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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO E DOUTORADO SUELI BARROS DA RESSURREIÇÃO CORAÇÃO DE PROFESSOR: O (DES) ENCANTO DO TRABALHO SOB UMA VISÃO SÓCIO- HISTÓRICA E LÚDICA Salvador 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO E DOUTORADO

SUELI BARROS DA RESSURREIÇÃO

CORAÇÃO DE PROFESSOR: O (DES) ENCANTO DO TRABALHO SOB UMA VISÃO SÓCIO-

HISTÓRICA E LÚDICA

Salvador 2005

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SUELI BARROS DA RESSURREIÇÃO

CORAÇÃO DE PROFESSOR: O (DES) ENCANTO DO TRABALHO SOB UMA VISÃO SÓCIO-HISTÓRICA E

LÚDICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Bernadete de Souza Porto

Salvador 2005

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By Sueli Barros da Ressurreição, 2005

Catalogação na Publicação Elaborada pela biblioteca da Universidade do Estado da Bahia/UNEB

w

Ressurreição, Sueli Barros da Coração de professor: o (des) encanto do trabalho sob uma visão sócio-histórica e lúdica /Sueli Barros da Ressurreição. – Salvador : [s.n.], 2005. 344f. Bibliografia: f.305-315 Contém anexos Orientador: Bernadete de Souza Porto Dissertação ( mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. . 1.Educação. 2.Professores - Formação. 3.Professores – Satisfação no trabalho 4. Atividades criativas na sala de aula. I. Porto, Bernadete de Souza. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação CDD 370.71

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TERMO DE APROVAÇÃO

SUELI BARROS DA RESSURREIÇÃO

CORAÇÃO DE PROFESSOR: O (DES) ENCANTO DO TRABALHO SOB UMA VISÃO SÓCIO-

HISTÓRICA E LÚDICA

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Bernadete de Souza Porto – Orientadora__________________________________ Doutora em Educação, Universidade Federal do Ceará (UFC) Docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Cipriano Carlos Luckesi ____________________________________________________ Doutor em Educação, Universidade de São Paulo (USP) Docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Eliseu Clementino de Souza _________________________________________________ Doutor em Educação, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Lúcia Helena Pena Pereira __________________________________________________ Doutora em Educação, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Docente da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)

Salvador, 17 de outubro de 2005

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AGRADECIMENTOS

“ Quero falar de uma coisa

Adivinha onde ela anda Deve estar dentro do peito

Ou caminha pelo ar...” (Wagner Tiso/Milton Nascimento)

Agradecer é expressar algo que “está dentro do peito”, algo que nos trouxe muito prazer.

Por isso, começo agradecendo a Deus, Luz Divina, e a todos os Orixás que estiveram presentes em todos os momentos deste trabalho.

Aos meus pais por terem me dado à vida e a força para brincar com ela. Ao meu marido, pelo amor que me dedica e pela paciência que teve e tem com os meus sonhos e utopias. Às minhas filhas, por terem perdoado a minha falta de tempo, e às vezes de carinho, durante esta jornada. Aos demais parentes por terem me dado colo quando a saúde me faltou.

À Bernadete Porto, minha orientadora/educadora pelo acalento, desafio e confronto no meu processo de construção do conhecimento. À minha terapeuta Cristina Piauí, por ter me acolhido e escutado nos momentos de grandes turbulências.

Aos meus velhos e grandes amigos do coração: Telma, Adilma, André e Cabús. Telma Lélis, pela confiança depositada em mim e por ter dado grande contribuição neste estudo. Adilma Rodrigues, por ter re-despertado em mim a espiritualidade. André Nascimento e Roberto Cabús, leais e solidários, sempre me acompanhando no Trem da Vida.

Agradeço à Valdélio Silva e Elvina Almeida, colegas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que me auxiliaram no início a apresentar a proposta deste estudo. A todos os outros colegas, funcionários e alunos do DCHT, Campus XVII, da UNEB, que me ajudaram a constituir os saberes necessários para o ofício docente. À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós Graduação (PPG), da mesma Universidade, pelo apoio e sustentação indispensáveis para concretização deste estudo.

Ilma, Débora, Maria José e Antônia, pelos momentos que passamos no mestrado, que nos fez re-descobrir a arte de sorrir no prazer e na dor de gestar e parir uma dissertação. Aos demais colegas do curso e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade (GEPEL) pelos momentos ludopedagógicos. À todos da coordenação do mestrado, especialmente a Maria das Graças (Gal), pela gentileza, carinho e conversas agradáveis. À professora Joseânia Freitas, pelo acolhimento e disponibilidade para ajudar. Aos demais professores do Programa pelos diálogos proporcionados.

Por fim, tenho uma grande gratidão e carinho ao Grupo Coração de Professor, que tornou possível a concretização desta pesquisa, trazendo vida, em todos os encontros, fazendo brotar flores e frutos.

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Brincar De Viver

(Guilherme Arantes)

Quem me chamou

Quem vai querer voltar pro ninho Redescobrir, seu lugar

Para retornar E enfrentar o dia a dia Reaprender, a sonhar

Você verá que é mesmo assim

Que a história não tem fim Continua sempre que você

Responde sim A sua imaginação

A arte de sorrir Cada vez que o mundo diz não

Você verá

Que a emoção começa agora Agora é brincar de viver

Não esquecer Ninguém é o centro do universo

Assim é maior o prazer

Você verá que é mesmo assim Que a história não tem fim

Continua sempre o que você Responde sim

A sua imaginação A arte de sorrir

Cada vez que o mundo diz não

E eu desejo amar A todos que eu cruzar

Pelo meu caminho Como sou feliz eu quero ver feliz

Quem andar comigo

Vem Agora é brincar de viver Agora é brincar de viver.

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RESUMO

A pesquisa teve como objeto de estudo a afetividade no trabalho docente, analisando a importância da ludicidade e da vivência psicocorporal na formação de professores. Buscou, como pauta, a análise da ambigüidade do papel profissional que permeia a crise do professorado neste século, diante das pressões e exigências advindas das mudanças sociais, da racionalidade tecnocientífica, da pulverização do trabalho docente, da descaracterização de sua ação e seus reflexos na prática pedagógica. Procurou, desse modo, compreender como estes fatos podem ser desencadeantes do esgotamento emocional, da falta de envolvimento pessoal na atividade realizada, levando o professor a um mal-estar, a uma perda de sentido no seu gesto, a um desencanto com sua prática. Ao mesmo tempo, discutiu a importância da ludicidade na formação profissional, no investimento afetivo e no reencanto do professor em seu trabalho. O referencial teórico foi fundamentado no materialismo histórico de Karl Marx sobre as funções ontológica e alienadora do trabalho; na abordagem da Psicologia Sócio-Histórica sobre afetividade; nas pesquisas sobre o mal-estar docente e na análise sobre formação de professor; nos teóricos e pesquisadores da ludicidade e das atividades lúdico-corporais. A investigação qualitativa foi realizada mediante um estudo de caso com vinte e cinco professores da rede pública de Ensino Médio, vinculados aos principais colégios situados na cidade de Salvador-Bahia. O estudo concluiu que as atividades lúdico-corporais na formação de professores representam uma estratégia eficaz para enfrentar as adversidades do ofício, ao ampliar sua consciência e atuar no seu equilíbrio afetivo-energético. Dessa forma, podem contribuir para formulações de políticas voltadas para formação docente e para prevenção de doenças ocupacionais desta categoria. Palavras-chave: Afetividade; Trabalho Docente; Formação de Professores; Ludicidade; Atividades lúdico-corporais.

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ABSTRACT

This research has as its study object the affectivity in the teaching work, analyzing the importance of the play and psychological – body experience at the teacher formation. It has been researched, ruled on the analyze of the ambiguity from the teachers as professionals, that permeate the crises about teachers activity during this century, facing the pressures and exigencies that come from the social changes, the techno -scientific rationality, from the pulverization of docent work, from the featureless of this action and its reflexes in the pedagogic practice. It is tried, this way, to understand how these facts can be responsible for the emotional exhaustion, the low personal engagement in the activity that is executed, taking the leading the teacher to a discomfort, to the lost of sense in his/her action, to a disenchantment with his/her practice. At the same time, it is discussed the importance of the play at the professional formation, in the affective investment and renew the enchantment of the teacher in his/her work. The theoretical referential was based on the historical materialism by Karl Marx about the ontological functions and the work alienation; in a Psychological, Social, Historical approach, about affectivity; in the researches about docent discomfort and in the analyses about the teacher formation, in the experts and researchers of the about play and activities play-corporal . The qualitatively investigation was made mediated by a case study involving twenty-five teachers from the Public Education System , high school, linked to the mainly schools situated in Salvador City, Bahia. The research concluded that the play-corporal activities in the teachers formation represents an efficient strategy to face the adversities, on amplifying the conscious and acting in its energetic-affective balance . This way, they can help to formulate politics turned to docent formation and to avoid sickness caused by the job of this category. Keywords: Affectivity, Docent work, Teacher Formation, Play, Play-corporal activities.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Quadro síntese dos vinte e sete professores, com nomes fictícios, selecionados para o curso de Extensão, com grau de escolarização, área de ensino e tempo de serviço. Figura 2 – Foto: “Dança do Sol” 69 Figura 3 – Foto: “Dramatização Certificação Ocupacional” 117 Figura 4 – Foto: “A dor e a delícia de ser professor” 163 Figura 5 – Foto: “Escolha profissional” 167 Figura 6- Cartaz da prof.ª Vânia” 170 Figura 7 - Cartaz da prof.ª Isabel 171 Figura 8 - Foto: “Acordar o Coração” 178 Figura 9 - Foto: “O motorista e o carro” 192 Figura 10- Foto: “Acordar o Coração” 205 Figura 11- Foto: “Casa, morador, terremoto” 207 Figura 12 –Foto: “Acordar o coração” 212 Figura 13- Foto: “Laços e nós entre os professores” 219 Figura 14 – Foto: “A dor e delícia de ser professor” 239 Figura 15- Foto: “ Desenho” 241 Figura 16 - Diagramas representativos da Unidade e Síntese Psicossomática 244 (REICH, 1961) Figura 17 - Processo de energia Econômico-sexual (REICH, 1961) 245 Figura 18 – Inibição da economia sexual perturbada ( REICH, 1961) 250 Figura 19 – Foto: “ Laços e nós entre os professores” 262 Figura 20 – Painel do Grupo 1 285 Figura 21 – Painel do Grupo 2 287 Figura 22 – Painel do Grupo 3 287 Figura 23 – Painel do Grupo 4 289

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APLB Associação dos Professores Licenciados da Bahia CEFAM Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério DIREC Diretoria Regional de Educação FACED Faculdade da Educação GEPEL Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade GESTAR Programa Gestão Escolar LDB Lei de Diretrizes e Bases MEC Ministério da Educação OMS Organização Mundial de Saúde PCN Parâmetros Curriculares Nacionais SEC Secretaria de Educação do Estado da Bahia UFBA Universidade Federal da Bahia ULBRA Universidade Luterana do Brasil UNEB Universidade do Estado da Bahia REDA Regime Especial de Direito Administrativo SAEB Sistema de Avaliação de Educação Básica

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

1.1 O PROBLEMA E NOSSAS INQUIETAÇÕES 17

1.2 O MÉTODO E SEUS CAMINHOS 19

1.2.1 Procedimentos de coleta de dados 21

1.2.2 Tratamento e análise dos dados 32

2 A VISÃO SÓCIO-HISTÓRICA E LÚDICA SOBRE

O DESENVOLVIMENTO 35

2.1 O HOMO-FABER: O TRABALHO COMO CATEGORIA FUNDANTE

DO SER SOCIAL. 37

2.1.1 O trabalho criou o homem 39

2.1.2 O homem produz o homem, si próprio e outro homem 41

2.1.3 O ser social determina a consciência 45

2.2 O HOMO AMANS: O PAPEL DA AFETIVIDADE NA ORGANIZAÇÃO

E REGULAÇÃO DO SUJEITO 49

2.2.1 A perspectiva walloniana sobre a constituição do sujeito 52

2.2.2 A afetividade em Vigotski: a emoção como organizadora

do comportamento 54

2.3 O HOMO LUDENS: A LUDICIDADE NO DESENVOLVIMENTO DA

CONSCIÊNCIA. 57

3 DO OFÍCIO DE MESTRE À CONSCIÊNCIA DA PRÁXIS 69

- Práxis pedagógica e formação de professores -

3.1 O PROFESSOR COMO SUJEITO DO SEU TRABALHO 70

3.2 SER OU NÃO SER ? OS PROFESSORES RESPONDEM... 78

3.2.1 “ Ser professor é ser tanta coisa!”: o professor como profissional 80

3.2.2 ”Antes de sermos professores, somos seres humanos”: o professor

na história 86

3.3 APRENDENDO A SER E A CONSTITUIR SABER 105

3.3.1 “ O descortinar da práxis pedagógica”: a formação inicial 106

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3.3.2 “ Ação-reflexão-ação”: a formação continuada 111

4 A DOR DE SER O QUE É: O DESENCANTO DO TRABALHO DOCENTE 117

4.1 ” QUANDO OS PROFESSORES SÃO CEIFADOS”: 119 Fatores Secundários 4.2 “ A QUEIMADURA INTERNA”: 133 Fatores Primários 5 “ TRANSFORMANDO O TÉDIO EM MELODIA...” 163

- A afetividade na práxis pedagógica –

5.1 “ESTAVA ESCRITO NAS ESTRELAS”: 167 escolha e processo de identificação profissional

5.2 “ A DOR E A DELÍCIA DE SER PROFESSOR” 174

5.3 “ GENTE É OUTRA ALEGRIA, DIFERENTE DAS ESTRELAS”: 178 a subjetividade no processo ensino-aprendizagem- 5.4 “ QUANDO A GENTE GOSTA É CLARO QUE A GENTE CUIDA” 193 as emoções nas relações interpessoais do docente 6 “ O MELHOR LUGAR DO MUNDO É AQUI E AGORA” 205

- A trabalho e a formação lúdica do professor – 6.1 “ SER MESTRE É ENSINAR A FELICIDADE”: 207 o lúdico no trabalho pedagógico 6.2 “ O LÚDICO ABRE A PESSOA PARA VIDA”: 212

a síncrese ludopedagógica 6.3 “ A LUDICIDADE DÀ SENTIDO AO MEU FAZER PEDAGÓGICO”: 219 a análise ludopedagógica 6.4 “ A LUDICIDADE É UMA CIÊNCIA QUE DÁ CONTA DO SER”: 229 a síntese ludopedagógica 7 “ A ARTE DE SORRIR CADA VEZ QUE O MUNDO DIZ NÃO” 239 - A vivência lúdico-corporal na formação dos professores- 7.1 “ SE EU TIVESSE MAIS ALMA PARA DAR EU DARIA...”: 241 o corpo emocional do professor 7.2 “DEIXE EU DANÇAR PARA MEU CORPO FICAR ODARA”: 262 a vivência lúdica corporal na formação de professores 8 “ E HÁ QUE SE CUIDAR DO BROTO...” 292

- Reflexões Conclusivas –

REFERÊNCIAS 305

APÊNDICES 316

ANEXOS 334

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1 INTRODUÇÃO “Cada um lê com os olhos que tem.

E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto.”

(Leonardo Boff)

Todo tema de pesquisa traz as implicações afetivas, históricas e profissionais dos

pesquisadores que orientam a escolha do objeto, as trajetórias realizadas e a tônica dos resultados

do estudo. A presente pesquisa surge de uma preocupação central, compreender a importância do

Trabalho na estrutura psicológica do ser humano, segundo enfoque marxista, e a relação que este

estabelece com duas dimensões fundamentais desta estrutura: a afetividade e a ludicidade1. Tem

como objeto de estudo a afetividade no trabalho docente, analisando a importância da formação

lúdica do professor do ensino médio.

Buscamos analisar a ambigüidade do papel profissional que permeia a crise do

professorado neste século, diante das pressões e exigências advindas das mudanças sociais, da

racionalidade tecnocientífica, da pulverização do trabalho docente, da descaracterização da

centralidade de sua ação e seus reflexos na práxis pedagógica.

Procuramos, desse modo, compreender como estes fatos podem ser desencadeantes do

esgotamento emocional, da falta de envolvimento pessoal na atividade realizada, levando o

professor a um mal-estar, a uma perda de sentido no seu gesto, a um desencanto com sua prática.

Ao mesmo tempo, discutimos a importância da formação lúdica e o investimento afetivo deste

profissional no trabalho, buscando identificar qual sua contribuição ao seu estado de bem-estar e

ao seu potencial criativo frentes às adversidades.

Apresentamos três fontes de nossa aspiração ao tema de estudo: as pesquisas

contemporâneas sobre o mal-estar dos professores, a nossa experiência como docente de alunos-

professores na Universidade do Estado da Bahia e a nossa prática clínica no atendimento aos

profissionais de educação.

A primeira fonte citada apóia-se nas pesquisas realizadas, nas últimas décadas, sobre as

conseqüências da relação alienada do homem com o trabalho e que ressaltam a importância da

dimensão subjetiva da atividade laboral para a saúde do trabalhador.

1 Apesar de não haver registro dicotomizado em Portugûes, é largo o seu emprego em Pedagogia, Psicologia e ramos científicos afins, motivo por que aplicamos o vocábulo sempre grafado em itálico.

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Dentre estas pesquisas, pode ser destacada a do espanhol Esteve (1999) sobre o mal-estar

docente, na qual analisa a crise contemporânea na profissão do educador e onde conclui que, nos

últimos vinte anos, não só na Espanha, como em todo o mundo, o modelo socioeconômico

acelerado mudou de forma significativa o perfil dos professores, suas relações e condições de

trabalho na escola.

Tais mudanças acarretam pressões psicológicas e sociais constantes sobre a atividade

docente, provocando efeitos permanentes de caráter negativo, denominados de “mal-estar”, que

afetam a personalidade dos professores.

O autor observa que, embora o mal-estar se manifeste de forma individual no professor

(frustração, tensão, ansiedade, esgotamento), apresenta-se como problema coletivo, ou seja, tem

raízes no contexto social onde se insere. Neste sentido, aponta alguns fatores desencadeantes,

entre eles: aumento das responsabilidades e exigências sobre os educadores, resultando em

acúmulo de funções antes designadas a outras instituições, a exemplo da família; a

subvalorização da afetividade e da representação social docente nos programas de formação;

precárias condições de trabalho e modificações no status social medido pelo nível salarial; falta

de autonomia e controle sobre o próprio trabalho.

No Brasil, Codo (1999), numa extensa pesquisa realizada em todos os estados brasileiros,

com cinqüenta e dois mil professores do ensino fundamental e médio, constatou que as mudanças

educacionais contemporâneas fragmentam o trabalho destes profissionais, causando-lhes uma

tensão emocional constante e impondo-lhes uma cisão entre seu “eu profissional” e seu “eu

pessoal”.

Esta cisão pode provocar, segundo o autor, um estado de apatia, um desencanto que o faz

“perder o fogo” na sua atividade, e que, uma vez não mediado, pode resultar num estresse 2ocupacional crônico denominado de Síndrome de Burnout ou Síndrome da Desistência.

Também observamos, nestes últimos anos, que a Lei de Diretrizes e Bases ( Lei nº 9.394)

de 20 de dezembro de 1996, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e os pilares para

Educação para o século XXI defendidos no relatório de Delors (2001), trouxeram propostas de

mudanças significativas sobre as responsabilidades e competências para os professores e sua

2 Codo (1999) esclarece que não se pode confundir Burnout com estresse. O estresse é um esgotamento pessoal com interferência na vida do sujeito e não necessariamente na sua relação com o trabalho. O Burnout envolve atitudes e condições negativas com relação aos usuários, clientes, organização e trabalho.

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formação. Dessa forma, abriram vasto campo para pesquisa sobre profissionalização e formação

de professores.

A segunda fonte de nossa aspiração ao tema, vem de nossa experiência na regência das

disciplinas Psicologia da Educação e Psicomotricidade, nos cursos de licenciatura da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), nas quais observamos que as queixas dos alunos-

professores se resumiam, às vezes, em fadiga, sentimento de impotência, ausência de motivação

e despersonalização, o que de fato os tornavam, a priori, mais vulneráveis a chamada

“queimadura interna” ou Burnout (CODO,1999).

Percebíamos que o resultado da sobrecarga de responsabilidades ocupacionais, a falta de

condições de administrar a sua própria atividade e o esquecimento de sua pessoa afetiva dotada

de sonhos e de estima própria poderiam propiciar um desencanto no trabalho.

E, finalmente, a terceira fonte, advém do nosso exercício clínico, na área de Psicoterapia

Corporal, na qual tivemos oportunidade de ouvir o cliente-professor, sobre o quanto seu trabalho

estava sendo fatigante na medida em que proporcionava poucas condições para o investimento

afetivo, assim como para a sua realização profissional.

Como testemunha desta realidade, elaboramos e coordenamos, entre os anos de 2001 e

2002, o curso de Extensão Universitária,“Aprendendo a ser e a construir saber, de cunho

teórico-vivencial, onde propomos aos professores, coordenadores, supervisores e alunos egressos

dos cursos de licenciatura da UNEB, um debate sobre as teorias psicogenéticas que versam sobre

cognição e emoção, ao mesmo tempo em que foi oferecido um espaço para vivências lúdicas e

psicocorporais, ensejado ao professor elaborar seu conhecimento sobre o tema e expressar suas

emoções.

Neste curso, ao observarmos a narrativa dos professores, notamos a necessidade que

tinham para expressar suas emoções e percepções, de criar e recriar sua forma de ser professor e

de atingir maior flexibilidade nos relacionamentos. Tal fato nos levou a indagar o lugar do afeto e

do lúdico no trabalho docente e que função os professores desempenhavam na sua produção

criativa e nas suas relações intra e interpessoais.

A partir dos relatos e experiências extraídas do Projeto citado há pouco, surgiu a

necessidade de pesquisar como o professor, na qualidade de personagem dos desafios

educacionais contemporâneos, está investindo afetivamente no seu trabalho, nos seus sonhos, no

seu projeto profissional de vida e o que o tem encantado e desencantado. Ao mesmo tempo,

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vieram inquietações acerca do papel que as atividades lúdico-corporais desempenham neste

investimento e na sua formação.

É com esta perspectiva que propomos, neste trabalho, discutir o envolvimento emocional

e o mal-estar docente, estudando a dinâmica afetiva –corporal do professor no seu trabalho de

“cuidar”2, se e como estão subjacentes às habilidades corporais, afetivas e cognitivas,

dinamicamente organizadas em sua subjetividade, tendo como foco o aspecto lúdico na sua

formação.

Neste sentido, na medida em que o propósito da educação contemporânea3 é a formação

do sujeito em sua integridade e diversidades socioculturais, para o reconhecimento de si e do

outro e para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade, emergiu uma reflexão básica

que justifica este estudo: como o professor poderá ajudar os alunos a desenvolver tais recursos

sem uma formação pessoal que lhe propicie tais habilidades? Outro ponto que merece atenção

refere-se à necessidade de analisar, como no decurso de formação e trabalho docente, pode se

manter o encanto pelo conhecimento e pelo fazer frente às condições e aos desafios atuais.

Assim, acreditamos que a pesquisa sobre os aspectos afetivos e lúdicos presentes na

prática docente, objeto de nosso estudo, torna-se premente para aprofundar os estudos sobre a

formação do professor. Neste sentido, mostra-se relevante para o reconhecimento do trabalho dos

professores como central em qualquer projeto político pedagógico, resgatando-o como sujeito de

sua práxis e ressignificando-o como possuidor de valores, crenças, experiências, afetividade e,

sobretudo de uma história que se realiza ativamente.

Por conseguinte, tal estudo almeja contribuir para a formulação de políticas educacionais

voltadas para a qualificação do trabalho docente e, ao enfocar as estratégias defensivas do

professor frente às mudanças e pressões atuais que refletem na sua atividade, busca gerar

reflexões sobre a prevenção de doenças ocupacionais nos profissionais de educação.

Visando a conferir maior clareza a esta proposta, apresentamos, a seguir, os objetivos que

nortearam esta pesquisa e os percursos traçados para atingi-los.

2 Segundo Carvalho (1999, p.51) as palavras cuidado e cuidar são empregadas em uma multiplicidade de significados...Em geral são significados associados à prestação de serviços pessoais a outros, que os termos podem ser empregados no sentido de empatia, carinho, respeito, atenção, proteção, compaixão e compromisso com a comunidade. Para Luckesi (2000), o educador é aquele que acolhe, nutre, sustenta e confronta, amorosamente, o educando, para que ele possa se formar na sua interação com o outro. 3 Conforme relatório da UNESCO, apresentado pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (DELOURS, 2001).

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1. 1 O PROBLEMA E NOSSAS INQUIETAÇÕES

Sendo a afetividade o que conduz processos sociais, a relação entre afetividade e trabalho

na educação apresenta-se como fundamental para compreensão da práxis pedagógica.

Denominamos o título deste estudo ‘Coração de Professor’ como metáfora para simbolizar os

afetos investidos no trabalho docente. Sabemos que este trabalho exige investimento afetivo dos

atores envolvidos, pois educar implica cuidar da formação do sujeito, alimentar e acolher sua

expressão, respeitá-lo e reconhecê-lo, fatos que situam a afetividade num lugar central na ação

educativa.

Como atividade profissional, o trabalho docente apresenta duas dimensões para atingir os

objetivos do processo ensino-aprendizagem. Na dimensão objetiva, são observados as condições

de trabalho, a profissionalização e o processo pedagógico, enquanto na dimensão subjetiva estão

envolvidas a identidade profissional e a elaboração de vínculos afetivos.

Ao mesmo tempo, porém, a energia investida pelo professor é dissipada em outros fatores

que envolvem a dimensão objetiva do seu trabalho, tais como ambiente físico, condições laborais

de sua categoria profissional, normas e regulamentos, questões administrativas e outros.

Até que ponto o professor expressa sua afetividade e tem retorno no seu investimento

emocional? Como elabora seus vínculos afetivos diante da crise atual em que se encontra? Como

a progressiva fragmentação do seu trabalho afeta seu rendimento e suas relações ao ponto de

causar-lhe um “endurecimento afetivo”, ou seja, um corte na relação, expressando distanciamento

emocional, indiferença ou desprezo diante do educando?

Entendemos que o conjunto de atribuições e fatores que compõe o trabalho, uma vez em

desequilíbrio, pode cortar o circuito afetivo do professor com sua práxis. Assim como o vínculo

afetivo é fundamental para o desenvolvimento humano (WALLON, 1968) e para o bem-estar da

pessoa, a quebra no seu circuito intercepta o desempenho no trabalho, impedindo-o de atingir

seus objetivos e o retorno positivo do seu investimento (CODO,1999).

Desta maneira, a energia afetiva é redirecionada, afetando o equilíbrio dos campos

cognitivo e emocional. E, para restabelecer este equilíbrio, o professor reage, buscando opções

para administrar esta energia que volta para seu corpo. Codo (1999) explica que algumas destas

opções se expressam como estratégias efetivas para modificar a situação, resistindo e

administrando de forma positiva seus conflitos, levando-o a um crescimento qualitativo pessoal e

profissional.

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Neste estudo, denominamos estas estratégias de encanto ou re-encanto. Este encanto será

caracterizado pela busca de novos conhecimentos, abertura para mudanças, pela ampliação de

canais de comunicação com as pessoas com as quais trabalha, flexibilidade metodológica e

desenvolvimento da criatividade, mesmo diante dos entraves técnicos e administrativos. Tais

características serão relacionadas com os princípios da ludicidade, que serão discutidos no

capítulo dois.

Outras formas de defesa contra o acúmulo de funções, revelam-se como mecanismos que

não conseguem dar vazão à energia contida, produzindo um mal- estar que vai desde uma

simples dor de cabeça e outras manifestações físicas a um desgaste emocional, um

encouraçamento3, levando à falta de motivação, a um desencanto com o trabalho, “um

endurecimento afetivo” caracterizado como uma desistência simbólica do outro que deve ser

cuidado. Nesta pesquisa, chamamos o conjunto destas características de desencanto do trabalho,

uma “queimadura interna” que origina sentimentos de impotência e falta de esperança frente aos

problemas, ausência de realização e atitudes negativas em relação ao trabalho.

Diante de tal problema, voltamos para a reflexão de como a formação docente pode

desenvolver atividades que colaborem para ampliação da consciência do professor sobre seus

conflitos e para sua competência afetiva-cognitiva, levando-o a enfrentar seus impasses

resistindo, conduzindo positivamente sua afetividade, transformando sua realidade e não

desistindo do seu papel?

Nesta teia, pensamos que as atividades lúdicas e as vivencias psicocorporais, inseridas

num espaço que possibilite aos professores compartilharem seus impasses e questionamentos

enfrentados no cotidiano de sua práxis, podem ser um meio de ampliação de contato com os

processos psíquicos, servindo como estratégias para atuar no equilíbrio afetivo-racional

(LUCKESI, 2000). Podem ainda assumir um lugar importante na formação pessoal do professor

na sua trajetória profissional, uma vez que a ludicidade ocupa papel fundamental nas etapas do

desenvolvimento psicológico e sociocultural como sustentam Elkonin (1998), Bróugérè (1998),

Huizinga ( 1993), Vygotsky (1989), dentre outros.

Temos, a priori, entretanto, a consciência de que o emprego destas atividades não pode

obviamente acabar com o mal estar docente, pois este tem raízes fincadas no contexto social

3 Terminologia utilizada na abordagem reichiana que se refere a um conjunto de defesas psíquicas e somáticas formuladas inconscientemente pela pessoa. (REICH, 1972)

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mais amplo, como observa Esteves (1999), mas pode servir como apoio social aos professores

para enfrentar as condições de trabalho e suas tensões constantes, como alega o mesmo autor.

Diante destas inquietações, formulamos a pergunta norteadora deste estudo: Como a

ludicidade, uma vez inserida no processo de formação do professor, pode contribuir para

crescimento pessoal e profissional e para a expansão do investimento afetivo no seu trabalho?

Ancorado nesta questão básica, o objetivo geral desta pesquisa foi analisar a importância

da ludicidade e da vivência psicocorporal na formação do professor, refletindo sobre a relação

afetividade e trabalho.

No próximo item descreveremos o percurso metodológico que nos levou a atingir tal

objetivo, sua organização, instrumentos, dispositivos, caracterização do grupo estudado e

desenvolvimento da pesquisa de campo propriamente dita.

1.2 O MÉTODO E SEUS CAMINHOS

Visando a concretizar este estudo, alguns caminhos foram traçados não como trilhas

fechadas em suas etapas, mas como mapas norteadores de estratégias que, no seu caminhar,

foram revistas e modificadas, assim como foram repensados seus fundamentos teóricos e seus

focos de investigação, conforme a dinâmica dos dados apresentados.

Antes de descrever a metodologia adotada, julgamos necessário tecer breves

considerações sobre o método. Encontramos em Morin (2003), no seu texto denominado “Educar

na era planetária- o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza

humana”, conteúdos significativos para nortear nossa compreensão sobre o assunto.

Deste modo, opondo-se à concepção cartesiana de método, o autor o apresenta como

caminho, ensaio gerativo e estratégia “para” e “do” pensamento. Com esta concepção, ele

enfatiza a presença de um sujeito (refere-se ao pesquisador) criativo e estrategista em seu

caminho e o método como possibilidade de aprendizagem. Assim, no seu caminhar, o

pesquisador depara-se o tempo todo com esses acasos e incertezas.

Na presente pesquisa, notamos que, para cada encontro com os professores, sempre

preparávamos um plano de atividades, mas nem sempre este se aplicava em sua totalidade,

prevalecendo as estratégias criadas frente às situações inesperadas que emergiam da dinâmica

grupal. Com elas descobríamos dispositivos de análise e formas de relações.

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Neste sentido, Morin (2003), explica que o método emerge da experiência e se apresenta

ao final, iniciando outra viagem, dissolvendo-se no caminhar. O método só pode nascer durante a

pesquisa, ou no seu final, de acordo com o que expressa a seguir:

É possível o regresso, a volta ao início do caminho? Para Antonio Machado, “ninguém voltou ainda”. Em todo caso, o retorno não poderá ser um círculo completo, pois isso é impossível, uma vez que, para o homem, qualquer método traz consigo a antiqüíssima experiência da viagem. Esse retorno nos ensina a sabedoria que se depreende dos mitos, das tradições e das religiões, mas sempre retornamos modificados; quem retorna é outro. Essa aprendizagem acarreta uma transfiguração. Se o caminho é uma trajetória em espiral, o método, agora consciente de si, descobre e nos descobre diferentes. Um retorno ao início encontra-se longínquo no presente. Essa é a revolução da aprendizagem. (MORIN, 2003, p. 22).

Dessa maneira, o caminhar, para o autor, é dialógico, sendo propostas certas estratégias, e

não programas, que poderão ser férteis ou não no processo, resultando em aprendizagem: “O

método nos ajuda a conhecer e é também conhecimento” (ibid, p.20).

Buscando atingir os objetivos propostos na presente pesquisa, optamos pela abordagem

qualitativa, almejando compreender, mediante um estudo de caso, o ponto de vista e as relações

intra e intersubjetivas do grupo de professores com referência à afetividade e corporeidade

investidas no seu trabalho.

Na perspectiva histórica e sociológica de Bogdan e Biklen (1991), o estudo de caso

consiste na observação detalhada de um contexto, ou indivíduo, de única fonte de documento ou

acontecimento específico, e onde as pessoas escolhidas para compor o grupo de pesquisa devem

interagir e partilhar de expectativas mais ou menos comuns. Nesta direção, buscando coerência

com os objetivos desta pesquisa, escolhemos os professores pertencentes ao Ensino Médio, por

estarem mais diretamente ligados às pressões acerca das competências exigidas pelas reformas

educacionais na sua formação e por lidarem duplamente com a problemática em torno do

trabalho: como trabalhador e como formador de mão-de-obra (profissionalização do educando).

Para tanto, mediante abordagem, recorremos a técnicas e dispositivos que permitiram

esclarecer sobre sua situação no trabalho, seu envolvimento afetivo com este e a carga energética

presente na sua atividade, em seus significados e processos dialógicos. E, como ensina Minayo

(1996, p.101), “a investigação qualitativa deve requerer como atitudes fundamentais a abertura, a

flexibilidade, a capacidade de observação e de interação com o grupo de investigadores e com os

atores sociais envolvidos”.

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1.2.1 Procedimentos de coleta de dados

A pesquisa foi realizada mediante a formação de um grupo focal constituido por vinte e

dois professores do Ensino Médio da Rede Pública Estadual na área metropolitana de Salvador.

A respeito do grupo focal como recurso nas abordagens qualitativas, Macedo (2000) o considera

como uma entrevista coletiva aberta e centrada num tema preciso, mediado por um ou mais

“animadores-entrevistadores” . O autor expressa que é um recurso extremamente válido para

trabalhar nas pesquisas em educação, por ser a prática pedagógica grupal em todas as suas

nuanças.

A coleta de dados foi realizada durante mais ou menos nove meses, incluindo as etapas de

seleção do grupo, as entrevistas e o curso de extensão, fases usadas como dispositivos para

coleta e análise de dados. Ancorada no objetivo norteador deste estudo, que é refletir sobre a

relação entre afetividade e trabalho docente, tendo como foco a importância da formação lúdica,

buscamos nestes dispositivos mencionados a elucidação do objeto do estudo, mediante a

realização das atividades a seguir dispostas.

∨ Criação de situações de interação e sensibilização no grupo, para facilitar a reflexão sobre a

temática proposta e o registro das vivências realizadas em cada encontro, ou seja, das narrativas

dos professores sobre suas percepções, opiniões, emoções e momentos significativos vividos no

grupo.

∨ Realização de atividades lúdico-corporais variadas, onde os exercícios bioenergéticos e o

caráter lúdico de suas atividades atuaram como instrumentos para favorecer a expressão afetiva e

corporal.

Esclarecidos os recursos e seus objetivos, descreveremos a seguir as etapas de intervenção

e os instrumentos aplicados em cada uma delas. Tais etapas foram assim divididas: seleção do

grupo, entrevistas individuais, curso de extensão.

• Seleção e caracterização do grupo focal

Segundo Bogdan e Biklen (1991), a qualidade da pesquisa qualitativa em Educação

envolve estratégias e procedimentos que permitam esclarecer o significado das experiências dos

sujeitos da investigação. Para isso, é imprescindível o estabelecimento de uma relação de

confiança, de um diálogo permanente entre pesquisador/pesquisando.

Com arrimo nestas características, os autores chamam atenção para a “entrada do

pesquisador” no campo de investigação. Esta entrada, ou início da coleta de dados, deverá ser

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autorizada informalmente pelos sujeitos envolvidos. Trata-se de uma forma de negociar

discretamente “o contrato de trabalho”, visando a explicar clara e simplesmente os objetivos da

pesquisa e, ao mesmo tempo, sondar os interesses das pessoas para dela participarem.

Nesta trilha, planejamos um curso de Extensão Universitária com o título Coração de

professor, o (des) encanto do trabalho docente e o apresentamos à Faculdade de Educação da

UFBA, para apreciação e aprovação pelo Departamento responsável. Esta estratégia, além de ter

servido como principal dispositivo de coleta e análise de dados, teve papel inicial de atrair os

participantes do grupo focal, dando oportunidade de discutir com os interessados os objetivos e

os interesses ligados ao trabalho proposto.

O curso teve como foco o próprio objetivo da pesquisa, ou seja, a discussão sobre a

afetividade do professor no seu trabalho e a importância da ludicidade e das práticas

psicocorporais na sua formação. Contou com o apoio da Universidade Federal da

Bahia/Faculdade de Educação (UFBA/FACED) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e

Ludicidade (GEPEL) da mesma Faculdade, para sua operacionalização, essencialmente no que

tange à cessão do espaço físico, equipamentos, divulgação e emissão de certificados aos

participantes.

Coerentemente com nossas metas, estabelecemos como público-alvo: professores em

exercício do Ensino Médio da rede pública estadual. Durante sua divulgação, houve muitos

questionamentos e, até mesmo, protestos de professores da Educação Infantil e do Ensino

Fundamental que não estavam incluídos no perfil. Argumentavam que eles deveriam ser o

público-alvo, já que, por se tratar do tema ludicidade, trabalhavam mais diretamente com

crianças. Diante destes questionamentos, esclarecemos com detalhes o objetivo da pesquisa e a

especificidade do objeto de estudo.

A divulgação do curso foi feita por meio de cartazes e folders 4 distribuídos nas escolas

públicas estaduais na rede metropolitana de Salvador, nas universidades e via Internet na

homepage da UFBA/FACED. Aproveitamos o ensejo e distribuímos o material em uma das

assembléias gerais de professores da rede pública estadual realizada neste período.

Inicialmente havíamos planejado a composição de trinta componentes para o curso, com a

previsão de ficar com pelo menos vinte e cinco participantes, já que toco curso tende a

desistências pelos mais variados motivos. Quando ocorreu a confecção do folder, porém,

4 Vede APÊNDICE A e B.

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refletimos sobre a eficácia da coleta de informações num grupo muito numeroso e decidimos

optar por um número intermediário, atendendo às recomendações de Bogdan e Biklen (p.92):

“Para seu primeiro estudo tente escolher um ambiente ou um grupo que seja suficientemente

grande para que você não se sobressaia, mas suficientemente pequeno para que não deixe

submergir pela tarefa.”. Considerando a possibilidade de desistência, abrimos vinte vagas para os

professores e duas para observadores participantes, também professores, para apoiar o mediador

na coordenação do grupo.

Fizemos um questionário5, nomeado como ficha de inscrição, para ser aplicado durante o

recrutamento dos professores. Neste instrumento, traçamos um perfil dos participantes

interessados, que serviu como primeiro contato para diagnóstico de problemas e de ações a

serem planejadas para o curso. Neste contato, foram esclarecidos os objetivos do curso, sua

metodologia e sondada a disponibilidade dos candidatos para participar do programa.

O período de inscrição, 11.05.04 a 12.06.04, foi divulgado e até o dia 08.06.04 já havia

cinqüenta e três candidatos inscritos. Decidimos encerrar as inscrições no dia seguinte, chegando

a um total de sessenta professores recrutados de quarenta e seis colégios públicos estaduais

situados em Salvador e nos municípios circunvizinhos como Feira de Santana, Candeias, Simões

Filho e Conceição do Jacuípe.

Em boa parte, os professores recrutados registraram nos questionários que buscavam o

curso pois se sentiram atraídos pelo tema da afetividade no trabalho e buscavam aperfeiçoar as

técnicas lúdicas que já aplicavam no seu cotidiano de sala de aula. Outra parte admitiu a

necessidade do certificado, por meio do qual poderia receber mais 5% no salário. Na fase de

planejamento do curso, um dos participantes do GEPEL nos alertou para a carga horária do curso,

mínima de 80 horas, a fim de possibilitar o incentivo procurado pelos professores. Achamos este

um dado importante, pois o curso almejava discutir também as condições de trabalho docente e

carreira profissional.

Em virtude do número significativo de inscritos e da crescente procura por inscrições,

repensamos o número de vagas e ampliamos para vinte e sete, incluindo os observadores

participantes. A partir daí definimos alguns critérios para seleção. Procuramos em primeiro lugar

contemplar, pelo menos, um professor inscrito de cada colégio localizado desde a periferia ao

centro de Salvador, de acordo com o mapa Diretoria Regional de Educação (DIREC) e assim

5 Vede APÊNDICE C

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chegamos a : Centro I e II, Liberdade, Brotas, Cidade Baixa, Orla, Paralela e áreas próximas

como Ilha e Conceição do Jacuípe. Foi critério de fundamental importância, pois tivemos

oportunidade de conhecer contextos e dinâmicas diferentes em cada um dos colégios

representados.

Outro critério foi o sexo dos inscritos pois, destes apenas sete eram homens. Resolvemos

então incluir todos eles no grupo, pois sabemos da resistência em nossa cultura, por parte dos

homens principalmente, para participar de um curso que se propõe a desenvolver atividades

lúdicas e corporais, isto sem contar o grande contingente, já conhecido, de professores do sexo

feminino na educação.

Prosseguindo com a seleção, tivemos o cuidado de incluir todas as áreas de ensino

envolvidas, resultando um número representativo para cada uma, assim relacionadas: História

(3), Química (1), Física (1), Biologia (2), Matemática (7), Artes e Desenho (2), Educação Física

(2), Teatro (1), Língua Portuguesa (2), Inglês (2), Psicologia (1), Geografia (2), Sociologia (1).

Consideramos também relevante para os objetivos de nossa pesquisa esta diversidade disciplinar,

como desafio para todos no grupo, pois convivemos com diferentes linguagens, saberes e leitura

de mundo que enriqueceram os debates e ampliaram a consciência dos professores acerca da

importância do trabalho interdisciplinar e coletivo na escola.

Desse modo, constituimos um banco de dados com as características que julgamos mais

significativas para traçar-lhe um perfil, extraídas do questionário aplicado durante o recrutamento

e a seleção. O grupo ficou composto por 27 professores, incluindo os monitores ou observadores

participantes, que foram selecionados conforme seu nível de envolvimento e conhecimento neste

tipo de trabalho. Destes professores, 20 eram do sexo feminino e 7 do sexo masculino, com faixa

etária entre 26 e 52 anos. Em relação ao estado civil, 17 eram casados, 2 divorciados e 8

solteiros, com faixa salarial em 3 a 5 salários mínimos. A maioria morava em casa própria.

Apenas um pagava aluguel e cinco residiamem casa doada ou cedida por parentes.

A respeito do vínculo empregatício, apenas uma professora era contratada pelo Estado por

meio do REDA, 6 enquanto os demais eram efetivos e concursados. A maioria tinha carga horária

semanal, em torno de 40 horas. Uma professora chegou a afirmar que trabalhava até 80 horas por

semana, lecionando em dois colégios do Estado e um da Prefeitura, cuidando, no total, de 25

6 REDA – Regime Especial de Direito Administrativo. Contrato temporário feito pela Secretaria d Educação e Cultura (SEC) do Governo do Estado da Bahia.

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turmas. Dos 27 professores selecionados, 10 afirmaram ter tido outro vínculo empregatício ou

lecionado em escola particular e 7 afirmaram manter atualmente outro vínculo além do Estado,

alegando a necessidade de complementação de renda.

Consolidamos outras características importantes do grupo selecionado no quadro- síntese

a seguir, incluindo os nomes fictícios 7dos professores, o nível de escolaridade, a área de ensino e

o tempo de serviço.

Nome Graduação Pós-graduação Área de ensino Tempo de trabalho

Abílio História Gestão escolar História e Geografia 10 anos

Anita Ed. Física e Musicoterapia

Hebeatria e Adm. Pública

Ed, Física e Musicoterapia

15 anos

Antônio Lic.Química Química Química Geral e Inorgânica

13 anos

Beatriz Lic. Desenho Psicopedagogia Desenho e Artes 10 anos

Caetano Lic. Matemática Não tem Matemática 4 anos

Carla Lic. Administração

Matemática Matemática, Física e Química

4 anos

Eliza Lic. Matemática Met. Ens. Superior.

Matemática 15 anos

Flor Lic. Ciências Naturais

Ed. e Saúde Pública

Biologia 10 anos

Francisca História Relações Públicas História e Geografia 15 anos

Gilberto Educação Física Não tem Ed. Física 6 anos

Iolanda Ciências Sociais Mestre em Geografia

Geografia 9 anos

Isabel Letras Vernáculas Ap. Língua Portuguesa

Língua Portuguesa, Literatura e Redução

24 anos

Juliana Psicologia Psicopedagogia Psico. Aplicada 1 ano e meio Jorge Lic. Plena

Eletricidade Esp. em Planejamento

Matemática 10 anos

Letícia Lic. Biologia C. Biológicas Biologia e Química 10 anos

Luiz Lic. Matemática Não tem Matemática/Física 5 anos

7 Optamos por substituir os nomes dos professores e não citar os colégios envolvidos na seleção a fim de preservar a identidade desses profissionais.

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Luzia Let. Vernáculas C. e Prat. de Educação.

Ling. Portuguesa 18 anos

Mariana Lic. Matemática Psicopedagogia Matemática 9 anos

Margarete História Met. Ens. Pesq. (em curso)

História e PEI 10 anos

Mary Let. Vernáculas com Inglês

Não tem Inglês 20 anos

Milton Lic. Geografia Doc. Ens. Sup. e Direitos Humanos

Geografia 6 anos

Monaliza Ed.Art. e Desenho

Artes e Matemática

Artes 19 anos

Patrícia Artes Cênicas Não tem Ed. Art. , Teatro, PEI 1 ano e meio

Rosa Ed. Física Cienc. Trein. Desportivo

Ed. Física e Acomp. Ped. dos Surdos

22 anos

Sandra Pedagogia Met. do Ensino Sociologia 20 anos

Solange Lic. Letras Lit. Brasileira Inglês 10 anos

Vânia Lic. Ciências Naturais

Met. Ens. Superior

Matemática 20 anos

Fig 1-Quadro-síntese dos vinte e sete professores, com nomes fictícios, selecionados para o Curso de Extensão Coração de Professor, o (des) encanto do trabalho docente, com grau de escolarização, área de ensino e tempo de serviço, 2004.

Como podemos notar no quadro, apenas cinco dos professores apresentados não tinham

curso de pós-graduação e a média do tempo de serviço foi de aproximadamente 12 anos.

Definidos os participantes do grupo focal, divulgamos os resultados pela rede e na própria

Universidade e marcamos as entrevistas, cujos procedimentos serão descritos no item a seguir.

• Entrevistas individuais abertas ou semi dirigidas

Após a composição do grupo, pretendíamos fazer inicialmente, antes do curso, uma roda

de conversa, entendida como uma entrevista coletiva, aberta ou semidirigida, com o objetivo de

sondar as expectativas e demandas, como subsídios para o planejamento das atividades a serem

posteriormente realizadas. Os acasos porém, a exemplo da greve geral da UFBA, nos levaram a

repensar nesta estratégia, deixando esta sondagem inicial para o primeiro dia do curso.

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Aplicamos uma entrevista individual, semidirigida8, como recurso técnico para coleta de

informações, buscando investigar percepções, atitudes, valores, sentimentos e opiniões dos

professores, cujo roteiro 9focou os seguintes pontos de análise: condição do trabalho docente,

processo pedagógico, formação profissional, nível de satisfação atual, envolvimento emocional ,

ludicidade e energia investida na atividade pedagógica .

Os conteúdos das questões foram baseados nos componentes da Síndrome de Burnout,

seguindo os itens-chave da Escala do Maslak Burnout Inventory (MBI), inventário psicológico

para investigação da Síndrome (CODO,1999), nas matrizes educacionais sugeridas para este

século pelos órgãos oficiais (DELOURS,2001) e nos estudos sobre Educação e Ludicidade

publicados pelo GEPEL 10(2002).

É mister ressaltar que a entrevista se justifica pelo seu valor de mediação semiótica, onde

a linguagem serve de “porta voz” das representações históricas, socioeconômicas e culturais

específicas. Este papel exercido promove o diálogo que, segundo Bakhtin, Vygotsky e Wallon

(apud WERTSCH,1998), é promissor da compreensão teórica e ideológica pois envolve a

negociação de pontos de vista e , portanto, a “produção de sentidos”.

Este valor semiótico, no entanto, só pode ser evidenciado se for possível extrair da

entrevista modelos culturais interiorizados ou “habitus”, nas palavras de Bourdieu (1967, apud

MINAYO, 1996, p.112), quando os dados dos depoimentos são contextualizados espacial e

historicamente.

A entrevista também tem seu valor na medida em que significa uma interação

pesquisador/pesquisando, onde a dinâmica do encontro desenhará os dados fornecidos, como nos

lembra Macedo (2000, p. 166): “Podemos verificar que trata-se de um encontro, ou uma série de

encontros, face a face entre um pesquisador e atores, visando compreensão das perspectivas das

pessoas entrevistadas sobre sua vida, suas experiências, expressas na linguagem própria.”

Tal informação revelou-se fundamental para a presente pesquisa, porque nos trouxe a

clareza de nossas implicações com e não sobre os atores sociais investigados, ajudando-nos a

pensar e a ter mais cuidado no campo de investigação, ao ouvirmos as narrativas dos professores

entrevistados.

8 Este tipo de entrevista “combina perguntas fechadas (ou estruturadas) e abertas, onde o entrevistado tem a possibilidade de discorrer o tema proposto, sem respostas ou condições prefixadas pelo pesquisador.” (MINAYO, 1996, p. 108). 9 Vede APÊNDICE D. 10 Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade.

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As entrevistas individuais foram realizadas em duas fases, a primeira nos meses de maio e

junho de 2004, com quatro professores, antes de começar o Curso de Extensão, e a segunda fase,

de agosto a setembro do mesmo ano, com outros cinco professores durante o período de

realização do curso, equivalendo a uma amostra de aproximadamente 33,3% do total de

participantes do grupo. Tais professores foram sorteados, apenas um foi escolhido por nós, por

ser um dos observadores participantes do grupo, para nos auxiliar no teste do roteiro de

entrevista.

As entrevistas foram realizadas na sala do GEPEL, situada na Faculdade retrocitada, com

duração média de sessenta minutos e gravadas em fita cassete, com o conhecimento e permissão

dos professores. Na oportunidade, esclarecemos os objetivos da pesquisa, o propósito do curso e

da própria entrevista.

É necessário registrar que as notas de observação ou notas de campo11, como recurso

auxiliar, foram redigidas desde o período de inscrição 12do grupo para o curso, sempre

produzidas após o contato com os atores sociais pesquisados. Esclarecidas estas etapas,

passaremos à descrição do Curso de Extensão e, nesta, destacando a narração da sua história.

• Realização do curso de Extensão e a construção de outros instrumentos de coleta de dados.

O curso de Extensão denominado Coração de Professor, o (des) encanto do trabalho

docente, caracterizado como o terceiro momento da coleta de dados, teve como objetivo discutir

sobre a afetividade do professor no seu trabalho através do desenvolvimento de oficinas

pedagógicas tendo como recurso as atividades lúdico- corporais. Para tanto, se ancorou nos

seguintes temas norteadores:13

1. O Trabalho e a formação humana.

2. O trabalho docente e os desafios da contemporaneidade.

3. A formação do professor e sua identidade profissional.

4. A afetividade na práxis pedagógica.

5. A ludicidade como estratégia na formação docente.

6. Corporeidade e formação pessoal.

11 “ Relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados de um estudo qualitativo.” (BOGDAN, p. 150). 12 Ocorrida no mês de maio de 2004. 13 O curso, baseado nestes temas, foi dividido em dois módulos, cujo conteúdo encontra-se no APÊNDICE E.

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Foi realizado em uma das salas da Faculdade de Educação – FACED/UFBA, no período

de julho a novembro de 2004, com encontros semanais de quatro horas de duração, totalizando

uma carga horária de oitenta horas de atividades.

Antes de descrevermos a metodologia utilizada no curso, é necessário narrar algumas

dificuldades encontradas para sua realização. O curso estava previsto para iniciar no início de

julho e finalizar no mês de outubro de 2004. A pesquisadora, contudo, adoeceu no período de

realização das primeiras entrevistas, antes mesmo do mês previsto para iniciar. Em razão deste

fato, adiamos o começo do curso para o dia trinta de julho do mesmo ano, ligando pessoalmente

para cada um dos participantes selecionados e fornecendo esta informação. Foi um período de

tensão, pois tememos que parte dos professores pudesse desistir em conseqüência da alteração no

cronograma adaptado ao período de eleições municipais e à greve dos professores da rede pública

estadual, que também interferiu no calendário acadêmico destes profissionais. A greve dos

estudantes, professores e servidores da UFBA, contudo, não interferiu nos trabalhos, porque os

funcionários voltaram ao serviço e, assim, pudemos utilizar a sala e seus equipamentos

disponíveis.

Felizmente, até o primeiro contato, apesar destas variáveis intervenientes, o grupo

compreendeu o momento histórico e suas circunstâncias e permaneceu quase completo até os

dois primeiros encontros. Havíamos combinado na primeira reunião algumas regras. A primeira

era de que, se alguém desistisse, que comunicasse ao grupo o motivo do seu afastamento. Aquele

que desistisse até o terceiro encontro poderia ser substituído por outro professor recrutado. Após

este período, não faríamos mais substituições em virtude do vínculo já formado como os

participantes entre si.

Assim, ocorreu apenas uma substituição de um professor que, antes mesmo de

comparecer aos primeiros encontros, comunicou por telefone a sua desistência. Os outros quatro

participantes foram desistindo durante o desenvolvimento do curso, por motivos diversos: choque

de carga horária com o curso de especialização, problemas pessoais, não-identificação com a

proposta do curso, e uma professora não revelou o motivo da desistência, afastando-se após ter

freqüentado mais ou menos 60% de sua carga horária. Além disso, uma das professoras faleceu

durante o desenvolvimento do curso, em decorrência de uma infecção generalizada contraída no

hospital após uma simples cirurgia. Este fato abalou o grupo que já mantinha com ela forte

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vínculo e projetava, nessa pessoa uma forte liderança. Dessa forma, a equipe ficou com vinte e

dois componentes até o final.

Voltamos nossa descrição agora para a metodologia empregada durante o curso. Consistiu

na realização de oficinas tendo como objetivo mobilizar os conteúdos emergentes da dinâmica

grupal mediante a operacionalização dos dispositivos: atividades lúdico-corporais. Tais

dispositivos tiveram o embasamento do “Grupo de Movimento” (GM), que tem referencial

teórico-metodológico reichiano (LOWEN, 1985). O GM é trabalho desenvolvido em grupo com

a utilização de exercícios psicocorporais criados e sistematizados pelo psicanalista e psiquiatra

Lowen (1985), em sua Teoria Bioenergética, fundamentada nos princípios reichianos

(REICH,1961) de caráter como expressão do funcionamento do indivíduo no âmbito psíquico e

somático. Tem como objetivo levar o participante à sensibilização e consciência corporal,

abrindo possibilidades para o auto-conhecimento e expressão do ser (criativo e emocional).

Além de incluir os exercícios bioenergéticos, o GM utiliza outros recursos como dança,

dramatizações, técnicas orientais e respiratórias, visualizações, relaxamento e atividades lúdicas.

Nesta pesquisa as atividades lúdicas foram priorizadas no GM e tiveram como base analítica o

quadro teórico desenvolvido em torno do conceito de ludicidade no GEPEL (LUCKESI, 2000 e

PORTO, 2002).

As atividades lúdico-corporais tiveram como estratégia a integração e intervenção

grupal, ampliação da consciência e abertura para as atividades e sentimentos emergentes. A

“rotina metodológica” que utilizamos foi baseada na proposta de Negrine (1998, p. 80), cujos

momentos de cada sessão correspondem a uma atividade apropriada para acolher, integrar,

refletir, sensibilizar, registrar os sentimentos e pensamentos e, finalmente, partilhar. Os detalhes

desta rotina serão apresentados no último capítulo sobre a vivência corporal na formação dos

professores, quando será ilustrada com a descrição de um dos encontros com o grupo.

Em todos os encontros, fotografamos e gravamos os debates em fita cassete com o

conhecimento e a permissão, deles, que não se intimidavam com o a presença destes

equipamentos. Em um dos encontros, perguntamos se poderíamos filmar, o que nos foi permitido.

Foi um encontro realizado no dia dos professores e fizemos a oficina de nome A dor e a delícia

de ser professor, na qual foram feitas máscaras no rosto de cada um, durante uma vivência em

dupla. Após as elaborações, cada dupla se apresentou com suas personagens (as máscaras)

falando das dores e das delícias. Durante a apresentação, notamos em alguns professores uma

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certa inibição, com a presença da câmera e receio de serem identificados. Esta filmagem não

ocorreu porque houve problemas no equipamento, mas resolvemos não utilizar mais este recurso

nos encontros seguintes para evitar bloqueios na expressão dos participantes.

Os instrumentos de coleta utilizados nesta etapa abrangeram as notas de campo, as

técnicas projetivas, as cartas e memoriais escritos após as vivências. As notas de campo ou de

observação, como citado anteriormente, estiveram presentes desde o início do recrutamento do

grupo como aliadas da coleta de dados. No curso, eram redigidas ou no mesmo dia, ou logo no

dia seguinte após cada encontro. Eram compostas das nossas observações e das transcrições das

gravações.

Cabe lembrar que a presença do gravador na relação sujeito-investigador é vista como

terceira presença, que não se consegue ver e não logra registrar a comunicação não verbal dos

sujeitos envolvidos (BOGDAN e BIKLEN, 2003, p. 139). Assim, adotamos um roteiro 14para

auxiliar os dados de observação do grupo e para enriquecer os conteúdos a serem explorados nas

notas. Adaptamos também outro roteiro15 para os observadores participantes, no sentido de

auxiliar nas observações e registros que eram feitos por eles durante ou depois do

desenvolvimento das reuniões. Dessa forma, as notas de campo tiveram como objetivo descrever

o desenvolvimento dos encontros e ao mesmo tempo refletir sobre os fatos, idéias,

comportamentos, conflitos e eficácia da metodologia aplicada, que serviam como subsídios para

o planejamento do encontro posterior.

Além das notas de observação ou de campo, utilizamos também técnicas projetivas

objetivando conhecer os sentimentos e pensamentos que emergiram das situações vivenciadas no

grupo e projetadas nos desenhos, colagens, máscaras e visualizações induzidas por consignas. As

técnicas projetivas são conhecidas como aquelas que

Repousam sobre uma concepção de expressão humana, considerando-se que todas as construções imaginárias ou imaginativas dos indivíduos portam a marca do seu mundo de significação, da sua estrutura afetiva, que na nossa perspectiva estão sempre indexalizadas na cultura e no tipo de sociedade que habita, mesmo que não conscientes” (MACEDO, 2000, p. 180).

14 Vede ANEXO A. 15 Vede ANEXO B.

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As interpretações das projeções, na presente pesquisa, foram focalizadas nos temas de

cada dia. Desse modo, tivemos o cuidado de não realizar interpretações psicológicas mais

profundas, por não ter sido este o objetivo do trabalho.

As narrativas dos sujeitos foram registradas em cartas simuladas e memoriais, buscando

alcançar o mesmo objetivo das técnicas projetivas. Inicialmente, havíamos planejado trabalhar

apenas com o memorial ou diário que deveria ser escrito pelos participantes após cada oficina no

próprio encontro. Depois percebemos que as cartas simuladas traziam menor resistência na sua

elaboração, sendo mais contingentes em relação às questões norteadoras que envolviam cada

reunião e assim substituíram espontaneamente os memoriais. Então, pedimos para que fizessem

muitas cartas, como por exemplo: uma carta coletiva para os colegas sobre o término da greve,

uma para si mesmo falando de uma vivência sobre os desafios do professor, uma para seu aluno

sobre suas vivências lúdicas, uma carta para o Estado sobre o exame de certificação e assim por

diante.

Consideramos os dados colhidos neste material muito valiosos para a análise e reflexões

sobre o problema principal desta pesquisa.

1.2.2 Tratamento e análise de dados

Macedo (2000) salienta que a análise do material coletado é um conjunto de recursos

metodológicos que envolvem conceituação, codificação e categorizações visando descobrir o

sentido das mensagens de uma dada fonte de dados.

Ancorando-nos nestes recursos, em busca de uma sistematização dos dados, fizemos uma

leitura geral dos dados recolhidos. Segundo Minayo (1996), esta “leitura flutuante” consiste num

contato exaustivo com o material, levando o pesquisador a impregnar-se dos conteúdos para

constituir o “corpus”.

Com base na hermenêutica-dialética16, criamos unidades de significações a partir dos

conteúdos emergentes do conjunto de dados extraídos das entrevistas, das observações no grupo e

das cartas. O eixos interpretativos foram norteados pelas seguintes questões formuladas no

projeto desta pesquisa:

16 “Explicação e interpretação de um pensamento envolvendo os sentidos e os significados dos dados.” (MINAYO,1996, p. 219).

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♦quais as características presentes no sistema educacional que se apresentam como

desencadeantes do mal-estar docente?

♦Quais as implicações das condições atuais de trabalho sobre o investimento afetivo do

professor?

♦No seu processo de formação e constituição da identidade profissional, como o professor reage

à fragmentação do seu trabalho e à negação simbólica de sua afetividade e de seu saber?

♦Como a ludicidade e a corporeidade, como estudo e vivência psico-corporal inserida na

formação do professor, podem contribuir para seu autoconhecimento e fortalecer seu

investimento afetivo?

Na segunda leitura dos dados, as informações foram agrupadas e organizadas em

categorias17 empíricas e, neste caminho, realizamos um “recorte transversal” (MINAYO, 1996)

de cada corpus (entrevistas, observações no grupo e cartas), classificando e agregando os dados

conforme as categorias teóricas da pesquisa. Após as interpretações e inferências, compomos a

estrutura da dissertação que será apresentada a seguir.

Nesta introdução, apresentamos o tema e os caminhos traçados para concretização desta

pesquisa, já trazendo para o leitor alguns dados que surgiram nesta trajetória e a caracterização

dos atores sociais investigados.

No segundo capítulo, nos centramos na abordagem teórica deste trabalho e esclarecemos

os princípios da visão sócio-histórica, apresentando as principais categorias teóricas que

nortearam a análise deste estudo: trabalho, afetividade e ludicidade. Tal abordagem, está

fundamentada no materialismo histórico dialético de Marx e Engels (1999) e na Psicologia Sócio-

Histórica de Leontiev (1972) e Vigotski (1996) sobre atividade humana, nas concepções sobre

afetividade da Psicogenética de Wallon (1968) e, finalmente, nos teóricos que estudam a

ludicidade na visão sociocultural, como Huizinga (2004)), Elkonin (1998) e Brougérè (2002) e

outros. Assim, o capítulo tem como objetivo apresentar as principais categorias analíticas da

pesquisa, situando a sua importância para o processo de hominização, como dimensão do

desenvolvimento humano numa perspectiva sócio-histórica.

17 São macroconceitos que acolhem, organizam e possibilitam a organização dos fragmentos para análise (MACEDO, 2000).

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No terceiro capítulo, buscamos caracterizar e contextualizar o trabalho e a formação

docente com o objetivo de compreender a relação que os professores estabelecem com sua práxis

e com sua formação, a partir dos seus depoimentos, relacionando com o processo de

profissionalização e os suportes epistemológicos contidos nos documentos oficiais e teorias que

estudam a formação docente.

A partir desta discussão, prosseguimos no quarto capítulo, analisando os entraves e

desafios enfrentados pelo professor no seu trabalho, que se traduzem em mal-estar, trazendo a sua

voz e suas estratégias de defesa. Já no quinto capítulo, aprofundamos a discussão sobre a

afetividade do professor na práxis pedagógica, tendo como objetivo discutir os afetos que

emergem das relações estabelecidas na escolha e atuação profissional, e os reflexos na sua

identidade e no desenvolvimento do aspecto lúdico no seu trabalho.

Dando continuidade a debate da ação lúdica no trabalho docente, no sexto capítulo,

buscamos aproximar os princípios da pedagogia histórica e crítica, fundamentada no método

dialético do conhecimento, com os princípios da ludicidade, confrontando com as concepções e

opiniões dos professores sobre o tema.

No sétimo e último capítulo, analisamos os sujeitos pesquisados, tomando como foco a

sua dinâmica afetivo-corporal, tendo como âncora teórica a unidade e antítese psicossomática de

Reich (1961). Desse modo, buscamos discutir a contribuição das atividades lúdico-corporais na

formação e no investimento afetivo do professor no seu trabalho e apontamos os princípios

norteadores do trabalho lúdico corporal na formação pessoal do educador.

Finalizamos o estudo apresentando algumas reflexões sobre o lugar da ação docente na

educação contemporânea e acerca da importância da vertente pessoal do professor nas políticas

públicas voltadas para formação e saúde deste profissional.

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2 A VISÃO SÓCIO-HISTÓRICA E LÚDICA SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO

“Nascemos duas vezes: na primeira para vida, na segunda para existência na sociedade.”

(Todorov)

O presente capítulo tem como objetivo apresentar as principais categorias analíticas desta

pesquisa, conceituando e discutindo a sua importância para o processo de hominização18, como

dimensões do desenvolvimento humano numa perspectiva sócio-histórica. Tais categorias são

trabalho, afetividade e ludicidade, dimensões constituintes da formação do sujeito 19 e, por isso,

apresentam características comuns e interdependentes.

Inicialmente esclarecemos ao leitor o que é a abordagem sócio-histórica ou sociocultural

do homem, fundamentada na filosofia marxista. Em seguida, dividimos este capítulo em três

eixos de análise conforme cada categoria em foco. O primeiro, ancorando-se nas premissas

marxianas sobre a constituição da consciência humana, reflete o papel formativo do trabalho

como atividade produtiva e criativa no desenvolvimento humano. Para tanto, dialogamos com

teóricos que, apoiados no humanismo histórico de Marx e Engels, 20 interpretam a concepção do

ser humano como totalidade e as contradições presentes no seu processo de formação. Assim,

autores como Leontiev (1964), Lúria (1996) e Vygotsky21 (1988, 1999) destacam as condições

em que a consciência humana é formada no processo sócio-histórico. Outro autor destacado é

Bakhtin (1995), que chama atenção para a importância da “filosofia da linguagem” para

compreensão do comportamento humano.

No segundo eixo, conceituamos a afetividade. Ora ela será discutida como função

organizadora do processo de desenvolvimento mediante o “parto dialético”, segundo a

abordagem de Wallon (1964), e ora como reguladora das funções psíquicas, conforme a teoria

de Vygotsky (1988).

Em seguida, na terceira e última parte, convidamos o leitor para uma discussão sobre a

ludicidade e seus elementos presentes na atividade humana, especialmente a sua relação com o

trabalho no desenvolvimento da consciência social, por intermédio da perspectiva sociocultural 18 Processo pelo qual ocorre a formação humana, ou seja, de tornar humano o ser humano por “um processo histórico e contraditório por meio do qual os indivíduos tomam consciência de si e das relações sociais das quais estão sujeitos.” (RAMOS,2001, p.25). 19 Neste estudo utilizaremos as palavras homem, sujeito, indivíduo e pessoa em única concepção de ser humano: bio-sócio-histórico e culturalmente constituído. 20 Marx (1987, 1999) e Engels (1952). 21 O nome do psicólogo bielo-russo Lev Semonovich Vigotski, neste trabalho, ora será citado com a grafia Vigotski, ora como Vygotsky, conforme a edição de suas obras que assim o denominam.

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sobre o papel do jogo no processo formativo. Assim, recorremos a teóricos como Huizinga

(2004), Manson (2002), Brougère (1998), Elkonin (1998) e a pesquisadores como Dantas (2002)

, Porto (2001), Oliveira (2002), Luckesi (2002), Negrine (2001) e outros que dissertam sobre as

características da atividade lúdica e sua importância para o desenvolvimento humano.

Neste estudo, estamos adotando a abordagem sócio-histórica como sinônimo da

abordagem sociocultural, definida por Wertsh et al (1998) como aquela cujo objetivo é de

explicar as relações entre o funcionamento da mente humana, de um lado, e as situações culturais

institucionais e históricas, nas quais este funcionamento ocorre, de outro.

Tal abordagem está pautada no pensamento dialético marxista, o qual sustenta que o

homem, ao nascer, traz determinada bagagem inata decorrente de sua filogênese22 e no decorrer

do seu desenvolvimento vai se constituindo por meio de uma rede de relações socioculturais na

qual vai adquirindo habilidades de comunicação, hábitos e regras sociais.

Sobre esta óptica, Bonin (2001) complementa, exprimido:

As pessoas se constituem de um sistema cultural dado previamente, formando uma rede de inter-relações, mas são sujeitos ativos e não constitutivos passivamente pelo meio. Isto quer dizer que não são constituídos automaticamente pelo processo narrativo cultural estabelecido. As pessoas tomam posições fazendo novas interpretações, ou seja, recebendo e construindo criativamente e coletivamente um processo cultural em determinada época histórica .(ibid, p.64).

Outro esclarecimento importante trazido pelo autor é que esta abordagem, além de

considerar o indivíduo como ser corpóreo e enfatizar as mediações socioculturais, leva também

em conta o papel da pessoa como sujeito, não se limitando apenas à compreensão dos processos

lógico-cognitivos, mas também considerando a importância da intencionalidade e da emoção

como seus elementos constitutivos.

A esse respeito, Marx (1991) propõe o conceito de omnilateralidade, pressupondo que as

forças e potencialidades humanas são emergentes das formas sociais de vida. Para o autor, a

apropriação sensível do mundo pelo homem, não se dá apenas no sentido do gozo imediato, de

posse e do ter, mas de forma total, em todos os órgãos de sua individualidade (ver, ouvir, cheirar,

pensar, atuar, amar etc); ou seja, a forma de sua apropriação é coletiva, quando os sentidos e

qualidades se tornam “humanos”, tanto objetiva, quanto subjetivamente:

O olho fez-se um olho humano, assim como seu objeto se tornou um objeto social, humano, vindo do homem para o homem. Os sentidos fizeram-se assim

22 Estrutura biológica da espécie ou desenvolvimento da espécie humana (VYGOTSKY, 1984).

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imediatamente teóricos em sua prática. Relacionam-se com a coisa por amor a coisa, mas a coisa mesma é uma relação humana e objetiva para si e para o homem e inversamente. ( MARX, 1987, p. 178).

Mantendo esta posição, o autor supracitado registra a unidade entre a objetividade e a

subjetividade do ser humano. Deste modo, ao agir, o homem afeta o curso de sua história, pois

sua atividade é “sensível”, ou seja, reflete (internaliza) e refrata ( transforma ) a realidade, sendo

nela ao mesmo tempo produzido e produtor.

Assim, as forças e potencialidades, ainda que inerentes ao homem, a exemplo da força

física e da inteligência, derivam do social, não são inatas e prontas para serem manifestadas, são

desenvolvidas na atividade produtiva e criadora do homem: o trabalho. É nesta atividade, que

emergem as forças humanas: aptidão física, inteligência, consciência social, capacidade de troca,

comunicação. Por conseguinte, é o trabalho que concretiza o nascimento histórico do homem,

constituindo-o como ser integral/total (afeto, cognição, ação), ou omnilateral, como sustenta

Marx (1987).

Tais forças e potencialidades emergem da relação dinâmica e contraditória entre homem e

o mundo e é deste movimento que se forma o homem: psíquico, histórico, social e cultural. Nesta

relação, nem o homem nem o mundo são entidades isoladas, predeterminadas, ambos fazem parte

de uma mesma realidade, de uma mesma natureza, a “natureza humanizada”.

Desse modo, de acordo com a dialética marxista que embasa esta abordagem,

entendemos o homem como ser ativo e histórico, aquele que vai além de suas necessidades

básicas, da atividade material e assim, como sujeito, cria a arte, a ciência, a vida intelectual e

estabelece vínculos. A estrutura ou base (forças materiais de produção) mantém uma

determinação recíproca com a superestrutura (instituição, autoridade, política e relações sociais).

Por esse motivo, consideramos a abordagem sócio-histórica adequada para o objeto de

estudo desta pesquisa, que consiste na análise da afetividade no trabalho dos professores, tendo

como foco a ludicidade na sua formação. A seguir, iniciaremos a reflexão sobre o papel

ontológico do trabalho na formação do sujeito.

2.1 O HOMO FABER: O TRABALHO COMO CATEGORIA FUNDANTE DO SER SOCIAL “A gente não quer só comida

A gente quer comida, diversão e arte

A gente não quer só comida

A gente quer saída para qualquer parte...”

(Titãs)

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Como assinalamos há pouco, este item tem como objetivo refletir sobre o papel formativo

do trabalho, como atividade produtiva e criativa, no desenvolvimento do homem. Inicialmente,

recorremos ao materialismo dialético de Marx e Engels, dando destaque ao humanismo histórico,

dissertando sobre a relação do trabalho e a formação da consciência do indivíduo. No segundo

momento, analisamos o trabalho contextualizado na sociedade capitalista e as duas faces que

apresenta - a concreta e a abstrata - ou seja, como fonte de emancipação e alienação

respectivamente.

Deste modo, iniciamos por afirmar que a atividade humana é essencialmente social e se

desenvolve num conjunto de ações do homem sobre a natureza, tendo como base material

específica a ação de outros homens. São permeadas de sentido e significado e mediadas por

instrumentos e ferramentas culturais que emergem da dinâmica social.

Nesta dinâmica, o trabalho é uma atividade criadora do ser humano e, ao mesmo tempo,

articuladora de outras atividades. É, nesta perspectiva, uma atividade de transformação da

natureza pelo sujeito, na qual o mesmo constitui a si próprio, o outro e a sua consciência social.

(LEONTIEV, 1964).

Mediante atividade, o homem se estruturou como ser concreto, sociocultural numa

gestação histórica marcada por três grandes momentos da hominização, ou seja, por três

pressupostos da existência humana, segundo Marx e Engels (1999). O primeiro momento emerge

do desenvolvimento da atividade produtiva e criativa, ou seja, “a produção dos meios de vida”,

condição que permitiu o homem sobreviver e fazer história. O segundo ato histórico, como

pressuposto para condição humana, diz respeito ao “estado social do homem”, condicionado

pelas forças produtivas que leva à procriação e à cooperação inevitável entre os indivíduos. O

terceiro ato de chegada para o autor, além das condições citadas, é o “espírito” que se exterioriza

como consciência, por meio da linguagem que nasce da carência, da necessidade de intercâmbio

com outros homens.

Estes três momentos do desenvolvimento histórico serão discutidos a seguir, tomando

como parâmetro as seguintes premissas de Marx e Engels:

2.1.1 O trabalho criou o homem (ENGELS, 1977).

2.1.2 O homem produz o homem, a si próprio e outro homem (MARX, 1987).

2.1.3 É o ser social que determina a consciência (MARX, 1987).

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2.1.1 O trabalho criou o homem

Para apresentação desta primeira premissa, dizemos que o trabalho é o fator principal da

transformação do macaco em homem, é um salto ontológico do segundo sobre o primeiro, porque

constitui uma maneira essencialmente humana de agir e modificar a natureza, a fim de satisfazer

seus instintos 23 sobre ela.

Nesta ação exercida sobre a natureza, o homem foi alvo de modificações físicas,

fisiológicas e anatômicas, iniciadas nas mãos, nos órgãos dos sentidos e no cérebro. Neste

sentido, afirmamos que, para satisfazer suas necessidades básicas (comer, beber, vestir, habitar e

outras), o homem não encontrou objetos prontos na natureza, mas teve que produzi-los, ou seja,

criar os próprios meios de produção diante das condições naturais encontradas. Dessa forma, foi

obrigado a mudar sua postura corporal e seus hábitos, que lhes provocaram tais modificações.

Engels (1977) explica que a evolução do Homo sapiens advém da utilização das mãos

pelos símios para executar funções cada vez mais variadas como recolher e sustentar os alimentos

e outras; mas o homem foi além dessas atividades. Assumindo a posição ereta frente ao mundo e

com maior flexibilidade nas mãos que os macacos, ele foi explorando cada vez mais os objetos

naturais, descobrindo neles novas propriedades e agindo sobre eles.

Neste processo, foi elaborando instrumentos mediadores entre sua ação24 e o objeto.

Movido pela necessidade de alimento e agasalho, criou a caça como atividade, desenvolvendo

ações e operações25 específicas para tal, a exemplo da produção e uso de instrumentos para caça.

A construção dos instrumentos foi expandindo as atividades produtivas e colaborando para uma

maior emancipação do homem sobre os animais.

Leontiev (1964, p. 90) explica que os animais também fazem uso de instrumentos, o que

lhes permite realizar operações e pode até haver planificação sobre estas, mas esta ação é sempre

movida por um motivo exclusivamente biológico e instintivo. No homem, esta relação se dá

“qualitativamente diferente” pois ele domina a natureza e a obriga a servi-lhe: fabrica, procura,

conserva e atribui sentido aos instrumentos. E, de acordo com o autor, foi esta atividade

23 “Forças vitais do organismo, que se expressam como disposições e capacidades que só podem ser realizadas com objetos reais, sensíveis, exteriores a ele.” (MARX e ENGELS, 1999, p.69). 24 “Chamamos de ações aos processos em que o objeto e o motivo não coincidem. Podemos dizer, por exemplo, que a caçada é atividade do batedor, e o fato de levantar a caça é sua ação.” (LEONTIEV,1964, p.76). 25 Condições e procedimentos em que são efetivadas as ações (LEONTIEV, 1964).

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instrumental que criou particularidades especificas da mão. Neste sentido, o homem é um ser

capaz de produzir suas condições de existência, tanto material como idealmente.

Sobre este ponto, Marx (1987) assinala que o homem é concebido nas condições ou

circunstâncias de vida existente que faz dele o que é, na sua dimensão objetiva e concreta; mas

também é um ser ativo e subjetivo e exerce “atividade sensível” , viva e total sobre o mundo.

Nesta perspectiva, homem e natureza constituem a unidade, pois a produção da existência

humana possui dupla relação: natural e social, como nos fala Marx:

A essência humana da natureza não existe senão para o homem social, pois apenas assim existe para ele como vínculo com o homem, como modo de existência sua para o outro e modo de existência do outro para ele, como vital da efetividade humana; só assim existe como fundamento de seu próprio modo de existência humano. Só então se converte para ele seu modo de existência natural em seu modo de existência humano, e a natureza torna-se para ele homem. A sociedade é pois a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza. (id.ibid, p. 175).

Entendemos que por meio da análise desta dupla relação natural/social, podemos perceber

a importância do conceito de atividade, ou da categoria trabalho, para a compreensão do

desenvolvimento humano. É importante dizer que, para esta percepção, os psicólogos Leontiev

(1964), Lúria (1996) e Vigotski (2001) tiveram grande contribuição, tornando-a uma das

categorias fundamentais da Psicologia Sócio-Histórica.

Em se tratando de Luria (1996), dizemos que os seus estudos sobre lesões cerebrais,

perturbações da linguagem e a organização das funções mentais normais e patológicas, foram

importantes porque observou o cérebro como um sistema aberto, complexo, em constante

transformação, cuja plasticidade permite que ele se adapte a diferentes necessidades e funções ao

longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. Assim, cumpre o papel de “órgão

da civilização”, vez que seus sistemas e funções são formados na vida social, pois, com as

especializações das atividades humanas, decorrentes da divisão social do trabalho, foi objeto de

especializações em suas funções. Desta maneira, seus sistemas tornaram-se cada vez mais

complexos e alterados no curso histórico de seu desenvolvimento.

Esta tese converge com a afirmação de Marx (1987) de que a atividade sensível do

homem acontece em sua totalidade, ou seja, na interação do homem com o mundo num

movimento integrado: espírito, corpo e razão. Dessa forma, como atividade de produção, o

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trabalho apresenta dois aspectos: a ação sobre a natureza e a ação dos homens sobre os homens.

Neste movimento, dizemos que, assim como é transformado pela atividade, o homem

transforma-se a si mesmo e o outro como veremos a seguir.

2.1.2 O homem produz o homem, a si próprio e ao outro homem.

O segundo momento histórico e sociocultural é marcado pela necessidade do homem unir-

se ao outro para satisfação das necessidades (vínculo), de uma ação conjunta, que se intensificou

à medida que foi aprendendo a realizar operações mais complexas. É importante ressaltar que,

como atividade sensível, o desenvolvimento do trabalho só foi possível com a comunicação entre

os sujeitos, possibilitando a especialização e a divisão crescente das ações.

Para Leontiev (1964), toda ação humana é mediada por instrumentos e por outros

homens. Esta mediação separa a atividade do motivo ou necessidade individual de cada um, pois

a ação e a operacionalização só se realizam no contexto coletivo; todavia, ao tempo que separa (a

mediação instrumental e social) une, ou seja, o resultado final é realizado graças à atividade

coletiva.

Tal mediação põe o instrumento entre o trabalhador e seu objeto. Assim, o instrumento

transforma a realidade e pressupõe um pensamento sobre ela, ou seja, uma abstração. O uso de

instrumentos provoca forte impacto na história da humanidade, criando formas culturais de

relações. A mediação instrumental, entretanto só é possível com a presença de agentes sociais, e

cuja mediação fundamental são os signos, que atuam internamente no sujeito, mudando seu

comportamento e o mundo material:

Assim o instrumento é um objeto social, o produto de uma prática individual. Por este fato, o conhecimento humano mais simples, que se realiza diretamente numa ação concreta de trabalho com ajuda de um instrumento, não se limita á experiência pessoal de um indivíduo, antes se realiza na base da aquisição por ele da experiência e da prática social. (LEONTIEV, 1964, p..90).

Neste sentido, homem é o único animal que internaliza o objeto externo e o transforma

em representações mentais. Tais representações não se constituem como cópias da realidade, mas

como reconstrução interna desta, num processo de transformação recíproca. Elaborados

socialmente pelo homem, os instrumentos passam a fazer parte do seu próprio corpo, são

estruturantes das operações realizadas, produto e produtor da abstração consciente, racional, de

quem os fabrica e utiliza.

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É interessante lembrar que esta representação mental, esta abstração consciente, racional,

é chamada por Leontiev (1964, p. 90) de pensamento, ou seja, “processo de reflexo consciente da

realidade, nas suas propriedades, ligações e relações objetivas, incluindo os mesmos objetos

inacessíveis, à percepção sensível imediata.” Este conceito baseia-se na tese de Engels (1977) de

que o pensamento se desenvolveu a partir da necessidade do homem para transformar a natureza

ao seu favor, nascida no trabalho. Neste os homens, voluntária ou involuntariamente, necessitam

de intercâmbio e, dessa forma, esta atividade e a comunicação fazem parte do mesmo processo,

desempenhando duas funções: produtiva e de interlocução.

Como via de comunicação do pensamento, a linguagem é a forma concreta onde opera a

consciência da realidade circundante, e, por isso, torna-se o principal instrumento na relação entre

os homens: “A necessidade criou o órgão.” (ENGELS, 1977).

Desta maneira, o desenvolvimento da linguagem no homem marca o segundo grande

momento histórico de sua existência, ela é o “ser falante da coletividade” (MARX, 1987, p.159),

a expressão da consciência coletiva. Confirma assim o ser social, cuja condição de existência

depende não só da procriação como também da cooperação de vários indivíduos, quaisquer que

sejam as condições, modos e finalidades: “ Segue-se igualmente que a soma de forças produtivas

acessíveis aos homens condiciona o estado social e que, por conseguinte, a história da

humanidade deve ser sempre estudada e elaborada em conexão com a história das indústrias e da

troca.(MARX, 1991, p. 43).

A linguagem nasce na sociedade para depois ser internalizada pelo sujeito conferindo-lhe

a capacidade de pensar com os outros e comunicar seus pensamentos. Sua aquisição modifica as

funções mentais superiores (FPS), acelerando a formação de conceitos, mediante a evolução de

significados (cada vez mais complexos), reorganizando os processos cognitivos em andamento

(VYGOTSKY, 1988). Sendo assim, a linguagem apresenta-se como o sistema simbólico básico

do ser humano, configurando-se mediante significado e do sentido. O significado é um ponto

fixo e estável compartilhado pelo grupo social em contexto, embora sujeito a mudanças no

percurso da história social e de menor domínio afetivo. Já o sentido, pessoal e instável, é o

significado da palavra para cada indivíduo e tem maior domínio afetivo.

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Assim, compreendemos por que a dialética marxista afirma que é o ser social, concreto e

cultural, mediado por signos, que cria as condições para formação da consciência individual no

homem. O próximo item prossegue discorrendo sobre este assunto.

2.1.3 O ser social determina a consciência

Para Marx e Engels (1999, p.176), o indivíduo é o ser social, pois seu próprio modo de

existência, o que faz de si e na sua comunidade, o que ele exterioriza na sua comunicação, o

sentido que dá à vida, é uma ação social. As vidas individual e genérica, formando uma

totalidade dialética, não são distintas. Sendo assim, conforme o autor, o homem transmite no

pensar o seu modo de existência subjetivo na sociedade: “Pensar e ser são pois, na verdade,

diferentes, mas, ao mesmo tempo, formam em conjunto uma unidade.” A vida social é uma

dinâmica, na qual cada indivíduo, em sua singularidade e historicidade, representa a interação

do mundo cultural com o mundo subjetivo. Para o autor, finalmente, a consciência humana é

produzida historicamente e adquire particularidades nas condições socioculturais da vida coletiva.

Apoiados no principio dialético da totalidade, Luria & Vygotsky (1996) e Leontiev

(1964) observaram que o desenvolvimento psicológico da criança segue linha análoga ao do

desenvolvimento sócio-histórico da humanidade. Esses autores estudaram a forma como o

trabalho desenvolveu às funções mentais superiores (FPS), que abrangem o controle consciente

do comportamento, a ação intencional e planificada, as atividades simbólicas e representativas.

Assim, congruentes com o pensamento marxista, definem a consciência como “ o reflexo da

realidade refratada através do prisma de significações e dos conceitos lingüísticos elaborados

socialmente.” (LEONTIEV, 1964, p. 94).

Nesta perspectiva, os autores retrocitados (MARX, 1999; LÚRIA, 1996; LEONTIEV,

1964; VYGOTSKY, 1988) apresentam os fundamentos de Psicologia Sócio-Histórica para

explicar o processo de formação da consciência humana: atividade, internalização e mediação.

A atividade, como já conceituada neste capítulo, abrange um conjunto de ações e

operações do homem sobre a natureza. A sua realização é coletiva e planejada e, à medida que

são realizadas, são objeto aperfeiçoamento e especificação.

Já a internalização representa a combinação entre o instrumento (orientado externamente)

e o signo (orientado internamente), e por isso ocorre em dois níveis (VYGOTSKY, 1988):

intersubjetivo e intra-subjetivo. Ocorre no nível intersubjetivo, quando participa cultural e

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interpessoalmente da convivência com os outros e no intra-subjetivo quando passa por um

processo pessoal de experiência mental e reflexiva, passando a reconstruir a realidade e

incorporá-la à sua estrutura.

A internalização e a atividade são interpostas pela mediação, processo de intervenção

numa relação entre sujeito e objeto. O conceito de mediação também foi extraído do materialismo

histórico, onde se afirma que o trabalho (atividade humana) é mediado por instrumentos criados

socialmente de acordo com o nível de desenvolvimento cultural. Para Vygotsky (1988), a

mediação é direta quando proporciona a consciência do objeto por meio do conhecimento físico,

concreto; mas também pode ser indireta quando interfere na relação medinte instrumentos e

signos (linguagem) que transformam a realidade e o sujeito.

A mediação mais importante para o homem, segundo a Psicologia Sócio-Histórica, é a

linguagem e tem como centro a palavra. A linguagem, como já aludimos, nasce da atividade

coletiva e é internalizada pelo sujeito, conferindo-lhe a capacidade de desenvolver uma visão de

mundo e de comunicar seus pensamentos.

Nesta mesma trilha, Bakhtin (1995) em sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”,

propõe uma “ filosofia do signo” para entender o processo dialético do ser humano, cujo estudo

deve operar na delimitação da fronteira entre ideologia e Psicologia: “O psiquismo não deve ser

uma réplica do universo, e este não deve servir como simples indicação cênica acompanhando o

monólogo psíquico.” (ibid, p. 54).

Com esta tese, o autor considera que a Filosofia da Linguagem deve ser a base de partida

para a teoria marxista compreender o conhecimento científico, a literatura, as artes, a moral etc.

Para explicar a formação da consciência, descreve o processo dialético do sujeito e sua relação

com os signos, afirmando que: “O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também

refrata.”26 Compreendemos assim que para o autor, toda atividade psíquica é uma expressão

semiótica do contato entre o sujeito e a realidade. Desse modo, a expressão psíquica só é possível

por meio dos signos reais e tangíveis (palavras, mímica, artes etc). Mesmo para o próprio

indivíduo, a atividade mental só se apresenta mediante a da representação: “todo pensamento,

toda emoção, todo movimento voluntário são exprimíveis.” ( ibid, p. 39).

26 Signo: “ fenômeno exterior ao sujeito criado por um grupo socialmente organizado para representar algo.” (BAKHTIN, 1995, p. 35)

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Assim, o encontro entre o sujeito e o mundo é sempre mediado por signos, constituídos

socialmente. Daí percebe-se que a consciência é um fato sócio-histórico. Os processos que

constituem o psiquismo, desenvolvem-se não no organismo, mas fora dele: “O fenômeno

psíquico uma vez compreendido e interpretado, é explicável exclusivamente por fatores sociais,

que determinam a vida concreta de um dado indivíduo nas condições do meio social.”

(BAKHTIN, 1995, p.48).

Nesta perspectiva, há o entendimento de que o signo é criado por uma função ideológica

específica, determinado pela infra-estrutura, cujo conteúdo resulta de um consenso entre

indivíduos pertencentes a um grupo socialmente organizado, a partir do seu processo de

interação. Ao serem internalizados, os signos passam a guiar o comportamento do sujeito onde a

realidade se reflete e é refratada, ou seja, modificada em sua forma e direção, tornando-se

“discurso interno” que se expressa pela linguagem do corpo e da palavra.

Como instrumento da consciência, a palavra é uma presença obrigatória em todo ato

consciente, servindo de apoio a todos os signos sociais, na compreensão e interpretação da

realidade. Segundo o autor em destaque, ela é um fenômeno ideológico por excelência porque

materializa a comunicação social. Esta comunicação, como vista em Engels (1955), procede da

base material, da necessidade de atividade produtiva e criativa do homem sobre a natureza, enfim

do trabalho.

Embora não faça referência diretamente ao trabalho, Bakhtin (1995) destaca como um dos

problemas fundamentais do marxismo a relação entre infra e superestrutura. Tal relação possui

um movimento de reciprocidade e não de causalidade linear e superficial, como comumente é

interpretada: “De fato, a essência deste problema, naquilo que nos interessa, liga-se a questão de

saber como a realidade determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em

transformação.” (ibid, p.. 41). Nesta óptica, o autor percebe o homem como ser sócio-ideológico,

cujo conteúdo do psiquismo é tão social quanto o ideológico, contestando o dualismo

individual/social das correntes idealista e materialista. Dessa forma, o autor contribui de forma

relevante para o entendimento da formação da consciência como aquela fecundada no seio das

relações sociais.

A partir desses pressupostos, apresentamos o trabalho como atividade fundante do ser

humano biológico, psicossocial e histórico, que vincula o sujeito à natureza. Vimos que esta

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atividade é originalmente social, pois supõe a interação dos indivíduos com a especialização

crescente de suas operações. Assume uma centralidade ontológica na formação humana por meio

de duas dimensões: a subjetiva, que envolve os afetos, sonhos e expectativas, e a objetiva, que

engloba as condições físicas e materiais e os modos de produção. Assim, o plano do trabalho

articula as dimensões da cultura, da ética, da subjetividade e da consciência, confirmando a tese

marxista da sua função formadora . Na interpretação de Kramer:

Além da atividade laborativa sobre a natureza, o trabalho é processo que constitui todo o ser do homem, é agir humano que transforma a natureza e nela inscreve significados, mas, ao mesmo tempo, supera a esfera da necessidade e realiza os pressupostos da liberdade e da livre criação. (KRAMER, 1994, p. 36).

Este trabalho criativo, porém, promissor de prazer e de elevação da sociabilidade, passou

por diferenciações, com o desenvolvimento e especialização crescente dos meios de produção, e

ficou subsumido à função alienada e abstrata de produção de mais-valia. No trabalho alienado, os

modos de produção capitalista desagregam as dimensões constituintes do trabalho concreto,

rompendo a atividade intelectual da ação material e negam a dimensão subjetiva deste,

privilegiando a dimensão objetiva pela crescente supremacia do capital.

Lessa (2002, p. 28) acentua que trabalho e trabalho abstrato são equivocadamente tratados

como sinônimos na sociedade contemporânea. A diferenciação entre os dois é importante para

denunciar a submissão dos homens à sociedade capitalista: “forma social que nos transforma a

todos em “coisas” (reificação) e articula nossas vidas pelo fetichismo da mercadoria”.

É interessante destacar o fato de que as críticas marxistas hoje presentes no seio da

sociedade capitalista sobre o trabalho alienado centram-se na perda da omnilateralidade do

homem, em que seu prazer, seu gozo, sentidos e potencialidades (físicas, intelectuais,

emocionais) estão subjugados à lógica da produção de capital. Desapropriados de suas forças

subjetivas, potencialmente capazes de desenvolver sua existência, o homem não se reconhece

como sujeito de sua atividade, separando-se do produto de seu trabalho.

Marcelino (1995) e Redin (1988) analisam como este processo ocorreu historicamente,

tendo como marco divisório a industrialização. Segundo esses autores, antes dela, o trabalho nas

“sociedades primitivas comunitárias” ou “tradicionais”, predominantemente rurais, era realizado

de acordo com as necessidades imediatas. Os espaços de produção eram coletivos e não divididos

por sexo, classe social ou idade. Tal atividade tinha um caráter lúdico, acompanhado de festas,

cantos, celebrações, conversas, atendendo, de acordo com Marcelino (1995, p.21), ao ritmo

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humano em suas múltiplas dimensões e potencialidades emergentes. Desse modo, o trabalho

livre mantinha a integridade do sujeito ao permitir a expressão de sua criatividade e inteligência.

Já na sociedade moderna, surgida após a industrialização, de predominância urbana, o

trabalho desvia sua direção, desrespeitando o ritmo humano: roubando-lhe seu tempo,

despersonalizando as relações e dividindo os espaços e funções de cada sujeito, sob o ritmo da

máquina e da acumulação de bens. No trabalho alienado, o tempo é todo absorvido pela

produção, não havendo espaço para expressão criativa, assim como outras dimensões

fundamentais emocionais, intelectuais, culturais e lúdicas.

Marx (1987, p.192-194), ao analisar a divisão do trabalho na sociedade capitalista,

observa que esta se apresenta como a essência da propriedade privada, tornando-se “uma figura

alienada e alheada da atividade humana”. Historicamente, Marx reconhece que a vida humana

necessitava da propriedade privada para sua efetivação, mas hoje se percebe é que o trabalho

humano se tornou simples “movimento mecânico”, cujos instrumentos fazem por eles mesmos o

principal, ocorrendo, nas palavras do autor, um empobrecimento da atividade individual por meio

da divisão do trabalho.

A esse respeito, cabe destacar a observação de Grisci e Lazzarrotto (1998) sobre a

sociedade contemporânea e o desenvolvimento dos instrumentos de trabalho. Os autores

garantem que, por mais que as novas tecnologias proporcionem maior produção em menor

tempo, não libertam os trabalhadores, uma vez que estes ainda vendem o seu tempo de trabalho.

Explicam que o tempo livre é incorporado ao processo produtivo, obedecendo as mesmas regras

da lógica de produção de mercadoria que regem o tempo de trabalho.

Com o tempo livre absorvido e sua dimensão subjetiva subjugada ao capital, o trabalho

formativo quase desaparece, atuando como uma “semiformação”, rompendo a relação

“sujeito/objeto”, ou “mundo sensível do mundo intelectual”, nas palavras de Adorno (2000).

Segundo esse autor, o rompimento causado pela fragmentação e redução do trabalho à óptica do

capital, cria uma “indústria cultural” que implica um “ fetichismo da técnica” . Este fetiche sobre

a técnica, esclarece o autor, implica “não vê-la como extensão dos braços dos homens”, mas

como um fim em si mesma, com força própria:

A industria cultural determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos bens culturais enquanto se converte estritamente em mercadorias; a própria organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos

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culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos e, logo, á situação vigente.(ADORNO, 2000, p. 21).

Sob tal prisma, o trabalho alienado implica também uma repressão sobre à subjetividade

na sociedade atual, ocasionando por sua vez a “incapacidade de amar”, um congelamento

emocional entre as pessoas e uma indiferença frente as condições do outro. Esta perspectiva do

autor é de suma importância para a compreensão do nosso objeto de estudo, que consiste em

analisar como se apresenta a afetividade do professor no processo de educação contemporânea,

pois, tal perspectiva nos leva a refletir como é possível uma despersonalização do docente, ou

seja, uma frieza emocional, num trabalho cuja essência é a relação entre os sujeitos.

O autor em destaque, observa que a frieza emocional e a intolerância retiram o sentido

da vida e automatizam as pessoas. O pensamento é congruente ao de Marx (1987), quando

lembra que a essência humana se apóia na força das necessidades e sua riqueza consiste no seu

significado, concebido ao longo da história. Na sociedade capitalista, o significado é inverso, pois

o sujeito especula um modo de criar no outro uma “nova” necessidade para levá-lo a uma

dependência, a uma submissão ao produto como “nova potência de engano recíproco” e, precisa,

cada vez mais, de dinheiro para apossar-se do seu “inimigo”.

Em sua análise, Marx (ibid, p. 182) entende que na propriedade privada o homem reduz

todo ser à sua abstração e se reduz em seu próprio movimento, a ser quantitativo: “A propriedade

privada não sabe fazer da necessidade bruta necessidade humana; seu idealismo é a fantasia, a

arbitrariedade, o capricho.” E, assim , sustenta que a Economia Política, apesar de sua aparência

mundana e prazerosa, é a verdadeira ciência da moral, pois tem como dogma fundamental a

auto-renúncia, a renúncia à vida, a todo carecimento humano. A satisfação das necessidades em si

é arrastada e substituída por um gozo, no qual “a luz, o ar etc., a mais simples limpeza animal,

deixa de ser uma necessidade para o homem. O lixo, esta corrupção e podridão , a cloaca (em

sentido literal) da civilização, torna-se para ele um elemento de vida.” (MARX, 1987, p. 183).

Cabe esclarecer que as necessidades humanas para Marx têm natureza sócio-histórica.

Elas são produzidas de acordo com o desenvolvimento dos meios de produção. Sejam biológicas

ou sociais, estão sempre inseridas nas condições objetivas que permitem ou limitam sua

satisfação. Neste sentido, o autor enfatiza que os interesses econômico-ideológicos criam

necessidades que não correspondem com aos reais motivos dos sujeitos.

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Desse modo, percebemos o trabalho como forma de atividade criativa e produtiva,

necessária à vida humana, no atendimento de necessidades naturais e sociais que, historicamente,

foi perdendo seu sentido e seu prazer de realização na medida em que o modo de produção

capitalista negou ou ignorou a dimensão subjetiva constituinte de sua ação, requerendo do

trabalhador uma reestruturação do seu modo de ser e estar no mundo.

Assim, as modificações na estrutura da consciência podem ser vistas como parte desta

dimensão subjetiva, produzida nos modos de produção e relação entre os homens, decorrentes das

transformações históricas e sociais. Nela, estão contidos os motivos, forças internas que tornam

possível a realização das atividades. Tais motivos se apresentam como a própria necessidade

humana objetivada na atividade. A intensidade, a marca e o caráter qualitativo destas forças

internas são regulados e organizados pelo afeto investido na ação. (LEONTIEV, 1964).

E é sobre a afetividade que discutiremos no próximo item, discussão necessária nesta

pesquisa para entender como a subjetividade do professor é afetada pela sociedade

contemporânea e para análise das possibilidades de rever o aspecto lúdico do trabalho, como

experiência formativa e prazerosa na vida humana.

2.2 O HOMO AMANS27 : O PAPEL DA AFETIVIDADE NA ORGANIZAÇÃO E

REGULAÇÃO DO SUJEITO. “ ...tirarei da vossa carne o

coração de pedra, e dar-vos-ei

um coração de carne.”

(Ezequiel).28

O entendimento das atividades e expressões humanas, sempre guiadas por motivos, torna-

se mais claro pela análise dos afetos29 que alimentam seus mecanismos. A afetividade é

integrante da subjetividade, que, por sua vez, de acordo com a abordagem sócio-histórica, é

entendida como “um mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo

sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é,

também, fonte de manifestações afetivas e comportamentais.” (BOCK et al., 1999, p. 23).

27 “HOMO AMANS” – expressão utilizada por Melero (2002, p. 44). 28 Apud KRAMER (1994). 29 Afetividade: capacidade de afetar o outro, contagiando-se para atendimento de uma situação.” (MAHONEY, 2000, p. 25).

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Já vimos que o meio sociocultural possibilita a formação da consciência que o reflete e

refrata, estruturando um mundo interior, repleto de sentidos e significados. A partir desta óptica,

pretendemos desenvolver, neste item, o tema da afetividade como dimensão estruturante do ser

social e, como tal, articulada com o trabalho. Como diz Lessa (2002, p. 27-28), não pode haver

existência social sem trabalho, mas a vida social é mais ampla que esta categoria, pois “contém

uma variedade de atividades voltadas para atender as necessidades que brotam do

desenvolvimento das relações dos homens entre si”.

Wallon (1879-1962), psicólogo francês e Vigotski (1896-1934), psicólogo bielo-russo,

convergem na abordagem sobre a afetividade. Ambos, denominados materialistas dialéticos,

partem do princípio de que o funcionamento psicológico se fundamenta nas relações sociais entre

o indivíduo e o mundo exterior, as quais se desenvolvem num processo histórico-cultural.

Acreditam na capacidade do homem de mudar seu contexto cultural e transformar a si mesmo,

mostrando-se fiéis às idéias de Marx e Engels (1952) sobre o valor do trabalho humano e do uso

de instrumentos culturalmente desenvolvidos.

Para ambos, as funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produto da

atividade cerebral, porém, tal suporte não é suficiente para o seu desenvolvimento. Tais funções

são edificadas na dinâmica entre a natureza e as relações sócio-históricas estabelecidas.

Concebem o desenvolvimento como processo marcado por crises e conflitos e que seguem a lei

da dupla formação que vai da direção interpessoal (social) para a intrapessoal (individual).

Assim, enfatizam os aspectos emocionais e sociais presentes no desenvolvimento cognitivo da

criança (interativa e construtora de sua própria subjetividade).

Por causa destas convergências, esses autores são destacados aqui, no sentido de

contribuírem para a compreensão da afetividade como base para a sobrevivência humana.

Algumas de suas idéias básicas serão apresentadas a seguir.

2.2.1 A perspectiva walloniana sobre a constituição do sujeito.

Como já anotamos, o pressuposto filosófico da Psicologia walloniana é o materialismo

dialético e histórico, que se ampara na afirmação de seu principal representante Marx (1818-

1883), quando revela que o homem é um ser natural e histórico, ser concreto em permanente vir-

a-ser, em permanente formação de sua subjetividade.

Partindo deste princípio, Wallon sustenta que o homem só se faz homem, ou seja,

transcende sua existência (eu orgânico), pela relação que estabelece com o outro (meio histórico e

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sócio-cultural). Esta relação é permeada de transformações e crises mediante saltos qualitativos

movidos pelas contradições: emoção e razão, orgânico e psíquico. Na perspectiva dialética, a luta

dos contrários é o motor do pensamento e da realidade. Desse modo, não existe hiato entre

subjetividade e objetividade, entre individual e social, pois ambos fazem parte de um todo no

qual, como partes, possuem características peculiares, mas são integrados e interdependentes.

Congruente com o materialismo histórico, a concepção de ser humano é de um sujeito

ativo, inacabado, em constante constituição de sua subjetividade na medida em que é ator

histórico dentro das condições culturais onde está inserido, é autor e objeto de sua própria ação.

Sua essência é ser sócio-histórico, cuja referência é o corpo, instrumento concreto de sua

existência, onde se registra a história e se estabelecem as condições orgânicas e sociais.

Deste modo, entendemos que, na constituição do sujeito, não basta o aspecto orgânico,

pois ela só é possível pela mediação de “outro” humano que reage aos seus afetos imprimindo-lhe

significados típicos da cultura onde está ancorado. Tais significados são internalizados e

reelaborados, constituindo sua subjetividade.

Assim percebemos como o homem é sempre habitado por um outro (“o socius”), por um

processo gradual de diferenciação, oposição e complementaridade recíprocas, que é internalizado

como duplo eu “alter “ e se constitui como parceiro, confidente e censor da vida psíquica

(MAHONEY e ALMEIDA, 2000, p.96).

Nesta perspectiva, a formação da personalidade ocorre mediante uma rede de relações que

integra o biológico e o social, compreendendo assim três campos funcionais: o motor, o afetivo e

o cognitivo. Destes, o campo afetivo ocupa lugar central como mediador entre o vínculo Homem-

Mundo, exercendo uma função reguladora e organizadora do sujeito.

A personalidade, para Wallon, é um sistema aberto que, a partir do substrato

orgânico/motor, se move ciberneticamente em duas direções energéticas: a centrípeta tomada

como espaço subjetivo na constituição da afetividade (orientada para pessoas), e a direção

centrífuga vista como espaço objetivo na constituição da cognição (orientada para o mundo

físico).

Este desenvolvimento ocorre de forma cíclica, dinâmica e conflituosa, marcado por

avanços e retrocessos que configuram crise. Entende o autor serem as crises, emergentes em cada

etapa, que possibilitam a passagem de um nível de desenvolvimento para o outro, trazendo saltos

qualitativos na formação da pessoa.

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O movimento (a psicocinética) do triângulo walloniano (campos motor, afetivo e

cognitivo) ocorre por meio de princípios funcionais e reguladores do desenvolvimento, os quais

são denominados: alternância, predominância e integração.

Cada estádio do desenvolvimento corresponde a uma predominância de necessidades e

atividades específicas da criança conforme suas condições e necessidades biológicas e

socioculturais, e, neste sentido, a direção tomada pela energia (centrípeta-afetividade ou

centrífuga-cognição) serve como guia ou condutora de cada processo. Assim, o movimento é

alternado como processo auto-regulador: ora centrípeto (voltado para o conhecimento de si), ora

centrífugo (tendente ao conhecimento do mundo).

Este movimento alternado e dinâmico é também integrador, de forma que a

transformação em um dos campos provoca mudanças nos demais, havendo uma reintegração de

atitudes antigas às mais recentes. Dessa forma, a ação motora e a emocional transformam-se

gradativamente em ato mental, que tendem a ser cada vez mais “corticalizadas”, assumindo uma

expressão cada vez mais racional: “(...) A inteligência, portanto, alterna com a afetividade na

determinação do colorido peculiar de cada etapa. Ela não inaugura o desenvolvimento; surge

depois da afetividade, de dentro dela, conflitando com ela à maneira do parto dialético da antítese

pela tese.” (DANTAS, 1990, p.7).

Neste caminho, a afetividade corresponde, para Wallon, à energia que mobiliza o ser para

o mundo, sendo a base da sobrevivência humana; ou seja, é um dos campos funcionais do

desenvolvimento que, inserida na motricidade, é inicialmente somático, tendo como berço as

sensibilidades internas denominadas interoceptivas, sensações oriundas das vísceras, e

proprioceptivas, derivadas da posição e tonicidade muscular. Tais sensações internas são

expressas sob a forma de “estados emotivos” denunciando manifestações corporais (risos, choro,

palidez etc). Tais manifestações representam o primeiro sinal de afetividade, dependendo das

áreas subcorticais que, ao longo da maturação, vão se especializando e assumindo outras formas

de expressão (os sentimentos) e sendo mais controladas.

A emoção é um “afeto efêmero”, uma manifestação corporal das sensações internas e se

constitui inicialmente como instrumento de sobrevivência da espécie humana para suprir a falta

de recursos cognitivos do bebê nos primeiros meses de vida, e continuamente funciona como elo

entre o orgânico e o social em todas as formas de relações humanas.

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Por conseguinte, a afetividade nasce da manifestação dessas sensações internas do corpo,

que servem como veículo de expressão emocional, como nos explica Dantas (1990, p.10) :

Afetividade designa, aqui, os processos psíquicos que acompanham as manifestações orgânicas da emoção. É um processo corporal e centrípeto que obriga a consciência a se voltar para as alterações intero e proprioceptivas que acompanham, e prejudicam a percepção do exterior. Caracteriza não o processo relacional, mas o fechamento da consciência sobre si.

Assim, a emoção é percebida como primeira manifestação psicogenética da afetividade.

Ela vem do corpo e tem como substrato o tônus, cuja função é manter consistência e a forma dos

músculos com um certo nível de tensão. Segundo Cabral (2000, p. 272), o tônus varia de acordo

com a condição fisiológica do sujeito e com as dificuldades e características do ato que é

realizado, permitindo tanto a mobilidade quanto a imobilidade.Nesta direção, o tônus esculpe o

corpo, atuando nos músculos e nas vísceras, revelando estados emotivos sob a forma de

hipertonia, hipotonia e espasmos.

De outro lado, entende-se também que a emoção é um afeto com mecanismos capazes de

contagiar o outro e, ao mesmo tempo, dependente dele para se manifestar. Ela vai evoluindo à

medida que obtém respostas externas aos seus apelos, formando uma sensibilidade

exteroceptiva,30 que garante não apenas a sobrevivência física como também a cultural, por meio

da apreensão de valores, instrumentos, técnicas, crenças, idéias e afetos predominantes do meio

cultural (MAHONEY e ALMEIDA, 2000, p.28)

Assim, a medida que aumenta a sensibilidade de exterocepção, os estados emocionais

evoluem para estados afetivos mais significativos, como alegria, tristeza, cólera e medo; saindo

gradativamente de um estado sincrético31, no qual, as sensações internas são confundidas com os

estímulos externos, para um estado emocional mais claro e dirigido, mostrando necessidade de

tocar, de abraçar, apalpar, fazer contato. Tais necessidades estão presentes no estádio de

desenvolvimento impulsivo-emocional e são fundamentais para a formação do esquema corporal

do bebê. No decorrer do desenvolvimento, com a aquisição da linguagem, a criança é capaz de

representar o mundo, dando origem assim a afetos mais duradouros chamados de sentimentos que

têm caráter mais contido e são controlados por zonas corticais ligadas à cognição. Neste 30 Reações mantidas entre o corpo e o mundo exterior através dos órgãos dos sentidos (WALLON,1968). 31 “O sincretismo é a mistura não só do sujeito pensante com seu objeto, mas dos objetos entre si , a mistura dos

diferentes planos do pensamento das diversas fontes de onde procedem as informações e das próprias funções da

inteligência.”(DANTAS, 1990, p. 33)

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momento, a criança organiza as informações e tende a pensar por meio de relações e conceitos. A

afetividade neste momento é expressa pela necessidade de ser ouvido, compreendido, conhecido.

(MAHONEY e ALMEIDA, 2000).

Conforme este movimento evolutivo, a afetividade como organizadora e reguladora do

sujeito, abrange as emoções e os sentimentos e cada fase de desenvolvimento expressa uma

necessidade peculiar, auxiliando na percepção das situações e no planejamento das ações. Desta

forma, a emoção é a base inicial da consciência corporal e social, cuja evolução, no campo

afetivo, ocorre por meio da unidade entre os espaços subjetivo e objetivo e da integração entre o

inter e o intrapessoal. De origem subcortical, mantém relação complementar com a cognição

(origem cortical). Sua tendência é ser “corticalizada”, sob a forma cada vez mais expressiva e

representativa: sentimentos.

Compreendemos assim que movimento, afetividade, cognição e sociabilidade

desenvolvem-se de forma integrada; dialeticamente, um dá origem ao outro sem perder a sua

especificidade e funcionalidade. Cada momento evolutivo é marcado por uma busca de

diferenciação do ser no mundo, um parto constante e dialético, seja no campo afetivo, seja no

terreno cognitivo, e que tem como fundamento à formação da consciência corporal, condição

psicomotora necessária à constituição do sujeito: geneticamente social e essencialmente afetivo.

Como veremos no item a seguir, há convergência de Wallon com Vigotski (1987), pois

ambos sustentam a idéia de que, na elaboração da subjetividade, afeto e intelecto se relacionam

dinamicamente. À medida que o indivíduo se apropria do conteúdo cultural, emerge um plano

intrapsicológico, tornando um instrumento próprio que passa a servi-lo no seu pensamento,

planejamento, coordenação e administração de suas emoções.

2.2.2 A afetividade em Vigotski: A emoção como organizadora do comportamento

O comportamento, para Vigotski (2001), é uma interação do sujeito com o meio,

apresentando-se como dinâmico e cíclico, mediado por um código semiótico (sistemas de

signos) que de forma singular é internalizado pela pessoa na sua história sociocultural. Para o

autor, o desenvolvimento acontece de “fora para dentro” por meio da internalização de processos

intrapsicológicos, como explica:

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Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. 32Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro no nível social, e, depois, no nível individual, primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para atenção voluntária, para a memória lógica e para formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos.( ibid p. 64).

Neste sentido, para o autor, a internalização é a própria formulação das funções

psicológicas superiores da consciência, tendo origem nas relações entre indivíduos,

caracterizados pela possibilidade de superação dos condicionamentos do meio. Este

desenvolvimento de tais funções passa por várias fases e utiliza como recursos instrumentos e

signos, desde os mais simples aos mais complexos.

Vygotsky (1988) esclarece que a formação das funções psicológicas superiores passa por

dois níveis de desenvolvimento. O primeiro chama de Nível de Desenvolvimento Real (NDR) e

corresponde às funções mentais que o sujeito já internalizou e às atividades que já realiza

sozinho. O outro nível capacita a criança a resolver problemas pela mediação de adultos ou

parceiros - é o Nível de Desenvolvimento Potencial (NDP). Entre os dois níveis, existe uma zona

onde residem funções em amadurecimento, brotos que caracterizam o desenvolvimento mental

prospectivamente, chamada pelo autor de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Tal zona

permite entender o curso interno do desenvolvimento, ao revelar como o indivíduo se apropria

subjetivamente do saber historicamente elaborado. É nela que psicólogos e educadores devem

atuar para entender o sentido e o significado da internalização dos signos sociais.

Assim, o sentido e o significado atribuído a cada momento deste processo inter e

intrapessoal na formação das funções psicológicas dependem da reação emocional (emoções,

motivações, afetos) que coordena os códigos semióticos, ou seja, que organiza o comportamento:

Assim, a administração primordial das reações surge das emoções. Ligada à reação, a emoção a regula e orienta em função do estado geral do organismo. A passagem para o tipo psíquico de comportamento surgiu, sem dúvida, com base nas emoções. De igual maneira, existem fundamentos para supor que as formas primitivas de comportamento puramente psíquico da criança são as reações de prazer e desprazer que surgem antes das demais (VIGOTSKI, 2001, p. 138).

Nesta direção, o autor apresenta as matrizes psíquicas do afeto, situadas na relação

dialética entre o prazer e a dor, explicando que toda emoção é um chamamento à ação ou

32 O grifo é do autor.

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renúncia a ela, a depender do significado que assumem no comportamento. Auxiliando na

percepção das situações, as emoções regulam as reações, surgem na base dos instintos e vão se

especializando até assumir formas cada vez mais desenvolvidas de afeto (sentimentos),

estimulando ou inibindo uma atividade conforme o sentido de prazer ou dor que assumem.

Com efeito, a interação do sujeito com o meio passa por adaptações do comportamento

que se constituem como bases para o desenvolvimento das emoções, momentos de superação de

obstáculos representados por três grupos. O primeiro está relacionado com os sentimentos

positivos, como força e satisfação, momento em que o organismo se realiza-se adaptando ao meio

com o mínimo de dispêndio de energia. O segundo refere-se às dificuldades de adaptação do

organismo ao meio, originando excessiva tensão, sofrimento, debilidade e depressão, com o

máximo de dispêndio de energia. Já o terceiro grupo, reporta-se ao equilíbrio entre organismo e

meio, caracterizado pela indiferença emocional no comportamento.

Na mesma obra, o autor propõe que a educação seja capaz de desenvolver a capacidade de

dominar as emoções, ou seja, a sua expressão motora. Para isso, é necessária a regulação dos

movimentos na Zona de Desenvolvimento Proximal, ou seja, das funções em amadurecimento.

Esclarece que não se trata de reprimir os sentimentos, mas de subordiná-los às formas mais

evoluídas de comportamento ou a sentimentos intelectuais como: curiosidade, interesse,

admiração e imaginação.

É importante dizer que a imaginação ou processo criativo, manifestada no desenho, na

literatura e em outras formas de arte, surge na criança no início dos três anos de idade e é uma

função da consciência. Está estreitamente ligada com o movimento dos sentimentos, provocando

uma série de sensações emocionais, principalmente “se o pensamento for orientado para

resolução de uma tarefa de importância vital para o indivíduo” (VIGOTSKI, 1999, p. 108). Sobre

este aspecto, Kramer (1994) nos fornece uma contribuição valiosa da criatividade segundo a

Psicologia sócio-histórica:

Compreendo que a possibilidade de ser humano se encontra na arte ou na produção expressiva, Vygotsky nega, então, a fria separação que é geral feita entre imaginação e realidade. Adverte para o fato de que, quando se interpõe entre ambas uma fronteira impenetrável, deixa-se de perceber a função essencial desempenhada pela imaginação: ela se torna mero enfeite acessório quando é, na verdade, vitalmente necessária. (ibid p. 87)

Desse modo, a autora explica que criatividade não é adorno da vida, mas provocadora de

crises em momentos cruciais da existência humana, abrindo possibilidades de expansão do

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homem para além das circunstâncias imediatas, seja para produção artística ou no consumo ou

desfrute.

Da mesma forma, a brincadeira e o jogo também surgem da base do desenvolvimento

emocional e se constituem para Vigotski ( 2001) como os melhores mecanismos educativos para

os sentimentos, pois, por meio deles, a criança ensaia seus futuros papéis e valores sociais: “A

brincadeira da criança é sempre emocional, desperta nela sentimentos fortes e nítidos, mas a

ensina a seguir cegamente as emoções, a combiná-las com as regras do jogo e do seu objetivo

final.” (ibid p. 147).

Por conseguinte, nesta óptica, o processo criativo (a imaginação) e lúdico (brincadeira e

jogo) faz parte das funções psicológicas superiores, dependentes do pensamento e do afeto;

contribuem, como o trabalho, na formação da consciência e emancipação social e são fontes

criadoras da Zona de Desenvolvimento Proximal. Não são apenas estes os processos

predominantes no desenvolvimento, mas são veículos importantes para a organização e regulação

do comportamento emocional e de outros aspectos evolutivos da consciência, como veremos a

seguir.

2.3 O HOMO LUDENS33: A LUDICIDADE NO DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA

“Vem amigo, nadar nos rios Vem amigo, plantar mais lírios

No vale no mato e no mundo Vamos brincar”

(Benito Di Paula/Márcio Brandão)

Segundo o entendimento que embasa este trabalho, a ludicidade ocupa lugar significativo

na formação humana, pois é uma experiência interna, vivida com plenitude, presente em

qualquer idade, sexo e classe social, fundamental na socialização e no desenvolvimento cultural.

É também uma forma de apropriação do mundo e se expressa, simbólica e concretamente, em

objetos reais e sensíveis ao homem, ou seja, na linguagem e nos instrumentos.

Ocupando este lugar, a ludicidade amplia os estados da consciência e da atividade,

contribuindo para o desenvolvimento das relações socioculturais. É mediada por uma atividade

que resulta numa experiência de entrega do ser humano em sua totalidade - espiritual, motora,

afetiva e cognitiva - onde o sentimento, o pensamento e a ação se integram em sua expressão.

33 Título principal da obra de Jonh Huizinga (2004).

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Luckesi (2002) explica que uma atividade só pode ser caracterizada como lúdica quando propicia

a plenitude da experiência, onde não há lugar para outro pensamento ou ação que não seja

naquela vivência. Nas palavras do autor, a experiência lúdica “trabalha além do Ego”, nela não

existe um meio-termo, ou o sujeito sucumbe a ela ou dela não participa.

Neste sentido, compreendemos que o desenvolvimento humano é permeado de ações que

compõem as atividades lúdicas como o brincadeira e o jogo. O brincar é anterior ao jogar, sendo

forma mais livre e individual de exercício funcional . O jogo é visto como uma conduta social

que impõe regra. A ludicidade abrange tanto a atividade individual e livre quanto a ação coletiva

e regrada, que possuem um movimento progressivo e integrado. Como atividade individual e

livre, o brincar se apresenta, segundo Wallon (1968), no desenvolvimento psicológico da criança

como uma atividade emergente. Surge liberada, livre, gratuita e depois vai se aperfeiçoando, se

estruturando em regras e em cadeias mais complexas: “O jogo resulta do contraste entre uma

atividade libertada e aquelas em que normalmente elas se integra. É entre oposições que evolui, e

é superando-as que se realiza.”

( ibid p.86).

Neste item, apresentaremos as características da brincadeira e do jogo nas perspectivas

histórica, sociocultural, psicopedagógica e psicológica, focando o papel da ludicidade na

formação da consciência humana. Em seguida, discutimos a dialética trabalho-jogo como um

movimento de devir que leva a ludicidade ao trabalho, ou seja, da atividade livre à prática

estruturada.

É imprescindível recordar a idéia de que, na perspectiva sócio-histórica, o homem se

desenvolveu por intermédio de atividades lúdicas e que a evolução do “Homo ludens” (o homem

que brinca) advém da atividade criativa do “Homo faber”, que emerge, por sua vez, do trabalho.

Na análise de Elkonin (1998), em toda história da sociedade, o trabalho antecede o jogo e

ambos medeiam a relação homem/natureza e a relação homem/homem. Assim, o jogo nasce das

condições de vida da criança na sociedade no decorrer do seu desenvolvimento histórico.

Portanto, tem origem e natureza social, decorrente do lugar ocupado pela criança nas diversas

formas de produção de trabalho. Para o autor, a origem histórica do jogo está no trabalho dos

adultos e seu conteúdo está relacionado com a vida, o trabalho e a atividade dos membros adultos

da sociedade. Assinala que a história do brinquedo acompanhou as mudanças ocorridas nas

ferramentas de trabalho e tem vinculação com a futura atividade e lugar da criança na sociedade.

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Para ele, antes da divisão social do trabalho, não havia registro de jogo protagonizado34,

nem exercícios especiais para aprender a manejar as ferramentas de trabalho. As crianças

participavam precocemente da produção do adulto à medida de suas forças. Com a mudança no

caráter de produção, os meios e os modos de produzir, tornaram-se mais complexos, provocando

a divisão do trabalho. Assim as crianças foram deixando de participar das atividades laborais

mais complicadas, sendo confiadas a elas atividades mais simples. Daí surgem equipamentos de

tamanho reduzido para treinar as crianças que, neste momento, começam espontaneamente a

protagonizar identificando-se com o caçador ou pastor adulto:

Apetrechados com instrumentos de trabalho como os que os adultos empregam, mas de tamanho reduzido, as crianças, abandonadas a sim mesmas, passam todo tempo livre exercitando-se com estes equipamentos, passando paulatinamente a manejá-los em condições próximas das do trabalho dos adultos. (ELKONIN,1998, p. 72-73).

Segundo o autor, porém, a complicação crescente dos instrumentos de trabalho foi

dificultando a aprendizagem das atividades nas crianças pelo manejo de ferramentas com

modelos reduzidos, pois, ao serem diminuídas, estes perdiam sua função fundamental,

conservando apenas a aparência exterior. Buscando resolver o problema, o adulto começa a

acompanhar mais de perto o treinamento das crianças.

As ferramentas reduzidas, por sua vez, deram lugar ao aparecimento do brinquedo, no

sentido próprio da palavra, ou seja, objeto que representava a ferramenta de trabalho e os

equipamentos ou utensílIos da vida adulta. O autor presume que neste momento se inicia a

conversão do trabalho em rito mágico/jogo, pois as crianças reconstituem com o brinquedo as

esferas da vida e da produção a que aspiram: “o jogo é uma atividade em que se reconstroem,

sem fins utilitários diretos as relações sociais.” (ELKONIN, 1998, p.20).

É necessário registrar que a palavra “brinquedo” só foi reconhecida oficialmente em 1607,

no dicionário de César Odim (ibid MANSON, 2002). Antes disso, o brinquedo era considerado

como “luxo fútil” e até mesmo perigoso, pois desviava as crianças dos estudos. Só a partir do

século XVII os jogos infantis começam a ser reconhecidos como essenciais para constituição e

maturação da personalidade, estando ligados a um novo conceito de infância da época. Graças à

contribuição de Áries (ibid NEGRINE, 2001), o “Homo ludens” passa a ser valorizado como

integrante do processo de desenvolvimento humano.Pode-se inferir, a partir desta óptica, que o

34 Atividade lúdica de representar a realidade por meio de simulações de personagens e cenários (ELKONIN, 1998).

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lúdico, ao realizar-se na interação social, é sempre marcado por um momento histórico e por um

grupo social determinado. Assim, o conteúdo da brincadeira e do jogo, adquire uma significação

interindividual e, daí, um valor social.

Sobre o valor sociocultural da ludicidade, Huizinga (2004) sustenta que o jogo tem uma

função social pois encerra um determinado sentido por meio da linguagem, mas ao mesmo

tempo ele evade a vida real, a transcende, para uma esfera temporária como um “intervalo da

nossa vida cotidiana”, haja vista o atendimento de uma necessidade, que para ele consiste numa

realização.

Para esse autor, o jogo lança sobre nós um “feitiço” que fascina, cativa, encanta, de forma

a absorver o jogador de maneira intensa e total. Decorrente desta premissa, o jogo só pode ser

entendido em sua totalidade. Mesmo no mundo animal, o jogo ultrapassa os limites da atividade

física e por isso é mais que um fenômeno fisiológico ou reflexo psicológico, pois é encontrado na

cultura como elemento dado e existente antes dela; é imaterial e irracional.

Na mesma obra, o autor assegura que o jogo torna complemento da vida em geral e a

finalidade que obedece é exterior aos interesses materiais, imediatos e superior às necessidades

fisiológicas. O trabalho, como atividade realizadora do homem, no sentido ontológico traduzido

por Engels (1977), simultaneamente, traduz esta inteireza quando não só atende as necessidades

materiais imediatas, mas também as transcende, ensejando formas complexas de comunicação e

outras práticas culturais.

Deste modo, jogo e trabalho apresentam uma correspondência na prosperidade do grupo

cultural; regam-se dialeticamente. Ora o jogo dá uma pausa no mecanismo de satisfação das

necessidades imediatas e assumindo um caráter desinteressado, ora desempenha, como o

trabalho, uma função vital para o homem. Neste sentido, Huizinga (2004, p. 13) destaca que o

jogo

Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o individuo, como função vital, 35quanto para sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, o seu valor expressivo, as suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função cultural36.

Ainda embasando a perspectiva sociocultural do jogo e da brincadeira, julgamos importante o

pensamento de Brougèré (1998), ao acentuar que a brincadeira é uma atividade dotada de

35 O grifo é nosso. 36 Idem acima.

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significação social, necessita de aprendizagem, pois por ser uma expressão que emerge da

cultura, é dotada de signos enraizados no conjunto de atividades humanas. Para ele, o jogo é um

ato social que produz uma cultura específica e, ao mesmo tempo, é produzido no contexto das

interações simbólicas da cultura geral. Esse autor observou que, ao brincar, a criança interpreta os

elementos inseridos na interação simbólica que estabelece. Sendo assim, a cultura lúdica 37é uma

co-constituição do sujeito social que, ao interagir, elabora uma série de significações sobre o

objeto.

Aproximando-se deste pensamento, Chateau (1987) sustenta que o jogo é uma

antecipação do mundo para ocupações mais sérias. A criança procura no jogo uma oportunidade

de afirmação, desempenhando para ela o mesmo papel que o trabalho desempenha para o adulto.

Cita como exemplo jogos de competição, que funcionam como desafio e como mútua expressão.

Neste sentido, o jogo, ao servir como instrumento de mediação entre as crianças e a realidade,

entre o mundo externo e o interno, introduz a criança na vida social; nele, ela entra em contato

com os outros, habitua-se a considerar o ponto de vista de outrem, saindo do egocentrismo

original.

O autor destaca a função de sociabilidade do jogo quando este traz regras a serem

respeitadas, treinando a criança para lidar sucessivamente com as normas sociais: “a criança ama

a regra, na regra ela encontra o instrumento mais seguro de sua afirmação, pela regra, ela

manifesta a permanência de seu ser, de sua vontade, de sua autonomia” (CHATEAU,1987, p.61).

Para ele, o jogo implica uma disciplina, na organização de regras que permitem ao indivíduo

afirmar-se como personalidade e a reconhecer o outro, facilitando desta forma a sua ação no

mundo. Assinala que a origem da ordem no jogo, emerge da necessidade de colocar as coisas no

lugar, no sentido de encontrar algo que é familiar, conhecido.

Desta forma, aprendendo as regras da brincadeira, a criança vai adquirindo condutas mais

complexas e vai, sucessivamente, se preparando para o mundo adulto e para o trabalho, porque,

ao jogar “... ela aceita um código lúdico, um julgamento feito primeiro para si mesmo, depois aos

outros, tem sempre uma tarefa a cumprir, que se impõe como trabalho.” (ibid p. 87). De outro

lado, a brincadeira também denuncia as diferenças socioculturais entre os sexos. Na mesma obra,

Chateau relatou seu estudo sobre o comportamento de meninos e meninas, observando que no

37 “Conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível, esquemas que permitem iniciar a brincadeira, já que esta se propõe a produzir uma realidade diferente da vida quotidiana” (BROGÈRE,1998, p. 24).

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jogo das meninas há mais disciplina e menos euforia, sendo, por outro lado, menos hierarquizado,

aceitando a presença dos menores; tem mais sociabilidade. Já no jogo dos meninos, há mais

euforia e partem para jogos mais ativos e ritmados, onde liberam mais seus impulsos agressivos.

É preciso, por conseguinte, ver, escutar e compreender o modo como se brinca, pois este

reflete e refrata a estruturação mental e o nível de desenvolvimento emocional, cognitivo e

cultural do sujeito e, como nos lembra Chateau (1987, p. 58 )

A história do jogo da criança é, portanto, a história da personalidade que se desenvolve e da vontade que se conquista aos poucos. O princípio do jogo não está atrás, num impulso emocional, passou para frente, num fim a realizar, numa grandeza a atingir. Ele não é somente a função de um passado que projeta atos novos à sua frente, mas - sobretudo – de um futuro que é desejado, almejado, e por isso mesmo conquistado lentamente.

A partir deste prisma, compreendemos que a formação simbólica representa a construção

histórica da estrutura mental do sujeito realizando um interjogo com o processo de aprender.

Como na aprendizagem, este interjogo também está presente na atividade de trabalho, ao

provocar uma transformação mútua entre sujeito e objeto. A brincadeira proporciona neste

processo, uma dança entre o homem e o mundo, possibilitando ao primeiro mediar a sua

realidade com a realidade do mundo: sorrindo, inventando regras, imitando e criando formas de

encontro com o conhecimento e com o outro.

Sobre este assunto, de acordo com a visão psicopedagógica de Pain (1986), o jogo, como

atividade coletiva e regrada da ludicidade, desempenha uma função simbólica onde o objeto

presente constitui o símbolo para o objeto ausente. No jogo a criança entra em contato com o

outro, superando seu egocentrismo original, direcionando para um relacionamento cooperativo e

para integração no grupo social. A autora anota que a atividade lúdica inclui três aspectos da

função semiótica38 - o jogo, a imitação e a linguagem. Ela diferencia o jogo como a brincadeira

cujo objeto presente constitui o símbolo para a ação ou objeto ausente. A imitação é vista como a

representação da imagem internalizada, em que o indivíduo utiliza o próprio corpo para fazê-la, a

exemplo do menino que finge que é um avião. Já a linguagem é a função simbólica por

excelência, já que representa um objeto ausente por meio de um sinal arbitrário. A passagem por

todas essas funções possibilita, segundo a autora, a aprendizagem adequada, pois permite a

passagem do pensamento concreto ao pensamento abstrato e conceitual.

38 Ou simbólica.

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Na perspectiva psicológica, Wallon (1968) destaca a importância do simulacro e da

imitação no desenvolvimento psicológico, que se constituem como movimentos projetivos

organizadores do pensamento. Explica que, no simulacro, a criança alterna ficção e observação

e, na medida em que utiliza um objeto para representar algo, vai buscando cada vez mais artifício

na sua figuração, ou seja, maior conformidade entre o objeto e o equivalente que lhe procura dar:

“ As observações não estão ao abrigo das suas ficções, mas suas ficções estão saturadas das suas

observações.” (ibid p. 89). Já na imitação, a criança repete as impressões que acaba de viver,

reproduz, imita e reconstrói e, em geral, se fixa nos seres que tem mais afinidade.

Esta etapa, denominada como etapa projetiva no desenvolvimento da criança, na óptica do

autor em destaque, anuncia outro parto dialético impulsionador do desenvolvimento psíquico que

é a função simbólica a qual, recém-nascida, projeta-se nos atos motores pelos gestos e

representações. É uma etapa fundamental para elaboração do significado do mundo, pois as

atividades como o simulacro e a imitação permitem a criança diferenciar objetos de seres

humanos, maior percepção do seu eu corporal ao destacar-se deles e de si própria, colaborando

para formação de sua consciência social.

Deste modo, nos parece claro que a realidade psíquica é dotada de material semiótico e a

atividade lúdica exerce papel fundamental para sua reconstrução. Neste sentido, Bakhtin (1999,

p.49) sustenta que o ser humano refletido no signo não apenas nele se reflete, mas também se

refrata, de material semiótico: “A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato

entre o organismo e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como

uma coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo.” Esse autor, ao

assegurar que a consciência é produto de signos sociais internalizados, conclui que ela é

impregnada de conteúdo semiótico (ideológico). Ao estabelecer relações com outras

consciências, reconstrói estes signos, formando uma cadeia ideológica. Nesta perspectiva, o

brinquedo é um signo que se localiza entre o homem e a realidade, pois é instrumento

significativo que, como a ferramenta de trabalho, pressupõe um pensamento, uma abstração que

atua internamente no sujeito, mudando e guiando seu comportamento.

Vygotsky (1988), de forma similar a Wallon e a Bakhtin, retrocitados, ressalta a

importância do brinquedo para o desenvolvimento, pois este fornece estrutura básica mudança

das necessidades e para formação da consciência e apresenta premissas relevantes para esta

compreensão. A primeira premissa do autor reside no fato de que, no brincar, a ação está

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subordinada ao significado, os objetos são deslocados de uma posição dominante para uma

posição subordinada e, com isto, a atividade lúdica atua na Zona de Desenvolvimento Proximal

(ZDP), permitindo que a criança atue além do habitual de sua idade. Explica que a criação de um

estado imaginário é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às

circunstâncias e pressões advindas.

Já a segunda mostra um paradoxo contido no brinquedo: ao mesmo tempo que a criança

subordina o objeto o seu desejo, fazendo o que mais gosta de fazer, subordina-se às regras do

jogo, renunciando o que ela quer: “ uma vez que a sujeição as regras e a renúncia a ação

impulsiva constitui o caminho para o prazer no brinquedo... A subordinação a uma regra e a

renúncia de agir sob impulsos imediatos são os meios de atingir o prazer máximo.”

(VYGOTSKY, 1988, p.113). Sustenta o autor que a regra no jogo não é uma lei fixa, mas um

movimento interno, uma autocontenção e autodeterminação, embora originada na interação

social.

A terceira e última premissa refere-se ao atributo essencial do brinquedo - as regras. Para

ele no reino da liberdade e da espontaneidade da vivência lúdica, a regra torna-se um desejo, é o

impulso mais forte, porque satisfazer a regra é uma fonte de prazer. O surgimento das regras

promove uma transformação interna no desenvolvimento emocional e cognitivo da criança,

modifica seu campo perceptivo e conduz a ações estruturadas e instrumentais.

Sobre as regras, Wallon (1968) parece aprofundar esta percepção do autor acima, ao

assinalar que estas dão um conteúdo funcional ao jogo, pois impõem desafios e dificuldades

específicas que são precisos de resolução por si mesmos. As regras alimentam o jogo, evitando

repetições monótonas, mas não devem ser absolutas porque sua rigidez pode retirar o caráter do

jogo, transformando-o em seu contrário. O autor acrescenta que as regras apresentam-se como

uma necessidade exterior, mas, na realidade, pelo caráter coletivo do jogo, se constituem como

um código imposto por todos a cada um.

Essas idéias remetem a duas outras características da atividade lúdica destacadas por

Oliveira (2002): a flexibilidade e a espontaneidade. De acordo com elas, o jogo ocorre num

limite espaço-tempo, na qual a liberdade dos participantes é expressão sem restrição ou

imposição, porque as regras são combinadas e flexíveis à mudança. Além do acordo coletivo,

existe um tipo de flexibilidade que equivale a um “controle interno”.

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Huizinga (2004, p.13) nos ajuda nesta compreensão, ao explicar que a separação da vida

real no jogo é realizada dentro de um limite de espaço próprio, onde se processa o jogo e suas

regras têm validade. Da mesma forma, o limite do tempo se processa com espírito de seriedade,

de ordem. Todo jogo implica uma ordem: “Introduz na confusão da vida e na imperfeição do

mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor

desobediência a esta estraga o jogo, privando-o do seu caráter próprio.” (HUIZINGA, 2004,

p.13).

O autor, ao reforçar a liberdade como elemento lúdico básico, revela que não há contraste

nítido entre jogo e seriedade e que, mesmo no jogo protagonizado, a seriedade é tão fundamental

quanto o próprio jogo. O modo como se brinca (o estado emocional do sujeito) é em si uma

atividade séria de onde emergem as regras, a intencionalidade, o desejo e a tensão que levam o

jogador a permanecer envolvido até o desenlace dos desafios. Isto implica, de acordo com o

autor, um esforço, sério e compenetrado, numa seriedade do próprio jogador frente ao segredo e

ao mistério que emerge do processo: “o feitiço acaba quando acaba o jogo.” (ibid, p. 14).

Podemos observar como estas características do jogo estão presentes também no trabalho,

mas de forma desapropriada e fragmentada pelo continuum de alienação por que o trabalho

contemporâneo passa. O trabalho, como no jogo, tende a absorver o sujeito nas suas operações e

pode “arrebatá-lo” para suas ações, mas na realidade atual esta absorção se traduz em escravidão

e seqüestro do sujeito que é subsumido à produção.

A liberdade e a espontaneidade do trabalhador foi, ao longo do desenvolvimento

industrial, como analisa Foucault (1996), aprisionada por um poder polimorfo que, ao ser

internalizado, atua como controlador interno das regras do jogo do trabalho. O trabalhador se

absorve, se compromete, se submete às regras, se disciplina, mas não fica plenamente presente

nesta atividade. A sua espontaneidade está ausente, ele é levado pela necessidade de

sobrevivência, pelo fetiche da mercadoria, mas não pelo “feitiço”, pelo “encanto” real e autêntico

do movimento rítmico e harmônico da ludicidade.

Como anota Oliveira (2002, p. 69), no entanto, o trabalho pode agregar disciplina,

envolvimento, e manter sua característica essencialmente séria sem perder a ludicidade. Com

esta afirmação, remete-nos à discussão do preconceito que existe do jogo como atividade não

séria e destituída de compromisso e responsabilidade. Brougérè (1998) lembra que em nossa

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cultura sempre a brincadeira foi designada como atividade oposta ao trabalho, caracterizada

como fútil e distante do que é sério.

Ao mesmo tempo, porém, que se separam por suas características peculiares, ludicidade e

trabalho são complementares e mantêm semelhanças no papel que desempenham na formação

humana. Ambos provocam transformações anatômicas, emocionais e cognitivas no sujeito. Os

dois suscitam uma tensão e um prazer frente às regras que envolvem suas circunstâncias. Na

palavra de Huizinga (2004), esta tensão e prazer traduzem o arrebatamento, no sentido de

extasiar, de entusiasmar. Na expressão de Elkonin (1998), corresponde ao espairecimento, em

que o desejo de ficar no jogo supõe um entreterimento, uma alegria ao jogar.

Wallon (1968, p. 79-80) destaca, nesta característica, o bem-estar, o prazer, como o

momento em que este pode se exprimir. Neste momento, há um relaxamento, uma entrega

voltada para atividades desligadas e despreocupadas. Nesta perspectiva, o jogo liberta o sujeito de

outras atividades, ao afastar provisoriamente o indivíduo de tarefas cotidianas reais; no adulto

este fato torna-se, segundo o autor, uma “regressão consentida” :

O bem-estar que subitamente provoca é o de um período em que nada mais vai contar para além das incitações, quer íntimas quer exteriores, relacionadas com o exercício de aptidões habitualmente reprimidas, talhadas segundo as necessidades da existência, com a consequente perda da sua fisionomia, do seu sabor original. Supõe certamente, a respeito das tendências e hábitos utilitários, um poder de adormecimento, em estado de resolução funcional que não é o mesmo para todos nem em todos os instantes. Não sabe brincar quem quer, nem quando se quer. É preciso disposição e por vezes uma aprendizagem ou uma reaprendizagem. Se a companhia das crianças pode ser tão repousante, é porque ela faz voltar o adulto a atividades desligadas entre si e despreocupadas.

Ocupando este lugar, a ludicidade contribui para as relações socioculturais, amplia a

consciência e a atividade, fornece intervalos e aberturas nas experiências. Nas palavras de

Luckesi, 39ela trabalha além do ego, e na experiência lúdica não existe meio-termo, ou o sujeito

sucumbe a ela como “tentação” ou dela não participa.

Ligada à atividade criativa do homem, a ludicidade mantém correspondência com o

trabalho que, na sua origem, é formador e criativo, podendo, por isso, estar presente no trabalho,

pois a ludicidade não é só brincar ou jogar:

Há ludicidade nas atividades da criança, adolescente e no adulto. São experiências lúdicas, mas tendo por base atos diferentes. O que permanece é o estado interno de alegria, de realização, de experiência plena. O ser humano se desenvolve e com

39 Aula regida pelo professor, na disciplina Ludopedagogia II, do Programa de Pós-Graduação da FACED/UFBA, 2º semestre de 2003, no dia 22 de janeiro de 2004.

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o desenvolvimento, os objetos de ludicidade vão se modificando, o que não quer dizer que um adulto não possa nem deva, um dia experimentar novamente brinquedos de sua infância e , isso, com ludicidade.(LUCKESI,2002, p.56).

Freinet (1977) ensina que, quando não se retira do trabalho o encanto, respeitando-o como

atividade livre e criadora, o mesmo desenvolve total e efetivamente as potencialidades humanas.

Influenciado pela Filosofia marxista, propõe o trabalho-jogo, ou seja, a partir da atividade

produtiva e criadora, é possível chegar à expressão livre e emancipada. Acredita que a verdadeira

fraternidade é a do trabalho, pois, mediante sua cooperação e autodisciplina, o homem ascende e

estabelece planos coletivos de realização. Percebemos a semelhança destas características da

ludicidade, debatidas há pouco.

Freinet (apud REDIM, 1998) propõe uma Pedagogia do Trabalho, pedagogia que deve

preocupar-se intensamente com a formação humana. O jogo e o trabalho, com a mesma carga de

emoção e prazer, devem neste ambiente pedagógico responder às necessidades orgânicas e

socioculturais do homem em formação, mas o que ocorre é que, assim como o trabalho na

sociedade moderna, a atividade lúdica foi desapropriada e substituída por situações que

ilusoriamente substituem nossas necessidades, nos tornando expectadores passivos e nos

roubando espaço para liberdade e criatividade.

Diante de tal realidade, julgamos necessário elucidar o lúdico em seu sentido

fundamental, como um dos elementos reais de vida na atividade humana, como feitiço necessário

para integrar os campos constituintes do ser humano total. A ludicidade, pode ser concebida,

inserida nas palavras de Freinet (1977), como uma das “técnicas de vida”, as quais são

simplesmente naturais e que restam ser adaptadas à complexidade do mundo contemporâneo.

Vimos até aqui que o homem se apropria do mundo envolvendo todos os campos de sua

individualidade: todos os sentidos, movimentos, pensamentos, sentimentos e ações.

Historicamente ele se desenvolveu por intermédio do trabalho e das atividades lúdicas,

constituindo-se como as principais bases da civilização. Como o trabalho, a ludicidade é também

uma forma de apropriação do mundo pelo homem, ocorrente em todos os órgãos e traços de sua

personalidade. Como dimensão fundamental do homem ativo e sensível, expressa-se em objetos

reais e sensíveis, exteriores ao homem, ou seja, signo; corroborando assim o trabalho,

duplamente, na produção da existência humana: natural e social.

Desta maneira, entendemos que a ludicidade participa ativamente da chegada sócio-

histórica do homem, estando presente nos três pressupostos necessários para existência humana

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descritos por Marx (1999): 1) Na produção dos meios de vida; 2) na sua sociabilidade e no seu

processo de comunicação e, por fim; 3) na formação das funções psicológicas superiores, que se

exterioriza pela linguagem.

Assim, o salto ontológico do lúdico do homem em relação aos animais reside no modo de

brincar, pois os brinquedos, como instrumentos significativos, registram a vida psíquica e

cultural como um testemunho. Deste modo, a representação da realidade, no jogo protagonizado,

mostra a cena da imaginação, da criatividade e da crítica frente à realidade, temporariamente

afastada daquele espaço-tempo privilegiado de liberdade e emancipação; ou seja, o caráter

coletivo do trabalho e do lúdico sugere um vínculo, concreto ou abstrato, e é sempre mediado por

outro homem, sensível e mediador de qualquer atividade. Este vínculo ou relação se nutre da

afetividade, como organizadora e reguladora da mais simples ação humana.

Desta interpretação, podemos extrair a noção de que a convivência, a sociabilidade e a

comunicação constituem processos constantes na vida humana, no entanto, não podem atingir a

harmonia, pelos próprios conflitos implicados entre o sujeito e o outro, na afirmação de suas

subjetividades. De outro lado, tais conflitos parecem ser sempre mediados pela evolução da

condição genética e não civilizada (Homo sapiens) para condição sócio-cultural e afetiva (“Homo

amans”) que carece da atenção do outro para ser e sentir-se vivo, para se opor e para entregar-se

a ele, impregnar-se do seu mundo.

Por conseguinte, é preciso cair no feitiço de trazer à tona o valor sociocultural do trabalho

e da ludicidade, que juntos se revelam como unificadores do homem/natureza. Nos próximos

capítulos, discutiremos como se forma e como trabalha o professor, como sujeito, autor de sua

história, que transcende as condições políticas, econômicas e técnicas que envolvem a sua

profissão. E, por meio da ludicidade e dos vínculos estabelecidos, redescobre a dialética das

emoções: a dor e o prazer de ser o que o é, como criador de sentidos e valores na satisfação de

suas necessidades e no cumprimento do seu papel social.

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3. DO OFÍCIO DE MESTRE À CONSCIÊNCIA DA PRÁXIS - Práxis pedagógica e formação de professores –

“Educar é ir dormir cravado de dúvidas, mas ter sensibilidade para distinguir o que muda do que é efêmero; o que é permanente do que é reacionário. É dormir assim e acordar renovado pelo trabalho interior, e poder devolver segurança, fé, confiança, formas éticas de comportamento, o verdadeiro sentido de independência e liberdade, e de deveres sociais consigo mesmo, com o próximo aprender a fazer parte do que lhe cabe no esforço comum. “ (TÁVOLA, 1986).

Fig.1 -Grupo Coração de professor: “Dança do Sol”. 2004

No capítulo anterior, discutimos a função ontológica do trabalho na constituição e

objetivação do ser sócio-histórico, como atividade coletiva e criativa, mediatizada pela uso de

instrumentos e pela linguagem. Vimos que esta atividade assume também uma função alienadora

na sociedade capitalista, como forma historicamente particular de exploração do homem pelo

homem. Naquele mesmo capítulo, a afetividade e a ludicidade, foram apresentadas como

dimensões constituintes do sujeito e fundamentais para o entendimento do processo da sua

subjetivação, especialmente no que se refere a sua identidade e estabelecimento de vínculos.

Neste capítulo – com âncora no trabalho, afetividade e ludicidade - buscamos conceituar

e contextualizar o trabalho docente no sistema da organização capitalista, ao mesmo tempo

situando-o como dimensão social da formação humana. Isto será feito pela análise dos seus

elementos, na qual procuramos compreender a relação que os professores estabelecem com sua

práxis40, com sua formação. Os dados que serão apresentados são originários de seus

40 A práxis é a atividade humana real e efetiva que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano segundo explica Vázquez (1968). Este conceito e seus elementos serão discutidos no decorrer deste capítulo.

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depoimentos, e estão relacionados com sua profissionalização e com os pressupostos

epistemológicos contidos nos documentos oficiais e teorias que estudam a formação docente.

Deste modo, os sujeitos da pesquisa estão presentes neste debate, ilustrando,

problematizando e esclarecendo as tecituras teóricas aqui confrontadas, representando o saber

cotidiano, as projeções e sentimentos sobre seu trabalho, sua identidade, sua formação. Assim, a

tônica deste capítulo é o exame do trabalho e da formação docentes e a identificação dos afetos e

percepções que emergem da práxis pedagógica.

Para tanto, dividimos o capítulo em três partes, de acordo com suas vertentes de análise. A

primeira será ancorada nas pesquisas sobre o trabalho e o saber docentes, dialogando com a

abordagem marxista, especialmente com as idéias de Vázquez (1968), que percebe a educação

como forma específica de práxis. Nesta seção, o professor é apresentado como sujeito do seu

próprio trabalho, entendendo por sujeito o ser humano social, histórico, prático e ativo que

emerge no seu modo de ser das relações sociais e das determinações históricas do seu tempo,

mas que, ao mesmo tempo, modifica o meio ambiente que o cerca a favor de suas necessidades

(LUCKESI, 1990).

A segunda vertente focaliza a percepção dos professores sobre seu papel profissional e

como ressignificam sua formação no contexto de mudanças educativas presentes na sociedade

contemporânea. Neste item, serão apresentados breve histórico do processo de profissionalização

e os pressupostos epistemológicos contidos nos documentos oficiais e teorias que estudam a

formação de professores.

Na terceira e última parte, discutimos a opinião e os sentimentos dos professores sobre

sua própria formação. Concluimos o capítulo destacando a importância do reconhecimento do

trabalho, da vez e da voz do docente nos projetos educacionais voltados para formação deste

profissional.

3.1 O PROFESSOR COMO SUJEITO DO SEU TRABALHO

Como escrevemos há pouco, a primeira discussão deste capítulo refere-se à análise do

trabalho docente como práxis e os saberes da docência como seus instrumentos constituintes.

Para Vázquez (1968), a práxis é uma atividade humana transformadora da natureza e da

sociedade e, como tal, é constituída dos seguintes elementos: agente, finalidade ou objetivo,

objeto ou matéria prima, instrumentos e produto, os quais serão esclarecidos a seguir.

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Para o autor, o ser humano é sempre o agente (sujeito) e produto (objeto) de sua ação, ou

seja, ao mesmo tempo que é determinado histórica e culturalmente, age também sobre a

realidade, transformando-a. A práxis é uma atividade humana, o trabalho propriamente dito,

consciente e determinada por necessidades que definem seus objetivos ou finalidades. O objeto

da práxis pode ser um corpo físico, ser vivo, vivência psíquica, grupo ou instituição; ele é a

matéria-prima na qual o sujeito ou agente exerce sua ação. Por fim, a práxis é uma ação

transformadora da natureza e para isso seu agente cria instrumentos ou recursos para realizá-la.

Sobre o assunto, Leontiev (1964, p. 80), ao conceituar o trabalho, assinala que este é

caracterizado por dois elementos interdependentes: o uso e o fabrico de instrumentos. Ele

registra a seguinte citação: “O trabalho, diz Engels, começa com a fabricação de instrumentos”.

O trabalho docente, como uma especificidade da práxis global, tem o professor como seu

agente e, como finalidade ou o objetivo, a ampliação da consciência 41da realidade. Os educandos

constituem-se como sua matéria-prima (o seu objeto), mas também sujeitos ativos na

aprendizagem, ao mesmo tempo em que são envolvidos por técnicas e saberes da docência,

instrumentos da práxis. E, nesta direção, o produto desta atividade é a consciência transformada

dos educandos.

Como, porém, os professores percebem seu trabalho? Será que se reconhecem como

sujeitos desta práxis? Será que têm a consciência dos saberes que produzem diante da

imprevisibilidade, da incerteza, do dinamismo do processo pedagógico? Quais são os sentimentos

que surgem nesta atividade? Esta seção se propõe a refletir sobre estas questões por meio do

grupo de professores por nós pesquisados e pelos autores que se preocupam com o estudo do

tema.

Os docentes entrevistados, de forma geral, percebem o trabalho como fundamental,

desafiador e com o papel de ampliar a visão de mundo. Os problemas enfrentados no cotidiano

são resolvidos com criatividade e, apesar de muitas vezes sentirem tristeza, insegurança e

desgaste, sentem-se, ao final, realizados e felizes ao verem o retorno dos alunos.

Profª Margarete: Acho que é um trabalho fundamental, eu acredito na educação, acredito mesmo. E acho que estou hoje aqui por causa disto. Sem cair na visão redentora de educação de que eu vou salvar as pessoas, de que eu vou levar o

41 Neste momento, adotamos a definição de Leontiev (1964, p. 94) :“A consciência humana é o reflexo da realidade refratada através do prisma das significações e dos conceitos limguísticos elaborados socialmente.”

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conhecimento, sem isso. Sem a visão mecânica mesmo de que eu vou iluminar os alunos, levá-los ao conhecimento. Eu acho que posso partilhar esta compreensão histórica com os alunos. O trabalho docente tem a função de levar o outro a ampliar sua visão de mundo.

Podemos concordar com a visão de que, o pensamento da professora, representativo de

todo o grupo, afirma, com outras palavras, que o trabalho docente constrói-se e transforma-se no

cotidiano da vida social, é historicamente situado e sua finalidade na educação é desenvolver a

consciência do educando, pois sua ação sobre a realidade é percebê-la e negá-la 42 , pela via da

compreensão. Nas palavras da professora, tem a função de “levar o outro a ampliar sua visão de

mundo”.

Esta visão, de fato, não se enquadra na perspectiva iluminista 43de educação, como

argumenta a professora Margarete, mas se aproxima da concepção marxista de atividade humana

defendida por Vázquez (1968, p. 117), quando sustenta que a práxis é “uma atividade humana

transformadora da natureza e da sociedade”. De acordo com o autor, a práxis é uma prática

social autônoma. Ela nasce do trabalho e não se limita apenas a reproduzir a vida, mas também

em criar condições transformadoras e construtivas para ela. Dotado de consciência, o homem

toma a realidade como objeto de seu conhecimento, recriando suas necessidades e pensando

sobre a própria ação. Nesta atividade, o agente da práxis, o professor, é um ser teórico - prático,

elabora um saber e atua sobre ele, não é apenas um executor, mas construtor de seus instrumentos

e sua metodologia.

No seu estudo sobre o tema, Azzi (2002) sustenta que o trabalho docente é uma práxis na

qual teoria e prática se determinam e, como atividade, apresenta-se como a objetivação do

professor, como agente desta ação. Este processo de objetivação passa por dois níveis de práxis,

que são interdependentes e se alternam. O primeiro nível é a objetivação em si, representando as

adaptações ou interiorizações do mundo; é a práxis repetitiva e mimética que se caracteriza pelo

pragmatismo e pela imitação detendo-se na transmissão de conteúdos. Outro nível de práxis é a

objetivação para si, é a práxis criativa e transformadora, com grau maior de consciência.

Vale registrar esta especificidade do trabalho docente na perspectiva da Pedagogia

Crítica, que se opõe à posição dos professores como meros “operadores de ensino” e usa o termo

42 Refletir e refratar a realidade (BAKTHIN,1995, p. 41). 43 Cipriano Luckesi (2003) afirma que ao exacerbar a razão lógica, o Iluminismo trouxe o “engessamento epistemológico”, ou seja, o uso da razão lógica como exclusivo do conhecimento, desconsiderando outros fatores humanos como recursos possíveis no processo de ensino- aprendizagem.

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“intelectual” para designar a atividade do professor (GIROUX, 1997). Nesta visão, os professores

são profissionais reflexivos e não puramente instrumentais ou técnicos. Sustenta a posição de

Gramsci (1978) que considera que toda ação humana consciente é marcada por uma carga de

reflexão, por uma intencionalidade, por um pensamento, por um sentido.

Vasconcelos (2003, p. 51) nos ajuda a esclarecer este ponto de vista, ao assinalar que o

trabalho docente é intelectual, não só pelas peculiaridades da atividade humana, mas por exercer

um papel de formar gerações, e enfatiza que o professor trabalha com a produção de sentidos:

“Na medida em que ajuda o aluno a ter acesso à cultura, refletir imaginar, criar , atribuir, criticar,

desenvolver a consciência, o professor trabalha com a produção de sentido.”

A esse respeito, os professores por nós entrevistados, em sua maioria, ao serem indagados

sobre o que buscavam ensinar aos seus alunos, informaram que procuram mesclar, mediante

contextualizações e usando a criatividade, a práxis mimética e a práxis transformadora. Foi

possível observar o esforço destes professores para mostrar a importância da disciplina que

lecionam para vida de seus educandos, como podemos evidenciar na fala a seguir, da professora

Solange, coletada em entrevista:

Prof. ª Solange Eles estão acostumados ao professor chegar e dar a sua disciplina. Assim, conteúdos. E eu assim, tenho que mesclar. Tenho que fazer alguma coisa. Por exemplo, eu vou dar determinado assunto: frutas, na 5ª série. Aí, eu consigo fazer uma ponte com a pirâmide alimentar, sabe? E faço com que eles construam uma pirâmide alimentar. Como eles comem e como eles devem comer. Então, eu, na realidade, exerço a minha criatividade. Porque eu insiro nas aulas outros assuntos que são pertinentes e importantes, que eu vejo que preciso tratar, que precisam ser tratados. Essa abordagem que se diz interdisciplinar, nesse sentido.

Percebemos a relação de trabalho desta professora como uma práxis não somente

adaptativa da realidade da escola, mas também transformadora, pois não se acostuma a somente

passar os conteúdos, mas recria-los, enriquecendo a interação que mantém com seus educandos,

problematizando o tema e buscando aprofundar a relação com seus colegas de trabalho.

Desse modo, o ensino, feito finalidade ou objetivo da práxis pedagógica, é um trabalho

interativo, dependente da relação entre as pessoas envolvidas no processo. Parafraseando Tardif

(2003, p.118), dizemos que ensinar é uma atividade humana que desencadeia um programa de

interações com um grupo de alunos, a fim de atingir determinados objetivos educativos relativos

à aprendizagem de conhecimentos e socialização.

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A visão de ensino ora destacada não é a única forma de pensar e executar o ensino como

objetivo da práxis pedagógica. Na perspectiva progressista de Paulo Freire (2001, p.52), um dos

saberes necessários à formação docente é “saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas

criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção.” Assim, o professor, além

de precisar dos conhecimentos dos conteúdos, não pode se reduzir a sua pura transmissão;

implica um compromisso ético de superá-los, ampliando a consciência da realidade, sem

arrogância e com respeito à experiência do educando.

A professora Mary revela como faz para ampliar a consciência de mundo dos seus

alunos mediante conteúdos escolares: Aperfeiçoar uma segunda língua... eu procuro mostrar para eles que de qualquer maneira eles tem que mostrar o pensamento lógico deles, não aprender por aprender e sem associar o que eles estão aprendendo à vida dele. E isso com todas as disciplinas, eu procuro usar isso. Então, eu associo, se eu dou um texto para eles eu dou sempre associando a vida deles, ou a outra disciplina chamando a atenção, passar serviços, misturando um pouco cada disciplina, mostrando a importância de cada uma, em termos, a notarem que não é só Inglês, mas como Física está sendo importante,como Geografia está sendo importante para gente.

Ela leciona Inglês e, pelo seu discurso, preocupa-se com o reconhecimento da importância

desta disciplina para a vida dos educandos. Desta forma, não se detém na simples transmissão dos

conteúdos, mas preocupa-se em ressignificá-los, relacionando-os com outras disciplinas e com a

vida cotidiana dos estudantes.

Sendo o professor o agente da práxis pedagógica, o seu objetivo ou sua finalidade é a

transformação da consciência do aluno por meio do ensino. Ele é o próprio sujeito de seu

trabalho, que tem como instrumento básico os conhecimentos a serem ensinados. Como tal, ele é

o gestor da sua disciplina, que é adaptada e transformada em meio à relação que se estabelece

entre o professor e ela e entre o professor e os seus alunos.

Destacamos, neste prisma, a importância do vínculo44 afetivo do professor com a

disciplina que leciona, não só no domínio do seu conteúdo, mas também na identificação que

mantém com ela. Esta identificação é necessária para seu testemunho ético, para diminuir a

distância entre a teoria e a prática, na busca de coerência. Nesta pesquisa, os professores

mostraram ter uma grande afinidade com a disciplina que lecionam, revelando insatisfação

apenas nas situações em que são obrigados a lecionar disciplinas não relacionadas à sua área de

formação.

44 Como no capítulo anterior, vínculo neste estudo sugere uma ligação ou união do sujeito com o objeto.

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Nas entrevistas, observamos que , uma vez não identificado com a disciplina, o professor

tende a permanecer no pragmatismo, ou seja, tende a cristalizar-se na práxis mimética. A

professora Carla porém, com formação em Administração, mas com especialização em

Matemática, ensinava, além de Matemática, as disciplinas Física e Química, pela carência de

professor na área na instituição onde trabalhava, fato comum no ensino médio da rede pública. A

professora contou duas formas que buscava para resolver seu impasse com as disciplinas. A

primeira é o vínculo estabelecido com a turma, ou turmas, que a leva a buscar soluções para

lecionar as disciplinas Física e Química e a segunda são as opções criativas que encontra para

tornar os conteúdos mais concretos, tangíveis, para os alunos. Declarou, posteriormente, que

quando começa a pensar, “dá para fazer alguma coisa”.

Azzi (2002, p. 48) entende que a heterogeneidade, a imprevisibilidade e o dinamismo do

processo pedagógico fazem com que o professor se depare constantemente com situações

complexas para as quais deve encontrar respostas. Estas podem ser de caráter mimético ou

transformador - vai depender do conhecimento do professor sobre seu trabalho, da sua

capacidade de leitura da realidade e do contexto onde o processo de ensino se realiza. A autora

assinala que “a compreensão do próprio trabalho demanda do professor um conhecimento que

possibilite a leitura da realidade e, também, uma coletivização da sua prática.”.

Observa-se neste sentido que, mantendo as características básicas de toda atividade

humana, o ensino exige a presença de instrumentos como saberes e técnicas, para fundamentar-se

e se realizar. Este saber, oriundo da práxis, é o instrumento básico de trabalho do professor e

abrange os saberes pedagógicos e escolar e os recursos utilizados no processo pedagógico.

Lembramos Freire (2001), em sua obra Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática

educativa, para quem não há uma hierarquia entre estes saberes, afirmando que todos são

importantes para a avaliação crítica da prática e da formação docente.

A professora Flor, a seguir, nos revela em entrevista como tenta conciliar estes saberes e

técnicas, no seu planejamento: [...] Eu busco, dentro do conteúdo da minha disciplina fazer, no início do ano, uma sondagem sobre os temas que eles gostariam de trabalhar, de curiosidades... Sempre a gente faz uma feira de Ciências e a gente aproveita estes temas escolhidos e são trabalhados. Eu faço o plano no dia a dia, a partir das necessidades deles, dentro do programa. [...]. Quando, às vezes, não dá tempo numa unidade, trabalha-se na próxima. Então a gente vai fazendo esta divisão durante o ano. A gente pega este apanhado de conteúdo, às vezes dá para encaixar e noutras não.

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Essa docente pauta seu planejamento nas necessidades e desejos dos seus educandos,

mesmo dentro dos imperativos conteudistas estabelecidos pelo sistema de ensino. Sendo assim, o

trabalho docente exige-lhe improvisação e, ao mesmo tempo, uma grande compreensão do seu

processo, um pensar constante de sua ação e daí um ajuste contínuo dos seus objetivos e técnicas

à realidade em que se encontra.

Visto de outra perspectiva, porém, é necessário assinalar o perigo da excessiva

“contextualização”, levando o professor a perder as referências e a cair no espontaneísmo,

privando os estudantes de acesso aos conhecimentos básicos e universais necessários a sua

formação, como analisa Amaral (2002):

A pedagogia de projetos e a proposta de interdisciplinaridade levaram os professores à falsa concepção de que trabalhar conteúdos é um mal: não se pode ser conteudista ( e a palavra vem carregada de negatividade) . O “mito da oposição entre transmissão do conhecimento” e “ construção do conhecimento” tomou conta do imaginário dos professores, levando-os ao medo de ensinar (Amaral,2000). Apoiado na falácia de que ninguém ensina nada a ninguém e que cada um deve construir o seu próprio conhecimento, o professor não quer (ou não sabe?) mais ensinar.(ibid, p. 141).

A autora nos alerta para importância do docente ficar atento à utilização adequada dos

seus saberes e recursos, instrumentos básicos de sua práxis no processo de ensino- aprendizagem,

a fim de não privilegiar nem hierarquizar nenhum deles em detrimento do ensino dos conteúdos

científicos, finalidade básica da práxis pedagógica e necessários para transformação da

consciência dos estudantes.

Nesta mesma direção, o depoimento a seguir nos mostra como a professora expressa seus

saberes e as estratégias que encontra para enfrentar o cotidiano de sua profissão, partindo de sua

história, de sua maneira de ser e de ensinar:

Prof.ª Rosa: Eu tento ficar bastante alerta, a gente aprende, aprende com o tempo, com os outros, com nós próprios e com os outros também, né? Então eu fui aluna nesta escola pública [...] e eu acreditei. Teve um momento que eu queria desistir, eu achava que eu era burra, que eu não dava conta , eu achava que eu era louca porque eu não concordava muito com que minha professora falava, mas eu tinha que repetir o que ela falava se não, não tirava nota. E eu era, uma pessoa de questionar muito, e eu era chata mesmo. Eu ouvia algumas professoras falarem, e eu fiquei pensando se eu for uma professora um dia, não quero ser assim. E eu venho trabalhando isso em mim com muito cuidado para não repetir sabe? De estar achando que o aluno é a unidade menor na escola. Então eu procuro mostrar para o aluno, trabalhar o sentimento de competência dele, trabalhar a questão da identidade dele, mostrar para ele que o mundo, pode estar desorganizado, a gente não pode mudar o mundo, mas eu posso me mudar, mudar o mundo é uma pretensão, mas, a mim, eu posso.[...].

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Por ter tido uma experiência autoritária de educação escolar e por ter a esta resistido,

mantendo-se autêntica no seu pensamento na formação de sua identidade, a professora é hoje

comprometida com uma educação mais voltada para o respeito e o reconhecimento das

potencialidades do educando, sem arrogância, e encorajando seus alunos a descobrirem suas

competências e capacidades para mudanças.

A partir deste depoimento constatamos que o saber originário da práxis é o saber docente

propriamente dito; o qual está relacionado com a forma como o professor percebe seu papel na

sociedade e internaliza experiências e conhecimentos ao longo de sua história pessoal e

profissional, reinterpretando-os de acordo com as interações que mantém no seu meio social.

Desta forma, tanto os conteúdos como a metodologia são problematizados e

correlacionados com os temas geradores (FREIRE, 1985), levando em consideração a realidade

socioeconômica e o Nível de Desenvolvimento Real e Potencial dos educandos (Vygotsky,

1988). Parece-nos ser este o saber-fazer do professor no cotidiano de sua práxis pedagógica.

Tardif (2003) esclarece que o saber docente é uma construção social e por isso não pode ser

separado de outras dimensões do ensino. É sempre partilhado com os outros (colegas, alunos

professores, pais e outros), carregando sempre as marcas do ser humano, pois nunca define

sozinho o próprio saber. Além disso, sua posse e utilização sempre são garantidas e legitimadas

pelas instituições onde está enraizado. Por fim, é um saber social porque depende da

personalidade e da experiência de vida pessoal e profissional do professor, pois está sujeito aos

processos identitários concebidos em sua trajetória.

Arroyo (2001, p.19), ao pôr em relevo o “ofício de mestre”, sustenta que os professores

elaboram, em meio aos embates, um saber próprio, uma identidade, e conclui que o professor, ao

educar, incorpora as marcas de um ofício e de uma arte, aprendida no diálogo de gerações, de

saberes aprendidos pela espécie humana ao longo de sua formação.

Por um lado, resta clara a importância da subjetividade e da intersubjetividade do

professor no seu processo de objetivação, ou seja, no próprio trabalho, atividade que implica na

construção e re construção de saberes humanos, permeados de sentidos e significados, com laços

e nós, idéias, sonhos e valores. Partindo dessa análise compreende-se que o professor é o sujeito

de seu trabalho, controla e cria o seu processo. E, desse modo, a sua atividade torna-se a

verdadeira práxis, como acentua Vázquez (1968): ação autônoma, refletida, conhecida e

reconhecida por seu agente.

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Por outro lado, no contexto da educação atual, nem sempre o professor se reconhece

como autor de sua obra, freqüentemente esta autonomia não se concretiza e seu trabalho, nem

toda vez é valorizado. E, como adverte Arroyo (2001), o saber-fazer de mestre teve alterações

profundas com as tentativas de incorporação de políticas e reformas educacionais e gestões

tecnocráticas e pós-modernas no sistema de ensino que afetaram a organização do trabalho

docente.

Trataremos deste ponto no item a seguir, dirigindo a tônica da discussão para a

profissionalização dos professores na história e seus reflexos no seu saber-fazer.

3.2 SER OU NÃO SER? OS PROFESSORES RESPONDEM....

Como vimos, a atividade docente, como práxis, não se restringe ao desempenho de

habilidades técnicas, mas se apresenta como a elaboração de um saber socialmente

compartilhado, tendo a finalidade de ampliar a consciência e humanizar os educandos no seu

desenvolvimento como seres sócio-históricos. Entendemos assim porque a verdadeira práxis é

ação autônoma, refletida, conhecida e reconhecida pelo seu agente.

Estudos mostram que o trabalho docente é afetado pelo ”fetichismo tecnológico”45, que,

segundo Giroux (2000), consiste numa “racionalidade tecnocrática” que, debilita a práxis

pedagógica, reduzindo-a a metodologias que não priorizam o pensamento crítico, sendo os

estudantes levados a querer saber “como fazer”, como “funciona” e não interpretando sua ação.

Supõe desta forma que todos podem aprender com a mesma técnica, negando-lhes sua

característica sócio-histórica.

Tal racionalidade não reconhece o papel da práxis educativa como um conjunto concreto

de práticas na qual são formadas identidades, de onde emergem formas diferentes de

conhecimento, de experiências e de subjetividades. E, neste veio tecnocrático, o professor, por

sua vez, é visto basicamente como um receptor passivo do conhecimento científico e participa

muito pouco da determinação do conteúdo e da direção do seu programa de ensino.

(GIROUX,1997, p.42).

Arroyo (2000, p. 19), ao estudar o imaginário social do professor, na sociedade

tecnocrática, observa que este é visto como “apêndice”, mero “recurso técnico”, pois a gestão

tecnocrática nega a centralidade do sujeito no trabalho em troca das técnicas, conteúdos e

45 Expressão empregada por Henry Giroux ( 2000. p.69)

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métodos. Assinala que o “ofício de mestre”, assim chamado por ele, é uma imagem construída

social, histórica, cultural e politicamente e, por isto, está amarrada a interesses que extrapolam a

escola.

O autor questiona até que ponto a atividade docente é um “ofício descartável”, destacando

a especificidade deste ofício. Supõe o domínio de um saber específico e de uma identidade

profissional no campo da ação. Afirmamos que deste saber específico e de sua qualificação

dependem a escola e outros espaços educativos.

Para Arroyo (2000), ter esse ofício significa orgulho, satisfação. E ter afirmação e defesa

de uma identidade individual e coletiva, por isso, remete-nos à memória, aos artífices, a uma ação

qualificada e profissional. Os professores são mestres de um ofício que só eles sabem fazer:

“porque aprenderam seus segredos, seus saberes” e uma “resistente cultura” contra a tecnocracia

e ao lemas pragmáticos utilitários impostos pela política educacional.

Convergindo para este pensamento, Nóvoa (1995, p. 15-16 ) sublinha que as mudanças e

inovações pedagógicas são inteiramente dependentes do processo identitário do professor. O

autor entende este processo como um espaço dinâmico de lutas e conflitos, de uma maneira de

ser e estar na profissão e se alimenta do tempo para assimilar e acomodar as transformações.

Na mesma direção, Pimenta (2002, p. 15-19) defende a posição de que o trabalho do

professor cada vez mais se torne necessário para a sociedade na constituição da cidadania, na

superação das desigualdades sociais e do fracasso escolar. Conceitua identidade com uma

construção do sujeito historicamente situado, não sendo exclusivamente individual nem

exclusivamente social. E, como tal, a profissão professor emerge de um contexto histórico como

resultado das demandas sociais que, dinamicamente, vão se transformando e adquirindo novas

características, ressignificando os papéis, reafirmando e revisando hábitos, prática e teorias.

Como é também individual, a identidade profissional é formada pelo modo de ser de cada

professor , de sentir, de situar-se e relacionar-se no mundo e perceber a realidade.

No seu estudo sobre a construção da identidade do professor, divide os saberes da

docência em três: saber da experiência, do conhecimento e pedagógicos. Nesta tônica, o saber

da experiência constitui-se em dois níveis. O primeiro é pessoal, é o saber sobre ser professor

por meio da história de vida, da experiência acumulada. O segundo nível é profissional,

produzido no cotidiano de sua práxis docente, num processo permanente de reflexão sobre sua

prática em interação com os alunos, colegas e conteúdos teóricos.

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Já o saber sobre o conhecimento não significa apenas informação teórica, mas o

significado que tais conhecimentos têm para si próprio e para a sociedade. Verificamos este fato

na primeira parte deste capítulo, no discurso de alguns professores, mostrando a preocupação

para ensinar os conhecimentos de forma crítica e contextualizada, demonstrando o seu

compromisso em desenvolver a cidadania e o senso crítico de seus educandos.

O saber pedagógico, no processo identitário do professor, é formado, segundo a autora,

no confronto entre os conhecimentos da Pedagogia e as estratégias utilizadas pelos professores na

sua práxis.

Os autores, há pouco citados, reconhecem que os saberes são constitutivos da identidade

profissional do professor, por sua vez, interdependente do seu eu pessoal. Assim, valorizam o

profissional como sujeito do seu próprio trabalho, como agente importante para transformação

social. Portanto, a tônica da vertente anterior foi o discurso dos professores acerca da sua

percepção e sentimentos sobre o trabalho e a práxis pedagógica, em confronto com outros saberes

elaborados em torno do tema. No item a seguir, serão focados a percepção e sentimentos dos

professores sobre o seu papel profissional e como historicamente foi ressignificado no contexto

de mudanças educativas presentes na sociedade contemporânea.

3.2.1 “ Ser professor é ser tanta coisa!”: o professor como profissional.

Buscamos nesta pesquisa apresentar as principais discussões acerca do vínculo que o

professor desenvolve com sua atividade, tendo o trabalho como categoria principal. Para

entendermos melhor este vínculo, trazemos para este item os depoimentos dos professores,

colhidos nas entrevistas e nas reuniões do grupo, de como se percebem como profissionais, o que

dizem sobre si.

Não pretendemos, no entanto, defender nenhum tipo “ ideal de educador”, concordando

com Candau (2004, p.69), na idéia de que: “A ação do educador deverá, ao contrário, se revelar

como resposta às diferentes necessidades colocadas pela realidade educacional e social.”

De acordo com os depoimentos colhidos e oficinas realizadas, no grupo de professores

pesquisados, prevalece a idéia de que, para ser professor, é preciso gostar de ensinar, ter

esperança na superação das dificuldades enfrentadas no sistema educacional e ter “muita

paciência”. Esta foi uma palavra muito enfatizada pelo grupo: “A paciência é fundamental para

gente entender os altos e baixos de todos, inclusive o nosso.” (Profª Rosa).

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No primeiro encontro 46 com o grupo, realizamos uma brincadeira para composição do

crachá e, nesta, cada um teria que escrever no seu crachá a qualidade de professor que se mostra

mais presente, mais forte no cotidiano de cada um. Estas qualidades foram sempre trazidas, de

uma forma ou de outra, em todas as oficinas onde trabalhamos, são elas: paciência, organização,

amor, sinceridade, capacidade de falar/ouvir, dinamismo, amigo/companheiro, determinação,

carinho, atenção, compreensão, persistência/perseverança, flexibilidade, afetividade/meiguice,

otimismo.

Entendemos que estas qualidades se revelam fundamentais para um trabalho que envolve

permanentemente a interação com pessoas e que tem como finalidade a ampliação da consciência

do ser humano. Assim, a análise da atividade pedagógica não pode negar as subjetividades

envolvidas no seu processo e o afeto dedicado pelo seu agente.

O depoimento abaixo busca ilustrar esta afirmação:

Prof.ª Luzia Para mim, ser professora é ser tanta coisa; eu acho que eu sou tanta coisa, ao mesmo tempo. Eu acho que ser professor não é só ser professor. Primeiro, é você ser educador, e para você ser educador, você tem que ser uma pessoa sensível, você tem que ter conhecimento do trabalho que você está realizando, você também tem que gostar do que você está realizando; você tem que gostar desse trabalho, você tem que ser, na verdade, uma pessoa conciliadora. Você tem que saber conciliar as coisas, você tem que saber ouvir – essa coisa de você ouvir o outro - em alguns momentos. Estar no lugar do outro, tem que estar no lugar do aprendiz.

Como podemos ver, esta professora traz como importante o tema da convivência,

retomado, hoje, como um dos pilares norteadores da Educação para o século XXI, no Relatório

da Comissão Internacional apresentado para a UNESCO (DELOURS, 2001. p. 9), que é

aprender a conviver. O relatório exige do professor nova postura, não somente no campo

cognitivo e de capacitação profissional, como o aprender a aprender e o aprender a fazer, mas

também uma atuação intra e interpessoal, como o aprender a ser e aprender a conviver.

O documento, ao se referir à “qualidade dos professores”, sustenta que a eficácia deles

depende do desenvolvimento de competências pedagógicas e de qualidades humanas como

autoridade, empatia, paciência e humildade (ibid, p. 159); predicados que, como estamos

observando, estão presentes no discurso dos professores.

Sobre este ponto, notamos, nas discussões realizadas no grupo e nas entrevistas, de modo

geral, que os professores se percebem como profissionais de grande responsabilidade e com

46 Vede descrição APÊNDICE F.

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importante missão a cumprir na sociedade. Observamos que o mais preocupante no grupo é que o

professor atual parece assumir diferentes papéis ao mesmo tempo, mas nem sempre bem

delineados. É o que podemos notar a seguir, no trecho da carta de um professor, que não quis se

identificar, dirigida ao governador do Estado, escrita após uma vivência em uma das reuniões do

grupo: Exº Srº Governador, [...] Através de uma simples observação podemos perceber o valor e as responsabilidades de quem lida com educação. Ser um profissional de educação por mais experiência que se tenha, sempre há um no caminho a percorrer, dificuldades a serem superadas e medos a serem eliminados. O professor não é apenas professor a partir do momento em que forma-se e passa em concurso público ele é amigo, professor, professor, psicólogo, irmão e até muitas vezes visto como inimigo[...].

Como podemos entender este “medo” e estes “ inimigos” do professor?

Libâneo (2001), ao analisar a repercussão das exigências educacionais contemporâneas

sobre a formação e a atuação docente, salienta que estes produzem demandas para a inserção

deste profissional no mercado produtivo, interferindo diretamente no seu gesto de “cuidar”, tais

como: capacidades cognitivas e operativas, pensamento autônomo, crítico e reflexivo,

capacitação tecnológica para se adaptar rapidamente aos novos papéis e às inovadoras

tecnologias da comunicação e da informação. Além disso, são exigidas habilidades para trabalhar

no coletivo e, ao mesmo tempo, criatividade e senso de ética para conviver com as diversidades

socioculturais.

Por outro lado, observa-se a impotência das escolas para atendimento das demandas

atuais, ao serem desafiadas a reestruturar suas funções, seu modo de operar e de conceber o

Homem e a Sociedade. Diante de tais desafios e exigências, o professor sente-se conduzido a

reformular sua função e, freqüentemente, entra em crise de identidade e esgotamento de seu

papel. Perplexo diante das aceleradas mudanças no desenvolvimento social e tecnológico,

enfrenta incertezas acerca dos novos sistemas de ensino e avanços no conhecimento, além da

gradativa perda de controle no seu processo de trabalho e, acima de tudo, o desgaste de sua

imagem frente à Sociedade.

Arroyo (2001), ao analisar a identificação profissional, anota que tudo o que se mistura

com a condição de ser professor passa a ser “um modo de vida”, “de dever ser” que tensiona

todas as dimensões. Acrescenta que suportar estas tensões requer muito “tesão pelo magistério”,

ou seja, quando os professores não resistem e se esgotam, se destroem como seres humanos, tanto

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do ponto de vista físico como psicológico. Esta tensão pode ser observada no depoimento da

professora Sandra: Para mim ser professor é uma questão profunda! Porque extrapola a função de dar aula, extrapola, ele passa por um entendimento realmente de quem é você, por uma questão de ser, ser humano, querer crescer, e acreditar que todos que forem, querem também ir mais adiante, não sei para onde, né?[...]Para mim é esta questão ser professor. Observamos que, ao mesmo tempo que o discurso dos professores sobre seu papel se

apresenta muito próximo do discurso oficial do novo papel docente e está envolvido pelos

próprios conteúdos subjetivos, também apresenta característica das pedagogias progressistas47,

ao destacar a importância da competência técnica e política do professor, como inseparáveis. Isto

pode ser observado no conceito de compromisso político, apresentando depoimentos a seguir:

Prof.ª Luiza: E tem a história de que é diferente, Professor de Educador. O Professor chega e dá o conteúdo dele, ele não está preocupado com nada, o Educador não. Ele tem um olhar crítico, ele não deve ser simplesmente um mero repassador de conteúdos e questões. Ele de fato tem que estar envolvido em toda trama educacional, que pra mim, esta trama, ele tem um tripé, você tem que ter , na verdade, você tem que ser político,pra mim educação tem muito haver com política. É como você se posiciona politicamente, mesmo...; é aquela coisa que eu falei do ser sensível, se pôr no lugar do outro, a questão esta mesmo é... Você politicamente está do lado de quem? O que você quer? Esse trabalho que você realiza é para quê mesmo? Para mim, o trabalho educacional é o lado político. [...].

No primeiro plano de seu discurso, a professora levanta a polêmica entre o que é

educador e professor, muito discutida por Freire (1985, 2001) e Alves (1983), levando-nos a

refletir sobre a representação profissional do docente na história da sociedade.

Sobre este tema, Costa (1995), no seu estudo sobre trabalho docente e profissionalismo,

assinala que, no período pós-64, houve uma estratégia política, por parte dos intelectuais

progressistas, para utilizar o termo “educador/a” e referir-se ao conjunto de trabalhadores em

educação incluindo professores, coordenadores e supervisores. A autora explica que tal

estratégia tentou a princípio eliminar a distância de quem executa, planeja, decide e fiscaliza,

fruto do tecnicismo. Em segundo lugar, tentou conquistar os especialistas para os movimentos

políticos da categoria; mas discorre com argumentos de que tal tentativa não foi muito frutífera e

que, contraditoriamente, criou uma bipolaridade educador e professor , que serviu ao poder,

contribuindo para inculpar os “professores” pela crise de escolarização no País.

47 “ ... tendências que , partindo de uma análise crítica das realidades sociais, sustentam implicitamente as finalidades sócio-políticas da educação.” (LIBÂNEO, 1984, p. 32)

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A autora esclarece a importância das metáforas utilizadas em torno desta bipolaridade

para mobilização da consciência do profissional, pois estas reconhecem a existência de um

educador adormecido em cada professor. Reitera, porém, a sua posição de que precisamos ficar

atentos aos efeitos e usos dessa retórica na sociedade.

Outro ponto polêmico que a professora Luiza traz para discussão se refere ao trabalho

docente como ato político, comprometido com a transformação social. A depender do lado de

quem fica, para quem , para que e o que ensina, o professor anuncia sua posição política frente à

sua atividade. Este pensamento da professora converge com aos posicionamentos de Freire

(2001), Mello (1982) e Saviani (2003), quando sustentam a idéia de que, independente de que

tenha consciência ou não do significado político da ação educativa, o trabalho docente tem

sempre um sentido político. Para esses autores, a consciência deste sentido político precisa ser

desenvolvida pelo professor, para que ele possa trabalhar os conteúdos de forma crítica e

transformadora, ou seja, técnica e politicamente competente.

A professora Rosa, como sua colega Luzia, amplia o papel do professor além da sala de

aula e do ensino de conteúdos, chamando a atenção para outro compromisso da docência: o

crescimento do outro e de si próprio, destacando o caráter formador do trabalho docente :

Prof.ª Rosa O compromisso, é pelo compromisso maior, de ver no outro a possibilidade, a potencialidade para crescer, para conquistar o espaço, ajudá-lo nesta caminhada, e também, é um processo de autoconhecimento, cada dia de aula, é um aprendizado, não um ensinamento, a partir do momento que você reconhece no outro a igualdade enquanto ser humano, enquanto direitos, você está sempre atento, aprendendo, ou transformando, e assim, para mim esta questão de ensinar, ela é muito simplória, acho que é uma questão[...] de forma realmente de aprender, de intermediar aquele outro ser, que esta do outro lado por uma questão cronológica, uma orientação temporária, mas não hierarquica, eu acho que não existe hierarquia[...] eu acho que cabe a ordem de você ter um tempo à frente , e você poder trazer o que foi conquistado neste tempo, para que talvez o outro possa lançar mão também deste conhecimento, para facilitar os seus caminhos, os seus processos.

Além das teorias ou saberes presentes nestas declarações acerca do compromisso docente,

é possível perceber um envolvimento afetivo, algo que traz grande satisfação em ser professor,

discorrendo por uma “paixão de ensinar” pensamento próximo do que Lélis (2003, p. 86)

observa: “ Por compromisso entendo o envolvimento, o profundo engajamento com o aluno no

plano intelectual e afetivo, o qual deve ser perpassado por uma postura de “paixão”, de “prazer”

pelo trabalho”

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Esta afetividade com o aluno é também trazida pelos professores como uma das funções

do docente ligada à ética no desempenho profissional, destacando que o professor deve ser:

responsável, justo, assíduo, comprometido e afetivo, como registra o professor Milton: Professor para mim é ser responsável, além de ser responsável, é ser justo, é ser assíduo, é ser comprometido, é ser afetivo. Eu sou afetivo com meus alunos e sou justo, eu acho que a justiça é fundamental. Porque a gente não pode ficar nesse engodo. Eu passei no concurso da Prefeitura, não quero assumir, porque eu não mereço trabalhar 60 horas numa escola, eu não mereço, me martirizar 60 horas não. Eu prefiro ganhar menos, mas viver mais e fazer aquilo que eu faço, dentro do que faço, com um pouco de qualidade.

Esse docente destaca o compromisso ético de sua profissão como ato de justiça e

afetividade. Para manter-se responsável, nega sobrecarregar-se de trabalho, preferindo fazê-lo de

forma mais qualitativa e justa para ele e para os educandos. Desta forma, se vê mais

comprometido e mais próximo afetivamente deles.

Devemos destacar neste discurso a afirmação de Freire (2001) de que “querer bem ao

educando” é uma forma do professor selar o seu compromisso com ele. A seriedade docente e a

afetividade são inseparáveis, desde que a segunda não interfira no cumprimento ético do

professor no exercício de sua autoridade. O autor acrescenta: “Uma das formas de luta contra o

desrespeito dos poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa recusa a transformar a

atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa rejeição em entendê-la e a exercê-la como

prática afetiva de tios e tias” (ibid, p. 75). A discussão da educação como ato amoroso será

retomada nos próximos capítulos quando abordaremos o tema da afetividade e práxis pedagógica.

Notamos ainda uma dicotomia no conceito de ser professor, fruto das contradições entre

discursos oficiais do sistema educativo, do saber escolar do docente e do que ele realmente

acredita. Como exemplo, destacamos a fala da professora Carla que, inicialmente conceitua o

professor como técnico, executor de planejamento, mas que ao mesmo tempo pode repensar

sobre seu próprio papel:

Prof.ª Carla: Na verdade eu acho que o trabalho docente, começa a partir do planejamento, planejar uma aula, uma atividade, a partir deste planejamento, acho que você possa a ponderar, ou pensar sobre o que você quer realmente, realizar, e ai acham que a última coisa, é a aplicação na sala de aula vamos dizer assim, né? Ou então, pode ser de outra forma, você pode planejar, ir para sala de aula, e a partir da ir, você pode pensar, em revolver , o planejamento, né? Então, acho que tem esses casos, você planejar, ponderar, e depois executar.

Cabe aqui discutirmos o fato de que o professor é vitimado por um processo de

“adjetivação” que fez perder a representação exata do que ele é. Assim diz Amaral (2002) ao

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analisar os discursos sobre profissionalização e formação docentes da Pedagogia brasileira atual e

seus pressupostos epistemológicos. Compreendemos que a dicotomia entre teoria e prática, ainda

dominante nos estudos sobre a formação docente, contribui para esta adjetivação. Esta

polarização, por sua vez, é fruto da separação entre trabalho intelectual e trabalho manual na

sociedade capitalista, como analisam Candau (2003) e Saviani (2003).

Entendemos que, na educação, tal dicotomia traz conseqüências limitadoras para o

desenvolvimento profissional do professor. Uma vez enfatizando a formação teórica, o

conhecimento é reduzido aos saberes acadêmicos, distanciados da realidade na qual os futuros

educadores vão atuar. De outro lado, se há uma tendência a enfatizar a prática docente, esta é

esvaziada da teoria, as disciplinas passam a ter um caráter pragmático ou instrumental sem

fundamentação. Segundo Candau (2003), quando estas duas tendências estão presentes, se

instaura um processo de esquizofrenia na formação do educador.

Podemos afirmar que a identidade do professor sempre esteve ameaçada, e que os

adjetivos atribuídos a ele sempre existiram em torno de seu papel sócio-político, com a

progressiva perda da especificidade do seu trabalho. Desse modo, vimos que o desencanto

sempre acompanhou a afirmação profissional, marcada por conflitos, ambigüidades,

fragmentação e proletarização da atividade.

O histórico desta profissionalização, tendo como foco o professor como sujeito de sua

práxis, mostra-se importante para compreendermos as trajetórias percorridas por esses

profissionais no processo de mudanças socioculturais e seus reflexos na valorização do seu

papel e na formação de sua identidade profissional. Nas palavras de Miguel Arroyo (2000,

p.129), este caminho histórico pode trazer pistas de “como se aprendeu e se aprende a ser

professor nesses tempos e espaços de formação e profissionalização?”.

Partiremos então para os “adjetivos” e “substantivos” que, historicamente, permearam o

professor ideal e o professor real, mas, dialeticamente, opondo-se à sua condição de “cata-

ventos”, como nos diz Arroyo (2000, p.24), aquela que acompanha o movimento por onde o

vento sopra: “As políticas de formação, de currículo e a imagem do professor(a), perderam a referência

no passado e sustentam a idéia como se ‘ ser professor(a)’ fosse um cata-vento que gira a mercê da

última vontade política e da última demanda tecnológica.”

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3.2.2. “ Antes de sermos professores, somos seres humanos”: o professor na história.

Historicamente, os professores, no seu processo de profissionalização, sempre estiveram

subordinados a organizações e a poderes maiores e mais fortes do que eles, seja como corpo

eclesial, até metade do século XVII, submetido às autoridades religiosas; seja como corpo estatal,

no século XX, submetido à autoridade pública e estatal. Ao assinalar este fato, Tardif (2002, p.

243) sustenta que a desvalorização do trabalho docente e a conseqüente negação dos professores

como sujeitos do conhecimento, pelas autoridades educacionais, não é um problema

epistemológico nem cognitivo, mas político.

É importante ressaltar que, a partir do século XX, o trabalho docente se torna cada vez

mais assalariado, compartilhando características muito próximas da classe operária: grande

crescimento numérico da categoria, baixos salários e perda de autonomia na administração de

suas atividades. Ao mesmo tempo, o professor apresenta traços próprios dos grupos de

profissionais por deter um conhecimento de natureza específica que não se presta facilmente à

padronização e fragmentação extremas de tarefas e à substituição da atividade humana pelas

máquinas. Assim relata Enguita:

Como conseqüência, a categoria dos docentes move-se mais ou menos em um lugar intermediário e contraditório entre os dois pólos de organização do trabalho e da posição do trabalhador, isto é, no lugar de semiprofissões. Os docentes estão submetidos à autoridade de organizações burocráticas, sejam públicas ou privadas, recebem salários que podem caracterizar-se como baixos e perderam praticamente toda capacidade de determinar os fins de seu trabalho. Não obstante, seguem desempenhando algumas tarefas de alta qualificação – em comparação como conjunto dos trabalhadores assalariados – e conservam grande parte do controle sobre seu próprio trabalho (1991, p. 32).

Este quadro denuncia a fragmentação do trabalho do professor, que perde o controle do

seu processo e exerce uma atividade repetitiva, mecânica e uma “autonomia fictícia” 48, a qual

resulta em “estranhamento” e “enfraquecimento” de sua própria atividade. A fragmentação desta

atividade se traduz na pulverização de suas funções, gerando especialistas e uma relação

hierárquica dentro da categoria: supervisor, orientador, coordenador pedagógico e outros,

contribuindo gradativamente para a perda de controle dos fins de seu trabalho.

Neste sentido, a crise do professorado neste século é permeada pela ambigüidade do seu

papel profissional, perante as exigências educacionais e a multiplicidade de funções atribuídas ao

48 Expressão utilizada por Imbernón (2000).

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docente. Esta ambigüidade na profissão docente,vale dizer, tem raízes históricas muito

resistentes. Por isso, dedicamos este item a um breve histórico da profissão do professor na

sociedade e à apresentação das políticas públicas e teorias voltadas para formação docente

presentes no cenário educacional.

a) “O professor como missionário”

A escola foi dominada pela Igreja até mais ou menos a metade do século XVII, tendo o

modelo de professor próximo ao de padre. De acordo com Nóvoa ( 1995, p. 15-16), a gênese da

profissão de professor tem lugar no seio de algumas congregações religiosas que mais tarde se

transformaram em verdadeiras congregações docentes. Nesta fase, o mestre era nomeado pelas

autoridades eclesiásticas e sua atividade se estendia a obrigações religiosas e até mesmo às

atividades agrícolas e artesanais.

Sendo uma atividade secundária, organizava-se em torno dos princípios e estratégias de

ensino, tendo como critério um saber geral (“corpo de saberes e técnicas”) produzido não pelos

professores mas por especialistas e teóricos; ou seja, saber envolvido por normas e valores de

cunho religioso.

Apesar deste domínio eclesiático todavia, o trabalho docente foi se diferenciando, ao

tempo em que os mestres, na sua prática, foram aperfeiçoando instrumentos e práticas

pedagógicas, os métodos do ensino e o currículo. Esta construção foi exercida na atividade,

tornando os professores cada vez mais presentes e solicitados a um envolvimento maior. Desse

modo, ficou cada vez mais difícil considerar tal atividade como secundária e grupos de mestres

foram se estruturando e encarando o ensino como “ocupação principal”.

b) O professor como funcionário estatal

Na segunda metade do século XVIII, o Estado toma o lugar da Igreja e inicia o processo

de institucionalização e de estatização de sistemas escolares, provocando uma homogeneização,

unificação e hierarquização da função docente. Nóvoa (1995) sublinha haver sido o

enquadramento estatal que instituiu a profissão docente e não a organização corporativista da

categoria. Já no final do XVIII, constituía-se um corpo docente regulado e vigiado pelo poder

estatal que lhe deu um suporte legal para exercitar a profissão.

Já se podem observar, contudo, as sementes da ambigüidade da profissão: os professores

adquirem autonomia em relação aos párocos ao mesmo tempo em que “o modelo ideal de

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professores situa-se a meio caminho entre o funcionalismo e a profissão liberal: ao longo de sua

história sempre procuram conjugar os privilégios de ambos os estatutos” (ibid, p.17).

Politicamente, os professores também adquiriram um poder e, neste sentido, o controle

pelo Estado era fundamental para garantir a “integridade política “ da escola.

Esta ambigüidade, no entanto, só será compreendida no século XIX, quando o movimento

de laicização do ensino e da escolarização acentua-se, culminando na criação de instituições de

formação de professores. Este movimento foi envolvido não só pelos interesses do governo mas

também pelos argumentos apresentados pelos professores: a importância social do seu trabalho e

a necessidade crescente de desenvolvimento de técnicas e procedimentos pedagógicos. Nóvoa

(1995), esclarece:

Fixa-se neste período uma imagem intermédia dos professores, que são vistos como indivíduos entre várias situações: não são burgueses, mas também não são povo; não devem ser intelectuais, mas tem de possuir um bom acervo de conhecimentos; não são notáveis locais , mas tem uma influência importante nas comunidades; devem manter relações com todos os grupos sociais, mas sem privilegiar nenhum deles; não podem ter uma vida miserável, mas devem evitar toda a ostentação; não exercem o seu trabalho com independência, mas é útil que usufruam de alguma autonomia: etc. (ibid, p.18).

Ocorre, como conseqüência desta ambigüidade, um isolamento da categoria. O autor

acrescenta que este problema se acentua com a feminização do professorado que introduz dilemas

entre as imagens masculina e feminina da profissão. Estes fatos contribuíram para que os

professores se organizassem visando à formação de uma identidade profissional. Neste momento,

surgiram as primeiras associações de profissionais de educação, pautadas nos principais lemas:

melhoria do estatuto, controle da profissão e definição de uma carreira. A partir daí, iniciou-se

um processo crescente de reivindicação e autonomia em face do Estado e afirmação do

profissionalismo.49

Segundo o autor em destaque, a ação dessas associações, sem dúvidas, contribuiu para o

“período de ouro da profissão docente”, nas primeiras décadas do século XX, alimentado por

uma crença generalizada no poder da escola e sua expansão social. Assim: “Os protagonistas

deste desígnio são os professores, que vão ser investidos de grande poder simbólico. A escola e a

49 Entendido como um dos sentidos da profissionalização de acordo com Mariano F. Enguita (1991, p. 41) : “expressão de uma posição social e ocupacional, da inserção em um tipo determinado de relações sociais de produção e de processo de trabalho” , não sendo sinônimo de qualificação, conhecimento, capacidade, formação e outros traços associados.

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instrução encarnam o processo; os professores são seus agentes. A época de glória do modelo

escolar é também o período de ouro da profissão docente.” (NÓVOA, 1995a, p.19).

O autor, informa que o movimento escolanovista, nos anos 1920, trouxe muitas práticas

inovadoras, dentre elas, o modelo de professor como profissional. No Brasil, o discurso da escola

nova tornou-se mais presente na década de 1950 para 1960, centrando-se no lema “aprender a

aprender”. Este lema, segundo explica José Carlos Libâneo (1984), focaliza as diferenças

individuais dos estudantes e suas necessidades, de onde devem ser baseados os conteúdos, tem

como foco a construção do conhecimento e não no saber propriamente dito. Outro lema do

escolanovismo era o “aprender fazendo” e consistia no desempenho atividades realizadas em

grupo como : soluções de problemas, pesquisa e estudo do meio natural e social para auxiliar a

elaboração do conhecimento.

A partir dos anos 60, as mudanças na estrutura educacional contribuíram para

movimentos de desprofissionalização docente, como veremos a seguir.

c) O professor como técnico Segundo os estudos de Nóvoa (1992, p.84), os anos 1960 foram um período em que os

professores foram ignorados, momento em que foi negada a sua existência como ator na dinâmica

educativa. O Estado ainda mantinha uma presença forte sobre a profissionalização docente,

pautado nas reformas políticas.

É necessário registrar este período, no Brasil, como o berço da “racionalidade técnica”. A

ditadura de 64 veio para ajustar a ideologia política ao modelo econômico, visando à

modernização acelerada da racionalização dos recursos para obter o máximo de resultados.

Segundo a leitura de Saviani (2003 ), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nº

5.540/68, foi baseada na concepção tecnicista da Educação, baseada nos princípios de

racionalidade, eficiência e produtividade. Estes princípios reduziram a atividade docente a

competência técnica.

Sabemos que, nos anos 1970, o mercado econômico exigia mão-de-obra qualificada,

favorecendo a ascensão do tecnicismo em busca uma escola pública mais “eficiente” para formar

trabalhadores para as indústrias. Dessa maneira, a educação tecnicista era centrada na dimensão

técnica do processo ensino-aprendizagem, na qual o professor “era apenas um elo de ligação

entre a verdade científica e o aluno, cabendo-lhe empregar o sistema educacional previsto. O

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aluno é um indivíduo responsivo, não participa do programa educacional.” (LIBÂNEO, 1984, p.

30).

Esta também configurava a forma como o estágio dos futuros professores era

desenvolvido, restritos aos colégios de aplicação e ênfase no caráter técnico: selecionar um

conteúdo, planejar uma atividade, manter a disciplina em sala etc (MARCONDES, 2002).

A partir da metade da década de 1970, as críticas contra o tecnicismo se acentuaram,

denunciando a falsa neutralidade do técnico e apresentando os interesses político-ecônomicos

que permeavam a prática pedagógica centrada na afirmação do técnico e no silenciamento do

político. O que ocorreu, porém, foi a afirmação da dimensão política na prática pedagógica, em

detrimento da dimensão técnica (CANDAU, 2004, p.21-23).

Amaral (2002, p. 144) comenta esta radicalização reafirmando a técnica como um

instrumento fundamental no trabalho docente e comenta:

Ao se instalar um determinado discurso político na educação brasileira, jogou-se, com a água do banho, o sabonete, o shampoo, a toalha, o bebê, a banheira!... Os professores de hoje, se antigos, não podem recorrer aos saberes que dominam e os auxiliavam no processo de ensino; se novos, não conhecem nenhuma “técnica”: são convidados a agir e refletir sobre sua própria ação, fazendo uso de sua capacidade criadora, de sua inventividade, para “reinventar a roda”, como disse Elliot.

Nas palavras de Mello (1982), porém, o professor foi paulatinamente esvaziado do saber

(conteúdos) e do saber fazer (método), restando-lhe uma técnica sem competência. Na mesma

direção, Saviani (2003) posiciona-se contra a dicotomia entre a competência técnica e política

que, na atual política de formação de professores ainda se faz presente, causando-lhe efeitos “de-

formantes”. O autor chama a atenção para o fato de que é justamente por ser política que a

competência técnica foi esvaziada dos professores, impedindo-lhes a transmissão do saber escolar

às camadas dominadas. Para o autor, o saber escolar e as técnicas, instrumentos do trabalho

docente, são indissociadas. Ele faz uma diferença entre a competência técnica difundida pelo

discurso tecnicista, consistindo esta no domínio de certas regras e ferramentas aplicadas

mecanicamente a uma situação rotineira, e a competência técnica não tecnicista, consistindo no

domínio teórico e prático dos princípios e conhecimentos que regem a instituição escolar.

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d) O professor como intelectual transformador

Prosseguindo na história, nos anos 1980, ocorreu a multiplicação de instâncias de controle

sobre os professores, ao mesmo tempo em que foi iniciada a mobilização de projetos de

modernização neoliberais voltados para a formação profissional.

No Brasil, os professores foram marcados pelo achatamento dos salários, realizaram

muitas greves e se depararam com índices alarmantes de fracasso escolar. Neste contexto,

segundo nos informa o documento do MEC, nos Referenciais para Formação de Professores

(1999, p. 29), ocorreram amplos debates e articulações em torno da Lei de Diretrizes e Bases e de

reformas curriculares, resultando em programas de formação continuada e na criação dos centros

de formação e aperfeiçoamento do magistério (CEFAMs).

O objetivo desses centros era articular todos os graus de ensino, constituindo-se cada um

deles numa escola de formação de professores que pudesse promover atualização a

aperfeiçoamento nos profissionais de educação. Eles se expandiram em seis estados do país e, de

modo geral, “conseguiu se colocar e sustentar como alternativa importante à formação

aligeirada50 da Habilitação Magistério, tanto por conta do maior tempo do curso quanto da

proposta em si.” (ibid, p.29)

Por outro lado, Amaral (2002) analisa este momento, política e sociologicamente, voltado

para dois discursos de oposição às políticas públicas: as teorias de reprodução e a Pedagogia

Crítica, com base no marxismo. As teorias reprodutivistas, como exaustivamente denunciadoras

do papel de reprodução ideológica da escola, trouxeram uma sensação de imobilidade. Já o

discurso da Pedagogia Crítica trouxe o debate das contradições sociais presentes na escola,

buscando ressignificar o papel do professor, denunciando a desprofissionalização docente,

criando um campo mobilizador de lutas sociais.

Cabe aqui situar Henry Giroux, autor norte-americano, como representante da pedagogia

crítica contemporânea, com grande influência no debate sobre currículo e formação de

professores no Brasil. Giroux (1997) tem como base de sua teoria o pensamento de Gramsci

(1978), que enfatizava o professor como intelectual orgânico, agente político e do conhecimento,

dando embasamento à Pedagogia Crítica. Para estes autores, todo e qualquer ser humano é

intelectual, na medida em que qualquer ação humana é consciente, marcada por uma certa carga

50 O grifo é nosso.

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de reflexão, por uma intencionalidade, embora nem todos os homens desempenhem na sociedade

a função de intelectuais.

Partindo destes princípios, Giroux (1997) se opõe à visão de escola como simples local

de instrução. Para ele, o espaço escolar é político e cultural, onde devem ser debatidas questões

da relação entre conhecimento, poder e dominação. Sustenta que qualquer tentativa de reformular

o papel dos educadores deve partir da questão mais ampla acerca do propósito da escolarização.

O autor defende a posição de que o papel dos professores é “desenvolver pedagogias

hegemônicas que não apenas fortalecem os estudantes ao dar-lhes o conhecimento e habilidades

sociais necessários para poderem funcionar na sociedade mais ampla como agente críticos, mas

também educá-los para uma ação transformadora.”(ibid., p. 160 )

É importante registrar, já neste momento, que Giroux se refere aqui a uma “reflexão na

ação” que consiste em fortalecer os estudantes, mediante habilidades e conhecimentos

necessários para o debate das contradições sociais e serem atuantes críticos comprometidos com a

transformação mais justa. Com isto, ele não descarta a competência técnica do professor para

preparar profissionalmente os seus alunos, ao contrário, o conhecimento deve se tornar um

instrumento poderoso de luta contra as desigualdades sociais.

Em outra obra, Giroux (2000) ao analisar as reformas educacionais atuais na escola

pública, observa que os professores são excluídos de participação ativa e crítica e, quando entram

nos debates, são reduzidos ao status de técnicos que devem cumprir os ditames e objetivos dos

especialistas. Segundo o autor, no entanto, tais reformas se apresentam aos professores tanto

como um desafio, como uma ameaça.

O desafio provocado por tais reformas pode provocar mecanismos de resistência que

podem levá-los a se organizarem politicamente para melhorar as condições de trabalho e de

demonstrar à Sociedade a sua força para efetivação de qualquer mudança na escola pública.

Arroyo (1997, p.34) comunga com esta idéia, quando destaca que o aspecto desafiante da

crescente proletarização docente é a organização política desses profissionais e sua identificação

com a luta de classes, ponto que será discutido no próximo capítulo.

As ameaças que estas reformas apresentam podem ser sintetizadas na negação ou

anulação simbólica da práxis docente, na medida em que mostram pouca confiança na sua

capacidade intelectual, contribuem continuamente para o desenvolvimento de ideologias

instrumentais que têm efeitos negativos no treinamento e na formação docente (GIROUX, 2000).

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Dentre estes efeitos negativos, destaca-se a primazia da técnica em detrimento do trabalho

crítico, que tende a perpetuar a separação entre concepção e execução, na qual os especialistas

implementam currículos, instrução e avaliação e os professores executam. Tal fato repercute na

formação do professor e na sua atuação, na medida em que retrata a fragmentação, a

despersonalização e a ambigüidade presente no seu trabalho, colocando-o num lugar instável

entre proletarização e profissionalização.

e) O professor como pessoa

A partir dos anos 1990, os estudos sobre a cultura escolar levaram a análise sobre a

formação docente a assumir os professores como centro dos debates educativos, embora suas

condições de trabalho e sua desvalorização social se tornassem cada vez mais evidentes.

Nas políticas públicas, algumas medidas foram consideradas fundamentais pelo MEC, 51

tais como: o Pacto de Valorização do Magistério e Qualidade da Educação, firmado entre o

governo e os representante dos trabalhadores em educação, com o objetivo de atuar na qualidade

da educação e na valorização do magistério. Outras medidas abrangem a aprovação da lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a criação da TV Escola e outras.

Fazenda (1995) registra o fato de que o debate sobre a formação docente, antes permeado

por interpretações marxistas, mais centradas nos problemas estruturais da sociedade, foi cedendo

lugar aos aspectos microssociais como as identidades culturais e o papel agente-sujeito. Assim,

a vida, a carreira, biografias, a autobiografias passaram a ser importantes instrumentos para

conhecimento deste profissional, destacando o desenvolvimento da sua pessoa como elemento

fundamental na sua formação.

Neste campo, situam-se Antônio Nóvoa e seus colaboradores. Ele é pesquisador

português com varias obras publicadas sobre formação de professores(1992, 1995, 1999 2002) e

traz grande contribuição para a história da profissionalização docente e para os debates sobre a

crise de identidade no magistério. Segundo ele, esta crise impõe uma separação entre o eu pessoal

e o eu profissional. Argumenta que esta separação iniciou no plano científico e foi transposta para

a instituição escolar, favorecendo a proletarização.

Como veremos, o autor se opõe à redução do professor às suas competências técnicas e

profissionais, limitando ao mínimo o fator humano e os saberes elaborados pelo docente. Enfatiza

51 Referenciais para formação de professores (1999, p. 30).

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a idéia de que, na profissão de professor, não é possível separar as dimensões pessoais e

profissionais:

... a forma como cada um vive a profissão de professor é tão (ou mais) 52importante do que as técnicas que aplica ou dos conhecimentos que transmite; os professores constroem sua identidade por referência a saberes (práticos-teóricos), mas também por adesão a um conjunto de valores etc. Donde a afirmação radical de que não há dois professores iguais e de que a identidade que cada um de nós constrói como educador baseia-se num equilíbrio único entre as características pessoais e os percursos profissionais. E a conclusão é que é possível desvender o universo da pessoa por meio da análise da sua ação pedagógica: Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és (NÓVOA, 1999, p.33).

Esta é a tônica de todas as suas pesquisas, tendo como foco a subjetividade do professor,

algo que, como ele mesmo narra, foi esquecido da história da profissionalização docente.

Percebemos a sua análise como importante para compreensão da afetividade no trabalho

do professor, pois aborda o processo identitário, citado anteriormente, como componente

importante na ação pedagógica. Tal processo identitário é sustentado por três AAA: adesão, ação

e autoconsciência. O professor sempre faz adesão a princípios e valores que colaboram para um

investimento positivo nas potencialidades dos educandos. A ação docente está diretamente

relacionada com sua maneira de ser no mundo e que o faz sentir-se bem ou mal em sala de aula.

E, por fim, a sua adesão e a mudança na sua ação dependem do pensamento reflexivo do

professor sobre sua prática, ou seja, da autoconsciência.

Com esta abordagem, o autor destaca a importância do desenvolvimento e respeito à

autonomia docentes e a necessidade de trabalhar o autoconhecimento do professor nos cursos de

formação.

Por outro lado, o autor é criticado por enfatizar a pessoa do professor, sugerindo um

subjetivismo determinante (o saber ser) na práxis pedagógica, e por fazer parte do grupo de

teóricos que, ao se opor à “racionalidade técnica” na educação, desenvolve uma dicotomia entre

a pedagogia centrada no saber escolar e aquela centrada no saber cotidiano, como veremos

adiante. Por hora, no tocante a essa crítica, cabe destacar o comentário de Libâneo (1982, p.43):

A criticidade antitécnica é própria do democratismo e responde em boa dose pela diminuição a competência técnica do educador escolar. A ênfase no saber ser, sem dúvida, fundamental para se definir uma postura crítica do educador frente ao conhecimento e aos instrumentos de ação, não pode dissolver as outras dimensões da prática docente, o saber e o saber fazer, pois a incompetência do domínio do conteúdo e no uso de recursos de trabalho compromete a imagem do

52 O grifo é nosso.

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professor educador. Tornar nossa prática ineficiente põe em risco os próprios fins políticos dessa prática.

f) O professor reflexivo

Os estudos contemporâneos voltados para a formação docente, presentes inclusive no

documento oficial do MEC/SEF, aqui já citado - Referenciais para Formação de Professores

(1999) - tem como eixo de análise a prática reflexiva dos professores. Tais estudos também são

referenciais teóricos para muitas pesquisas e propostas presentes nas universidades, tornando-se

hegemônicos no discurso de pedagogos e formadores de professores, como esclarece Amaral

(2002, p.137).

Tais estudos são considerados, em seu conjunto, como um novo paradigma sobre a

formação de professores e profissão docente. Centram-se na construção do conhecimento do

professor e na reflexão sobre a prática, com ênfase nesta última. Dentre outros autores que

sustentam esta perspectiva, estão Tardif (2003), Schön (2000), Zeichner (1993), Perrenoud

(1999) e outros.

Pimenta (2002, p. 28-31) considera a tendência reflexiva, como “uma proposta

metodológica para identidade necessária de professor”, e é apresentada como política de

valorização do desenvolvimento pessoal-profissional e das instituições escolares, incluindo os

três processos de formação docente na perspectiva de Nóvoa (2002). 53 A autora explica que a

formação do professor reflexivo é permanente, uma contínua ressignificação de sua identidade. A

proposta é possibilitar condições de trabalho adequadas e uma formação realizada no próprio

local de trabalho e em parceria com outras instituições de formação. E acrescenta:

As investigações sobre o professor reflexivo, ao colocarem o nexo entre formação e profissão como constituintes dos saberes específicos da docência, bem como as condições materiais em que se realizam, valorizam o trabalho do professor como sujeito das transformações que se fazem necessárias na escola e na sociedade. O que sugere o tratamento indissociado entre formação, condições de trabalho, salário, jornada, gestão, currículo.

Para o MEC/SEF, segundo a leitura de Marcondes (2002), os aspectos priorizados nesta

proposta são: a produção do conhecimento pedagógico, o professor como investigador de sua

prática e a “tematização da prática”, ou seja, o professor deve tomar sua ação como objeto de

reflexão. 53 O autor traça três eixos para formação contínua: investir na pessoa e na sua experiência, na profissão e seus saberes e na escola e seus projetos (NÓVOA, 2002, p. 56).

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A autora chama a atenção para os vários enfoques da prática reflexiva. O primeiro volta-

se para o sentido de emancipação e da autonomia profissional, incluindo teóricos como Habermas

(1971), Freire (1978) e outros. O outro enfoque é voltado para a epistemologia da prática

(TARDIF, 2003), a qual estamos apresentando e para melhor entendimento desta, consideramos

necessário demonstrar como alguns desses autores, ora citados, vislumbram o professor reflexivo.

Para Tardif (2003, p. 127), a pedagogia é uma dimensão instrumental do ensino, a

mesma não deve ser confundida com técnicas materiais, como vídeos, filmes, computadores ou

técnicas específicas, como aula expositiva, dinâmica de grupo e outros. Estas são partes dos

elementos do ensino. Ele assinala que a pedagogia é mais uma tecnologia imaterial e intangível,

pois diz respeito a didática, a gestão da matéria e da classe, a motivação dos alunos e da relação

professor-aluno e sustenta: “A pedagogia é uma tecnologia constantemente transformada pelo

trabalhador, que adapta às exigências variáveis da tarefa realizada.”.

O autor denomina a tecnologia da educação de “tecnologias de interação” demarcadas

pelo aspecto epistemológico e ontológico. O epistemológico diz respeito ao conhecimento

cotidiano do professor, o senso comum, aplicado na sua atividade, o que ele chama de

“epistemologia prática”, enquanto o ontológico consiste no investimento do professor nos

desejos, motivos e necessidades dos educandos para obter o produto de seu trabalho: a

aprendizagem.

Schön (2000) vê o professor como sujeito construtor de seu conhecimento nas ações

cotidianas que realiza, e este saber prático deve ser potencializado na sua formação. Para ele, o

ensino deve se basear numa prática reflexiva que passa dois processos de pensamento: a reflexão

na ação, pensamento presente numa ação para atender situações problemáticas ou inesperadas, e

a reflexão sobre a ação, pensamento ocorrente sobre a ação anteriormente desenvolvida.

Já Zeichner (1993) se preocupa com a distância entre universidade e escola pública,

ressaltando que os pesquisadores acadêmicos não escutam os professores e vice-versa, o que

implica afirmar que as pesquisas, as teses defendidas, mantêm pouca correspondência com a

realidade cotidiana dos professores. Isto não significa porém, segundo Amaral (2002, p147), que

ele negue a importância do conhecimento científico. Muito pelo contrário, propõe que o professor

tire proveito desse conhecimento para sua práxis, advertindo para o fato de que este

conhecimento não se torne o hegemônico em detrimento de outras formas de saber. Neste

sentido, a reflexão é para ele um processo coletivo entre professores e seus pares, os

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pesquisadores e demais sujeitos da prática escolar. A esse respeito, Pimenta (2002, p. 30) destaca

a contribuição desse pesquisador:

A defesa de uma perspectiva dos professores como práticos reflexivos leva o autor a rejeitar uma visão das abordagens de cima para baixo das reformas educativas, nas quais professores aplicam passivamente planos desenvolvidos por outros autores sociais institucionais ou políticos. Investigando a formação de professores na sociedade norte americana, reconhece nessa tendência de formação reflexiva uma estratégia para melhorar a formação de professores, uma vez que pode aumentar sua capacidade de enfrentar a complexidade, as incertezas e as injustiças na escola e na sociedade.

Marcondes (2002, p.200), ao analisar esta tendência de formação do professor reflexivo,

destaca as contribuições que a formação traz para o profissionalismo docente no Brasil, ao

evidenciar os diferentes enfoques dos anos 1970 para os anos 1990 sobre a prática de ensino.

Sustenta a noção de que a concepção de prática de ensino vai passando de uma prática, aplicada

segundo os modelos e teorias ensinadas nas universidades, para um exercício voltado para

“observação, análise e reflexão”, ou seja, tendente à “investigação”. Nesta perspectiva, a autora

aponta para as dimensões que podem tornar possível este tipo de formação para a prática docente

voltada para o processo de auto-reflexão: 1) responsabilidade pelo próprio desenvolvimento

profissional; 2) socialização do processo reflexivo; e 3) o desenvolvimento deste processo sobre o

trabalho em sala de aula com os futuros professores, levando-os à própria reflexão sobre sua

prática.

A autora considera que, ao lado dessas dimensões, é preciso uma política de valorização

docente e melhoria das condições de trabalho e do nível salarial, para que sejam efetivamente

desenvolvidas. São cabíveis neste momento, todavia, algumas observações acerca dessas

dimensões, com base na pesquisa por nós realizada.

A primeira dimensão assinala que o professor, refletindo sobre sua prática, vai se

responsabilizando pelo seu desenvolvimento profissional. O que isso significa na nossa

realidade? Podemos constatar que os professores participantes do grupo de pesquisa investem em

cursos de especialização e aperfeiçoamento, e vimos que, de todo o grupo, só um professor não

tem título de especialista. São professores que buscam continuamente atualização, muitos dos

quais já fizeram muitos cursos no IATE, centro de capacitação de professores da rede pública do

Estado da Bahia, mas enfrentam alguns entraves neste processo de desenvolvimento profissional.

Alguns deles serão listados a seguir:

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• Falta de incentivo e financiamento do Estado em relação aos cursos de pós-

graduação. Em um dos debates em grupo, um professor falou, indignado, que o Estatuto do

Servidor Público não assegura claramente a dispensa do professor para cursos de pós-graduação;

assegurou que a lei 8.281 de 29.05.02 (Estatuto do Magistério Público dos Professores do Estado

da Bahia) impõe a reposição de aulas no turno oposto ao curso.

Prof.ª Rosa: Fui eu mesma, então ai eu corri atrás, o investimento meu, o primeiro foi a pós-graduação e o mestrado. E ai veio aquele plano Color, que foi o meu primeiro grande choque, com a realidade econômica, assim de frente, porque perdeu minha poupança, e a poupança todo dia eu tirava, pagava a faculdade, as coisas que eu já tinha do mestrado, e tudo lá, fui eu, dividia um apartamento com um colega, fui eu, tudo fui eu, e antes de sair da faculdade, eu fiz o concurso, para entrar para a prefeitura, entendeu? [...] Então o tempo inteiro, o investimento, foi meu. eu tinha esta tristeza, porque do Estado eu não conseguia nada e eu me ví assim doida, para dar conta de tudo, e assim com a consciência, de que eu queria ser uma boa profissional, se eu quero ser uma boa profissional, eu tenho que investir, então o tempo que eu fui fazer Psicomotricidade, investimento meu né? Então, hoje eu me sinto madura, até assim bom se eu quero retomar a questão do mestrado, mas o estado, o que eu estou ganhando do Estado, é pouco demais, hoje eu tenho filho. [...]. O Estado não me oferece um lugar seguro, para eu colocar meus filhos, nem mesmo uma escola. E me exige horário, e me exige, você me compreendeu?.

• O Estado também não incentiva a realização de cursos que partam do interesse do

professor, o que mostra grande contradição com as diretrizes que priorizam a construção do

conhecimento. Em sua maioria, estes cursos são financiados pelo próprio profissional:

Prof.ª Solange: Eu já perdi as contas dos cursos que já fiz. Assim, na minha área e agora cada vez mais assim. Sempre que eu posso, eu vou procurando assim. Primeiro que eu possa financeiramente, né? Eu procuro os que sejam gratuitos mesmo que não vá me dar vantagem ao nível de salário, que acrescente, eu procuro os que sejam gratuitos. Por que eu não tenho mesmo condições financeiras de fazer todas as coisas que eu gostaria de fazer. Aí eu vou selecionando, vou fazendo aqueles investimentos, investindo o dinheiro para aquelas coisas que são inevitáveis.

Perguntamos a essa professora quem financiou estes cursos:

Eu mesma, assim, com o meu salário, com meu marido, minha renda. Muito sacrifício nesse sentido. É muita vontade de aprender, de mudar, de deixar de ser o que eu sou para ajudar, né? E isso faz com que eu deixe de comprar roupa, deixe de[...] Sabe? Como investir num livro faz com que eu já dê outros valores às coisas. Aí eu faço esse investimento.

A professora Luzia se sente excluída diante desta realidade, mas admite que ela própria é

que tem que buscar este aprimoramento, pois também é uma forma de crescimento pessoal: Eu me sinto excluída (risos). Eu me sinto excluída, mas eu não reclamo não pelo seguinte princípio; se nós esperarmos que alguém vai investir na nossa formação ... eu não faço mais pela minha formação pela falta de tempo e dinheiro, porque se eu tivesse eu investia , contanto que eu aprendesse , que eu construísse, que eu

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melhorasse como pessoa e profissional. Eu acho que na formação profissional a gente melhora como pessoa também.

Notamos que há o reconhecimento da professora Luzia de que o crescimento pessoal e

profissional, é uma relação indissociável, mas será ela, professora da rede pública com falta de

tempo, baixos salários e pressionada constantemente para atualizar seus conhecimentos, que

deverá se responsabilizar pelo investimento financeiro de sua formação em serviço?

• O professor, em razão dos baixos salários e das condições precárias de trabalho, além de

ter dificuldades para financiar estes cursos, não tem tempo e nem “gás” para se aprofundar

nas leituras e de fazer muitos cursos :

Prof.ª Flor: “Como eu te falei, a gente não tenho tempo de pegar livros, de comprar livros, então quando tem esses encontros eles sempre estão colocando coisas atuais, da realidade. A gente tem que buscar recursos possíveis, porque ao chego em casa não tenho tempo de ler alguma coisa pois já chego “morta. E aí quando tem uma oportunidade que dá atestado , que a gente vai sair da escola por esse motivo aí eu faço. É uma forma também de se promover, de aprender um pouquinho e além do mais os amigos (rí), toda vez que as gente chega a gente sempre está encontrando alguém que nunca mais tinha visto, então da a questão da socialização, porque a gente não tempo de chegar e ligar também. Então tem o conhecimento, o informativo e tem assim o encontro, que durante o período de aula não tem como você se ausentar.[...]”

Observamos também, neste depoimento, a necessidade que a professora tem de socializar

o conhecimento, importante para a reflexão coletiva, e a necessidade de ampliar o vínculo com

os colegas. Tal perspectiva nos faz refletir sobre a segunda dimensão apresentada por Marcondes

(2002), que é a importância de ver o processo reflexivo como coletivo, o que poderia diminuir o

isolamento dos professores, um dos entraves referidos pelo grupo, como será discutido no

próximo capítulo.

A última dimensão apontada pela autora em destaque diz respeito ao local da formação do

educador: “a escola é o ponto de partida (e de chegada) para reflexão sobre a ação em sala de

aula”, como nos lembra Porto (2001, p. 93). Sendo esta, no entanto, um ponto de chegada e de

partida, é importante lembrar que as precárias condições físicas e materiais em que se encontram

as escolas causam repulsa nos estudantes e nos trabalhadores de educação. Percebemos nesta

realidade, a importância de transformar o ambiente escolar em um lugar acolhedor e fértil para

elaboração do conhecimento.

Além das contribuições, muitas críticas são formuladas acerca deste novo paradigma

centrado no professor reflexivo no Brasil, de acordo com a tendência há instantes descrita.

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Uma delas provém da análise de Freitas (2000, p.3), quando acentua que o abandono da

categoria trabalho pelas categorias da prática e da prática reflexiva centrou a ação educativa na

figura do professor e na sala de aula. A autora argumenta que estamos atualmente vivenciando

um patamar mais avançado do tecnicismo e pragmatismo dos anos 1970. Centradas nas

competências, as políticas atuais de formação de professores deslocam o referencial da

qualificação do emprego para qualificação do indivíduo.

A concepção de competência, difundida por este novo paradigma, principalmente por

Perrenoud (1999), um dos representantes da tendência do professor reflexivo, é caracterizada

como um conjunto de habilidades características de cada indivíduo e enfatiza a individualização

dos processos educativos e a responsabilidade do profissional pelo seu próprio aprimoramento.

Freitas (2000) argumenta que a lógica das competências passa a conformar as subjetividades ao

mercado competitivo, visando a adaptá-las à empregabilidade. Este argumento parece fazer eco

na declaração da professora Juliana feita no debate em grupo de nossa pesquisa: A busca de capacitação deixa de lado o prazer de ser professor. A gente faz parte do trabalho competitivo, eu tenho que me capacitar e buscando esta capacitação, eu esqueço o prazer de ser professor porque sempre tenho que está pronto para trabalhar. Esqueço também do lado pessoal porque tenho que me preocupar tanto para me capacitar que esqueço as vezes das coisas que gosto.

Freitas (2000, p.10) acha que este mecanismo consiste numa forma de controle do

trabalho docente. Nas suas palavras “num processo de regulação de habilidades, atitudes,

modelos didáticos e capacidades dos professores.”

De fato, dentro dos modismos tecnológicos e pedagógicos, a lógica da racionalidade

instrumental na educação prescreve a “aprendizagem de competências” para atender à sociedade

informatizada e globalizada. A crítica da autora tem relevância substancial para desenvolvermos

uma criticidade54 frente a estas propostas contemporâneas no campo da formação de professores.

Destacamos, neste contexto, algumas premissas do próprio Perrenoud (1999) para tornar

mais claros os argumentos da autora há pouco mencionada. O autor tem como foco as

competências profissionais que devem ser desenvolvidas nas reformas curriculares,

especialmente no ensino médio. O conhecimento para ele é condição necessária para o

desenvolvimento de competências, situando a agência escolar como oscilante entre dois

paradigmas: ensinar conhecimentos e desenvolver competências. Assinala, porém, que há um

54 No sentido defendido por Paulo Freire(2001): “curiosidade epistemológica” que implica sair da consciência ingênua para consciência crítica.

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mal-entendido em achar que ao desenvolver competências se desiste de transmitir conteúdo e

conceitua competência como “ uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de

situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (PERRENOUD,1999, p.7).

No seu ponto de vista, o professor está a caminho de aprender um “novo ofício” e cuja

meta é antes “fazer aprender do que ensinar”. Tal proposta, reconhece o autor, tem implicações

na práxis pedagógica, na identidade e na formação de professores. Nesta perspectiva, o “oficio de

ensinar” é substituído pelo ofício de fazer aprender, no qual o professor deve ser um “treinador”

ao sugerir ligações entre conhecimento e situações concretas, deve criar outros meios de ensino,

apelando para diversas situações-problemas que ponham o aprendiz diante de decisões a serem

tomadas para alcançar um objetivo determinado: “Visar o desenvolvimento de competências é

quebrar a cabeça para criar situações problemas que sejam ao mesmo tempo, mobilizadas e

orientadas para aprendizagem específica.”(ibid., p. 60).

Na mesma obra, o autor (id..ibid, p. 53-70) reconhece que essa mudança no ofício tem

incidência na identidade e nas competências do professor; e traça uma série de pontos

explicativos e orientadores para a prática docente. Dentre eles, salienta que, como “treinadores”

os professores devem renunciar à palavra e à demonstração55, embora isso não impeça o diálogo.

Comenta, ainda, as “inumeráveis resistências” que podem surgir em função da nova formação, do

novo profissionalismo e identidade do ofício docente, e assinala que o sistema educacional

depende da adesão56 e do engajamento dos professores para desenvolver tal abordagem.57

Outra crítica desenvolvida em relação ao paradigma do professor reflexivo é o seu foco

na “epistemologia prática” de forte cunho pragmatista e neo-escolanovista ( hoje representado

pelo construtivismo). Autores como Amaral (2002) e Duarte (2003), sustentam que tal paradigma

centra-se na análise da elaboração do saber do professor, assim como o construtivismo tem fulcro

na análise da construção do conhecimento do estudante, e tem o lema escolanovista “aprender a

aprender” 58como norteador de seus princípios, como podemos observar a seguir:

[...] A primeira questão é das relações entre a difusão dessa linha de estudos sobre formação de professores e o boom construtivista. Não foi obra do acaso o fato de que o construtivismo e a pedagogia do professor reflexivo, tenham sido difundido no Brasil quase que simultaneamente. Esses dois ideários fazem parte de um universo pedagógico do qual venho chamando de “as pedagogias do

55 O destaque é nosso. 56 Termo utilizado por Nóvoa (1995) 57 Realçamos. 58 Este lema já foi explicado neste capítulo, mediante comentários sobre o escolanovismo.

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aprender a aprender. Neste sentido, do ponto de vista pedagógico, os estudos na linha do professor reflexivo surgiram na América do Norte e na Europa quase que uma ramificação do tronco comum constituído pelo ideário escolanovista.[...]

(DUARTE, 2003, p.7)

A “epistemologia prática”, apresentada neste capítulo, configuradas nas idéias de Tardif

(2003) e Schön (2000), tem como conseqüência, na visão de Duarte (2003), a desvalorização do

saber teórico/científico/acadêmico e a centralidade dos saberes tácitos, produzidos no cotidiano

da prática docente. Dessa forma, os pressupostos embutidos na formação do professor reflexivo

sugerem uma oposição entre o conhecimento construído pelo professor na sua experiência de

ensino e os conhecimentos culturalmente acumulados e sistematizados, discorrendo num

ceticismo epistemológico.

No que concerne ao aprender a aprender, em outra obra (DUARTE, 2000, p.85), o autor

chama a atenção para a presença deste lema no relatório internacional da UNESCO, editado no

Brasil em 1998 com o apoio do MEC. Segundo, o autor do relatório, Delors (2001, p. 89), os

professores devem ser vistos como “agentes de mudança e formadores de caráter e do espírito de

novas gerações” e designa quatro pilares da educação do século XXI: aprender a conhecer,

aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

O documento reserva um capítulo para traçar o perfil do professor, denominado: “Os

professores em busca de novas perspectivas”, onde Delors elabora as seguintes questões:

(...) Que pode a sociedade esperar dos professores? Em termos realistas, que exigências lhes podem ser feitas? A que contrapartida podem eles aspirar – condições de trabalho, direitos, estatuto na sociedade? Quem pode vir a ser um bom professor, como descobrir uma pessoa dessa, formá-la e fazer preservar a sua motivação, assim como qualidade de seu ensino? (2001. p.152-162)

Neste relatório, o autor assegura que desde o ensino primário (séries iniciais) a

contribuição do professor é crucial para preparar os jovens e tentar vencer os novos desafios da

educação: contribuir para o desenvolvimento, ajudar a compreender e, de algum modo, a dominar

o fenômeno da globalização, favorecendo a coesão social.

Admitindo a idéia de que a escola e os professores perderam boa parte do seu lugar na

educação para os meios de comunicação, o documento propõe novas tarefas para o espaço

escolar a fim de torná-lo “atraente para os alunos e fornecer-lhes as chaves da compreensão

verdadeira da sociedade informal” (DELORS, 2001, p.154).

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Por outro lado, contraditoriamente, sugere que o professor tenha habilidades para discutir

os problemas sociais mais envolventes, por intermédio do equilíbrio entre tradição, modernidade,

idéias e atitudes próprias das crianças e dos programas. Neste sentido, o professor tem que ser um

acompanhante equilibrista59: “ tornando-se não mais alguém que transmite conhecimentos, mas

aquele que ajuda os seus alunos a encontrar, organizar e gerir o saber, guiando mas não

modelando os espíritos, e demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que

deve orientar toda a vida.” (ibid p.155).

Duarte (2000)), ao analisar a natureza ideológica do documento, na óptica da Pedagogia

Histórica-Crítica60, questiona até que ponto esta proposta não descaracteriza o papel do professor

como agente de transmissão do saber escolar. O autor parte da suposição de que o pilar que

sustenta os demais pilares da educação para o século XXI, como registra o documento, é na

realidade o aprender a aprender, que traduz, de forma subliminar, que aprender é adaptar-se ao

processo de automação e globalização atual. E, ao mesmo tempo, completa o autor, exerce

controle contínuo sobre o domínio do conhecimento por parte dos professores e alunos, para

perpetuar a exploração e manter a coesão social.

Foi também possível observarmos, no documento em foco, a ambigüidade contida na

afirmação de que o professor deve ser um “conciliador de teorias e conhecimentos”, ou

“negociador de significados”, mantendo sua importância na transmissão do saber e seu

reconhecimento como mestre. Por outro lado, torna a especificidade do trabalho docente como

secundária, ou apenas complementar, um papel ambíguo entre o “equilibrista de valores e

opiniões” e o “negociador de significados”, contanto que “torne os indivíduos dispostos a

aprender qualquer coisa, não importando o que seja, desde que seja útil à adaptação incessante

aos ventos do mercado.” 61 (DUARTE, 2000, p.54).

Apesar de não ser o objetivo deste ensaio apresentar uma análise das leis, documentos e

princípios epistemológicos norteadores das diretrizes para formação do professor no século XXI,

os pontos destacados há pouco tornam evidentes a crítica e a denuncia de Arroyo (2002, p.25)

acerca de se ver a categoria dos professores como cataventos, ou seja, que gira conforme o

vento que sopra , controlado hegemonicamente por quem dita o perfil, o currículo e a instituição

59 O grifo é de nossa autoria. 60 Representada no Brasil por Dermeval Saviani (2003). 61 Destacamos.

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formadora; visão que reflete “as concepções demasiado políticas, voluntaristas, a-históricas no

trato de uma categoria profissional tão velha – os pedagogos, os educadores da infância” .

Na compreensão do autor, a identidade da categoria é uma construção histórica, social,

cultural e, portanto, possui uma herança de um ofício que não pode ser manipulada por decretos e

currículos. Desta forma, a identidade do professor afirma-se nas premissas que expressam a sua

especificidade: dominar conhecimentos, saberes e competências adequadas à docência; ter voz e

vez no debate político-histórico; ser autônomo, apropriando-se do próprio trabalho; e lutar como

qualquer outro trabalhador por melhores condições salariais e qualificação profissional.

Esta especificidade requer assumir-se como educador, mestre, sujeito histórico e político,

voltado para o desenvolvimento integral do ser humano, ainda que se tenha consciência da

inconclusão dos homens e ainda que tenham angústias e incertezas, como nos revela Távola

(1986) na epígrafe deste capítulo.

O que pensam, todavia, os professores sobre sua formação profissional? Como se

posicionam frente aos cursos e políticas de formação docente? Passaremos em seguida para esta

discussão.

3.3 APRENDENDO A SER E A CONSTITUIR SABER

Pelo que expusemos, notamos que, ao longo da história, a formação de professores passa

por crises, ao lado da problemática profissional da categoria. Candau (2003) orienta no sentido de

que a análise desta crise deve ser realizada numa perspectiva multidimensional pois os fatores

desencadeantes são permeados por dimensões que se condicionam e interpenetram.

A autora cita como um dos fatores o papel conservador e reprodutor do sistema

educacional como verdadeiro aliado da manutenção da estrutura social. Outro fator apontado é a

falta de clareza na função do educador, cuja formação é desvinculada da situação política-social e

cultural do País. E o terceiro fator indicado pela autora, é a atual estrutura curricular do cursos de

Licenciatura e Pedagogia, que apresentam caráter de especialista e técnico, limitando a ação

pedagógica.

Seguindo esta linha de análise buscamos discutir neste item inicialmente: a partir de que

momento os professores se sentem preparados para serem professores? Como percebem a sua

formação? Estas são as perguntas a serem respondidas pelo grupo de professores pesquisados,

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cujos depoimentos destacados das entrevistas e nos debates no grupo se revelam significativos

para discussão deste item.

3.3.1 “ O descortinar da práxis pedagógica”: formação inicial.

Sobre a formação inicial, Candau (2003) acentua que os cursos de licenciatura em geral

são centrados nas áreas de conteúdo específico e onde a formação pedagógica é justaposta,

deixando os futuros profissionais sem instrumentos básicos para atuação profissional em sala de

aula.

a) “É o caminhar que lhe forma”: dilema idealização-realidade.

O primeiro ponto que destacamos é o dilema idealização-realidade. Vejamos o que nos

diz a professora Margarete, na entrevista, sobre o assunto:

Quando sai da Universidade eu achava que estava preparadíssima, eu estava pronta! Aí ao me deparar com a realidade, eu percebi que não. Que não bastava o conhecimento histórico, que eu precisava aprender a lidar com o aluno. Não só o aluno, com a realidade, com o currículo, com o livro didático, com relação com outros colegas, com a direção da escola, com o conjunto né? Ai eu quebrei a cara (risos) é difícil porque a gente sai da Universidade com a ilusão de que já está pronta e você percebe que ainda não está pronta e que a prática é o, como amiga minha colega disse hoje na Assembléia, “é o caminhar que lhe forma”...ai foi muita história muito dilema muita crise mesmo.

Como podemos perceber, a professora conta que ao se deparar com a realidade, percebe

que a universidade não a preparou o suficiente para o exercício de sua atividade. Tal ponto nos

remete à preocupação de Zeichner (1993) sobre o distanciamento entre a formação na

universidade e a realidade encontrada pelo professor ao se inserir na escola. Na avaliação do

autor, os professores formadores desconhecem a realidade da escola pública e por isso não

conseguem contextualizar as teorias com a prática docente.

Mais adiante, na mesma entrevista, a professora nos leva a refletir sobre a

multidimensionalidade do processo educativo que nos apóia na compreensão de que tanto o

saber tácito, adquirido na prática, quanto o conhecimento científico, formado na academia, são

igualmente fundamentais à formação docente, de acordo com o discurso seguinte:

Prof .ª Margarete A gente sai daqui achando que vai chegar lá como está no livro, como a gente imaginou, idealizou e chega lá não é preciso muito jogo de cintura, muita flexibilidade para lhe dar com esta nova situação e eu não tive esta flexibilidade, este jogo de cintura e isto provocou esta crise este dilema, este conflito até a ficha cair e eu disse

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espere ai deixe eu para aqui e repensar de forma a viabilizar o que eu aprendi na Faculdade e não abandonando o que aprendi mas buscando no cotidiano o que é aprender dá uma aula.

Percebemos que a professora reflete sobre a prática e busca soluções para os dilemas,

mas reconhece que não pode abandonar o que aprendeu na sua formação inicial, reiterando a

importância do saber escolar. Assim, entendemos que é o encontro dialético entre o saber escolar,

o saber pedagógico e o saber científico que vão formando o professor no caminhar de sua

profissionalização.

b) “Como se uma cortina se abrisse para mim” : busca de autoconhecimento.

Outros professores também percebem sua formação como uma constante descoberta e

auto-descoberta, à medida que vão caminhando na sua práxis.Observamos a resposta da

professora Solange, sobre como percebe seu processo de formação profissional: Olhe, na verdade, assim, quando eu comecei foi assim uma descoberta. É como se fosse assim, uma

cortina se abrisse. A partir do momento que eu comecei a entrar na área específica de educação. Por que eu sou licenciada em Letras, né? Tenho toda uma informação, né? É digamos assim muito bitolada do que é educação. Como eu acho que todos os currículos de licenciatura, inclusive eu estava discutindo isso hoje, pecam demais em não incluir o conhecimento do ser na formação da pedagogia, da psicologia, para os profissionais que vão atuar. E eu estava assim me sentindo sem pé nem mão antes de, na realidade, ingressar neste mundo, da pedagogia, da psicologia. Eu não tive essa formação. Na minha faculdade, eu não tive. Então eu comecei a[...].Foi como se uma cortina se abrisse pra mim. Uma vontade de compreender a minha função. É ensinar, mas é bem mais do que isso. Então isso tem me deixado assim, fascinada. Cada vez mais, apesar dos pesares, a questão do salário, etc...As desvantagens que são ditas de ser professora, né?

Mas foi a partir desse momento que eu entrei nesse mundo da psicologia, da pedagogia através da Faculdade de Educação. E que foi assim uma ousadia minha. Tipo assim, eu tenho que encontrar o caminho, eu tenho que buscar. E eu comecei assim na realidade, a ser como dizem, rato de Universidade.

Há, neste seu discurso, conteúdos significativos que mostram as carências e necessidades

do professor relativo à sua formação. A primeira diz respeito a trabalhar sua própria pessoa na

formação pedagógica. Tal necessidade converge com a proposta de Nóvoa (2002, p. 57) que tem

como eixo de referência para formação docente “o desenvolvimento pessoal: investir a pessoa e

sua experiência.” O autor estima que :

A formação não se constrói por acumulação de cursos , de conhecimentos , técnica), mas sim através de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re) construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar este estatuto ao saber da experiência.

A mesma professora, contudo, não sente apenas a necessidade de conhecimento pessoal,

pois ela tem “vontade de compreender a sua função” e busca a universidade, o saber escolar,

para “encontrar o caminho” no percurso da docência. Este dado é importante, pois trata da

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instrumentalização (ou operacionalização) da docência, como busca de controle e transformação

do trabalho.

Desse modo, o saber escolar, como instrumento62 de trabalho do professor, precisa ser

dominado por ele e socializado nos espaços formadores. Isto, claro , só é possível pela via do

pensamento, o “reflexo da consciência da realidade” (LEONTIEV, 1964). Por isso, inferimos que

a reflexividade crítica só é possível quando instrumentalizada, embasada pela consciência

refletida e refratada em saberes não somente da experiência individual, mas aqueles acumulados

coletivamente.

c) “O socius da formação docente” : influência da história familiar e das condições sócio-

econômicas.

Para analisar a influência da socialização na formação docente, cabe aqui lembrar a teoria

de Wallon (1968), a importância conferida por ele à afetividade no desenvolvimento e na

aprendizagem da pessoa. Para ele, o sujeito se desenvolve e aprende graças ao encontro com o

outro como socius, ou seja, “este fantasma do outro que cada um carrega dentro de si mesmo,

que nos serve de intermediário, de mediador com a sociedade possibilitando nossa evolução e

crescimento”. (CABRAL, 2000, p. 272). Este socius torna-se o “companheiro perpétuo” da

pessoa, influenciando seu modo de ser e de apreender os conhecimentos.

Destacamos o depoimento da professora Rosa como representativo deste aspecto da

formação profissional: [...] Eu tive uma mãe que me ajudou a segurar, e não só ai, como me incentivou o tempo inteiro, então ela dizia: “Tudo bem a professora não quer que você fale, então você fale assim...” minha mãe me ensinou, minha mãe foi uma mulher de roça, que nunca foi à Escola, mas. ela me ensinou, você faz assim o, você sabe, o que a professora perguntou, eu disse sei, pois então aprenda, decore, o que a professora ensinou, você guarda o que a professora, pula uma linha, e bota o que você pensa, como você está pensando. Então eu conversava muito com ela, e ela sempre falava assim, e ela bote como você está pensando em baixo, primeiro bote como ela quer, como está no livro [...] e depois você bota como você estava pensando, embora era sempre riscado., Então minha mãe foi uma grande mediadora da minha vida e dizia: “ não importe se a professora não esta boa, se você não gosta, você tem que fazer melhor, se a professora quer assim, você tem que fazer, como a professora quer, depois você vai fazer como você quer, ela sempre me incentivou. [...].

Analisando este discurso, recorremos também a Nóvoa (1995, 2002), pois ele dedica uma

atenção especial à história de vida dos professores, considerando que a pessoa elabora o seu

62 Vede discussão de instrumento de trabalho segundo Leontiev (1964) no capítulo anterior.

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saber durante a vida num movimento interativo e dinâmico. A professora conta o papel de

mediação que a sua mãe, como educadora, exerceu no conflito entre a afirmação de sua

autonomia e a educação “bancária” da escola, entre sua busca e as dificuldades econômicas.

d) A formação docente não ensina o “aprender a conviver” e ponto63.

Outro ponto que merece atenção é ausência de um trabalho voltado para a área de

relações humanas na formação inicial docente. Fato contraditório ao que prescrevem os

documentos oficiais sobre a educação para o século XXI, a exemplo do Relatório

Internacional da Unesco, já citado, que traça como um dos pilares e desafios para Educação

deste século o “aprender a conviver”, onde Delors (2001, p. 97) propõe estratégias

pedagógicas para se trabalhar com a diversidade e afirma: “A educação tem por missão, por

um lado, transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana, por outro, levar

as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres

humanos do planeta.”

Já a professora Carla, aponta suas dificuldades para o enfrentamento das

diversidades no ambiente escolar: Preparada, preparada, acho que no iniciou, era uma coisa muito assim sabe? Complicado na minha cabeça, né ? Mas acho que de dois anos atrás, eu comecei, a me sentir mais segura, talvez pela especialização, que eu fiz o ano passado, e meu marido, também é professor. Então a gente também tem essa força, e ai a gente vai ganhando experiência né? Porque realmente no inicio, você como, profissional, muito imaturo, acontece coisa, na sala de aula, que você não sabe, agora imagine, devo chamar a atenção, devo fingir que não estou vendo, devo brigar, é muito complicado... Por exemplo, trabalho, com a sexta série, matemática, essa aula, é uma aula muito agitada, por ter alunos de dezoito, dezenove anos, treze anos, então eu acho assim, na minha cabeça, é complicado, trabalhar, com pessoas tão diferentes, com interesses tão diferentes, entendeu?

Este discurso da professora nos leva a refletir na idéia de que a escola, como agência

fundamental para formação do sujeito, enfrenta grandes desafios frente ao compromisso de lutar

pelo direito à diferença, recusar uma educação excludente e exercer uma política de formação de

cidadania e convivência democrática.

Este papel hoje designado à escola sugere uma série de mudanças e quebra de paradigmas.

De acordo com Imbernon (2000), as formas tradicionais enraizadas da escola, de marginalização

e exclusão, dificulta o tratamento com o tema, pois assumir a diversidade supõe reconhecer a

diferença e o respeito às identidades. Uma das primeiras rupturas está em considerar a

63 Versão da frase original do ministro da Educação, Paulo Renato de Souza :”A escola brasileira não sabe ensinar a ler e ponto.” , no Jornal do Brasil, 5.12.2001 (ibid AMARAL, 2002).

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diversidade não como técnica pedagógica, mas como opção política, cultural, ética e social,

buscando opções que não causem segregação e elevem a auto-estima dos educandos. Outra

ruptura, a mais central nesta reflexão, é a ressignificação do papel do professor e isto implica

mudar, principalmente, aquele que é co-participante da constituição do sujeito na escola, ou

seja, da formação da consciência, da identidade e dos laços sociais.

e) O professor- formador como referência : a formação reflexiva transformadora

Outro ponto fundamental trazido pelos professores, tanto na entrevista, como nas

discussões em grupo, foi a carência no conhecimento dos pressupostos filosóficos que permeiam

as teorias e práticas educacionais. O destaque do depoimento seguinte mostra a importância desse

conhecimento para o desenvolvimento do profissional crítico, autônomo e consciente da escolha

da linha pedagógica que vai nortear a prática:

Prof.ª Margarete: Eu acho que a gente trabalha muito com a idealização, muito com o aluno ideal, com a escola ideal e a

gente trabalha muito pouco com a realidade. Aqui na faculdade de Educação, tem um exemplo muito forte para mim, em termos de prática pedagógica, eu acho que ...o exemplo dela, a própria aula dela, na disciplina de Didática, eu aprendi muito pouco com o que está lá no livro e aprendi mais com a prática dela.

A própria aula dela já era didática, já era uma perspectiva, e isto foi muito forte. Eu questionava muito no início da disciplina dela porque a gente via muita Filosofia da Educação, eu estava muito preocupada com o planejamento semestral, anual, eu estava muito preocupada com o plano já e ela conseguiu, levou que a gente refletisse que esta prática pedagógica está contextualizada, ela tem uma tendência pedagógica que norteia e o estudo desta tendência pedagógica, esta fundamentação toda foi importante e é fundamental. Não por ser didática mas por ter esta perspectiva, de trabalhar um pouca esta filosofia e de mostrar que esta prática pedagógica é imbuída de uma ideologia, de uma posição política e isto descortinou para mim.

A professora nos traz a dimensão filosófica, social e política na formação dos professores,

dimensão que, segundo Candau ( 2003), é “centrada no contexto” que adota uma perspectiva

crítica da prática pedagógica, levando os professores/formadores a se preocuparem com os

aspectos epistemológicos e ideológicos que embasam a visão de homem e de sociedade de cada

tendência pedagógica. É como assegura Libâneo (1984):

A prática escolar, assim tem atrás de si condicionamentos sóciopolíticos que configuram diferentes concepções de homem e de sociedade e , conseqüentemente, diferentes pressupostos sobre o papel da escola, aprendizagem, relações professor aluno, técnicas pedagógicas etc. Fica claro que o modo como os professores realizam seu trabalho, selecionam e organizam o conteúdo das matérias, ou escolhem técnicas de ensino e avaliação tem a ver com os pressupostos teóricos metodológicos, explícita ou implicitamente.(ibid, p. 19)

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Neste sentido, entendemos que o professor formador precisa também desempenhar uma

prática reflexiva- transformadora. Paulo Freire (2001, p. 28-29) chama esta prática de educação

crítica que traduz rigor metódico, criticidade e reflexão crítica sobre a prática. Como

rigorosidade metódica (sic), o autor entende o reforço nos educadores e educandos, da

curiosidade epistemológica, pesquisa e criatividade, para se aproximarem dos objetos

cognoscíveis: “Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que

viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar conteúdos mas também

ensinar a pensar certo.”

Neste caminho, o educador mostra-se como um desafiador, e não um memorizador de

teorias. Ao exercer a criticidade, busca, ao lado dos educandos, o “descortinar” da realidade,

expresso pela professora Margarete, o que envolve a curiosidade epistemológica co-participada,

ou seja, os saberes da experiência de cada um em direção ao saber crítico:

Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador .(FREIRE, 2001,p. 43)

Por fim, o autor sugere para a formação permanente a reflexão crítica sobre a prática que

envolve um movimento dinâmico e dialético entre a ação/reflexão sobre a ação, para melhorar a

próxima prática.

E na formação continuada, até que ponto os cursos, realizados pelos professores, têm

contribuído para seu desenvolvimento profissional?

3.3.2 Ação-reflexão-ação: formação continuada.

Os estudos atuais sobre formação continuada, como podemos perceber no histórico do

profissionalismo docente, convergem no sentido de que a base desta formação deve ser a

reflexão na prática sobre a prática. Nesta linha, Porto (2001), na sua pesquisa sobre “Criatividade

lúdica, a formação e a prática pedagógica do professor-alfabetizador”, sintetizou os principais

eixos de investigação da formação continuada. Tais eixos foram destacados conforme os

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objetivos da Pedagogia progressista que, segundo a autora, prioriza um entendimento dialético e

transformador da realidade educacional.

O primeiro eixo de investigação discutido pela autora em foco afirma que a formação

deve ocorrer no próprio lugar da práxis pedagógica, objetivando romper com a dicotomia

trabalho manual e trabalho intelectual e tornando a sala de aula o ponto de partida e de chegada

para reflexão sobre a ação, conforme as orientações de Candau (1998) e Nóvoa (1992).

O segundo eixo destacado é o de tomar como referência para os cursos de formação o

saber docente e suas condições de trabalho na tentativa de reduzir a distância entre teoria e

prática. No que se refere às condições de trabalho, deve-se buscar a valorização do professor

como profissional, questionando e elaborando formas de luta para um trabalho de qualidade.

Outro eixo principal é considerar a subjetividade do professor na formação profissional,

dando relevância aos seus sentimentos e atitudes, respeitando o modo como a identidade de cada

um é elaborada. E por fim, a autora destaca que é necessário considerar várias linguagens no

processo de formação, ou seja, ao abordar o professor como ser humano que pensa, sente e faz,

em sua plenitude, os cursos devem ir além da linguagem oral ou escrita e buscar outros recursos,

como a ludicidade e a arte.

Pautados nestes eixos, apresentaremos agora os discursos dos professores sobre sua

formação continuada. Ao serem indagados, na entrevista, sobre como percebem os cursos,

reciclagens, capacitações, treinamentos ou termos empregados para significar a educação

continuada, eles, de modo geral, revelaram que os cursos quando atendem às suas necessidades

de conhecimento, conduzem a uma reflexão maior sobre as atitudes tomadas em sala de aula,

oferecem oportunidades para ler mais e aprofundar o vínculo com os colegas. Afirmam que

almejam com estes cursos ascensão e qualificação profissional.

Em caráter específico, destacamos alguns pontos destes depoimentos, representativos da

síntese supracitada.

a) Ampliação da consciência crítica e reflexão sobre a prática.

Prof. Milton: [...] Por exemplo, No curso de Direitos Humanos nós trabalhamos a questão da dignidade humana. A importância de viver, aguçou mais essa minha tendência de questionar o poder capitalista que nós estamos inseridos. Me fez ver, me fez analisar o mundo de forma mais social. Eu acho importante e para o professor de Geografia é fundamental trabalhar essa questão de ter como fundamento o próprio direito à vida, viver é um direito. Então os direitos humanos trabalha com o direito à vida e para você ter vida precisa das mínimas condições. E nosso país tem ferido muito a cartilhinha, da Declaração Universal.

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Como no item anterior sobre formação inicial, o professor Milton nos traz a importância

da contextualização sócio-política e da filosofia da ética na formação docente como forma de

ampliar a consciência do professor para a realidade. Além disso, o professor, ao buscar um curso

de especialização, teve oportunidade de ressignificar a disciplina que leciona, Geografia,

aguçando seu senso crítico sobre ela.

Já a professora Solange traz a visão de que os cursos a levam a pensar sobre a prática

desenvolvendo-lhe uma ação investigativa.

Prof.ª Solange:

Eu acho assim, tem feito refletir muito sobre as minhas atitudes na sala de aula. No momento que eu planejo, se eu não planejo. Eu sempre estou repensando a minha prática. E através dessas leituras, das minhas interpretações, me causam inquietações que me fazem produtivas. Hoje eu não me vejo sem essa prática investigativa. Da gente se, inquieto. Eu sou uma pessoa muito inquieta, então, esses cursos têm me ajudado por que tem feito um movimento interno na minha vida. Tanto na relação do meu profissional, como na minha relação do pessoal. De aceitação. De aceitação de mim mesma, de compreensão do que eu posso mudar do que eu não posso, no que é possível, do que não é possível mudar.

Sobre a “prática investigativa”, cabe neste momento destacar, mais uma vez, a posição de

Freire (2001) sobre o professor pesquisador, presente nos discursos sobre formação docente. Para

ele o pesquisador no professor faz parte da própria natureza do ofício docente: indagar, buscar,

pesquisar. Com isto, esclarece que não é mais uma qualidade ou adjetivo que se deve acrescentar

ao professor, pois a pesquisa já é inerente a ele.

b) Ascensão e qualificação profissional

Prof. Milton: O curso de Docência foi bom porque já é um passo, o meu engatinhar para voltar à Universidade. Então já que eu almejo ser professor acadêmico é um início para mim. Por exemplo, comecei a sistematizar monografia, comecei a fazer leituras credenciadas do texto, um processo mais forte cientificamente, tive que aprender a ler mais. Então é muito importante para mim. Eu vejo que me ajudou, esses dois cursos realmente me preencheu. Hoje não tenho mais interesse em fazer outro curso de especialização, realmente meu interesse é o mestrado. Inclusive, recebi um convite do IATE para eu fazer um curso de pós-graduação mas eu não vou fazer, o meu objetivo agora é o mestrado.

A fala do professor Milton nos conduz a um tema muito polêmico com referência às

políticas de qualificação dos professores desenvolvidas pelo governo da Bahia, alguns dos seus

aspectos já citados nos itens anteriores. Questionamos os objetivos e a eficácia dos cursos

oferecidos sobre o crescimento do profissional e suas condições de operacionalização. Este

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debate será desenvolvido no próximo capítulo, quando analisaremos os entraves enfrentados

pelos professores na realização do seu trabalho.

A modo de conclusão deste capítulo, é necessário reiterar o fato de que seu objetivo foi

conceituar o trabalho docente como práxis pedagógica e analisá-lo, sócio-historicamente, no

processo de formação profissional e nas percepções e críticas trazidas pelos seus sujeitos.

De acordo com os pontos discutidos, notamos que na profissionalização docente, não se

pode apostar no determinismo tecnológico nem no pragmatismo. Deste modo, dizemos que a

“tecnologização” é fruto das relações sociais; é apenas uma ferramenta, uma atadura, um

mediador, que no momento limita, mas não determina. Assim, por não ser imbatível, pode ser,

mediante a práxis transformadora, modificada, controlada e orientada pelo profissional para fins

mais hominizantes. Também não podemos desfazer dos conhecimentos acumulados e

sistematizados culturalmente nas instituições educativas e nos limitarmos ao pragmatismo,

mergulhando no “ceticismo epistemológico”.

A práxis docente, como assegura Freire (2001), é a dialética ação-reflexão-ação; é a

prática de pensar a prática , de repensar sobre o que é , o que faz, para quê e para quem faz e o

que fez de si mesmo.

É preciso, no entanto, repensar a práxis atual e o “modo de ser professor” historicamente.

Saber que as competências, a técnica, respaldam sem dúvida o profissionalismo , mas não bastam

para a revalorização social do papel docente. É preciso, ainda, (re) centralizar sua atividade e

valorizar seu campo de trabalho (educação) pois “ o desencontro entre as imagens sociais e

imagens pretendidas pela categoria e auto-imagens pretendidas por cada um, cria uma tensão, um

mal-estar que mantém sempre a pergunta: quem somos?.” (ARROYO, 2000, p.30).

Nem vítima nem vilão. O professor não é apenas vítima por não ser impossibilitado para

reagir e se defender das dominações e desqualificações exercidas sobre ele. Além disso, o fato de

não assumir uma postura ética-política, em parte significativa da categoria, contribui para manter

a situação. Do mesmo modo, não é o vilão, nem o único responsável pelo fracasso escolar, pela

descaracterização da escola, pela baixa qualidade do ensino (VASCONCELOS, 2003).

Freire (1985) sempre alertou para a ausência de neutralidade no ato de educar: ou é a

marca da opressão, ou a marca da libertação. A primeira destrói, deforma, a segunda constrói,

educa. O educador é constantemente desafiado por esta opção política.

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Se sua opção for de opressão, ele sofre menos, transmite as informações para os

educandos que, por sua vez, se recusam a pensar e que se ajustam ao modelo de ser pensado e

não de ser pensante. Como tudo se conecta, porém, se ele oprime é também oprimido

esquecendo-se do seu nome, do seu ofício, abandonando seus sonhos, violando suas crenças. Se

sua opção, no entanto, for de libertação, seu sofrimento é intenso, seu comportamento é

contraditório suas possibilidades de erros aumentam e sente-se mais pressionado, porque realiza

uma ação humanamente inovadora, conduzindo à inquietude dos educandos, tornando-se credor

de sua capacidade.

Tais desafios tocam profundamente no coração do professor, na sua afetividade, porque

sofre para admitir a si mesmo ser imperfeito para ser correto; pois como lembra Távola (1986),

ser educador “...é conviver honradamente com angústias e incertezas. É dormir cravado de

dúvidas, mas ter a sensibilidade de distinguir o que muda do que é reacionário.”.

E é a propósito disto que o educador ameaça as alianças, decretos e parâmetros

estabelecidos, desvia caminhos já consolidados, rompe com visões cegas, como observamos nos

depoimentos aqui apresentados. Eis o compromisso ético-político transformador. É neste sentido

de práxis que pode ser entendida a proposta de Giroux (1997, p.162-163), dos “professores como

intelectuais transformadores”, capazes de resistir politicamente às mudanças e à opressão que os

cercam. Encarando-as como desafio, pode tornar o pedagógico mais político, inserindo a

escolarização diretamente na esfera pública, refletindo criticamente a realidade e lutando contra

as injustiças sociais; e tornando o político mais pedagógico, o que significa utilizar formas de

pedagogia que incorporem interesses políticos de natureza emancipadora e que “ tratem

estudantes como agentes críticos” ao tornar o conhecimento como problemático, ao utilizar o

diálogo crítico e afirmativo e “argumentar em prol de um mundo qualitativamente melhor para

todos.”

Tudo isso depende, porém, do reconhecimento do trabalho docente como central em

qualquer projeto político-pedagógico, o que equivale a olhar o professor como sujeito da práxis,

possuidor de valores, crenças, experiências, afetividade e, acima de tudo, de uma história.

É preciso ainda que o professor conheça sua própria história, para ressignificar o seu

trabalho, ou seja, desenvolver a consciência crítica global de sua atuação, resgatando-se como ser

histórico e transformador de sua prática. Parafraseando Arroyo (2000, p.35), há outras formas

possíveis de ser professor ou professora diferentes; há outra forma de ser. O autor lembra que

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muito se tem escrito sobre “o professor” que querem, sobre como formá-lo e assumi-lo, mas se

esquecem dele como pessoa: multideterminada, ser biológico, psicossocial e histórico.

Para finalizar a tônica deste capítulo e preparar o leitor para o seguinte, destacamos um

trecho da entrevista feita com a professora Solange, que consideramos significativo para destacar

a ambigüidade presente na dimensão subjetiva do professor, tencionando levar o leitor a refletir

sobre o próximo tema deste estudo: a relação de amor e ódio do professor com o seu trabalho e as

estratégias de defesa que utiliza para enfrentar o mal-estar ou o próprio desencanto. Pesquisadora – Professora, como você percebe o trabalho docente? Profª Solange - Árduo, eu acho assim que é assim um desmatamento, [...] principalmente no momento em que a gente está vivendo, de que se precisa valorizar mais o profissional. E que a gente vê que não estão abertos para isso. É um desbravar mesmo, é você resistir aquele salário que você recebe no final do mês. Mas você, além de tudo, sabe que você está lidando com gente, que você precisa ajudar, por que você já conseguiu subir degraus, por que você pode ajudar essa pessoa também a alcançar mais êxito na vida, ser mais feliz. Então, é muito amplo, é muito grande. É um constante assim. É de sofrimento, é de prazer, é uma mistura muito grande, é muito dura. Agora apesar de ser muito dura, eu me surpreendo de não ter ficado desencantada com ele.

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4 A DOR DE SER O QUE É: O DESENCANTO DO TRABALHO DOCENTE

“ As pessoas que estão na educação são apaixonadas por ela, pois apesar de serem maltratadas continuam lutando, querendo algo melhor”

(Agnaldo de Oliveira, 200464)

Fig 3- Grupo Coração de Professor: “Dramatização sobre Certificação Ocupacional”.2004

O presente capítulo se propõe a discutir os entraves e desafios enfrentados pelos

professores pesquisados no contexto de ensino público em nosso País. Morin (2000, p. 16)

entende que um dos desafios ou “saberes necessários” à educação contemporânea é enfrentar

incertezas: “É preciso navegar em um oceano de incertezas em meio a um arquipélago de

certezas”. O professor, por sua vez, deve ensinar princípios e estratégias que permitam encarar os

imprevistos, o inesperado, e a modificar seu desenvolvimento. E como este profissional aprende a

enfrentar suas próprias incertezas, exigências e entraves cotidianos? A fala da professora Flor

parece falar deste assunto: Às vezes chego e pergunto: ‘E foi isso que eu quis?’ Tem momentos que tem que ter ânimo para poder seguir, com o sorriso ou com o carinho deles, eles chegam e dizem “Professora eu quero falar com a senhora”. .. essas coisas faz com que você cada dia descubra a profissão, você ser pessoa, você está ali e saber que as pessoas confiam, acreditam em você, que você é útil, que gosta de você e mostra isso. Ás vezes nem gosta, tem uns que são agressivos, mas você sente que dentro daquela agressividade, que já faz parte do cotidiano deles, tem alguma coisa ali que mexe com eles. Ás vezes você questiona porque foi fazer isso, porque estou tanto tempo, porque não vou em busca de outra alternativa? Tanta gente aí que está numa boa não se estressa e a gente trabalha tanto. Existe este conflito mesmo. Mas até enquanto não aparece algo que possa conseguir fazer você se sentir feliz no que você está fazendo e também ter um retorno financeiro... [...].

Como é possível para o professor, porém, incerto de sua identidade, desencantado com

seu trabalho, desenvolver seu papel enfrentando tais desafios dito acima pelo autor, já que se

64 Diretor de formação da Associação dos Professores Licenciados da Bahia (APLB).

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percebe ainda difuso, entre uma herança de transmissor do conhecimento e o atual perfil de

“reflexivo” ou “treinador”?

Podemos perceber nas discussões anteriores é que o professor parece estar perdendo o

sentido do seu trabalho, movendo-se para um lugar de semiprofissão, ora oscilando para

reivindicação e conquista de qualificação e autonomia sobre a organização do trabalho, ora se

mantendo na condição de proletário, excluído das funções de controle de suas funções e crescente

desqualificação social.

A perda do sentido do trabalho docente é resultado da lógica do modelo tecnocrático na

Educação, tornando o professor “órfão de pai e de mãe” como explica Vasconcelos (2003). Órfão

de pai (Estado), cujo sistema socioeconômico ancorado no neotecnicismo mostra que não

necessita tanto do professor para formação de mão-de-obra e inculcação ideológica. E órfão de

mãe (sociedade civil), em decorrência do desgaste de sua imagem social, visto como o vilão do

fracasso escolar e não considerado como parceiro da comunidade no processo educativo.

Entendemos que esta desvalorização progressiva do trabalho docente repercute

diretamente na identidade e na imagem social do profissional, compromete o sentido do seu

“saber fazer”, nega sua afetividade e sua representação social nas agências educativas, nos

programas de formação. Tais fatores têm efeitos nocivos na afetividade frente à práxis

pedagógica: ora o deixando indiferente, insatisfeito e desistente de suas responsabilidades, ora

angustiado frente a tantas pressões psicológicas e sociais.

Este lugar, ocupado pelo educador, traz angústia, afetando seu envolvimento no trabalho,

seu sentido e, assim, seu projeto e realização pessoal. Neste sentido, a tendência é uma evolução

negativa no trabalho, um estado de mal-estar denominado como um conjunto de “efeitos

permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade do professor como resultado das

condições psicológicas e sociais em que exerce a docência.”(ESTEVE,1999, p. 25).

Com esteio nesta realidade, trazemos para este capítulo a análise dos entraves e desafios

enfrentados pelo professor no seu trabalho, os quais se traduzem em “mal- estar”. Para atingir

tal objetivo, apontaremos as condições externas e internas que mais interferem na sua ação e na

sua identidade profissional.

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Começaremos analisando as condições externas, apoiadas na análise dos fatores

secundários ou indiretos que incidem sobre a docência, ou seja, fatores que, ao se acumularem,

“influem fundamentalmente sobre a imagem que o professor tem de si mesmo e de seu trabalho

profissional, gerando uma crise de identidade” (ESTEVE, 1999, p. 27). No segundo momento da

discussão, analisaremos as condições internas que levam os professores a um mal-estar e as

estratégias de defesa para enfrentá-lo. Neste contexto, o mal-estar docente será abordado nos seus

fatores primários ou diretos que, segundo a classificação de Esteve (idem, p. 27), são aqueles que

“incidem diretamente sobre a ação do professor em sala de aula, gerando tensões associadas a

sentimentos e emoções negativas.”

Nesta trilha, veremos então o que nos diz o grupo pesquisado, seja nas entrevistas ou nos

debates, sobre as políticas públicas de formação docente, a visão da sociedade sobre seu trabalho,

o seu processo de proletarização,65 sua organização política sindical e os entraves que mais

perturbam a sua práxis pedagógica.

4.1 “QUANDO OS PROFESSORES SÃO CEIFADOS” : FATORES SECUNDÁRIOS

Esteve (1999) no seu estudo sobre o mal-estar, chamou as condições externas que

incidem sobre a ação docente de fatores secundários ou contextuais. Tais fatores configuram a

presença de um mal-estar nos educadores mediante entraves que atingem a sua imagem social,

alguns deles já foram abordados no capítulo anterior, quando discutimos o histórico do

profissionalismo e as teorias e programas voltados para a formação docente, tais como: a

distância entre teoria e prática nos cursos de formação inicial, a fragmentação do trabalho

causando ambigüidade no desempenho do papel profissional, as novas exigências ou demandas

sociais que atribuem uma multiplicidade de funções aos professores, perda do status social e

crescente proletarização.

São fatores que, em seu conjunto, se resumem na desvalorização social do trabalho

docente. A respeito destes, com os depoimentos colhidos na entrevista e os debates realizados no

grupo, foi possível resumi-los em quatro fatores principais e abrangentes que envolvem: falta de

65 Processo pelo qual, de acordo com Enguita (1991, p. 41). “um grupo de trabalhadores perde, mais ou menos sucessivamente, o controle sobre os meios de produção, o objetivo de seu trabalho e a organização de sua atividade.”

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reconhecimento social do trabalho, negação e controle do saber, descaso do Governo com a

carreira do magistério público e baixa remuneração.

A seguir destacamos os depoimentos e momentos do grupo mais representativos para a

presente análise.

4.1.1 “ Um Pirão Perdido”: políticas públicas para formação de professores

Este tema é considerado neste ensaio como condição externa que traz desencanto ou mal-

estar aos educadores. Já vimos no capítulo anterior o descaso do governo em relação à ascensão

profissional dos professores de nível médio, em razão da ausência de uma política que incentive a

carreira do magistério público, dando condições do profissional se pós- graduar e atingir

patamares superiores no seu nível de ensino. A falta de financiamento dos cursos também foi um

fator discutido anteriormente como demonstração das contradições presentes no que prescrevem

os Referenciais para Formação dos Professores (MEC, 1999).

Nesta seção, vamos focar as respostas dos professores, colhidas na entrevista e nos

debates realizados no grupo focal, de como percebiam as políticas de formação profissional,

oferecidas pelo Estado. Notamos que, para a maioria, os programas de atualização e

aperfeiçoamento não se tornam conhecidos. Assim, boa parte desses professores não participa

dos cursos e, quando participa, estes não se apresentam claros em seus objetivos e conteúdos.

Observamos, pelos depoimentos, que as políticas de formação de professores parecem

distanciadas das necessidades de seus formandos. Seus técnico-formadores e técnicas sugeridas

não correspondem ao universo de demandas cognitivas, materiais e estruturais presentes na práxis

pedagógica. Os professores sentem o curso como pacotes impostos, inicialmente como bons

programas, mas na sua implantação, não ocorrem coordenação e acompanhamento e, tão pouco

condições de trabalho para sua sustentação.

De acordo com o grupo, os cursos não aprofundam os conhecimentos e são centrados

mais nas técnicas de ensino. Durante a sua realização, trabalham pouco, ou quase nada, as

relações humanas na escola, e não levam em consideração os saberes e a auto-estima dos

professores. Por conseguinte, há um descrédito frente aos programas de formação oferecidos pelo

Estado, tanto em relação à qualidade de ensino, quanto às condições de implantação e efetivação.

Destacamos, a seguir, algumas falas representativas desta realidade apresentada pelo grupo.

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Segundo os docentes, os cursos oferecidos não aprofundam o conteúdo e não

oferecem condições de operacionalização. Observemos o que a professora Mary fala sobre a

dificuldade para operacionalizar os cursos e programas oferecidos pelo Governo: Então você repare, eu trabalharia com o PEI ,por exemplo, um turno pela tarde com o PEI e a noite trabalhava normal com a língua estrangeira, mas ai o PEI é muita coisa nova coisas assim que o professor não estava preparado porque não tinha uma visão pedagógica tão grande, [...] É um trabalho interessantíssimo e enriquecedor, mas aí cadê o tema para leitura, cadê o tema pra estudar? Eu comprei livros quase todas os livros do PEI, mas eu não tive tempo pra ler, passar assim em cima, os módulos com tudo explicadinho pra o professor da aula, não tem como você chegar e ler e colocar, ele tem de criar sua metodologia também em cima daquilo, mas cada pessoa tem seu jeito de dar certo, são coisas assim. [...]

Por este depoimento, podemos retomar a um dos eixos de análise apontado por Porto

(2001), citado no capítulo anterior, que corresponde à relevância das condições de trabalho nos

cursos de educação continuada, não só para tornar possível sua operacionalização, mas também

para valorizar a própria atividade desempenhada pelo profissional. Não parece, porém, ser isso o

que acontece quando o professor de escola pública retorna ao ambiente escolar após um curso.

Outro ponto observado é que os cursos são restritos a um grupo privilegiado de

professores e não são voltados para um objetivo mais amplo de qualificação profissional no

sistema escolar, como podemos notar na declaração seguinte:

Prof.ª Luzia: Eu só fui contemplada pelo Estado com dois cursos, um foi o PEI, O Programa de Enriquecimento Instrumental, por sinal um programa que recebe muitas críticas, programa de investimento altíssimo e tem suas controvérsias. Eu, pessoalmente, acho que todo programa do Governo, na minha percepção, não são programas de fato que beneficiam o professor, sempre é aquela coisa de quem pode mais, quem tira. Eu vi que houve muito investimento no programa, investimento desnecessário ao meu ver. Eu acompanhei isso de perto. E pessoas que estão ligadas no mitier: se você faz parte do grupo, você está dentro, se não está fica fora. Eu percebi muito isso. [...]

Outro relato importante do grupo é que os técnico-formadores estão distanciados da

sala de aula e do cotidiano dos professores. O professor narra uma situação em que isto

ocorreu:

Prof. Milton: A política de formação é muito precária. Primeiro porque não existe, existe uma falta de investimento para o professor ser capacitado. Porque eu acho e não vejo o governo preocupado em trabalhar o professor e valorizar e qualificá-lo. O governo quer um professor cada dia pior, a verdade é essa. E, as poucas que fui não gostei, uma foi no IATE, uma oficina na área de Geografia, imagine você está numa sala com vários professores de Geografia licenciados e quem foi dar o curso foi uma antropóloga do Rio de Janeiro, é uma distorção, é uma incoerência, ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. Imagine! Veio falar do currículo de aceleração na Bahia, sendo antropóloga e carioca. Não tem coerência, cometeu algumas atrocidades, alguns conceitos que

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foram dados infelizes, aí desanimou. Imagine você na sua cadeira e vendo uma pessoa de outra cadeira, não tem sentido.

Como podemos perceber, o professor denuncia o fato de que não há uma política eficaz

para qualificação profissional. Além disso, os cursos menosprezam a capacidade cognitiva do

professor quando não seleciona criteriosamente os técnicos/formadores para coordenação,

levando a um descrédito do próprio programa.

Outro ponto que traduz a realidade dos cursos de formação continuada é a falta de

interesse no crescimento profissional e pessoal do professor, não levando em conta o seu ser, o

seu pensar e seu agir, como eixos fundamentais na sua formação, conforme visto em Porto

(2001). Assim, percebemos que os cursos limitam e não potencializam o professor, não levam em

consideração sua a voz, seu conhecimento e auto-estima. Destacamos o depoimento a seguir para

ilustrar este aspecto:

Prof.ª Rosa: Olha! Sinceramente, eu me sinto, deixe-me procurar um termo, mais propicio, eu me sinto como se fosse uma ... eu me sinto invadida, invadida talvez seja um nome, o termo que eu posso usar agora , eu me sinto, impedida entendeu? de caminhar os passos, entendeu? [...]Então eu me sinto invadida, tem um termo, que eu quero usar, que eu não estou encontrando, mas eu estou impedida, não é bem a palavra , mas limitada, muito limitada [...] Eu acho as políticas de formação, não são de potencialização do professor, não é para potencializar,este professor, ela é mais restritiva mesmo, é mais condutora , a cumprir função, para cumprir tarefa, e não para produtividade. Minha crítica em relação ao Estado, ele quer permanência, ele não quer produtividade, e por isso quer as quarenta horas, você compreendeu?.

O discurso da professora Rosa nos leva a pensar que as políticas de formação de

professores apenas cumprem uma formalidade, ou seja, estão “centradas na norma” (CANDAU,

2003), na legislação prescrita pelos órgãos governamentais e internacionais (Banco Mundial, por

excelência). Não se preocupam de fato com o desenvolvimento dos potenciais que os professores

apresentam, mas apenas no cumprimento de normas e interesses econômicos que perpassam tais

políticas. Em entrevista, a professora Solange reforça o discurso da sua colega, destacando a

ausência da dimensão humana nos cursos oferecidos pelo Estado:

Prof.ª Solange: Profundamente desumana. Primeiro, porque eles não estão pensando no educador, no profissional como ser humano. São pacotes prontos, cada vez mais, que não vão dar em nada, se não perceberem que têm que dar atenção ao professor como ser humano. O que ele precisa de apoio, nesse sentido assim, de possibilitar a ele ser uma pessoa firme... e aí eu acho que o resto vem naturalmente.

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Por que o que eu percebo é que quando eu faço esse investimento meu de autoconhecimento, as outras coisas vão surgindo. Meu interesse por leituras, leituras científicas, conhecer pedagogos, pedagogias diferentes, tem aumentado. Coisa que eu não tinha antes, essa visão. Que tem me despertado assim, com esses cursos que eu tenho feito, assim. Então, eu acho assim, enquanto eles não pensarem assim, que quem está recebendo esse pacote, é um homem, uma mulher que tem uma vida, que tem família, que teve problemas, que enfrentou dificuldades na sala de aula, na relação dele com o sistema, dele com... Então, enquanto não se pensar nisso não tem papel que der certo. Eu tenho absoluta certeza disso.

A professora Solange parece deixar claro que, enquanto os cursos de formação de

professores, oferecidos pelos órgãos públicos, não se voltarem para as demandas dos

professores, para seu saber, para as diversas formas de linguagem, para sua formação

pessoal, para suas potencialidades, encarando-os como seres humanos em sua totalidade,

continuarão como meros pacotes normativos. Dessa forma, o conhecimento não terá ressonância

na práxis pedagógica, e o papel das políticas públicas de formação docente será sempre o de “um

pirão perdido”, como revela a professora a seguir:

Prof.ª Luiza: Pirão perdido? Por que é assim... falando a verdade deixando o coração de lado, mas é falando a verdade. Pirão perdido é aquele pirão que a gente bota no fogo e não presta para nada e joga no lixo. A escola publica hoje se transformou num espaço que não tem sentido, porque na escola pública não se produz ciência! Não se faz nada gente! A escola pública não serve mais para nada, infelizmente é a grande verdade e o que é pior, a escola pública ela é projetada apenas para responder aos dados do Banco Mundial, deu a resposta da estatística, resolveu. Por isso que ultimamente, eu tenho dito o seguinte que esses projetos que a Secretaria da Educação tem adotado não servem para nada, são projetos de cima para baixo.

A respeito dos projetos do governo, destacamos um que foi discutido com maior polêmica

no grupo. Trata-se do Programa Gestão de Aprendizagem Escolar (GESTAR), financiado pelo

Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA), com os recursos MEC e do Banco

Mundial. O programa é orientado para formação continuada de professores de 1ª a 4ª séries,

tendo como objetivo elevar o desempenho escolar dos alunos nas disciplinas Matemática e

Português, mediante o treinamento dos professores, inovando suas estratégias e procedimentos

de qualificação profissional. Quatro professores do grupo participavam deste Projeto que foi

apresentado por eles como “exemplo de Projeto”, causando uma significativa rejeição do grupo.

Destacamos algumas passagens deste debate:

Prof. Luiz - [...] Existem projetos e projetos. Eu acredito nisso porque vivencio o GESTAR, o desenvolvimento dele, o cursista antes do GESTAR e após o GESTAR. Não transforma nada diferente, trabalha com novas

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metodologias, apenas transforma o conteúdo tradicional de sala de aula de uma forma lúdica e eu percebo sucesso nesta questão.

Prof.ª Margaterte - A crítica ao GESTAR não é pessoal. Eu sou professora tradicional sem nenhum trauma, sem nenhum problema porque minha formação foi tradicional. Acredito que para que eu mude de forma coerente, de forma séria, de forma pé no chão eu preciso passar por outra formação. Eu não acredito em formação de uma semana, um mês, com já fiz no IATE, mas de uma formação séria que estou falando. O GESTAR pode ter uma boa intenção, mas o governo não tem interesse, por mais que seja bom, não viabiliza, não funciona, atinge a dois mas não a maioria.

Em outro momento:

Prof. Luiz - [...] GESTAR na verdade é capacitação de professores de 1ª a 4ª séries, mas não é uma capacitação de conteúdos, porque presume-se que os professores já tenham conhecimento do que deve ser trabalhado. O que nós trazemos de novo para eles são metodologias, são novas metodologias, como você trabalha de fato matemática, como você trabalha o português. O que o aluno precisa de fato saber? Será que ele precisa saber aquela gama de informações ou se ele tiver algumas informações estratégicas ele vai poder ter um desempenho melhor de 5ª a 8ª, 1º ao 3º ano? Então o GESTAR traz novas metodologias, inclusive com dinâmicas, porque as aulas eles são o que ? São apenas expositivas, a gente vai no quadro coloca apenas as questões matemáticas, que é de práxis o professor de matemática fazer. Vai paro quadro coloca a questão resolve e alguns não dão nem o conceito, vai direto, resolvendo questões, resolvendo questões e o que acontece é que a matemática ficou chata. Por que? Porque é só número por cima de número. Então o que acontece é que a gente não trabalha somente com quadro e giz, piloto no caso. A gente hoje tem outras formas de trabalhar. [...]

Prof.ª Luzia – [...] O que percebo agora é que quanto mais você se adapta a uma (metodologia) mais aparece outra. No Governo do estado da Bahia, o cerne mesmo da coisa, não está sendo trabalhado, eu fico sufocada com isso. Eu digo isso porque já fiz o PEI , deixei de aplicar não pelo programa mas porque não tinha ordenação para isso, um trabalho sério...depois eu fui para uma oficina de como elaborar uma avaliação, eu sair da oficina e um mês depois , um outro cidadão veio nos afirmando que aquilo já não valia mais nada...é uma panacéia (altera a voz). E de fato o aprendizado não está acontecendo, não está acontecendo o aprendizado, é um monte de metodologias, um monte de coisas...olhe sinceramente minha mãe no primário aprendeu muito mais que você no ginásio...isto é para justificar dinheiro e vocês estão neste bolo só estão levando o farelo, creia em mim, neste bolo vocês só estão levando o farelo, é sério, é sério.

É importante relatar que houve desconfiança no grupo sobre a eficácia do programa,

como projeto de formação ou capacitação de professores. Houve também discordância quanto

à forma de acompanhamento dos professores capacitados observados em sala de aula pelos

mediadores. Os professores argumentaram que os colegas não têm de fato uma formação teórica

sólida nem espaço para discutir seus problemas, nem a realidade onde estão inseridos. O debate

sobre este assunto, ocorrido em vários encontros, dividiu o grupo entre os que foram treinados

pelo programa e aqueles que duvidavam de sua eficácia.

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125

Entendemos este fato como mais um sinal de que é preciso repensar as políticas de

formação de professores a partir da multidimensionalidade do processo pedagógico, discutida por

Candau (2003), e dos eixos de análises descritos por Porto (2001) no capítulo anterior.

Diante do exposto, sustentamos a noção de que o professor é o principal interessado no

desenvolvimento e efetivação das políticas públicas para sua formação; mas, uma vez que os

programas de formação, não levarem em consideração a vez e a voz do professor , negando-

o como sujeito de seu próprio trabalho, permanecerão centrados na norma, e perderão

outras dimensões fundamentais do processo ensino-aprendizagem necessárias para

efetivação dos seus projetos.

Diante desta realidade, o que dizem os professores sobre a visão da sociedade acerca do

seu trabalho? No item a seguir discutiremos a visão da sociedade no tocante ao trabalho docente

na óptica desses atores sociais.

4.1.2 “O apartheid profissional”: o valor social do trabalho docente.

Este fator está relacionado à perda gradativa do valor social do professor na história do

seu profissionalismo, resultante das modificações de apoio e expectativas do contexto social

sobre os educadores. Destacamos a seguir depoimentos extraídos das entrevistas e suas unidades

significativas que respondem à seguinte questão: ‘Como a sociedade vê o trabalho docente?

Achamos o depoimento seguinte representativo, não só do pensamento do grupo

pesquisado, como também dos estudos atuais sobre o profissionalismo docente. Segundo os

estudos de Villa (1998), a profissão docente encontra-se fragmentada. Sua tarefa é dividida

tanto entre os pais dos alunos e a mídia quanto para gestores e especialistas, numa crescente

hierarquização e fragmentação de funções. Vejamos a resposta da professora a seguir:

Prof.ª Rosa: Eu acho que a sociedade está impregnada por um conceito, por uma visão de mundo, preso aos valores materiais, do mundo capitalista mesmo, onde tem quem aprende, tem quem ensina, tem quem sabe, quem precisa saber. Acho que a sociedade tem uma visão extremada de opostos que , não deixa a humanidade, usufruir, dos processos né? Eu acho que, as vezes,assim: o professor quem ensina, o aluno quem aprende, eu acho que a distancia entre estes dois extremos, nos tira uma série de conteúdos, uma serie de vivências riquíssimas, que talvez fosse realmente re-significado o verdadeiro conhecimento. [...] Durante muito tempo o professor se perdeu, entre o que ele decidiu ser, e o que a sociedade espera que ele seja. [...].

Entendemos que, ao fragmentar as funções da docência, a sociedade contribui para acirrar

a crise de identidade destes profissionais, que ora ficam presos àquilo que eles acreditam ser e o

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126

que a sociedade lhe impõe com uma multiplicidade de papéis. Nesta teia, ele é esquecido como

um cidadão que desempenha uma função social, como complementa a mesma professora:

Prof.ª Rosa: “[...] Somos únicos, somos totais, mas estamos isolados, solitários e sem saber o que fazer com todas estas partes, tentando ver se alguma dar para vender, para dar lucro, a gente perde a noção do que seja este cidadão que está ali e que precisa também, prestar seu serviço, reconhecer-se como cidadão significa perceber-se também como uma função social, estas partes acho que nem deixa muito claro, não deixa você ver muito claro isso.”

Este item nos faz retornar para a discussão do trabalho alienado, em que o sujeito não se

reconhece como autor do seu próprio produto, perdendo sobre ele o seu controle, pois é diluído,

compartimentalizado, como conseqüência da divisão das tarefas. No caso do professor, este

processo de alienação se agrava com a perda gradativa do seu valor profissional na sociedade.

Villa (1998) destaca que a tese da desqualificação do trabalho docente ressalta o

paralelismo entre a evolução histórica da escola e o processo de desqualificação por que passa o

trabalhador clássico. Isto significou a perda do controle e autonomia sobre seu exercício. Assinala

que no caso dos professores, este fato pode provocar uma desafeição pelo trabalho, afetando seu

e grau de comprometimento satisfação, assunto que retomaremos adiante.

No mesmo sentido, o grupo, além de apontar a gradativa desvalorização social do

professor, denuncia a discriminação atual sofrida pelos professores de escola pública,

diferenciados pela sua falta de compromisso e incompetência, como demarca a professora Mary:

“ É da escola da escola pública? Então eles dizem ‘ É enrolão, é incapaz’, rotulam e pronto”.

Segundo a professora, o desrespeito e a discriminação começam na Escola, como conta a seguir: Já começa com o desrespeito da própria Direção, quando ele rotula o professor como enrolão não quer nada, não procura ver o professor que quer alguma coisa e aquele que não quer, então já começa uma falta de respeito daí, porque ele não diferencia e ele trata o professor como se fosse um escravo não é? E a gente sempre brinca com aquela musica da escrava Isaura, Lê rê Lê rê Lê rê que sempre tem esse Lê Lê som do professor como escravo não é? Que tem que fazer aquilo que o Governo fala, que a Secretaria dita e os diretores já são preparados também infelizmente pra isso não é? [...]

Observamos que a professora denuncia a perda progressiva do controle do trabalho e,

portanto, da própria autonomia na docência, além da marginalização sofrida no próprio ambiente

onde exerce sua atividade. É neste sentido que o professor Milton afirma que os profissionais e

alunos da escola pública sofrem um tipo de “apartheid social”: A sociedade reprova o trabalho da Escola Pública, a Escola pública é controlada por um apartheid social, inclusive existe um processo de apartheid abstrato, que seleciona, nós sabemos que hoje a questão econômica é o

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127

indicador de separação. O aluno que vem de Escola Pública esse é rejeitado mesmo, então esta sociedade que está aí ... eu percebo que estes elementos que estão aí são tão massacrados pelo sistema que eles dizem que ruim com ele pior sem ele e não lutam para melhorar isto que está aí. Agora a sociedade reprova a escola que está aí sim, acho que sim e nós profissionais da educação nós somos reprovados também e muitos não fazem o seu trabalho porque nem interesse tem na Escola.

Ao lado da pulverização e do desrespeito que recaem sobre seu papel, ocorrem

mecanismos de controle sobre seu instrumento de trabalho: o saber. O controle do saber ou do

conhecimento na educação, pode ser entendido tomando como base a análise de Foulcault (1996)

sobre o poder epistemológico, que se manifesta nas instituições, principalmente na escolar, e que

faz parte de um jogo saber-poder ou um mecanismo que controla a produção do conhecimento,

de modo a não torná-lo um instrumento de transformação do status quo.

A esse respeito, Duarte (2000, p. 47) traz uma contribuição fundamental para uma análise

mais crítica do lema “aprender a aprender” 66no discurso educativo oficial contemporâneo. Na

visão do autor o lema tem como idéia central: “ [...] que o mais importante a ser adquirido por

meio da educação não é o conhecimento mas sim a capacidade de constante adaptação as

mudanças do sistema produtivo”. Com esta posição, este lema assume, segundo o autor, uma

série de valores que têm implicações agravantes para a produção do conhecimento. Um desses

posicionamentos, o que mais se relaciona com a discussão em foco, centra-se na idéia de que, ao

vivermos numa sociedade dinâmica, com aceleradas transformações, temos que nos adaptar a

ela, acompanhando seu ritmo. Esta adaptação consiste em considerar os conhecimentos como

provisórios e aprender novas formas de ação para atender aos ditames da produção e reprodução

do capital, mas não direcionada às transformações do sistema econômico e social vigente.

Libâneo (2001) aponta esta questão quando se refere à formação aligeirada, hoje

predominante no sistema educacional, centrada no pragmatismo e na desvalorização do saber

escolar. Dessa maneira, a formação do docente também é atingida por este mecanismo, quando se

detém ao saber-fazer, ao tecnicismo, e quando ignora a presença do professor como agente de sua

práxis, pois é sabido pelo sistema sócio-político sobre o poder que tem o saber do educador

sobre as futuras gerações. É como percebe a professora Rosa na entrevista: “ [...] ela é

contraditória também (refere-se à Sociedade), ao mesmo tempo que ela acha que o professor

sabe tudo, tem que ensinar, existe todo um mecanismo que não deixa o professor saber muito

[...]”

66 Lema difundido no Relatório oficial da Unesco (DELORS, 1998).

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Os professores percebem que tal mecanismo também se manifesta na indiferença ou falta

de reconhecimento de suas potencialidades, como nos diz a professora a seguir:

Prof.ª Margarete: Eu acho que ele não é nem visto...pouco caso, não tem respeito no sentido de reconhecer que o professor pode contribuir para o conhecimento tanto profissional quanto pessoal. Acho que é uma questão política muito forte, não interessa o professor crítico que tem visão crítica... e isto significa ampliar seus conceitos... apesar de todos os projetos da Secretaria da Educação, Educar para Vencer , projetos bons, mas não se viabiliza, não consigo perceber no meu cotidiano, no meu dia a dia mudanças[...].

Cabe registrar o fato de que existem questionamentos sobre o trabalho do professor ser ou

não alienado, pois por mais pressão e controle que a sociedade exerça sobre ele, por mais

fragmentação que se faça de suas funções, ele não perde o seu papel ativo na sala de aula, sendo

ele o dono de sua ação. Ao tratar deste tema, Codo (1999) assinala:

O trabalho do professor é composto por processos variados, em sua grande maioria envolvendo ciclos longos e flexíveis; possibilita ao trabalhador a expressão de sua criatividade, estimulando também seu crescimento pessoal e profissional; a possibilidade de exercício e controle sobre os processos que compõem esta atividade profissional permite que o seu executor sinta-se dono do processo, responsável pelos resultados e importante para aqueles que atende no seu exercício profissional. (ibid, p.121).

Para finalizar este item, é necessário registrar a noção de que há controvérsias em alguns

professores entrevistados sobre a visão da sociedade sobre seu trabalho. Alguns deles sustentam

que ocorrem valorização e reconhecimento social, mesmo reconhecendo as rotulações e

mecanismos de controle. Podemos notar este posicionamento nos dois depoimentos que a seguir

destacamos:

Prof. Caetano: Eu percebo que a sociedade vê o trabalho docente como necessário né? Porque sem o conhecimento ela fica limitada. Então a sociedade valoriza porque ela sabe o meio através do qual ela conhece o mundo. Eu diria assim, as relações entre as pessoas que é muito mais fácil de ocorrer com interação do conhecimento, eu percebo que ela valoriza o trabalho do professor.

Prof.ª Luiza: Observe bem, interessante que a gente tem o hábito de sempre criticar, de ser colocado na defensiva, achar que o professor está sempre entediado, sempre à margem, sempre excluído, não é valorizado. É aquele tipo da coisa, nem tanto ao sol nem tanto a lua. Eu penso o seguinte: Na minha concepção a sociedade reconhece o trabalho educacional, e eu percebo isso quando eu ouço a fala das mães dos alunos, a fala dos próprios alunos. Há um reconhecimento por parte da sociedade, há um reconhecimento. Eu sinto esse reconhecimento porque há uma necessidade, e educação é uma necessidade.[...] Então, eu não vejo o professor como coitadinho, eu não me sinto a coitadinha, eu lá tão desvalorizada assim, não.

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Apesar destes depoimentos, no entanto, podemos sintetizar que, de modo geral, os

professores, como profissionais, não estão sendo valorizados na posição de figura humana situada

sócio-historicamente no tempo e espaço do processo educativo. Seu papel é limitado aos

interesses econômicos que impõem mudanças na sua atividade, hierarquizando funções e

discriminando os profissionais. Quais as conseqüências trazidas por esta realidade para relação

do professor com seu trabalho?

Segundo Codo (1999), o sentimento de desvalorização da importância do trabalho

compromete a relação do trabalhador com o produto, aumentando a “desistência simbólica”, o

Burnout. O Burnout é uma síndrome e, como tal, se apresenta em três dimensões: a exaustão

emocional (perda do fôlego ou “gás”), a despersonalização (frieza emocional com os alunos) e a

falta de envolvimento pessoal com a atividade (que neste ensaio estamos chamando de

desencanto). Esta síndrome leva a um sentimento de que o trabalho é inútil, como mecanismo de

defesa contra o sofrimento, porém esta defesa provoca o que devia evitar: a desistência.

O autor assinala que a percepção da importância do trabalho como útil à sociedade é

fundamental para a auto-estima e para a estrutura da identidade profissional. Sinaliza que o

trabalho do educador tem uma especificidade e precisa ser considerado importante socialmente,

ao contrário, o professor ensina mal, cumpre metade de sua função.

Na sua pesquisa sobre esta síndrome nos professores, Codo e sua equipe (1999)

observaram uma ambigüidade no discurso social que proclama a educação como importante ao

mesmo tempo em que paga mal aos professores. Os autores entendem que o salário recebido

pelo professor está desconectado em relação ao esforço que realizam, havendo uma ausência de

relação entre esforço e conseqüência. Tanto o professor enfadado quanto o professor disposto,

recebem os mesmos salários, constataram os pesquisadores.

Nesta direção, podemos inferir a idéia de que quanto menor for a percepção da

importância do trabalho, menor o encanto do professor com sua atividade. Observamos, nos

debates e depoimentos no grupo pesquisado, o sentimento de exclusão e desamparo ora diante da

discriminação, ora frente a indiferença da sociedade sobre seu papel, confirmando a ambigüidade

apontada há pouco : “Seu mundo fica dissonante internamente, ele sabe que é importante, mas o

que lhe chega do exterior lhe diz que não é , lhe diz que o que oferece não vale tanto assim, pelo

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contrário, vale muito menos que o trabalho de outros com o mesmo nível de exigência.”

(CODO,1999, p.341).

Assim, percebemos que os fatores que denunciam a desvalorização social do professor,

ora identificados, afetam a sua auto-estima e sua identidade. Dentre eles, acrescentamos as

condições precárias de trabalho e a baixa remuneração, ponto de pauta principal nas

reivindicações da organização política desse profissional.

A esse respeito, Arroyo (2000) avalia a organização política dos professores como

afirmação e defesa de sua identidade como trabalhadores da educação. Ressalta que, após as

mobilizações da categoria, não fica apenas a ressaca das reivindicações mas sua auto-imagem

reconstruída.

Desta forma, o sindicato, como uma das formas de organização política, apresenta-se

como instrumento de luta para que os professores possam reassumir o controle de seu trabalho;

mas, de acordo com Codo (1999), embora o sindicato tenha esse papel, o trabalhador

sindicalizado não está protegido do Burnout. Ao contrário, na sua pesquisa, os trabalhadores

filiados e participantes do movimento sindical aumentam em quase 10% a ocorrência de Burnout.

Os autores explicam que isto não ocorre com a manifestação das três dimensões do

Burnout, mas é a exaustão emocional o centro do conflito: “ um desgaste que vai tomando conta

do sujeito submetido ao enfrentamento crônico da contradição, o ânimo vai se esgarçando, a

vontade míngua.” (CODO, 1999, p. 301).

O que de fato, porém, na organização política dos professores, é reconstruído? Que

percepção e sentimentos têm os professores de sua representação sindical?

4.1.3 “ Os professores partem para o confronto”: a organização política sindical.

Neste item, vamos apresentar dados colhidos nas assembléias da categoria, na imprensa e

nos debates realizados no grupo focal sobre a relação dos professores com o sindicato, pois

consideramos o conteúdo de grande relevância para análise dos fatores contextuais que os

envolvem.

É importante lembrar que iniciamos a seleção do grupo de professores, no mês de maio de

2005, período de plena mobilização de greve geral da categoria. Estivemos presente em uma das

assembléias e produzimos a seguinte nota de campo:

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Assembléia dos professores 25.05.04 Realizada na Ladeira dos Aflitos no Ginásio de Esporte dos funcionários do Banco do Brasil. O local era pequeno para a grande quantidade de participantes, muitos professores ficavam parte na área externa do Ginásio, no sol (havia apenas um pequeno espaço de sombra), pois lá dentro não cabiam todos e além disso, não havia ventilação nenhuma. Boa parte deles fica dispersa, conversando, bebendo água, olhando os panfletos e jornais em exposição. A impressão que tive do ambiente foi de “expulsão”, “desconforto”, falta de acolhimento e de condições para pensar e de discutir assuntos sérios, prementes da classe. Na mesa da assembléia, alguns convidados da ABLB/Sindicato, representantes de entidades, vereadores, deputados que abraçam a causa da categoria. [...]

Na hora da votação, todos se “apertam” no pequeno espaço, muito calor e muita queixa com o descaso das autoridades face às reivindicações. Final da assembléia, os professores decidem paralisar por mais três dias, até decidir a deflagação da greve.

Os professores tinham iniciado várias paralisações desde 11 de maio de 2004, realizando

protestos em praça pública contra a posição do governador de negar os direitos dos trabalhadores

em educação. Reivindicavam melhores condições de trabalho, a contratação de professores para

algumas disciplinas e a reposição das perdas salariais, de 51,61%. O governo, porém, se

mostrava indiferente ao movimento e, no dia 07 de julho do mesmo ano, entraram em greve,

tendo como principal pauta de reivindicação aumento salarial de 45,78%. Neste dia saíram em

passeata, com o apoio dos estudantes, ocupando trechos estratégicos da cidade, no Centro.

No dia seguinte o jornal À Tarde 67publica um comentário feito por um coronel da Polícia

Militar : ”As pessoas tem o direito de ir e vir. Eles são educadores e esperamos que sejam

inteligentes.” Com este tom de ironia e ameaça, o coronel complementou, dizendo que as

manifestações atrapalham o trânsito. O governador, por sua vez, concedeu reajuste de 5% a

todos os servidores, mas deixou os professores de fora: “ É um castigo por estarmos lutando por

um ensino de qualidade e por uma remuneração justa para os professores” (ELZA MELO,

08.07.04, Jornal À Tarde).

A greve persistiu, porém, com uma mobilização ampla da categoria e, no dia 25 de julho,

o jornal Á Tarde publica: “ Os professores partem para o confronto” e explica: “Nem mesmo a

possibilidade do sindicato pagar R$ 10 mil reais enfraquece o movimento grevista”. O governo

havia adquirido liminar da Justiça solicitando aos professores o retorno ao trabalho. Antes disso,

já havia realizado cortes no salário de alguns professores.

Mesmo entrando com uma liminar contra o governo, o sindicato não teve sucesso e não

conseguiu sustentar o movimento de resistência da categoria em ceder ao governo. Diante deste

67 Jornal A Tarde de 08 de julho de 2004.

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132

impasse, muitas assembléias foram realizadas, e, no dia 5 de agosto do mesmo ano, a greve

terminou após uma votação disputada e com um aumento de apenas R$ 30,00 (trinta reais) no

salário-base.

O curso de extensão, como um dispositivo para desenvolver o trabalho de campo com o

grupo da pesquisa, foi iniciado no dia 30 de julho do mesmo ano, portanto, em pleno processo de

greve dos professores da rede pública estadual da Bahia e de greve geral dos professores,

estudantes e funcionários da UFBA contra a reforma do ensino superior. Em decorrência deste

fato, o primeiro encontro não contou com a presença de todos os professores selecionados para o

curso, pois era dia de assembléia geral, sinalizando desde já o comprometimento deles com o

movimento. Ainda assim, neste primeiro momento, convidamos uma representante da

ANDES/APUB68 para falar sobre a reforma universitária. No segundo encontro do grupo, um dia

após o término da greve, convidamos um representante do sindicato para debater com o grupo.

Resumimos o debate nos pontos discutidos a seguir.

Na análise dos professores, a greve foi movida por um sentimento de angústia do

professor em face da situação social e as mobilizações proporcionaram momentos para

compartilhar pensamentos e sentimentos, razão pela qual houve uma adesão significativa da

categoria. Um deles acrescentou que o professor é cada dia massacrado no seu poder aquisitivo e

o desrespeito é visível no profissional de educação.

O término da greve, no entanto, trouxe um sentimento de inércia, pois sentiram-se

ceifados69 após um grande movimento de luta que o sindicato não sustentou. Sobre o assunto,

alguns estudantes perguntavam aos professores: “Puxa professor, morreu na praia?”. Outro fato

discutido é que a assessoria jurídica do sindicato não foi eficaz frente às ameaças sofridas. A

inoperância do sindicato para sustentar a organização política dos professores em momentos de

luta e a manipulação e/ou falta de pulso dele para sustentar o movimento, foram fortemente

apontadas pelo grupo como motivo para decepção e descrédito frente à organização.

O terceiro e último ponto foi a desqualificação pública do docente frente à

comunidade, não só diante dos estudantes mas perante a comunidade de modo geral que,

segundo o grupo, assistiram aos abusos e exploração do Estado sobre a classe. Além dos fatos

68 Associação dos Docentes de Ensino Superior. 69 Palavra muito usada e repetida pelos próprios professores e que significa, de acordo com “o dicionário de Aurélio”: abatidos, arrebatados, cortados em sua vida .

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133

publicados nos jornais, numa entrevista de rádio, segundo informação do grupo, o governador

chamou os professores de “baderneiros”.

Observamos, nesses dados, a exaustão nos professores presente no sentimento de inércia e

de abatimento (“ceifados”). Percebemos que, embora o movimento tenha sido de suma

importância para a história política de luta pelo profissionalismo docente, a “ressaca” deixou

seqüelas que abateram a auto-estima e a imagem social dos professores. Os indicadores desta

ressaca foram expressos na carta coletiva 70escrita para os colegas, nos debates que realizaram no

grupo focal da presente pesquisa.

Analisando os fatores contextuais que influenciam a imagem pública do professor, na sua

pesquisa, Esteve (1999) observa que o sentimento de desânimo que abate os professores tem suas

bases muito mais nesses fatores do que na situação real da sala de aula, mesmo com todas as suas

dificuldades. Este desânimo repercute no seu desempenho pessoal e profissional, trazendo-lhe,

segundo lista o autor: sentimentos contraditórios em relação a sua prática e si mesmo,

mecanismos de fuga como inibição ou rotinização de sua prática, aumento de tensão e ansiedade

decorrentes da exaustão emocional.

E, neste momento, perguntamos quais as condições nas quais os professores realizam seu

trabalho? Quais os principais entraves apontados pelos professores na realização de seu trabalho?

Discutiremos no próximo item as condições internas da práxis docente que trazem mal-estar.

4.2 “A QUEIMADURA INTERNA” : FATORES PRIMÁRIOS

Os fatores primários ou condições internas que contribuem diretamente para o mal-estar

do professor na sala de aula e nas relações que estabelecem com seus educandos, colegas e corpo

administrativo, serão neste momento abordados com os dados colhidos nas entrevistas realizadas

e nos debates desenvolvidos nas oficinas do grupo focal.

Os entraves mais apontados pelos professores na realização do seu trabalho foram à carga

horária extensa (professores com até 28 turmas!), a superlotação das salas de aula (45 a 50 alunos

para acompanhar) e a falta de condições físicas e materiais.

Outros obstáculos foram apresentados não só na entrevista, mas também nas discussões

em grupo, destacando-se aqueles ligados aos baixos salários, à falta de acolhimento no espaço de

trabalho, autoritarismo da diretoria e da Secretaria de Educação e Cultura (SEC), ao baixo nível

70 Vede ANEXO I.

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134

de rendimento dos alunos e às falhas no processo de avaliação imposto pelo Sistema de Ensino

atual. E, por fim, o isolamento entre os professores para partilhar os problemas enfrentados, tanto

nas reuniões pedagógicas e cursos, como também no próprio dia-a-dia da atuação docente,

também foi uma queixa apresentada pelo grupo.

Estes entraves serão abordados, neste item, por etapas, conforme o foco de cada uma

delas, que será voltado para o processo ensino-aprendizagem, ou seja, para as condições

presentes no trabalho pedagógico que trazem para os professores desânimo, angústia,

insegurança e tristeza, conforme suas declarações.

4.2.1 “Briga número um dos professores com o Estado”: salas superlotadas.

Iniciaremos com a percepção dos professores sobre a superlotação de alunos na sala de

aula e as dificuldades encontradas para realização de um ensino de qualidade, destacando a fala

da professora Rosa, que diz: O que me desanima, é o discurso do Estado e a pouca possibilidade de realização.[...]. Eu acho, que é a briga número um, dos professores, com o Estado, seja lá com quem for, com a qualidade do trabalho deve passar pela exigência do menor número de alunos, na sala de aula, isso me desanima profundamente, porque por mais comprometido que você esteja, não dá conta de um número tão grande de alunos que vem de uma diversidade. Os professores, na entrevista e nos debates em grupo, apontaram varias conseqüências

trazidas pelo grande número de alunos em sala de aula, dentre elas, a dificuldade para avaliar. No

grupo pesquisado, como já expresso, há professores com até 24 turmas, que precisam dessa forma

avaliar e corrigir provas de mais ou menos 1.400 alunos, com é o caso da professora Flor. Os

professores relatam que as provas são elaboradas para serem respondidas de forma objetiva e de

fácil correção para poderem dar conta da demanda. O professor Milton, que leciona nove turmas,

considera este problema um entrave para educação de qualidade, associado ao curto espaço de

tempo que cada professor tem com a turma, e afirma: “Como é que você faz uma avaliação

qualitativa e tendo apenas cinqüenta minutos de permanência em sala de aula?”.

Deste modo, observamos como é difícil acompanhar o desenvolvimento cognitivo dos

educandos e praticar uma avaliação mediante uma práxis transformadora, superando a mimética,

de forma a conduzir os alunos ao melhor resultado possível, trabalhando outras formas de

linguagem: criação de histórias, desenhos, dramatizações e outras.

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135

Outra conseqüência da superlotação destacada pelos professores diz respeito à relação

professor/aluno. Segundo o exemplo da professora de História, há dificuldade para interagir com

os alunos e de acompanhá-los no seu processo de aprendizagem :

Prof.ª Margarete: Muitos alunos, muita gente não dá nem para conhecer o aluno, não pode fazer uma discussão mais aprofundada, eu acho inviável. A gente faz, de inicio, de partida , a lista tem muita gente, muitos alunos na sala . As vezes quando acontece de ficar menos alunos em sala de aula a discussão rende mais, eles se colocam mais. Tem também muitas turmas. O professor de filosofia, por exemplo, pode ter até 28 turmas, já a matemática a carga horária é maior e por isso tem menos turma. Fica muito distante esta interação tanto a nível de conhecimento quanto a nível afetivo. Você consegue assim: um ou outro. [...].

Este depoimento reitera o conceito de que o trabalho docente não é uma atividade consigo

mesmo, mas com o educando (FREIRE, 2001) e, como tal, só se torna eficaz na riqueza das

relações e trocas estabelecidas no cotidiano da sala de aula . Uma vez que o professor não tem

condições de interagir efetivamente com os seus educandos (objeto de seu trabalho), como pode

se sentir sujeito de sua própria atividade sem condições para proximidade, debate, empatia com

eles?

No estudo de Codo (1999), foi observado que as más condições de trabalho

desencadeiam um mau relacionamento com o produto, trazendo conseqüências como: a falta de

controle sobre ele, o maior nível de insatisfação e as dificuldades nas relações sociais. Dessa

maneira, o professor sente que não vai contar com o apoio dos colegas no momento de maior

necessidade e a disposição para relacionar-se com os alunos diminui, perdendo-se assim a riqueza

do processo ensino-aprendizagem.

O rebaixamento do envolvimento com os alunos, a despersonalização, é um dos

componentes da Síndrome do Burnout, estudada por Codo (1999, p.300), vista como um

mecanismo para escapar dos conflitos. No nosso estudo, além de parecer impossível acompanhar

o número de alunos anunciado por sala, com professores assumindo até 28 turmas, o profissional

pode ficar vulnerável para desenvolver esta despersonalização, ou seja, uma frieza emocional ou

indiferença frente a eles, já que tem que investir muita energia e criatividade para tentar atender a

todos. Mais adiante os professores retomam esta questão.

4.2.2 “ O tempo do trabalho é hoje o tempo da nossa vida”: carga horária extensa.

Outro entrave evidenciado pelos professores e muito ligado ao primeiro aqui discutido é a

carga horária extensa, na qual os professores são submetidos. Na seqüência, apresentamos um

debate no grupo focal sobre as condições de trabalho:

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Prof.ª Vânia: - Trabalhar três turnos, quarenta horas no Estado, quarenta na Prefeitura... separada, com três filhos, vários deslocamentos [...] dez turmas na Prefeitura[...] para que tanto trabalho? As vezes eu páro, reflito sobre meu trabalho e faço essa pergunta: ‘E eu como mulher, como pessoa, como fica minha parte feminina?’Eu tenho que cumprir a parte de mãe , professora, psicóloga, de administradora da casa....80 horas é anti-humano. Trabalho demais cansa, já desvia a objetividade do trabalho, você trabalha e não tem tempo para nada [...] até pensar em ler este livro (refere-se ao de Wanderley Codo que estava passando na roda do grupo) já me deu cansaço.”

Outro professor interveio:

Prof. Milton – Eu só dou quarenta horas em sala de aula, mas do que isso não dou...eu acho que não mereço.

E outra professora acrescentou:

Prof.ª Eliza – [...] Eu estava trabalhando na escola particular, na prefeitura, no SESI e no Estado e eu quase piro. Aí o médico falou ou você pára ou você vai pirar. Aí joguei tudo para cima, fiquei com a escola particular e o Estado. Porque eu acho assim, se a gente ficar cheio de atividades vai ficar bem nada não é ? A ponto de morrer... porque tem aquela cobrança íntima: você fazer bem aquilo que se propõe. Eu desisti desta loucura, é estressante, é teimoso. Mas é uma questão de opção, é escolha.

Este debate sobre a extensão de carga horária foi um dos mais polêmicos no grupo.

Primeiro porque nele vieram à tona o estresse do professor e a discussão da qualidade de seu

trabalho, denunciando o desgaste físico e emocional presente no seu cotidiano.

Vários estudos atualmente se voltam para esta preocupação do estresse 71 docente em

razão das condições precárias de trabalho a que são submetidos. O conceito de “estresse do

professor” empregado neste capítulo será o de Esteve (1999, p.151), que consiste numa resposta

ao mal-estar docente, cujos sintomas mais freqüentes são sentimento de esgotamento, de

frustração ou de extrema tensão. Tal resposta tem efeitos negativos para a saúde do profissional,

podendo desencadear doenças psicossomáticas, estados neuróticos e depressivos.72

No que se refere ao estresse, Santos (2004, p.22) na sua pesquisa sobre a organização do

trabalho e a saúde dos professores, apresenta dados interessantes sobre as consequências das

condições do trabalho pedagógico para a subjetividade dos professores da rede básica, e ressalta:

“as estratégias defensivas e de enfrentamento construídas por professores/as, frente às

adversidades do cotidiano escolar, estão diretamente relacionadas ao movimento de saúde,

tensionado pela organização do trabalho pedagógico. “ 73

71 No ultimo capítulo, este tema será retomado e analisado segundo a abordagem psicossomática de Reich (1972). 72 Voltaremos a este assunto no último capítulo desta dissertação. 73 Embora o objetivo deste trabalho não seja discutir tais estratégias pela dimensão biológica e cultural da saúde, mas sim pela organização do trabalho e a afetividade, vemos a necessidade de apresentar alguns dados sobre o assunto, para um entendimento mais claro sobre o mal-estar na práxis pedagógica e, mais adiante, em outro

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Assim, o autor nos chama a atenção para a crítica voltada para o conceito de saúde da

Organização Mundial de Saúde (OMS) : “estado completo de bem-estar físico, social e mental,

e não consiste apenas em ausência de doença ou enfermidade.”. A crítica se refere ao estatismo

contido neste conceito, pois o fato de estarmos constantemente enfrentando conflitos compromete

esta completude. Explica que a saúde não se configura num estado ideal, conforme propõe a

OMS, mas se estrutura como um jogo que depende das condições externas que proporcionam

maior ou menor mobilidade dos indivíduos e do modo como eles interagem criando condições

para dar conta das questões cotidianas” (SANTOS, 2004, p. 24).

De outro lado, ancorando-se na concepção de saúde de autores como Dejours (1992) e

Athayde (2001), que consideram o trabalho como fonte de promoção da saúde, acentua que a

atividade pedagógica poderia ser um espaço que possibilitasse ao professor maior ou menor

esforço na busca dos recursos necessários a manutenção do equilíbrio físico e psicossocial.

Para ilustrar esta compreensão, apresentamos a seguir um trecho de entrevista que fizemos

com a professora Luiza, na qual narra sua busca por aliviar suas tensões e sobrecarga de trabalho,

como alternativa para manter seu equilíbrio físico e mental: [...] Apesar de não ser uma pessoa de ficar rezando, eu sou uma pessoa muito espirituosa, eu sempre penso que a vida é uma dinâmica, a gente tem que seguir o percurso, e ir se melhorando, melhorando, então eu nunca procuro ver o lado material da coisa, eu busco, buscar o espiritual, eu busco estar equilibrada entendeu? É tanto, que eu faço retiro espiritual. Porque sinto que estou muito pesada, ai eu passo o fim de semana fora. E realmente me recarrega muito a energia, a espiritualidade, graças a Deus. Então, eu busco esta espiritualidade para ficar equilibrada. O segundo ponto polêmico do debate entre os professores refere-se à questão de ser ou

não “opção” do próprio professor a sobrecarga de trabalho. Apresentaremos inicialmente a

opinião da professora Flor, a seguir: A gente não pode trabalhar mais que quarenta horas, mas você sabe que a realidade é complicada. Na verdade trabalho oitenta horas e a gente também sente que eles (refere-se aos seus alunos) têm razão, mas eu também trabalho muito. Tenho que fazer muita coisa, mas, no entanto, eu optei por isso. Então, eu tenho que cumprir as minhas obrigações, eu trabalho oitenta horas mas eu vou todos os dias. [...]

Vale destacar a exposição crítica sobre o assunto de uma professora que, ao argumentar,

mostrou o seu saber sobre a dimensão ontológica e cultural do trabalho:

capítulo, sobre a corporeidade do professor.

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Prof.ª Rosa: Para começar existe uma necessidade fisiológica orgânica, própria do desenvolvimento humano[...] Agora, em contrapartida, além dessa necessidade orgânica, fisiológica, existe a questão cultural que aí já impõe uma sobrecarga além da necessidade e que nos leva a fazer escolha por falta de opção. Tem que trabalhar, tem que estar atualizada, reciclada, tem que dá conta, se não você está fora do mercado. Então não é uma opção você largar seu filho na mão de babá e ficar quase 24 horas na rua. É o mundo capitalista que te joga na rua fazendo com que você perca até a consciência de quem é você dentro deste status. Você tem que produzir, produzir... o mundo capitalista é isto. Você vai merecer este status se você for produtivo, se você não for produtivo você esta fora.

O conteúdo trazido por esta professora nos remete ao segundo capítulo, que discute sobre

o papel do trabalho como fundante do ser sócio-histórico e, ao mesmo tempo, à função de

alienação que ocupa no seio da sociedade capitalista. Nesta última, no trabalho alienado, o tempo

é todo absorvido pela produção, não havendo espaço para expressão criativa, assim como para

manifestação de outras dimensões do ser humano - emocionais, intelectuais, culturais e lúdicas.

Neste contexto, é oportuno destacar a análise de Foucault (1996) sobre o Panopticon74

industrial iniciado no século XIX em muitos países da Europa, dentre os citados França, Suíça e

Inglaterra. O Panopticon industrial era uma espécie de “fábricas-prisões” ou “fábricas

conventos”, com aparelhagem definida e um número fixo de operários, onde eles, sem salário,

tinham seu tempo e seu corpo todo ocupado com o trabalho e recebiam um prêmio anual na

ocasião de sua saída.

O autor conta que, com o tempo, estas instituições foram aperfeiçoadas, mas a crise

econômica gerada pelo próprio sistema a tornaram inviáveis para o governo em virtude do grande

gasto financeiro. Apesar de serem extintos, os mecanismos presentes em tais instituições, ainda

continuam presentes nas fábricas, escolas, prisões e hospitais psiquiátricos sob a forma de

algumas de suas funções: “fixar os indivíduos num aparelho de normalização dos homens”, ou

seja, ligar os indivíduos a um processo de produção controlando parte ou todo tempo e corpo dos

mesmos. Foucault (1996) chama estas instituições de “redes de seqüestro”. 74 “ (....) O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma destas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava a tempo para o interir e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda cela; não havia nela nenhum ponto de sombra e , por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas, de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse Vê-lo. Para Benthan Esta pequena maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por uma série de instituições. Panopticon é a utopia de uma sociedade e de tipo de poder que é , no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos – utopia que efetivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo”. (FOUCAULT,1996: P.86-87).

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A primeira destas funções é o controle do tempo do sujeito, não deixando livre para outra

atividade ou pensamento: “A primeira função de seqüestro era de extrair o tempo, fazendo com

que o tempo dos homens, o tempo da vida, se transforma-se em tempo de trabalho”. (ibid, p.

118).

A segunda função apontada pelo autor consiste no controle do corpo dos homens, que

deve ser formado, reformado, corrigido e qualificado para força de trabalho.

Por fim, a terceira função conservada por estas instituições é a de um poder polimorfo do

tipo econômico, político, judiciário e epistemológico. Este poder encontra-se presente direta ou

indiretamente no interior das indústrias, escolas, igrejas, hospitais e prisões. Tal poder tem a

finalidade de controlar, de trocar como mercadoria, incluir e excluir, avaliar, classificar,

disciplinar e extrair o saber da pessoa, a partir do seu próprio conhecimento: “Que o tempo da

vida se torne força de trabalho, que a força do trabalho se torne força produtiva; tudo isto é

possível pelo jogo de uma série de instituições que esquematicamente, globalmente, as define

como instituições do seqüestro.” (FOUCAULT,1996, p. 120).

O autor salienta que na sociedade atual ainda se vive este grande “Panoptismo social” cuja

função principal é a transformação da vida dos homens em “força produtiva” , convertendo seu

tempo e seu corpo em mercadoria.

Neste item, serão discutidas as duas primeiras funções apresentadas pelo autor, já que a

terceira função já foi contextualizada no item anterior deste capítulo. Elas podem ser claramente

identificadas no discurso da professora Luiza, retrocitada, e no debate travado pelo grupo75 sobre

o assunto, especialmente acerca da sobrecarga de trabalho e do tempo do profissional.

Observemos a fala a seguir:

Prof.ª Margarete: Estamos discutindo um texto que fala sobre a questão do poder no nosso cotidiano, no nosso dia a dia e a

gente trouxe a questão para nossa vida profissional e como nossa vida pessoal é transformada em tempo de trabalho. Eu não sou só profissional mas percebo que minha vida está organizada em função do profissional. O que eu estou colocando, e está cada vez pior porque o professor tem que trabalhar em varias escolas, é que meu tempo hoje é colocado em função da profissão e eu não sou só profissão.

O nosso tempo está escravizado pelo trabalho, todo o nosso horário é organizado em função do trabalho: horário de almoço, de jantar, de estar com os filhos, com a família. O tempo do trabalho é hoje o tempo de nossa vida. São as minhas 24 horas , mesmo que eu não esteja neste trabalho.

75 Neste encontro discutimos o texto de Foucault (1996) na plenária, após o grupo ser dividido em subgrupos para refletir sobre as questões. A vivência que serviu de base para sensibilização do tema foi a “estátua dos professores”, vede APÊNDICE G.

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Outra coisa que fico pensando é na possibilidade de se aposentar:’ Quando eu me aposentar ai eu vou ter tempo”. Só que aí a gente condiciona nosso corpo, o corpo não tem mais estrutura, está tão condicionado aquela rotina de anos e anos que a gente não tem outra forma de estar na vida. Então o mecanismo e controle continua.

Neste sentido, o panoptismo parece estar internalizado nos professores, exercendo

disciplina e coações, de tal forma que o fazem pensar que a sobrecarga de trabalho, imposta pelo

próprio sistema, como opção de vida, como no depoimento da professora Flor76, quando ela diz

que trabalha mais de quarenta horas porque a realidade é complicada, mas que “optou por isso”.

E por ter “optado” acha que deve cumprir suas obrigações sendo assídua, cumprindo as normas,

se auto-vigiando.

Já os depoimentos das professoras Rosa 77e Margarete78 mostram que elas percebem que

a utilização do tempo livre e a sobrecarga de trabalho como mecanismos de controle do sistema

econômico sobre o indivíduo. A professora Rosa reconhece que a sobrecarga de trabalho é uma

exigência do próprio sistema sobre o sujeito para ser aceito como produtivo. A professora

Margarete, por sua vez, acrescenta que este sistema exerce controle permanente sobre o tempo do

trabalhador, de forma a condicioná-lo a viver só em função da produção.

O tempo do professor é de fato todo absorvido com seu planejamento diário e continuo,

“vinte e quatro horas por dia”, como assinalou a professora Margarete. Enquanto o operário da

fábrica “descansa” em casa do esforço físico realizado, o professor, como “operário intelectual”,

carrega para casa o que realizou, reorganiza, reconstrói; trabalho este que não se conclui.

Como já expresso, o professor não é apenas mero executor de técnicas de ensino, pois ele

é o arquiteto do ensino-aprendizagem, que é dinâmico, imprevisível e vulnerável a uma série de

obstáculos. Assim a afetividade do professor é atingida por este movimento que absorve sua

energia, interferindo no seu modo de ser e de equilibrar e desequilibrar o seu eixo psicofísico, na

sua própria vida.

A esse respeito, vale destacar um dos dilemas atuais dos professores apontado por Nóvoa

(1995, p. 24-25), que é o “ exercício a tempo inteiro da profissão docente”. Ele observa que os

professores buscam no exterior os estímulos (econômicos, culturais, intelectuais, profissionais

etc) que muitas vezes não conseguem encontrar no interior do ensino. Assim, destaca o fato de

que a escola continua sendo organizada e vista como um agrupamento de salas e , como podemos

76 Vede neste capítulo p. 137. 77 Vede neste capítulo p. 137. 78 Página anterior.

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notar pela exposição feita há pouco, superlotadas, ou seja, apesar da sobrecarga de funções, não

se realiza nenhuma ação que incentive maior identificação do professor no local de trabalho. Este

ponto remete a outro entrave apontado pelos professores que são as condições físicas e materiais

onde realiza seu trabalho.

4.2.3 “A gente se desgasta muito com estes impedimentos”: precários recursos físicos,

materiais e humanos.

Podemos dizer que, ao mesmo tempo em que o professor é impelido a investir quase todo

o seu tempo no trabalho, as condições físicas, materiais e da escola não favorecem a

concretização qualitativa de sua atividade. Na seqüência, destacamos o relato da professora,

onde conta sobre as dificuldades que enfrenta para desenvolver uma atividade pedagógica:

Prof.ª Margarete: Eu tenho muita vontade de trabalhar com curta (filme de curta metragem), mas não tenho encontrado

condições na escola para trabalhar, sem espaço, porque o vídeo fica na biblioteca e é inconveniente, uma turma tão numerosa precisa de espaço para assistir, discutir, o que esta mais próximo em termos de mudança é a discussão de filme, mesmo que se retome na próxima aula.

Mas tem apenas um vídeo na escola ( o colégio que ela leciona é considerado de grande porte) ... e assim você pode argumentar porque você não insiste, mas no dia a dia são tantas turmas para dá conta, tantos alunos que, programo e penso , mas não é viável eu volto e vou fazer outra coisa. A gente se desgasta muito, fica muito chateada, muito aborrecida com estes impedimentos...

Este relato aponta para o perigo da vulnerabilidade da exaustão emocional do professor e

da despersonalização, características que envolvem a Síndrome do Burnout, ou seja, para o

perigo da desistência do professor. Pode surgir, neste contexto, o sentimento de desesperança,

como explica Esteve (1999, p. 48):

Muitos desses professores queixam-se explicitamente da contradição que supõe, por um lado, que a sociedade e as instâncias superiores do sistema educacional exijam e promovam uma renovação metodológica sem, ao mesmo tempo dotar os professores dos recursos necessários para levá-lo a cabo. Quando esta situação se prolonga a médio e a longo prazos, costuma-se produzir uma reação de inibição no professor, que acaba aceitando a nova rotina escolar, depois de perder a ilusão de uma mudança em sua prática docente que, além de exigir-lhe maior esforço e dedicação, implica a utilização de novos recursos dos quais ele não dispõe.

Este sentimento de desesperança pode implicar desistência simbólica do professor, numa

“queimadura interna” que aos poucos vai destruindo a sua criatividade, seu entusiasmo pela

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atividade pedagógica e desânimo na busca de estratégia para enfrentar os entraves, caracterizando

o quadro de Burnout (CODO,1999).

Por outro lado, é interessante registrar a noção de que, mesmo em condições precárias de

trabalho, há aqueles professores que resistem e continuam criando formas lúdicas e dinâmicas

para enriquecer o processo de ensino-aprendizagem. Como assinalado pela professora Luiza,

porém, não há um incentivo para divulgação dos trabalhos inovadores, nem na escola nem ao

público em geral , fato que sustenta o preconceito da imagem do professor de escola pública

como “acomodado” e “conivente” com as precárias condições da instituição.

É oportuno destacar a declaração da psicóloga Mary Sandra Carloto, estudiosa da

Síndrome de Burnout em professores, da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas

(RS), publicada na revista de Educação (2004, p. 60) assim dizendo: “No atual modelo de

educação neo-liberal, alunos e pais são clientes e ‘ o cliente tem sempre razão’. Como podemos

deduzir a categoria de professores sofre muitas críticas, é extremamente cobrada em seus

fracassos e raramente reconhecida por seu sucesso.”

É neste sentido que o grupo de professores da pesquisa critica o discurso incoerente da

Secretaria de Educação, representante do Estado, que sugere propostas de inovações

metodológicas e tecnológicas, mas não oferece estrutura física e material para sua concretização.

E ainda, quando ocorre uma iniciativa inovadora por parte do professor, este não é apoiado e

reconhecido pelas autoridades administrativas.

Além da falta de recursos físicos e materiais para desenvolver um trabalho pedagógico de

qualidade, os professores enfrentam o problema das instalações das salas, desconfortáveis, mal

ventiladas, sujas e muitas vezes com aparência opaca, sem vida. A maioria sente sua auto-estima

rebaixada, principalmente quando precisa ir ao “sanitário dos professores” ou quando querem

beber um pouco de água.

Este dado nos lembrou a ocasião em que realizamos a seleção dos professores desta

pesquisa para o curso de Extensão na sala do GEPEL, o grupo de pesquisa da FACED. É uma

sala pintada e decorada, pelos próprios participantes do grupo, em mutirão, com temas lúdicos,

alegres e acolhedores e com material reciclável, alternativo. Ao chegarem à sala para se

inscrever, os professores ficavam admirados com o ambiente da sala, e diziam como seria

diferente se as escolas pudessem ser pintadas de forma que os seus usuários se sentissem

confortáveis.

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A seguir trazemos um relato de uma professora que trabalha na escola e também numa

instituição de apoio às crianças de risco, como assistente social. Ao ser indagada sobre o

assunto, ela respondeu:

Prof.ª Luzia: [...] Porque, observe bem, o conserto de uma escola com um porte daqueles com mais de quatro mil alunos, você não tem auxiliar de disciplina, você tem três pessoas para varrer a escola toda. Você tem uma pessoa na Biblioteca que não é bibliotecário que vai embora porque não é contrato e não tem ninguém e bota qualquer aluno e ai só quer amigo da escola da escola, ah me poupe! Eu fico nervosa estressada com isso entendeu? Isso me estressa, gente como é que vocês querem uma escola, todo mundo fala em escola de qualidade em educar para vencer mas não tem, você não estrutura para isso imagine como é que você tem um corredor, um corredor por exemplo tem duas turmas que eu ensino elas ficam em um corredor, o corredor tem uma media de seis salas e do outro lado outra media de seis salas, não tem um funcionário no corredor você tem que dá aula e pedir silêncio à turma do lado se ela não estiver sem aula, e você tem que... você é tudo pelo amor de Deus! [...].

Para finalizar a discussão deste fator, desencadeante de mal-estar docente, pensamos que

o ambiente físico no qual são recebidos os professores, na maioria das escolas públicas, em

particular no Estado da Bahia, é um retrato explícito de que o professor não é visto como sujeito

da ação pedagógica, mas sim como apêndice, como instrumento ou coisa descartável que

transmite conhecimento. Assumimos as palavras da professora Luiza, quando diz que um

ambiente de trabalho não acolhedor reforça a mensagem de que o trabalhador não tem valor, não

merece respeito.

4.2.4 “ Respaldo de professor é aluno”: o fracasso escolar.

Outro entrave bastante discutido pelo grupo de professores diz respeito ao baixo

rendimento, à falta de motivação dos alunos na sala de aula, trazendo graves conseqüências para

a atividade pedagógica e sentimentos de insegurança e impotência nos professores. A carta

reproduzida à frente foi escrita após uma vivência da professora no grupo focal. É dirigida ao

governo do Estado e representa a preocupação do grupo com o assunto: Exmº Srº Governador,

Preciso lhe comunicar das diversas lacunas que existem na Educação da Bahia. [...] O grande espaço vazio que estou me referindo é o estado de desânimo que percebo por parte dos nossos alunos que estão enfrentando tantos problemas sociais e econômicos, fazendo deles uma geração de jovens com sérias carências. Outro grupo que está à beira do caos são os nossos professores que estão totalmente perdidos, se sentindo fragilizados com tanta cobrança e nenhum apoio por parte do Estado. Vocês dizem que estão dando todo o apoio, mas isto é mentira, a situação está precisando ser revista de imediato. A idéia do governo é só fazer (construir) escolas e mais escolas sem dar o menor apoio para que haja realmente um ensino compromissado e

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totalmente voltado para nossa realidade, uma realidade de grandes diferenças sociais e de questões mal resolvidas.

Profª. Monalisa

O problema da aprendizagem dos estudantes se relaciona com o produto do trabalho

docente, quinto e último elemento da práxis pedagógica, difícil de ser avaliado, se foi ou não

realizado. Tardif ( 2003, p.134) colabora com esta compreensão quando explica que o aprender

(consumo) é produzido ao mesmo tempo que o fazer-aprender (produto) e os professores agem

sem saber ao certo se os resultados foram ou não atingidos, tornando-se difícil ter um diagnóstico

claro de seus resultados:

O resultado do trabalho dos professores nunca é perfeitamente claro: ele está sempre implicado num conflito de interpretações que se revela num número incoerente de expectativas sociais diante das produções da escola. Eis porque cinqüenta anos após a modernização dos sistemas de ensino, ainda se discute, em todo mundo ocidental, se o nível de formação dos alunos subiu ou desceu.

Com a visão psicossomática sobre o trabalho, Dejours (1992, p.31), ao estudar o

sofrimento psíquico do trabalhador, identificou o medo da incompetência como um dos

sentimentos mais presentes. Inferimos que este medo pode estar presente nos professores, na

medida em que são constantemente responsabilizados pelo baixo rendimento dos alunos,

trazendo- lhes um sentimento de incompetência no processo pedagógico.

Outro depoimento, feito por um representante do sindicato dos professores da rede

estadual de ensino, presente a uma das reuniões do grupo focal, afirmou que os alunos cada vez

mais estão com o senso crítico menor e com dificuldades de aprendizagem e, no entanto, são

aprovados sem condições para tal. O mesmo professor questiona se não há uma conivência dos

colegas frente a este problema e assinala que os mesmos professores que conseguem ser

eficientes na escola privada não logram sê-lo na escola pública.

Sobre este tema, o grupo pesquisado debateu o seguinte:

Prof. Luiz - “ O docente tem seus anseios e desejos, a vontade de construir o seu trabalho muitas vezes ele é ceifado disso porque a própria direção da escola argumenta que os alunos não estão produzindo. Tem muitos professores que têm uma habilidade muito boa para trabalhar com criança e têm outros que não tem a menor habilidade, são conteudistas, são meros reprodutores. Então eles transmitem aquelas informações e os alunos retransmitem o que ouviu.”

Outra professora complementou, dizendo:

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Profª Patrícia - “ Ás vezes o próprio docente não tem uma auto-crítica, ele repete o que aprendeu e torna-se tipo um papagaio do sistema. Ele não percebe que está agindo como o sistema quer, ele não abre os olhos dos alunos, ele não fala com o aluno, ele falta as aulas, ele participa de alguma forma contribuindo com isso.”

Neste momento, foi possível observar a crítica feita pelos professores contra o império da

práxis mimética e repetitiva, destacando o ensino sem um saber crítico sobre o conhecimento, se

limitando-se a informação dele e não para sua ressignificação, detendo-se na transmissão de

conteúdos.

Outro ponto refere-se à despersonalização, traduzida por Codo (1999) como um

“endurecimento afetivo”, uma coisificação na relação, levando o professor a tomar atitudes

negativas em relação ao educando: indiferença, desprezo, insensibilidade diante da condição do

aluno, como defesa contra seus conflitos.

Dando prosseguimento ao debate, o professor Luiz, reafirma a posição do sindicalista: Os professores não trabalham na escola Pública como trabalham na Escola Particular. Nesta última eles são extremamente cobrados e entregam a prova em 15/20 dias, eles têm que dar a nota logo após a execução das avaliações. Enquanto na Escola Pública, teve greve, os professores tiveram oportunidade de fazerem as avaliações antes (na 1ª unidade) e no entanto, tem cadernetas da 2ª unidade que ainda estão abertas já estamos na 2ª unidade...são pontos complicados. A opinião sobre este ponto ficou dividida no grupo e o assunto voltou a ser debatido nas

reuniões que prosseguiram. Muitos deles acham que este discurso de que o professor trabalha

diferente na escola pública está relacionado a um discurso ideológico difundido pelo Estado:

Prof. Milton- “ Eu jamais vou ficar repetindo essa história que o governo quer: de que a gente na escola particular faz um trabalho e na escola pública faz outro. Não vou trabalhar em cima das exceções. Nós somos profissionais e não podemos ficar reproduzindo o que eles querem...sou profissional de educação sim, aqui, no Estado de Sergipe, na escola pública ou privada.”

Este mesmo professor, na entrevista relatou, “a sua dor” em relação às normas de

avaliação que o sistema educacional impõe aos professores e estudantes: Esta dor está ligada ao resultado que muitas vezes não é a verdade, um resultado fictício, um resultado que não contempla a verdade. Isto foi provado no SAEB, no Sistema de Avaliação de Educação Básica, a Bahia ficou com zero vírgula alguma coisa... eu apliquei uma dessas provas aos alunos de 8ª série, tinha lá geometria espacial, cálculos envolvendo...aquela matemática contextual, uma matemática em que você trabalha a leitura, [...] eles fazendo aquela prova e perguntando ‘O que é isso professor?’. Eu sabia que não podia ajudá-los, e disse que isso era o mínimo que eles deveriam saber na 8 série: ‘O MEC está cobrando aqui o mínimo que você tem que saber do currículo de matemática’. Eles olharam para prova com aquele olhar assim de incompetentes e diziam que não conseguiam fazer porque não sabiam o que era aquilo. Você sabe o que é angustiante? [...]. Assim até porque eu me centro muito na questão da pureza, do amor mesmo e vejo que faço parte de um sistema que está traindo as pessoas, eu acho que é isso que tem me deixado angustiado.

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Neste relato, podemos observar dois fatos importantes que negam o professor como

sujeito da ação pedagógica. Primeiro, o Estado não envolve o professor, e a comunidade em

geral, no processo de avaliação do aluno. Segundo, a avaliação, uma atribuição designada ao

professor, da forma como é realizada, não tem o sentido de diagnosticar e incluir79, mas de

classificar e excluir.

No seu estudo, Amaral ( 2002, p.142), ao apontar a avaliação contínua e qualitativa como

uma das dificuldades encontradas pelos professores para lidar com as novas propostas

pedagógicas, faz a seguinte observação:

A avaliação contínua e qualitativa em turmas tão grandes e tão heterogêneas, a ausência de uma orientação mais consistente e instrumentos facilitadores, a ausência da” nota”como referência deixam os professores “sem chão”. A ausência da reprovação – que na verdade nunca foi uma solução pedagógica- tem sido sentida por alunos e pais como estímulo a inércia estudantil. Eliminada a possibilidade de reprovação, ainda não foi encontrada a fórmula de garantir, em meio as nossas precárias condições, que os alunos sejam acompanhados de maneira adequada, permitindo-lhe o acesso à bagagem essencial para o exercício da cidadania.

Outro fato observado é que, por mais que resistam às coações e aos discursos ideológicos

do Estado, a angústia80 frente ao fracasso escolar dos alunos permanece entre os professores.

Além de serem acusados de culpados, eles se sentem incompetentes frente ao baixo rendimento

dos alunos. Assim, embora também associem o problema à carência econômica e afetiva dos

estudantes, buscam opções e aproximação com os alunos tentando ajudá-los, como pode ser

claramente notado na entrevista feita com outro professor, com trechos destacados a seguir:

Pesquisadora - O que lhe fortalece neste trabalho, e o que lhe desanima?(Obs: Chorou muito neste momento e precisei dar um tempo para que se expressasse.)

Prof. Caetano - (silencio) ...Eu ... eu sou fácil de chorar né? Aquilo me toca... a pergunta que você me fez

aqui agora ... é que eu falo o que sinto né? E...(chora mais uma vez)... Eu, eu fico muito...(continua muito emocionado). [...] Eles têm uma formação, assim, eles necessitam muito de ajuda .... na área de matemática, nas coisas básicas, e eu associo ao fato de eles terem tido uma formação deficiente, né ? E então eu me sinto triste.[...]

Mas, eu me sinto triste porque eu gostaria que eles soubessem, né? E fico assim preocupado, porque não sei como ajudá-los porque o tempo que nós temos é muito pouco. Eu dei um tenho um prazo que não......eu não choro lá, mas fica em mim, eu me sinto mal depois, assim impotente, por não poder ajudá-los.[...]. Então

79 Cipriano Luckesi (2002). 80 A palavra angústia é usada aqui como sinônimo de medo presente em todos os tipos de ocupação profissional como fonte causadora de ansiedade, como nos explica Dejours (1992, p. 63). Segundo o autor, há diferença entre medo e angústia, pois esta é uma produção individual, um conflito intrapsíquico cujas características só podem ser esclarecidas a partir da história individual e estrutura de personalidade de cada um.

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quando eu digo isso para eles .......porque eles tem capacidade, para aprender, para crescer, mas não tem condições, sabe? Às vezes, eu fico triste, porque, você sabe que é, mais uma pessoa, mais um grupo de crianças, ai, sem perspectivas”.

A fala do professor Caetano nos remete a um aspecto polêmico do trabalho docente, que,

embora não seja o foco do nosso objeto de estudo, se revela como fundamental para compreensão

da afetividade na práxis pedagógica. Diz respeito à questão do gênero na história da profissão

docente. Sabemos que a expressa existência das mulheres no magistério, principalmente na

educação infantil e no ensino fundamental, e a predominância da presença masculina nos níveis

de ensino médio e superior, contribuíram para estereotipias, segundo Pinto e Miorando (2000).

Nesta discussão, cabe assinalar que um desses estereótipos pode estar presente na

consideração de que as mulheres são mais sensíveis e maternas, estando mais voltadas para

crianças, ou jovens mais imaturos. Já os homens, por se apresentarem mais objetivos e frios, são

mais propensos a lidar com adolescentes e adultos.

O que observamos no professor Caetano, no entanto foi um intenso envolvimento afetivo

com a aprendizagem de seus alunos, mostrando sensibilidade e maternidade, ao tentar dar-lhes

segurança e incentivo aos mesmos e ao expressar tristeza e impotência quando este apoio

fracassa. Diante do exposto, acreditamos que o compromisso profissional e o engajamento

intelectual e afetivo do docente independem do gênero masculino ou feminino e da faixa etária os

educandos com os quais lida.

Outra preocupação dos professores sobre o baixo rendimento escolar é motivar os alunos

para que fiquem disponíveis para o processo de aprendizagem, como destacado no trecho da

entrevista que segue:

Pesquisadora – Quais são as dificuldades e facilidades que você enfrenta para lecionar?

Prof.ª Flor– A falta de estímulo à noite. Eles já chegarem ‘Ah professora eu não tive tempo de fazer’, ‘Eu trabalhei até tarde cheguei cinco horas da manhã. Então eles já chegam muito cansados, vai ali por causa da freqüência e falta a energia deste público da noite. Esta dificuldade de está ali, e tem que ter uma forma de buscar outras alternativas. Eu digo sempre para eles: ‘ Olha o que a gente vai dar aqui é o mínimo do mínimo, e estudante tem que encontrar tempo, eu sempre trabalhei durante o dia e sempre conciliei trabalho e sei que não é fácil... mas a gente tem que pular os obstáculos para poder conseguir o que vocês querem, tem que fazer um pouquinho de esforço. Vocês não querem ter um diploma?’.

Este “mínimo do mínimo”, este “abrir mão”, é uma realidade cotidiana do professor de

escola pública, principalmente nos cursos noturnos, afetando inicialmente a qualidade de ensino.

O tempo das aulas é menor do que nos cursos diurnos, a clientela é da classe trabalhadora que,

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em sua maioria, sai diretamente do serviço para a escola. Além disso, o próprio professor também

vai para a aula já exausto do trabalho diário que executou, decorrente da sobrecarga de trabalho,

conforme já discutido nesta seção.

Desta forma, retomando a afirmação do sindicalista de que há uma “conivência do

professor” em relação ao fracasso escolar dos alunos, podemos inferir que esta conivência é

recíproca. Torna-se uma defesa necessária para o enfrentamento de uma situação comum aos

pares educativos: a condição socioeconômica e as condições de trabalho.

A professora Flor, em foco, com carga horária de oitenta horas semanais, procura dar o

“mínimo” que lhe resta de energia para poder motivar estes alunos, dando o “mínimo” de

conteúdos, “abrindo mão” de seus saberes teóricos, para acolher o cansaço físico dos estudantes

com os quais se mostra empática. Ambas as formas de atuar se deslocam para atingir o mesmo

produto de trabalho: “um mínimo de aprendizagem”. Como já discutido, contudo, nem sempre o

professor atua e pode atuar em todos os dois níveis da práxis pedagógica, ainda que se esforce

para isso. É importante lembrar que a educação é dialética e contraditória, como nos ensina Paulo

Freire (1985). Ela nem é apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia

dominante.

Em outra perspectiva, observamos que oficialmente se reconhece a crítica feita aos

professores como responsáveis pela ineficiência do sistema educacional, conforme se evidencia

os níveis de fracasso escolar dos alunos. Ao mesmo tempo, entretanto, o próprio Ministério da

Educação, conforme se encontra nos Referenciais para a Formação de Professores (1999),

reconhece que existem deficiências na formação de professores, precárias condições de trabalho e

outros fatores determinantes, mas ainda se posiciona de forma ambígua sobre a questão:

O professor não pode ser visto como “o” problema, mas como imprescindível para superação de parte dos problemas educativos. E como tal deve ser tratado: como aquele que pode e deve implementar parte das mudanças que se fazem necessárias para garantir uma educação escolar de qualidade a crianças, jovens e adultos brasileiros. O investimento financeiro na formação dos professores, embora necessário há muito tempo, torna-se agora inadiável.(ibid, p. 33).

A partir desta problematização, consideramos importante para o aprofundamento deste

item, pois está ligada ao produto do trabalho docente, a discussão sobre o Exame de Certificação

Ocupacional para professores, aplicado no ano de 2004 pelo governo do Estado da Bahia. Este

tema, por trazer à tona “os padrões de competência” do docente, fez apostar novos debates no

grupo em estudo não só sobre a inculpação do professor sobre o rendimento dos estudantes, como

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também fez emergir outro entrave presente na práxis pedagógica: a relação de autoritarismo entre

o órgão gestor e o corpo docente.

4.2.5 “Educar para vencer! O quê?” : certificação ocupacional.

O Exame de Certificação Ocupacional para professores foi percebido pelo grupo como

mais um instrumento de pressão, autoritarismo, desvalorização, regulação e humilhação sobre o

corpo docente. Antes de apresentar os depoimentos dos professores, julgamos necessário

esclarecer, segundo informações da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC) 81, a

finalidade de tal exame.

O documento informa que o exame é um processo de avaliação dos conhecimentos e

habilidades necessários ao exercício de uma determinada ocupação. No ano de 1999, a SEC, com

parceria com a Fundação Luiz Eduardo Magalhães, iniciou o Sistema de Certificação

Ocupacional inicialmente aplicado nos diretores escolares no ano de 2001, sendo depois realizado

com coordenadores pedagógicos e professores.

Este sistema faz parte de um dos projetos prioritários de um programa maior do governo:

“Educar para vencer”82. A tecnologia de certificação foi transferida por uma instituição

americana, sem fins lucrativos, para a referida Fundação coordenar o processo do avaliação, o

qual consiste em exames práticos e teóricos, revalidados a cada três anos, estabelecendo os

chamados “padrões de competência”.

O Sistema indica os seguintes benefícios para o professor: maior consciência do seu

papel, reconhecimento público de suas competências e experiências, estímulo ao aperfeiçoamento

contínuo, maior clareza nos critérios para ocupação dos cargos. No entanto, o que mais chamou a

atenção da classe docente, no entanto, foi: a promoção na carreira do magistério público estadual

do Ensino Fundamental e Médio, conforme lei nº 8.480. Deixa claro, contudo, que a aprovação

no exame não implica nomeação, manutenção no cargo ou aumento salarial.

Ao se referir aos benefícios para a sociedade, o documento83 assim prescreve: segurança

na qualidade de serviços prestados, desenvolvimento e manutenção das competências

estratégicas, garantia de profissionalização, democratização do processo de preenchimento de

81 www.certifica.org 82 O Projeto “Educar para vencer” tem como princípios norteadores: 1. A escola como eixo de mudança; 2. o aluno como centro de reforma; 3. foco na elevação da qualidade do ensino fundamental. 83 www.certifica.org.

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cargos e, por fim, integração do ensino acadêmico à exigência do mercado de trabalho. É

importante dizer que a validade do exame é de três anos, pois acredita-se que, neste tempo, o

professor possa atualizar os conhecimentos e habilidades. O professor que não for aprovado pode

repetir a prova no prazo de dois anos, quantas vezes o exame for oferecido. O documento deixa

claro que as despesas com o exame ficam todas a cargo do professor: inscrição, material

bibliográfico, diária e outras.

Destacamos, a seguir, a opinião de uma das professoras do grupo sobre o assunto, numa carta

simulada dirigida ao governo do Estado, feita em um dos nossos encontros, após uma vivência: Exmº Srº Governador,

Como professora da Rede Pública Estadual, venho através desta expressar o meu protesto pela forma com que a V.Exmª vem conduzindo a educação neste Estado. É estarrecedor, indescente a maneira como somos tratados, enquanto protagonistas da Educação.

Um bom exemplo que desejo citar é a forma reducionista e antidemocrática com que foram tratados alguns professores desta Rede. Como no caso da Certificação, que deveria ser capacitação em serviço. Isso demonstra o despreparo do Estado para conduzir uma Educação e um educador de qualidade, ouvindo e envolvendo todos na busca de soluções das questões sérias e urgentes que vem preocupando toda a sociedade.

No lema da vossa administração panfletária que é “Educar para vencer” , deveria ser acrescentado: educar para vencer o engodo, o cinismo, a mentira e a indignidade para com o Estado.

Vossa excelência precisa se educar para aprender e incluir. Prof.ª Sandra

A reflexão feita pelo grupo de professores sobre este tema veio como emergente desde o

segundo encontro do curso de extensão, momento em que os professores tiveram oportunidade de

conversar com seu representante sindical. Este assunto, porém, só entrou como foco no oitavo

encontro, ocasião que antecedeu a prova, e no nono encontro, momento em que a prova já tinha

sido realizada. Descreveremos a seguir como ocorreram estes encontros.

No encontro que antecedeu à prova, o grupo foi sensibilizado com atividades lúdicas

corporais focadas no que se chama de grounding (LOWEN, 1985), ou trabalho de base, que tem

como objetivo trazer a pessoa para o chão, para a realidade, permitindo maior consciência da

forma como caminha na vida. Denominamos a oficina de “Brincando com os desafios”, centrada

na ansiedade dos professores em face do exame da certificação. O ritual de entrada foi feito com

duas danças circulares,84 a dança TUPY, indígena de ancoramento que trabalha com as vogais

dos nomes, e a dança ELM, de centramento que tem como objetivo equilíbrio e auto-afirmação.

A oficina propriamente dita foi envolvida por jogos interativos, bolinhas, exercícios de confronto 84 Ver relação das danças no ANEXO C.

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e visualizações 85. Todas as atividades foram programadas com o objetivo de trabalhar as tensões

que permeavam os professores naquele momento do grupo. Na visualização, foi pedido ao grupo

que refletisse sobre as seguintes questões:

• Por que o exame de Certificação incomoda?

• O que tem de bom? O que tem de ruim?

• O que e como estão sendo ameaçados?

• O que ele muda na vida dos professores?

• O que os professores podem fazer para mudar esta situação?

Após intervalo, o grupo foi subdividido em quatro subgrupos e foi sugerido que montassem

cenas que contemplassem as questões visualizadas há pouco. Já neste encontro, os professores

acreditavam que o exame representava uma forma coercitiva e chantagista de pressão do governo

sobre a categoria. As cenas montadas podem ser resumidas nas seguintes opiniões:

• O Exame de Certificação não pode medir a competência e o compromisso do professor no

seu trabalho. Somente os alunos podem fazer esta avaliação:

Prof.ª Luiza: “Se a direção, a SEC e o Estado querem saber como anda nossa competência que não nos exponha, que não nos coloque em constrangimento, que não nos deixe com síndrome de culpa. ‘Vá assistir a aula comigo, pronto! Vá acompanhara turma!’ Porque, volto a dizer, respaldo de professor é aluno. ”

• O exame de certificação é mais uma forma de “denegrir” a imagem do professor. Os

professores não vêem pontos positivos nele.

Profª Mariana: “O governo o tempo todo vem nos desvalorizando, vê o professor pelo número do cadastro. O que a gente aprende a valorizar numa avaliação se perde todo num trabalho deste. Acaba qualquer sentimento de estima, de amor próprio, de amor pela profissão.”

Prof. Gilberto: “Na minha opinião é uma forma de excluir...de denegrir a imagem do professor, do profissional. Quais os pontos positivos e negativos da certificação? Eu peço desculpas, eu não vejo pontos positivos. Talvez por não acreditar em mais nada que venha da Secretaria de Educação...”

• A SEC, que deveria ser o órgão de acolhimento e respeito ao professor, é o lugar onde ele é

mais humilhado, desvalorizado e rivalizado pelos próprios servidores:

Prof. Milton: “...Tem colega que vai para SEC, e é o fim, volta triste, chateado, com a auto- estima derrubada. Primeiro porque vai para um lugar que não quer ir. Por que esta SEC não esta do lado da gente? A Secretaria vira inimigo da gente, não é ? “

85 Ver no APÊNDICE H as vivências do 8º encontro.

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• Trata-se de mais um pacote do Governo para ser “vendido” como mercadoria. É também

uma forma de expor o professor a constrangimentos e para rotular aquele que não será

aprovado. Para ilustrar este ponto de vista, detalhamos a dramatização feita pelo subgrupo:

Cena 1:Um professor entra representando a SEC, usando o crachá da certificação:

- CERTIFICAÇÃO” (mostra o crachá)– Olha que coisa maravilhosa! Certificar...(o professor prossegue falando dos benefícios da certificação como se estivesse vendendo um produto).

Cena 2:Os outros professores que fazem parte da cena se dividem em dois grupos, cada um usa

um chapéu com um nome: um grupo “aprovado” e o outro grupo “reprovado”. O professor do

crachá se dirige ao grupo de aprovados:

- Parabéns! Aprovados: status, sucesso...

Ao grupo de reprovados:

- Queridos não nos interessa! Vocês não estudaram, não se prepararam!

• Sugestão de boicote às provas e crítica àqueles que optaram por fazer o exame só porque a

maioria cedeu:

Prof.ª Luzia: Na minha opinião eu acho que nós deveríamos boicotar este exame. Não fazer em hipótese nenhuma.Como cada um tem seu comando...um colega me disse que se a maioria fizer que ele faz. Imagine!Veja o que sua cabeça e não seu coração está pedindo para você fazer. É isso que eu penso.

Os argumentos dos professores deixam claro que o exame é mais uma prova de

desvalorização e desrespeito à pessoa do professor no processo de ensino. Percebem a

certificação como excludente, desde a sua organização até as intenções e ameaças apontadas. Os

dados expostos há pouco nos levam à reflexão de Freitas (2000), no artigo de nome “Certificação

docente e formação do educador: regulação e desprofissionalização”. A autora adverte para a

idéia de que a adoção do exame de certificação de professores, como forma única de avaliação

de desempenho, evidencia o viés regulador presente nas políticas do atual governo. Ao se referir

ao programa “Toda Criança Aprendendo”, lançado pela Secretaria de Ensino Infantil e

Fundamental do MEC, a autora em foco analisa:

Uma primeira análise deste Programa nos permite identificar algumas das contradições postas para a atual gestão das políticas educacionais. A primeira delas é a manutenção da centralidade da avaliação nas políticas educacionais do atual governo, que vem direcionando a adoção de medidas de impacto, tais como o Exame Nacional de Certificação e a Rede Nacional de Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação. Ao fazê-lo, reforçam-se as concepções equivocadas sobre as causas dos baixos índices de aprovação dos alunos nos exames nacionais, responsabilizando – mais uma vez – exclusivamente os

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professores pelo sucesso ou fracasso do desempenho dos estudantes da educação básica. (Ibid, P. 12).

Podemos observar então que a certificação de professores faz parte da política nacional de

formação docente, e, por trás dos seus objetivos de desenvolvimento profissional, tem um caráter

regulador da prática pedagógica.

Prosseguindo com o debate do grupo, uma semana depois da prova, no nono encontro, os

professores foram convidados a escreverem uma carta simulada para o Estado, relatando o que

ocorreu durante a prova, suas opiniões e sentimentos em relação ao exame. Destacamos, a seguir,

mais uma delas, cujo professor não quis se identificar:

Exmª Srª Secretaria de Educação Inicio desejando minhas cordiais saudações e sucesso no ano corrente. No último dia 26/09/2004 prestei

um concurso denominado Exame de Certificação Ocupacional onde tive que responder 55 questões pedagógicas e uma redação, aliás, fiz novamente o mesmo ritual quando ingressei na Rede. Em determinado momento, tive vontade de entregar a prova sem responder, mas todos os desafios para os quais sou convidado a participar vou até o final. Fiquei muito triste em visualizar questões onde as “chazes” ridicularizam a prática docente e muitas vezes questões que fazem com que nós legitimemos o caos da Educação como únicos culpados.

Durante a implementação da prova, questionei a mim mesmo qual o meu papel em provar para o Estado a minha competência através de um instrumento sem cunho científico e em questões onde o seu ponto de vista não era levado em consideração.

Mais uma vez percebo que a Empresa em que eu trabalho faz quase nada por nós profissionais e concluo minha fala dizendo “Educar para vencer! O que?’

Saudações Sem assinatura

De acordo com as declarações do grupo, e a carta ilustrada, a prova foi uma “armadilha”

e trouxe questões bifocadas, ambíguas, pesadas, além de cansativas. Muitos detalhes das questões

passaram despercebidos e com premissas voltadas para apontar erros. Os itens foram mal

elaborados, descontextualizados, contraditórios e cheios de segundas intenções, “maliciosos”.

Queria, desta forma, segundo o grupo, mostrar a incompetência do professor, querendo legitimar

a sua culpa pelo fracasso escolar. Esta afirmação está presente no depoimento a seguir:

Prof.ª Francisca:

“Prova contraditória, as questões exigiam o tempo todo do professor uma nova postura. Mas foi tradicionalíssima. Uma prova de vestibular, que a gente está acostumado, cansativa, cheia de segundas intenções. Foi bem elaborada, mas a gente não sabe o real objetivo da prova e fica achando que quem fez a prova não tinha competência, quem fez ou achou muito difícil ou muito fácil. Eu não achei a prova fácil, achei cansativa e cheia de armadilha, trouxe questões que passaram despercebidas. Na redação, eu escrevi o que eles

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queriam, da mesma forma que fiz no concurso quando eu queria entrar, eu nunca coloco realmente o que eu acho.”

Os professores também observaram que a prova buscou medir o desempenho do

profissional sob os moldes tradicionais e com um instrumento sem cunho científico,

contradizendo os novos princípios e teorias sobre avaliação:

Prof. Luiz: O governo quando quer investir no desenvolvimento de competências e habilidades do educando busca inovações, desenvolve vários projetos. Mas quando se volta para o profissional de educação, envereda pelo caminho tradicional, realizando avaliação “armadilha.

Além disso, criticaram a falta de transparência desde o processo de inscrição até a prova;

não foi permitido que levassem o caderno para casa e não tiveram direito a revisão da prova.

Diante deste fato, o grupo expressou que nunca fica evidente a real intenção da SEC sobre o

professor, como pode ser notado na carta a seguir: À Exmªª Srª Secretaria de Educação do Estado da Bahia Prezada Senhora,

O motivo pelo qual escrevo esta carta está na busca de compreender o real motivo /propósito da certificação profissional dos educadores do deste Estado. Reconheço e apoio a busca da qualidade da educação, não só na Bahia mas em todo país. Entretanto, desaprovo as formas como estão sendo conduzidas as estratégias para esta busca de qualidade profissional.

Em primeiro lugar, este exame de certificação não teve a necessária divulgação com esclarecimentos precisos. Também, não nos deram tempo para a leitura de tão rica a bibliografia que nos foi apresentada.

Segundo, o desrespeito para com o educador, não lhe fornecendo a prova posterior a avaliação, dando-nos apenas o gabarito, provando mais uma vez que a questão quantitativa é a mais imposta.

E em terceiro e último lugar, a incerteza das futuras condições desta certificação. Sem mais,

Prof.ª Solange

É interessante ressaltar que os professores das áreas de Educação Física e Educação

Artística foram excluídos do processo de certificação. Um deles declarou estar feliz por não ter

participado do que chamou de “palhaçada”, mas não considera justa a exclusão. De tudo isso, foi

possível perceber como a prova provocou muito desgaste no professor, e a forma como foi

organizado o exame de certificação não parece ser, para o grupo, o caminho mais indicado para

busca de melhoria na Educação: “O professor nunca é escutado, as ações são sempre pensadas

por técnicos que não estão ou não convivem com quem está na sala de aula.”

Deste modo, dizemos que o que mais atormenta o professor é que a ascensão na carreira

está condicionada a este tipo de avaliação, como podemos observar na carta seguinte também não

identificada.:

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Cara “colega” Secretária de Educação, Neste momento venho relatar sobre o meu sentimento durante a “prova” de certificação para professores do ensino fundamental/médio. Impressionante como na teoria buscamos o desenvolvimento do aluno em suas competências e habilidades. O governo ingressa vários projetos neste sentido e quando quer buscar o conhecimento do profissional da Educação envereda pelo caminho do tradicional e pior, fazendo uma avaliação como a aplicada: cheia de “armadilhas”. Para que isso? Será que aquele tipo de avaliação saberá se o profissional possui realmente as competências necessárias? Outro fator que me atormenta são as razões “hoje” que nos levaram a fazer. Buscamos aumentar o salário. Será que esta deveria ser a real razão? Temos que rever a finalidade da certificação, onde o profissional não sinta-se apenas sendo testado. Tem-se que mostrar a necessidade de atualizar e isso também tem que ter o apoio do governo. Para que consigamos ter um verdadeiro profissional de Educação, feliz com a sua opção e assim desenvolver um trabalho de qualidade.

Sem assinatura

Outro ponto que pode ser observado neste exame é que não ouve uma consulta, uma

participação efetiva da comunidade escolar para sua organização. Ele foi sentido como mais um

“pacote” do governo e dessa vez mais humilhante e ameaçador pois foi imposto como condição

para ascensão profissional, apresentando uma prática de avaliação autoritária e duvidosa.

É interessante destacar a contradição entre este exame de certificação, aplicado pelo

Estado, e o que se encontra escrito pelo MEC, nos Referenciais para formação de

professores(1999 p. 145-149). No item, Avaliação da atuação profissional, é expressa a idéia de

que a avaliação pretende contribuir para o desenvolvimento profissional dos professores e é

condição para “orientar, regular esse processo e torná-lo orientador da progressão da carreira.”

Ressalta, entretanto, que o processo de avaliação não deve se reduzir a critérios isolados entre si e

descontextualizados, como, por exemplo: índice de reprovação de alunos e abandono da escola,

ou o comportamento do professor como bom ou rígido. Tal avaliação deve focalizar o

desenvolvimento das competências86 do professor, com a necessária explicitação e socialização

dos critérios. Pressupõe a avaliação de conhecimentos de naturezas diferentes, inclusive o

conhecimento experiencial.

O documento deixa claro que busca superar a avaliação tradicional que predominou na

história da educação do País: “Há que considerar também as resistências diante de situações de

avaliação, seqüelas do caráter meramente classificatório que marca a história da avaliação

86 Competência profissional, de acordo com o documento supracitado, “pressupõe a capacidade de mobilizar saberes de diferentes naturezas no exercício de suas funções e segundo o qual a real qualidade do trabalho profissional só pode ser aferida em situação contextualizada.” (ibid, p.145).

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educacional em nosso país. O uso dos resultados da avaliação apenas para classificar as pessoas é

imobilizador, já que as estigmatiza e não estimula a melhoria de sua atuação.”(id.ibid, p.145).

Como pode ser notado, parece que foi o que aconteceu com os professores em destaque:

ficaram resistentes frente à forma de organização do exame, caracterizada como autoritária e não

suficientemente transparente em relação aos critérios. Além disso, frente a uma prova

desqualificadora do ofício docente e de seu saber, ficaram imobilizados e se sentiram

estigmatizados conforme a leitura de suas cartas. Além disso, exprimem como principais

sentimentos que emergiram desta experiência: indignação, humilhação, afronta, desrespeito e

desconfiança crescente no Estado. Tais sentimentos, comuns no grupo, estão representados na

carta da professora Mary: Para todos que desejam saber o meu sentimento quanto a certificação

Ao certificar-me, certifiquei-me que estamos nadando conta a maré da vida, em relação ao que somos e aos nossos anseios profissionais. Senti-me como um objeto não acabado passando por um polimento falso para ser vendido como um produto pronto e útil à Sociedade.

Agora me pergunto: Porque fiz, porque deixei que me usassem? Respondo a mim mesma que deixei usar-me para conhecer melhor os mecanismos deste teste para qual não fui preparada e que acredito, teve como objetivo nos deixar certificado da falta de interesse do governo em relação a educação do seu povo.

Prof.ª Mary

A autocrítica do grupo sobre a falta de organização política no processo de realização do

exame de certificação pode ser traduzida como imobilidade frente à situação, como podemos

observar no comentário que segue:

Profª Iolanda: Eu fico angustiada porque parece que é um grupo de pessoas reclamando para dentro de um circulo, não é?

E a gente sabe muito bem que estas questões não vão ser resolvidas aqui. Em nenhuma sala houve nenhuma colocação, a não ser a do colega aqui onde houve o movimento de “precisamos ir buscar”. Precisamos ir buscar realmente, primeiro porque não houve uma organização, ficou todo mundo como barata tonta, envenenado, sem saber se fazia ou não fazia, coletando informações de um e de outro, o que o outro achava etc.[...]

[...] Tem que está agora se mobilizando, indo para o jornal mesmo, fazendo críticas a prova , dizendo que foi ridícula, que foi armadilha. Porque depois que sair o resultado vai ficar parecendo assim: ‘ Olhe porque perdeu agora está reclamando e não vai ter mais sentido. O momento para se discutir é agora, foi ontem e já passou. A gente tem mania disso, na hora que é para discutir ‘ estou ocupado’, ‘não tenho tempo’, depois que passa: ‘Pô não fui convidado para discutir’ , mas nem se propôs um momento para discutir.

É necessário registrar o fato de que um grupo de professores de um determinado colégio,

conforme informações do grupo, estava se organizado para impugnar o exame, mas ninguém

soube notícia. Informou ainda que o Sindicato, na última greve, colocou o exame como conquista

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da categoria, pois foi pauta de reivindicação do próprio Sindicato ao Governo. Uma professora

argumentou que não acreditava que o sindicato tivesse aprovado este tipo de certificação, pois

uma coisa é o conteúdo e a outra é a forma como foi realizado o exame.

A respeito da forma como foi realizada a certificação, é também importante destacar a

noção de que o documento do MEC ( 1999,p.146-147), afirma que os critérios de avaliação

devem ser socializados: “...o desafio é criar uma cultura de avaliação que se realize na rotina das

escolas e dos sistemas e que envolva a todos”.

Dessa forma, esclarece que todos deveriam ser envolvidos no processo: equipes de

professores, diretores, coordenadores pedagógicos e membros da equipe técnica das secretarias.

Além disso, o documento apresenta um quadro no qual os instrumentos e os próprios avaliadores

são variados e flexíveis: “... propõe-se que a avaliação seja feita por meio de diferentes ações e

por diferentes avaliadores, para que possa fazer juz à complexidade do trabalho docente.” O

grupo de professores observou que estes critérios não foram aplicados, caracterizando-se mais

uma vez como um exame imposto, anti-democrático.

Neste leque de arbitrariedades e humilhações, os professores apontam outro entrave que

dificulta seu caminhar: a solidão profissional no cotidiano escolar, ponto que será discutido a

seguir, destacando a importância das relações humanas no trabalho educacional.

4.2.6 “O professor não tem tempo para trocar idéias com o outro” : o isolamento.

Querida professora,

...Neste momento, estou com colegas profissão, discutindo e vivenciando as conquistas e dificuldades que enfrentamos na práxis educativa. Não é fácil, nossa labuta, às vezes é penosa. Mas fico feliz e me sinto muito mais leve quando estamos juntos; a partilha parece que deixa o fardo mais leve e percebo que é possível continuar o velho trabalho renovado, com a esperança de que um novo dia nascerá, exatamente como o romper do sol, a nossa aurora de cada dia.

Te deixo agora com um abraço iluminado!

Profª Sandra

Esta carta foi escrita no sétimo encontro do grupo87, após uma oficina, quando solicitamos

aos professores que escrevessem para si mesmos. Destacamos este trecho da carta, por mostrar a

necessidade e a importância do professor compartilhar os seus problemas com os colegas.

87 APÊNDICE J.

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A solidão no enfrentamento dos problemas cotidianos ocorridos no trabalho pedagógico

foi um dos entraves mais citados pelos professores. Este parece estar relacionado diretamente

com o isolamento apontado por Esteve (1999), como um dos fatores do mal-estar docente.

O primeiro foco desde entrave está voltado para o trabalho solitário desempenhado pelo

professor, não somente na questão do ensino das disciplinas em si, mas também para enfrentar os

imprevistos e entraves do dia-a-dia do ambiente escolar, como podemos observar na fala da

professora Luíza: E a outra coisa que eu venho observando, eu acho assim, o entrave mesmo é que às vezes, parece que a gente fica só, entendeu? [...] Mas você tem que fazer alguma coisa, mas só o que você precisa fazer, você não pode fazer sozinha. Não tem como você fazer sozinha, por exemplo, eu tenho salas hoje que tem uma média de 48 alunos. Não tem como você trabalhar sozinha numa coisa dessas. Você precisaria no mínimo ter uma equipe. Não vou dizer aqui, multidisciplinar. Mas pelo menos ter mais dois profissionais, que entendessem um pouco mais de emoções, de sentimentos de problemas familiares, de uma série de outras coisas. Mas que, se nunca vêm lá fora, aparecem na hora que ele está escrevendo, a palavra que não sabem, a leitura que não sai, não aprende não sei quê, e aí fica assim.[...]

A professora relata os problemas e os múltiplos papéis que o professor na

contemporaneidade enfrenta: salas superlotadas, a diversidade sociocultural dos estudantes e

seus problemas emocionais e de aprendizagem, indisciplina, violência e falta de um trabalho de

equipe integrado no espaço escolar que dê conta desta realidade.

Ao mesmo tempo em que o professor é solicitado a assumir vários papéis, a

coordenação pedagógica também assume várias atribuições, não realizando um trabalho efetivo

junto aos professores:

Prof.ª Mary: Tem uma reunião semanal que na verdade está sendo quinzenal, porque os professores se queixavam do seguinte: toda quinta-feira eu tenho a tarde para trocar idéias com a coordenadora e com os professores da minha área, quer dizer, de todas as áreas, que agora é por área. Antigamente era por disciplina nós tínhamos um coordenador de áreas que era importantíssimo, e aquele coordenador de área ele entende inglês, ele tem todo o interesse nos professores de inglês ele trazia material [....] Diminuiu o número de coordenadores,e passaram a ter funções que não é da orçada do coordenador não é? Então ele ficou sem tempo, ele tem que atender os pais de alunos... Então nós sentamos para ver o quê? Ai mudou, agora vamos decidir uma coisa um ou dois anos pra cá, por área: linguagem, ciências humanas e ciências naturais. Então agora fala assim, como é que está o programa da primeira unidade, já colocaram as notas da primeira unidade? Já fecharam as cadernetas? Não é só isso ... Mas, então agora a atribuição dele agora é tanta que esta de quinze e quinze dias, então nós trabalhamos com a programação no que nós vamos trabalhar e deixamos com eles, um plano de aula.

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Vários professores convergiram à posição de que a coordenação pedagógica não

assume um papel ao lado dos professores e, em muitos casos, se posiciona contra eles.

Argumentam falta de sensibilidade em muitos coordenadores para questões pedagógicas e,

decorrente disso, se centram nas formalidades, havendo uma preocupação maior com os

resultados apresentados e não com o processo pedagógico em si. Indica que esta posição

assumida os faz “perder de vista e de valorizar experiências interessantes e inovadoras no

ambiente escolar”, como anota a professora Margarete.

A respeito das formalidades dos encontros pedagógicos e sua não-resolubilidade, o

grupo entrou em consenso e reconheceu que este fato mostra mais uma vez que o professor não é

visto como sujeito, autor e construtor de um saber pedagógico cotidiano que precisa ser

compartilhado e registrado, mas sim como apêndice do processo educativo. Destacamos a seguir

um trecho da entrevista que fizemos com a professora Solange sobre o assunto:

Pesquisadora - Você compartilha essas suas dificuldades, esses seus dilemas, com seus colegas, seus superiores...Como é que se dá essa comunicação dessas questões que você está me colocando ?

Profª Solange - Olha, é tão difícil essa relação, assim com... Esse momento. É difícil assim, por que não há tempo. Não é difícil de eu me comunicar, o problema é tempo que a escola não dá. A gente tem um tal de AC88, horário de AC. Eu não sei nem que sigla é essa. Mas é o AC, é o um momento pedagógico, um momento de planejamento pedagógico, onde raras vezes a gente consegue, quando consegue um coordenador, quando a escola tem um coordenador e a gente consegue discutir com ele, alguma coisa. Porque são tantas coisas para serem discutidas naquele instante que a gente não dá conta. Então quase nunca.

Outro argumento focado na falta de abertura para compartilhar os problemas foi medo

e/ou indiferença da direção escolar frente às queixas e reivindicações como ilustra o trecho

da entrevista com a professora Mary:

Pesquisadora - Nesses momentos de reunião, vocês trocam idéias? Há tempo pra isso? Há condições de vocês colocarem o que vocês pensam e suas propostas? Prof.ª Mary- Bem, são colocadas mas sempre o professor fica naquela defensiva porque ele não é bem visto pelos colegas e pela direção. E ai o que você vê são os professores revoltados, nervosos porque eles falam está faltando isso está faltando aquilo escreve no papel leva pra direção ai demora de resolver. O que está acontecendo? Todo mundo se calando não é? Lembro quando nós representamos aquela peça do Vitor Hugo, ai paramos e ficamos calados porque não tinha mas interesse da gente não é? Aí o professor pára e fica sabe, o quê que você acha? Olha prefiro nem me meter nisso, eu fico tão chateada, eu já falei tanto, já estou vista pela direção como a pessoa que cria confusão na escola eu não quero mais falar. Sabe, tudo é assim na discussão todo mundo fala de vez, todo mundo nervoso querendo colocar todo pra fora, sabe? O professor não tem tempo de trocar muitas idéias com o outro.

88 Atividade complementar (AC).

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Neste sentido, o grupo sinalizou também a negligência da diretoria frente aos problemas

cotidianos da escola. Dizem que, quando professores apresentam propostas, estas são tratadas

com indiferença, não levando a nenhuma resolubilidade. Este fato confirma que não há um

entendimento, uma escuta, em relação aos problemas e interesses do docente, como observamos

no depoimento abaixo:

Prof.ª Carla: Inicialmente, me sentia bem, hoje chega um momento que começo a desacreditar, pois sempre se fala da mesma. Não conseguir ainda construir uma alternativa, se estas reclamações não são atendidas e muitas vezes atendidas superficialmente, para constar que a escola funciona. Mas na prática no dia a dia, a gente constata inviabilidade disso e que aquela medida ficou apenas no papel..

Em contrapartida, um professor revela que, quando o espaço escolar é democrático,

transparente, a partilha ocorre:

Prof. Milton: Existe um “intervalozinho” antes de começar as aulas, porque nossa escola é uma escola muito boa, é

prazerosa. Isso é bom, né? A gente chega mais cedo para tomar café, a gente faz uma vaquinha, nós fazemos um cafezinho coletivo, cada um dá cinco reais. Existe essa comunhão, isso é forte. A questão de você comungar da mesma coisa é muito forte, isso tem um significado muito grande e a gente tem sempre tempo para conversar. Eu consigo ter a atenção dos meus colegas, de dar informes [...]

[...]As semanas pedagógicas são muito verdes, não são muito diagnósticas não, é como se fosse cumprir tabela entendeu? Cumprir tabela, não tem um foco assim mais abrangente, é uma coisa muito mais paliativa. É como se fosse assim: o problema existe, mas ninguém quer bulir porque fede. E se a gente for futucar mesmo, a gente acha e é o que eu digo a gente tem que está se prendendo no que é positivo, porque se a gente for se prender no negativo a gente não faz nada, sabia disso? Quando a gente faz reunião para desenvolver algum projeto, eu digo ‘galera vamos nos prender ao positivo’, porque se a gente for parar aqui para pontuar o negativo, a gente não vai sair dessa cadeira porque tem mil problemas[...]

Este depoimento traz a importância da interação dos professores, da relação de afetividade

e união que faz prevalecer a vontade de continuar e de investir nos aspectos positivos dentro da

realidade educacional onde se inserem. Para isso, no entanto, é preciso que haja uma abertura no

espaço onde atuam, de modo que todos tenham a liberdade de opinar, reivindicar e realizar, sem

os riscos das perseguições administrativas e das “panelinhas”, como expresso anteriormente.

O ambiente prazeroso de trabalho, como afirmou o professor, contribui para maior

permanência e comprometimento do profissional no local onde atua, e não se deve esquecer

de que o “prazer” começa nos vínculos, na vontade de conversar, trabalhar, festejar, brincar com

o outro. Em outras palavras, isto significa trazer vida ao trabalho, e no espaço escolar, trazer vida

ao trabalho docente é trazer prazer no ensinar e no aprender em todos os envolvidos no processo

pedagógico.

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Arroyo (2000), ao observar o tempo e o espaço escolar, registra o fato de que os tempos

são reduzidos a tempo de ensino, em um modelo gradeado de disciplinas. Há grande dificuldade

de reunir a comunidade escolar em atividades extraclasse, e dificilmente são articuladas

atividades de convívio cultural e socialização. O modelo de escola e de mestre é para “aulismo”

na ocupação dos tempos e espaços, inclusive nos centros de formação de professores. O autor

acrescenta que as reformas nos currículos de formação docente, esquecem do reordenamento dos

tempos e dos espaços, trazendo “lacunas socializadoras” na aprendizagem do ofício.

Ainda a este respeito, a proposta de Giroux (1997) também parece ajudar muito na

compreensão de que as escolas devem ser locais públicos democráticos destinados a fortalecer o

self e o social. O autor exprime a necessidade dos professores, como intelectuais

transformadores, assim por ele chamados, entender como as subjetividades são formadas nestes

espaços, através de formas sociais historicamente produzidas e a compreender que as escolas são

também locais contraditórios: pois, ao mesmo tempo que reproduz a sociedade, ela também

resiste à lógica da dominação.

Pelo exposto, percebemos que o professor é afetado pelas mudanças socioculturais que se

desmembram em fatores externos que permeiam o seu caminhar, e em fatores ou condições

internas presentes no seu cotidiano, que interferem na sua subjetividade e nos seus processos

identitários.

No que tange aos fatores externos, vimos ser fundamental que as políticas de formação e

profissionalização docente reconheçam pública e efetivamente a importância social do educador.

Foi demonstrado que a ausência deste reconhecimento pode levar o profissional a um desencanto,

perdendo gradativamente o sentido de sua atividade para formação humana. Além disso, sua

identidade e auto-estima são afetadas pela indiferença e marginalização social frente ao que

realiza e é capaz de realizar.

Ao lado dos fatores primários, as condições internas nas quais se realiza o trabalho

docente também se apresentam como entraves para o desenvolvimento de sua práxis, demarcados

pelas precárias condições materiais e físicas e de relações humanas que fazem emergir um

desgaste na realização das atividades pedagógicas.

A superação destes entraves começa pelo reconhecimento social do trabalho docente

pela sociedade (especialmente os órgãos gestores e planejadores da educação) e pela

organização política da categoria, implicando condições dignas de trabalho que permitam o

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profissional potencializar seus conhecimentos e habilidades, e numa remuneração que permita

ampliar seus conhecimentos e ter melhor qualidade de vida.

Acreditamos que a formação docente centrada no aspecto lúdico do trabalho, necessário

para alimentar o prazer e o afeto do professor com os elementos de sua práxis, possa também

contribuir para o enfrentamento destes entraves. Será isso possível? Pode o trabalho docente

trazer satisfação e alegria ao professor diante das condições aqui debatidas?

Já discutimos os fatores que podem levar os professores desistirem. Agora precisamos

saber: por que, apesar das pressões, discriminações e condições precárias de trabalho, estes

professores persistem? Que trabalho é esse que causa tanta dor e tanto prazer? No próximo

capítulo, os professores mais uma vez trazem a sua voz e dessa feita nos dizem sobre a delícia de

ser professor.