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Universidade Estadual do Oeste do Paraná-Unioeste Centro de Ciências Humanas e Sociais Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia ADRIANA MARIA DA SILVA A VIRTÙ E O BOM GOVERNO EM "O PRÍNCIPE", DE MAQUIAVEL. TOLEDO 2013

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Universidade Estadual do Oeste do Paraná-Unioeste

Centro de Ciências Humanas e Sociais

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia

ADRIANA MARIA DA SILVA

A VIRTÙ E O BOM GOVERNO EM "O PRÍNCIPE", DE

MAQUIAVEL.

TOLEDO

2013

ADRIANA MARIA DA SILVA

.

A VIRTÙ E O BOM GOVERNO EM "O PRÍNCIPE", DE

MAQUIAVEL.

Dissertação de mestrado apresentado ao

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,

como requisito final à obtenção do título de

Mestre em Filosofia, sob a orientação do

Prof. Dr. Jadir Antunes.

TOLEDO

2013

Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária

UNIOESTE/Campus de Toledo.

Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924

Silva, Adriana Maria da

S586v A virtù e o bom governo em “O Príncipe”, de Maquiavel /

Adriana Maria da Silva. -- Toledo, PR : [s. n.], 2013.

94 f.

Orientador: Prof. Dr. Jadir Antunes

Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Estadual

do Oeste do Paraná. Campus de Toledo. Centro de Ciências

Humanas e Sociais.

1. Maquiavel, Nicolau, 1469-1527. O Principe – Crítica e

interpretação 2. Ciência política 3. Filosofia política 4. Estado

moderno 5. Filosofia italiana 6. Poder (Filosofia) I. Antunes, Jadir,

Orient. II. T.

CDD 20. ed. 195

320.01

ADRIANA MARIA DA SILVA

A VIRTÙ E O BOM GOVERNO EM "O PRÍNCIPE", DE

MAQUIAVEL.

Dissertação de mestrado apresentado ao

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,

como requisito final à obtenção do título de

Mestre em Filosofia, sob a orientação do

Prof. Dr. Jadir Antunes.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________

Prof. Dr. Jadir Antunes - Orientador

Universidade Estadual do Oeste do Paraná -

UNIOESTE

____________________________________

Prof. Dr. José Luis Ames – Membro

Universidade Estadual do Oeste do Paraná -

UNIOESTE

____________________________________

Prof. Dr. José Antônio Martins - Membro

Universidade Estadual de Maringá – UEM

Toledo, 08 de fevereiro de 2013.

Aos meus pais, Maria e José,

pelos ensinamentos, apoio e

amor.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por todo amor, esforço e compreensão durante este período de pesquisa.

Ao meu irmão, Robson, pelo auxílio e suporte nas questões relacionadas à informática, e

pelo exemplo de superação que sempre levarei comigo.

Ao professor e orientador Dr. Jadir Antunes, por ter aceitado orientar esta dissertação de

maneira tão generosa e, acima de tudo, pela confiança em meu comprometimento em

finalizar esta pesquisa.

Expresso gratidão também à minha família, por tudo. Quero dizer a todos os meus amigos,

que me acompanharam na vida e na filosofia, vocês são interlocutores fundamentais das

motivações desta pesquisa e, muito mais, em especial Micheli Santos, Lílian Argentão,

Michelle Nardino, Beatriz Felicetti, Fabiane Libardi, Franciele Lopes, Patrícia Schneider,

Viviane Fernandes, Fabiana Benetti, Gerson Vasconcelos Luz, Jaqueline Roman, Lidiane

Silvestre e tantos outros que marcaram estes anos de estudos com sua amizade,

contribuição, alegria e seu tempo.

Ao professor Dr. José Luiz Ames sou grata por me instigar na graduação a meus primeiros

passos e interesse pelas Filosofia Política, em especial a motivação pelos estudos em

Maquiavel, e pela seriedade e dedicação que serve de exemplo a todos nós. Também pelos

muitos textos traduzidos e que me ajudaram na elaboração deste trabalho e por sempre

“tirar um texto cartola”.

Aos membros da banca de qualificação, Dr. José Luiz Ames e Dr. José Antônio Martins,

pelas valiosas dicas, sugestões, orientações e materiais disponibilizados.

Agradeço também ao programa de pós-graduação em Filosofia da UNIOESTE. À Capes

pelo breve, mas não menos importante, apoio financeiro prestado durante diferentes etapas

desta pesquisa.

A todos os professores do Mestrado em Filosofia da Unioeste, especialmente àqueles que

me ministraram aulas e que, de uma ou de outra forma, me ajudaram a pensar este

trabalho.

Aos meus colegas de turma, pelas conversas, discussões e sugestões.

Aos alunos do estágio de docência (3°ano noturno do Curso de Filosofia da UNIOESTE -

2012) e à professora Fabiana Benetti e ao professor Dr. Tarcilio Ciotta, pela oportunidade

de estar em sala de aula e perceber como é gratificante a profissão de ensinar.

À Natália, Edna e Maria, preciosas aliadas na Secretaria e Biblioteca do Mestrado,

agradeço pela incrível disponibilidade, competência e solicitude.

Em especial, meus agradecimentos à amizade nascida através da filosofia com Josete

Soboleski. Meu agradecimento especial ao seu companheirismo, atenção, pelas conversas

filosóficas, pelas alegrias e tristezas compartilhadas no decorrer desta pesquisa, sem

dúvidas a filosofia me trouxe dois presentes: o amor pela ciência política e uma amizade

magnífica.

Ao revisor Célio Escher, pelo valioso amparo, pelo apoio, incentivo e pela disponibilidade

frente à exiguidade do tempo.

Em especial, aos alunos do “Grupo de estudos em Maquiavel” do Colégio Estadual Prof.

Victorio de 2012 que com sua dedicação, empenho e comprometimento me estimularam a

seguir e finalizar esta pesquisa.

A todos aqueles amigos que, de forma direta ou indireta, contribuíram para que este sonho

fosse concretizado.

À Unioeste, pela acolhida e pela confiança depositada.

"A virtù é a resposta que o homem dá ao mundo, ou antes, à

constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se

oferece a ele, à sua virtù. Não há virtù sem fortuna nem fortuna

sem virtù; a integração entre elas indica uma harmonia entre o

homem e o mundo" (Hannah Arendt)

SILVA, Adriana Maria da. A virtù e o bom governo em “O Príncipe” de Maquiavel. 2013.

94 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,

Toledo, 2013.

RESUMO

Esta pesquisa tem como questão central compreender o significado aplicado por Maquiavel

ao termo virtù. O desafio deste trabalho é o de desvendar a causa verdadeira do sucesso das

atitudes políticas, ou seja, de revelar como o conceito virtù diz respeito ao comportamento

dos homens que lideram o corpo político, comportamento cujas qualidades determinam os

resultados positivos ou negativos da ação política de quem governa, independentemente de

suas virtudes pessoais ou religiosas. Encontrando resultados e extraindo lições,

ensinamentos e exemplos a serem seguidos, Maquiavel oferece perspectivas para os modos

de agir no cenário político. A virtù se constitui e se torna efetiva somente com a

participação da fortuna, por isso o objetivo de nossa exposição será o de analisar a relação

entre determinação e indeterminação existente entre esses dois polos que dominam a arte

de governar.

Palavras-chave: Maquiavel, virtù, fortuna, bom governo.

SILVA, Adriana Maria da. The virtù and good governance in “The Prince” in

Machavelli’s. 2013. 94 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual do

Oeste do Paraná, Toledo, 2013.

ABSTRACT

This research has as a central issue to comprehend the meaning applied by Maquiavelli to

the virtù’s term. The challenge of this work is to uncover the true cause of the success of

political attitudes, in other words, to reveal as a concept virtù relates to the behaviour of

men who lead the politics, a behaviour that its qualities determine the positive or negative

results of the politic actions to whom governs it, regardless of their personal or religious

virtues. Finding results and extracting lessons, knowledge and examples to be followed,

Maquiavelli offers perspectives to the ways of acting in the political scenery. Virtù

constitutes and becomes effective only with the fortune participation, that is why the

objective of our exposition will be to analyze the relashion between determination and

indetermination that exists between this two polos that dominate the art of governing.

Keywords: Maquiavelli, virtù, fortune, well-government.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................11

1 O CONCEITO DE VIRTÙ MAQUIAVELIANA........................................................16

1.1 A VIRTÙ E A RELIGIÃO ............................................................................................16

1.2 DA VIRTUDE À VIRTÙ..............................................................................................22

1.3 A IMITAÇÃO E O RESGATE DA VIRTÙ...................................................................30

1.4 CRITÉRIOS DE CONDUTA DO PRÍNCIPE DE VIRTÙ............................................34

1.4.1 A virtù do governante: ser e parecer ser......................................................................34

1.4.2 O papel político da religião enquanto Instrumento Regni...........................................41

1.4.3 A virtù do príncipe com boas armas e o povo.............................................................49

2 A VIRTÙ E OS MODELOS DA AÇÃO POLÍTICA ..................................................53

2.1 MOISÉS: A RELIGIÃO E POLÍTICA NO DESERTO................................................54

2.2 O CASO SAVONAROLA.............................................................................................58

2.3 CÉSAR BÓRGIA E AS AÇÕES APROPRIADAS......................................................64

3. A ACEPÇÃO DE FORTUNA .......................................................................................70

3.1. A MITOLOGIA DA FORTUNA...................................................................................70

3.2 O CONFRONTO ENTRE VIRTÙ E FORTUNA...........................................................78

CONSIDERAÇÃO FINAIS..............................................................................................85

REFERÊNCIAS.................................................................................................................90

11

INTRODUÇÃO

A ideia central desta pesquisa é compreender o significado aplicado por Maquiavel

ao termo virtù. Para tanto, uma investigação e análise criteriosa dos textos do pensador

florentino se fazem necessárias. O desafio deste nosso trabalho é o de desvendar a causa

verdadeira do sucesso das atitudes políticas, ou seja, de revelar como o conceito de virtù

diz respeito ao comportamento dos homens que lideram o corpo político, comportamento

cujas qualidades determinam os resultados positivos ou negativos da ação política de quem

governa, independentemente de suas virtudes pessoais ou religiosas. Encontrando

resultados e extraindo lições, ensinamentos e exemplos a serem seguidos, Maquiavel

oferece perspectivas para os modos de agir no cenário político. É necessário também

analisar, juntamente com termo virtù, o termo fortuna,1 pois é no campo da ação política

que observamos a composição e a oposição, o fortalecimento e o fundamento desses

conceitos.

Para Maquiavel, o que interessa são as ações capazes de conduzir o governante ao

êxito político, e ele sugere que aquelas que podem encaminhá-lo à conquista ou à

manutenção do poder dizem respeito à virtù. Não se referia ele exatamente ao sentido

corrente que o termo assumia em seu tempo, mas aos sentidos que assume a partir de suas

escritas. Para isso, Maquiavel apresenta e utiliza, em sua concepção de virtù, um novo

significado, rompendo, portanto, com a tradição e conceitos dos antigos.

Para fundamentar esta pesquisa podemos empreender a tarefa contando com o

apoio de uma extensa lista de intérpretes em Maquiavel, dentre eles Claude Lefort, Genaro

Sasso, Maurizio Viroli, Roberto Ridolfi, Quentin Skinner, Pocock, entre outros, juntamente

com a interpretação dos textos maquiavelianos propriamente dita. A partir desse esforço

interpretativo, poderemos encontrar evidências que comprovam a hipótese do uso do termo

virtù como alicerce no plano das ações políticas e na arte de governar.

A virtù, tal como veremos, assume concepções variadas e distintas, mas, no que diz

respeito aos principais objetivos do governante, tende a se referir às questões políticas e

militares, sentidos esses que se tornam o motivo desta pesquisa. Afirma-se isso porque é no

campo da virtù que o Príncipe pode-se tornar um sujeito de vitórias ou de fracassos diante

de situações inusitadas, que frequentemente se apresentam ao ator político, pois é natural,

1 Os termos virtù e fortuna, por serem fundamentais ao pensamento de Maquiavel, serão conservados em sua

grafia original e em itálico. A tradução muitas vezes adultera esses conceitos substituindo-os por virtude ou

sorte fazendo-os perder seu sentido bem mais amplo.

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no palco da política, os homens se depararem com a imprevisibilidade, esta descrita por

Maquiavel como sendo os percalços da fortuna. Investigar a relação da virtù do governante

e seu modo de agir, especificamente os modos de atuar perante determinadas ações,

capazes de conduzi-lo ao sucesso ou ao fracasso, são os principais objetivos desta

pesquisa.

Para melhor compreender a inteligibilidade da virtù por parte daquele que governa

pretendemos abordar, no primeiro capítulo, questões relevantes para esta pesquisa, pois, ao

apresentar o termo virtù, Maquiavel rompe com valores e seus significados da tradição

cristã e religiosa, fazendo com que a ideia de virtù se modifique e passe a carregar sentidos

alterados. No primeiro momento deste trabalho abordaremos a diferenciação do conceito

de virtude na tradição religiosa e os novos significados adquiridos propostos por

Maquiavel. Acreditamos que essa abordagem nos ajudará a compreender melhor a

especificidade que a virtù assume em seu pensamento.

No decorrer da obra "O Príncipe", Maquiavel discorre sobre as diferentes

habilidades de governar, apresentando, assim, modelos e formas de governar que se tornam

relevantes para a compreensão deste trabalho. O autor também se remete aos exemplos da

fronteira do mundo antigo. Para tanto, procura resgatar o passado não só como fonte de

inspiração, mas também como fonte de conhecimento do agir, e é através desse resgate e

dessa imitação aos antigos que o autor busca conhecer fatos, atuações e condutas que

contribuam na orientação das ações presentes e na possibilidade de evitar erros,

promovendo assim a glória de um bom governo.

Ao realizar o rompimento entre os termos virtù e virtudes cristãs, Maquiavel

apresenta uma participação relevante da religião para a política. O autor faz uma

abordagem da religião e não trata do assunto dentro de valores teológicos, mas com uma

grande relevância e importante instrumento para a formação e manutenção de uma vida

coletiva em favorecimento a cidade. Para Maquiavel, a religião ensina a reconhecer e a

respeitar as regras políticas a partir do mandamento religioso e participa na condução dos

cidadãos ao patriotismo. A religião como instrumentum regini a serviço do governante

desempenha uma função normativa e educadora, além de que estabelece hierarquias e

ordenamentos organizacionais.

Maquiavel considera o uso da força tomando por pressuposto a questão da

representação. Seus textos sugerem, mediante exemplos contemporâneos, a necessidade de

uma imagem do governante no âmbito da política da aparência. Assim, portanto,

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abordaremos a questão da aparência como um complemento de habilidade dos homens que

possuem virtù, pois, para Maquiavel, a simulação caracteriza o âmbito da política e é a

partir dela que as ações dos líderes são julgadas. A imagem é construída para e por meio da

política. Sendo assim, o governante pode ou não ser bem sucedido quanto aos efeitos que

ele deseja que suas ações tenham, e essa correspondência tende a se efetivar na mesma

proporção da habilidade do governante de lidar com as questões relativas à aparência, ou

seja, é proporcional a existência de capacidades de sua virtù.

Outra abordagem é a questão das armas em O Príncipe de Maquiavel, pois para o

pensador florentino as armas também são consideradas como instrumento necessário nas

realizações das ações políticas. Desta forma, a importância das armas é ressaltada como

uma necessidade de garantia de uma ação eficaz e de bons resultados políticos. A força

organizada dentro de uma organização militar eficiente é fundamental para fornecer poder

necessário para garantir a proteção dos súditos e a existência territorial. Em O Príncipe,

Maquiavel apresenta as boas armas como um dos fundamentos indispensáveis para garantir

qualidade para todos os principados, além de ser indicado como de proporcionar segurança

para o dirigente e garantir o valor efetivo para as leis instauradas dentro de um território.

Em um segundo momento da pesquisa, e dando sequência à ideia central deste

trabalho, que é a compreensão da especificidade do termo virtù, trabalharemos alguns

modelos e não-modelos de dirigentes apresentados por Maquiavel como ações e

experiências que foram consideradas referências de erros ou acertos de homens que

estiveram na liderança política e alcançaram, de certa forma, alguns exemplos de ações de

virtù. Na análise desses personagens históricos, selecionamos para esta pesquisa três

exemplos para complementar o pensamento central deste trabalho. O primeiro personagem

apresentado e referenciado por Maquiavel em sua obra é a figura de Moisés, que,

considerado pelo autor um exemplo de líder digno de imitação, alcançou, através da

habilidade de governar, favorecimentos aos seus comandados, e soube utilizar a religião

juntamente com a política para ordenar seu povo, mas que também teve agilidade de se

utilizar da força e armas no momento apropriado. Outro caso apresentado pelo florentino

em sua obra é o caso de Savonarola, personagem político contemporâneo de Maquiavel,

frade tomista, profeta e ortodoxo, que ganhou poder pelos discursos religiosos de cunho

político. No caso de Savonarola, no entanto, quando apontada à necessidade de se utilizar

de armas e forças, ele não o fez, perdendo assim a confiança de sua multidão, pois não

dispunha de meios para manter firme sua ordem.

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Outra lição registrada pelo pensador florentino é o caso de César Bórgia, em

relação ao qual Maquiavel relata a trajetória e a habilidade de lidar com as conquistas

territoriais através de sua virtù, por isso realizou conquistas institucionais e implantou

novas ordens em lugares em que não havia mais meios outros senão os das armas e da

força para conseguir o intento. Utilizou-se da coragem e da destreza para fundar e

implantar a legitimação de novas ordens em suas ações nas lideranças. No capítulo VII de

"O Príncipe", Maquiavel descreve ações desse condutor e elogia o emprego da força

extrema utilizada por Bórgia no momento necessário. Nessas escritas, o autor parece

reconhecer a necessidade do uso da força empregada por determinados comandos, e parece

apontá-la como determinante para as conquistas e manutenção do poder. Notamos,

portanto, em seus registros, que a virtù do príncipe depende da elaboração e da disposição

de armas para a proteção e a manutenção do poder e da conservação da boa ordem.

A manutenção da capacidade de influência nas atuações políticas requer a

utilização de um conjunto de estratégias, de técnicas e de ações amplas com grandes

efeitos para dominar a inclinação dos indivíduos a agirem por seus interesses peculiares.

Por isso, depende da vitù do dirigente a aplicação dos meios adequados à normalização das

ações constrangedoras, criadas pelos próprios cidadãos na esfera do campo político.

Mesmo assim, no entanto, por maior que seja, a virtù não controla plenamente todos os

fatores casuais dos espaços coletivos. Há sempre um meio de indecisões que Maquiavel

apresenta sob a noção de fortuna. Diante de uma ação política que se desenrola num campo

marcado pela incerteza, exigem-se daquele que governa ações necessárias à sua

preservação. O governante deverá ter habilidades para lidar com as variações das

circunstâncias. Então nos deparamos com o questionamento de como Maquiavel resolve a

relação de oposição e composição entre esses dois polos e quais são suas estratégias e

técnicas na manutenção do poder?

Diante disso, para Maquiavel o desafio teórico de um homem de virtù é a

prevenção e precaução das ações da fortuna, levando em conta os desafios que também

determinam os desdobramentos e as conjunções de fatores. Maquiavel exibe, em sua obra,

possibilidade de análise e reflexões sobre ações assertivas construídas através dos

dirigentes do passado. As principais constatações de Maquiavel referem-se aos sucessos

obtidos pelos antigos na arte de governar. O secretário florentino elege os romanos como

modelo de análise exatamente por terem sido capazes de tirar proveito dos conflitos

internos e afrontar os externos, freando, assim, a impetuosa fortuna.

15

A fortuna não é puramente negativa, pois é no bloqueio de suas ameaças que se

desenvolve a virtù. A manifestação da fortuna desperta possibilidades para a ação humana

e é vislumbrando as ocasiões e aproveitando-se delas que se pode vencer a adversidade.

Como a fortuna pode devastar tudo com sua fúria, ela também dá chances para os

dirigentes mostrarem sua grandeza. Maquiavel declara que a oportunidade que o homem

de virtù tem para construir sua grandeza se realiza através da fortuna.

Diz ainda Maquiavel que, de fato, a maioria dos que chegaram à grandeza e dos que

ficaram pelo caminho seguiu a direção imposta pela fortuna, que lhes deu ou retirou

oportunidades de mostrar o seu valor. Quando a fortuna escolhe um homem para grandes

realizações, então ela se detém em um homem de virtù que percebe com rapidez as

oportunidades que lhe são oferecidas. Desse modo, perante os obstáculos da fortuna, os

homens não devem desanimar ou temê-la. Os homens não podem perder a esperança ou se

entregar, mesmo nas mais diversas circunstâncias. A coação dessa aparente fatalidade é a

provação da virtú, pois quanto menos existir em um homem, mais facilmente ele será

destruído. A ausência da virtù significa o infortúnio e quanto mais os homens se mostrarem

fracos e covardes, mais a fortuna manifesta sua força e seu domínio. É a partir desse

confronto que o pensador florentino elabora os modelos de homens de virtù que se

destacaram ao enfrentarem a inclemência da fortuna. Quanto maior e mais adequada for

essa capacidade, maior será o poder de ação e menor será a influência da fortuna.

Prestando atenção aos muitos capítulos da obra "O Príncipe", capítulos nos quais

Maquiavel nos fala desses dois conceitos, acabamos convencidos de que a melhor maneira

de compreendê-los é tomá-los juntos, pois vitória e derrota estão sempre no plano da

harmonia entre virtù e fortuna e em uma secreta habilidade no curso dos acontecimentos da

arte de governar.

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1 O CONCEITO DE VIRTÙ MAQUIAVELIANA

Considerado um dos pais da filosofia política moderna por tentar desligar a política

do poder do domínio da moral (ética) e da religião (instituição), Maquiavel converteu a

política em um campo de estudo autônomo. Sendo assim, a questão da ação do governante

no âmbito público parece percorrer toda a obra de Maquiavel. O autor recorre a

acontecimentos e a experiências vivenciadas pelos homens ao longo dos tempos. Sendo

assim, parece-nos ser um ponto de partida significativo, no estudo da definição de virtù2,

considerar esse desvencilhamento da tradição antiga, especificamente o desvencilhamento

dos estudos políticos em relação à religião. O conceito de virtù em Maquiavel tem uma

conotação política, no qual indica virilidade, no sentido de que os indivíduos com tal

qualidade são definidos fundamentalmente pela capacidade de impor sua vontade em

situações de grande dificuldade, por meio de uma combinação de natureza humana, força e

cálculo, ou seja, a virtù é empregada para indicar todo aquele complexo de aptidões que

permite a determinados homens se destacarem sobre a mediocridade geral e impor às

coisas o rumo por eles decidido. O objeto de estudo deixa de ser as ações que atuam

perante o bem ou o mal moralmente e que se sustentam dentro de um fundamento divino,

para fundamentar-se na ação política por ela mesma. Os dirigentes e suas ações políticas

deixam de se ocupar com julgamentos e condutas vinculadas a preocupações religiosas e

passam a seguir um pensamento de relações com ele mesmo, ou seja, a política e o poder

pensados em seu próprio espaço.

1.1 A VIRTÙ E A RELIGIÃO

Ao começarmos o estudo da virtù e sua relação com o pensamento de Maquiavel,

de pronto nos deparamos com uma questão relevante e que contribuiu, na opinião do

pensador florentino, para explicitar a relação dos conceitos de virtù e de virtude. Trata-se

da questão da religião e, em específico, do tema relacionado ao cristianismo. Maquiavel,

2 Ao diferenciar virtù de virtudes cristãs, Maquiavel deixa clara sua discordância com a tradição do

pensamento político anterior a ele, passaremos a utilizar o termo virtù em itálico, para diferenciar o

conceito e seu rompimento com o conhecimento existente no passado e da época.

17

no decorrer de suas obras, expressa grandes críticas ao cristianismo e, em especial, à Igreja

Católica Romana.

O ambiente que Maquiavel constata e critica na Itália de seu tempo é exatamente a

corrupção e os maus exemplos da Igreja, maus exemplos que extinguiram toda devoção e

toda religião. Entre outras coisas, critica o enfraquecimento dos bons costumes e o

descrédito das leis junto ao povo, e, por último, a degeneração do país em virtude do

espírito religioso do povo. Para Maquiavel, a diferença essencial entre a educação antiga e

a atual deve ser buscada essencialmente no fundamento da distinção entre a religião antiga,

a pagã, e a atual, a cristã, pois:

Pensando, portanto, nas razões de, naqueles tempos antigos, os povos serem mais

amantes da liberdade do que nestes, concluo que isso se deve à mesma razão que

torna os homens menos fortes agora, qual seja, a diversidade que há entre a nossa

educação e a antiga, fundada na diversidade que há entre a nossa religião e a

antiga. ( Discursos, II, 2, p. 189)

Ao tratarmos da virtù e sua relação com a virtude esbarramos necessariamente na

relação entre Maquiavel e a religião, pois o conceito de virtude praticamente se define e se

concretiza no terreno cristão e, mais especificamente, no catolicismo e na Igreja. Desse

modo, contextualizar o cristianismo no tempo de Maquiavel é necessário para que

possamos analisar a situação sob a qual ele viveu e escreveu suas obras, e, posteriormente,

analisarmos o conceito de virtude em sua época.

O problema é que Maquiavel não analisa a religião como uma dificuldade própria

do âmbito religioso, mas, sim, a religião que eleva valores como o desdém pelas coisas do

mundo, a punição numa esfera pós-morte e o agir político, isso influencia de uma forma

negativa no agir do campo da política. Pois, além da elevação de valores errados, a Igreja

sustenta a crença de uma virtude puríssima que poderia ser alcançada a partir da

abstinência aos pecados do mundo terreno e real, ou seja, o afastamento dos indivíduos do

mundo das coisas, passando a viver e tomar como parâmetro o mundo divino. Sobre este

papel negativo que a Igreja exerce na política de seu tempo, Maquiavel nos diz:

[...] quando Valentino – nome popular de César Bórgia, filho do Papa Alexandre

– ocupava a Romanha, dizendo-me ele que os italianos não entendiam de guerra,

expliquei-lhe que os franceses não entendiam de Estado, pois se entendessem

não teriam consentido à Igreja tamanha grandeza. (O príncipe, III, p. 16)

18

De acordo com sua afirmação, observamos o desprezo de Maquiavel pela maneira

como a Igreja exercia seu poder sobre as questões do Estado, pois todo o desejo de

unificação da Itália de viver um Estado forte e poderoso ficava em segundo plano devido a

uma religião que visava um mundo divino imaginário.

Temos, portanto, de um lado, a religião antiga e seus valores que condizem com os

interesses da república e, de outro, a Igreja com seu clero corrupto e seus valores

intransigentes. A religião difundida em seu tempo era o que havia de mais perigoso não só

na política, mas até em si própria, pois esta, além de não cumprir com a pregação de seus

valores cívicos também se tornava pernicioso para a vida política, no sentido de não

estimular a participação dos cidadãos vida política. A Igreja havia invertido o papel da

religião. Contaminada, ela educava os cidadãos para serem homens medrosos e covardes,

ao contrário da religião antiga que, para Maquiavel, tem um papel fundamental. Pois, o que

tanto incomoda o pensador florentino não é a religião educadora que se empenha para

tornar os homens “melhores” e sim a Igreja corrupta de seu tempo, que fazia uso disso para

as satisfações individuais de seus chefes de Igreja.

A diferença entre as religiões antiga e cristã são claras. O paganismo agia no sentido

de tornar os homens fortes e tenazes, tornando-os patriotas e cheios de ferocidade.

Direcionando o amor a este mundo, tornava-se fácil a dedicação ao bem comum e o culto à

pátria. O cristianismo, ao contrário dessa atitude, inspirava aos homens o desprezo pelo

mundo terreno, trocando-o pela busca pela glória celeste, criando “[...] nos homens uma

dupla cidadania que os dilacerava e os fazia perder as virtudes do mundo”, 3

Porque a nossa religião, por mostrar a verdade e o verdadeiro caminho, leva-nos

a estimar menos as honras mundanas, motivo por que os gentios, que as

estimavam muito e viam nelas o sumo bem, eram mais ferozes em suas ações

[...] A religião antiga, além disso, só beatificava homens que se cobrissem de

glória mundana, tais como os comandantes de exércitos e os príncipes de

repúblicas. A nossa religião tem glorificado os homens mais humildes e

contemplativos do que os ativos. Além disso, vê como sumo bem a humildade, a

abjeção e o desprezo pelas coisas humanas, enquanto para a outra o bem estava

na grandeza de ânimo, na força do corpo e em todas as coisas capazes de tornar

fortes os homens. (Discursos, II, 2, p. 190 )

A cerimônia dos cristãos é contemplativa e defende uma vida humilde e simples,

alheia à relação que os homens vivem no dia a dia. A única coragem que o cristianismo

estimula nos homens é torná-los capazes de suportar os sofrimentos e as desventuras:

3 Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 214.

19

E, se nossa religião exige que tenhamos força é mais para suportar a força de

certas ações do que para realizá-las. Esse modo de viver, portanto, parece que

enfraqueceu o mundo, que se tornou presa dos homens celerados; e estes podem

manejá-lo com segurança, ao verem que o comum dos homens, para ir ao

Paraíso, pensa mais em suportar as suas ofensas que em vingar-se. (Discursos,

II,2, p. 190)

Nesse sentido, a força e a grandeza do Estado dependem da personalidade, da força

de seus cidadãos, e da maneira de como as religiões constituem o caráter, o sentimento, a

devoção e o amor dedicado ao bem comum da pátria. Maquiavel apresenta que a diferença

de religião está na capacidade de tornar os homens corajosos e plenos de vigor, com força

e decisão para atuarem num plano que é no mundo terreno e extremamente ligado aos fatos

do Estado, que é a política. É com os requisitos da força e da coragem que se pode alcançar

a glória e a honra mundanas. Nas palavras de Ames (2002), Maquiavel desloca o foco da

discussão do ângulo teológico para o político, afirmando que toda religião, inclusive a

cristã, deve ser julgada em relação a um fim que não é especificamente religioso, mas

político, a dedicação ao bem comum, cuja forma mais elevada é o amor à pátria.4

Ocorre que o cristianismo não entendia e não entende dessa forma. Suas cerimônias

conduziam os fiéis por caminhos diversos daquele da glória e da vigorosidade humana,

alimentando forças apenas para suportar os males infringidos pelo mundo, com humildade

e espírito de submissão. As religiões são de procedência humana e não divina, como

pretende ser o cristianismo e, por esse motivo, seguem, como todas as coisas humanas, a

lei inelutável da geração e da corrupção.5 Por isso, Maquiavel tece suas críticas à Igreja

cristã, especificamente na maneira de como o papado se comportou diante dos princípios

fundadores do cristianismo, na incoerência das ações dos bispos e religiosos em geral em

relação à doutrina a que estão submetidos pela religião que professam. Os maus exemplos

daqueles, em última instância, desautorizam o que eles próprios defendem nas pregações e

ensinamentos.

No primeiro livro dos Discursos, Maquiavel expõe sua análise para a distinção

entre a religião e a Igreja católica e afirma:

Se a religião se tivesse podido manter na república cristã tal como o seu divino

fundador a estabelecera, os Estados teriam sido bem mais felizes. Contudo, a

religião decaiu muito. Temos a prova mais marcante desta decadência no fato de

que os povos mais próximos da Igreja Romana, a capital de nossa religião, são

justamente os menos religiosos. Se examinarmos o espírito primitivo da religião,

4 Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 215.

5 Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 221.

20

observando como a prática atual dela se afasta, concluiríamos, sem dúvida, que

chegamos ao momento de sua ruína e do seu castigo. (Discursos, I, 13, p. 56)

Assim, a religião difundida em seu tempo era o que havia de mais prejudicial não

só à política, mas até a si mesma. A Igreja inverteu o papel da religião. Prejudicada, tratava

de tornar os homens medrosos, covardes e corruptos, ou seja, deseducando os cidadãos. É

preciso manter a integridade da instituição religiosa. Sendo assim, a danificação que nela

se instaurou só contribuiu para afastar os fiéis e para diminuir sua crença.

A religião tem um peso muito grande para Maquiavel no que diz respeito à

transformação dos valores de um povo e, por causa disso, desempenha influência direta na

resolução do Estado. Por todos esses fatores, Maquiavel afirma que o governante deve se

comprometer para conservar a religião de seus fundadores, para manter a conservação e a

permanência em seu governo.

Nas palavras de Lefort (1972), Maquiavel escrevia sem piedade contra a Igreja

católica, acusando-a de ter rompido os costumes do povo e de ter feito a desgraça da Itália

ao impedir a conquista de sua unidade:

Sem dúvida é notado de passagem que, se a religião se tivesse mantido, nos

começos da República cristã, seguindo os princípios de seu fundador, os Estados

modernos seriam mais unidos e mais felizes; mas a ironia da observação não

poderia escapar, tanto que ele está seguro que sua função é apreciada em termos

de eficácia política. (LEFORT, 1979, p. 492)

Essa exaltação devastadora do cristianismo é ainda mais condenável, porque se

nutre do descrédito lançado sobre esse mundo e da vã esperança do além. A crítica mais

forte é dirigida particularmente aos seus dirigentes, pois eles, sob o pretexto de travar uma

guerra santa, praticavam as piores atrocidades com o único objetivo de alimentar a

ambição política de seu domínio. Maquiavel opõe-se à religião dos Modernos fundada

sobre o poder de uma Igreja à qual interessam unicamente seus interesses privados e cuja

política consiste, consequentemente, em dividir os Estados e em enfraquecê-los.6

A crítica que Maquiavel dirige à Igreja católica não é um ataque ao cristianismo em

si, no entanto os líderes de sua época não representavam o poder religioso como deveria

ser surgindo assim, preocupações particulares e isoladas das participações políticas. O que

ocorre é que, para ele, a religião católica perdeu a condição de exercer as funções políticas

relacionadas ao auxílio na manutenção de uma vida de virtù, na garantia da unidade do

6 Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel, p. 492.

21

povo, na disciplina social e no cultivo dos bons costumes. A Igreja católica romana perdeu

a condição de servir de modelo de virtù política e de exemplaridade.

Sendo assim, a religião é de extrema importância para Maquiavel. Em momento

algum em suas obras subestima seu valor, pois a religião é de extrema seriedade, e é nela

que também se podem fundar bons costumes, com os quais ela exerce um forte poder de

coerção. Nos “Discursos”, Maquiavel nos diz, por exemplo, que os povos romanos

respeitavam seus juramentos mais ainda que as leis, convencidos que estavam sobre a

potência dos deuses e que esta é maior do que a dos homens. Percebemos que a religião

tem seu papel fundamental para a constituição de virtudes no indivíduo, porém é necessário

analisarmos se essas virtudes tornam um cidadão detentor de aptidões e habilidades

necessárias para a execução das ações dentro da esfera política.7

Assim, portanto, ao desconsiderar as habilidades dos homens de virtudes, o

pensador florentino constrói um novo termo para reafirmar a necessidade de um cidadão

com mais capacidades e com maiores ações necessárias para enfrentar o campo político, e é

então que Maquiavel apresenta o termo virtù. O termo novo é apresentado para se

contrapor aos significados antigos e religiosos de virtude.

O conceito de virtù maquiaveliano nos apresenta várias dificuldades, isso devido à

grande variedade de sentidos com que ele se apresenta. Não apenas Maquiavel, mas

também seus contemporâneos utilizam o termo virtù em mais de uma acepção. Ao

debruçar-se sobre essa questão, Price (1973) nos diz que:

[...] o modo como o termo virtù é usado tanto por Maquiavel quanto por seus

contemporâneos é informal e pouco técnico; grande parte das palavras usadas

por Maquiavel são cotidianas e ele raramente define ou explica de forma

cuidadosa os termos que usa. Isso torna o estudo de palavras como virtù não

somente necessário mas também muito complicado. 8

Nesse sentido, Mansfield (1996) também manifesta sua posição em relação ao

termo virtù, afirmando: “[...] não é suficiente dizer que Maquiavel usa a palavra virtù em

vários sentidos; ele faz uso dela em sentidos contraditórios como se a virtù incluísse e

excluísse ações más”.9

De fato, o termo virtù utilizado por Maquiavel, termo que ele próprio evita traduzir

e mantém no italiano para não confundi-lo com as virtudes cristãs, diz respeito à

7 Cf. MAQUIAVEL, Discursos, I, 10, p. 49. 8 PRICE, Russel. The senses of virtú Machiavelli, p. 315.

9 MANSFIELD, Harvey C. Machiavelli´s virtue, I, p. 7.

22

capacidade do agente político de agir de maneira adequada no momento adequado. Afirma

Bignotto (1991) que essa maneira particular de apresentar o conceito era frequentemente

usada pelos autores da Antiguidade – o de prudência. Também nesse caso estamos diante

da capacidade do agente político de agir em conformidade com a situação, sem que, para

isso, tenha-se de recorrer a um saber de cunho estritamente teórico.10

Sendo assim, essa forma de abordar o problema da ação política serviu para que

Maquiavel distanciasse o termo virtù das virtudes cristãs ou da prudência no qual.

Maquiavel não fundamentava uma leitura da política com uma busca de fins independente

dos meios, no entanto o que o pensador florentino pretendia mostrar era que a política

constitui uma esfera da existência humana, que, estando relacionada com várias outras, não

pode ser confundida nem com a ética nem com a religião.

Se, para Maquiavel a religião e seus valores tiveram sua participação na construção

do conceito de virtù, no sentido de contribuir para a eliminação de determinadas qualidades

que não se podem compor alguns atributos de um dirigente. No assunto seguinte

aproximaremos ao conceito de virtù com a discussão mais especificamente com a ideia de

virtude. Nas próximas escritas encontraremos reflexões sobre o termo virtù e a diferença

apresentada pelo autor referente às ações que são realizadas pela virtude.

1.2 DA VIRTUDE A VIRTÙ

Ao iniciar o primeiro capítulo da obra "O Príncipe", e apresentar o tema “De

quantos tipos são os principados e de que modo se adquirem”, Maquiavel começa sua

abordagem ao assunto virtù, pois, ao afirmar que regiões formadas estão habituadas ou a

existir sob o comando de um príncipe ou a ser desprovidas de qualquer sujeição, no entanto

só podem ser adquiridas de duas maneiras – ou se obtém com a força de outrem, ou com a

oportunidade autêntica dos benefícios da fortuna ou da virtù. Nesse momento inicia-se

nossa reflexão referente ao termo virtù e à noção central desse conceito no pensamento de

Maquiavel, pois observamos que, no decorrer dessa obra, o termo percorre vários

10

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 32-38.

23

caminhos e se modifica em sua interpretação por várias vezes nas abordagens dos fatos, e

nas ações transcritas pelo pensador.

Um príncipe de virtù, para Maquiavel, é aquele cuja capacidade de decisão seja

acompanhada de outros atributos que torna possível o alcance de seus objetivos.

A ação, ou seja, a maneira de agir para realizar as atitudes políticas é expressa por

Maquiavel na determinação da virtù ou, ainda, virtù é apresentada como a principal causa

do sucesso nas empreitadas dessa atitude. Então cabem as questões: Em que consiste essa

virtù? O que significa dizer que uma ação expressa virtù? Há, portanto, uma diferença

entre se falar em ação “virtuosa” e ação de virtù? Qual dessas ações leva um governante

ao alcance do sucesso das atividades políticas?

Para responder a tais questões trabalharemos exemplos citados por Maquiavel em

sua obra “Discursos”, no livro terceiro, no qual o tema aborda: “Onde se procura saber por

que Aníbal, com um modo de proceder diferente do de Cipião, produziu na Itália os

mesmos efeitos produzidos por aquele na Espanha”. Nessas páginas, o autor expõe dois

comportamentos diferentes de governantes, mas que acabaram produzindo efeitos iguais.

Mesmo assim, Maquiavel faz uma objeção pela ação mais assertiva, para que o dirigente

não se arruíne no poder. Em suas escritas afirma que “algumas pessoas poderiam admirar-

se ao verem que alguns comandantes” se utilizaram de uma vida contrária das

mencionadas anteriormente, mas “produziram efeitos semelhantes aos produzidos por

eles”, parecendo, assim, que a razão de algumas glórias não depende de tais causas11

. E,

para melhor esclarecer sua escrita, Maquiavel afirma:

Digo que Cipião entrou na Espanha e, com sua humanidade e piedade, logo,

granjeou a amizade daquela província, fazendo-se adorar e admirar por seus

povos, enquanto Aníbal, ao entrar na Itália, com modos totalmente contrários aos

de Cipião, ou seja, com crueldade, violência, pilhagem e todo tipo de

deslealdade, produziu o mesmo efeito de Cipião na Espanha; porque todas as

cidades da Itália se rebelaram a favor de Aníbal, todos os povos o seguiram.

(Discursos, III, 21, p. 385)

Maquiavel não contesta propriamente as ações dos governantes, porém lança os

exemplos para transformar a produção da imagem da virtù oposta ao sentido tradicional de

virtude, criando uma concepção contrária às construções existentes até suas escritas. Ao

procurar respostas esclarecedoras de por que Aníbal, que conduziu seu governo de um

modo oposto ao de Cipião, conseguiu alcançar os mesmos objetivos, Maquiavel alcança o

11

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 21, p. 385.

24

objetivo central da antinomia clemência/rigor, e para ele não importa muito como proceda

um comandante – bem ou mal, praticando virtude ou vício no sentido tradicional, desde

que tenha virtù suficiente para se conduzir bem numa e noutra via12

.

Ao se debruçar sobre essas ações, Maquiavel nos afirma:

E, se considerarmos donde isso pode provir, encontraremos várias razões. A

primeira é que os homens são desejosos de coisas novas, visto que, no mais das

vezes, tanto os que vivem bem quanto os que vivem mal desejam novidades:

porque, como doutra vez se disse – e é verdade -, os homens enfadam-se no bem

e afligem-se no mal. Esse desejo, portanto, leva-os a abrir as portas a qualquer

um que numa região se mostre como campeão de uma inovação; se é estrangeiro,

correm-lhe atrás; se é do lugar, rodeiam-no exaltando-o e favorecendo-o: assim,

seja qual for o modo como proceda, ele alcança grandes progressos naquele

lugar. Além disso, os homens são impelidos por duas coisas principais: amor ou

temor; por isso, são comandados tanto por quem se faz amar quanto por quem se

faz temer; aliás, no mais das vezes, seguem e obedecem mais aqueles que se faz

temer do que àquele que se faz amar. (Discursos, III, 21, p. 386)

Para Maquiavel, “o excesso de bondade é tão pernicioso quanto o excesso de

crueldade”, pois a um comandante não importa muito o caminho percorrido, desde que este

dirigente seja virtuoso, que essa virtù o torne reputado entre os homens. “Porque a virtù,

quando é grande – como em Aníbal e Cipião – apaga todos os erros que ele cometa para

fazer-se muito amar ou muito temer”.13

Para o pensador, em qualquer um desses dois

caminhos, podem surgir “inconvenientes”, que podem levar um líder à ruína, porque

aquele que almeja demais ser amado, por menos que se afaste do verdadeiro caminho,

torna-se desprezível, e o outro, que deseja demais ser temido, por menos que se exceda em

seu modo, torna-se odioso. Ainda assim, porém, Maquiavel observa o caminho, não o de

garantia, porém o mais prolongado: “os homens têm menos receio de ofender a quem se

faz amar do que a outro que se faça temer”, sendo assim, “o amor é mantido pelo medo ao

castigo, que nunca te abandona.” 14

O exemplo de Cipião e Aníbal comprova a afirmação de Maquiavel: ambos foram

parcialmente prejudicados pelo seu modo de agir, mas não se arruinaram, pois “a reputação

que lhes dava sua virtù” tornou-os capazes de aliviar os exageros. Cipião foi prejudicado

por seu excesso de bondade quando seus soldados se rebelaram na Espanha contra ele, pois

não lhe devotavam temor. Como demonstrava ser um líder de virtù, conseguiu remediar a

tempo, porém, foi obrigado a usar em parte a mesma crueldade de que fugira

12

Cf. RODRIGO, O imaginário do poder e o poder do imaginário em Maquiavel, p. 201. 13

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 21, p. 386. 14

Cf. MAQUIAVEL, O Príncipe, XVII, p. 80.

25

anteriormente15

. Ao contrário, quanto a Aníbal, “[...] nenhum exemplo particular nos

mostra que sua crueldade e sua deslealdade o tenham prejudicado, mas pode-se muito bem

pressupor que Nápoles e muitas outras cidades mantiveram-se fiéis ao povo romano por

medo de sua crueldade”16

. A esse respeito, Aranovich (1998) comenta que

[...] é necessário colocar o público acima do particular. Assim, é preferível

prejudicar um particular do que uma “universalidade inteira de cidadãos”, pois o

público se opõe de todas as formas ao particular e, freqüentemente, o prejuízo de

um opõe-se ao benefício do outro. É preferível usar de crueldade contra um

particular, inclusive através de uma execução, a permitir que a piedade

transforme-se em crueldade ao provocar a ruína do público. No campo do

político, o que importa é o efeito e, neste plano político, as virtudes e os vícios

podem transformar-se no seu contrário pelos efeitos 17

.

O autor dos "Discursos" observa o fato do resultado da ação de Aníbal e comenta

que: “[...] viu-se muito bem que o seu modo ímpio de viver tornou-o mais odioso para o

povo romano do que qualquer outro inimigo que aquela república já tivera”,18

e continua

dizendo que Aníbal nunca foi absolvido de sua brutalidade, e, quando desarmado e

enganado, foi morto sem misericórdia. Maquiavel afirma, portanto, que coube a Aníbal

pagar um preço ao entrar em desvantagem por ter promovido ações desleais e cruéis, mas,

por outro lado, afirma, a liderança regada de crueldade pelo dirigente resultou em uma

enorme vantagem, admirada por todos os clássicos e ressalta

[...] a de que no seu exército, ainda que composto por várias espécies de homens,

nunca houve dissensão, nem entre seus homens, nem destes contra Aníbal. E isso

só podia ser devido ao terror que sua pessoa inspirava, que era tão grande e se

mesclava à reputação que lhe dava a sua virtù, que seus soldados se mantinham

disciplinados e unidos. (Discursos, III, 21,p. 388)

A análise comparativa de Aníbal e Cipião procurou evidenciar que um, com

comportamento louvável, e outro, com comportamento detestável, produziram o mesmo

efeito. Ao concluir sua reflexão, Maquiavel afirma que “não importa muito o modo como

um comandante procede, desde que nele haja virtù” tão ampla que tempere bem ambos os

costumes de viver, pois, nos dois casos há falhas e ameaças.19

Logo abaixo, o autor

anuncia que irá discorrer sobre dois cidadãos romanos que, com procedimentos diversos,

mas igualmente louváveis, obtiveram a mesma glória:

15

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 21, p. 387. 16

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 21, p. 387. 17

ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer antigo,

p. 80. 18

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 21, p. 388. 19

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 22, p. 388.

26

Houve em Roma, no mesmo período, dois comandantes excelentes, Mânlio

Torquato e Valério Corvino; estes, iguais em virtù, iguais em triunfos e glória,

viveram em Roma, e ambos, no que se referia ao inimigo, obtiveram-na com

idêntica virtù, mas, no que se referia aos exércitos e ao tratamento dos soldados,

procederam muito diferentes. (Discursos, III, 22, p. 389)

Mânlio Torquato e Valério Corvino foram dois excelentes chefes militares,

idênticos na virtù, nos triunfos pacificadores e na honra de suas ações, mas adversos na

maneira de tratar os combatentes. Mânlio, segundo Maquiavel, comandava com muita

severidade e impunha suas ordens sem poupar esgotamentos ou dores a seus soldados,

enquanto Valério, ao contrário, apresentava modos humanos e acolhedores. Presenciou-se

que o primeiro para obter obediência dos soldados, mandou sacrificar o próprio filho por

ter incorrido em indisciplina militar, e o outro jamais golpeou ninguém. Com base nesses

fatos, Maquiavel afirma que, “com tamanha diferença de procedimento, ambos colheram

os mesmos frutos na luta contra inimigos e no favorecimento da República e de si

mesmos”, pois, “nenhum soldado jamais se recusou a lutar nem se rebelou contra eles,

tampouco discrepando no que quer que fosse da vontade deles”. Nesse sentido, o autor

levanta três indagações: primeiro o que levou Mânlio a proceder de maneira tão rígida e

por qual motivo o segundo conseguiu proceder com tanta humanidade; depois, por qual

razão esses diversos modos produziram o mesmo efeito; e, finalmente, qual desses dois

20modos deve ser imitado por ser melhor e mais útil. Para responder a essas indagações,

Maquiavel leva em conta dois fatores: um de ordem interna – a virtù - e outro de ordem

externa – a fortuna, conceito este que trataremos exclusivamente no terceiro capítulo.

Maquiavel sustenta que, “para se dirigir uma República com violência é preciso que

haja proporção entre quem impõe a força e aquele a quem ela é imposta”. Como diz ele:

[...] para comandar as coisas fortes, é preciso ser forte; e quem tem essa força e

assim comanda não pode depois com brandura exigir obediência. Mas quem não

tem tal força de ânimo deve abster-se dos comandos extraordinários e, nos

ordinários, pode usar de humanidade. Porque as punições ordinárias não são

imputadas ao príncipe, mas sim às leis e às ordenações. Portanto, é de crer que

Mânlio fosse obrigado a proceder com tanta rigidez por seus comandos

extraordinários, aos quais era inclinado por natureza, o que é útil numa república,

porque faz que suas ordenações se voltem para o seu princípio, para sua antiga

virtù. (Discursos, III, 22, p. 390)

É crueldade maior permitir que se desenvolva uma catástrofe do que, com um ato

cruel, levar, num momento posterior, ao bem-estar seus súditos, mantê-los unidos e

obedientes. Para o exercício do poder, o que importa não são as qualidades pessoais do

20

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 22, p. 390.

27

dirigente, mas as de suas ações21

. Lefort (1972) reforça que a crueldade da escolha se

manifesta na necessidade sob a qual o Estado se mostra necessário no momento, e as

circunstâncias do regime onde se impõe a severidade, até mesmo a desumanidade, no

comando22

. Nesse sentido, Maquiavel afirma que, quando é necessário deliberar sobre uma

decisão da qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por

considerações de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou ignomínia.

Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua liberdade,

rejeitando-se tudo o mais23

.

Ao abordar, enfim, a questão sobre qual das duas maneiras de agir é a mais

elogiável, a humanidade de Valério ou a brutalidade de Mânlio, Maquiavel procede com

muito cuidado, pois se trata de opiniões partilhadas pelo senso comum e consagradas pela

tradição. Afirma que o tema tem sido objeto de controvérsias, pois os escritores louvam

ambos os modos. Maquiavel relata o que Tito Lívio diz a respeito de Valério:

Nenhum outro comandante foi mais humano com os soldados, suportando sem

dificuldades os exércitos entre os soldados mais rasos. Nos jogos militares,

quando os soldados competiam em pé de igualdade na corrida e na luta, ele

vencia e era vencido com o mesmo semblante; não desprezava quem se

mostrasse igual a ele; era bondoso nas ações, segundo as circunstâncias; ao falar,

lembrava-se sempre da liberdade alheia e da sua própria dignidade; e (o que não

é menos popular) geria a magistratura com a mesma conduta que havia pedido. 24

O segundo exemplo, no entanto, também é comentado por Maquiavel, que relata,

nas palavras de Tito Lívio, a opinião honrosa existente sobre Mânlio: na “severidade que

demonstrou na morte do filho tornou-lhe o exército tão obediente que foi essa a razão da

vitória do povo romano sobre os latinos”. A brutalidade aplicada com fins para tal vitória

demonstrou a todos os perigos aos quais o povo romano estava exposto e as dificuldades

para vencê-los, concluindo que somente a virtù de Mânlio deu aquela vitória aos

romanos25

. E, comparando as forças e atitudes de ambos os dirigentes, Maquiavel diz:

Assim, considerando-se tudo o que os escritores falam deles, seria difícil julgar.

Contudo, para não deixar essa matéria sem decisão, digo que, para um cidadão

que viva sob as leis duma república, é mais louvável e menos perigoso o

procedimento de Mânlio, porque esse modo está todo voltado em favor do

21

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 82 22

Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. Tradução utilizada para

uso didático cedida pelo prof. José Luis Ames, p. 177. 23

MAQUIAVEL, Discursos, III, 41, p. 442. 24

MAQUIAVEL, Discursos, III, 22 (Tito Lívio, VII, 10) [N. da T.], p. 390 25

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, III, 22, p. 393.

28

público e nunca tem em mira a ambição privada; pois tal modo não consegue

conquistar partidários, por mostrar-se sempre áspero para com todos e por amar

apenas o bem comum; porque quem faz isso não conquista amigos particulares

que, conforme disse acima, são chamados partidários. Por isso, nada pode ser

mais útil nem mais desejável numa república que semelhante modo de proceder,

visto que nele está presente a utilidade pública e não pode haver nenhuma

suspeita de poder pessoal. (Discursos, III, 22, p. 393)

Nesse sentido, também podemos refletir sobre a questão que Maquiavel nos coloca

a respeito do temor e do amor, e qual dessas alternativas é favorável para um bom governo.

Ao abordar esse assunto no capítulo XVII, “Da crueldade e da Piedade e se é melhor ser

amado que temido, ou melhor, ser temido que amado”, o pensador político elabora sua

resposta se posicionando de que a melhor resposta seria desejar e conseguir ser as duas

coisas, no entanto, como, na visão do autor, torna-se difícil combinar ambos, faz-se

necessário fazer uma escolha e optar por uma das alternativas, e justifica a opção: “[...]

como é difícil combiná-las, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se tem

de desistir de uma das duas”. 26

Segue-se, portanto, que, para o autor, como não é possível

ter as duas disposições, deve-se escolher ser temido e assim complementa:

Os homens têm menos receio de ofender a quem se faz amar do que a outro que

se faça temer; pois o amor é mantido por vínculo de reconhecimento, o qual,

sendo os homens perversos, é rompido sempre que lhes interessa, enquanto o

temor é mantido pelo medo ao castigo, que nunca te abandona. (O príncipe,

XVII, p. 80)

A base do amor do súdito para com o príncipe reside num sentimento fora do

príncipe, pois quem ama o príncipe é o súdito, o sentimento está nele, assim, tão logo que

os súditos não percebam nenhuma vantagem em amá-lo mais, deixam de fazê-lo.

Diferentemente, ao optar pelo temor, que é injetado nos súditos pelo príncipe, os súditos

temem o príncipe por aquilo que ele é ou faz, assim o príncipe controla esse temor na

medida em que o injeta quando necessário. Por isso a opção é ser temido. Entretanto, “deve

contudo o príncipe fazer-se temer de modo que, se não conquistar o amor, pelo menos

evitará o ódio”, pois é possível praticar o temor sem ser odiado ao mesmo tempo em que se

conquista o respeito dos súditos.

Sendo assim, na questão de se o príncipe deve preferir ser temido ou amado,

assunto que tem a ver com crueldade e piedade, também se faz necessária a flexibilidade,

pois esse comportamento permite ao príncipe obter bons resultados em seu governo,

26

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XVII, p. 80.

29

assegurando a satisfação dos súditos27

. Assim, portanto, quando o príncipe está em

campanha e no comando de uma infinidade de soldados, Maquiavel explica que o príncipe

não precisa se preocupar com a fama de cruel, por que, sem essa fama, jamais se pode

manter um exército unido, organizado e disposto à ação necessária.

Nessa perspectiva, “[...] quando em confronto com a necessidade, Maquiavel avisa,

não se preocupe com a justiça e aja, porque palavras para justificar sua ação hão de vir”.28

Segue-se que a virtù maquiaveliana se refere muito mais à capacidade de mudar de atitude

conforme as circunstâncias, ou seja, constitui-se com um agir com flexibilidade diante das

mudanças de circunstâncias. Skinner, ao se debruçar sobre esse assunto, comenta:

[...] virtù é o nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um

príncipe aliar-se com a ‘fortuna’ e conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o

sentido do termo de toda e qualquer conexão necessária com as virtudes cardeais

e principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica que define um

príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo

aquilo que for ditado pela necessidade – independente do fato ser a ação

eventualmente iníqua ou virtuosa – para alcançar seus mais altos objetivos. Deste

modo, virtù passa a denotar precisamente a qualidade da flexibilidade moral que

se requer de um príncipe: ele deve ter a mente pronta a se voltar em qualquer

direção, conforme os ventos da fortuna e a variabilidade dos negócios assim os

exijam. (SKINNER, 1988, p. 65)

A virtù requer que o príncipe aja de acordo com a necessidade, não importando o

caminho que percorram suas atitudes. Nesse sentido, é importante salientar que a virtú não

se compõe de qualidades fixas, como as virtudes cardeais. Em Maquiavel não podemos

fixá-las, pois as qualidades que compõem a virtù são compostas por atributos diferentes,

sendo também possível o dirigente possuir virtù de muitas formas dependendo muito das

circunstâncias. Ou seja, o agir com virtù em uma determinada circunstância não o será em

outra, porque os tempos variam, sendo necessário adequar a ação aos tempos.

De fato, em Maquiavel nenhuma virtude pode ser considerada virtù, pois o

pressuposto é que o príncipe seja capaz de agir com todas as virtudes, priorizando umas ou

outras de acordo com as circunstâncias. Se suas inclinações e seus padrões morais

estiverem enrijecidos, o príncipe não terá capacidade de desempenhar as exigências da ação

eficaz. Essa oscilação exige que o príncipe possa, por exemplo, em um momento, agir com

crueldade e, no momento seguinte, com piedade. Ele não pode ser piedoso ou bárbaro, em

27

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 83. 28

Cf. MANSFIELD, Harvey C. Machiavelli´s virtue, I, p. 7.

30

sua natureza, mas o que importa são os resultados compatíveis com as necessidades de seu

povo.

Muitos são os atributos que contribuem para tornar um príncipe com virtù, no

entanto Maquiavel nos apresenta outras formas para que o dirigente possa adquirir

habilidades no decorrer de sua administração. Para isso, o pensador florentino indica

também a necessidade da busca pelos acontecimentos do passado, criando assim, uma

preocupação com as histórias antigas para extrair lições que favoreçam no controle e na

ordem em sua direção política.

1.3 A IMITAÇÃO E O RESGATE DA VIRTÙ

Na introdução ao livro I dos "Discursos", Maquiavel tem por objetivo informar a seus

contemporâneos sobre a necessidade de desdobrar a política para além dos fatos presentes,

nela incluindo um conhecimento que permita a imitação dos antigos. Afirma que, em se

tratando da pouca experiência dos contemporâneos das coisas presentes e do pequeno

conhecimento das antigas, isso inclusive torna insuficientes lições de suas escritas. Afirma,

no entanto, que tais ações do passado podem ser de grande utilidade para os homens de

grande virtù, e que possuem mais eloquência e discernimento na interpretação e extração

de boas soluções para os problemas no presente. E, vendo que “[...] as virtuosíssimas ações

que as histórias nos mostram, ações realizadas por reinos e repúblicas antigas, por reis,

comandantes, cidadãos, legisladores e outros que se afadigaram pela pátria são mais

admiradas que imitadas”29

, Maquiavel mobiliza, em suas escritas, não apenas para uma

leitura saudosista das ações ocorridas no passado, mas também para extrair dessa leitura o

sentido, e capturar desses exemplos o sabor que eles possuem:

Motivo porque infinitas variedades de acontecimentos que elas contém, mas não

pensam em imitá-las, considerando a imitação não só difícil como também

impossível; como se o céu, o sol, os elementos, os homens tivessem mudado de

movimento, ordem e poder, distinguindo-se do que eram antigamente.

(Discursos, I, proêmio, p.7)

29

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, I, proêmio, p.7.

31

Maquiavel afirma que, do mesmo modo, encontramos a necessidade no campo da

medicina, pois essa imitação dos antigos torna-se um remédio eficaz e, quando o homem

sofre alguma enfermidade, o remédio é extraído não mais do que senão “[...] das

experiências feitas pelos antigos médicos, que servem de fundamento aos juízos dos

médicos do presente”. 30

A arte médica consiste em tentar imitar os antigos em sua

sabedoria, apoiar-se em seus conhecimentos para poder curar as doenças, quando possível.

E, nas palavras de Martins, nunca é demais lembrar que a imitação deve ser acompanhada

de juízos, ou seja, não basta reproduzir esses acontecimentos, é necessário também refletir,

adequar esses conhecimentos e não somente transpô-los.31

Não se trata de uma imitação

literal porque as circunstâncias históricas e conjunturais, os interesses e as finalidades

variam no tempo. Mesmo assim existem ações que se tornam paradigmas e que devem

servir de referência para novas ações políticas. Aprender com a própria experiência é uma

exigência de evolução do conhecimento em qualquer ramo de atividade humana. Não

poderia ser diferente com a atividade política, indica Maquiavel. O conhecimento da

história permite eficiência nas ações através da imitação, do exemplo, da similitude de

condutas e da conservação de leis, costumes e instituições que se revelam eficazes para os

objetivos de uma vida cívica adequada. 32

Bignoto (2002) nos alerta, porém, para a

dificuldade da interpretação da imitação. A interpretação da imitação consiste na difícil

arte de realizar no presente ações que possuam a mesma qualidade daquelas do passado.

Assim, portanto, trata-se de reproduzir seus efeitos, mas não sua forma. 33

A âncora que os governantes devem ter nos grandes líderes do passado e nas ações

que os glorificam é um imperativo de prudência. Além do aprendizado pela exemplaridade

positiva, a imitação pode evitar erros inerentes à ação. O conhecimento das ações políticas

ou da história política constitui um capital inicial do agir, do qual os políticos prudentes

devem se valer. Não precisam partir do nada ou da improvisação. A virtude da prudência

recomenda que o governante se aproprie desse conhecimento através do estudo da história

das ações políticas. O conhecimento da história e a imitação de determinadas ações, em

circunstâncias determinadas, é um metro, uma baliza, um suporte positivo para as ações,

que ajudam a evitar erros e a cair em armadilhas comuns nas atividades política e militar.

30

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, I, proêmio, p.6. 31

Cf. MARTINS, José Antonio. Os fundamentos da República e sua corrupção nos "Discursos", de

Maquiavel, p. 47. 32

Cf. FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p.27. 33

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p.32-38.

32

A prudência que induz à imitação do exemplo bem-sucedido é também um remédio

preventivo contra a imprevisibilidade dos acontecimentos. Mesmo assim, além da

imitação, é preciso preparar-se, planejando, criando simulações, construindo hipóteses,

projetando cenários, antevendo soluções. O dirigente ou líder que assim proceder terá

melhores condições de enfrentar os imprevistos e de vencer as adversidades. 34

Nesse sentido, o pensador florentino resgata os exemplos de Roma, pois ele próprio

julgava que o passado romano era superior ao seu presente, o que se fazia merecedor de

imitação, propondo sua imitação como forma de recuperar a virtù perdida devido à

corrupção que se desenvolvera no seu tempo. As leis, os costumes e as instituições

romanas, particularmente na fase republicana de sua história, constituem modelo

onipresente em toda discussão política empreendida pelo autor.

A imitação exige uma uniformidade das épocas, uma identidade entre as práticas

políticas do passado e do presente. Essa uniformidade no comportamento dos homens e da

natureza estabelece um terreno propício à imitação: as soluções que se revelaram eficazes

no passado podem ser adotadas no presente com expectativa de igual sucesso, pois,

Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem indevidamente, que

quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já

aconteceu; porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram

correspondência nos tempos antigos. Isso ocorre porque, tendo sido feitas pelos

homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões, tais coisas só poderão,

necessariamente, produzir os mesmos efeitos. (Discursos, III, 43, p. 445)

Segundo Maquiavel, os homens trilham quase sempre caminhos abertos por outros e

pautam suas ações pelas imitações, embora não possam seguir em tudo os caminhos dos

outros nem igualar a virtù daqueles que imitam. Um homem prudente deve sempre seguir

os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos que foram excelentes. O autor

insiste em que se tome como parâmetro de conduta a ação dos grandes homens, pois,

mesmo que seja difícil ao imitador alcançar à mesma virtù do imitado, sempre haverá

algum ganho, e deve “[...] fazer como os arqueiros prudentes que, julgando muito distantes

os alvos que pretendem alcançar e conhecendo bem o grau de exatidão de seu arco,

orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para atingir tal altura com a

flecha, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar ao objetivo”. 35

34

Cf. FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p. 110-111. 35

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, VI, p. 23.

33

Nas palavras de Larivaille (1982), “[...] o político prudente aí encontrará não

obrigatoriamente modelos de conduta, mas uma vasta amostragem de comportamentos

humanos e situações capazes de iluminar sua análise do presente e do futuro, duplicada por

uma vasta amostragem de ações e remédios positivos ou negativos, dos quais extrairá a

regra que melhor se adapte à sua situação”. 36

Nessa perspectiva, Skinner complementa que

“[...] um homem prudente deve assim escolher os caminhos percorridos pelos grandes

homens e imitá-los, assim, mesmo que não seja possível seguir fielmente esse caminho,

nem pela imitação alcançar totalmente as virtudes dos grandes, sempre se aproveita muita

coisa”. 37

A imitação da virtù depende, portanto, de uma perspectiva histórica: conhecer as

ações dos grandes homens, dos homens de muita virtù, e imitá-las, transmite virtù à ação

daquele que a imita, embora não corresponda exatamente ao modelo. Se isso não transfere

toda sua virtù, ao menos transmite uma parte dela, fazendo a ação melhor do que poderia

ser sem esse modelo. Esse conhecimento e a imitação devem, portanto, ser seguidos pelo

governante prudente. Deste modo, a imitação, no sentido em que é empregada por

Maquiavel, não tem o significado de reprodução exata, que é o significado comum da

palavra. Senellart aponta, a respeito dessa passagem, a inovação de Maquiavel ao se

utilizar de uma imagem tradicional para articular uma definição racional de prudência e

aponta suas diferenças em relação à doutrina medieval: “[...] por um lado, o uomo prudente

não encontra mais seu modelo em uma ordem preestabelecida, ele não pode se apoiar, para

traçar sua rota, senão sobre a experiência de outro. Mas essa mesma é enganadora, “pois

não se pode seguir tudo nos caminhos dos outros”. Tradicionalmente ligada à imitação, a

arte, dessa forma, torna-se invenção permanente”. 38

Nas palavras de Rodrigo, a imitação está longe de significar mera cópia de condutas

bem-sucedidas. Ao contrário, demanda a capacidade de adaptar a novas e diversas

circunstâncias padrões de conduta que se revelaram eficazes no passado, ou mesmo

criatividade para imaginar novos “remédios”. Não sendo passíveis de mera repetição, as

soluções políticas dos antigos devem ser fonte inspiradora, instrumentos de aprendizagem,

36

LARIVAILLE, Paul. La pensée politique de Machiavel: les "Discours" sur la première décade de Tite-

Live, p. 31. 37

Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, p. 139. 38

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 42.

34

em outras palavras, convertem-se em educação. Para que isso ocorra, contudo, uma

condição se impõe: o conhecimento do passado, ou seja, o estudo da história.39

1.4 CRITÉRIOS DE CONDUTA DO PRÍNCIPE DE VIRTÙ

Em suas escritas, Maquiavel trata da necessidade do comportamento e enuncia a

aplicação dos príncipes expostos no critério de conduta. Para o autor, não se pode saber se

uma ação é boa ou má, pois, somente os resultados da ação poderão demonstrar a bondade

ou a maldade da atuação. A tradição avalia aquele que governa pela intenção de suas

ações, as quais devem ser coerentes com seus princípios. Sendo assim, o povo tem uma

imagem de príncipe ideal (ideal de príncipe virtuoso) e, portanto, para o governante se

manter no poder deve corresponder a essa aspiração. Portanto, existe a necessidade de

aparentar ser, e somente nesses critérios que o líder consegue manter seu poder.

1.4.1 A virtù do governante: ser e parecer ser

No capítulo XV da obra "O Príncipe", Maquiavel aborda o tema “das coisas pelas

quais os homens, e especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados”. Nessas

escritas, o pensador elabora suas reflexões a respeito do comportamento do príncipe

perante seus súditos, do ser e do parecer ser, e aponta os limites da moral tradicional como

incapazes de orientar os homens na elaboração de uma ordem política garantida e

permanente:

Resta agora ver como deve comportar-se um príncipe em relação a seus súditos

ou seus amigos. Como sei que muitos já escreveram sobre este assunto, temo

que, escrevendo eu também, seja considerado presunçoso, sobretudo porque, ao

discutir esta matéria, me afastarei das linhas traçadas pelos outros. (O príncipe,

XV, p. 73)

Maquiavel elabora um novo modo de compreender a relação entre a política e a

ética, modo novo segundo o qual se preocupa mais pela busca do útil e pela “verdade

39

Cf. RODRIGO, Lídia Maria. Maquiavel: educação e cidadania, p. 68.

35

efetiva das coisas” do que sobre o imaginário delas. Para ele, o intervalo entre como se

vive e como se deveria viver é tão grande que aquele que trocar o que se faz por aquilo que

se deveria fazer aprende antes a arruinar-se entre tantos que não são bons. Daí ser

necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a valer-se ou

não disso segundo a necessidade.40

A recomendação ao príncipe consiste, portanto, em que

não seja virtuoso, mas se preocupe em se apresentar sendo como tal.

Para Maquiavel, ser moral ou parecer ser moral, além de útil, é extremamente

necessário. Ser fiel, piedoso, humano, íntegro e religioso são qualidades morais

universalmente louváveis. O povo tem uma imagem dos príncipes bons e maus; quando

fala deles ou de qualquer outro notável, o povo tece elogios ou críticas conforme as facetas

dessa imagem.41

E discorrendo sobre as verdadeiras, Maquiavel afirma que, “[...] quando

se fala dos homens, e principalmente dos príncipes, por estarem em posição mais elevada,

eles se fazem notar por certas qualidades que lhes acarretam reprovação ou louvor”.42

Cabe

ao dirigente disfarçar, simular e dissimular suas ações para não perder o apoio dos seus

súditos.

Assim, observa o florentino, “[...] é necessário disfarçar bem essa natureza e ser

grande simulador e dissimulador, pois os homens são tão simples e obedecem tanto às

necessidades presentes que o enganador encontrará sempre quem o deixe enganar”.

Mesmo que um governante não tenha tais qualidades, “é indispensável parecer tê-las”. O

florentino afirma ainda ter a ousadia de dizer que “[...] se as tiver e utilizar sempre, serão

danosas, enquanto, se parecer tê-las, serão úteis”. Desta forma, o condutor deve “[...]

parecer clemente, fiel, humano, integro e religioso e sê-lo, mas com a condição de

estares com o ânimo disposto a, quando necessário, não o seres, de modo que possas e

saibas como tornar-te o contrário [...]”.43

Assim, portanto, afirma Maquiavel, o dirigente

precisa ter o espírito preparado para agir com todas as virtudes, de acordo com e onde o

ordenarem as circunstâncias.

Os preceitos que devem ser seguidos para a manutenção do poder têm a

característica de levarem a neutralidade em relação aos valores tradicionais. De fato, em

40

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XV, p. 73. 41

Cf. DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno, p. 307. 42

Observe-se a inversão operada por Maquiavel após denunciar a ineficácia do discurso tradicional. Tachado

de “imaginário” e oposto à “verdade efetiva das coisas”, ele se volta para o problema da imagem do

príncipe, de sua “fenomenologia”, e não do que ele seja em si mesmo. Ironicamente, o mundo imaginário

dos pensadores tradicionais se une ao imaginário popular acerca do príncipe. Cf. MAQUIAVEL, O

príncipe, XV, p. 74. 43

MAQUIAVEL, O príncipe, XVIII, p. 84 -85.

36

Maquiavel nenhuma virtude pode ser considerada virtù.44

Dessa forma, segundo Manent

(1977), pela posição, a natureza do príncipe não poderia ser uma só. Se Maquiavel pede ao

condutor liberdade de espírito suficiente para sair do caminho do bem, é como prova e

garantia da plasticidade indefinida de sua alma. É uma liberdade tornada natureza, uma

virtude, se quiser, mas considerada da seguinte maneira: o Príncipe deve disciplinar o

natural variável que compartilha com todos os homens, para adquirir as características

duráveis que vão distingui-lo. Desse modo, a capacidade do Príncipe maquiaveliano para

escolher o mal significa a capacidade de seu ser para viver sem habitus45

. Nele, a vontade

não tem por tarefa integrar todas as faculdades humanas sob o governo da razão, mas de

mantê-las desarticuladas.46

Ao concluir, Maquiavel aponta que o dirigente não deverá importar-se de incorrer

na infâmia47

dos vícios, sem os quais lhe seria difícil conservar o poder, porque,

considerando tudo muito bem, encontrar-se-á alguma coisa que parecerá virtù e, sendo

praticada, levaria à ruína. Enquanto uma outra que parecerá vício, quem a praticar poderá

alcançar segurança e bem-estar.48

Portanto, dado que a ação encontra seu sentido apenas no

processo, só pode ser julgada pelo resultado, não o êxito pura e simplesmente, e sim

enquanto proporciona algum beneficio coletivo, ou seja, enquanto produzir segurança e

tranquilidade ao povo. Sendo assim, a crítica à moral tradicional não é por outro motivo,

senão para opor ao formalismo abstrato as exigências concretas, práticas, impostas pela

ação política.49

Vimos que, na opinião do florentino, o príncipe deve ser capaz de “mudar ao

contrário” perante qualquer situação e qualidade dada. De acordo com suas palavras, “deve

parecer ser” e sê-lo, com a condição de estar com o ânimo disposto a mudar quando

necessário não o ser, de modo que possa e saiba como tornar-se o contrário.50

Ao expor

que existem dois gêneros de combate: um com as leis e outro com a força, Maquiavel

afirma que o primeiro é próprio do homem, o segundo é o dos animais, no entanto ser

somente o primeiro continuamente não funciona, convém também recorrer ao segundo.

44

ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer antigo,

p. 79. 45

Termo esse utilizado por Maquiavel também com a palavra vício ou costume. 46

Cf. MANENT, Pierre. Naissance de la politique moderne, p. 18. 47

Infâmia: a má fama, na qual incorreria quem tivesse os vícios que podem causar a perda do Estado. Cf.

MAQUIAVEL, O príncipe, XV, p. 74. 48

MAQUIAVEL, O príncipe, XV, p. 74. 49

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 167. 50

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XVIII, p. 85.

37

Portanto, “[...] é necessário ao príncipe saber usar bem tanto o animal quanto o homem

[...]”, e “[...] ter um preceptor meio animal meio homem não quer dizer outra coisa senão

que um príncipe deve saber usar ambas as naturezas e que uma sem a outra não é

duradoura.” 51

Como vimos anteriormente, a característica principal da virtù é a flexibilidade. Para

ilustrar essa reflexão, Maquiavel afirma que o condutor deve saber usar bem a natureza

animal, e recorre à metáfora da raposa e do leão para serem exemplos do dualismo na ação

política.52

De um lado está a raposa e, de outro, o leão53

. Ridolfi, ao comentar sobre o

tropo, relata “[...] como à raposa quando viu o leão, que na primeira vez esteve por morrer

de medo; na segunda, parou atrás de uma moita para olhá-lo; na terceira, conversou com

ele”.54

A primeira representa a astúcia e a esperteza, o segundo a força física e bruta, a

energia criadora ou destruidora. É o imperativo da necessidade que determina como o

príncipe deverá usar essa “natureza animal”. É, portanto, a realidade e a circunstância que

implicam a flexibilidade na ação do governante:

Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar bem a natureza animal,

deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços,

nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os

laços e o leão para aterrorizar os lobos. (O príncipe, XVIII, p. 84)

Nas ações políticas, principalmente para quem comanda, como ademais nas ações

humanas em geral, nem só a conduta de animal e nem só a conduta de homem se bastam. É

preciso saber combinar ambas, conforme exigem as circunstâncias, as necessidades e os

fins.55

Quando o líder necessitar agir como animal, também deve saber acordar as duas

qualidades distintas: a força e a astúcia. O leão não sabe esquivar-se das armadilhas e a

raposa não consegue se defender dos lobos. É preciso, portanto, ser raposa para reconhecer

as armadilhas, e leão para assustar os lobos. A ação política comporta um jogo de astúcia e

51

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XVIII, p. 85. 52

Maquiavel discute o uso da metáfora numa carta a Vettori, de 20 de agosto de 1513, ao tempo em que

estava escrevendo O Príncipe. Cf.: RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p.170-171. 53

A origem da metáfora é um texto de Plutarco onde se faz referência ao general espartano Lisandro, morto

em 395 a.C. e que teria justificado suas ações políticas com a seguinte máxima: Laddove la pelle del leone

non è sufficiente, bisogna indossare la pelliccia della Volpe. Plutarco coloca Lisandro no mesmo plano do

ditador romano Sila, acusado de possuir uma astúcia volpina que lhe permitiria agir segundo o princípio de

que o estudioso e o forte devem se ajudar, quando um ou outro não forem o bastante. O autor romano está

preocupado em definir se a justiça ou a religião subordinam a política, ou se esta última aceita o engodo e

a simulação da verdade caso o fim em vista seja considerado lícito. Cf. STOLLEIS, Michael. Stato e

ragion di stato nella prima età moderna, p. 13. 54

Cf. RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p. 171. 55

Cf. FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p.190.

38

força, que o governante deve saber jogar segundo as circunstâncias. É, porém, necessário

saber disfarçar bem esse caráter, afirma Maquiavel, e ser grande simulador e dissimulador,

pois “[...] os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes, que o

enganador encontrará sempre quem se deixe enganar”.56

Nesse âmbito, sugere Maquiavel, triunfam aqueles que usam mais as qualidades da

raposa, mas se agir apenas como raposa e se combater apenas com as leis poderá não ser

temido. Por isso, o dirigente precisa agir também como leão, impondo respeito aos

comandados e distância aos inimigos. A virtù política, afirma Maquiavel, exige também os

vícios, assim como também exige o reenquadramento da força. O agir virtuoso é um agir

como homem e como animal. Quer como homem, quer como leão, quer como raposa, o

que conta é o “triunfo das dificuldades e manutenção do Estado”. Os meios para isso

deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão.57

Logo abaixo, Maquiavel afirma que o governante feliz é aquele que combina a sua

maneira de proceder com as cobranças do tempo e, similarmente, são infelizes aqueles que,

pelo seu modo de agir, estão em desacordo com os tempos. Afirma ele que, como se pode

perceber, os homens, no que diz respeito aos caminhos que os conduzem aos fins que

perseguem, agem de maneira diversa: um com prudência, outro com impetuosidade; um

com violência, outro com arte; um com paciência, outro com o contrário, sendo que cada

um desses caminhos levará o dirigente a alcançar o sucesso.58

Nos "Discursos"59

, Maquiavel estabelece uma exigência ao grande dirigente, ao

condutor de virtù, que, em parte, parece se chocar com o conjunto da teoria maquiaveliana

da ação política fundada no estudo da história. Ao líder de virtù não basta saber usar com

sabedoria e arte as chaves da política, todas as suas ambivalências, suas combinações, seus

paradoxos e suas contradições: “Não basta saber simular e dissimular, ter e parecer ter as

qualidades, saber ser raposa e leão, construir consensos e usar a força”.60

O dirigente de virtù deve ter ânimo, um caráter, uma moral individual infatigável. Não

pode mudar de caráter pessoal conforme a variação das circunstâncias. Somente esse líder

será capaz de fazer os usos adequados de todas as combinações, paradoxos, contradições e

56

Não se pode deixar de ressaltar o tema da necessidade, tão importante neste capítulo. Os homens, portanto,

creem, não somente porque são tolos, mas também porque a necessidade os obriga. Assim, o príncipe, por

necessidade, engana a mente. Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XVIII, p.84. 57

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XXV, p. 120. 58

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XXV, p. 120. 59

MAQUIAVEL, Discursos, III, 30, p. 97. 60

FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p. 181.

39

ambivalências do jogo político, pois terá a condição e a decisão de saber até onde pode ir e

quando deverá parar.

Sendo assim, a razão ou a prudência decide a conduta do príncipe com base em seus

fins próximos ou imediatos. A razão terá que também julgar os casos de um possível

conflito entre os fins próximos e o fim distante do bem comum, entre os quais o mais

premente é o do conflito entre a crueldade como qualidade útil e mal inegável. Há,

portanto, um limite para o uso das crueldades em beneficio da segurança e do bem-estar do

povo? Esta questão será tratada na observação de como o pensador florentino expõe sua

análise perante os casos e exemplos em que condena a crueldade.

A qualidade da crueldade não pode ser usada quando as ações exigidas exterminam,

mutilam ou exilam grande parte da comunidade, indo além de qualquer medida e

condenando a si mesma como meio para atingir o bem comum. Tal conclusão deriva da

exigência do bem comum quanto ao bom uso das qualidades e à adequação dos meios.

Para o pensador são condenáveis atitudes com requintes de perversidade, como, por

exemplo, tortura fora do comum infligida para o prazer do torturador, pois essas ações não

só levam ao maior perigo no exército do governante, como também ao ódio ao dirigente,

sendo assim, o povo passa a ver o líder não como alguém que age cruelmente, mas que é

cruel.61

A violência se insere, portanto, naquele contexto de flexibilidade do príncipe. O

primeiro aspecto que é frequentemente atribuído ao príncipe de Maquiavel é o da

capacidade do uso da violência para controlar os súditos. Esse aspecto não deve ser

deixado de lado, embora contido na questão da flexibilidade, porque muitos atribuem a

Maquiavel a defesa de um poder tirânico que mantém a obediência com base na força, na

coação.62

Na obra "O Príncipe", na qual aborda o tema “Dos que chegaram ao principado por

atos criminosos”, Maquiavel observa e se apresenta incomodado com a crueldade ou a

matança efetuada por alguns dirigentes a um grande número de indivíduos, aplicada com

barbaridade e sem necessidade. Se as crueldades destroem o grosso dos cidadãos ou dos

habitantes, está excluída a possibilidade de que elas lhe estejam sendo impostas para o bem

comum. 63

E, nesse sentido, o pensador nos fala:

61

Cf. DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno, p. 325. 62

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 100. 63

Cf. DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno, p. 325.

40

Agátocles Siciliano, não só simples particular, mas de ínfima e abjeta condição,

tornou-se rei de Siracusa. Filho de oleiro, teve sempre uma conduta criminosa

em todas as etapas da vida. Contudo, praticava suas vilanias com tanta força de

ânimo e de corpo que, ingressando na milícia, conseguiu promover-se até chegar

ser pretor de Siracusa. Investido nesse cargo, decidiu tornar-se príncipe e manter,

pela violência e sem obrigações para com outros, aquilo que por consentimento

lhe havia sido concedido. Tendo travado entendimento a respeito destes seus

desígnios com Amílcar, o Cartaginês, cujos exércitos acamparam na Sicília,

reuniu certa manhã o povo e o Senado de Siracusa como se tivesse que deliberar

coisas pertinentes à república, e, a um sinal combinado, fez seus soldados

assassinarem todos os senadores e as pessoas mais ricas do povo. Mortos estes,

ocupou e manteve o principado daquela cidade sem qualquer controvérsia civil.

(O príncipe, VIII) 64

E logo abaixo nos diz:

Não se pode propriamente chamar de virtù o fato de assassinar seus concidadãos,

trair os amigos, não ter fé, piedade nem religião. Deste modo pode-se adquirir o

poder, mas não a glória. Mas, se considerarmos virtù com que Agátocles se

atirou aos perigos e deles se livrou com força de seu ânimo ao suportar e superar

as adversidades, não vemos por que ele deveria ser julgado como inferior a

qualquer excelente capitão. Contudo, sua feroz crueldade e desumanidade, mais

a sua infinita malvadeza, não permitem que seja celebrado entre os homens

excelentes. (O príncipe, VIII, p. 38)

E, ao contrariar a atitude de Agátocles, Maquiavel justifica que é preciso distinguir

entre a crueldade “mal empregada” e a crueldade “bem empregada”. As crueldades bem

utilizadas são as realizadas em certas situações, pela necessidade de conseguir segurança,

mas nas quais, depois, não se insiste, convertendo tais ações em feitos da maior utilidade

possível em favor dos súditos. E, as mal usadas são aquelas que, apesar de a princípio

serem poucas, com o tempo é provável que mais aumentem do que desapareçam. Assim,

diz Maquiavel, “[...] o conquistador deve examinar todas as ofensas que precisa fazer, para

perpetuá-las todas de uma só vez e não ter que renová-las todos os dias”, pois, não as

repetindo, o condutor pode ganhar a confiança do povo e adquirir a sustentação através de

benefícios. Quem age do outro modo, precisa estar sempre “com a faca na mão”, não tendo

condições de jamais confiar em seus súditos, como também seus subordinados não

prestarão credibilidade ao príncipe devido às suas contínuas e renovadas injúrias.

E sobre as injúrias, orienta Maquiavel, elas devem ser implantadas de uma vez só,

consistindo “[...] conjuntamente a fim de que, sendo saboreadas, ofendam menos, enquanto

os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, para serem mais bem apreciados [...]”.65

64

Agátocles Siciliano, tirano de Siracusa, de 316 a.C. até 289 a.C. Conseguiu ampliar a hegemonia de

Siracusa sobre toda a Sicília grega. Amílcar Barca, antepassado de Aníbal, comandante das tropas

cartaginesas na Sicília. Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, VIII, p. 37. 65

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, VIII, p. 41.

41

Maquiavel complementa que, acima de tudo, um dirigente deve viver com seus súditos de

forma que nenhum imprevisto, mau ou bom, faça variar seu desempenho, pois, na origem

das atribulações em tempos adversos, o líder não terá tempo para o mal, “[...] e o bem que

fizeres não será creditado, uma vez que julgarão que o fizeste forçado, e não receberás,

então, a gratidão de ninguém [...]”.66

Concluímos, portanto, que há um limite para o pensador florentino em relação à

crueldade, pois a “verdade efetiva” e o “parecer ser” cruel são necessários nesse jogo da

arte de governar. Além disso, parecer ser cruel e ser cruel possui uma distância

significativa para Maquiavel, porém, é também difícil definir o limite pelo número de

mortos ou pelo modo de punir. O que importa é a flexibilidade e a habilidade de mudar,

enquanto os tempos favorecerem nas necessidades de mudanças.

1.4.2 O papel político da religião enquanto Instrumento Regni

A respeito do tema “parecer ser", encontramos também em Maquiavel outra leitura,

em razão de o pensador enfatizar que, dentro do campo simular e dissimular, a temática da

religião também se faz importante para a arte de governar. Este tema é abordado por

Maquiavel não de forma metodologicamente teológica, mas, sobretudo, com a análise da

importância da crença e a maneira como é trabalhada na cultura da política, pois, toda

religião deve ser julgada em relação a um fim que não é especificamente religioso, mas

político e na dedicação que ela promove ao bem comum. Com a função de estabelecer um

papel essencial para a organização da vida coletiva, a religião é analisada a partir de seus

resultados práticos, sabendo-se que a sua inclinação é de despertar tanto o medo quanto a

dedicação dos cidadãos a favor da vida coletiva. Sua posição é passar a exercer

ensinamentos na capacidade de desempenhar a tarefa patriota de movimentar os homens a

favor da formação, manutenção e fortalecimento do Estado, ou seja, na formação e

construção de uma identidade política.

A importância de uma religião não é o valor de seu fundador. O fundador de religião

apenas interessa a Maquiavel na medida em que é um fundador, ou refundador, político,

como o exemplo mencionado nessa pesquisa sobre Moisés. Também não é relevante o teor

66

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, VIII, p. 41.

42

dos seus princípios, ou o conteúdo de sua doutrina, mas como uma ferramenta para ser

aplicada em favor das ações políticas na concepção do Estado e na convivência coletiva

entre os cidadãos. De fato, o beneficio da religião é de natureza política e sobre essa

aplicação da religião à vida política Maquiavel afirma:

E, de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum, que

não recorresse a Deus; porque de outra maneira elas não seriam aceitas: pois há

muitas boas coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não têm em si

razões evidentes para poderem convencer os outros. Por isso, os homens sábios,

que querem desembaraçar-se dessa dificuldade, recorrem a Deus. (Discursos, I,

11, p. 50)

É possível também compreender com Ames (2002), que “[...] a religião é um

instrumento político, um meio pelo qual o governante prudente pode realizar, em nome de

Deus, coisas extraordinárias e inabituais indispensáveis à continuidade no tempo do

domínio político”.67

Nesse sentido, é importante que o governante seja um bom intérprete

das manifestações que a religião oferece e se beneficie da imagem religiosa, pois a

proteção do Estado e o amor à pátria do povo dependerão dessa habilidade. Nas palavras

de Adverse (2009), a religião é um recurso privilegiado para a solidificação dos

fundamentos de um Estado, para assegurar sua coesão e sua duração, por isso não pode ser

desprezada por nenhum governante.68

A religião se torna, portanto, um elemento de grande

eficácia política que deve ser dirigido com inteligência pelo condutor do Estado para

manter as instituições e a moralidade pública e para garantir com prudência a conservação

da pátria.69

A função política da religião se faz por dois resultados diferentes e é reduzida a

uma dupla função, com a formação e geração de um mesmo efeito. Para Maquiavel, a

religião deve ser compreendida como instrumentum regni, que se transforma em

ferramenta para que o ofício dos governantes leve os cidadãos a cumprir, por meio da

coação, a produção de um resultado, e contribuir com o viver coletivo e normativo e com a

atuação como força de persuasão da educação cívica. Assim, a religião é colocada sob a

perspectiva dos determinantes políticos, ou seja, cumpre uma função intimamente política,

sua ostentação proporciona no fato de ela construir um instrumentum regni, isto é, um

instrumento das necessidades instauradas pela vida política. Portanto, os dois resultados

67

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 198. 68

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 90. 69

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 200.

43

possuem a mesma função e ocorrem ao mesmo tempo dentro do papel político da religião,

cultivar a paz e a ordem do Estado. Nas palavras de Leonardi (2007), “[...] o exercício da

religiosidade é indispensável à construção do espaço humano e das relações sociais que

dela decorrem”. 70

Em sua dimensão política, a religião transforma os hábitos do povo,

transforma mais do que os conflitos sociais, do que as denúncias ou, até mesmo, do que as

leis. O sentimento religioso, quando direcionado ao culto dos símbolos pátrios e ao

respeito das instituições políticas, produz um efeito civilizador eficiente. Maquiavel aborda

o tema da ordenação civil pela análise de como Roma se utilizou da religião para organizar

suas instituições e a vida normativa das leis:

Embora Roma tivesse Rômulo como primeiro ordenador e lhe coubesse

reconhecer nele, como se filha fosse, o nascimento e a educação que teve os

céus, julgando que as ordenações de Rômulo não bastavam a tanto império,

inspiraram no peito do Senado romano a eleição de Numa Pompílio como

sucessor de Rômulo, para que as coisas que Rômulo deixara sem fazer fossem

ordenadas por Numa; este, encontrando um povo indômito e desejando conduzi-

lo à obediência civil, com as artes da paz, voltou-se para a religião, como coisa

de todo necessária para se manter uma cidade e a constituiu de tal modo que por

vários séculos nunca houve tanto temor a Deus quanto naquela república, o que

facilitou qualquer empreendimento a que o senado ou aqueles grandes homens

romanos quisessem entregar-se (Discursos, I, 11, p. 48)

Nessa passagem, Maquiavel apresenta a iniciativa de Numa, sucessor de Rômulo,

num tempo em que o problema político era limitar seu povo ao cumprimento civil. Em

função da necessidade de pacificar o povo romano, usou a religião como instrumento para

“conduzi-lo à obediência civil”. Ao associar o cumprimento de uma norma política a um

dever religioso, Numa teria realizado um empreendimento que, sem a presença da religião,

seria impossível. Portanto, a ferocidade do povo não poderia ser dominada pela força,

quando se tinha em mira a manutenção de um Estado e a sobrevivência após a morte de

seu fundador.71

Esse uso da religião como instrumentum regni delimita o âmbito de análise

da religião. A religião desempenha um papel constitutivo da sociedade e formador do

caráter dos cidadãos. O empreendimento político dos homens de Estado é facilitado pela

função de coesão social, desempenhada pela religião. O ensino e o preparo dos cidadãos

para viverem segundo uma conduta normativa fazem da religião uma espécie de terreno

preparado sobre o qual depois se projeta o Estado e o viver político:

70

Cf. LEONARDI, Marcos Evandro. Entre o elogio e a censura: o lugar da religião no pensamento de

Nicolau Maquiavel, p. 10. 71

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 90.

44

Mais do que pensar a relação entre religião e política, ou mesmo a respeito da

dimensão religiosa para os atores políticos, tema recorrente em vários

pensadores, a questão de Maquiavel está em pensar a religião no mundo político

como ferramenta na condução das coisas públicas. Os ordenadores não devem

respeitar o sentimento religioso de um povo, mas saber usar desse para bem

governar. (MARTINS, 2007, p.124)

Não é somente o aspecto político da religião que deve ser enfocado, mas o uso que

se pode fazer quando se desejar ordenar uma cidade, como era o caso da religião sob o

governo de Numa, o qual, para alcançar seus objetivos, não tratou o povo no terreno da

força, mas compreendeu que precisava voltar-se às “artes da paz”. Numa compreendeu que

a força não era o elemento fundamental para levar os cidadãos à obediência, e sim à

religião. Sendo assim, a religião foi aceita por ter se tornado um “modo de ser” dos

romanos, isto é, parte integrante de sua cultura. Ames (2006), nos lembra que, “[...] se o

povo romano se submeteu à ordem política em virtude do mandamento religioso, foi

porque reconheceu nele um valor”. 72

Esse valor manifestava-se nos bons costumes, no

cumprimento da lei, na coragem dos soldados e nas virtudes cívicas.

A religião exige do governante a habilidade de servir-se de forma perspicaz da fé

do povo para induzi-lo à obediência da lei civil, pois não é a violência, mas a religião o

elemento mais eficaz para levar o povo a um vivere civile. Somente um líder de virtù é

capaz de levar os cidadãos a temer a desobediência às ordens do Estado como se fosse uma

ofensa a Deus, pois o temor de Deus só é eficaz quando utilizado por um governante que

possa dirigi-los corretamente. Segue-se, portanto, que a grandeza de uma religião procede

da função e importância que ela exerce em relação à vida coletiva e “[...] ambas, função e

importância, são de caráter normativo: a religião ensina a recorrer e a respeitar as regras

políticas a partir do mandamento religioso”. 73

Isso se deve à dominação e à força do

mandamento divino em relação à lei humana para submeter o povo, pois os “[...] cidadãos

temiam muito mais violar o juramento que as leis, porquanto estimavam mais o poder de

Deus que o dos homens”. 74

De fato, as diferenças entre a lei divina e a regra política pertencem ao conhecimento

do governante. O ator político, para atingir os homens, deverá recorrer à religião e, a partir

daí, a figura do fundador político deverá se fundir com a do líder religioso. Essa fusão não

72

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p.63. 73

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 53. 74

MAQUIAVEL, Discursos, I, 11, p. 49.

45

significa que o Estado deverá se subordinar ao religioso ou o religioso ao Estado, mas que

a imagem e a atuação do político deve guardar algo religioso porque sua eficácia depende

em parte de sua inserção na dimensão religiosa, sobretudo para aquele que está prestes a

ordenar um Estado.75

Se uma lei é apresentada ao povo apenas como lei estabelecida pelo

dirigente, ela não atingirá o objetivo aspirado de forma pretendida, mas, se for exposta ao

povo como um mandamento divino, ela se torna facilmente recebida, pois o medo de violar

uma lei divina é maior que descumprir uma lei estabelecida pelo legislador, pois que a

religião torna-se mais hábil que a força das leis humanas no domínio e na organização dos

cidadãos. Nesse sentido, afirma Bignotto (1991), “[...] o que lhe interessa no fenômeno

religioso não é, contudo, o conteúdo da fé, mas o fato de que as religiões realizam com

perfeição a passagem da vontade particular para a universalidade da lei”. 76

Considerando, pois, que a religião, em seu fundamento, é essencialmente “temor de

Deus” e que cumpre o papel de formadora do sentimento político dos cidadãos, Maquiavel

destaca vários instrumentos referidos capazes de produzir comportamentos politicamente

úteis ao ordenamento do Estado, com ênfase à simulação, aos juramentos e aos vaticínios.

Uma das funções políticas mais importantes da religião consiste em inibir a

corrupção do Estado. O desprezo do culto aos deuses, geralmente, favorece e eleva a

incidência da corrupção. Para que a função política da religião seja eficaz, ela precisa ter

natureza universal, válida para todos os indivíduos. Não pode ser partidarizada ou

particularizada por grupos ou facções, pois isto leva à descrença. Os governantes, mesmo

que não sejam religiosos, devem respeitar os sentimentos religiosos já que a religião

cumpre a função de auxílio na manutenção da unidade do povo e dos bons costumes: “O

conhecimento da diferença entre a norma política e o mandamento divino é do domínio

unicamente de quem governa”. 77

Em outras palavras, fica claro que a questão principal

não é a verdade da religião, e sim a da interpretação da vontade divina por aqueles que

comandam e a favor de seus propósitos. O engano tem destaque nos exemplos de

Maquiavel, quando essa atitude faz da religião uma ferramenta apta para proporcionar

comportamentos individuais e coletivos politicamente vantajosos. Novamente podemos

destacar a atuação de Numa em Roma:

75

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 92. 76

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 07. 77

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 56.

46

Numa ficaria em primeiro lugar: porque, onde há religião, facilmente se podem

introduzir armas; e, onde houver armas, mas não houver religião, esta com

dificuldade poderá ser introduzida. E vede que Rômulo, para ordenar o senado e

para criar outras ordenações civis e militares, não precisou da autoridade de

Deus, mas Numa sim, e este simulou ter intimidade com uma Ninfa, que lhe

aconselhava aquilo que ele deveria aconselhar ao povo: e tudo porque ele queria

criar ordenações novas e inusitadas naquela cidade, mas desconfiava que sua

autoridade não bastava. (Discursos, I, 11, p. 50)

Aqui o verdadeiro problema não é saber se há ou não algum fundo de verdade na

religião, mas a imagem produzida para dirigir os sentimentos e as energias que a religião

suscita no espírito dos cidadãos num caminho politicamente útil e construtivo. Para ser

efetiva, a autoridade necessita se apoiar sobre a religião devido ao poder de persuasão

desta. Se o dirigente se apresenta ao povo como alguém que mantém contato com um

Deus, sua tarefa legisladora é imediatamente alçada a outro nível no qual a palavra

pronunciada não é mais objeto de discussão e ganha força imperativa: a ordem que o

legislador quer introduzir tem o aval de um Deus. 78

Numa, diz Maquiavel, percebeu que

sua autoridade seria incapaz de “criar ordenações”, porém, compreendendo a importância

de tal iniciativa, “[...] simulou ter intimidade com uma Ninfa, que lhe aconselhava aquilo

que ele deveria aconselhar ao povo”. O engano, evidentemente, só era do conhecimento de

Numa, sendo posteriormente avaliado pelos resultados obtidos, o povo maravilhado, cedia

ante todas as argumentações.

É preciso, portanto, que o governante coloque em cena o aparato religioso e faça

funcionar seu incomparável poder de persuasão, o que requer habilidade, porque, se a

falsidade é descoberta, os homens se tornam incrédulos e tendem a perturbar a boa ordem.

Mesmo assim, no entanto, a falsidade ou a veracidade da própria religião tem menor

relevância do que a sua efetividade, ou o seu poder de mobilizar os homens. O que importa

é a utilização de seu poder de persuasão e, uma vez que ela o perde devido à imprudência

do ator político, o laço social se encontra ameaçado e as divisões dentro da cidade tendem

a se acentuar a ponto de ameaçar a sobrevivência da comunidade. Sendo assim, o poder da

lei não é suficiente para mover os homens sem o recurso da religião. O que explica essa

força da religião é a capacidade de tocar diretamente as paixões dos homens e, dentre elas,

a paixão fundamental do medo. 79

Para Maquiavel, portanto, as atitudes em favorecimento

ao bem coletivo dos cidadãos são justificáveis pelo resultado produzido, pois a imagem

78

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 94. 79

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 95.

47

garante ao ordenador um estabelecimento de ordem obediente, sem o uso da força do

Estado.

Um segundo aspecto pode ser observado no modo como os romanos se serviam dos

oráculos e dos vaticínios. No capítulo XIII do primeiro livro dos "Discursos" podemos

encontrar exemplos apresentados por Maquiavel referentes ao modo como os romanos

utilizavam a religião para reordenar a cidade, realizar suas empresas e debelar tumultos:

Como o povo romano tivesse constituído tribunos com poder consular, sendo

todos plebeus exceto um, e ocorrendo naquele ano peste, fome e certos

prodígios, os nobres usaram essa ocasião na nova eleição dos tribunos, dizendo

que os deuses estavam irados porque Roma usara mal a majestade de seu

império, e que não havia outro remédio para aplacar os deuses, senão restringir a

escolha dos tribunos à classe dos nobres: donde que a plebe, atemorizada por

aquela religião, elegeu como tribunos todos os nobres. ( Discursos, I, 13, p. 57)

Se o juramento é obtido pela força, o oráculo é eficaz na medida da capacidade de

simulação do ator político. O oráculo é sinal de proximidade com os deuses e essa

proximidade, para ser convincente, tem de ser simulada, pois, para quem deseja estabelecer

“ordem nova e inusitada”, aparentar o comércio com os deuses é imprescindível. O

legislador não pode confiar apenas em sua própria autoridade quando vai apresentar as leis

ao povo. 80

Outro exemplo apresentado por Maquiavel é o modo como os capitães se

utilizavam dos temores religiosos para obter soldados dispostos a uma iniciativa patriota e

participativa nas batalhas:

Vê-se também como, na expugnação da cidade de Veios, os capitães dos

exércitos se valiam da religião para manter seus homens dispostos às empresas;

pois, como o lago Albano estivesse surpreendentemente cheio naquele ano, e os

soldados romanos estivessem enfadados com o longo assédio, querendo voltar

para Roma, os romanos inventaram que Apolo e alguns outros vaticínios diziam

que naquele ano se expugnaria a cidade de Veios, desde que se vazasse o lago

Albano: e isso fez com que os soldados suportassem o fastio do assédio,

dominados que estavam pela esperança de expugnar a cidade; e prosseguiram

contentes, até que Camilo, tornando-se ditador, expugnou a cidade, depois de dez

anos de sítio. (Discursos, I, 11, p.57)

O pensador afirma que, nesse caso, a religião bem empregada serve para conquistar

a força na cidade e a devolução do tribunado à nobreza. Sem esse meio, dificilmente se

80

Cf. ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica, p. 93.

48

teria chegado a qualquer um desses objetivos: “[...] é importante destacar que o resultado

deve convergir com o bem coletivo. É esse efeito positivo, reconhecido por todos, o que

valida a sua utilização”. 81

Assim, portanto, a interpretação cujo efeito é manifestamente

beneficiável apenas às minorias favorecidas, ou a algum dirigente no poder, tem por

consequência a difamação do oráculo ou dos augúrios. Nesse caso, havendo prejuízo à fé,

da descrença logo brota o tumulto, que danifica a continuação durável da vida do Estado.

Outro aspecto que deve ainda ser destacado é o proveito do juramento religioso

feito em público em relação ao juramento político, em que não se obtêm e provoca a

mesma obrigação. O pacto feito entre os homens e os deuses, por estar alicerçado no

temor, cria mais comprometimento do que os pactos feitos entre os homens. Ao perceber a

fragilidade desses pactos humanos por oposição à força dos juramentos para com os

deuses, Maquiavel vê neles o grande instrumento político à disposição do ordenador para

instaurar um sólido Estado:

E quem examinar as infinitas ações do povo de Roma em conjunto e de muito

dos romanos de per se verá que aqueles cidadãos temiam muito mais violar o

juramento que as leis, porquanto estimavam mais o poder de Deus que o dos

homens, como se vê claramente dos exemplos de Cipião de Mânlio Torquato.

Porque, depois da derrota infligida por Aníbal aos romanos em Canas, muitos

cidadãos se haviam reunido e, desacorçoados com a pátria, combinaram

abandonar a Itália e ir para a Sicília; Cipião, ao saber disso, foi ter com eles e, de

espada em punho, obrigou-os a jurar que não abandonariam a pátria. Lúcio

Mânlio, pai de Tito Mânlio, que depois foi chamado Torquato, fora acusado por

Marcos Pompônio, tribuno da plebe, e, antes de chegar o dia do julgamento, Tito

foi ter com Marcos e, ameaçando matá-lo se ele não jurasse que retiraria a

acusação feita a seu pai, obrigou-o a jurar; e aquele, tendo jurado por medo,

retirou a acusação. (Discursos, I, 11, p.49)

A passagem nos leva a compreender que o uso que se faz do juramento estabelece

uma involuntária manifestação de responsabilidade da parte do indivíduo, uma intensa

vinculação entre o medo reservado de um Deus e uma obrigação pública de caráter

político. O Estado não se conserva pela força e sim pela lei e a eficácia da lei que é

reconhecida através dos instrumentos da religião: “A dinâmica do juramento: ele não

resulta de um ato espontâneo, de uma obrigação coletiva que uma comunidade dá

voluntariamente a si própria, mas, muito antes, é sempre efeito de uma coerção”. 82

Dessa forma, portanto, por conservar apenas o resultado coercitivo e, por assim

dizer, inibidor, a religião aparece de modo negativo para quem deve obedecer. Já do ponto

81

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 60. 82

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 62.

49

de vista do Estado, sua função é positiva. Considerada como valor instrumental, a religião

é um elemento de grande eficácia política que deve ser manejada com astúcia pelo chefe de

Estado para manter as instituições e a moralidade pública e para assegurar melhor a defesa

da pátria e um bem coletivo para seus cidadãos.

Das condições apresentadas sobre a necessidade da religião, como um instrumento

político capaz de ordenar e reordenar uma cidade, observamos que nos faz pertinente

abordarmos para a reflexão que circunscreve a esfera desta pesquisa, o assunto das armas,

pois, para Maquiavel “ [...] onde há religião, facilmente pode introduzir armas, mas, onde

houver armas, mas não houver religião, esta com dificuldade poderá ser introduzida [...]”.83

Sendo assim, analisaremos que além da religião, as armas também possuem grande

importância para a boa ordem, preservação e manutenção da cidade.

1.4.3 A virtù do príncipe com boas armas e o povo

Em "O Príncipe", ao realizar uma minuciosa investigação sobre conquista, fundação e

manutenção do principado, Maquiavel procura salientar como as armas fornecem a força

necessária para o príncipe superar as dificuldades enfrentadas nessas tarefas. Armas, para

Maquiavel, não se enquadram somente em funções técnicas, e sim também na sustentação

da política. Para isso, para Maquiavel, torna-se indispensável a reflexão sobre se é possível

a preservação da política sem as forças militares, pois as armas são um fator importante,

sendo utilizadas como um instrumento político indispensável para a conservação e

proteção dos súditos e dos territórios. Para Ames (2002), a religião também não se

restringe ao seu desempenho meramente instrumental de simples meio para conservar o

Estado seguro e duradouro, mas cumpre o papel de formadora de uma consciência coletiva

geradora consentimento. O papel das forças armadas não se restringe, igualmente, como

em princípio poderíamos supor, à sua dimensão coercitiva. 84

Nesse sentido, a organização

de uma milícia popular é para Maquiavel o melhor momento da política, pois, se contata a

importância do povo na criação e manutenção de um Estado forte e seguro.

83

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, I, 11, p. 50 84

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 224.

50

Ao realizar uma minuciosa investigação sobre a conquista, a fundação e a manutenção

do principado, Maquiavel salienta que as armas fornecem forças necessárias para o

condutor superar as dificuldades enfrentadas nas tarefas e execuções do território. Mesmo

assim, porém, para o pensador florentino, armas não comportam somente funções técnicas,

mas também políticas. Como afirma Lefort, “[...] não é um bom governo o que não souber

associar sabedoria política e poder militar [...]”. 85

Nessa perspectiva, é necessário analisar

o papel das armas como um importante instrumento político.

Maquiavel sempre considerou necessário que os poderes políticos e militares

estabelecessem uma unidade e que as armas servissem de instrumento para proporcionar a

vida concreta para as boas leis. 86

Em se tratando de um Estado, são necessários alguns

elementos que garantam a ordem e também a defesa em relação ao inimigo. Na passagem

do capítulo XII de "O Príncipe", o pensador faz um jogo ao colocar as armas e as leis como

complementação. Afirma também que os principais fundamentos de todos os Estados,

tanto dos novos como dos velhos ou dos mistos, são as “[...] boas leis e as boas armas [...]”,

e que não se podem ter leis sólidas onde não houver boas armas, e onde existirem boas

armas costuma-se ter leis seguras. 87

Maquiavel não considera que somente as boas leis sejam suficientes para garantir um

alicerce sólido para a conservação da disciplina política no Estado. Decorre que dessa

situação não é possível uma cidade ter boas leis, se não possuir boas armas e bons

soldados. Elas, por si só, são incapazes de impedir a sobreposição dos interesses

particulares sobre os públicos, uma vez que não apresentam uma força coercitiva autos

suficiente apta a punir os delitos cometidos pelos homens. Assim, “[...] as leis como

sanções supõem o emprego da força ou das armas, e as armas, enquanto força organizada

supõe ordenamentos ou leis”.88

Para que seja possível constranger os homens a uma

determinada conduta, estabelecida pelas boas leis, o dirigente precisa possuir uma

ferramenta de eficácia e esta deve estar materializada nas boas armas89

.

Para construir um poder organizado e ciente das suas potencialidades são necessários

exércitos organizados que lutem por convicção, desconsiderando os interesses particulares.

85

LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel, p. 321. 86

Cf. SASSO, Genaro. Niccólò Machiavelli: I – Il pensiero político, p. 192. 87

Cf. MAQUIAVEL. O príncipe, XII, p. 57. 88

DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno, p. 115. 89

No curso das exposições, o autor começa por uma enumeração, a dos exércitos (mercenários, auxiliares,

mistos e próprios), que se apresenta como exaustiva, e aquela, muito vasta, das virtudes e dos vícios dos

quais se tem o costume de gratificar um príncipe, depois retorna sobre cada um dos aspectos mencionados

para fazer deles uma análise. Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel, p. 329.

51

Nesse aspecto é que Maquiavel condena os exércitos mercenários e os considera inúteis e

perigosos. Afirma que o condutor que apresenta seu poder alicerçado em forças

mercenárias jamais terá segurança e tranquilidade, pois são desunidos, ambiciosos,

indisciplinados, infiéis, valentes entre amigos e covardes entre inimigos.90

Contratados por determinados valores (soldo), não possuem paixão ou motivos que os

mantenham em campo, apresentando qualquer inexistência de patriotismo, o que foi um

grande mal que afetou as cidades italianas contemporâneas a Maquiavel. Os comandantes

(capitães ou chefes) de forças mercenárias chamadas condottieri, recebiam uma condotta,

isto é, um contrato para conduzir o exército de um príncipe ou república mediante

pagamento91

. O príncipe deve, portanto, organizar um Estado que disponha de meios para

se defender e não venha a depender exclusivamente da proteção de outro príncipe.

A Itália, na maior parte de suas cidades, não contemplava boas leis e nem boas armas,

pois a proteção da cidade era confiada às tropas mercenárias. Assim, com a ausência de um

exército bem disciplinado, da força das armas, ocorreram grandes dificuldades em

construir um poder alicerçado em estruturas firmes: “Certamente as armas são um

instrumento do poder constituinte elas são não somente seu corpo, mas também seu

prolongamento. As armas são a dinâmica da constituição do principado, não somente no

tempo de guerra, mas também em tempo de paz.”92

O chefe deve estar atento a qualquer possibilidade de imprevistos a que possa estar

exposta sua cidade. A situação que faz com que um homem ou vários não tenham

condições de prever as coisas, obriga-os a estarem sempre preparados. É relativamente

plausível um governante estar sempre precavido para evitar o malogro da surpresa e

também para manter sua pátria forte.

A preparação de uma milícia forte e popular é o momento em que, segundo

Maquiavel, melhor se verifica a importância de um Estado forte. Segundo Ames (2002), é

na defesa da pátria dos ataques externos que o povo participa de modo mais elevado nos

negócios públicos, de modo que o cidadão maquiaveliano é, fundamentalmente, um

cidadão-soldado: o exercício da cidadania implica o serviço militar. A questão militar e a

questão política se interligam estreitamente no seu pensamento. 93

90

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, XII, p. 58. 91

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 224. 92

Cf. NEGRI, Antonio. O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 81. 93

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 224.

52

Maquiavel recomenda aos príncipes o incansável aprimoramento da arte da guerra.

Para tanto, nunca devem permitir “[...] que seus pensamentos se afastem dos exercícios

militares; exercícios que devem praticar na paz mais ainda do que na guerra, de duas

formas: pela ação e pelo estudo”. Pelo estudo, lendo histórias de países e observando como

os grandes homens se conduziram nas guerras. Pela ação, mantendo a tropa disciplinada

em constantes exercícios, que tanto podem ser realizados em situações simuladas de

campanha, como em caçadas ou nos mais diversos esportes.

A reflexão do pensador florentino a propósito da arte da guerra era orientada pela

necessidade de criar o sentido de coletividade civil, contrapondo a ideia de defesa da pátria

e devotamento ao Estado à motivação por interesse pessoal dos exércitos mercenários.

Assim, tanto o príncipe quanto o exército devem ter virtù para não serem fracos ou

corruptos. Para Maquiavel, a criação de um exército permanente com seus próprios

cidadãos comandados pelo governo é fundamental para o fortalecimento, preservação,

manutenção e expansão territorial.

Nessa perspectiva, a primeira indicação de Maquiavel referente ao apoio popular aos

chefes de Estado se dá no terceiro capítulo de "O Príncipe", quando o pensador sustenta

que, mesmo “[...] dispondo de exércitos valorosos, sempre precisará de apoio dos

habitantes para penetrar numa província”. 94

Nas próximas escritas afirma que “[...]

somente é necessário ao príncipe ter o povo como amigo; caso contrário, não terá remédio

na adversidade [...]”. Maquiavel finaliza sua reflexão dizendo que “[...] um príncipe sábio

deve sempre encontrar um modo pelo qual seus cidadãos, sempre e em qualquer tempo,

tenham necessidade do Estado e dele; assim, eles sempre lhe serão fiéis”.95

94

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, III, p. 7. 95

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, IX, p. 47.

53

2 A VIRTÚ E OS MODELOS DA AÇÃO POLÍTICA

Ao iniciar o capítulo VI, “Dos principados novos que se conquistam com armas

próprias e com virtù", Maquiavel distingue algumas maneiras de se conquistar e se

manter como chefe de estado. A primeira forma é a conquista a partir da virtù e das

próprias forças, pois, para o pensador florentino, nos principados existe maior ou menor

dificuldade para mantê-lo conforme seja superior ou inferior a virtù de quem

conquistou.

Assim, a passagem de um simples cidadão a príncipe presume virtù ou fortuna,

ou seja, uma dessas duas partes pode amenizar muitas das dificuldades. Por

conseguinte, aquele que depende da fortuna adquire melhores efeitos favoráveis nas

ações. Quanto aos que pela própria virtù se tornaram dirigentes, Maquiavel menciona

como modelo o personagem Moisés, apresentado como um exemplo de êxito da

Antiguidade. Para tanto, o autor logo desconsidera as atitudes de Moisés por se tratar de

um executor de coisas ordenadas dentro da divindade, mas, por conseguinte, alega que

tal líder religioso pode ser considerado um exemplo a ser imitado e analisado também

dentro das ações efetuadas com virtù. Outra figura utilizada pelo pensador nesse mesmo

bloco diz respeito ao frei Girolano Savonarola, que é exemplificado como um exemplo

de fracasso dos dias atuais, um profeta desarmado, que, ao precisar se dispor de outro

modo perante as circunstâncias, não modificou seu comportamento e suas ações,

gerando assim uma destituição de poder e sua própria ruína.

Outro capítulo utilizado por Maquiavel para demonstrar exemplos de virtù é o

tratado com a seguinte abordagem: “Dos principados novos que se conquistam com as

armas e a fortuna de outrem”, este bloco é dedicado quase todo à análise das aventuras

de César Bórgia, em que Maquiavel retoma a discussão de que existem duas formas de

se conquistar um principado novo: uma com armas e virtù próprias e outra com armas

de outros e contanto apenas com a fortuna. Assim, é o caso de Bórgia, que adquiriu o

poder pelas mãos de seu pai, porém, manteve com perspicácia suas articulações na

manutenção do poder enquanto atuava como dirigente político.

Diante disso, apresentamos, neste capítulo, três exemplos apresentados por

Maquiavel em suas reflexões. Moisés, como um exemplo de um bom fundador e

mantenedor, Savonarola como um exemplo de efeito negativo na regência dos negócios

54

públicos e Bórgia, o qual é apresentado como uma figura que não conquistou o poder

pela virtù, mas utilizou de meios inteligentes para sustentar suas habilidades.

2.1 Moisés: a religião e política no deserto.

No capítulo seis da obra "O Príncipe", ao abordar o tema “Dos principados novos

que se conquistaram com armas próprias e com virtù", Maquiavel inicia sua reflexão

referindo alguns líderes por ele considerados importantes, que, pela própria virtù, se

tornaram dirigentes. Como diz ele, os mais importantes foram Moisés, Ciro, Rômulo,

Teseu, etc.96

E, apesar de Maquiavel não considerar interessante a discussão sobre Moisés,

por ter sido “[...] um mero executor de coisas ordenadas por Deus [...]”, deve ser admirado

ao menos pela graça que o tornou digno de falar com Deus.97

Esse personagem histórico,

no entanto, aparece várias vezes em suas escritas, e sempre quando o pensador florentino

se refere aos lideres que são dignos de imitações.98

Na obra "Discursos", Maquiavel

também relata, em suas escritas, que “[...] entre todos os homens louvados, os mais

louvados foram os cabeças e ordenadores de religiões [...]”, logo depois, “[...] os que

fundaram repúblicas ou reinos”99

. Sendo assim, consideramos esse personagem como foco

desta parte do trabalho.

96

Moisés libertou os hebreus do cativeiro egípcio; Ciro fundou o Império persa (VI a.C.); Teseu e Rômulo

pertencem às lendas de fundação das cidades de Atenas e Roma. No entanto cabe enfatizar que as

fronteiras entre o lendário e o histórico, no tempo de Maquiavel, estavam longe de coincidir com as que

traçamos no dia de hoje. MAQUIAVEL, O príncipe, VI, p. 25. 97

Moisés não é chamado, nas escritas de Maquiavel, como um fundador e conquistador, porém ele parece

estar presente muitas vezes disfarçado como um dos “muitos outros”. Cf. MARX, Steven. Moses and

machiavellism, p. 563. 98

Maquiavel foi um dos primeiros a ler a Bíblia não como revelação, mas como um texto secular, da mesma

forma que lera as histórias clássicas. Seu Deus não era mais ou menos real para ele do que as divindades

gregas e romanas. Essa abordagem humanista permitiu-lhe reconhecer uma riqueza nos fatos, e em

caráter o relato bíblico do nascimento da nação israelita liderada por Moisés, visto também pelo

florentino como um libertador heróico e conquistador violento. MARX, Steven. Moses and

machiavellism, p. 551-554. 99

MAQUIAVEL, Discursos, I, 10, p. 44.

55

No Moisés do pentateuco100

, Maquiavel também descobre um herói ideal, um

libertador e conquistador violento, um modelo de qualidades inerentes aos que fundaram

instituições duradouras101

, pois, além de alcançar a glória por ter liberto seu povo da

escravidão, Moisés foi um bom governante porque soube fazer um novo ajuste sempre que

se apresentavam novas necessidades para seu povo. Agiu de maneira modelar ao instituir

todos os ordenamentos políticos e religiosos para a criação de uma nova forma política.

Na análise de Maquiavel, o caráter especial dos líderes pode fazer sentido em

algumas situações. O dirigente é distinguido por eficiente e audaz, ou seja, por sua virtù, na

qual inclui qualidades como virilidade, coragem, força e inteligência (ao invés de verdade,

bondade, justiça). É o que impulsiona os homens para o poder que os torna brutos e que os

leva à fama. Assim, a virtù é adquirida através da superação das adversidades com a

vontade e a capacidade. Nas ações de suas vidas, recebem nada mais que a oportunidade,

assim definida por Maquiavel por “ocasião”. Do grego “ocasião” é expressa por kairós,

que significa “tempo oportuno” ou “momento certo”, ou seja, o homem aproveita da

“ocasião” como fonte de projetos ordenadores da vida em seu meio. Assim, o dirigente que

traçar seus planos deve levar em conta que absolutamente o novo pode acontecer, e que

somente um homem virtuoso opera em momentos oportunos. No poema "Da ocasião", de

Filippo de Nerli102

, a oportunidade é colocada como uma percepção imediata, “[...] e tu,

enquanto perdes tempo falando, ocupado com pensamentos em vão, não notas que eu já

escorreguei em suas mãos”. Era necessário, portanto, que Moisés encontrasse no Egito o

povo de Israel escravizado e que esse povo se dispusesse a segui-lo e a lutar pela liberdade.

Uma ocasião como essa é o que torna um homem afortunado; enquanto sua excelente virtù

faz com que reconheça a ocasião. Com isso, traz honra e felicidade à sua pátria.103

Conforme os fatos avançam, as circunstâncias obrigam o líder a assumir e, de certo

modo, a antecipar ou a repetir funções, que, assim, se multiplicam e se sobrepõem. Ao

falar de Moisés, Maquiavel deixa de lado as variedades de atribuições cristãs tradicionais

utilizadas nas escritas da Bíblia, e passa a comentar somente os cenários e as crises

100

Do grego, "os cinco rolos", o pentateuco é composto pelos cinco primeiros livros da Bíblia, escritos por

Moisés, que compreende Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, seus conteúdos básicos

são: ( I ) começo do mundo e do homem; ( II ) história dos patriarcas, desde Abrão até José; ( III )

escravidão e saída do Egito; ( IV) revelação e aliança em Monte Sinai; (V) material normativo, religioso e

jurídico, como o Decálogo, o código da Aliança e diversas leis do culto, intercalado com a narração da

chegada a Canaã. Cf. GALIMIDI, José Luis. Moisés, o la política en el desierto, p. 298. 101

Cf. MARX, Steven. Moses and machiavellism, p. 552. 102

Filippo de’Nerli (1485-1556) tinha longa familiaridade com Maquiavel. Foi autor dos Commentari de

‘fatti civili occorsi dentro la città di Firenze dal 1215 al 1537. 103

Cf. MAQUIAVEL, O príncipe, VI, p. 25.

56

políticas em que Moisés adota decisões urgentes, atitudes que, na perspectiva de

Maquiavel, evidenciam claros comportamentos de um perfil de homem de virtù pois tem

sucesso aquele que é capaz de adaptar sempre suas estratégias de ação de acordo com as

modificações do curso do tempo, ou seja, um novo modo de expressar a flexibilidade. 104

Para Maquiavel, o dirigente deve entender que não pode observar todas as coisas

pelas quais os homens são considerados bons, pode agir contra a fé, contra a caridade,

contra a humanidade e contra a religião. Precisa, portanto, ter a personalidade preparada

para voltar-se para onde lhe ordenaram os ventos e as variações das coisas, porém, não se

afastando do bem, mas saber entrar no mal quando necessário. 105

Foi exatamente sobre

esse ponto, admirável em Moisés, que Maquiavel faz seus comentários, pois, além de

utilizar da religião, empregou um Deus como um grande professor e um pedagogo de

recursos,106

como se pode examinar no final do livro "Deuteronômio" escrito sobre

Moisés:

Não se levantou mais em Israel profeta comparável a Moisés, com quem o

Senhor conversava face a face. (Ninguém o igualou) quanto a todos os sinais e

prodígios que o Senhor o mandou fazer na terra do Egito, diante do faraó, de

seus servos e de sua terra, nem quanto a todos os feitos às terríveis ações que ele

operou sob os olhos de todo o Israel. 107

Tal personagem tem atitudes heróicas e divinas ao mesmo tempo, sua voz é

incomparável e inatingível, tanto que nos livros de Êxodo e Números, o profeta é retratado

às vezes como um servil mundano de personalidade mais que humana e, em outras vezes, é

mencionado e identificado como um Deus vitorioso.108

No capítulo trigésimo do livro

terceiro dos "Discursos", Maquiavel afirma que “quem ler a Bíblia sensatamente verá que

Moisés, para que suas leis e suas ordenações tivessem progressos”, foi obrigado a matar

muitos indivíduos movidos por inveja e que agiam para inviabilizar seus desígnios. O

profeta mandou atacar as terras de Madianitas e enviou doze mil homens para o combate,

atacando os Madianitas como ordens do Senhor, matando reis e líderes, eliminando a todos

os varões adultos inimigos, e aprisionando mulheres com seus filhos, apanhando todo o

gado, rebanhos e bens, incendiando todas as cidades que habitam e todos os

acampamentos, levando consigo todo o espólio e todos os despojos, animais e pessoas.

104

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política, p. 144. 105

Cf. MAQUIAVEL. O príncipe, XVIII, p. 85. 106

Cf. MARX, Steven. Moses and machiavellism, p. 556. 107

Bíblia Sagrada, Livro Deuteronômio, 34, 10-12, p. 253. 108

Cf. MARX, Steven. Moses and machiavellism, p. 554.

57

Irado com os chefes militares, o profeta ordenou que matassem todas as mulheres que

tivessem tido comércio com um homem e os filhos varões, mantendo somente as crianças

mulheres e jovens preservadas.109

Maquiavel explica as ações brutais de Moisés justificando que a inveja é muitas

vezes a razão pela qual os homens não conseguem realizar boas ações. Acaba-se com a

inveja de dois modos. O primeiro é quando, diante de um acontecimento grave e difícil, e

todos vendo o perigo, deixam de lado a ambição e correm espontaneamente a obedecer. O

segundo modo é quando, para vencer a inveja, não se tem outro remédio senão a morte

daqueles que a nutrem, ou por morte natural ou por morte induzida pela ação cruel. Nesse

caso, como afirma Maquiavel, é muito difícil livrar-se de muitos por morte natural, então a

melhor maneira é o condutor pensar em todos os meios possíveis para livrar-se desse

problema.110

Desse modo, Moisés, ao se deparar com povoados que não seguiam sua doutrina,

que possuíam lugares de cultos, imagens e objetos de idolatrias, povoados esses que

poderiam tirar sua autoridade de condutor e de retransmissor das palavras religiosas; vendo

ele que poderia correr o risco de suas pregações não mais valerem para controlar seu

grupo; percebendo que a obediência não viria voluntariamente, utilizou de meios violentos

para conseguir manter sua capacidade de influência.

Ao se debruçar sobre esse assunto, Maquiavel afirma que “[...] todos os profetas

armados vencem, enquanto os desarmados se arruínam”. Moisés não teria conseguido que

suas constituições e seus desígnios fossem obedecidos por tanto tempo se estivesse

desarmado. E foi o que aconteceu no tempo de Savonarola, que se arruinou a partir do

momento em que a multidão começou a não acreditar e ele não dispunha de meios

militares, nem para manter firme o que havia creditado, nem para fazer crer os

descrentes.111

Homens como Moisés, afirma Maquiavel, enfrentaram grandes dificuldades,

defrontaram-se com caminhos perigosos e precisaram superar-se pela virtù. Após

vencerem esses perigos, passaram a ser venerados e, tendo aniquilado os que tinham inveja

de suas qualidades, tornaram-se poderosos, seguros, honrados e felizes.

109

Cf. Bíblia Sagrada, Livro Números, 31, 1-19 p. 209. 110

MAQUIAVEL. Discursos, III, 30, p. 411. 111

MAQUIAVEL. O príncipe, VI, p. 26.

58

2.2 O Caso de Savonarola.

As experiências do profeta Girolamo Savonarola são destacadas nas obras de

Maquiavel. Frade tomista, profeta e ortodoxo, residente em Florença desde 1490, ficou

conhecido por queimar livros e obras de artes considerados profanos. Desenvolveu um

estilo profético de fazer pregações e de tal modo conquistou o apoio dos cidadãos

florentinos.112

Savonarola não se ocupou de fazer a manutenção da cidade e em formar

bons soldados com boas armas para a defesa de seus cidadãos dos prováveis ataques. E foi

no sentido de não mudar de atitude para a conservação do seu povo que Maquiavel aponta

Savonarola como um sacerdote de muitas virtudes e pouca virtú, pois sua capacidade de

agir em acordo com as circunstâncias, de mudar a atitude conforme a necessidade, não foi

apresentada pelo profeta. Savonarola tinha, portanto, tudo para vencer, exceto as armas

para defender-se, o que o levou à derrota e à morte.

Analisando a situação de Savonarola, observamos que o profeta estabeleceu uma

crença em sua verdade, na verdade de suas palavras, conquistando e persuadindo o povo de

Florença, cidade que passava por um período de transição política entre 1492 a 1494.

Florença foi influenciada diretamente pelos sermões do monge e de sua doutrina religiosa.

Sobre esse fato, Maquiavel comenta que:

[...] o povo de Florença não parece nem ignorante nem rude, no entanto, o frei

Jerônimo Savonarola o persuadiu de que falava com Deus. Não quero julgar se

era verdade ou não, pois que de tal homem se deve falar com reverência, mas

digo, sim, que um número infinito de florentinos acreditava ter visto nada de

extraordinário que os levasse a crer; porque sua vida, sua doutrina e o assunto de

que falava eram suficientes para que lhe dessem fé. (Discursos I, 11, p. 52)

Savonarola estabeleceu uma crença em sua verdade, na verdade de suas palavras e

dos seus atos: a inspiração precede o ato, mas o ato a revela. O frade ultrapassou a

revelação, pois, diante da ausência do extraordinário, sua persona tornou-se a própria

verdade.

Nessa perspectiva, Grazia transcreve, em suas escritas, as características do profeta,

que, durante seis anos, transformou a vida de todos os florentinos: frade dominicano de

Ferrara, pregador eloquente, legislador, praticamente ditador da moral e dos costumes de

112

Cf. BENEVENUTO, Flávia. “Virtù” e valores no pensamento de Maquiavel, p. 47.

59

Florença, reformador da religião e da vida cotidiana, denunciante da corrupção papal e dos

Médici, teocrata republicano. Raramente os florentinos tiveram rédeas tão curtas baseadas

na piedade e no fervor religioso. O ar pesava de gemidos, hinos e incensos113

. Savonarola

parece finalmente ter usado de um subterfúgio igual, ao persuadir os florentinos de que ele

conversava com Deus. Sucesso tanto mais significativo nos é sugerido pelo fato de ele ter

tratado com um povo culto e não com camponeses grosseiros. 114

Assim, a virtude cristã por excelência é a prática do bem em detrimento da prática do

mal e, nesse caso, implica ainda a restrição da liberdade dos prazeres mundanos. A ação

virtuosa diz respeito a uma ação que expressa valores cristãos, implicando necessariamente

a prática do bem segundo tais valores. Em outras palavras, caracteriza-se pela reunião de

valores elevados pelo cristianismo (que são valores contidos na lógica do bem e do dever

ser). Nesse caso, agir com virtude se compõe de qualidades fixas, consideradas assim,

nomeadas pelo comentador Skinner, virtudes cardeais: “sabedoria, justiça, coragem e

temperança”. 115

A respeito das ações do líder religioso, Lojendio (1958), comenta em suas escritas

que frei Jerônimo “[...] mostrava uma inclinação excessiva para co-emplicar os problemas

sobrenaturais com os negócios terrenos”. 116

Sobre a queda do “profeta sem armas”,

Maquiavel escreve que se arruinou exatamente por não ter a capacidade de mudar suas

ações conforme a necessidade. Ao conquistar o povo, não fez nada para manter firme a

crença, nem para fazer crer os descrentes. Seu poder sobre os homens desbancou quando

palavras e imagens não mais persuadiram os cidadãos. No momento em que o profeta

necessitava mudar suas atitudes para manter seu poder, não o fez. Sua persuasão deixou de

fazer efeito, a necessidade de mudança de opinião não se concretizou, nem na preparação

da fundação de uma nova ordem, nem na elaboração de defesas e boas armas para seu

próprio povo.

Também apresentava comportamentos de ações relacionadas a realizações

religiosas e particulares, pois, “lá no fundo da sua consciência, queria limitar o seu impulso

à ação meramente religiosa”. 117

Incomodava-se fundamentalmente com a salvação dos

cidadãos, mas também pensava que era possível juntar suas inquietações religiosas com

113

Cf. DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno, p. 63. 114

Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. Tradução utilizada para

uso didático cedida pelo prof. José Luis Ames, p. 36. 115

SKINNER, Quentin. Maquiavel, p. 60. 116

Cf. LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 166. 117

LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 190.

60

uma reforma política que conduzia à passagem para o processo escatológico. A resolução

social interessava-lhe, no entanto, somente no grau em que ela ligasse um caminho para o

mundo divino. 118

Nesse período de sua vida, o monge apresentava como preocupações a

salvação da humanidade e se tornava pouco atento aos negócios mundanos de seu tempo.

Debruçava-se sobre a ação moral e religiosa do seu próprio apostolado, mas, no fundo de

sua alma, não podia ficar insensível perante a desordem política. Com suas palavras

ardentes tinha agitado a consciência daquele povo que nele depositara sua confiança. 119

Vidente de uma cidade separada por desordens internas intensas, pensador dogmático e ao

mesmo tempo em completa concordância com seu tempo, Savonarola foi, sem dúvida, o

personagem mais respeitável dos primeiros anos da nova República Florentina.

Expôs o tema com a maior simplicidade e apoiado em idéias fundamentais. Qual é o

governo preferível? O de um só ou o de muitos? Com sua formação tomista, inclinava-se

em termos gerais para a forma monárquica, e que a mesma não deveria ser confundida com

a tirania, contra a qual lança os ataques mais violentos, chegando mesmo a defender o

tiranicídio.120

Justificava que o regime e o governo de um só chefe são bons quando o chefe

é bom; definia esse governo como preferível a qualquer outro, pois dirigia-se com mais

facilidade quando imperava a unidade. A razão de sua argumentação se dava na

justificativa de que “[...] é maior dificuldade o reduzir à união muitos do que poucos, e a

virtude, onde estiver mais unida, terá mais força, pois se encontra mais facilmente em um

do que em muitos”. 121

O profeta registra seus desejos também na introdução do seu

Tratato circa di Il reggimento e governo della cittá di Firenze, de quatro temas: “[...]

esforcei-me com toda minha inteligência para provar que a fé é verdadeira; para demonstrar

que a simplicidade da vida cristã é suma sabedoria; para denunciar as coisas futuras, das

quais algumas vieram e outras virão certamente: e, por último, preguei sobre o governo

desta cidade”.122

Apesar de todo seu esforço em relação a suas obras, não foi por causa delas que

Savonarola influenciou vivamente o seu tempo. Influenciou não como teórico, mas como

“praticante”, ou seja, era através, em especial, da sua pregação inflamada que as mudanças

começaram a se apresentar. Lutou, por exemplo, para purificar os costumes e, ao proferir

118

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 59. 119

Cf. LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 190. 120

BIGNOTTO, Newton apud WEINSTEIN, Donald. Savonarole et Florence: prophétie et patriotisme à la

Renaissance, p. 60. 121

LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 191. 122

SAVONAROLA. Tratado acerca do regimento e governo da cidade de Florença, p. 133

61

suas palavras, a impressão dominante que ficava era a de seu impulso moral e religioso e

suas fórmulas concretas que desciam ao âmago de todo problema político, no qual se

moviam com a violência das paixões humanas. Transformou, aos poucos, seu discurso

religioso em um discurso político de cunho religioso, ou seja, em um discurso político

favorável às suas “ideias” religiosas. Chegou até mesmo a fundar o que poderíamos

considerar como uma espécie de partido político para colocar em prática seu desejo,

explícito em seu Trattato circa di il regimento e governo della cittá di Firenze. Savonarola

combinou uma doutrina religiosa extravagante com as aspirações mais tradicionais das

classes dominantes florentinas, o que explica em parte o sucesso de suas pregações. 123

Numa época de crise, Savonarola foi a “consciência moral da cidade”, e um guia para as

tarefas mais cotidianas da existência. Da doutrina ideal, o pregador descia à consideração

dos homens que deviam ser governados. Tinha em conta as disposições diversas, a

diferença de engenhos e de temperamentos, mas nas zonas médias, como a Itália, onde

abundavam juntamente o engenho e o sangue, os homens não vivem em paz sob só um

chefe, pois todos e cada qual quer ser chefe para governar e dirigir os outros, para mandar

sem obedecer. Daí nasce às discussões e as discórdias entre os cidadãos nos povos em que

um quer se elevar para dominar os restantes. 124

Nessa manifestação, o monge Savonarola parecia querer adaptar-se à realidade. O

seu critério democrático surgia da informação dos homens e das características da

constituição latina e mediterrânica daqueles a quem mencionava concretamente nos seus

raciocínios. 125

Assim, o frade chegava à conclusão de que, sobretudo em Florença, era

preferível o governo de vários ao governo de um só: “Aconselham, no entanto, os doutores

sagrados que nestes lugares onde a natureza não tolera um superior, é melhor o governo de

muitos do que de um só”. Sobretudo, poder-se-ia dizer que era conveniente na cidade de

Florença, onde a natureza dos homens abunda em meio ao sangue e ao engenho. Mas,

argumentava Savonarola, esse governo de vários convém adaptá-lo bem regulamentado,

pois de outro modo podem surgir sempre discussões e partidos, e os poucos homens

inquietos se dividiriam e criariam grupos, e um partido expulsaria o outro, ambiente no

qual se poderiam criar rebeliões e conflitos na cidade. 126

123

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 63-65. 124

Cf. LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 192. 125

LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 192. 126

Cf. LOJENDIO, Luis Maria. Savonarola, p. 192.

62

E foi nesse raciocínio que Maquiavel no primeiro livro, no capítulo 45, faz uma

chamada em relação ao mau exemplo de não se observar uma lei e, sobretudo, por seu

autor, nos descreve o fato:

O governo de Florença foi reordenado, depois de 94, com a ajuda do frade

Jerônimo Savonarola, cujos escritos mostram a doutrina, a prudência e a virtù de

seu ânimo; entre outras constituições que tinham em mira a garantia dos

cidadãos, criou-se uma lei que possibilitava recurso ao povo das sentenças

proferidas pelos Oito e pela Signoria em delitos políticos [per casi di stato], lei

sobre a qual Savonarola pregou por muito tempo e que obteve com grande

dificuldade; ocorre que, pouco depois de sua aprovação, cinco cidadãos foram

condenados à morte pela Signoria, por delitos políticos [per conto di stato];

aqueles queriam recorrer, o que não lhes foi permitido, deixando-se de observar

a lei. (Discursos, I, 45 p. 135)

Após essa atitude, Maquiavel afirma que essa maneira prejudicou ainda mais a

reputação do monge, pois se o recurso era útil e necessário para a ordem, apresentava

punições severas na concepção do Frade, então o mesmo não deveria ter solicitado e

concordado com a aprovação,

E mais digno de nota foi esse acontecimento porque o frade, em tantas pregações

que fez depois da transgressão dessa lei, nunca condenou quem a transgredira

nem o escusou, como se fosse algo que não queria condenar porque lhe parecia

oportuno, mas também não podia escusar. E isso, pondo à mostra seu ânimo

ambicioso e partidário, destruiu-lhe a reputação e causou-lhe grande má fama.

(Discursos, I, 45, p. 135)

Foi nessa base do pensamento político que Savonarola respeitava a maneira de

governar Florença. A sua democracia (soberania popular) não nascia de convicções

profundas, era oportunista e tinha como objetivo evitar as discórdias civis na luta pela

conquista do poder. O governo do povo não era mais do que um capítulo do seu plano,

mais amplo, de reforma moral dos costumes, e subordinado hierarquicamente à importância

maior do propósito principal. Havia muita confusão em sua exposição e nas pregações em

que explicava a sua tese de reforma moral e do bem comum, postulado central da sua

doutrina política. Pregava com energia e em tom de polêmica. Durante a semana que

seguiu ao terceiro domingo do Advento, subiu diariamente ao púlpito da Catedral, na

intenção de desenvolver essas teses. No dia 16 de dezembro 1494, teve de se defender

daqueles que o acusavam de querer interferir nos negócios políticos da cidade, mesmo sem

ser florentino.

63

Assim, ao conquistar o povo, não fez nada para manter firme a crença e nem para

fazer crer os descrentes. Seu poder sobre os homens desbancou quando palavras e imagens

não mais persuadiram os cidadãos. E, no momento em que o profeta necessitava mudar

suas atitudes para manter seu poder, não o fez. Sua persuasão deixou de fazer efeito, e a

necessidade de mudança de opinião não se concretizou, nem na preparação da fundação de

uma nova ordem, nem na elaboração de defesas e boas armas para seu próprio povo.

Savonarola conquistou seu povo pela profecia, ou seja, predição do futuro, porém, em prol

de sua moralidade religiosa acreditou que manteria seu estado e mesmo com a necessidade

de fundar bons exércitos com armas próprias para sua conservação, o frade ignorou essa

atitude, não se inclinou na necessidade de mudar sua ação para a permanência e

manutenção do seu poder. Sendo assim, em sua liderança, os homens que no início foram

persuadidos de fé, mais tarde não se deixaram mais estar sob esses efeitos. Diante dessa

situação, a mudança de opinião significou uma queda de poder, uma vez que sua profecia

era seu único apoio. Seu fim trágico demonstrou, então, que se equivocara quanto à força

de um inimigo que tentou combater com as palavras.

Sobre sua queda, Maquiavel escreve que Savonarola se arruinou “[...] com sua nova

ordem a partir do momento em que a multidão começou a não acreditar nela, pois ele não

dispunha de meios para manter firmes os que haviam acreditado, nem para fazer crer os

descrentes”. A ordem nova instituída por Savonarola era baseada em palavras e imagens.

Seu poder sobre os homens acaba quando essas palavras e imagens (a representação)

perderam seu poder de convencimento. Os homens foram persuadidos de que ele era digno

de fé. Mais tarde, essa persuasão deixaria de fazer efeito essa mudança de opinião

significou sua queda, uma vez que era seu único apoio. 127

Homens assim, diz Maquiavel

sobre as ações do frade, “[...] enfrentam grandes dificuldades, defrontando-se em seu

caminho com perigos que precisam ser superados com a virtù”. 128

Embora relativamente curto, o período em que Savonarola se dedicou a modificar a

estrutura político-religiosa de Florença teve, na interpretação de Maquiavel, uma grande

importância, pois apresentou a noção exata dos perigos advindos da correlação entre

política e cristianismo. Trouxe também em evidência a personificação do governante

desarmado. Savonarola tem uma estimada importância para Maquiavel, pois não se pode

negar que era um homem de muitas virtudes propriamente cristãs (fixas). Ocorre, porém,

127

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 92. 128

MAQUIAVEL. O príncipe, VI, p. 26.

64

que a manutenção do Estado exige, antes de tudo, flexibilidade dentro da virtù, que é a

capacidade de agir de acordo com as circunstâncias, de mudar de atitude conforme a

direção do vento. Portanto, o líder dotado de virtù é aquele dotado de rigidez e

flexibilidade necessárias para enfrentar os desafios, obstáculos e imprevistos pelo caminho.

Deve ir contra ou a favor da tradição, segundo o ditame dos acontecimentos, as

implicações das conjunturas, as necessidades interpostas nas ações e segundo as

finalidades. 129

E foi o que Savonarola realmente não tinha, e não entendeu que os tempos

haviam mudado ou, se percebeu, não ousou modificar-se com eles.

2.3 César Bórgia e as Ações Apropriadas

César Bórgia, também conhecido como Duque Valentino130

, é outra lição nas obras

de Maquiavel. O pensador florentino narra os enfrentamentos do Duque Valentino

entendendo que, em sua trajetória, existe uma síntese de todas as questões referentes à

fundação, à conquista e à manutenção do poder. Podemos, entretanto, analisar esse relato

como uma construção que reúne, de maneira mais completa, todos os componentes de um

homem de virtù em Maquiavel. O Duque, com a proteção de seu pai, o Papa Alexandre VI,

adquiriu o governo de um Estado e instituiu uma ordem atualizada. Para conquistar essa

nova ordem exigiam-se meios violentos para contrapor-se à desordem existente.

A virtù, em sua origem, em seu estado bruto, é a coragem contida num ato de

violência que se impõe sobre as diversas formas de ferocidade, para estabelecer um

princípio de ordem. Nesse sentido, Maquiavel, ao analisar as ações do Duque no capítulo

sétimo de "O Príncipe", identifica nesse dirigente as condições imprescindíveis ao bom

governo, como, por exemplo: agregação da força bélica e política o suficiente para

autogarantir-se, como também buscar apoios e alianças necessárias, imprimir legitimidade

no exercício do poder e nas ações governamentais. Assim, todos esses fatores podem ser

129

Cf. FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p.259. 130

Esse título foi conferido a César Bórgia pelo rei francês Luís XII. Este havia lhe concedido o condado de

Valença, posteriormente elevado a ducado e o título de duque de Valentinois. MAQUIAVEL. O Príncipe,

VII, p. 28.

65

interligados em relações complexas e tendo como acolhida à necessidade do dirigente de

sustentar-se sempre numa base de força e prestígio. 131

Maquiavel não se pronuncia sobre os acontecimentos que fazem Bórgia equiparar-

se às ações que conquistaram o poder pelo crime e atribui a ele intenções de pacificação.

Faz uma escolha, e evidencia em suas leituras a avaliação dos atos e nas intenções

apresentadas pelo Duque. Embora afirme que Bórgia simplesmente “conquistou o Estado

com proteção do pai” 132

, Maquiavel assegura, de modo significativo, que as ações

empreendidas pelo duque são exemplares:

[...] se considerarmos todos os procedimentos do duque, veremos que ele

preparou amplos fundamentos para seu futuro poder, sobre os quais não julgo

supérfluo discorrer, visto que desconheça preceitos melhores para dar a um

príncipe novo do que os exemplos de sua atuação. (O Príncipe, VII, p. 28)

Essa colocação deixa evidente que o que está sendo relatado é um exemplo a ser

seguido, e que pode ser tomado como referência para a ação. O florentino continua sua

justificativa dizendo que, “[...] sendo este ponto digno de comentários e de ser imitado por

outros, não quero deixá-lo passar por alto”. Maquiavel nota que o êxito depende de um

repertório amplo de ações e do saber específico que o dirigente deve possuir para manejá-lo

segundo as circunstâncias.

Para Maquiavel, as ações do duque apresentavam, de maneira mais evidente, uma

importância para a fundação do principado. Ao promover suas fundações, Bórgia

demonstrou extrema destreza ao utilizar das suas habilidades para se chegar a um propósito

final, que era estabelecer uma nova ordem política. Por isso o duque também tem o mérito

de ser considerado um “paradigma do ‘príncipe novo’, porque teve de exercer sua virtù em

um universo político onde todas as forças conspiravam contra seu sucesso”. 133

Assim,

buscando compreender a trajetória de César Bórgia, Maquiavel nos mostra as ações do

duque como um modelo de orientação para todos aqueles príncipes que pretendem realizar

a fundação de um principado em bases sólidas. Maquiavel elogia o emprego da força por

César Bórgia, mesmo em sua forma mais extrema, para buscar algo além da dominação. 134

E para justificar as atuações de Bórgia, Maquiavel comenta:

131

Cf. FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo, p. 61-166. 132

Cf. MAQUIAVEL. O Príncipe, VII, p. 28. 133

BIGNOTTO. Maquiavel republicano, p. 130. 134

CHISHOLM. A ética feroz de Maquiavel, p. 52-53

66

César Bórgia era tido como cruel; no entanto com sua crueldade reergueu a

Romanha, reunificando-a e restituindo-lhe a paz e a lealdade, o que, bem

considerado, evidenciará que ele foi muito mais piedoso que o povo florentino, o

qual, para evitar a fama de cruel permitiu a destruição de Pistóia. (O Príncipe,

XVII, p. 79)

Ao que parece, Maquiavel busca exemplificar o termo virtù com os exemplos

efetuados pelo Duque, e argumenta que um príncipe não deve preocupar-se com a fama de

bárbaro quando tem por objetivo “manter seus súditos unidos e obedientes”. Pois, sua

atitude será mais piedosa do que aqueles que, por excessiva piedade, deixam evoluir as

desordens, das quais resultam assassínios e rapinas, porque estes costumam prejudicar uma

coletividade inteira, enquanto as execuções ordenadas pelo dirigente ofendem apenas um

particular.135

Maquiavel prossegue,

Tendo-se apoderado da Romanha e encontrado-a sob o comando de senhores

sem poder, que mais espoliavam os seus súditos do que os governavam e lhes

davam motivos para mais desunião do que para união, tanto que a província

estava repleta de latrocínios, tumultos e todas as formas possíveis de insolência,

julgou o duque necessário, para pacificá-la e reduzi-la à obediência ao braço

régio, dar-lhe um bom governo. (O príncipe, XVII, p. 31)

Para instituir a nova ordem, o príncipe conquistador deve refundar o Estado, o que

determina o uso de meios violentos para contrapor-se à situação de ausência das leis ou leis

insuficientes, uma vez que os dirigentes não tinham qualquer poder e, sem domínio, não há

uma apropriada paz. Como não há poder algum e o povo está desunido e violento, a

fundação não pode ser obtida por um poder normal, mas, sim, excepcionalmente violento

para, dessa forma, contrapor-se à violência existente. 136

Maquiavel descreve um ato de violência aplicado pelo Duque Valentin, interpreta

como digno de comentários e de ser copiado por todos pelo resultado favorável obtido

nessa ação. Foi o que fez César Bórgia, ao mandar executar Remirro de Orço.137

Como não

havia poder algum e o povo se encontrava desunido e violento, a fundação somente poderia

ser obtida através da força para contrapor-se à violência existente. Bórgia solicitou os

135

MAQUIAVEL. O príncipe, XVII, p. 79. 136

Cf. ARANOVICH, Patrícia. Poder e legitimidade em Maquiavel: como fazer um príncipe novo parecer

antigo, p. 97. 137

Remiro de Orço, ou Ramiro ou Remigio de Lourqua. Tinha vindo da França como mordomo do duque, de

quem, para sua própria infelicidade, se tornou lugar-tenente na Romanha. MAQUIAVEL. O príncipe,

VII, p. 31.

67

serviços do tenente Remirro de Orco, considerado um homem cruel e a quem foram

confiados plenos poderes. A dureza dessa ação comprometeu, porém, o dirigente no plano

da moralidade. Bórgia é consciente desse ódio popular e da ameaça que esse ódio provoca

na possibilidade de tornar-se inimigo do povo e, justamente por isso, não participa da

pacificação.

De fato, em pouco tempo Orco, com sua extrema crueldade, restituiu e uniu o

Estado. O Duque avaliou, no entanto, desnecessária tão excessiva autoridade, pois receava

que ela se tornasse odiosa pelo seu povo. Propôs a armação de um tribunal civil na

província, com um forte presidente, no qual todas as cidades teriam um advogado como

representante. Nesse momento, César Bórgia tranquilizou o povo e os convenceu de que

esse novo poder não seria arbitrário e a obediência e a paz conquistada pela força não

seriam mantidas pela mesma, e sim pelas boas leis. Assim, aproveitando-se da ocasião, o

Duque, em certa manhã, ordenou que punissem e exterminassem Remirro de Orco, para

que fosse interpretado pelo povo de que não compartilhou de tamanha violência.

Sacrificado e cordado em praça pública, e tendo a seu lado um bastão de madeira e uma

faca ensanguentada, tornou-se mira de um povo satisfeito pela punição de suas crueldades

praticadas.

Além de toda a aplicação de sua crueldade na hora certa, César Bórgia é

considerado por Maquiavel um exemplo positivo a ser observado, pois “[...] digo que,

sentindo-se o duque bastante poderoso e em parte garantido contra os perigos do momento,

visto estar armado a seu modo e ter, em boa parte, aniquilado os exércitos vizinhos que

poderiam atacar”, 138

no entanto conquistou seu povo por meio da força e os manteve

através da admiração, respeito e virtù.

Poderemos, então, a partir desse exemplo, resgatar os conceitos de virtude e virtú no

pensamento de Maquiavel. Desse modo, a virtù maquiaveliana não implica praticar

essencialmente o bem, e sim em agir de acordo com as circunstâncias e fazer o que for

preciso para alcançar a glória cívica e a grandeza, não importando se essas ações realizadas

pelo príncipe serão boas ou más. De fato, a virtù em Maquiavel deixa de ter um sentido

positivo e passa a conceitualizar-se como a qualidade da flexibilidade moral que um

príncipe precisa ter. O dirigente não deve prender-se a uma moralidade que coloque suas

ações em estado de inércia. Por isso não se pode imaginar que uma moral do bem (como a

cristã), ou mesmo uma suposta moral do mal, possa se configurar como virtù.

138

Cf. MAQUIAVEL. O príncipe, XVII, p. 31.

68

Nessa perspectiva, “[...] quando em confronto com má necessidade, Maquiavel

avisa, não se preocupe com a justiça e aja porque palavras para justificar sua ação hão de

vir”. 139

Portanto, a virtù maquiaveliana se refere muito mais à capacidade de mudar de

atitude conforme as circunstâncias, ou seja, constitui-se como um agir com flexibilidade

diante das mudanças de circunstâncias. Skinner (1996), ao se debruçar sobre esse assunto,

comenta:

[...] virtù é o nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um

príncipe aliar-e com a ‘fortuna’ e conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o

sentido do termo de toda e qualquer conexão necessária com as virtudes cardeais

e principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica que define um

príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo

aquilo que for ditado pela necessidade – independente do fato ser a ação

eventualmente iníqua ou virtuosa – para alcançar seus mais altos objetivos. Deste

modo, virtù passa a denotar precisamente a qualidade da flexibilidade moral que

se requer de um príncipe: ele deve ter a mente pronta a se voltar em qualquer

direção, conforme os ventos da fortuna e a variabilidade dos negócios assim os

exijam. (SKINNER, 1996, p. 65)

Sendo assim, a virtù requer que o príncipe aja de acordo com a necessidade, não

importando o caminho que percorram suas atitudes. É importante salientar que a virtù não

se compõe de qualidades fixas, como as virtudes cardeais. Em Maquiavel não podemos

fixá-las, pois as qualidades que compõem a virtù são compostas por atributos diferentes,

sendo também possível o príncipe possuir virtù de muitas formas dependendo muito das

circunstâncias. Ou seja, o agir com virtù em uma determinada circunstância não o será em

outra, porque os tempos variam, sendo necessário adequar a ação aos tempos.

De fato, em Maquiavel nenhuma virtude pode ser considerada virtù, pois esta

pressupõe que o príncipe seja capaz de agir com toda e qualquer virtude conforme as

circunstâncias o exijam. Se suas inclinações e seus padrões morais estiverem enrijecidos, o

príncipe não poderia ter a capacidade de desempenhar as exigências da ação eficaz. Essa

oscilação exige que o príncipe possa em um momento agir com crueldade e, no momento

seguinte, com piedade, por exemplo. Ele não pode ser piedoso ou bárbaro em sua natureza,

mas o que importa são os resultados compatíveis com as necessidades de seu povo. Dessa

maneira, César Bórgia é citado como uma referência de príncipe, pois, se, por um

instrumento, o Duque age com força e crueldade (com a natureza animal), por outro, age

139

MANSFIEL, D. Machiavelli´s virtue, p. 3.

69

com a natureza humana, com as leis. Sendo assim, “[...] um príncipe deve saber usar ambas

as naturezas e que uma sem a outra não é duradoura”. 140

Além da força e do ardil, Bórgia soube fazer aliados, fez-se amado e temido pelo

povo, fez-se seguir e reverenciar pelos soldados. Aniquilou aqueles que poderiam

prejudicá-lo, reformou as antigas leis inadequadas ao bom governo, foi severo e grato,

magnânimo e liberal, dissolveu milícias infiéis e criou novas, manteve amizades com

governantes estrangeiros de modo que fossem solícitos em beneficiá-lo e tementes em

atacá-lo. Soube, portanto, ser prudente e ousado segundo as circunstâncias, as necessidades

e as deliberações.

Das condições apresentadas sobre alguns modelos mencionados por Maquiavel em

suas obras, e após a análise das referências de ações de virtù, como modelos a serem ou não

seguidos, se faz necessário um estudo entre os dois eixos que perpassam a lógica da ação e

a arte de governar. Conceitos estes, que trataremos juntos, a virtù como a flexibilidade e a

fortuna, que em Maquiavel recebe uma nova interpretação.

140

MAQUIAVEL. O príncipe, p. 41.

70

3. A ACEPÇÃO DE FORTUNA

O que pode a fortuna afinal? Assim como a virtù, o termo fortuna não tem acepção

única, não há também qualquer tentativa de definição do conceito de fortuna pelo autor.

Suas possíveis acepções são acaso, sorte, chance141

, jogo de azar, sucesso, determinismo.

No entanto, também podemos abordar como conjunto de circunstâncias que acontecem

independente da vontade do homem, circunstâncias aleatórias à vontade, e nesse caso

contrapõem-se a virtù. Nesse capítulo, portanto, abordaremos o resgate que Maquiavel faz

da noção de fortuna e quais suas implicações, imprevisibilidades e intervenções nas

influências na arte de governar.

3.1. A Mitologia da fortuna

O conceito de fortuna, de seu sentido, sempre obscuro e sem acepção única, recebe

em Maquiavel uma interpretação nova, no fluxo com a centralidade que a ação política

ocupa no seu pensamento. No entanto, a preocupação neste trabalho não será a de

encontrarmos definições unívocas do termo fortuna, e sim de resgatarmos os momentos

nos quais os vários significados da fortuna contribuíram para a direção política nas épocas

em que foi utilizada.

Maquiavel não foi o único pensador do renascimento que pensou no problema da

fortuna, esta questão também preocupou por igual a todos os pensadores da época. Pois, a

fortuna representa um papel principal nas coisas humanas e por esta razão o pensador

florentino incluiu em sua obra O Príncipe um novo capítulo, que se tornou curioso em seus

escritos. O que significa a fortuna? Que relação se encontra com as forças humanas, com o

intelecto e a vontade do homem? Questões como essas são apresentadas em seus registros.

Cassirer (1992), afirma em um dos temas de sua obra que a fortuna é o elemento mítico na

filosofia política de Maquiavel. Deste modo, Maquiavel retoma a compreensão de seu

141

POCOCK, J. G. A. El momento maquiavélico, p. 37.

71

significado e valor, e sua realidade dada de acordo com o agir perante as forças alheias à

vontade humana.

No contexto intelectual do Renascimento, parece servir como uma introdução ao

problema da implacabilidade do destino, do elemento do momento, face à condução dos

negócios políticos pelos homens. Com efeito, a imagem da roda da fortuna, já enunciada

desde a Antiguidade, sobretudo em Políbio, parece sugerir um infindável e inalterado

retorno das condições alheias ao comportamento humano, que podem construir ou arruinar

um projeto político. No capítulo vinte de cinco da obra O príncipe, Maquiavel dedica todo

o bloco para refletir sobre a questão da fortuna: “De quanto pode a fortuna nas coisas

humanas e de que modo se pode resistir-lhe”, e, portanto, o autor não ignora os que muito

foram e são de opinião de que as coisas do mundo são governadas pela fortuna e por Deus,

e que os homens prudentes não podem corrigi-las, e até mesmo afirma que não existe

remédio algum contra elas. Assim, Maquiavel afirma que se deve incomodar demais com

as coisas, mas deixar governar pela sorte, portanto, a fortuna passa ser responsável por

apenas metade dos acontecimentos,

Esta opinião tem-se reforçado aos nossos dias devido às grandes variações que

foram e são vistas todos os dias, além de qualquer conjetura humana. Pensando

nisto, às vezes me sinto um tanto inclinado a esta opinião: entretanto, já que o

nosso livre-arbítrio não desapareceu, julgo possível ser verdade que a fortuna

seja árbitro de metade de nossas ações, mas que também deixe ao nosso governo

a outra metade, ou quase. (O Príncipe, XXV, p. 119)

Nesta passagem, Maquiavel apresenta a fortuna como responsável por apenas

metade “ou quase” do que ocorre no mundo, sendo a outra parte responsabilidade do

próprio homem, por meio de suas ações virtuosas. Compara a fortuna a um desses rios que

prejudicam a todos quando se embravecem, alagam planícies, destroem as árvores e os

edifícios, levam terra de uma parte e assentam-na noutro lugar: “todos fogem deles, mas

cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma.” 142

Aristóteles refere-se à questão da fortuna tanto no quadro de suas discussões sobre

a física, como em metafísica. A fortuna existe quando a causa se produz por si mesma, e só

revela seu sentido enquanto analisada junto com o “azar”, do qual faz parte. A fortuna é

um caso particular do azar, é o azar aplicado aos seres capazes de escolher, e não a todos

os seres. Aristóteles revela um papel pequeno na definição da vida política, tornando-se

142

Cf. MAQUIAVEL, O Príncipe, XXV, p. 119.

72

apenas uma parte dos múltiplos fatores que influenciam na condução dos negócios

públicos. Neste caso, o pensador grego havia chegado ao problema pelas vias da física e

foi exatamente prudente ao fazer a ponte para os problemas humanos. 143

Para os romanos, a fortuna não era uma força maligna inexorável. Ao contrário, sua

imagem representava uma deusa boa tratada com admiração e apreensão. Uma deusa na

figura de mulher, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair, pois

simbolizava o inesperado, o acaso, a inconstância, atribuía-lhe o comando do mundo, por

ser de natureza caprichosa que distribuía o bem e o mal a seu bel-prazer. Era representada

com o corno da abundância, com um lema (porque é ela quem “pilota” a vida dos homens),

umas vezes sentada, outras em pé, quase sempre cega e se apresentava como o acaso

divinizado e personificado por uma divindade feminina que figura no sincretismo religioso

da época imperial, representando o poder, a meia-Providência, o meio-Acaso, a que está

submetido o mundo. 144

E quando questionados de como fazer para que a deusa fortuna

favorecesse a alguns homens e não a outros, a resposta imediata era: “imprescindível

seduzi-la”, pois, possuidora dos bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a

glória, o poder e a influência. “A questão era descobrir como ter acesso a esses bens, dada

a forma casual com que derramava sua cornucópia. ” 145

No entanto, todos concordam em

admitir que, de todos os dons da fortuna, o maior é a honra e a glória que a acompanham,

sustenta Skinner (1996). Como Cícero repetidas vezes enfatiza em Obrigação Moral, o

mais alto bem a que o homem possa aspirar consiste na “conquista da glória”, no “aumento

da honra e da glória pessoais”, na aquisição da “mais verdadeira das glórias” que se possa

alcançar. Não há a menor dúvida de que a fortuna pode influenciar os destinos humanos.

Percebe-se uma força capaz de ajudar os homens, mas também de destruí-los. A potência

da fortuna é grande, como em um sentido ou em outro, tanto para favorecer, como para

contrariar. Portanto, a imagem fria do azar é modificada pela idéia de uma força volúvel e

caprichosa, que escolhe uma peça-chave no empenho de compreensão da vida social. 146

Essas alegorias sofreram interpretações diversas com o desenvolvimento do

cristianismo. Neste sentido Sadek (2002), em um de seus artigos comenta as divergências

entre essas duas acepções do termo fortuna, a antiga e a seiscentista. Nesta passagem

afirma que:

143

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 142. 144

Cf. GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 178 e 450. 145

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: A Lógica da Ação Política, p. 125. 146

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 142.

73

Para os antigos, a fortuna não era uma força inexorável. Ao contrário, sua

imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era

importante atrair. Esta deusa possuía os bens que todos os homens desejavam: a

honra, a riqueza, a glória, o poder. Esta visão foi inteiramente derrotada com o

triunfo do cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por

um ‘poder cego’, inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus

bens de forma indiscriminada.147

Sendo assim, o significado da fortuna perde o seu símbolo de cornucópia, passando

a ser representada pela roda do tempo, que gira indeterminadamente sem que se possa

descobrir seu movimento. Os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, a

honra, a riqueza ou a glória não significam a felicidade, não se realizam no mundo terreno.

O destino é uma força da providência divina e o homem sua vítima impotente.

É justamente essa mudança de paradigma que preocupa Maquiavel. O pensamento

cristão substitui a figura da deusa pelo conceito de providência divina. Agostinho, por

exemplo, ridicularizava a inconstância e inconsistência lógica do culto a fortuna da Roma

pagã: uma deusa cega, de agir infundado, que não tem como ser invocada, nem como ser

atingida (Cidade de Deus, IV, 18). Em outras palavras, o acaso ou sorte, pode, na acepção

romana, favorecer ou não alguém por determinadas características inerentes a esse alguém

e, por outro lado, na acepção cristã, o acaso é indeterminado, não possuindo tendências,

portanto “como completamente indiferente e indiscriminada ao oferecer seus dons. Já não

é vista como uma amiga potencial, mas simplesmente como uma força impiedosa; seu

símbolo não é mais a cornucópia, mas antes a roda das mudanças que gira inexoravelmente

“como o fluxo e o refluxo da maré ”. 148

Esta nova visão do caráter da fortuna trouxe consigo um novo significado quanto à

sua importância. Por sua própria indiferença e ausência de apreensão com o mérito humano

ao dispor de suas gratificações, “ela nos lembra, segundo se diz, que os bens da fortuna são

completamente indignos de serem buscados, e que o desejo de honra e de glória mundanas,

nas palavras de Boécio , não é “absolutamente nada” .149

Nesta análise, ela serve para

afastar os passos dos caminhos da glória, encorajando um olhar mais além da prisão

humana, para buscar a morada celeste. Isso significa que, apesar de sua caprichosa tirania,

a fortuna é genuinamente uma causadora da providência afável de Deus. Pois, está incluso

147

SADEK, Maria Terezinha. Nicolau Maquiavel: O Cidadão sem Fortuna, o Intelectual de Virtù. 148 Cf. SKINNER, Maquiavel, p. 47. 149

SKINNER, Maquiavel, p. 47.

74

nos desígnios de Deus mostrar que “a felicidade não pode consistir nas coisas fortuitas

desta vida mortal”, fazendo assim, “desprezar todos os negócios humanos e , na alegria dos

céus, regozijar por libertar das coisas terrenas”. 150

E nesse sentido completa que:

É por essa razão, conclui Boécio, que Deus colocou o controle dos bens

mundanos nas mãos displicentes da fortuna. Seu objetivo é nos ensinar “que a

independência não pode ser alcançada através da riqueza, nem o poder através da

realeza, nem o respeito através do oficio, nem a fama através da glória.151

A reconciliação desempenhada por Boécio entre a Fortuna e a providência exerceu

um duradouro controle sobre a literatura italiana. Com a recuperação dos valores clássicos

do Renascimento, essa análise da fortuna como uma providência divina foi, por sua vez,

posta em questão, graças ao retorno à idéia implícita nos antigos de que havia uma

distinção que se atribui fazer entre fortuna e destino. Maquiavel revela-se um verdadeiro

herdeiro dos historiadores e moralistas romanos, parte do pressuposto que todos os homens

desejam acima de tudo conquistar os bens da fortuna. Ignora totalmente os princípios

cristãos, no qual o bom governante é aquele que deve desviar-se das tentações, da glória e

riqueza mundanas para estar seguro de alcançar suas gratificações celestes.

Essa possibilidade de intervenção humana, em relação a uma determinação

insuperável é exposta por Maquiavel quando afirma a potência da fortuna:

A pura verdade, demonstrada por todas as histórias, é que os homens podem

seguir (secondore) a fortuna e não se opor a ela; podem tecer os seus fios e não

se opor a eles. Por isso, nunca devem desistir; porque, não sabendo qual é a

finalidade dela, e visto que ela anda por vias oblíquas e desconhecidas, é sempre

bom ter esperança, e, esperando, não desistir, seja qual for a fortuna e o

sofrimento em que se encontrem. (MAQUIAVEL, Discursos, II, 29, p.291)

Neste caso, leva à imagem da Roda da fortuna, que representa a ação do homem

contra a natureza e nos eventos humanos, embora inseridos na ordem do mundo e,

portanto, da vida, são ou podem ser uma luta contra essa própria ordem no sentido de

impedir o fenômeno natural e prolongar a ordem estabelecida pelo homem, tal como a

medicina é a arte que permite prolongar a vida humana.

150

SKINNER, Maquiavel, p. 47. 151

SKINNER, Maquiavel, p. 47.

75

Do mesmo modo, ao discorrer sobre a ação da fortuna sobre a natureza humana em

seu poema Di Fortuna 152

, Maquiavel sustenta e enfatiza a potência e o domínio do mundo

que se apresenta em torno dela, na supremacia, sempre fadados à ruína por força da

vontade da fortuna que converte as coisas do mundo:

Porque esta volúvel criatura

Em geral costuma se opor com maior força

Onde mais força vê ter a natureza

E ela, deusa cruel, volte um momento

Para mim seus olhos desumanos e decifre

O que agora cantarei dela e de seu reino.

A visão de Maquiavel quanto ao poder da fortuna, neste caso, se mostra

extremamente fatalista. Ela é “como uma torrente rápida, variável e poderosa”, que faz a

terra sacudir, removendo de um para colocar em outro o poder e o domínio, arruinando

como presas de seus inimigos. Neste sentido,

Não existe no mundo coisa alguma eterna

Assim o quer a Fortuna, que se compraz

Da sorte a fim de que seu poder mais se reconheça

Para Bignotto (1991), tal descrição poética estava perfeitamente de acordo com a

tradição florentina, como podemos constatar comparando-a com o texto de Dante na

Divina Comédia, no qual ele também traça um perfil da dama que age sem apelo sobre os

destinos humanos. No entanto, ao descrever o palácio onde habita a deusa, Maquiavel,

modificando a tradição, já não fala da roda da fortuna, mas de várias rodas:

No interior tantas rodas se vê girar,

Como é diferente o subir nas coisas

Onde cada um que vive lança seu olhar.

152

Poema dedicado a Giovan Battista Soderini (1484-1528), neto do grande gonfaloneiro Piero Soderini.

Exiliado em 1512 com o retorno dos Médici é logo em seguida readmitido na cidade, foi declarado rebelde

em 1522, participou da defesa de Florença em 1527, feito prisioneiro pelos espanhóis, morreu em Burgos.

Tradução do poema utilizada para uso didático cedida pelo prof. José Luis Ames.

76

Maquiavel resgata nessa passagem a escolha da imagem das várias rodas, no

entanto, sustenta Bignotto que esta escolha não foi feita sem segundas intenções. Pois, na

tradição ocidental, o fato de apresentar a fortuna como o mestre de uma roda serviu sempre

para mostrar a inexorabilidade de suas decisões. Neste sentido, se há surpresa no ponto

mais elevado da roda por uma decisão desfavorável da deusa, nada se pode evitar com a

desgraça. Com a imagem das várias rodas, o pensador florentino abre uma porta para se

pensar a importância da ação humana e descobrir que não há deusa que não seja feita da

mesma matéria que os humanos. 153

Maquiavel sustenta que a história ensina que o homem pode secundar e

acompanhar a fortuna, mas não se opor a ela. Pode tecer as suas urdiduras, mas não rompê-

las. Maquiavel, acreditando na força de determinação do destino nos acontecimentos

históricos, parece intuir no vigésimo nono capítulo do livro segundo dos Discursos, uma

das características centrais da própria história: sua imprevisibilidade. O que acontece aos

homens em particular e no curso em geral aparece como destino. Os homens não sabem

seu fim. Por isso, Maquiavel recomenda que não se desesperem mesmo nas condições mais

adversas, porque a fortuna caminha por vias transversais e desconhecidas e pode mudar a

sorte dos indivíduos e o sentido do curso dos acontecimentos. Neste sentido, “é sempre

preciso ter esperança, e esperando não desistir, seja qual for a fortuna e o sofrimento em

que se encontrem”. 154

Quando Maquiavel atribui à imprevisibilidade dos acontecimentos a trama da

fortuna, muitas vezes parece que ele lhe confere a condição de uma força externa às ações

humanas. Vista a relação entre fortuna, ações e resultados de um ponto de vista do que

acontece aos indivíduos e grupos, de fato, em parte a fortuna se apresenta como força

externa. Mas, na verdade, de um ponto de vista da análise das ações humanas em geral, a

imprevisibilidade radica da própria natureza interativa destas ações. De qualquer forma, os

acontecimentos são sempre acontecimentos humanos, mas os homens nunca sabem

inteiramente como processam os acontecimentos e nunca sabem inteiramente quais

acontecimentos advirão.

Por isso, Maquiavel transforma a questão da fortuna com as relações humanas,

pois, se o mundo esta em eterna mutação, esse fato só é significativo porque os homens,

153

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 146. 154

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, II, 29, p.291.

77

incapazes de abandonar suas regras de conduta, são tragados pela força dos

acontecimentos. A esse respeito Bignotto (1991), afirma que o inimigo do homem não é,

portanto, uma força misteriosa, mas sua própria natureza, que não se adapta facilmente à

maleabilidade do mundo e ao fluxo infinito do tempo. 155

Nesse sentido, Maquiavel conclui

em seus escritos que “o homem ponderado, quando é tempo de agir com ímpeto, não sabe

fazê-lo, por isso se arruína; pois, ainda que a natureza mudasse segundo os tempos e as

coisas, não se mudaria a fortuna”. 156

Utilizando a figura de mulher e em comparação a uma esposa infiel e

transformando-a em uma amante devassa, que costuma mudar de parceiros a cada variação

das circunstâncias. Estabelecendo uma conduta vinculada ao caráter indeterminado das

ações humanas, no qual decorre das relações interativas, que produzem linhas de forças e

escapam ao controle dos indivíduos. Porém, ao falar da fortuna e instituindo aos jovens

como atores mais competentes de enfrentá-la, Maquiavel distancia-se de maneira definitiva

dos humanistas e designa a capacidade de estar presente no mundo, de saber apreender a

ocasião, de saber se modificar, de saber agir contra a tradição. Nesse sentido, Bignotto

(1991), afirma que a ocasião não pode ser definida, porque se cria a si própria em seus

combates com a fortuna, e, assim, deve incorporar a mutabilidade que a desafia.

Dessa reflexão, podemos concluir com Ames (2002), que nos ensinamentos de

Maquiavel a fortuna pode ajustar-se com a própria natureza humana, com aquilo que há de

necessário naquela zona obscura do caráter de qualquer homem, mesmo do mais prudente

e virtuoso; com aquilo que há nele de rígido, unilateral e imutável. Sendo assim, para ser

compreendida na sua formação e na sua lógica, a fortuna deve ser reconduzida à raiz

profunda da natureza humana, as descrições unilaterais e imutáveis em relação à este ponto

de vista, a transcedência da fortuna torna-se uma transcedência interiorizada, isto é, de

uma parte do espírito humano em relação a ele próprio.

155

Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 148. 156

MAQUIAVEL, O Príncipe, XXV, p. 121.

78

3.2 O confronto entre virtù e fortuna.

Com a finalidade de estabelecer e conservar uma ordem política, o príncipe precisa

utilizar uma ampla variedade de estratégias e de métodos para garantir o sucesso da ação,

para Maquiavel a virtù é utilizada para designar um conjunto de qualidades que permite ao

príncipe agir conforme suas próprias finalidades, sem ter que depender de qualquer

elemento externo. Esses atributos devem ser adotados para impedir que as manifestações da

fortuna, sempre imprevisível, arruínem seus projetos.

No entanto, a fortuna é expressão do indeterminado, daquilo que decompõe as

instituições e a vida humana. “É a irrupção do irracional, pois não há conhecimento seguro

do acaso e do inesperado e sua expressão radical é a morte” .157

Assim, quando menos se

espera a atribulação pode tomar conta do mundo e os disparatos que a fortuna é capaz de

gerar podem impedir os homens de diferenciar fins ou perseguir algum plano distinto. Essa

indeterminação radical torna os homens incapazes de perceberem quaisquer fins ou

perseguirem algum plano distindo. Entretanto, a fotuna não é puramente negativa, pois, é

no bloqueio de suas ameaças que se desenvolve a virtù. A manifestação da fortuna desperta

possibilidades para a ação humana e é vislumbrando as ocasiões (caziones), assunto este

que abordaremos logo abaixo, e aproveitando-se delas que se pode vencer a adversidade.

Assim, a fortuna pode arrasar tudo com sua fúria, e do mesmo modo, dar chances para o

homem mostrar sua grandeza.158

Nos Discursos capítulo dois, vigésimo nono, em que o

tema é “A fortuna torna cego o ânimo dos homens, quando não quer que eles se oponham a

seus desígnos” Maquiavel afirma que,

Os homens que comumente vivem grandes adversidades ou grande prosperidade

merecem menos louvor ou menos censura. Porque no mais das vezes se verá que

eles foram levados à ruína ou à grandeza por alguma grande oportunidade que

lhes hajam feito os céus, dando-lhes a ocasião de poder agir virtuosamente, ou

privando-os dela. E a fortuna, quando quer realizar grandes feitos, escolhe um

homem que tenha tanto espírito e tanta virtù que perceba as ocasiões que ela lhe

oferece. Assim, também, quando quer provocar grande ruínas, incumbe homens

que as facilitem. E se houver alguém que possa obstar-lhe, ela o mata ou o priva

de todas as faculdades de realizar algum bem. (Discursos, II, 29, p.291)

157 Cf. Hebeche, Luiz. A Guerra de Maquiavel, 1988, p. 61. 158

Cf. Hebeche, Luiz. A Guerra de Maquiavel, 1988, p. 63.

79

Assim, para o pensador os homens que se deparam com os obstáculos da fortuna

não devem desanimar e diante dessas grandes dificuldades, Maquiavel afirma que os

homens não devem perder as esperanças, e seguir a fortuna, e não se opor a ela; podem

tecer os seus fios, e não rompê-los, pois, não sabendo qual é a finalidade da fortuna, e visto

que anda por caminhos ardilosos e desconhecidos, é sempre preciso ter esperança, e,

esperando não desistir, seja qual for a fortuna e o sofrimento que se encontrem.159

Eis aqui um elemento importante: a ocasião, que pode ser compreendida enquanto

situação de fato. Os homens devem vislumbrar as oportunidades, a fim de realizar tudo

aquilo que a ocasião lhes possibilita. Deixar de agir no momento oportuno pode ser o

desperdício de um momento glorioso, pois as ocasiões, assim como o tempo, mudam com

freqüência. O homem de ação virtuosa não espera por uma ocasião oportuna, ele sabe que

o agir necessário deve ser efetivado no momento atual, no aqui e agora.

Assim, a ocasião se apresenta por um efeito da natureza ou por intervenção dos

homens, homens estes que só através de grande virtù podem intervir e construir

possibilidades nos espaços de suas ações. Para Maquiavel somente um dirigente com

qualidades consegue conhecer o momento de agir e ao mesmo tempo, a capacidade de, no

momento oportuno, “aproveitando a ocasião”, aplicar à realidade esse juízo assim

encontrado. Nessa perspectiva, portanto, o agente político que se encontra nessa situação,

orienta-se nela abstraindo de pressupostos normativos em vista do objetivo de encontrar a

opção mais adequada. 160

No capítulo seis de O Príncipe, Maquiavel sustenta que cabe unicamente à fortuna

oferecer a oportunidade (occassione) sem a qual a virtù é incapaz de iniciar sua obra no

mundo. Ocasião é a possibilidade de usar a virtù, ou seja, é preciso construir o poder para

se utilizar do momento adequado e tal poder não prescinde do domínio da habilidade na

maneira de realizar uma ação que não faz parte do curso natural do acontecer e que não se

deve deixar ao capricho do acaso. Assim, a virtude maquiaveliana no seu senso forte,

ligada à perspicácia na decisão da ação, se revela através do seu reencontro com a fortuna

e a capacidade de saber a ocasião.

Os homens, vislumbrando as ocasiões e aproveitando-se delas, podem vencer

àquelas adversidades casuais. Devem aproveitar a ocasião que a fortuna lhes proporcionar,

avaliando situações e formulando decisões que possam ser traduzidas para a realidade.

159

Cf. MAQUIAVEL, Discursos, II, 29, p.291. 160

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: A Lógica da Ação Política, p.

80

Caso não se mostrem fortes e corajosos perante a fortuna serão dominados e coagidos por

ela, pois, neste contexto, a desventura é conseqüência da falta de virtù. Mesmo diante da

finitude de cada situação, mesmo não podendo prevê-las, e, limitados no que se refere a

uma análise racional completa, o homem não pode se deixar esmorecer. Estes fatores,

mesmo que importantes, não podem justificar o não agir do homem, pois sua liberdade está

em desenvolver certas ações partindo de uma força de resolução que dê conta da urgência.

Por esta razão, que o príncipe de virtù para Maquiavel, é aquele que age de acordo

com as circunstâncias, com a finalidade de dominar a volubilidade da fortuna e evitar a

promoção de destruições. Portanto, a relação entre virtù e fortuna constitui um dos

principais pontos para a compreensão e reflexão maquiaveliana sobre a atividade na arte de

governar e na instauração de um bom governo. Pois, é neste meio de turbulências e

bloqueios que a virtù se desenvolve, logo, a manifestação da fortuna implica em

possibilidades para o agir humano. A fortuna é uma potência cega que distribuí os seus

favores de forma aleatória e sem levar em conta o mérito de cada homem.161

A pressão

dessa aparente fatalidade é aprovação da virtù, pois quanto maior for ela mais facilmente os

homens serão oprimidos. Assim, a ausência da virtù siginifica o infortúnio. Quanto mais os

homens mostrarem-se fracos e covardes, mais a fortuna manifesta sua força e seu poder.

Nesse sentido, os homens devem voltar para as repercussões práticas de suas ações, e se

destacarem sempre na medida em que se contrapor aos percausos da fortuna ou na

oportunidade de se utilizar conforme a ocasião.

Uma indicação de como os homens podem proceder para interromper a ação

volúvel da fortuna é fornecida por Maquiavel na comparação que efetua entre ela e a

natureza:

Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as

planícies, arrasam as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a

outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte

alguma. Mesmo assim, nada impede que voltando a calma, os homens tomem

providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se

repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. O

mesmo acontece com a fortuna, que demonstra a sua força onde não encontra

uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde sabe

que não foram erguidos diques ou barreira para contê-la. (O Príncipe, XXV,

p.119)

161

Cf. Boécio, A consolação da filosofia, p.26.

81

Trazendo essa metáfora para o campo político, Maquiavel indica claramente que a

fortuna pode exercer um grande poder sobre os negócios humanos, mas isso não torna

impossível ao príncipe aliviar os seus perigos. Isso pode ser conseguido a partir do

momento em que os problemas são antecipados e são preparados meios para resistir e

combater as consequências e desastres da fortuna. Ao executar medidas preventivas, o

príncipe pode de defender da força destrutiva da fortuna, conservando sua capacidade de

ação.

Se a fortuna, muitas vezes, destrói aqueles homens de grande audácia e astúcia, e a

preocupação de Maquiavel é focalizar a melhoria da fortuna, e ajustar os problemas com a

ausência da virtù. Assim como existem bons também existem maus príncipes que, mesmo

que tivessem boas oportunidades, necessitam de vontade, inteligência, coragem ou

experiência para levar a condução de seus objetivos. Caso os homens não possuam tais

propriedades não lhe servirá de muito as boas oportunidades. Como os acontecimentos

mudam constantemente, é preciso estar atento às novas situações de sua época, caso

contrário, as dificuldades humanas serão cada vez mais crescentes e vencer os novos

problemas que surgem cada vez mais difícil.

Nos Discursos, livro três capítulo nove na abordagem sobre “De como é preciso

variar com os tempos quem quiser sempre ter boa fortuna”, Maquiavel argumenta que "o

homem que está habituado a proceder de um modo nunca muda, como se disse; e,

necessariamente, quando os tempos mudam e deixam de conformar-se a seu modo, advém-

lhes a ruína". 162

Para Maquiavel, é necessário agir conforme os tempos, rompendo com

certos hábitos: "já considerei várias vezes que a razão da má e da boa fortuna dos homens

vem do ajuste de seu modo de proceder com os tempos [...] erra menos e tem fortuna

próspera quem ajusta seu modo aos tempos e sempre procede conforme o força a

natureza”. 163

Portanto, a virtù é a capacidade (competência) do príncipe para ser flexível

às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras,

um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em

todas as circunstâncias fracassará e não terá virtù alguma. Para ser senhor do sucesso ou

das circunstâncias deve mudar com elas e como ela, ser volúvel e inconstante, pois

somente assim saberá agarrá-la e vencê-la. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel em

162

MAQUIAVEL, Discursos, III, 9, p.351. 163

MAQUIAVEL, Discursos, III, 9, p.351.

82

outra, generoso; em certas ocasiões, deverá mentir, em outra, ser honrado, em certos

momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em ser inflexível.

Foi o que aconteceu no caso de Piero Soderini e Savonarola, escreve Maquiavel nos

Discursos livro três, trigésimo no bloco sobre “O cidadão que, em sua república, quiser

usar sua autoridade para alguma boa obra, precisará, antes, eliminar a inveja; e como, em

vista do inimigo, é preciso ordenar a defesa de uma cidade”. Para o florentino é

considerável este acontecimento no caso de Soderini e Savonarola, por ser um exemplo

significativo daqueles que perderam seu poder por não se adaptar as novas situações

deixando, por conta disso, de mudar sua conduta,

Sabendo-se ainda jovem alvo de tantos favores que lhe eram granjeados pelo seu

modo de proceder, acreditava poder impor-se sem escândalos, violência e

tumulto àqueles tantos que se lhe opunham por inveja: e não sabia que o tempo

não se deixa esperar, que a bondade não basta, que a fortuna varia, e que a

maldade não se aplaca com presentes. Tanto um como o outro arruinaram-se e

sua ruína decorreu de não terem sabido ou podido vencer a inveja. (Discursos,

III, 30, p. 412)

Quanto à fortuna, escreve Maquiavel, é sempre favorável a quem deseja agarrá-la.

Oferece-se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la.

Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a

inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade

para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para ‘agarrar a boa ocasião’ e

força para não ser arrastado pelas más.

A convicção de Maquiavel de que o homem possui poderes para alterar o curso dos

acontecimentos guia o seu pensamento político. Embora o homem possa usar bons

resultados a sua virtù no moldar dos acontecimentos, vê-se ainda forçado a agir com a

fortuna e, se não for cauteloso (metáfora do rio), realista e precavido, esta lhe arrebatará o

poder. A fortuna “exerce seu poder quando não se lhe opõe barreira alguma; ela faz seu

esforço incidir nos pontos mal definidos”. 164

Se parece haver um curso inflexível das

coisas, é somente no passado; se a fortuna parece ora favorável, é porque o homem ora

compreende e ora não compreende o seu tempo, e as mesmas qualidades trazem-lhe

conforme o caso o sucesso e a perda, mas não por acaso.165

164

MAQUIAVEL, O Príncipe, XXV, p. 119. 165

SARNO, Ivani Cunha di. Maquiavel defensor da liberdade, p. 173.

83

Assim, o homem de virtù supera dores físicas e morais e busca despertar dentro de

si a energia e o ânimo. Se por um lado a fortuna é adversária dos homens, por outro lado o

embate entre estas duas potências objetiva a liberdade humana. Isto se esclarece nas

palavras do próprio Maquiavel quando infere a seguinte conclusão: "não obstante, e porque

o nosso livre arbítrio não desapareça, penso ser verdade que a fortuna seja árbitra da

metade de nossas ações, mas que ainda assim, ela nos deixe governar quase a outra

metade". 166

Ou seja, a coação dos homens pela virtù pode dar à fortuna as mais variadas

formas, utilizando-se de toda sua perspicácia o homem deve moldá-la segundo sua

necessidade. Pois, segundo Maquiavel a fortuna manifesta seu poder, justamente, onde não

há resistência organizada, revela sua violência onde os homens nada fizeram para contê-la.

É necessário que o homem de virtù tenha consciência plena do seu poder de agir. Para tal

feito é importante que ele utilize sua liberdade no exercício da ação exterior, a fim de

alcançar aquilo que se almeja.

Com este exemplo Maquiavel quer elucidar o quanto à fortuna pode devastar caso

os homens não se previnam a fim de resisti-la. Por isso a virtù é considerada por muitos a

melhor ilustração do poder e da autonomia humana, definidos por uma ação constante

contra a resistência e a indeterminação do mundo.

No campo político, os homens de virtú têm sempre por objetivo controlar a fortuna,

a fim de preservar a ordem política instituída. Isto é de fundamental importância, pois a

conservação de qualquer objetivo está implicado na conservação do Estado. Porém, além

disto, o homem de virtù “aspira a objetivos maiores”, a saber: a obtenção dos bens da

fortuna, quais sejam: poderes, honras, riquezas e glórias. No intuito de alcançar estas

ambições ele deve ter em mente que a chave do sucesso está na flexibilidade. Somente

aqueles homens capazes de adaptar suas estratégias aquilo que o momento atual exige, e,

que agem de acordo com as modificações do curso do tempo, vão alcançar o êxito.

Este papel que a fortuna adquire na política de Maquiavel, segundo Ames (2002),

proporciona como lição, que “o político flexível, entendido como alguém que se adapta

rapidamente às novas situações, sente a aproximação de modificações macro-estruturais e

imediatamente determina de modo novo seus procedimentos, está sempre em vantagem em

relação ao político conformado e preso a estratégias de êxito comprovado”167

. Sendo

assim, o que Maquiavel sugere no campo político não é a modificação da realidade a seu

166

MAQUIAVEL, O Príncipe, XXV, p. 119. 167

Cf. AMES, José Luiz. Maquiavel: A Lógica da Ação Política, p. 137.

84

favor, mas uma forma de adaptar seu modo de agir às regras do jogo, tirar deste todo

proveito que puder.

O homem de virtù possui qualidades tais que, perante aos outros homens, destaca-

se com veemência. Portanto, somente a vontade de impor-se perante a fortuna não basta

aos homens. Para Maquiavel eles devem conciliá-la a uma série de outras qualidades. É

preciso: inteligência, a fim de calcular toda e qualquer ação, perceber a realidade que se

altera constantemente, examinar as circunstâncias que possibilitam ou não o seu agir, e

ainda, ser audaz quando da necessidade de recorrer a meios extraordinários, ou seja,

sempre que necessário ao êxito de uma ação os homens devem fugir ao trivial.

É neste sentido que a virtù deve ser entendida como aquela qualidade que designa a

capacidade de estar presente no mundo, de saber apreender a ocasião, de saber se modificar

e agir contra toda tradição. Tendo em vista o campo da ação para Maquiavel, a fortuna só

interessa ao teórico enquanto corresponde a um obstáculo às ações.

85

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizar um trabalho é encontrar um ponto de repouso. Isso significa dizer que os

traçados dos contornos da compreensão da pesquisa não se esgotaram, porque muitas vezes

buscam-se respostas insuficientes para a grandeza do assunto e do autor.

Seja como for, o estudo sobre “A virtù e o bom governo em O príncipe de

Maquiavel” certamente, foi um esforço, uma vez que nele interveio fortemente a emoção, o

sentimento, a paixão. A única preocupação é se cometi erros às injustiças de juízos que se

tenha formulado e à dificuldade de ser compreendida. Apesar de toda a pesquisa refletir

uma escolha e ter por objetivo acrescentar algo que, ao final, não há dúvida de que não há

certeza, senão a de estar interpretando algo que se oculta, pelo próprio modo de ser, da

interpretação.

Certamente, a leitura e a análise de sua obra, despertaram-me o desejo de escrever

sobre o tema, mas escrever sobre Maquiavel e a virtù foi uma aventura arriscada, pois

soma-se à pesquisa aos vários intérpretes divergentes que debatem exclusivamente sobre a

virtù e sobre o autor. Seu pensamento confere intensa contemporaneidade, estudá-lo, hoje,

é compreender sua concepção política como explicação e como instrumento para

transformar a política atual, porque sua obra não se reduz a um conjunto de técnicas, mas

nasce de uma longa meditação acerca da arte de governar.

Portanto, a presente dissertação investigou o conceito de virtù no pensamento

político de Maquiavel, juntamente com o conceito de fortuna, no intento de mostrar que o

agir humano é movido por várias forças, seja internas e externas, sejam conscientes e

irracionais. Observamos uma grande preocupação de Maquiavel tanto em O Príncipe

quanto nos Discursos, em relação do agir de um príncipe perante as dificuldades,

analisamos vários modos de agir, atitudes e posicionamentos tomados perante

determinadas situações, e todos os exemplos discutidos sob a interpretação do autor e seus

comentadores e na orientação e apreciação da observação em relação aos fatos e

acontecimentos.

Pensar a questão da virtù a partir do pensamento de Maquiavel parece nos remeter

às formas possíveis de ação que o governante pode praticar para efetivar seu objetivo de

conquista e manutenção do poder. Pois, a cada instante as circunstâncias podem exigir que

o governante esteja disposto a modificar seu modo de agir para corresponder às novas

exigências impostas por elas.

86

Sendo assim, a virtù para Maquiavel é a principal ferramenta para a inteligibilidade

das ações capazes de conduzir um dirigente aos seus objetivos primeiros de aquisição e

manutenção do bom governo. E para melhor compreensão, o autor estabelece um

rompimento com a tradição em relação ao conceito de virtù, afastamento este que exige de

Maquiavel a necessidade de apresentar a “verdade efetiva das coisas”, questões que se

tornam um enfrentamento com a tradição e construção de novos valores ao conceito. Ao

utilizar o termo virtù, o pensador florentino se confronta com o conceito de virtude, que

são conjunto de qualidades cristãs, atributos estes, que enfraquecem os homens tornando-

os covardes, medrosos e passiveis aos acontecimentos. Por isso, Maquiavel sugere, em

substituição à virtude, qualidades menos aspiradas, fixas e que não estabelece poderes para

um dirigente. Voltar-se de acordo com a direção dos ventos, agirem com virtù, era a

proposta de Maquiavel, ou seja, atuar ações de grandes medidas como a força e a coragem.

Logo, a tradição cristã não serve para elevar os valores dignos de um homem de

ação. Eleva antes a humildade, a fraqueza, a covardia, e justamente nesse sentido que se

torna alvo das críticas do pensador florentino. Pois, para Maquiavel esses valores

prejudicam o agir político. Portanto, se faz necessário substituí-los por outros que tragam

força, glória e astúcia ao dirigente para assim conseguir a manutenção e conservação do

poder. A substituição é feita para a virtù que é a única capaz de interpretar a verdade

efetiva e concretizar os objetivos daquele que governa, ou seja, na conquista e manutenção

do poder.

Para fortalecer seu argumento referente ao conceito de virtù, Maquiavel utiliza

alguns exemplos de personagens históricos e na análise de suas ações identifica quais

ações são merecidas e se enquadram no critério de dirigentes providos de virtù.

Os personagens, Moisés, Savonarola e César Bórgia refletem como ações e

experiências que foram consideradas referências de erros ou acertos de homens que

estiveram na liderança política e alcançaram de certa forma, alguns exemplos de ações de

virtù. Sendo assim, Maquiavel, apresenta Móises considerado um exemplo de líder digno

de imitação, alcançou, através da habilidade de conduzir, favorecimentos aos seus

comandados, e soube utilizar a religião juntamente com a política para ordenar seu povo,

mas que também teve agilidade de se utilizar da força e armas no momento apropriado.

Savonarola, outro modelo político que ganhou poder por seus discursos religiosos, no

entanto, não soube se utilizar dos ventos para mudar suas habilidades e fazer uso de armas

e forças para manter firme sua ordem e a conservação de seu poder.

87

Outra lição registrada pelo pensador florentino é o caso de César Bórgia, em

relação ao qual Maquiavel relata a trajetória e a habilidade de lidar com as conquistas

territoriais através de sua virtù, por isso realizou conquistas institucionais e implantou

novas ordens em lugares em que não havia mais meios outros senão os das armas e da

força para conseguir o intento. Podemos afirmar que, no relato de Maquiavel da trajetória

de César Bórgia, existe uma síntese de todas as questões referentes à fundação, conquista e

manutenção. Entretanto, podemos ver este relato como uma construção. César Bórgia

reúne de maneira completa todos os componentes que caracterizam o príncipe de virtù de

Maquiavel, o que o torna um exemplo de seus preceitos. E, entre a redução de O Príncipe a

César Bórgia e a ampliação de César Bórgia ao O Príncipe, parece mais acertada a segunda

alternativa. Ou seja, a imagem de César Bórgia é ampliada de modo a conter em si O

Príncipe. Maquiavel se cala sobre os fatos que fariam César Bórgia equiparar-se aos que

conquistaram o poder pelo crime e atribui a ele intenções de pacificação. Coloca-se, enfim,

como que lendo em seus atos suas intenções, escondidas para os que apenas podem ver na

aparência.

Portanto, sabemos que as práticas daquele que governa estão circunscritas pela

aparência, que, por sua vez, se inscreve no âmbito da política. Uma análise deste âmbito

nos permitiu não apenas compreender melhor as dificuldades que lhe são próprias, como

também delimitar o lugar do governante no corpo político. Entre outros problemas que a

questão trouxe à tona, procuramos investigar a distinção entre o que o governante precisa

fazer para conquistar e manter o poder e o quanto ele precisa romper com a tradição para

efetivá-lo, ou seja, o quanto ele precisa deixar de corresponder às expectativas que se tem

daquele que assume o poder em relação aos valores próprios da tradição na qual ele se

insere. Em outras palavras, sabemos que os valores da tradição no contexto do

Renascimento implicavam em grande medida as virtudes cristãs e vimos que o governante

por vezes precisa agir de modo a contrariá-las. A virtù, de fato, não implica aquilo que

constitui a virtude, mas, da mesma forma, também não implica necessariamente aquilo que

constitui o vício. Deste modo, simular e dissimular constituem parte da estratégia de ação

de um governante de virtù, que delas se vale sempre que as circunstâncias as tornem

necessárias.

Vimos que as modificações das circunstâncias são tratadas por Maquiavel como

obra da fortuna. Esta última seria a responsável pela introdução daquilo que é imprevisível

no mundo dos homens e, consequentemente, cabe ao governante precaver-se em relação às

88

mudanças dos tempos sem, concomitantemente, criar qualquer pretensão de prever o

futuro. Maquiavel sugere em relação à fortuna, o governante deve procurar perceber as

mudanças introduzidas e, a partir de então, adaptar-se a elas, agindo de forma a atender as

novas necessidades que lhe foram postas. Assim, o governante de virtù deve se adaptar as

circunstâncias e a flexibilidade moral que leva o dirigente a não operar com regras fixas e

definidas de antemão, e procurar agir de modo a atender as exigências novas que tais

modificações lhe impõem.

Ao tratar da fortuna, no entanto, não podemos mais evitar a questão da virtù.

Especialmente pela sugestão de Maquiavel segundo a qual ou o governante tem virtù, ou

fica à mercê das variações próprias da fortuna. Virtù e fortuna constituem o par conceitual

clássico dos textos de Maquiavel, haja vista que a primeira compreende as características

fundamentais que o governante precisa ter para manter o poder sem depender

exclusivamente da segunda. Assim, se é verdade que a fortuna pode opor ao governante

obstáculos por vezes intransponíveis, parece também que estes não se fazem

intransponíveis enquanto a virtù do governante pode superá-los. Esta última configura-se

como o principal instrumento de resistência às imposições da fortuna e, de modo geral,

será possível conquistar e manter o poder enquanto a fortuna impuser ao governante

dificuldades que ele pode, valendo-se de sua virtù, contemporizar ou superar.

Portanto, identificamos a virtù como o elemento-chave para determinar as melhores

ações, ou seja, as ações mais capazes de conduzir aquele que governa aos seus principais

objetivos que, para Maquiavel, se constituem pela conquista e manutenção do poder e no

sucesso das aplicações políticas.

Esperamos que esta análise tenha contribuído para a compreensão das

possibilidades de ação para que o governante possa manter o poder, assim como para a

compreensão do espaço da política que é próprio da virtù do príncipe. Ao analisarmos as

práticas do dirigente de virtù, esperamos não apenas ter encontrado elementos conceituais

capazes de nos proporcionar uma melhor compreensão deste assunto na obra de

Maquiavel, mas também, ao visitarmos um assunto e um autor tão significativos para o

republicanismo moderno, termos destacado elementos capazes de nos ajudar a

compreender fundamentos de problemas do nosso tempo.

Assim, nos faz necessário, remover o equívoco de pensar que Maquiavel foi um

homem perverso e maquiavélico (imagem conservada para além do tempo e da obra dele)

que trama nos bastidores da administração pública é estudá-lo cientificamente, buscando-

89

se a eficácia constitutiva de sua imagem verdadeira de um republicano, contra a imagem

maquiavélica, que tem sido pejorativamente acusado de ser e contra a exploração que

tiranos e ditadores fizeram dele. Malgrado a persistente antipatia que muitos têm, pensa-se

que o destino trágico do autor consiste em haver sido mal compreendido e ter seu nome

ligado, por meio dos séculos, a toda a espécie de abjeção política. Dele podem extrair-se

ciência política e conceitos, utilizáveis para as aplicações quer seja filosóficas ou

científicas.

Maquiavel não foi simplesmente um técnico da política do poder. Foi um pensador

político que formulou uma ética para a esfera da política, buscando estabelecer uma ética

política auto-suficiente, que pode ser considerada uma “moralidade efetiva”. Portanto, a

política tem uma ética e uma lógica próprias. O pensador florentino descortina um

“horizonte” para se pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional moralismo

“piedoso” e elegeu a autonomia política para opor à submissão do bem comum a interesses

particulares.

E por fim, concluímos este trabalho, mencionando o Capítulo vigésimo sexto, no

qual Maquiavel demonstra o seu único desejo político e a paixão que o levou a escrever

sua imemorável obra O Príncipe, que deixou e deixa seus leitores inquietos, a “exortação a

tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros”, um clamor de unificação por seu e tão

sonhado território maternal:

Virtú contro a furore

Prenderà l’arme, e fia el combatter corto;

Che l’antico valore

Nell’italici cor non è ancor morto.168

168

A citação da canção All’Italia (À Itália), de Petrarca, encerra este capítulo tão movimentado e tão

diversificado em seus sucessivos níveis estilísticos. Em tradução livre: “A virtude, contra o furor, / Tomará

armas e que seja breve o combate, / Pois o antigo valor / Não está morto no coração dos Italianos.”

90

BIBLIOGRAFIA

PRIMÁRIA

MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF.

São Paulo: Martins Fontes, 2007.

_______. O príncipe. Tradução de José Antônio Martins. 1. ed. São Paulo: Hedra, 2007.

_______. O príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. 3. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2004.

_______. História de Florença. Tradução de Nelson Canabarro. São Paulo: Musa, 1994.

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