvolvimento e que acabou se cristalizando por causa do

senso comum, vai desde uma corrupção e despolitização que não proporcionam uma melhor

distribuição da renda, sendo que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ligado ao

1 Nos Estados Unidos, o termo não foi usado até o final do século 19, e só se tornou comum para designar a região ao sul daquele país já no início do século 20. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a criação da CEPAL consolidou o uso da expressão como sinônimo dos países menos desenvolvidos dos continentes americanos, e tem, em conseqüência, um significado mais próximo da economia e dos assuntos sociais, ou seja, a expressão América latina, é usada com a conotação de paises subdesenvolvidos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9rica_Latina>. Acesso em: 13 mar. 2007. 2 Marilena de Sousa Chauí é uma filósofa brasileira. Professora de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

3 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Marilena_Chau%C3%AD>. Acesso em: 17 mar. 2007.

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Ministério do Planejamento, apontou que, em 2003, apenas 1% dos brasileiros de maior poder

econômico possuíam uma renda equivalente aos ganhos dos 50% dos de renda média, e que

um terço da população foi considerada pobre (53,9 milhões), seguindo o critério daquelas

famílias que vivam com um salário mínimo (R$ 120,00 na época)4, embora não somente esta

informação seja completamente elucidativa para definir o subdesenvolvimento do país; à

própria população brasileira que não sabe escolher seus dirigentes na hora da votação, sendo

isso gerador de discussões ainda mais veemente quando envereda para a área da falta de

investimento na educação, por parte dos próprios governantes, com um intuito de não

proporcionar um senso crítico à maioria da população5 e ao passado de exploração colonial

que impôs ao Brasil uma posição de dependência recíproca com relação a outras nações,

mesmo que essa dependência fosse desigual, proporcionando a estagnação no

desenvolvimento brasileiro. Dependência política essa, que seria ‘quebrada’ com o histórico 7

de setembro de 1822, quando através de manobras políticas, o Brasil teria alcançado sua

‘independência’, frente a sua exploradora mais direta, Portugal. Contudo esse processo teria

suas bases fincadas em solo brasileiro já em 1808, com a vinda a família real portuguesa para

este lado do Atlântico, o que a escritora Maria Odila Silva Dias chamou de ‘interiorização da

metrópole’ ou seja,

o fato em si da separação do reino em 1822 não teria tanta importância na evolução da colônia para o Império. Já era fato consumado desde 1808 com a vinda da corte e a abertura dos portos e por motivos alheios à vontade da colônia ou da metrópole. (DIAS apud MOTA, 1986, p. 164).

Dessa forma, o que permeia os atuais embates sobre o processo emancipatório

brasileiro é o estigma da continuidade, sendo esta representada pelo continuísmo das

instituições e das estruturas social, política e econômica que permearam a colônia por três

séculos de colonização e continuaram, de forma mais veemente, com a transferência da Corte

para esta parte da América. Sendo assim, compreender como estava o Brasil no período logo

após sua “independência”, ou mesmo o dos dias atuais é compreender até que ponto as

estruturas coloniais foram transpassadas para o Brasil ‘independente’, proposta essa já

lançada no livro de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, que embora o

tenha escrito na década de 40 do século XX e, portanto, ainda mais ligado às antigas

estruturas de um Estado oligárquico, o qual já obteve grades avanços, como por exemplo a

4Dados divulgados no site da Faculdade de Economia e Administração – UFJF. Disponível em: <http://www.fea.ufjf.br/noticia.php?codigo=166>. Acesso em: 17 mar. 2007. 5 Estas duas primeiras causas citadas, que circunda qualquer discussão da maioria da população sobre o atual estado político brasileiro, levar-nos-ia à um aprofundamento em várias nuanças históricas, que explicaria a atual condição letárgica desses fatores, não sendo aqui necessário devido nos desvirtuar do tema inicialmente proposto.

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Constituição de 1988 (ANEXO B), é também válido esse olhar retrospectivo para os dias

atuais.

É por isso que para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá o leitor não estará se ocupando apenas com devaneios históricos, mas colhendo dados, e dados indispensáveis para interpretar e compreender o meio que o cerca na atualidade. (PRADO JUNIOR, 1994, p. 10).

Seguindo-se a concepção de Caio Prado Júnior, em se tratando de um

encadeamento, mesmo sendo ele um pouco paradoxal ao longo dessa sua obra com relação ao

seu posicionamento, e pautando-se também na visão de Sérgio Buarque de Holanda (1962) no

plano das transições compromissadas com estrutura colonial na formação do império, no seu

importante ensaio sobre Herança colonial, sua desagregação, intentaremos pautar a primeira

parte do nosso trabalho na concepção dos continuísmos, pois, por uma visão lógica,

compreender as estruturas que alicerçavam os primórdios do século XIX, é reportar-se

também ao passado colonial e suas subseqüentes heranças, procurando compreender a linha

mestra (PRADO JUNIOR, 1994) que orientou a formação das estruturas imperiais. Contudo,

isso não reporta à conclusão de uma negativa às rupturas ocorridas no seio da colônia, pois é

inegável que mudanças tenham ocorrido nesse processo de transformação de uma colônia a

um país mais autônomo politicamente, por mais que as principais bases tenham sido mantidas,

como por exemplo, a escravidão, fato inédito nas colônias desse perímetro sulamericano. Era

necessário uma “[...] grande dose de reinvenções e de criações de novas estratégias,

compatíveis com a construção de uma ordem viável e de formas de governabilidade que a ela

se adequassem.” (COSTA apud JANCSÓ, 2005, p. 56).

A ‘atlantização’ da política lusa (FRAGOSO, 2001), representou a passagem de

práticas portuguesas, encetas nos anseios lusos de propriedade e privilégios oriundos de

Portugal. Tentando perceber como ocorreu essa transposição e adequação às condições sociais

e políticas dos trópicos (América lusa) é que nos pautaremos para a produção do primeiro

capítulo deste trabalho, onde será intentado mostrar como a confusão público/privado no

Brasil se desenvolveu (ANEXO B) desde a colonização, passando pela emancipação política e

a conseqüente e incipiente formação do Estado, traduzindo-se este confronto nas diversas

lutas entre famílias pelo poder local, que com o advento do império em 1822, ganhou força a

faceta das instituições administrativas, refletindo nelas, todos os anseios familiares de poder e

prestígio, se tornando esta, umas das características da vida política brasileiras, inclusive nos

dias atuais. Sendo assim, estaremos sempre imbuídos, ao longo das nossas análises, do que

Marieta de Moraes Ferreira (1992), em seu artigo intitulado A Nova ‘Velha História: O

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retorno da História Política, chamou de ‘estruturas duráveis’. Contudo, apesar de

concordarmos com ela no aspecto de “que os comportamentos coletivos têm mais importância

sobre o curso da história do que as iniciativas individuais” (FERREIRA, 1992, p. 265),

daremos uma nova interpretação ao que ficou como grande ‘cancro’ da ‘velha história

política’, que é o conflito entre interesses elitistas. Para isso, metodologicamente ao contrário

do que propõem René Remond, em seu livro Pour une historie politique (1988), onde ele

defende o “ [...] renascimento da história política através da ampliação da dimensão política

dos fatos sociais”6, intentaremos perceber a dimensão social dos fatos políticos, mas sem

acatar a sua afirmação da criação de uma história de curiosidades, que seria a grande

conseqüência se a multidisciplinariedade não fosse revista. A renovação metodológica-

historiográfica, proposta pelos Annales, foi o que possibilitou um olhar cada vez mais

introspectivo na busca de sempre se chegar mais perto da totalidade da verdade histórica,

através de renovações de conceitos e metodologias, possibilitando o (res)surgimento de novas

visões, do que era considerado arcaico, tradicionalista: a história política. Dessa forma, nossa

proposta se desvirtua um pouco da de Marieta Moraes Ferreira (1992) de resgatar o político

através da tradição, das sobrevivências, das continuidades, e sim perceber o social através da

ideologia dos governantes, do pensamento político, corroborando a assertiva de Duby (1995),

de que o homem em sociedade constitui o objeto final de qualquer pesquisa histórica.

“As fronteiras que delimitavam o campo do político ampliaram-se

significativamente, incorporando novas dimensões e abrindo espaços para o surgimento de

novos objetos de estudo” (FERREIRA, 1992, p. 266). Assim, as disputas político/familiares

foram a vertente escolhida por nós para, além de alavancar a perspectiva social dentro da

política, compreender as ‘estruturas duráveis’ refletidas nos conflitos elitistas pelo poder no

Brasil.

No Maranhão, percebe-se um aquecimento nas disputas familiares por prestígio e

poder, logo nos anos subseqüentes aos da independência. Esse processo abriu uma lacuna no

poder local que deveria ser suprida, mas sem deixar de atender à manutenção da ordem e dos

privilégios daqueles que já o detinham, ou dar àqueles que tinham condições de pleiteá-los e

propagá-los na mesma esfera sanguínea. Em 1824 temos o conflito que representou, de forma

mais extremada, os anseios das classes das ricas famílias proprietárias das principais áreas de

plantation do litoral, que por uma conveniência histórico/literária passou a ser (pouco)

conhecida pela historiografia como a ‘Guerra dos Três Bês’, devido às iniciais dos

6 Transcrição da conferência de René Remond, traduzida por Anne-Marie Milon Oliveira, na Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 7-19, 1994.

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sobrenomes de três das famílias envolvidas nesse conflito, Burgos, Bruces e Belforts. Muitas

outras famílias estiveram envolvidas nesse conflito, até mesmo de forma mais veemente do

que algumas dos ‘Bês’, como os Franco de Sá, Souto Maior, Meireles, mas que devido a uma

‘divergência ortográfica’, tiveram seus sobrenomes injustamente ocultados pelos que primeiro

escreveram sobre esse conflito, ou mesmo de forma proposital com algum intuito político,

pois uma das famílias, os Belforts, não tiveram tanta expressão assim nesse cenário de

conflito, sendo de pouca monta sua participação (como veremos ao longo desse trabalho),

menos que os Moscoso e Meireles. No entanto, buscando compreender esse conflito sob a

ótica das disputas políticas entre famílias no Maranhão, nossa segunda parte intitulada

‘Disputas políticas entre famílias na administração pública maranhense’ visa discutir como o

processo de independência e a posterior adesão do Maranhão viabilizaram o conflito entre

famílias ricas da província, colocando em primeiro plano as famílias dos ‘Bês’ responsáveis,

de forma explícita, por essa época de embates no cenário político maranhense, sendo seus

nomes posteriormente execrados da vida administrativa maranhense, de acordo com João

Mendes de Almeida (1886) em sua obra Algumas Notas Genealógicas: livro de famílias7,

sendo a obra mais antiga pesquisada, que se refere à esse conflito.

Talvez já se possa observar nesses conflitos sanguíneos no pós-independência, os

lampejos da formação de um grupo oligárquico, que Flávio Reis define sua formação entre as

décadas de 40 e 50 do século XIX. Mas, o que se pode verificar e comprovar em toda vida

política da província e posterior estado do Maranhão é o estigma deixado por esse dualismo

mal definido entre público e privado, que vem desde a sua formação e que até hoje norteia a

situação política desse estado.

Não é nosso objetivo neste trabalho fazer uma concepção reducionista em

caracterizar nossa política como mero fruto de um passado, sem levar em consideração a

conjuntura atual, pois dessa forma estaríamos caindo em um erro anacrônico. Porém, nos

propomos analisar um dos traços que norteiam a vida política, não só maranhense, mas

também a brasileira, que é a difícil distinção entre o que é público e o que é privado na esfera

política, que vem perpassando ao longo dos tempos.

7 Encontrada no acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite.

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1 DISPUTAS PRIVADAS PELA POSSE DA ORDEM PÚBLICA NO BRASIL

1.1. A GÊNESE DA CONFRONTAÇÃO PÚBLICO/PRIVADA NO BRASIL

Ao tratar do processo de emancipação política brasileira, Wilma Peres Costa

(2005) em obra intitulada ‘Independência: história e historiografia, tendo como organizador

István Jancsó (2005), faz uma discussão sobre as ‘continuidades’ e as ‘descontinuidades’.

Essa autora discute a complexidade do processo emancipatório brasileiro, pautando-se no

próprio desenrolar dos fatos que vieram fazer eclodir a crise do Antigo Regime: a vinda da

Corte para o Brasil, a abertura dos portos e o conseqüente fim do exclusivismo comercial de

Portugal e a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal.

Dentre outros efeitos econômicos e políticos de imensas conseqüências, essas medidas demarcaram, para os agentes políticos que se defrontavam naquela quadra histórica, um horizonte onde emergia possibilidade de combinar a eliminação dos entraves econômicos da dominação colonial com a continuidade do pertencimento, em novas bases, à nação portuguesa. A partir daí projetos de reorganização política que procuravam combinar a superação do vínculo colonial com a manutenção da unidade da nação portuguesa encontravam abrigo tanto no campo da lealdade a D. João VI quanto nos setores que aderiram à Revolução Liberal do Porto em 1821 e 1822. (COSTA in JANCSÓ, 2005, p. 55).

É inegável a perpetuação de poder no processo, que teve como auge o dia 7 de

setembro de 1822. O medo de uma ‘haitização’8 no Brasil pairava na mente daqueles que

detinham o poder (pelo menos de forma proposital e conveniente), e para que isso se tornasse

apenas ‘devaneios’ de suas mentes, era necessário que se fizesse uma ‘revolução às escuras’,

mais diplomática que propriamente uma revolução, no sentido próprio do termo.

Dessa forma, ideologias, instituições, formas de dominação e posse, juntamente

com aqueles que as detinham, deveriam ser reconfigurados, com o propósito de uma

continuidade da concentração do poder nas mãos de uma minoria lusa, que não tardaria a ter

sua hegemonia ofuscada, ou mesmo hibridizada, por outros segmentos sociais das elites

locais, assim se expressando Rossini Corrêa (1993, p. 83-84) sobre essa questão: “A

separação brasileira foi uma ruptura político- administrativa, não provocando uma superação

nos fundamentos sociais do controle dos meios de produção.”

8 No Século XVIII a região do Haiti, foi a mais próspera colônia francesa na América, graças à exportação de açúcar, cacau e café. Após uma revolta de escravos, a servidão foi abolida em 1794. Nesse mesmo ano, a França passou a dominar toda a ilha. Em 1801, o ex-escravo Toussaint Louverture tornou-se governador geral. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Haiti>. Acesso em: 13 mar. 2007.

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Assiste-se no inicio do século XIX, relações de poder envolvendo aspectos novos

e inusitados, sob a égide do que Labrousse denominou de “[..] a passagem do estado de ordem

para o estado de classes” (LABROUSSE apud WEHLING, 1999, p. 24). Da mesma forma,

presencia-se nessa ‘fase nova’ (PRADO JUNIOR, 1994, p. 9), a extinção gradual da

‘comunidade’ e sua derradeira substituição pela ‘sociedade’, ou seja, a substituição dos

vínculos próximos como os familiares, pessoais, corporativos e paroquiais, pelas macro-

solidariedades, espelhadas pelas ideologias do nacionalismo, partidos políticos e revolução9.

Nestor Duarte, em seu livro ‘A Ordem Privada e a Organização Política

Nacional’, defende que o Brasil começava por uma continuação da sociedade lusa antes e

depois da vinda para a América, corroborando com a assertiva de Capistrano de Abreu que a

história do Brasil começa em Portugal.

É fora de dúvida que a história do Brasil, com a interpretação conseqüente de sua organização social deve começar antes do descobrimento. Os elementos sociais e os agentes humanos que a formam, ainda que modificados de logo, determinam e continuam no pais que se vai constituir um desdobramento de origem como imprimem a essa sociedade a índole e a essência da organização donde provêm e se deslocam. (DUARTE, 1997, p. 1).

Contudo, o Estado Moderno já prenunciava uma nova época sobre o ocidente,

com o príncipe que era o senhor da espada10, agora era também o senhor das trocas

manufaturadas11. Daí resultando a questão de se pensar em uma construção política como

fruto da ruína do feudalismo, mas com base nele, ou algo que se desenvolveu de forma

independente? Sendo esse um dos matizes que permearam as discussões nos meios

acadêmicos sobre os determinantes da história social brasileira, responsável por uma acirrada

guerra historiográfica, em meados do século XX entre Caio Prado e Sodré.

Segundo Raymundo Faoro (2000, p. 19-20):

A persistência, no curso da história, de magnatas territoriais, não os extrema, apesar dos poderes decorrentes das riquezas e das dependências que ela gera, na caracterização de um sistema que, para se aperfeiçoar, exige o conjunto de outras atribuições, imunidades e competências de ordem pública. A terra obedecia a um regime patrimonial doada sem obrigação de serviço ao rei, não raro concedida com a expressa faculdade de aliená-la. O serviço militar prestado em favor do rei, era pago. O domínio não compreendia no seu titular, autoridade pública, monopólio real ou eminente do soberano.

9Para obter mais detalhes ver o artigo de Robert Nisbet. Os Filósofos Sociais. Brasília: UnB, 1982, p. 133. 10Referencia feita por Raymundo Faoro (2000, p. 1) à origem bélica do Reino português no seu livro ‘Os Donos do Poder’: ‘O Reino de Portugal [...] é tão guerreiro que nasceu com a espada na mão’. 11 Referência às trocas do apenas supérfluo, sistema que predominou no feudalismo, agora para o excedente das manufaturas.

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Portanto, Portugal possuía um ‘feudalismo modificado’, ou seja, mais um estado

patrimonial do que, propriamente, feudal, já traçado esse modelo por Maquiavel quando

distingue o principado ‘feudal’ do ‘patrimonial’. Dessa forma, nossas análises se pautarão

nessas configurações patrimoniais seguindo as concepções de continuísmos para este lado do

Atlântico.

Nestor Duarte afirma que “o português é mais um homem privado do que

político” (DUARTE, 1997, p. 4). De fato, Portugal atingiu formas de Estado Moderno

procurando sua expansão além mar, sendo imperialista nos objetivos e revelando uma unidade

política. Mas, seu homem continuava ligado a sua ‘terra’12. Portanto, apesar do homem

português se cobrir com as ares de um Estado politicamente moderno, continua ligado aos

laços patriarcais que condicionaram sua formação, sendo esta a mentalidade que o direcionou

em toda a sua trajetória, inclusive transplantada para as terras brasileiras.

De Portugal ao Brasil colônia, o apego à ‘terra’, ao patrimônio ou ao que preferiu

chamar Ângelo Emílio da Silva Pessoa (2003), em sua tese13, simplesmente de ‘Casa’,

referindo-se a Casa-Grande14 na qual era assentada toda a estrutura social da época colonial,

perpassou ao longo dos séculos e veio achar terreno fértil também no Brasil independente.

Contudo, o sentido dado por esse autor ao termo ‘Casa’, relacionando-a com patrimônio, tem

uma abrangência maior do que propriamente os bens deixados por entes de uma mesma

família aos seus sucessores:

A noção de Casa [...] envolve a relação direta de Família e Patrimônio. Estão ligadas à Casa, uma série de vínculos que unem de forma direta ou indireta, pessoas em diferentes condições de relação: seja de graus diversos de parentescos, seja de níveis de afinidade, seja de formas de sujeição. A idéia de pertencimento a uma Casa pressupõe, portanto, não apenas o convívio num espaço de morada, mas a vinculação de todas as pessoas e do Patrimônio à Casa. (PESSOA, 2003, p. 153).

Esse patrimônio, representado pela grande Casa, abrangeu ao longo de quase três

séculos, além de um vasto acúmulo de bens, o estabelecimento de diversos laços de poder

entres os membros das famílias e as autoridades em várias instâncias, ou seja, além dessa

12 Nesse contexto a palavra ‘terra’ não deve ser entendida como simples espaço físico, mas também como uma mentalidade que condiciona e direciona os anseios do homem português a manter suas estruturas lusas em qualquer lugar. 13 ‘As ruínas da Tradição: a casa da torre de Garcia D’Ávila – Família e Propriedade no nordeste colonial.’ 14 A tese de Ângelo Emílio da Silva Pessoa fala de uma característica inerente mais ao nordeste açucareiro, mais especificamente do sertão baiano nos séculos XVIII e XIX, dos grandes engenhos, da Casa-Grande e da Senzala, espaços que serviram inspiração para a famosa obra de Gilberto Freyre, ‘Casa-Grande e Senzala’. Apesar do Maranhão não ter participado dessa lucrativa empresa, pois em sua formação não se detectou um sucesso no empreendimento açucareiro, não devemos desvencilhar totalmente a província maranhense da figura do Grande Senhor de Engenho, pois se nesta província a figura principal da relação Senhor/Escravo não era o latifundiário de canaviais, a diferença desses segmentos produtivos não deram particularidades ao Maranhão em suas relações tantos com os escravos, quanto entre os próprios membros da elite.

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dimensão econômica, esse patrimônio englobava também uma dimensão política, por implicar

num exercício e na manutenção de geração em geração de um poder que procurava perpetuar-

se sempre nas mesmas ‘mãos’.

A grande propriedade, sob domínio de um patriarca, sempre foi um dos

direcionamentos da Corte Real para a administração dessas ‘bandas de cá’ do Atlântico,

refletindo o desejo que havia nos portugueses de se tornarem grandes latifundiários, senhores

de terras, pensamento muito comum num estado patrimonial, que começou já com o

nascimento do Reino português com a função do Príncipe de reinar, enquanto que aos

Senhores, caberia o papel de ‘assenhoramento’ de grandes propriedades de terras (instrumento

Real de poder, num tempo que as rendas eram predominantemente vindas do solo)15 sem,

contudo, possuí-las, mas o poder derivava da riqueza, esta materializada no senhorio de terras.

Tal poder, fruto da liberabilidade do Rei, pairava na mentalidade portuguesa que

começava a ver em terras brasileiras, o logro16 dos seus sonhos senhorias. Tão logo o Reino

de Portugal sentiu a necessidade de uma dominação mais efetiva sobre o território americano,

decidindo-se por colonizá-lo (século XVI), concedendo grandes extensões de terra para

aqueles que se dispunham a tal empreitada próximo ao Equador.

Viriam para cá, os novos ‘donos’ das terras recém descobertas, os portugueses

‘famintos de terras e cobiçosos de fortuna imediata’, agregados a uma maior autonomia frente

à liberalização da Coroa à iniciativa particular, confundindo-se o financiador com o

empresário, tendo o poder público se abstido de um maior controle e vigilância, frente a um

empreendimento que só lograria lucro dentro de dez ou quinze anos (FAORO, 2000).

Dessa forma, uma das pilastras na qual estava assentada a empresa colonizadora,

era o grande domínio senhorial de terras, que vinha satisfazer a ânsia portuguesa de poder,

visto nessa época como posse de terras e a finalidade apropriativa do Reino das terras

americanas, apesar do espírito luso já não mais cultivar “[...] pela terra nenhum amor, nem

gosto pela sua cultura”, segundo Gilberto Freyre. Este justifica a ‘imposição’ do modelo

agrícola17 da seguinte forma:

Há séculos que em Portugal o mercantilismo burguês e semita, por um

lado, e por outro lado, a escravidão moura sucedida pela negra, haviam

15 Raymundo Faoro, no livro ‘Os Donos do Poder’ (2000), traça uma trajetória da importância da terra para a formação política portuguesa, desde as guerras contra o domínio romano, às investidas de Aníbal, às expulsão dos Mouros e várias outras conquistas, que sempre havia a incorporação dos domínios ‘inimigos’ aos domínios Reais do emergente Reino português. 16 No sentido de desfrutar, gozar. 17 Para compreender mais sobre as condições naturais que propiciaram uma empresa agrícola, ler a obra clássica de Gilberto Freyre, ‘Casa-Grande e Senzala’ (1999) paginas 23 à 27.

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transformado o antigo povo de reis lavradores na mais comercializado e menos rural da Europa. [...] Considerando o elemento colonizador português em massa, [...] pode dizer-se que seu ruralismo no Brasil não foi espontâneo, mas de adoção, imposto pelas circunstâncias. (FREYRE, 1999, p. 21-22).

Portugal do século XVI, ainda é governado por um rei, não mais pautado na

agricultura, típica do feudalismo europeu, mas tendo suas bases, principalmente, no comércio

das especiarias asiáticas. O mercantilismo já era a ideologia que reinava na mente dos da

Corte e também daqueles que dela esperavam concessões e privilégios, fazendo uma

reorganização do direcionamento dessa doutrina. Portanto, não é difícil compreender, ou

‘curioso’, segundo Freyre (1999) que apesar da visão comercial e menos feudal, a agricultura

tenha se enraizado no Brasil através dos primeiros portugueses/conquistadores. A visão

mercantilista que predominava em Portugal no século XVI, fez com que uma visão de

riqueza, com seus conseqüentes privilégios reais, evoluísse para uma ânsia cada vez maior de

fortunas pessoais. A região tropical em que se encontrava o Brasil, favorecia o cultivo de

produtos alheios as condições naturais de Portugal, fazendo dessa sua colônia um espaço

promissor a atender as reais necessidades portuguesas. Assim, o espírito daqueles que se

dispunham à ‘aventura brasileira’ era o de enriquecimento, sendo sua possibilidade mais

rápida, através da monocultura em grandes extensões de terra, que vinham atender as duas

‘propostas’ da colonização, uma ligada ao interesse Real, que era a ‘asiatização’ do Brasil, e

uma mais ligada aos interesses particulares, que era a obtenção de riquezas e prestígios

pessoais. Não tardaram, esses objetivos, a se confrontarem em terras brasileiras, mostrando

que o Brasil já nasceu em um âmago de confrontação do privado com o público, sendo este

representados pelo interesses da Coroa.18

‘Ao Rei, todo o poder’. A doutrina mercantilista, que predominava na época,

agora com os olhos mais voltados para esse lado do Atlântico, e não mais ao outro (Ásia),

propiciou um maior controle administrativo sobre a sua colônia, instituindo como uma das

facetas desse controle, as Capitanias Hereditárias, exemplo cabal de uma pretensão de

perpetuação do poder, tendo por base os laços sanguíneos. Assim sendo,

A Coroa não confiou a empresa a homens de negócios, entregues unicamente ao lucro e à produção. Selecionou, para guardar seus vínculos públicos com a conquista, pessoas próximas do trono, burocratas e militares, letrados ou guerreiros provados na Índia, a pequena nobreza, sedenta de glória e riqueza.” (ABREU apud FAORO, 2000, p. 92)

18 As teorias dos Estados (modernas e antigas), atribuem a essa instituição a responsabilidade de gerir os anseios coletivos. Mas é um pouco difícil pensar no Estado português do século XVI, como mediador dos anseios gerais da população, buscando seu bem estar. Contudo, apesar dessa utopia ainda nos dias atuais, preferimos utilizar a dicotomia privado/público para explicar os segmentos opostos no jogo de interesses do mercantilismo luso, apesar de sabermos que o confronto seria melhor caracterizado em privado/privado.

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Se as condições físicas do Brasil já contribuíam para uma ‘união separada’ dentro

da colônia, pautada no parentesco, a instituição das capitanias veio reforçar esses laços de

perpetuação e manutenção sanguínea (FREYRE, 1999).

Contudo, logo que esse sistema dá mostras de frouxidão dos laços com a Coroa, a

metrópole reage quebrando a perpetuidade sanguínea (hereditária), tolhendo o arbítrio

individual, concepção que teve sua origem na própria sociedade patrimonial lusa, mas dando

seguimento à perpetuidade centralizadora nas mãos de seus pares.

Seguindo essa linha sucessória, aparece, com intuito de uma maior

centralização e posse, o Governo-geral, pois como afirma Raymundo Faoro (2000, p. 141),

“o governo Geral não nasce das ruínas da colônia, mas da esperança de seus lucros”,

seguido do surgimento das vilas e cidades, propiciando uma administração mais

centralizada, dando cor às Câmaras Municipais, criadas aos moldes do que eram em

Portugal. Contudo, esse novo ensaio político-administrativo de um poder político

centralizador, não foi capaz de exercer uma ação aglutinadora, em uma sociedade onde

sempre predominou os particularismos, pois tais raízes foram bem ‘plantadas’ em solo

brasileiro, notando-se uma hipertrofia dos núcleos privados de autoridades. A partir daí,

surgia uma característica que se irá perpetuar ao longo da história do Brasil e que também

norteará este trabalho em boa parte do que ainda se seguir: de forma mais sistematizada,

começa a surgir o papel de uma ‘empresa’ administrativa, tendo a frente os ‘homens bons’,

que deveriam ser representantes da Coroa na colônia, dando início à uma espécie de

‘legalização’ do poder familiar sobre o poder público, em âmbito local.

Ao lado dos funcionários providos pelo rei, ou pelos donatários, havia, desde os primeiros tempos da colônia, os eleitos de cada povoação, intervindo deste modo, os moradores na administração dos negócios públicos. Essa intervenção, em alguns casos, chegava a ser direta. Os interesses regionais estiveram sempre sob a administração e câmaras do lugar, composta de vereadores e presididas por juízes ordinários, escolhidos uns e outros pelos homens bons da terra, confirmada pelo rei a escolha dos segundos. Entendia-se por homens bons, diz Coelho da Rocha, lembrado em sua História, as pessoas gradas do lugar. Todos nós sabemos o eufemismo que há nessa expressão. Homens bons, insiste um historiador nosso, eram [...] os indivíduos mais respeitáveis da vila, isto é, aqueles que já tinham exercido a governança ‘. E logo nos informa da liberalidade com que os juízes e corregedores lhes procediam a qualificação: ‘ só deixavam de ser homens bons os operários, os mecânicos, os degredados, os judeus e os estrangeiros’. Aqui está: homens bons eram todos aqueles que exploravam o trabalho alheio; os que do seu viviam eram livres e escravos: nem os primeiros estavam naquele rol. Como os tempos se parecem, meu amigo! (REBELO apud FAORO, 2000, p. 14).

A autoridade dos ‘homens bons’, presidindo as câmaras municipais, era tamanha

que chegava a confrontar-se com o Governo Geral, estando a população colonial brasileira

duplamente subjugada a autoritarismos: em um âmbito ao Governo Geral e em outro as

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câmaras municipais, demonstrando a clara oposição entre o Estado e o particularismo das

famílias.

De fato, os ‘homens bons’ eram sempre grandes senhores de latifúndios, que

como patriarca da ‘Casa’, gozavam de um amplo poder de influência em sua localidade.

Sobre a representatividade de tais homens, assim se expressa Sérgio Buarque de Holanda:

“Eram, pela solidez dos seus estabelecimentos, considerados como a mola real da riqueza do

poder na colônia, os animadores reais da produção, do comércio, da navegação e de todas as

artes e ofícios.” (HOLANDA, 2003, p. 80).

Ainda sobre essa autoridade, esse mesmo autor nos coloca que, suas decisões (dos

patriarcas), mesmas que arbitrárias e despóticas, eram atendidos prontamente, devido a uma

quase auto-suficiência da sua ‘Casa’ 19. Dessa forma, nos domínios rurais o que predominava

como forma de organização social, é o modelo patriarcal, tendo a frente o senhor da Casa-

Grande. Contudo, ao que tudo indica, este tipo de organização familiar ultrapassou as

fronteiras da vida doméstica, fazendo-se perceptível também na vida pública e com esta

confundindo-se, traço indelével que não poderia deixar de se manifestar em nossa organização

política nas mais variadas épocas, norteando muito temas hoje discutidos, inclusive o deste

trabalho, que é a aglutinação da esfera pública pela privada, em âmbito regional.

Assim, o que se assiste, desde a formação da vida pública brasileira é a

interferência em vários aspectos da vida social, de “sentimentos próprios à comunidade

doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do

Estado pela família” (HOLANDA, 2003, p. 82), pautados no amplo poder dos Senhores de

Engenho na maior parte do nordeste, e no caso específico do Maranhão, os grandes

produtores rurais de algodão20. Tal prestígio foi formado desde o início da colonização e

perpassou ao longo dos séculos, sendo que seus reflexos são ainda sentidos nos dias atuais.

Com o início do século XIX, assiste-se ao declínio da grande lavoura açucareira21

e juntamente com ele, a ascensão de grandes centros urbanos, incentivada, sobretudo, pela

vinda da família real para o Brasil (1808) e a ‘Independência’ (1822), fazendo os grandes

Senhores perderem muito da sua singularidade no cenário nacional. Porém, menos que uma

19 Para saber mais sobre o que é colocado por Sergio Buarque de Holanda, ler o capitulo sobre Patriarcalismo e espírito de facção do livro ‘Raízes do Brasil’ (2003, p. 80). 20 No Maranhão não imperou o engenho de açúcar como em outras partes do nordeste, como temos em Pernambuco seu maior centro. Contudo não é errado pensarmos as estruturas de um engenho, com casa senhorial, senzala, e outros descritos por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, formando os latifúndios maranhenses, como nos mostras vários autores, dentre eles Rossini Corrêa em sua obra ‘Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia’ (1993). 21 Raymundo Faoro dá em dados estatísticos a real dimensão em que encontrava a atividade agrícola no país nos finais do século XVIII, com a crise do açúcar, em os ‘Donos do Poder’ (2000, p. 244).

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perda de prestígio, foi um redirecionamento para as ocupações burocráticas, públicas e

políticas, transpondo para elas, as ideologias e mentalidades trazidas desde os primeiros anos

de colonização portuguesa no Brasil.

É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor da vida que tinham sido atributos específicos da sua primitiva condição”(HOLANDA, 2003, p.82).

É tão poderosa essa ordem privada, que a formação do Estado não conseguiu

pautar-se em bases novas, alicerçado-se, ainda, nas ‘colunas da Casa Grande’, que era a forma

familiar. Mostrando essa sedimentação familiar, assim se expressa Nestor Duarte (1997, p.

71): “Essa Casa Grande, além de representar a ordem privada, em que a sociedade colonial

deseja resumir-se, continua a desenvolver o espírito que lhe é próprio contra qualquer

modificação que essa sociedade possa vir a sofrer.”

Mesmo depois da independência, o que se presencia em meados do século XIX,

além das permanências de instituições de controles nas mãos de uma pequena parcela

detentora do poder político, e conseqüentemente social, em âmbito regional, é a instabilidade

no seio da população brasileira, traduzido, de forma mais forte, nos levantes populares

ocorridos nos primeiros anos do Império Constitucional, e também na agitada vida política de

então, com os protagonistas desse âmbito social, se confrontando com ávidas aspirações a

cargos administrativos no aparelho estatal, nesse momento de formação. Mas a própria

formação da sociedade, pautada em laços de inter-relacionamentos familiares próprios, como

já exposto acima, provocou uma certa ‘autonomia’ e separação entre estes dois universos: a

sociedade civil e o poder político. Dessa forma, a manutenção de um status quo aliado ao

medo de uma haitização, cada vez mais presente da mentalidade elitista da época, fez gerar

um certo acordo entre as classes mais privilegiadas. Porém, um acordo que girava

superficialmente entre interesses mais imediatos, que era a manutenção da grande propriedade

nas mãos de poucos e o trabalho escravo. No jornal Correio Braziliense22, é clara a visão,

22 O Correio Braziliense ou Armazém Literário, mensário publicado por Hipólito José da Costa em Londres, é considerado o primeiro jornal brasileiro e circulou de 1 de junho de 1808 a dezembro de 1822, contando 175 números editados no total. Através desse veículo, remetido clandestinamente para o Brasil, Hipólito da Costa defendia idéias liberais, entre as quais as de emancipação colonial, dando ampla cobertura à Revolução Pernambucana de 1817 e aos acontecimentos de 1821 e de 1822 que conduziriam à Independência do Brasil. O periódico era dividido em segmentos dedicados à Política, ao Comércio e Artes, à Literatura e às Ciências e Miscelânea.O desconforto causado à Coroa Portuguesa pela publicação do periódico levou a que a mesma patrocinasse, à época, também em Londres, a publicação do O Investigador Portuguez em Inglaterra, visando diminuir a sua influência. Posteriormente, a partir de 1813, a Coroa viria a pagar mil libras por ano (equivalentes a 500 assinaturas), através de um amigo de Hipólito da Costa, Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro, o que teria

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mesmo que fosse como pretexto, de um medo de uma sublevação de escravos, embora

contraposta por seu redator. Em um intenso debate sobre as discordâncias dos magistrados em

relação à posição colonial do Brasil, impetrado nas páginas desse jornal em março de 1822,

assim o redator se expressa sobre um dos deputados da câmara com relação à uma possível

haitização no Brasil:

Resta-nos unicamente notar uma observação do Deputado Moura, nesse debate; e muito lamentamos ter que fallar nella, por vir de um Deputado tam distincto. He o que elle disse sobre o medo que devem ter os Brazilienses de uma sublevação dos escravos, se no Brazil não obedeceram a tudo que quizerem as Cortes. (Correio Braziliense, nº 166, mar. 1822, p. 227).

Essa instabilidade política e social fez gerar anos de muitas tensões e conflitos

no período logo imediato à independência. A luta pelo poder local envolvia as famílias da

elite, desejosos de altos cargos e espaços políticos na administração da província, aliados

ao sentimento de antilusitanismo, que impulsionavam as elites locais ao confronto

burocrático com os ‘Reinóis’.

No Maranhão, as tentativas de tirar os portugueses dos cargos públicos, resultaram

em medidas como a tomada pelo Conselho Militar, em 1824, de expulsar os estrangeiros que

não fossem donos de propriedades e os solteiros. Mais tarde essa expulsão resumia-se nos

solteiros no prazo de 15 dias. Contudo, o poder econômico e político continuava nas mãos

dessa classe, principalmente em São Luís, onde a grande família ainda era aquela diretamente

ligada ao trono lusitano, mesmo que de uma forma mais indireta (VIEIRA, 1979).

Se de fato, “formou-se na América portuguesa uma sociedade agrária na estrutura,

escravocrata na composição [...] defendida menos pela ação oficial do que pelo braço e a

espada do particular” (FREYRE apud DUARTE, 1997, p. 25), tal estrutura foi repassada para

o Império, tanto na sua administração como naqueles que estavam a frente dessa

administração. O individualismo patriarcal que norteava a ideologia reinante na época da

colônia e que foi conservada durante o Império, como metaforizou Freyre, nos termos ‘braço’

e ‘espada’ do particular, foi o grande responsável pelas agruras entres estes grupos que

compunham o cenário político brasileiro. A Casa Grande foi o principal fator de colonização,

alicerçada no regime patriarcal, devido a ausência de sistema regular de colonização, o que

dificultou, sobremaneira, a formação de um Estado brasileiro.

abrandado o tom das críticas do jornalista a partir de então. Após a independência, Hipólito encerrou a publicação do jornal, visto que já não fazia sentido editar um jornal no exterior com o país independente. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Correio_Braziliense#O_Correio_de_1808>. Acesso em: 17 mar. 2007.

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Apesar do Estado não constituir uma extensão de anseios familiares e vontades

particulares, no seu sentido ideal23, sendo estas duas linhas de poder (familiar e estatal)

descontinuas e mesmo opositivas (HOLANDA, 2003, p.140-142), o que se presencia no

Império brasileiro é a tentativa de uma aglutinação do Estado pela regime patriarcal da

Grande família, que predominou desde os primeiros dia da empreitada da colonização.

A história do poder político no Brasil, desde então é a história da competição entre, de um lado, os fatores de dispersão social e política que suscitam e engendram a formação de agências de autoridade privada e, de outro, os fatores de unificação e centralização de poder social que contribuem para consolidação definitiva da organização estatal – que, aliás, até hoje, não se pode dizer completada. (DUARTE, 1997, p. 29).

No Império os fatores de uma politização fortaleceram a organização estatal, e a

aristocracia rural, antes combatente da centralização oficial, por considerar que esse processo

enfraqueceu seu poder local, passa a confundir-se com administração pública, fazendo tomar

novos rumos o paternalismo da Casa Grande. Esse velho sistema doméstico, predominando

nas relações políticas, reforçou a velha ignorância entre as reais diferenças entre o público e o

privado, não só no Império, mas também se perpetuando ainda nos dias de hoje.

Nossa sociedade era, assim, um organismo amorfo e invertebrado, apenas resolvido aqui e ali, freqüentemente, pelas lutas de facções, entre regionalismos e entre famílias poderosas, que se disputavam a preeminência, ou tinham contas a ajustar. Nesses casos, havia agregação fundada em emoções e sentimentos comuns, mas que desapareciam prontamente, apenas se tornassem supérfluos os laços que associassem momentaneamente os homens. (HOLANDA, 2003, p. 32).

O Império brasileiro conservou muitas das estruturas, que tiveram sua gênese nos

primórdios da colonização portuguesa em terras americanas, ou mesmo na própria sociedade

lusa. Dentre elas, o patriarcalismo nas Casas-Grandes, que tentando perpetuar-se na vida

pública através dos cargos administrativos, principalmente depois do início da emancipação

política, entendida esta, já com a vinda da família real portuguesa para o Brasil (1808).

Concordamos com Maria Odila da Silva Dias (apud MOTA, 1986), de que a independência e

a constituição do Estado Nacional provocaram conflitos entres os que almejavam a

continuidade de poderes e privilégios da esfera particular, agora no âmbito público,

provocando disputas familiares pelo poder, este traduzido no usufruto de cargos na

administração do Estado, em todas as regiões do Brasil, e em especial no meio-norte.

23 Consideramos esse sentido, o dado pelos teóricos clássicos do Estado Moderno, dentre eles podem ser citados Thomas Hobbes e John Locke. .

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No caso específico do Maranhão, as lutas foram ‘apimentadas’ pelo

antilusitanismo, fenômeno que apesar de não ser peculiar somente a esta província, ganhou

grande ênfase por causa do grande ligação do Maranhão à metrópole portuguesa e do grande

contingente de lusos nesta terra, influenciando-a econômica e politicamente.

Com o Império constitucional, advindo da emancipação política de 1822, o

aparelho estatal tende a intensificar sua formação e centralização. A máquina do Estado passa

a ser vista como o refúgio para a manutenção do status quo e os privilégios da aristocracia

rural, corroborada pela lacuna deixada pelo processo de separação política na esfera do poder

público, em especial na maranhense devido a sua singularidade24 no cenário político nacional

do início do século XIX, deixando suas marcas, ainda hoje, na vida pública.

24 Ver o capítulo A ideologia da singularidade (p. 69-78) em LACROIX, Maria de Luordes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus mitos. 2. ed. rev. e ampl. São Luís: Lithograf, 2002.

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1.2 O SURGIMENTO DO ESTADO COMO PROSSEGUIMENTO DA ESFERA FAMILIAR BRASILEIRA

A confusão do público com o privado, sempre foi uma vertente concreta no seio

da sociedade brasileira, desde a sua formação até os dias de hoje, e sua mais visível faceta é

na esfera política. Este tema tem sido muito discutido por vários autores em diferentes

ópticas. Especificamente no século XX, as Teorias dos Sistemas Políticos, nas vertentes

marxistas e weberianas, são os prismas costumeiramente utilizados para explicar os passos

das instituições ligadas ao domínio político brasileiro.

Norberto Bobbio fala, em uma das suas definições, sobre a política como a

responsável por organizar indivíduos que têm que conviver em um mesmo espaço territorial,

mesmo sendo diferentes. Dessa forma, o grande desafio dessa esfera é o de construir

instituições que ordenem o convívio estável entre estes indivíduos, ou seja, formar um

governo único que atenda aos anseios de um só povo, sendo dessa forma que deve ser

entendida uma nação.

A estabilidade política de uma nação é o objetivo de todo governo, pelo menos é o

que defendem os autores das ‘Teorias dos Sistemas Políticos’. Mas é na relação dos

indivíduos com as instituições, que surge o grande desafio comum a todas as sociedades.

Dessa forma é que surge o Estado (conjunto de instituições, normas, regras e indivíduos), no

sentido de confluir os anseios da coletividade, sem distinção de posição social. ‘O Leviatã’,

para Hobbes25, deve conter instituições suficientemente capazes de absorver as demandas dos

indivíduos, e que regulem as disputas de forma a fazer do convívio algo pacífico e

estabilizado, de acordo com o ‘Contrato Social’.

Contudo, cada sociedade irá resolver seu dilema político de maneira diferente. As

condições sociais influem muito na construção de instituições para a resolução dos problemas

de conformação política. No Brasil não será diferente. Nossa sociedade, com todas as suas

especificidades (heterogeneidade estrutural, social, econômica, cidadania incompleta,

desigualdade no acesso a recursos, etc.), buscará soluções e arranjos institucionais para tentar

resolver seus dilemas, embora o que seja percebido sejam tentativas particularistas, buscando

a satisfação de segmentos sociais mais específicos: os que estão no poder.

25 No Leviatã, obra clássica de Hobbes, seria o Estado o sustentáculo fundamental na formação da sociedade civil, a qual demanda todo o poder à esta institução, em troca da sua proteção.

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Luiz Werneck Vianna (1999) é um dos muitos autores que estão inseridos na

discussão da construção do Estado Nacional brasileiro, sob uma perspectiva weberiana, que

considera nosso atraso político, ou desenvolvimento político incompleto, como quer Alain

Touraine, ou mesmo uma ‘adolescência política’, como prefere Sérgio Buarque de Holanda

(2003), conseqüência de um passado histórico de exploração colonial. Segundo Viana, nosso

Estado se assemelha muito ao Estado patrimonial tradicional da política oriental, onde os

setores públicos e privados se misturam. Dessa forma, o princípio de isonomia política, que é

uma das bases de qualquer forma política democrática, é tolhido por aqueles que vem no

poder público uma extensão se seu poder particular. Sem cair na assertiva de Faoro (2000), de

que as nações que passaram pelo feudalismo, conseguiram adotar o capitalismo com

sociedade e Estado integrados, preferimos considerar nosso Estado brasileiro, fruto de sua

formação social heterogênea, onde o poder sempre esteve condensado nas mãos de uma

minoria, e devido a isso não se direcionando ao interesse público, não defendendo os

interesses dos indivíduos, mas servindo aos anseios de um seleto grupo, ou seja, aos próprios

dirigentes da máquina pública. Para Viana, e para a nossa concepção, pois é o que

defendemos desde as primeiras páginas do nosso trabalho, o capitalismo brasileiro tem uma

modernização de continuidade com o passado patrimonial26, o que gera uma reprodução do

sistema das desigualdades sociais, já que os detentores de poder político (que são os únicos,

por estarem no Estado) continuam sendo a elite dirigente e governam em benefício próprio.

Sendo assim, o Estado surgia, no Brasil, como uma ‘máquina conservadora’ do poder nas

mãos dos que já detinham privilégios econômicos e que sentiram a necessidade, devido às

‘reformulações institucionais por que passou o Brasil no século XIX, em uma época de

maciço declínio das estruturas coloniais, transfigurados no solapamento do rústico militarismo

exercido pelo senhor de engenho, de perpetuar seus anseios e poderes.

O século XIX já nasce para o Brasil marcado por profundas transformações de

ordem estrutural. A transferência da Corte portuguesa para este lado do Atlântico em 1808,

veio revestir o privatismo, característico da sociedade brasileira, de uma nova ‘roupagem’,

agora ávidas por cargos no aparelho estatal, e seus conseqüente privilégios. Dessa forma,

parece que as novas instituições não foram ‘amoldando-se’ aos tempos, na expressão de

Hipólito da Costa redator do jornal Correio Braziliense, e sim aglutinando-se essas novas

instituições pelas velhas formas de poder, baseada na consangüinidade.

26 No nosso primeiro capitulo dedicamos à tentar explicar as possíveis origens desse estado patrimonial, e que perduraram por vários séculos na existência da “nação” Brasil, sendo sentidas suas conseguências ainda em nossos dias.

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Na conjuntura de formação do Estado Nacional brasileiro, a esfera ‘sanguínea’ de

poder, tem suas bases mais tradicionais abaladas, no entanto, sofre um mascaramento, pois a

‘família política’ começa a sofrer um denso processo de institucionalização, em âmbito mais

específico como a instituição da Igreja, escola e Estado. Nesse último, especificamente, é que

se pode perceber de forma mais notável a dicotomia entre dessas duas esferas de influência

antagônicas: a familiar que ‘teima’ em manter suas estruturas presentes na esfera pública, e o

Estado que surge como marco divisor do interesse público e privado, sem obter no Brasil esse

objetivo totalmente. Na análise de Sérgio Buarque de Holanda (2003), seguindo o modelo

weberiano,

O Estado não é um ampliação do circulo familiar e, ainda menos uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o circulo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. (HOLANDA, 2003, p. 141).

No Brasil o que se percebe, é o constante embate da ordem pública com a ordem

privada, esta representada pela família e aquela pelo Estado, pois segundo Holanda, “[...]

somente pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado[...]”

(HOLANDA, 2003, p. 141). Dessa forma, o Estado deveria ser tolhido de sentimentos

particularistas, para poder visar o bem comum, coletivo, mas devido à formação social

brasileira ser impregnada de um individualismo, vindo das terras lusas e encontrando aqui um

‘ótimo terreno’ para a sua continuidade. Dessa forma, um constante sentimento de aglutinação

do Estado pela Casa Grande, demonstra em que bases estavam alicerçadas as nossas

estruturas administrativas. Não muito diferente do que ocorria nas cadeiras administrativas

lusas, onde o apadrinhamento político era a forma de provimento de cargos públicos mais

utilizada entre os que detinham os poderes administrativos.

O deputado Pereira do Carmo, com o patriotismo que tanto o distingue, ampliou a indicação que já tinha feito, propondo que os Ministros não provessem officio algum que vagasse, sem o participarem às Cortes: estas mandaram cumprir a indicação; por que he já bem manifesto, que apenas vaga algum lugar logo nelle se metem algum afilhado e não importa qual he o,merecimento de tal afilhado, com tanto que isso produza as relaçoens que se desejam. Eis aqui por que o systema constitucional não faz progressos. (Correio Braziliense, 07/03/1822, nº 166, p. 287, grifo nosso).

O século XIX é uma época que nasce com um âmago conflituoso, em que o

declínio da velha ordem familiar, que predominava na Casa Grande, começa a ceder lugar,

a uma outra em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios liberais,

tendem a substituir os laços de sangue. Contudo, assim como o conceito de democracia não

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foi bem incorporado na mentalidade brasileira, com defende Sérgio Buarque de Holanda

(2003), em seu livro ‘Raízes do Brasil’, devido à sua ‘adolescência política’, o conceito de

Estado também não floresceu em sua forma ideal, como propunham seus teóricos, sendo

esta instituição vista no Brasil como um prosseguimento dos poderes nas mãos daqueles

que já a detinham, ou daqueles que tinham já condição de pleiteá-lo, mas todos em comum

acordo de um distanciamento dos outros segmentos menos favorecidos.

Assim, o quadro político da primeira metade do século XIX, com a mudança de

sede da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, elevação do Brasil a Reino Unido à Portugal

e a posterior emancipação política, fez com que a elite nacional aspirasse à um participação

mais efetiva nos processos políticos em andamento na nova nação(CARVALHO apud

SANTOS, 2006). No entanto, essa sede da elite nacional contrastava com a presença maciça

de uma ala portuguesa de posse dos melhores e mais influentes cargos administrativos,

fazendo com que este período da história brasileira estivesse intimamente atrelada às questões

que envolviam as disputas pelo poder entre setores da elite no quadro da organização do

Estado Nacional, contribuindo para que o binômio ‘família’ e ‘Estado’ estivesse inserido nas

transformações institucionais ocorridas na mudança da situação jurídica do país em face dos

processos desencadeados com a vinda da Família Real, culminando com a Independência em

1822. A família representou, então, a instituição através da qual a elite representou o seu

poder, influência e aspirações, articulou suas estratégias e encontrou maior garantia de

sucesso nessa então difícil linha de sucessão hegemônica no aparelho administrativo

(SANTOS, 2006).

Maria Fernanda Vieira Martins com tese ‘A Velha Arte de Governar: um estudo

sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889)27’, faz uma análise sobre as

estratégias tomadas pelos membros da elite, principalmente aqueles atrelados à velha ordem

rural28 para se manter no poder e em especial no Conselho do Estado, que foi criado em 1823,

portanto, logo após a independência. Era um órgão que atuava com o Poder Moderador e

tinha a função de arbitrar as questões nacionais inspirado pelo liberalismo europeu, isto é, a

isenção e o comprometimento com a lei desejáveis numa monarquia constitucional moderna.

27 Defendida na Universidade Federal Fluminense em maio de 2005, a tese teve a orientação de João Luís Ribeiro Fragoso e contou com a banca de argüição de Angela de Castro Gomes (UFF), Lúcia Maria Paschoal Guimarães (UERJ), Maria de Fátima Gouvêa (UFF) e Marieta de Moraes Ferreira (UFRJ). Recebeu o prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa no ano de 2005 e será publicada no ano 2007, mas já divulgado em artigo intitulado Politicagem à brasileira: o gosto pelo poder por Pietra Stefania Diwan, na edição Edição Nº 30 - abril de 2006. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/historiaviva>. Acesso em: 17 mar. 2007. 28 Essa autora considera esses membros como uma das alas que deu origem à dominação elitista nos aparelhos administrativos.

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Boa parte do início do século XIX nos fornece modelos de análise relacionados às

disputas familiares pelo poder aliado às transformações da condição política do Brasil, devido

à estruturação do Estado Nacional ter resultado de um processo de separação ‘mascarado’,

somado às disputas internas pela supremacia do poder e as revoltas de caráter ideológico, que

contribuíram para a formação da base das rivalidades entre as famílias elitistas, incluindo a

transformação do Estado em um lugar de realização das pretensões partidárias, da garantia de

vantagens e benefícios extra-administrativos e da afirmação da elite como monopolizadora da

vida política (SANTOS, 2006).

No Maranhão da primeira metade do século XIX, mais precisamente de 1821, que

é o ano das primeiras notícias da revolução do Porto na província, que possibilitou o debate

dos direcionamentos do Império Luso-Brasileiro na província (GALVES, 2006) e que

coincide com o início da imprensa maranhense, até 1835, que é quando se tem uma

‘normalidade administrativa’ (FERNANDES, 2003) 29 na província, percebe-se uma intensa

movimentação política em torno dos acontecimentos nacionais e internacionais30, tanto

manifestados pelos meios de comunicações oficiais, quanto pela imprensa não oficial, como

nos mostra Lúcia Maria Bastos Neves (apud GALVES, 2006, p. 498):

Estas idéias liberais e constitucionais inauguraram, por conseguinte, no mundo luso-brasileiro, um intenso debate de idéias, possibilitando um novo relacionamento do indivíduo e da sociedade com o poder da Coroa e vislumbrando a constituição de um pacto social. Todas essas novidades foram estimuladas pela circulação cada vez mais intensa de folhetos, panfletos e periódicos, que chegavam de Lisboa ou que se imprimiam no Rio de Janeiro ou em Salvador, e que geravam um clima febril também no Maranhão, em Pernambuco, em São Paulo e em outros locais de menor expressão.

29 Jornalista, político, magistrado e historiador, Henrique Costa Fernandes descreve nas páginas da sua obra “Administrações Maranhenses(1822-1929)” um conjunto de informações sobre Economia e Finanças, Educação, Transportes, Justiça, Obras Públicas, além de uma Sinopse das Leis do Estado, que abrange o período entre 1892 e 1929. Contudo, apesar de abranger desde o ano de 1822, é dado, nesta obra, especial destaque para os quarenta anos da Primeira República no Maranhão. Essa “normalidade administrativa” que é conseguida em 1835, é interpretada nesse trabalho como uma acomodação das elites nos cargos institucionais, após os conflituosos anos iniciais da independência, levando em consideração o que Sodré considera os anos de 1837 até 1849 como a mais caracterizada trajetória reacionária da política brasileira, ou seja, “O período anterior fora de hesitações, de reagrupamento de forças, dispersas pela abertura do novo ciclo histórico que assinala a abdicação do primeiro imperador: a consolidação definitiva da independência nacional.”(SODRÉ, 1970, p. 249-51). Porém as agitações não cessaram, pois em 1838 é registrado o maior levante com participação popular ocorrido no Maranhão, a Balaiada, que devido a essa já “normalidade” e conseqüente organização, pôde ser sufocada. 30 A partir de 1821 tem-se a inicio da imprensa tipográfica no Maranhão. Com ela os acontecimentos políticos nacionais e internacionais ganharam a atenção da elite ludovicense. Dentre estes últimos, temos a Revolução do Porto, as opiniões externas sobre o reconhecimento da independência brasileira, dentre outros.

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Os principais centros administrativos da província, como São Luís, Alcântara,

Itapecuru e Pastos Bons, sentiam em suas bases familiares os abalos provocados pela já

emergente imprensa, principalmente com o advento do 7 de setembro de 1822.

Jerônimo de Viveiros nos mostra que no Maranhão do século XIX, política era

‘assunto de família’, pois controlada pelos principais ‘clãs’ da época, era disputada entre as

famílias mais influentes, que procuravam de todas as formas e estratégias se perpetuar no

poder, desenvolvendo com isso um conflito sanguíneos no seio da elite maranhense. Não só

os Burgos, os Bruces e os Belforts foram os protagonistas nesse palco de discórdia, mas

também os Francos de Sá, Costa Ferreira, Viveiros, Gama, Souto-Maior, estavam

‘contaminados’ pela ânsia de galgar lugares na administração pública da província

maranhense que por sua vez era um ‘tentáculo’ do aparelho estatal brasileiro. Dessa forma, o

Estado passa a ser o local de atuação familiar, mas que para isso seus representantes deveriam

ser de uma família de ‘renome’, e esse renome foi almejado, através de várias estratégias

como nepotismo, fraudes eleitorais, manipulação de pessoas, uso indevido do bem público,

arranjos matrimoniais, apadrinhamentos, entre outras que regiam as formas de manutenção ou

acesso ao poder administrativo, fazendo com que o Estado mais estivesse a serviço dessas

famílias do que o contrário.

É quando aparece o ‘ser maranhense’. De extrema sutileza, porque os inauguradores de uma consciência coletiva, superadora do antigo e resistente ‘ser lusitano’, obtiveram artefatos intelectuais europeus, senão portugueses, e, mesmo instituídos por uma educação semelhantes à concedida às primeiras remessas de educando, que retornavam decididos à colaboração na administração colonialista, debateram-se com a exigência imperiosa e contemporânea, na constituição de um Estado-Nacional, que implicava na definição do Brasil. Na construção e decomposição do objeto obscuro, o brasileiro, confrontavam-se convicções polêmicas: seria o americano decorrente, relacionado ou independente das milenares paidéias da Europa?”(CORRÊA, 1993, p. 101)

O Maranhão foi desvencilhando-se dos lusos em decorrência da vitória militar dos

nacionais refletidas nas estruturas de pensamento e o imperativo de construção do Estado-

Nacional. Contudo, a acumulação dos privilégios obtidos, aliado a essa educação aos moldes

europeu, mais especificamente luso, voltados a uma subordinação administrativa colonialista,

confrontou-se com a estruturação de um Estado-Nacional, fazendo surgir um conceito amorfo

de Estado, desvencilhado do seu conceito clássico, como já propôs Sérgio Buarque de

Holanda (2003), ao defender a ‘adequação’ de idéias surgidas em uma outra realidade

política, econômica, cultural e social, às estruturas brasileiras, deturpando-as em suas

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essências31. Estado, Democracia e Cidadania foram conceitos costumeiramente ofuscadas

pelo segmento da família que imperava na ideologia dos vários segmentos da vida social e

conseqüentemente política.

Mas não só a esfera familiar se sobrepôs ao Estado, no Maranhão também é

possível perceber uma relação recíproca, pois os laços familiares também têm suas bases

fragilizadas pelos aspectos políticos e econômicos. Nesse ínterim, mudanças de posições

políticas, traições, rivalidades, são comuns no curso de convivência entre as famílias da elite

maranhense. O conceito de fidelidade sanguínea perde força diante dos interesses políticos

das famílias, que agora são ‘famílias políticas’, deixando a velha ordem administrativa dos

‘clãs’ no passado, mas viva na sua essência.

31 Ver o capítulo Democracia no Brasil: um mal entendido no livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado no ano de 2003, p. 139.

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1.3 LUTAS ‘SANGÜÍNEAS’ PELO PODER LOCAL NO BRASIL

A historiografia brasileira apresenta várias discussões sobre a importância da

‘relação sanguínea’ para entendimento dos meandros da história política e social do Brasil:

Oliveira Viana (1938, p. 45), no livro Populações Meridionais do Brasil, nos diz

que, a

herança da família luza, profundamente transformada, pelo habitat rural, pelo insulamento dos latifúndios, pela dispersão demográfica dos campos, pela necessidade, nos primeiros séculos, da solidariedade na luta, a família fazendária, tal como nos aparece no IV século, é realmente a mais bela escola de educação moral do nosso povo.

Também Gilberto Freyre, em sua obra clássica, ‘Casa Grande e Senzala’, aborda

que a formação patriarcal brasileira é menos explicada em termos de raça e religião do que

“em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a

unidade colonizadora.”(FREYRE, 1995, p. LI). Ressalta ainda, que esse aspecto familiar,

traduzido por ele pelo termo ‘estigmas hereditários’, já utilizado por Azevedo Amaral, de

forma alguma pode ser perdido de vista por aquele que se destina a escreve a história do

Brasil.

Luiz Aguiar de Costa Pinto (1980, p. 27), quando escreve sobre as ‘Lutas de

famílias no Brasil’ defende que “foi a família na colônia, o núcleo onde se concentrou e o

ponto para onde convergiu a vida econômica, social e política do Brasil, daí advindo traços

que perduram vivos em nossa organização e caráter de sociedade e de povo.”

Não somente esses autores dedicaram algumas páginas dos seus estudos aos

estigmas de uma sociedade brasileira pautada nos laços familiares, mas vários outros como

Sérgio Buarque de Holanda (2003) em ‘Raízes do Brasil’ e Nestor Duarte (1997) em ‘Ordem

Privada e Organização Política Nacional’.

A construção das organizações familiares como elemento principal de interesse

foi possível com as pesquisas levantadas na década de 1970, contando com a relevante

influência dos brasilianistas, apoiados principalmente na demografia histórica, análise da

economia doméstica e estabelecendo um diálogo com as ciências sociais. (FARIA apud

SANTOS, 2006, p. 8).

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Hebe Castro32 (In CARDOSO; VAINFAS, 1997), por outro lado, situa os estudos

sobre família no Brasil na década de 1980. Para Sheila de Castro Faria33, os estudos desse

período nasciam com base na contestação ao conceito de família patriarcal desenvolvido por

Gilberto Freyre (SANTOS, 2006).

Contudo, como nos afirma Ângelo Emílio da Silva Pessoa, na sua tese ‘As ruínas

da Tradição: A casa da Torre de Garcia D’Ávila – Família e Propriedade no nordeste

colonial’, não há um consenso sobre o verdadeiro alcance do poder familiar nas estruturas

políticas brasileiras. Porém, em todo caso, essa temática vem ganhando espaço e respeito

entre pesquisadores brasileiros, ampliando, desse modo, suas possibilidades em termos de

abordagens, dando á instituição família sua ideal posição no entrelaçamento histórico.

A disputa entre famílias pelo poder não é um fato inerente à formação do Estado

Nacional brasileiro, apesar de notar-se uma intensificação nesse período. Desde os tempos

coloniais o embate entre famílias pelo alargamento de suas esferas de influências é

perceptível, sendo essa característica nascida ainda em solo luso e que ganhou ‘terreno’ no

Brasil.

A ‘atlantização do império’(FRAGOSO, 2001) representou a passagem e

adequação de princípios e ideologias reinante em Portugal, para as suas áreas em terras

americanas, tendo em vista a decadência da Ásia portuguesa que ainda correspondia a 40%

das receitas da Coroa portuguesa. A partir de meados do século XVI, várias fronteiras do

império ultramarino luso, passaram a ser atacadas: Marrocos, Ormuz, Insulíndia. Se levarmos

em consideração que todo o Estado português tinha suas bases sentadas no tráfico

ultramarino, desde o último quartel do século XV, não é difícil compreender como se deu a

‘viragem’ da economia lusa para o lado atlântico (FRAGOSO, 2001).

Contudo, não nos interessa enveredar mais a fundo na questão econômica dessa

mudança de visão portuguesa para o outro lado do atlântico, mas vermos as conseqüências

sociais e administrativas que essa conjuntura econômica, aliada às práticas políticas e

administrativas vivas em Portugal, foram importadas para cá e como aqui se adaptaram,

formando uma das características da nossa política: o familismo político.

A historiografia recente tem se preocupado em estudar vários aspectos do Império

Ultramarino português, em especial sua trajetória administrativa, que paira entre a Coroa e o

poder de indivíduos particulares.

32 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaio de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 33Sheila de Castro Faria é professora Doutora em História da UFF.

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Tem sido assim identificado um processo no qual a construção dessas trajetórias tornou possível a combinação de uma política de distribuição de cargos, e portanto, de mercês e privilégios, a uma hierarquização de recursos humanos, materiais e territoriais por meio do complexo imperial. (GOUVÊA, 2001, p. 287).

Essa política de privilégios, impetrada pela Coroa, reforçou um sentimento de

sujeição dos vassalos, tanto os do reino como os ultramarinos, às estruturas políticas mais

amplas do Império, que foi qualificado por Luiz Felipe de Alencastro de “repactuação política

entre o centro e a periferia imperial” (2000, p. 303), em sua obra O trato dos viventes:

formação do Brasil no Atlântico Sul.

Margarida Sobral Neto34, nos diz que o sistema de mercês e privilégios era uma

antiga prática lusa, que teve suas origens na guerra de Reconquista em Portugal na Idade

Média, sendo uma espécie de recompensa do Rei, que dava terras e privilégios àqueles que

prestassem serviços à Coroa, geralmente à aristocracia. (SOBRAL NETO apud FRAGOSO,

2001). Sendo assim, começa a se formar uma nobreza não possuidora de grandes

propriedades, como geralmente ocorria na Inglaterra e na França, mas beneficiadoras de

privilégios da Coroa. Segundo Nuno G. Monteiro35, os Bragança foram os principais

representantes dessa economia de serviços reais, logo se destacando entre os Grandes da

aristocracia, que se sustentavam pela rendas dadas pela Coroa.

A elite aristocrática monopolizava os principais cargos, e recebia como

pagamentos concessões, privilégios traduzidos em posses territoriais, pensões reais e ascensão

em postos de maior prestígio na administração imperial.

A internacionalização dessa prática, segundo Fragoso (2001), se dá em 1415, com

a tomada de Ceuta.

Nas ‘conquistas’ a Coroa concedia postos administrativos ou militares – governador, provedor da fazenda, etc, - que podia proporcionar, além dos vencimentos, privilégios mercantis: viagens marítimas em regime de exclusividade ou isenção de taxas e de direitos alfandegários.”(FRAGOSO, 2001, p. 44).

Charles Boxer (apud FRAGOSO, 2001, p. 44), nos mostra que “a prática de

concessão de mercês no ultramar não era um privilégio dado apenas à aristocracia,

estendendo-se também a outros mortais”, estando aí incluídos soldados e pessoa de origem

não nobre, desde que oferecessem seus préstimos ao Rei.

34 É membro do Instituto de História Económica e Social e investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura. A sua investigação principal centra-se no campo da História Económica e Social do mundo rural na época moderna. Disponível em: <http://www.palimage.pt/autor.php?autorid=aut01>. Acesso em: 13 mar. 2007. 35 Citado no livro, Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica Imperial portuguesa. 2001. p. 43.

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Essa prática de ceder a particulares, por meio de contratos, nos quais sempre se

faziam presentes as prerrogativas de cobrar tributos pela concessão, vinha suprir uma

deficiência dos Estados Modernos, a dificuldade financeira. As principais vantagens dessas

operações eram a descentralização da execução de fiscalização e cobrança dos tributos e dessa

maneira menos onerosa para a Coroa, a qual já contava com uma renda certa que possibilitava

uma planificação do orçamento do reino.

Dessa forma, os cargos públicos se transformavam na melhor forma de se obter

fortuna, tanto de forma direta com os vencimentos obtidos, quanto indiretamente através dos

emolumentos e outras vantagens. Um dos principais exemplos é dado por Fragoso, do

Provedor da Fazenda do Rio de Janeiro em 1697, que recebia dos cofres da Coroa a quantia

de 80$000 por ano, mas que chegava a 800$000, somado às propinas e outras vantagens.

Além disso, foram registradas vendas de cargos, que de acordo com a legislação da época

eram proibidas (FRAGOSO, 2001, p. 45). De qualquer forma, os postos do Império

representavam, para as famílias fidalgas, a forma mais fácil de obter fortuna. Foram imbuídos

desse sentimento os primeiros conquistadores, sejam fugindo das pressões demográficas, ou

pela fome que constantemente assolava Portugal no século XVI. Os destinos eram vários

como as ilhas do Atlântico e em especial o Brasil.

Um ponto importante a destacar, relevante para nosso estudo, é a origem nobre

desses conquistadores, que segundo João Fragoso é mais provável que eles tivessem o

perfil de João Pereira de Souza Botofogo. De origem nobre (nobreza de Elvas ao sul de

Portugal), ele teve seus bens confiscados por rodem régia e como ‘sentença’, foi obrigado a

migrar para o Brasil. Dentre outros que vieram para a aventura em terras brasileiras,

haviam os descendentes de cavaleiros que ganharam prestígio nas campanhas bélicas da

África. Esses homens foram os que formaram as origens nobres das ‘melhores famílias’,

que se perpetuariam no poder por um longo tempo, nascendo daí a família senhorial,

núcleo do Grande Engenho. “Foram elas que sobreviveram por mais tempo como elite dos

trópicos. Entre as famílias senhoriais que mantiveram seu status e engenho por mais de três

gerações, cerca de 2/3 descendiam de conquistadores/primeiros povoadores/oficiais do

rei.” (FRAGOSO, 2001, p. 42).

Dentre as bases que fizeram a construção das fortunas dessas pioneiras famílias

destaca-se, para o nosso tema, a posse da administração real, que lhes asseguravam o poder

em nome del Rey, estando aí inseridas as câmaras, que talvez fosse o exemplo mais concreto

de continuidade lusa em terras brasileiras. Foi esse compartilhamento de mecanismos de

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acumulação econômica nos dois lados do Atlântico luso, que levou a João Fragoso (2001) a

elaborar a sua teoria da ‘economia do bem comum’, para designar a forma de apropriação de

um excedente social, ou seja, “[...] era o público que de maneira direta ou indireta, sustentava

os eleitos” (FRAGOSO, 2001, p. 48).

Para Fernando A. Novais (apud FRAGOSO, 2001), as câmaras funcionavam

como órgão de poder, pois intervinha, sobretudo no Rio de Janeiro, nos preços dos fretes para

o reino e no preço do açúcar, portanto, intervinha no chamado pacto colonial. Esse poder

político municipal era geralmente exercido pelos ‘melhores da terra’36, denominação que os

descendentes dos conquistadores preferiam ser reconhecidos.

A descendência nobre parecia justificar o espírito de superioridade entre os vários

segmentos elitistas formadores da primeira elite senhorial, cabendo destacar que as famílias

que detinham os cargos reais tinham a completa noção de suas ascendências desde as

ramificações lusas, até aquelas responsáveis pela conquista. Isso lhes davam prestígio frente

aos que eram encarregados de ‘distribuir’ os cargos administrativos das províncias, que em

suas mãos iriam reiterar suas posições sociais e políticas. Dessa forma, a montagem do

sistema agroexportador seria sob bases bem conhecidas no reino, que era a distribuição de

privilégios aqueles que se propunham à causa da Coroa. (FRAGOSO, 2001, p. 53)

Assim, foi se formando uma cadeia de poder e de redes de hierarquias que se

estendia desde o reino, ao mesmo tempo em que se estabeleciam vínculos com os vassalos de

ultramar através de uma política de privilégios, caracterizando a passagem de uma série de

instituições, mecanismos jurídicos e ideologias da metrópole para o Brasil, corroborando

nossa linha de estudo das continuidades e fazendo António Manuel Hespanha (apud

GOUVÊA, 2001, p. 289), afirmar que o império português é o “exemplo mais característico

de um império marcado, ao mesmo tempo, pela descontinuidade espacial e pela coexistência

de modelos institucionais.”

Na administração colonial foi possível perceber que o exercício de determinados

cargos administrativos e sua logo entendida posse, viabilizaram as várias permanências nos

cargos, que passou a nortear os conflitos políticos de então. A movimentação nos ‘circuitos

administrativos’37, de grupo seletos de indivíduos donos dos cargos do império, fez surgir

36Essa expressão não foi inventada no Brasil, se tendo registros do seu uso no Portugal do Antigo Regime para designar os homens bons ou em Pernambuco seicentista para designar os ‘homens bons’ (MONTEIRO, 1993, p. 334). 37 De acordo com Maria de Fátima Silva Gouvêa, é possível perceber uma certa trajetória administrativa nas regiões do Atlântico Sul, em especial no Brasil e Angola. Russell-Wood destaca que apesar do cargo de governador de Angola não ser algo que as famílias ilustres desejassem, era o ponto de partida para a trajetória administrativa do império colonial português. Como dado concreto disso ele ressalta que dos 19 Governadores-

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famílias que procuravam nas mercês, títulos e vantagens desses cargos assegurar o controle de

suas posições através dos laços sanguíneos, mas diferente da Europa, não mais tendo as

propriedades como principal objetivo realizador desse sentimento.

A atuação administrativa da família colonial reuniu em si, “[...] sobre a base

econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e

econômicas, inclusive [...] o mando político.” (FREYRE, 1999, p. 22-23). Portando, não só a

terras era o fim único a ser alcançado pelos membros mais poderosos de cada família, mas a

reboque, os privilégios que dele poderiam usufruir e que devido a isso, deveria se perpetuar

como ‘herança de família’. “Ao contrário de outras aristocracias européias, a nobreza

portuguesa não se mantinha prioritariamente da propriedade da terra, e sim das mercês –

entendidas em sentido amplo – concedidas pelo reis em troca de serviços prestados.”

(MONTEIRO apud GOUVÊA , 2001, p. 304).

O aspecto teocrático idealizado pelos jesuítas38, logo encontrou dificuldade de

ser concretizado no seio da sociedade brasileira, então em formação. A família rural surgia

como grande ponderador entre das riquezas da terras, embora o gosto pela “terra” já se

havia modificada já em Portugal, mas levados a implementar esse modelo por causa das

circunstâncias.

Em várias regiões do Brasil colonial foram registrados conflitos entre famílias,

que tinham como objetivo a acumulação de riquezas através da posse de terras e

conseqüente mercês e privilégios da Coroa. Como exemplo temos as disputas dos Pires e

Camargos numas das principais regiões do território brasileiro. “A mais famosa por certo,

de quantas lutas de famílias ocorreram nos primeiros séculos de nossa história, foi a guerra

privada entre a família dos Pires e a dos Camargos. É a mais famosa e a mais conhecida

em seus sucessos principais.” (COSTA PINTO, 1980, p. 37).

O estopim desse conflito, ocorrido nos primeiros anos da província paulista, fora a

morte, em 1652, de Leonor de Camargo Cabral e Antônio Pedroso de Barros, acusados de

adultério por seu matador, Alberto Pires, marido de Leonor. A vingança dos Camargos

resultou na morte do assassino, e a reação dos Pires acabou de consolidar o conflito, liderado,

por um lado, por João Pires, Fernão Dias Pais e a mãe de Alberto Pires, dona Inês Monteiro

de Alvarenga. O bando contrário era liderado por Fernão de Camargo - apelidado de ‘o Tigre’

Gerais que o Brasil teve entre os anos de 1697 e 1807, cinco tinham passado pelo governo de Angola (RUSSELL-WOOD apud GOUVÊA, 2001, p. 306). 38 Também um dos segmentos que podemos considerar como um dos primeiros conquistadores do Brasil, com a concordância da Coroa.

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-, João Ortiz de Camargo, Domingos Barbosa Calheiros e outros. O episódio vinha a coroar

uma longa série de conflitos que já levara, em 1641, a vida de Pedro Taques, líder regional

assassinado pelo ‘Tigre’. De um e outro lado, os nomes envolvidos representavam as

principais lideranças da tumultuosa epopéia bandeirante39.

Nos sertões do Ceará estão os Montes e os Feitosas, que foram as famílias

protagonistas nesse palco político nordestino: “Guerra privada das mais típicas da nossa

história, sem nada faltar dos característicos que são próprios a essa modalidade de luta social,

foi aquela travada – acesa e acérrima – entre os Montes o os Feitosas, potentados dos Sertões

do Ceará.” (COSTA PINTO, 1980, p. 95).

Para Gilberto Freyre, a família foi o mais importante fator de colonização, pois era

a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava fazendas, sendo mais eficiente do

que qualquer outra companhia de comércio, ou seja, é o que afirma Sérgio Buarque de

Holanda ao dizer que a família prevalecia como centro de todas as organizações (HOLANDA,

2003). Para ambos os autores, a soma da tradição patriarcal portuguesa com a colonização

balizada no trabalho escravo e na agricultura formaram as fórmulas que resultaram no

chamado patriarcalismo brasileiro, gerando as alianças familiares, com os conseqüentes

domínios e conflitos entre as mesmas. Essa relação de ‘parentesco’, não se estendia somente

aos consangüíneos, mas muitas das vezes aos ‘vizinhos’, formando esses laços de

solidariedades recíprocos, o que pode nos explicar, em parte, a disputa por esse poder

nominal, escondidos por trás de uniões matrimoniais, apadrinhamentos, laços de amizade, que

ultrapassavam a questão da simples convivência social (SANTOS, 2006).

Longe de ser uma singularidade, essas lutas se fizeram sentidas por todos os lados

do território brasileiro, não só no período colonial, mas também, e principalmente, no pós-

independência, onde a formação do Estado Nacional, gerava anseios das elites em ‘possuí-lo’,

fazendo emergir a organização de núcleos partidários, que disputariam a posse do poder nesse

novo espaço administrativo.

A formação de um setor dominante, forte economicamente e extremamente

influente na vida política, advinda do negócio da lavoura de exportação, e/ou da lide do

comércio contribuiu no sentido de se estender para o campo da política o peso de sua

influência econômica. Não queremos com isso reduzir formação do Estado Nacional, à uma

39 Disponível em: <http://www.tj.ba.gov.br/publicacoes/mem_just/volume2/cap3.htm>. Acesso em 12 mar. 2007.

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ótica de simples continuidades elitista, esquecendo ‘As dimensões subjetivas da política’ 40 e

toda a teia de relações sociológicas de vários outros segmentos sociais, que tiveram

participação nesse projeto, como nos afirma Ângelo Emílio da Silva Pessoa ( 2005, p. 42-43).:

É evidente que não é possível compreender questões sobre a formação do Estado e da Sociedade no Brasil se desconhecermos a relação de poder que se estabeleceram secularmente e que subordinaram parte significativa da população à autoridade de alguns setores, como os senhores de terras, as autoridades da Coroa, os grandes comerciantes. Mas se não buscarmos entender essa dominação na sua própria constituição cotidiana, percebemos as mais diversas formas de resistência social estabelecidas frente à dominação, nos limitaremos a destacar a ação dos grandes homens, sem percebermos a teia mais complexa de relação que estruturaram a sociedade e deram o formato peculiar do Estado brasileiro, ainda hoje marcado por essa conflituosa relação de legitimidade frente à própria sociedade que ele pretende representar e dirigir [...]. Logo, não podemos considerar a formação do Estado brasileiro desprezando o papel dos diversos grupos subordinados na sua conformação, o que implicara uma visão unilateral ou claramente apologética.

Seguindo essa visão de Ângelo Emílio, estamos tentando mesclar o estudo da

família no imbricado jogo político de interesses, sobretudo no momento de maior

efervescência, que é o da construção do Estado Nacional, mas dando real destaque ao elenco

protagonizado pelas elites dominantes.

A província do Maranhão, inserida nesse bojo de disputa políticas pela dominação

regional, esteve intimamente vinculada, no século XIX, aos conflitos de famílias. Essa disputa

materializou-se em várias estratégias, que visavam a manutenção e alcance de um status

frente aquela província. Inseridos num conflito de maior precedentes, que foi o conflito

antilusitano, a sociedade maranhense viveu nesse período, um sangrento embate de interesses.

O ‘arranjo’ político que resultou no ato de independência no dia 7 de setembro, foi

mais uma manobra das classes elitistas preocupadas em fazer uma ‘revolução às escuras’,

onde a preservação da ordem e a manutenção das propriedades, inclusive dos escravos, seria a

ordem a ser seguida. Contudo, os conflitos gerados nos próprios setores integrantes que

compunha o corpo do Estado Monárquico, levaram o Brasil a um constante estado de tensão.

Aliado a isso, o Primeiro Reinado, foi marcado por uma possibilidade de recolonização, sendo

que o monarca era lusitano gozando de privilégios, não dando voz às elites locais. Sendo

assim, não demorou a D. Pedro ser visto como obstáculo ao desenvolvimento das elites

nacionais.

40 Artigo de Karina Kuschnir e Leandro Piquet Carneiro (2003), que trata de uma análise da política da sociedade de massa contemporânea que leva em conta os aspectos subjetiivos das orientações políticas.

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Os anos que seguiram à independência foram politicamente instáveis e marcados

por muitas tensões de conflitos, na província maranhense. A luta pelo poder local envolvia as

famílias da elite, desejosa de altos cargos e espaços políticos na administração da província. O

afastamento dos portugueses do poder era a palavra de ordem proferida pelos membros das

elites locais, nos periódicos maranhenses, chegando mesmo, esse embate às vias de fato,

materializados nos xingamento e nos lustros41. Mas longe de um espírito nacionalista nascente

na província maranhense, o que se percebia era um jogo de interesses privados, não tardando

a surgir divergências entre esse segmento, para a ocupação dos espaços da administração

pública do Maranhão.

A postura oficial dos brasileiros contra os portugueses limitava-se a dois expedientes: a) condená-los a contribuições financeiras proporcionais a seu patrimônio; b) retira-los dos lugares no serviço público, substituindo-lhes por nacionais”. As demissões provocaram rumores: a clientela parasitária foi removida, atingindo até mesmo portugueses que hipotecaram fidelidade a independência brasileira. Os nacionais, vítimas do poder discricionário, assistiam sequiosos o exercício do monopólio das nomeações: de portugueses a portugueses. Conseguiram, enfim, inaugurar para si um capitulo vivíssimo da história brasileira: o da corrupção administrativa. A máquina funcionava, como funciona, sob o combustível pusilânime da preterição e do favorecimento, controlada, como se fosse hereditária, pela tradição pela família e pela propriedade. (CORRÊA, 1993, p. 84)

De fato, o que se percebe é que o controle da máquina administrativa passou

das mãos dos de ‘sangue azul’, para os que tinham no sangue o propósito de sua

perpetuação, corroborando a assertiva de Rossini Corrêa (1993, p. 84) sobre a semelhança

de procedimentos administrativos entre portugueses e brasileiros, estes taxados de

‘indignos e nada hábeis para semelhantes empregos’. A mudança de lado das facções, não

os colocou em lados ideologicamente opostos, assim da mesma forma que os europeus se

digladiavam por espaços nos cargos públicos, os membros das elites maranhenses,

travaram verdadeiros embates com o propósito ter nas mãos a máquina administrativa por

um longo tempo, bem sendo possível essa assertiva se notarmos como funciona o nosso

aparelho estatal nos dias de hoje. Sendo assim, não demorou para que os desacordos no

seio da elite maranhense, frutificasse em um conflito sanguíneo, com o propósito de

perpetuação de poder, fazendo inaugurar uma ‘corrupção administrativa’, no âmago da

construção do Estado Nacional, entre os maranhenses da elite, sobretudo a ludovicense,

num favorecimento parasitário. Portanto, não é equívoco pensar em um Maranhão, como

reflexo de sua metrópole lusa, ou como prefere chamar Rossini Corrêa (1993), um Portugal

41 Os lustros é explicado por Dunshee de Abranches na sua obra, A Setembrada: a revolução liberal de 1831 em Maranhão(1933).

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Equinocial. “A corrupção administrativa aconteceu, como acontece, nos desacordos pela

composição burocrática.” (CORRÊA, 1993, p. 84)

Desacordos eram vistos, de forma mais veementes, nas páginas dos jornais

maranhenses patrocinados por intelectuais, mergulhados no bojo das disputas sanguíneas por

esferas de influências de poder, pois “tomar a palavra era tomar o poder” (DARNTON apud

GALVES, 2006, p. 497). Como já dito anteriormente neste trabalho, os jornais foram um

meio altamente eficaz de consolidação e formação de ideologias, e como tal, ferramenta

indispensável nas disputas entre aquelas famílias que queriam ascender e/ou se perpetuar no

poder, tendo em vista ter nas mãos a opinião pública, alcançado status de forte arma nos

debates políticos de então, não mais confinados entres os muros palacianos (GALVES, 2006).

Aconteceu, outrossim, em São Luís, uma polêmica vigorosa, de ímpetos aguerridos, semelhantes aos entrechoques militares do major Fidié e do alferes Salvador, com os combatentes esmerando-se, enquanto comandante do exército das palavras. Duelaram, escrevendo e publicando, o português Garcia de Abranches, redator de O Censor Maranhense(1825-30) e o maranhense Odorico Mendes, redator de O Argos da Lei (1825). As personalidades enfrentavam-se, motivadas por reivindicações antagônicas, respectivas à restauração e à soberania, quando se reforçava na província maranhense uma ambiência política despótica, de hostilidade eminentemente declarada, aos argumentos emitidos pelos adversários, discordando sobre os estatutos da organização social e política brasileira. (CORRÊA, 1993, p. 97).

Esse jornalismo faccioso, praticado pelos letrados maranhenses era cheio de

pomposidade, recordando o rebuscamento da linguagem dos clássicos, sem contudo, deixar

de mostrar as suas posições doutrinárias políticas, ou seja, “a expressão vocabular do

jornalismo doutrinário, ainda mesmo o de linguagem educada, é polêmica, na medida em

que as correntes políticas, com a palavra nos periódicos, representam interesses em

entrechoque.”(CORRÊA, 1993, p. 128).

Não raramente via-se o estreitamento de relações entre os ditos “intelectuais” e

os membros de famílias influentes do Maranhão, como por exemplo, João Lisboa que

defendia a camada oligárquica dos agricultores dos Franco de Sá, ou Sotero dos Reis com

os comerciantes do Comendador Meireles42. Os interesses oligárquicos eram comumente

mergulhados nas “ondas” intelectuais, ou seja, os intelectuais eram membros de forma

direta ou indireta das camadas oligárquicas, estas da mesma forma que o mecenato43

42 Entre as décadas de 30 e 40 do século XIX 43 Os mecenas eram burgueses ricos da época do Renascimento, que, patrocinavam o trabalho de artistas e escritores, em busca de glória e prestígio. Destacam-se entre eles, a família Sforza, os Médicis e os papas Júlio II e Leão X.

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italiano, procuram no patrocínio da arte da palavra, glória e prestigio, frente aquela

conjuntura de efervescência política.

Com o tempo, o facciossismo político de recolonização e soberania, foi cedendo

lugar, nas páginas produzidas nos periódicos pelos letrados maranhenses, à circunscrição

cotidiana da política, em disputa pelo controle do aparelho estatal. Com o tempo os

intelectuais maranhenses

Não conheciam outra motivação principal, excetuada a divergência de

interesses oligárquicos, dirigidos ao controle diretor da máquina estatal, a permitir o exercício do clientelismo político, satisfazendo os exércitos familistas, sequiosos de uma colocação no serviço público, onde pudessem, descansados, ter garantia a sobrevivência: era o preço comunitário da segurança individual. O senhoriato, o compadrio e a parentela, consolidando uma camarilha, exacerbavam o absurdo de considerar um compromisso da ordem pública, o provimento da hierarquia de gerentes do Estado, consoante os critérios empíricos e facciosos da política provinciana: e o praticavam. (CORRÊA, 1993, p. 129).

Todos os meios possíveis eram transformados em “armas” para a ascensão aos

privilégios dos cargos administrativos e sua posterior manutenção, pela camada elitista

maranhense, preferencialmente em laços sanguíneos. As letras talvez tenha sido a mais

usada, pelo sentimento de uma Atenas na região Equatorial44, em formação e mesmo já

consolidada em alguns segmentos das elites. A perda da ostentação, mesmo que

superficial, do requinte trazido pelos privilégios da ocupação de espaços na máquina

administrativa, tirava o sono da elite local. Para tanto “o treinamento europeu a que os

filhos de família foram submetidos destinava-os a corroborar o status quo econômico,

político, jurídico, cultural e administrativo brasileiro.” (CORRÊA, 1993, p. 93).

Não houve uma ruptura na intelectualidade maranhense, com a desagregação

brasileira do império colonial luso, pois desde o século XVIII, filhos das elites

maranhenses eram mandados para a Europa para o usufruto da educação universitária,

esmerada na hegemonia política e administrativa, perpetuando um profundo sentimento

aristocrático e individual que norteia a sociedade maranhense desde os tempos de sua

criação.

Regina Faria argumenta que a distinção no seio da sociedade maranhense é um

traço que vem desde a sua própria formação, que chega a ultrapassar os limites de negros e

44 Referência à Atenas (Grécia) aqui no Brasil por causa do grande número de escritores nativos ou que aqui viveram, exercendo seu papel na criação dos movimentos literários renovadores e da sua forte tradição de ensino das Letras Clássicas.

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brancos, senhores e escravos, transfigurando-se em diferenças entre a próprio segmento

formador da elite maranhense (FARIA, 2001). Dessa forma a distinção era sempre presente,

mas sentida de forma mais intensa a partir de acontecimentos que viessem a colocar em

campos opostos esses interesses, embora participantes do mesmo setor da pirâmide social.

Essa cisão colocava em evidência a chamada “coesão da elite” analisado por George Duby

(1995, p. 132):

[...] numa determinada sociedade, coexistem vários sistemas de representações, que ainda naturalmente, são concorrentes. Essas posições são em parte formais e respondem à existência de vários níveis de culturas. Sobretudo refletem antagonismos que por vezes nascem da justaposição de etnias separadas, mas que são sempre determinadas pela disposição das relações de poder.

Dessa forma, mais que a defesa de um ideal, essas lutas representaram a satisfação

do espírito Senhorial, cultivado desde os tempos da descoberta, de alargamento dos domínios,

sob a égide da dominação política, econômica, social, ideológica e cultural.

No colonialismo foi posto em evidencia a excelência da terra como senhora

absoluta, ao passo que depois da independência, o sangue das famílias maranhenses passou a

ser o objeto que sob ele é descarregada toda a égide de uma formação política estatal.

Contudo sua formação, resquício de Portugal, impediu uma melhor distinção do público e do

privado na formação de um Estado que atendesse aos anseios coletivos, como propõe a antiga

e a moderna teoria da Administração Pública. Viu-se na “reforma” do funcionalismo público,

a solução da regeneração da nação, contaminada pelo vírus luso. Contudo a Nação que se via

nascer era a do “senhoriato, instaurado em família, no Estado” (CORRÊA, 1993, p.143), onde

os anseios ávidos de favorecimentos políticos, econômicos e conseqüentemente sociais, eram

particularistas e sobrepunham-se ao bem geral da sociedade maranhense.

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2 DISPUTAS POLÍTICAS ENTRE FAMÍLIAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MARANHENSE

2.1. INDEPENDÊNCIA DE PENA E GUERRA CIVIL DE ‘SANGUE’: LUTAS POLÍTICO/FAMILIARES PELO PODER LOCAL NO MARANHÃO

Em matéria publicada em 17 de janeiro de 1825, pelo quartel general do

Maranhão, no jornal Argos da Lei, que tinha como principal redator, Odorico Mendes45,

intitulada ‘Por que nesta província não houve tanta desordem durante a Constituição

Portugueza, quantas houve depois de jurada a independência e constituição do Brasil?’, o seu

autor tenta explicar os motivos que levaram à guerra civil entre as classes mais prestigiadas da

província maranhense, nos pós-independência. Achamos oportuno aqui reproduzir algumas

passagens mais significativas e esclarecedoras para o nosso tema:

Muitas pessoas, observando os últimos acontecimentos desta província, sem atinarem com o verdadeiro motivo que os occasionou, lanção á irregularidade da nossa constituição a sua existência; quando, pelo contrário, á ordem natural das coisas é que os devemos attribuir.

Depois de se haver seguida a constituição de Portugal, e em quase todo o Brasil, também o Maranhão se dignou a acceital-a; mas em vez de se operarem as mudanças que demendava o jurado systema, vimos que tudo foi correndo pela sua antiga fieira; e que Bernardo da Sylveira, até então governador e capitão general, trocando de nome, continuou a reger esta província da mesma maneira; ficarão nos empregos, com poucas excepções, os mesmos empregados; ficaram a enredar o Maranhão os mesmos que o tinhão de uso, e os brasileiros natos, como até alli, foram excluídos dos cargos de maior monta, e obedeceram cegamente as determinações dos seus cruéis senhores. As cortes de Portugal, cujo fito foi sempre guardar para si a sua constituição e dar ferros ao Brazil, em despeita da soberania do povo, calçadas toda via com as reclamações dos deputados Brazileiros, tiraram do Maranhão a Bernardo da Sylveira: mas foi substituído no governo por homens do mesmo partido que deixaram os negócios no mesmo pé. (Argos da Lei, nº 4, 17.01.1825, p. 3)

45 Descendente de uma das famílias tradicionais do Maranhão, Odorico Mendes nasceu em São Luís, a 24 de Janeiro de 1799, residindo naquela cidade até aos dezessete anos de idade. Depois de uma vida dedicada à política e à literatura, faleceu subitamente em Londres, a 17 de Agosto de 1864. É considerado como o mais acabado humanista lusófono. Incitado por amigos e pelo forte patriotismo, Odorico Mendes passa a redigir um jornal, o Argos da Lei, que faz oposição ao partido representado na imprensa por outros dois jornais dirigidos e redigidos por portugueses: o Amigo do Homem e Censor Maranhense, este último editado por João António Garcia de Abranches. Trava com este fortes polêmica que se prolongarão até ao encerramento do Censor Maranhense em Maio de 1830 e à expulsão do seu redator para Portugal.

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Devido ao olhar retrospectivo desta matéria, é possível perceber a vida política

maranhense, no período posterior à independência, como uma continuidade de poder nas

mãos dos que o já detinham, como já frisado na primeira parte deste capítulo. Além disso,

a exclusão dos maranhenses de cargos administrativos, veio arrefecer os ânimos desta

província, fazendo da posterior adesão, mais uma manobra política do que propriamente

um ato administrativo, ou seja, mais individual que coletivo.

Também no Brasil, a manobra política que resultou no 7 de setembro de 1822,

demonstrou a preocupação das elites em preservar a ordem, garantir a unidade do país, o

direito de propriedade sobre as terras e escravos e impedir a manifestação das camadas

subalternas, especialmente uma revolta da ‘gente de cor’, fruto de um sentimento receoso de

uma possível haitização em terras brasileiras.

A centralização política em torna da figura de D. Pedro I, encetando uma aparente

contradição na história da ‘independência’ do Brasil, foi a solução encontrada para garantir a

manutenção do status quo após a separação política, mas não o suficiente para manter o

imediato controle dos diferentes interesses regionais e sociais, visto que os grupos políticos

locais já estavam em amplo desenvolvimento e ávidos de espaços na construção do Estado

Nacional Monárquico.

O processo emancipatório brasileiro foi a materialização dos sonhos das elites de

um “[...] reino autônomo, monárquico, constitucional, tendo como base social as classes

vinculadas à propriedade de terra, de escravos e ao comércio” (RIBEIRO, 1992, p. 7). Mas a

acomodação desse projeto não se deu de forma tranqüila, sendo seguido de inúmeros conflitos

intra-elites e entre diferentes classes, inseridos nesse bojo da formação Nacional, chegando

mesmo a ser expedido um decreto expulsando todo aquele que não fosse favorável a causa

constitucional, expresso nas páginas do jornal Correio Braziliense com o titulo ‘Decreto de

S.A.R. o príncipe regente do país, ordenando que despejem do paiz, os que não approvarem o

seu systema de independência’ (Correio Braziliense, nº 175 Dez. 1822, p. 580), no qual

ordena que todo aquele que for contra esse sistema, deixe o Brasil em trinta dias, a contar da

data de publicação deste decreto. Contudo, se a independência na prática parecia consumada,

teoricamente essas idéias já permeavam os meios de divulgação da época há um bom tempo.

As teorias das ‘independências’ já chamavam a atenção desde os primeiros anos

do oitocentos, formando reflexões, análises e doutrinas que mostravam os limites e

possibilidades das contradições entre territórios europeus e americanos, inseridos na definição

de metrópole e colônia, respectivamente. Marcos Morel (2005), em artigo intitulado

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‘Independência no papel: a imprensa periódica’, apesar de se ater de forma mais detida na

repercussão das doutrinas independentistas na imprensa periódica, faz um apanhado sobre as

principais teorias em voga nos anos antecedentes ao de 1822, e chama a atenção para dois

teóricos em particular: Guillaume-Thomas Raynal (1713-1796) e Dominique-George-Frédéric

De Pradt (1759-1837), ambos abades franceses que ganharam destaque como criadores e

difusores de postulados teóricos sobre a relação metrópole/colônia. Destaca o pensamento de

Raynal que: “[...] tinha como princípio central a certeza de que os dois hemisférios romperiam

seus laços de maneira irrevogável. Ele apoiava a independência das Américas inspirado pelo

exemplo da independência das colônias inglesas na América do norte.” (MOREL, 2005, p.

619).

Segundo Morel (2005), o entusiasmo de Raynal pelo possível papel missionário

que os Négres (negros) poderiam representar para a história, alicerçava-se na revolução de

escravos como ocorrido em São Domingos (apud JACSÓ, 2005, p. 621).

De Pradt surge como grande contestador da doutrina de Raynal, com a teoria das

‘três idades das colônias’.

Utilizando-se de uma metáfora biológica para entender relações históricas, o autor afirma que as colônias, num processo de desenvolvimento, semelhante dos seres humanos, teriam seu nascimento vinculado às mães-pátrias, em seguida começariam a amadurecer e naturalmente separar-se-iam dos país: deveriam, portanto, obter autonomia de forma negociada. [...] A questão levantada pelo autor era a possibilidade de ocorrerem outros modelos de independências, já que estas pareciam inevitáveis. (MOREL, 2005, p. 621).

Raynal e De Pradt delineavam dois modelos de independência. O primeiro por

meio de uma revolução radical e o segundo, uma ‘revolução’ de forma gradual, sem maiores

rupturas da ordem pública e social, contudo concordando ambos na singularidade do ‘caso’

brasileiro, destinando páginas de suas obras a este fato específico. Raynal, prevendo a

recorrência do antilusitanismo no pós-independência, fruto de uma “má colonização” e de

uma formação administrativa pela Coroa, que desprezava as elites nascidas na América

Portuguesa, gerando profundas alterações nas relações lusas dos dois hemisférios, e De Pradt

defendendo como início da ‘revolução’ de 1822, a chegada da Corte Portuguesa em 1808 e

consolidada com a volta do Rei em 1821 ás terras portuguesas, uma condição propícia à uma

haitização no Brasil , reforçando uma visão providencialista e progressista do fim da

dominação colonial e da escravidão nas Américas, retomada no século XIX pelo pensamento

marxista.

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Apesar de não ser o foco do nosso estudo, é importante frisar a importância que

teve a imprensa periódica, para a disseminação, amadurecimento e criação de ideologias, num

período de intensa movimentação política, onde todas as maneiras para obter ou manter o

poder eram válidas, sendo de fundamental importância o entendimento da abrangência do seu

poder, para as ‘conquistas’ particularistas (como é ainda hoje presenciado). Percebendo esse

poder, Bernardo da Silveira Pinto, em 1821 funda a primeira Tipografia na província, como

mais uma “arma” ideológica de manutenção do poder, que de fato, a viabilizou, como mostra

o autor Marcelo Galves (2006) em seu artigo ‘Os Primeiros anos da Tipografia Nacional no

Maranhão: a legitimação da ordem’46:

É preciso considerar as condições de implantação da Tipografia na província e a sua manutenção pelo erário público. O Marechal Bernardo da Silveira, que já presidia a província antes da Revolução do Porto, conseguiu manter-se no cargo ‘abraçando a nova causa’ em abril de 1821. Esta manobra política acirrou os ânimos e parece ter convencido Bernardo da Silveira a criar uma nova trincheira, no também novo debate político: a imprensa. (GALVES, 2006, p. 498).

Não tardou a se manifestar o sentimento particularista das alas não beneficiadas

com a manutenção da posse do poder da província nas mãos de Bernardo da Silveira. Logo,

os seus ‘inimigos’ notando o poder da imprensa nas mãos daqueles que não faziam parte do

seu círculo de interesses, trataram de encaminhar no dia 18 de dezembro de 1821,

num documento intitulado Protesto de lealdade e reconhecimento do povo ao Rei, [...] um abaixo-assinado ao Rei em que denunciavam o objetivo da Tipografia: ‘fazer circular mais fácil e extensamente os seus elogios e doutrinas ofensivas com que pretende iludir o povo para seus malévolos fins, libelos contra particulares a quem o mesmo governador odeia. (GALVES, 2006, p. 500, grifo do autor).

Surgida em terras brasileiras em 1808, a imprensa brasileira ganha real destaque a

partir de 1821, quantitativamente e por um direcionamento mais específico: político. Tanto

que o jornal O Conciliador47, ávido defensor da causa lusa no Maranhão, com a proclamação

da adesão à independência, no dia 28 de julho de 1823, deixou de circular, pois tinha perdido

seu principal motivo de argumentação, sendo substituído pela Gazeta Extraordinária, que

inclusive foi de distribuição gratuita, para uma rápida consolidação da nova ordem vigente,

46 Este artigo trás mais detalhes de como a imprensa maranhense surgiu como grande fator de monopólio da opinião pública, sendo para isso criada na província do Maranhão do início do século XIX, e posteriormente disputada. 47 O Conciliador foi o primeiro jornal impresso na província maranhense. Tinha forte veia política, tanto no seu cunho de transmitir as noticias dos órgãos oficiais, quanto as sua noticias. Contou com o patrocínio do Marechal Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, o qual o utilizou como aparelho consolidador e mantenedor do seu poder. A princípio manuscrito, esse jornal passou a ser impresso a partir do nº 35, de outubro de 1821 com a chegada da primeira Tipografia do Maranhão(Tipografia Nacional Maranhense), e redigido por Antônio Marques Costa Soares e José Antônio da Cruz Ferreira Tesinho, ávido defensores da causa lusa no Maranhão. Para saber mais

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devido ao seu amplo poder ideológico (a imprensa escrita era o principal meio de divulgação

da época) (REIS apud HOLANDA, 1995).

A imprensa escrita foi a principal responsável pela disseminação e conseqüente

formação ideológica, por ser mais accessível, além de ser bem mais eficaz, ideologicamente,

do que o livro, pois não só as traduções de trechos48 de obras vinham impresso, como por

exemplo, as de Raynal e De Pradt, mas também tinham as (re)interpretações, as quais

tornavam a imprensa o melhor meio de formação ideológica, pois as simples leituras

poderiam abarcar diferentes significados, de acordo com cada personagem e/ou momento.

Assim, a imprensa no Maranhão surge como mais um meio de viabilizar a tomada ou

manutenção do poder, só que agora tendo a via ideológica fortalecida49 com o poder da

palavra escrita.

Da mesma forma da tomada de posicionamento do jornal Correio Braziliense a

partir da publicação do livro de De Pradt em 1817 , a imprensa maranhense, que já nasce

nesse conturbado período de emancipação política, surge segmentada e com uma forte veia

política.

Sem desvencilhar do contexto nacional50, o Maranhão esteve mergulhado num

mar de conflitos pelo poder, com peculiaridades inerentes a ele, mesmo antes da

independência como é constatado no jornal Correio Braziliense de janeiro de 1822:

No Maranhão houve similhante revolução, e similhante desejos de continuar na união com Portugal: para isto era necessário derribar o Governo então existente, como se fez nas outras partes; mas, quanto á escolha do governo provisional, que se lhe havia de substituir, os pareceres foram diversos: escolheo-se a peior vereda que foi continuar no poder o antigo Governador; o que teve forte oposição. Mas o Governador, para firmar sua authoridade, valeo-se das maximas de despotismo, que d’antes éram sua única norma de comportamento, e a demais estigmatizou todos os que se lhe oppunham com a nota de independentes. ( Correio Braziliense, nº 164 , Jan/1822, p. 63-64).

O governador, o qual se refere a matéria, foi o Marechal de Campo Bernardo da

Silveira Pinto da Fonseca, eleito o último governador e capitão-general do Estado do

Maranhão, sucedendo a Paulo da Silva Gama (MEIRELES, 2001). É possível depreender

sobre os primeiros jornais do Maranhão ver a obra “Os Primeiros Jornais do Maranhão (1821-1830)” do autor Clóvis Ramos (1986). 48 Aqueles que mais interessavam para a ideologia da época. 49 Consideramos que a gênese da submissão ideológica tanto dos segmentos menos favorecidos, quanto a praticada dentro deles próprios, vem desde a formação sociedade brasileira no seu âmbito religioso, econômico e mesmo físico através das armas de fogo. 50 O mesmo ocorria em outras localidades, como era noticiado nessa mesma noticia, no Pará, Bahia e Pernambuco, onde “o governador Rego, como era natural, pões em prática toda a força do seu despotismo para suprir os desejos do povo.” (Correio Braziliense, nº 64, Jan. 1822, p. 57-70 ).

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desse fragmento do Correio Braziliense, vários aspectos da política local maranhense e

mesmo a nacional. Nas páginas desse jornal, inclusive na integra desse artigo é possível

perceber o propósito de seu principal redator, Hipólito José da Costa, em constantes investidas

ao governo luso, pois começa delatando o desprezo dos lusos aos brasileiros, desde a vinda da

família real portuguesa em 1808 com a elaboração das pastas ministeriais recheadas de

europeus e nenhum filho da terra:“[...]Eram os Brazilienses chamados irmãos, para pagarem

tributos e para levarem o pezo dos encargos públicos: as contemplações tocavam aos irmãos

Europeos.” (Correio Braziliense, nº 164, Jan. 1822, p. 58).

Esse descontentamento não tardou a se exteriorizar em levantes, ocorridos no

Pará, Pernambuco e Maranhão, noticiados por esse jornal, sempre exaltando o descaso da

administração portuguesa para com as terras deste lado do Atlântico.

No caso específico do Maranhão, é noticiado um parecer da ‘Comissão de

Ultramar’ que demonstra o grau de arbitrariedade do Governador do Maranhão, quando

manda realizar-se uma devassa, através do Desembargador Geral do Crime, sobre fatos que

resultou na prisão de vários indivíduos suspeitos de serem anticonstitucionais e na soltura de

outros, na expulsão da província do Contador da Junta da Fazenda, Joaquim da Silva Freire e

do Major de Milícias do Piauhi, José Loureiro de Mesquita. A comissão se mostra surpresa e

perplexa sobre esse fato, assim se fazendo anunciar:

A Commissão de Ultramar [...] não pode deixar de admirar-se, de que, havendo na cidade do Maranhão uma Relação51, não fosse a ella commettido o conhecimento e decisão das culpas, que resultavam da devassa ,e de que o Governador, arrogando a si as attribuiçoens do poder Judiciário, passasse a soltar uns, e a exterminar outros” (Correio Braziliense, nº 164, Jan/1822, p. 64, grifo nosso)

A ênfase dada, mais a frente nesta matéria, à surpresa e espanto da Comissão de

Ultramar às arbitrariedades do governador do Maranhão, atribuindo-se as prerrogativas do

judiciário, demonstra, além do descaso da administração lusa, destacada pelo jornal, também

a quantas andavam o ‘fazer política’ no Maranhão.

A situação política maranhense vinha se ‘arrastando’ dessa forma, com “as

autoridades ambiciosas, politiqueiras, atrabiliárias, desonestas, em luta umas com as

outras” (MEIRELES, 2001, p. 196), por espaços de influências no cenário político local.

51 As Relações eram os Tribunais ligados à Coroa responsáveis pela administração judiciária em âmbito regional. Em São Luís esta Relação contava como nove desembargadores, mas era ausente nos interior da província. Para mais detalhes ver o artigo de Mathias Assunção, ‘Estruturas de poder e evolução política’, p. 3-4.

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O projeto adesionista do Maranhão ao ‘Rei e à Constituição’ (O Conciliador, nº

128, 05/03/1823, p. 03), ocorre a partir das notícias da Revolução do Porto, ocorrido em

Portugal a 24 de agosto de 1820, chegando oficialmente em terras maranhenses com o

surgimento da imprensa em 1821, quando se deu a instalação da primeira tipografia na

província, sob o governo de Bernardo da Silveira, o qual desejava dar ares inovadores à sua

administração com a imprensa, que era, para a época, o “mais poderoso veículo de

civilização” (FRIAS apud GALVES, 2006, p. 497). A princípio, tal notícia foi omitida pelo

Governador, por medo de um arrefecimento dos ânimos populares. No entanto, ao alcançar

esta notícia o domínio público, não tardou o Governador a tomar a dianteira, antes que grupos

que não fossem da sua alçada a tomassem, sob o jugo de uma representação para que aderisse

a causa, elegendo-se Governador Provisório. Contudo, essa manobra autoritária, não passou

despercebida pelas alas opositoras, que viam nessa manobra um espírito de continuidade no

poder. Para amenizar essa situação, sob sugestão da Câmara, decidiu-se pela formação de um

conselho que o assistisse, sendo formada a Junta Consultiva (MEIRELES, 2001).

Porém, tal ato não acalmou a ala opositora, fazendo com que, em um golpe de

‘maestria’, segundo Mário Meireles, Bernardo da Silveira renunciasse e propusesse uma

eleição na qual foi reeleito. Segundo o jornal Correio Braziliense de janeiro de 1822, a

propagação do poder nas mãos de uma ala detentora do poder, já vinha sentindo há muito

tempo, pois os insucessos das alas opositoras eram sempre constantes, e o que mais os

acabrunhavam, era a inércia desses últimos, em não se mostrarem inóspitos a esses

acontecimentos.

Barbosa de Godóis (1904) se refere, sobre este episódio, em sua obra ‘História do

Maranhão’, as ‘falcatruas’ políticas no intuito de permanecer no poder. Essa idéia também é

perceptível na seguinte declaração do Correio Braziliense:

Por tres vezes temos recebido papeis e documentos do Maranhão, sobre os successos, que ali se tem passado, mas sempre vindo do partido do Governador, e nenhums do partido opposto; o que he tanto mais notavel, quanto os que se acham abatidos deveriam ser os primeiros a queixar-se. Mas a explicação deste mysterio não nos parece difficil.He sabido, que, declarando-se o Maranhão pelo systema constitucional de Portugal, se formou um Governo Provisório, a cuja frente ficou o antigo Governador; quizéram uns que esse arranjamento fora muito á satisfacção de todo o povo, exepto poucos descontentes; outros, que a medida tinha sido imprópria e violentada pela força da tropa. Como quer que fosse, o tal governo Provisório foi authorizado por um acto da Camara, em que se assignaram muitas pessoas de consideração[...]. Seguio-se a isto mandar o Governador, que se nomeassem algumas pessoas para ajudar no Governo; porque até elle mesmo conheceo o absurdo de abraçar as formas constitucionaes, e continuar o Governador despotico, sem alguma apparencia de governo popular. (Correio Braziliense, nº 164, Jan/1822, p. 74)

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Nessa medida de tentativa de ‘popularização' do seu governo, Bernardo da

Silveira nomeou uma Junta Consultiva de seu governo, presidida pelo bispo D. Frei Joaquim

de N. Sra. De Nazaré; também os desembargadores Lourenço de Arrouchela Vieira de

Almeida Malheiros e Joaquim Vieira Belfort; o marechal de campo Agostinho Ântonio de

Faria, o coronel Antonio Rodrigues dos Santos; o tenente-coronel Manuel de Sousa Pinto de

Magalhães, o major José Demétrio de Abreu, o capitão Manuel José Ribeiro da Cunha, o

bacharel Patrício José de Almeida e Silva e Antonio José Saturnino das Mercês (ALMEIDA,

1886).

Bernardo da Silveira, no intuito de confirmar seu mandato, ao mesmo tempo que

nomeava pessoas de seu agrado para lhe ajudar no seu governo, tratou de efetuar deportações

e prisões daqueles que lhe eram desafetos. Em ordem proferida a 15 de Abril de 1822 no

jornal ‘Correio Braziliense’, mandou o Desembargador Ouvidor Geral do Crime, João

Francisco Leal, prender o Coronel Honório Jozé Teixeira por “escandaloza e insidiosa

conducta” e o “descaramento com que tem procurado promover a desordem e a anarchia”52

Ao longo das páginas desse jornal, em janeiro de 1822, se dá o desenrrolar dessas

arbitrariedades do governador do Maranhão, que em parte, é fruto da atitude do Reino de

Portugal em não dar ao Brasil a aparência de reino.

O systemas das Junctas Governativas, nas differentes províncias do Brazil, he um meio directo de tirar do Brazil a cathegoria de Reyno, dilacerando-os em divisoens; e para fazer mais sensível este mal, as taes Junctas de Províncias não possuem a força armada, nem governam as rendas públicas; o que põem, de propósito um germem de discórdia em cada província, ao mesmo tempo de desune as províncias umas das outras. (Correio Brazilense, nº 165, fev. 1822, p. 167 )

Mais do que tirar do âmago brasileiro o sentimento de independência do reino

de Portugal, essa divisão veio arrefecer os particularismos daqueles que viam no poder

público a sua satisfação pessoal, procurando-o manter a todo custo, pois os que eram

eleitos para esses cargos eram membros influentes da própria província, que alicerçados

pelas concessões que o governo central dava às essas elites regionais (ASSUNÇÃO, [18-

?]). Enquanto o intuito da corte com essas medidas era desfragmentar uma possível

unidade do país, ao mesmo tempo ocorreu o fortalecimento de laços patrimonialistas e

anseios de continuidades no poder. É com esse intuito, que várias manobras são

perceptíveis nos jogos de poder dessa época, já que: “[...] salta aos olhos, que se a Corte

não tem sabido extender a sua authoridade a muitas partes do Brasil, que de facto se estão

governando independentes, por falta de providencias das Cortes.” (Correio Braziliense, nº

166, mar. 1822, p. 282).

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Para o nosso trabalho, por enquanto, cabe-nos concluir que a vida política

maranhense se arrefecia cada vez mais com a intensificação dos anseios de separação política

do Brasil com Portugal, onde o medo da perda dos privilégios dos que detinham o poder

(portugueses) era contrastado pelos que viam a possibilidade de ascensão aos cargos

importantes no projeto de construção do Estado Nacional, sobretudo posteriormente à adesão

da província à causa independente em 1823.

Garcia de Abranches (1922), em sua célebre obra ‘O Censor’ se refere ao

processo de adesão à causa da independência da seguinte forma:

[...] A adesão mais tardia da nossa terra á causa da independência, não se deve levar á conta da relutância em corresponder ao nobre pensamento de formar com suas irmãs um são estado livre e soberano, se não as circunstâncias peculiares que nela influíram desde o seu descobrimento. (ABRANCHES, 1922, p. 10).

Tais peculiaridades, referidas por esse autor, é a grande proximidade do Maranhão

a Portugal, até mais do que com à corte do Rio de Janeiro, sendo isto unânime em vários

autores que já escreveram sobre o processo adesionista do Maranhão ao ‘Rei e a

Constituição’. Sendo assim, a relutância contra as idéias do Porto proclamadas pelos

‘inimigos da glória e prosperidade nacional’53, que tomaram formas nas nascentes páginas de

periódicos maranhenses (1821), incentivou proclamação cada vez mais entusiásticas a favor

da permanência da monarquia portuguesa, pela Junta maranhense:

A Província do Maranhão, que com justa razão blasona de haver mantido indelével a integridade de seus votos pela Constituição da Monarchia Portuguesa; que desde o dia memorando, em que o enthuziasmo Patriótico dos seus Habitantes jurou immutável adherencia a tão Augusto, e Bem feitor Systema, não tem desvairado hum só momento em comtemplar com objectos venerados, sagrados e indivisíveis a Soberania Nacional deste Augusto Congresso, a Majestade de El Rey Constitucional, e a indissolúvel união do Brazil com Portugal. (O Conciliador, nº 126, 4 set. 1822, p. 3).

Nesta disputa ideológica, para cada vez mais arregimentar os brasileiros em pró

da sua causa, era válido qualquer meio, como, por exemplo, exaltar a ‘benevolência’ do

sistema colonial, contra aqueles que o difamavam, pois, segundo o jornal O Conciliador,

“Mentem quando dizem que o regimen colonial era oppressivo e tyrannico. Se o era em

praxe, não o era na intensão”. E continua dizendo que os reais responsáveis de um governo

tirânico, que fugiam às páginas das leis portuguesas, eram alguns que arrogavam para se

todos os poderes, sem se preocupar com o bem coletivo, que era um dos objetivos das leis

aqui impetradas pelos lusos (O Conciliador, nº 128, 4/10/1822, p. 06). A acusação é de

52 Ver documento na íntegra reproduzido nos anexos. 53 Assim são designados os ‘revoltosos’ do Porto no jornal O Conciliador (1822).

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forma direta aos jesuítas, acusando essa ordem de deturpar a verdade, pois um dos seus

maiores representantes, o padre Antônio Vieira, tinhas rendosos cargos públicos (século

XVII). Contudo, poderíamos estender, nesse ínterim, àqueles que eram donos de

possessões territoriais, não só os jesuítas, que aspiravam ter maiores poderes na vida

pública maranhense. Mas, tal facções não iriam ofuscar o ‘brilho’54 das populações do

Norte do Brasil, sendo essa a opinião proclamada no jornal O Conciliador:

He pois minha humilde opinião, que sendo predominante o voto dos Povos do Norte-Brasil pela sua Constitucional união com Portugal; conhecendo o Soberano Congresso este voto; e firmando sobre elle a eficácia de providentes resoluções; esta grande e importante porsão do Brasil formará sempre com recíprocas vantagens uma parte integrante da Constitucional Monarchia Portuguesa, qualquer que seja o destino das outras províncias do Sul. ( O Conciliador, nº 128, 13 nov. 1822, p. 10)

Contudo, o que se percebe é a tentativa de mascarar o caminho que estava

tomando as províncias do norte, que a priore, se mostraram inóspitas à causa independentista,

pois laços comerciais e locais, que outrora unia, não só o Maranhão, mas também o Piauí e o

Pará, à Corte, dando-os um ar de singularidade no cenário político da época, sendo enaltecido

cada vez mais nos jornais de cunho conservador, começaram a se tornar um entrave para a

parcela da população, interessada em ascender politicamente, e que se levantaram contra as

arbitrariedades de Bernardo da Silveira há alguns anos antes: os filhos natos do Maranhão.

Nessa forma, esse estreitamento de relações começou a ceder lugar a um conflito entre os

‘filhos do reino’ e os ‘nacionais’ (GAIOSO, 1970), indo dos confrontos ideológicos, nos

meios de comunicação e obras literárias da época, aos confrontos diretos.

[...] o padre Tezinho derramava as apóstrofes mais violentas contra a tibieza e covardia de seus patrícios, acusando-os acremente de não prestigiarem, como era de seu dever, o Governo de Lisboa contra a anarquia reinante no Rio de Janeiro e de não reagirem energicamente contra a cabralhada que infestava todos os bairros de São Luís, conspirando abertamente contra El Rei e as reais autoridades da província. A cabralhada para o foribundo sacerdote, era a gente nativa do Maranhão, porque nos seus sarcasmos e doestos, quem não era português era negro: não havia um meio termo. [...] (ABRANCHES, 1933, p. 7).

Desse pequeno trecho da obra A Setembrada: A revolução liberal de 183155 do

autor Dunshee de Abranches (1933), é possível verificar este estado de tensão que se formara

no seio ludovicense, com a independência. De um lado a ‘cabralhada’ (denominações

54 A expressão ‘brilho’, nesse contexto, utilizamos com o intuito de metaforizar uma falsa singularidade na conjuntura política de independência. 55 Esta obra de Dunshee de Abranches é um romance, que tem como plano principal as lutas políticas que se sucederam ao 7 de setembro na província do Maranhão. Possui personagens reais, que de fato, tiveram sua participação nesses períodos.

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pejorativa dada aos nativos do estado), interessados na libertação das amarras portuguesas, em

todos os aspectos. Do outro lado os ‘filhos do reino’, personificado na figura do padre

Tezinho, personagem real do romance, que englobava todas as aspirações portuguesas em

devoção ás leis de Lisboa e contra as ‘anarquias’, que assolavam o Rio de Janeiro e

começavam a fervilhar no seio dos ludovicenses, fazendo surgir uma das páginas mais

conturbadas na historiografia maranhense.

O Brasil não quer independências, nem Repúblicas; não existe uma razão justa e persuasiva que instigue a tanto: essas Independências e Repúblicas são o sonho desse punhado de ruins que embelezados em Excelências, Senhorias, e mandos querem existir bem á maneira do que há pouco infelizmente se observou na Corte do Rio de Janeiro. (O Concilador, nº 128, 4 out. 1822, p. 1-3)

O padre Tesinho tinha no jornal O Conciliador do Maranhão, do qual era seu

principal redator, uma forte arma contra a ‘anarquia’ plantada na província maranhense com a

independência. Contudo, fugindo ao que propõe seu nome, este jornal “[...] não cumpriu seu

propósito de conciliar, unir, e mais dividiu o povo maranhense, de ânimos exacerbados pelas

lutas políticas” (RAMOS, 1986, p. 13), corroborando a forte inclinação política dos jornais

maranhenses nos primeiros dez anos de seu nascimento. De fato, o que se presencia nas

páginas, ou metaforicamente falando, nos ‘campos de batalhas’ dos periódicos maranhenses, é

o embate entre aqueles a favor da causa lusa e os que defendiam as liberdades constitucionais

dos vínculos do além-mar.

Luís Antônio Vieria da Silva (1980), autor do livro ‘História da Independência da

Província do Maranhão’, assim se expressa sobre a influencia do jornal O Conciliador do

Maranhão: “Essa folha foi o facho da discórdia que para logo dividiu portugueses e brasileiros

em campos inimigos, não poupando sarcasmos e injúrias contra aqueles que presumia ligados

à causa da independência.” (SILVA, 1980, p. 235).

Assim com previu Raynal (apud Morel, 2005), o sentimento antilusitano

intensificou-se, tornando o ‘carro chefe’ das aspirações proclamadas nos jornais maranhenses,

no período pós-independência. Como conseqüência desse sentimento contra os lusos, o que se

verificou na primeira metade do século XIX no Maranhão, foi uma vida política intimamente

vinculada ás questões que envolviam as disputas pelo poder entre setores da elite no quadro

da organização Nacional do Estado. No entanto, esse desejo contrastava com a presença de

uma elite portuguesa detentora dos melhores cargos administrativos da colônia, e que queria

se perpetuar no poder sob a sombra de um monarca luso.

Quando S. M. Fidelíssima se mudou para o Brazil, éra a sua Córte composta por Europeos; os Europeos fôram sempre todos os ministros, de que se formava o seu Governo. Na exuberante nomeação de títulos de nobreza que se concedêram durante

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a estada da Côrte no Rio de Janeiro, não houve filho algum do Brazil que se elevasse a essa dignidade. (Correio Braziliense, nº 164, jan. 1822, p. 8).

Esse embate foi o grande responsável pela ‘guerra civil’, entres classes elitistas,

que se presenciou nesse cenário pós-independência, especialmente no Maranhão por estar

mais ligado a Portugal do que propriamente à capital brasileira, sede do governo no Rio de

Janeiro.

Nas palavras do padre Tezinho (apud ABRANCHES, 1933, p. 32):

É o que tenho dito no Conciliador: O Maranhão, graças a Deus, está bem longe do Rio de Janeiro, nada tem a ver com esse governicho caricato; não entretemos quase relação com os praças do Sul; a navegação faz-ser toda com Portugal; com Portugal temos o nosso comércio; em Portugal mantemos as famílias e boa parte dos haveres, e para lá mandamos educar nossos filhos; e, portanto, com Portugal ficaremos se o resto da colônia ousar um dia separar-se de nossa metrópole, e por Portugal iremos à morte.

Tal proximidade não impediu que se intensificasse um sentimento particularista.

Não tardou para que esse sentimento, mais privado, alicerçado nas bases de dominação

senhorial patrimonialista e patriarcal, se fizesse visível nas lutas de famílias para a ocupação

de cargos administrativos e conseqüente manutenção do status quo, aliado à permanência do

poder nas mãos da elite, como propunha o projeto emancipatório. Dessa forma, imbuído ainda

dos princípios constitucionais proclamados na Revolução Francesa, que representou o

máximo em isonomia política para aquela época (final do século XVIII e inicio do XIX), o

jornal Argos da Lei declarou que a instituição de uma Constituição seria o necessário para se

formar uma sociedade política, não atentando para as raízes de uma vida política deficiente, já

plantada desde os primeiros tempos de ocupação destas terras. Dessa forma, a feitura da

melhor Constituição possível, como queria Odorico Mendes, não resolveria problemas de

ordem estrutural da sociedade maranhense, onde o que interessava era a satisfação pessoal das

classes elitistas ávidas pelo poder, causando conflitos cada vez mais ferrenhos no âmbito

político local. A própria Constituição serviu para a utilização de práticas personalistas, só que

a partir de então, camufladas pela legalidade.

Como conseqüência direta desse embate intra-elitista, percebe-se a formação de

um sistema de dominação política tendo a frente as elites locais maranhenses. Sobre a gênese

desse processo, assim se expressa Flávio Reis (1992), em estudo sobre a formação dos grupos

políticos e oligarquias maranhenses:

A reflexão sobre o processo de formação do sistema de dominação política no Maranhão requer a distinção preliminar entre dois períodos. O primeiro compreende o início da década de 1820 até o final da década de 1840 e apresenta uma extrema fragmentação das facções políticas, geralmente expressa nas lutas entre famílias

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importantes de proprietários rurais das regiões do Itapecurú e da Baixada, as mais significativas economicamente. (REIS, 1992, p.1).

Mathias Assunção (apud JACSÓ, 2005) em artigo intitulado “Miguel Bruce e os

‘horrores da anarquia’ no Maranhão”, é bem elucidativo, ao apontar algumas das principais

causas que contribuíram para diferenciar o caminho maranhense para a independência,

enfatizando três aspectos: a disputa entre as facções da elite pelo poder local e regional, o grau

de violência atingido nesse conflito que ultrapassava a via burocrática dos jornais e a ampla

participação dos setores populares. Contudo, ao se referir o processo de independência no

Maranhão, esse autor prefere incluí-lo numa maior conjuntura geopolítica, ao referir-se ao

Meio-Norte, estando incluído o que é hoje o estado do Piauí, pois segundo ele, a “guerra se

desenrolou dos dois lados do rio Parnaíba” (ASSUNÇÃO apud JACSÓ, 2005, p.345).

De fato, o que se presencia nos jornais maranhenses desse período é a íntima

ligação com estados vizinhos, não só o Piauí, mas também o Pará, já referido anteriormente.

Como defende Mario Meireles, o processo de adesão do Maranhão à independência foi “uma

ação de fora para dentro” (MEIRELES, 2001, p. 206). Contudo, não cabe neste trabalho uma

análise mais factual do processo adesionista maranhense, como fez Vieira da Silva e o próprio

Mario Meireles, mas sim uma análise mais detida num dos aspectos elencado por Mathias

Assunção que caracteriza a singularidade desse processo no Maranhão, que é a ferrenha luta

entre facções elitistas na conjuntura da independência, com suas conseqüências para a cultura

política da província, levando Vieira da Silva (1972) a considerar, em seu livro sobre a

independência do Maranhão, que o que custou sangue não foi o processo de independência e

sim a guerra civil que se seguiu, tendo como protagonistas do palco maranhense,

representantes das principais famílias maranhenses como os Burgos, Bruces e Belforts, que

aliados à relativa distância do governo central, fizeram com que fosse escritas uma das

páginas mais conturbadas na história política do Maranhão.

A reconfiguração do poder local se deu após inúmeros conflitos entres os

membros representantes das principais famílias maranhenses, que viram no esfacelamento do

antigo regime colonial, a oportunidade de ascender ao poder provincial. Desde o início da

colonização, as elites locais maranhenses, sobretudo de São Luís e do vale Baixo do

Itapecuru, detinham em suas mãos o domínio do poder local, eliminando possíveis opositores.

Vários outros membros de famílias, que embora detentoras de grandes posses e

influências, não dispunham em suas mão de uma parcela de poder, começaram a exteriorizar

seus descontentamentos pela exclusão do poder regional, produzindo petições à Assembléia

Nacional.

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Mathias Assunção nos dá um dado bem elucidativo sobre esse descontentamento

de outros setores das elites regionais, extraído dos ‘Ofícios de Câmaras Municipais de

Caxias’, não incluídos nesse bojo de dominação regional, quando estabelece em número de

dez ‘Indicações’ da câmara de Caxias para o governo, com o propósito de ser melhor

“representados”, o povo caxiense, no governo da capital. E dessas dez, sete reivindicavam a

criação de uma nova província, com capital em Caxias. Esta localidade se destacava, como

um dos grandes setores econômicos desse período, conhecido como Sertão de Pastos Bons,

pois detinha em sua área vastas extensões de terras, economicamente produtivas, destinadas à

pecuária.

Em uma das ‘Indicações’, a do ‘Cidadão João Teodoro da Silva’56, citado por

Assunção (apud JANCSÓ, 2005), fica claro esse propósito:

[...] é importante para o bom Governo Público abranger esta Província tão magna extensão do que resulta o desgoverno geral desta Província. Conhecida esta proposição devemos asseverar que a Província de Maranhão deve ser dividida, criando-se a nova Província de Caxias e anexando-se os Distritos já desmembrados Pastos Bons, e São Bernardo, criando-se a Vila de Caxias em Cidade, com Junta Administrativa de cinco Membros [...] (ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005, p. 354).

Contudo, já é perceptível nos jornais maranhenses, uma cisão no seio da elite

maranhense, desde 1821, com o ‘nascimento’ da imprensa periódica, já trazendo em suas

páginas as notícias da revolução do Porto (1820). Daí pra frente o que se percebe é que cada

vez mais se avolumava os pretextos para a ‘contestação’57 da ordem estabelecida, sendo o

maior deles ocorrido com a adesão da província à ‘independência’ do Brasil. Os anos que se

seguiram a esse episódio, foram politicamente marcados por tensões e conflitos, pelo poder. O

governo de Miguel Bruce (1823-1824) foi considerado o de maior agitação, sendo registrados

desde uma intensificação dos lustros, até uma possível onda revolucionária composta por

populares, quando na tentativa de manter-se no poder, Bruce abre as portas das prisões, no

intuito de formar um exército popular, o que marcou de forma veemente a ruptura de um

consenso intra-elitista de não envolver as classes subalternas nos assuntos políticos, fruto de

um sentimento cada vez mais crescente de uma possível haitização no Maranhão

(ASSUNÇÃO apud JACSÓ, 2005).

A conjuntura de Construção do Estado Nacional representou para as elites locais,

que já vinham se perpetuando no poder, desde o período colonial, e às que queriam entrar

nesse meio, a oportunidade de materializar, no âmbito do poder estatal, anseios individuais.

56 Entenda-se o termo Cidadão como Homens-bons. 57 Contestação no sentido de uma sublevação, não como a força do termo hoje nos denota, mas uma insatisfação de grupos dissidentes das elites locais em não usufruir do poder regionalizado.

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Sendo assim, o Estado passou a ser o sonho almejado, que devido ao espírito faccioso da elite

local, foi o responsável pelos grandes desvirtuamentos da administração da coisa pública,

marca da história política brasileira e em especial a maranhense, sendo suas conseqüências

ainda hoje sentidas.

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2.2 DISPUTAS PELO PODER POLÍTICO NA “GUERRA DOS TRÊS BÊS” NO

MARANHÃO INDEPENDENTE

No Maranhão da primeira metade do século XIX, o período logo após a sua

adesão à independência, foi permeado de agitações sociais e políticas. Em meio aos grupos

que se formavam para combater os lusos, detentores dos principais cargos da província e

conseqüentemente usufruto dos seus privilégios, que levou o nacionalismo brasileiro a se

manifestar sob a forma de um ‘antilusitanismo generalizado’ (PEREIRA, 1982).

Mostrando a falácia em que se assentou o nosso processo emancipatório,

presenciou-se um dos maiores conflitos envolvendo algumas das principais famílias da elite

maranhense, pela posse e perpetuação nos cargos públicos. Esse estado de conflito em que

estava assentada a província maranhense, foi caracterizada pelo Lord Cochrane em uma

correspondência ao primeiro Ministro, José Bonifácio de Andrade e Silva, em 14 de Agosto

de 1823, delatando que “[...] as conexões de famílias, e amizades e inimizades particulares e

políticas, existem aqui em tal grau que será difícil deixarem de envolver a Província em

dissençõens internas.”(PEREIRA, 1982, p. 87).

Dessa forma, o que nasceu nesta província, em seu aspecto mais extremo e que

ainda é notável nos dias atuais, foi a dominação da vida política por algumas famílias da elite

provinciana, que por serem donas de grandes possessões territoriais, conseguiram alcançar

posições de prestígios na vida política maranhense, sem, contudo, estarem preocupadas com o

atendimento dos anseios coletivos, e sim imbuídos da ânsia de satisfazerem seus

particularismos econômicos e perpetuações ‘sanguíneas’ no poder, ou seja, “[...] centraram

seus interesses, menos por um ideal patriótico e mais por vantagens pessoais, nas disputas de

funções que, face às circunstâncias, com a demissão e expulsão dos portugueses, deveriam ser

remanejadas.” (PEREIRA, 1982, p. 82).

Um ‘governo forte’ e uma ‘regular administração da justiça’, seriam as duas

balizas que faltavam para que a província maranhense adquirisse ares de tranqüilidade,

segundo Maria Graham, em seu ‘Diário de Viagem’ (PEREIRA, 1982). Contudo, a formação

particularista na qual se deleitou a sociedade brasileira, impetrada pelos lusos, impossibilitou

que o homem se desvencilhasse dos seus valores familiares, não achando agradáveis as

relações impessoais, que deveria ser a característica do homem ideal para o Estado, também

no seu sentido ideal. Porém, procurou-se reduzí-las ao padrão pessoal e afetivo, segundo

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Antônio Candido falando sobre um dos temas abordados no livro ‘Raízes do Brasil’.(2003,

p.17)

Três famílias58, escreveram essa trajetória política do conturbado início do século

XIX, no Maranhão, apoderando-se dos principais postos oficiais:

a Bruce, representado por Miguel Inácio dos Santos Freire Bruce que foi o presidente da Junta Governativa e depois Governador Constitucional; a Belfort, que teve José Joaquim Vieira Belfort como membro da Junta; e a Burgos, cujo chefe exerceu o cargo de Governador das Armas. (VIVEIROS, 1992, p. 70).

Eram os três ‘Bês’, que dominavam a vida política do Maranhão, mas que já

tinham seus sobrenomes, como ocupantes de cargos privilegiados bem antes do início do

século XIX, pois segundo a linguagem corrente nesse período, os que se interessam pelo bem

estar deste país, “se conhecem pelas suas famílias e propriedades” (Argos da Lei, 1825, n. 1,

p. 3), levando a um conflito marcado pela não existência de regras políticas bem definidas

para alcançar os fins almejados por seus contendores. Foi no ano de 1824 que a faceta mais

violenta desse conflito se exteriorizou.

É difícil precisar quando começou a trajetória hegemônica dessas famílias em

espaços maranhenses, pois um trabalho genealógico dos principais troncos de famílias

maranhenses59, ainda é uma lacuna a ser suprida. Em 1886 foi produzida uma obra, que

titularmente estaria ligada a um estudo genealógico das principais famílias maranhenses:

‘Algumas Notas Genealógicas: livro de familia’. Seu autor, João Mendes de Almeida (1886),

não sabemos por qual motivo, enveredou-se mais em narrar a história do Maranhão, da

colonização ao Império. Contudo, é a obra mais antiga na qual encontramos referencia às

famílias envolvidas nas disputas pelo poder em 1823-24, no Maranhão.

À câmara da capital os chefes revolucionários officiaram ‘para que convocassem nova assembléa geral, afim de eleger-se interinamente uma governo temporário de cidadãos hábeis, beneméritos e litteratos, com exclusão expressa de fazer parte delle cidadão algum das famílias intrigadas, isto é, de Burgos, Bruces de Belforts, e mais membros do extincto governo’. (ALMEIDA, 1886, p. 196).

De fato, essas três famílias, foram algumas das principais responsáveis por um

dos momentos mais agitados na política maranhense, no inicio do século XIX, a ponto de

58 Apesar de não serem as únicas envolvidas nesse conflito, seguiremos a proposta do nosso trabalho de analisar as que receberam a alcunha de os ‘Bês’, devido ao aspecto ainda obscuro que permeia as suas trajetórias políticas no século XIX, que as fizeram merecer registros daqueles que a escreveram, dando subsídio para futuras pesquisas. 59 O estudo de uma genealogia entre as famílias não implica na assertiva de corroborar que somente os membros ligados aos principais troncos é que conseguiam ascender as cargos públicos, sendo notável muitos membros

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ser terminantemente e expressamente proibida sua indicação para qualquer cargo da

administração provincial, como visto acima, que apesar de não se referir a sua fonte,

reproduziu o que foi publicado no Jornal Argos da Lei60, que tinha como principal redator

Odorico Mendes.

Não devemos, contudo, entender que tal proibição foi um ato de hostilidade

contra o atentado por elas cometidos ao sentimento coletivo. Mas, é mais plausível notar

essa represália, como forma de satisfação de segmentos opostos às dessas famílias. É com

esse mesmo sentimento de satisfação particular que se produz a ‘Guerra’ entres as três

famílias, que a princípio estavam ligadas “enquanto combatiam o presidente da Câmara de

São Luís, Rodrigo Luiz Salgado de Sá Moscoso” (VIVEIROS, 1992, p. 70), mas tão logo o

sentimento de interesses particulares viesse a aflorar, foram colocados em campos opostos

os Belforts e os Burgos de um lado e de outro os Bruces.

A continuidade nas esferas político-sociais foi um dos alicerces que caracterizou o

Império brasileiro61, que neste aspecto, Mathias Assunção prefere considera-la como mais

uma “sociedade neocolonial que pós-colonial” (ASSUNÇÃO, [19-?), p. 2). Os governadores

das capitanias passaram a ser os presidentes de província, sendo de sua alcunha a eleição de

seus funcionários. Dessa forma, sua junta governativa geralmente era composta de pessoas da

sua ‘alçada’, fazendo eclodir os mais acirrados descontentamentos, dentre eles, as disputas

dos Bês.

Segundo Assunção, a maior ruptura com o passado colonial aconteceu no aspecto

político, com a criação de instituições nacionais no império emergente (século XIX), as quais

foram os maiores fatores de conflito entre as elites. Estas, permeadas de um sentimento

individual de benefícios particulares, que vem desde a sua própria formação aliado aos

privilégios inerentes à tais funções, não conseguiram ver essas instituições, com seus

respectivos cargos, um meio que viesse a atender aos anseios da coletividade. Se, a

continuidade do poder nas mãos dos lusos no pós-independência, representou a aceitação dos

portugueses à nova ordem, por outro lado instigou o descontentamento de outros segmentos

não beneficiados com uma parte desse poder, sejam os simpatizantes da república, ou mesmo

aqueles representantes das elites regionais preocupados na manutenção dos seus status quo e

extensão das suas áreas de influência. Essa falta de homogeneização da elite maranhense foi

desprovidos de ‘renomes’ ocupando-os, principalmente através de manobras políticas, tema defendido em monografia pela aluna Edyene Moraes, na Universidade Estadual do Maranhão no ano de 2006. 60 Jornal Argos da Lei, n. 12, 15 fev. 1825, p. 1-2. 61 Sobre o nosso ponto de vista das continuidades, procuramos tratar no primeiro capítulo.

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um dos motivos da incapacidade da mesma em manter o controle político nos conturbados

períodos posteriores à independência, fazendo que em 1838 eclodisse a maior revolta popular

ocorrida na província do Maranhão, a Balaiada.

Umas das principais mudanças administrativas ocorridas com o advento do

império foi a separação do Comando das Armas da autoridade maior da província. Segundo

Assunção, esse “caráter bicéfalo do poder executivo regional” (ASSUNÇÃO, [19-?], p. 3), foi

a principal causa das guerras civis no Maranhão independente.

No jornal Correio Braziliense, de março de 1822, num artigo intitulado ‘Governo

político do Brazil, segundo intentam as Cortes’, fica exposto na opinião do seu principal

redator, Hipólito da Costa, o real interesse na separação do poder provincial do poder das

Armas. De acordo com ele, não aceitavam os ‘Brazilienses’ serem governados por um rei a

tão grande distância, da mesma forma que os portugueses não aceitaram ser representados por

um rei residido no Brasil, devido “[...] a difficuldade de recursos he na verdade mui onerosa

aos povos”. A ligação do Brasil ao Reino deveria somente ser a estritamente necessária para

que se mantivesse a união dos dois reinos. Contudo, a Corte não deu a devida importância a

essa questão, ou se contrário, impunham uma outra interpretação, pois antes mesmo de se

tentar resolver o problema dos governos tirânicos, a ordem que pairava na Corte era a de

mandar tropas portuguesas para as províncias do Brasil, para além desse objetivo, garantir a

ordem lusa nesses lugares, sendo isso o que deram a entender aos povos do Brasil, “que o

systema constitucional não era destinado a trazer-lhes os benefícios que Portugal se

propunha.”

Com o intuito de ‘apagar’ essa impressão, a medida que foi tomada, mas que ao

invés de realizar seu propósito de reversão, de acordo com redator do artigo, só fez corroborar

a suspeita de dominação lusa, foi a separação do governo das armas do governo provincial,

que segundo Mathias Assunção, foi umas das principais causas dos conflitos políticos, do

início do século XIX, no Maranhão. E assim Hipólito da Costa (1822, p. 270) se posiciona

sobre essa medida:

Com effeito, se as tropas no Brazil são para manter a ordem e tranqüilidade interna do paiz, e não para o subjugar, as operações dessas tropas devem ser effectivas, quando e da forma que o Governo da província o julgar necessário; e por tanto o comandante da força armada deve ser sugeito ao governo político. Estes princípios são tam claros, que os sophismas empregados para sustentar a opinião opposta, longe de convencer ninguém, só servem de augmentar a suspeita, de que as Corte intentam outra coisa do que dizem.62 ( Correio Braziliense, nº 165, mar. 1822. p. 270.)

62 Ver a íntegra desse artigo reproduzido no ANEXO.

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Se, de fato, essa medida de separação era com o intuito de acabar com o

Governo despótico, ou mesmo uma possível postura da manutenção do regime colonial,

como sugere o redator do artigo no decorrer da matéria, a sua principal conseqüência foi o

aquecimento das ambições políticas da elite, já aguçadas com a ‘experiência’

administrativa nas câmaras municipais63 e seus privilégios, que viram nessa separação uma

melhor possibilidade de alcançar a presidência da província, como aconteceu entre os anos

de 1823 e 1824, com a rivalidade do Presidente constitucional da província Miguel Inácio

dos Santos Freire Bruce, preocupado em manter sua hegemonia, e o Comandante das

Armas José Felix Pereira de Burgos, aspirando ao cargo máximo da administração

provincial.

Não somente nas câmaras municipais, se resumia a experiência política

‘deturpada’, dos membros da elite maranhense. O presidente de província, denominação

para ao antigo governador da capitania, continuava a ser escolhido pelo Governo Central,

pois sua principal função era representar a Corte do Rio de Janeiro e expandir o seu

controle Estatal. Por isso, os eleitos pela Corte Fluminense eram membros não originários

das localidades onde presidiriam. Contudo, numa medida de conciliação com as elites

regionais “os membros do Conselho do Governo eram escolhidos dentro das principais

famílias da província”, entendendo-se essas famílias, as que usufruíam de maior influência

regional, geralmente, aquela dos considerados ‘homens bons’ da localidade. Essas

concessões representaram a fragilidade do Estado Nacional ainda em formação,

procurando se alicerçar a nível regional, sendo, inclusive, membros da elite maranhense

cooptados pela elite nacional. Assim, vários maranhenses obtiveram grande prestígio na

Corte do Governo central, dentre eles João Bráulio Muniz, Manoel Odorico Mendes,

Antonio Pedro da Costa Ferreira e outros (ASSUNÇÃO, [19-?]).

O facciosismo das elites, além de mergulhar o Maranhão num mar de conflitos

pela posse do poder local, contribuiu para a perda da autonomia na reação centralizadora,

promovida pela Corte, sendo a ordem somente restaurada pela força dos soldados do

Governo Central após a suplantação da Balaiada.

63 Segundo Mathias Assunção as câmaras municipais gozavam de amplos poderes no inicio do sistema colonial, sendo seus cargos ocupados pelos ‘homens bons’. Contudo, esses poderes foram sendo reduzidos pelo absolutismo português, mesmo antes da independência, preocupados que estavam em multiplicar os representantes dos governos locais em seu território, deixando no âmago dos ‘homens bons’ a ansiedade de prover cargos dessa influência na província. (ASSUNÇÃO, [19-?], p. 3.)

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Assim como em outras partes da América latina pós-independência, no

Maranhão do inicio do século XIX, a luta pelo poder a nível local, se confundiu

com as estratégias das famílias da elite para conseguir o controle dos recursos naturais e dos cargos institucionais para os seus membros e sua clientela. O estabelecimento de novas vilas e cidades e a criação de novos cargos multiplicou as oportunidades para os membros das classes altas locais de conseguir influência e reestruturar as relações de poder a nível municipal. Os conflitos entre as famílias da elite resultaram da competição para adquirir postos públicos, e levou até à afiliação das famílias rivais a partidos políticos antagônicos, ainda que , a nível local, as diferenças ideológicas entre elas fossem insignificantes. (ASSUNÇÃO, [19-?], p. 5).

A posse de um cargo institucional representava (ainda representa) para as

elites, o sonho concretizado dos privilégios que os mesmos concediam, como o monopólio

de uma fatia do mercado, como por exemplo, o de carne, para algum fazendeiro, entre as

décadas de 20-30 do oitocentos; construção de imóveis para membros da própria família.

As benesses eram das mais variadas, sendo inconcebível para os membros que detinham os

cargos, perdê-los.

Os conflitos políticos-ideológicos foram cedendo lugar às disputas por cargos

na administração, de modo a presenciarmos no período logo após a independência, uma

verdadeira ‘disputa sanguínea’ nas regiões próximas ao golfão maranhense. Dessa forma a

independência, significou mais do que a expulsão dos portugueses dos cargos

administrativos, em uma visão mais patriótica, mas a ocupação destes por membros das

elites locais, preocupadas em aumentar seu prestígio e sua influência entre os demais da

população. Esse espírito facciosista da elite maranhense veio mostrar sua principal artéria

na disputa pela ‘brecha’ deixada pela dissolução da ordem colonial, instigando uma intensa

luta pela dominação do poder regional. Aliada à criação de novos cargos, ocasionando uma

polarização do poder, a vida política maranhense do inicio do século XIX é escrita sob a

ótica de vários percalços, que impossibilitaram a emergência de um governo

representativo, seguindo o modelo ideal de Estado. Desde o início desse período, percebe-

se uma exclusão do poder regional dos possíveis competidores de outras localidades da

província, esta favorecida até mesmo por questões naturais64, sendo monopólio daquelas de

São Luís e do baixo Itapecuru (ASSUNÇÃO, [19-?]).

64 Enquanto que os fazendeiros que tinham suas possessões ao redor do golfão maranhense (Alcântara, Icatu, Rosário e Itapecuru Mirim) demoravam um dia para chegar até São Luís, os de outras localidades, mas não menos importante como Caxias, demoravam em torno de uma semana a doze dias para chegar à capital da província (ASSUNÇÃO apud JACSÓ, 2005, p. 354).

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É nesse contexto de conflito e descontentamentos que começa a disputa entres

as três famílias, dentre as mais influentes da região litorânea do Maranhão, pelo

favorecimento de seus membros mais representativos e seus familiares e parentela.

A disputa pelo poder provincial, tem uma intensificação a partir da adesão à

independência. Esta foi permeada de uma série de conflitos, envolvendo a Junta

Maranhense, empenhada em conter os avanços das tropas independentistas do Piauí e do

Ceará65.

A Junta maranhense, numa teimosia sem limites, ao mesmo tempo que fazia efetuar prisões, organizava a defesa de São Luís, lançava proclamações, destituía do comando oficiais suspeitos, reorganizava destacamentos, solicitava recursos materiais do Pará, preparava-se para tomar a iniciativa de ação. Mobilizou todos os recurso de que podia dispor, tanto para a defesa da capital como para esmagar os pronunciamentos que se registravam no interior. (HOLANDA apud REIS, 1995, p. 147).

Sem nos ater muito no aspecto factualista que envolve a independência e sua

posterior adesão pela província maranhense, não por ser menos importante, mas por já

termos dado a ênfase necessária no nosso primeiro capítulo, nos interessa as manobras

políticas dos que já possuíam cargos nessa administração e desejavam preservá-los e

daqueles que os almejavam, para extrair dele o máximo de benefícios para sua clientela.

Dentre esses golpes, está um de grande envergadura, que terá efeitos na composição da

política maranhense e ligação com o conflito entre as famílias mais prestigiadas dentre

aquelas que ocupavam as principais áreas de plantation, que foi o patrocinado pelo

Tenente-coronel do Itapicuru Mirim, José Felix Pereira de Burgos. Este entra de fato na

vida política maranhense, no conturbado período das guerras de adesão patrocinadas pelas

tropas cearense e piauienses sobres as fronteiras maranhenses do Parnaíba.

Do Ceará e do Piauí, grandes forças independentes marchavam sobre diversos pontos das fronteiras maranhenses do Parnaíba, ameaçando todas as povoações ribeirinhas e tendo por fito principal a tomada de Caxias. Em Manga, o crioulo João Bunda, com 40 homens tomara o centro da vila, matando o Capitão Manoel Magalhães, comandante da força, e tivera a audácia de ameaçar Itapicuru-Mirim, onde se achava o grosso das tropas. De Coroatá, escreviam ao Bispo que o tenente Carneiro e o alferes Launé, do partido exaltado viviam a perseguir os saldados portugueses, metendo-os no tronco e surrando-os como se fossem escravos; e em, Catanhedes, o Capitão José Martins esbofeteara um negociante conceituado, bradando que ‘tinha mandado ensebar peias para sovar os puças’. Fora esse o motivo da demissão do Coronel Nunes Belfort do Comando Geral das Forças da Ribeira daquela vila, e da designação para tal posto do tenente-coronel Burgos oficial brioso que se afigurava dedicado à causa lusitana. (ABRANCHES, 1933, p. 37).

65 Na segunda parte do primeiro capítulo do nosso trabalho, destinamos suas páginas a explicitar de que modos andou a processo adesionista do Maranhão à independência do Brasil.

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Antônio de Salles Nunes Belfort, Coronel de Milícias, foi membro do

Conselho Municipal de São Luís em 1823, foi substituído por José Felix Pereira de Burgos,

natural do Maranhão, faleceu no Rio de Janeiro em 1854, foi membro da Junta Provisória

da Província e depois, Comandante das Armas, depondo o Presidente Bruce, como

veremos mais à frente. Além disso, ocupou cargos no Pará, como o de presidente de Junta

e Ministro de Guerra em 1835 (COUTINHO apud SANTOS, 2006, p. 47). Ambos tiveram

suas trajetórias ligadas a cargos administrativos e, portanto, usufruindo ao máximo dos

privilégios ofertados por eles. No Maranhão, a marcha dos ‘independentes’ que se debatia

sobre as localidades que ainda resistiam à onda emancipatória, era cada vez mais difícil de

controlar, levando à demissão de Nunes Belfort e a designação de Felix Burgos para seu

posto. Contudo a manobra de Burgos foi, no mínimo, mais estrategista e audaz, que a de

Belfort, que preferiu a demissão, pois, percebendo que poderia acabar como o Capitão

Manoel Magalhães, assassinado pelas tropas de João Bunda, como visto acima, preferiu

manter seu cargo e galgar a ascensão no novo regime, já praticamente consolidado,

abandonando o posicionamento de defesa dos lusitanos.

Uma mudança tão repentina de facção não é tão admirável que aconteça entre

as elites ávidas de manter seus posicionamentos nos cargos mais influentes da

administração. É mais um dos meios e recursos, como o casamento, compra de títulos

nobiliárquicos, que permearam as lutas pela manutenção do poder desde o tempo da

colonização, e que tentamos mostrar, de forma insistente, desde as primeiras páginas desse

nosso trabalho.

Com essa mudança de posição radical, do Coronel Burgos, prevendo que a

independência daquela província era inevitável, tratou logo de ir a favor do ‘vento que

soprava mais forte’, e que não era os que vinham das Cortes portuguesas e sim os que

tinham sua origem no Ceará e Piauí. Logo, com a ajuda de 1600 insurgentes, sob o

comando do Capitão piauiense, Salvador Cardoso de Oliveira, rendia-se a 13 de junho de

1823, o comandante de Itapicuru Mirim, o Tenente-coronel Ricardo José Coelho, ao

comandante Pereira de Burgos. Dessa forma, enquanto a Junta maranhense tentava de

todas as formas conter o avanço das idéias de emancipação, inclusive com um possível

entendimento de D. Pedro com D.João VI, Burgos constituíra um Governo Provisório no

Itapicuru Mirim (HOLANDA apud REIS, 1995, p. 148).

Esse governo provisório veio atender aos anseios de apenas uma parte da

população, ou melhor, das famílias de maior prestígio da região, pois sua composição

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abarcava majoritariamente as famílias dos Burgos e dos Belforts. Os líderes do exército

patriota, no qual Burgos havia se balizado para a proclamação do Governo Provisório no

Itapicuru Mirim, “compreenderam que tinham sido privados dos frutos de sua vitória”

(ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005, p. 351), pois os postos nas juntas governativas,

reivindicados por esses líderes, foram preenchidos pela clientela de Burgos. O Governo

Provisório atendeu apenas as prerrogativas de ordem financeira dos exércitos do Piauí e

Ceará, local onde não demoraram a retornar, devido à desmobilização impetrada por

Burgos.

Os altos postos administrativos sempre foram sonho das elites, desde a sua

constituição em terras brasileiras, até os dias de hoje. Não houve, até então, em terras

maranhenses, momento mais propício às famílias mais ‘ilustres’ da Província maranhense

para alcançar esse desejo, do que no conturbado período de independência. A ordem era a

destituição dos portugueses do poder, pois o Brasil “[...] pode e quer ser independente: sua

independência esta declara e he de fato uma nação livre e soberana [...]” (Correio

Braziliense, nº 173, Dez/1822, p. 476), sendo seus cargos ocupados por brasileiros,

“preocupados com a soberania nacional”. Mas esse desejo se contrapunha à Junta de São

Luis, ainda presidida por Frei Joaquim que tentava de todas as formas retardar a entrega do

Governo aos independentes, pois

[...]sabendo que o dinheiro e o prestígio social estavam principalmente nas mãos de seus patrícios, que detinham ainda quase todos os cargos públicos, procurava conduzir as coisas de modo que, em caso de desespero, a sua sucessão recaísse, ao menos em brasileiros que, por laços de famílias ou conveniências pessoais, dependessem mais ou menos das grandes firmas portuguesas que monopolizavam quase todo o comércio e as fortunas da terra. (ABRANCHES, 1933, p. 36).

A ambição particularista, ligada a segmentos cada vez mais reduzidos da

sociedade maranhense, sempre foi uma máxima na vida política dessa província. A

preocupação da continuidade do poder nas mãos de quem já o possui, sempre foi um dos

principais motivos das guerras civis ocorridas em solo maranhense. Dessa forma, política e

família se confluíam nesse imbricado sistema de beneficiamento facciosista.

Imbuído desse sentimento, Burgos viu na mudança de posição a melhor

maneira de satisfazer seu anseio de ter uma parte do controle da máquina administrativa

em suas mãos e das de seus pares. Sua junta, na composição desse governo em Itapicuru-

Mirim, era composta por Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago, Antônio Joaquim

Lamaguera, Fábio Gomes da Silva Belfort e Antônio Raimundo Belfort Pereira de Burgos

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(HOLANDA apud REIS, 1995, p. 148). Esta junta deveria ser completada por outros

membros da junta de São Luis, assim que essa capitulasse à nova ordem.

A 7 de agosto de 1823, a Junta que formara-se em Itapicuru-Mirim seria

completada por outros membros ludovicenses, como o advogado Miguel Inácio dos Santos

Freire e Bruce, para presidente; Lourenço de Castro Belfort e José Joaquim Vieira Belfort.

E para presidente da câmara de São Luis, Luis Salgado de Sá e Moscoso.

Prenunciando o que seria o ano de 1824, principalmente, logo após a instalação

da Junta, o comandante das armas José Felix Pereira de Burgos logo entrou em conflito

com o presidente da Câmara recém formada, Rodrigo Moscoso. Este, preso por Burgos,

conseguiu escapar e logo fez-se aclamar novo comandante das armas. No entanto, este foi

um episódio que demonstrou a já insatisfação de Burgos pela medida, que não o beneficiou

com o cargo de presidente da Junta, no qual poderia galgar com mais eficácia a presidência

da província. Aliado a isso, existiam os descontentamentos das grandes famílias, excluídas

do poder, que não estavam dispostas a aceitar, sem resistência, o golpe dado pelos Burgos

pela posse do poder local em 1823 (ASSUNÇÃO, [19-?]). Tudo isso, veio figurar o

contexto político em que andava o Maranhão, nos primeiros anos subseqüentes à

independência, onde os interesses mudavam de acordo com o sobrenome da família, que

Dunshee de Abranches chamou de “facçoes intolerantes e apaixonadas que se degladiavam

ferozmente na política maranhense” (ABRANCHES, 1933, p. 10). Mas a declaração de

uma efetiva ‘guerra elitista’, veio em 25 de dezembro de 1823, com a eleição de Miguel

Inácio dos Santos Freire Bruce para presidente da província.

Os anseios de Frei Joaquim foram colocados por terra, ao ver o mais temido66

de seus adversários ocupar um lugar tão importante na direção da província, pois segundo

ele, entre todos os liberais, Freire Bruce “[...] era o que mais intimamente vivia afeiçoado à

estudantada e à patuléia.” (ABRANCHES, 1933, p. 50-51). Este bispo estava convencido

de que Bruce era o principal responsável pelas escaramuçadas ocorridas na capital e no

interior, e que se subisse a presidência da província, derramaria muito sangue sobre ela.

Os receios do bispo tinham seus alicerces na trajetória impetrada pelos Bruces

na vida política maranhense, quando começa a criar asas o forte sentimento anti-lusitano,

tendo como um dos seus grupos representantes, aquele formado por homens de certa

instrução, chefiados por Freire Bruce, isso já nos primeiros dias da notícia da Revolução do

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Porto no Maranhão (1821). De ‘espírito vingativo e enérgico’, como é designado na

maioria dos documentos que se referem a ele, Miguel Inácio dos Santos Freire Bruce, logo

se figurou como um dos principais inimigos dos portugueses da província, não demorando

o seu nome ser citado nas ditas rodas absolutistas ao lado de outros ‘fora da lei’, como

Patrício José de Almeida e Silva, João Bráulio Moniz. Antônio da Costa Ferreira, Egydio

Launé, Frederico Magno e outros, todos membros de uma elite ilustre, ocupantes de cargos

de deputados, membros de câmaras ou advogados.

Por essa época, já se não conspirava apenas nas sociedades secretas, espalhadas pelos bairros mais pobres e infectos de São Luís, ou nos clubes dos borras [...]. Em casas de famílias importantes, faziam-se reuniões freqüentes com o comparecimento de maranhenses ilustres e de responsabilidade social. E não eram só jovens estudantes e cadetes estouvados e trêfegos que se batiam pelas idéias liberais, querendo até a República: homens feitos, ocupando já postos de administração ou exercendo profissões respeitáveis, juntavam-se também aos moços sob a bandeira revolucionária. (ABRANCHES, 1933, p. 23).

Nessa época, a cidade de São Luís ‘fervilhava’ de sociedades secretas, que

eram espaços de discussão dos problemas políticos, sociais e econômicos do Brasil e

principalmente do Maranhão. O romance ‘A Setembrada: Revolução Liberal de 1831 em

Maranhão’, de Dunshee de Abranches (1933), refaz o cenário político ludovicense, no

conturbado período da adesão à independência, sendo um dos principais focos desse livro a

atuação desses clubes revolucionários. Mas não só nesses clubes se pregavam a

insatisfação com a ordem imposta, como também em outros meios de sociabilização, como

algumas casas de famílias de renome da província, dentre elas a de Miguel Bruce, o qual

fora nomeado para fazer parte da Junta preparatória da primeira eleição de deputados.

Miguel Inácio dos Santos Freire Bruce nasceu no Maranhão, mas era de origem

escocesa. Foi educado na Inglaterra, o que lhe favoreceu junto ao Lord Cocharane, que o

elegeu, mais tarde, presidente da província, pois o manteria informado de tudo que

acontecia na província.

Não só Miguel Bruce tinha seu nome manchado nas listas dos mais

exasperados líderes absolutistas, como o de Frederico Magno, filho de Garcia de

Abranches, mas também dos seus dois filhos, José Vicente e Raymundo Bruce, acusados

de fazerem parte dos clubes revolucionários, ao lado de Frederico Magno67, responsáveis

66 Perceptível pelo seu discurso lusofóbico em várias obras onde este se faz presente, como por exemplo ‘A Setembrada: a revolução liberal de 1831 em Maranhão’ de Dunshee de Abranches, publicado em 1933. 67 Filho do redator do Jornal ‘O Censor’, Garcia de Abranches, e protagonista do romance ‘A Setembrada’ de Dunshee de Abranches.

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por discursos cada vez mais incendiários contra os lusos. Não foram raras as vezes em que

foram decretadas as prisões desses liberais exaltados, sobretudo em abril de 1823, mês em

que se registraram ampla movimentação dessas sociedades, conhecidas pela expressão da

época de ‘Abriladas’ (ABRANCHES, 1933).

Na noite de 12 para 13 de julho de 1823, no Clube Independente da Rua das

Cajazeiras, um dos clubes mais perigosos segundo a classificação do governo, os filhos de

Bruce provocaram uma agitada sessão, com discursos cada vez mais revoltados contra a

Junta, utilizando os argumentos de seu pai, que tinha tomado parte no Conselho Militar,

para enaltecer os ânimos dos independentes contra a ordem imposta68.

Com toda essa trajetória de reação à norma imposta, a eleição de Miguel Bruce

à presidência da província, provocou vários descontentamentos, sendo infrutífera as

tentativas da Junta, frente ao Lord Cocharane de voltar atrás de sua medida de impor Bruce

á presidência: “Nada receiem: o Bruce há de bem governá-los porque tem sangue inglês, é

um inglês de sangue, dizia o lord àqueles que ainda se manifestavam contra a presidência

de Bruce.” (ABRANCHES, 1933, p. 51).

Segundo Mathias Assunção (apud JANCSÓ, 2005, p. 352), o segundo

momento de definição das identidades políticas maranhenses é com a definição de Bruce

como representante máximo da administração da província. Essa escolha que coube ao

Lord Cocharane, visou a manutenção da província sob os poderes e interesses desse Lord

em terras brasileiras, que afigurava-se na imposição de uma pessoa que fosse de sua

confiança e o mantivesse informado de tudo que se passava na província.

Desde a chegada desse Almirante inglês em terras maranhenses, que

precipitara a queda do domínio português por essas bandas, ação que o levou a ser

chamado de “Lord Pacificador”(ABRANCHES, 1922, p. 27), o Maranhão se viu

mergulhado num conflito que tinha como “armas”, os interesses particulares, contribuindo

para aumentar as disputas internas(ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005, p. 355) e o espírito

de facção. Tudo isso ocasionado pelas reais intenções desse Almirante.

[...]infelizmente sua a acção libertadora que, a principio, se afigurara providencial e benéfica, não tardaria a se tornar nefasta e perturbadora. No Lord Pacificador, como chegou a ser acclamado pela gratidão popular, bem depressa se desmascararia o aventureiro audaz e sórdido a assaltar, à sombra dos seus canhões e da honrosa investidura, que recebera o Governo Imperial,

68 O teor desses argumentos de Miguel Bruce esta na Obra ‘A Setembrada a revolução liberal de 1831 em Maranhão’. (ABRANCHES, 1933, p. 42).

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os cofres públicos, carregando para a Inglaterra com todo o dinheiro nelle depositado. O Anjo Tutelar, para quem apellaram as famílias maranhenses, sequiosas de verem os seus lares restituídos á felicidade e á calma, subitamente se transformaria no negro verdugo a saccudir a população ainda por alguns annos na anarchia e na opressão. (ABRANCHES, 1922, p. 27).

Maria Esterlina Mello Pereira(1982), em sua dissertação de mestrado intitulada ‘O

Processo de independência e integração do Maranhão (1822-1828)’, nos dá subsídio, através

de suas análises sobre Cocharane, no terceiro capítulo chamado ‘A luta pela hegemonia

política no Maranhão independente – Guerra dos três B’, para concluirmos que o conflito de

interesses particulares no pós-independência na província maranhense, se deu ao mesmo

tempo, entre as divergências do Lord com os grupos antilusitanos e a intensificação de um

facciosismo dentro desses segmentos. As pretensões do Lord, que chegou a ser chamado de

‘Anjo Tutelar’, era a de benefício próprio, segundo nos coloca boa parte da historiografia

atual e a própria Maria Esterlina (1982).

A aproximação de Cocharane com o Governo central, constatado pela indicação

do seu nome para assumir o comando da nova Esquadra Imperial, pelos ministros Barbacena e

José Bonifácio, deu ao Lord possibilidade de, em terras brasileiras, saciar sua ânsia particular,

pois segundo Taunay (1922)69, já a estava praticando nas regiões chilenas (PEREIRA, 1982).

Num primeiro momento a Junta maranhense se mostrou hospitaleira com o Lord, exaltando

sua “sabedoria, prudência e amáveis maneiras”, em uma correspondência ao Imperador,

chegando mesmo desejar a imortalidade do Lord Inglês, com seu registro nos anais brasileiros

e do mundo (PEREIRA, 1982, p. 83). De fato, seu nome é bem lembrado, porém, mais pela

suas artimanhas políticas para o domínio do poder do que as supostas qualidades citadas pela

Junta, que viam nele e sua ligação com o poder central, uma forte possibilidade de atender as

aspirações particularistas dos seus pares. Não demorou para que essa Junta percebesse que o

Lord antes de estar do ‘lado’ dela, estaria do seu próprio, quando se fez valer do prestigio que

possuía perante o governo central para, logo após a independência do Maranhão, atender suas

propostas pessoais econômicas. Esterlina, citando Barbosa de Godois, que em sua clássica

obra, ‘História do Maranhão’, narra as arbitrariedades de Cocharane, como a tomada de posse

de todas as propriedades de portugueses que não residissem no Maranhão, de alguns escravos

e de 2970 arrobas de pólvora de propriedade da fazenda pública (GODOIS apud PEREIRA,

1982), nos leva a entender a mudança de opinião da Junta com relação à Cocharane. Logo a

Junta expressou seu descontentamento, pois o mesmo tinha sido designado “[...] não para

69 TAUNAY, Afonso de. Grandes vultos da independência brasileira. São Paulo, Rio de Janeiro: Companhia Melhoramentos, 1922.

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conquistar as províncias do norte, mas para ligá-las ao Imperador e ao sul independente”

(PEREIRA, 1982, p. 85). Mais que isso, a província maranhense não deveria ser objeto de

concretização dos anseios particulares do Lord, não sem somar aos da Junta, que tinha no

Bispo Nazaré um dos seus principais mentores, que numa medida de enfraquecer as bases do

Lord, patrocinou uma demissão em massa dos lusitanos ocupantes de cargos civis, militares e

eclesiásticos. Cocharane vendo os alicerces que o mantinham sustentado no poder

fragilizados, e baseando-se nas prerrogativas anunciadas em um oficio recebido do ministro

José Bonifácio, o qual lhe atribuía ‘ampla confiança de Sua Magestade Imperial’ para

empregar todos os meios para resolver qualquer dificuldade que porventura venha a acometer-

lhe. Assim se confidenciou ao primeiro Ministro José Bonifácio:

Peço que me seja permitido sugerir mui respeitosamente a Sua Magestade Imperial por intermédio de V. Exa. a opinião que eu tenho formado, de que será mui conducente a Paz e Prosperidade d’esta província que se envie para aqui alguma pessoa capaz e distinta para tomar a principal autoridade, pois, salvo o respeito devido aos indivíduos componentes da nova Junta e os que puderam ser escolhidos para as Juntas posteriores, eles não me parecem possuir nem os talentos, nem os requisitos necessários para o bom governo do Maranhão”(PEREIRA, 1982, p. 87-88).

Ao mesmo tempo essa Junta não deixava de noticiar ao Rio de Janeiro o estado de

coisas em que se encontrava a política da província maranhense, sendo de imediata

necessidade,

[...] para a consolidação da nova ordem de couza, que fossem demitidos todos os empregados públicos portugueses, afim de serem substituídos por filhos do paiz e principalmente por aquelles que mais dignos se mostrarão na prezente crize da pública estimação. (PEREIRA, 1982, p. 88).

Começa, então, um conflito de troca de acusações entre a Junta e o Lord. Este

acusava a Junta de designar sua clientela para os empregos públicos, ao invés dos ‘mais

dignos’ brasileiros e de impregnar a cidade com um grande número de tropas irregulares,

com o objetivo de satisfazer seus ressentimentos contra os portugueses da cidade, não

sendo possível impedir que o “espírito de facção, de cabala e intriga se desenvolvesse na

Província” (PEREIRA, 1982, p. 89). De certo, em pouco tempo o conflito que era

alavancado por um espírito antilusitano, ao menos como pretexto, passou a ceder lugar a

um conflito de interesses particulares entre os grupos dominantes da Província, por espaços

na incipiente Administração Pública. Assim, não tardou para que o governo instituído por

Cocharane, desse mostras dos seus particularimos, na medida em que contrariava os de

outras facções da sociedade, sendo isso responsável pelos anos de agitação em que decaiu

a província. Mas, mesmo com este estado de tensão que perdurava por toda a província,

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seu prestígio ainda estava na mente das pessoas, principalmente das “[...]setenta e oito

senhoras, pertencentes às famílias mais salientes da opposição[...]”, as quais

lhe(Cocharane) dirigiram um manifesto, a 9 de novembro de 1824, pedindo que

restabelecesse a paz e as liberdades individuas à muito perdidas, desde o início do governo

de Miguel Bruce, o qual ele mesmo instituíra. (ABRANCHES, 1922, p. 29).

O Governo foi assim composto: Miguel Bruce, Presidente; Tenente Coronel

Rodrigo Luís Salgado de Sá Moscoso; Lorenço de Castro Belfort e coronel José Joaquim

Vieira Belfort, eleitos pela capital; José Felix Pereira de Burgos; Fábio Gomes da Silva

Belfort, Antônio Burgos e Lamagner Galvão, eleitos pelo Itapecuru Mirim. A noite que

precedera a eleição desse governo fora de grande agitação em São Luís, os brucistas

tomaram o largo da Palácio para fazer frente a qualquer investida mais afoita dos

absolutistas70 e da câmara de São Luis, que considerou essa eleição uma “[...] cabala

intensa do grupo de Bruce para permanecer” (HOLANDA apud REIS, 1995, p. 150). Mas

não somente os que ficaram fora da máquina administrativa se revoltaram com o resultado

das urnas, como também os que dela se beneficiaram, a bem dizer, Luís Salgado de Sá

Moscoso, que empossado a 29 de dezembro de 1823, desejava sempre mais, em clara

demonstração de um espírito menos coletivo e mais individualista. Porém, o maior desses

descontentamentos, que de fato foi responsável pelas páginas mais tumultuosas, desse

período, foi o Coronel Burgos, eleito comandante das armas, mas ambos com a mesma

meta de alcançar a presidência da província (ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005).

[...] O coronel Burgos, que havia sido eleito para o Comando das Armas, juntamente com Bruce e seus companheiros de Junta, não ocultava o despeito por não lhe haver sido confiada a presidência desta. Tendo organizado o Governo Independente do Itapicuru, antes do da Capital, achava-se no direito de ser o chefe supremo da situação política da província. (ABRANCHES, 1933, p. 56).

A imposição de Bruce ao governo, decretou a guerra entre aqueles que viam

nesse cargo a melhor oportunidade de manter o seu status quo familiar, e alargamento de

suas riquezas e influencias na região. Não raras vezes, essas disputas acabavam

degenerando em atentados aos direitos individuais ou em ‘sangrentas pugnas armadas’. Em

pouco tempo

[...]já não eram apenas os chamados partidos portuguez e brazileiro, que se confrontavam. As ambições e os ódios iam retalhando as facções em grupos intolerante e desabusados, que se accusavam uns aos outros de republicanos, ou de

70 Para ter mais detalhes das agitações que precederam à tomada de posse da junta governativa de Bruce, ver a obra de Dunshee de Abranches, “A Setembrada”, p. 51-52

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traidores á independência ou de vendidos ao Governo de Lisboa. (ABRANCHES, 1922, p. 28).

Dentre essas facções, estavam também as de Costa Soares, Cônego Francisco

Mãe dos Homens, que mesmo trabalhando de uma forma mais discreta, tinham como

objetivo, além de destituir Bruce do poder, colocar alguém mais susceptível à influência do

partido corcunda.

Os interesses de Burgos foram de encontro aos de Cocharane ao colocar Bruce

na presidência. Não demorando este novo presidente, a colocar seus interesses acima dos

do Lord, pois a posição de destaque que assumira, começava a esboçar as suas benesses

individuais, que nem sempre eram de acordo com as do Lord inglês.

A partir daí começa, de fato, uma das vertente mais conturbada do confronto,

que na historiografia regional, ficou conhecido como a ‘Guerra dos três Bês’. Esse

confronto foi o extravasamento cada vez mais acirrado dos anseios das famílias mais

prestigiosas da principal área de plantation da província maranhense. As disputas dos

cargos de menor prestígio, aos de maior envergadura no cenário político maranhense, se

tornaram os principais motivos de contendas entre essas famílias mais preocupadas na

realização das suas principais vontades. Como já dito, de forma direta e indireta ao longo

deste trabalho, a disputa por riquezas e áreas de influências, sempre foi uma máxima nesta

província, desde a sua ocupação, mas ganhou um real destaque com a conjuntura da

independência, dando cor à disputa dessas famílias.

Sob a suspeita de que Burgos planejava dar um golpe para ter o poder civil da

província nas mãos, os brucistas começaram a seguir seus passos, a fim de neutralizar essa

manobra do então comandante das armas. Mas antes de Bruce, detentor do principal cargo

da província aspirado por Burgos, quem primeiro deveria ‘cair’ era o capitão Rodrigo

Salgado Moscoso, o qual sua destituição seria a porta de entrada para a presidência da

província. Moscoso era presidente da Câmara de São Luís e tio de Joaquim Vieira, a quem

o instituíra seu secretário, seguindo a mesma linha de nomeações por vínculo de sangue,

conforme práticas que vimos destacando durante esta pesquisa. “[...] A Câmara de São

Luís, tornara-se sempre o instrumento mais ou menos passivo de toda as aventuras pela

posse do poder local. E, caído Salgado, não haveria para Burgos mais sérios obstáculos a

vencer [...]” (ABRANCHES, 1933, p. 57).

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Ambos os lados utilizavam-se o máximo de suas influências, que outrora, os

colocaram nos postos em que se encontravam, como mais uma arma nesse embate de

poder. Bruce se valia da forte influência que tinha sobre os oficiais ingleses do lord,

enquanto Burgos tinha no Comendador Meirelles, seu principal alicerce. Ao que tudo

indica, nesse primeiro embate, a alçada de Bruce foi maior, e dentro das medidas

reacionárias contra o lado de Burgos, estavam a eleição de um novo comandante das

armas, para o lugar de Burgos e a expulsão do comendador Meirelles de São Luís

(ABRANCHES, 1933).

Dessa forma, as leis e a Constituição, que deveriam ser a mola propulsora de

qualquer sociedade, não estavam sendo seguidas devido “à um pequeno numero de

cidadão” que sob o pretexto de reforma do Estado, colocam-no em perigo como denuncia o

jornal Argos da Lei, o qual conclui dizendo:“Por esquecimento destes princípios, os

Maranhenses, e outros Brazileiros, tem mais de uma vez rompidos em guerras intestinais, e

o que mais é, por particulares interesses e por ódios de famílias” (Argos da Lei, 1825, nº.1,

p.1- 3).. De fato, foi o que realmente impulsionou Burgos a entrar nessa ‘guerra’ por

prestígio.

Sendo seu primeiro objetivo a destituição de Salgado, Burgos passando por

sobre a autoridade do governo civil, decreta a prisão de Salgado, o qual é preso, mas

consegue fugir e refugiar-se sob o ‘manto’ do Lord Cocharane, sendo este uma das balizas

a quais se assentaram os objetivos daqueles que queriam o poder na província, traduzido

no amplo poder naval. Isso explica o fato de Burgos procurar refugiar-se em Cocharane,

por causas das investidas reacionárias de Bruce, o qual, também procurou subterfúgio no

Lord para expulsar o coronel Burgos, que logo se faz livrar desses ‘hóspedes indesejados’,

dando sucesso a Bruce nessa primeira investida de Burgos sobre seu Governo.

O estado de coisas em que se encontrava a política maranhense, veio a ser

agraciada, para o lado de Bruce, pela tomada de rumo dos portos do Rio de Janeiro da

esquadra naval, juntamente com o Lord Cocharane. Logo, os planos de Bruce de aumentar

seu poder, alicerçados nos benefícios dos cargos político/administrativos aos membros de

sua facção, demitindo todos os que não eram simpáticos a o seu governo, puderam ser

efetivados. E mais ainda com o regresso do coronel Burgos do Rio de Janeiro, empossado

no cargo de Comandante das Armas, que fora destituído por Bruce, que através de decreto

imperial, nomeava Bruce como primeiro presidente da província. Sendo assim, Bruce

tratou de formar um grupo que fosse de sua máxima confiança, e colocou seus dois filhos

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aquinhoados nas melhores posições “[...] tendo sido um designado para deputado à

Constituinte do Império e, outro para administrador da Alfândega” (ABRANCHES, 1933,

p. 68) Contudo, essa dualidade de poder veio aquecer as disputas entres os Burgos e os

Bruces no Maranhão, ao passo que na cidade de São Luís vivia-se um dos mais

conturbados dias daquela época.

S. Luís viveu então dias de pânico e tristeza. Rara era a casa que se não fechava ao anoitecer. A residência de Bruce regorgitava de capangas. Corriam boatos terroristas. Afirmava-se que os portugueses ,desesperados com as perseguições sofridas, se preparavam para a desforra. Do interior chegavam as mais exageradas noticias de morticínios cruéis. ( ABRANCHES, 1933, p. 64).

Além desse estado de tensão por que passava a província maranhense, foram

registrados inúmeros conflitos que tinham o propósito de destituir Bruce do poder central

da Província, mas muitos deles infrutíferos, dada a capacidade política de Bruce, que

chegou a “[...] mandar que o proclamassem Presidente da Província, independentemente do

recebimento da carta imperial de sua nomeação” (ABRANCHES, 1922, p. 29). Essas

manobras políticas audazes para manter-se no poder, lhe proporcionaram várias alcunhas

relacionadas ao seu tino estrategista, chegando ser chamado de “Raposa Ruiva na frase

cáustica de Tezinho, quando o atacava no seu jornal Conciliador” (ABRANCHES, 1933, p.

53). Muitos desses golpes foram impetradas por Felix Burgos, ávido de tomar o seu lugar

na administração da província. Todas as ‘estratégias’ políticas, desde a proclamação de

boatos, até manobras, fraudes, golpes e calúnias, foram utilizados por esses contendores

para ter em suas mãos o poder da província. Alianças, dantes como benéficas para o

alcance dos altos postos administrativos, ou mesmo mantê-los, passaram a ser um entrave

para as realizações clientelistas dessas famílias. As relações passaram a ser mantidas e

firmadas se algum beneficio administrativo ou financeiro viesse com elas. Dentre elas, a

que mais era consenso entre os membros da elite, não importando de que família era, ou de

que facção fazia parte, era o de não envolver as classes subalternas nos conflitos políticos.

Contudo, era o prestígio, as vantagens econômicas, sociais e políticas que estavam em

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jogo, e que fizeram Bruce esquecer esse ‘acordo mudo’ entre as elites, quando este abriu as

portas das prisões e tentou formar um exército popular, para resistir a um grupo de oficiais

que queriam depô-lo. (ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005, p. 352)

Outra aliança desfeita foi a que Bruce mantinha com a ‘mão’ que lhe deu o

cargo de Presidente da Província, sendo por essa mesma mão do Marquês do Maranhão71,

pela qual foi deposto, pois este imbuído no jogo de interesses que norteava qualquer tipo

de relação, como já mencionado, “[...]começa a encher-se de suspeitas contra Bruce, com

cuja cumplicidade sem dúvida não tem esperanças de contar para os seus baixos projetos”,

pois já havia provado do ‘gosto’ do poder e formulado os seus próprios. Dessa forma,

Bruce passa a ser visto como um empecilho, para os planos de Cocharane, o qual usa de

toda a sua astúcia para tira-lo do poder sem agravar o já calamitoso estado de tensão que se

encontrava a província.

[...] Finge mesmo estar convencido de que os amigos e apaniguados do Presidente são os instigadores de algumas pequenas desordens, praticadas durante a noite em S. Luiz por grupo de exaltados, com o intuito de se desforrar de seus inimigos. Em summa, chega a mandar espalhar que, contra a sua própria autoridade, se urde uma audaciosa conspiração[...] (ABRANCHES, 1922, p. 30).

Fundamentado nesse manobra política, destitui Bruce, a 25 de dezembro de

1824, do cargo de presidente da província, que ele mesmo, há alguns anos, havia o

empossado.

Em carta enviada ‘Ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do

Império’ pelo então presidente interino Manuel Telles da Sylva Lobo (1825, p. 2-3) assim

se expressa sobre o ato:

Do impresso incluso, que tenho a honra de remetter, conhecerá V.E. o estado deplorável em que se achava esta infeliz província, quando á ela aportou a nau D. Pedro-primeiro, trazendo a seu bordo o márquez do Maranhão, que a salvou do naufrágio em que se ia submergir: igualmente conhecerá V.E. que foi suspenso do exercício do seu emprego o Presidente Miguel Inácio dos Santos Freire e Bruce, e que me acho nomeado pelo dicto Márquez Presidente interino desta província, até

71 Título dado ao Lord Cocharane.

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a decisão da Sua Magestade o Imperador, a quem tributo o mais profundo respeito e consideração. (Argos da Lei, 7 de jan. 1825, p. 2-3)

O ‘jogo de marionetes’, não parou com a deposição de Miguel Bruce da

Presidência, pois com a nomeação de Telles Lobo, que se “[...] entrega de corpo e alma

com a promessa de uma cadeira de deputado geral para servir de dócil instrumento a todas

as inconfessáveis ambições” (ABRANCHES, 1922, p. 30) do Lord Cocharane, dá

prosseguimento à guerra de interesses. Posteriormente com a indicação de Costa Barros,

pelo Imperador da Corte, contrariando o Lord, que depois de árduas correspondências de

repúdio a imposição de Costa Barros, é intimado a deixar a capital. Segundo, Mathias

Assunção, “a presidência de Bruce tornou-se o exemplo local dos horrores da ‘anarquia’

Seu nome virou sinônimo de insulto entre os conservadores que não paravam de denunciar

os excessos da ‘Brucinada’” ( 2005, p. 353).

Como em outras províncias, os interesses políticos combinaram-se com os

particulares, fossem eles de famílias, de classes ou de espaços microrregionais. “[...]

Muitas vezes, as posições políticas assumidas constituíam apenas o verniz que disfarçava

esses interesses[...]” (ASSUNÇÃO apud JANCSÓ, 2005, p. 353), o qual perdeu sua função

de vilipêndio, na conjuntura da independência em terras maranhenses, onde as ambições

políticas puderam ser vistas sem nenhum mascaramento, fato que, iria se tornar uma das

características da nossa política ainda nos dias de hoje.

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CONCLUSÃO

POLÍTICA NO MARANHÃO: REFLEXO DE UMA HISTÓRIA DE DOMINAÇÃO FACCIOSISTA/FAMILIAR

Qualquer pessoa que venha escrever sobre a trajetória política maranhense, se

deparará com uma característica, que vem desde a sua formação, e que ainda perdura nos dias

de hoje: a estreita relação do poder particular com a política. Numa melhor sintetização,

poderíamos definir essa característica como uma ‘familismo’ na política do estado. Apesar de

não ser uma característica apenas do Maranhão, essa “dominação sanguínea”, é nesse estado

que vemos nascer e se propagar, umas das suas vertentes mais fortes, que é a completa

suplantação dos valores coletivos, em prol de interesses financeiros particularistas, que vêem

nos cargos políticos mais um emprego, ou um ‘balcão de negócios’, do que propriamente uma

função administrativa, e sendo assim, para atender o interesse geral da sociedade. Esta, nunca

foi em toda a história do Brasil, um objetivo a ser perseguido, e sim os anseios de um pequeno

grupo detentores de maiores posses, e que se valia disso, em uma sociedade que desde a sua

formação, como vimos ao longo deste trabalho, ‘valora’ a pessoa pelo que ela tem, para obter

seus mais particulares interesses, sendo nas mãos de suas famílias, que deveriam se propagar

o poder, para dele continuar usufruindo dos seus benefícios e privilégios.

Vários autores, das mais diversas linhas teóricas, ao estudarem a formação da

sociedade brasileira, apontaram a família como grande protagonista da estruturação da vida

política brasileira. Dentre eles, temos um que merece especial destaque, mas que não nos

aprofundamos em seus trabalhos, por não estar diretamente ligado ao nosso tema, porém

citado com louvor, que é Gilberto Freyre. Na sua ‘Casa-Grande e Senzala’, esse autor mostra

como a esfera familiar, figurado no grande engenho, estendeu seus ‘braços’ à formação da

identidade brasileira. Sem contudo, discordar de Sérgio Buarque de Holanda, em artigo

publicado no jornal Folha da Manhã de 13 de novembro de 1951, terça feira, quando escreve:

Já às primeiras paginas da introdução que escreveu para o texto refundido e ampliado de ‘Sobrados e Mucambos’, o Sr. Gilberto Freyre volta a um tema que desde 1933, pelo menos, vem acompanhando de perto seus estudos históricos e sociais: o da unidade da formação do Brasil em torno do regime da economia patriarcal. Essa unidade sobrepujaria todas as diferenças e os aparentes contrastes locais para submetê-los a um mesmo denominador comum. De modo que, ao fixar o

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sistema patriarcal da colonização portuguesa, partindo das áreas em que terá alcançado uma das suas expressões extremas e melhor definidas - as áreas onde veio a imperar a monocultura latifundiaria amparada no braço escravo - ele pretende que suas interpretações sejam perfeitamente validas para o Brasil inteiro. E busca explicar as objeções opostas por aqueles que não logram distinguir o caráter transregional de suas pesquisas, sugerindo que tais críticos se orientam obstinadamente para o conteúdo e a substancia, não para a forma sociológica dos acontecimentos e dos fatos.72

Se a economia patriarcal, não influenciou, como um ‘denominador comum’ em

todas as localidades do Brasil, a ponto de ser tida como uma característica nacional, e que

de fato não foi, como propõem Sérgio Buarque de Holanda, no Maranhão esses meandros

frutificaram e se vêem presentes mesmo nas análises políticas mais recentes, realizados por

estudos históricos, ou mesmo pela divulgação da grande imprensa, que mostram os laços

familiares estruturando as redes de poder político. Como, por exemplo, nas seguintes

matérias:

Figura 1 – Jornal O Estado de São Paulo. 09/12/2001.

72 Disponível no site: http://almanaque.folha.uol.com.br/sergiobuarque_patriarcal2.htm

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Figura 2 – Jornal Folha de São Paulo. 08 abr. 1999.

Figura 3 – Jornal Folha de São Paulo. 03 out. 1998.

Figura 4 – Jornal O Estado do Maranhão. 12 mar. 2007.

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Fonte: <www.imirante.com>.

Em uma análise mais apressada, seria traduzido no que é hoje chamado de

‘nepotismo’. Mas na verdade, essa outra vertente de confusão do público com o privado, não

é uma prática recente na nossa vida política. Paulo Roberto Rios Ribeiro, em artigo intitulado

‘As Fronteiras mal demarcadas do Público e do Privado no Brasil: a prática do nepotismo na

administração pública brasileira’, nos mostra que a prática do nepotismo é tão antiga “quanto

a revelação da permanência de uma conduta predatória daqueles que dirigem o Estado

brasileiro, ao longo de séculos.” (RIBEIRO, 2006, p. 5).73.

Essa ‘conduta predatória’ se viu mais em evidência, no espaço político

maranhense, com as primeiras noticias da independência, proclamadas na capital do Império.

Foi a chance daqueles que viam na “empresa” do Estado, a possibilidade de maiores lucros,

frente ao declínio da agricultura, por que passavam. Então, começaram a ser travados amplos

embates na “arena” política, para ver quem seria o seu máximo dirigente. Cargos surgiam e

desapareciam, mandantes subiam e caíam, tudo nesse conturbado período de definição

política, que de certeza, a única que se tinha era a de que o poder dignificava o homem, ao

invés do trabalho, como diz o jargão popular.

Se esse carma passou durante os séculos, e veio ainda hoje ditar as regras de como

fazer política no Maranhão, seria difícil achar argumentos que o digam o contrário.

A formação da estrutura oligárquica no Maranhão tem sua gênese, nos chefes dos

clãs, segundo Flávio Reis (1992), em sua tese de mestrado pela Unicamp. De acordo com esse

autor, entre as décadas de 1820 e 1840 “[...] não existia propriamente um setor voltado para a

ocupação da política e o padrão de liderança ainda predominante era aquele típico da

dominação local, onde os chefes de clãs exerciam os postos de mando.” (REIS, 1992, p. 1).

A ‘Guerra dos Três Bês’ como ficou (pouco) conhecida pela historiografia

regional, representou o extremo do sentimento particularista que já vinha desde a formação da

sociedade maranhense. A independência veio tornar esse sentimento em ação, pois os clãs

percebiam no Estado emergente, uma propriedade que poderia ser utilizada a favor dos que

eram da sua clientela, desenvolvendo-se um traço na cultura política, que marcaria

profundamente a história política desse estado.

O Maranhão tem sua trajetória política marcada por essa luta facciosista, que vem

se perpetuando até os nossos dias. O surgimento dos partidos, por volta da década de 50 do

século XIX, (REIS, 1992, p.1) não veio acomodar os interesses equivalentes em campos

73 Disponível em: <http://www.outrostempos.uema.br/artigopaulo.htm>. Acesso em: 12 jan. 2007.

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opostos, pois logo surgiam divergências dentro de um mesmo partido, corroborando o

particularismo do seio maranhense.

A dinâmica passa a ser o surgimento de dissidências, motivadas por exclusões das chapas organizadas pelos lideres dos partidos políticos. Na raiz desse processo estavam duas razões. A primeira, mais geral, diz respeito às relações entre as pressões normais que uma nova geração de políticos exercia para ter acesso aos postos de mando e a necessidade do núcleo dirigente de manter esse processo sob controle. A segunda, refere-se ao aumento da competitividade intraoligárquica e as dificuldades dos partidos absorve-la nos marcos do sistema político vigente. (REIS, 1992, p. 4).

Dessa forma, tantos antes como agora, nos é podada qualquer possibilidade de se

pensar em um senso coletivo por parte de nossos dirigentes, especialmente os deste estado.

Não é a toa que já faz parte do senso comum maranhense, recheando as conversar de qualquer

roda de sociabilização, seja em ruas, escolas ou faculdades, se pensar que este estado é um

estado sem lei, pois estas seriam feitas para atender aos anseios e uma minoria detentora do

poder, camuflada com o a ‘máscara’ da democracia, enquanto que o bem estar da sociedade

em geral, o qual deveria ser o principal objetivo perseguido por quem se dispõem a ocupar um

cargo administrativo, é relegado a segundo plano. Dessa forma, a cidadania, que é um dos

pilastras do Estado Democrático de Direito, expresso na Constituição Federal, também

chamada de ‘Lei Superior’, continuará sendo traduzida na obrigação de votar. E a política

maranhense continuará sendo ‘assunto de família’, como visto no artigo de Mauro Chaves74,

no jornal Estado de São Paulo de 12 de janeiro de 2002, intitulado ‘Os Sarneys e o charme da

miséria’75.

74 Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural. 75 Reproduzido em anexo.

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JORNAIS

ARGOS DA LEI – 1825

CORREIO BRASILIENSE - 1808-1822

O CONCILIADOR DO MARANHÃO – 1821-1823

O CENSOR – 1825-1830

O FAROL MARANHENSE -1827

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ANEXO A

Os Sarneys e o Charme da Miséria

Mauro Chaves

Muitos podem estar se perguntando, com certa perplexidade: se, de todos os Estados brasileiros, o Maranhão é o que apresenta a situação social mais calamitosa, mantendo (desde 1985) o pior PIB per capita do Pais; se o Maranhão tem hoje a maior parcela da população (62,37%) vivendo abaixo da linha de miséria (menos de R$ 80 por pessoa, por mês), de acordo com o Mapa da Fome da Fundação Getúlio Vargas (FGV); se, nas duas gestões da governadora Roseana Sarney, a pobreza só cresceu no Maranhão, pois, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de famílias que lá vivem com até meio salário mínimo aumentou 37% - enquanto no resto do País diminuiu 22%; se, nas duas gestões da governadora Roseana Sarney, cresceram tanto a mortalidade infantil quanto a evasão escolar - segundo dados da mesma respeitada instituição, contidos no Censo 2000; se, segundo a última medição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, o Maranhão está no mesmo patamar de miséria de nações africanas como Gana e Congo - e basta lembrar que 39,8% das casas maranhenses não têm sequer banheiro ou sanitário; como se explica, então, o fato de a governadora Roseana Sarney alcançar um bom índice de aprovação em seu Estado? E como se explica o fato de, nos últimos 36 anos - isto é, desde 1965, quando José Sarney se elegeu governador do Maranhão -, o eleitorado maranhense ter escolhido, para o governo do Estado, uma seqüência ininterrupta de correligionários e amigos diletos de José Sarney (João Castelo Ribeiro Gonçalves, Oswaldo Nunes Freyre, Luiz Rocha, Epitácio Cafeteira, João Alberto, Édison Lobão e a filha Roseana Sarney), se nesse tempo todo o Maranhão, que no passado fora um marco cultural e histórico do País, entrou em franca decadência econômica, social e cultural? Decifremos o enigma. Antes de mais nada, a família Sarney exerce domínio absoluto sobre todo o sistema de comunicação do Maranhão. É dona do principal jornal - O Estado do Maranhão - e do principal sistema de rádio e televisão - o Sistema Mirante e o Mirante Sat, que recebem o sinal da Rede Globo. Os outros dois sistemas de TV mais importantes do Estado pertencem a correligionários e/ou diletíssimos aliados da família, como é o caso do dono da Difusora (que recebe o sinal do SBT), senador Édison Lobão, e do dono da TV Praia Grande (que recebe o sinal da Bandeirantes), deputado estadual Manuel Ribeiro, há oito anos presidente da Assembléia Legislativa do Maranhão (onde a governadora tem 36 dos 42 membros). Interagindo com o governo, num processo de publicidade institucional massificada, intensa e constante, os sistemas de comunicação social maranhense exercem, com perfeição, um duplo papel. Primeiro é o de manter um clima permanentemente festivo, com a divulgação diuturna das promoções governamentais, dentro da estratégia de programação político-espetacular denominada "Viva". Trata-se do seguinte: o governo maranhense organiza, permanentemente, festejos públicos em diferentes locais, com ampla concentração popular, tendo como pólo de atração artistas famosos, danças, farta venda de bebidas, etc. Batiza-se a grande festa de acordo com o nome do bairro ou da região escolhida: por exemplo, "Viva Renascença!", ou "Viva Maiobão!", ou "Viva Liberdade", ou "Viva Bairro de Fátima", ou "Viva Madre Deus", ou "Viva Anjo da Guarda". Certamente é uma iniciativa inspirada na velha prática dos imperadores romanos, denominada panem et circenses (embora sem panem, pelo que talvez mais apropriado fosse denominar cachaçorum et circenses). O segundo papel fundamental do integradíssimo sistema de comunicação controlado pela família Sarney consiste em abafar tanto fracassos administrativos quanto

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irregularidades apontadas ou investigadas - seja pelos Tribunais de Contas, pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público -, que acabam deixando de se tornar, pela absoluta desinformação popular, objeto de pressão por parte da opinião pública maranhense. Dentre os inúmeros exemplos de atuação dessa mordaça comunicológica, poderiamos mencionar o caso do Pólo de Confecções de Rosário, um ambicioso projeto de U$ 20 milhões - a cerca de 100 km de São Luís -, inaugurado pomposamente (com a presença de FHC), para gerar 4 mil empregos. Na verdade, tratava-se do conto-do-vigário de um chinês de Taiwan interessado em vender máquinas de costura - e que acabou preso em Manaus, por estelionato. E o que era para ser uma moderna cooperativa, alardeada pela governadora, se tornou uma minguada produção artesanal, que só emprega cerca de 400 pessoas, ganhando em torno de R$ 100 por mês (por falta de coisa melhor). Ou o caso da Usimar, projeto orçado em R$ 1,3 bilhão, que teve aprovação recorde (com o empenho total da governadora e de seu marido) na Sudam, levantou com rapidez inédita R$ 44 milhões e evaporou (pelo que o Ministério Público entrou com ação civil contra Roseana e Jorge Murad). Ou o caso Salangô, projeto de irrigação destinado à produção de arroz e cítricos, que recebeu cerca de R$ 60 milhões há anos, não produz nada e está eivado de graves irregularidades (inclusive superfaturamento), segundo o TCU. Ou o caso do projeto de despoluição da Lagoa de Jansen (centro de São Luís), que também gastou R$ 60 milhões (federais) para não despoluir nada, além das graves irregularidades (inclusive superfaturamento) apontadas pelo TCU. Ou o caso da "estrada fantasma" Paulo Ramos-Arame, onde foram gastos U$ 33 milhões em obras inexistentes. Ou o caso da duplicação do Projeto Italuis - R$300 milhões -, obra de saneamento também com graves irregularidades (inclusive superfaturamento) apontadas pelo TCU. Nada disso é trazido à discussão pública pelos veículos de comunicação maranhenses. E, convenhamos, uma população em que 39,8% de seus integrantes não podem nem dispor de chuveiros e privadas na própria residência, e para a qual não foram construídas novas salas de aula nos últimos sete anos, que tipo de espiríto crítico poderá ter desenvolvido - nas últimas três décadas e nos últimos sete anos - dentro da anestesiante festividade com que tem sido embromada a sua sensação de real (mesmo que charmosa) miséria?

CHAVES, Mauro. Os sarneys e o charme da miséria. Estado de São Paulo, 12 jan. 2002. Caderno Fisccal Notícia 2. Disponível em: <http://www.fisccal.org.br/noticias2.htm>. Acesso em: 25 junho de 2006

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ANEXO B

O discurso mais caprichado na carreira do orador Ulysses Guimarães foi proferido na tarde de 5 de outubro de 1988. O deputado fez o elogio da liberdade, condenou o autoritarismo e declarou seu ódio à ditadura: “Ódio e nojo”. Interrompido 53 vezes pelos aplausos que espocavam pelo plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, Ulysses lembrou figuras desaparecidas sob o antigo regime, como o deputado Rubens Paiva. Também falou em dignidade, democracia e justiça. No final, evocou a ajuda de Deus. Parlamentares de diferentes partidos – PFL, PSDB, PT – aplaudiram o peemedebista. No dia seguinte, o pronunciamento foi assunto de capa em todos os jornais brasileiros. Um trecho forneceu a manchete para Zero Hora: “Carta feita com amor e sem medo”. O discurso de Ulysses assinalava a promulgação da nova Constituição do Brasil, a sétima na história do país e a primeira pós-regime militar. Terra Notícias

A Carta Magna vinha sendo elaborada havia dois anos. A Constituição anterior, em vigor desde 1967, estava notoriamente defasada. Previa a existência de apenas dois partidos políticos, estabelecia eleições indiretas para a Presidência da República e já tivera dezenas de artigos alterados por emendas. O Congresso eleito em 15 de novembro de 1986 tomou posse no início do ano seguinte com os chamados “poderes constituintes”.

Sob a presidência do deputado Ulysses Guimarães começa a elaborar a nova Constituição em 1º de fevereiro de 1987. É a primeira Constituinte na história do país a aceitar emendas populares – que devem ser apresentadas por pelo menos três entidades associativas e assinadas por no mínimo 3 mil eleitores.

Promulgada em 5 de outubro de 1988, logo depois do discurso emocionado do Senhor Constituinte – título com o qual se celebrizou Ulysses –, a nova Constituição ampliou e fortaleceu a garantia de direitos individuais e liberdades públicas. Fixou a independência entre os Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), estabeleceu as eleições diretas e estendeu o voto aos analfabetos e aos jovens com mais de 16 e menos de 18 anos.

Na área do trabalho, a Carta limitou a jornada semanal a 44 horas, ampliou a licença-maternidade para 120 dias e criou a licença-paternidade, mais tarde regulamentada em cinco dias. Editada com 245 artigos e 70 disposições transitórias, a Constituição de 1988 está em vigor nos dias de hoje. Na prática, boa parte dos seus dispositivos ainda depende de regulamentação.

Quem foi

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Ulysses Silveira Guimarães (1916-1992), paulista de Rio Claro, participa de todos os momentos importantes da história do país a partir da década de 50. Em 1964 apóia o golpe militar, mas logo transforma-se em um dos maiores opositores do Regime Militar. Presidente do MDB, em 1974 apresenta-se como anticandidato à Presidência da República, na sucessão do general Medici.

Em 1984 torna-se uma das principais lideranças da campanha pelas diretas-já e passa a ser chamado de Senhor Diretas. Derrotada a emenda Dante de Oliveira, transforma-se em um dos principais articuladores da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Considerado um dos políticos mais hábeis e um dos mais respeitados da história do país, Ulysses Guimarães dirige os trabalhos do Congresso Constituinte. Em 1989, lança-se candidato à Presidência da República pelo PMDB, mas sua campanha não deslancha. Isolado por seus próprios pares, recebe apenas 4,5% dos votos no 1º turno das eleições.

Em 1992 participa das articulações do impeachment do presidente Fernando Collor e da campanha pela adoção do parlamentarismo no Brasil. Em 12 de outubro, aos 76 anos, morre em acidente de helicóptero na região de Parati, litoral sul do Rio de Janeiro, junto com sua mulher Mora, o ex-senador Severo Gomes e a mulher, Henriqueta. O corpo de Ulysses não é encontrado.

Fonte: <www.terra.com.br>, <www.conhecimentosgerais.com.br>.

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ANEXO C

"Governo Político do Brasil, Segudo Intentam as Córtes"

“Acháram os Portuguezes, que era um gravamen intolerável, serem governados por um rey, que residia a tanta distancia, como he o Brazil: a difficuldade de recursos he na verdade mui onerosa aos povos, e por mais de uma vez se sentio isso na practica, com bastante severidade. Agora he natural que os Brazilienses digam justamente o mesmo, que he gravamen intolerável serem governados por um rey que vive a tanta distancia delles como he Potugal.

A solução desta dificuldade estava , em adoptar tal forma de administração para o Reyno-Unido, que a necessidade desses recursos do Brazil ao Rey, em Portugal, fosse a menor possível, e simplesmente quanto bastasse para conservar a União. Esse era o ponto principal, em que deviam cuidar as Cortes; e nisso se devêra occupar o engenho de seus membros, se dessem a éssa união dos dous Reynos, a mesma importância, que nos lhe damos. Mas vejamos como tem obrado a Corte a esse respeito.

Antes de se cuidar no arranjo do Governo político no Brazil, antes de se abolirem os Governos militares despóticos do Brazil, havia em Lisboa o grito geral de se mandarem tropas para aquellas províncias, o que se continuou a fazer com vários pretextos. Mostramos já amplamente a impolítica desta medida, e he claro que se as Cortes tivessem logo ao principio derrotado aquelle colosso do despotismo, teria com isso feito a maior recommendação a favor do systema constitucional que tinha em seu poder fazer; porem, mandando tropas para sustentar o Governador Rego e outros que taes, deram a entender aos povos do Brazil, que o systema constitucional não era destinado a trazer-lhes os benefícios que Portugal se propunha.

Para desfazer ésta primeira impressão, fosse ella verdadeira fosse ella errada, éra preciso ao depois duplicados esforços, e as Cortes supuzzéram, que as instituições das Junctas Governativas provisórias remediaria o mal. A medida vinha já tarde, porque tinha de desfazer a primeira impressão desfavorável; mas alem disso veio acompanhada de uma circunstancia, que em vez de servir para apagar aquella primeira suspeita, era tendente a confirmalla: fallamos de ser o comandante das armas independente da Juncta Governativa.

Com effeito, se as tropas no Brazil são para manter a ordem e tranqüilidade interna do paiz, e não para o subjugar, as operações dessas tropas devem ser effectivas, quando e da forma que o Governo da província o julgar necessário; e por tanto o comandante da força armada deve ser sugeito ao governo político. Estes princípios são tam claros, que os sophismas empregados para sustentar a opinião opposta, longe de convencer ninguém, só servem de augmentar a suspeita, de que as Corte intentam outra coisa do que dizem.[...]”

Fonte: Correio Braziliense, n. 165, mar.1822. p. 269-270.