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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA CÉLIO JOSÉ DOS SANTOS AS PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO DA CULTURA HIP-HOP PELA JUVENTUDE SOTEROPOLITANA: UM ESTUDO A PARTIR DO LUGAR Salvador 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

CÉLIO JOSÉ DOS SANTOS

AS PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO DA CULTURA HIP-HOP PELA JUVENTUDE SOTEROPOLITANA:

UM ESTUDO A PARTIR DO LUGAR

Salvador 2012

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CÉLIO JOSÉ DOS SANTOS

AS PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO DA CULTURA HIP-HOP PELA JUVENTUDE SOTEROPOLITANA:

UM ESTUDO A PARTIR DO LUGAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, Departamento de Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Angelo S. Perret Serpa

Salvador 2012

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__________________________________________________

S237 Santos, Célio José dos As práticas de apropriação da cultura hip-hop pela juventude

soteropolitana: um estudo a partir do lugar / Célio José dos Santos. - Salvador, 2012.

117 f. : il. + anexos

Orientador: Prof. Dr. Angelo S. Perret Serpa. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Curso de Pós-Graduação

em Geografia, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Geociências, 2012.

1. Territorialidade humana – Cabula (Salvador, BA). 2. Hip-hop

(Cultura popular). 3.Juventude. 4. Bairros. I. Serpa, Angelo S. Perret. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geociências. III. Título.

CDU: 911.375.64(813.8)

__________________________________________________ Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências da UFBA.

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Dedico este trabalho a dona Joana, mãe querida, por ter me ensinado a viver.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar à minha mãe Joana Pereira por sempre se mostrar uma

guerreira, pela perseverança, cuidado e amor com seus 6 filhos.

Ao meu pai Celivaldo (In memoriam) por sempre me incentivar com os

estudos.

Aos meus irmãos Binha, Tati, Paula, Paulo e Danilo pelo apoio, carinho e por

suportarem minhas chatices.

Aos meus sobrinhos queridos Caio, Kailane, Eduarda, Neto, Wesley e Alice

pelos sorrisos de cada dia.

À Ádila, minha amiga, namorada e companheira para todas as horas.

Ao professor Angelo pela paciência, orientação e pelo rigor teórico-

metodológico na pesquisa.

Ao professor Wendel Henrique que colaborou com o andamento do trabalho

desde o projeto de qualificação.

Ao professor Fernando Conceição pelas dicas durante a qualificação, mas por

motivo de força maior não pode participar da etapa final do trabalho.

Ao professor Paulo Miguez por ter aceitado o convite quase que “em cima da

hora” e por suas colaborações durante a pré–banca.

À todos hiphoppers que direta e indiretamente ajudaram a concretizar esse

trabalho, seja por meio das entrevistas ou colaborando em responder as enquetes,

especialmente a Aspri por sempre se mostrar prestativo, Dj Joe, Jasf, Charles Brak,

Black Rai, Denis Sena, Marcos Costa, Zezé Oluquemi, Heider, Tony e Walmir por

terem aberto as portas de suas casas e trabalhos para falar comigo sobre hip-hop.

Aos professores e aos secretários(as) do Programa de Pós – Graduação em

Geografia da UFBA pela dedicação e condução do programa.

Aos professores da UNEB Campus Jacobina, em especial, a Fábio, Moiseis,

Zé Carlos, Muniz, Carmélia, Adriano e Alan pelo incentivo e colaboração no

andamento da pesquisa.

Aos meus amigos, que por serem tantos prefiro não citar nomes.

Aos colegas e amigos do mestrado, em especial, a Jorge, Tiago, Hiram,

Elissandro pelas resenhas cotidianas e a Gilma pela confecção dos mapas.

À Fapesb pela concessão de 18 meses de bolsa o que foi de extrema

importância para o desenvolvimento do trabalho.

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Sankofa: nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo

que ficou atrás. Sempre podemos retificar os nossos erros.

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RESUMO

O referido trabalho objetivou realizar um estudo sobre as práticas de apropriação da cultura hip-hop pela juventude soteropolitana, tendo como recorte espacial o bairro do Cabula. Bairro é entendido aqui como lugar, espaço de vivência e da realização do cotidiano. Trata-se de uma pesquisa qualitativa sustentada por interpretações; o enfoque epistemológico adotado foi o materialismo dialético, se aproximando em alguns momentos do fenomenológico, como proposto por Serpa (2006). As discussões estão centradas em dois conceitos, o de juventude e o de lugar: para o conceito de juventude nos embasamos nos trabalhos de Sposito (1994, 1997, 2000a, 2000b) e Dayrell (2005, 2003), que consideram a juventude como uma condição e uma representação que variam de acordo com as especificidades culturais, temporais, espaciais e sociais, mostrando, assim, o conceito como algo fluido e dinâmico. Para o conceito de lugar nos sustentamos nos trabalhos dos geógrafos da geografia humanista, Relph (1979), Tuan (1983) e Buttimer (1985) e nos da corrente da geografia crítica Damiani (1999), Santos (2006, 2008a, 2008b, 2008c) e Carlos (2007a e 2007b). Com relação ao hip-hop a pesquisa fundamenta-se nos escritos de Rose (1997) e Hersmann (1997, 2000). Diante da exposição desses autores e de nossas próprias pesquisas em Salvador, podemos concluir que o lugar é importante na apropriação da cultura hip-hop, e como e quanto o lugar contribui/contribuiu na configuração e no conteúdo dessa cultura na cidade contemporânea. Palavras-chave: Apropriação; Hip-hop; Juventude; Lugar

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ABSTRACT

The objective of the present study was to perform a study of the appropriation of hip-hop culture by the youth of Salvador, with particular reference to the neighborhood of Cabula. Neighborhood is understood in this context as a place, a living space and a realization of everyday life. This is a qualitative study sustained by interpretations; the epistemological approach adopted was dialectical materialism, approaching at times the phenomenological, as proposed by Serpa (2006). The discussions were based on two concepts, of youth, and of place: based for the concept of youth on the work of Sposito (1994, 1997, 2000a, 2000b) and Dayrell (2005, 2003), which considers youth as a condition and a representation that varies according to cultural, temporal, spatial and social specifics, presenting the concept as something fluid and dynamic. For the concept of place, the study was based on the work of the human geographers Relph (1979), Tuan (1983) and Buttimer (1985) and on the current critical geography of Damiani (1999), Santos (2006, 2008a, 2008b, 2008c) and Carlos (2007a and 2007b). In relation to hip-hop the study was based on the writings of Rose (1997) and Hersmann (1997, 2000). With the work of these authors and research conducted in Salvador as part of the present study, it can be concluded that place is important in the appropriation of hip-hop culture, and how and to what extent place contributes to the configuration and content of this culture in the contemporary city. Keywords: Appropriation; Hip-hop; Youth; Place

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LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS Tabela 1: Faixa etária dos jovens hiphopers ............................................................. 41

Tabela 2: O que representa o Cabula para os hiphoppers ...................................... 104

Gráfico 1: Faixa etária dos jovens hip-hop/percentual .............................................. 40

Quadro 1: Entrevistados para elaboração do trabalho .............................................. 16

Quadro 2: Eventos nos quais foram aplicadas as enquetes ..................................... 17

Figura 1: Grafite de Denis Sena no bairro do Cabula ................................................ 41

Figura 2: Dj (Disc Jóquei) .......................................................................................... 48

Figura 3: Mc (Mestre de cerimônia) ........................................................................... 48

Figura 4: Grafite ........................................................................................................ 49

Figura 5: Break .......................................................................................................... 49

Figura 6: Jovens aproveitando a passagem de som para mostrarem seus freestyles

.................................................................................................................................. 73

Figura 7: Apropriação da técnica pelos jovens hiphoppers ....................................... 74

Figura 8: Oficina de break ......................................................................................... 82

Figura 9: Grupo Atitude ............................................................................................. 82

Figura 10: Condomínio na Avenida Silveira Martins (Cabula A) ................................ 86

Figura 11: Conjunto Habitacional na Avenida Silveira Martins (Cabula B) ................ 86

Figura 12: Autoconstruções na Engomadeira (Cabula C) ......................................... 86

Figura 13: Os Cabulas .............................................................................................. 86

Figura 14: Quadra poliesportiva do Conjunto ACM ................................................... 95

Figura 15: Grafite de Denis Sena reclamando cidadania .......................................... 97

Figura 16: Afro Grafite de Marcos Costa, reverenciando a cultura negra de Salvador

.................................................................................................................................. 99

Figura 17: Grafite de Zezé Olukemi reverenciando a comunidade de Engomadeira 99

Mapa 1: Cabula percebido pelos hiphoppers ............................................................ 91

Mapa 2: Cabula Concebido (RA) ............................................................................... 92

Mapa 3: Cabula – Projeto Caminho das Águas ......................................................... 93

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO - CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA ............................ 11

2 SOBRE LUGAR E JUVENTUDE: ALGUMAS APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS .... 20

2.1 O CONCEITO DE LUGAR NA GEOGRAFIA .................................................. 22

a) Geografia Humanista, o lugar como mundo vivido ......................................... 22

b) Geografia Crítica Radical, o lugar como insurgente ........................................ 26

2.1.1 Lugar e Identidade ..................................................................................... 30

2.1.2 O lugar do/no cotidiano ................................................................................. 32

2.1.3 A dimensão do lugar ...................................................................................... 35

2.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE JUVENTUDE(S) .... 37

2.2.1 Os novos estudos sobre a juventude(s) e o novo protagonismo juvenil .. 44

2.3 EM BUSCA DE UMA APROXIMAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE LUGAR E

JUVENTUDE ............................................................................................................. 46

3 CONHECENDO A CULTURA HIP-HOP, SUA ORIGEM E SUA DIFUSÃO PELO

TERRITÓRIO BRASILEIRO ..................................................................................... 48

3.1 O CONTEXTO URBANO DA CIDADE DE NOVA YORK .................................... 49

3.1.1 A origem da cultura hip-hop: uma cultura híbrida? Ou uma cultura que já

nasce globalizada? ................................................................................................. 53

3.2 A APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP PELA JUVENTUDE BRASILEIRA .................. 57

3.2.1 A difusão da cultura hip-hop pelo território brasileiro ................................ 66

3.2.2 Será a cultura hip-hop um movimento social? ............................................ 68

4 AS PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP NA CIDADE DE SALVADOR-

BA, UM ESTUDO A PARTIR DO CABULA ............................................................ 71

4.1 O MOVIMENTO HIP-HOP NA CAPITAL BAIANA ............................................... 75

4.1.1 Os primeiros grupos e as primeiras posses formadas em Salvador – BA.

.................................................................................................................................. 79

4.2 O BAIRRO DO CABULA E A APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP PELA JUVENTUDE

LOCAL. ..................................................................................................................... 83

4.2.1 A apropriação do hip-hop pela juventude local ........................................... 94

4.2.2 O hip-hop e a mediação entre o lugar e o mundo para a juventude do

Cabula .................................................................................................................... 100

4.2.3 As Representações do Cabula pela juventude hip-hop ............................ 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 1

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 5

ANEXOS

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1 INTRODUÇÃO - CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA

A cultura hip-hop, objeto do referido estudo, é, para mim, uma curiosidade

antiga, anterior a meu ingresso na Universidade, pois o fato de uma cultura

estrangeira conseguir cooptar inúmeros jovens das periferias brasileiras, aliando

lazer a uma participação político-social ativa, instigava-me e trazia vários

questionamentos a respeito do tema, perguntava-me como um cara conseguia

explicar seu cotidiano em uma música. E o mais interessante, é que eu poderia

cantar aquela mesma música e dizer que estava contando a minha história, ou de

qualquer outro garoto negro, morador da periferia de uma grande cidade. Por isso,

comecei a pesquisar, a comprar revistas, assistir programas de TV, trocar

informações com colegas da rua e da escola, a partir daí passei a entender um

pouco do universo hip-hop, saber que, além do rap, o hip-hop é composto por outros

elementos como o break e o grafite, sua importância para a juventude negra

americana, entre outras coisas.

No ano de 2005, a revista Caros Amigos lançou uma edição especial sobre a

cultura hip-hop, fazendo um panorama do hip-hop no Brasil cujo título era “o Hip-Hop

hoje”. Essa revista foi a chave para eu começar a pesquisar sobre o hip-hop, pois

ela continha diversas indicações de livros que discutiam o tema e alguns trabalhos

acadêmicos. Adquiri alguns daqueles livros, como o de Michael Hershmann e o de

Elaine Andrade, e percebi que era possível fazer uma pesquisa sobre o hip-hop.

Coincidentemente, no mesmo período, a Universidade (UNEB) abriu um edital de

bolsas de um projeto do governo federal destinado às Universidades que aderiram

ao sistema de cotas. O nome do projeto era Brasil Afro-atitude, no qual o aluno

cotista escrevia um projeto de pesquisa ou extensão relacionado ao estudo das

populações afro e indígena: foi aí que escrevi meu primeiro projeto sobre o hip-hop,

concorri ao edital e fui contemplado. Comecei a desenvolver o projeto, e com o

auxílio da bolsa pude comprar diversos livros sobre hip-hop e temas ligados a minha

pesquisa.

No início da pesquisa senti grandes dificuldades de relacionar a cultura hip-

hop com os debates inerentes à geografia, minha pesquisa tinha mais um cunho

sociológico do que geográfico, o que pode ser explicado pelo fato de o orientador

desse projeto ser historiador e ter pouca ou nenhuma aproximação com a geografia,

mas suas contribuições foram de suma importância para o andamento do trabalho.

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Fui perceber essa possibilidade de estudo do hip-hop numa perspectiva

geográfica em um encontro de estudantes de geografia realizado na cidade de

Jacobina-Ba, no qual apresentei meu trabalho numa sessão de comunicação que

estava sendo coordenada pela professora Luciana Souza, que, após a

apresentação, teceu alguns comentários com relação a minha pesquisa, sugerindo-

me algumas alternativas que eu poderia seguir para desenvolver meu trabalho com

um direcionamento mais geográfico.

Segui os conselhos da professora Luciana e comecei a ler os livros da

coleção de Geografia Cultural organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas

sobre Espaço e Cultura – NEPEC, a partir desse momento dei “início” ao estudo do

hip-hop relacionando território e identidade, o que foi concretizado parcialmente no

trabalho de conclusão de curso de graduação, intitulado “O Movimento Hip-Hop:

Território(s) e Identidade(s) da Posse Zumbi no bairro Nordeste de Amaralina em

Salvador-BA”. Esse trabalho foi entregue como um dos requisitos básicos para a

obtenção do título de licenciado em geografia no ano de 2008.

Durante o desenvolvimento da pesquisa pude perceber a riqueza da cultura

hip-hop e as inúmeras possibilidades de estudo dentro da geografia, foi nesse

sentido que iniciei o projeto de mestrado, só que ao invés de trabalhar o conceito de

território optei pelo conceito de lugar, uma vez que durante o período de observação

e das entrevistas para a finalização do trabalho de conclusão de curso de graduação

pude notar que os jovens hip-hoppers têm uma ligação muito forte com o lugar,

como pode ser notado nas letras de rap, que, em grande parte, procuram fazer

alusão ao lugar descrevendo seu mundo vivido. Nos grafites trazem a representação

visual de seu cotidiano e na dança encenam através da expressão corporal passos

de estilo mecanizado, inserindo alguns movimentos e gingados das culturas locais.

Podemos observar este fenômeno, por exemplo, no break baiano, no qual são

inseridos as danças dos blocos afro e o gingado da capoeira, dando um caráter

específico ao hip-hop, além de uma identidade própria, diferenciando-o de outros

lugares, o que me instigava e me levava a inúmeros questionamentos de como uma

cultura estrangeira, fruto da globalização, se moldava e adaptava à cultura e a um

discurso local. Em paralelo a conclusão da monografia, estava fazendo a última

disciplina da graduação, Estudos Locais, ministrada pelo professor Antonio Muniz,

que, no primeiro momento da disciplina, trabalhou com o conceito de lugar nas

correntes da geografia; percebi que o lugar poderia me oferecer subsídios teóricos

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para tentar responder algumas inquietações que estavam sendo levantadas durante

a execução da monografia e que o território, por sua vez, em nosso entendimento,

não daria conta de responder.

O lugar exerce uma grande influência na apropriação e na formação da

cultura hip-hop, pois é a partir do lugar que os jovens hip-hoppers vão reinventar a

cultura de acordo com seu cotidiano, seus anseios e suas necessidades.

Acreditando nisso, o presente trabalho teve como objetivo principal compreender a

importância do lugar no processo de apropriação da cultura hip-hop. Para isso,

adotamos como recorte espacial o bairro do Cabula, localizado na cidade de

Salvador-Ba, bairro que conta com inúmeros grupos de rap, de break e de

grafiteiros. Como objetivos específicos buscamos investigar por que e como a(s)

identidade(s) dos jovens hiphoppers se formam localmente; compreender as táticas

utilizadas pelos hiphoppers na apropriação da cultura hip-hop; analisar e discutir a

dialética do local e do global tendo como referencial a cultura hip-hop; e entender as

representações do Cabula a partir do discurso hip-hop.

A escolha do Cabula se deu, sobretudo, pelo fato de já conhecer alguns

adeptos da cultura hip-hop do bairro, como Zezé Olukemi e Aspri, o primeiro já o

conhecia pessoalmente, Aspri, só por meio das redes sociais, e ambos se

mostraram solícitos a contribuir com a execução do trabalho; e também pelo fato de

saber que o hip-hop no Cabula é bem articulado a partir das redes locais.

Acreditamos que o desenvolvimento dessa pesquisa seja relevante em

termos teóricos e sociais, uma vez que insere na agenda da pesquisa geográfica o

papel do lugar no processo de apropriação da cultura hip-hop. Embora alguns

trabalhos tenham sido recentemente defendidos nos Programas de Pós-Graduação

em Geografia sobre a cultura hip-hop, como a dissertação de Oliveira (2006), e

outros publicados em periódicos científicos da área, como o de Turra Neto (2009,

2010) e Rodrigues (2009), abordando a territorialização da cultura hip-hop e

reconhecendo a importância do lugar, Com exceção de Turra Neto (2009, 2010) eles

não explicam e nem problematizam, a nosso ver, a importância do lugar dentro

desse processo. Além disso, esta pesquisa de mestrado pretendeu trazer para o

debate da geografia uma abordagem não apenas cultural, mas também social do

lugar, tendo como objeto empírico a cultura hip-hop. Assim, espero com essa

pesquisa contribuir para a discussão sobre a abordagem cultural e social na

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geografia, servindo de base para estudos posteriores, não apenas da ciência

geográfica, mas das ciências humanas e sociais de forma mais abrangente.

O presente trabalho é uma pesquisa qualitativa sustentada por interpretações

de teorias e pela observação. O enfoque epistemológico adotado foi o materialismo

dialético, se aproximando em alguns momentos do fenomenológico, como proposto

por Serpa (2006), com o objetivo de compreender o conceito de lugar a partir das

duas óticas possíveis, tanto a dialética, quanto a fenomenológica. Para o autor,

existe a possibilidade de se trabalhar metodologicamente com ambos os métodos,

pois apesar de serem bastante distintos, eles não se excluem e podem ser de

grande valia para a pesquisa em geografia, já que:

Enquanto métodos podem funcionar como estratégias complementares, buscando-se sempre a construção da síntese sujeito-objeto, própria ao ato de conhecer, ora utilizando-se da história enquanto categoria de análise, ora buscando-se intencionalmente abstrair a historicidade dos fenômenos, visando à explicitação de sua ‘essência’ (SERPA, 2006. p. 20).

Vale ressaltar que o nosso objetivo em utilizar ambos os métodos não é fazer

uma miscelânea metodológica, mas sim uma proposta de se analisar o objeto a

partir de duas óticas distintas. O lugar na ótica do materialismo dialético nos

possibilitou compreender as tensões entre o global e o local e entre o lugar e o

mundo, tendo o hip-hop como o objeto para nossa análise, possibilitando o

entendimento de que a apropriação da cultura hip-hop pela juventude soteropolitana

acontece dentro de um ambiente tenso, marcado pelas contradições da ordem

global. Já o lugar na perspectiva fenomenológica permitiu uma maior aproximação

do objeto, a fim de entender como o mundo vivido e o lugar dessa juventude se

manifestam dentro do discurso e das práticas dos jovens hiphoppers, o que também

nos permitiu fazer uma leitura da percepção de bairro, aqui entendido como lugar

vivido e sentido (SERPA, 2007) desses jovens.

As informações foram coletadas a partir da construção de um corpus de

pesquisa, o que, segundo Bauer e Aarts (2008), significa uma escolha sistemática

de alguns procedimentos técnicos na coleta de dados, como a análise de textos, de

músicas, observação, entrevistas e quaisquer outros materiais significantes da vida

social. Em nosso trabalho foram utilizados, para a construção do nosso corpus de

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pesquisa, o levantamento bibliográfico, a observação não-participante, entrevistas

semi-estruturadas e a aplicação de enquetes.

Levantamento bibliográfico: consistiu em levantamento e leitura de

livros, teses, dissertações, periódicos e artigos científicos, que trataram de

nosso objeto e/ou dos conceitos que foram discutidos na dissertação.

A entrevista semi-estruturada, também chamada de entrevista em

profundidade: ao invés de responder à pergunta por meio de diversas

alternativas pré-formuladas, visa obter do entrevistado o que ele considera

como aspectos mais relevantes de determinados problemas. No nosso caso,

perguntas foram direcionadas de forma indireta com o intuito de alcançar as

respostas para nossas questões de pesquisa em relação ao movimento hip-

hop, para isso foi formulado um tópico guia, que, para Gaskel (2008), é parte

vital do processo de pesquisa. Vale salientar que o tópico guia não é uma

série extensa de perguntas específicas, mas um conjunto de títulos de

parágrafos que funciona como um lembrete para o entrevistador. Os

entrevistados selecionados foram alguns membros do grupo pesquisado,

Rapaziada da Baixa Fria – RBF, ex-integrantes do grupo e alguns

colaboradores, como dançarinos e grafiteiros, objetivando, assim, obter

informações dos entrevistados a respeito do lugar, do bairro, da cultura hip-

hop, de seu comportamento e suas motivações. É importante deixar claro que

a finalidade real da pesquisa qualitativa, nesse caso da entrevista, não é

contar opiniões ou pessoas, mas, ao contrário, é explorar o espectro de

opiniões e as diferentes representações sobre o assunto em questão

(GASKELL, 2008).

Enquetes, uma espécie de mini-questionário com perguntas diretas que

demandam respostas imediatas: aplicamos 15 enquetes por evento, em 6

eventos, totalizando 90 enquetes. Esse instrumento possibilitou quantificar

algumas informações, realizar e uma maior aproximação com o público e com

outros jovens que fazem parte do movimento hip-hop.

A respeito dos nossos entrevistados foram 11 no total, os quais entrevistamos

durante o segundo semestre de 2011 e o primeiro semestre de 2012: 4 grafiteiros, 2

b.boys, 4 rappers e 1 Dj, como podemos observar no quadro 1. Procurei entrevistar

os praticantes dos três elementos do hip-hop: o rap, o break e o grafite. Nesse

sentido, Aspri foi peça-chave para me aproximar dessas pessoas, pois ele ou me

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passou o contato ou me apresentou o entrevistado, servindo como um fio condutor

da pesquisa de campo. O interessante é que, nesse processo, Aspri, de forma

inconsciente, ou não, acabou fazendo sua delimitação do bairro do Cabula, haja

vista que pedi a ele para me indicar algumas pessoas do bairro que pudessem

contribuir para o trabalho, e ele me indicou moradores de São Gonçalo, Cabula 1,

Sussuarana, Estrada das Barreiras, Beiru e Engomadeira, mostrando, de alguma

forma, seu “recorte” do Cabula.

Quadro 1: Entrevistados para elaboração do trabalho

Nome Elemento Grupo Data da entrevista

Aspri Rap Rapaziada da Baixa Fria

– RBF

13/05/2011

Black Rai Rap Rapaziada da Baixa Fria

– RBF

10/08/2011

Charles Brak Grafite Colabora com o

Rapaziada da Baixa Fria

– RBF

26/07/2011

Denis Sena Grafite Independente 08/10/2011

Dj Joe Rap Ex-integrante do

Rapaziada da Baixa Fria

– RBF

10/09/2011

Heider Rap Ex-integrante do

Rapaziada da Baixa Fria

– RBF

03/03/2012

Jasf Rap Os Agentes 28/07/2011

Marcos Costa Grafite Independente 25/08/2011

Toni Break Atitude Dance 17/03/2012

Valmir Break Atitude Dance 17/03/2012

Zezé Olukemi Grafite e Rap Opanijé 06/10/2011

Elaboração: Célio Santos

O interessante de se ressaltar é que todos os entrevistados se conhecem,

fazem parte da mesma rede de amizades, tanto é que, durante as entrevistas, eles

sempre perguntavam se eu já tinha conversado com outro conhecido, sempre

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sugerindo um nome novo, que, por coincidência, Aspri já tinha me passado o contato

anteriormente.

É claro que no quadro 1 só apresentamos os hiphoppers que nos concederam

entrevista, e que o universo dos hiphoppers no Cabula é bem maior do que essas 11

pessoas que entrevistamos. Por isso devemos destacar as conversas informais com

as mais variadas pessoas, principalmente com aquelas que, por motivos pessoais,

não queriam falar diante do gravador, haja vista que estas conversas, assim como

as entrevistas, serviram para elucidar várias questões e dúvidas do pesquisador em

relação à cultura hip-hop.

Sobre as enquetes, todas elas, 90 no total, foram aplicadas durante os

eventos de hip-hop no Cabula, cuja lista é apresentada no quadro 2, eventos estes

que iam de show de rap a performance de break, sendo que a maior parte desse

público era composto por homens, na faixa etária entre 15 e 35 anos, moradores do

Cabula e das adjacências. Foi durante a aplicação das enquetes que pude ter um

contato mais intenso com o público hip-hop, desenvolver conversas informais com

esses jovens e observar todo o trabalho de produção e organização de um evento.

Quadro 2: Eventos nos quais foram aplicadas as enquetes

Evento Local Data

Reação Sankofa Associação de moradores

do conjunto ACM

09/07/2011 (sábado)

Hip-Hop no Parque Parquinho do Beiru –

Tancredo Neves

23/07/2011 (sábado)

Hip-Hop de Louco pra

Louco

Quadra poliesportiva de

Narandiba

07/08/2011 (domingo)

Batalha de Mc´s Praça da Engomadeira 16/10/2011 (domingo)

Hip-Hop da Onça Final de linha de

Sussuarana Velha

11/12/2011 (domingo)

Break na rua Quadra poliesportiva de

Narandiba

18/03/2012 (domingo)

Elaboração: Célio Santos

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A partir da análise do quadro 2 podemos notar que os eventos de hip-hop no

bairro do Cabula são organizados no sábado ou no domingo e em espaços públicos:

praças, estacionamentos, parques e quadras esportivas. Os eventos acontecem

sempre nos finais de semana pelo fato da maioria dos frequentadores estarem

ocupados, com trabalho ou escola, durante a semana. Para esses jovens os eventos

de hip-hop servem como ambientes de encontro com amigos, uma forma de

entretenimento nos finais de semana: a partir da aplicação das enquetes pudemos

constatar que cerca de 65% desses jovens frequentam os eventos em busca de

diversão e “de curtição com os amigos”.

Em todos os eventos que participamos no Cabula não tivemos a oportunidade

de observar os elementos do hip-hop (o break, o rap e o grafite) reunidos: o máximo

que chegamos a presenciar foi o encontro entre o rap e o break em apenas dois

eventos, o Reação Sankofa e o Break na Rua. Embora isso possa passar a

sensação que esses elementos atuam de forma dissociada, observamos que

sempre estão intimamente ligados, porque o que os une é a militância e o discurso

comum, como vamos analisar ao longo da dissertação, principalmente no capítulo 4.

A Dissertação que se segue está dividida em 4 capítulos. Nesse primeiro

capítulo introdutório apresentamos a dissertação e como o objeto de estudo foi

construído pelo pesquisador.

No segundo capítulo procuramos fazer uma discussão teórica dos conceitos

norteadores da pesquisa: do conceito de lugar, para o qual fizemos um breve

levantamento nas correntes do pensamento geográfico, dando ênfase às correntes

crítica radical e humanista, mostrando como o conceito de lugar vem sendo

trabalhado e debatido na geografia. Outro conceito problematizado é o de juventude,

este, por sua vez, não é um conceito nativo da geografia, mas, nos últimos anos

vem ganhando espaço nas discussões geográficas: fomos buscá-lo na sociologia, a

fim de fazer uma breve discussão, destacando suas principais vertentes; e, no final

desse capítulo, buscamos estabelecer uma relação entre os conceitos de lugar e

juventude.

No terceiro capítulo é apresentada uma análise multiescalar sobre a cultura

hip-hop, sua origem nos Estados Unidos e o contexto urbano de Nova York no

período, haja vista que os jovens afro-americanos e caribenhos residentes do Bronx

viviam em um clima de tensão e revolta, marcados por diversas desilusões sociais e

políticas resultantes da reestruturação urbana da cidade de Nova York. A

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pesquisadora estadunidense Tricia Rose (1997) afirma que durante esse período a

juventude americana sofria com as altas taxas de desemprego e o acesso limitado

aos serviços públicos, como saúde e educação, uma vez que as antigas instituições

locais de apoio foram à falência, e a ausência de políticas públicas voltadas para as

minorias contribuiu, dentre outros fatores, para que os jovens buscassem outros

meios que superassem a crise social, que não se refletia apenas na economia do

país, mas também no cotidiano da sociedade, principalmente da juventude. Nesse

mesmo capítulo nos propormos a discutir a difusão da cultura hip-hop e sua

apropriação pela juventude brasileira.

No quarto capítulo são discutidos mais efetivamente os resultados de nossas

pesquisas de campo, e nos quais fazemos um breve relato sobre a cultura hip-hop

em Salvador e a origem dos primeiros grupos; em seguida discutimos o hip-hop e a

sua relação com o lugar, mais propriamente, no bairro do Cabula.

E, nas considerações finais, trazemos determinadas posições com relação

aos elementos aqui apresentados e algumas proposições de estudos futuros, tanto

com relação à cultura hip-hop quanto ao tema da juventude.

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2 SOBRE LUGAR E JUVENTUDE: ALGUMAS APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS

O capítulo que se segue tem como objetivo fazer uma discussão e reflexão

teórica sobre os conceitos de lugar e juventude, procurando estabelecer algumas

aproximações possíveis entre eles. Vale ressaltar que ao contrário do conceito de

lugar, nativo da Geografia, o conceito de juventude não é um conceito geográfico.

Ressalte-se que alguns geógrafos vêm, nos últimos anos, buscando problematizá-lo,

e, com este intuito, fomos buscá-lo no seio das Ciências Sociais.

O lugar, um dos conceitos-chave da geografia, ao lado de espaço, território,

região e paisagem, vem, nos últimos anos, ganhando maior visibilidade na ciência

geográfica. Segundo Holzer (1999), o lugar só ganhou sentido nos estudos

geográficos a partir da década de 1980, quando o mesmo passou a ser conceituado,

pois até então o lugar era visto apenas em um sentido locacional, como área, sendo

considerado em um plano secundário. No entanto, Marengo (2010) contraria essa

afirmação de Holzer (1999), ao observar que geógrafos como Vidal de La Blache,

representante da chamada Geografia Clássica, anterior a 1980, já desenvolvia,

mesmo que de forma tímida, estudos sobre o lugar.

Também sobre Vidal de La Blache, Cresswell (2004) observa que apesar do lugar não ser central na sua teoria, o foco acerca do conceito de genre de vie (modo/ gênero de vida) produz trabalhos que se ocupam da interelação entre a esfera natural e cultural em áreas específicas da França. Na Geografia francesa essa forma de caracterizar lugares particulares inspiraria a Geografia Humanística mais tarde (MARENGO, 2010, p. 23 e 24).

Buttimer (1985) também encontra nos estudos de Vidal de La Blache sobre os

gêneros de vida um sentido de lugar: “muito embora as fronteiras fisiográficas

fossem enfatizadas, o padrão de vida (genre de vie) modelou e foi modelado pelo

sentido de lugar” (BUTTIMER, 1985, p. 177).

Para Fonseca (2001), o conceito de lugar emerge diante do contexto

provocado pelo progressivo avanço da globalização. Para o autor, o lugar pode ser

analisado sob a ótica de duas distintas abordagens: a primeira relacionada com a

geografia humanista, que tem como base epistemológica a fenomenologia, que

procura valorizar o caráter intencional, experiencial e afetivo pelo qual o indivíduo ou

grupo de indivíduos estabelecem laços de identidade com uma porção do espaço, o

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lugar sob essa ótica é concebido como uma expressão de vivência, carregada de

simbologia que é percebida e vivenciada por diversos grupos humanos.

A segunda abordagem, ligada à geografia crítica radical, tem por sua vez uma

análise centrada no materialismo dialético, considerando, assim, o lugar como chave

para a compreensão das transformações concretas engendradas pelo progressivo

processo de globalização. Neste caso, o lugar é interpretado como expressão

geográfica da singularidade, um espaço de resistência e de contradição da ordem

global (FONSECA, 2001).

Com relação ao conceito de juventude, é um tema relativamente “novo” nas

pesquisas acadêmicas, haja vista que os primeiros estudos sobre juventude só

vieram a aparecer no pós-guerra, devido à longevidade da população e à eclosão de

diversos movimentos juvenis de cunho político.

O tema da juventude começou a ser preocupação fundamental das Ciências Sociais brasileiras a partir da década de 1950, para entender as causas desses interesses é preciso compreender as situações pelas quais passavam o país e o mundo. [...] A leitura dominante era a de que parcela dos jovens poderia, por uma condição natural a essa fase da vida, expressar atitudes rebeldes e mesmo delinquentes. Atitudes essas, que se manifestavam no rock, na filosofia existencialista, na geração beat, nos trajes e na aproximação com os ideais da revolução cubana (CASSAB, 2010, p. 44).

De fato, a juventude enquanto conceito só surge a partir da década de 1950,

no entanto a própria Cassab (2010) e Abramovay; Castro (2002) nos advertem que,

anterior a esse período, o tema, juventude, já era debatido em âmbito legal,

aparecendo sempre como um problema de cunho social a ser enfrentado e resolvido

pelas autoridades competentes.

Foi no século XIX, e fundamentalmente em sua segunda metade, que se iniciou, no Brasil, a produção do discurso sobre juventudes e jovens. Também nesse século se institucionalizaram a infância e a juventude pobres sob o olhar da justiça e da filantropia (CASSAB, 2010, p. 41).

Atualmente, a Juventude é definida num sentido legal pela Organização Ibero-

Americana da Juventude e a Organização Internacional da Juventude; a Unesco

define juventude como o ciclo etário de 15 a 24 anos. Contudo, para Abramovay e

Castro (2002), tais limites são arbitrários e generalistas, mesmo no sentido legal,

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pois essa definição acaba se tornando complicada se a analisarmos juridicamente,

pois engloba jovens de diversos países com estatutos legais diferentes.

É preciso deixar claro que construir uma definição sobre o conceito de

juventude não é fácil. Dayrell (2003) considera que os critérios que constituem o

termo são históricos, espaciais e culturais, convergindo para a mesma consideração

que já havia sido feita por Sposito (1994). Devido a isso, o conceito de juventude se

tornou bastante polissêmico. Sposito (1997) reconhece que a própria definição do

conceito de juventude encerra um problema sociológico passível de investigação,

aponta o modo como se dá a passagem da liberdade infantil para a autonomia da

vida adulta. Para essa autora, em seus estudos sobre juventude, a duração e as

características do ser jovem têm variado nos processos e formas de abordagem.

Chamamos a atenção para o fato de que o presente trabalho não ter como

intenção fazer uma extensa e exaustiva revisão bibliográfica sobre os conceitos de

juventude e lugar, mas uma breve discussão sobre o tema, levantando as principais

correntes teórico-metodológicas que o norteiam. Nas seções seguintes iremos

debater de forma ampliada os conceitos de lugar e juventude.

2.1 O CONCEITO DE LUGAR NA GEOGRAFIA

a) Geografia Humanista, o lugar como mundo vivido

A Geografia Humanista emerge, em torno dos anos 1960, enquanto escola do

pensamento geográfico, em contraposição ao método positivista, tendo como

objetivo refletir sobre os fenômenos geográficos com o propósito de alcançar um

melhor entendimento do homem e de sua condição (TUAN, 1985). Dentro desse

contexto, as questões culturais e literárias ganham amplo destaque na escola

Humanista sendo que “[...] consideram a arte como elemento de mediação entre a

vida e o universo das representações” (GOMES, 1996, p.314).

Os geógrafos da corrente humanista além de trabalhar numa perspectiva

cultural e simbólica adicionam também as suas abordagens elementos materiais e

concretos, uma vez que, por muito tempo, a geografia (clássica) negligenciou em

suas abordagens os laços de vizinhança, o estoque de conhecimento, a

agradabilidade, a topofobia, a fixação nos espaços e lugares, as experiências

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cotidianas e os elos que unem as pessoas ao meio ambiente (MELLO, 2005, p.38),

o que de fato se contrapõe aos modelos e métodos da geografia clássica.

O principal método utilizado, não o único, como nos esclarece Gomes (1996),

pelos geógrafos humanistas é o fenomenológico, ou fenomenológicos, haja vista a

existência de diversas concepções de fenomenologia que vão de Edmund Hussel a

Gaston Bachelard e Jean Paul Sartre, entre outros. Uma das primeiras referências à

fenomenologia no âmbito da ciência geográfica está nas obras do geógrafo norte

americano Carl Ortwin Sauer.

Contudo, Sauer não utilizou a expressão fenomenológico para manifestar qualquer engajamento com esta corrente filosófica. Esta expressão parece querer simplesmente significar, no discurso de Sauer, a importância que ele dava aos aspectos de ordem cultural no estudo das paisagens (GOMES, 1996, p. 326).

Para Gomes (1996), é somente nos anos 1970, com as sucessivas

publicações dos artigos de Relph e de Yi-Fu Tuan, que a aplicação do método e dos

conceitos da fenomenologia à Geografia se manifesta com clareza. Vale salientar

que o método fenomenológico já se manifestava na geografia de forma

sistematizada anterior a Tuan e Relph, haja vista que Eric Dardel (2011 [1952]) em

sua obra clássica “L’homme et la terre1” já se dedicava ao estudo fenomenológico

em Geografia.

Eric Dardel (2011) foi um dos primeiros geógrafos a dar um sentido ao

conceito de lugar e sua operacionalização na geografia. Em “O homem e a terra”,

Dardel já se posicionava de forma crítica ao método positivista e a sua aplicação

pelos geógrafos, ao afirmar que o espaço não era geométrico, tecendo diversas

críticas a essa forma de compreensão do espaço.

O espaço geométrico é homogêneo, uniforme, neutro. Planície ou montanha, oceano ou selva equatorial, o espaço geográfico é feito de espaços diferenciados. O relevo, o céu, a flora, a mão do homem dá a cada lugar uma singularidade em seu aspecto. O espaço geográfico é único; ele tem nome próprio: Paris, Champagne, Saara, Mediterrâneo (DARDEL, 2011, p. 2).

Os geógrafos da escola humanista elegeram o lugar como o principal

conceito em suas análises, sendo considerado como o mundo vivido, dentro do qual

a experiência é construída (BUTTIMER, 1985). 1 O Homem e a terra, livro clássico da geografia humanista, traduzido para o português quase 50 anos depois, em

2011, por Werther Holzer.

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Os geógrafos fenomenologistas, como os da escola do mundo vivido, procuram valorizar o conceito clássico de lugar. Este conceito toma no discurso humanista a forma de um ponto no espaço onde todas as significações culturais e individuais se concentram. Segundo Tuan, o lugar “encarna a experiência e as aspirações de um povo”. Da mesma maneira, Buttimer define o lugar como sendo o espaço do cotidiano, onde o corpo se coloca em relação direta e harmônica com o mundo (GOMES, 1996, p.329).

O lugar, na concepção fenomenológica pressupõe familiaridade, afetividade,

envolvimento e experiências diretas. Para Bossé (2004), o lugar na geografia

humanística é considerado como um suporte essencial da identidade cultural,

retirando o caráter naturalista que tinha o mesmo, evidenciando, assim, o vínculo

fenomenológico e ontológico que ancora a pessoa humana: “O lugar para o método

fenomenológico não é algo simplesmente objetivo, mas principalmente construído

pelo sujeito” (MARENGO, 2010, p.51).

Relph (1979) concebe o lugar como um mundo vivido, culturalmente

posicionado entre as categorias paisagem e espaço; considera também que o lugar

talvez seja o mais fundamental dos três, porque focaliza espaços e paisagens em

torno das intenções e experiências humanas. Para o autor, nós conhecemos o

mundo pré-conscientemente através e a partir dos lugares nos quais vivemos e

temos vivido, lugares esses que clamam nossas afeições e obrigações.

Os lugares que conhecemos e gostamos são todos lugares únicos e suas particularidades são determinadas por suas paisagens e espaços individuais e por nosso cuidado e responsabilidade, ou ainda, pelo nosso desgosto, por eles. Se conhecemos lugares com afeição profunda e genealógica, ou como pontos de parada numa passagem através do mundo, eles são colocados à parte porque significam algo para nós e são os centros a partir dos quais olhamos, metaforicamente pelo menos, através do espaço e para as paisagens. E se nos encontrarmos aprisionados pelas circunstâncias ou ambientes de nossa própria escolha, estamos sempre dentro do lugar que é colorido por nossas intenções e experiências, que também as modificam (RELPH, 1979, p. 17-18).

Para Tuan (1983), lugar é diferença, pois é conhecido e dotado de valor, o

espaço é o indiferenciado, uma vez que não é conhecido, lugar e espaço são duas

categorias distintas e que se unem através da experiência. O espaço é liberdade, o

lugar é segurança, enquanto o espaço é movimento, o lugar é uma pausa; para

Tuan, o lugar se caracteriza como uma pausa, pois “nós paramos para atender a

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exigências biológicas; cada pausa estabelece uma localização como sendo

significativa, transformando-a em lugar” (TUAN, 1985, p.149).

Holzer (1999) complementa o entendimento de Tuan do lugar como uma

pausa:

Isso não quer dizer no entanto que o lugar esteja além da história ou seja atemporal, significa sim, que o lugar denota a relação inseparável entre espaço e tempo: a pausa, ao permitir a localização, transforma-se em um pólo estruturador do espaço, o que implica no estabelecimento de uma “distância”, sendo este um conceito, ao mesmo tempo temporal e espacial (HOLZER, 1999, p.73).

Buttimer (1985), assim como Relph (1979), concebe o lugar como um mundo

vivido, onde corpo e mundo encontram-se engajados. Buttimer idealiza o lugar como

centro significativo, onde os atores envolvidos manifestam suas práticas, criam suas

representações e ligações afetivas e simbólicas, advindo do lugar toda a construção

do imaginário social intersubjetivo, sendo ele, o mundo vivido.

[...] o sentido de mundo vivido emerge como facetas pré-conscienciosamente dadas da experiência diária de lugar. Retorna-se à noção de gênero de vida e aos padrões rotineiros aceitos de comportamento e interação. De ambas, geografia e fenomenologia, emerge a noção de ritmo: o comportamento diário demonstra uma busca pela ordem, predibilidade e rotina, bem como a busca da aventura e mudança. O mundo vivido diário, visto sob o ponto vantajoso do lugar, poderia ser compreendido como uma tensão (orquestração) de forças estabilizantes e inovativas, muitas das quais não poderiam ser conscientemente apreendidas até que uma tensão ou doença revelasse alguma desarmonia entre a pessoa e o mundo (BUTTIMER, 1985, p.180).

As análises de Anne Buttimer estão centradas em uma trama sustentada por

um tripé: corpo, mundo e lugar, inspirada muitas das vezes em filósofos como

Merleau-Ponty e Husserl, como a mesma deixa claro em um dos vários trechos da

sua obra.

O relacionamento entre a pessoa e o mundo não pode ser plenamente descrito em termos de conexões causais; por esse motivo o corpo não é um objeto. Similarmente, a consciência do corpo não é um pensamento; por esse motivo sua inerência não é totalmente clara. Não podemos conhecer inteiramente o corpo, exceto através da vida que vivemos dentro dele, no mundo (BUTTIMER, 1985, p. 176).

Anne Buttimer entende o mundo a partir de um viés fenomenológico.

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‘Mundo’, para os fenomenologistas, é o contexto dentro do qual a consciência é revelada. Não é ‘um mero mundo de fatos e negócios... mas um mundo de valores, de bens, um mundo prático’. Está ancorado num passado e direcionado para um futuro; é um horizonte compartilhado, embora cada indivíduo possa constituí-lo de um modo singularmente pessoal (BUTTIMER, 1985, p.172).

Devido a isso, a principal crítica de Buttimer se direciona ao positivismo, pois

os procedimentos científicos de cunho positivista falharam ao tentar promover

descrições adequadas da experiência, por causa de sua separação implícita do

corpo e da mente dentro da pessoa humana (BUTTIMER, 1985).

Holzer (1999) propõe que o lugar seja definido sempre como um centro de

significados e, por extensão, um forte elemento de comunicação, de linguagem,

chamando a atenção para que o mesmo nunca seja reduzido a um símbolo despido

de sua essência espacial, sem a qual irá torna-se qualquer coisa, para a qual a

palavra “lugar” é, no mínimo, inadequada.

b) Geografia Crítica Radical, o lugar como insurgente

Assim como a corrente Humanista, a Geografia Crítica Radical surge com o

propósito de romper com o método positivista e com os modelos de análise da

corrente lógico-formal, com a justificativa de que o saber geográfico produzido pelas

correntes anteriores era fortemente influenciado pela ideologia das classes

dominantes e se tratava de um saber estratégico manipulado pelos detentores do

poder (GOMES, 1996).

O discurso crítico considera, portanto, a ciência em sua forma dominante como um instrumento de alienação social, e os métodos positivistas como procedimentos eficazes para reproduzir os modelos de desigualdade social e espacial. Esta critica é uma das mais difundidas nos textos dos geógrafos radicais, que queriam demonstrar, assim, a grande ruptura, a verdadeira revolução efetuada pelo horizonte crítico em oposição à ciência “tradicional” positivista (GOMES, 1996, p. 278).

A corrente Crítica Radical inaugura também um discurso político engajado,

com isso não queremos afirmar que as escolas anteriores não tinham um discurso

político, muito pelo contrário, mas é com a Crítica Radical que nasce uma geografia

militante, que se posiciona de forma crítica diante das condições sociais, políticas e

econômicas do mundo capitalista.

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Todo o discurso da corrente Crítica da Geografia é pautado no materialismo

histórico e dialético proposto por Marx, uma vez que o método em discussão,

“permite a passagem da imagem caótica para uma estrutura racional, organizada em

um sistema de pensamento [...], pois é a busca dos elementos essenciais comuns

que estruturam o real” (GOMES, 1996, p.281). Segundo Gomes, podemos identificar

dois períodos um pouco distintos na abordagem do método marxista na Geografia.

O primeiro, o qual os geógrafos tomam o marxismo ipsis litteris, tendendo à

predominância dos fatores econômicos na organização da vida social e espacial,

nesse momento existe um aumento considerável nos estudos regionais,

principalmente no que tange ao desenvolvimento desigual e combinado das regiões.

E, no segundo, os geógrafos sentiram que era necessário acrescentar em seus

estudos uma dimensão espacial à análise marxista, dimensão muitas vezes

negligenciada em detrimento de uma explicação histórica ou econômica do fato, a

contribuição de Henri Lefebvre foi fundamental para a inclusão de temas como

cotidiano, cultura e cidadania, que emergiram no discurso dos geógrafos, uma vez

que ele “distinguiu uma dimensão essencial da construção social da realidade, a

produção do espaço, através de um modelo definido por uma análise fundada sobre

a dinâmica própria à espacialidade” (GOMES, 1996, p.300).

É a partir do segundo momento, apontado por Gomes (1996), que o conceito

de lugar irá emergir na corrente Crítica Radical com o propósito de se compreender

os efeitos da homogeneização engendrada pelo processo de globalização,

principalmente nas metrópoles dos países subdesenvolvidos, se interessando

especialmente na insurgência e na subversão do lugar aos modelos ditos racionais

promovidos pela globalização.

[...] o lugar não pode ser visto como passivo, mas como globalmente ativo, e nele a globalização não pode ser enxergada apenas como fábula. O mundo, nas condições atuais, visto como um todo, é nosso estranho. O lugar, nosso próximo, restitui-nos o mundo: se este pode se esconder pela sua essência, não pode fazê-lo pela sua existência. No lugar, estamos condenados a conhecer o mundo pelo que ele já é, mas também, pelo que ainda não é. O futuro, e não o passado torna-se a nossa âncora (SANTOS, 2008a, p.163).

Milton Santos, como já havia sido observado por Serpa (2007a) e reafirmado

por Marengo (2010), procura estabelecer uma aproximação entre os métodos

fenomenológico e dialético, com o propósito de ter um entendimento aprofundado do

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lugar, aliando o materialismo funcional-simbólico ao existencialismo, como podemos

observar, “[...] cada lugar se define tanto pela sua existência corpórea, quanto pela

sua existência relacional” (SANTOS, 2008a[2005], p.159).

E continua de forma mais explícita em outra publicação:

Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contrastes, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. [...] Os lugares, desse ponto de vista, podem ser vistos como um intermédio entre o Mundo e o Indivíduo (SANTOS, 2008b[1996], p. 314).

Santos (2008b), ao descrever a força do lugar, argumenta que enquanto a

ordem global é a des-territorialização, a ordem do lugar é o inverso, ou seja, é a

reterritorialização, devido ao fato de reunir em uma mesma lógica interna: homens,

empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e formas geográficas, sendo o

cotidiano o responsável pela união de todos esses elementos. Como afirma o autor,

“cada lugar é, ao mesmo tempo objeto de uma razão global e de uma razão local,

convivendo dialeticamente” (SANTOS, 2008b, p. 339).

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 2008b, p. 322).

Dentro desse contexto, Carlos (2007a, 2007b) converge para a mesma ideia

de Santos (2008b), mostrando o caráter social que permeia o lugar e sua

confrontação com as forças provenientes da globalização. Para a autora, o lugar

deve ser entendido por intermédio de uma dimensão interna, vinculado a sua

história, e externa, que se opõe e se submete ao processo de globalização. É no

lugar que as ações da globalização se materializam, e do lugar é possível entender

o mundo com suas variadas dimensões e contradições.

O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante – identidade – lugar. A cidade, por exemplo, produz-se e revela-se no plano da vida do indivíduo. Este plano é aquele do local. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos do uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o espaço

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passível de sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo (CARLOS, 2007a, p. 17).

Portanto, Carlos (2007b) traz algumas pistas para uma maior compreensão

do lugar dentro da Geografia Crítica. Para a autora, o estudo do lugar abre a

possibilidade de um maior entendimento do espaço geográfico enquanto produto

histórico e social, pois as relações sociais realizam-se concretamente através da

relação espaço-tempo, iluminando assim o plano do vivido. Portanto, nas palavras

da autora, “o plano do lugar pode ser entendido como a base da reprodução da vida

e espaço da constituição da identidade criada na relação entre os usos, pois é

através do uso que o cidadão se relaciona com o lugar e com o outro [...]” (CARLOS,

2007b p. 43).

Damiani (1999) também faz uma leitura crítica do lugar, ao abordá-lo como

particular e diferente, se tratando do mundo, graças ao desenvolvimento desigual da

economia capitalista.

O lugar acima de tudo não é o particular perdido no mundo, é o diferente. Nasce do embate com os outros lugares, como totalidade, com a totalidade dos lugares, o mundo. Coloca-se no mundo para ser o lugar. O que rege a existência do lugar, como do cotidiano, é o desenvolvimento desigual (DAMIANI, 1999, p. 170).

Serpa (2011a) levanta alguns questionamentos interessantes sobre a

existência dos lugares como espaços vividos e da experiência, nas metrópoles

capitalistas: “Parece, no entanto, que ‘lugares’ existem e persistem nas ‘brechas’

metropolitanas, sobretudo nas áreas populares da cidade” (SERPA, 2011a, p.23).

Nos bairros populares das metrópoles capitalistas são os moradores os verdadeiros agentes de transfornação do espaço. Eles se articulam em “rede”, não em uma rede única, mas em redes superpostas (SERPA, 2011b, p.98).

Serpa (2011a), assim como Santos (2008b), procura estabelecer, através do

estudo do lugar, um diálogo possível e interessante entre a fenomenologia e a

dialética.

Uma fenomenologia do lugar abre uma porta de entrada para a análise do espaço geográfico, mas não esgota em toda a sua potencialidade a operacionalização do conceito no âmbito da Geografia. Como fenômeno da experiência humana, o lugar também expressa e condiciona a rotina, os confrontos, os conflitos e as

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dissonâncias, possibilitando uma leitura da vida cotidiana, com seus ritmos e contradições (SERPA, 2011a, p. 24)

O lugar se enuncia2, para Serpa (2011a), “como ‘plataforma’ para a

construção de ações e discursos de cunho eminentemente espacial, que perpassam

variadas escalas e recortes, abrindo e articulando os lugares para com o mundo”

(SERPA, 2011a, p.12).

A respeito do lugar na Geografia Crítica, muitos autores o consideram como

resistente ao processo de globalização, entretanto preferimos considerá-lo não como

resistência, uma vez que o sentido de resistência deixa subentendido a formação de

um lugar “fechado”, que resiste ao processo de globalização, e, por esse fato, não

estabelece um diálogo com o mundo. Isso seria, de certa forma, incoerente com a

nossa proposta de estudo, e até mesmo com o método proposto, que entende o

lugar como o par dialético do mundo.

Sob essa ótica iremos considerar o lugar como dialógico, subversivo e

insurgente das práticas globais, sendo analisado a partir do nosso objeto de estudo,

a cultura hip-hop, que nos possibilita perceber que existe uma interação dialética

entre lugar e mundo e entre o local e o global dentro do processo de apropriação da

cultura hip-hop. Precisamos estar cientes que esse mesmo lugar da insurgência, da

subversão e da comunicação intensa, também é o lugar da rotina, da conformação,

da alienação e da informação em detrimento da comunicação.

2.1.1 Lugar e Identidade

Bossé (2004) traz em seus estudos a necessidade das pesquisas dos

geógrafos se centrarem no lugar, uma vez que essa categoria espacial nos permite

uma maior compreensão da identidade, já que a mesma assume um alcance

geográfico novo, devido à mediação conceitual do lugar, pois ele participa de forma

ativa da vida dos indivíduos e dos grupos, sendo que influencia e até mesmo

constrói, tanto subjetiva como objetivamente, identidades culturais e sociais.

Diante dessa afirmativa de Bossé (2004) e dos nossos objetivos na pesquisa,

temos a necessidade de problematizar o conceito de identidade: segundo o próprio

Bossé, o lugar é o foco da identidade, o qual ultimamente vem sendo objeto de

interesse dos geógrafos.

2 Utiliza-se aqui uma palavra própria do vocabulário do autor.

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É preciso salientar que o conceito de identidade, apesar de ter sido, nos

últimos anos, bastante utilizado por geógrafos, é um conceito sociológico e bastante

complexo e polissêmico como deixa claro Bauman:

A identidade – sejamos claros sobre isso – é um “conceito altamente

contestado”. Sempre que se ouvir essa palavra pode se estar certo

de que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar

natural da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e

dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da

refrega (BAUMAN 2005, p. 83).

Hall (1997) afirma que:

O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto a prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas (HALL, 1997, p. 9).

A identidade, segundo Woodward (2007), é edificada sempre em uma

conjuntura marcada pela relação de poder e indiferença tanto social como simbólica,

sendo que, para existir uma identidade, tem que existir o par dialético, a diferença.

Silva (2007) também segue essa mesma linha de raciocínio, ao afirmar que a

identidade e a diferença estão em uma relação de estreita dependência, como

resultado de um processo de produção simbólica e discursiva.

Já sabemos que a identidade e a diferença são o resultado de um

processo de produção simbólica e discursiva. O processo de

adiamento e diferenciação linguísticos por meio do qual elas são

produzidas está longe, entretanto, de ser simétrico. A identidade, tal

como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua

definição-discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a

relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são

impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um

campo sem hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2007 p. 81).

Hall (2007) converge para a mesma ideia defendida por Woodward (2007) e

Silva (2007), para eles a identidade é construída numa relação dialética com aquele

que é o seu outro, através da diferença.

Como todas as práticas de significação, ela esta sujeita ao “jogo” da différence. Ela obedece a lógica do mais-que-um. E uma vez que,

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como um processo, a identificação opera por meio da différence, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2007 p. 106).

Bossé (2004) também traz algumas considerações a respeito da identidade e

da diferença:

Logicamente, toda a forma de identificação supõe também, ao menos implicitamente, um processo de diferenciação: nos identificamos a – ou, eventualmente, contra – qualquer coisa. Pelo pertencimento ou pela exclusão, a identidade aproxima-se tanto daquilo que leva em consideração como daquilo que ela negligencia (BOSSÉ, 2004, p. 161).

Segundo Castells (2006), a identidade é fonte de significados e experiências

de um povo, que perpassa por um processo de construção de significado com base

em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-

relacionados, o(s) qual (is) prevalece(m) sobre outra fonte de significado. Porém,

para o autor, toda e qualquer identidade é construída, e essa construção social e

simbólica da identidade ocorre sempre em um contexto marcado por relações de

poder e de pertença.

2.1.2 O lugar do/no cotidiano

Tanto Santos (2008b) quanto Carlos (2007a, 2007b) dão destaque à

dimensão do cotidiano, pois é no cotidiano do lugar que se tecem as

horizontalidades e as relações de vizinhança, intensificando assim os laços de

solidariedade e as relações identitárias, contribuindo para uma maior intensidade na

comunicação entre os participantes. Segundo Santos (2008b), essas relações são

mais intensas no espaço da banalidade, no espaço dos homens lentos, onde

[...] avultam as relações de proximidade, que também são uma garantia de comunicação entre os participantes. Nesse sentido, os guetos urbanos, comparados a outras áreas da cidade, tenderiam a dar às relações de proximidade um conteúdo comunicacional ainda maior e isso se deve a uma percepção mais clara das situações pessoais ou de grupo e a afinidade de destino, afinidade econômica ou cultural (SANTOS, 2008b, p. 260).

Segundo Mota (2006), lugar e cotidiano são imediatos nas relações do

homem com seu mundo, aquelas para as quais os sentidos oferecem as respostas

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imediatas e de forma mais incisiva, e, portanto, as que carregam maior sentido de

intervenção direta na vida do indivíduo. Santos (2008c[1994]) elege o cotidiano

como a quinta dimensão do espaço e por isso deve ser objeto de interesse dos

geógrafos, cabendo aos mesmos forjar os instrumentos necessários para sua

análise. Apesar do autor considerar o cotidiano a quinta dimensão do espaço, o

mesmo deixa claro que o cotidiano é o tempo, a profundidade do acontecer, onde

tempo e espaço se confundem:

Em termos analíticos, a espacialização chama-se temporalização prática, pois todos os atores estão incluídos através do espaço banal, que leva consigo todas as dimensões do acontecer. Ora, o acontecer é balizado pelo lugar, e nesse sentido é que se pode dizer que o

tempo é determinado pelo espaço (SANTOS, 2008c, p. 35).

Pois a escala do cotidiano é o imediato, o localmente vivido, onde os laços

de solidariedade se tecem, e as horizontalidades se intensificam e se ampliam,

tendo, assim, a garantia da comunicação: “As horizontalidades são o alicerce de

todos os cotidianos, isto é, do cotidiano de todos (indivíduos, coletividades, firmas,

instituições)” (SANTOS, 2008c[1994], p. 50).

As horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contrafinalidade, localmente gerada, o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta (SANTOS, 2008c[1994], p.89).

Damiani (1999), inspirada nas obras do Henri Lefebvre, converge para a

mesma afirmativa de Carlos (2007a, 2007b) e Santos (2008c), como também

avança em sua análise com relação ao cotidiano. Para a autora, o cotidiano é o

mediador da interação dialética entre o lugar e o mundo, uma vez que “relacionar

cotidiano e lugar é envolver as relações próximas, ordinárias, singulares à

mundialidade” (1999, p.164). Como afirma a autora em outra passagem:

Falar na vida cotidiana é falar dos gêneros de vida no mundo de hoje. Pensar a vida cotidiana no lugar é pensar que o mundo está no lugar e o lugar no mundo, com todas as mediações necessárias – o Estado sendo a principal. A crítica da vida cotidiana engloba o que está pretensamente acima dela: as esferas políticas. Esferas políticas e prática social cotidiana são um par dialético (DAMIANI, 1999 , 168).

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Para compreendemos melhor o cotidiano como mediador do lugar com o

mundo é preciso inserir nessa análise o avanço da técnica, e seu atual momento

conhecido como período técnico-científico-informacional, que possibilitou uma maior

“aproximação” dos lugares com o mundo, fazendo com que o mundo, através da

informação e da comunicação, se reproduza no lugar e o lugar se reproduza no

mundo, de forma mais intensa e contínua:

As técnicas influenciam o modo como percebemos o espaço e o tempo, não só por sua existência física, mas também pela maneira como afetam nossas sensações e nosso imaginário. Por outro lado, os lugares vão se relacionar de modo diferenciado com as técnicas e os objetos técnicos, de acordo com as condições que oferecem enquanto “meio operacional”, para viabilizar a produção, a circulação, a comunicação, o lazer etc. (SERPA, 2011a, p. 20, grifo nosso).

É preciso ter claro que a distribuição da técnica no mundo é desigual e o seu

acesso é bastante limitado por alguns grupos sociais, e, também por isso, os lugares

são diferentes, ponto que discutiremos melhor no capítulo seguinte.

No intuito de entender de forma mais profunda o cotidiano, é necessário nos

apropriarmos de teorias sobre o cotidiano produzidas por autores como Certeau

(2008), que pensa o cotidiano, não como algo entregue à passividade e à disciplina,

mas sim como algo que se reinventa a partir das artes do fazer. Michel de Certeau

teve a preocupação de esboçar uma teoria e um modo de investigação das práticas

cotidianas, mostrando grande fascínio por seu estudo, pelo simples fato do

“cotidiano se inventar com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 2008,

p. 38).

Certeau (2008) destaca em seus estudos duas categorias básicas para

pensarmos o cotidiano: as táticas e as estratégias, dois pontos base que nos

servirão de subsídios teóricos para compreendermos o processo de apropriação da

cultura hip-hop pela juventude soteropolitana. O autor chama de estratégia a arte

dos “fortes”, um poder que parte de cima para baixo, um modelo hegemônico e

generalizador, já as táticas subvertem as estratégias a partir das brechas cotidianas,

é a arte dos mais “fracos”, construída a partir dos laços de solidariedade.

Ana Clara Torres Ribeiro (2005) faz uma relação bastante interessante entre

lugar, cotidiano, indivíduo e pessoa.

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Existem elos (Ir) relevantes entre cotidiano, lugar, indivíduo e pessoa. Através desses elos, tudo acontece e adquire sentido, permitindo a individuação e o pertencimento, e também nada importa ou tem significado, já que cada gesto pode ser envolto em enredos da cotidianidade alienada e na indiferença (RIBEIRO, 2005, p. 416).

Na tentativa de aproximar a teoria do cotidiano com o nosso referencial

teórico, podemos pensar que as estratégias são construídas pelas verticalidades,

pela ordem global (SANTOS, 2008b), e as táticas a partir das horizontalidades,

ordem local, guardadas as diferenças teórico-metodológicas entre ambos os

autores.

2.1.3 A dimensão do lugar

Para iniciarmos essa seção é necessário se fazer alguns questionamentos;

qual é o tamanho do lugar? O lugar possui uma escala definida? Local e lugar são

sinônimos? Para, a partir daí, desenvolver uma resposta para essas indagações,

que são bastante recorrentes, principalmente para quem está iniciando os estudos

sobre o conceito de lugar.

Para responder a primeira e a segunda perguntas, afirmamos que não, o

lugar não possui uma escala pré-definida e por isso mesmo não tem um tamanho

delimitado, e a resposta vale tanto para a corrente humanista quanto para a

geografia crítica radical, mas precisamos ter claro que existem diferenças na

concepção do tamanho do lugar dentro dessas correntes.

Na geografia humanista, principalmente para Tuan (1983), o lugar não possui

uma escala pré-concebida, pode variar de uma poltrona ao cosmo, o que vai

depender da experiência e da forma que o homem se relaciona com esses espaços.

Os lugares humanos variam grandemente em tamanho. Uma poltrona perto da lareira é um lugar, mas também o estado-nação. Pequenos lugares podem ser conhecidos através da experiência direta, incluindo o sentido íntimo de cheirar e tocar. Uma grande região como o estado-nação pode se transformar em lugar – uma localização de lealdade apaixonada – através do meio simbólico da arte, da educação e da política (TUAN, 1985, p. 149).

Anne Buttimer segue a mesma linha de Yi Fu Tuan, e assim como ele

concebe o lugar como pluriescalar:

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Cada pessoa está rodeada por “camadas” concêntricas do espaço vivido, da sala para o lar, para a vizinhança, cidade, região e para a nação. Além disso, pode haver ‘lugares privilegiados’, qualitativamente diferentes de todos os outros, tais como o ‘lugar de nascimento do homem’, ou as cenas de seu primeiro amor, ou certos lugares da primeira cidade estrangeira que visitou quando jovem (BUTTIMER, 1985, p. 178).

Holzer, ao citar Pocock, descreve do mesmo modo o lugar como multiescalar:

O lugar pode se referir a uma variedade de escalas, em cada uma delas, em termos experienciais, há um limite característico com a estrutura interna e identidade, no qual o local (insiderness) se distingue do estrangeiro (outsiderness) [...] Nós, portanto, habitamos em uma hierarquia de lugares, levando-nos ao nível apropriado de resolução de acordo com o contexto particular no qual encontramos a nós mesmos. Cada nível ou estado nasce da experiência das interações mútuas entre homem e ambiente (POCOCK, 1981, p. 337 apud HOLZER, 1999, P. 74).

Já os geógrafos da corrente crítica radical compreendem a escala do lugar de

forma diferenciada, mesmo entendendo que o lugar é multiescalar, mas que por sua

vez tem uma limitação espacial: “O plano do habitar tem como centro a casa, a rua,

o bairro, os quais constroem a articulação espacial na qual se apóia a vida cotidiana

entendida como modos de usos dos lugares através de uma relação espaço-tempo”

(CARLOS, 2007b, p.111, grifo nosso). Podemos perceber que o maior nível de

apreensão do lugar para Carlos é o bairro, pois, para a autora, é até onde o plano de

vivido pode ocorrer de forma intensa e afetiva, principalmente nas grandes

metrópoles capitalistas, como São Paulo, a qual é objeto de estudo da autora.

A cidade grande para Santos (2008b) pode ser considerada um lugar,

divergindo da ideia de Carlos (2007b), o que também foi identificado por Marengo

(2010). No entanto, é uma concepção escalar de lugar que continua limitada, uma

vez que seu par dialético é o mundo, e o que não é lugar para a corrente crítica

radical é o mundo, ao contrário da corrente humanista, que limita o tamanho do lugar

até o local onde se comprove a existência de vida humana.

Quanto ao segundo questionamento, lugar e local são sinônimos? Ambas as

correntes são enfáticas ao tratarem dessa questão, respondendo que não. Local é

localização e o lugar é carregado de significados. Mesmo assim, alguns geógrafos e

pesquisadores das Ciências Humanas os confundem.

Milton Santos (2008d [1985,] p. 13) deixa claro que não se pode “confundir

localização e lugar. O lugar pode ser o mesmo, as localizações mudam. E lugar é o

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objeto ou conjunto de objetos. A localização é um feixe de forças sociais se

exercendo em um lugar”.

Ribeiro (2005), inspirada nas ideias de Milton Santos, define o lugar a partir

das horizontalidades, onde as relações são mais próximas, tecidas na vida cotidiana,

já o local é definido pelas verticalidades, relações distantes.

A corrente humanista segue na mesma direção proposta pela crítica radical a

respeito do local:

Lugar significa muito mais que o sentido geográfico de localização. Não se refere a objetos e atributos das localizações, mas a tipos de experiência e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança (RELPH, 1979, p. 22).

Todo lugar é um local, pois ele precisa se localizar, ser localizado e também

precisa de um nome, e isso só é possível sendo local, todo local é um lugar? Isso vai

depender da forma como os grupos humanos irão se apropriar desse local.

O grande desafio dos geógrafos na operacionalização do conceito de lugar

concerne justamente em seu tamanho, uma vez que corremos o risco de

delimitarmos o lugar e o mesmo se transformar em território; acredito que isso

explique a grande quantidade de pesquisas no Brasil que se limitam a discutir o

lugar apenas numa perspectiva teórica e epistemológica, se compararmos com a

quantidade de trabalhos empíricos, que é pequena.

2.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE JUVENTUDE(S)

Antes de falar sobre juventude, é preciso entender o conceito como algo

histórico, social, espacial e cultural, o que permite perceber que a compreensão da

juventude vem sendo modificada de acordo com o tempo e o espaço.

Dayrell (2005) afirma que o conceito de juventude tem oscilado entre duas

vertentes classificadas como geracional e classista. Na primeira, a juventude é

classificada como uma fase da vida, um vir a ser, enfatizando a busca de aspectos

característicos mais uniformes e homogêneos, que fariam parte de uma cultura

juvenil unitária, específica de uma geração definida em termos etários e biológicos.

Para os autores da chamada corrente geracional, a juventude é um momento

físico e psicológico do homem, uma fase intermediária entre a infância e a vida

adulta, um momento de passagem e preparação, em busca de autonomia e em

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redefinição constante frente aos laços de dependência familiar. O conceito de

juventude nessa corrente, em determinados momentos, se confunde, um pouco,

com a trabalhada no sentido legal do termo. Com isso, esses autores acabam

generalizando a ideia de juventude, negligenciando assim os aspectos históricos,

sociais, espaciais e culturais da juventude, aspectos estes significativos para

diferenciar os variados tipos de ser jovem no tempo e no espaço, “definir juventude

implica muito mais do que cortes cronológicos; implica vivências e oportunidades em

uma série de relações sociais, como trabalho, educação, comunicações,

participação, consumo, gênero, raça etc.” (ABRAMOVAY; CASTRO, 2002, p. 25).

A noção de condição juvenil remete, em primeiro lugar, a uma etapa do ciclo da vida, de ligação (transição, diz a noção clássica) entre a infância, tempo da primeira fase do desenvolvimento corporal (físico, emocional, intelectual) e da primeira socialização, de quase total dependência e necessidade de proteção, para a idade adulta, em tese a do ápice do desenvolvimento e da plena cidadania, que diz respeito, principalmente a se tornar capaz de exercer as dimensões de produção (sustentar a si próprio e outros), reprodução (gerar e cuidar dos filhos) e participação (nas decisões, deveres e direitos que regulam a sociedade) (ABRAMO, 2008, p. 41).

A própria Helena Wendel Abramo (2008) chama a atenção para que

lembremos que os conteúdos, a duração e a significação social destes atributos das

fases da vida (transição entre a infância e a fase adulta) são culturais e históricos e

por isso, não devemos generalizar ou até mesmo reduzir a juventude a um corte

etário.

Já a segunda vertente, a classista, considera a juventude enquanto um

conjunto social necessariamente diversificado, em razão das diversas origens de

classe que apontam para uma diversidade das formas de reprodução social e

cultural. As culturas juvenis seriam sempre culturas de classe, como produto das

lutas de classe e das desigualdades sociais, o que contribui para expressar sempre

um significado político de resistência, ganhando e criando espaços culturais

(DAYRELL, 2005).

Se a vertente geracional negligencia fatores como classe, cultura, tempo e

espaço, a vertente classista avança em alguns pontos, principalmente no que tange

à questão das classes sociais, o que contribui para uma análise mais diversificada

sobre a juventude. Porém, continua a negligenciar aspectos importantes como as

noções de espaço, tempo e cultura, não uma cultura reduzida apenas à classe,

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como acontece com a vertente classista, mas uma cultura que abarque questões

como relações raciais e de gênero.

Sposito (1999) lança uma crítica às duas vertentes, uma vez que ambas

compreendem o conceito de juventude como algo estático, que não muda através do

tempo. Sendo assim, a própria autora nos mostra que a condição de ser jovem varia

de acordo com o tempo, demonstrando que o conceito pode ser fluído, no sentido de

que pode variar de acordo com a longevidade de uma dada sociedade .

É preciso reconhecer que, histórica e socialmente, a juventude tem sido encarada como fase da vida marcada por uma certa instabilidade associada a determinados ‘problemas sociais’, mas o modo de apreensão de tais problemas também muda. Assim se nos anos 60, a juventude era um “problema” na medida em que podia ser definida como protagonista de uma crise de valores e de um conflito de gerações essencialmente situado sobre o terreno dos comportamentos ético e culturais, a partir da década de 70 os “problemas” de emprego e de entrada na vida ativa tomaram progressivamente a dianteira no estudo sobre a juventude, quase transformando-a em categoria econômica (SPOSITO, 1997, p.38).

A respeito das noções sociológicas de juventude enquanto critérios etários ou

de classe, Groppo (2000) aponta algumas saídas, que de certa forma convergem

com as da Sposito (1997; 1999) citadas anteriormente, segundo o autor, uma das

saídas é enfatizar a relatividade do critério etário, uma vez que a juventude, o jovem

e seu comportamento mudam de acordo com a sua classe social, o seu grupo

étnico, a sua nacionalidade, orientação sexual, e o contexto histórico-espacial.

Apesar da contribuição teórica dessas duas vertentes, o conceito de

juventude apresenta uma lacuna, pois ao construírem seus objetos, estas

investigações recortam de tal forma a realidade dos jovens que dificultam sua

compreensão como sujeitos em sua realidade, pois ambas as correntes constroem

modelos rígidos da noção de juventude, que quase sempre são espelhados nos

jovens das classes média e alta (DAYRELL, 2003).

Muitas vezes, arraigados nesses modelos, construídos quase sempre espelhados nos jovens das camadas médias e altas, não conseguimos apreender os modos pelos quais os estratos juvenis das camadas populares constroem sua experiência como tais. Corremos o risco de analisá-los de forma negativa, enfatizando as características que lhes faltam para corresponder à imagem de jovens, ou mesmo questionar se entre os pobres existiria de fato o momento da juventude (DAYRELL, 2005, p. 27).

Cassab (2010) reitera a afirmação supracitada:

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De fato, em todas as concepções inexiste a consideração de que a categoria juventude engloba uma série de categorias diferentes. A juventude não seria um bloco homogêneo. Daí a impossibilidade de se falar em juventude no singular. São tantas as juventudes quanto são as classes sociais, as etnias, as religiões, os gêneros, os mundos urbanos ou rurais, etc. (CASSAB, 2010, p. 50).

Para Groppo a noção de juventude dentro da sociologia é algo complexo,

uma vez que a própria não consegue definir o termo (juventude) que ela ajudou a

criar.

A dificuldade da sociologia é curiosa: não consegue definir o ‘objeto’ social que ela própria ajudou a criar, então, reifica conceitos aculturais da fisiologia e da psicologia. Em geral, suas tentativas combinam o critério etário não-relativista e o critério sócio-cultural relativista (GROPPO, 2000, p. 11).

Os dados da nossa pesquisa de campo que estão no gráfico 1 mostram um

pouco a nossa dificuldade de “enquadrar” os sujeitos de pesquisa dentro dessas

noções de juventude, seja ela geracional ou classista.

Gráfico 1: Faixa etária dos jovens hip-hop/percentual

Elaboração: Célio Santos

Fonte: Pesquisa de campo

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Tabela 1: Faixa etária dos jovens hiphopers

Podemos observar que parte desses “jovens”, cerca de 45%, num total de 90,

já passaram dos seus 25 anos, sendo que alguns já estão na fase dos 30, e

continuam a viver ou afirmar a sua juventude, como podemos observar na fala do

grafiteiro Denis Sena: “O Denis Sena é...um jovem de 35 anos, uma artista visual,

inquieto, operário, estuda diversas linguagens e o grafite é uma das vivências”. Esse

fato nos leva, de certo modo, a conceber a juventude para além de critérios etários.

O grafite de Denis Sena, que ilustra a figura 1, representa muito bem seu

significado de juventude, que está intrisecamente ligado a sua alma, como fez

questão de destacar no grafite, “não envelheça a sua alma”, mostrando que seu

entendimento da juventude supera as questões etárias.

Figura 1: Grafite de Denis Sena no bairro do Cabula Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Faixa etária (idade) Total

Entre 15 e 20 anos 21

Entre 21 e 25 anos 26

Entre 26 e 30 anos 29

Mais de 31 14

Fonte: Pesquisa de campo Elaboração: Célio Santos

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Mas, considerando a necessidade de sustentar e fornecer um direcionamento

mais substancial a nosso trabalho, destacamos a existência de uma “terceira

vertente”3, que busca afastar-se desses dois pólos básicos, o geracional e o

classista, e passa a considerar a juventude enquanto condição e representação.

Para isso, nos centraremos na análise de Cassab (2010), Dayrell (2005, 2003) e nos

inúmeros trabalhos de Sposito (1994, 1997, 2000a, 2000b), pois para esses autores

existem diversas formas de ser jovem, resultado em parte das próprias condições

sociais nas quais esses sujeitos constroem suas experiências. No entanto, vale

ressaltar que apesar de trabalhar na perspectiva da diversidade, da juventude

enquanto representação, Cassab (2010) restringe a noção de juventude à questão

etária, ou seja, a autora procura fazer uma leitura sobre a(s) juventude(s) a partir de

um viés geracional.

Dayrell (2003) traz alguns avanços teóricos sobre o conceito de juventude

para o autor a juventude é, ao mesmo tempo, uma condição social e um tipo de

representação, além de enfatizar o jovem como um sujeito social.

Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar, considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social. Significa não entender a juventude como uma etapa, com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação que será superado com o chegar da vida adulta (DAYRELL, 2003, p.42).

Persistindo com Dayrell:

A juventude constitui um momento determinado, mas não se reduz a uma passagem, assumindo uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este proporciona (DAYRELL, 2005, p.34).

Groppo (2000) também procura conceber a juventude enquanto uma

condição, uma representação sociocultural, ou até mesmo uma categoria social.

Ao ser definida como categoria social, a juventude torna-se, ao mesmo tempo, uma representação sócio-cultural e uma situação social. Ou seja, a juventude é uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios

3 Utilizamos as aspas pelo fato dos estudiosos dessa vertente não a denominarem como uma terceira

vertente.

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indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de comportamentos e atitudes a ela atribuídos. Ao mesmo tempo, é uma situação vivida em comum por certos indivíduos. Na verdade, outras faixas etárias construídas modernamente poderiam ser definidas assim, como a infância, a terceira idade e a própria idade adulta. Trata-se não apenas de limites etários pretensamente naturais e objetivos, mas também, e principalmente, de representações simbólicas e situações sociais com suas próprias formas e conteúdos que têm importante influência nas sociedades modernas (GROPPO, 2000, p. 8).

Cassab (2010) também concebe a juventude como uma representação

simbólica e uma categoria que é construída no tempo e no espaço.

O que significa que juventude é uma categoria socialmente construída e, portanto, presente na ordem social, e não na natural. Daí sua mutabilidade ao longo da história e as diferentes interpretações presentes na literatura especializada e no imaginário social brasileiro. Daí os distintos significados de ser jovem, ao longo do tempo. A juventude é, portanto, também uma representação simbólica fabricada pelos grupos sociais em seus diferentes tempos e espaços (CASSAB, 2010, p. 50).

Carrano (2002), em seu livro sobre as diversas representações dos jovens da

cidade de Angra dos Reis-RJ, demonstra sua preocupação com o conceito de

juventude e sua dificuldade de compreendê-la no sentido geracional, demonstrando

assim sua filiação teórico-metodológica, compreendendo a juventude como uma

representação.

Neste livro considerei que a categoria juventude poderia ter sido alargada para outras faixas etárias além das oficialmente determinadas; até para aqueles que não são mais esteticamente jovens, mas que insistem na juventude. Os grupos da juventude com os quais me relacionei não se constituem unicamente pela orientação etária. São muitas as possibilidades de mediação que podem fazer com que alguém mais velho ou mais novo participe das atividades e compartilhe sentidos culturais com um agrupamento na qual a faixa etária média se apresenta como distinta de sua idade cronológica (CARRANO, 2002, p. 14).

Nos trechos citados acima, os autores chamam nossa atenção para a

perspectiva da diversidade, superando assim, tanto a vertente classista quanto a

geracional. Com isso, Dayrell (2005; 2003) defende a ideia de que não existe

juventude ou um único modo de ser jovem, e sim juventudes, no plural, como

também sinalizou Cassab (2010), pois existem variados modos de ser jovem e de

viver a juventude, sendo que a ideia de juventude irá variar de acordo com suas

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especificidades culturais, temporais, espaciais e sociais, mostrando o conceito como

algo fluído e dinâmico.

É muito variada a forma como cada sociedade, em um tempo histórico determinado, e, no seu interior, cada grupo social vão lidar com esse momento e representá-lo. Essa diversidade se concretiza com base nas condições sociais (classe sociais), culturais (etnias, identidades religiosas e valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, dentre outros aspectos (DAYRELL, 2003, p. 42).

Essa afirmação de Dayrell vem nos auxiliar tanto no âmbito teórico-conceitual

quanto prático, para compreender de forma mais efetiva os nossos sujeitos de

pesquisa, os jovens hip-hoppers da cidade de Salvador-Bahia, que, em sua grande

maioria, são negros, pobres e moradores das periferias.

2.2.1 Os novos estudos sobre a juventude(s) e o novo protagonismo juvenil

Os estudos sobre juventude se concentraram, inicialmente, entre os anos de

1950 e 1970, na ação política incisiva de jovens filiados a partidos políticos de

esquerda e a movimentos estudantis, principalmente pela influência da revolta do

maio de 1968, na França. Nos anos 1980 as pesquisas foram voltadas para a apatia

da juventude brasileira, uma vez que esses jovens não eram mais tidos como

agentes políticos de forte capacidade de transformação política e social, a chamada

geração coca-cola, como nos descreve Clarisse Cassab:

Ao contrário, todo o debate referente à participação dos jovens na sociedade é permeado por uma representação, quando não negativa, ao menos reducionista da juventude. Seus sujeitos são identificados como alienados e interessados apenas em se inserirem na dinâmica do consumo (CASSAB, 2010, p. 47).

É importante salientar que isso caracteriza uma situação diferente de décadas

anteriores, quando os jovens se reuniam em movimentos sociais (principalmente nos

movimentos estudantis), e em partidos políticos, devido ao contexto histórico, social

e espacial da época, reafirmando, assim, o conceito de juventude como algo

dinâmico e fluído, que não deve ser dissociado desses aspectos. Hoje os jovens

procuram se agrupar também através de uma orientação cultural comum, a exemplo

dos punks, dos roqueiros, dos rappers, dos funkeiros, adeptos do reggae, entre

outros. As inúmeras modalidades de agrupamentos da juventude em torno da

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música vêm possibilitando a constituição de identidades comuns, de linguagens e

códigos específicos que reúnem jovens em grupos, canalizando interesses e formas

de compreensão da realidade social (SPOSITO, 2000a).

Sposito (2000b) faz uma análise interessante sobre os jovens e seu

afastamento das formas tradicionais de participação política, ao estudar as ações de

alguns grupos juvenis que se agrupam a partir de um viés cultural, sobretudo a

música.

Essas ações já acenam com vigor para uma inquestionável motivação dos jovens em relação aos temas culturais em oposição ao seu afastamento das formas tradicionais de participação política. Alguns grupos não se limitam aos aspectos centrais de sua atividade ligada à música ou a outras formas de expressão artística, mas também se dedicam aos trabalhos comunitários, envolvendo-se em atividades nos locais de moradia em interlocução com alguns segmentos organizados da sociedade civil (SPOSITO, 2000b p. 80).

Os estudos brasileiros sobre juventude nas últimas décadas mostraram um

alargamento de seus interesses pelas práticas coletivas, acentuando a importância

da esfera cultural que fomenta mecanismos de aglutinação de sociabilidades, de

práticas coletivas e de interesses comuns, sobretudo em torno dos diferentes estilos

musicais (SPOSITO 2000b).

A partir da década de 1990, os estudos sobre juventude se concentram,

sobretudo, nas questões culturais, uma vez que a cultura aparece como um novo

elemento agregador da juventude e produtor da sociabilidade juvenil, promovendo,

assim, um novo protagonismo social e político. No entanto, alguns pesquisadores da

juventude ainda vêem com desconfiança esse engajamento político dos jovens pelo

viés cultural, por afirmarem que a maioria desses movimentos político-culturais não

são de caráter duradouro:

Contudo, há divergências sobre o caráter da participação política dos jovens hoje. Alguns defendem que esta seria, em comparação a outras, uma geração menos atraída por partidos políticos, organizações sindicais e outras formas de atuação política mais convencionais. Hoje predominam os agrupamentos juvenis no campo cultural e artístico, os grupos de amigos ou as mobilizações esporádicas, por eventos ou temas, sem continuidade e avessas a rotinas (ABRAMOVAY; CASTRO, 2002, p. 25-26).

Podemos notar que esse movimento na mudança de foco dos estudos sobre

juventude e suas práticas políticas não se restringiu apenas a questões práticas e

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empíricas, o campo teórico também sofreu mudanças significativas, pois a juventude

passou a ser entendida como uma representação vivida e experimentada de

diferentes formas pelos mais diversos grupos sociais, superando-se, assim, as

análises de cunho classista e de geração.

Mas, mesmo com esse considerável avanço no que tange a questões teóricas

e metodológicas, os estudos sobre juventude ainda apresentam uma lacuna, a

grande maioria dos trabalhos sobre a condição juvenil estão centrados em um viés

masculino, ou na juventude como um todo, não distinguindo o masculino e o

feminino, sendo a presença feminina pouco estudada pelos pesquisadores

interessados nas manifestações político-culturais (WELLER, 2006).

2.3 EM BUSCA DE UMA APROXIMAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE LUGAR E JUVENTUDE

É uma preocupação nossa fazer uma relação entre a juventude e o lugar,

procurando uma “geograficidade4” para a juventude, a tarefa não é das mais fáceis,

alguns geógrafos como Nécio Turra Neto (2009, 2010) e Clarice Cassab (2010) vêm

procurando uma forma de operacionalizar o conceito de juventude dentro de uma

problemática espacial.

Elegemos o conceito de lugar para dialogar com o conceito de juventude, por

entendermos que todas as relações de solidariedade e sociabilidade dos jovens se

tecem a partir do lugar, onde também os jovens constroem suas identidades e suas

experiências de vida.

Restringindo a noção de juventude aos nossos sujeitos de pesquisa, os

jovens hip-hoppers, podemos chegar a algumas conclusões. Haja vista que as

práticas, ações e discursos dos jovens hip-hoppers falam por si mesmas. Por meio

delas, eles expressam a realidade concreta do lugar onde vivem, pautados num

discurso amplamente espacial, numa forma de denúncia da realidade local, com a

qual se defrontam em seu dia a dia. As práticas desses jovens são inspiradas em

um contexto internacionalizado, porém são elaboradas na concretude de sua

existência, em seu mundo vivido, ganhando contornos específicos que emergem do

lugar por meio da fusão das práticas culturais do hip-hop com a cultura local

(HERSCHMANN, 2000).

4 Termo utilizado pelo Eric Dardel (2011), o qual expressa a própria essência geográfica do ser e estar no

mundo.

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É a partir do lugar de onde se fala que esses jovens constroem seus

discursos e suas práticas políticas, que vão sustentar e dar consistência ao hip-hop

como uma cultura política. O lugar, para a juventude do movimento hip-hop, é o

espaço em que a negociação se impõe, pela situação de coexistência, por isso ele é

por excelência o espaço da política (RODRIGUES, 2009). Essa relação entre lugar e

juventude será analisada de forma mais aprofundada nos capítulos que se seguem.

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3 CONHECENDO A CULTURA HIP-HOP, SUA ORIGEM E SUA DIFUSÃO PELO

TERRITÓRIO BRASILEIRO

De antemão é preciso salientar que nossa análise sobre a cultura hip-hop é

indissociável da análise do espaço e das relações sociais, ratificando a posição de

Rodrigues (2009), que entende que inexista sociedade, grupo ou classe a-espacial

ou a-geográfica, desprovida de uma espacialidade, seja ela material ou subjetiva,

que permita se constituir, reproduzir-se e transformar-se no decorrer de sua

dinâmica sócio-espacial, a própria história do hip-hop fala por si só, como veremos

no capítulo que se segue.

O termo hip-hop foi criado no início da década de 1970 pelo grupo americano

Afrika Bambata. O termo foi inspirado na forma de dançar, hip = quadril e hop =

saltar, saltar o quadril. Além de responsável pelo batismo, o grupo definiu o break, o

rap e o grafite como os três elementos essenciais para a existência da cultura hip-

hop, mas há quem enumere quatro, desmembrando a cultura do rap em dois

elementos culturais: o DJ (Disc Jóquei) e o MC (mestre de cerimônia). Gilroy (2008)

define o hip-hop como um movimento centrado em três elementos: pedagogia,

afirmação e brincadeira, deixando claro o caráter lúdico do hip-hop, que, por sua

vez, não pode ser dissociado da questão política.

Figura 2: Dj (Disc Jóquei) Figura 3: Mc (Mestre de cerimônia) Fonte: Pesquisa de campo (Célio Santos)

Fonte: Pesquisa de campo (Célio Santos)

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Historicamente, o hip-hop formou-se no distrito novaiorquino do Bronx, no

South Bronx, para ser mais exato, onde jovens afro-americanos e caribenhos

tiveram participação decisiva em sua construção e em sua afirmação como cultura.

A dança break, de origem caribenha, Porto Rico, a arte visual, materializada no

grafite, e o rap iniciais de rythm and poetry (ritmo e poesia), como expressão

poético-musical, oriundos da Jamaica, integraram-se como parte desse sistema

cultural juvenil denominado hip-hop.

O hip-hop, segundo Rose (1997), surge em meio a um contexto tenso e

delicado para a sociedade estadunidense, marcado por inúmeros movimentos que

lutavam pelos direitos civis da população negra e contra o racismo, e, segundo a

autora, para se compreender melhor o hip-hop é necessário conhecer o contexto

urbano dos Estados Unidos, sobretudo Nova York, nesse período, década de 1970.

3.1 O CONTEXTO URBANO DA CIDADE DE NOVA YORK

Rose (1997) não se restringe a fazer apenas uma análise da cultura hip-hop,

ela se aprofunda também nas condições políticas, econômicas, sociais e culturais do

Figura 4: Grafite Fonte: Pesquisa de campo (Célio Santos)

Figura 5: Break Fonte: Pesquisa de campo (Célio Santos)

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lugar, na tentativa de relacionar contexto urbano à emergência do hip-hop nos

Estados Unidos.

Na década de 1970 a cidade de Nova York passou por uma grande

reestruturação urbana, em período conhecido como pós-industrial, época em que as

grandes indústrias saíram da cidade de Nova York e deram lugar ao setor de

serviços, provocando uma grande crise entre a população mais pobre, de negros e

latinos. Segundo Rose (1997), nesse mesmo período, as cidades foram perdendo

verbas federais destinadas aos serviços sociais, ao mesmo passo que as grandes

corporações imobiliárias foram substituindo as fábricas. Essas mesmas corporações

começaram a adquirir em massa antigas fábricas para transformá-las em

condomínios luxuosos, deixando aos moradores da classe operária, leia-se

asiáticos, italianos, latinos e negros, uma pequena área residencial (boa parte foi

removida para as áreas periféricas da cidade, entre elas o South Bronx, berço da

formação da cultura hip-hop), um mercado de trabalho bastante reduzido e serviços

sociais limitados ao mínimo, o que afetou diretamente o cotidiano dessas

populações e aumentou a distância entre as classes e as raças, como descreve

Tricia Rose:

Esse dramático corte dos serviços sociais foi sentido de forma mais

grave nas áreas pobres de Nova York, onde a má distribuição de

renda era maior e, ainda por cima, a população vivia uma grave crise

de habitação que se estendeu até os anos 80. [...] Os negros e os

hispânicos representavam desproporcionalmente uma quinta parte

da fração mais pobre. Nesse mesmo período, 30% das famílias

hispânicas (a maior parte de Porto Rico) e 25% das famílias negras

viviam em áreas mais pobres ou em suas proximidades. Desde esse

período não houve investimento imobiliário destinado às pessoas de

baixa renda, e negros e hispânicos foram levados a habitar áreas

superpovoadas, dilapidadas e sem qualquer espécie de manutenção

(ROSE, 1997, p. 197).

Essas condições impostas pela sociedade pós-industrial tiveram um impacto

profundo sobre as populações negras e hispânicas, no que tange a questões como

emprego e habitação. Segundo Rose (1997), os postos de trabalho no setor

industrial foram deslocados para o setor de serviços, no entanto, nem os latinos e

nem os afro-americanos conseguiram se inserir nesse novo mundo do trabalho, pois

“muitos deles foram ‘treinados’ para empregos em campos de trabalho que estavam

em decadência ou que não existiam mais” (ROSE, 1997, p. 203). Isso significou que

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as minorias raciais e as populações mais pobres pagaram um preço altíssimo pela

desindustrialização e consequentemente pela reestruturação urbana da cidade de

Nova York.

Todos esses problemas começaram a se materializar no espaço e resultaram

em uma grave problemática social para a cidade de Nova York. Mollenkopf (1990)

apud Rose (1997) afirma que até então a cidade era relativamente rica, branca e

industrial. Após os desastrosos efeitos da política municipal adotada pós 1970, Nova

York tornou-se uma cidade economicamente dividida, multirracial e prestadora de

serviços, sem falar no progressivo aumento da desigualdade social e na degradação

do espaço público nas áreas populares, principalmente em locais com grande

concentração de negros e hispânicos como Bronx, Brooklyn, Queens e Harlem.

Essa imagem de um ambiente degradado e hostilizado, de prédios

abandonados e de um elevado contingente de sem-teto nas ruas, fatos publicizados

pela grande mídia e pela indústria cinematográfica se tornaram o principal ícone do

imaginário social da população americana; quando se ouvia falar em locais como o

Bronx, a imagem era diretamente associada a um cenário de ruína e de barbárie

social, creditando-se aos negros e aos hispânicos a culpa pela degradação da

cidade.

Mas, afinal de contas, o que esse contexto urbano pautado num ambiente

hostil e miserável tem a ver com a origem da cultura hip-hop?

Essas mudanças na economia, que afetaram o acesso à moradia, à saúde e

às redes de comunicação, foram cruciais para a formação das condições que

alimentaram a cultura hip-hop, dando um teor social e político às suas práticas

culturais, que se baseavam, além de tudo, no cotidiano.

O hip-hop emerge de complexas trocas culturais, da alienação e das

desilusões sociopolíticas. O grafite e o rap foram demonstrações

públicas agressivas de uma outra presença e voz. Cada um

assegura o direito de escrever – ou melhor de inscrever – uma

identidade em meio um ambiente tão resistente quanto um teflon

para os jovens de cor; um ambiente que tornou legítima a falta de

acesso a materiais e à participação social (ROSE, 1997, p. 211).

O hip-hop se constitui dentro desse ambiente como uma forma de

sociabilidade e mobilização política da juventude segregada e através de um

discurso político pautado na arte e na cultura, que conseguem transformar o hip-hop

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num poderoso meio de expressão para os jovens urbanos da América, criando um

movimento juvenil de ordem global e de considerável importância (GILROY, 2008).

Nas palavras de Rose (1997), essa Juventude construiu uma rede cultural própria

que serviu para reformularem suas identidades culturais:

O novo grupo étnico que fez do Bronx sua casa no final dos anos 70,

construiu uma rede cultural própria, que pudesse se mostrar alegre e

compreensiva na era da alta tecnologia. Negros norte-americanos,

jamaicanos, porto-riquenhos e outros povos do Caribe, com raízes

em contextos pós-coloniais, reformularam suas identidades culturais

e suas expressões em um espaço urbano hostil, tecnologicamente

sofisticado e multiétnico (ROSE, 1997, p.202).

Diante das afirmações de Rose (1997), podemos perceber como o lugar,

nesse caso o distrito Bronx, interfere de forma direta na configuração da cultura hip-

hop, uma vez que todas as questões sociais, políticas, econômicas e culturais

nutriram o discurso hip-hop, contribuindo para que o mesmo se tornasse uma cultura

subversiva e até certo ponto agressiva.

O hip-hop combinou elementos dos discursos da música e da dança, da

exibição por meio das performances, dando vida a novas identidades e definindo as

posições dos jovens, que, por sua vez, vão em busca dos papéis sociais que lhes

foram negados durante todo o processo histórico. Para Rose (1997), o cruzamento

feliz entre o break, o grafite e a música rap foi alimentado não só pelas experiências

locais compartilhadas entre os jovens, como também pela posição social em que se

encontravam. As identidades construídas através da cultura hip-hop foram forjadas a

partir de bens simbólicos como linguagens, estilo, postura e vestuário, todos

provenientes das ruas e das turmas de bairros.

O hip-hop duplicou, reinterpretou a experiência da vida urbana e

apropriou-se, simbolicamente, do espaço urbano por meio do

sampleado, da postura, da dança, do estilo e dos efeitos de som. A

fala sobre metrôs, grupos e turbas, barulho urbano, economia

estagnada, sinais estáticos e cruzados surgiu nas canções e nos

temas e no som do hip-hop. Os artistas grafitaram murais e logos nos

trens, nos caminhões e nos parques inscrevendo sua outra e contida

identidade na propriedade pública (ROSE, 1997, p. 193)

Castells (2006) faz uma análise interessante sobre a interferência da cultura

hip-hop e a mudança do estilo musical nos guetos de Nova York, principalmente na

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comunidade negra juvenil residente do Bronx, uma vez que essa nova cultura, ao

contrário do Jazz, estilo musical mais clássico, fruto também da cultura afro-

americana, é composta de aflição, raiva, medo e revolta:

O rap, e não mais o jazz, é o produto dessa nova cultura, que

também expressa identidade, também está fundada na história negra

e na longa tradição norte-americana de racismo e opressão social,

no entanto incorpora novos elementos: a policia e o sistema penal

como instituições centrais, a economia do crime como chão de

fábrica, as escolas como áreas de conflitos, as igrejas como redutos

de conciliação, famílias madricêntricas e ambientes depauperados,

organização social baseada em gangues, uso de violência como

meio de vida. São esses os novos temas da nova arte e literatura

negra nascidos da experiência do gueto (CASTELLS, 2006 p. 76).

Dentro dessa conjuntura, o elemento rap ganhou bastante destaque dentro do

hip-hop. Segundo Tella (1999), essa condição se deu pelo fato do rap ser um veículo

no qual o discurso possui o papel central, e por intermédio dele o jovem transmite

todas as suas lamentações, angústias, inquietações, seus medos e revoltas, ou seja,

todas as experiências de seu mundo vivido, conseguindo a partir daí descrever a

sua percepção do lugar, sendo que a cidade e suas contradições, sejam elas sociais

e/ou raciais, tornam-se a principal inspiração para a produção do discurso do rap.

Todas as dificuldades enfrentadas por esses jovens são colocadas

no rap, encaradas de forma crítica, denunciando a violência policial

ou não, o tráfico de drogas, a deficiência dos serviços públicos a falta

de espaços para a prática de esportes ou de lazer e o desemprego

(TELLA, 1999, p. 61).

3.1.1 A origem da cultura hip-hop: uma cultura híbrida? Ou uma cultura que já

nasce globalizada?

Falar sobre a origem do hip-hop é algo um tanto quanto controverso (GILROY

2008), uma vez que muitos pesquisadores, na tentativa de agregar uma

característica nacional ao hip-hop, como um produto genuinamente norte-americano,

afirmam que o rap, elemento mais expressivo do hip-hop, surgiu das entranhas do

blues, e, por isso, sua origem é norte-americana, pois, antes mesmo do Afrika

Bambata cunhar o termo hip-hop, os elementos que compõem a cultura já se

manifestavam nas ruas de Nova York. Já outros autores, entre eles Paul Gilroy

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(2008) e Tricia Rose (1997) compreendem a cultura hip-hop como uma cultura

diaspórica, hibrída, fruto muito mais da “[...] fecundação cruzada das culturas

vernaculares afro-americanas com seus equivalentes caribenhos do que do

florescimento pleno formado das entranhas do blues” (GILROY, 2008, p. 211).

Essa ideia do hip-hop como uma cultura fruto da diáspora africana, proposta

por Gilroy (2008) e Rose é importante de ser abordada, uma vez que o hip-hop tanto

americano quanto o brasileiro tem certa preocupação de buscar uma ligação com o

continente africano. Guerreiro (2010) demonstra como essas culturas africanas se

disseminam pelo mundo por meio dos fluxos diaspóricos. Segundo a autora,

existiram três fluxos distintos: o primeiro, pela via da escravidão, com os

deslocamentos do tráfico atlântico; um segundo, pela via das migrações, como a de

Jamaicanos e nigerianos para Londres, de cubanos para Nova York, de angolanos

para Portugal e Brasil; e o terceiro, fruto do meio técnico-científico-informacional, é o

deslocamento de signos: ícones, modos, músicas, filmes e livros, provocados por um

circuito de comunicação da diáspora negra. Podemos inserir o hip-hop como fruto

dessa terceira diáspora: todos esses deslocamentos, seja por meio do fluxo humano

ou digital, redesenharam a ambiência cultural do mundo atlântico (GUERREIRO,

2010).

Rodrigues (2009) afirma que, apesar do hip-hop ter se originado nos Estados

Unidos, pode-se pensá-lo mais como um movimento político-cultural que já nasce

globalizado do que como uma experiência genuinamente norte-americana.

Concordamos parcialmente com a ideia do autor, pois, ao invés de pensar o hip-hop

como uma cultura que já nasce globalizada, pensamos o hip-hop como uma cultura

híbrida, que se origina através de um diálogo tenso entre negros e latinos,

convergindo para a mesma ideia proposta no parágrafo anterior por Rose (1997) e

Gilroy (2008).

O hip-hop, para ambos os autores, é, por excelência, desde sua formação,

uma cultura híbrida, formada por jovens negros e latinos, que viam na cultura uma

forma de subversão, de aglutinação entre os diferentes, de comunicação, bem como

uma maneira de se firmarem na sociedade norte-americana, uma sociedade

pautada no discurso de uma maioria branca que pregava a exclusão e a segregação

racial.

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As experiências e perspectivas dos jovens hispânicos, afro-

caribenhos e afro-americanos, que se mantiveram distantes de um

ambiente discursivo mais abrangente, redundaram em um espaço

social restrito. E, nesse caso, o hip-hop desenvolveu-se como parte

de uma rede híbrida de comunicação (ROSE, 1997, p. 211).

Paul Gilroy contempla a questão abordada por Tricia Rose ao afirmar o

caráter híbrido do hip-hop, destacando a importância dos hispânicos e dos negros

em sua formação:

Os componentes musicais do hip-hop são uma forma híbrida nutrida

pelas relações sociais no South Bronx, onde a cultura jamaicana do

sound-system foi transplantada durante os anos de 1970 e criou

novas raízes. Em conjunto com inovações tecnológicas específicas,

essa cultura caribenha expulsa e enraizada acionou um processo

que iria transformar a autopercepção da América negra e igualmente

uma grande parcela da indústria da música popular (GILROY, 2008,

p. 89).

Esse hibridismo da cultura hip-hop não se deu apenas nos Estados Unidos,

também pode ser observado aqui no Brasil, onde a cultura foi absorvida

antropofagicamente pela juventude negra das periferias dos grandes centros

urbanos, como também em outros países como o México e a França, onde o hip-hop

foi apropriado pela juventude marginalizada, dando um novo formato e adaptando as

práticas culturais e o discurso à realidade do lugar. Isso reflete o espírito real do hip-

hop como um espaço coletivo e experimental, no qual temas contemporâneos e

forças ancestrais são trabalhados simultaneamente (ROSE, 1997). Um forte

exemplo para ilustrar essa afirmação de Tricia Rose é uma passagem do livro de

Paul Gilroy, na qual ele traz um relato do rapper americano, Quincy Jones, sobre

suas influências musicais:

O rap foi o meio cultural e político pelo qual Jones completou seu

retorno à pedra de toque da autêntica criatividade negra americana.

Ele mesmo, ao fazer rap no disco através da persona improvável de

“The Dude” [“O Cara”], explicava que queria que o projeto

“incorporasse a família inteira da música americana negra... tudo,

desde o gospel até o jazz, que fazia parte da minha cultura”. Padrões

musicais brasileiros e africanos eram anexados e se tornavam

contínuos à sua versão da herança musical negra americana. Eles

são vinculados, diz Jones, pelas “tradições comuns do contador de

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história africano5, que são continuadas hoje pelos rappers”.

(GILROY, 2008, p.219)

No entanto, precisamos estar cientes que o hibridismo cultural para alguns

autores contribui para a perda do referencial territorial, resultante do

enfraquecimento das lealdades locais em prol das comunidades transnacionais, o

que impede o reconhecimento de identidades claramente definidas (CANCLINI,

2006).

Gilroy (2001) chama atenção que mesmo a hibridez6 formalmente intrínseca

ao hip-hop não tem conseguido evitar que o estilo seja utilizado como signo e

símbolo particularmente potentes da autenticidade racial dos grupos negros, “é

significativo que quando isto acontece o termo ‘hip-hop’ seja muitas vezes

abandonado em favor do termo alternativo ‘rap’, preferido exatamente porque é mais

etnicamente marcado por influências africano-americanas do que o outro” (GILROY,

2008, p. 217).

Como descreve Bamba (2007), em seu texto sobre o hip-hop africano:

Muito se falou e se escreveu sobre as origens do hip-hop na África.

As raízes históricas do hip-hop seriam múltiplas, elas são

indiretamente relacionadas com as tradições africanas que os

próprios criadores e perpetuadores do hip-hop reivindicam. Nesta

ordem de raciocínio, o rap e o canto falado do MC seriam uma nova

declinação da arte oratória dos griots e outros poetas trovadores que

faziam crônicas da vida cotidiana na África (BAMBA, 2007, p. 4).

Herschmann (2000) defende que na era da globalização, da comunicação e

da velocidade da informação, as expressões culturais, entre elas o hip-hop, não

apenas se desessencializaram ou desnaturalizaram no imaginário social, como

também perderam a sua relação de fidelidade com os territórios originários:

As expressões culturais tornaram-se um processo de montagem

multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de

traços que qualquer um, de qualquer classe, religião, cor, ideologia

5 Esse contador de história africano o qual Jones se refere é conhecido na África ocidental como Griô (griots),

uma pessoa que tem a habilidade de contar a história de várias famílias africanas a partir da oralidade e da memória, através de um canto falado, devido a isso alguns teóricos creditam a origem do elemento rap à figura do griô. 6 Estamos de comum acordo em defender o hip-hop como uma cultura hibrida, no entanto temos que ter claro

que toda essa “mistura” cultural, que está intrínseca ao hip-hop, não é feita de forma aleatória, toda essa “mistura” é feita de maneira consciente, obedecendo às táticas do cotidiano, como concebidas por Michel de Certeau.

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pode utilizar. O próprio termo ‘subcultura’ parece ter esvaziado o seu

sentido (HERSCHMANN, 2000, p. 63).

Entretanto, o próprio Herschmann (1997; 2000), em suas pesquisas sobre

dois fenômenos culturais urbanos da cidade do Rio de Janeiro, o funk e o hip-hop,

percebeu a presença do processo de territorialização, tendo no localismo o

reconhecimento e a reafirmação da cultura globalizada, contrariando assim as

considerações de Canclini (1997, 2006). “Muito desses estilos são ao mesmo tempo,

periféricos e autônomos, locais, mas também globais e, finalmente híbridos, mas

nem por isso necessariamente diluídos” (HERSCHMANN, 2000 p. 64).

Concordamos com Herschmann na consideração que a força do localismo pode ser

atestada na ênfase que os hip-hoppers dão às suas comunidades, podendo-se

afirmar que, no discurso e nas práticas culturais do hip-hop, as comunidades e os

bairros se tornaram mais importantes que a cidade, assim como a cidade talvez

tenha se tornado mais significativa que a Nação.

As crescentes e diferentes organizações do movimento hip-hop foram

edificadas, e continuam sendo. Na maioria dos casos a diferença entre as diversas

organizações são estabelecidas a partir da prática local, bem como pelas atividades

praticadas no cotidiano dos bairros, pelas preferências por algum passo de dança,

pelo vestuário, e pelas formas de samplear7, pelo sotaque vocal e pela introdução de

novos utensílios técnicos. Por outro lado, para Rose (1997), grupos regionais de

rappers, grafiteiros e dançarinos solidificaram um vocabulário comum ao hip-hop, o

que possibilita uma maior comunicação entre eles. Em alguns lugares, o movimento

articula um sentido de pertencimento e transforma uma insubordinação agressiva

em prazer e afirmação de identidade.

3.2 A APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP PELA JUVENTUDE BRASILEIRA

Antes de falar sobre a apropriação da cultura hip-hop no Brasil é preciso

destacar que concebemos a apropriação num sentido lefebvriano, segundo Seabra

(1996). Inspirada nas ideias de Henri Lefebvre, esta autora vai afirmar que a

apropriação é uma insurreição do uso, levando-se em conta “a possibilidade de o

uso ganhar presença, de permitir apropriações. Essa possibilidade situa-se no

7Batidas eletrônicas emitidas pelo sampler, aparelho que copia e cola sons para os DJs usarem nas músicas.

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âmbito das práticas criadoras e pressupõe relações de criação” (SEABRA, 1996,

p.84-85).

A cultura hip-hop penetrou o Brasil no início da década de 1980, como uma

cultura de massa, através da indústria cultural, por meio de filmes, propagandas

estrangeiras e discos, sendo que o primeiro elemento a se enraizar no cenário

urbano brasileiro foi o break, que encontrou terreno fértil nos bailes Black8 dos anos

1980, na cidade de São Paulo.

O cenário urbano brasileiro nos anos 1980 se confundia um pouco com o da

cidade de Nova York, na década de 1970, onde a juventude, principalmente negra,

era privada do lazer e da participação política, as periferias e favelas das grandes

cidades cresciam de forma assustadora, e, junto com isso, os problemas sociais e as

contradições iam se materializando no cotidiano da vida urbana: a moradia precária,

a falta de empregos, degradação da saúde pública e da educação, A pesquisadora

alemã Wivian Weller (2006) em sua pesquisa sobre o movimento hip-hop na capital

paulistana também faz uma relação entre as condições urbanas de São Paulo com a

de Nova York:

No Brasil, o hip-hop começou a ganhar força a partir da década de

1980, sendo a cidade de São Paulo o berço desse movimento, que

se expandiu posteriormente para outras capitais e cidades

brasileiras. As semelhanças entre Nova York e São Paulo, no que diz

respeito aos processos de modelações no centro urbano e edificação

de conjuntos habitacionais nas periferias, nos oferecem algumas

pistas para entendermos o surgimento de uma forte identificação dos

jovens paulistanos com esse movimento estético-musical (WELLER,

2006, p.124).

Ou seja, todas essas condições foram propícias para o enraizamento da

cultura hip-hop no Brasil, pois, nesse momento, o rap, o grafite e o break se

apresentavam como um estilo reivindicatório e político, que dava a oportunidade

para a população excluída, principalmente os jovens, a falarem e serem ouvidos,

mesmo que essas falas ecoassem apenas entre eles mesmos.

A cultura hip-hop foi apropriada pela juventude brasileira, em sua maioria por

pretos e pobres, tendo como principal ponto de encontro a galeria da Rua 24 de

Maio e a Praça Roosevelt, ambas situadas na capital paulista, locais estes que já

8 Festas de salão organizadas por grupos de negros, ao som de música negra como o funk, o soul e o jazz.

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contavam com uma grande frequência de afro-descendentes que faziam dessas

praças locais de encontro.

Silva (1999), ao analisar a cultura hip-hop na cidade de São Paulo, destaca

que desde já é preciso ter claro que a cultura hip-hop - além de ser integrada pelas

práticas juvenis (rap, grafite e break), aos olhos dos jovens, não se resume apenas a

uma proposta exclusivamente estética envolvendo a dança, o grafite e o rap. Mas,

sobretudo, representa a fusão desses elementos como arte militante e engajada

com finalidades sociais e políticas, que visam ao desenvolvimento das comunidades

em que determinados grupos estão inseridos, fato este que também podemos

observar na cidade de Salvador e na fala de alguns hiphoppers da cidade, tanto de

Black Rai, integrante do grupo Rapaziada da Baixa Fria – RBF, quanto de Jasf,

integrante do grupo Os Agentes.

O hip-hop pra mim, é a minha alma, é o que me mantém vivo, é o

que traz a minha vontade de estudar, de trabalhar, de conhecer o

meu próximo, tentar passar esta realidade pra outras pessoas,

realidade minha e de outras pessoas (Black Rai, integrante do grupo

RBF).

Jasf também nos mostra essa simbiose entre o hip-hop e o corpo e como a

cultura não se restringe apenas a questões estéticas, sendo um instrumento de

militância social e política, como bem sinalizou Silva (1999).

O hip-hop pra mim é..., em alguns momentos da minha vida disse a

algumas pessoas que hip-hop pra mim é um estilo de vida, algumas

pessoas deram risadas, eu era adolescente quando falei isso, agora

eu tenho 25 anos e continuo dizendo que é um estilo de vida, o hip-

hop pra mim é uma ideologia é uma forma de fazer algo, é... são os

elementos que é o básico, é o break, o Dj, o grafite e o MC, mas

acima de tudo é a possibilidade de transformação dessas

comunidades que a gente vive, as comunidades que a gente

trabalha, é uma porta para que a gente possa transformar essas

vidas.

Oliveira (2006), mesmo não problematizando conceitualmente o sentido da

apropriação, considera que a apropriação da cultura hip-hop pela juventude

brasileira se revelou um tanto quanto contraditória, pois o hip-hop será apropriado a

partir de duas dimensões: a dimensão estética cultural e a dimensão ético-política.

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Ambos os elementos marcarão a constituição do hip-hop. O autor assegura que o

conflito gerado por estas duas matrizes apontam o hip-hop como um “caldeirão de

controvérsias”, isto é, como tendo um caráter dialógico que está em constante

tensão, de um lado para afirmar o consumo e, de outro, para afirmar a cultura

política.

Para falar sobre a apropriação da cultura hip-hop no Brasil é necessário

também falar sobre a rua, uma vez que a entendemos como importante elemento

para um melhor entendimento dos processos de apropriação da cultura hip-hop, que

tem a rua como o grande palco de suas manifestações artísticas, culturais e

políticas.

Como deixa claro o grafiteiro Denis Sena, ao falar sobre a importância da rua

em sua formação política e enquanto grafiteiro.

[...] nossa formação vem da rua. Perguntam assim: qual sua

universidade? Faculdade? Né? Ai eu falo: sou artista visual,

autodidata, mas minha base é rua. É importante dizer que a rua

ensina muito [...]

Para Carlos (2007a):

O tema da “rua” nos coloca diante do fato de que na análise do

espaço urbano o lugar aparece com significados múltiplos. A cidade,

em si, só pode ser determinada como lugar à medida que a análise

incorpore as dimensões que se referem à constituição, de um lado,

do espaço urbano, e de outro, aquela da sociedade urbana. Todavia

a cidade é reproduzida a partir da articulação de áreas diferenciadas

com temporalidades diferenciais que se produzem,

fundamentalmente, da constituição de uma forma de apropriação

para uso que envolve especialidades que dizem respeito à cultura,

aos hábitos, costumes, etc..., que produzem singularidades espaciais

que criam lugares na cidade das quais a rua aparece como elemento

importante de análise (CARLOS, 2007a, p.51 e 52).

Serpa (2009), embasado nos estudos de Henri Lefebvre (2008), traz algumas

contribuições para essa discussão: apesar de não falar especificamente sobre a rua,

o autor considera a possibilidade para se pensar a cidade como um fenômeno

cultural, que centraliza o conjunto das criações humanas, que podem ser traduzidas

e sintetizadas, através da ideia de centralidade, como uma possibilidade de

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encontro, de aproximação, da simultaneidade, da reunião, do intercâmbio e das

relações.

Para Lefevbre (2008) a rua contém inúmeras funções na vida cotidiana: a

função informativa, a função simbólica, a função lúdica. “Nela joga-se, nela aprende-

se” (LEFEBVRE, 2008, p. 27). O autor também alerta para a contradição da rua,

haja vista que essa mesma rua que promove o encontro, a aproximação e a reunião,

é a mesma rua do desencontro, da circulação de mercadorias, da desagregação e

da repressão a inúmeros grupos por imposição do poder central.

Se a rua pôde ter esse sentido, o encontro, ela o perdeu, e não pôde senão perdê-lo, convertendo-se numa redução indispensável a passagem solitária, cindindo-se em lugar de passagem de pedestres (encurralados) e de automóveis (privilegiados). A rua converteu-se em rede organizada pelo/para o consumo (LEFEBVRE, 2008, p. 28).

Por sua vez, o sociólogo Gey Espinheira, em uma entrevista realizada no

documentário intitulado “Hip-Hop com Dendê”, traz uma abordagem interessante

sobre o hip-hop, tendo a rua e a juventude como palavras-chave para a

compreensão da cultura hip-hop. “O hip-hop é um movimento de juventude, é um

movimento de rua, nós temos rua e temos juventude, juventude e rua são

universais9”.

A rua é um elemento revelador a partir do qual se pode pensar o

lugar da experiência, da rotina, dos conflitos, das dissonâncias, bem

como desvendar a dimensão do urbano, das estratégias de

subsistência pois marca a simultaneidade do cheio e do vazio, dos

sons e ruídos: das temporalidades diferenciadas. No panorama das

ruas pode-se ler a vida cotidiana: - seu ritmo, suas contradições, - os

sentimentos de estranhamento, - as formas como se trocam

mercadorias, - o modo como a solidão desponta, a arte da

sobrevivência (meninos de rua e mendigos), - as vitrines onde o ritual

da mercadoria inebria, - o contraste das construções, das suas

formas, usos, cores, - as imagens dos outdoors luminosos que

ocupam o olhar (CARLOS, 2000, p. 245).

Especificamente nos trabalhos de Carlos (2000, 2007a, 2007b), a rua aparece

como um ambiente público, principalmente para os jovens, que criam espaços de

encontros, diversão e lazer, onde a sociabilidade, a mobilização política e a

9 Trecho da fala de Gey Espinheira no documentário Hip-Hop com Dendê.

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produção de uma identidade aparecem juntas. Tais espaços urbanos, considerados

como públicos, como praças, ruas e quadras de esportes, contribuíram para que o

hip-hop ganhasse forma e conquistasse novos adeptos. O trecho da música “Senhor

Tempo Bom”, a seguir, ilustra bem a importância da rua para a manifestação das

relações de solidariedade, as insurgências e a questão pedagógica da juventude

hip-hop e como ocorreu a sua apropriação.

O tempo foi passando, eu me adaptando,

aprendendo novas gírias, me malandreando,

observando a evolução radical de meus irmãos,

percebi o direito que temos como cidadãos,

de dar importância a situação,

protestando para que achamos uma solução.

Por isso Black Power continua vivo,

só que de um jeito bem mais ofensivo,

seja dançando break, ou um DJ no scratch,

mesmo fazendo Graffiti, ou cantando RAP.

Lembra do função, que com gilette no bolso

tirava o couro do banco do buzão,

uma tremenda curtição?

E fazia na calça a famosa pizza.

No Centro da cidade as grandes galerias,

seus cabelereiros e lojas de disco,

mantém a nossa tradição sempre viva.

Mudaram as músicas, mudaram as roupas,

mas a juventude afro continua muito louca.

Falei do passado e é como se não fosse,

o que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop

Black Power de hoje. (Senhor Tempo Bom10)

Outra questão que devemos explorar nesse trecho é a identidade enquanto

processo, que está sempre em mutação, sempre sendo construída e

contextualizada, como é o caso dos jovens negros da cidade de São Paulo e a

importância do hip-hop nesse contexto.

Sposito (1994), ao pesquisar o hip-hop paulistano e as diversas formas de

sociabilidade juvenil, também considera a rua como um elemento importante para a

formação e construção da cultura hip-hop:

10

Trecho da música Senhor Tempo Bom de Thaide e Dj Hum, letra da música completa em anexo.

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o rap será analisado como manifestação jovem, originada nas ruas

das cidades, em seus bairros distantes onde vivem os setores mais

empobrecidos de São Paulo. Sob esse ponto de vista ele passa a ser

entendido como produto da sociabilidade juvenil, reveladora de uma

forma peculiar de apropriação do espaço urbano e do agir coletivo,

capaz de mobilizar jovens excluídos em torno de uma identidade

comum (SPOSITO, 1994, p. 167).

Os estudos sobre a rua são de uma riqueza incomensurável, uma vez que

abrem possibilidades para compreender os processos e as táticas de apropriação do

hip-hop pela juventude, além de nos oferecer subsídios para uma possível

aproximação entre juventude e lugar, uma vez que o plano da vida é vivido e

realizado na rua (CARLOS, 2007a).

Podemos afirmar que a vida aí é inesgotavelmente rica e plena de

energia — é o nível do vivido. Na rua encontra-se não só a vida mas

os fragmentos de vida, é o lugar onde o homem comum aparece ora

como vítima, ora como figura intransigente e subversiva. No

movimento da rua encontra-se o movimento do mundo moderno.

‘Não posso dizer o quanto me fazem falta as ruas’, escreve Charles

Dickens de Lausanne onde trabalhava, ‘é como se elas fornecessem

algo ao meu cérebro do qual ele não pode prescindir para poder

trabalhar (...) minhas personagens parecem querer ficar quietas se

não têm uma multidão ao redor’ (CARLOS, 2007a, p. 51).

A apropriação da cultura hip-hop pela juventude brasileira de certa forma

demonstra esse diálogo tenso entre o local e o global, entre o lugar e o mundo, e

como a rua, por ser um ambiente público, se destaca nesse processo de

apropriação. Sansone (1997) reconhece a força do lugar e seu caráter dialógico, ao

afirmar que, apesar de uma inquestionável globalização do universo das culturas

juvenis, as mesmas conseguem manter uma série de aspectos locais, determinados

por uma história local e por contextos específicos.

Dayrell (2005) ilustra muito bem essa relação dialética entre o global e o local

ao analisar o hip-hop na cidade de Belo Horizonte:

[...] os jovens constroem uma forma própria de vivenciar o estilo rap

em Belo Horizonte, o que dá ao estilo uma feição local, mesmo com

as influências de Rio de Janeiro, São Paulo e EUA. Esta constatação

diz sobre os processos de difusão cultural no contexto de uma

sociedade cada vez mais globalizada. Como expressão de uma

cultura juvenil, o estilo rap não é o resultado de uma progressiva

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homogeneização e massificação cultural que homologaria a um único

registro uma produção cultural juvenil, independente das condições

estruturais concretas nas quais esses jovens estariam inseridos

(DAYRELL, 2005, p. 94).

Vale salientar que a juventude brasileira não se apropriou apenas do hip-hop

em si, mas de todos os utensílios técnicos que compõem a cultura, como as pick-

ups11 de som, os discos de vinil, a aparelhagem de som, sprays, etc., elementos

técnicos que fazem parte da essência do hip-hop, o que contribuiu para que essa

juventude superasse a condição de meros consumidores e passasse para a

condição de criadores de sua própria cultura, produzindo seus próprios conteúdos,

permitindo a inserção desses jovens na era da simulação digital. A emergência do

hip-hop enquanto uma cultura popular vai se dar justamente pela apropriação dos

meios técnicos que antes eram exclusivos da cultura de massa. Técnica em nosso

trabalho é entendida a partir da concepção de Milton Santos, que compreende a

técnica como um “conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem

realiza sua vida, produz, e ao mesmo tempo, cria espaço” (SANTOS, 2008b, p. 29).

Essa questão da apropriação da técnica pelos jovens hiphoppers nos ajuda a

elucidar duas questões essenciais sobre o hip-hop: a primeira justifica a cidade de

São Paulo ser o ponto inicial da cultura no Brasil, uma vez que a capital paulista é o

local com a maior concentração de objetos técnicos do país, consequentemente é a

cidade que vai receber um maior conteúdo de informação proveniente do processo

de globalização; a segunda explica porque o break foi o primeiro elemento a se

enraizar no país, pois, ao contrário dos outros elementos do hip-hop, o break é o

único elemento que não necessita de um objeto técnico para ser produzido e

reproduzido, uma vez que o corpo é o principal e único instrumento para a prática da

dança.

Se em Nova York essa apropriação da técnica pelos jovens das periferias se

deu a partir de objetos obsoletos da indústria fonográfica, em São Paulo esses

mesmos objetos técnicos (pick-up de sons, computadores, caixas amplificadoras)

eram tidos como relativamente novos, de última geração, fato este que ilustra muito

bem a distribuição desigual da técnica pelo mundo, e que se reproduz em escalas

menores. De certo modo, o acesso à técnica para essa juventude paulista, repito

11 Aparelhagem eletrônica do DJ, com a qual os mesmos produzem suas batidas eletrônicas, os samplers.

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negros, pobres e moradores da periferia, era bastante limitado, escasso em alguns

casos, mas isso não impediu que eles pudessem se apropriar da cultura hip-hop,

uma vez que os mesmos, por meio das brechas cotidianas (SERPA, 2011a) criaram

o hip-hop a partir do improviso de outros elementos técnicos, reavaliando o que

Santos (2008b) chama de tecnoesfera e psicoesfera. Podemos citar o exemplo de

alguns grupos de rap paulistanos, que, devido à escassez de determinados

utensílios técnicos, introduziram novos elementos no contexto da cultura hip-hop,

principalmente no que tange à sonoridade da música rap. Por não terem acesso a

programas de simulação digital modernos, produziram um rap com uma batida mais

simples, mais seca, o famoso “pum, pum, pá”, o que também contribuiu para dar um

caráter específico ao hip-hop tupiniquim.

Por serem “diferentes”, os pobres abrem um debate novo, inédito, às

vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já

presentes. É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera,

encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e

também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e

afetiva (SANTOS, 2008b, p.326).

Em uma outra obra, Santos (2006) nos mostra que a escassez da técnica é

um ponto central para o entendimento da produção cultural das camadas populares.

No fundo, a questão da escassez aparece outra vez como central.

Os “de baixo” não dispõem de meios (materiais e outros) para

participar plenamente da cultura moderna de massas. Mas sua

cultura por ser baseada no território, no trabalho e no cotidiano,

ganha força necessária para deformar, ali mesmo, o impacto da

cultura de massas. Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria

uma economia territorializada, cria uma cultura territorializada, um

discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da

vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a

experiência da convivência e da solidariedade. É desse modo que,

gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como alimento da

política dos pobres, que se dá independentemente e acima dos

partidos políticos e das organizações. Tal cultura realiza-se segundo

níveis mais baixos da técnica, de capital e de organização, daí suas

formas típicas de criação. Isto seria, aparentemente, uma fraqueza,

mas na realidade é uma força, já que se realiza, desse modo, uma

integração orgânica com o território dos pobres e o seu conteúdo

humano. Daí a expressividade dos seus símbolos se manifestarem

na fala, na música e na riqueza das formas de intercurso e

solidariedade entre as pessoas. E tudo isso evolui de forma

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inseparável, o que assegura a permanência do movimento

(SANTOS, 2006, p.144-145).

São justamente essas práticas criadoras geradas a partir da escassez

abordadas por Santos (2006), que permitem as apropriações, como também afirma

Seabra (1996), no nosso caso, a apropriação da cultura hip-hop é realizada graças

às práticas criadoras e à subversão da ordem global que se realizam no plano do

vívido.

As práticas criadoras revelam o sentido do que aparece como

desprovido deste. As capacidades produtivas e criadoras nascem

humildemente ao nível do chão; logo emergem do cotidiano e do

vívido, se erguem, se ampliam, e por último se desprendem e se

tornam autônomas (SEABRA, 1996, p.85).

Essa forma de apropriação da cultura hip-hop não é algo particular da capital

paulistana, isso acontece em grande parte das periferias das cidades brasileiras.

3.2.1 A difusão da cultura hip-hop pelo território brasileiro

Sobre a difusão do hip-hop no Brasil, podemos destacar a cidade de São

Paulo como o maior centro irradiador dessa modalidade cultural no país, o que nos

faz retornar novamente a discussão anterior sobre a técnica e sua centralidade. As

condições econômicas regionais e a centralidade da técnica podem explicar o fato

do sudeste, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, ser o principal centro irradiador

da cultura hip-hop no Brasil. Mas, é claro que não podemos ser deterministas, ao

ponto de achar que a centralidade técnica no sudeste foi o único fator responsável

para a apropriação do hip-hop pela juventude paulistana: outros fatores como

identificação com o hip-hop americano e o contexto brasileiro da época não devem

ser negligenciados em nossa análise. No entanto, a apropriação da técnica e dos

meios de comunicação, especialmente a internet e as rádios comunitárias, foi

fundamental para que o hip-hop se difundisse pelo território brasileiro.

E essa difusão ocorreu em primeiro plano nas grandes cidades, como Porto

Alegre, Belo Horizonte, Campinas, Salvador, Recife, dentre outras, para

posteriormente chegar às cidades de pequeno e médio porte.

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Glauco Bruce Rodrigues (2009), assim como o autor dessa dissertação

(SANTOS, 2008), entendemos que o hip-hop brasileiro é um movimento cultural e

político que não pode ser analisado separando-se o aspecto cultural do aspecto

político, desse modo rompendo-se com uma forma de pensar e agir e fragmentando

a vida humana em “esferas” (política, econômica, cultural e social).

O hip-hop nos mostra como a economia, a cultura, e a política

perpassam uma pela outra, constituindo um movimento do socius

que não pode ser esquartejado. Através da arte e da cultura se faz

política, que por sua vez, é matéria-prima para a arte e a cultura

(RODRIGUES, 2009, p.100).

Mesmo tendo a cidade de São Paulo como principal centro difusor, o hip-hop

brasileiro continuou se hibridizando, sempre se adaptando a aspectos da cultura

local, demonstrando o caráter dialógico entre o local e o global, além de quebrar as

fronteiras simbólicas entre o rural e o urbano no Brasil, já que, mesmo se tratando

de uma cultura genuinamente urbana, o hip-hop também foi apropriado pelos índios

brasileiros:

É fato que na contemporaneidade, o fenômeno do rap extrapolou os

limites sociais e geográficos das cidades brasileiras, chegando até

os âmbitos das reservas indígenas, em específico, na cidade de

Dourados no Mato Grosso do Sul, onde recentemente foi criado o

primeiro grupo de Rap indígena: os Brô Mc´s (SANTOS, L. 2011, p.

3).

E assim como o hip-hop urbano brasileiro, o hip-hop indígena se configura

como um grande instrumento de contestação social, de organização juvenil entre os

índios, com um discurso pautado a partir de sua realidade, na qual o português, nas

canções de rap, se mistura com a língua nativa da aldeia, instrumentos típicos da

cultura indígena são introduzidos à sonoridade da música rap.

O hip-hop no Brasil ganhou fortes contornos de movimento social, devido,

principalmente, a sua forma de organização através das posses12, como afirma

Elaine Andrade (1999). Neste contexto, a palavra cultura foi muitas vezes substituída

pela palavra movimento, uma vez que a juventude negra utiliza a cultura hip-hop

como um instrumento pedagógico, de militância social, racial e política, tendo na

12

Posses é uma forma de organização da cultura hip-hop, que procura congregar os jovens a fim de debaterem temas do cotidiano como: exclusão social, preconceito racial, violência policial entre outros temas contundentes.

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música rap seu principal veículo de comunicação. Na verdade, a cultura hip-hop,

principalmente o hip-hop paulistano, foi muitas vezes entendido como algo além da

cultura, uma forma de participação social e de militância política.

O hip-hop tornou-se uma das ferramentas centrais de crítica social

para uma juventude marginalizada que tem poucas perspectivas de

emprego e que possui acesso extremamente limitado à educação.

Através do rap, os jovens aprendem sobre Zumbi dos Palmares –

herói da luta contra a escravidão – e outros importantes líderes afro-

brasileiros; eles aprendem sobre a história da luta da população

brasileira para acabar com a ditadura militar, e para muitos, é por

onde lhe são introduzidos conceitos de revolução, socialismo e

democracia (MARSHALL, 2003, p.1 apud PIETERSE, 2008 p. 111).

Diante da afirmação de Andrade (1999), surge uma indagação: será que hoje

podemos conceber a cultura hip-hop como um movimento social? Segundo Nécio

Turra Neto (2009), o hip-hop pode ser definido como uma manifestação juvenil, e, ao

mesmo tempo, cultural e política, convergindo com a mesma ideia de C. Santos

(2008) e Rodrigues (2009). Mas, para Turra Neto (2009), enquanto um movimento

de juventude, o hip-hop guarda algumas especificidades e apenas num sentido

muito particular pode ser considerado um movimento social; outros autores preferem

denominar o hip-hop como uma ação coletiva ou um ativismo social, muitas vezes

se utilizando dessas palavras como sinônimas, mas, afinal, o que são movimentos

sociais, ativismo social e ação coletiva? Podemos considerá-los como termos

sinônimos?

3.2.2 Será a cultura hip-hop um movimento social?

Este questionamento é também levantado e problematizado por outros

estudiosos da cultura hip-hop, principalmente Glauco Bruce Rodrigues (2009) e

Nécio Turra Neto (2009; 2010): o primeiro pesquisa o hip-hop no contexto da cidade

do Rio de Janeiro e o segundo desenvolveu sua pesquisa sobre os movimentos hip-

hop e punk na cidade de Guarapuava, interior do Paraná.

Quanto aos movimentos sociais, Souza (2009) traz duas abordagens distintas

sobre o termo dentro das ciências sociais e da própria geografia. No entendimento

de alguns autores, “tudo é movimento”; para esses autores a expressão “movimento

social” poderia recobrir e efetivamente recobre tipos de ação coletiva dos mais

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diferentes, independentemente do nível de ambição, do grau de organização e da

escala temporal:

Entretanto, para outros autores (como, de maneiras diferentes, Touraine [1973], Castells [1972] e eu próprio [vide p. ex. 1988, 2006 e 2008]), ‘movimento’ é um termo que deve ser reservado para ações coletivas organizadas, de caráter público e relativamente duradouras particularmente ambiciosas (SOUZA, 2009, p.9-10).

Podemos perceber que, para alguns autores, existe uma diferença entre ação

coletiva e movimentos sociais, e os principais pontos diferenciais entre ambos

seriam o tempo e as formas de ação. Segundo Souza (2009), o conceito

intermediário entre ação coletiva e movimento social é o de ativismo social, fazendo

questão de diferenciá-los:

Para mim o conceito intermediário entre ação coletiva e movimento é

ativismo social: assim como todo ativismo é uma ação coletiva, mas

nem toda ação coletiva é um ativismo, todo movimento social é um

ativismo, mas nem todo ativismo é um movimento social.

Conceitualmente, movimento social é um subconjunto de ativismo,

que por sua vez é um subconjunto de ação coletiva (SOUZA, 2009,

p. 10)

A ideia de movimentos sociais proposta por Souza (2009) consiste em

perceber os movimentos sociais como algo que se dá por um caráter mais

duradouro (tempo), mais organizado e ambicioso, politicamente falando.

Concebemos o conceito de movimentos sociais como Souza (2009), por

entender que existem determinadas diferenças entre movimento social, ativismo

social e ação coletiva, e, devido a isso, nem toda ação coletiva deve ser tratada

como movimento social.

O ativismo social, ressalta Rodrigues (2009), abarca uma série enorme de

ações, organizações e mobilizações sociais, que podem transitar entre ações

coletivas a movimentos sociais, abarcando desde as ações menos contundentes,

como ações paroquiais, que não aprofundam sua crítica ao modelo de sociedade

instituído e encarnam lutas pontuais e específicas que se exaurem assim que o

problema é resolvido, até mobilizações mais amplas e contundentes, dotadas de um

forte poder transformador e discurso crítico acerca da sociedade instituída, que

questionam seus fundamentos políticos, econômicos, culturais e étnicos.

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Rodrigues (2009) e Turra Neto (2009, 2010) consideram o hip-hop como um

ativismo social com grande potencial questionador, crítico e pedagógico, que pode

servir como base importante para conquistas de cidadania. Rodrigues (2009) chama

atenção, por outro lado, para algumas vertentes do movimento hip-hop, que também

poderiam ser consideradas como autênticos movimentos sociais, por apresentar um

caráter duradouro e se basear em ações políticas concretas, desenvolvendo

processos de transformações efetivas na sociedade.

Serpa (2009) inclui a questão cultural na concepção de ativismos sociais, e

passa a chamá-los de ativismos socioculturais, em suas pesquisas sobre as

manifestações culturais nos bairros populares da cidade de Salvador. O autor afirma

que a solidariedade, a sociabilidade e os laços de vizinhança existentes nesses

bairros servem como potencializadores desses ativismos socioculturais, no entanto

não são determinantes. Como Serpa (2009), e por uma questão nossa de

precaução, entendemos a conjuntura da cultura hip-hop em Salvador como um

ativismo sociocultural que pode a qualquer momento se elevar a um movimento

social, aspecto que melhor explicitaremos no capítulo seguinte.

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4 AS PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP NA CIDADE DE SALVADOR-

BA, UM ESTUDO A PARTIR DO CABULA

Para falarmos sobre a apropriação do hip-hop pela juventude do Cabula é

necessário fazer um breve histórico sobre o hip-hop em Salvador e a formação dos

primeiros grupos de rap, de grafite e de break, uma vez que grande parte dos

sujeitos dessa pesquisa tiveram seu primeiro contato com o hip-hop em meados dos

anos 1990, anos esses nos quais o hip-hop emerge com bastante força no cenário

urbano da capital baiana.

O interessante de se notar é que a apropriação do hip-hop pela juventude

baiana foi (e ainda é) do “tipo” tática (CERTEAU, 2008), pois esses jovens que, em

sua grande maioria, são negros, pobres e habitantes das periferias, se apropriam do

hip-hop a partir da subversão e nas brechas do cotidiano das grandes metrópoles

(SERPA, 2011a), pois “é nesse âmbito do vívido que a luta pelo uso se estabelece”

(SEABRA, 1996, p.81). Isso foi observado de forma bastante acentuada no lugar de

nossas pesquisas, no bairro do Cabula, onde pudemos perceber como o lugar

interfere de forma direta na configuração e em todo o discurso produzido pelos

jovens hiphoppers.

Durantes os eventos que participamos, observando e aplicando enquetes, foi

possível perceber a versatilidade desses jovens e a dificuldade que encontram para

produzirem seus eventos de hip-hop.

Um dos eventos que presenciamos no Cabula foi o “Hip-hop de Louco para

Louco”, realizado no dia 07 de agosto de 2011 na quadra poliesportiva localizada em

Narandiba, próxima ao hospital psiquiátrico Juliano Moreira, daí o nome do evento

“Hip-hop de Louco para Louco” considerando e incorporando ao discurso dos

hiphoppers a toponímia que envolve o lugar. Nesse evento se apresentaram os

grupos de rap Nigaz, Lado Gang, Ordem 387, Versus Sangrento e Estado

Emocional, grupos do Cabula e de outros bairros como Cosme de Farias e São

Caetano.

O evento estava marcado para iniciar às 15h: só que o início às 15h é

somente para quem vai curtir o evento, já que, para as pessoas que trabalham na

produção e organização, o evento começa bem antes, nesse caso o Dj Ivan, o Dj

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Luizinho e Black Rai, responsáveis pela realização, produção, organização e

divulgação do “Hip-hop de Louco para Louco”.

Cheguei ao local por volta das 12:30h. Dj Ivan, Dj Luizinho e Black Rai já

estavam lá, já tinham transportado os equipamentos e davam os últimos retoques no

som, além de armar o toldo para proteger o equipamento de uma possível chuva. Às

13h:30min já estava tudo pronto, quando os Dj’s começaram a passagem de som.

Esse é o momento no qual estão equalizando o som, para deixá-lo “bem legal” para

os ouvidos dos rappers e do público em geral. Na fala de Black Rai podemos

perceber as dificuldades enfrentadas por esses jovens para realização de um show

de hip-hop na cidade:

Correria o tempo todo, é nós por nós, como a gente costuma dizer, é um ajudando sempre o outro, montar um som, pra fazer um diferencial na cultura baiana, trazer mais informação. É tudo do nosso bolso, tudo na correria, às vezes a gente trabalha hoje pra poder montar um som amanhã, pega de manhã cedo, vai até a tarde, montando o equipamento (Black Rai).

Às 15h começaram a chegar as primeiras pessoas, iam chegando e ficando

nos arredores da quadra, no espaço de fora do alambrado, esperando outros

conhecidos chegarem para se juntar à turma. O show começou com freestyles13,

quando o microfone era franqueado para qualquer pessoa que se habilitasse a

“mandar sua rima”. Os grupos começaram a chegar efetivamente por volta das

15h30min e a conversar para decidir a ordem de apresentação dos grupos e o

tempo de cada um: a disputa era para ver qual seria o grupo que abriria o evento,

pois nenhum deles queria fazê-lo, com a justificativa que não havia ainda público

suficiente e o sol estava muito quente. Versus Sangrento foi o primeiro grupo a se

apresentar, quando já passava das 16 horas.

Com relação ao público, tendo a concordar com os grupos, tanto é que nunca

começávamos a aplicação das enquetes no início dos eventos: sempre

esperávamos um pouco para começar, pois não havia quase ninguém, e as pessoas

que iam chegando não entravam logo na quadra, ficando em suas imediações. Isso

pode ser observado na figura 6, no momento em que alguns jovens faziam seus

freestyles não havia público no espaço de dentro da quadra.

13

Freestyles são Rap’s de improviso, o qual os rappers produzem no exato momento da apresentação.

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Figura 6: Jovens aproveitando a passagem de som para mostrarem seus freestyles Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Durante as apresentações o som apresentou um defeito e nesse momento

pude perceber a dificuldade que é organizar um evento, e entender a frase citada

por Black Rai “é nós por nós”. O operador e o técnico de som era Dj Ivan, que

também é o dono do equipamento: rapidamente identificou o defeito (a fonte de

alimentação tinha queimado) e saiu para buscar ajuda de um vizinho que conserta

aparelhos eletroeletrônicos e tem uma oficina próxima. Porém, como era domingo,

ele foi diretamente para a casa do rapaz, conseguindo uma carona de moto com um

dos rappers que também iria se apresentar no evento. Trinta minutos depois, Ivan

retorna com o problema solucionado e um novo “prejuízo”, pois teve que pagar para

o vizinho pelo conserto do equipamento, equipamento este que também é uma

forma de Ivan ganhar dinheiro através do aluguel para festas de aniversário, boates,

shows, etc. Mas, quando é para eventos de hip-hop ele não cobra, é gratuito, pois,

segundo Ivan, é uma forma que tem para “reunir a galera, se divertir, e tomar sua

cervejinha de final de semana”. Graças ao som de Dj Ivan, a viabilização dos

eventos de hip-hop no Cabula se torna menos dispendiosa, haja visto que não

precisam pagar pelo aluguel do equipamento. Geralmente, quando não conseguem

nenhum apoio dos comerciantes do bairro, eles mesmos juntam dinheiro e pagam

para fazer o frete do transporte do som até o local do evento.

Problema parcialmente resolvido, o show recomeça, e o tempo que esteve

suspenso foi suficiente para mais pessoas chegarem, e também para a praça que

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fica próxima à quadra de esportes encher de gente: mães que levavam seus filhos

para brincar, casais de namorados, comerciantes locais com isopor de cerveja, o

carrinho de cachorro quente, o churrasquinho e o tabuleiro do acarajé, ou seja,

mesmo com o evento de hip-hop acontecendo no local, a rotina de fim de semana

dos moradores do bairro não foi alterada, tanto é que o show só ocupava uma

metade da quadra, a outra metade era ocupada por crianças jogando bola.

O problema foi parcialmente resolvido, pois, minutos depois do recomeço do

evento, a aparelhagem de som começava a desligar sozinha, problema da energia

que vinha de um bar próximo à quadra, que, por não suportar a tensão do som

somada aos freezers do bar, desligava, causando sérios problemas para os

equipamentos: a solução foi improvisar uma gambiarra em um poste próximo, para

que o evento pudesse continuar.

É nesses eventos que percebemos o porquê de algumas pessoas dividirem o

e rap com os outros dois elementos, o Dj e o Mc: pelo fato de alguns grupos não

terem Dj, como no evento “Hip-hop de Louco para Louco”, no qual nenhum dos

grupos tinha um Dj próprio. Eles chegavam com as bases de seu rap’s gravadas em

uma mídia de CD e indicavam ao Dj Ivan ou ao Dj Luizinho as faixas que seriam

tocadas durante a exibição.

Figura 7: Apropriação da técnica pelos jovens hiphoppers Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

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Outra questão interessante é a forma como esses jovens se apropriam da

tecnologia, para produzir e divulgar seus grupos, como mostrado na figura 7.

Durante o show pudemos observar algumas câmeras fotográficas e filmadoras de

posse dos jovens hiphoppers, que as utilizavam para gravar seus shows, e

posteriormente montar seus videoclipes, “alimentando” suas páginas nas redes

sociais ou seus próprios blogs.

Mesmo com os contratempos o evento correu bem e chegou ao fim depois

das 20h: o horário pode parecer um pouco cedo, mas para quem anda de transporte

público na cidade de Salvador, ainda mais aos domingos, é tarde, já que a frota

começa a ficar reduzida e o tempo de espera nos pontos de ônibus é maior. Além

disso, a segunda-feira é dia de trabalho para a maioria desses jovens, por isso,

quando o horário das 20h se aproxima, o evento começa a ficar esvaziado, pois,

antes mesmo do fim, pelos motivos citados, muitas pessoas já começam a ir

embora. E, assim como no início do evento, para os organizadores o show também

termina mais tarde, pois é o momento de desmontar os equipamentos e esperar o

rapaz do frete para fazer o transporte de toda a aparelhagem de som.

Acredito que todas as dificuldades enfrentadas por esses jovens para a

realização de um evento não são exclusivas do Cabula, é uma dificuldade geral da

cena hip-hop em Salvador. É claro que existem eventos mais “organizados”, com

menos problemas, uma vez que estamos falando aqui de um evento de pequeno

porte organizado por eles mesmos, sem nenhum auxílio financeiro por parte do

poder público ou da iniciativa privada.

Todas as ações que são desenvolvidas por esses jovens para a realização

desses eventos podem ser consideradas como uma política de cultura (TURENKO,

2009). Turenko chama atenção que as políticas culturais não devem e nem podem

se esgotar nas ações governamentais, pois diversos setores da sociedade civil

organizada, entre elas o hip-hop, também desenvolve políticas de cultura.

4.1 O MOVIMENTO HIP-HOP NA CAPITAL BAIANA

A cultura hip-hop se difundiu pelo Brasil tendo como principal centro

irradiador a cidade de São Paulo. Assim como aconteceu na capital paulistana, o

principal elemento a permear o cenário urbano de Salvador foi o break, apropriado

pelos frequentadores dos bailes Black, bailes funk que aconteciam em meados da

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década de 1980 no subúrbio ferroviário de Salvador. Esses bailes eram organizados

por jovens empresários cariocas e contavam com a presença massiva da juventude

do subúrbio e de outros bairros da cidade, com o intuito de se reunirem entre seus

pares de forma lúdica e por meio da música, como destaca Sansone (1997), em seu

trabalho sobre o funk baiano.

A pesquisa realizada por Sansone (1997) deixa claro que o break foi

apropriado inicialmente pelos funkeiros14 frequentadores do baile Black Bahia, que

deu origem a diversos grupos de dança, os chamados b.boys. Vale ressaltar que até

hoje existem os bailes black do subúrbio ferroviário e muitos b.boys que atuam hoje

no movimento hip-hop aprenderam a dançar nos bailes funk do subúrbio. Aspri,

integrante do grupo Rapaziada da Baixa Fria, mostra de certa forma como o

elemento break, no início da década de 1990, era ainda dissociado do hip-hop, pois

ele já praticava a dança sem ter consciência que a mesma fazia parte de um

universo cultural mais amplo denominado hip-hop.

O contato com o hip-hop, primeiramente, enfim, veio com a música rap, foi por volta de [...] vixe, remotamente, quando começou a base mesmo, foi por volta de 96 pra 97, mas enfim, tava iniciando em Salvador, mas inconscientemente a gente já dançava break na rua, em 90, dançava break de Michael Jackson, ficava fazendo roda de break com irmão mais velho, e aí tinha aquela coisa de não saber o que era o hip-hop em si, mas inconscientemente a gente já dançava, a partir de 97, 96, aí começou mais a consciência com o hip-hop como movimento.

O encontro do break com os outros elementos da cultura hip-hop só foi

possível a partir de meados dos anos 1990, como Aspri deixa claro em sua fala,

quando jovens negros da periferia começaram a formar os primeiros grupos de rap e

a se organizar através das posses. Esse dado é importante para nossa análise, pois

mostra mais uma vez que a difusão do hip-hop pelo território brasileiro, assim como

a difusão do sistema técnico, ocorreu de forma bastante desigual: se em São Paulo

os primeiros grupos começaram a se formar no final dos anos 1980, em Salvador

isso só foi possível na década seguinte.

A cultura hip-hop foi apropriada pela juventude soteropolitana como um

instrumento de militância racial, social e, sobretudo, como uma ferramenta

pedagógica de formação política, convergindo um pouco com os propósitos do hip-

hop paulistano, mas mantendo suas especificidades. Segundo os relatos de jovens

14

Nome dado aos adeptos do estilo musical funk.

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hiphoppers, o hip-hop soteropolitano tem muita influência do paulistano, pelo fato de

alguns grupos de rap de São Paulo, como Thaíde e Dj Hum e Racionais Mc´s, terem

sido os primeiros grupos de rap brasileiro a aparecer nos meios de comunicação de

massa, ou seja, o primeiro contato que a juventude baiana teve com o hip-hop

brasileiro foi oriundo dos grupos paulistanos. Falo hip-hop brasileiro porque, antes

mesmo disso, já se tinha conhecimento do hip-hop enquanto uma cultura

estrangeira.

Mesmo com tamanha aproximação com o hip-hop paulistano, o hip-hop

baiano sempre procurou manter suas especificidades, graças ao caráter híbrido do

hip-hop. Ao ser apropriado pela juventude baiana, o hip-hop se tornou “baianíssimo”,

pelo fato de assumir contornos da cultura local, ganhando novos sotaques, novas

linguagens e uma nova roupagem, tornando-se assim o hip-hop baiano, um

movimento genuíno, original e autêntico.

Para entendermos melhor o estilo e o sotaque baiano dessa cultura global,

chamada hip-hop, é preciso discutir os processos de globalização e

homogeneização cultural e a importância do lugar nesses processos.

Precisamos estar cientes de que o próprio hip-hop é fruto da globalização e

nos serve como exemplo para entendermos seu caráter contraditório, que tem como

norma geral a homogeneização dos lugares, homogeneização não apenas no

aspecto técnico e material, mas também cultural e simbólica. No entanto, o que

percebemos é a emergência do lugar, o retorno ao localismo e a força das

comunidades locais diante do processo de globalização, e o próprio hip-hop é um

exemplo disso. A afirmação de Santos (2006), a seguir, ilustra muito bem esse

processo:

O processo de globalização acaba tendo, direta ou indiretamente, influência sobre todos os aspectos da existência: a vida econômica, a vida cultural, as relações interpessoais e a própria subjetividade. Ele não se verifica de modo homogêneo, tanto em extensão quanto em profundidade, e o próprio fato de que seja criador da escassez é um dos motivos da impossibilidade da homogeneização. Os indivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno, cuja difusão encontra obstáculo na diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares. Na realidade, a globalização agrava a heterogeneidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutural (SANTOS, 2006, p. 142-143).

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O trecho acima mostra mais uma vez a força do lugar e a importância de seu

entendimento no bojo do processo de globalização e, nesse caso, convergimos para

a mesma ideia propagada por Rodrigues (2007): o autor entende que é a partir do

lugar de onde se fala que se constroem discursos e práticas políticas, que vão

sustentar e dar consistência ao hip-hop como uma cultura política. “É impossível

pensar o Hip-Hop dissociado do lugar de onde emerge, que são favelas, periferias e

conjuntos habitacionais” (RODRIGUES, 2007, p. 08).

Podemos notar esses fatos, através da ação do grupo RBF, que mistura, com

as batidas eletrônicas típicas do hip-hop, o som do berimbau, do agogô e da

percussão, acrescentando outros elementos da cultura negra local, sem falar no

próprio ”baianês” cantado nas músicas, o que podemos considerar como táticas

(CERTEAU, 2008) que intencionam dar um aspecto mais local a essa cultura

estrangeira. Jasf, integrante do grupo Os Agentes, quando instado a responder

sobre o que tem de soteropolitano no hip-hop produzido por ele, diz que:

Tem o sotaque, tem as nossas gírias, o baianês. A gente acha importantíssimo deixar nítido as nossas gírias, na música e nos livrar cada vez mais das gírias paulistanas, é, dos paulistas, porque, para não ficar aquela questão de importado.

O lugar é o espaço em que a negociação se impõe, pela situação de

coexistência, por isso ele é por excelência o espaço da política (RODRIGUES,

2006). E o hip-hop para essa juventude é um meio de se fazer política, e de

participar, efetivamente, da vida política de sua rua, seu bairro, sua cidade etc., uma

vez que o hip-hop, através de seus elementos, seja do rap, do break ou do grafite,

oferece ferramentas práticas para que esses jovens possam produzir um discurso

próprio fazendo com que o mesmo circule entre seus pares.

Além do lugar se apresentar como o local da política e da existência, é no

lugar também que se tecem os laços de solidariedade, os laços de vizinhança,

essenciais para estabelecer uma ação comunicativa entre os indivíduos que

partilham o mesmo espaço, principalmente as classes populares, uma vez que “é na

esfera comunicacional que eles, diferentemente das classes superiores, são

fortemente ativos” (SANTOS, 2008a, p. 326).

Paula (2001) nos oferece subsídios práticos e interessantes para entender o

poder da ação comunicativa na cultura hip-hop e a articulação do movimento:

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O movimento Hip-Hop constitui-se como um importante exemplo de ação comunicativa de um grupo social; ou seja, um grupo de indivíduos que possuem condições em comum, como a exclusão social ou a convivência nos guetos, e a partir da transformação de fragmentos de interesses em alguma coisa concreta – através da criação cultural de forma marginal, mas que aos poucos ganha o espaço urbano, o grupo age comunicativamente. Porém, a ação fica restrita a um conjunto de indivíduos que possuem símbolos que os qualificam como hip-hopperrs (PAULA, 2001, p. 89).

Serpa (2005a, 2005b), em suas pesquisas sobre as redes sociais e a

representação da cidade nos bairros populares de Salvador, afirma que nos bairros

populares das metrópoles capitalistas são os moradores os verdadeiros agentes de

transformação do espaço. Pois os moradores, através da ação comunicativa,

articulam-se em redes formais e informais15, superpostas de acordo com o tema em

foco. Fazendo uma alusão à cultura hip-hop e às citações supracitadas de Paula

(2001), passamos a entender melhor a articulação dos jovens hip-hoppers através

das redes de sociabilidade, sejam elas formais (por meio das posses, ou outros

movimentos sociais como o movimento negro) ou redes informais (constituídas

através dos laços de vizinhança ou de parentesco).

4.1.1 Os primeiros grupos e as primeiras posses formadas em Salvador – BA.

O primeiro grupo de hip-hop a se formar na cidade de Salvador foi o Simples

Rap’ortagem, por volta de 1994. Após sua formação surgiram diversos grupos de

rap, como o Leões do Rap, o Erê Jitolu, dentre outros, como também clãs16 de

grafiteiros e de b.boys, todos oriundos das diversas periferias da cidade de Salvador,

como também da região metropolitana, nesse caso, Lauro de Freitas. É interessante

notar os nomes de alguns grupos que são carregados de simbologia e sempre

buscam fazer alusão às questões culturais de origem afro-brasileira.

A ideia de redes sociais abordada por Serpa (2005a, 2005b) é interessante

para se compreender a formação dos grupos de rap na capital baiana. Em sua

grande maioria esses grupos são formados a partir de laços de solidariedade

existentes entre eles, criando uma trama do lugar, seja nos próprios bairros ou nos

15

Serpa (2005a e 2005b), classifica as redes sociais que atuam nos bairros em dois subgrupos: formal/associativista, como associações de moradores, clubes de mães/pais, templos religiosos e outros tipos de associações, e informal, como grupos de jovens, redes de vizinhança e parentesco. 16

Famílias são grupos de grafiteiros e b.boys (dançarinos de break).

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bairros circunvizinhos. Como afirma Carrano (2002), em seu estudo sobre as

representações dos jovens da cidade de Angra dos Reis – RJ, “[...] somente no

âmbito da sociabilidade tramada no lugar é que a articulação entre os grupos de

amizade e a realização de atividades coletivas, como a organização das bandas, se

torna possível” (CARRANO, 2002, p.144).

Grande parte dos grupos de rap, de break ou de grafite em Salvador surge

nas escolas ou nos próprios bairros por meio das redes de amizade existentes entre

seus componentes. Sem falar que, em alguns casos, a chegada de um novo

integrante nesses grupos é intermediada por um amigo em comum, como foi o caso

de Black Rai, hoje integrante do RBF. Sua chegada ao grupo foi intermediada por

Jasf, do grupo Os Agentes, que sabia que Aspri, líder do grupo RBF, estava à

procura de um novo integrante; por ter vínculo de amizade com Black Rai, sugeriu

seu nome para fazer parte do RBF, e, após algumas conversas, Rai tornou-se

componente do grupo. Através desse exemplo podemos ver como as redes de

amizade são importantes para o hip-hop.

Essas relações só são possíveis graças aos laços de sociabilidade tecidos

nas relações cotidianas existentes nos bairros populares, como nos mostra Serpa:

As relações de vizinhança constituem um caso particular de “redes do cotidiano”. Elas são ainda muito condicionadas pelas diferenças entre classes sociais. Nos bairros populares, a limitação de oportunidades, a pobreza e o isolamento relativos, a insegurança e o medo acabam por fortalecê-las e torná-las parte fundamental da trama de relações familiares. Nos bairros de classe média, as relações entre vizinhos são mais seletivas e pessoais e, na maior parte dos casos, o maior poder aquisitivo faz diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar a necessidade individual de espaço (SERPA, 2005b, p. 213-214).

Esse contexto marcado por laços de amizade não foi propício apenas para a

formação dos grupos de rap, as posses também se formaram assim. No ano de

1996, após diversos encontros entre os jovens que faziam parte de grupos de hip-

hop nas cidades de Salvador e Lauro de Freitas, os grupos decidiram tornar esta

cultura mais “séria”, um movimento mais organizado, conferindo-lhe um caráter mais

social e político, formando-se, assim, a primeira Posse: a Posse Orí, cuja

denominação foi retirada da palavra orixá, cujo sufixo, orí, tem como significado,

cabeça, ou seja, Posse Cabeça (MIRANDA, 2006).

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No final da década de 70, o Hip Hop que engloba o rap chega ao Brasil. E tem se mostrado como a principal força motivadora, aglutinadora, de inserção social e porta voz dos anseios da juventude. Deste modo, utilizar o Rap como um mecanismo de persuasão e atuação entre a juventude se constitui numa estratégia que deve ser valorizada. Na Bahia, o Movimento Hip Hop começou a dar seus primeiros passos em meados dos anos 90. Neste período já havia rumores da existência de grupos de Rap, Break e Grafite que atuavam de forma dispersa dentro das periferias de Salvador. Imbuídos no objetivo de intercambiar relações e no intuito de formar um movimento organizado, alguns grupos de rap se reuniram dia 26 de abril de 1996, realizando, assim, a primeira reunião do Movimento Hip Hop Baiano17.

A Posse Orí traz uma questão curiosa, pois é a primeira posse no Brasil que

congrega duas cidades, Salvador e Lauro de Freitas, além de ter as praças públicas

de ambas as cidades como lugares de encontro para as reuniões da Posse, daí a

importância da rua como um lugar de encontro e de reivindicação, como abordamos

no capítulo três. Nessas reuniões eram discutidos diversos temas. Dentre os mais

abordados, cita-se o fortalecimento da cultura hip-hop enquanto movimento político

cultural e organizado, além de temas do cotidiano vivido por esses jovens, como:

racismo antinegro, a violência policial, e a condição habitacional nas periferias e

favelas. Todos esses temas apareciam de forma contundente nas letras de rap e

nos desenhos dos grafites. Após a formação da Posse Orí, as redes sociais

informais que atuavam de forma localizada nos bairros passaram também a atuar de

maneira mais direta na cidade, superpostas com as redes formais do hip-hop

baiano.

A posse Orí possuía um caráter pedagógico muito acentuado. Vale ressaltar

que todas as atividades organizadas pela Posse, fossem oficinas, palestras ou

seminários, em sua grande maioria eram ministradas por pessoas militantes do

movimento hip-hop. A Posse representava o espaço e a oportunidade que a

juventude hip-hop dispunha de ser sujeito de sua própria história, um momento para

debater seu cotidiano e pensar em soluções para seus problemas, sem falar que

todas essas atividades realizadas na posse servem como um processo de

retroalimentação do próprio hip-hop, pois boa parte dos jovens que participa dessas

atividades se tornará militante da cultura hip-hop, acrescentando que grande parte

dos nossos entrevistados também participou dessas oficinas no passado.

17

Trecho retirado do site do RBF, (http://www.rbfcabula.com/index2.php?page=reacaoSankofa) referente à

primeira reunião do movimento hip-hop na cidade de Salvador, acesso dia 11/09/2010.

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As figuras 8 e 9 mostram a oficina de break realizada no Colégio Estadual

Francisco da Conceição Menezes, no Cabula, pelo projeto Escola Aberta 2012, no

qual os alunos da escola podem participar de inúmeras oficinas, entre elas a de hip-

hop, oferecidas por pessoas do bairro.

Com o passar dos anos, a Posse Orí foi se enfraquecendo, devido a

divergências políticas dentro do grupo e pelo crescimento do hip-hop baiano: uma

questão um tanto quanto contraditória, pois a lógica seria o fortalecimento do hip-

hop e consequentemente o fortalecimento da Posse, só que essa lógica se

concretizou em partes. Com o crescimento do número de adeptos do movimento

hip-hop nas cidades de Salvador e Lauro de Freitas, o movimento se fortaleceu, daí

veio a necessidade de dissolver a Posse Orí em diversas outras, originando várias

Posses nas duas cidades, uma vez que a Posse Orí, segundo relatos, era muito

centralizada e não conseguia contemplar as demandas de todos os lugares.

Segundo Cristiano Siqueira (2004), em sua dissertação sobre a cultura hip-

hop, todo o processo pedagógico - o fazer e o ser, como o autor prefere chamar,

constituído dentro do movimento hip-hop - desenvolve diversas práticas educativas

entre os jovens hiphoppers, o que os torna “autores de si próprios”, a partir do

Figura 9: Grupo Atitude Fonte: Pesquisa de campo (Célio Santos)

Figura 8: Oficina de break Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Figura 9: Grupo Atitude Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

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momento que, por intermédio da cultura, se propõem a discutir temas de seu

cotidiano e, no momento dessas discussões, se veem compelidos a refletirem sobre

seu espaço vívido.

4.2 O BAIRRO DO CABULA E A APROPRIAÇÃO DO HIP-HOP PELA JUVENTUDE

LOCAL.

Antes de abordarmos a apropriação do hip-hop pela juventude do Cabula, faz-

se necessário fazer um breve comentário sobre nosso entendimento conceitual

sobre bairro e a origem do Cabula.

Na ciência geográfica existe uma lacuna na discussão sobre o conceito de

bairro (SERPA, 2007b), são poucos os trabalhos desenvolvidos que se propõem a

discutir o tema, fato também apontado por Souza (1989) no final dos anos 1980:

Quando se examina a literatura acadêmica (sociológica, geográfica urbanística e antropológica) à procura de tratamento teórico-conceitual da realidade bairro, surpreende-se com a relativa escassez deste, pelo menos no que concerne a contribuições de peso (SOUZA, 1989, p. 141, grifo do autor).

Segundo o próprio Souza (1989), boa parte da produção acadêmica sobre o

conceito de bairro foi desenvolvida pela sociologia, sobretudo pela sociologia

culturalista que “[...] acabou restringido a noção de bairro a um coeso agregado de

unidades de vizinhança, apresentando uma vida de relações consistente e um tanto

fechada” (SERPA, 2007b, p. 25), visão esta que, de certa forma, não oferece

subsídios teóricos-metodológicos para melhor compreender a problemática atual do

bairro no contexto das metrópoles capitalistas (SERPA, 2007b).

Souza (1989), a partir de uma visão fenomenológica sobre o bairro, traz

grandes contribuições à ciência geográfica, passando esse a ser entendido como

um espaço vivido e sentido.

Um olhar fenomenológico sobre a constituição dos bairros evidencia que o bairro corresponde a uma certa parcela da cidade que por força de relações sociais, constitui para o indivíduo um espaço vivido e sentido. O reconhecimento e a sensação do bairro que advêm do fato de ser ele o Espaço onde se encontra a casa de um indivíduo, e onde ele talvez tenha nascido, onde se acha igualmente as casas de amigos, a praça que ele frequenta aos domingos pela

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manhã, é entretanto aqui colocado em termos ideais (SOUZA, 1989, p. 149, grifo nosso).

Nos últimos anos a fim de preencher essa lacuna sobre o conceito de bairro

na Geografia, o grupo Espaço Livre de Pesquisa-Ação, coordenado pelo professor

Angelo Serpa, vem realizando no âmbito do Programa de Pós-Graduação em

Geografia da Universidade Federal da Bahia – UFBA várias pesquisas sobre os

bairros de Salvador, procurando desenvolver instrumentos teóricos e metodológicos

na tentativa de construir um conceito de bairro.

O bairro em nosso trabalho é entendido como espaço vivido (SERPA,

2007b), ou seja, o bairro é entendido como lugar: “é no bairro que se elabora o

sentimento de pertencimento ao ‘lugar’, espaço das práticas cotidianas e

aparentemente banal” (SERPA, 2007b, p. 10).

Devemos salientar que, apesar do bairro aqui ser entendido como um espaço

vivido e sentido, assim como os autores supracitados, Serpa (2007b) e Souza

(1989), não podemos, em momento algum, negligenciar a existência dos conflitos

entre os moradores do bairro até porque o conflito, principalmente entre os jovens,

foi peça-chave para que um grupo de jovens se apropriasse da cultura hip-hop como

elemento de afirmação e contestação.

O Cabula, bairro pertencente à região do Miolo18 de Salvador, é originário de

uma antiga fazenda de produção de laranjas (FERNANDES, 2004a), que teve como

seu primeiro núcleo habitacional um quilombo, o qual deu o nome ao bairro.

Segundo Fernandes (2003), Cabula é uma palavra originária do idioma banto, língua

falada por alguns grupos de negros oriundos do Congo e de Angola, e que significa

mistério, secreto, escondido, culto religioso.

De fato, o povoamento do Cabula só vai se intensificar a partir das décadas

de 1960 e 1970, após a construção de condomínios populares por meio de políticas

habitacionais resultantes da parceria dos governos federal e estadual. Fernandes

(2004a) afirma que essas políticas habitacionais foram as principais indutoras do

povoamento, e, consequentemente, da expansão periférica da cidade de Salvador.

Em alguns trabalhos, Fernandes (2004a; 2004b) caracteriza o Cabula como

um bairro popular, o que deve ser questionado no momento atual, uma vez que o

18

Segundo Fernades (2004a), o Miolo de Salvador é assim denominado desde os estudos do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano para a cidade de Salvador (PLANDURB), da década de 1970. Este nome se deve ao fato da região situar-se, em termos geográficos, na parte central do município de Salvador, ou seja, no miolo da cidade.

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bairro, nos últimos anos, tem sido alvo de vários empreendimentos imobiliários

destinados à classe média, como nos mostra Almeida (2010).

Não queremos em momento algum desconsiderar a caracterização do

Cabula adotada pela pesquisadora Rosali Braga Fernandes (2004a; 2004b) como

um bairro popular, pois devemos considerar a variável tempo: as publicações em

questão datam de 2004, o que não quer dizer que o texto foi escrito em 2004. Outro

ponto que deve ser ressaltado é que o atual Cabula passou por diversos processos

de ocupação ao longo de sua história, tornando o bairro bastante diverso, em termos

socioeconômicos. Gouveia (2010), em sua dissertação, descreve os processos de

ocupação do Cabula:

A configuração espacial do Cabula é resultante de quatro processos: a herança dos antigos núcleos quilombolas, o povoamento inicial através da existência de chácaras destinadas à produção agrícola, a ação do Estado e, nas últimas décadas, a atuação do capital imobiliário. Portanto, o bairro é resultado da soma da atuação de distintos agentes, em diferentes contextos históricos (GOUVEIA, 2010, p. 57).

Podemos inserir a presença de um quinto processo de configuração espacial

também muito comum no Cabula: as autoconstruções, frutos da ocupação irregular

de alguns terrenos sem uso na localidade, as famosas invasões, fazendo do Cabula

um bairro bastante heterogêneo; as figuras a seguir mostram um pouco dessa

diversidade na paisagem.

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Nas figuras 10, 11, 12 e 13 podemos observar como os processos de

ocupação agem na configuração do espaço no Cabula, sendo a figura 13 a mais

emblemática de todas, uma vez que evidencia “os Cabulas”: a intenção de levar o

nome do bairro ao plural é de identificar os diferentes processos de ocupação do

Cabula, que aparecem nas respectivas figuras bem próximos.

Figura 10: Condomínio na Avenida Silveira Martins (Cabula A) Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Figura 11: Conjunto Habitacional na Avenida Silveira Martins (Cabula B) Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Figura 12: Autoconstruções na Engomadeira (Cabula C)

Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

Figura 13: Os Cabulas Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

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Essa heterogeneidade do Cabula também vai se refletir em como cada grupo

social vive e percebe a juventude, por isso é que não podemos generalizar a

juventude e considerar a existência de “juventudes”, levando em conta a

diversidade, como propõe Dayrell (2005), considerando as questões social, espacial,

econômica e cultural.

Na fala dos hiphoppers a presença desses “Cabulas” também aparece como

podemos analisar na fala do DJ Joe, que considera a presença de três Cabulas,

classificando-os como A, B e C, dentro de uma hierarquia das condições

econômicas e reiterando a segregação socioespacial intra-bairro apontada por

Almeida (2010).

Tem o Cabula A que você tem locais que tem toda a estrutura, né, de saneamento básico, de segurança, de educação, né, você tem algumas mansões aqui dentro do Cabula que nem, a maioria daqui do Cabula nem sabe que tem, mas tem mansões luxuosas com piscinas, né, tem o Cabula B que é o Cabula é... as pessoas ainda têm a mobilidade de sair pra respirar, e tem o Cabula C que as pessoas ficam reféns, as pessoas não têm o mínimo de condições, não saem do local onde moram há alguns anos, tem pessoas que só saem em situações de saúde ou quando morre alguém a pessoa vai no centro da cidade; o Cabula ainda tem esta deficiência muito grande apesar de ser um bairro muito importante dentro de Salvador (Dj Joe).

Outro ponto emblemático do Cabula é quando se trata de seus limites e de

suas delimitações, o que, na verdade, não é um problema exclusivo do Cabula, mas

sim da maioria dos bairros de Salvador, uma vez que a prefeitura não adota uma

delimitação oficial dos bairros da cidade, como foi apontado por Serpa (2007b):

Em Salvador, a Lei n. 1.038, de 15 de junho de 1960 fixa a delimitação urbana dos distritos e subdistritos da cidade, dividindo-os também em bairros. De acordo com a lei, foram delimitados 32 bairros e 20 subdistritos. Embora esse instrumento legal jamais tenha sido de fato implementado no cotidiano da administração municipal, é interessante perceber que nenhum dos bairros analisados em nossas pesquisas aparece no texto da lei. Alguns bairros da Península de Itapagipe constam como subdivisões do subdistrito X (Penha), mas a Ribeira não aparece na lista. No subdistrito XVI (São Caetano) consta o bairro da Liberdade, mas o Curuzu é negligenciado. Pior acontece com os bairros do Subúrbio Ferroviário de Salvador: apenas o bairro do Lobato consta na lista como subdivisão do subdistrito XVII (São Caetano) (SERPA, 2007, p. 35).

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A partir da análise de Serpa podemos perceber a grande dificuldade dos

administradores da cidade de Salvador em delimitar os bairros, sem falar que já se

passaram mais de 50 anos da promulgação dessa lei, e nesse intervalo de tempo a

cidade e seus bairros já passaram por diversas mudanças, tornando essa lei

obsoleta. É preciso salientar que a cidade de Salvador utiliza como unidade de

planejamento a Região Administrativa - RA.

Lima, Pena e Fernandes (2011) realizaram um trabalho interessante sobre os

“Cabulas” de Salvador, confrontando as delimitações dos anos de 1992 e 2010: na

verdade, os autores não confrontaram as delimitações do Cabula enquanto bairro

concebido pela Prefeitura, mas sim do Cabula enquanto RA. Outro trabalho que

devemos destacar também é o de Gouveia (2010), sobre as representações do

bairro do Cabula e a dificuldade em delimitá-lo enquanto bairro, uma vez que a

delimitação concebida pelo poder público não convergia com a percebida e vivida

pelos moradores do bairro.

Serpa (2007b) traz algumas contribuições metodológicas que auxiliam o

pesquisador a sanar esse problema de delimitação dos bairros, uma das propostas é

considerar o bairro enquanto linguagem e discurso, metodologia também utilizada

por Gouveia (2010), que consiste em consultar os moradores sobre os limites de seu

bairro.

[...] o bairro é visto como linguagem e discurso. Linguagem e discurso, pois seus limites variam e são percebidos de modo diferenciado pelos moradores, que “constroem seus bairros” como base para estratégias cotidianas de ação individual e coletiva. O questionamento sobre os limites dos bairros pesquisados pode ajudar a revelar de que modo essas estratégias são “incorporadas” ao sistema cognitivo da população residente e como isso influencia a apropriação social do espaço urbano enquanto “bairro” (SERPA, 2007b, p. 28).

Souza (1989) também chama atenção para essa questão, ressaltando que os

limites dos bairros algumas vezes podem variar de pessoa para pessoa, mas o mais

interessante nessas análises dos limites do bairro pelos moradores são os pontos

em comum nessa percepção, uma intersubjetividade.

Os limites do bairro podem ser imprecisos, podem variar um pouco de pessoa para pessoa. Mas se essa variação for muito grande, dificilmente estar-se-á perante um bairro, porque dificilmente haverá um suporte para uma identidade razoavelmente compartilhada, ou

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um legado simbólico suficientemente expressivo. Para existir um bairro, ainda que na sua mínima condição de referencial geográfico, é necessário haver um considerável espaço de manobra para a intersubjetividade, para uma ampla interseção de subjetividades individuais (SOUZA, 1989, p. 150).

Essa passagem do trabalho de Marcelo Lopes de Souza é bem interessante,

pois a visão dos limites e delimitações do Cabula pelos hiphoppers é bem próxima

dos entrevistados por Gouveia (2010), mostrando que existe uma delimitação

imaginária do bairro pelos moradores, como podemos notar nos depoimentos a

seguir.

Aqui a gente costuma dizer que o Cabula começa na Rótula do Abacaxi, acaba na Paralela e depois ele pode ir do Iguatemi e acabar na BR, o Cabula se você for ver é uma cruz (Zezé Olukemi). O Cabula começa na ladeira do Cabula, próximo à Rótula do Abacaxi, inclusive, onde se está construindo uns condomínios novos, chamados de Bela Vista, Pernambues é uma questão que se discute também, porque começa também na ladeira do Cabula, a entrada de Pernambues é na ladeira do Cabula, Mata Escura também faz parte do Cabula, acho que é o último bairro do limite, Arenoso, Cabula VI, Doron, Sussuarana também têm entrada pelo Cabula, também faz parte, a estrada que leva até Mata Escura, Sussuarana corta ali, então seria uma discussão também, né? Já que tem ligações com outros bairros aqui do Cabula, é meio difícil dizer onde começa e onde termina porque algumas pessoas não se identificam com o Cabula, mas atualmente, começa ali na Rótula do Abacaxi e vai até a Mata Escura, até a Paralela, Narandiba e talvez Sussuarana (Heider). O Cabula começa na ladeira do Cabula, aí vem a Avenida Silveira Martins, desce para Narandiba, aí volta e já sai no Arenoso, passando pelo Beiru (Tancredo Neves) e voltando pela Estrada das Barreiras, englobando Sussuarana e a Mata Escura (Aspri).

Percebe-se que alguns pontos na delimitação do bairro são comuns na fala

dos entrevistados, como o início, na Rótula do Abacaxi, e o limite até a Paralela,

bem como a dúvida sobre a inclusão de Sussuarana nos limites do Cabula. Uma

coisa é certa: os limites percebidos por esses jovens são bem distintos do concebido

pelo poder público, nesse caso as RAs, uma vez o poder público não utiliza

nenhuma delimitação oficial dos bairros da cidade. O que mais se aproxima de uma

delimitação “oficial” de bairro em Salvador é a delimitação do Projeto Caminho das

Águas, que, no entanto, não foi sancionada nem adotada pela Prefeitura Municipal

(Mapas 1 a 3). O interessante é que todos esses “bairros” citados pelos hiphoppers

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fazem parte da área de atuação dos grupos entrevistados e são locais que

comumente recebem eventos desses grupos, o que comprova também que o lugar

pode ser entendido como relacional.

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Mapa 1: Cabula percebido pelos hiphoppers

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Mapa 2: Cabula Concebido (RA)

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Mapa 3: Cabula – Projeto Caminho das Águas

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4.2.1 A apropriação do hip-hop pela juventude local

No Cabula, o hip-hop foi apropriado pela juventude menos favorecida,

moradores das “invasões19”, que também fazem parte da configuração espacial do

bairro, como foi dito na seção anterior. Um dos primeiros grupos a ser formado no

Cabula foi o RBF – Rapaziada da Baixa Fria, fazendo alusão à Rua Paulo

Magalhães Dantas, mais conhecida pelos moradores do Cabula como Baixa Fria.

Mas, assim como no restante do Brasil, a apropriação do hip-hop por esses

jovens não foi algo tão simples, eles tiveram que subverter a ordem global e se

utilizar de práticas criativas para poder formar seus grupos, principalmente os

grafiteiros e os rappers. Os grafiteiros, como não tinham condições financeiras para

comprarem os sprays, se apropriaram de outro objeto técnico, motores de geladeira

velha, que serviam como compressores na execução dos grafites, algo bem mais

barato que uma lata de spray. Já os rappers não tinham como gravar e reproduzir

seus rap’s por falta de aparelhagem técnica e, por isso, vários grupos de rap tiveram

dificuldade para gravar suas bases eletrônicas, com o objetivo de solucionar essa

escassez, introduziram outros elementos musicais ao hip-hop como instrumentos

percussivos típicos da cultura local.

Diante dessa escassez tecnológica, o RBF surge no cenário do Cabula, no

final de 1999, só que Aspri (um dos fundadores do RBF) considera o ano de 2000

como o marco inicial do grupo, data em que o grupo realizou seu primeiro show. Não

queremos aqui datar o início do hip-hop no Cabula, já que anterior a esse período,

os outros elementos do hip-hop, o grafite e o break, já se faziam presentes no bairro,

só que de forma dispersa: nosso intuito aqui é abordar a passagem desses jovens

da condição de consumidores para produtores de sua própria cultura. A formação do

RBF não foi diferente dos demais grupos de rap da cidade, ele foi formado a partir

dos laços de amizade já existentes, fruto do convívio cotidiano, tanto é que na

primeira formação do grupo quase todos os membros moravam na mesma rua.

No ano de 2002, o RBF fundou uma posse no bairro que levava o mesmo

nome do grupo, na intenção de aglutinar as pessoas que estavam produzindo hip-

19

Utilizamos o termo invasões aqui, para designar as ocupações de terrenos sem uso, a utilização do termo invasão se justifica pelo fato de que no discurso hip-hop a palavra invasão é comumente utilizada como sinônimo de ocupação.

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hop na região do Cabula, fazendo parte da posse grupos de rap, grafite e dançarinos

de break oriundos de localidades próximas, como Beiru, Arenoso, São Gonçalo,

Engomadeira, Mata Escura, Sussuarana etc.; na intenção de também colocar em

prática de forma mais contundente o 5º elemento20 do hip-hop, a militância social, o

ativismo sociocultural. A formação da posse, que Aspri prefere chamar de

organização cultural de rua, foi de extrema importância para que o hip-hop pudesse

se fortalecer e, ao mesmo tempo, se reproduzir pelo bairro. Com a formação da

posse o grupo pôde ter uma intervenção mais efetiva na vida cultural e social do

bairro, promovendo diversos tipos de eventos, que vão de shows a saraus, oficinas e

palestras, sem falar que todos esses eventos serviam como um importante agente

multiplicador que atraía e contribuía na formação dos novos adeptos do movimento

hip-hop.

A formação do grupo RBF se deu a partir de um fato curioso, de uma disputa

espacial e de um conflito existente no bairro, entre os jovens dos conjuntos

habitacionais e os das “invasões”. Nesse caso, o conflito era, e ainda é, entre os

moradores do Conjunto ACM (conjunto habitacional localizado no bairro do Cabula)

e os jovens da Baixa Fria, que disputam o uso de uma quadra poliesportiva

localizada na praça do Conjunto ACM, representada aqui na figura 14.

Figura 12: Quadra poliesportiva do Conjunto ACM Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

20

Alguns autores e até mesmo alguns adeptos do hip-hop da cidade de Salvador consideram a presença do 5º elemento do hip-hop, a militância/ativismo social, a parte pedagógica do hip-hop, o que propicia um caráter mais político ao movimento.

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Toda vez que os moradores da Baixa Fria se deslocavam para o conjunto

ACM, seja para a prática do lazer ou para fazer qualquer outra atividade cotidiana,

como comprar pão, eram vítimas de preconceito racial e espacial pelos moradores

da localidade, do tipo: “lá vem os neguinhos da Baixa Fria”, “os neguinhos da

invasão” como pode ser notado na fala de Aspri, ao explicar a origem do RBF:

Meu primeiro grupo formado foi o RBF, o RBF ele veio assim, a gente foi morar num bairro, numa rua discriminada, o Cabula é assim, são bairros, é um bairro, tem os condomínios, os condomínios fechados e abertos, os conjuntos habitacionais, então a ideia dos conjuntos habitacionais, tinham a ideia de excluir a galera dos bairros, das ruas adjacentes, das invasões, enfim. Então, todo o condomínio tem uma área de lazer, a quadra de esporte, uma área essencial para a comunidade, uma quadra de esporte, bater um baba, bater uma bola, então [...]. O conjunto ACM, por exemplo, da minha rua, quando a gente se deslocava pro conjunto ACM, nós éramos tachados como os caras da Baixa Fria, neguinho da Baixa Fria, lá na frente da baixada, então eles diziam “pô, lá vem os cara da Baixa Fria pra cá, jogar bola”, então! Era uma discriminação, um meio de discriminação total, de preconceito, enfim, inicia o preconceito, inicia a discriminação, então com isso [...], com o conhecimento da música, das coisas, daí, a ideia, juntou eu e mais 3 amigos, ai nós, eu, Ronalde, o Saulo e o Jack, chamado Josemar, e a gente assim, nós estamos escutando música e tal, de discriminação, de preconceito contra a galera do bairro, da ACM, lá de cima do conjunto, fora isso, não só nós, mas, como os outros que iam comprar pão, iam fazer as coisas por lá, sempre eram tachados por isso, tinha brigas, né, enfim, rolava sempre uma rixa de rua, de bairro, era época, então a gente mudou, velho! Vamos mostrar o contrário, o nome do jogo vai ser a Rapaziada da Baixa Fria, ficou a Rapaziada da Baixa Fria, a gente botou RBF, mas pra dizer, pô! Baixa Fria por Baixa Fria, Baixa Fria estuda, Baixa Fria tem família, então vamos fazer Baixa Fria, para alguns são pesados, mas eu vou mostrar o contrário.

O interessante de se perceber, na fala de Aspri, é que o hip-hop vai ser

apropriado pela juventude local com o objetivo de afirmação espacial e identitária,

espacial porque a Baixa Fria sofre com o estigma de ser um local perigoso e ponto

de tráfico de drogas na região, e o intuito do RBF era justamente o oposto, de

mostrar o outro lado da Baixa Fria.

Esse fato nos mostra como as identidades desses jovens são construídas

localmente a partir do conflito pautado no discurso da diferença, como ressaltamos

no capítulo 2, na seção que discute a relação entre identidade e lugar.

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Todos esses problemas enfrentados no cotidiano dos jovens da Baixa Fria

vão dar a tônica de todo o discurso produzido pelos jovens hiphoppers, seja nas

letras do rap, nos desenhos de grafite ou nos passos de dança, nos quais a

exaltação e valorização do negro são notórias, e o principal objetivo é a elevação da

autoestima da população negra do bairro.

Ainda em relação à fala de Aspri, nota-se também que a apropriação do hip-

hop pela juventude negra e pobre do Cabula possibilitou a construção de uma

cidadania, uma cidadania insurgente nos termos utilizados pelo Pieterse (2008), uma

vez que a cidadania insurgente é criada no espaço da disputa simbólica pautada na

discriminação (PIETERSE, 2008).

Figura 13: Grafite de Denis Sena reclamando cidadania Fonte: Pesquisa de campo, 2011 (Célio Santos)

O Grafite de Denis Sena, figura 15, expressa muito bem essa busca pela

cidadania, reclamando questões basilares para todos os cidadãos, como saúde,

educação, igualdade social e mais oportunidades culturais para a população do

bairro.

Com relação à apropriação dos outros elementos do hip-hop (o grafite e o

break) ela se deu de forma e em tempos diferentes no Cabula.

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O break, sem dúvida, assim como em todo o território brasileiro, pelos motivos

apresentados no capítulo 3, foi o primeiro elemento a ser apropriado pela juventude

hip-hop do Cabula. No início os jovens não tinham nem consciência que faziam

parte de uma cultura maior denominada de hip-hop: dançavam break na rua como

uma forma de brincadeira, segundo o Dj Joe, que conheceu o hip-hop através do

break, da “galera das antigas”, se referindo aos primeiros adeptos do hip-hop no

Cabula, que se inseriram no hip-hop a partir do break. Na verdade, o break foi a

porta de entrada para o hip-hop para muitos desses jovens.

Segundo Dj Joe, há anos atrás, no final da década de 1990, era difícil

acontecer algum evento de hip-hop no Cabula e isso fazia com que ele e sua turma

se deslocassem com frequência para o centro da cidade para participar das rodas

de break. Foi nessas rodas que conheceram outras pessoas mais engajadas com o

hip-hop e perceberam que o break não se resumia a apenas movimentar o corpo,

que por trás desse “gingado” existia todo um contexto histórico, político e social.

Atualmente, no Cabula, uma figura proeminente do break é Walmir, um dos

principais b.boys do bairro, líder do grupo Atitude break, que, junto com mais cinco

integrantes, entre eles o b.boy Toni, realizam diversas atividades e oficinas nas

escolas públicas do bairro. O próprio Toni é oriundo dessas oficinas ministradas por

Walmir, o que mostra seu papel multiplicador.

O interessante na história da inserção de Walmir na cultura hip-hop é que, ao

contrário do Dj Joe, ele se inseriu no universo hip-hop por meio do grafite, por volta

dos anos de 2002, 2003: por conhecer o grafiteiro Denis Sena, Walmir chegou a

participar de algumas oficinas de grafite ministradas por Sena, e, por meio de outro

colega que dançava break, começou a dar os primeiros passos, viu que “tinha jeito”,

e, a partir daí, se aperfeiçoou no break. Assim como os outros elementos, o break

praticado pela grupo Atitude procura enfatizar em seus passos a questão afro,

inserindo a capoeira e algumas danças de orixás, no intuito de valorizar a negritude.

O grafite, expressão artística pautada em desenhos, é o que possui, de todos

os elementos da cultura hip-hop, maior alcance, maior comunicabilidade, pois está

em toda a cidade, nas principais avenidas e ruas, não se restringindo apenas aos

bairros periféricos, sem falar que o efeito de suas mensagens é instantâneo e

imediato.

Nas ruas do Cabula podemos encontrar inúmeros grafites, a maioria deles

traz em seus discursos mensagens políticas e tem o negro como elemento principal.

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São, por isso, denominados de “afro-grafite”, fato que pode ser observado nos

grafites de Denis Sena, Chales Brak, Marcos Costa ou Zezé Olukemi, que procuram,

através de seus desenhos, valorizar seus bairros e as culturas de matrizes indígenas

e africanas, como podemos observar nas figuras 16 e 17, nos grafites de Marcos

Costa e Zezé Olukemi, respectivamente.

Figura 14: Afro Grafite de Marcos Costa, reverenciando a cultura negra de Salvador Fonte: Arquivo pessoal de Marcos Costa

Figura 15: Grafite de Zezé Olukemi reverenciando a comunidade de Engomadeira Fonte: Arquivo Pessoal de Zezé Olukemi

Parte dos grafiteiros que nós entrevistamos começaram a grafitar na escola,

na verdade, começaram com a pichação, pichando os muros da escola, para

posteriormente passar para o grafite, como foi o caso de Marcos Costa e Zezé

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Olukemi. No período escolar, tanto Marcos Costa quanto Zezé Olukemi já eram

conscientes de que o grafite tinha uma relação intrínseca com o hip-hop, e sabiam

do poder de transformação do hip-hop nas periferias: por entender a importância do

hip-hop para a juventude negra e excluída, os dois, ao lado de Denis Sena,

realizaram inúmeras oficinas de grafite nas escolas públicas e associações do

bairro.

Charles Brak é fruto dessas oficinas e começou a grafitar por intermédio de

Denis Sena. Ele já sabia desenhar e despertou o interesse pelo grafite em um

evento de hip-hop que aconteceu no Beiru, intitulado “União dos Manos”, no ano de

2007. Brak viu os grafites de Denis Sena e ficou fascinado por aqueles desenhos,

dias depois já estava participando das oficinas de grafitagem que Denis oferecia nas

escolas públicas do bairro.

Todos os grafiteiros, todos os b.boys e todos os rappers fazem parte do

movimento hip-hop? Podemos afirmar que não, uma vez que nem todo grafiteiro,

nem todo b.boy e nem todo rapper atua na militância da cultura hip-hop, e o que vai

unir esses elementos é a militância social e um discurso engajado em prol de seus

pares.

4.2.2 O hip-hop e a mediação entre o lugar e o mundo para a juventude do

Cabula

Periferia é periferia em qualquer lugar21.

O hip-hop possibilitou a esses jovens um maior conhecimento do mundo,

passando o hip-hop a ser um mediador entre o lugar e o mundo, pois, muitas vezes,

o discurso produzido por eles é multi-escalar. O que faz uma pessoa na periferia de

Salvador escutar e se identificar com um rap que fala da periferia de São Paulo, ou

um rap americano que fala sobre a situação dos negros nas periferias22 de Nova

York? Acreditamos que a resposta esteja justamente nesse caráter global do lugar, a

globalização não difundiu pelo mundo apenas tecnologia e as facilidades da

21

Frase da música Periferia é periferia, do CD Sobrevivendo no inferno, do grupo Racionais Mc’s. 22

Periferia é aqui entendida, a partir de Serpa (2007b), como periferia social, com predominância de população de baixa renda, onde a produção do espaço se dá em geral sem atuação – ou com a atuação tardia – do Estado.

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modernidade, espalhou também a pobreza e acirrou as desigualdades sociais pelo

mundo afora. Portanto, a situação dos negros da periferia de Nova York ou da

periferia de São Paulo remete aos negros das periferias de Salvador, ressaltando as

especificidades de cada contexto.

E esse jovem do Cabula, antes de começar a escrever letras de rap sobre seu

mundo vivido, já teve seu horizonte ampliado por outros grupos de rap, sejam eles

nacionais ou internacionais. Não é à toa que as letras de rap que circulam no circuito

alternativo trazem a mesma problemática: sempre um discurso pautado no plano do

vivido, seja a urbanização precária, os serviços públicos decadentes, a violência

exacerbada, os problemas com drogas, a discriminação racial, entre outros

problemas, comuns nas periferias e favelas espalhadas pelo mundo.

O estudo da alemã Wivian Weller sobre o hip-hop em São Paulo e Berlim, que

resultou em sua tese de doutoramento, mostra algumas semelhanças entre a

apropriação do hip-hop, tanto pelos jovens negros paulistanos, quanto pelos jovens

turcos de Berlim:

Apesar das diferenças históricas, políticas e sociais entre Brasil e Alemanha, existem muitos paralelos entre os jovens de ambas cidades no que diz respeito às expressões político-culturais e às orientações coletivas de vida desenvolvidas a partir de uma estética global, ou seja, a partir da incorporação e adaptação do hip hop em suas práticas cotidianas. A práxis coletiva em torno do movimento hip hop e as formas de discriminação etno-racial e de segregação socioespacial vividas no cotidiano constituem uma base de experiências comuns entre os jovens paulistanos e berlinenses (WELLER, 2003, p. 2).

Não só o hip-hop alemão se assemelha com o brasileiro, podemos citar o hip-

hop francês, que será apropriado, principalmente, pela população negra africana que

reside nas periferias de Paris. O hip-hop mexicano também mantém essa

semelhança, esse por sua vez é utilizado como um instrumento de informação e

comunicação dos grupos indígenas excluídos.

A epígrafe com a qual escolhi iniciar o presente subtítulo me soa de muita

contundência, além da mesma ter se convertido em uma máxima do movimento hip-

hop brasileiro: ela ilustra muito bem a discussão levantada nos parágrafos

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anteriores, além de explicitar um pouco o caráter “homogêneo23” das periferias do

globo. Mas precisamos ter cuidado para não acabar afirmando os lugares como

homogêneos, nosso intuito aqui é o de mostrar como o cotidiano de algumas

periferias se assemelha. Mesmo com essa aparente homogeneidade, os grupos de

rap em seus shows não cantam as músicas de outros grupos, pelo fato de cada

lugar ter sua especificidade. São essas particularidades que serão mais enfatizadas

no discurso de cada grupo, no caso dos grupos existentes no Cabula a ênfase maior

é na questão das relações raciais, já para alguns grupos de São Paulo, como os

Racionais Mc´s, os problemas urbanos aparecem com mais frequência. Esses fatos

acabam por reiterar o lugar como particular:

Os lugares são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos, individuais, diversos. Eles são singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade mundo, da qual são formas particulares (SANTOS, 2006, p. 112).

E é por meio do lugar, da consciência de sua condição no lugar, que esses

jovens vão ter uma maior consciência do mundo, pois, ao elaborarem suas canções,

ao desenharem seus grafites, ou até mesmo ao executarem seus passos durante

suas performances de break, esses jovens acabam tendo contato com o mundo,

acabam se defrontando com uma realidade parecida com sua vida cotidiana. “Hoje,

certamente mais importante que a consciência do lugar é a consciência do mundo

obtida através do lugar” (SANTOS, 2008a, p. 161). Milton Santos enfatiza que a

própria escassez, seja ela material ou imaterial, típica das periferias urbanas do

mundo atual, será a mediadora entre o lugar e o mundo.

A experiência da escassez é a ponte entre o cotidiano vivido e o mundo. Por isso, constitui um instrumento primordial na percepção da situação de cada um e uma possibilidade de conhecimento e de tomada de consciência (SANTOS, 2006, p. 130).

Outro ponto que deve ser abordado dentro dessa relação lugar-mundo é a

presença dos elementos da cultura hip-hop no bairro do Cabula, haja vista que

estamos falando de uma cultura estrangeira originada nos Estados Unidos, como

descrevemos no capítulo 3, demostrando de alguma forma a materialidade do

23

Utilizamos as aspas na palavra homogêneo, pois não estamos utilizando a palavra homogêneo como sinônimo de igual, mas sim como semelhante em alguns pontos, tais como: violência, urbanização precária, falta de equipamentos públicos etc.

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mundo no lugar. Em sua reportagem sobre o movimento hip-hop no bairro do

Cabula, no ano de 2002, o repórter do jornal Correio da Bahia nos mostra essa

relação, evidenciando a presença do mundo no Cabula: “O grafite, uma arte urbana

criada por negros americanos no subúrbio do Brookilin, na década de 70, Estados

Unidos, foi parar no Cabula VI24”. Devido a esses fatores e ao constante diálogo

entre o lugar e o mundo, o local e o global, não consideramos o lugar como

resistente, e nem o hip-hop como uma cultura de resistência, como alguns adeptos

do movimento o consideram, preferimos considerar o lugar como insurgente e

subversivo, o que também vale para o hip-hop.

4.2.3 As Representações do Cabula pela juventude hip-hop

Segundo Lutfi, Sochaczewski e Jahnel (1996), na análise das representações,

não se pode deixar de lado as condições de vida dos povos, grupos ou classes que

as produzem, uma vez que a representação é pautada a partir do percebido, que é a

mediação entre o vivido e o concebido.

Serpa (2005a) converge para a mesma ideia proposta por Lutfi,

Sochaczewski e Jahnel (1996), para o autor:

Se as representações contêm os espaços percebidos e vividos dos diferentes grupos e classes sociais, é certo que elas contêm e expressam também as lutas e os conflitos dos diferentes grupos e classes pelo domínio das estratégias de concepção desses espaços (SERPA, 2005a, p. 225).

Em sua dissertação, Gouveia (2010) aborda as representações do Cabula

segundo seus moradores; houve um dado que chamou a atenção da autora: a

ausência de referências a questões ligadas à negritude, haja vista que, em nenhum

momento, seus entrevistados citaram os terreiros de candomblé existentes no bairro,

que, por sinal, são inúmeros, nem os próprios moradores que moravam perto deles,

o que acaba ocultando parte da história do bairro.

Isso é bastante interessante, o que comprova que toda representação

expressa também os conflitos e os embates dos diferentes grupos (SERPA, 2005a),

já que no movimento hip-hop as referências aos elementos de origem afro do bairro

24

Reportagem de Reinaldo Braga no Correio da Bahia do dia 04/04/2002

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são bastante intensas. O que não apareceu no trabalho de Gouveia (2010), no

nosso apareceu com bastante força, como podemos observar na tabela 2.

Tabela 2: O que representa o Cabula para os hiphoppers

Fonte: Pesquisa de campo (2011) Elaboração: Célio Santos

Podemos observar na tabela 2 que as palavras mais citadas pelos jovens

perpassam pela questão da negritude, algumas dessas palavras citadas, quilombo,

periferia, resistência e ancestralidade fazem parte do vocabulário da cultura hip-hop.

Algumas palavras chamaram particularmente atenção, como cidade, quilombo e

ancestralidade. Cidade, pelo fato do tamanho do Cabula (ver mapa do bairro

delimitado por eles) e pela funcionalidade do bairro, segundo alguns entrevistados, o

Cabula é uma cidade porque “tem de tudo”: grandes mercados, escolas,

universidade, hospitais, bancos, ou seja, tudo que eles precisam no dia a dia.

Quilombo, como já dissemos anteriormente, porque a origem do Cabula é um

quilombo, o qual deu o nome ao bairro, e, por isso, eles fazem questão de enfatizar

que o Cabula é um quilombo, e as invasões existentes no bairro são os quilombos

nos moldes modernos, pois representam resistência.

Já a ancestralidade está bem presente nos discursos e nas ações desses

jovens sempre que se referem à África. O RBF tem como símbolo a figura de um

pássaro denominado Sankofa, que faz parte da mitologia africana, significando que

nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás.

Palavras mais citadas Total

Cidade 21

Quilombo 12

Resistência 11

Alegria 11

Periferia 09

Ancestralidade 07

Felicidade 06

Outros 13

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Sankofa é, assim, uma realização do eu, individual e coletivo. O que quer que seja que tenha sido perdido, esquecido, renunciado ou privado, pode ser reclamado, reavivado, preservado ou perpetuado. Ele representa os conceitos de auto-identidade e redefinição. Simboliza uma compreensão do destino individual e da identidade coletiva do grupo cultural. É parte do conhecimento dos povos africanos, expressando a busca de sabedoria em aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro25.

Zezé deixa bem claro essa relação entre o bairro e a ancestralidade africana,

os valores e tradições que, apesar da crescente urbanização do bairro, ainda estão

presentes no Cabula.

Cabula é ancestralidade, ancestralidade, tudo aqui, todo lugar que você anda, tudo que você respira, você sempre tá fazendo isso, tudo isso que as pessoas fazem nas comunidades, é alguma coisa que alguém deixou ali para você, no sentido que alguém veio, deixou aquilo ali e você está dando uma continuidade mesmo sem saber, é nas rodas de brincadeira, naquela coisa do vizinho dizer “olha toma conta do meu filho”, quando ele diz, cuida aí do meu filho, ele tá dizendo que o filho não é só dele, que o filho é de toda a comunidade, o filho também é responsabilidade do vizinho, é como as pessoas ajudam as outras aqui, isso são valores ancestrais, que a gente só tá continuando e aqui no Cabula você vê isso (Zezé Olukemi).

Santos (2006) afirma que o lugar exerce papel decisivo nessa construção e

nesse retorno ao passado, o que possibilita o questionamento do presente e do

futuro.

Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro da vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo (SANTOS, 2006, p. 114).

Essa ideia do Sankofa faz parte do conteúdo dos discursos e das ações dos

hiphoppers do Cabula. O intuito é fazer um retorno às origens, nesse caso um

retorno à África, não no sentido material, mas no sentido simbólico, para ter

conhecimento de seus ancestrais, por isso a ênfase na afirmação que o bairro foi um

quilombo. Vale chamar atenção que muitas vezes a África aparece romantizada,

como se fosse um continente homogêneo. Por outro lado, essa historicidade do

25

Disponível em: https://sites.google.com/site/revistasankofa/. Acesso: 05/05/2012

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bairro do Cabula será enunciada pelos hiphoppers a fim de “fabricar seus lugares”:

Serpa (2011a) em seu trabalho sobre a apropriação dos meios de comunicação nos

bairros populares de Salvador mostra como alguns grupos vão enunciar e criar

representações de seus bairros a partir de elementos histórico-sociais dos lugares, o

que não é diferente com o hip-hop.

Percebe-se que os lugares são enunciados a partir de elementos histórico-sociais presentes nas áreas de atuação, a partir de uma ‘efetuação criativa do sistema linguístico’, recontando, inclusive, sob outros olhares, a história da cidade (SERPA, 2011a, p. 160).

A apropriação permite, portanto, a elaboração de representações: após a

juventude hiphopper ter se apropriado do discurso hip-hop, pôde também se

apropriar dos espaços do Cabula e produzir suas representações desses espaços.

Um elemento primordial na análise das apropriações é o corpo, em especial a cor da

pele, que vai ser o elemento-chave para criação das representações do bairro para

essa juventude.

É através do seu corpo e de seus sentidos que o homem constrói e se apropria dos lugares e que constrói sua vida. Isto é, o lugar é a porção do espaço apropriável para a vida – através do corpo e dos sentidos, das ações de seus moradores, e nessa direção o bairro, a praça, a rua, se identificam como os lugares da vida. Assim se constrói a tríade cidadão – identidade – lugar que aponta a necessidade de considerar o corpo, pois é através dele que o homem habita e se apropria do espaço (através dos modos de uso). A nossa existência tem uma corporeidade pois agimos através do corpo. Ele nos dá acesso ao mundo, para Perec é o nó vital, imediato, visto pela sociedade como fonte e suporte de toda cultura (CARLOS, 2000, p.242, grifo nosso).

O trecho final da citação de Carlos, grifada por nós, nos chama atenção por

ser uma passagem bastante emblemática e, em nosso ponto de vista, reveladora e

contraditória, pois o mesmo corpo que dá acesso ao mundo, também pode ser o

veto ao mundo, ou pelo menos a algumas partes (lugares) do mundo. Basta

observarmos o exemplo dos moradores da Baixa Fria, que tinham seu acesso

“limitado” ao conjunto ACM, devido a sua origem e, sobretudo, à cor de sua pele.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto ao longo do texto, podemos tecer algumas

conclusões. Uma delas é perceber que o conceito de juventude é um conceito fluído

e dinâmico, que irá variar de acordo com o tempo e com o espaço, o que nos faz

pensar no lugar como algo particular, local, onde a vida acontece e as relações

sociais se estabelecem, o que serve de base para entender melhor a condição de

ser jovem.

As palavras de Dayrell (2003, 2005) e o nosso objeto de estudo nos leva a

concluir que, assim como o lugar, a juventude também é uma representação, a qual

irá se manifestar das mais diferentes formas pelos mais variados grupos sociais,

devido às condições culturais, sociais, temporais e espaciais, por isso devemos

sempre falar de juventudes, no plural, pois não existe um único modo de se viver a

juventude.

Temos que destacar também a importância do lugar para a cultura hip-hop, já

que é no lugar que acontecem e são tramados os laços de solidariedade e de

vizinhança e onde a comunicação e a afetividade entre os jovens ocorrem de forma

efetiva. Todas essas relações que são elaboradas no lugar vão servir de base para

que os jovens hiphoppers se contraponham à ordem global, dando novos contornos

ao hip-hop, hibridizando-o de forma consciente, com os aspectos culturais locais, a

fim de assumir uma identidade única e particular, levando a um processo dialógico

entre a ordem local e a ordem global, é o lugar a peça-chave para se entender o hip-

hop em suas múltiplas escalas, desde sua formação no distrito do Bronx, sua

difusão pelo mundo e, consequentemente, sua chegada ao Brasil.

Pudemos compreender que o lugar nos oferece subsídios teóricos e práticos

para entender o processo de apropriação da cultura hip-hop, uma vez que

entendemos o lugar como um espaço de vivência, onde são tecidas as relações

sociais e as horizontalidades, fortalecendo, assim, os laços de vizinhança e,

consequentemente, as redes sociais, tornando o lugar um ente relacional, que, ao

mesmo tempo, produz o cotidiano e é produzido por ele, O lugar aparece como a

base para a construção de um novo mundo: “A base geográfica dessa construção

será o lugar considerado como espaço de exercício da existência plena” (SANTOS,

2006, p.114).

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A aproximação entre os métodos fenomenológico e dialético como proposto

por Serpa (2006) foi de suma importância para o entendimento do lugar nas duas

perspectivas. Vale salientar que o objeto empírico permitiu essa aproximação entre

os métodos, haja vista que o lugar na perspectiva fenomenológica possibilitou

analisar o mundo vivido dos jovens hiphoppers, e como os mesmos através de um

exercício fenomenológico constroem e enunciam seus lugares, no caso desses

jovens, o bairro do Cabula, uma vez que a cultura hip-hop conduz a mediação entre

a vida e o universo das representações da juventude hip-hop.

Já a perspectiva crítica, através do método dialético, nos ofereceu a

possibilidade de analisar o lugar como o lócus da contradição global, como

insurgente, fazendo com que nós compreendêssemos como uma cultura

estrangeira, fruto do processo de globalização, é apropriada por uma juventude

negra, pobre e periférica, que reconstrói o hip-hop de acordo com as suas

necessidades e as especificidades do lugar, fazendo com que o lugar seja a base da

construção dos discursos e das ações dessa juventude, como pôde ser observado

no decorrer do capítulo 4.

Sobre as identidades dos jovens hiphoppers chegamos à conclusão que elas

também são construídas no lugar, pautadas no discurso da diferença, das

dissonâncias e dos conflitos existentes no cotidiano, e são esses conflitos que vão

alimentar e dar consistência a todo o discurso racial e social produzido pelos jovens

do hip-hop, seja através das músicas de rap, nos desenhos de grafites e/ou nos

passos de break.

É por demonstrar esse potencial questionador e aglutinador da juventude que

consideramos o hip-hop soteropolitano como um ativismo social, ou sociocultural,

podendo ser considerado um movimento, ou melhor, um ativismo negro juvenil, uma

vez que o hip-hop consegue alcançar uma parcela da população negra, a juventude,

que o movimento negro historicamente sempre teve dificuldade para se aproximar.

É importante ressaltar que a apropriação da cultura hip-hop pela juventude do

Cabula, e por grande parte da juventude brasileira, se dá a partir das práticas

criadoras, por meio da insurgência e da subversão da ordem global, que ao se

apropriarem do hip-hop não se apropriaram apenas da cultura, mas de todo o

sistema técnico que a produz, inserindo novos elementos e instrumentos técnicos a

partir das especificidades dos lugares. Podemos afirmar que essa apropriação é

contínua, pois a todo o momento o hip-hop no Cabula está sendo apropriado por

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novos jovens, novos adeptos. Nesse exato momento, um garoto pode estar nas

esquinas do Cabula ensaiando seus primeiros passos de break, escrevendo suas

primeiras rimas e/ou desenhando seus primeiros grafites ou até participando de uma

oficina sobre hip-hop e sendo seduzido por um de seus elementos, vale chamar

atenção mais uma vez, que para nós o hip-hop não se resume apenas a esses

elementos rap, grafite e o break, mas sim o discurso comum de militância racial e

social construídos por esses elementos , o que os dá o sentido de hip-hop. .

A apropriação da cultura hip-hop pela juventude do Cabula possibilitou que

esses jovens pudessem se afirmar como negros e produzir representações sobre o

lugar, o bairro, a partir de sua perspectiva histórica e cultural, ampliando seus laços

de afetividade até o continente africano, fazendo com que o lugar muitas vezes se

torne também mítico. A África aparece para a juventude hip-hop como uma resposta,

uma fonte de significado que eles devem seguir, e para isso devem retornar à África,

para que possam entender os valores ancestrais: daí a importância do discurso pan-

africanista e a utilização do pássaro Sankofa como símbolo basilar desse discurso,

pois nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar aquilo que ficou atrás, não se

pode promover um futuro sem conhecer o passado. Com relação a esse retorno à

África, como discutimos no capítulo quatro, não se trata de um retorno físico-material

ao continente africano, mas sim um retorno cultural-simbólico no intuito de aprender

os valores ancestrais africanos.

Essas representações do Cabula pelos jovens hiphoppers nos levou, em

alguns momentos, a questionar quantos lugares tem o Cabula? Ou quantas

representações de lugar tem o Cabula? E a compreender que as representações

são geradas a partir de um jogo de conflitos e interesses, disputados tanto no âmbito

espacial quanto no campo do simbólico. Pois durante a pesquisa, principalmente no

trabalho de campo, pudemos constatar a existência de vários Cabulas,

principalmente quando confrontamos nossas observações com o trabalho de

Gouveia (2011), e chegar à conclusão que no Cabula existem vários lugares. Isso

vai depender qual classe ou grupo social produz essas representações do lugar,

haja vista que a “fabricação” (SERPA, 2011a) desses lugares procura sempre

obedecer a uma ordem de interesses políticos, e, por esse motivo, há sempre

conflito com outras representações de lugar, como pôde ser constatado no Cabula e

no decorrer do último capítulo da presente dissertação.

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Algumas discussões que foram levantadas durante o trabalho não foram

esgotadas, necessitando de um trabalho de maior fôlego: podemos citar dois

exemplos, o primeiro é compreender que África é essa que aparece no discurso hip-

hop e como esses jovens representam essa África, haja vista que suas ações estão

centradas em um discurso pan-africanista, de retorno à África, às origens, à

ancestralidade, mostrando o caráter diaspórico da cultura hip-hop, como defendido

por Gilroy (2008); a segunda questão é compreender como os jovens hiphoppers se

relacionam com o poder público e se apropria das políticas de Estado voltadas para

a juventude e para a promoção da cultura.

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ANEXOS

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Sr. Tempo Bom Thaíde & DJ Hum Composição: DJ Hum / Thaíde 1996 Eldorado faixa 7

Que saudade do meu tempo de criança, quando eu ainda era pura esperança, eu via nossa mãe voltando pra dentro do nosso barraco, com uma roupa de santo debaixo do braço.

Eu achava engraçado tudo aquilo, mas já respeitava o barulho do atabaque, E não sei se você sabe, a força poderosa que tem na mão de quem toca um toque caprichado, santo gosta. Então eu preparava pra seguir o meu caminho, protegido por meus ancestrais. Antigamente o samba-rock, blackpower, soul, assim como o hip-hop era o nosso som. A transa negra que rolava as bolachas, a curtição do pedaço era o La Croachia, eu era pequeno e já filmava o movimento ao meu redor, coriografias, sabia de cor. E fui crescendo rodiado pela cultura Afro Brasileira, também sei que já fiz muita besteira, mas nunca me desliguei, das minhas raízes, estou sempre junto dos blacks que ainda existem. Me lembro muito bem do som e o passinho marcado eram mostrados por quem entende do assunto, e lá estavam Nino Brown e Nelso Triunfo, juntamente com a funkcia que maravilha. (Refrão) Que tempo bom, que não volta nunca mais Que tempo bom, que não volta nunca mais Que tempo bom, que não volta nunca mais Que tempo bom, que não volta nunca mais Calça boca de sino, cabelo black da hora, sapato era mocasin ou salto plataforma. Gerson Quincombo mandava mensagens ao seus, Toni Bizarro dizia com razão, vai com Deus. Tim Maia falava que só queria chocolate, Toni Tornado respondia: Podê Crê, Lady Zu avisava, a noite vai chegar, e com Totó inventou o samba soul, Jorge Ben entregava com Cosa Nostra, e ainda tinha o toque dos Originais, falador passa mal rapaz, saudosa maloca, maloca querida, faz parte dos dias tristes e felizes de nossa vida.

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Grandes festas no Palmeiras com a Chic Show, Zimbabwe e Black Mad eram Company Soul, anos 80 começei, a frequentar alguns bailes, ouvia comentários de lugares. Clube da Cidade, Guilherme Jorge, Clube Homes, Roller Super Star, Jabaquarinha, Sasquachi, como é bom lembrar. Agradeço a Deus por permitir, que nos anos 70 eu pudesse assistir, Vila Sézamo, numa década cheia de emoção, Hooligueler entortando garfos na televisão, 10 anos de swing e magia, que começou com o Brasil sendo Tri-campeão. (Refrão) O tempo foi passando, eu me adaptando, aprendendo novas gírias, me malandreando, observando a evolução radical de meus irmãos, percebi o direito que temos como cidadãos, de dar importância a situação, protestando para que achamos uma solução. Por isso Black Power continua vivo, só que de um jeito bem mais ofensivo, seja dançando break, ou um DJ no scratch, mesmo fazendo Graffiti, ou cantando RAP. Lembra do função, que com gilette no bolso tirava o couro do banco do buzão, uma tremenda curtição? E fazia na calça a famosa pizza. No Centro da cidade as grandes galerias, seus cabelereiros e lojas de disco, mantém a nossa tradição sempre viva. Mudaram as músicas, mudaram as roupas, mas a juventude afro continua muito louca. Falei do passado e é como se não fosse, o que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop Black Power de hoje. (Refrão) Essa é nossa homenagem, a todos aqueles, que fizeram parte ou curtiram Black Power. Luiz Carlos, Africa São Paulo, Ademir Fórmula 1, Kaskata's, Circuit Power. Bossa 1, Super Som 2000, Transa Funk, Princesa Negra, Cash Box, Musícalia, Galote, Black Music, Alcir Black Power, e a tantos outros, obrigado pela inspiração. Pode crê, pode crê.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

MESTRADO EM GEOGRAFIA

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