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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ABORDAGEM RETÓRICO-FILOSÓFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CÍCERO João Pessoa 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE PS-GRADUAO EM LETRAS

ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO

Joo Pessoa

2008

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WILLY PAREDES SOARES

ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao

em Letras da Universidade Federal da Paraba, em

cumprimento s exigncias para obteno do Grau

de Mestre na rea de Literatura e Cultura, orientado

pelo Prof. Dr. Milton Marques Junior dentro da

linha de Tradio e Modernidade.

Joo Pessoa

2008

S676a Soares, Willy Paredes.

Abordagem Retrico-Filosfica in De Natura

Deorum: Liber Primus de Ccero / Willy Paredes Soares.-

Joo Pessoa,008.

131p.

Orientador: Milton Marques Jnior

Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA

1. Ccero (De natura deorum) crtica e

interpretao. 2. Retrica. 3. Gneros retricos.

4. Filosofia antiga. 5. Literatura clssica.

UFPB/BC CDU: 82.085(043)

Agradecimentos

Ao Professor Dr. Milton Marques Junior, que me

proporcionou esta oportunidade e meu deu valiosos

conselhos sobre a cultura greco-latina;

Ao Professor Dr. Juvino Alves Maia Junior, pela ajuda

que me pde prestar sobre a lngua latina;

Ao Professor Marcos Vinicius Fernandes, cujo apoio no

poderia ser maior em relao lngua francesa;

Ao Professor Laerte Pereira da Silva, por minha

introduo nas letras clssicas;

A minha me, Vilma Paredes, pelo apoio constante.

ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO

Willy Paredes Soares

DISSERTAO APROVADA EM: _____/_____/_____

PROFESSOR DR. ______________________________________________

Milton Marques Junior (PPGL/UFPB)

Orientador

PROFESSOR DR. _______________________________________________

Juvino Alves Maia Junior (PPGL/UFPB)

Examinador

PROFESSOR DR. _______________________________________________

Henrique Murachco (USP)

Examinador

PROFESSOR DR. _______________________________________________

Arturo Gouveia (PPGL/UFPB)

Suplente

Joo Pessoa

2008

Cum multae res in philosophia nequaquam satis

adhuc explicatae sint, tum perdifficilis, Brute, quod

tu minime ignoras, et perobscura quaestio est de

natura deorum quae et ad cognitionem animi

pulcherrima est ad moderandam religionem

necessaria.

Ccero

Sumrio

1. Introduo..........................................................................................7

2. Contextualizao...............................................................................9

3. Retrica e Elementos Constituintes................................................34

4. Estruturao Retrica do Primeiro Livro.....................................71

5. Consideraes Finais........................................................................123

6. Referncias Bibliogrficas.................................................................128

ABORDAGEM RETRICO-FILOSFICA IN DE NATURA DEORUM, LIBER PRIMUS DE CCERO

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1. Introduo

Ccero, em diversas obras que versam sobre Retrica procura estabelecer

os fundamentos essenciais para se conseguir uma perfeio oratria, dedicou parte de

sua vida fundamentao de conceitos relevantes formao do orador. Entendia que,

alm do conhecimento das tcnicas imprescindveis arte discursiva, era necessria a

utilizao de argumentos pertinentes que garantissem a persuaso dos interlocutores,

para isto recorreu constantemente s mais variadas reas de conhecimento, em especial,

filosofia.

A presente dissertao busca um estudo retrico pertinente, associado a

conceitos filosficos usados por autores da Antigidade Clssica aludidos por Ccero

como sendo os principais pensadores em que se baseia para obteno de conhecimento,

na referida rea, e para a fundamentao de sua teoria, calcada em conceitos gregos, que

ainda hoje exercem influncia sobre o pensamento Ocidental.

A dissertao consta de trs captulos, no primeiro, apresentar-se- a

contextualizao histrica em que se insere o autor, sc. I a.C, com explicaes de sua

trajetria de vida no mbito poltico-social, uma vez que h ntima ligao entre os

fatores polticos e a produo literria de Ccero. No segundo, apresentar-se-o

concepes sobre Retrica, seus elementos principais, as partes que a constituem e

aquelas referentes ao discurso, objetivando o estabelecimento de sua importncia para o

homem da Antigidade Clssica, explicitando alguns equvocos provenientes da m

leitura feita por autores modernos do texto clssico, principalmente, no que se refere s

partes do discurso e aos aspectos culturais. No terceiro captulo, analisar-se-o as partes

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do sistema retrico utilizado pelo autor em seu texto filosfico De natura deorum,

tomando o primeiro livro dos trs que o constituem como corpus de pesquisa.

Convm observar que em De natura deorum, Ccero utiliza o dilogo, gnero

ilustre na tradio grega, para realizao de sua obra, o que lhe permite o alcance do

objeto desejado sem grandes dificuldades: a produo de uma obra filosfica relevante,

apesar de o campo filosfico em lngua latina apresentar-se praticamente intacto.

O modelo seguido por Ccero fora basicamente o dilogo platnico, utilizando-

se de personagens contemporneos com seus monlogos extensos para a exposio de

suas teorias, associados a sua participao como interlocutor.

O tratado De natura deorum configura juntamente com De inuentione e De fato,

os escritos teolgicos ciceronianos, que se dedicam apreciao das relaes entre as

divindades e os humanos, como pietas, fides e uirtus, sobretudo no mbito das relaes

histricas e sociais.

A religio romana, especialmente na poca em que Ccero est inserido, passava

por profundas transformaes, como a importncia do papel de auspicium, que

experimentava uma decomposio relevante e, freqentemente, associava-se aos

interesses polticos vigentes, perdendo gradativamente as caractersticas arcaicas que os

constituam. nesse panorama de ansiedade e incertezas que o autor compe seus

principais tratados filosficos, poca marcada pelo surgimento de novos cultos e

supersties no que se refere aos deuses.

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2. Contextualizao

necessrio que os fatos acontecidos durante o sc. I a.C. sejam explicitados,

para que haja compreenso do plano poltico-social em vigor em Roma neste perodo

cujas duas primeiras dcadas foram marcadas por diversos conflitos. nesse contexto

que aparece a figura de Sila (Lucius Cornelius Sylla) que, segundo Mrio Curtis

Giordani (1968, 54), seria o mais propcio general, apesar de ser considerado um

poltico inescrupuloso, resoluo de divergncias polticas interiores que foram

motivadas pelo partido popular at aquele perodo e tambm pela conteno revoltosa

de Mitridates IV, rei do Ponto, que ameaava o prestgio romano no Oriente.

Mitridates, em 88 a.C., proclamava-se rei da sia, estabelecendo vrios

contratos de cunho social com povos daquela regio que afetavam diretamente os

interesses romanos. No entanto, Sila, em 85 a.C., apoiado pelos fencios e pelos rdios

fora o rei de Ponto a aceitar a paz em Dardanos, impondo Mitridates situao inicial,

antes das hostilidades.

A concesso de paz a Mitridates no pode ser considerada um ato solidrio, ou

com sentido afim, est ligada desordem interior e inteno de Sila de voltar para a

capital com o intuito de disputar o poder interno. Em 82 a.C, Sila foi feito ditador, aps

a dominao da Itlia e das provncias ocidentais por ele e seus partidrios,

estabelecendo um governo considerado tirano por muitos, calcado no terror e no

enriquecimento desonesto.

Para Pierre Grimal (2001, 46), Sila durante seu governo reuniu bastantes

poderes, dignos de um rei, o que lhe conferiu a tomada de decises e a impunidade por

muitos atos, como perseguio e morte de opositores que no eram da oligarquia

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senatorial, suspenso normais das atividades republicanas e restaurao do poder do

Senado. V-se, desse modo, que a titulao rgia, mesmo que aparente, garantida pela

defesa dos interesses da oligarquia, que no decorrer de quarenta anos vinha perdendo

privilgios e via em Sila um forte aliado.

Em seu governo, Sila tomou a deciso de compor o tribunal apenas por

senadores, o que contrariava o prprio conceito inerente palavra, que deriva de tribus,

que originalmente designava o povo, a classe pobre, em oposio queles. Pode-se

afirmar que talvez o termo tribunal estivesse ligado aos curatores tribuum, ou os

tribunos da plebe, que surgem no mbito poltico em 494 a.C., criados com o intuito de

defender os interesses dos plebeus.

Diante desse panorama de reviravoltas polticas, os poderes dos tribunos foram

restringidos e os plebeus sentiam que anos de luta, para garantir uma participao mais

ativa nas decises sociais, tinham sido abolidos, sendo Sila o principal responsvel pela

sensao de retorno a pocas mais sombrias de opresso do povo pelos nobres.

A ditadura de Sila durou trs anos. Em 79 a.C, de forma surpreendente, ou

mesmo por razes que os historiadores consideram obscuras, ou pela averso ao instinto

de constante terror que poderia viver enquanto estivesse no exerccio do cargo, o ditador

renunciou ao poder, vindo a morrer, em 78 a.C.

Aps sua renncia, os fatos tomaram, basicamente, o rumo anterior, pois muitos

problemas, que Sila julgou ter resolvido, vieram tona, como a revolta de escravos no

Sul da Itlia, contra a qual lutaram dez legies, deixando outras regies vulnerveis a

invases ou mesmo no sendo usadas por seus generais para a desarticulao dos

piratas, que impediam a circulao de mercadorias, principalmente o trigo, provenientes

de terras longnquas que garantiam o abastecimento de Roma.

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No mbito poltico, os plebeus em constantes manifestaes procuravam

restabelecer seus direitos, pois percebiam que o governo senatorial falhara

constantemente, levando-o a aceitar concesses cada vez mais graves aos interesses da

aristocracia.

Diante dos fatos, Roma necessitava de algum que tentasse estabelecer a ordem,

concentrando mais poderes que um magistrado. Surge, ento, a figura de Pompeu

(Cnaeus Pompeus), que no s havia combatido em batalhas importantes ao lado de Sila

mas tambm ocupado o consulado em 70 a.C. Portanto, com sua experincia, assumira

um papel relevante para a tentativa de resoluo das intrigas externas de Roma, o que

conseguira em pouco tempo. No entanto, as maiores dificuldades encontravam-se na

parte interna, devido s graves crises, principalmente, no campo econmico.

Nesse panorama de carncia das instituies internas, trs homens unem-se

secretamente, em 60 a.C, para conduzir o Estado de acordo com seus interesses, ao seu

modo de conduta. A esse pacto secreto entre Pompeu, Crasso (Marcus Licinius

Crassus) e Jlio Csar (Caius Iulius Caesar) deu-se o nome de Triunvirato, o primeiro.

Distintos acontecimentos acorreram, na poltica interna e na externa de Roma,

durante esse acordo, mesmo tendo sido estabelecido fora dos princpios legais. Mrio

Curtis Giordani (1968, 56) assinala dentre os principais fatos, algumas medidas tomadas

por Csar, que beneficiavam, aparentemente, a populao romana, pois ele estabeleceu

leis que faziam com que os governadores fossem mais responsveis, quando no

exerccio de suas funes, eles no poderiam abusar de seus poderes nas provncias, o

que, de certo modo, garantia aos trinviros maior domnio sobre os territrios romanos.

O contedo da chamada Acta Senatus, que era acessvel apenas aos senadores, foi

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levado ao conhecimento da populao, tentando estabelecer assim maior confiabilidade

por parte da opinio pblica em suas atitudes.

Com a ajuda dos trinviros, Csar conseguiu o consulado, em 59 a.C, e

posteriormente fez com que lhe fosse concedido o governo da Glia cisalpina qual

conseguiu que o senado juntasse transalpina, que comandou durante um perodo de

cinco anos.

Aps sua partida para a Glia, Csar ajudou um patrcio, Cldio Pulcher

(Publius Clodius Pulcher) que havia conseguido passar plebe, o que lhe conferira o

direito de ser tribuno, com o intuito de ser eleito cnsul. Transformar-se-ia, deste modo,

em um agente de Csar dentro de Roma, durante o tempo em que este permanecesse na

Glia.

Cldio era considerado por suas atitudes, quando exercia a funo de tribuno,

como um revolucionrio, em muitas situaes mostrava-se contrrio s atitudes dos

senadores. No momento, em que fazia parte do consulado, concentrando em mos

maiores poderes, tomou atitudes drsticas, estabelecendo em Roma um verdadeiro

regime de terror. Organizou bandos armados e perseguiu seus adversrios polticos,

entre eles o clebre orador romano Ccero, que foi condenado por Cldio ao exlio.

Nitidamente se observa a ligao de Cldio com Csar, ora por tomar decises

que seriam do interesse deste, ora por tentar garantir o benefcio das classes menos

favorecidas, fato anteriormente realizado por seu partidrio. Paradoxalmente, institui,

por um lado, o pavor por suas atitudes e perseguies, por outro, garante a satisfao de

da populao por distribuir gratuitamente trigo, alm de lutar pela reduo de direitos de

censores e de tentar garantir a ampliao de concesses ao povo.

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No mbito externo, durante o primeiro Triunvirato, Roma percebia alteraes

considerveis, a conquista de novas regies garantia aos chefes de poder um fcil e

rpido enriquecimento que, por um lado, expandia os limites territoriais de Roma e, por

outro, garantia a permanncia no poder dos trinviros, uma vez que havia a aparente

satisfao por parte da classe dominante.

Em relao poltica externa, o fato, que pode ser considerado mais importante,

trata da conquista da Glia por Csar, entre os anos de 58 e 50 a.C. apesar de decorrido

um perodo de quase uma dcada para a anexao da regio aos domnios romanos, as

diferenas tnicas, polticas e sociais entre os gauleses foram fatores determinantes para

o seu fracasso. Estas divergncias facilitaram a dominao da Glia, garantindo a Csar

enorme prestgio, dinheiro e o comando de um amplo exrcito, fatores que lhe

permitiriam posteriormente a conquista do poder em Roma.

O perodo, que mais selou a exaltao da aliana estabelecida entre os trs

trinviros, ocorreu de 55 a 53 a.C, pois Pompeu e Crasso foram eleitos cnsules e

Csar, alm de suas conquistas, quando se encontrava na Glia, teve seus mandatos

prolongados.

Aps seu consulado, Crasso recebe o comando das provncias da Sria, deixando

Roma e partindo para o Oriente, onde se empenharia em garantir a unidade dos

domnios romanos. No entanto, seria morto no campo de batalha em Carra, em 53 a.C.

Por outro lado, o governo da provncia da Espanha recebido por Pompeu aps

seu consulado, no entanto este faz se representar naquela provncia por meio de dois

legados. Desse modo, o trinviro poderia permanecer em Roma e se articular

politicamente.

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Aps a morte de Crasso, a aliana entre os dois trinviros remanescentes

agravada por vrios fatores, dentre os quais Mrio Curtis Giordani (1968, 57) aponta os

dois principais para o desencadeamento da crise. O primeiro de carter pessoal diz

respeito morte da filha de Csar, casada com Pompeu, o que geraria o fim de uma

aliana entre ambos os polticos no que se refere a laos pessoais. O segundo seria a

prpria morte de Crasso em campo de batalha, o que, de certo modo, romperia a aliana

estabelecida entre os trs.

Associados a esses dois fatores mais diretos, Roma vivia momentos de

desordens polticas, provocados pelo candidato pretura Cldio, que organizava

diversos motins com seus bandos armados e levava morte seus opositores polticos.

No entanto, como vivia constantemente em meio a intrigas, seria assassinado na Via

Appia em janeiro de 52 a.C. Tais desavenas induziriam o senado a tomar atitudes mais

enrgicas, a fim de restabelecer a ordem em Roma, conferindo a Pompeu plenos

poderes e nomeando-o cnsul nico em 52 a.C.

O senado via em Pompeu , naquele momento, um candidato que proporcionaria

a garantia de seus ideais, o que o levou a conceder-lhe tamanha autoridade, fator que

muito desagradou a Csar.

Segundo Pierre Grimal (2001, 48), os aristocratas acabariam por entender que

Csar no representava a garantia das idias da Repblica, sendo Pompeu considerado

como o mais propcio para a defesa dos interesses aristocrticos. Embora Csar

detivesse em mos um forte poderio blico, o Senado resolveu retirar-lhe o comando da

Glia, em 49 a.C, o que fez crescer as desavenas entre os dois ex-trinviros.

Csar, insatisfeito com a situao, recusa-se a obedecer s ordens do Senado que

lhe tirava da administrao da Glia, alm disto, extrapola os limites de sua provncia,

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atravessando o Rubico, pequeno riacho, entre Ravena e Rimini. Csar ento persegue

Pompeu que foge para a Grcia e, em seguida, retorna a Roma, impe a ditadura e

posteriormente consegue a consulado, fato que resultaria na queda da Repblica.

Aps a retirada de Pompeu para a Grcia, onde foi derrotado, em agosto de 48

a.C, na batalha de Farslia, ele foge para o Egito, onde assassinado por Ptolomeu.

Desta forma, Csar persegue os adeptos de Pompeu, sendo os ltimos vencidos na

batalha de Munda, na Espanha.

Csar garante aos seus partidrios posies privilegiadas e, aps a vitria em

Munda, recebe honrarias dignas de um deus, devido s suas realizaes, dentre as quais,

Mrio Curtis Giordani (1968, 59) aponta a proteo s classes menos favorecidas,

distribuio gratuita de trigo, restrio aos exageros das classes dominantes.

Visando romanizao dos povos conquistados, Csar conferiu-lhes alguns

privilgios, antes aferidos apenas aos cidados romanos. Tambm incentivou as

cincias, promovendo, em 45 a.C, a alterao do calendrio, instituindo-se o atual de

trezentos e sessenta e cinco dias, ao qual se acrescentaria, a cada quatro anos, um dia ao

ms de fevereiro, o chamado ano bissexto.

Apesar de Csar ter calcado seu governo na ordem e na justia, fazia-o

unicamente pela imposio e pela autoridade, o que gerava a indignao de muitos,

principalmente da aristocracia que via a restrio de suas regalias e a ampliao dos

benefcios da populao menos favorecida.

Devido repulsa da aristocracia, mesmo que de uma pequena parcela, Csar foi

assassinado em 15 de maro de 44 a.C, pois os aristocratas acreditavam que, com sua

morte, Roma retornaria ao regime anterior. O assassinato de Csar conferiu a Roma a

entrada em um longo perodo de conflitos internos.

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Mesmo com a morte de Csar, o cesarismo continuou imperante em Roma

devido aos interesses da aristocracia, dos soldados e do povo. No entanto, com este fato

e a desordem gerada, Roma v a repetio de uma segunda aliana entre os trs

aspirantes ao poder: Marco Antnio (M. Antonius), antigo cnsul de Csar, que presidiu

aos funerais deste, almejando a simpatia popular; Caio Otvio (Gaius Octauius),

sobrinho neto de Csar e, legalmente, seu filho adotivo, na poca apenas com dezenove

anos e Lpido (M. Lepidus), antigo mestre da cavalaria de Csar.

Juntos formaram o chamado segundo Triunvirato, em 43 a.C, combateram os

republicanos, recomeando a guerra civil. Aps a vitria sobre estes partilharam os

domnios romanos entre si. Segundo Pierre Grimal (2001, 50), a Marco Antnio coube

o Oriente, a Lpido, a frica e a Caio Otvio, o resto do Ocidente.

O segundo Triunvirato diferia do primeiro por seu carter formal e, devido sua

legalidade, atravs da lei Titia foi criada uma nova magistratura que conferia aos novos

trinviros diversos poderes, at mesmo a publicao de editos com valor lcito.

Mesmo cada um dos membros do Triunvirato sendo responsvel por

determinada regio, a busca pelo poder e os conflitos entre eles foram inevitveis. Caio

Otvio conseguiu a adeso das legies de Lpido, em 46 a.C, forando este a abdicar.

Em seguida, moveu grande nmero de romanos em defesa de seus ideais para tirar

Marco Antnio do comando do Oriente, apresentando argumentos diversos, dentre os

quais se pode destacar o fato de este ter como mulher Clepatra, rainha egpcia, o que

fez Caio Otvio suspeitar e levantar hipteses a respeito da integridade romana, uma vez

que um de seus lderes havia se associado a uma estrangeira, e que, a qualquer

momento, ela e seu aliado poderiam querer expandir seus domnios sobre o Ocidente.

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Movendo a opinio romana sobre a manipulao de Marco Antnio por

Clepatra, Caio Otvio lana suas legies sobre aqueles, os quais na batalha de Actium

em 31 a.C, de forma precipitada fogem e, em 29 a.C, no vendo alternativa alguma,

suicidam-se. Desse modo, os romanos vem o regime republicano sucumbir e Caio

Otvio tornar-se senhor absoluto de Roma, sendo chamado pela primeira vez, em 27

a.C, de Augusto, reunindo em suas mos todos os poderes, e iniciando o Imprio.

O sculo em que Ccero est inserido marcado por diversos conflitos polticos,

que exercem direta ou indiretamente influncia em sua vasta obra literria, pois desde

muito jovem participou efetivamente da vida pblica romana. O nascimento de Ccero

(Marcus Tullius Cicero) data de 106 a.C, em Arpino, situada a cerca de 110 Km de

Roma, sendo sua famlia ligada ordem dos equites e ele era constantemente

considerado um estrangeiro ou chamado de homo nouus, pois sua ascendncia no era

nobre. Sua educao, juntamente com a de seu irmo Quinto, foi realizada em Roma,

onde ainda muito jovem teve a oportunidade de aprender e ouvir os mais ilustres retores

e filsofos.

Seu primeiro marco como orador, mesmo aos 26 anos, foi Pro Roscio Amerino,

em que discursava em defesa de Rscio Amerino, acusado de parricdio. A partir desse

momento, conseguiu xito na maior parte de seus discursos, quer fossem estes em prol

de um acusado ou contra um provvel inimigo de Roma. Atravs deles conseguiu

ascenso no mbito poltico, chegando at os mais altos cargos da Repblica e, por

outro lado, despertou o rancor em muitos de seus adversrios.

Seu interesse pela oratria e pela filosofia fez com que a partir de 79 a.C, Ccero

buscasse um aprofundamento de seus estudos nas letras gregas em Rodes e em Atenas,

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procurando aumentar a prpria cultura, despertado pela leitura principalmente de

filsofos gregos.

Aps sua volta a Roma, em 75 a.C, foi feito Quaestor, ganhando destaque entre

os magistrados, pois em tal funo exercia a guarda do tesouro pblico e assessorava o

Praetor e o Proconsul, tendo este na provncia autoridade de Consul, o exerccio

daquele cargo por Ccero se deu na Silcia ocidental.

Juntamente sua ascenso poltico-social, Ccero cada vez mais ganhava

destaque por seus discursos, sendo crescente a procura de seus servios de orador pelos

membros da aristocracia romana. Dentre as suas dezenas de discursos, alguns foram

marcantes para o estabelecimento do autor como o clebre orador romano, considerado,

no poder argumentativo, pela crtica como igualvel apenas ao orador grego

Demstenes.

Por ser o mais notvel orador naquele momento em Roma e por parecer o mais

propcio aos interesses do Senado, em 70 a.C, foi convidado a acusar Verres (Cornelius

Verres), que desempenhava a funo de propraetor da Siclia, durante 3 anos, cujo

governo era considerado como smbolo de corrupo e de crueldade. O discurso

vitorioso de Ccero contra Verres publicado em Verrina, que Grimal (1997, 113)

afirma ser uma forma que o orador encontrou de denunciar a m administrao do

Estado por seus responsveis.

Devido a sua constante preocupao com os interesses pblicos, em 66 a.C, foi

feito Praetor Urbanus, o que aumentava ainda mais sua importncia no cenrio poltico.

No entanto, apesar de sua fama, Ccero no havia conseguido juntar grande fortuna,

exercendo seus atributos de orador, pois uma lei denominada Lex Cincia impedia que o

defensor recebesse pela causa defendida. Deste modo, em 62 a.C, para que pudesse

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comprar a casa de Crasso, no Palatino, teve que pedir emprstimo a Cornlio Sila1, que

viria a defender posteriormente.

Sua condio financeira garantia-lhe a possibilidade de viver entre os filsofos e

os fillogos de sua poca. Este ltimo termo deve ser entendido como designador de

homem que tinha interesse pela linguagem antiga, particularmente a dos filsofos, que

tanto era prezada por Ccero. Segundo Grimal (1997, 116), estas preocupaes revelam

um homem envolvido pela vontade de saber, que no estava apenas ligado aos

interesses polticos, como se pode observar em vrias de suas obras de cunho filosfico,

principalmente as escritas no final de sua vida.

No entanto, parece que seu prestgio como orador e homem pblico lhe garantia

respeito de figuras romanas ilustres que, de certo modo, ajudariam em sua ascenso

poltica pretura, em 66 a.C, e ao consulado, em 63 a.C. Fatos que no seriam possveis

sem a ajuda da arte oratria que tanto Ccero prezava.

evidente que a importncia do orador e sua subida poltica no seriam

imaginveis sem o apoio da aristocracia, que via no autor a oportunidade de

convencimento do Senado para a expanso dos domnios romanos ocidentais e

orientais. Pode-se afirmar que havia tambm do lado da aristocracia interesse em que

Ccero fosse feito senador, principalmente por parte de Pompeu, que o considerava um

exmio aliado, apto defesa de seus interesses e contra o qual, dificilmente, pouco se

poderia fazer no que se refere arte do discurso.

O posicionamento favorvel de Ccero a Pompeu pode ser verificado em um dos

seus primeiros discursos polticos, denominado de De imperio Pompei, em que, afirma

Grimal (1997, 122), defendia os interesses de Pompeu sobre uma possvel centralizao

1 Cornlio Sila no deve ser confundido com Sila (Lucius Cornelius Sylla), ditador romano, morto em 78 a.C.

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do poder, mostrando que este seria o mais bem preparado para enfrentar as adversidades

internas ou externas vivenciadas por Roma, em 60 a.C, como a possibilidade de guerra

civil e as invases brbaras, uma vez que Roma, devido disputa pelo poder, mostrava-

se fragilizada. Este posicionamento de Ccero gerava, por outro lado, hostilidades por

parte daqueles que tambm se mostravam interessados na centralizao do poder em

suas mos, como Csar.

Para o convencimento do Senado e do povo a respeito dos interesses, ou seja, do

que Pompeu representaria na defesa do Imprio, no pouco provvel que o orador

tenha se valido de um discurso tocante a respeito dos valores romanos, como a fides e a

uirtus, o que representaria para a honra daqueles a vitria sobre Mitridates. De um modo

geral, tal discurso parece apresentar-se ambguo, tanto fortalecendo a figura de Pompeu

quanto fazendo com que o povo romano buscasse apoi-lo pela exaltao de sua glria.

A vitria, neste caso, no seria de uma classe em especial, mas da prpria Roma.

A exaltao de Pompeu seria tambm a sua prpria, pois Ccero queria se

apresentar como um cidado notvel, alm disto, quando tenta levantar a moral do povo

pela fides e pela uirtus, o que conduziria a religio, alm da notoriedade oratria, nesse

momento, j podem ser observados elementos que o conduzem aos escritos filosficos,

que produziria nos anos finais de sua vida, como o livro De natura deorum. Por volta de

69 a.C, Ccero se considera um intermedirio entre o mundo divino e a cidade, talvez

por perceber a fragilidade ou mesmo a fidelidade do povo aos ritos religiosos.

Em 63 a.C, apesar de ser homo nouus, completa o cursus honorum e consegue

ser eleito consul. Profere em seus primeiros dias de consulado discursos que, segundo

Grimal (1997, 141), aparentemente vo ao encontro dos interesses da aristocracia, pois

tentava diferir uma lei agrria sugerida por Seruilius Rullus em que seriam distribudas

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terras na prpria Itlia queles que no as possussem. Ccero, para evitar um conflito

interno considervel, consegue atravs de sua fora discursiva convencer os cidados

romanos dos graves problemas que surgiriam, se tal lei fosse aprovada.

No se pode, porm, classificar a atitude do orador como defesa dos interesses

aristocrticos, se se considerar que Seruilius Rullus, agindo daquela maneira, garantia os

interesses de Csar e Crasso, que, gerando conflitos internos, enfraqueceriam a figura de

Pompeu.

Dessa forma, deve-se perceber que Ccero no buscava prejudicar as classes

menos favorecidas, impedindo sua possvel melhoria, mas garantir os interesses de

Pompeu, que lutava no Oriente, e tambm os seus, mostrando-se um excelente lutador,

quando no se tratava do uso da fora fsica, mas do poder da palavra.

Outra preocupao de Ccero na funo de consul est diretamente ligada

popularidade, o que pode ser verificado em suas atitudes. Quando lhe foi atribuda a

Macednia atravs da eleio para que ele a comandasse e a Glia Cisalpina a Antonius,

providenciou Ccero uma troca no comando das provncias, pois se assumisse a

provncia da Macednia deveria se afastar de Roma, como este no era seu interesse,

uma vez que poderia haver articulaes contrrias sua poltica, preferiu a Glia

Cisalpina, o que foi aceito por Antonius em acordo.

Tal atitude garantia-lhe manobras polticas de seu interesse, porque Ccero se

preocupava com sua popularidade, o que facilitava de um modo geral a persuaso do

povo. Certamente, argumentando que seria mais til sua presena em Roma que, por

outro lado, dava-lhe possibilidades de desmanchar conspiraes que fossem contrrias

ao Estado, articuladas por Catilina, ou mesmo por Csar, j que Pompeu ainda se

encontrava fora de Roma.

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O fato, que lhe restabeleceu a confiana do Senado e do povo de uma forma

geral, foi a descoberta da conjurao de Catilina, denunciada e levada ao Senado. Por

este motivo, segundo Grimal (1997, 156), Ccero recebe dos senadores o ttulo de

Senatus consultum ultimum, com o qual receberia a misso de defender a Repblica por

todos os meios. Este episdio foi escrito pelo autor em um dos seus mais conhecidos

discursos, denominado de In L. Catilinam, com o objetivo de servir como exemplo para

todos aqueles que pretendessem ir de encontro aos interesses da Repblica romana, o

que ainda o fez ser chamado de pater patriae.

A importncia poltico-social do orador mostra-se no apenas pelos ttulos

recebidos, mas por sua ascenso social, conseguida pela defesa dos mais notveis

polticos romanos atravs de seus discursos, de quem recebeu nobres honrarias, dignas

de poucos cidados, mesmo Ccero no tendo nascido em Roma.

Eventos como esse geravam, por mais que demonstrassem a fora do orador,

intrigas, no apenas por parte daqueles sobre os quais Ccero havia proferido discursos

contrrios, como o caso dos partidrios de Catilina, mas tambm por parte daqueles

romanos mais conservadores que o consideravam, por ser proveniente de Arpino, um

estrangeiro. estabelecida, ento, sua residncia na parte nobre de Roma, em momento

de grande agitao poltica, quando Ccero tinha muitos admiradores por um lado, mas

por outro, vrios interessados em seu afastamento da vida pblica e da prpria Roma.

Constata-se, nesta agitao poltica, que em 60 a.C o Senado e a ordem eqestre

praticamente se mesclavam, crescendo a cada dia a fora da segunda. Nesse mesmo

perodo, Csar governava a Espanha Ulterior (1997, 184), em que havia exercido

durante um perodo de oito anos a funo de Quaestor. Csar havia comandado vrias

expedies, o que fazia crescer sua experincia militar, fato que posteriormente iria ser-

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lhe de bastante utilidade. Em junho do mesmo ano, retornou a Roma almejando um

lugar no Senado, no seria muito difcil de consegui-lo, j que suas conquistas militares

o igualavam em glria a Pompeu.

Ento Csar eleito consul, no demorando para estabelecer a aliana secreta

com Pompeu e Crasso, denominada primeiro Triunvirato. No parece impossvel que

Ccero tenha sido convocado a participar dessa aliana, devido ao seu grau de

importncia perante o Senado. No entanto, pode-se dizer que de acordo com seu carter

e tica institudos na concepo grega de cidado, principalmente influenciado pelos

filsofos peripatticos, Ccero no poderia participar de tal aliana, pois seria uma

espcie de traio a si mesmo e a sua ptria. Suas atitudes, seus discursos o conduziam a

uma concepo de equilbrio no regime de governo, em que o Senado pudesse atuar

mais favoravelmente estabilidade social, e no apenas de acordo com o interesse de

poucos.

Os anos que se seguem so marcados tambm por grande agitao poltica. Em

59 a.C, Cldio Pulcher tribuno, tendo apoio de Csar e de Pompeu, no demora em

fazer ser aprovada uma nova lei, chamada de De capite ciuium, em que cidado algum

poderia ser condenado morte se no tivesse sido julgado por um tribunal composto por

populares do qual Ccero no faria parte.

Sentindo-se perseguido por Cldio, uma vez que praticamente no participaria

dos julgamentos, o que tornava mais prtica a absolvio dos aliados dos trinviros,

Ccero abandona suas vestes de senador e, segundo Grimal (1997, 193), passa a usar

trajes de simples cavaleiro, fato que conduziu a uma manifestao geral de senadores e

cavaleiros, afirmavam estes que o Estado no tinha mais um governo, que se

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configurava na pessoa de Ccero, demonstrando o grau de importncia do orador nas

causas pblicas.

Diante das manifestaes, Ccero aconselhado pelo cnsul Calpurnius Piso

Caesoninus a deixar Roma para que no houvesse conflitos entre os cnsules. A sua

sada da cidade era desejada por Cldio que, desde que havia sido eleito tribuno,

buscava meios legais para expulsar Ccero de Roma. Aps sua sada, Cldio

providenciou um novo projeto de lei que condenaria Ccero ao exlio, principalmente,

por este ter julgado e condenado os cmplices de Catilina.

No exlio, certamente, longe da vida pblica, Ccero preparava seu retorno a

Roma, alm de se dedicar leitura e escrita, pois desse mesmo perodo o primeiro

livro do tratado De diuinatione. Aps vrias tentativas de anulao da lei do exlio por

parte de seus partidrios para que Ccero pudesse voltar a Roma, em sua totalidade

vetadas por Clodius, em 57 a.C, afirma Grimal (1997, 206), Pompeu convoca uma

reunio do Senado, que vota um projeto confirmando o retorno de Ccero a Roma. Esta

reunio certamente no contou com a presena de Clodius e seus partidrios. Ento, dias

depois Ccero deixaria a casa de seu amigo Atticus em Butroto, cidade martima do

piro, para ser aclamado em Roma durante os Ludi Romani, retomando assim seus

afazeres pblicos.

Em 51 a.C, Ccero foi enviado como proconsul para administrar a provncia da

Cilcia durante um ano, ao retornar a Roma, assistia cada vez mais runa da Repblica,

que era conduzida com fins pessoais pelos trinviros. Desse momento em diante, o

autor parece ter buscado na filosofia e na Retrica um abrigo para as suas decepes na

vida poltica, que se distanciava dia a dia dos ideais de cidado, que lhe garantira o

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ttulo de pater patriae, uma vez que parte considervel de sua obra retrico-filosfica

foi datada a partir desse perodo.

Aparentemente decepcionado com o caminho pelo qual o Estado era conduzido

e vendo-se fragilizado, pois seus discursos j no tinham o mesmo grau de importncia

que na dcada anterior, Ccero parte para algumas investidas contra influentes romanos,

proferindo acusaes mais diretas ao herdeiro direto do cesarismo Marco Antnio, que

havia formado com Caio Otvio e Lpido uma ditadura coletiva denominada de

segundo Triunvirato. O discurso intitulado Orationes Philippicae pronunciado nos anos

44 e 43 a.C, no Senado e diante do povo, atraram contra Ccero a antipatia implacvel

de Marco Antnio, que a partir daquele momento perseguiu-o de todas as formas

possveis, colocando o nome do orador nas listas de proscrio. Deste modo, Ccero foi

morto em 7 de dezembro de 43 a.C.

A decadncia da Repblica e perda da influncia do autor em tal regime,

conduzem-no centralizao de suas atividades na produo literria, o que certamente

pode ser visto como de valor diminuto,ou seja, mesmo o autor sendo considerado um

homem das letras, no se dedicava prioritariamente literatura, pois apenas distante das

atividades polticas, embora tendo publicado alguns de seus discursos, parece

preocupar-se em escrever sobre assuntos que no tivesse contedo poltico, mas ligao

com as aflies da alma e com a formao filosfica que havia recebido ao longo da

vida.

Durante os ltimos anos de sua vida, entre 45 e 44 a.C, o perodo marcado por

grande agitao, tanto no mbito pessoal quanto no poltico, exerceu profunda

influncia em seus textos, a que faz referncia em De natura deorum, na narratio do

primeiro livro, como a morte de sua filha Tlia, em 45 a.C e a ascenso de Csar ao

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poder aps a vitria sobre Pompeu, em 48 a.C, fato que conduziu o regime republicano

ao final.

Tantas aflies de carter pessoal deixaram marcas no esprito inquieto de

Ccero que, desde muito jovem, demonstrou interesse pela filosofia e, nessa fase

especificamente, deu nfase temtica filosfica, parecendo cumprir vrios objetivos ao

mesmo tempo, como a busca de consolo pela morte de sua filha, verificadas nas cartas a

tico, que podem ser consideradas as principais fontes sobre os conflitos vividos em

Roma nas ltimas dcadas da vida de Ccero.

Sed me mihi non defuisse tu testis es. Nihil enim de maerore

minuendo scriptum ab ullo est quod ego non domi tuae legerim. Sed omnem

consolationem uincit dolor. Quid etiam feci quod profecto ante me nemo ut

ipse me per litteras consolarer.2 (Carta a tico, XII, 14)

Se me perturbo, tu s testemunha, do que tenha morrido em mim. Na

verdade, nada, que eu tenha lido em tua casa, escrito por algum, diminuiu

minha aflio. Mas a dor vence toda consolao. O que eu fiz para que

ningum pudesse a mim mesmo consolar pelas letras?

Quando Ccero especifica domi tuae, certamente se refere ao perodo de exlio,

em que grande parte do tempo passou na casa de tico, lendo possivelmente filsofos

gregos, o que o conduzia a uma reflexo que no se pode dizer comum em Roma, j que

constantemente estava envolvido na defesa de alguma causa. No entanto, este

distanciamento da agitada vida poltica romana, que gerava, naquele momento, vrias

decepes, associada ambio de produzir um corpus filosfico extenso e de

qualidade, que at aquele momento no havia sido feito em lngua latina, que pudesse

2 A traduo das citaes extradas das obras, referidas na bibliografia, que no esto em portugus so de minha autoria, salvo as especificadas.

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ser comparado s grandes obras gregas. Esta ambio leva o orador a escrever, entre 45

e 44 a.C, algumas de suas principais obras filosficas, como De natura deorum, De

finibus, Tusculanae Disputationes, De officiis.

Distanciado de seus ofcios polticos, marcado por desiluses produzidas pela

situao em que se encontrava Roma e verificando que todos os esforos empregados

no intuito de oferecer melhorias ao Estado, mais especificamente Repblica, que no

mais existia, Ccero resolve dar sua contribuio a Roma de outra maneira, que no

tentar livr-la de conspiraes idealistas de pequenos grupos de aristocratas, mas elevar

a lngua latina ao nvel da grega, com isto exaltar os romanos, atravs da produo de

obras filosficas, o que at aquele momento no havia sido feito, pois os prprios

escritores romanos consideravam a lngua latina privada de termos que pudessem

traduzir com objetividade os conceitos aprendidos dos gregos.

Observando a carncia de uma produo intelectual que pudesse lhe atender as

necessidades, Ccero resolve escrever sobre filosofia, utilizando-se de dois recursos

bsicos no que se refere s lacunas latinas, ora traduzir os termos gregos por perfrases,

ora transcrev-los usando caracteres latinos, porm os explica para que possam ser

entendidos pelos romanos.

nessa atmosfera de tentativas de esclarecimento que o autor observa o quanto

so ambguos os cultos religiosos, as definies de deuses, a interpretao dos auspcios

e todos os atos que se ligavam religio. Esta situao no era verificada apenas em

relao aos latinos, os gregos tambm no haviam explicado objetivamente muitas

questes que envolviam os deuses, que em sua maioria praticavam atitudes dignas dos

seres humanos, como roubos, trapaas, perseguies. Ento, que seriam realmente os

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deuses? Fariam apenas parte do devaneio humano? Poderiam influenciar nas atitudes

dos homens?

Objetivando a discusso destes questionamentos, no com o intuito de explic-

los diretamente, Ccero escreve o seu tratado filosfico que trata de questes referentes

aos deuses, intitulado De natura deorum, em 45 a.C, dois anos antes de sua morte,

perodo em que o autor se inquietava com questes relacionadas s sublimes

preocupaes da alma e com as aflies da velhice, marcada pela presena de uma

morte cada vez mais prxima.

O tratado De natura deorum, juntamente com De inuentione e De fato, configura

os escritos teolgicos ciceronianos em que o autor se dedica apreciao das relaes

entre as divindades e os humanos, sobretudo em questes referentes tradio romana,

calcadas em pilares como pietas, fides e uirtus. Ccero no prope em De natura

deorum dar explicaes objetivas sobre os diversos conceitos usados para caracterizar

os deuses, nem mesmo explicar qual seria a origem dos deuses, como sugere o prprio

ttulo da obra.

No entanto, usando-se um hbil estilo dialtico, prope a exposio das teorias

elaboradas pelos filsofos gregos mais conhecidos, at aquele momento, com o intuito

de confrontar suas proposies, a fim de levar ao leitor o maior nmero de informaes

possvel no que se refere ao pensamento humano a respeito dos deuses.

Ccero retoma conceitos filosficos gregos sobre os deuses, pois naquele perodo

Roma sofria grande influncia cultural da Grcia, alm de a formao do autor ter sido

basicamente realizada de acordo com os ideais gregos. Para que se entenda o

pensamento e as conjecturas intelectuais durante o sculo em que est inserido o autor,

necessrio saber que as das correntes filosficas de maior xito em Roma eram a

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epicurista e a estica, as quais muito j haviam se desvinculado do pensamento grego de

que eram provenientes e, constantemente, sofriam interpretaes de cunho popular e

simplista.

A escola fundada por Epicuro era categoricamente criticada por Ccero devido

ao seu carter ideolgico e materialista, sobretudo no que se refere teoria atmica de

formao do cosmos, o que era visto pelo autor com o mais completo ceticismo, tpico

dos adeptos da Academia, escola filosfica a que estava vinculado e que se

caracterizava por um ponto de vista metodolgico bem mais amplo em relao

flexibilidade terica que o epicurismo e o estoicismo sugeriam.

As variadas correntes de pensamento que so utilizadas pelo autor, em De

natura deorum, apresentam uma tentativa de ele demonstrar que tais correntes se

encontram intimamente relacionadas, mas que, por outro lado, em muitos pontos

divergem completamente. Esta tentativa de vinculao de teorias proposta com o

intuito de motivar uma soluo para uma srie de problemas que envolvem o

julgamento da populao acerca dos seres divinos, porm a expectativa de que as mais

conhecidas teorias propostas pelos mais clebres filsofos anulada, no decorrer do

texto, quando Ccero tenta demonstrar, principalmente, atravs dos personagens que

aquilo que aparentemente entendido como um conceito inquestionvel, na verdade no

passa de mera contradio.

O acadmico Ccero, afirma ngel Escobar (1999, 21), recorre a um variado

repertrio de fontes para a elaborao de tratado filosfico De natura deorum, pois

notrio, no decorrer do texto, que muitos conceitos so levantados pelo autor, alguns

erroneamente, o que conduz ao entendimento de que ele tinha conhecimento terico

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suficiente para levant-lo corretamente, quando preciso, ou distorc-lo objetivando a

exaltao de uma teoria posterior.

Desse modo, Ccero no aceita uma verdade nica e se mostra questionador da

unidade filosfica, em notvel estilo dialtico. Pode-se antecipar a idia de que o autor

no tem por objetivo, com o tratado De natura deorum, conduzir o leitor a uma possvel

verdade, que seria demonstrada no trmino do livro, sobre as questes que envolvem os

deuses. Isto sugerido pelo autor no exordium do primeiro livro, porm esta concepo

desfeita pouco a pouco ao longo do texto.

Ento, qual seria o objetivo de seu tratado? Qual a razo da utilizao do ttulo

De natura deorum, se no haver a explicao para a natureza dos seres divinos? Pode-

se dizer que o autor tem o interesse em demonstrar as mais variadas concepes sobre

os deuses, os cultos que os envolvem, as dspares crenas de diferentes povos e pocas,

sua possvel forma fsica aparente do homem, revelando-se conhecedor dos

fundamentos das principais escolas filosficas o suficiente para us-las em prol de sua

causa, ou seja, a de retomar antigas questes ligadas ao culto religioso que, naquele

momento, ainda exercia grande influncia nas relaes sociais.

Apesar de sua influncia no campo social, a religio romana, especialmente na

poca de Ccero, passava por profundas transformaes, geradas tambm pelas relativas

mudanas no mbito poltico-social, como a importncia do papel do auspicium, que

experimentava uma decomposio relevante e, freqentemente, associava-se aos

interesses polticos vigentes, perdendo gradativamente as caractersticas arcaicas que a

constituam. Sendo, portanto, neste panorama de ansiedade e incertezas, em poca

marcada pelo surgimento de novos cultos e supersties referentes aos deuses, que

escrito seu tratado.

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Em De natura deorum, o autor deixa transparecer a influncia grega recebida

durante sua formao, optando pelo uso da estruturao dialgica para a composio de

seu tratado, o que pode lhe permitir o alcance do objeto desejado sem grandes

dificuldades, ou seja, a produo de uma obra filosfica relevante, apesar de este campo

em lngua latina apresentar-se praticamente intacto. O modelo seguido por Ccero fora

basicamente o dilogo platnico, utilizando-se de personagens contemporneos, que

fazem uso de monlogos extensos para a exposio de suas teorias acerca das

concepes divinas, associando-se a estes monlogos a participao do prprio autor,

que conduz a exposio terica dos personagens.

Ccero estrutura o seu tratado em trs livros, em que se pode observar uma

sucesso de quatro monlogos extensos: o primeiro discurso de Veleio (Gaius Velleius),

adepto da escola de Epicuro, marcado pela tentativa de o personagem enumerar os

ideais epicuristas sobre a questo dos deuses, proposta pelo prprio Ccero no incio do

dilogo. quele discurso se sucede o de Cota (Gaius Aurelius Cotta), partidrio da

Academia, o qual realiza crticas s idias levantadas por Veleio e, em seguida, constri

sua argumentao acerca dos deuses sob a tica acadmica. A estes dois discursos, que

so proferidos no primeiro livro, segue-se o do estico Balbo (Quintus Lucilius Balbus),

que tenta abordar a temtica sugerida munido dos ensinamentos da escola estica, no

decorrer de todo o segundo livro. Retomando seus argumentos, o acadmico Cota

intervm pela segunda vez, no terceiro livro, refutando a argumentao de Balbo,

finalizando o tratado sobre a natureza dos deuses.

Com esta estruturao do dilogo, o autor pretende garantir os interesses

acadmicos, mostrando-se partidrio da Academia, principalmente, por revelar certo

ceticismo em relao temtica abordada, propondo uma discusso que parece, em seu

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incio, tentar esclarecer questes ambguas sobre os deuses, mas que se mostra, ao

trmino do livro, acentuar mais as dvidas vigentes.

Isto ocorre devido prpria estruturao do livro, o autor garante ao acadmico

Cota posio privilegiada para a exposio de seus argumentos, sempre sucede, nunca

sucedido, levando a acreditar que o autor no deseja que o acadmico seja refutado.

Associado posio do discurso de Cota est o espao a ele concedido, que ocupa cerca

de cinqenta por cento da obra, ou seja, mais da metade do primeiro livro e todo o

terceiro livro, que finalizado com os ideais de Ccero, representado pela figura de

Cota.

Quanto organizao do primeiro livro, tomado como corpus da presente

dissertao, procura-se a anlise das partes de que composta sua estrutura,

considerando a Retrica como cincia complementar da filosofia, para que aquela no

seja analisada como objeto meramente formal e desvinculado de seu contexto.

Considerando que o primeiro livro fora estruturado pelo autor em 44 partes,

procurar-se-o quais os possveis motivos que conduziram a dividi-lo desta forma. A

teoria retrica sugerida pelo prprio Ccero, em seus diversos escritos sobre Retrica,

levar luz os mais variados conceitos de oratria, aos quais o fizeram ser considerado

pela crtica o mais nobre orador romano do chamado perodo clssico, que se estende de

81 a.C a 70 a.D, conhecido como a idade de ouro da literatura latina, tanto pela forma

quanto pela substncia, em que durante a primeira metade deste perodo a prosa atingiu

a mxima perfeio.

A teoria sobre a diviso do discurso retrico sugerida ser observada para a

proposta de uma nova estruturao do primeiro livro, em que no se faz uso das 44

partes inicialmente aplicadas no texto original, mas de um nmero bastante reduzido,

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dentre as quais, destacam-se apenas quatro, denominadas por Ccero de exordium,

narratio, confirmatio e confutatio.

Esta proposio est calcada nos aspectos conteudsticos do primeiro livro e na

disposio dos discursos apresentados, o que lhe daria uma melhor disposio para

conduzir quilo que o objetivo inicial da Retrica, ou seja, a persuaso.

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3. Retrica e Elementos Constituintes

Para a sociedade atual, a concepo de retrica bastante se distancia do que

primordialmente este termo designava, muitos a associam a um discurso adornado e em

sua maioria vazio quanto ao significado. Desse modo, preciso estabelecer uma

definio geral, a fim de se obter as partes determinantes da retrica que, em seu sentido

lato, entendida como uma arte discursiva, que pode ser exercida por um indivduo

participante ativamente de uma sociedade. Por outro lado, a retrica, em seu sentido

restrito, pode ser compreendida propriamente como um discurso em que se defende uma

parte interessada, um indivduo, ou parapei/qw, arte de persuadir pouco a pouco, vencer

atravs da persuaso. um sistema de formas de pensamento e de linguagem

elaborados, que est associado aos fins de quem discursa para que se atinja um

determinado objetivo.

As formas de pensamento e de linguagem podem ser reconhecidas, usadas e

nomeadas pelo rtwr, orador por excelncia, em seu discurso, havendo dois atributos

em comum: poder pr disposio dele, primeiramente, diferentes aplicaes e, mesmo

que sejam divergentes, no so completamente arbitrrias, pois o objetivo de um

sistema composto por formas dispor variados subsdios para as mais diversas

aplicaes; segundo, estar disponvel a todo aquele que precise aplicar uma ou mais

formas do sistema, no carecendo de conhec-lo minuciosamente ou de t-lo presente

na conscincia, de modo sistemtico e definido, no ato da aplicao do discurso, muitas

vezes, usado mesmo sem o devido conhecimento.

Deve-se acrescentar que as formas lingsticas e retricas so intermediadas de

bou/lhsij, volio ou inteno da qual se utiliza o orador com contedos que exercem

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efeito sobre o ouvinte, pois so os nicos envolvidos e interessados pela meno

discursiva, especialmente no discurso do uso nico3, ou seja, aquele que proferido

uma nica vez pelo orador numa determinada situao histrica com inteno de

modific-la.

A respeito de tal modo discursivo, Lausberg (2004, 80) menciona que parte

integrante de um de seus trs gneros. Primeiramente, a questo acerca da situao,

quaestio, discutida sem que seja necessrio, para exposio da situao, um discurso

prprio, apenas que este seja apresentado com clareza. Segundo, o discurso de deciso

proferido pelo rbitro da situao, na alterao ou na permanncia daquela, bastantes

vezes, alm do interesse do rbitro, esto ligados ou so atingidos pela situao ainda

outros indivduos, que, freqentemente, dividem-se em partidos, esforando-se para que

a situao no se altere ou adote determinado preceito; por sua vez os partidos dirigem-

se ao rbitro da situao e procuram influenci-lo, usando de parapei/qw, para que se

modifique ou se conserve a situao num sentido favorvel a um determinado partido.

Terceiro, o discurso de deciso proferido pelo rbitro da situao, que pode modific-la

por meio da ao ou atravs da palavra. Sta/sij ou situao pode ser um estado

encontrado numa determinada altura discursiva pelo orador e que diz respeito a si

mesmo ou a um grupo de indivduos, em que se forma um todo em relao ao status,

sendo empregada pelo mesmo com inteno modificadora.

As formas de pensamento e de linguagem, segundo Lausberg (2004, 82), so

acrescidas de contedos importantes conforme a situao, porm o efeito de seu

contedo depende diretamente da inteno do sujeito falante, sendo que, para que seu

teor desempenhe qualquer circunstncia considervel, o ouvinte deve encontrar-se, atual

3 Lausberg considera oposto a esse discurso, o de uso repetido que objetiva manter conscientes a complexidade e a continuidade da ordem social. (2004, 81)

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e efetivamente, em uma situao semelhante do emissor, alm disto aquele tem de

dominar, pelo menos empiricamente, as mesmas formas lingsticas que este, sejam elas

gramaticais ou lexicais, para que o discurso atinja o objetivo pretendido pelo emissor.

A retrica anterior a toda e qualquer histria, afirma Olivier Reboul (2004, 1),

pois no se concebe que os homens no tenham utilizado a linguagem como mtodo

persuasivo desde os primrdios. Apesar disso, pode-se afirmar que est diretamente

ligada tradio grega, sendo uma inveno dos gregos, h( r(htorikh/, adjetivo utilizado

como nome abstrato, correspondendo a h( te/cnh r(htorikh/, que se refere a um

ensinamento distinto, independente dos seus contedos, o qual possibilitava defender

qualquer causa ou tese. te/cnh ou ars, na terminologia latina, pode ser determinada por

uma facultas inerente ao indivduo capaz de comprov-la na prtica, por todos os meios

possveis, o que no entendimento grego denomina-se du/namij, estado de ser que resulta

de uma experincia: xij, objetivando desempenhar importante papel social.

Esse ato pode ser repetitivo e almeja sempre o mrito por excelncia: a virtus,

a)reth/. Esta palavra possui tamanha importncia para o homem da Antigidade Clssica

que, segundo Werner Jaeger (2003, 27), no h em lngua moderna um termo

equivalente exato, talvez nem mesmo uma perfrase resgatasse sua acepo, a qual se

aproxima no apenas do uso puramente moral, mas de uma conduta muito elevada

distinta do homem comum, e associada apenas ao herosmo guerreiro.

Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos

primitivos, designa por arete a fora e a destreza dos guerreiros ou lutadores

e, acima de tudo, herosmo, considerado no no nosso sentido de ao moral

e separada da fora, mas sim intimamente ligada a ela. (Jaeger, 2003, 27)

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Arete, conceitualmente, na Antigidade usada em seu sentido mais amplo, no

apenas para designar a excelncia humana, mas tambm a superioridade dos deuses;

desse modo, o homem comum no tem arete, que primitivamente designava um valor

objetivo quilo que qualificava, uma fora prpria constitutiva de sua perfeio, a qual

no pode ser dissociada da concepo oratria ciceroniana que em vrias de suas obras4

se esfora para representar o orador perfeito, aquele que na sucesso de um discurso

agrada e deslumbra as mais variadas espcies de ouvintes. No sentido mais restrito

associado oratria, arete ou perfeio de uma realizao artstica consiste no sucesso

obtido pelo efeito pretendido pelo orador, e considerando-se o partidarismo discursivo,

a virtus alcanada atravs do sucesso da persuaso.

O papel social do orador tem fundamental importncia para a cultura clssica,

no se deve confundir o discurso retrico desta poca com qualquer outro de poca

recente, tais afirmaes relacionam-se diretamente com as consideraes de Ccero (De

inuentione, I, 1), em que se examina a origem da chamada eloqncia, no definindo se

esta ars, correspondente te/cnh na terminologia grega; exercitatio, mele/th ou natura,

fu/sij, o que remete a uma remota discusso da Antigidade sobre a origem da retrica,

apesar de esta nascer e se desenrolar por excelentes motivos. Uma tese recorrente no

pensamento ciceroniano a do homem eloqente e virtuoso que se organiza e funda

cidades, primitivamente, da seu grau de importncia.

Ac si uolumus huius rei, quae uocatur eloquentia, siue artis siue

studii siue exercitationis cuiusdam siue facultatis ab natura profectae

considerare principium, reperiemus id ex honestissimis causis natum atque

optimis rationibus profectum.

4 Em Bruto e no Orator, h vrias passagens em que Ccero se vincula definio do que seria um orador ideal.

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Nam fuit quoddam tempus, cum in agris homines passim bestiarum

modo uagabantur et sibi uictu fero vitam propagabant nec ratione animi

quicquam, sed pleraque uiribus corporis administrabant, nondum diuinae

religionis, non humani officii ratio colebatur, nemo nuptias uiderat legitimas,

non certos quisquam aspexerat liberos, non, ius aequabile quid utilitatis

haberet, acceperat. Ita propter errorem atque inscientiam caeca ac temeraria

dominatrix animi cupiditas ad se explendam uiribus corporis abutebatur,

perniciosissimis satellitibus.

Quo tempore quidam magnus uidelicet uir et sapiens cognouit, quae

materia esset et quanta ad maximas res opportunitas in animis inesset

hominum, si quis eam posset elicere et praecipiendo meliorem reddere; qui

dispersos homines in agros et in tectis siluestribus abditos ratione quadam

conpulit unum in locum et congregauit et eos in unam quamque rem inducens

utilem atque honestam. (De inuentione, I, 2)

E por outro lado, se desejamos observar a origem desta coisa, que

denominada eloqncia, ou se a origem da arte, ou do estudo, ou mesmo da

reflexo, de certo modo, ou ainda da fora a partir do princpio dos feitos,

encontr-la-emos desde as causas mais dignas, e por outro lado, o progresso

desde as melhores causas.

Realmente, houve certo tempo em que os homens desordenadamente

vagavam maneira dos animais nos campos e viviam de alimento selvagem,

porm a maior parte servia fora do corpo. Ainda no havia o culto aos

deuses, a relao de respeito mtuo no era respeitada, ningum tinha visto

casamentos legtimos, filhos certos, nem conhecia a justia igualitria dos

proveitos, tampouco a tinha aceitado. Desse modo, entretanto, ao lado do erro

e da ignorncia, o desejo do nimo, senhor cego e audacioso, abusava das

companheiras perniciosas para se satisfazer pela fora fsica.

por isso que, neste tempo, um homem sem dvida superior e sbio

reconheceu se pudesse realiz-la e transmiti-la para instruir da melhor forma,

a qualidade fosse a matria que existiria para grandes feitos. Ele reuniu e

congregou, at certo ponto, os homens dispersos pelos campos e nas selvas

escondidas, atravs do argumento, em um s lugar e por uma atividade

louvvel e digna que induz, inicialmente, ao lado da inexperincia que

exclama.

Para Ccero, a origem daquilo que designado eloqncia quae vocatur

eloquentia confunde-se com a prpria origem do homem, da a dificuldade de uma

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definio exata sobre qual seria o marco inicial da retrica. No entanto, deve-se

observar que surge com o prprio homem, que antes do estabelecimento das cidades,

eram nmades, no tinham lugar definido, homines passim bestiarum modo uagabantur,

e iguais aos animais vagavam pelos campos.

A organizao dos homens confunde-se com a do prprio pensamento,

configurado no orador que, atravs de meios persuasivos, reuniu-os mesmo antes dos

cultos aos deuses, o que demonstra o grau de primitivismo do discurso retrico e a

importncia do orador que foi capaz de organizar os mais ignorantes seres, certamente

ele deve ser considerado magnus uidelicet uir et sapiens, como afirma Ccero.

A organizao da cidade liga-se, de acordo com a Antigidade, descoberta das

qualidades que existiam nos homens e sua capacidade de realizao de grandes feitos,

por aquele dotado de grande fora de eloqncia, nico capaz de coordenar e de instruir

em um mesmo lugar indivduos to diversos e marcados pela falta de organizao, os

quais o escutaram entusiasticamente devido a sua elaborao discursiva. Este preceito

conduz importncia da Retrica Antiga nascida e formada nos sculos V e IV a.C,

como arte capaz de convencer, para o homem da Antigidade Clssica.

De acordo com Dante Tringali (1988, 9), a Retrica Antiga denominada dessa

forma apenas para diferenci-la das outras dela derivadas5, a qual tem suas fontes

primordiais em Aristteles e, tradicionalmente, definida como teoria e prtica do

discurso retrico, que supe um emissor, r(h/twr, o qual pronuncia o texto diante de um

receptor.

No entanto nem todo texto pronunciado diante de um espectador considerado

retrico, pois este tipo discursivo deve ser persuasivo e dialtico. Desse modo, ele trata

5 Vrios tipos de retrica so apresentadas por Dante Tringali (1988,17), dentre elas a Clssica, a Semitica, a Nova e a Retrica das Figuras.

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sempre de uma questo discutvel, controversa e provvel, da receber tal denominao,

entende-se que no deve chegar a um denominador comum, mas a probabilidades, logo

pode ser considerado uma abordagem sobre questes aceitveis.

Formalmente, especifica-se por buscar persuadir a respeito de uma questo

imprecisa, plausvel e discutvel, tendo por diferencial, quando se refere ao discurso de

um modo geral, a finalidade persuasiva. Em conseqncia, tem-se por assimilao a

probabilidade de gerar um outro para que haja um confronto. Isso ocorre em razo de a

matria ser dialtica: um discurso gera um outro em um ato potencial, sendo que este

pode ser imediato, retardado ou ainda ficar em aberto. Desse modo, a Retrica Antiga

tenta explicar os problemas referentes elaborao e efeitos do discurso, tendo

objetivos especficos: instruir a produo de discursos persuasivos estruturados e bem

elaborados.

Segundo Aristteles, h( r(htorikh/ uma espcie de dialtica e no constitui uma

cincia particularmente, fundada em princpios prprios, no sentido restrito do termo,

usa das mesmas formas de faculdade que a dialtica, mesmo quando trata de um assunto

especfico; a tentativa de julgar a retrica ou a dialtica como cincias pode conduzir

falha, ao obscurecimento de sua natureza real, pois estas so apenas faculdades mentais.

(H rhtorik stin ntstrofoj t dialektik

mfterai gr per toiotwn tinn esin koin trpon tin

pntwn st gnwrzein ka odemij pistmhj

fwrismnhj di ka pntej trpon tin metcousin mfon

pntej gr mcri tinj ka xetzein ka pcein lgon ka

pologesqai ka kathgoren gceirosin. (1354 a, 2-6)

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A retrica a outra face da dialtica; pois ambas se ocupam de

questes mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e no

correspondem a nenhuma cincia em particular. De fato, todas as pessoas de

alguma maneira participam de uma e de outra, pois todas elas tentam em

certa medida questionar e sustentar um argumento, defender-se ou acusar.6

Observa-se que o termo usado por Aristteles define bem a concepo de

retrica (H r(htorikh/ e)stin a)nti/strofoj. No entanto, Manuel Alexandre Jnior

prefere a traduo de a)nti/strofoj por outra face, o que conduz a um distanciamento do

pensamento aristotlico, pois no h uma especificao do que seria a outra face, que

pode conduzir a um significado diferente do atribudo por Aristteles.

Se a retrica a outra face da dialtica, a retrica seria o argumento inicial ou a

tese, pois a dialtica seria a contra-argumentao, o que no sugere o que foi afirmado

por Aristteles. Desse modo, o termo a)nti/strofoj deve ser entendido com uma opinio

contrria sobre o avesso, uma contrapartida ou mesmo um movimento contrrio, no

sendo necessariamente o prprio argumento inicial.

Esse paralelismo entre retrica e dialtica tambm aceito por Ccero, ao

traduzir o conceito aristotlico por ex altera parte respondere dialecticae, para que haja

uma melhor apreenso da terminologia usada por Aristteles, deve-se ento

compreender a)nti/strofoj pela apreciao grega daquilo que desempenham um

movimento contrrio, ou mesmo, duas espcies de um mesmo gnero, a prova7; dois

modos de prova que afinal se distinguem pela diferena dos meios probatrios que

empregam: um, o silogismo formal completo e a induo geral; o outro, o entimema

formalmente incompleto e o exemplo. 6 As tradues citadas do livro Retrica de Aristteles so de autoria de Manuel Alexandre Jnior (1998).

7 As provas so classificadas por Aristteles (1356a) em artsticas e inartsticas. Estas no so produzidas, podem ser confisses, testemunhos, etc.; aquelas, criadas pelo orador.

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A retrica no apenas semelhante dialtica, mas se contrape a ela, no

pertencendo, desse modo, a nenhum gnero prprio e definido. Mesmo assim no

perodo clssico evidente sua utilidade, uma vez que no tem por finalidade a

persuaso, mas objetiva o discernimento entre os meios persuasivos que devem ser

utilizados com maior pertinncia em cada caso.

Aristteles distingue trs formas de retrica, ou mais propriamente trs gneros

retricos, mostrando as regras da eloqncia judiciria, que expe o carter positivo ou

negativo de uma ao no passado, tendo por finalidade o justo e o injusto; da eloqncia

epidtica, que pe em evidncia o carter nobre ou vil de uma ao presente, tendo o fim

no elogio ou na censura, no belo ou no feio, podendo ser acrescentados, a estes, outros

raciocnios acessrios; da eloqncia deliberativa, a qual procura convencer por adotar

alguma deciso futura, tendo por finalidade o conveniente ou o prejudicial, revelando-se

a recomendao aconselhadora ou dissuasria.

Estin d tj htorikj edh tra tn riqmn tosotoi

gr ka o kroata tn lgwn prcousin ntej. sgkeitai

mn gr k trin lgoj, k te to lgontoj ka per o lgei

ka prj n, ka t tloj prj totn stin, lgw d tn

kroatn.. (1358 a, 36 1358 b, 4)

As espcies de retrica so trs em nmero; pois outras tantas so as

classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta trs

elementos: o orador, o assunto de que fala, e o ouvinte; e o fim do discurso

refere-se a este ltimo, isto , ao ouvinte.

As espcies de retrica citadas por Aristteles centram-se nos trs elementos

essenciais do discurso, daquele que fala, sobre o que se fala e em relao a quem se fala,

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de modo que esses elementos produzem a necessidade da existncia de trs formas de

discursos retricos, dikaniko\n ge/noj, e)pideiktiko\n ge/noj e sumbouleutiko\n ge/noj.

O genus iudiciale ou dikaniko\n ge/noj tem como paradigma o discurso diante de

um tribunal com a finalidade de acusar ou defender, a apreciao feita pelo rbitro da

situao que considera fatos passados relevantes ao momento discursivo presente. Neste

gnero, no s se devem considerar as razes pelas quais se comete uma injustia, a

disposio dos que as cometem e o carter e a disposio daqueles que sofrem, como

tambm se devem considerar o nmero e a quantidade das premissas que constituem os

silogismos.

O genus demonstratiuum ou e)pideiktiko\n ge/noj possui como caso paradigmtico

o louvor e a censura, aquele associado diretamente virtude8, esta a seu contrrio, pois

o referido gnero considera a inteno de alterar a situao, caracterstica fundamental

ao discurso, dada na inteno do orador o qual pretende confirmar determinada situao

como constante. Tal confirmao conseguida atravs da utilizao de determinados

recursos oratrios como o elogio9, o conselho e o encmio10. Aquele um discurso que

apresenta a grandeza de uma virtude, diretamente ligado s aes produzidas, este se

refere s obras e s circunstncias que conduzem s provas. O elogio e o conselho

pertencem a uma espcie semelhante, uma vez que o que se apresenta no conselho,

torna-se encmio mudando-se a forma de expresso.

O genus deliberatiuum ou sumbouleutiko\n ge/noj tem como paradigma o

conselho ou o desaconselho apenas sobre as aes que podem vir a acontecer, o orador

8 Poder de conservar e produzir os bens, mais til aos outros, pois uma faculdade de fazer o bem. 9 Epainoj utilizado em um contexto mais abrangente para designar elogio ou louvor. 10 Egkw/mion mais utilizado no gnero retrico.

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que pretende aconselhar deve tirar suas premissas principalmente de temas11 como

finanas, guerra e paz, defesa nacional, importaes e exportaes, e legislao. A

deliberao possui um fim em vista, segundo Aristteles, pois todo e qualquer

indivduos, estando ou no em conjunto, almeja algum objetivo no que escolhem fazer

ou no que evitam, a este se d o nome de felicidade12, pois a ela esto ligadas todas as

aes que versam sobre os conselhos ou dissuases.

O orador, para atingir os seus fins, dispe de meios que no se submetem

propriamente a falar da retrica, tais como provas materiais, exemplos ou confisses.

No entanto, ele deve saber utilizar os meios tcnicos, estruturando bem seu discurso e

sua argumentao, que bastante importante para que se demonstre ou que se prove,

levando assim convico. nesta ocasio que ele faz uso do entimema e do exemplo.

A retrica no est disposta, normalmente, no domnio do raciocnio especfico

ou de alguma cincia, porm pode recorrer a raciocnios relevantes de uma cincia

particular, sobretudo tica e poltica. Os outros meios tcnicos visam, de uma parte,

levar em conta o estado do ouvinte, sua situao psicolgica, sua idade, a hierarquia

social a que pertence, com o intuito de apresentar a este espectador um julgamento

provisrio e que o conduza a formar uma idia favorvel sobre o carter do orador, e, de

outra parte, provocar no ouvinte a benevolncia da qual o orador necessita.

Um recurso de que o orador se vale em seu discurso a dialtica (dialektikh/),

que pode ser associada a um meio tcnico que permite fazer silogismos a partir de

opinies admissveis sobre um tema proposto, e tambm de no contradizer uma

afirmao que se quer defender. Pode-se definir o quadro formal da dialtica,

11 No que concerne elaborao a materia (filh) pode ser denominada thema (qe/ma). 12 O conceito de felicidade para Aristteles est ligado ao de auto-suficincia pessoal, o alcance de bens internos, os da alma e os do corpo; e a aquisio de bens externos, a nobreza, os amigos, o dinheiro e a honra.

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escolhendo um tema e fazendo com que dois protagonistas se afrontem, geralmente

diante de um outro que poder ser o rbitro da situao.

Um dos oradores prope uma tese, que o segundo se esfora por refutar,

estabelecendo uma tese incompatvel com a proposta pelo primeiro. Caso o argumento

inicial seja positivo, o orador deve refutar, se for negativo, deve-se estabelecer. O meio

usado para a confirmao ou dissuaso o silogismo vlido, caso apenas seja o

controverso se utiliza de raciocnios invlidos. Este um tipo de raciocnio sofstico que

se atribui vitria sobre um ponto particular, no entanto as dedues silogsticas da

dialtica no se apiam em premissas verdadeiras, ao contrrio, em opinies notveis,

pois elas so aceitas pela maior parte dos indivduos ou pela maioria dos filsofos, logo,

no mtodo dialtico, devem-se evitar premissas paradoxais.

Pierre Pellegrin (2002, 21) afirma que a dialtica composta por trs funes: o

exerccio intelectual, as semelhanas com o outro e o conhecimento de carter

filosfico, o qual desenvolve a capacidade de argumentao mesmo na adversidade,

levando a uma aptido em discernir o verdadeiro do falso.

A essas funes se pode acrescentar uma quarta, associada aos primeiros

princpios cientficos, que no se podem afirmar indissolveis ou se provarem

teoricamente, e de que a dialtica tem uma funo examinadora. Faz-se necessrio

colocar prova os princpios das cincias, examinando as idias admissveis a propsito

de seus princpios13, o que confere dialtica um lugar de destaque, e permite-lhe

escapar de uma classificao cientfica, prpria a cada cincia, porm no lhe

conferido o estabelecimento de tais princpios. Efetivamente, no se tem, para

estabelec-los, um processo rigoroso comparvel deduo. O material sobre o qual se

13 A)rch/ epistimologicamente se relaciona com proposies, que servem de premissa ao silogismo.

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deve trabalhar, no conjunto das opinies, deve ser bem fundamentado. O confronto

destes conceitos, sobretudo quando so diferentes ou incompatveis entre si, permite

uma triagem eficaz entre a verdade e o erro.

Outro meio tcnico usado com instrumento retrico o silogismo (sullogismo/j),

consistente no esquema completo da estrutura de pensamentos principais com

pensamentos argumentantes. O silogismo usa de raciocnios estabelecidos numa

assero considerada como vlida a partir de premissas14 assumidas como verdadeiras

ou de natureza implicativa, uma afirmao que necessita de um vnculo lgico entre as

premissas e a concluso. Especificamente, o silogismo um raciocnio, ele parte de

duas proposies, denominadas premissas, que tm um termo em comum, chamado de

meio-termo, e de uma proposio chamada concluso, em que esse meio-termo

desaparece. A primeira premissa chama-se maior; a segunda, menor.

O silogismo consiste, conforme Lausberg (2004, 88), na apresentao prvia da

finalidade a provar (propositio), como Scrates mortal; e nas frases colocadas antes

da concluso, denominadas premissas ou rationes. A premissa maior, que muitas

vezes introduzida por uma partcula conclusiva, a prova, cujo sujeito maior no seu

grau de amplitude que o sujeito da propositio, como Todos os homens so mortais. A

premissa menor, que muitas vezes introduzida por uma partcula adversativa, uma

prova, a qual mostra o sujeito mais limitado no seu grau de amplitude que o sujeito da

premissa maior, como Scrates um homem.

Por sua vez, a concluso (conclusio) acrescenta proposio o arremate final

para as oraes condicionais colocadas anteriormente, toma, preferencialmente, a forma

14 Rationes ou provas.

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de um perodo, como Scrates mortal. Desse modo, tem-se a estruturao do

silogismo, que apresenta todas as partes, sucessivamente:

Se todos os homens so mortais

e se Scrates um homem,

ento Scrates mortal.

Esses silogismos podem ser divididos, segundo Pierre Pellegrin (2002, 52), em

vlidos e no vlidos, este ltimo pode conter uma falha de raciocnio proveniente do

seguinte esquema: todo A B, todo C B, logo todo A ser C invlido, pois no existe

uma ligao direta entre estes termos, que precisam do intermdio de B para que se

realize a unio indireta, sendo, portanto, falha e pouco persuasiva uma concluso gerada

sem o auxlio do termo intermedirio.

H tambm os perfeitos e os imperfeitos, este ltimo pode precisar de

proposies adicionais, que resultam, certamente, de proposies situadas, mas que no

figuram explicitamente nas premissas, desse modo toda proposio um discurso que

afirma ou nega algo ou alguma coisa, podendo ser universal, caso afirme ou negue

alguma coisa de um sujeito universal, por exemplo, Todos os homens so mortais.

O silogismo pode ser tambm particular, caso o sujeito seja tomado

particularmente, por exemplo, certos animais so quadrpedes ou indefinido, se a

atribuio ou a no atribuio se faa sem a indicao quer da universalidade quer da

particularidade, como se verifica, por exemplo, na possibilidade de afirmao de que o

prazer no um bem.

O silogismo pode ser estruturado em forma reduzida e no apresentar

todas as partes constituintes, sendo denominado entimema (e)nqu/mhma):

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[...] n toj nqummasi t sunestrammnwj ka

ntikeimnwj epen fanetai nqmhma ( gr toiath lxij

cra stn nqummatoj) ka oike t toioton enai par

t scma tj lxewj. sti d ej t t lxei sullogistikj

lgein crsimon t sullogismn polln keflaia lgein, ti

toj mn swse, toj d' troij timrhse, toj d' Ellhnaj

leuqrwse kaston mn gr totwn k llwn pedecqh,

sunteqntwn d fanetai ka k totwn ti ggnesqai. (1401 a,

5-13)

No caso dos entimemas, expressar uma coisa de forma concisa e

antittica parecer ser um entimema (pois tal forma de expresso domnio do

entimema) e parece que tal processo deriva da prpria forma de expresso.

Para se exprimir de maneira semelhante do silogismo, til enunciar os

pontos capitais de muitos silogismos. Por exemplo: salvou uns, castigou

outros, libertou os Gregos. Ora, cada um destes pontos j estava demonstrado

por outros, mas quando se rene tem-se a impresso de que deles resulta

alguma coisa.

Tal reduo pode consistir na diminuio de amplitude, neste caso tem-se a

conservao do pensamento principal e a limitao das rationes ou a supresso do

pensamento principal do silogismo, fazendo do e)nqu/mhma uma nfase de pensamento.15

Diversas vezes, a reduo se configura na carncia da acuidade de provas ou mesmo na

volatilizao da funo da prova. No entanto, para que seja considerado como

e)nqu/mhma, importante que haja sua demonstrao.

15 Ratiotinatio uma nfase de pensamento, em que, a partir de circunstncias simultneas, podem-se tirar concluses. Muitas vezes, esconde-se a expresso atrs de uma aparentemente inofensiva.

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3.1. A arte retrica e seus elementos discursivos

O orador necessita no apenas de conhecimento em sua prpria arte, mas

importante que se expresse dentro de seus princpios, sendo, pois, seu papel discorrer

sobre as coisas que o costume e as leis o instruram. Desse modo, deve conhecer as

partes fundamentais Retrica para que se alcance o consentimento do ouvinte at onde

for possvel:

Oportet igitur esse in oratore inuentionem, dispositionem,

elocutionem, memoriam, pronuntiationem. Inuentio est excogitatio rerum

uerarum aut ueri similium, quae causam probabilem reddant. Dispositio est

ordo et distributio rerum, quae demonstrat, quid quibus locis sit

conlocandum. Elocutio est idoneorum uerborum et sententiarum ad

inuentionem adcommodatio. Memoria est firma animi rerum et uerborum et

dispositionis perceptio. Pronuntiatio est uocis, uultus, gestus moderatio cum

uenustate. (Retrica a Hernio, I, 3)

O orador deve ter desse modo inveno, disposio, elocuo,

memria, pronunciao. Inveno a imaginao de coisas verdadeiras ou

verdades similares, que tornem a causa plausvel. Disposio a ordem e a

distribuio das coisas, que demonstra, o que deve ser colocado em cada

lugar. Elocuo a ordem de acomodaes vocabulares e de sentenas

cmodas inveno. Memria a firme percepo, no nimo, de coisas tanto

de palavras quanto de disposies. Pronunciao a moderao com

elegncia de voz, semblante e gesto.

Para que o orador consiga manter com mais facilidade a ateno do ouvinte,

tanto Ccero (De inuentione, I, 9) quanto o autor de Retrica a Hernio concordam em

dizer que o orador deve se utilizar dos princpios da arte retrica, inuentio, dispositio,

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elocutio, memoria e pronuntiatio, pois neles se encontraro os artifcios necessrios a

cada momento do discurso.

Na inuentio, encontram-se pensamentos adequados matria conforme o

interesse do orador, permitindo um maior grau de credibilidade, mesmo em situao

adversa. Segundo Lausberg, a inuentio no compreendida como processo de criao,

mas como recordao de pensamentos aptos para o discurso, os quais j existem na

semi-conscincia do orador e precisam ser despertados por tcnica mnemnica e

mantidos conscientes por meio de exercitao.

A dispositio ou oi)konomi/a constitui-se da ordenao partidria favorvel atravs

da escolha dos pensamen