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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO NPGA FREDERICO LACERDA COUTO DE OLIVEIRA DESAFIOS NO RECONHECIMENTO DOS MONUMENTOS NEGROS DO BRASIL: A IMPORTÂNCIA DOS ATORES SOCIAIS NOS PROCESSOS DE TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL Salvador 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO – NPGA

FREDERICO LACERDA COUTO DE OLIVEIRA

DESAFIOS NO RECONHECIMENTO DOS

MONUMENTOS NEGROS DO BRASIL: A IMPORTÂNCIA DOS ATORES SOCIAIS NOS PROCESSOS DE

TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL

Salvador

2015

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FREDERICO LACERDA COUTO DE OLIVEIRA

DESAFIOS NO RECONHECIMENTO DOS

MONUMENTOS NEGROS DO BRASIL: A IMPORTÂNCIA DOS ATORES SOCIAIS NOS PROCESSOS DE

TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de

Mestrado Acadêmico em Administração da

Universidade Federal da Bahia como requisito parcial

para obtenção do grau de Mestre em Administração.

Orientadora: Profa Dra Elsa Sousa Kraychete

Salvador

2015

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Escola de Administração - UFBA

O48 Oliveira, Frederico Lacerda Couto de.

Desafios no reconhecimento dos monumentos negros do Brasil: a importância dos atores sociais nos processos de tombamento do patrimônio nacional / Frederico Lacerda Couto de Oliveira. – 2015.

104 f.

Orientadora: Profa. Dra. Elsa Sousa Kraychete. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Administração, 2016.

1. Casa de Oxumarê – Salvador (BA) – Patrimônio cultural – Estudo de casos. 2. Negros – Participação política – Patrimônio cultural – Brasil. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Título.

CDD – 306.0981

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FREDERICO LACERDA COUTO DE OLIVEIRA

DESAFIOS NO RECONHECIMENTO DOS

MONUMENTOS NEGROS DO BRASIL: A IMPORTÂNCIA DOS ATORES SOCIAIS NOS PROCESSOS DE

TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL

Dissertação foi julgada adequada à obtenção do grau de Mestre em Administração e

aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Administração, da Universidade

Federal da Bahia.

Aprovada em 14 de agosto de 2015.

Profa. Dra. Elsa Sousa Kraychete – Orientadora ______________________________

Doutora em Administração pela Universidade Federal da Bahia

Professora da Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Elga Lessa de Almeida__________________________________________

Doutora em Administração pela Universidade Federal da Bahia

Professora da Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. João Martins Tude______________________________________________

Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia

Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia

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Para Pai Pecê, que, com sua imensa sabedoria e zelo,

me ensinou que tudo devemos aos que passaram

e tudo será legado aos que ainda virão.

Somos memórias de uma corrente ancestral.

Danjemi ẹni Bàbá mí nílé ayé,

Òṣùnmàrè ẹni Bàbá mí lóde ọrun.

Ẹmí gígùn Bàbá mí! Àṣẹ!

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AGRADECIMENTOS

Ao meu companheiro Alberto Alves, pela infinita paciência e pelas constantes trocas de

ideias e contribuições para este trabalho.

À minha orientadora Elsa Kraychete, pela paciência e atenção cuidadosa com que me

guiou neste desafio. Também a André Luís Nascimento, Denise Leal, Graziela Silveira e

Maristela Baioni pelo encorajamento à realização deste mestrado.

Aos professores, Bete Santos, Beth Loiola, Célio Andrade, Ernani Santos, Sandro Cabral

e Tânia Fischer pelo incentivo nos momentos certos, assim como à equipe administrativa

do NPGA, Anaélia de Almeida e Dacy Andrade.

A Adenike Ajagunna, Desirée Tozi, Gabriela Nascif e Hermano Queiroz pelas valiosas

referências.

Ao Olufihan da Casa Branca e Olopitan da Casa de Oxumarê, Ordep Serra e sua esposa

Regina Serra, pelo exemplo de vida, por me ensinarem sobre uma antropologia

comprometida com a justiça social e pelos longos serões de alegria e aprendizado na

companhia dos Orixás.

A meus irmãos de santo da Casa de Oxumarê que comigo compartilharam o sonho de

tombar o terreiro e se doaram incondicionalmente para que tal acontecesse, Daniel Melo

de Oxóssi, Edelamare Melo de Xangô, Leandro Dias de Oxumarê e Maíra Azevedo de

Oxum.

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“O bom historiador escreve do passado, criticando o presente e projetando o futuro. Toda a história que vale é do futuro.”

Agostinho da Silva – Filósofo, poeta, ensaísta. Fundador do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA.

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RESUMO

A presente pesquisa analisa os fatores que condicionam a subrepresentatividade do

patrimônio tombado pertencente às tradições culturais afrobrasileiras, que evidencia uma

persistente desigualdade no conjunto patrimonial nacional. Partindo do referencial teórico

proporcionado pelas políticas de reconhecimento, fica evidente a importância do

patrimônio enquanto campo privilegiado para a reivindicação dos direitos dos diversos

grupos sociais que compõem a sociedade brasileira. A inserção do reconhecimento nas

agendas de reivindicações de direitos dos grupos culturais afrobrasileiros, principalmente

das comunidades tradicionais de terreiros, tem desafiado o poder público a encontrar

novas formas de identificar, selecionar, proteger e intervir em novas tipologias de sítios

tombados. Contudo, o principal desafio reside no envolvimento das comunidades

afrobrasileiras para que elas mesmas possam tornar-se proponentes de novos processos

de tombamento e participantes efetivos na governança da política do patrimônio cultural

nacional. Partindo de um estudo de caso do processo de tombamento da Casa de

Oxumarê, esta pesquisa identifica e propõem medidas para promover o envolvimento

destas comunidades na política patrimonial, buscando torna-la mais democrática e

representativa da diversidade cultural do Brasil.

Palavras-chave: Políticas de Reconhecimento. Patrimônio Cultural. Participação Social.

Terreiros de Candomblé.

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ABSTRACT

This research analyzes the factors that influence the sub-representation of tangible assets

belonging to the Afro-Brazilian cultural tradition, bringing to light the persistent

inequality in the Brazilian national heritage list. Based on the theoretical framework

provided by the politics of recognition, becomes evident the importance of cultural

heritage as a privileged field for the vindication of the rights of various social groups that

constitute Brazilian society. The insertion of recognition on the agendas of political

claims of Afro-Brazilian cultural groups, particularly of the traditional black religious

communities, has challenged the government to find new ways to identify, select, protect

and intervene in new types of listed sites. However, the main challenge lies in the

involvement of Afro-Brazilian communities so that they themselves can become

proponents of new nomination processes and effectively participate in the governance of

the Brazilian cultural heritage policy. Departing from a case study of the listing process

of the Afro-Bahian religious community, Casa de Oxumarê, this research identifies and

proposes measures to promote the involvement of these communities on the heritage

policy, seeking to make it more democratic and representative of the Brazilian cultural

diversity.

Keywords: Politics of Recognition. Cultural heritage. Social participation. Terreiros.

Candomblé.

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LISTA DE SIGLAS

ACRSS Associação Cultural e Religiosa São Salvador

CIAGS Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social

EUA Estados Unidos da América

FENACAB Federação Baiana de Cultos Afrobrasileiros

FPV Fundação Pierre Verger

GTIT Grupo de Trabalho Interdepartamental para a Preservação do

Patrimônio Cultural de Terreiros

INRC Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MAMNBA Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da

Bahia

MinC Ministério da Cultura

PNPI Programa Nacional do Patrimônio Imaterial

PSB Partido Socialista Brasileiro

PT Partido dos Trabalhadores

SPD Sociedade Protetora dos Desvalidos

SPHAN Serviço/Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto 1 - Localização atual da Casa de Oxumarê, BA, data desconhecida. ............. 78

Foto 2 - Barracão principal da Casa de Oxumarê, BA, 2013 .................................. 79

Foto 3 - Reunião da frente de defesa do terreiro, BA, 1988. ................................... 81

Foto 4 - Organização do acervo documental do terreiro, BA, 2011. ....................... 85

Foto 5 - Equipe multidisciplinar escutando os relatos dos anciãos da comunidade,

BA, 2011. .................................................................................................. 87

Foto 6 - Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, DF, 2013........ 90

Foto 7 - Cerimônia de comemoração do tombamento, BA, 2014. .......................... 92

Quadro 1 - Bens da tradição afrobrasileira tombados ou homologados .................. 54

Quadro 2 - Bens da tradição afrobrasileira em fase de instrução ou indeferidos .... 56

Quadro 3 - Total de Bens Registrados ..................................................................... 63

Quadro 4 - Anexos do Laudo Antropológico da Casa de Oxumarê ........................ 87

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1

6

2. O PATRIMÔNIO CULTURAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE

RECONHECIMENTO .............................................................................................. 2

1

2.1. O RECONHECIMENTO ENQUANTO IDENTIDADE E

AUTENTICIDADE ..................................................................................................... 2

1

2.2. O DEBATE SOBRE UNIVERSALISMO E DIFERENCIAÇÃO NO

LIBERALISMO

DEMOCRÁTICO ........................................................................................................ 2

4

2.3. A DISCUSSÃO SOBRE O VALOR COMPARATIVO DAS

CULTURAS ................................................................................................................. 3

0

2.4. A IMPORTÂNCIA DA PARIDADE PARTICIPATIVA PARA A

NEGOCIAÇÃO JUSTA DE

VALORES ................................................................................................................... 3

6

2.5. O PATRIMÔNIO CULTURAL ENQUANTO CAMPO PREVILIGIADO PARA

A ARTICULAÇÃO DOS DISCURSOS DO

RECONHECIMENTO ................................................................................................. 4

1

3. A REPRESENTATIVIDADE DOS MONUMENTOS NEGROS

TOMBADOS NO ÂMBITO DA POLÍTICA PATRIMONIALISTA

BRASILEIRA ............................................................................................................. 4

4

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3.1. OS BENS TOMBADOS DA TRADIÇÃO CULTURAL

AFROBRASILEIRA ................................................................................................... 4

9

3.2. A PERSISTENTE SUBREPRESENTATIVIDADE AFROBRASILEIRA NO

CONJUNTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL

TOMBADO ................................................................................................................. 5

3

3.3. A APLICABILIDADE DOS INTRUMENTOS DE PROTEÇÃO AO

PATRIMÔNIO MATERIAL DA TRADIÇÃO

AFROBRASILEIRA ................................................................................................... 6

0

3.4. DESAFIOS NO ENVOLVIMENTO DOS GRUPOS CULTURAIS

AFROBRASILEIROS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

NACIONAL ................................................................................................................. 6

8

3.4.1. Apropriação reduzida do discurso sobre patrimônio

cultural ...................................................................................................................... 6

8

3.4.2. Recursos técnicos e financeiros

insuficientes .............................................................................................................. 6

9

3.4.3. Participação restrita na definição dos valores

patrimoniais .............................................................................................................. 6

9

4. ESTUDO DE CASO: O TOMBAMENTO NACIONAL DA CASA DE

OXUMARÊ ................................................................................................................. 7

3

4.1. A HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA E SALVAGUARDA DE UM LEGADO

CULTURAL AFRICANO NO

BRASIL ....................................................................................................................... 7

3

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4.2. A MOBILIZAÇÃO DA COMUNIDADE NO RESGATE DA SUA

HISTÓRIA ................................................................................................................... 8

2

4.3. O ACOMPANHEMENTO DO PROCESSO DE TOMBAMENTO JUNTO AO

IPHAN E A ARTICULAÇÃO POLÍTICO-INSTITUCIONAL DO

TERREIRO .................................................................................................................. 8

9

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E

RECOMENDAÇÕES ................................................................................................ 9

4

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 9

9

ANEXOS .............................................................................................................................. 1

03

ANEXO A – LISTA DE CARTAS DE APOIO AO TOMBAMENTO DA CASA DE

OXUMARÊ ................................................................................................................. 1

03

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1. INTRODUÇÃO

O reconhecimento de terreiros de candomblé por meio do mecanismo do tombamento

nacional é fruto de uma luta pela mudança do paradigma do patrimônio cultural no Brasil.

Esta luta está associada à reivindicação dos direitos culturais dos afrobrasileiros e ao

reconhecimento das suas contribuições históricas para a formação da cultura nacional.

Nesse cenário, o ano de 1984 ficou particularmente marcado na história da proteção do

patrimônio brasileiro como a data do tombamento do primeiro monumento negro do

Brasil, o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, no Estado da Bahia. Este

acontecimento histórico resultou de uma longa batalha pela afirmação das contribuições

culturais dos afrodescendentes para a constituição da memória e identidade nacional

rompendo assim com a tradição patrimonialista que apenas reconhecia o valor de bens da

tradição luso-brasileira. Juntamente, foi também tombada a paisagem cultural da Serra da

Barriga, local de fundação do extinto Quilombo dos Palmares e que hoje conta com um

parque memorial. Desde então, foram tombados apenas mais cinco terreiros de

candomblé na Bahia e um no Maranhão (AMORIM, 2011), assim como o Quilombo

Ambrósio, no município de Ibiá, em Minas Gerais. Considerando o pequeno número de

monumentos tombados pertencentes à tradição cultural afro-brasileira, a sua

concentração geográfica e o tempo decorrido desde o tombamento do terreiro da Casa

Branca do Engenho Velho é possível constatar que o patrimônio afro-brasileiro continua

subrepresentado no conjunto do patrimônio material nacional.

O tombamento de terreiros pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -

IPHAN continua sendo um tema controverso, tanto para o Instituto, como para as

comunidades do candomblé. Se, por um lado, as comunidades reivindicam o tombamento

nacional como uma ferramenta de proteção dos seus espaços sagrados e de

reconhecimento pela sociedade brasileira, por outro lado, o IPHAN precisa ainda adaptar

o seu modus operandi para atender às complexas demandas referentes à classificação de

bens pertencentes a estas comunidades tradicionais, tanto na identificação, seleção e

apoio à instrução de processos de tombamento de bens com alto valor patrimonial, assim

como no apoio à gestão e educação patrimonial das comunidades já tombadas. Os poucos

terreiros tombados no Brasil tiveram seus processos iniciados a partir da ação voluntária

da sociedade civil, especialmente das associações civis que os representam juridicamente,

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com o apoio de especialistas, instituições e personalidades da política nacional. O mesmo

ocorreu com o processo de tombamento do terreiro da Casa de Oxumarê, que foi

conduzido a partir de uma ação voluntária e dinâmica da comunidade junto ao IPHAN,

com o apoio político dos demais terreiros tombados pela união e dezenas de outras

instituições e personalidades ligadas à política, à cultura e aos movimentos sociais, que

endossaram o pleito.

Se por um lado, o IPHAN tem a finalidade institucional de “promover a identificação, a

documentação, o reconhecimento, o cadastramento, o tombamento e o registro do

patrimônio cultural brasileiro1”, dentre várias outras atribuições, por outro lado, as

comunidades são convocadas a colaborar com o poder público na promoção e proteção

do patrimônio nacional. Contudo, considerando a multiplicidade de arranjos necessários

à instrução e aprovação de um processo de tombamento, é importante analisar se as

comunidades tradicionais de matriz africana dispõem dos recursos técnicos e financeiros

necessários à proposição voluntária e acompanhamento de processos de tombamento de

novos bens culturais. É nesse contexto que se apresenta o questionamento norteador deste

trabalho: que fatores condicionam a participação da sociedade civil no tombamento

nacional de bens culturais da tradição afrobrasileira?

Buscando responder a esta pergunta apresentam-se os seguintes pressupostos:

a) O baixo envolvimento das comunidades afrobrasileiras na política patrimonial

brasileira contribui para a subrepresentatividade dos bens culturais da tradição

afrobrasileira na lista do patrimônio tombado;

b) A existência de outros terreiros com alto valor patrimonial que ainda não foram

tombados pelo IPHAN - inclusive alguns que abriram processos de tombamento no

órgão e que não tiveram seguimento pela insuficiência de informações que permitam

subsidiar o seu envio para análise do Conselho Consultivo do Patrimônio Nacional -

demonstra que o reconhecimento de um terreiro enquanto bem cultural de interesse

público nacional não depende apenas do seu mérito enquanto sítio de valor

patrimonial, mas também das suas capacidades técnicas e políticas.

c) Considerando que o processo de tombamento da Casa de Oxumarê foi instaurado em

2002, tendo sido posteriormente arquivado pelo IPHAN por não estar devidamente

1 Estrutura Regimental do IPHAN: Decreto no 6.844, de 7 de maio de 2009, Anexo I, Art.2o

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instruído, tem-se que o terreiro foi tombado porque após 2011 dispôs de capacidades

técnicas, recursos humanos e financeiros para organizar a documentação necessária

para subsidiar corretamente o processo de tombamento;

O objetivo principal deste estudo é analisar a representatividade da tradição cultural

afrobrasileira nos livros de tombo do patrimônio nacional, incluindo os fatores que

poderão condicioná-la, buscando retirar conclusões que possam incentivar a instrução de

novos processos. Este estudo aspira oferecer uma análise do processo de tombamento

pela perspectiva de uma comunidade de terreiro tombado, de forma a extrair lições que

possam ser compartilhadas com as comunidades que buscam a preservação dos seus bens

culturais, por meio do instrumento de tombamento, assim como com os técnicos dos

órgãos de preservação do patrimônio que lidam com os desafios do tombamento de bens

pertencentes às comunidades tradicionais.

Por sua vez, os objetivos específicos são:

a) Descrever e analisar a lista do patrimônio nacional tombado, pela perspectiva dos

bens que fazem referência à tradição cultural afrobrasileira;

b) Identificar e analisar os principais obstáculos à participação efetiva das

comunidades afrobrasileiras no processo de tombamento de novos bens;

c) Descrever e analisar os fatores que contribuíram para o tombamento nacional da

Casa de Oxumarê.

d) Propor medidas que contribuam para o aumento da participação das comunidades

afrobrasileiras na governança da política patrimonial brasileira.

Esta pesquisa tem como objeto a política patrimonial brasileira, com enfoque especial

sobre a proteção do patrimônio material relacionado às culturas afrodescendentes, que

por sua vez será ilustrado por meio de um estudo de caso do processo que culminou no

tombamento do terreiro de candomblé, Casa de Oxumarê, em 2014. Este processo

decorreu entre os anos de 2002 e 2013. Contudo, o foco do trabalho está centrado no

período entre 2011 e 2013, o qual foi marcado por uma forte e dinâmica ação de um grupo

da comunidade em prol da instrução e acompanhamento do processo que se encontrava

arquivado no IPHAN, assim como por uma articulação político-institucional externa.

A metodologia utilizada para consecução dos objetivos propostos deste trabalho

empreenderá um caminho metodológico que terá início na análise bibliográfica e

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documental referente aos bens tombados como patrimônio nacional e terminará em um

estudo de caso do tombamento da Casa de Oxumarê, baseado em uma pesquisa

participativa. A perspectiva oferecida pelo autor parte da sua atuação enquanto membro

deste grupo criado em 2011, tendo participado de todas as fases do processo de

tombamento, dentre as quais se destaca: a pesquisa sobre as origens e história da Casa de

Oxumarê, em Cachoeira e Salvador, a organização e catalogação dos arquivos

documentais e fotográficos do terreiro, a organização dos arquivos documentais do

terreiro, o referenciamento documental do laudo antropológico elaborado pelo Prof. Dr.

Ordep Serra, a angariação de cartas de apoio ao tombamento e o acompanhamento do

processo junto ao IPHAN.

Este trabalho está estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo buscará estabelecer

um marco teórico para a pesquisa explorando o enquadramento do patrimônio cultural no

campo das políticas de reconhecimento. Primeiramente serão explorados os conceitos

basilares desta teoria buscando explicar a sua importância para a formação de agendas de

reivindicação de direitos culturais dos grupos sociais minoritários, o que deu origem a um

intenso debate sobre universalismo e diferenciação nas democracias liberais. Este debate

envolve uma discussão sobre o valor comparativo das culturas e a forma como o sistema

de direitos deve ser atualizado para comportar a igualdade em sociedades cada vez mais

multiculturais. A partir da compreensão sobre a importância desta atualização evidencia-

se a necessidade de assegurar a participação paritária para a negociação justa de valores,

nos quais se inclui a revisão dos valores patrimoniais, enquanto campo privilegiado para

o reconhecimento das contribuições dos grupos dos diferentes grupos sociais. O segundo

capítulo trará uma análise da política patrimonial brasileira, por meio de um enfoque nos

bens tombados pertencentes às tradições culturais afrobrasileiras. Partindo de uma análise

da representatividade destes bens no conjunto do patrimônio tombado, o trabalho passará

a analisar os fatores que poderão condicionar a diversificação desta lista, como as

discussões sobre a aplicabilidade dos instrumentos de proteção e o envolvimento das

comunidades afrobrasileiras na política do patrimônio cultural. O terceiro capítulo

consistirá em um estudo de caso do processo que levou ao tombamento nacional da Casa

de Oxumarê. Este capítulo parte de uma descrição da trajetória de resistência deste antigo

templo do Candomblé da Bahia e da sua importância para a formação da religiosidade de

matriz africana no Brasil. O estudo de caso explora a mobilização da comunidade que

ocorreu a partir de 2011, em torno da vontade de ver o terreiro reconhecido como

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patrimônio nacional. Esta mobilização estruturou-se a partir da constituição de uma

equipe composta por membros da comunidade, que por sua vez se empenhou em uma

mobilização externa à comunidade na busca pelo apoio de especialistas, instituições e

atores políticos que referendassem o tombamento. Por fim, o trabalho apresenta uma

conclusão desenhada em todas as análises feitas nos capítulos anteriores buscando

iluminar os fatores que poderão condicionar a ampliação da representatividade do

patrimônio tombado da tradição afrobrasileira, buscando propor de forma construtiva,

algumas medidas que poderão ser colocadas em prática pelo poder público de forma a

tonar a apolítica do patrimônio cultural cada vez mais democrática e representativa da

diversidade cultural do Brasil.

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2. O PATRIMÔNIO CULTURAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE

RECONHECIMENTO

O debate teórico sobre as políticas de reconhecimento surge a partir de 1990 com forte

inspiração na filosofia hegeliana influenciando um novo discurso sobre multiculturalismo

nas sociedades democráticas liberais, em contraponto às políticas da redistribuição

influenciadas pelas teorias marxistas. Este capítulo buscará compreender o campo do

patrimônio cultural enquanto política privilegiada de reconhecimento no qual se

articulam discursos sobre as identidades dos grupos sociais e também como ele funciona

como espaço de contestação política e negociação de valores e direitos culturais no

âmbito das democracias constitucionais.

2.1. O RECONHECIMENTO ENQUANTO IDENTIDADE E AUTENTICIDADE

Segundo Taylor (1994) dois fatores tornaram as políticas de reconhecimento um assunto

central na sociedade contemporânea ocidental. Por um lado, o colapso das hierarquias

sociais, que outrora eram baseadas na honra, tendo como sentido a preferência de uns

sobre outros, e que agora tendem a serem substituídas pela noção de dignidade do ser

humano ou do cidadão. Por outro lado, um novo entendimento sobre a identidade

individual que, a partir do século XVIII, passa a ser associada ao conceito de

autenticidade. Baseando-se no pensamento de Rousseau sobre a moralidade, Taylor

(1994, p.29) explica que o indivíduo passa a estar diretamente relacionado com uma voz

interior que lhe impõem uma derradeira necessidade de ser verdadeiro com ele próprio.

Voz essa que deixa de estar necessariamente atrelada à ideia de uma vontade divina ou

de pecado. E nesse contexto, o conceito de autenticidade individual surge com extrema

relevância e relacionado à noção de originalidade. O desenvolvimento da relação destes

conceitos, que Taylor atribui a Herder, explica a centralidade da autossatisfação e

autorealização nas vidas dos indivíduos modernos. Segundo Taylor, Herder defende que

cada ser humano tem uma forma própria de ser original: “existe uma forma própria de ser

humano, que é a minha forma” (1994, p.30). Contrariando o problema da imitação de

outros indivíduos, esta forma de pensar reitera a importância de cada individuo buscar a

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essência da sua natureza interior, com o objetivo de levar uma vida que seja verdadeira e

única. Taylor observa ainda que Herder aplica esta ideia não apenas aos indivíduos, mas

também a grupos, em especial na forma como comunidades culturalmente distintas se

relacionam, visto que estas também precisam ser verdadeiras com elas mesmas.

No entanto, a forma como esta teoria apresenta a formação da identidade tem sérias

implicações que a comprometem. Mesmo que a autenticidade da identidade individual

seja construída de forma introspectiva com uma preocupação sobre a sua originalidade,

ela é feita também por meio de um processo dialógico, de interação com outros

indivíduos. Um claro exemplo disto é a necessidade de aprender uma linguagem para

estruturação do pensamento que é necessariamente proporcionado pela sociabilidade

humana. Citando George Herbert Mead, Taylor explica que a linguagem é adquirida por

meio de contato com “outros significativos” (1994, p. 32). Logo a identidade humana é

definida permanentemente por meio do diálogo com estes outros significativos, mesmo

que por vezes isso seja um processo de luta ou negociação. Ou seja, a formação da

identidade humana está diretamente ligada a um processo de reconhecimento. Porém,

Taylor adverte que a necessidade por reconhecimento não é algo recente. O que realmente

surge na era moderna não é a necessidade de reconhecimento, mas “as evidências das

condições pelas quais as tentativas pelo reconhecimento podem falhar” (TAYLOR, 1994,

p. 35), criando uma legítima preocupação com o assunto, especialmente no seio das

democracias liberais.

Para Taylor (1994) a importância do reconhecimento é hoje largamente aceita, tanto na

esfera íntima, quanto na esfera social, sendo que em ambos os casos a noção de

autenticidade mantém um papel fundamental. Na esfera das relações íntimas, reconhece-

se a importância dos processos de autodescobrimento e autoafirmação, necessários à

construção da identidade individual, que passam obrigatoriamente pelo reconhecimento

dado por “outros significativos”, ainda que isso possa ter um impacto positivo ou negativo

na formação da identidade. Por outro lado, na esfera social, é também crescente a

aceitação de que as identidades precisam ser formadas por meio de um diálogo aberto que

não mais pode ser moldado por hierarquias pré-definidas de diferenciação social.

De acordo com Appiah (1994) a autenticidade da identidade individual é a questão central

do reconhecimento, pois a negação da autenticidade de uma identidade coletiva

representa a restrição do direito da pessoa ser o que ela realmente é (1994, p. 149). Uma

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das curas para este problema é o que Appiah chama de ética da autenticidade. Esta noção

consiste em valorizar as identidades coletivas pelo que elas realmente são, construindo

imagens e roteiros de vida positivos, combatendo os estereótipos negativos, os insultos e

as restrições (APPIAH, 1994, p.161). Contudo Appiah observa também que para resgatar

a dignidade destes grupos historicamente menosprezados, não basta assegurar a igualdade

de direitos ou o reconhecimento da sua existência, mas é necessário demonstrar um

verdadeiro respeito por eles, tendo em conta que isso irá impactar profundamente na

forma como as suas identidades coletivas são formadas.

Nesse contexto, Appiah, apercebe-se de dois erros na formulação da noção comum de

autenticidade. Em primeiro lugar, ele lembra que, conforme já observado por Taylor

(1994), a autenticidade não é construída de forma monológica, e sim dialógica. A busca

pelo verdadeiro eu não resulta de um processo de confronto contra outras identidades com

as quais o indivíduo não se identifica. Pelo contrário, a identidade de um indivíduo é

construída pelo entendimento dos outros sobre quem ele é, mas também utiliza conceitos

disponibilizados ao indivíduo pelas instituições sociais, como a família, a escola, a

religião ou o próprio Estado (APPIAH, 1994, p.154). Citando o exemplo da construção

da identidade afroamericana, Appiah explica que ela é formada não apenas dentro das

comunidades negras, mas pela sociedade americana e suas instituições de forma mais

ampla. É, em parte, por meio do diálogo com a sociedade branca que se molda uma

identidade negra.

O segundo erro apresentado por Appiah consiste na forma essencialista como o ideal da

autenticidade é concebido e a centralidade do seu papel na vida do indivíduo. Segundo o

autor, o realismo filosófico atribuído ao conceito tem suas origens no período romântico,

onde prevalecia a ideia de que o indivíduo deveria criar o seu verdadeiro eu, de forma

viver uma narrativa única e garantir um propósito maior para sua vida. Para Appiah isto

simplesmente não parece possível porque as nossas escolhas são feitas em meio a um

conjunto pré-definido de opções, que conforme mencionado acima, nos são oferecidos

pelas instituições sociais (1994, p.155). Estas ponderações de Appiah trazem uma

interessante luz ao modelo de Taylor, no sentido em que chamam a atenção para a forma

como são concebidas as identidades coletivas que reivindicam o reconhecimento.

Um esclarecimento sobre este processo basilar ajuda na compreensão mais ampla do

processo por meio do qual a identidade se torna um fator emancipatório da dignidade do

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cidadão. Nesse cenário, as políticas de reconhecimento igualitário surgem como uma

necessidade compulsória do projeto moderno das sociedades democráticas liberais. Como

Taylor (1994, p. 36) bem sugere, a falha no reconhecimento ou o reconhecimento

distorcido, como a projeção de uma imagem inferior do outro, podem ser consideradas

formas graves de opressão e colocar em causa o próprio projeto democrático.

2.2. O DEBATE SOBRE UNIVERSALISMO E DIFERENCIAÇÃO NO

LIBERALISMO DEMOCRÁTICO

Na esfera pública, o reconhecimento relaciona-se com dois tipos de políticas públicas

distintas. Movidas pela equalização de direitos nas sociedades modernas, as políticas de

universalismo buscam assegurar a dignidade dos cidadãos sem distinção de classes. Por

outro lado, as políticas de diferenciação desenvolvem-se a partir da noção moderna de

identidade. Taylor explica que, apesar delas também crescerem a partir da ideia de

dignidade universal, no sentido em que “todos têm o direito de ser reconhecidos pela sua

identidade única”, o reconhecimento tem aqui um significado completamente distinto. As

políticas de diferenciação buscam reconhecer a identidade distinta de indivíduos ou

grupos em comparação à cultura dominante. O direito à autenticidade se coloca aqui como

uma resistência à assimilação pelos grupos dominantes (TAYLOR, 1994, p. 38). Deste

modo, mesmo imbuídas no conceito de dignidade universal, as políticas de diferenciação

operam num campo bastante subjetivo que trata das particularidades culturais, aquelas

que não são universalmente compartilhadas. O grande desafio das políticas de

diferenciação é que elas requerem o reconhecimento sem discriminação. Taylor (1994)

alerta que o reconhecimento de grupos em desvantagem poderia criar cidadãos de

segunda classe, inclusive porque a construção das suas identidades poderá ter sido mal

informada pelo contexto de desvantagem no qual viviam. Nesse sentido, a implementação

de medidas de discriminação reversa justifica-se com base nos padrões criados pela

discriminação histórica, na qual os desfavorecidos lutam em desvantagem com os grupos

majoritários ou dominantes. Como forma de garantir alguma vantagem competitiva, estes

grupos requerem medidas temporárias de discriminação reversa, como por exemplo,

cotas raciais para aumentar a representatividade de afrodescendentes nas universidades e

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garantir, em longo prazo, uma equidade no acesso ao ensino superior em um país

multirracial.

A principal crítica radical às políticas universalistas é que estas não são compostas por

um conjunto de princípios neutros, elas refletem os valores da cultura dominante. Assim

sendo, aplicar o liberalismo cego indiscriminadamente a todos os grupos culturais seria

uma forma de alienar as diferenças e forçar todos a uma assimilação da cultura

hegemônica. Nesse sentido, Taylor defende que “a sociedade supostamente justa e cega

às diferenças não é apenas desumana (no sentido de suprimir identidades particulares),

mas também é, de uma forma sutil e inconsciente, altamente discriminatória” (1994, p.

43, tradução nossa). Esta visão causa também uma contradição paradigmática, na medida

em que o particular apenas está mascarado de universal. Taylor nos avisa que esta

contradição paradigmática do universalismo pode ser uma fraqueza que venha a

comprometer todas as teorias apresentadas até agora neste campo. Contudo, observa-se

que o autor não abandona o conceito, que continua sendo estruturante para a sua teoria.

Perspectivas liberais sobre a precedência dos direitos individuais com relação aos direitos

coletivos são atribuídas por Taylor (1994) a autores como Dorkwin, Rawls, Ackerman,

dentre outros. Dorkwin, por exemplo, distingue entre dois tipos de compromissos morais:

os compromissos procedimentais, relacionados ao tratamento justo e igualitário entre

todos e os compromissos substantivos que estão relacionados a visões sobre o objetivo

da vida e o que constitui a boa vida. Para Dorkwin, conforme notado por Taylor (1994),

as sociedades liberais devem evitar compromissos substantivos sobre a vida dos seus

cidadãos, visto que isso poderia favorecer determinados grupos e comprometer a norma

procedimental. Situando esta visão do liberalismo no trabalho de Kant, Taylor observa

que, dentre outras suposições, ela entende que a dignidade humana consiste de autonomia

para fazer escolhas, dentre as quais, a possibilidade de determinar o que se entende por

“boa vida”. Nesse contexto, o Estado liberal deve restringir-se a assegurar um ambiente

neutro, justo e igualitário onde os cidadãos possam desenvolver-se. Taylor (1994, p. 57-

58), por sua vez, contesta totalmente a visão kantiana de que o individuo é o agente

primário da escolha e o Estado não deve interferir em noções sobre a “boa vida” dos seus

cidadãos. Nesse modelo que foi bastante popularizado, as políticas de respeito igualitário

encontram-se enraizadas em uma visão de liberalismo procedimental que é “inóspita” à

diferença, que insiste na normatização dos direitos e que por vezes falha em reconhecer

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a luta pela sobrevivência dos grupos culturais. Taylor, pelo contrário, defende que uma

sociedade política não é neutra e, portanto pode sim perseguir objetivos coletivos sobre o

bem comum. Citando como exemplo as políticas de sobrevivência da língua francesa no

Quebec, ele explica que isso pode ser visto de forma procedimental visto que a

sobrevivência da língua também é um direito, não só para as gerações atuais como para

as vindouras, considerando que estas também poderão querer usá-la como sua matriz

cultural. Nesse sentido, Taylor lembra que:

[...] uma sociedade com fortes objetivos coletivos também pode ser liberal, nestes termos, desde que seja capaz de respeitar a diversidade, especialmente quando lidando com aqueles que não compartilham dos seus objetivos comuns; e desde que possa oferecer salvaguarda adequada dos direitos fundamentais. (TAYLOR, 1994, p. 59, tradução nossa).

Endossando claramente este tipo de modelo do liberalismo democrático, Taylor (1994)

explica que no mundo globalizando, claramente e cada vez mais, culturas distintas virão

a reivindicar o seu direito à sobrevivência no seio de sociedades multiculturais.

Outra crítica apresentada por Taylor (1994) ao modelo de liberalismo procedimental é

que, assim como em sua dimensão política, este também não é culturalmente neutro.

Mesmo reivindicando ser cego às diferenças, ele reflete uma expressão política das

culturas onde surgiu e, portanto poderá não ser aplicável a todas as culturas. Ou seja, o

liberalismo procedimental não é um terreno comum onde todas as culturas podem

articular-se e coexistir em igualdade (TAYLOR, 1994, p. 62). Nesse contexto, Taylor

alerta que a rigidez do modelo de liberalismo procedimental poderá tornar-se rapidamente

desadequado, visto que o desafio das sociedades multiculturais é acomodar os grupos que

poderão sentir-se marginalizados, sem comprometer os princípios políticos básicos.

Contribuindo para este debate, Walzer (1994) faz uma distinção entre dois tipos de

liberalismo analisados por Taylor. O “Liberalismo 1” representa a total universalização

dos direitos individuais aplicado por um Estado que busca a neutralidade cultural, sem

qualquer compromisso com reivindicações coletivas dos grupos sociais distintos que o

compõem. Por outro lado, o “Liberalismo 2” representa um Estado comprometido com a

sobrevivência e desenvolvimento de uma ou várias culturas, grupos étnicos ou religiões

específicas, garantindo de forma igualitária, ou não, os direitos básicos de todos os seus

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cidadãos. Walzer concorda que em circunstâncias específicas pode-se optar entre o

Liberalismo 1 ou 2, mas ao mesmo tempo questiona-se sobre quando esta decisão deve

ser tomada.

Nessa perspectiva, Walzer observa que a maioria dos países liberais, como as antigas

nações do continente europeu, são seguidores do segundo tipo de liberalismo, visto que

não se consideram neutros no que tange à sua identidade cultural, à sua história e à sua

língua. Ao mesmo tempo permitem que as minorias tenham liberdade para seguir suas

próprias tradições, no contexto da cultura nacional dominante. Nesta conjuntura, a

aplicação do Liberalismo 1 poderia ter implicações drásticas, causando segregação social

e possivelmente uma ruptura com o grupo social majoritário. Por outro, Walzer observa

também que o Liberalismo 1 é a doutrina oficial em países mais recentes, cuja população

foi formada majoritariamente por imigrantes, e que não possuem minorias territoriais com

força geopolítica suficiente para exigir maiores prerrogativas. Nesse contexto, os

diferentes grupos sociais têm liberdade para fazer o que podem em seu próprio benefício,

mas também não lhes são garantidas prerrogativas especiais pelo Estado. Como Walzer

bem coloca: “no que tange ao Liberalismo 1, não há maioria privilegiada, nem minorias

excepcionais” (1994, p.101, tradução nossa).

Não obstante, Walzer também reconhece que alguns grupos estão mais em risco do que

outros e que a cultura pública poderá favorecer uns em detrimento de outros, o que na

maioria das vezes acarreta uma desigualdade no acesso a recursos. Segundo ele, as

políticas de multiculturalismo apresentam-se como uma forma de desafiar a concentração

de riqueza e o poder, equalizando os riscos entre os grupos sociais. Nesse sentido, ele

sugere que para alcançar este tipo de demanda certamente seriam necessárias políticas

estruturais que garantissem o controle de parcelas do orçamento público ou cotas para

ingressar em instituições públicas e privadas, requerendo algo além do simples

reconhecimento cultural e social (WALZER, 1994, p.102). Para equalizar esta

problemática no modelo teórico, Walzer, sugere escolher um Liberalismo 1, a partir do

Liberalismo 2. Ou seja, no sentido em que as escolhas não devem ser governadas apenas

por um absoluto comprometimento com a neutralidade e os direitos individuais, mas pela

capacidade dos indivíduos que compõem os diferentes grupos sociais de fazerem escolhas

reais sobre suas próprias vidas, com base em seus próprios parâmetros culturais.

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As lutas pelos direitos individuais são distintas das lutas por direitos coletivos. A

distribuição igualitária de bens coletivos primários é mais fácil de conceber na teoria de

direitos porque os bens são distribuídos por indivíduos ou usados por indivíduos, ou seja,

eles podem tomar a forma de reivindicações individuais. No entanto, Habermas questiona

se o Estado liberal constitucional também não deveria se adaptar para reconhecer as

garantias de estatuto e sobrevivência de formas de vida culturais e tradições que foram

marginalizadas, e que se apresentam na forma de direitos coletivos (HABERMAS, 1994,

p.109).

Para Habermas as ideias originais de Taylor inspiram críticas, no entanto atribui a ele um

questionamento interessante sobre o cerne individualista do conceito moderno de

liberdade (HABERMAS, 1994, p.109). Habermas discorda do modelo apresentado por

Taylor alegando que não existe uma competição entre as políticas universalistas de

direitos individuais e as políticas que consideram as diferenças culturais. Deste modo,

não existe a necessidade de escolher a precedência de uma sobre a outra. Para Habermas

esta oposição é falsamente construída pelos comunitaristas, como Talyor e Walzer, que

baseiam o seu modelo em princípios da moralidade, como o bem e o justo. Nesse sentido,

os comunitaristas disputam a neutralidade ética da ordem legal – defendida por

liberalistas como Rawls e Dworkin, para que cada indivíduo possa prosseguir com uma

busca contínua dos seus interesses – e esperam que o Estado constitucional se envolva

ativamente na formulação de concepções de “boa vida” para os seus cidadãos

(HABERMAS, 1994, p.111).

No entanto, Habermas mostra que de forma alguma a teoria de direitos poderá ignorar as

diferenças culturais, visto que isso não levaria em conta a autonomia dos seus cidadãos

enquanto autores das leis às quais eles mesmos estão submetidos enquanto sujeitos

privados. Nesse sentido, Habermas acusa o Liberalismo 1 de falhar em reconhecer que a

autonomia pública e a privada coexistem, estão interligadas e são igualmente

fundamentais. Assim sendo, os sujeitos privados não podem disfrutar das liberdades

individuais de forma igualitária, sem primeiro exercer a sua autonomia enquanto

cidadãos, escolhendo os critérios para o que deve ser tratado de forma igual ou desigual.

Outro ponto trazido por Habermas é que as “pessoas e pessoas legais tornam-se

individualizadas por meio de um processo de socialização” e que este é um processo

inerentemente subjetivo (HABERMAS, 1994, p.113). Nesse sentido ele constata que a

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política de direitos deve obrigatoriamente proteger a integridade dos indivíduos no

contexto social onde são formadas. Por este motivo, no ambiente democrático não se pode

considerar que o sistema de direitos seja indiferente à realidade diferenciada dos seus

cidadãos, seja ela social, cultural, ou religiosa. Ou seja, não se faz necessária a distinção

entre um Liberalismo 1 e um Liberalismo 2, mas apenas uma atualização constante do

sistema ade direitos.

Porém, Habermas alerta que, por si só, a igualdade de direitos perante a lei não se traduz

necessariamente em uma igualde de posições de poder. Inclusive, a equalização de

direitos poderá ter um efeito contrário, caso os cidadãos não sejam incentivados a

formular decisões sobre suas próprias vidas. A não participação de cidadãos de grupos

excluídos no processo de atualização de direitos pode levar a intervenções normatizadas,

equivocadas e paternalistas, que poderão reforçar os estereótipos negativos sobre esses

mesmos grupos. É por este motivo que as diferentes visões sobre direitos e a intepretação

apropriada das necessidades de cada grupo social devem ser discutidas na esfera pública,

garantindo a autonomia dos cidadãos. Ou seja, no contexto democrático, a autonomia

privada dos cidadãos está de certa forma dependente da sua autonomia pública, enquanto

mediadora dos termos das suas liberdades individuais. Assim, a dicotomia entre a

autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos, que leva à diferenciação entre

dois tipos de liberalismo, precisa ser substituída por uma concepção procedimental de

direitos que busque preservar os dois tipos de autonomia simultaneamente

(HABERMAS, 1994, p.113). Nesses termos, o processo de atualização democrática de

direitos universais deve ser concebido como sensível às desigualdades dos diferentes

contextos sociais onde os cidadãos formam suas identidades.

Por outro lado, Habermas também recusa a ideia de que o sistema de direitos é cego às

diferenças e que, portanto precisa de revisão, tal como defendido por Taylor e Walzer.

Pelo contrário, Habermas entende que, nas democracias constitucionais, o sistema de

direitos engloba tanto as normas universais, como também os objetivos coletivos dos

cidadãos que participam, direta, ou indiretamente no processo legislativo. Desta forma, o

processo de atualização de direitos está imerso em um contexto político onde se articulam

discursos embebidos em concepções de “boa vida” reconhecidas como autênticas.

Portanto, quanto mais detalhadas forem estas discussões, mais o sistema irá refletir uma

forma de vida particular. Habermas sintetiza esta problemática da seguinte forma:

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Em tais discussões, os participantes esclarecem a forma como eles próprios se querem entender como cidadãos de uma república específica, como habitantes de uma região específica, como herdeiros de uma cultura específica, quais as tradições querem perpetuar e quais querem interromper, como eles querem lidar com a sua história, uns com os outros, com a natureza, e assim por diante. [...] Como as decisões ético-políticas são uma parte inevitável da política, e porque a sua regulamentação legal expressa a identidade coletiva de uma nação de cidadãos, podem desencadear batalhas culturais nas quais minorias desrespeitadas lutam contra uma cultura majoritária insensível (1994, p.125, tradução nossa).

Ou seja, é por meio do processo político que se discute, se reafirma e se atualiza, não só

o sistema de direitos, mas a própria identidade de uma nação democrática. É precisamente

este processo que articula as lutas pelo reconhecimento de minorias desrespeitas.

Contudo, as “batalhas culturais” mencionadas por Habermas não são causadas por um

conflito com um Estado eticamente neutro, conforme proposto no modelo de Liberalismo

1. Pelo contrário, elas buscam acomodar suas reivindicações em um contexto permeado

já pela ética (HABERMAS, 1994, p.126). Por outras palavras, o liberalismo democrático

não requer um modelo alternativo para estender a garantia de direitos dos diferentes

grupos culturais, desde que o sistema de direitos possa ser atualizado democraticamente

de forma a proteger legalmente os contextos sociais intersubjetivos, onde as identidades

dos indivíduos são formadas (1994, p.129).

2.3. A DISCUSSÃO SOBRE O VALOR COMPARATIVO DAS CULTURAS

Para Taylor (1994) a derradeira questão que se coloca para lidar com a tendência global

do multiculturalismo dos Estados é a necessidade de reconhecer a igualdade das

diferentes culturas que os compõem, não só para deixá-las sobreviver, mas para que

verdadeiramente seja reconhecido o seu valor. O autor defende que somos formados por

reconhecimento e que este é uma necessidade básica a todos os seres humanos. Apesar

de muitas vezes não ser considerado pelos atores sociais que preferem basear as sua

reivindicações na injustiça e na desigualdade, a falta de reconhecimento externo é um

fator de extrema importância na luta pela igualdade e poderá ter sérias implicações no

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desenvolvimento dos membros de um determinado grupo social em situação de

desvantagem.

Taylor cita Franz Fanon (1961) como um dos principais intelectuais que influenciaram

esta ideia ao explicar que os colonizadores impunham uma imagem de inferioridade nos

povos subjugados. As autoimagens de inferioridade prevaleceram nas sociedades pós-

coloniais contemporâneas, principalmente no contexto das comunidades descendentes de

povos escravizados. Nesse sentido, a única forma de garantir a verdadeira liberdade

começa pela libertação das consciências dos povos que foram outrora subjugados. As

imagens de inferioridade com relação a uma cultura dominante limitam seriamente as

possibilidades de desenvolvimento das comunidades afrodescendentes, inclusive poderão

ser um dos principais fatores que condicionam a sua participação nos processos políticos

e na distribuição dos recursos. No Brasil, um claro exemplo de uma política de

reconhecimento que busca combater ativamente estas autoimagens negativas é a Lei nº

10.639, de nove de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática

"História e Cultura Afro-Brasileira". Segundo Taylor, a inserção de temáticas

afrocêntricas nos currículos de ensino oficiais é extremamente necessária, nem tanto pelo

fato de que os alunos poderão estar perdendo informações importantes sobre outras

culturas, mas porque nos currículos pautados apenas pela cultura dominante, os

estudantes de grupos excluídos recebem intencionalmente ou por omissão, uma imagem

inferior deles mesmos. Desta forma, a escola, de forma um tanto determinante, torna-se

portadora de uma mensagem sutil, mas perversa, enquadrando os seus alunos

afrodescendentes enquanto cidadãos de segunda-classe, pertencentes a um grupo que não

tem história e que não produz cultura, nem tão pouco conhecimento acadêmico. Por este

motivo, Taylor (1994, p. 66) defende que a luta pela liberdade e igualdade deve passar

obrigatoriamente pela revisão destas imagens, criando referências positivas, visto que

elas impactam diretamente na formação da identidade.

A questão subjacente no pensamento de Taylor é que devemos o mesmo respeito a todas

as culturas. Assim sendo, os julgamentos de valor devem partir da presunção de que todas

as culturas têm o mesmo valor, ou estão, pelo menos, no mesmo nível de importância:

Como uma presunção, a reivindicação é que todas as culturas humanas que animaram sociedades inteiras durante algum período considerável

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de tempo têm algo importante a dizer a todos os seres humanos (1994, p. 66, tradução nossa).

Apesar de ser possível relativizar o valor de uma cultura com relação a outra distinta,

considerando inclusive que uma cultura, tal como uma sociedade ou um movimento

artístico também pode passar por fases de decadência, Taylor defende que é necessário

partir da presunção de igual valor, mesmo que esta venha a ser depois refutada. A

inferioridade de uma cultura não pode ser presumida à partida, pois um julgamento

minado pelo preconceito deverá ser fatalmente invalidado. Nesse sentido, a abordagem

correta para o julgamento de valor passa obrigatoriamente pelo estudo detalhado da

cultura em questão. Contudo, um problema que se apresenta de imediato na realização de

um estudo sobre uma cultura distinta é a definição dos critérios que serão usados para o

julgamento do valor de suas contribuições, tendo em vista que as culturas poderão ser tão

distintas que os seus valores mais elementares não se convirjam. Como solução, Taylor

sugere um exercício de “fusão de horizontes”. Apesar de esta medida ser ainda bastante

subjetiva, ela permite que nossos horizontes se ampliem e que formem um pano de fundo

comum, a partir do qual será possível articular as diferentes visões de valor e analisar os

contrastes culturais. Deste modo, o julgamento de valor sobre culturas distintas implica

necessariamente um processo introspectivo de revisão de nossos próprios parâmetros.

Para Taylor, a universalização da presunção de valor igualitário apresenta-se como um

direito básico à semelhança dos direitos políticos e civis. Contudo a dignidade igualitária

desafia essas outras categorias de direitos que tendem a ser cegas às diferenças. Nesse

sentido ele alerta que “se um julgamento de valor pretende registrar algo independente

das nossas próprias vontades e desejos, ele não pode ser ditado por um princípio da ética”

(TAYLOR, 1994, p. 69, tradução nossa). Taylor aponta assim para controvérsias na

objetividade dos julgamentos, diferenciando entre julgamentos que são feitos com base

em estudos concretos do valor das culturas, ou posicionamentos eticamente favoráveis

sem o devido conhecimento. O verdadeiro reconhecimento e o respeito só podem resultar

da primeira forma, enquanto a segunda não passa de um ato condescendente e

etnocêntrico. Sem o processo de negociação de horizontes, os julgamentos de valor

peremptórios buscam apenas inserir os elementos das culturas em análise nos parâmetros

da cultura do observador, incorrendo o risco de surtir um efeito terrivelmente

homogeneizador (TAYLOR, 1994, p. 71). Por isso, Taylor faz um apelo à presunção

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inicial de valor igualitário que não pode ser descartada e à abertura ao estudo cultural

comparado do tipo que permite deslocar nossos próprios horizontes.

Habermas parece discordar de Taylor ao alertar que as reivindicações por reconhecimento

se relacionam com questões fundamentalmente legais e não com uma avaliação geral do

valor da cultura em questão, nem tão pouco com a presunção do igual valor das suas

contribuições para a sociedade. À medida que vai ocorrendo um estreitamento entre o

sistema legal e a equidade dos direitos, “crescem as garantias de estatuto extensivas, os

direitos à autoadministração, benefícios infraestruturais, subsídios, entre outros”

(HABERMAS, 1994, p.129, tradução nossa). Nesse contexto, as culturas indígenas e as

culturas dos descendentes de escravos, que foram reprimidas durante muito tempo,

podem argumentar razões morais nas suas reinvindicações por reconhecimento e políticas

afirmativas, ou de “discriminação reversa”. Esta afirmação é verdadeira quando se tratam

de políticas reparatórias, ou políticas que reforçam a igualdade de direitos, como por

exemplo, a liberdade de culto. Contudo, no contexto brasileiro, especificamente no caso

das comunidades religiosas de matriz africana, sabemos que garantir a liberdade de culto

e outras prerrogativas garantidas às religiões pelo Estado laico é algo ainda muito distante

do reconhecimento público das suas contribuições históricas para a formação da cultura

nacional. Isso levanta um questionamento sobre a aplicabilidade integral da concepção

legalista de Habermas ao contexto da luta pelo reconhecimento, como por exemplo, no

âmbito da política do patrimônio cultural.

No caso da política patrimonialista brasileira, a classificação de um bem é feita

impreterivelmente por meio de uma avaliação de valor, inclusive de acordo com os

regimentos legais e administrativos do Estado brasileiro. Nesse caso, a excelência das

contribuições de um bem cultural para a formação da identidade nacional é avaliada no

momento de elevá-lo ao estatuto de patrimônio cultural da nação. Mais ainda, no contexto

específico das religiões de matriz africana, o reconhecimento não é reivindicado apenas

no nível legal, por meio da proteção dos seus espaços sagrados ou das suas tradições e

expressões culturais particulares. O reconhecimento é reivindicado pelas comunidades

por meio da proteção institucionalizada do Estado brasileiro, que, por sua vez, detém o

poder de sacralizar um bem de uma tradição cultural específica, equiparando o seu valor

aos bens das outras matrizes culturais do Brasil, igualmente reconhecidas.

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Apesar de defender que o valor das culturas deve ser garantido por meio de uma

perspectiva democrática e procedimental, ao invés de uma perspectiva ética, Habermas

acredita que a intervenção do Estado é limitada e os próprios grupos sociais deverão

revisar constantemente o valor das suas próprias culturas. Assim sendo, ele explica ainda

que o Estado pode proteger os contextos sociais e intersubjetivos específicos nos quais os

indivíduos formam as sua identidades, no entanto de forma alguma isso poderá

representar uma tentativa preservacionista das culturas:

Os patrimónios culturais e as formas de vida articuladas neles normalmente reproduzem-se convencendo aqueles cujas estruturas de personalidade eles moldam, ou seja, motivando-os a apropriarem-se de forma produtiva e continuarem as tradições. O Estado constitucional pode fazer essa conquista hermenêutica da reprodução cultural possível, mas não pode garanti-la (HABERMAS, 1994, p.130, tradução nossa).

De fato, o Estado constitucional pode criar condições que motivem os indivíduos a

apropriarem-se produtivamente das suas tradições com o intuito de continuá-las, mas não

pode garantir a sobrevivência de grupos culturais distintos. Ao fazê-lo usurparia a

autonomia de seus membros, que, por sua vez, é fundamental para a apropriação e

preservação do seu patrimônio cultural. Um claro exemplo disto no cenário do patrimônio

brasileiro é o terreiro da Casa das Minas no Maranhão, que hoje conta com um número

muito reduzido de sacerdotisas, cujo grau sacerdotal não permite a iniciação de novas

vodunsi, como são denominadas as sacerdotisas iniciadas do candomblé de tradição jeje

(PRANDI, 1997). Deste modo, apesar de o Estado brasileiro ter tombado este importante

templo em 2002, garantido a proteção e salvaguarda do seu espaço físico, ele não pode

garantir o essencial para a preservação do patrimônio imaterial excepcional da Casa das

Minas, visto que este apenas poderia ser assegurado por meio da iniciação de novas

neófitas. As antigas vodunsi decidiram preservar a autenticidade da sua tradição, que por

sua vez limita a sua capacidade para iniciar as suas sucessoras. Ou seja, sem as neófitas

que possam apropriar-se do conhecimento e garantir a sua continuidade, o patrimônio

imaterial autêntico da Casa das Minas estará inevitavelmente perdido.

O paradoxo ilustrado pelo caso da Casa das Minas representa uma exceção na qual a

rigidez da autenticidade da própria cultura impede a sua revisão e por sua vez a sua

reprodução. Para Habermas (1994, p.131), a vitalidade de uma cultura reside exatamente

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na capacidade dos seus membros para revisá-la constantemente. Sendo algo dinâmico, a

cultura precisa adaptar-se ao contexto social mais amplo no qual está inserida e isso passa

obrigatoriamente pela sua capacidade em lidar com variações de estatuto , assim como

reagir a impulsos externos, que poderão levar à transformação e até mesmo à cessão das

suas tradições. A história da Casa de Oxumarê, tratada com maior detalhe no capítulo 4

deste trabalho, exemplifica claramente o potencial transformativo das estratégias de

adaptação utilizadas pelo Candomblé da Bahia para assegurar a sua sobrevivência até aos

dias de hoje. Em um contexto histórico de forte repressão institucionalizada pelo Estado,

os terreiros de candomblé resistiram por meio de estratégias de adaptação de suas

tradições e também de coexistência com a cultura e religião da elite dominante. O

candomblé era considerado uma cultura subversiva, cercada pelo primitivismo e o

obscurantismo. Ou seja, o candomblé representava uma ameaça real à construção de uma

sociedade colonial espelhada no modelo civilizacional europeu e, por isso, deveria ser

sumariamente combatido e erradicado. Nesse contexto, as tradições do candomblé foram

profundamente moldadas pelo revisionismo constante, necessário para resistir ativamente

e estrategicamente à opressão. Devido a esta capacidade de adaptação, dentre outros

motivos, o Candomblé da Bahia se distingue das práticas religiosas contemporâneas das

suas matrizes africanas, não obstante, ele resiste com vitalidade em terras brasileiras.

No contexto das sociedades multiculturais e democráticas, a coexistência de grupos

sociais com direitos iguais demanda obrigatoriamente que o seu patrimônio cultural seja

protegido e resguardado de qualquer tipo de discriminação. Nesse sentido, as garantias

legais devem assegurar um ambiente propício para que os indivíduos possam revisar suas

culturas e escolher quais tradições desejam continuar, transformar ou erradicar. Contudo,

estas escolhas e concepções sobre noções de bem precisam também ser articuladas na

esfera pública, por meio do reconhecimento mútuo da legitimidade de diferentes tipos de

afiliação cultural, dentro da mesma sociedade. Por este motivo a integração política dos

indivíduos não pode estar associada a um Estado eticamente neutro. Quando Habermas

afirma: “a integração política dos indivíduos assegura lealdade à cultura política comum”

(1994, p.134, tradução nossa); ele sugere que é necessário que os cidadãos participem do

processo de elaboração do sistema de direitos que resulta de um consenso sobre as

diversas interpretações dos princípios constitucionais. Este não é um processo eticamente

neutro, pois está imbuído no autoentendimento dos cidadãos e nas suas convicções e

motivações sobre o que é a “boa vida”. Ao mesmo tempo, o patriotismo constitucional

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precisa aguçar a sensibilidade à diversidade e integração das diferentes formas de vida

que coexistem nas sociedades multiculturais. Caso contrário, a cultura dominante pode

usurpar as prerrogativas do Estado à custa da liberdade de direitos das outras formas de

vida desconsiderando totalmente as reivindicações de reconhecimento. Habermas

acredita que a cidadania não se sustenta com consenso de valores, mas por consenso de

procedimentos para a legítima promulgação das leis e o legítimo exercício do poder.

Os cidadãos que são politicamente integrados desta forma compartilham a convicção de base racional que, liberdade irrestrita de comunicação na esfera política pública, um processo democrático para a resolução de conflitos e a canalização constitucional do poder político, em conjunto, fornecem uma base para verificar o poder ilegítimo e assegurar que o poder administrativo é utilizado em igual interesse de todos (HABERMAS, 1994, p.135, tradução nossa).

A participação ativa dos cidadãos nos processo deve estar garantida por estes mecanismos

de participação política, porque os valores não podem ser assegurados por si só. Trazendo

a assunto para o campo da política patrimonial, entende-se por meio deste modelo de

Habermas que as minorias culturais devem também participar ativamente do processo de

definição de valor dos bens culturais. Essa é a única forma de assegurar que a sua

concepção de valores e as suas noções de identidade e de bem serão efetivamente

transmitidas na política pública.

2.4. A IMPORTÂNCIA DA PARIDADE PARTICIPATIVA PARA A

NEGOCIAÇÃO JUSTA DE VALORES

A importância da participação social na formulação das políticas é um assunto tratado de

forma subjacente pelos autores citados anteriormente. Porém, é Nancy Fraser (2002;

2007; 2009) quem coloca o assunto definitivamente no centro das discussões sobre as

políticas de reconhecimento. Contudo, ao fazê-lo, ela afasta-se intencionalmente do

modelo inicialmente proposto por Taylor e outros culturalistas. Fraser constata que existe

uma crescente centralidade das políticas de reconhecimento no mundo globalizado, onde

as lutas por justiça social passam a estar permeadas por assuntos de ordem cultural em

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um processo que ela denomina de politização generalizada da cultura (2002, p.8). Apesar

de reconhecer a importância das lutas pautadas por uma gramática da identidade e da

igualdade, desde os movimentos multiculturais e às lutas por direitos humanos, Fraser

alerta que esta tendência poderá ter um efeito reverso, no que tange ao deslocamento das

lutas pela redistribuição de recursos. Questão essa que, em um contexto de globalização

e ascensão do neoliberalismo, precisa ser tratada com a devida atenção, sob o risco de

causar um verdadeiro prejuízo para a evolução paradigmática (FRASER, 2002, p.9). Com

base neste conceito de justiça social, Fraser (2007) procede com uma reestruturação da

teoria, buscando distanciar-se de questões meramente filosófica e desenvolver um novo

modelo centrado na justiça social que integre tanto os aspectos emancipatórios da teoria

do reconhecimento, como os da teoria da redistribuição.

Para ilustrar a necessidade de construir este novo modelo de ordenamento social, Fraser

(2002) identifica três tipos de problemas estruturantes que ameaçam a justiça social. Em

primeiro lugar, surge o problema de substituição, pelo qual as políticas de reconhecimento

tendem a substituir as velhas lutas pela redistribuição, motivada pela tendência

multiculturalista das sociedades atuais e também pelo próprio sistema neoliberal. Para

evitar esta antítese equivocada Fraser propõe uma concepção bidimensional de justiça

que permita uma distribuição justa dos recursos e um reconhecimento recíproco. Nesse

contexto, considerando a dificuldade de combinar os dois conceitos, Fraser propõe

“princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos sociais

que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si como pares”

(2002, p.13). Este princípio permite entender as injustiças causadas pelas desigualdades

e dependência econômica que reduz as possibilidades dos indivíduos interagirem entre si

como pares. Por outro lado, permite também entender que padrões institucionalizados de

valores culturais também representam um real impedimento para a consagração da

paridade de participação (Fraser, 2002, p.13).

Em segundo lugar, Fraser apresenta o problema da reificação das identidades coletivas,

argumentado que esta tendência poderá impedir o processo de transformação das

identidades e até mesmo reforçar estereótipos, forçando os indivíduos a integrarem-se em

categorias pré-fixadas e agindo como um fator de desigualdade, tendo assim um efeito

contrário ao pretendido. Nesse sentido Fraser aponta duas questões problemáticas

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referentes ao modelo de reconhecimento pela identidade que poderão levar ao falso

reconhecimento:

Primeiro, tende a reificar as identidades de grupo e a ocultar eixos entrecruzados de subordinação. Em consequência, recicla frequentemente estereótipos relativos a grupos, ao mesmo tempo em que fomenta o separatismo e o comunitarismo repressivo. Segundo, o modelo identitário trata o falso reconhecimento como um mal cultural independente e, como consequência, oculta as suas ligações com a má distribuição, impedindo assim os esforços para combater simultaneamente ambos os aspectos da injustiça. (2002, p.15)

Para solucionar este problema Fraser sugere um modelo que evite a reificação e promova

a iteração paritária entre as diferenças, um modelo baseado no estatuto social. Este

modelo pretende examinar os padrões institucionalizados de valores culturais que causam

a subordinação do indivíduo e impedem a sua participação paritária na visa social (Fraser,

2002, p.15). Em seu artigo “Reconhecimento sem ética?” (2007), Fraser faz a seguinte

afirmação:

O não reconhecimento, consequentemente, não significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como igual na vida social. Reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento, mas isso não significa mais uma política de identidade (2007, p.107).

No entanto, conforme apontado anteriormente por Taylor (1994), com base na teoria de

Franz Fanon (1961) é possível fazer uma correlação entre o não reconhecimento e a

deformação das identidades por meio da indução de imagens autodepreciativas, que, por

sua vez, podem limitar as possibilidades de participação dos grupos subordinados nos

espaços de poder, tendo consequências gravíssimas para a participação paritária. Por

outro lado, como apontado por Celi Pinto (2008), o modelo proposto por Fraser uma

fragilidade ao excluir a importância do auto-reconhecimento. Importância esta,

perfeitamente ilustrada nas lutas pelos direitos civis, para as quais é emergencial que os

sujeitos se autoreconheçam como portadores de uma identidade coletiva e

consequentemente dos direitos reivindicados pelos movimentos que se propõem a dar-

lhes voz.

Nesse sentido, é possível observar que apesar o modelo de estatuto trazer uma importante

luz para a discussão das políticas de reconhecimento, buscando tratar de forma mais

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ampla assuntos referentes à injustiça social, ele não inviabiliza o modelo de identidade

proposto por Taylor. Contudo, é importante reconhecer que o modelo de estatuto de

Fraser permite identificar e atuar diretamente sobre os padrões culturais

institucionalizados que estão na origem da negação do reconhecimento de grupos

subordinados, sendo assim um modelo mais pragmático que busca incidir diretamente

sobre as configurações que são necessárias para a mudança social.

Por último, Fraser apresenta um problema que ela denomina de “enquadramento

desajustado” da justiça social causado pelas forças da globalização e que não mais pode

ser restrito ao âmbito do Estado nacional (2002, p.17). Este fenômeno pode ser observado

tanto nas lutas por distribuição como nas lutas por reconhecimento, influindo de forma

díspar sobre a justiça social, dependendo do contexto de participação social no qual se

insere a luta em questão. Para tratar deste problema Fraser sugere uma concepção de

soberania de múltiplos níveis que descentralize o enquadramento nacional e permita

analisar as lutas por justiça em um contexto globalizado. Os enquadramentos múltiplos

são visto pela autora como fundamentais para equalização da participação paritária das

lutas por reconhecimento e redistribuição, garantido a justiça social de questões que hoje

ganham dimensão transnacional.

Ainda com base na problemática da globalização e dos problemas de enquadramento das

lutas por justiça social, Fraser substitui posteriormente o seu modelo bidimensional por

um novo modelo tridimensional, somando a dimensão política à equação (2009). Fraser

entende esta dimensão como o “palco” onde as lutas por redistribuição e reconhecimento

são conduzidas, relacionando-se diretamente com a “natureza da jurisdição do Estado e

das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais” (2009, p. 19). Mais

uma vez, Fraser demonstra um profundo pragmatismo em sua obra, no sentido em que

busca entender de forma objetiva os processos pelos quais ocorrem as disputas por justiça

social. Ao propor esta nova dimensão política o modelo de Fraser expande-se e questiona-

se sobre quem pode fazer as reivindicações e como estas são inseridas no debate público.

Nesse contexto, a noção de representação é fundamental para entender quem está incluído

ou excluído das reivindicações por justiça social, assim como estabelece as regras pelas

quais estas reivindicações são ou não validadas.

Considerando a importância da representatividade para a contestação das disputas de

justiça social, Fraser alerta para problemas relacionados à “falsa representação” que dão

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origem a injustiças relacionadas à interação social (2009, p.21). Apesar de a dimensão

política estar diretamente entrelaçada com as dimensões econômica e cultural, ela

independe destas duas últimas e pode apresentar também os seus próprios obstáculos à

paridade de participação. Por um lado, o sistema político comum pode negar a alguns

indivíduos incluídos nos grupos que reivindicam direitos, “a chance de participar

plenamente, como pares” (2009, p.22). Por outro lado, um mau enquadramento das

fronteiras destes grupos poderá deixar alguns indivíduos de fora do processo político,

tornando-os “não-sujeitos em relação à justiça” (2009, p.23) e consequentemente

negando-lhes a chance de formular reivindicações. Para solucionar este problema, Fraser

propõe um modelo de enquadramento pós-Westfaliano, por meio do qual seria possível

considerar um “princípio de todos os afetados”, pelo qual todos os afetados por um

determinado enquadramento social ou institucional possuem estatuto moral sujeitos da

justiça (2009, p.29). Esta perspectiva permitiria que as lutas por reconhecimento, que se

encontram obstruídas por uma noção equivocada de territorialidade do mundo

westfaliano, ganhassem um novo enquadramento político, permitindo aos sujeitos um

estatuto de cidadania mais ativo na reivindicação das suas demandas por justiça social.

Para Fraser, a preocupação com a dimensão política da justiça está causando uma

mudança paradigmática, no sentido que esta se direciona para um campo mais dialógico,

no qual os sujeitos de direito passam a influir diretamente sobre as a formulação das

decisões que lhes concernem. Por sua vez isso passa também a pressionar as estruturas

de poder estabelecidas:

[...] uma vez que o círculo daqueles que reivindicam o direito de participação no estabelecimento do enquadramento se expande, as decisões sobre o “quem” são crescentemente vistas como questões políticas, que deveriam ser tratadas democraticamente, e não como questões técnicas, que podem ser deixadas para os especialistas e as elites. O efeito é alterar o peso do argumento, fazendo com que os defensores do privilégio dos especialistas tenham de demonstrar o seu ponto. Incapazes de se manterem distanciados da questão, eles são necessariamente envolvidos em disputas acerca do “como”. (FRASER, 2009, p.35).

Nessa perspectiva, Fraser alerta que à mediada que os modelos políticos vão explorando

novas formas sobre “como” inserir os cidadãos nos processos democráticos de tomada de

decisão coletiva, o conceito de justiça social vai-se ampliando para um conceito de

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“justiça social democrática” (2009, p.36). Ideia esta, cuja efetiva concepção Fraser atribui

a Ian Shapiro (1999), mas da qual também se aproximam outros autores como Jürgen

Habermas (1996), dentre outros. No entanto, para a consolidação deste conceito é

necessário que ocorra uma verdadeira mudança dialógica nos processos democráticos,

que passa por uma preocupação com o “quem” e o “como” da justiça, não só com o “que”

(FRASER, 2009, p.37). É precisamente neste sentido que se insere a importância do

modelo de paridade participativa da justiça e que envolve necessariamente, não só uma

noção de resultado, mas também de processo, por meio da qual se avalia a legitimidade

das decisões no contexto democrático, onde todos participam integralmente como pares,

inclusive na negociação dos valores culturais.

2.5. O PATRIMÔNIO CULTURAL ENQUANTO CAMPO PREVILIGIADO PARA

A ARTICULAÇÃO DOS DISCURSOS DO RECONHECIMENTO

Muitos autores (GUTMANN, 1994; TAYLOR, 1994; WOLF, 1994; FRASER, 2002)

propõem a implementação de políticas de reconhecimento para compensar os danos

causados aos grupos minoritários, no contexto das sociedades multiculturais. No entanto,

não chegam a explorar em que consistem essas políticas e qual o seu poder de alcance no

sentido de reverter efetivamente o processo de marginalização e subordinação social

destes grupos. Por exemplo, Fraser (2002; 2007) propõe remédios contra as injustiças,

mas não explicita o que exatamente está envolvido no tratamento destas mazelas sociais.

Por outro lado, Susan Wolf (1994) explica que “os mais óbvios remédios envolvem

publicitar, admirar e explicitamente preservar as tradições culturais e conquistas destes

grupos, tradições e conquistas estas entendidas como pertencentes especificamente aos

descendentes das culturas relevantes” (WOLF, 1994, p. 76, tradução nossa). Certamente

não existe forma mais concreta de publicitar, admirar e preservar uma tradição cultural

do que classificá-la como patrimônio cultural de um determinado país. Nesse contexto,

as políticas patrimoniais podem ser entendidas como um campo privilegiado para

desinstitucionalização de padrões culturais que reproduzem a desigualdade e impedem a

participação paritária de minorias e grupos excluídos na vida social multicultural.

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Apesar do campo do patrimônio cultural poder responder diretamente por demandas de

ordem redistributiva, como por exemplo, questões envolvendo direitos fundiários,

propriedade intelectual, ou controle do orçamento público na área da preservação e

restauro, também é possível tratar questões deste campo pela perspectiva exclusiva do

reconhecimento. Para Fraser estas duas dimensões “relativamente independentes” podem

e devem ser analisadas de forma individualizada, sem que com isso se retire a importância

de uma em detrimento de outra. Ou seja, “nenhuma pode ser completamente efetivada de

forma indireta, por meio de reformas dirigidas exclusivamente para a outra” (2002, p.

13). Este trabalho propõe-se a lançar mão desta interpretação teórica, analisando o

patrimônio cultural enquanto uma política que opera essencialmente no campo simbólico

e que, portanto permite uma reflexão sobre o seu potencial enquanto política de

reconhecimento, independente de questões de ordem mais econômica, sem que com isso

se penalizem suas contribuições para a justiça social e para a autoestima dos grupos

culturais minoritários.

Não obstante, Celi Pinto (2008) chama a atenção para um elo perdido entre as políticas

de reconhecimento e redistribuição e os sujeitos sobre as quais estas dimensões incidem.

Isto é observável, tanto na teoria de Fraser, como em teorias mais culturalistas, dentre as

quais ela se refere especificamente à de Honneth (2003). Uma questão que ela expõe da

seguinte forma: O elo perdido parece ser o processo de construção de discurso, ou apropriação de elementos discursivos [...], por parte daqueles excluídos sociais, para que no espaço público eles possam constituir-se como o promotor da ação social a partir de sua própria construção como agente, concomitante às demandas e ao aparecimento de espaços e possibilidades políticas de reconhecimento (PINTO, 2008, p.48).

Desta forma, Pinto adverte para a importância tanto da paridade participativa como do

autoreconhecimento para a formação do discurso político que irá inserir as reivindicações

de direitos na agenda pública, principalmente no âmbito institucional do Estado. Nesse

sentido, conforme defendido por Fraser (2009), é fundamental tratar das questões

relacionadas à representação, tendo em conta que a dimensão política se constitui como

pano de fundo para as questões tanto da ordem redistributiva como de reconhecimento.

Nesta pesquisa, a dimensão política é determinante para entender como ocorre a

participação social na negociação dos valores patrimoniais.

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A participação social surge como um fator crucial porque não só demanda a atenção do

Estado democrático e dos especialistas da área do patrimônio para as justas reivindicações

por reconhecimento dos grupos culturais minoritários, como também os insere no

processo de (re)avaliação de valores culturais atribuídos aos bens patrimoniais, forçando

a expansão e diversificação de valores nas sociedades multiculturais, de forma mais

ampla. Nesse sentido, observa-se que a política patrimonial é um campo propício a

contestações de justiça social democrática, no sentido de combater a subordinação

cultural, mas também um espaço onde ocorre uma contínua negociação das identidades

dos grupos culturais minoritários, com relação à cultura dominante. Um dos benefícios

principais deste processo de duas vias, que surge a partir da interação da sociedade civil

com o Estado democrático, é a construção efetiva de um campo simbólico, a partir do

qual os indivíduos de grupos cultuais minoritários podem também construir roteiros de

vida positivos, em igualdade com os demais cidadãos. Assim sendo, torna-se fundamental

analisar o processo político referente à representatividade dos atores sociais na política

de patrimônio, assim como os obstáculos enraizados na política-comum do Estado, que

impedem a participação dos grupos culturais minoritários e a sua apropriação dos

elementos discursivos sobre patrimônio.

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3. A REPRESENTATIVIDADE DOS MONUMENTOS NEGROS TOMBADOS

NO ÂMBITO DA POLÍTICA PATRIMONIALISTA BRASILEIRA

Este capítulo traz uma análise sobre a contribuição das comunidades afrodescendentes

para a evolução paradigmática da política patrimonial brasileira. Esta perspectiva

evidencia algumas questões fundamentais que ainda são consideradas controversas no

acautelamento dos bens originários desta tradição, com um enfoque nos terreiros de

candomblé. A falta de iniciativas de identificação, critérios de seleção, aplicabilidade de

instrumentos e diretrizes de intervenção poderá estar na origem da subrepresentatividade

destes bens na lista do patrimônio tombado. No entanto, para definir as soluções ideais

para cada um destes problemas é necessário garantir um maior envolvimento das

comunidades detentoras destes bens culturais na política patrimonial.

A noção de patrimônio conforme a conhecemos hoje está profundamente relacionada à

construção do Estado nacional. Contudo, este conceito não é estritamente moderno, nem

exclusivamente ocidental. Segundo José Reginaldo Gonçalves (2002), a formação de

patrimônios tem um caráter milenar e deve ser relacionada historicamente ao principio

do colecionamento, que por sua vez, está presente em todos os grupos sociais ao longo

da história. O que ocorreu com significância na era moderna foi a reconfiguração

semântica do conceito de patrimônio, constituindo-o, segundo Goncalves (2002), como

uma importante e completa “categoria de pensamento”, passando a ter delimitações muito

específicas, o que o tornou um importante instrumento de análise social. Conforme

realçado por Lucia Silva (2010), na perspectiva de Gonçalves (2003), o patrimônio

enquanto categoria possui vários sentidos, podendo ser interpretado como um

instrumento jurídico, de política pública, ou de comunicação social. Apesar de existirem

vários tipos de patrimônios, como por exemplo, o econômico, o genético, ou o ecológico,

o patrimônio cultural configura-se como um relevante instrumento de construção de

intersubjetividades sociais permitindo, segundo Silva, mediar as relações entre passado e

presente, entre humano e divino, entre nós e eles.

Lucia Silva (2010) lembra também que a concepção atual de patrimônio nasce com a

necessidade de imaginação dos Estados modernos, tal como definido por Benedict

Anderson (2005). E nesse contexto, o patrimônio relacionado ao Estado-nação se

desenvolve por meio da retórica da perda de uma história coletiva. Contudo, essa história

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compartilhada não representa necessariamente a história de todos, sendo narrativa

marcada profundamente, ou quase exclusivamente, pela cultura dos grupos sociais

dominantes. Para entender melhor essa dinâmica é importante fazer referência ao

pensamento de Hobsbawm, apesar deste autor pertencer a uma tradição teórica distinta

da corrente utilizada neste trabalho. Hobsbawm (1990 apud SILVA, 2010) concebe o

Estado como uma estrutura socialmente tensa, porém, controlada pelos grupos

dominantes e a nação como uma sobreposição dos interesses coletivos aos privilégios

particulares, principalmente da aristocracia. Silva explica que “o Estado-nação emerge

como entidade política, com unidade territorial cuja base é o exercício da cidadania,

política por excelência, e não como cultura” (2010, p.38). Nesse contexto de construção

do Estado-nação Choay (2001, apud SILVA, 2010) observa que era necessário

desenvolver uma identidade coletiva que refletisse os princípios políticos do novo regime,

buscando minimizar as diferenças internas. Deste modo, o Estado precisava construir um

discurso permeado por uma unidade histórica, que por sua vez, seria incentivada por meio

da nacionalização dos bens tombados. É precisamente nesse contexto político-histórico

que surgem as primeiras instituições de proteção ao patrimônio nacional.

No Brasil, existem referências à proteção do patrimônio histórico que remontam ao século

XVIII. Contudo foi durante o primeiro período Vargas que surgiram as primeiras

iniciativas consistentes para organização do patrimônio histórico e artístico nacional. Os

principais protagonistas desta conquista foram Gustavo Capanema, então Ministro da

Educação e Saúde, e Mário de Andrade, que concebeu a proposta inicial do Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Este organismo foi finalmente

criado em 1936 e Rodrigo Melo Franco de Andrade foi nomeado como seu dirigente,

onde serviu durante trinta anos ininterruptos deixando um importante legado para o

patrimônio brasileiro (PIRES, 1980).

Em 1936, imediatamente após a criação do SPHAN, foi enviado ao Congresso Nacional

um projeto para organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e que

viria a ser promulgado como o Decreto-lei no25, de 30 de novembro de 1937. Esta

importante peça legislativa, que ainda se encontra vigente, define o patrimônio histórico

e artístico nacional da seguinte forma:

[...] o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos

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memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (grifo nosso).

A mesma legislação estabelece que os bens oriundos da propriedade privada de pessoas

físicas ou jurídicas poderão ser tombados de forma compulsória ou voluntária. O

tombamento voluntário ocorre desde que solicitado pelo proprietário, se o bem cumprir

com os requisitos necessários e se receber um parecer favorável do Conselho Consultivo

do Patrimônio Nacional, ou “sempre que o mesmo proprietário anuir, por escrito, à

notificação, que se lhe fizer [o IPHAN], para a inscrição da coisa em qualquer dos Livros

do Tombo” (Art. 6 e 7). Os conceitos de cultura nacional e do patrimônio brasileiro viriam

a ganhar um sentido mais amplo, por meio da Constituição Federal de 1988: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. [...]

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. [...]

§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. (grifo nosso)

Desde o Decreto-lei no25, de 1937, a proteção do patrimônio cultural vem sendo

concebida como um mecanismo de salvaguarda de bens de interesse público relacionados

à memória país. No entanto, conforme observado por Silva (2010), o patrimônio no Brasil

foi inicialmente marcado por valores ligados à cultura europeia, principalmente aos bens

materiais de estilo barroco, aos quais era atribuída uma noção de valor excepcional. A

patrimonialização destes bens constitui-se como um importante instrumento de

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imaginação de uma civilização tropical, construída com base nos valores da classe

dominante, ou seja, refletindo a hegemonia cultural país. Assim sendo, esta era uma forma

extremamente seletiva de imaginação e reprodução de memórias coletivas da nação.

Porém, ainda que não fosse representativo da totalidade da população, nem da

integralidade das histórias dessa população, o patrimônio passou a ter efetivamente uma

função pedagógica de coesão nacional e de imaginação de identidade brasileira, com um

discurso único sobre o passado coletivo.

Conforme já mencionado, apenas viria a surgir uma definição mais abrangente do

patrimônio brasileiro, em 1988, com a nova Constituição Federal, que estabeleceu em seu

Art.216 que o patrimônio nacional deve fazer referência à identidade, ação e memória

dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Apercebe-se aqui uma fugaz

tendência multicultural na nova Constituição e um distanciamento da tradição

patrimonialista brasileira que apenas considerava o tombamento de bens materiais da

matriz cultural luso-brasileira. É importante também salientar que o parágrafo primeiro

do mesmo artigo determina que a comunidade deve colaborar com o poder público na

promoção e proteção do patrimônio, inclusive por meio do tombamento, deixando claro

que essa tarefa envolve, à partida, responsabilidades compartilhadas. É interessante ainda

notar que o parágrafo quinto determina o tombamento de “todos os documentos e os sítios

detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” demonstrando assim uma

clara preocupação com a importância de ampliar a representatividade do patrimônio

afrobrasileiro. Esta determinação possivelmente terá sido influenciada pela intensa

mobilização social que ocorreu em torno do tombamento da Serra da Barriga (Quilombo

dos Palmares) três anos antes, experiência relatada pelo antropólogo Ordep Serra em seu

artigo “Monumentos Negros” (2005). Por outro lado, esta decisão sumária poderá ainda

sugerir outra interpretação: a constatação da dificuldade que estas comunidades

tradicionais teriam na proposição voluntária de processos de tombamento individuais,

requerendo assim uma ação mais contundente por parte do Estado.

Apesar de estar fora do escopo deste trabalho, que se propõe apenas a analisar os bens

tombados - ou seja, o patrimônio de natureza material - é importante também citar outro

momento decisivo para a história da política do patrimônio cultural no Brasil: a

promulgação do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui “o registro de bens

de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa

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Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências”. Esta legislação institui

também que o registro se dará por meio dos seguintes livros:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.

Apesar da Constituição Federal, no seu artigo 216, já ter conceituado o patrimônio

cultural brasileiro como “os bens de natureza material e imaterial”, a reconceituação deste

tipo de patrimônio só ocorre de fato quase uma década depois, após a realização do

“Seminário Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção”, em 1997, do qual

surgiu a Carta de Fortaleza. Gilmar Arruda (2006) observa que este documento foi

fundamental para a criação de um novo marco legal, tendo resultado na criação do

supramencionado Decreto 3.551, três anos depois. Arruda explica também que apesar da

proposta inicial de Mário de Andrade para criação do SPHAN, na década de 1930, fazer

referência à riqueza da cultura popular brasileira, devido à conjuntura política do Estado

Novo, esta ideia não vingou como deveria. Este fato ilustra perfeitamente a tese de Choay

(2001), no sentido em que a visão privilegiada do patrimônio nacional, tendeu

especialmente para aqueles bens materiais revestido de grande riqueza arquitetônica,

artística, estética e simbólica, influenciada exclusivamente pelos valores culturais das

classes dominantes, na busca pela homogeneização de uma identidade nacional de

influência europeia. Por sua vez, o surgimento do patrimônio imaterial, no final do século

XX, vem influenciar radicalmente o conceito de patrimônio cultural no Brasil, oferecendo

uma nova abordagem conceitual, operacional e efetivamente mais democrática, que

permitiu um olhar institucional para as cultuas não dominantes. Culturas estas, que só

recentemente começaram a ser reconhecidas de forma oficial como peças fundamentais,

não só do rico e diverso mosaico cultural brasileiro, mas também da memória nacional e

da história comum.

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3.1. OS BENS TOMBADOS DA TRADIÇÃO CULTURAL AFROBRASILEIRA

A proteção de bens da tradição cultural afrobrasileira surge no contexto das mudanças de

paradigmas da política patrimonial, atuando ela mesma como um catalisador destas

transformações, no sentido em que viria a apresentar ao IPHAN novos e complexos

desafios de seleção, proteção e gestão de bens culturais. A escolha do termo “patrimônio

cultural da tradição afrobrasileira”, ao invés de simplesmente “patrimônio cultural

afrobrasileiro”, pode a partida parecer um preciosismo desnecessário, no entanto ele

remete ao princípio de que, o patrimônio nacional pertence efetivamente a todos os

brasileiros e não deve ser fragmentado ou seccionado. Da mesma forma, ele remete para

o respeito, o reconhecimento e a corresponsabilidade de todos os cidadãos na preservação

de um bem considerado patrimônio da nação, independentemente da tradição cultural que

tenha influenciado a sua origem e manutenção. Conforme mencionado por Rockefeller

(1994), as políticas de reconhecimento devem valorizar as contribuições de subgrupos

para a história nacional, mas não fragmentá-la. Referindo-se especificamente ao caso dos

EUA, Rockefeller afirma: “precisamos de uma nova apreciação profunda das histórias

étnicas do povo americano e não, uma redução da história americana a histórias étnicas”

(1994, p.95, tradução nossa). Portanto, trazendo esta visão para o contexto brasileiro,

podemos observar que, apesar de existirem bens culturais de tradição afro-brasileira que

precisa estar mais bem representados no patrimônio nacional, não poderá haver uma

distinção especial entre eles e os demais. Ou seja, é importante enaltecer as contribuições

de cada grupo social para a formação da cultura nacional, sem fragmentá-la. No entanto,

para que isto seja possível é imperativo o desenvolvimento de estruturas mais

participativas e democráticas, por meio das quais os membros dos grupos culturais

minoritários possam efetivamente informar os valores atribuídos por essas coletividades

aos bens em apreço. Somente dessa forma será possível pensar uma cultura nacional onde

as histórias étnicas do povo brasileiro sejam contempladas de forma igualitária. Caso esta

participação não ocorra, o processo de patrimonialização poderá reforçar estereótipos pré-

existentes e inclusive ter um impacto bastante negativo na construção identitária dos

grupos minoritários.

Um exemplo que claramente ilustra o potencial negativo do patrimônio cultural como

política de fragmentação social é o caso tombamento do Museu da Magia Negra do Rio

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de Janeiro, em 1938 (CORREA, 2007). Infelizmente, este equivocado tombamento foi

motivado apenas por uma visão preconceituosa da cultura religiosa dos negros brasileiros,

à semelhança de iniciativas congêneres, como o Museu Estácio de Lima em Salvador,

onde peças de arte sacra afrobrasileira eram expostas juntamente com armas de crime e

deformações biológicas, conotando-as assim com uma curiosa delinquência do foro

psiquiátrico (SERRA, 2006, p.311). A permanência desta coleção na lista dos bens

tombados até aos dias de hoje, lembra-nos obrigatoriamente deste lamentável episódio da

política patrimonial brasileira e serve de testemunho do racismo institucionalizado

durante uma determinada época da história do país. Este bem tombado deve ser

recordado, porém desconsiderado enquanto marco de criação do primeiro monumento

negro do Brasil, no sentido em que os valores apensos a ele não representam os princípios

democráticos instituídos pela constituição brasileira e muito menos, os valores

comungados pelas próprias comunidades religiosas de matriz africana. Este exemplo

ilustra muito bem o potencial político do patrimônio enquanto construtor dos discursos

sobre as identidades nacionais, podendo ter consequências tanto positivas, como

extremamente nefastas.

No sentido contrário do exemplo referido acima, o patrimônio pode também ser visto

como importante instrumento de inclusão social. Apesar de ser inegável a importância da

tradição afrobrasileira para a formação da cultura nacional, esse fato não a constitui

efetivamente como patrimônio, uma vez que o patrimônio não nasce espontaneamente,

ele é criado por meio de uma pesquisa e da instrução de um processo, por meio do qual

são explicitados os valores culturais atribuídos a ele. Antes desse processo, um bem é

apenas uma produção cultural, sendo posteriormente transformado em patrimônio, que

deve ocorrer necessariamente por meio da instauração de um processo junto ao IPHAN

ou outros órgãos subnacionais de proteção do patrimônio cultural, assim como envolver

os outros sociais de forma ampla e democrática. Contudo, Márcia Sant’Anna adverte que

“o patrimônio cultural reconhecido pelo Estado corresponde sempre a um “recorte” que

se faz na produção cultural dos grupos sociais” (2011, p. 30). Nesse sentido, é importante

observar que nem todas as produções culturais poderão vir a ser reconhecidas como

patrimônio. É necessária uma análise individualizada do valor de cada bem, de acordo

com o interesse público, tornando-os assim merecedores de proteção especial pelo

Estado. No entanto, o problema reside exatamente na forma como é feita esta avaliação

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de valor. Os casos referentes à tradição afrobrasileira que serão analisados de seguida são,

por suposto, bastante ilustrativos desta problemática.

A primeira iniciativa para o reconhecimento e valorização de bens representativos da

tradição afrobrasileira foi o Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos

Negros da Bahia - MAMNBA, uma proposta de autoria do antropólogo Ordep Serra e do

arquiteto Orlando Ribeiro de Oliveira, que resultou em um convênio assinado entre a

Fundação Nacional Pró-Memória, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundação

Cultural do Estado da Bahia, em 1981. Segundo SERRA (2005), à época este projeto

inovador foi bastante criticado por pessoas do meio cultural devido ao uso do termo

“monumento negro”, no sentido em que criava uma segmentação da cultura nacional.

Diferentemente do contexto no qual se dá a distinção sobre o uso do termo “patrimônio

da tradição afrobrasileira”, em vez de “patrimônio afrobrasileiro”, cujo objetivo é

precisamente corresponsabilizar todos sobre a preservação destes bens comuns, na época

em que o Projeto MAMNBA foi criado ocorria uma total invisibilidade desta tradição

cultural na política do patrimônio, sendo necessárias ações afirmativas neste sentido.

Analisando, a representatividade comparativa destes bens no conjunto do patrimônio

tombado, tema que será tradado mais adiante, é possível concluir que os princípios

basilares com os quais o MAMNBA foi criado continuam válidos, sendo necessária uma

reedição deste importante projeto, agora por meio de metodologias mais recentes de

mapeamento e inventário, e obrigatoriamente em nível nacional, permitindo assim uma

maior visibilidade para produções culturais negras, principalmente no sul do país.

Conforme descrito por Ordep Serra (2005), o Projeto MAMNBA dedicou-se inicialmente

à análise rigorosa de estudos anteriores sobre a distribuição geográfica dos centros de

culto afro-brasileiros na cidade de Salvador, comparando-os com dados de campo e o

cadastro da Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros (FENACAB), o que inclusive

permitiu estudá-los à luz do Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador.

Posteriormente, a equipe dedicou-se ao estudo de caso de dois importantes conjuntos

monumentais em situação de risco, o Parque de São Bartolomeu, em Pirajá e o terreiro

Ile Iyá Nassô Oká, conhecido popularmente como a Casa Branca do Engenho Velho.

A eminente ameaça de desmembramento da área do terreiro da Casa Branca pelo seu

proprietário legal, o senhor Hermógenes Príncipe, tendo em vista a valorização

significativa das terras no entorno da Avenida Vasco da Gama, incentivou a comunidade

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do terreiro a iniciar uma verdadeira luta pela proteção legal da integridade do seu espaço

sagrado. Com o apoio do Projeto MAMNBA, após varias tentativas de proteção, dentro

as quais se destaca o Decreto Municipal nº 6.634 de 04/08/1982, que institui o terreiro

como área de proteção simples. Posteriormente, também com o apoio da equipe do

MAMNBA, instaurou-se um processo de proteção inédito na então Secretaria do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, que viria a culminar com o

tombamento do primeiro monumento negro do Brasil, o terreiro da Casa Branca do

Engenho Velho, em 1984.

À época, este tombamento deu origem uma grande controvérsia dentro do Conselho

Consultivo da SPHAN, visto que havia técnicos que concordavam e outros que sequer

concebiam a possibilidade de se tombar uma coisa que, no seu ponto de vista, não detinha

qualquer riqueza arquitetônica e artística que justificasse tal proteção, sob o risco de

colocar em cheque a própria instituição do tombamento. O antropólogo Gilberto Velho,

relator do processo de tombamento da Casa Branca na reunião do Conselho Consultivo

do IPHAN, descreve o episódio da seguinte forma:

Independentemente de aspectos técnicos e legais, o que estava em jogo era, de fato, a simbologia associada ao Estado em suas relações com a sociedade civil. Tratava-se de decidir o que poderia ser valorizado e consagrado através da política de tombamento. Reconhecendo a válida preocupação de conselheiros com a justa implementação da figura do tombamento, hoje é impossível negar que, com maior ou menor consciência, estava em discussão a própria identidade da nação brasileira. A rápida passagem do Cardeal Primaz na histórica reunião não disfarçava que os setores mais conservadores do catolicismo baiano e, mesmo nacional, viam com maus olhos a valorização dos cultos afro-brasileiros (VELHO, 2006, p.240; também em REZENDE et. al., 2010).

Como se pode verificar pela descrição de Gilberto Velho (2010), episódio também

relatado minuciosamente por Ordep Serra (2005), o tombamento da Casa Branca

sinalizou claramente o início de uma profunda mudança paradigmática na política do

patrimônio cultural no Brasil. Um fato importante que deve ser observado é que, apesar

de uma resistência inicial, o tombamento do terreiro foi inscrito não só no livro do Tombo

Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, mas também no Livro do Tombo Histórico.

Esta decisão carrega em si um profundo significado sobre a importância das contribuições

culturais do Candomblé e dos afrobrasileiros para a história oficial da nação. Os

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tombamentos de todos os terreiros que se seguiram ao tombamento da Casa Branca foram

inscritos também nestes dois livros, contudo não enfrentaram qualquer obstáculo, tendo

sido aprovados por unanimidade. Não obstante, estes e outros bens culturais da tradição

afrobrasileira continuam extremamente subrepresentados na lista do patrimônio nacional

tombado.

3.2. A PERSISTENTE SUBREPRESENTATIVIDADE AFROBRASILEIRA NO

CONJUNTO DO PATRIMÔNIO NACIONAL TOMBADO

Após o precedente da aprovação do tombamento do terreiro da Casa Branca em 1984 e a

sua posterior inscrição nos livros de tombo em 1986, foram tombados apenas mais nove

bens relacionados diretamente à tradição cultural afrobrasileira, conforme elencado no

Quadro 1. É importante ressaltar que esta lista contém um total de 1163 bens tombados,

com o tombamento aprovado, ou homologado, sendo constituída majoritariamente por

bens que se relacionam principalmente às tradições culturais de origem europeia, com

algumas pequenas exceções, dentre os quais se destacam os lugares sagrados indígenas

Kamukuwaká e Sagihenku (MT), os ancestrais Sambaquis de Pindai (MA) e Barra do Rio

Itapitangui (SP), o memorial dos povos indígenas (DF) ou as fazendas de chá dos

imigrantes japoneses (SP), dentre poucos outros. Se for considerada a totalidade dos 1163

bens tombados, aprovados, ou homologados, pode-se verificar que os dez bens da

tradição afrobrasileira constituem uma minoria inferior a 1% do universo de bens

tombados.

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Quadro 1 - Bens da tradição afrobrasileira tombados ou homologados

Localização Informações sobre o Bem Dados do Processo

Inscrições no Livro do Tombo

UF Município Nome do Bem Classificação Situação Número Processo

"T"

Ano de aber-tura

Arqueológico, etnográfico e paisagístico

Histórico

AL União dos Palmares Serra da Barriga Paisagem Tombado 1069 1982 fev/86 fev/86

BA Salvador Terreiro da Casa Branca Terreiro Tombado 1067 1982 ago/86 ago/86

BA Salvador Terreiro do Axé Opô Afonjá Terreiro Tombado 1432 1998 jul/00 jul/00

MG Ibiá Quilombo Ambrósio: remanescentes

Quilombo Tombado 1428 1998 - jul/02

BA Salvador

Terreiro de Candomblé Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé,

Terreiro Tombado 1471 2000 fev/05 fev/05

BA Salvador Terreiro de Candomblé do Bate-Folha,

Terreiro Tombado 1486 2001 fev/05 fev/05

MA São Luís Terreiro Casa das Minas - Jeje Terreiro Tombado 1464 2000 fev/05 fev/05

BA Salvador Terreiro do Alaketo, Ilê Maroiá Láji Terreiro Tombado 1481 2001 set/08 set/08

BA Salvador Terreiro de Candomblé Ilê Oxumarê

Terreiro Tombado 1498 2002 out/14 out/14

BA Cachoeira

Terreiro Zogbogo Male Bogun Seja Unde (Roça do Ventura)

Terreiro Homolo-gado 1627 2011 dez/14 dez/14

Fonte: IPHAN, 2015 (acessado no dia 7 de julho)

Os terreiros constituem a maioria dos bens tombados da tradição afrobrasileira, estando

concentrados geograficamente na cidade de Salvador (BA), com a exceção do terreiro

Seja Unde, em Cachoeira (BA) e a Casa das Minas, em São Luís (MA). Os terreiros de

Candomblé são bens patrimoniais particularmente interessantes para serem estudados

devido à grande riqueza cultural que esses espaços encerram, tanto material, como

imaterial. Conforme observado pela Arquiteta Márcia Sant’Anna (2011), os antigos

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terreiros de candomblé da Bahia apresentam uma materialidade muito específica e

diversa, sendo constituídos tanto por espaços sagrados, como por espaços de uso

cotidiano e ainda, em alguns casos, por uma área de mata, utilizada para a obtenção de

plantas litúrgicas e realização de rituais religiosos. Estas características podem variar

consideravelmente dependendo da sua história, tipo de culto e da intensidade das pressões

urbanas que sofreram ao longo da sua existência. Os terreiros de candomblé apresentam

uma espacialidade muito interessante, não só por causa da sua estrutura conventual, que

remete aos tradicionais compounds familiares africanos, onde o templo se encontra

rodeado pelas habitações dos membros da comunidade, mas também por exibirem o que

Roger Bastide (1971, apud SANT’ANNA, 2011) chamaria de uma “geografia religiosa”,

que de certa forma reproduz por meio da localização dos assentos de suas divindades,

uma dispersão territorial dos cultos no solo africano. Sant’Anna (2011) chama ainda a

atenção para o fato dos terreiros serem um locus a partir do qual ocorre uma profusão de

riquíssimas de manifestações culturais que se desenvolvem dentro e fora dos seus muros.

Dentre estas expressões e saberes salienta-se a manutenção ritualística de línguas

africanas no Brasil – que, juntamente com o universo teológico e simbólico, se tornaram

fatores determinantes para criação das nações metaétnicas do candomblé. Porém é

possível também enumerar outras importantes expressões culturais características dos

terreiros, como: danças, cânticos, poesias de louvor (oriki), culinária, indumentárias

tradicionais, um profundo conhecimento litúrgico de folhas e da medicina tradicional, etc.

Além disso, os terreiros guardam também acervos muito valiosos de documentos,

fotografias e objetos antigos de uso cotidiano e litúrgico, muitos deles produzidos por

artesãos ligados ao candomblé e que se configuram como valiosas obras de arte. Os

terreiros de candomblé constituem-se assim como locais privilegiados de reprodução

cultural e de preservação da memória do povo negro, tendo-se tornado testemunhos vivos

de um processo histórico de resistência e organização civil da comunidade negra,

inclusive durante o período da escravidão.

Contudo, os diversos terreiros, pelo menos os mais antigos, contam diversas histórias

sobre a comunidade negra e das religiões de matriz africana no Brasil. Essas histórias

precisam ser contadas e reconhecidas de igual forma, visto que juntas formam um

importante mosaico da memória do Brasil. Infelizmente os sete terreiros tombados até à

atualidade, apesar de se constituírem enquanto elementos históricos singulares

merecedores da proteção do Estado, não representam a diversidade das religiões de matriz

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africana no Brasil. Conforme observado por Parés (2011), a política de tombamento tem

apenas validado e sancionado uma hierarquia de prestígio religioso e político pré-

existente. Deste modo, faz-se absolutamente necessário um esforço acrescido, tanto do

IPHAN como das comunidades, para que sejam tombados novos terreiros representativos

deste conjunto memorial coletivo e que, apesar de serem reconhecidos pelo povo-de-

santo pela sua importância religiosa e ancestral, poderão não disfrutar do mesmo prestígio

político e dos recursos técnicos e financeiros necessários à preparação dos respectivos

processos de tombamento.

Conforme demonstrado no Quadro 2 existem outros 30 processos de tombamento

referentes à tradição afrobrasileira, cuja situação se encontra categorizada como: em

instrução, anexados, ou indeferidos. É importante observar que 17 destes processos

referem-se a terreiros de candomblé, em fase de instrução. Ou seja, cuja avaliação de

valor ainda está em curso ou não foi realizada.

Quadro 2- Bens da tradição afrobrasileira em fase de instrução ou indeferidos

Localização Informações sobre o Bem Dados do Processo

UF Município Nome do Bem Classificação Situação Número Processo

"T"

Ano de abertura

GO Cavalcante Quilombo: Vão do Moleque Quilombo Instrução 1304 1990

SE Laranjeiras Casa: Terreiro Filhos de Obá Terreiro Instrução 1340 1994

MA Mirinzal Quilombo: Flexal (do) Quilombo Instrução 1352 1995

PA Oriximiná Quilombos: Oriximiná Quilombo Instrução 1353 1995

BA Wanderley Áreas conhecidas como "Riacho de Sacutiaba" e "Sacutiaba", ocupadas por comunidades.

Quilombo Instrução 1400 1997

CE Quixadá Morro conhecido como "Pedra da Galinha Choca" Quilombo Anexado 1403 1997

MA Turiaçu Área conhecida como "Jamary dos Pretos", ocupada por comunidade remanescente de Quilombo

Quilombo Instrução 1398 1997

PE Garanhuns Área conhecida como "Castainho", ocupada por comunidade remanescente de quilombo Quilombo Instrução 1401 1997

SE Porto da Folha

Área conhecida como "Mocambo", ocupada por comunidade remanescente de quilombo Quilombo Instrução 1399 1997

MG Leme do Prado

Área conhecida como Porto Coris - Quilombo de porto Coris Quilombo Instrução 1409 1998

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RJ Paraty Área ocupada por comunidade remanescente de Quilombo, conhecida como "Campinho da Independência"

Quilombo Instrução 1420 1998

SP Eldorado Área conhecida como Ivaporanduva, ocupada por comunidade remanescente de quilombo Quilombo Instrução 1410 1998

BA Lauro de Freitas Terreiro do Ilê Axé Opô Ajuganã Terreiro Instrução 1459 2000

BA Salvador Terreiro do Ilê Ache Iba Ogum Terreiro Instrução 1461 2000

BA Itaparica Terreiro Culto aos ancestrais - Omo Ilê Agbôulá Terreiro Instrução 1505 2002

BA Salvador Terreiro Tumba Junçara da Nação Angola Terreiro Instrução 1517 2004

BA Salvador Terreiro Mokambo - Onzo Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo Terreiro Instrução 1523 2005

RJ Duque de Caxias

Terreiro Santo Antônio dos Pobres – Ilê Ogum Megegê Asé Baru Lepé, Terreiro Instrução 1533 2006

RJ Nova Iguaçu

Terreiro de Candomblé Asé Nassó Oká Ilê Osun, no município de Nova Iguaçu, estado do Rio de Janeiro

Terreiro Instrução 1531 2006

BA Lençóis Terreiro Palácio de Ogum Terreiro Instrução 1541 2007

BA São Félix Terreiro de Candomblé do Cajá, situado na Fazenda Capivari Terreiro Instrução 1555 2008

PE Recife Terreiro Obá Ogunté – Sítio Pai Adão Terreiro Instrução 1585 2009

RJ Rio de Janeiro

Tenda espírita Vovó Maria Conga de Arruda, no bairro do Estácio Terreiro Indeferido 1579 2009

GO Valparaíso Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá – Ilê Oxum Terreiro Instrução 1629 2011

RJ Belfford Roxo

Culto Corte Real da Nação de Ijexá - Ilê Ti Osum Omi Iya Iiya Oba Ti òdô Ti Ogum Alé Terreiro Instrução 1682 2013

SP São Paulo Espaço Religioso Cultural Afro Brasileiro - Neguito Pai Dancy Terreiro Instrução 1683 2013

BA Guanambi Terreiro de Aché Ilê Cicôngo Roxo Mucumbe de H'anzambi Terreiro Instrução 1710 2014

RJ São João do Meriti Terreiro Ilê Omulu Oxum Terreiro Instrução 1716 2014

RS Morro Alto Pedido de Tombamento do Território Quilombola de Morro Alto Quilombo Instrução 1688 2014

BA Cachoeira Terreiro Viva Deus - Egbè Eràn Ope Olúwa Terreiro Instrução

Fonte: IPHAN, 2015 (acessado no dia 7 de julho)

O estudo realizado por Maria Rosário Carvalho e Hugo Prudente (2011), sobre os

processos de tombamento de terreiros instruídos a partir da 7ª Superintendência Regional

do IPHAN revela informações importantes sobre alguns terreiros que possuem um

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inquestionável valor patrimonial e cujos processos, por diversos motivos, se encontram

estagnados na fase de instrução ou sequer foram instruídos. Dentre estes é possível

destacar dois casos emblemáticos pelas suas contribuições singulares e fundamentais para

formação da religiosidade de matriz africana no Brasil: o terreiro de culto a Egungun, o

Omo Ilê Agboulá, e o principal terreiro jeje-mahi de Salvador, o Zogodô Bogum Malê

Rundó.

O primeiro caso, o Omo Ilê Agboulá é o único representante na lista de bens em análise

do extraordinário culto aos ancestrais nagô, os Egungun. Segundo Carvalho e Prudente

(2011), este terreiro está instalado em Ponta de Areia na Ilha de Itaparica (BA), desde o

primeiro quarto do século XX. Conforme o relato dos autores, a associação civil que

representa este terreiro solicitou o tombamento ao IPHAN em fevereiro de 2002,

juntamente com um pedido de verbas para realizar obras emergenciais na sua principal

edificação. Passada mais de uma década, o processo nº1505-T-02 continua em tramitação

contando na lista como em fase de “instrução”. Carvalho e Prudente (2011) chamam ainda

a atenção para o fato da última tramitação no processo ser um ofício do superintendente

da 7ª Superintendência Regional do IPHAN, para o tabelião do Cartório do Registro de

Imóveis de Itaparica requerendo uma certidão de inteiro teor sobre o imóvel, com a

finalidade de expedir uma notificação ao proprietário do bem, cumprindo assim com as

normas previstas na legislação. É importante observar que o Ilê Agboulá, juntamente com

outros, como por exemplo, o terreiro de Tuntun Olokotun, fundado em 1850, na mesma

ilha, faz parte de um grupo muito restrito de templos dedicados quase exclusivamente aos

ancestrais, o que os diferencia dos terreiros de candomblé onde predomina o culto aos

Orixás. Apesar de hoje existirem também terreiros de Egungun na cidade de Salvador,

como o Ilê Axipá, fundado pelo saudoso Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos

Santos, os terreiros de Egungun concentravam-se em Itaparica, e por esse motivo, a ilha

tornou-se um território que impõem um profundo respeito em todo o povo-de-santo da

Bahia. A antropóloga Juana Elbein dos Santos (2007), esposa de mestra de Didi, explica

em seu livro “Os Nagô e a Morte” que o culto de Egungun se distingue do culto aos

Orixás, porque não só possuem templos separados, mas também têm liturgias e

sacerdócios distintos. Ao passo em que um Orixá representa uma força da natureza, de

caráter universal, os Egungun representam linhagens familiares restritas (idem, 2007,

p.104). Possivelmente por este motivo, o culto dos ancestrais é tão restrito e não

proliferou como o culto aos Orixás. Segundo Santos (2007) esta separação é tão forte que

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o culto praticado no Ile Ibó Akú (Casa dos Ancestrais), dentro dos terreiros de candomblé,

em homenagem às antigas lideranças de cada templo específico, é distinto do culto

praticado nos terreiros de Egungun. Mais ainda, o culto de Egungun mantém outra

característica singular que o caracteriza enquanto sistema religioso e cultural organizado,

que é a existência de um sacerdote supremo, o Alapini, cargo ocupado por Mestre Didi

até ao seu falecimento em seis de outubro de 2013. O Alapini ocupa um cargo único no

Brasil e é hierarquicamente superior a todos os Alagbá, que por sua vez são os líderes de

cada terreiro de Egungun. Entendendo a existência deste culto no Brasil como uma prática

religiosa que se relaciona de forma direta, porém independente, com as demais expressões

do complexo cultural nagô, é possível entender o valor cultural inquestionável que estes

terreiros enceram e que os credencia para tombamento enquanto patrimônio nacional.

Nesse sentido, considerando o interesse da comunidade em tombar o terreiro Omo Ile

Agboulá, fica clara a apatia do Estado perante os obstáculos que impedem o

prosseguimento do processo de tombamento. Cabe também sugerir que, dada a relação

entre os diversos terreiros de Egungun, que o tema seja estudado conjuntamente com o

objetivo de propor o tombamento coletivo destes templos enquanto partes do mesmo

sistema cultural.

O segundo caso citado refere-se ao terreiro Zogodô Bogum Malê Rundó, que conforme

observado por Parés (2007), juntamente com o terreiro cachoeirano, Zogodô Male Bogun

Seja Unde, são dois exemplares da tradição jeje-mahi da Bahia, etnia que influenciou

profundamente o processo de institucionalização do candomblé no século XIX, inclusive

as outras nações como o nagô-ketu e o angola. Em seu estudo sobre os processos de

tombamento de terreiros que tramitam a partir da 7ª Superintendência Regional do

IPHAN, Carvalho e Prudente (2011) relatam que única medida de proteção solicitada pela

comunidade do terreiro do Bogum é uma carta da Comissão de Defesa e Preservação do

Terreiro dirigida ao então Ministro da Cultura, Celso Furtado, em 1987. Desde então não

foi formalizado junto ao IPHAN qualquer solicitação de tombamento do terreiro. Por

outro lado, cabe observar que o seu irmão na cidade de Cachoeira (BA), o terreiro Seja

Unde teve seu tombamento homologado em dezembro de 2014, em decorrência de uma

forte mobilização da sociedade em torno da proteção emergencial do seu espaço sagrado

após este ter sido invadido parcialmente destruído (Amorim, 2011). Assim sendo,

percebe-se que apesar de existirem incontestáveis informações que comprovam o valor

patrimonial excepcional do terreiro do Bogum, a falta de mobilização da sua comunidade

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em prol do tombamento, seja esta intencional ou não, representa um derradeiro obstáculo

ao reconhecimento deste antigo terreiro da Bahia pelo Estado brasileiro, assim como ao

usufruto dos mecanismos de proteção ao patrimônio cultural nacional.

Por outro lado, a existência de terreiros que portam valores etnográficos e históricos

singulares e que ainda não foram tombados, nem tão pouco tiveram seus processos

instaurados, reflete a ausência de uma política proativa para o patrimônio cultural de

tradição afrobrasileira que possa resolver o problema da subrepresentatividade destes

bens na lista do patrimônio nacional. Uma ação do Estado nesse contexto deverá

identificar os obstáculos encontrados por estas comunidades na instauração e no devido

acompanhamento dos processos de tombamento junto ao IPHAN, conforme as normas

estabelecidas pela Portaria nº11/1996. Mais ainda, deverá buscar compreender os motivos

pelos quais algumas comunidades demonstram certa resistência ou desmotivação com

relação aos processos de “patrimonialização" dos seus terreiros. O mesmo se aplica

obviamente às comunidades remanescentes de quilombos e outros bens culturais

afrobrasileiros espalhados por todo o país, como por exemplo, os clubes sociais negros.

3.3. A APLICABILIDADE DOS INTRUMENTOS DE PROTEÇÃO AO

PATRIMÔNIO MATERIAL DA TRADIÇÃO AFROBRASILEIRA

Desde o tombamento do terreiro da Casa Branca em 1984, a aplicabilidade do instituto

do tombamento a terreiros de candomblé tem sido um tema controverso e suscitado

muitos debates especialmente em torno de questões referentes à possibilidade de intervir

nesses bens após a sua classificação. Conforme relatado por Márcia Sant’Anna (2011) e

Ordep Serra (2005), durante o processo de aprovação do tombamento da Casa Branca, as

discussões centraram-se em aspectos jurídicos do instrumento, especialmente nos

constrangimentos que poderiam ser causados pela rigidez legal do tombamento, tanto à

comunidade da Casa Branca como ao próprio órgão fiscalizador, o IPHAN. O principal

questionamento sobre a aplicabilidade do tombamento a terreiros de candomblé seria,

portanto uma característica equivocada sobre a mutabilidade atribuída a estes espaços

decorrente da própria ritualística das religiões de matriz africana, como por exemplo, uma

suposta necessidade de derrubar árvores velhas ou a construção aleatória de novos

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sacrários. Ordep Serra lembra ainda que, paradoxalmente, houve um tempo em que se

considerava o Candomblé uma religião muito conservadora, no sentido em que não abria

mão do rigor de suas tradições mesmo perante as pressões do mundo moderno, o que

segundo o autor, também era uma visão extremamente equivocada. Na visão de Serra

(2005, p. 196): [Ambas as visões], são descrições incorretas e preconceituosas, tanto as que veem no rito em apreço uma mecânica reprodução de um Kultbild “congelado”, como as que lhe atribuem uma mutabilidade caprichosa, caótica (2005, p. 196).

Entende-se, portanto, que os terreiros de Candomblé possuem uma natureza dinâmica,

condição necessária à sobrevivência de todas as culturas, no entanto, é evidente também

que a comunidade é a principal interessada na manutenção e conservação dos espaços e

objetos sagrados, portadores e propulsores de axé, que por sua vez são precisamente os

monumentos mais valorados, por meio dos quais se justifica o tombamento. Serra chama

a atenção para o fato de que a aplicação da lei não cria imunidade às mudanças, “apenas

cria controles para que a mudança previsível não seja desfiguradora” (2005, p. 198-199).

Portanto, não se pode considerar que a imutabilidade seja um parâmetro para analisar a

aplicabilidade do instrumento do tombamento. Nesse mesmo contexto, Serra (2005)

observa ainda que após o tombamento do terreiro da Casa Branca foram realizadas

significativas intervenções, como a retirada do posto de gasolina instalado no espaço do

terreiro, local onde posteriormente foi construída uma fonte sagrada projetada por Oscar

Niemayer e instalado um gradil de proteção criado pelo artista plástico baiano Bel Borba.

Todas estas intervenções não se trataram de meras restaurações do que já existia, ou

existiu em idos tempos. Pelo contrário, foram intervenções, devidamente aprovadas e

supervisionadas pelo IPHAN, que inseriram novos elementos no conjunto monumental

com o intuito de agregar-lhe valor cultural.

Outra razão imperativa para intervir em um terreiro tombado é a necessidade de garantir

a sua funcionalidade enquanto templo religioso em atividade. É possível entender esta

questão, partindo do entendimento que os antigos terreiros de candomblé se consolidaram

a partir de uma infraestrutura muito precária, condicionada por questões de ordem

econômica e social decorrentes do regime de opressão imposto às comunidades negras.

Por este motivo, muitas das primeiras edificações eram bastante simples tendo sido

construídas com paredes de adobe e posteriormente substituídas por materiais mais

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resistentes, como o tijolinho. Porém, hoje em dia, os antigos terreiros necessitam de uma

estrutura que lhes confira uma funcionalidade adequada às necessidades atuais, como por

exemplo, a construção de banheiros e cozinhas amplas que atendam ao grande número de

filhos-de-santo e visitantes que afluem ao templo durante as festividades anuais. A

transferência destes cômodos funcionais para instalações mais novas poderá não só

melhorar as condições de salubridade, mas também ajudar a conservar elementos antigos

que ficarão melhor preservados em áreas com uma dinâmica cotidiana mais reduzida.

A mutabilidade supervisionada pelo Estado pode ainda ser entendida como um direito

destas comunidades, visto que a assessoria de especialistas de conservação e restauro

poderá contribuir para a preservação de elementos e características originais dos terreiros,

garantido a sua continuidade para as gerações futuras, tal como ocorre com outros bens

tombados de outras tipologias. O problema do tombamento de terreiros é que não são

definidos corretamente os parâmetros de imutabilidade dentro do perímetro tombado. Ou

seja, durante os processos de instrução do tombamento deve ser definido pela comunidade

o que deverá ser preservado de forma imutável. Ou seja, essa imutabilidade deve resultar

de um acordo entre a comunidade e o IPHAN. Por outro lado, deve também ficar claro

que as intervenções nas áreas mutáveis só poderão ser realizadas com a aprovação do

IPHAN. Para mitigar possíveis constrangimentos é importante investir na educação

patrimonial da comunidade assim como no desenvolvimento de mecanismos de gestão

internos que permitam um diálogo harmonioso com o Estado e sua burocracia. Nesse

contexto da política de preservação é possível depreender que o instrumento de

tombamento é perfeitamente adequado à proteção de terreiros de candomblé, mesmo que

venham a ocorrer mudanças significativas no bem tombado. Contudo, fica claro também

que a proteção de um terreiro de candomblé implica necessariamente em um contínuo

diálogo entre o IPHAN e a comunidade, assim como um investimento na construção de

mecanismos de gestão social que fortaleçam as lideranças comunitárias para a

preservação do bem tombado, de acordo com os provimentos legais inerentes ao

patrimônio cultural.

Com o surgimento da política do patrimônio imaterial, a atenção do Estado às expressões

culturais da tradição afrobrasileira voltou-se consideravelmente para o instrumento do

registro. Segundo Carlos Amorim (2011), na Superintendência Regional do IPHAN na

Bahia todos os processos de tombamento que não atendiam às regras estabelecidas pelo

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Decreto-Lei nº25/1937 e a Portaria nº11/1986 foram arquivados. Essa “lógica do

esquecimento” e os “conflitos internos do IPHAN no trato da matéria” são apontados por

Amorim como os principais motivos que equivocadamente conduziram os assuntos do

Candomblé da área do patrimônio material para o imaterial (2011, p. 23). No âmbito

nacional é possível também imaginar que a falta de uma diretriz institucional para tratar

a materialidade dos templos de matriz africana poderá ter condicionado a atenção do

IPHAN à cultura afrobrasileira de forma quase exclusiva pelo Departamento do

Patrimônio Imaterial. Conforme demonstrado pela lista dos bens registrado, contida no

Quadro 3 abaixo, pode-se observar que no período de nove anos, entre o registro do

Samba de Roda do Recôncavo Baiano (2004) e o registro da Festa do Senhor Bom Jesus

do Bonfim (2013), foram registrados pelos menos nove bens que se relacionam

diretamente à tradição cultural afrobrasileira. Este número é relativamente superior ao

dos bens tombados se for considerado que os dez bens tombados foram inscritos em um

período de três décadas.

Quadro 3 - Total de Bens Registrados

Nome do Bem Categoria Data de Registro Arte Kusiwa - pintura corporal e arte gráfica Wajãpi Formas de Expressão 20/12/2002 Ofício das Paneleiras de Goiabeiras Saberes 20/12/2002 Samba de Roda do Recôncavo Baiano Formas de Expressão 05/10/2004 Círio de Nossa Senhora de Nazaré Celebrações 05/10/2004 Modo de Fazer Viola-de-Cocho Saberes 14/01/2005 Ofício das Baianas de Acarajé Saberes 14/01/2005 Jongo no Sudeste Formas de Expressão 15/12/2005 Cachoeira de Iauaretê - Lugar Sagrado dos povos indígenas dos Rios Uapés e Papuri Lugares 10/08/2006

Feira de Caruaru Lugares 20/12/2006 Frevo Formas de Expressão 28/02/2007 Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo Formas de Expressão 20/11/2007

Tambor de Crioula do Maranhão Formas de Expressão 20/11/2007 Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre/ Alto Paranaíba Saberes 13/06/2008

Ofício dos Mestres de Capoeira Saberes 21/10/2008 Roda de Capoeira Formas de Expressão 21/10/2008 Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina Pastora/SE Saberes 28/01/2009

Toque dos Sinos em Minas Gerais tendo como referência São João del Rey e as cidades de Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes.

Formas de Expressão 03/12/2009

Ofício de Sineiro Saberes 03/12/2009

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Festa do Divino Espirito Santo de Pirenópolis/GO Celebrações 13/05/2010 Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro Saberes 05/11/2010 Ritual Yaokwa do povo indígena Enawene Nawe Celebrações 05/11/2010 Festa de Sant´Ana de Caicó/RN Celebrações 10/12/2010 Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão Celebrações 30/08/2011 Ritxòkò: Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá Formas de Expressão 25/01/2012 Saberes e Práticas Associados ao Modo de Fazer Bonecas Karajá Saberes 25/01/2012 Fandango Caiçara Formas de Expressão 29/11/2012 Festa do Divino de Paraty Celebrações 03/04/2013

Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim Celebrações 05/06/2013 Fonte: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/228 (07/07/2015) - grifo nosso2.

Observa-se no conjunto grifado enquadra-se nas classificações: formas de expressão,

saberes e celebrações. Categorias estas que expressam e valorizam essencialmente as

características intangíveis da cultura. Porém, o IPHAN realiza atualmente diversas

iniciativas de inventário que poderão traduzir-se em registro de bens com fortes

características de materialidade, como o INRC Terreiros Tradicionais de Candomblé e

Umbanda no Rio de Janeiro (RJ), o INRC das Comunidades Quilombolas do Piauí (PI),

ou o Mapeamento de Clubes Sociais Negros, em todo o país. Com relação a este último,

a notícia “Iphan faz mapeamento dos Clubes Sociais Negros no Brasil” publicada no site

do IPHAN em 10 de setembro de 2014, faz a seguinte menção ao instrumento escolhido

para proteger estes bens:

A iniciativa pioneira visa o reconhecimento de todos os Clubes Negros existentes no país como Patrimônio Cultural Brasileiro, sugerindo a sua inscrição no Livro de Registro dos Lugares, em atendimento a solicitação da Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros – criada em 2006, no I Encontro Nacional de Clubes e Sociedades Negras (grifo nosso).

Estas instituições representam as primeiras formas legais de organizações civis negras no

Brasil, dentre as quais se destaca a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), em

Salvador como o seu exemplar mais antigo. Fundada em 1851, a partir de uma irmandade

2 Os itens grifados representam uma seleção não-rigorosa dos bens que possuem relação evidente com a

cultura afrobrasileira. O intuito da seleção é apenas ilustrar alguns casos, visto que não é objetivo deste trabalho realizar uma análise individual dos bens do patrimônio imaterial.

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católica, a SPD mantém suas atividades até hoje sendo integrada por cerca de 280

associados. A SPD é amplamente reconhecida como uma das mais importantes

instituições na luta abolicionista e por ter realizado importantes atividades de assistência

social, como a compra de cartas de alforria, auxílio funeral, serviços bancários, etc.

Considerando a importância histórica das instalações físicas da SPD, que confere uma

materialidade inquestionável a este bem cultural, cabe questionar se a inscrição no Livro

de Registro de Lugares seria o instrumento mais apropriado. Ainda segundo a mesma

fonte:

Hoje, a sede da SPD está localizada em um palacete de três andares no Largo de São Francisco, 82, no Pelourinho. No andar de cima, estão localizados os arquivos da instituição, com importantes documentos, porém o estado de conservação do seu acervo é precário e inadequado. A instituição ainda não conseguiu ter os recursos para o financiamento da execução dos projetos para a adequação e digitalização deste acervo documental.

Apesar de o referido palacete estar inserido na poligonal do conjunto arquitetônico,

paisagístico e urbanístico do centro histórico de Salvador, parece evidente que o mesmo

é digno de um tombamento individualizado fundamentado pela importância histórica do

seu edifício, assim como os seus bens móveis, dentre os quais se destaca o riquíssimo

acervo documental detentor de exemplares únicos e precisos sobre a história do negro no

Brasil.

Contribuindo para esta discussão Hermano Queiroz (2013) faz uma análise relevante

sobre a aplicabilidade do instituto do Registro de Lugar argumentando que este possui

não só o mesmo status do tombamento, em termos de reconhecimento pelo Estado, mas

também a mesma eficácia jurídica. Desse modo, segundo o autor, o potencial do registro

enquanto instrumento de proteção não deverá ser menosprezado. Queiroz explica

também, que, no caso específico dos terreiros de candomblé, o tombamento nem sempre

surte o efeito de preservação ideal, portanto faz sentido pensar o tombamento associado

ao registro. Porém, considerando que o Registro de Lugar também funciona como um

mecanismo de proteção dos espaços-suporte onde ocorrem as práticas culturais

imateriais, Queiroz (2013) sugere ainda que o registro pode ser entendido de forma mais

ampliada e independente do tombamento. Portanto, pode ser questionada a necessidade

de tombar e registrar o mesmo bem, no sentido em que a legislação federal atribui a

mesma capacidade protetiva a ambos os instrumentos, mediante o surgimento de ameaças

à continuidade da prática cultural e ao uso indevido do espaço. Ou seja, apesar de ambos

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os casos não terem o poder de resolver automaticamente questões de ordem fundiária, os

dois servem igualmente para prover o embasamento legal necessário para justificar a

aplicação do instrumento de desapropriação, dentre outros. Nesse sentido, segundo

Queiroz, o instrumento de Registro de Lugar poderia ser aplicado de forma independente

garantindo o devido reconhecimento e a proteção legal dos terreiros de candomblé.

É possível concordar com o argumento de Queiroz no que se refere às limitações da

aplicação unitária do instrumento de tombamento para bens tão complexos quanto os

terreiros de candomblé. Apesar de existirem planos de proteção para os bens tombados,

estes se distinguem efetivamente dos planos de salvaguarda característicos dos processos

de registro de bens imateriais, que por sua vez são pautados por um processo de amplo

diálogo com as comunidades detentoras dos bens em questão (Queiroz, 2013, p.11). Ao

mesmo tempo também é possível concordar que o Registro de Lugar, se aplica com

eficácia a espaços com dinâmicas sociais múltiplas e diversas, como feiras livres,

santuários naturais ou até mesmo trajetos onde ocorrem procissões religiosas ou outras

formas de manifestações culturais.

No entanto, é imperativo discordar com a aplicação unitária do Registro de Lugar aos

terreiros de candomblé, tendo em vista que os mesmos são formados por edificações

históricas e por acervos de bens móveis de caráter permanente, constituídos tanto por

objetos sagrados, dentre os quais se destacam coleções de porcelanas e esculturas antigas

de valor inestimável, assim como objetos de uso ritualístico, cotidiano e documental, que

são também testemunhos da formação de comunidades religiosas negras no Brasil, da sua

cosmogonia, da sua arte e da sua estética. Claramente, esta materialidade só pode ser

capturada por meio do instrumento do tombamento, ainda que as práticas culturais e

religiosas que atribuem significância ao material sejam mais bem salvaguardadas por

meio dos mecanismos de proteção inerentes ao instrumento do registro.

Não se trata apenas de assegurar a preservação de um local onde acontece uma importante

expressão etnográfica, se esse fosse o caso, os terreiros teriam sido inscritos

exclusivamente no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Contudo

estes foram igualmente inscritos no Livro do Tombo Histórico, o que lhes confere uma

função relevante enquanto espaço de preservação da memória do Brasil. Esta

característica independe da manutenção das práticas culturais que lhe estão associadas,

porque a materialidade lhe permite permanecer como um monumento histórico. Por

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exemplo, caso um terreiro tombado venha a cessar suas atividades religiosas, à

semelhança de tantas igrejas tombadas pelo país afora, a importância histórica daquele

espaço e daquelas paredes não terá diminuído, nem tão pouco o seu papel enquanto

testemunho da memória do Brasil. Por outro lado, o terreiro também não terá diminuída

a sua importância arqueológica por causa dos vestígios da ocupação humana refletida nas

edificações e nos axés que permanecerão enterrados no seu solo. Mais ainda, o terreiro

sequer terá a sua importância paisagística diminuída, visto que o contraste verde da sua

mata na malha urbana da cidade continuará indicando um local sagrado e ancestral das

religiões de matriz africana. Nesses casos, uma nova funcionalidade poderia ser atribuída

ao local, como por exemplo, a instalação de um memorial com função educativa. Esta

característica permanente difere dos princípios do patrimônio imaterial, no qual um bem

poderá ter seu título retirado passados 10 anos da sua atribuição, caso se constate uma

descontinuidade da prática. Nestes casos apenas permanecerá uma menção nos Livros de

Registro, mas não será tomada qualquer medida de salvaguarda e o patrimônio deixará

de existir enquanto patrimônio nacional.

Não obstante é necessário reconhecer que o instrumento de registro aplicado aos terreiros

de candomblé teria inúmeros benefícios, especialmente no que tange à produção de

conhecimento sobre os saberes, celebrações, formas de expressão e os lugares onde se

reproduzem as práticas culturais do candomblé, assim como à formulação de planos de

salvaguarda que produzam os efeitos necessários à preservação do patrimônio intangível.

Não basta, portanto tombar é preciso conhecer, desmitificar, expor a complexidade e

revelar a riqueza. Entendendo que um instrumento não substitui a função protetiva do

outro e que de fato ambos se complementam, Márcia Sant’Anna (2012) propõe a

aplicação simultânea de ambos, uma vez que não existe impedimento para o

reconhecimento das práticas culturais abrigadas por bens tombados. Se, por um lado, o

tombamento contribui efetivamente para assegurar a integridade do terreno e dos seus

monumentos construídos e naturais, contando com a supervisão do IPHAN no processo

de alteração do bem, buscando agregar valor e funcionalidade ao bem tombado, por outro

lado, o registro obriga a uma pesquisa e diálogo mais profundado sobre as práticas

culturais, incentivando que o IPHAN e a sociedade conheçam melhor as tradições que

compõem o cenário cultural brasileiro.

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3.4. DESAFIOS NO ENVOLVIMENTO DOS GRUPOS CULTURAIS

AFROBRASILEIROS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

NACIONAL

À medida que os grupos sociais minoritários vão ampliando as suas agendas de direitos,

torna-se evidente o papel fundamental do patrimônio cultural enquanto política de

reconhecimento, por meio da qual são construídas referências positivas que conformam

as suas identidades coletivas. Estas reivindicações passam necessariamente pela

apropriação dos elementos discursivos do patrimônio e pelo estabelecimento de um

diálogo efetivo com o Estado e com os especialistas que atuam na área. Contudo, apesar

dos consideráveis avanços nos últimos anos, este diálogo não é ainda suficiente para

assegurar a representatividade democrática destes grupos no panorama do patrimônio

cultural nacional, o que por sua vez se reflete no baixo número de bens tombados,

referentes à tradição afrobrasileira. Considerando que a instauração de novos processos

de tombamento pelo IPHAN tende a resultar exclusivamente de demandas voluntárias

apresentadas pela sociedade, é fundamental entender as dificuldades que poderão limitar

os grupos culturais afrobrasileiros na apresentação de novas solicitações de tombamento.

3.4.1. Apropriação reduzida do discurso sobre patrimônio cultural

Em primeiro lugar é importante considerar que poderá ainda existir certa apatia de alguns

grupos culturais afrobrasileiros no que se refere à patrimonialização de suas produções

culturais. O racismo no Brasil foi tão perverso que as comunidades negras precisam ainda

autoreconhecer a importância das suas contribuições históricas para a construção da

cultura nacional. Nesse sentido, elas poderão não vislumbrar à partida que têm o direito

de ver os seus monumentos reconhecidos, tal qual os demais grupos sociais do país. Isso,

aliado à dificuldade de instrução de um processo de tombamento, assim como à cisma

sobre os possíveis efeitos negativos do tombamento, a exemplo da perda da autonomia

para intervir e gerir o bem em questão pode tornar-se um verdadeiro fator de impedimento

para o aumento da representatividade dos bens da tradição afro brasileira.

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3.4.2. Recursos técnicos e financeiros insuficientes

Para instruir um processo de tombamento, por exemplo, de um terreiro de candomblé,

uma comunidade precisará apresentar ao IPHAN um dossiê de documentos, encabeçado

normalmente por um laudo antropológico escrito por um especialista reconhecido, que

irá atestar o mérito do valor cultural do bem em questão. Para tal é necessário realizar

uma pesquisa aprofundada sobre o bem, sendo necessária uma equipe técnica qualificada

e recursos financeiros que permitam recolher e analisar fontes orais e documentais, em

arquivos públicos e privados. Este dossiê será composto também por plantas

arquitetônicas e altimétricas, levantamentos etnobotânicos, catálogos de documentos e

fotografias, além de um estudo jurídico sobre a situação fundiária da propriedade, na qual

o bem cultural está localizado. Quando uma comunidade não dispõe de recursos técnicos

e financeiros para produzir estes documentos, ela poderá ter sérias dificuldades para

instruir um processo de tombamento que cumpra com as exigências da Portaria

nº11/1986, assim como dificuldades no acompanhamento da burocracia decorrente do

processo, colocando em risco o tombamento, caso não responda adequadamente às

solicitações feitas pelo IPHAN.

3.4.3. Participação restrita na definição dos valores patrimoniais

A participação da comunidade poderá influir com relevância em todas as fases do

processo de patrimonialização de um bem cultural, como na identificação, seleção,

aprovação e na gestão. Esta importância fica precisamente clara com relação à questão da

informação de valores patrimoniais próprios, que por sua vez são distintos dos valores

tradicionalmente nutridos pelo IPHAN e seus especialistas. Nesse sentido, observa-se que

existe uma diferença substancial entre o discurso institucional/acadêmico e a visão das

comunidades sobre os aspectos valorativos da sua própria cultura. Segundo Luis Nicolau

Parés, o Estado e as comunidades de terreiros possuem dois sistemas de valores com

lógicas radicalmente distintas, e isso muitas vezes resulta em um “diálogo de surdos”

(2011, p.90). Este eufemismo alerta para o grau de participação das comunidades nos

processos de patrimonialização: quem realmente define os valores e como isso acontece.

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Maria Cecília Fonseca explica que os bens culturais não possuem valores patrimoniais

intrínsecos, estes são “[...] sempre atribuídos por sujeitos particulares e em função de

determinados critérios e interesses historicamente condicionados” (2000, p.111). Logo, a

atribuição do valor de qualquer bem é um processo relativizado que resulta

obrigatoriamente de uma negociação de valores. Neste processo, a visão dos detentores

de um bem cultural é contraposta aos critérios adotados pelo Estado, que por sua vez são

informados por especialistas em arquitetura, antropologia, história, etc. Conforme

observa Fonseca (2000), apenas recentemente os grupos culturais minoritários passaram

a pressionar o poder público para terem suas produções culturais reconhecidas, o que por

sua vez vem incentivando a relativização dos valores patrimoniais estabelecidos.

Um exemplo concreto da importância da participação para a definição de valores

patrimoniais é a discussão sobre os critérios de seleção dos terreiros de candomblé que

deverão ser protegidos pelo Estado. Por outras palavras, de que forma deverá ser feita a

seleção dos bens da tradição cultural afrobrasileira, sem que com isso o IPHAN corra o

risco de meramente reafirmar as hierarquias de poder e prestígio existentes, como alertado

por Parés (2011), deixando na invisibilidade produções culturais que também merecem o

devido reconhecimento. Como resultado do Projeto MAMNBA, os critérios para

priorização de tombamento pelo Governo Federal consistiam essencialmente na

importância do bem, enquanto local de memória da organização das religiões de matriz

africana no Brasil e a sua contribuição para a difusão da religiosidade enquanto casas

matriciais ou de referência para a formação de centros de culto afrobrasileiro

(SANT’ANNA, 2011, p. 31-32). Atualmente, a revisão destes critérios parece ser um

assunto eminente na agenda do patrimônio nacional, contudo ela só poderá ser realizada

por meio de uma discussão participativa na qual as comunidades tenham efetivamente a

possibilidade de identificar, informar e traduzir os valores agregados às suas produções

culturais.

Apesar das recentes pressões sociais acarretarem em questionamentos sobre a

legitimidade dos julgamentos de valor realizados, o processo ainda é essencialmente

técnico e do domínio quase exclusivo dos especialistas. É importante observar que a

decisão informada pelos especialistas é sempre será fundamental para garantir o interesse

público, no entanto ela precisa ser ampliada para assegurar a democratização do conjunto

patrimonial. Faz-se, portanto necessária uma fusão de horizontes, conforme proposto por

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Taylor (1994), para que dessa forma se possa ser criar um pano de fundo com capacidade

para articular as diferentes visões sobre os valores. Para que tal aconteça é primeiramente

necessário reconfigurar as estruturas hierarquizadas de poder que ainda prevalecem e

impedem o estabelecimento deste pano de fundo. Nesse sentido, CANANI (2005) alerta

que:

[...] podemos observar que o procedimento atual garante aos “técnicos” a avaliação da pertinência dos pedidos e decide através de “deliberação” dos órgãos responsáveis. Ainda que não seja um ato autoritário, envolve o uso de um poder de decidir ou deliberar que é hierárquico, e repousa nas mãos dos órgãos competentes (2005, p.173).

Atualmente, a participação da comunidade está restrita à solicitação do processo de

tombamento e à inerente justificativa do valor patrimonial que o compõe – que por sua

vez também é traduzida pelo especialista que assina o laudo antropológico, antes da

apresentação ao IPHAN. Apesar do IPHAN já ter demonstrado a capacidade para ampliar

o seu leque de valores, para incluir também os valores dos grupos sociais minoritários, o

derradeiro poder de sacralização do patrimônio reside nas mãos dos seus técnicos que

recomendam, ou não, o tombamento por meio de pareceres técnicos e dos especialistas

que integram o seu colegiado consultivo. Estes últimos são quem verdadeiramente

determina o interesse público, por meio da votação a favor ou contra o tombamento de

um determinado bem. Todavia, os grupos sociais não estão diretamente representados

neste conselho, apena a comunidade acadêmica, nos seus diferentes campos de

conhecimento especializado. Assim sendo, apesar de a comunidade acadêmica atual

demonstrar uma sensibilidade ao patrimônio valorizado pelos grupos sociais minoritários,

não existe uma paridade de representação no processo de informação de valor, nem de

decisão sobre a política patrimonial brasileira.

Considerando a importância da diversificação do patrimônio cultural para a afirmação do

projeto democrático nacional, assim como a patente subrepresentatividade tradição

cultural afrobrasileira, que ainda impera na lista dos bens tombados, conclui-se que é

necessário que o Estado fortaleça ativamente as comunidades afrobrasileiras enquanto

proponentes de novos tombamentos, por meio de ações que incentivem a apropriação do

discurso do patrimônio e pelo fornecimento de recursos permitam a instrução de

processos qualificados. Contudo, é também fundamental que o Estado desenvolva

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mecanismos para aumentar a efetiva participação das comunidades afrodescendentes na

governança colaborativa do patrimônio nacional.

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4. ESTUDO DE CASO: O TOMBAMENTO NACIONAL DA CASA DE

OXUMARÊ

No contexto da análise proposta neste trabalho, no sentido de identificar fatores que

poderão contribuir para a contínua subrepresentatividade do patrimônio tombado da

tradição afrobrasileira, este capítulo irá proceder com um estudo de caso do processo que

culminou com o tombamento nacional da Casa de Oxumarê, pela perspectiva da própria

comunidade. Inicialmente, será realizado um breve relato da história deste antigo

candomblé da Bahia orientado pela sucessão cronológica de suas lideranças. A identidade

desta Casa é marcada por momentos relevantes de resistência social e política, tornando-

a muito representativa das comunidades afrodescentes no Brasil pós-colonial que hoje

reivindicam seus direitos culturais. Ciente de sua importância cultural para o país, a

comunidade da Casa de Oxumarê solicitou ao IPHAN o seu tombamento em 2002,

porém, este só se concretizou passados doze anos. Este estudo de caso buscará explorar

os fatores que possibilitaram a retomada do processo que se encontrava estagnado nos

escaninhos e arquivos do IPHAN, desde 2007. A análise irá incidir principalmente sobre

a ação da comunidade que permitiu a elaboração de um novo dossiê de documentos

técnicos para realimentar o processo tombamento, evidenciando de forma inquestionável

o valor patrimonial singular da Casa de Oxumarê.

4.1. A HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA E SALVAGUARDA DE UM LEGADO

CULTURAL AFRICANO NO BRASIL

A história do quase bicentenário terreiro Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô, também

conhecido como Casa de Oxumarê, confunde-se com a história do próprio candomblé da

Bahia. Estima-se que a sua fundação tenha ocorrido na primeira metade do século XIX,

sendo uma as primeiras comunidades religiosas de matriz africana a estruturar-se em

terras brasileiras tendo contribuído de forma significativa, juntamente com outros templos

da época, para a formação e manutenção da religião que hoje é conhecida como

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Candomblé. Segundo Serra (2012), este importante terreiro é classificado como jeje-nagô

ou nagô-vodun, porque, apesar da sua matriz étnico-cultural ser predominantemente

Ioruba, a comunidade também reconhece influências culturais dos povos Ewe Fon na sua

tradição religiosa. Um entendimento sobre a fusão de elementos destas duas matrizes

étnicas, vizinhas no continente africano, é importante para compreender a formação do

Candomblé da Bahia enquanto religião caracteristicamente brasileira e que

eventualmente leva a reflexões sobre as origens das tradições religiosas das comunidades

negras que se formaram no Brasil ainda no período da escravidão, assim como a

importância da religiosidade enquanto prática privilegiada para a resistência cultural de

africanos e seus descendentes.

A predominância de três principais tradições ou nações do candomblé, o Angola, o Jeje

e o Ketu (Nagô), surge de um processo de reconstrução da identidade étnica dos africanos

no Brasil. Parés (2007, p.79) explica que os indivíduos adotavam identidades metaétnicas

para facilitar a socialização com indivíduos de outros subgrupos étnicos, criando laços de

solidariedade necessários à sobrevivência em uma sociedade escravocrata, um ambiente

totalmente adverso e pautado pela inexistência de direitos e cidadania. Por exemplo,

indivíduos de subgrupos étnicos iorubas, como os ifés, os oiós ou os egba, por vezes até

velhos rivais no continente africano, aos poucos passariam a autodenominar-se pela sua

identidade coletiva. Ou seja, apenas como iorubas ou nagôs. Verger (1987, p334.) observa

ainda que a administração colonial tentou explorar estas rivalidades, autorizando a

realização de batuques por nação com o objetivo de relembrar os negros da sua identidade

de origem e das velhas divergências entre grupos étnicos, de forma a evitar a organização

de motins e revoltas de escravos. No entanto, a comunidade negra foi paulatinamente

recriando suas estruturas sociais e mecanismos coletivos de proteção e solidariedade,

constituindo grupos informais por meio dos batuques ou organizando-se formalmente por

meio das irmandades católicas de homens pretos. Verger (1987, p.524) observa ainda que

havia uma predominância metaétnica nestas irmandades e que esta forma de

associativismo revela claramente a estruturação e configuração da comunidade negra na

Bahia. No entanto, Parés (2007, p.82) observa que apesar das irmandades terem

contribuído de forma decisiva para a reinvenção das diversas nações africanas no Brasil,

não havia exclusividade étnica nestas confrarias. Como as irmandades católicas muitas

vezes também encobriam organizações informais com práticas religiosas não-católicas

(PARÉS, 2007, p.111), é possível que estes, dentre outros espaços de convivência

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interétnica, tenha levado à inclusão de elementos religiosos e culturais de diferentes

matrizes africanas, mantendo sempre a identificação com uma identidade metaétnica

específica. Citando Vivaldo da Costa Lima, Renato da Silveira (2008, p. 288) explica que

aos poucos, devido a fatores como os casamentos interétnicos e o conceito de nação foi

perdendo o seu vínculo com a etnicidade e tornou-se um conceito cada vez mais

teológico, restrito à diferenciação das tradições religiosas dos terreiros de candomblé. É

precisamente nesse contexto, que surgem os calundus, as primeiras comunidades

religiosas africanas no Brasil, locais onde se praticava o culto aos Orixás, Voduns ou

Inquinces. Esses calundus eram frequentados por africanos e descendentes de africanos,

onde poderia ocorrer alguma predominância étnica, mas onde também se encontravam

indivíduos de diversas etnias, facilitando convivência e fusão de elementos culturais com

origens africanas distintas.

A origem da Casa de Oxumarê remonta ao Calundu do Obi Tedô na cidade de Cachoeira,

que também deu também origem ao antigo terreiro jeje Zoogodô Bogum Male Seja

Houndê, também conhecido como Roça do Ventura (NASCIMENTO, 2010, p.145). O

fundador da Casa de Oxumarê, Talabi de Ajunsun, chegou a Salvador no final do século

XVIII, em um navio vindo do Porto de Lagos, com aproximadamente 10 anos de idade

(SERRA, 2012, p. 24). Talabi foi batizado na igreja da Conceição da Praia com o nome

cristão de Manuel Joaquim Ricardo, escravo de Manuel Ricardo um abastado

comerciante da época. Não obstante a sua condição de escravo, Manuel Joaquim Ricardo

conseguiu obter de seu senhor uma grande autonomia e logo ele mesmo se tornou

comerciante e dono de seus próprios escravos, o que era bastante incomum durante o

período escravocrata (REIS, 2008). Ao adquirir riqueza e estatuto na comunidade africana

de Salvador, Manuel Joaquim Ricardo começou a estabelecer trocas comerciais com o

continente africano para importação de produtos, muitos deles utilizados na liturgia dos

cultos africanos. Passados alguns anos inicia o fornecimento destes produtos para o

recôncavo baiano e estabelece uma parceria com um comerciante de Cachoeira, o

africano liberto, Belchior Rodrigues Moura. É por meio desta relação que Talabi começa

a participar do culto a Ajunsun no calundu do Obi Tedô (NASCIMENTO, 2010, p.145).

Mais tarde, fruto da amizade dos dois, Belchior Rodrigues Moura viria a nomear Manuel

Joaquim Ricardo em testamento, como tutor de seus cinco filhos: Maria Aniseta Belchior,

Magdalena Belchior, Juliana Belchior, José Maria Belchior, conhecido popularmente

como Zé de Brechó, e Antônio Maria Belchior, conhecido como Salakó (SERRA, 2012,

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p.25). Estes dois últimos iriam mais tarde assumir papéis de grande proeminência social

nas cidades de Cachoeira e Salvador.

Em 1836, Talabi compra em Salvador a sua primeira propriedade na Rua das Grades de

Ferro, Cidade Baixa, onde se acredita ter começado a realizar as primeiras atividades

religiosas na capital baiana. Em 1945, com o intuito de edificar um templo religioso

consagrado às divindades africanas, adquire uma roça com seis braças de terra na estrada

da Cruz do Cosme, atual bairro da Caixa D’Água, em Salvador3. Segundo a tradição oral

da Casa de Oxumarê foi neste local, onde o “axé foi plantado”4, que se consolidou

definitivamente a congregação religiosa que perdura até aos dias atuais. A estruturação

desta comunidade foi possível graças ao poder financeiro e político de Manuel Joaquim

Ricardo que, por sua vez, era também proprietário de um extenso número de escravos,

conforme consta do inventário do seu testamento5. É possível supor que estes nada mais

eram do que seus filhos de santo e que a compra dos escravos e a manutenção dos mesmos

nessa condição tenha sido uma estratégia necessária para libertá-los da exploração laboral

e justificar o seu agrupamento na comunidade da roça da Cruz do Cosme, sem que isso

levantasse a suspeita das autoridades.

Após o falecimento de Talabi, o seu sucessor, Salakó, provavelmente motivado pela

intensificação das batidas policiais, transfere o axé foi para uma casa na Rua da Lama, na

Fazenda Garcia, no 1o Distrito da Vitória. Como estratégia para camuflar as atividades

religiosas do novo endereço, é montada uma venda de secos e molhados na frente da casa,

ao passo que as obrigações religiosas eram realizadas no fundo. Segundo a oralidade da

3 Escritura de compra da roça na Cruz do Cosme, Arquivo Público do Estado da Bahia, LRT, nº 361, fls

93v-95 4 Juana Elbein dos Santos (2007, p. 39), citando Maupoli (1943, p.334), define axé como “[...] a força

invisível, a força mágico-sagrada de toda a divindade, de todo o ser animado, de toda a coisa.” Segundo a mesma o axé é necessário à consagração dos espaços e dos objetos e seres nele contidos. Deste modo, para que um terreiro e constitua como tal é necessário que o axé seja plantado (enterrado no chão) para que se transmita. Por ser um elemento essencial à fundação de um terreiro, a palavra axé é também utilizada pelo povo de santo para definir a identidade religiosa da sua comunidade e das comunidades descendentes, a família de axé.

5 Inventário de Manoel Joaquim Ricardo – APEB: Seção de Arquivos Judiciários: 1865/1879, sob a classificação nº 7/2957/03 - Termo de inventário do liberto Manoel Joaquim Ricardo, tendo como inventariante sua esposa Rosa Maria da Conceição – Salvador: 1865/1879. Na avaliação dos bens, consta que Manoel Joaquim Ricardo possuía cerca de 28 escravos avaliados em cerca de 19:100$000 (dezenove contos e cem mil réis); 04 imóveis urbanos avaliados em cerca de 15:900$000 (quinze contos e novecentos mil réis) e dois imóveis rurais avaliados em cerca de 5:000$000 (cinco contos de reis) (Transcrição autenticada realizada pelo Arquivo Público da Bahia, 2011).

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Casa de Oxumarê, Antônio Manuel do Bomfim (Danjemi Abefunké) conhecido como

Cobra Encantada, assume desde cedo a comando da Casa de Oxumarê devido às longas

estadias de Salakó na cidade de Cachoeira, tendo assumido o cargo de babalorixá após o

falecimento do mesmo no dia 14 de janeiro de 1904. Lühning e Mata (2010, p.52)

chamam a atenção para uma série de notícias publicadas no diário A Bahia que revelam

informações importantes sobre os meses que se seguiram ao falecimento de Salakó:

Candomblé: Informam-nos pessoas residentes no Gantois, 1o districto da Victoria, e merecedoras de inteiro crédito, que ha cerca de 9 dias, estrunje sem cessar na rua da Lama, um infernal candomblé, em que se tem notado, por vezes, alteração da ordem, não faltando na multidão de ociosos que tomam parte no alludido divertimento, que, dizem-nos, ser chefiado por um indivíduo, sem profissão, de nome Antônio Chumaré (A Bahia, segunda-feira, 18/04/1904).

Sobre a nossa local de ante-hontem com o titulo Candomblé, sabemos que o Sr. subcomissario do 1o districto da Victoria já expediu energicas povidencias no sentido de acabar, de vez, com semelhante divertimento, atentatorio aos costumes de uma cidade civilisada e prejudicial ao sucego publico. Tanto melhor (A Bahia, quarta-feira, 20/04/1904).

Candomblé: dissemos na nossa edição de hontem que o subcomissario do 1o districto da Victoria, tinha mandado cessar um infernal candomblé, que ha muitos dias funciona na rua da Lama e que incommodava durante dia e noite aos moradores d’aquellas imediações. Pois bem: apezar dessa ordem o chefe de tal candomlé Antonio Manuel do Bonfim, por alcunha Chumari continuou na noite de ante-hontem, hontem durante todo o dia, e até às 7 ½ da noite, zombando assim das ordens recebidas, dando lugar a ser preso hontem mesmo às 9 horas da noite, à disposição daquella autoridade (A Bahia, quinta-feira, 21/04/1904).

O motivo pelo qual Antonio de Oxumarê deu continuidade aos rituais religiosos

desobedecendo às ordens policiais que culminaram com a sua detenção parece estar

diretamente relacionado ao falecimento de Salacó três meses antes. Considerando a data

de óbito, 14 de janeiro de 1904, pode-se concluir que estava em curso o segundo ciclo da

cerimônia fúnebre do axexê, que provavelmente agregava um grande público de diversos

terreiros, como é costume, e que ocorreu durante seis noites seguidas, com um “arremate”

no final da tarde do sétimo dia. Nesse sentido, Lühning e Mata (2010, p.53) salientam

que poderá ter ocorrido certo exagero da primeira notícia que reportava a ocorrência das

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funções religiosas há nove dias, tendo em vista que provavelmente terão começado no

dia 14 de abril de 1904.

Após o incidente, Antônio de Oxumarê transfere novamente o terreiro, desta vez para

uma colina na vizinha região da atual Avenida Vasco da Gama, conhecida como Mata

Escura devido à sua densa vegetação na época.

Foto 1 - Localização atual da Casa de Oxumarê, BA, data desconhecida.

Fonte: SERRA, 2012

Esta localização era estratégica porque havia pouca vizinhança o relevo permitia uma

maior vigilância e a floresta confundia o caminho até o candomblé o que poderia atrasar

as investidas policiais. Segundo Lühning e Mata (2010, p.53), é importante observar que

a floresta e o Rio Lucaia que corria por dentro do espaço do terreiro também

representavam as condições ideais para o culto aos orixás. No entanto, aos poucos, o vale

do Lucaia, que ficava estrategicamente localizado entre o Dique do Tororó e a distante

localidade do Rio Vermelho, começou a sentir os efeitos das pressões

desenvolvimentistas causadas pelo o avanço do perímetro urbano da cidade de Salvador.

Primeiro surgiu a linha do bonde do Rio Vermelho e mais tarde o território sagrado da

Casa de Oxumarê foi cortado pela Estrada Dois de Julho. Segundo a tradição oral do

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terreiro, alguns assentamentos localizados em árvores sagradas (atissá) que haviam

ficado separados do terreiro pela nova estrada, a exemplo do assentamento do Vodun

Azanadô, foram transferidos para o mesmo lado das edificações para que todos os

elementos sagrados ficassem juntos. Esta foi a primeira perda de terreno significativa da

Casa de Oxumarê.

Apesar de terem diminuído as investidas policiais nas décadas seguintes devido à

estratégia bem sucedida de mudar o terreiro para um local mais afastado, algumas

incursões memoráveis, lideradas pelo afamado delegado Pedro Azevedo Gordilho (o

“Pedrito”), compõem até hoje a tradição oral da casa e a elas se devem alguns elementos

arquitetônicos peculiares no barracão de festas principal, tal como o altar católico e o

nicho dos atabaques. Quando a cavalaria da tropa chegava os filhos-de-santo voltavam-

se fazendo reverência ao altar católico e cortinas eram fechadas escondendo os atabaques

na parede.

Foto 2 - Barracão principal da Casa de Oxumarê, BA, 2013

Fotógrafo: Ricardo Prado, 2013.

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Não obstante a Casa de Oxumarê foi invadida diversas vezes, filhos de santo foram presos

e objetos sagrados foram profanados e apreendidos, como ilustra o relato o relato na

edição de 3 de outubro de 1922, do Jornal a Tarde:

Os candomblés na cidade: O 1º delegado effectuou uma diligencia, que resultou profícua. Tendo denuncia de que á Mata Escura, no Engenho Velho, estava funcionando ás escancaras um candomblé do conhecido curandeiro Osumaré, fez cerca-lo á noite, prendendo 15 pessôas que foram transportadas para a estação de Ondina, e apprehendendo os apetrechos bellicos. [...] (LÜHNING e MATA, 2010, p.54).

Após uma trajetória de vida lutando pela proteção do candomblé, Antônio de Oxumarê

foi sucedido por sua filha Iyá Cotinha, conhecida por seu nome de iniciação Yewá

Abiamo, que assumiu o trono em 1928, dois anos após o seu falecimento. Dona Cotinha

tornou-se uma personalidade célebre do candomblé da Bahia, não só por ser reconhecida

como a primeira pessoa consagrada ao Orixá Yewá no Brasil, mas por ter iniciado

importantes sacerdotes que contribuíram para a difusão do candomblé no país, como por

exemplo, Bobó de Oyá, que segundo Reginaldo Prandi (1991, p. 95) fundou o primeiro

candomblé do Estado de São Paulo.

Em 1953, aos 37 anos de idade, Iyá Simplícia (Ogun Dekisse) assume a liderança da Casa

de Oxumarê. Sendo ainda hoje lembrada pelo vigor do seu Orixá, Mãe Simplícia também

foi protagonista de um importante evento que marcou a história do terreiro. Ao ser

convidada para organizar um banquete de comidas típicas da Bahia para a recepção de

Getúlio Vargas em Caldas do Cipó, Mãe Simplícia teve a oportunidade de relatar ao

Presidente da República que a vedação do poder de embargo a cultos religiosos pelos

municípios e estados, estabelecida pelo Decreto-lei no 1.202 de 1939, não vinha sendo

aplicada aos candomblés na Bahia, tendo em vista que estes continuavam sendo obrigados

a requerer autorização à Delegacia de Jogos e Costumes sempre que precisavam realizar

suas atividades religiosas.

Após sete anos do falecimento de Iyá Simplícia, em 1974, Nilzete Austricliana da

Encarnação, conhecida pelo hierônimo Omi Lola, recebe o cargo de Iyálorixá da Casa de

Oxumarê. Foi precisamente durante a gestão de Iyá Nilzete que ocorreu uma das mais

graves ameaças à continuidade do terreiro. Em 1988, a Construtora Norberto Odebrecht

e a Prefeitura Municipal de Salvador, durante a gestão do prefeito Mário Kértz, tentaram

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desapropriar a área do terreiro para construção de uma passarela de pedestres que iria unir

uma colina do bairro do Engenho Velho de Brotas a uma colina do bairro da Federação,

passando exatamente pelo meio do terreno da Casa de Oxumarê (LÜHNING e MATA,

2010, p.44). Esta construção cortaria o terreiro na diagonal e implicaria no abate da

centenária árvore do Orixá Iroko. Não dispondo de qualquer mecanismo de proteção

patrimonial que garantisse a integridade do espaço físico do terreiro, Iyá Nilzete, com o

apoio do antropólogo Vivaldo da Costa Lima, então diretor do Instituto do Patrimônio

Artístico e Cultural da Bahia, criou a “Frente de Defesa do Terreiro”, constituída por

personalidades importantes da época como: Pierre Verger, Carybé, Mestre Didi, Gilberto

Gil, Beth Wagner, Edvaldo Brito, Ordep Serra, Iyalorixá Creuza Millet do Terreiro do

Gantois, Doné Nicinha Evangelista do Terreiro do Bogum, Elemaxó Agnelo Pereira do

Terreiro da Casa Branca, Ogan Urbano Conceição da Casa de Oxumarê, dentre outros

(LÜHNING e MATA, 2010, p.45).

Foto 3 - Reunião da frente de defesa do terreiro, BA, 1988.

Fonte: SERRA, 2012.

Os esforços empreendidos por este grupo foram bem sucedidos resultando numa alteração

ao projeto original da passarela de forma a preservar o espaço do terreiro e também na

constituição da Sociedade Cultural, Religiosa e Beneficente São Salvador, a entidade

jurídica que passou a responder legalmente pelo terreiro. Iyá Nilzete de Yemanjá veio

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falecer em 1990, aos 57 anos de idade, sendo mais tarde sucedida por seu filho biológico

Sivanilton Encarnação da Mata, apelidado por sua avó de Pecê.

Em 1991, com 27 anos, Baba Pecê assumiu a liderança do terreiro ocupando desde então

o cargo de babalorixá da Casa de Oxumarê e líder religioso de centenas de outros terreiros

descendentes, com suas respectivas ramificações, que se encontram espalhados pelo

território nacional e pelo exterior. Em virtude da sua militância contra a intolerância

religiosa e pela valorização da religião dos Orixás no Brasil e na Nigéria, Baba Pecê, de

hirônimo Danjemi, é hoje reconhecido como uma das principais lideranças das religiões

de matriz africana na diáspora. Motivado pelos esforços dos seus antecessores Baba Pecê

empenhou-se em encontrar estratégias de resistência fundiária do terreiro, tendo resultado

em importantes conquistas como o reconhecimento do terreiro como território

afrobrasileiro pela Fundação Cultural Palmares em 2002, no tombamento como

patrimônio do Estado da Bahia pelo IPAC em 2004 e no tombamento como patrimônio

nacional pelo IPHAN em 2014.

4.2. A MOBILIZAÇÃO DA COMUNIDADE NO RESGATE DA SUA HISTÓRIA

A história de um terreiro de candomblé mantém-se viva na memória coletiva da

comunidade cada vez que os seus episódios são lembrados em rodas de conversa com os

mais antigos e em depoimentos sobre a extraordinária força mística das “pedras e dos

ferros”, elementos que constituem os altares dos Orixás. Essas narrativas alegóricas são

frequentemente usadas para relatar casos inolvidáveis de resistência e perseverança na

perpetuação do axé, aos quais a comunidade atribui a intervenção direta dos Orixás. São

estes momentos de profundo aprendizado que estruturam a identidade coletiva dos

indivíduos e permitem, por meio da tradição oral, a continuidade dos fatos históricos na

memória coletiva da comunidade.

No entanto, devem-se reconhecer também as limitações da tradição oral com relação à

tradição escrita. A história que não se registra vai perdendo ao logo do tempo a riqueza

dos seus detalhes, constituindo-se muitas vezes por pedaços fragmentados em diferentes

versões, por vezes até contraditórias, dependendo do olhar e da importância que o

detentor do conhecimento atribui aos fatos. De igual forma, a história da Casa de

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Oxumarê vinha sendo contada ao logo dos séculos, de forma fragmentada. A transmissão

do conhecimento histórico era feita apenas pela oralidade, com algumas exceções no que

se refere aos poucos documentos que resistiram às mazelas do tempo e foram guardados

pelo babalorixá e em acervos pessoais de outros filhos e filhas de santo, assim como

anotações feitas por agbás, as anciãs do terreiro, em seus cadernos de iyawo. No entanto,

outros mecanismos de preservação da memória podem também ser encontrados nas

práticas ritualísticas do terreiro.

A Casa de Oxumarê, assim como a maioria dos terreiros tradicionais do Candomblé da

Bahia, têm como um dos pilares estruturantes da sua religiosidade, o culto à

ancestralidade. Todas as lideranças religiosas que ocuparam o trono do terreiro

constituem o grupo dos esá (ancestrais) e os seus orunkó (nomes ritualísticos) são

recitados sequencialmente durante rituais religiosos específicos, como por exemplo, a

cerimônia do ipadê. Por outro lado, cada um destes esá é representado por altares

individualizados no Ile Ibo Aku, a Casa dos Ancestrais, um cômodo sagrado e extremante

reservado, presente na maioria dos terreiros tradicionais do Candomblé da Bahia, onde

são cultuados os espíritos dos mortos. Esta cadência ritualística de louvor aos ancestrais

permitiu, ao longo de gerações, a continuidade de um conjunto de informações

estruturantes que permitem a reconstituição e preservação da história da Casa de

Oxumarê, organizando-a em sete períodos de sacerdócio.

Ao logo de gerações a principal preocupação com a manutenção da história se deveu à

continuidade das atividades ritualísticas. No entanto, as consecutivas investidas contra a

segurança do terreiro viriam a demandar um conhecimento mais aprofundado e

comprovado, que legitimasse a importância do templo perante o poder público visando a

proteção e integridade do seu espaço físico. Um episódio que se distinguiu

particularmente por esta necessidade foi a já citada luta contra a construção da passarela

de pedestres na Av. Vasco da Gama durante o comando de Iyá Nilzete. Para subsidiar o

trabalho da “Frente de Defesa do Terreiro” e reunir provas que atestassem a importância

cultural do terreiro, a utilidade pública das suas ações sociais e os limites do seu espaço

físico, foi iniciado um trabalho de pesquisa documental sobre a história da Casa. Esta

iniciativa foi vitoriosa visto que a Prefeitura alterou o projeto executivo da passarela de

forma a preservar o espaço sagrado. Por outro lado, a iniciativa resultou também em um

fortalecimento da institucionalidade do terreiro, visto que incentivou a criação da

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Sociedade Cultural, Religiosa e Beneficente São Salvador, entidade que passaria a

representar juridicamente a Casa de Oxumarê.

Dando continuidade ao trabalho de pesquisa iniciado por sua mãe, o babalorixá Pecê de

Oxumarê, determinou em 1999, uma excursão à cidade de Cachoeira no recôncavo baiano

(LÜHNING e MATA, 2010, p.48). Esta iniciativa foi incentivada pela confirmação de

Ogan Bobosa, de que o mais antigo terreiro Jeje do recôncavo baiano, o Zoogodo Gbogun

Male Cejá Houndé, também conhecido por Roça do Ventura, seria um terreiro “irmão”

da Casa de Oxumarê, corroborando com a história oral da comunidade de Salvador. Nesta

expedição foi confirmada a relação da Casa de Oxumarê com aquela cidade, por meio da

personagem de Baba Salakó, enterrado junto com seu irmão no Cemitério dos Nagô, no

Alto do Rosarinho.

Uma fase determinante para a pesquisa sobre a história do terreiro teve lugar, de forma

mais estruturada, a partir de 2004. Nesse ano foram encontradas gravações áudio no

acervo da Fundação Pierre Verger (FPV) realizadas pelo célebre etnógrafo com a

comunidade da Casa de Oxumarê em 1958. Estas gravações tinham como intuito registrar

os cânticos sagrados dos Orixás em terras Brasileiras e mais tarde seriam exibidas por

Pierre Verger nas suas viagens ao continente Africano para comprovar a manutenção do

culto aos Orixás no novo mundo e, possivelmente, tentar traduzir integralmente os seus

versos. A partir desta descoberta foi criado um projeto cultural entre a FPV e a Casa de

Oxumarê, com o apoio da Petrobras6, para tratamento e edição das gravações em CD

duplo, acompanhadas por um livro sobre o contexto no qual foram realizadas. O projeto

teve início em 2007, quando se iniciou um trabalho de pesquisa sobre a história do terreiro

e das trajetórias de vida das pessoas envolvidas na gravação. Inicialmente este trabalho

não teve o sucesso desejado porque contou com a resistência dos mais antigos em fornecer

informações aos pesquisadores externos, principalmente com relação aos fundadores do

terreiro, Talabi de Ajunsun e Salakó de Xangô, sobre os quais a oralidade do terreiro

apresentava fatos históricos divergentes. No entanto, em 2010, ao constatar que a história

do terreiro seria prejudicada caso fosse publicada de forma incompleta, um grupo de

membros da comunidade, sob a liderança de Baba Pecê, decidiu empreender a tarefa de

recolher depoimentos dos mais antigos, com a finalidade de identificar evidências na

6 Projeto Gravações históricas de Pierre Fatumbi Verger no Ilê Axé Oxumaré. Pronac: 57712. 2007

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tradição oral que conduzissem à descoberta de provas documentais sobre a história do

terreiro. Este grupo foi integrado por Daniel Melo, técnico administrativo, Edelamare

Melo, doutora em direito, Frederico Lacerda, antropólogo, Leandro Dias, sacerdote de

matriz africana, e Maíra Azevedo, jornalista.

Com a orientação de Baba Pecê, este grupo iniciou as suas atividades de pesquisa a partir

de uma viagem à cidade de Cachoeira, para falar com os interlocutores de Ofarerê em

1997. Apesar da Iyalorixá Mãe Baratinha, a principal interlocutora de Ofarerê, já ter

falecido, o grupo conseguiu falar com Dona Anália, irmã da Boa Morte, moradora do

Alto do Rosarinho e com o antropólogo Luís Cláudio do Nascimento, que confirmou o

nome cristão de Salakó, Antonio Maria Belchior e a sua relação com Manuel Joaquim

Ricardo e com o calundu do Obitedô. O grupo de voluntários da comunidade iniciou então

uma busca minuciosa por documentos que fornecessem informações sobre a vida dos

principais personagens da história do terreiro, não só dos seus principais sacerdotes, mas

de toda uma complexa rede de relações sociais e de parentesco que se estende até aos dias

de hoje. Nesse sentido, o grupo se dirigiu aos cartórios do registro civil, à cúria batismal

da Arquidiocese de Salvador e aos principais cemitérios da cidade, assim como ao registro

civil de Cachoeira, em busca de certidões de nascimento, casamento, óbito e guias de

enterro.

Estes documentos forneceram pistas que levaram até outros documentos no Arquivo

Público da Bahia, como testamentos e inventários, os quais requereram transcrições

oficiais feitas pelos arquivologistas do Arquivo Público da Bahia. Por meio deste esforço

da comunidade, o terreiro foi gradualmente acumulando um considerável acervo

documental, ao qual se adicionou uma compilação de fotografias antigas que se

encontravam dispersas em acervos pessoais nas residências dos membros mais antigos do

terreiro.

Foto 4 - Organização do acervo documental do terreiro, BA, 2011.

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Fonte: SERRA, 2012

Segundo os membros da comunidade, a partir do surgimento de novas evidências sobre

a origem da Casa de Oxumarê, ressurgiu também o antigo desejo de tombar o terreiro

como patrimônio nacional. Apesar de o terreiro já ser tombado como patrimônio do

Estado da Bahia, a comunidade defendia que o mesmo deveria ter o reconhecimento

nacional, à semelhança de outros terreiros seus contemporâneos e até mesmo outros mais

novos que já possuíam essa distinção. Ao mesmo tempo, o tombamento nacional serviria

como uma maior garantia à proteção fundiária do espaço sagrado e à perpetuação das

tradições religiosas e culturais. No entanto, para que tal acontecesse seria necessário

elaborar um novo laudo antropológico que contemplasse as novas evidências sobre a

origem do terreiro e sobre os períodos de liderança de Baba Talabi e Baba Salakó. Nesse

sentido, o babalorixá determinou que o professor Ordep Serra – enquanto antropólogo

especialista no assunto – fosse contatado para analisar as evidências descobertas pelo

grupo e avaliasse a possibilidade de reescrever o laudo antropológico do terreiro. Posto

isto, o professor Ordep Serra reuniu uma equipe de trabalho multidisciplinar constituída

pelo grupo de pesquisa voluntário constituído por membros do terreiro, à qual acrescentou

a arquiteta, Annamaria Binazzi, o biólogo Jonatas Santana e o advogado Willis Guerra

Filho, além dos pesquisadores da área de antropologia e direito, Bruno Moitinho Andrade

de Souza, Clarissa Pereira Gunça dos Santos, Sílvio Conceição Rosário e Sue Safira

Andrade de Sousa. Esta equipe multidisciplinar teve como objetivo elaborar estudos

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especializados para informar o laudo antropológico, dentre os quais se destaca o ensaio

etnográfico, as plantas arquitetônicas, o estudo etno-ecológico e o parecer jurídico sobre

a situação fundiária do terreiro.

Foto 5 - Equipe multidisciplinar escutando os relatos dos anciãos da comunidade, BA, 2011.

Fotógrafa: Regina Serra (2011)

Após um ano de trabalho intenso foi finalmente produzido um laudo consistente e

devidamente referendado, sendo considerado exemplar pelo próprio IPHAN e utilizado

como padrão para futuros processo de tombamento de terreiros.

Este documento destaca-se pela diversidade das informações que oferece e que

caracterizam claramente a casa de Oxumarê enquanto um bem patrimonial com aspectos

materiais e imateriais. Isso pode ser facilmente constatado pela lista dos seus anexos, que

variam desde plantas arquitetônicas e indexação do seu acervo documental até à listagem

dos cargos que compõem a sua estrutura hierárquica e suas relações com outras casas

tradicionais do candomblé.

Quadro 4 - Anexos do Laudo Antropológico da Casa de Oxumarê

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Anexo A. Plantas A.1. Planta de Situação Geral A.2. Planta de Situação do Barracão A.3. Planta de Vegetação e Etno-Ecologia A.4. Quadro Etno-ecológica

Anexo B. Documentos de Arquivo Público B.1. Índex de documentos antigos do arquivo do terreiro B.2. Seleção de documentos relevante

Anexo C. Fotografias C.1. Índex de fotografias do arquivo do terreiro C.2. Seleção de fotografias relevantes

Anexo D. Sucessão das Lideranças da Casa de Oxumarê e datas relevantes Anexo E. Arvore Genealógica Anexo F. Estrutura Hierárquica do Egbé Oxumarê Anexo G. Relações Históricas com outras Casas Tradicionais do Candomblé da Bahia Anexo H. Relação Parcial das Casas Descendentes do Ilê Oxumarê Anexo I. Calendário Religioso

Fonte: SERRA, 2012.

Vale a pena salientar que este documento, além de fazer uma análise consistente e

detalhada do terreiro, também faz uma explanação de motivos sobre o seu valor

patrimonial, que por sua vez o qualifica enquanto patrimônio nacional. Dentre estes se

destacam:

[...] 8. Hoje, nenhum estudo sério sobre a história do culto do candomblé pode escrever-se sem fazer referência ao Ilê Oxumarê. Quem se interessa pela história dos jejes e nagôs brasileiros, por suas criações culturais e sua interação criativa neste País — que eles ajudaram a construir, transmitindo-lhe preciosa herança de grandes civilizações da África Ocidental — necessariamente tem de reportar-se à crônica deste Terreiro e a seus monumentos.

9. O Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô foi objeto de uma perseguição brutal, mas reagiu pacífica e tenazmente, cultivando valores elevados que continua a difundir. Por sua história de lutas contra o racismo, a intolerância e a discriminação, este templo é uma referência importante para a comunidade negra de todo o país e para os cidadãos brasileiros de todas as origens que prezam a liberdade e a cidadania.

10. Todos os terreiros de candomblé baianos que foram tombados pelo IPHAN consideram importante, necessário e indispensável o tombamento do Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô como patrimônio histórico e etnográfico do Brasil, por reconhecerem sua importância histórica e seu valor excepcional [...] (SERRA, 2012, p. 38).

Como pode ser observado pelo relato da construção do documento e pelos pontos

transcritos acima, o laudo antropológico representa um parecer técnico realizado por um

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especialista em antropologia, que inclui e traduz os valores culturais informados pela

própria comunidade. Este é um documento de alta complexidade técnica e exigiu a

constituição de uma equipe multidisciplinar, composta por 13 pessoas, com

conhecimento especializado em diversas áreas.

4.3. O ACOMPANHEMENTO DO PROCESSO DE TOMBAMENTO JUNTO AO

IPHAN E A ARTICULAÇÃO POLÍTICO-INSTITUCIONAL DO TERREIRO

Em maio de 2012, Baba Pecê solicitou à 7a Superintendência Regional do IPHAN o

desarquivamento do Processo de Tombamento no1498-T-02, aberto no Arquivo Noronha

Santos em 2002, e a sua instrução com o novo laudo antropológico e cartas de apoio de

dezenas de organizações e personalidades políticas, assim como dos demais terreiros

tombados (ANEXO A). Passado um ano, em 22 de abril de 2013, em resposta a esta

solicitação, o superintendente do IPHAN na Bahia, Carlos Amorim, informa a

Associação Cultural e Religiosa São Salvador (ACRSS) sobre o indicativo de

tombamento da Casa de Oxumarê e respectivo encaminhamento à Presidência do IPHAN,

acompanhado de um Relatório e Parecer Técnico informando o histórico do processo de

tombamento, elaborado no dia 02 de abril de 2012. Ressalta-se que este documento

também revela informações sobre a delonga do processo de tombamento, instaurado em

2002, e das sucessivas interlocuções com a comunidade que se renderam infrutíferas até

à realimentação do processo em 2012.

[...] 7. Após inúmeros despachos interlocutórios nos anos 2003, 2004, 2005, 2006, 2007; somente em 2009, após 1 ano e meio inteiramente paralisado, o processo retornou à Superintendência do IPHAN na Bahia, à minha solicitação (fls 172).

8. Em 17 de maio de 2012, no Ofício ACRSS no 022/2012, o Babalorixá Silvanilton Encarnação da Mata, fez juntar novos documentos para compor o relatório de apreciação do tombamento definitivo da Casa de Oxumarê – Ilê Oxumaré Araká Axé Ogodô. Toda a documentação convertida em Dossiê, resultou do “Projeto: Memória e História da Casa de Oxumarê: Tradição Ancestral e Saber Preservado.” [...] Integram o Dossiê o laudo antropológico do Prof. Dr. Ordep Serra; o parecer jurídico do Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho; o cadastro e as plantas de Anna Maria Binazzi; e o estudo etno-botânico do biólogo Jonatas Santos Santana. Indigitados os elementos preliminares, em

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pleno acordo com os arts. 1º, 2º e 3º da Portaria nº 11/1986, passa-se ao relato da instrução nos termos do art. 4º, em seu parágrafo primeiro, sobejamente documentados no mencionado Dossiê ricamente fundamentado (Ofício no 0557/13-IPHAN/BA).

No entanto, este relato não explica o motivo de paralização que ocorreu desde o ultimo

despacho em 2007 e a solicitação de 2012, quando o processo foi instruído com novos

documentos pela ACRSS, cumprindo com as exigências da Portaria nº 11/1986 do

IPHAN. Após o relato histórico do processo, o relatório finaliza então com um claro

indicativo de apoio da Superintendência ao tombamento do terreiro:

[...] 11. O tombamento da Casa de Oxumarê – Ilê Oumarê Araká Axé Ogodô, independe de recomendações; se impõe como um reconhecimento à sua dinâmica ancestral e ao seu vivo testemunho presente como indubitável patrimônio cultural do Brasil e se indica, com arrimo no vasto documental acostado, sua inscrição simultânea nos livros do Tombo Histórico e no Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (Ofício no 0557/13-IPHAN/BA).

No dia 17 de setembro de 2013, após vários meses sem notícia da continuidade do

processo, uma delegação da comunidade do terreiro, com o apoio do gabinete do líder do

governo na Câmara Federal, o deputado José Guimarães (PT-CE), reuniu-se com o

ministro da cultura interino, Marcelo Pedroso e com o diretor do Departamento do

Patrimônio Material do IPHAN, Andrey Rosenthal Schlee. O pedido direto de apoio ao

Ministério da Cultura resultou no agendamento de uma reunião extraordinária do

Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural e a documentação foi enviada para a análise

do conselheiro Roque de Barros Laraia, que atuaria como relator do processo. A reunião

do Conselho foi realizada na sede do IPHAN em Brasília, no dia 27 de novembro de 2013,

contando com a presença da Ministra da Cultura Marta Suplicy, da Presidenta do IPHAN,

Jurema Machado, do Superintendente do IPHAN na Bahia, Carlos Amorim e da Senadora

Lídice da Mata (PSB-BA), assim como um expressivo grupo de sacerdotes da família

religiosa da Casa de Oxumarê. A reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural

resultou em uma votação unânime a favor do tombamento da Casa de Oxumarê,

juntamente com o tombamento do Teatro Castro Alves, também na cidade de Salvador.

Foto 6 - Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, DF, 2013.

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Fotógrafo: desconhecido. Arquivo da casa de Oxumarê.

Para celebrar a importante conquista, a comunidade do terreiro, por iniciativa própria e

com o apoio do Governo do Estado da Bahia, realizou uma solenidade simbólica do

tombamento, no dia 15 de janeiro de 2014, na Casa de Oxumarê, com a participação do

Governador Jacques Wagner, da Ministra da Cultura, Marta Suplicy, do Prefeito de

Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto, da Presidente do IPHAN, Jurema Machado,

do Presidente da Fundação Cultural Palmares, Hilton Cobra, de diversos parlamentares

federais, estaduais e municipais, da Sra. Paula Gomes, Embaixadora Cultural Honorária

de Sua Majestade, o Alaafin de Oyo, Oba Adeyemi III, um importante monarca

tradicional ioruba da Nigéria, assim como de autoridades religiosas do Candomblé de

todo o Brasil. Após as devida consulta jurídica à Procuradoria do Ministério a Cultura, a

homologação do tombamento foi finalmente publicada por meio da Portaria no68, de 9 de

julho de 2014, no Diário Oficial da União.

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Foto 7 - Cerimônia de comemoração do tombamento, BA, 2014.

Fonte: MinC - http://www.cultura.gov.br/o-dia-a-dia-da-cultura/-/asset_publisher/waa E236O

ves2/content/bahia-celebra-tombamento-do-terreiro-oxumare/10883 (acessado em 10 de agosto

de 2015)

Observa-se a partir deste estudo de caso que a agência da comunidade do terreiro a partir

de 2011 representou uma retomada do processo de tombamento e foi fundamental para a

sua continuidade, visto que o mesmo foi instruído em 2002 e estava parado desde 2007.

Somente após a comunidade reunir as condições ideais, dentre as quais se destaca a

disponibilidade financeira para realizar a pesquisa, decorrente do Projeto: Memória e

História da Casa de Oxumarê: Tradição Ancestral e Saber Preservado7. Assim como, a

formação de uma equipe de pesquisa constituída por membros da comunidade, com

capacidades técnicas e recursos financeiros para coletar as informações necessárias fora

do espaço do terreiro e responder às exigências apresentadas pela burocracia própria do

IPHAN. Por sua vez, esta articulação interna da comunidade foi essencial para que o

terreiro desenvolvesse também uma articulação externa, no sentido de reunir o apoio de

7 Projeto financiado pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) - Convênio n.º752168/2010.

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especialistas para a construção e submissão ao IPHAN de um novo dossiê técnico, assim

como o apoio de instituições e personalidades da política local e nacional. Somente

quando todas estas condições estavam reunidas foi possível dar continuidade ao processo

que resultou no tombamento nacional da Casa de Oxumarê, em 2014.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES

A inserção das políticas de reconhecimento nas agendas de direitos dos grupos sociais

brasileiros evidencia a necessidade de aumentar a sua representatividade na lista do

patrimônio nacional tombado. Esta lista ainda é muito marcada pela cultura de

ascendência europeia e os bens pertencentes à tradição cultural afrobrasileira representam

menos de 1% da sua totalidade. O pequeno número de bens tombados demonstra uma

grande desigualdade e sub-representação destes grupos e de suas histórias na memória

oficial da nação. Contudo, observa-se que não seria suficiente apenas tombar novos bens

com o intuito de tornar esta lista mais representativa. A representatividade passa

obrigatoriamente pela democratização da política do patrimônio cultural que envolve a

criação de mecanismos para que estes grupos sociais possam de fato informar e interpretar

os seus próprios valores, assim como participar do processo decisório, especialmente no

que tange ao estabelecimento de consensos sobre o que deverá ser protegido pelo Estado

e como isso será feito.

Este trabalho parte do referencial teórico proporcionado pelas políticas de

reconhecimento, principalmente o modelo de identidade e autenticidade proposto por

Charles Taylor (1994) e que demonstra a centralidade do assunto nas sociedades

ocidentais modernas. Este modelo foi ponto de partida para uma série de discussões que

destacam a importância da participação política e social para o reconhecimento, dentre as

quais se destaca a defesa de Habermas sobre atualização de direitos nas democracias

constitucionais e o modelo de justiça social de Nancy Fraser ao propor uma interpretação

tridimensional, na qual as políticas de redistribuição e reconhecimento só poderão ser

articuladas por meio de uma política de representação. Se por um lado, o modelo de

identidade de Taylor evidencia a necessidade dos grupos culturais em se

autoreconhecerem enquanto detentores de bens culturais, com potencial para serem

elevados ao estatuto de patrimônio nacional, por outro lado, os modelos de Habermas e

Nancy Fraser deixam claro que a representatividade destes grupos nos espaços de decisão

é fundamental para uma equalização de direitos na política patrimonial.

Partindo deste referencial, conclui-se que é necessário que o poder público entenda a

importância e as possibilidades do envolvimento efetivo dos diversos grupos sociais na

política do patrimonial cultural, principalmente na definição e revisão de valores

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patrimoniais. Os detentores de bens culturais deverão atuar de forma colaborativa com os

técnicos e os especialistas nas diversas disciplinas envolvidas no processo de

patrimonialização da cultura. O assunto em pauta neste trabalho não é fornecer uma

análise sobre o impacto positivo ou negativo da participação social, mas o fato de que ela

deverá necessariamente ocorrer para que a política patrimonial se torne efetivamente mais

democrática e representativa da diversidade cultural brasileira.

Entretanto, é também imperativo também clarificar os possíveis obstáculos enfrentados

pelas comunidades na proposição de novos processos de tombamento, assim como na

interlocução com o IPHAN. O estudo de caso do processo que culminou com o

tombamento da Casa de Oxumarê oferece uma perspectiva nesse sentido. O processo que

fora iniciado em 2002 teve uma clara retomada em 2012, a partir de uma mobilização

interna da comunidade, no sentido de realimentar o processo de tombamento com um

novo dossiê técnico rigoroso que atendesse às exigências do IPHAN e evidenciasse o

valor patrimonial do terreiro. Esta mobilização interna dependeu da constituição de um

grupo de trabalho qualificado e multidisciplinar que resgatou documentos e outros

registros sobre a história do terreiro, que por sua vez subsidiaram uma pesquisa

antropológica. A iniciativa da comunidade foi fundamental para uma articulação externa,

marcada inicialmente pela colaboração de especialistas para a elaboração do dossiê e mais

tarde uma ampla articulação político-institucional que reuniu apoio de diversos setores

da sociedade nacional para referendar o tombamento. Com base neste estudo de caso é

possível concluir que a apropriação reduzida sobre o discurso do patrimônio, que resulta

na falta de mobilização das comunidades, assim como os recursos técnicos e financeiros

insuficientes para instaurar processos de tombamento com qualidade, são fatores

determinantes que limitam o aumento da representatividade da tradição afrobrasileira na

lista do patrimônio tombado.

Partindo destas premissas, é necessário que o Estado atue no sentido de transpor os

obstáculos que impedem a participação social e, por sua vez, a democratização da política

do patrimônio. Em primeiro lugar, para aumentar a apropriação do discurso do patrimônio

pelas comunidades negras é necessário que o IPHAN amplie o diálogo institucional com

os detentores destes bens e práticas culturais afrobrasileiras. Inspirada por sua experiência

no Projeto MAMNBA, Marcia Sant’Anna (2011, p.33) apela à realização de um

inventário nacional desses bens culturais, medida esta que, em suas próprias palavras, “é

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urgente e decisiva para subsidiar uma discussão ampla e democrática sobre a seleção dos

sítios e os aspectos que deverão ser preservados”. Este seria um mecanismo concreto que

permitiria dar voz às comunidades tradicionais com o apoio dos especialistas,

especialmente no que tange aos critérios de seleção e intervenção. Este inventário

nacional contribuiria não só para um maior conhecimento do universo cultural

afrobrasileiro, mas também apoiaria o IPHAN no estabelecimento de prioridades de

atuação. Por outro lado, considerando a dramática subrepresentatividade destes bens

nestas regiões do país, como por exemplo, nos Estados do Rio de Janeiro e Rio Grande

do Sul, Marcia Sant’Anna8 propõem também que o IPHAN atue de forma mais proativa,

lançando mão do conceito de “ação exemplar de preservação” utilizado pela Fundação

Pró-Memória. Estas ações serviriam para chamar a atenção do poder público e da

sociedade civil para a existência de bens com potencial para serem elevados à categoria

de patrimônio, de tipologias ainda não classificadas ou em territórios onde são

inexistentes. Estas ações contribuiriam de forma efetiva para visibilizar produções

culturais afrobrasileiras, incentivar a proposição de medidas de proteção para bens de

natureza semelhantes e aumentar a apropriação do discurso do patrimônio pelos grupos

culturais afrobrasileiros.

Em segundo lugar, é importante que o IPHAN considere as dificuldades que estes grupos

enfrentam na instauração de novos processos de tombamento devido à escassez de

recursos técnicos e financeiros necessários à criação de propostas com qualidade técnica

que atenda à burocracia exigida pelo órgão. Nesse sentido, é preciso definir diretrizes

claras e acessíveis sobre a preparação de propostas, os critérios de seleção, os

instrumentos de proteção disponíveis e os fluxos de aprovação. Conforme ilustrado pelo

estudo de caso da Casa de Oxumarê, é também importante fortalecer a política de editais

para o financiamento de pesquisa e produção de propostas de tombamento para os grupos

sociais minoritários. No entanto é importante considerar que muitas comunidades

poderão não estar institucionalmente fortalecidas para atender e responder às exigências

8 CAPACITAÇÃO PARA GESTÃO DO PATRIMÔNIO DE TERREIROS. Produção de GTIT – Grupo

de Trabalho Interdepartamental para a Preservação do Patrimônio Cultural de Terreiros. Brasília: IPHAN, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= FoK1x_8q0w4 (2h31m). Acesso em: 25 ago. 2015. son., color.

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administrativas e jurídicas envolvidas nos convênios com órgãos da União. Nesse sentido,

sugere-se o desenvolvimento de estruturas de apoio à pesquisa, no próprio órgão e/ou em

parceria com outros atores, como universidades e organizações sociais.

Finalmente, é importante considerar que o IPHAN tem incorrido esforços louváveis para

refletir sobre o patrimônio da tradição afrobrasileira, como o Grupo de Trabalho

Interdepartamental para Preservação do Patrimônio Cultural de Terreiros – GTIT e a

Câmara Setorial do Patrimônio Imaterial, cujos pareceres subsidiam as decisões do

Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Porém estas estruturas de reflexão são

constituídas formalmente apenas por técnicos do IPHAN e especialistas. No caso do

GTIT, ressalta-se um esforço em consultar as lideranças dos diversos segmentos das

religiões de matriz africana, que têm sido convidadas a palestrar na da série de

capacitações internas realizadas na sede do IPHAN, em Brasília, assim como o Curso de

Extensão Gestão e Salvaguarda do Patrimônio Cultural dos Terreiros Tombados,

realizado em parceria com o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social

(CIAGS) da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, que certamente

oferecerá importantes contribuições para a definição de uma política nacional de

salvaguarda destes bens específicos.

No entanto, apesar de se apresentarem como oportunidades efetivas de diálogo da

sociedade com o IPHAN, e possivelmente inspirarem inciativas semelhantes para outros

setores do patrimônio, estas iniciativas ainda não se constituem como espaços

permanentes de participação paritária para a interpretação, definição e revisão de valores

patrimoniais. Para garantir uma política patrimonial democrática o IPHAN precisará criar

novos espaços onde esta participação possa ser formalizada e vinculada às decisões do

Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Tomando como exemplo a referida câmara

setorial é necessário que o IPHAN crie novas câmaras, comissões, ou comitês setoriais,

ligados diretamente ao Conselho Consultivo, para assegurar que os distintos grupos

culturais afrobrasileiros poderão participar efetivamente na revisão dos valores do

patrimônio. No entanto, é preciso ficar atento também para a representatividade dos

membros destas novas estruturas para que se evite a falsa representação e também que o

Estado venha a reforçar hierarquias de poder pré-existentes entre e dentro dos grupos

culturais, ou encobrir interesses políticos particulares e contrários ao interesse público.

Este é um desafio que certamente se aprenderá por meio da experimentação de novas

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metodologias de participação. A representação alternada de representantes destes grupos

junto ao Conselho Consultivo contribuirá para uma fusão de horizontes entre o

conhecimento acadêmico especializado e o conhecimento informado diretamente pelos

grupos detentores dos bens e práticas culturais. Possivelmente, estes serão alguns passos

que, em longo prazo, fomentarão o aumento do patrimônio tombado da tradição cultural

afrobrasileira, o que por sua vez, contribuirá para tornar o patrimônio nacional mais

democrático e mais representativo da pluralidade cultural do Brasil.

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ANEXOS

ANEXO A – LISTA DE CARTAS DE APOIO AO TOMBAMENTO DA CASA DE

OXUMARÊ

1. Arquiteto Francisco Soares Senna - Academia de Letras da Bahia;

2. Associação Baiana de Imprensa - ABI, Associação Carnavalesca Bloco Afro

Olodum;

3. Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê;

4. Associação Cultural de Preservação do Povo Bantu;

5. Associação Cultural Os Negões;

6. Associação Cultural Recreativa e Carnavalesca Filhos de Gandhy;

7. Associação das Baianas – ABAM;

8. Associação Educativa e Cultural Didá;

9. Associação Protetora dos Desvalidos – (antiga SPD);

10. Casa da Nigéria – Representação Cultural da Embaixada da Nigéria na Bahia;

11. Centro de Culturas Populares e Identitárias do Governo do Estado da Bahia;

12. Centro de Estudos Afro-Orientais – CEAO da UFBA;

13. Coletivo de Entidades Nagras – CEN;

14. Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado da Bahia – CDCN;

15. Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de

São Paulo;

16. Conselho Municipal da Criança e do Adolescente – CMDCA/Salvador;

17. Coordenação Nacional de Entidades Negras – CONEN;

18. Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE;

19. Deputada Estadual Fátima Nunes (PT-BA);

20. Deputada Estadual Leci Brandão (PCdoB-SP);

21. Deputada Estadual Luiza Maia (PT-BA);

22. Deputada Estadual Maria Del Carmem (PT-BA);

23. Deputado Estadual Álvaro Gomes (PCdoB-BA);

24. Deputado Estadual Bira Corôa (PT-BA);

25. Deputado Estadual Edson Ferrarini (PTB-SP);

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26. Deputado Estadual Eures Ribeiro (PV-BA);

27. Deputado Estadual José Neto (PT-BA);

28. Deputado Estadual Major Olímpio Gomes (PDT-SP);

29. Deputado Estadual Yulo Oiticica (PT-BA);

30. Deputado Federal Nelson Pellegrino (PT-BA);

31. Diretor TCA Moacyr Gramacho;

32. Faculdade Delta UNIME Salvador;

33. Família Telemaco Solidariedade;

34. Fundação Casa de Jorge Amado;

35. Fundação Cultural Palmares;

36. Fundação Pedro Calmon;

37. Fundação Pierre Verger;

38. Grupo Ambientalista da Bahia – GAMBÁ;

39. Instituição Beneficente Conceição Macêdo;

40. Instituto Carybé;

41. Instituto Cultural Steve Biko;

42. Instituto de Artesanato Visconde de Mauá;

43. Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia – IRDEB;

44. Instituto Diversidade;

45. Instituto Pedra de Raio;

46. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos;

47. Ministério Público do estado da Bahia - Promotora da Justiça e Cidadania, Dra.

Márcia Virgens;

48. Museu Afro-Brasileiro da UFBA;

49. Omi-Dudu Resgate e Preservação da Cultura Afro-Brasileira;

50. Polícia Militar do Estado da Bahia – Núcleo de Religiões de Matriz Africana

(NAFRO);

51. PROHOMO - Associação de Proteção de Defesa dos Direitos de Homossexuais

52. Restaurações Artísticas Studio Argolo;

53. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania – SJDC/São Paulo;

54. Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – SJCDH/Bahia;

55. Secretaria de Políticas para Mulheres – SPM/Bahia;

56. Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia – SEPROMI/Bahia;

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57. Secretaria de Turismo do Estado da Bahia - SETUR/Bahia;

58. Secretaria Municipal da Reparação – SEMUR/Salvador;

59. Senadora Lídice da Mata (PSB-BA);

60. SINDSPREV - Sindicato dos Trabalhadores Federais em Saúde, Trabalho,

Previdência e Assistência Social do Estado da Bahia;

61. Sociedade Amigos da Cultura Afro-Brasileira – AMAFRO;

62. Terreiro da Casa Branca - Ilê Axé Iyá Nassô Oká - Sociedade São Jorge do Engenho

Velho;

63. Terreiro do Alaketu - Sociedade São Jerônimo de Alaketu;

64. Terreiro do Bate Folha - Sociedade Beneficente Santa Bárbara;

65. Terreiro do Gantois - Ilé Iyá Omi Axé Iyamasé - Associação de São Jorge Ebé

Oxossi;

66. Terreiro Ilê Axé Opo Afonjá - Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá;

67. União de Negros pela Igualdade – UNEGRO;

68. Vereador Gilmar Santiago (PT-BA);

69. Vereador Henrique Carballal (PT-BA);

70. Vereador Ítalo Cardoso (SP-SP);

71. Vereador Moisés Rocha (PT-BA);

72. Vereador Quito Formiga (PR-SP);

73. Vereadora Marta Rodrigues (PT-BA);

74. Vereadora Olívia Santana (PCdoB-BA);

75. Vice-Prefeito de Salvador Edvaldo Brito (PTB-BA).