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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Sociais Programa de Pós-graduação em Sociologia Mestrado em Sociologia Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF) Autor: Pedro Felix Carmo Penhavel Orientador: Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges Goiânia 2013

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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Sociais

Programa de Pós-graduação em Sociologia Mestrado em Sociologia

Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)

Autor: Pedro Felix Carmo Penhavel

Orientador: Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges

Goiânia 2013

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Pedro Felix Carmo Penhavel

Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Sociologia, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges.

Goiânia 2013

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Pedro Felix Carmo Penhavel

Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)

Dissertação defendida em 25 de abril de 2013 e aprovada por banca examinadora

constituída pelos seguintes professores:

_________________________________________ Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges

(Presidente – UFG)

_________________________________________ Prof. Dr. Frederico Flósculo Pinheiro Barreto

(UnB)

_________________________________________ Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha

(UFG)

_________________________________________ Prof. Dr. Revalino Antonio de Freitas

(Suplente – UFG)

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Aos indígenas do Santuário dos Pajés (aos habitantes originários).

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Agradecimentos

Agradeço à minha família, pelo apoio; aos amigos, pelo diálogo; e à Érica,

pelo carinho.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges, pela

orientação atenciosa e enriquecedora.

Agradeço aos professores Dra. Catherine Trudelle, Dr. Cleito Pereira dos

Santos, Dr. Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, Dr. Jorge Eremites de Oliveira e Dr.

Leandro Mendes Rocha, pela generosa colaboração ao longo deste trabalho.

Agradeço aos funcionários da Faculdade de Ciências Sociais e da Secretaria

do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.

Agradeço aos apoiadores e aos habitantes do Santuário dos Pajés,

inspiradores desta dissertação.

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“A produção capitalista não desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção senão socavando, ao mesmo tempo, os dois mananciais de toda a riqueza: a terra e o homem.”

Karl Marx, O capital

“O conceito de progresso deve ser fundamentado na ideia de catástrofe. Que ‘as coisas continuem assim’ – eis a catástrofe.”

Walter Benjamin, Passagens

“A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se odeiam de um ódio instintivo. Quando se encontram no mesmo caminho, é preciso que um deles sirva ao outro.”

Charles Baudelaire, Obras estéticas

“A la tierra, el indígena la ve como la madre. El capitalista, como uno que no tiene ídem.”

Don Durito de la Lacandona

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Resumo

Este trabalho se apresenta como uma confluência de três campos temáticos:

estudos urbanos, conflitos socioambientais e conflitos interétnicos. Tratamos dos

processos sociais e políticos que orientaram a construção de um novo bairro residencial

em Brasília, o Setor Noroeste, e nos propomos a analisar o conflito socioambiental que

emerge a partir da execução desse projeto imobiliário. No primeiro capítulo, traçamos um

histórico dos eventos políticos que determinaram que uma área anteriormente protegida

pelo projeto original de Brasília e, além disso, local de ocupação tradicional de uma

comunidade indígena, o Santuário dos Pajés, fosse destinada à construção de um bairro

residencial de “alto padrão”. Para essa discussão, utilizamos, como suporte teórico, as

análises de Marx e de Rosa Luxemburgo acerca da acumulação primitiva de capital e de

David Harvey a respeito da acumulação por despossessão. Inspirados por esses atores,

propomos como chave analítica para nossa análise o conceito de “urbanização por

expropriação”. No capítulo seguinte, discutimos, a partir da abordagem crítica de

conceitos como “desenvolvimento sustentável” e “economia verde”, a apropriação do

discurso ambientalista pelos idealizadores do novo bairro. Para isso, realizamos análises

de discurso de reportagens do jornal “Correio Braziliense”, bem como de anúncios

publicitários relacionados ao Setor Noroeste. Finalmente, no terceiro capítulo, tratamos

dos discursos e práticas do movimento social “O Santuário não se move!”, que contesta

o projeto imobiliário ao defender a preservação do cerrado nativo e a permanência da

comunidade indígena na área destinada à construção do novo bairro. Para tanto, apoiamo-

nos na perspectiva analítica da Ecologia Política, que, por meio de conceitos como

“desigualdade ambiental”, “ecologismo dos pobres” e “justiça ambiental”, propõe-se a

abordar os conflitos socioambientais a partir da percepção dos embates em torno da

apropriação e uso dos recursos naturais, em oposição à tendência de “naturalização” dos

conflitos socioambientais.

Palavras-chave: Acumulação por despossessão; Conflitos socioambientais;

Ecologia Política; Estado e questão indígena; Urbanização por expropriação.

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Abstract

This study is presented as a confluence of three thematic areas: urban studies,

environmental conflicts and interethnic conflicts. It analyzes the social and political

processes involved in and the social and environmental conflicts emerging from

construction of a new residential neighborhood in Brasilia, Setor Noroeste. The first

chapter recounts the political events that led to the area called Santuário dos Pajés, which

had previously been protected by the original plan of Brasilia and occupied by an

indigenous community, being zoned for high-end residential development. Theoretical

support for this discussion is provided by Marx and Rosa Luxemburg’s analyses of

primitive capital accumulation and David Harvey’s analysis of accumulation by

dispossession. Inspired by these authors, we propose the concept of "urbanization by

expropriation" as the key to our analysis. On the basis of a critique of concepts such as

sustainable development and the green economy, in the second chapter we discuss how

those behind the neighborhood project appropriated environmentalist terminology. For

this purpose, we performed a discourse analysis on Correio Braziliense news reports

about Setor Noroeste and commercials promoting it. Finally, in the third chapter, we deal

with the discourse and practices of the "O Santuário não se move!" movement, which

challenges the residential project in order to defend the preservation of native vegetation

and the continued presence of the Indian community in the area. The analytical

perspective of political ecology is adopted. Concepts such as environmental inequality,

environmentalism of the poor and environmental justice are used to address

environmental conflicts from the point of view of conflicts over ownership and natural

resource use as opposed to the trend to "naturalize” environmental conflicts.

Keywords: Accumulation by dispossession; socio-environmental conflicts;

political ecology; the state and indigenous issues; urbanization by expropriation.

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Lista de ilustrações

Figura 1 – Novas áreas residenciais propostas no documento Brasília Revisitada ....... 73

Figura 2 – Imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do Setor

Noroeste ......................................................................................................................... 74

Figura 3 – Variação do preço médio do m² em apartamentos no Setor Noroeste, de agosto

de 2010 a janeiro de 2013 ................................................................................................ 75

Figura 4 – Devastação do cerrado próximo a um dos canteiros de obras da incorporadora

Brasal .............................................................................................................................. 76

Figura 5 – Imagem de satélite com a delimitação dos 50,91 hectares reivindicados pelo

Santuário dos Pajés ......................................................................................................... 77

Figura 6 – Herbário de plantas nativas fitoterápicas do Santuário dos Pajés .................. 78

Figura 7 – Ação da Polícia Militar do DF no território do Santuário dos Pajés ............. 79

Figura 8 – Reprodução de capa em que o jornal Correio Braziliense anuncia a liberação

das vendas das projeções do Setor Noroeste ................................................................... 80

Figura 9 – Reprodução de reportagem em que o jornal Correio Braziliense se refere aos

indígenas como “invasores” da área destinada ao “futuro bairro” .................................. 81

Figura 10 – Anúncio publicitário ilustrando a localização do Setor Noroeste ................ 82

Figura 11 – Anúncio publicitário com slogan promocional do Setor Noroeste .............. 83

Figura 12 – Faixa de protesto contra os governos Arruda (DEM) e Agnelo (PT), no

Palácio do Buriti (sede do governo do Distrito Federal) ................................................. 84

Figura 13 – Reprodução de gravura e palavra de ordem utilizadas pelo movimento “O

Santuário não se move!” ................................................................................................. 85

Figura 14 – Registro fotográfico de encontro inter-religioso realizado no Santuário dos

Pajés em setembro de 2010 ............................................................................................. 86

Figura 15 – Registro fotográfico do toré, cerimônia tradicional celebrada pelo líder

Tapuya/Fulni-ô Santxiê .................................................................................................. 87

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Figura 16 – Reprodução de cartazes de divulgação do movimento “O Santuário não se

move!” ............................................................................................................................ 88

Figura 17 – Registro fotográfico de ação direta de remoção de cercas implantadas

ilegalmente pela empreiteira Emplavi ............................................................................ 89

Figura 18 – Registro fotográfico de ação direta contra a invasão do território do Santuário

dos Pajés por máquinas da empreiteira Emplavi ............................................................. 90

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Lista de tabelas

Quadro 1 – Preço médio do m² de apartamentos em bairros nobres de 17 municípios

brasileiros, com destaque para o Setor Noroeste ............................................................. 91

Quadro 2 – População do Santuário dos Pajés no início do 2º semestre de 2010 ........... 92

Quadro 3 – Espécies botânicas de uso tradicional no Santuário dos Pajés ..................... 96

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Lista de siglas

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

ACPI – Associação Cultural Povos Indígenas

AGU – Advocacia-Geral da União

APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CGID – Coordenação Geral de Identificação e Delimitação

CMI – Centro de Mídia Independente

Conplan – Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal

DEM – Democratas

Dhesca Brasil – Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais,

Culturais e Ambientais

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

GDF – Governo do Distrito Federal

GEN – Global Ecovillage Network

GT – Grupo de trabalho

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IUCN – International Union for the Conservation of Nature

MPF – Ministério Público Federal

MPL – Movimento Passe Livre

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados

OIT – Organização Internacional do Trabalho

OMC – Organização Mundial do Comércio

ONU – Organização das Nações Unidas

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PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

PDOT – Plano Diretor de Ordenamento Territorial

PMDF – Polícia Militar do Distrito Federal

PNUMA – Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente

PSA – Pagamentos por Serviços Ambientais

PT – Partido dos Trabalhadores

SHCNW – Setor de Habitações Coletivas Noroeste

SPI – Serviço de Proteção aos Índios

STF – Supremo Tribunal Federal

TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

WWF – Worldwide Fund for Nature

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Sumário

Introdução ........................................................................................................................ 1

O objeto ................................................................................................................ 1

O método .............................................................................................................. 2

Capítulo 1 – A urbanização .............................................................................................. 7

1.1 – Urbanização e acumulação por despossesão: apontamentos teóricos .......... 7

1.1.1 – A acumulação primitiva ................................................................ 7

1.1.2 – A acumulação por despossessão ................................................... 9

1.1.3 – O caso brasileiro .......................................................................... 12

1.2 – Estudo de caso: aspectos históricos, antropológicos e políticos ................. 13

1.2.1 – A urbanização por expropriação .................................................. 13

1.2.2 – O Setor Noroeste (Brasília-DF) ................................................... 14

1.2.3 – O Santuário dos Pajés (Brasília-DF) ............................................ 20

Capítulo 2 – O verde ....................................................................................................... 30

2.1 – Sustentabilidade e acumulação capitalista .................................................. 30

2.1.1 – Desenvolvimento sustentável e economia verde ......................... 30

2.1.2 – A sustentabilidade como religião ................................................. 32

2.1.3 – O ambientalismo de espetáculo ................................................... 33

2.2 – O discurso verde da expropriação .............................................................. 34

2.2.1 – A análise do discurso ................................................................... 34

2.2.2 – O Correio Braziliense e seus leitores .......................................... 36

2.2.3 – A publicidade .............................................................................. 40

Capítulo 3 – A luta ......................................................................................................... 44

3.1 – Urbanização e conflitos socioambientais .................................................. 44

3.1.1 – Delimitação teórica .................................................................... 44

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3.1.2 – Conflitos socioambientais e meio urbano .................................. 47

3.2 – Notas sobre a conjuntura e a resistência ................................................... 49

3.2.1 – A exceção ................................................................................... 49

3.2.2 – “O Santuário não se move!” ...................................................... 54

Considerações finais ...................................................................................................... 64

Referências bibliográficas ............................................................................................. 67

Anexos ........................................................................................................................... 73

Ilustrações .......................................................................................................... 73

Tabelas ............................................................................................................... 91

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Introdução

O objeto

O presente trabalho tem como objeto de estudo os processos sociais e

políticos que determinaram a transformação de uma reserva ambiental, localizada no

Plano Piloto de Brasília, em bairro residencial destinado às elites econômicas da capital.

Além de ser a última grande reserva de cerrado nativo do Plano Piloto, a área destinada à

construção do novo bairro, o Setor Noroeste, é local de moradia de indígenas da etnia

Tapuya/Fulni-ô, que reivindicam o local como terra tradicional, em oposição aos

defensores do empreendimento. Assim, a pesquisa se apresenta como confluência de três

campos temáticos: estudos urbanos, conflitos socioambientais e conflitos interétnicos. O

marco temporal do trabalho se inicia em 1957, ano que marca o início da ocupação

indígena no local, e se estende até outubro de 2012, momento da inauguração dos

primeiros prédios do bairro e do anúncio de sua expansão.

No âmbito jurídico, analisamos os mecanismos que possibilitaram a

construção do bairro numa área originalmente protegida pelo projeto original de Brasília.

Para tanto, traçamos um histórico dos processos políticos que orientaram a formulação

das políticas de planejamento urbano da cidade, especialmente a partir de 1987, com a

publicação do plano de expansão urbana denominado Brasília Revisitada. Aqui,

discutimos as implicações da eleição, em 2006, do governador José Roberto Arruda e do

vice-governador Paulo Octávio, maior empresário do setor imobiliário de Brasília. Ainda

nesse plano, abordamos a transição do governo Arruda (DEM) ao governo Agnelo

Queiroz (PT), discutindo a atuação do governo petista no âmbito da questão urbana,

especialmente no que diz respeito às políticas por ele implementadas em relação ao

conflito socioambiental.

Ao tratar da questão interétnica, analisamos os contextos e processos de

interações mantidas entre os indígenas e outros agentes da capital federal envolvidos na

área em disputa (o Santuário dos Pajés), considerada sagrada pelos Tapuya/Fulni-ô.

Tratamos também da atuação dos órgãos federais responsáveis pelas questões indígena e

ambiental, respectivamente FUNAI e IBAMA, a fim de perceber as ações do Estado em

relação ao conflito e de discutir a efetividade desses órgãos na resolução dos problemas

sociais e ambientais relacionados à construção do Setor Noroeste. Ainda no âmbito do

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Estado, investigamos a atuação da Terracap, empresa pública do Governo do Distrito

Federal responsável pela venda dos lotes às empreiteiras, bem como a participação da

Polícia Militar do DF no conflito.

O conflito socioambiental é aqui entendido como fenômeno resultante dos

embates entre grupos sociais pela apropriação e uso dos recursos naturais e das bases

materiais da sociedade. A fim de perceber, em nosso estudo, como tais embates se

configuram e se inter-relacionam com os mecanismos de produção do espaço urbano,

investigamos, por meio de pesquisa empírica, os discursos e as práticas dos grupos sociais

que se confrontam em torno do empreendimento Setor Noroeste. Assim, procedemos à

análise de conteúdo dos pronunciamentos e narrativas enunciados, de um lado, pelos

defensores da construção do Setor Noroeste e, de outro, pelos seus opositores.

O método

David Harvey defende uma abordagem “unificada” para a questão urbana;

abordagem que seja capaz de tratar, além dos mecanismos de produção das cidades, das

relações entre a acumulação capitalista e as dinâmicas das lutas de classe (HARVEY,

2006:75). Na análise do fenômeno urbano, tal perspectiva é por ele alcançada por meio

da aplicação do método materialista dialético, fundado por Marx. De acordo com a crítica

à Economia Política empreendida pelo filósofo alemão, a compreensão adequada da

realidade jamais será alcançada – como querem os “economistas do século XVII” a que

Marx se refere nos Grundrisse – por meio da análise da representação da realidade que

se nos apresenta à primeira vista: a “população”, por exemplo, é mera abstração se

desconsiderarmos as classes pelas quais é formada; estas, por sua vez, são “palavra vazia”

se não levarmos em conta seus elementos constitutivos. No método marxista, a efetiva

apreensão da realidade depende do empreendimento daquela “viagem de retorno” a que

Marx se refere: os “movimentos” do pensamento – do “concreto representado” aos

“conceitos abstratos”; e, destes, finalmente, ao “concreto mental” – são necessários para

que se possa perceber determinado dado da realidade como “rica totalidade de muitas

determinações e relações” (MARX, 2011:54-55).

Harvey defende a necessidade de se considerar a espacialidade como

elemento ativamente produzido e atuante no processo social. Sendo assim, é preciso evitar

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a tendência de se abordar o fenômeno urbano como elemento imutável; como se o espaço

urbano se tratasse de mero palco para o desenvolvimento dos processos sociais

(HARVEY, 2006:77). A adoção de uma perspectiva dialética na análise da questão

urbana exige que esta não seja entendida como simples somatório dos mecanismos de

produção do espaço. O fenômeno urbano, assim como a “população” no exemplo de

Marx, deve ser apreendido como “uma rica totalidade de muitas determinações e

relações” – técnicas, políticas, jurídicas e ideológicas – que se inter-relacionam. A partir

desses pressupostos, torna-se possível revelar contradições, desvelar aparências e

imaginar alternativas para a transformação e a reivindicação do espaço urbano.

Segundo Henri Lefebvre, a adequada compreensão do fenômeno urbano

depende de um esforço no sentido de integrar à teoria marxista o entendimento da “vida

cotidiana”. Para o autor francês, o método de Marx “consiste precisamente na busca das

relações existentes entre aquilo que os homens pensam, desejam, dizem e acreditam sobre

si mesmos e aquilo que eles de fato fazem e são” (LEFEBVRE, 1991 apud Harvey,

2006:85). Assim, a partir da confrontação dialética entre ideias e ação, estabelece-se a

crítica marxista ao desenvolvimento urbano capitalista. Afinal, como argumenta Harvey

em sua obra mais recente:

A urbanização do capital pressupõe a capacidade das elites capitalistas

em dominar o processo urbano. Isso implica na dominação de classe

não somente dos aparatos estatais (especialmente daqueles aspectos do

poder estatal que administram e governam as condições sociais e

infraestruturais no âmbito das estruturas territoriais), mas também sobre

populações inteiras – seus estilos de vida, assim como seu poder de

trabalho; seus valores culturais e políticos, assim como suas concepções

mentais do mundo (tradução nossa) (HARVEY, 2012:66).

Acreditamos que, seguindo os pressupostos metodológicos apresentados,

sejamos capazes de analisar as múltiplas dimensões apresentadas por nosso objeto de

pesquisa: as configurações políticas e econômicas que orientam a expansão da cidade de

Brasília e a construção do Setor Noroeste; as implicações da presença indígena na região;

os problemas ambientais e seus impactos em diferentes grupos sociais; a sustentação

política e ideológica do discurso dos construtores; e as práticas de resistência à construção

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do bairro. Sendo assim, a discussão, ao longo de nosso trabalho, sustenta-se pela

utilização do método materialista dialético. Segundo Harvey,

O único método capaz de unir disciplinas de tal maneira que elas

possam lidar com questões como urbanização, desenvolvimento

econômico e meio ambiente é aquele fundamentado numa versão

apropriadamente constituída do materialismo dialético, de modo que

este opere no âmbito de uma totalidade estruturada, no sentido

concebido por Marx (tradução nossa) (HARVEY, 2009b:302).

A fim de discutir o conflito socioambiental que emerge a partir da construção

do novo bairro, fazemos uso, em diálogo com o materialismo dialético, da abordagem

teórico-metodológica proposta pela Ecologia Política, campo de estudos que tem como

objeto de análise os conflitos socioambientais resultantes dos embates entre grupos

sociais pela apropriação e uso dos recursos naturais. Partindo da noção de desigualdade

ambiental, ou seja, da percepção de que grupos distintos não são afetados da mesma

maneira pelos riscos ambientais, a perspectiva da Ecologia Política evita a naturalização

dos conflitos socioambientais, permitindo que estes sejam abordados levando-se em conta

as bases materiais da sociedade e os esforços em torno de sua apropriação. Assim, tal

perspectiva fornece substância conceitual e ferramentas analíticas para uma aplicação

mais precisa do método de Marx à análise dos fenômenos geradores dos embates sociais

relacionados à questão ambiental. Como argumenta Daniel Bensaïd,

A crítica da economia política não pretende fundar uma ciência geral

da economia. Ela se quer como crítica do capital. Por isso não teria

como esgotar as exigências das determinações naturais e acabar de vez

com o tormento da matéria. A crítica da ecologia política, por sua vez,

não conseguiria, a rigor, absorver a crítica da economia política. Uma e

outra podem, em compensação, estabelecer uma relação fecunda a

partir de temporalidades diferentes (BENSAÏD, 1999:492).

A pesquisa empírica que fornece base às nossas observações consiste, num

primeiro momento, na coleta, seleção e análise de publicações do jornal Correio

Braziliense relacionadas ao nosso objeto de pesquisa. O período investigado se inicia em

janeiro de 2008, data em que se publicam as primeiras reportagens sobre a construção do

bairro, e se estende até outubro de 2012, data da entrega das primeiras unidades de

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apartamentos e anúncio da segunda etapa de obras do Setor Noroeste. Optamos por

realizar a coleta de dados por meio do website do jornal, pois este reúne tanto as

publicações do diário impresso quanto reportagens produzidas exclusivamente para a

internet. Selecionamos reportagens que tratam dos aspectos urbanísticos, políticos e

jurídicos relacionados à construção do bairro, além daquelas que abordam o conflito

socioambiental. Finalmente, na segunda parte do estudo empírico, analisamos anúncios

publicitários relacionados ao Setor Noroeste, com especial atenção ao emprego de

conceitos ambientalistas (desenvolvimento sustentável, bairro ecológico, ecovila, etc.).

Em seguida, nos dedicamos à discussão acerca dos grupos sociais vinculados

à resistência contra a construção do novo bairro, em especial o movimento denominado

“O Santuário não se move!”. Para tanto, apoiamo-nos em fontes indiretas: trabalhos

acadêmicos, textos jornalísticos (especialmente aqueles vinculados à mídia independente)

e material audiovisual produzido pelos militantes (vídeos e documentários) e em fontes

diretas: entrevistas com apoiadores do movimento social. Aqui, utilizamos como método

a entrevista em profundidade com perguntas semi-estruturadas, que tem como vantagem

conferir maior liberdade de expressão ao informante e flexibilidade investigativa ao

pesquisador, possibilitando-lhe ajustar seu roteiro de perguntas conforme o

desenvolvimento do discurso do entrevistado.

As análises de discurso são conduzidas segundo os pressupostos teórico-

metodológicos da Análise de Discurso Crítica, elaborados pelo linguista inglês Norman

Fairclough. Tal perspectiva propõe uma abordagem transdisciplinar para a realização da

análise do discurso, baseada não somente na linguística, mas também em percepções

acerca da realidade histórico-social em que os discursos são produzidos. Assim, unindo a

análise textual à crítica social, a Análise de Discurso Crítica pretende revelar a atuação

da linguagem na constituição dos fenômenos sociais e seu envolvimento nas relações de

poder e dominação (TILIO, 2010). Em diálogo com o materialismo dialético e com a

Ecologia Política, os pressupostos teóricos e as ferramentas analíticas da Análise de

Discurso Crítica nos permitem averiguar em que sentido os discursos dos atores

envolvidos no conflito socioambiental estudado se relacionam com os fenômenos sociais

observados e em que medida contribuem para reproduzi-los ou modificá-los.

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No primeiro capítulo, investigamos os processos sociais e políticos que

determinaram a transformação de uma reserva ambiental – anteriormente protegida pelo

projeto original da cidade e, além disso, local de moradia tradicional de famílias indígenas

– em bairro residencial destinado às classes altas da capital. Para discutir o fenômeno,

apoiamo-nos na perspectiva crítica de Harvey, com o objetivo de analisar o aparecimento

do novo bairro no âmbito daquilo que o geógrafo denomina acumulação por

despossessão (HARVEY, 2009a), elemento que nos ajudará a compreender os

mecanismos de produção do espaço urbano a partir da percepção das relações entre a

acumulação capitalista e as dinâmicas das lutas de classe. Assim, para tratar do resultado

da confluência entre a acumulação por despossessão e a urbanização contemporânea,

propomos como chave analítica o conceito de urbanização por expropriação, aqui

entendido como o dispositivo que possibilita, por meio de práticas e discursos próprios,

a utilização dos instrumentos de organização, regulação e expansão das cidades em

benefício da acumulação de capital.

O segundo capítulo da dissertação destina-se ao estudo dos discursos e

práticas dos idealizadores do novo bairro: empresários, gestores públicos, publicitários e

mídia. Aqui, damos especial atenção à utilização de conceitos ambientalistas. Estes,

segundo nossa hipótese, a despeito de suas pretensões preservacionistas, têm atuado

essencialmente como suporte técnico e ideológico para a acumulação de capital. Por meio

desse discurso, possibilita-se que um empreendimento imobiliário, cuja construção, como

discutiremos, representa sérios riscos socioambientais, seja anunciado como “bairro

ecológico”, agregando-se valor de mercado ao projeto e, ao mesmo tempo, revestindo-se

de teor ético mecanismos de expropriação.

No terceiro capítulo, analisamos os discursos e práticas dos indivíduos

envolvidos na resistência contra a construção do novo bairro. Tratamos especialmente do

movimento denominado “O Santuário não se move!”, coletivo que reúne indígenas,

estudantes, políticos, ambientalistas, defensores dos direitos humanos e organizações da

sociedade civil em torno da luta pelos direitos dos indígenas habitantes da área conhecida

como Santuário dos Pajés e pela preservação da última grande reserva de cerrado nativo

do Plano Piloto de Brasília.

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Capítulo 1 – A urbanização

1.1 – Urbanização e acumulação por despossessão: apontamentos teóricos

1.1.1 – A acumulação primitiva

No livro I de O capital, Marx define a acumulação primitiva de capital como

o processo histórico promotor da dissociação entre o produtor e seus meios de produção,

que teria ocorrido na “pré-história” do modo de produção capitalista. Segundo o filósofo

alemão, ao contrário do que reza a “cartilha” da economia política clássica, os meios

violentos de espoliação ocuparam um papel decisivo nesse processo. Marx observa que a

“libertação” dos produtores das estruturas feudais não significou o fim da exploração dos

produtores, como defendem aqueles que o autor denomina “historiadores burgueses”, mas

representou o início de uma nova forma de espoliação, pois os trabalhadores, apartados

de seus meios de produção, viram-se também desprovidos de todas as garantias básicas

de sobrevivência fornecidas pelas velhas instituições feudais (MARX, 2013:785-788).

Exemplo clássico entre esses mecanismos de expropriação são os

cercamentos (enclosures, em inglês), política instituída pelo parlamento inglês, a partir

do século XVI, a fim de promover a delimitação e a repartição das áreas comunais e assim

impossibilitar seu uso pelos camponeses. Essa prática fez com que os pequenos

produtores rurais se vissem impedidos de subsistir a partir do cultivo da terra e fossem

obrigados a buscar seu sustento por meio de empregos na indústria nascente. Isso

significou um aumento repentino da oferta de mão de obra e facilitou a extração da mais-

valia capitalista, devidamente assegurada pela legislação inglesa da época.

Segundo o economista norte-americano Michael Perelman, a acumulação

primitiva atuou em duas frentes: primeiro, impedindo os camponeses de proverem seu

próprio sustento; depois, impedindo que esses trabalhadores encontrassem meios de

sobrevivência alternativos, fora do sistema de renda capitalista. Aqui, exerceu papel

decisivo o parlamento inglês, através da promulgação de leis que impossibilitavam

qualquer resistência contra as forças do mercado (PERELMAN, 2000:14). Como observa

o economista marxista Maurice Dobb em seu clássico A evolução do capitalismo, os

cercamentos representaram a forma-tipo da acumulação primitiva porque resultaram não

somente no enriquecimento burguês, mas acarretaram também o desapossamento de

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pequenos proprietários em número muitas vezes maior do que a quantidade de pessoas

enriquecidas pelo processo (DOBB, 1987:189).

A atuação dos mecanismos de acumulação primitiva e a consequente

separação entre os camponeses e seus meios de produção tem como resultado o aumento

da oferta de mão de obra barata e vulnerável, estabelecendo-se as bases do mecanismo

que Marx descreveu, no livro I de O capital, como “lei geral absoluta da acumulação

capitalista”:

Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o

volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza

absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior

será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se

desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A

grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha,

pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse

exército de reserva em relação ao exército de trabalhadores, tanto maior

será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão

inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as

camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de

reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral,

absoluta, da acumulação capitalista (MARX, 2013:719-720).

Observa-se, na atualidade, que os cercamentos, descritos por Marx em sua

análise do capitalismo nascente na Inglaterra como mecanismos básicos para a

acumulação primitiva (MARX, 2013:788-804), não deixaram de atuar como

componentes do capitalismo de acumulação avançada. Trata-se do que vem sendo

chamado por estudiosos de novos cercamentos (DE ANGELIS, 2001; FEDERICI, 2001),

fenômenos de expropriação observáveis tanto em países pouco desenvolvidos quanto

naqueles de desenvolvimento capitalista mais avançado. Assim como os antigos

cercamentos, os novos têm como estratégia fundamental de atuação promover a

inviabilidade da propriedade comum sobre os meios de subsistência dos trabalhadores.

Segundo Massimo De Angelis, “o projeto neoliberal global, que por vários meios visa

atingir os bens sociais comuns criados no período pós-guerra, se apresenta como uma

forma moderna de cercamento” (tradução nossa) (DE ANGELIS, 2001). Nesse sentido,

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Silvia Federici cita reportagem da revista inglesa The Economist, que em 1986

recomendava aos países africanos que suas terras comuns fossem cercadas (enclosed) e

que os direitos tradicionais de uso fossem extintos, afinal a propriedade privada da terra

seria essencial para o “bom funcionamento do capital” (THE ECONOMIST, 1986 apud

FEDERICI, 2001).

1.1.2 – A acumulação por despossessão

Sustentando-se na análise de Marx, e a partir da observação do

comportamento do capitalismo contemporâneo, David Harvey discute, em O Novo

Imperialismo, a necessidade de reavaliação histórica do conceito de acumulação primitiva

de capital. Para o geógrafo inglês, não haveria nessa categoria de acumulação nada de

antiquado; pelo contrário, estaria ela ainda cumprindo papel fundamental na reprodução

do sistema capitalista (alguns daqueles mecanismos discutidos por Marx teriam sido

inclusive aprimorados e desempenhariam hoje um papel ainda mais destacado).

Percebendo a necessidade de reativação do debate, o autor sugere como chave analítica o

conceito de acumulação por despossessão (HARVEY, 2009a). Trata-se, portanto, de uma

proposta de atualização do termo clássico marxista para sua inserção na discussão do

capitalismo avançado, como observa o próprio Harvey:

Uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas

predatórias da acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ no âmbito da longa

geografia histórica da acumulação do capital é, por conseguinte muito

necessária, como observaram recentemente vários comentadores.

Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um

processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito

de ‘acumulação por espoliação [despossessão]’ (HARVEY,

2009a:120).

Ao comentar a proposta Harvey, o filósofo Paulo Arantes destaca a percepção

da preponderância, no capitalismo avançado, da lógica territorialista de poder, apesar do

avanço inexorável do paradigma financeiro do capital sem lastro territorial. Assim,

segundo o autor, reintroduz-se no interior do sistema práticas aparentemente relegadas à

pré-história capitalista:

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A hipótese de David Harvey para explicar a engrenagem do novo

imperialismo é preciosa. Nada mais nada menos que uma reativação de

formas supostamente arcaicas de exploração e dominação que Harvey

enfeixa sob a denominação única de Acumulação por Despossessão.

[...] Numa palavra, mais uma vez: Acumulação Primitiva. Só que

reinterpretada de modo a reintroduzir no interior do sistema finalmente

completo do capitalismo as práticas predatórias que caracterizaram sua

pré-história externa – das guerras mercantilistas ao esbulho das

enclosures, passando pelo sistema colonial e pela instituição do milagre

perene da dívida pública. Não há nenhuma extravagância na hipótese.

De uns tempos pra cá, justamente a propósito dos novos “cercamentos”

com os quais se parecem cada vez mais as privatizações da última onda

capitalista [...], debate-se para saber se a Acumulação Primitiva deve ou

não ser entendida num sentido puramente histórico ou como um

processo contínuo (ARANTES, 2007:185).

Foi Rosa Luxemburg quem primeiro observou o caráter global e perene da

acumulação primitiva, quando tratou do imperialismo europeu como mecanismo de

sustentação para o capitalismo industrial, em sua obra A Acumulação Capitalista,

publicada na Alemanha em 1913. Segundo Luxemburg, o militarismo europeu

acompanha todas as fases históricas da acumulação capitalista, desde a conquista do

“Novo Mundo” até as colônias modernas, promovendo a destruição das organizações

sociais primitivas e apropriando-se de seus meios de produção, em processo análogo

àquele descrito Marx ao tratar da acumulação primitiva em território europeu. Assim, os

colonizadores puderam impor a economia de mercado e o trabalho assalariado nos

territórios conquistados, ampliando-se as esferas de atuação do capital europeu

(LUXEMBURG, 1983:399). Dessa maneira, como argumenta Luxemburg, “as

necessidades históricas que acompanham a concorrência mundial intensificada para a

conquista de condições de acumulação transformam-se assim, para o próprio capital, num

magnífico campo de acumulação” (LUXEMBURG, 1983:411).

Na esteira de Luxemburg, Ruy Mauro Marini demonstra como a vocação

internacional do capitalismo faz do mercado mundial de mercadorias uma plataforma

para o desenvolvimento das contradições do próprio capital. Longe de promover a

superação de tais contradições, o mercado global se apresenta como campo aberto para

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sua ampliação territorial, possibilitando a intensificação dos lucros capitalistas e, ao

mesmo tempo, a distensão das contradições presentes nos centros do sistema. Assim, por

meio dos mecanismos de acumulação primitiva (expropriações violentas dos meios de

subsistência), as expressões autodestrutivas do desenvolvimento capitalista podem ser

transferidas dos centros para as periferias do sistema (MARINI, 1993).

Desde a multiplicação das “guerras preventivas” promovidas pela política

externa norte-americana, o processo de acumulação por despossessão ganhou destaque

como abre alas para o que David Harvey denomina novo imperialismo (HARVEY,

2009a). No Afeganistão e, logo, no Iraque, o recurso à violência era nítido (ainda que

naturalmente acompanhado da retórica em torno da expansão da democracia e do livre

mercado). “Danos colaterais” à parte, o fato é que após a destruição viria a “reconstrução”

– leia-se: infindáveis oportunidades para a acumulação capitalista.

Em seu livro, Harvey emprega o conceito de acumulação por despossessão

para tratar das implicações do “novo imperialismo” nas relações entre estados nacionais,

mas não deixa de ressaltar que a discussão acerca da perenidade da acumulação primitiva

é igualmente válida no âmbito interno dos países, pois o funcionamento de seus

mecanismos depende, em grande medida, de sua sustentação pelos poderes de

intervenção dos próprios estados nacionais. Segundo nosso autor:

A acumulação por espoliação [despossessão] pode ser aqui interpretada

como o custo necessário de uma ruptura bem-sucedida rumo ao

desenvolvimento capitalista com o forte apoio dos poderes do Estado.

As motivações podem ser internas (como no caso da China) ou impostas

a partir de fora (como no caso do desenvolvimento neocolonial em

zonas de processamento de exportações no sudeste asiático ou da

abordagem de reformas estruturais que o governo Bush hoje propõe

como cláusula das concessões de ajuda externa a nações pobres). Na

maioria dos casos, está na base dessas transformações alguma

combinação de motivação interna e pressão externa (HARVEY,

2009a:128).

Os aspectos doméstico e externo da acumulação de capital evidentemente

mantêm estreita relação entre si. No entanto, é importante abordá-los de modo que uma

ordem de fenômenos não se sobreponha à outra. Não se pode, por exemplo, subestimar o

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papel decisivo das elites nacionais – que não necessariamente estão submetidas aos

imperativos do capital estrangeiro –, na consolidação do processo de acumulação

capitalista nos países de capitalismo menos desenvolvido.

1.1.3 – O caso brasileiro

Ao tratar das especificidades do caso brasileiro, Francisco de Oliveira

defende, em sua Crítica da razão dualista, a necessidade de redefinição do conceito

original de acumulação primitiva. Segundo Oliveira, num capitalismo que se desenvolve

por meio da elaboração de periferias, como é o caso brasileiro, a acumulação primitiva

adquire um caráter estrutural e não apenas genético, ou seja, não está circunscrita à gênese

do capitalismo (OLIVEIRA, 2003:43).

O economista Carlos Brandão, professor do Instituto de Economia da

Unicamp, concorda com a hipótese. Para o autor, a experiência capitalista brasileira deve

ser entendida considerando-se a coexistência da acumulação de natureza primitiva e de

formas renovadas de acumulação por despossessão. Os mecanismos da forma primitiva

estão baseados na “apropriabilidade privada extensiva/intensiva do território, na retenção

especulativa da terra-propriedade e do dinheiro e na hegemonia da órbita da circulação

no amplo espaço nacional” (BRANDÃO, 2010).

Nas trilhas de David Harvey, Brandão argumenta que, no Brasil, houve uma

sofisticação do fenômeno de transformação do solo urbano em ativo financeiro, o que

tornou o mercado de terras um segmento do mercado financeiro. O autor resume o

processo da seguinte maneira:

O proprietário fundiário, monopolista de uma porção territorial da

cidade, transforma-se em uma facção de classe portadora de capital

dinheiro. A renda da terra, capitalizada a determinada taxa de juros,

assume a forma de títulos de propriedade em circulação e o papel de

capital portador de juros, uma espécie de capital fictício (BRANDÃO,

2010).

A acumulação primitiva entra em cena, no contexto urbano, quando o

estabelecimento do monopólio sobre a terra depende da expropriação do território. Esta

ocorre, via de regra, com a atuação diligente das instituições estatais (sistema judiciário,

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polícia militar, etc.), em comunhão com o uso da violência por agentes privados. As

recorrentes “operações de reintegração de posse” em cidades brasileiras são exemplos

amplamente ilustrativos.

Assim, tomando como verdadeiros os diagnóstico de Oliveira e Brandão a

respeito da função constitutiva e perene da acumulação primitiva nos capitalismos

periféricos, passaremos a tratar de um caso brasileiro específico: a construção, em

Brasília, do Setor Noroeste, empreendimento imobiliário que reúne, a despeito de sua

atualidade e de seu caráter periférico, caracteres constitutivos da acumulação primitiva

de capital descrita por Marx ao tratar da gênese do capitalismo nos países centrais.

1.2 – Estudo de caso: aspectos históricos, antropológicos e políticos

1.2.1 – A urbanização por expropriação

Aproximando-nos da análise dos fenômenos internos da acumulação de

capital – especialmente no que diz respeito às cidades –, pretendemos discutir o papel

desempenhado pela urbanização na reprodução capitalista. Inspirados pelo conceito de

acumulação por despossessão de David Harvey e à luz do debate contemporâneo acerca

dos “novos cercamentos”, propomos como chave analítica para nossa investigação o

termo urbanização por expropriação, que pretende dar nome ao dispositivo que

possibilita, por meio de práticas e discursos próprios, a utilização dos instrumentos de

organização, regulação e expansão das cidades em benefício da acumulação de capital. O

termo “dispositivo” deve ser aqui entendido no sentido que Agamben, seguindo Foucault,

lhe atribui: “Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum

modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e

assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes

(AGAMBEN, 2009)”.

Preferimos adotar o termo expropriação (expropriation) em detrimento de

despossessão (dispossession) pois, como observa Virgínia Fontes, o termo expropriação

é utilizado constantemente por Marx, especialmente quando o autor se refere ao processo

de separação do trabalhador de seus meios de produção, característica fundamental da

acumulação primitiva de capital (FONTES, 2010:62).

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O conceito de urbanização por expropriação pretende dar conta dos

processos estruturais geradores da espoliação nas cidades, portanto, se distancia do que

Lucio Kowarick denomina espoliação urbana, na medida em que este conceito é definido

como “o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de

serviços de consumo coletivo” (KOWARICK, 1980:59) ou, em outros termos, como

“uma forma de extorquir as camadas populares do acesso aos serviços de consumo

coletivo” (KOWARICK, 1980:73). Não pretendemos tratar especificamente da limitação

ao acesso a “serviços de consumo coletivo”, mas das configurações políticas, econômicas,

técnicas e ideológicas que determinam o caráter espoliativo da expansão urbana

capitalista e produzem – entre outros efeitos –, a precariedade do acesso a serviços de

consumo coletivo nas cidades.

1.2.2 – O Setor Noroeste (Brasília-DF)

A partir desse momento, analisaremos a construção, em Brasília, do Setor

Noroeste1. Partindo desse contexto periférico específico – mas expansível a vários outros

casos mundo afora, inclusive aos países centrais –, discutiremos, com o suporte dos

pressupostos teóricos apresentados, as relações estabelecidas, em nosso estudo de caso,

entre os mecanismos urbanísticos e a acumulação capitalista.

Inicialmente, cabem algumas considerações acerca do empreendimento

brasiliense: o Setor Noroeste (ou Noroeste Ecovila, como querem os construtores),

projetado pelo arquiteto e urbanista Paulo Zimbres, e divulgado por investidores2 e mídia

como o primeiro bairro ecológico do Brasil, tornou-se legalmente possível com a

alteração, em 1987, do projeto original de Brasília. A manobra jurídica foi possível graças

à assinatura, por Lucio Costa, de um documento de intenções denominado Brasília

Revisitada, que permitia a alteração do projeto original de Brasília (o bairro “verde” está

1 O Setor Noroeste foi apelidado por seus críticos de “Setor Faroeste”. A referência ao processo de expansão

das fronteiras norte-americanas não poderia ser mais adequado, como pretendemos demonstrar ao longo do

trabalho. 2 O principal investidor e beneficiário do projeto é Paulo Octávio, homem mais rico do Distrito Federal e

vice-governador durante o governo Arruda (DEM).

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sendo construído sobre uma área anteriormente protegida como reserva ambiental3) e

previa a construção de quatro novos bairros no Plano Piloto, dentre eles o Setor Sudoeste

(já construído e habitado) e o Setor Noroeste. Pressionado pelo poderoso setor imobiliário

de Brasília e convencido pela classe política de que os novos bairros seriam destinados a

suprir a demanda habitacional das classes populares e médias da capital, Lucio Costa

acabou por referendar a alteração de seu plano original4. É o que se pode ler nesse trecho

do documento:

Na implantação dos dois novos bairros a oeste – Oeste Sul [Sudoeste]

e Oeste Norte [Noroeste] – foram previstas quadras econômicas (pilotis

e três pavimentos) para responder à demanda habitacional popular e

superquadras (pilotis e seis pavimentos) para classe média, articuladas

entre si por pequenos centros de bairro, com ocupação mais densa,

gabaritos mais baixos (dois pavimentos sem pilotis) e uso misto

(COSTA, 2009).

No dia 14 de outubro de 1987, publicou-se um decreto pelo qual o governador

do DF determinava, entre outras providências de ordem urbanística, que a expansão

urbana da cidade fosse orientada, a partir de então, pelo novo plano de Lucio Costa. Na

figura 1, em anexo, a área B, em amarelo, representa a região destinada à construção do

Setor Noroeste, então denominado “Bairro Oeste Norte”. A figura 2, em anexo, contém

uma imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do bairro.

A eleição do ex-governador José Roberto Arruda e de seu vice Paulo Octávio

(maior empresário do setor imobiliário do Distrito Federal e grande investidor do projeto

Noroeste), em 2006, significou sinal verde para a reativação do empreendimento. A

aprovação, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, em 2009, da revisão do Plano

Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), documento que estabelece as diretrizes para

o desenvolvimento urbano e para a expansão territorial de Brasília, garantiu ainda mais

3 No projeto original de Brasília, a área destinada à construção do Setor Noroeste estava inserida na

denominada “escala bucólica”, que deveria atuar, segundo Lucio Costa, como contraponto natural às áreas

edificadas (escalas monumental, residencial e gregária) da cidade. 4 Informações recolhidas em palestra do professor Frederico Flósculo (FAU-UnB), por ocasião de evento

promovido em Brasília pela associação ambientalista Pequí. O vídeo da palestra se encontra disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=ixtC109fwzs>.

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segurança aos empreendedores. O projeto de lei complementar que orientava a revisão do

PDOT foi proposto por Arruda logo em seu primeiro ano de governo, em 2007. O

principal eixo do novo plano era justamente o estabelecimento de diretrizes urbanísticas

que garantissem a criação do Setor Noroeste.

Segundo investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal,

cada um dos 18 deputados distritais da base do governo Arruda recebeu 420 mil reais

para votar a favor da aprovação do documento (FORTES, 2010), no âmbito do esquema

de corrupção conhecido como “Mensalão do DEM”, que mais tarde levaria ao

impeachment do governador. Frederico Flósculo, professor da Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo da Universidade de Brasília, enumera algumas implicações socioambientais

do modelo urbanístico adotado pelo PDOT:

É um plano essencialmente imobiliário, uma verdadeira Lei de Uso e

Ocupação do Solo, sem o ordenamento territorial que se espera para o

desenvolvimento humano nas dimensões da educação, da saúde, do

emprego e renda, dos transportes, do lazer, da segurança. [...] A adoção

de uma inflexível e seletiva lógica de "fatos consumados" da Ocupação

Territorial, em que a grilagem, as designações de uso sem fundamentos

ecológicos honestos (como no caso do Setor Noroeste, das mudanças

no Setor Park Way, na 901 Norte, da Orla do Paranoá, do "caso Santa

Prisca", entre tantos outros casos) prevalecem sobre a racionalidade

ambiental e do desenvolvimento humano e comunitário (FLÓSCULO,

2012)

Os planos diretores se tornaram obrigatório para todas as cidades brasileiras

com mais de 20 mil habitantes a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001.

Segundo o documento (lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001), o plano diretor do

município é o “documento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” e

deve promover o cumprimento da função social da propriedade urbana, “assegurando o

atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e

ao desenvolvimento das atividades econômicas” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,

2001). A lei estabelece ainda que o plano diretor deve ser aprovado por lei municipal, que

precisa ser revista, pelo menos, a cada dez anos. No entanto, as “revisões” do plano diretor

(que deveriam servir, segundo a lei, para acentuar os mecanismos de uso social da

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propriedade), têm atuado, domo demonstra o caso de Brasília, como plataforma de

negociações entre governos municipais e agentes privados.

Os planos diretores tendem a assimilar, como demonstra o professor Carlos

Vainer, os preceitos do chamado planejamento estratégico urbano, corrente do

urbanismo que adere à ideia de que o planejamento das cidades deve orientar-se por

conceitos e técnicas oriundos do planejamento empresarial, uma vez que as cidades

estariam sujeitas aos mesmos “desafios” enfrentados pelas empresas (VAINER,

2000:76). As cidades deveriam, segundo os pressupostos propagados pelos consultores

internacionais do planejamento estratégico, ser capazes de competir entre si pelo

investimento de capital, tecnologia e competência gerencial. De acordo com os

sociólogos (e consultores urbanísticos) catalães Manuel Castells e Jordi Borja,

O governo local deve promover a cidade para o exterior, desenvolvendo

uma imagem forte e positiva apoiada numa oferta de infra-estrutura e

de serviços (comunicações, serviços econômicos, oferta cultural,

segurança etc.) que exerçam a atração de investidores, visitantes e

usuários solventes à cidade e que facilitem suas “exportações” (de bens

e serviços, de seus profissionais etc.) (CASTELLS e BORJA, 1996

apud VAINER, 2000:80).

Vainer destaca o caráter excludente desses pressupostos urbanísticos: a

cidade-empresa deve se esforçar para atrair, de preferência, “visitantes e usuários

solventes”; ou seja, deve ser capaz de selecionar os “consumidores” que lhe interessam

financeiramente (VAINER, 2000:80). Esse receituário pragmático se mostra

especialmente atual no Brasil, tendo em vista os mecanismos urbanísticos autoritários

adotados nos esforços de “adequação” das cidades-sede (Brasília, entre elas) para a Copa

do Mundo de 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também para a realização dos Jogos

Olímpicos de 2016.

No caso da capital fluminense, Vainer sugere que seu território tenha se

transformado numa cidade de exceção, o que teria instaurado uma conjuntura política que

o autor denomina democracia direta do capital (VAINER, 2011). Não por acaso, o

planejamento urbano do Rio de Janeiro segue, desde a década de 1990, as diretrizes do

planejamento estratégico, o qual se reafirmou, nos últimos anos, com a necessidade de

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“transformação” da cidade para os megaeventos esportivos de 2014 e 2016. Segundo

Vainer,

A cidade de exceção transforma o poder em instrumento para colocar a

cidade, de maneira direta e sem mediações na esfera da política, a

serviço do interesse privado de diferentes grupos de interesses. [...]

Trata-se de uma forma nova, em que as relações entre interesses

privados e estado se reconfiguram completamente e entronizam novas

modalidades de exercício hegemônico. Neste contexto, torna-se regra a

invisibilização dos processos decisórios, em razão mesmo da

desqualificação da política e da desconstituição de fato das formas

“normais” de representação de interesses (VAINER, 2011).

A análise de Vainer nos remete, outra vez, ao Estatuto da Cidade. O autor

demonstra como o documento, por meio da criação do instituto da “operação urbana

consorciada” (instrumento de parceria público-privada) promove a “flexibilização” de

determinadas leis que regulamentam as práticas urbanísticas (VAINER, 2011). A

maleabilidade da legislação é instrumento fundamental para a imposição da “democracia

direta do capital” e, como destaca Vainer, está assegurada pelo artigo 32 do Estatuto da

Cidade5:

Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá

delimitar área para aplicação de operações consorciadas. §

1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de

intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal,

com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes

e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área

transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a

valorização ambiental. § 2o Poderão ser previstas nas operações

urbanas consorciadas, entre outras medidas: I – a modificação de

índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e

subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o

impacto ambiental delas decorrente; II – a regularização de

construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a

5 O texto completo do Estatuto da Cidade (lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001) encontra-se disponível

para consulta em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>.

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legislação vigente (grifo nosso) (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,

2001).

De volta ao nosso estudo de caso: a “associação” entre poder público e setor

privado, já discutida por Marx ao tratar da atuação do parlamento inglês na sustentação

jurídica dos mecanismos de acumulação primitiva, estava estabelecida. O marketing

“verde” propalado pelos investidores foi facilmente assimilado pela mídia e o novo bairro

era divulgado como solução inovadora (e “sustentável”) para o déficit habitacional de

Brasília. Assim, logo se anunciou a construção da “ecovila” de 220 edifícios residenciais

de “alto padrão”, além de 198 prédios comerciais; tudo isso num terreno de 825 hectares6,

na única área de vegetação nativa de cerrado ainda preservada no Plano Piloto. A figura

3, em anexo, ilustra a evolução do preço médio do m² no Setor Noroeste, de agosto de

2010 a janeiro de 2013. O quadro 1, em anexo, contém um comparativo entre o preço

médio do m² de apartamentos no Setor Noroeste e apartamentos em bairros nobres de

outras 16 cidades brasileiras, segundo dados de janeiro de 2013.

Críticos do projeto alertam que o desmatamento do cerrado (cf. figura 4, em

anexo) colocará em risco a grande riqueza biológica da área; que a impermeabilização do

solo, prevista pela obra, impedirá a absorção das águas das chuvas e resultará em

enchentes; que o Lago Paranoá sofrerá com o assoreamento, uma vez que há a previsão

de retirada de 4 milhões de metros cúbicos de terra para a construção de garagens

subterrâneas; e, ainda, que os dejetos eliminados pelos edifícios irão sobrecarregar e

poluir a bacia do Lago Paranoá, impedindo a utilização futura da água para o consumo

humano7. O professor Frederico Flósculo enumera, em entrevista a nós concedida, outros

possíveis problemas ambientais e urbanísticos derivados da implementação do bairro:

O alargamento do Plano Piloto acarreta congestionamentos crônicos,

pois quando a cidade linear começa a virar "um balão", seu padrão de

circulação deve ser anelar, e não mais linear. Vários pontos de

congestionamento devem ocorrer no cruzamento da Asa Norte (pelo

eixo das quadras 906 a 406) do Eixo Monumental (no Palácio do Buriti)

e na EPIA (na saída adiante do Parque Nacional). Além disso, o

6 Informações disponíveis no seguinte endereço: <http://www.noroesteecovila.com/index.html>. 7 Informações retiradas de Recomendação de maio de 2009 e de Ação Civil Pública de agosto de 2010 da

Procuradoria da República no Distrito Federal, Ministério Público Federal.

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20

relatório de impacto ambiental contratado pelo próprio GDF tem sérias

ressalvas quanto ao que pode acontecer à hidrografia do Parque

Nacional, e é omisso quanto aos ricos lençóis freáticos dessa imensa

área, que alimentam o riacho Bananal e, com ele, o Lago Paranoá. Os

padrões de assoreamento do Lago Paranoá estão claramente ligados ao

modo como as construtoras têm desmatado essa área do Setor Noroeste,

que era uma imensa reserva de cerrado. O Setor Noroeste congestiona

o Plano Piloto de um modo imprudente e permanente, deformando o

seu Plano Piloto de forma irreversível (FLÓSCULO, 2013).

1.2.3 – O Santuário dos Pajés (Brasília-DF)

A situação é agravada por outro fato, não menos importante: uma área de 50

hectares (cf. figura 5, em anexo) da região onde se pretende construir o novo bairro é

habitada desde 1969, em caráter permanente, por índios da etnia Tapuya/Fulni-ô. Os

índios, originários do município de Águas Belas, em Pernambuco, deslocaram-se do

Nordeste do país ao Centro-Oeste juntamente com os denominados candangos,

nordestinos que buscavam oportunidades de trabalho e melhores condições de vida na

região onde hoje se localiza Brasília.

Segundo antropólogos responsáveis por laudo antropológico encomendado

pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o deslocamento dos índios para a região

Centro-Oeste deve ser entendido como resultado da ineficácia da atuação do Estado

brasileiro no sentido de garantir os direitos territoriais daquela etnia. Os conflitos agrários

e as agressões aos direitos do povo Tapuya/Fulni-ô remetem à edificação do perímetro

urbano do município de Águas Belas, realizada dentro do território originário dos índios.

Segundo os profissionais que assinam o laudo antropológico, apesar de os indígenas

serem originários de outra região, o fato de haverem se deslocado ao Centro-Oeste não

impede que seu novo local de residência seja considerado como área de ocupação

tradicional8:

8 Conforme determina o art. 231 da Constituição Federal de 1988, transcrito a seguir: “São terras

tradicionais ocupadas pelos índios e por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas

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Apesar de Águas Belas ser o epicentro de seu mundo, isso não significa

que os Fulni-ô estejam impossibilitados ou que sejam incapazes de

estabelecer vínculos de tradicionalidade com outras áreas, onde possam

se adaptar segundo seus usos, costumes e tradições (OLIVEIRA;

PEREIRA e BARRETO, 2011:16).

Relatos registrados na monografia de especialização de Frederico Flávio

Magalhães, funcionário da FUNAI, coletados a partir de entrevistas com os índios da

região, corroboram a caracterização da área como ocupação tradicional indígena:

Informaram que os mais velhos chegaram em 1957 para trabalhar na

construção da nova capital e que ocuparam aquela área para suas rezas

porque nos canteiros de obras, longe dos elementos naturais não era

possível estabelecer o contato com seus ancestrais, manifestar suas

crenças e praticar seus usos tradicionais da terra, como forma de

satisfazer sua identidade espiritual. [...] Demonstraram como é

importante a realização das rezas na mata onde a natureza íntegra

proporciona os elementos naturais e sobrenaturais que compõem o

mundo mágico-religioso de sua identidade com os antepassados na

dimensão do espiritual, do sagrado. Fato que não é possível nas ruas,

estradas, construções ou em locais onde a natureza não é respeitada.

Contaram como os casamentos, os nascimentos de filhos e netos e a

morte de alguns líderes espirituais que aí viveram aprofundaram mais

ainda as relações espirituais com a ancestralidade do território.

Mencionaram que o enterro de seus pertences ocorreram nesta terra em

pontos de referência relacionados ao clã a que cada um pertence.

Expressaram a crença de que tais ocorrências confirmam o caráter

sagrado do território. [...] Assim esclareceram que os pioneiros

indígenas escolheram a área da Fazenda Bananal como ponto para suas

rezas, enquanto desenvolviam relações de amizade, parceria e

assumiam tarefas como prestação de pequenos serviços eventuais para

atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar

e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

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os demais sitiantes e agregados da Fazenda Bananal (MAGALHÃES,

2009:17-18).

Os indígenas mantêm na área, agora destinada à construção de moradias para

a elite brasiliense, um local considerado por eles sagrado. Ao longo do tempo,

estabeleceu-se na Comunidade Indígena do Bananal, ou Santuário dos Pajés (como os

índios se referem ao local), uma comunidade multiétnica, composta por representantes

das etnias Fulni-ô, Xukuru, Tupinambá, Korubo, Kariri-xocó e Tuxá (cf. quadro 2, em

anexo). Trata-se, portanto, de importante patrimônio histórico e ponto de referência

cultural no Centro-Oeste do país, além de local de acolhida de povos indígenas em

deslocamento da região amazônica ao Centro-Oeste e Sul do país9, pois ainda não existem

em Brasília locais adequados para a recepção de índios que vêm à capital tratar de

questões burocráticas ou de problemas de saúde.

Além de contribuírem para a preservação do cerrado em torno do Santuário

(cf. quadro 3, em anexo), os indígenas cultivam um herbário de plantas nativas

fitoterápicas (cf. figura 6, em anexo), possuem um banco de sementes de espécies nativas

do cerrado e organizam visitas guiadas de educação ambiental para estudantes do ensino

fundamental, além de encontros com grupos interessados em conhecer a comunidade e o

ecossistema do cerrado. A Associação Cultural Povos Indígenas (ACPI), sediada na área

do Santuário dos Pajés e gerida pelos próprios indígenas, é responsável pela organização

dos eventos e encontros e pela emissão de comunicados da comunidade indígena à

exterioridade.

As evidências materiais resultantes do esforço de preservação promovido

pelos índios são exemplos do que os antropólogos denominam “ecofatos” (OLIVEIRA;

PEREIRA e BARRETO, 2011:20) e expressões do processo de “humanização da

natureza”:

Com efeito, o fato é que os pais de Santxiê e outros aliados Fulni-ô,

ainda que inicialmente não tenham estabelecido moradia permanente na

área, ao passarem a frequentá-la com periodicidade para a prática de

9 A presença indígena nas terras que hoje constituem o Distrito Federal é ainda mais antiga: a região foi

utilizada como rota de fuga de indígenas de diversas etnias durante as investidas dos Bandeirantes nos

séculos XVII e XVIII.

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rituais religiosos, contribuíram de maneira prática e simbólica para a

humanização daquele espaço, adaptando-o gradualmente ao seu modo

de vida. [...] Por isso o lugar tornou-se familiar para os indígenas,

destacadamente para os Fulni-ô, pois cada vez mais passou a se

configurar como uma ilha de vegetação humanizada cercada por vias

asfaltadas, prédios etc., que marcam a urbanização de Brasília. Ao

chegar ali, um Fulni-ô logo percebe a presença de muitas espécies de

plantas originárias da Caatinga e, por conseguinte, sabe que naquele

lugar também estão seus respectivos “donos”. [...] Trata-se, dentre

outras coisas, de uma estratégia de adaptação sociocultural a outro

ambiente, distinto de seu território de origem, transformando-o em

espaço domesticado e território tradicional segundo a dinâmica de seus

usos, costumes e tradições (OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO,

2011:21-22).

As evidências descritas acima permitiram aos antropólogos Jorge Eremites de

Oliveira e Levi Marques Pereira e à bióloga Lilian Santos Barreto a elaboração das

seguintes conclusões:

Primeiro, que o Santuário dos Pajés é, de fato, terra de ocupação

tradicional indígena, conforme determina o Art. 231 da Carta

Constitucional de 1988. Logo, a reivindicação apresentada pela

comunidade é pertinente do ponto de vista dos direitos dos povos

originários no Brasil. [...] Segundo, que o Projeto Imobiliário Setor

Noroeste, sob a responsabilidade da Terracap, incide sob terra indígena

não regularizada pelo Estado Brasileiro, cujo início da ocupação

tradicional é anterior à promulgação da Lei Maior. Terceiro, que as

reivindicações indígenas sobre a área têm a ver com uma demanda

coletiva e não com uma demanda individual. Quarto, que o Santuário

dos Pajés é imprescindível, tanto física quanto simbolicamente, para a

permanência do grupo na área, sobremaneira para os Fulni-ô e Tuxá que

ali se estabeleceram há mais tempo que os ocupantes indígenas que ali

chegaram a partir da década de 1990. Quinto, que se faz imperativo que

a FUNAI constitua um GT (Grupo de Trabalho), sob a coordenação de

um antropólogo, para proceder aos estudos necessários à identificação,

delimitação e demarcação da terra indígena, em conformidade com o

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que estabelece o Decreto 1.775, de 08/01/1996, e a Portaria MJ Nº 14,

de 09/01/1996. Sexto, que sejam realizados estudos com vista à

identificação dos impactos negativos, incluindo dados morais e

materiais, que Projeto Imobiliário Setor Noroeste causou e vem

causando à comunidade indígena do Santuário dos Pajés, bem como

outras ações semelhantes que se fizerem necessárias (OLIVEIRA;

PEREIRA e BARRETO, 2011:44-45).

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

(IBAMA), órgão governamental responsável pela emissão da licença ambiental que

permitiria o início das obras do Noroeste, utilizou como sustentação para sua análise de

impacto ambiental um estudo realizado por empresa terceirizada contratada pelos

próprios construtores e, ignorando a necessidade de preservação ambiental da reserva,

impôs como único condicionante para emissão da licença definitiva a resolução da

questão indígena, transferindo a responsabilidade para a FUNAI, órgão responsável pela

demarcação de terras indígenas tradicionais no Brasil. Até o início de 2009, a FUNAI não

havia emitido parecer definitivo sobre a questão, o que não impediu que os construtores,

com o apoio da Terracap10 e da Polícia Militar do Distrito Federal, começassem as obras

de terraplanagem e infra-estrutura. Havia claramente a intenção de transformar a

construção do bairro num “fato consumado”11, ignorando-se os trâmites legais.

Em março de 2009, o Ministério Público Federal recomendou a paralisação

de “quaisquer atos tendentes a alterar, reduzir, impactar, transferir ou restringir a

ocupação e as atividades da comunidade indígena do Bananal, até decisão definitiva da

FUNAI”12. No entanto, o reiterado adiamento do estudo fundiário permitiu que as

empreiteiras, novamente com o suporte da Terracap, da Polícia Militar e do novo

governador do DF, Rogério Rosso, continuassem a construção do bairro. Segundo nota

10 Empresa pública do governo do Distrito Federal responsável pela administração e pela venda das terras

públicas do DF. Foi a responsável pela licitação de venda dos lotes para os empreendedores do Setor

Noroeste. José Roberto Arruda iniciou sua carreira pública na Novacap, empresa antecessora da Terracap. 11 Sobre essa prática, aparentemente comum entre as empreiteiras, conferir o trabalho da arquiteta e

urbanista Mariana Fix, Parceiros da Exclusão (FIX, 2001), que narra a remoção da favela Jardim Edith,

em São Paulo, para a construção de empreendimentos de “alto padrão”. 12 Procuradoria da República no Distrito Federal, Ministério Público Federal, Recomendação GAB-LLO nº

05/2009, assinada pela Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira.

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publicada em junho de 2010 pelos construtores em um dos websites do empreendimento,

as obras continuavam normalmente, para o sossego dos futuros moradores: “Muitas

máquinas e trabalhadores por todos os lados. Essa é a visão que se tem das obras de

urbanização do Setor Habitacional Noroeste, que estão a todo vapor. Cerca de 400

homens dividem espaços com as 100 máquinas das 11 empreiteiras responsáveis pela

urbanização”13 (grifo nosso).

O laudo antropológico atestando o caráter tradicional da ocupação indígena

foi entregue à FUNAI em setembro de 2011, ou seja, mais de dois anos após o início das

obras do Setor Noroeste. O órgão estatal, apesar de haver encomendado o estudo após

indicação, pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), dos antropólogos Jorge

Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira, declarou o laudo inconsistente, alegando a

não aplicabilidade do artigo 231 da Constituição Federal a áreas urbanas. Em entrevista

a nós concedida, Jorge Eremites de Oliveira afirmou o seguinte, em relação à atuação da

FUNAI no caso do Santuário dos Pajés:

No que se refere ao Santuário dos Pajés, a atuação da FUNAI tem sido

colonialista desde o início. Na verdade, a presidência do órgão apenas

determinou a realização do estudo antropológico para protelar outra

publicização de posicionamento contrário ao reconhecimento daquela

área como terra de ocupação tradicional indígena. Isso ficou muito claro

para mim antes de iniciar os estudos na área, quando tive a oportunidade

de participar de uma reunião na antiga CGID [Coordenação Geral de

Identificação e Delimitação] para discutir o assunto. Na ocasião, a

coordenadora daquela coordenação e seus subordinados e assessores

explicitaram a mim que entendiam que a área não era terra de ocupação

tradicional indígena, conforme determina o artigo 231 da Carta

Constitucional de 1988. O medo deles, por assim dizer, era e é que o

Santuário dos Pajés abrisse um precedente jurídico para a

regularização de outras terras indígenas existentes em contextos

urbanos no país. Então, se o resultado do laudo produzido sob minha

coordenação não teve o resultado que a FUNAI esperava, não seria

13 A nota, uma evidente tentativa de tranquilizar os compradores em relação à continuidade das obras, pode

ser acessada no seguinte endereço: <http://www.setornoroestebsb.com.br/noticias.php?cod=30>.

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estranho que o órgão se opusesse ao mesmo, opondo-se inclusive ao

posicionamento formal do MPF e da própria ABA. Que mais teria a

dizer sobre isso? Registro amiúde que a FUNAI é um órgão do Estado

Brasileiro e, como tal, é colonialista desde suas origens na época da

criação do antigo SPI [Serviço de Proteção aos Índios]. Por isso usa de

vários expedientes legais, burocráticos e administrativos para ceifar

direitos e dominar os povos indígenas. Senti, [...] durante a reunião

feita na CGID, como explicado anteriormente, que havia um ambiente

completamente contrário às reivindicações da comunidade indígena do

Santuário dos Pajés. Na ocasião, depois de vários servidores públicos

fazerem uso da palavra, manifestando-se contra a tese de que a área

seria terra indígena, alguém perguntou qual seria a minha opinião sobre

o caso. Respondi que não tinha opinião formada porque ainda não tinha

ido a campo fazer a pesquisa. Logo, somente depois disso poderia

formar opinião sobre o assunto. Mas como é que a FUNAI formou

opinião contrária sobre o Santuário dos Pajés se os estudos

anteriormente encomendados possuem conclusões antagônicas?

Desconheço o fato de algum técnico da FUNAI ter feito um estudo

consistente sobre a área. Ademais, um processo administrativo interno

sobre o Santuário dos Pajés simplesmente sumiu de dentro – pasme! –

da própria sede da agência indigenista oficial. Nesse processo havia

documentos internos que comprovavam que a área não apenas era terra

indígena, mas que em gestões anteriores a FUNAI tinha iniciado um

processo de regularização da mesma. Embora não seja expert em direito

constitucional, penso que do ponto de vista antropológico e jurídico não

há justificativa técnica para a interpretação tendenciosa e viciada que

a FUNAI apresentou, para o caso do Santuário dos Pajés, sobre o

artigo 231 da Constituição Federal, negando-se a cumprir seu dever

(grifo nosso) (OLIVEIRA, 2013).

O laudo não foi oficialmente encaminhado à Justiça e o grupo de trabalho,

que deveria proceder com os estudos necessários para a identificação, delimitação e

demarcação da terra indígena, jamais foi estabelecido pela FUNAI. No dia 18 de outubro

de 2011, a ABA divulgou nota condenando a inação do órgão:

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O Laudo concluído atesta de maneira clara, objetiva e consistente que

se trata de terra tradicionalmente ocupada por comunidade indígena,

cuja extensão é de, pelo menos, 50,91 hectares. [...] Um Processo da

FUNAI no qual constavam importantes documentos para o

esclarecimento dos fatos, inclusive procedimentos oficiais para a

regularização da área, sob Nº 1.607/1996, desapareceu de dentro do

próprio órgão indigenista. [...] A morosidade da FUNAI em tomar as

providências para assegurar os direitos territoriais, inclusive no que se

refere à entrega formal do laudo à Justiça, tem aumentado a situação de

vulnerabilidade e causado grandes prejuízos àquela comunidade

indígena e à conservação ambiental do lugar. Tal postura favorece os

setores ligados à especulação imobiliária em Brasília e seus aliados

políticos, inclusive pessoas ligadas a conhecidos esquemas de

corrupção no Distrito Federal e segmentos da impressa a elas

vinculados, os quais seguidamente distorcem e manipulam os fatos a

favor de seus patrocinadores (ABA, 2011).

A Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais,

Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), articulação que reúne 36 movimentos e

organizações da sociedade civil, também emitiu nota demonstrando descontentamento

em relação às decisões do órgão indigenista, alertando inclusive para as evidências de

descumprimento, pelo Estado brasileiro, de preceitos da Convenção 169 da OIT14:

Observa-se ainda, de forma preocupante, que a FUNAI reiteradamente

negou o direito dos indígenas ao procedimento estabelecido no Decreto

1.775/96, ora sob o argumento jurídico de ausência de imemorialidade

na ocupação tradicional, agora com parecer contrário da ABA, e ora

ante a inaplicabilidade do art. 231 da Constituição Federal a áreas

urbanas. Algo que afronta categoricamente os preceitos da Convenção

169 da OIT. [...] A situação de agressões e intimidações à comunidade

indígena e ao próprio Santuário Sagrado dos Pajés representa uma

afronta aos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito,

à Constituição Federal e aos Tratados Internacionais dos quais o Brasil

14 A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), datada de 1989 mas ratificada pelo

Brasil somente em 2002, regulamenta os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais.

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é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do

Trabalho. A perspectiva garantista e plural do Estado não pode ser

abandonada diante da violência e pressão de grupos econômicos que

historicamente submetem as populações à violência e a exclusão, além

de agirem à revelia de qualquer ordenamento jurídico (OIT, 1989).

Diante da morosidade da FUNAI e da situação de conflito entre os apoiadores

do Santuário e as construtoras, a Juíza Federal Substituta Clara da Mota Santos,

determinou, no dia 13 de outubro de 2011, a suspensão das obras até que fosse realizada

audiência pública, marcada para o dia 27 de outubro. No entanto, as construtoras

continuaram as obras, alegando que a decisão da juíza se referia apenas à infraestrutura

do bairro, que seria responsabilidade do poder público.

Desde o início das obras, havia um embate interno no Santuário, entre as

famílias das etnias Kariri-xocó e Tuxá, que consideravam a possibilidade de acordo de

remoção e a família do líder indígena Santxiê, de etnia Tapuya/Fulni-ô, que desde o

anúncio do projeto imobiliário defendeu incondicionalmente sua permanência na área do

Santuário. No dia 18 de outubro de 2011, oito das nove famílias indígenas que ocupavam

a área do Santuário aceitaram proposta da Terracap para deixar a área e deslocar-se para

um terreno de 12 hectares, próximo ao setor Noroeste, que seria doado pela Terracap à

União e repassado à FUNAI. O acordo foi assinado pela cacique Ivanice Pires Tononé,

em nome das famílias das etnias Kariri-xocó e Tuxá. Por ocasião do acordo, no dia 19 de

outubro representantes da comunidade indígena publicaram um comunicado, por meio do

qual traçaram um histórico da presença dos Kariri-xocó e dos Tuxá no Santuário dos Pajés

e reafirmaram a permanência dos Tapuya/Fulni-ô na área em litígio:

Após a notícia veiculada ontem pela mídia de que os indígenas Kariri-

Xocó e Tuxá, através do advogado George Peixoto, assinaram acordo

para deixar área próxima ao Santuário dos Pajés, comunicamos que a

resistência indígena dos Fulni-ô juntamente com sua rede de apoiadores

permanece na área de 50 hectares em litígio e amparada pela decisão

judicial da Juíza Clara da Mota Santos. [...] Em 1976 e 1977, os Tuxá,

devido a construção da barragem da usina Hidroelétrica de Itaparica,

foram deslocados de suas terras na Bahia. A senhora Maria Filha da

Conceição Vieira Tuxá refugiou-se no Santuário, iniciando a presença

Tuxá na região. [...]Em meados da década de noventa, devido a uma

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série de problemas sociais, econômicos e fundiários, indígenas da etnia

Kariri-Xocó migraram para o Distrito Federal. Após morarem em

vários pontos do DF, sua última moradia havia sido nas pensões da W3,

onde a FUNAI mantinha um convenio para abrigar os indígenas, que

foi encerrado em 2004. Com o encerramento do convênio, os Kariri-

Xocó se encontraram mais uma vez desabrigados e solicitaram

acolhimento dentro das terras do Santuário dos Pajés. A presença dos

Kariri-xocó era vista pelos Fulni-ô como transitória, sendo uma questão

temporária até que uma moradia permanente fosse encontrada

(SANTUÁRIO, 2011a).

A resistência dos Tapuya/Fulni-ô e o desrespeito das construtoras em relação

ao embargo das obras fizeram com que o conflito entre os apoiadores do Santuário e as

empreiteiras – apoiadas pela Polícia Militar e por seguranças privados (cf. figura 7, em

anexo) –, se agravasse durante os meses de outubro e novembro de 2011, apesar de nova

decisão da Justiça que havia suspendido as obras até o dia 29 de novembro, data de mais

uma audiência pública para tratar o caso. Por meio de liminares judiciais e do apoio

logístico da Polícia Militar do governo petista do Distrito Federal, as empreiteiras

intensificaram as obras no início de 2012, especialmente dentro da área em litígio (os

cerca de 51 hectares em torno do Santuário dos Pajés), apostando no sufocamento físico

e psicológico da comunidade indígena.

Em maio de 2012, o setor imobiliário de Brasília anunciou que, até fevereiro

de 2012, havia lucrado 3,5 bilhões de reais com as vendas do Setor Noroeste. No dia 21

de junho de 2012, o Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal

autorizou o início das obras da segunda etapa do bairro.

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Capítulo 2 – O verde

2.1 – Sustentabilidade e acumulação capitalista

2.1.1 – Desenvolvimento sustentável e economia verde

A origem do conceito de desenvolvimento sustentável remete à Conferência

das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em 1972, em Estocolmo,

onde discutiu-se pela primeira vez a noção de ecodesenvolvimento. Mais tarde, pelas

mãos de Ignacy Sachs, esse termo transformar-se-ia no conhecido desenvolvimento

sustentável e seria acolhido pelas Nações Unidas como o novo paradigma teórico sobre o

qual deveria orientar-se, a partir de então, o desenvolvimento econômico e social da

humanidade (PATO, 2012). Aos olhos do movimento ambientalista, tratava-se de um

esforço urgente, na medida em que o modelo de desenvolvimento vigente desde o pós-

guerra mostrava-se incapaz de superar a crescente desigualdade social e provocava,

visivelmente, a acentuação da degradação ambiental. Por outro lado, sob a ótica das elites

dirigentes internacionais, tratava-se de estabelecer novas bases institucionais que

permitissem que o modelo de desenvolvimento vigente pudesse prosseguir sem grandes

rupturas e não acabasse por comprometer as bases de sua própria reprodução

(ACSELRAD, 2008).

O grande trunfo do novo conceito, como ressalta Christy Pato, foi o de

pavimentar, no âmbito das conferências sobre o meio ambiente, uma terceira via entre

duas vertentes de “especialistas”: os chamados curnucopians, para quem as preocupações

ambientais inibiriam o avanço industrial dos países em desenvolvimento; e os

denominados doomsayers, aqueles que previam uma catástrofe ambiental caso

providências preservacionistas não fossem tomadas de imediato. Sendo assim, a solução

“sustentável” de Sachs não apenas deixou intacta a crença na necessidade de crescimento

econômico, mas também a tornou “socialmente receptiva” (PATO, 2012).

Em 1987, a Comissão Brundtland, a pedido da ONU, publicaria um relatório

denominado Nosso Futuro Comum, que definiria o desenvolvimento sustentável como

“aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as

gerações futuras atenderem às suas necessidades”. Para tanto, seriam necessárias certas

medidas, entre as quais a limitação do crescimento populacional, a preservação da

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biodiversidade e dos ecossistemas terrestres, o uso racional dos recursos naturais, a

reorientação do uso de tecnologias e a consideração dos aspectos ambientais nos

processos decisórios (ONU, 1987). O relatório, no entanto, como ressalta Henri Acselrad,

não promoveu qualquer ruptura estrutural em relação ao que até então se entendia por

desenvolvimento, uma vez que reafirmou por outras vias (ativando o arcabouço

conceitual oferecido pela noção de desenvolvimento sustentável) as necessidades de

crescimento econômico e de progresso técnico. Em outras palavras, a Comissão terminou

por conferir à acumulação capitalista um caráter “sustentável” – do ponto de vista

econômico e, por suposto, ambiental.

Aqui, cabe discutir a função legitimadora do que se tem denominado

economia verde. Esse termo, propalado indiscriminadamente por organismos

internacionais, organizações não-governamentais e governos nacionais, dá nome ao

conjunto de práticas econômicas que, segundo seus defensores, contribuiriam para a

materialização do desenvolvimento sustentável e, por extensão, trariam soluções para as

crises econômica, ambiental e alimentar. Segundo relatório do Programa das Nações

Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA) intitulado Rumo a uma economia verde,

publicado em 2011, economia verde é aquela “que resulta em melhoria do bem-estar da

humanidade e igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente riscos

ambientais e escassez ecológica” (PNUMA, 2011). Como destaca Fabrina Furtado,

Trata-se de um conceito ambíguo, inconsistente e pouco fundamentado,

no que diz respeito ao seu significado e às suas implicações. Por outro

lado, como conceito, incorpora valores, interesses e posicionamentos

(neste caso, em torno da apropriação da questão ambiental). Assim,

parte do conceito e práticas já existente – desenvolvimento sustentável

– e o expande, aprofundando suas proposições e consequências. Em um

contexto de mudança climática, de implementação do mercado de

carbono e em que, com o propósito de sobrepujar a última manifestação

da crise econômica, a natureza passa a ser concebida como uma

mercadoria, alguns indícios do que este conceito ambíguo, inconsis-

tente e pouco fundamentado representa já são visíveis (FURTADO,

2012)

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Segundo Larissa Packer, advogada e assessora jurídica da organização não-

governamental Terra de Direitos, os mecanismos da economia verde se sustentam na

teoria de que “a única possibilidade de garantir a preservação do meio ambiente é a

inserção dos processos ecológicos e dos bens ambientais no mercado”. Para tanto,

É fundamental que exista possibilidade de valoração monetária, para

viabilizar a comercialização e também a criação de leis que, por meio

do estabelecimento de obrigações, criem a demanda para o mercado

hoje inexistente. [...] A floresta em pé, a terra parada ou atividades e

tecnologias “pintadas de verde”, como o plantio direto – que coloca a

“agricultura de baixo carbono” como um dos maiores mercados de

pagamentos por “serviços ambientais” –, passam a gerar valor em

capital, criando um mercado lucrativo, e que autoriza a continuidade da

cadeia produtiva emissora e degradante do ambiente (PACKER, 2011).

Apesar da inconsistência do conceito, alguns mecanismos propostos pela

economia verde já se materializam. É o caso dos Pagamentos por Serviços Ambientais

(PSA), nos quais se inclui o mercado de carbono. Por meio desse mecanismo, a

purificação da água e do ar, a geração de nutrientes do solo para a agricultura, a

polinização e o fornecimento de insumos para a biotecnologia, por exemplo, tornam-se

mercadoria (PACKER, 2011). Aqui, é preciso salientar: o tão criticado novo Código

Florestal brasileiro não se propõe somente a flexibilizar dispositivos de proteção do meio

ambiente ou a garantir anistia a latifundiários perpetradores de crimes ambientais. O

documento também pretende inovar, estabelecendo um arcabouço jurídico moderno para

a regulamentação de mecanismos da chamada economia verde, entre eles os “Pagamentos

por Serviços Ambientais” (ACSELRAD, 2011).

2.1.2 – A sustentabilidade como religião

Partindo da percepção do caráter tecnicista do debate em torno da

sustentabilidade, evidenciado pelas conferências e relatórios da ONU e pela atuação de

organizações não governamentais e estados nacionais, Henri Acselrad nos alerta para a

insuficiência da discussão em torno das implicações sociais da questão ambiental.

Segundo nosso autor, olvida-se que a sustentabilidade “remete a relações entre a

sociedade e a base material de sua reprodução, ou seja, às diversas formas sociais de

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apropriação e uso dos recursos ambientais” (ACSELRAD, 2008). É preciso, portanto,

promover um esforço teórico que conduza a discussão para o campo das relações sociais,

especialmente no que se refere aos embates entre grupos com interesses antagônicos.

Caso contrário, o discurso em torno da sustentabilidade acaba por adquirir um caráter

teleológico, pautado pelos pretensos efeitos de sua aplicação e não pela observância dos

múltiplos processos sociopolíticos envolvidos (ACSELRAD, 2008).

Nesse sentido, a abordagem de matriz psicanalítica proposta pelo filósofo

esloveno Slavoj Žižek se mostra pertinente. Para esse autor, o discurso ambientalista

tende, na atualidade, a assumir um nítido conteúdo ideológico: a versão predominante da

ecologia, aquela baseada na propagação do temor às catástrofes ambientais, cumpre o

papel fundamental do discurso religioso, ou seja, o de instaurar uma autoridade

inquestionável, capaz de impor limites e de orientar as ações dos indivíduos. Assim, a

ecologia atua como uma espécie de substituta para a religião em decadência no Ocidente

e assume o papel de “novo ópio para as massas” (ŽIŽEK, 2007).

Nas trilhas de Žižek, Christy Pato sugere que o discurso ambientalista tende

a atuar como estrutura de sublimação, autorizando o indivíduo ao gozo por meio de um

questionamento superficial à catástrofe ambiental; questionamento desprovido de

qualquer oposição aos fundamentos estruturais do desastre, ou seja, à lógica da

acumulação do capital (PATO, 2012).

2.1.3 – O ambientalismo de espetáculo

Como crítica à reprodução ideológica dos conceitos ambientalistas, emerge a

noção de ambientalismo de espetáculo (ACSELRAD, 2012a e FURTADO, 2012), termo

que dá nome aos fenômenos de apropriação do discurso ambientalista pelos mecanismos

da reprodução capitalista. Tal apropriação pode se expressar, por exemplo, por meio da

utilização pela publicidade dos conceitos de “desenvolvimento sustentável” e “economia

verde”; ou através dos esforços para a despolitização da questão ambiental, que tendem a

restringir a discussão em torno do meio ambiente a imperativos de ordem técnica, sem

qualquer referência aos dilemas materiais e aos embates sociais relacionados às disputas

pelos recursos naturais do planeta.

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Para essa discussão, mostra-se incontornável a ideia marxista de ideologia.

Esta reflete, para Marx e Engels, o conjunto de crenças que se estabelecem em

consequência da reprodução ideal das relações materiais dominantes numa determinada

sociedade e que promovem o que se denomina falsa consciência; ou seja, reproduzem o

desconhecimento, por parte de um indivíduo ou classe social, de sua situação real em

relação à organização material da sociedade, acentuando-se assim as relações de

dominação. No caso do capitalismo, reforça-se a dominação da burguesia sobre o

proletariado, na medida em que a classe trabalhadora permanece inconsciente de sua

posição como classe revolucionária (MARX e ENGELS, 2007).

Nas trilhas de Marx e Engels, poderíamos afirmar que o ambientalismo de

espetáculo atua ideologicamente, impondo-se como ideia ilusória que impossibilita a

percepção e a transformação das relações sociais e materiais relativas à questão ambiental

e que, ao mesmo tempo, obscurece e legitima mecanismos de expropriação inerentes à

acumulação capitalista.

2.2 – O discurso verde da expropriação

2.2.1 – A análise do discurso

A pesquisa empírica que fornece base às observações adiante consiste,

primeiramente, na análise de reportagens publicadas no jornal Correio Braziliense,

veiculadas no período de janeiro de 2008 (data de veiculação das primeiras reportagens)

até outubro de 2012 (data da entrega dos primeiros apartamentos e anúncio da segunda

etapa de construções) por meio do website do jornal. Posteriormente, analisamos os

anúncios publicitários veiculados pelos responsáveis pelo Setor Noroeste. Pretendemos,

assim, revelar de que forma a construção do novo bairro e os conflitos socioambientais a

ele relacionados são abordados pelo jornal de maior circulação no Distrito Federal, além

de desvelar as implicações políticas e ideológicas dos conceitos ambientalistas propalados

pelos anúncios publicitários do Setor Noroeste.

Fazemos uso, como método de análise do discurso, da Análise de Discurso

Crítica (ADC), cujos pressupostos teórico-metodológicos foram estabelecidos pelo

linguista inglês Norman Fairclough. A proposta da ADC parte do princípio de que a

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linguagem deve ser compreendida segundo sua funcionalidade nas práticas sociais,

condição que se torna possível por meio da articulação entre as análises linguísticas dos

textos e as explanações de caráter social.

O discurso é entendido pela ADC como um momento irredutível da vida

social e como expressão de um modo particular de representar o mundo, que se relaciona

a interesses específicos dos sujeitos. Aqui, como no método marxista, faz-se presente o

elemento dialético, uma vez que a linguagem é considerada parte irredutível da vida social

e, inversamente, as práticas sociais são vistas como componentes da linguagem. Em

outras palavras: a linguagem se constitui socialmente, mas também tem implicações

sociais. Estabelece-se, portanto, uma relação de caráter dialético entre linguagem e

sociedade (RAMALHO e RESENDE, 2011:10-23). Em ADC, a análise do discurso é

realizada por meio de dois processos: a compreensão e a explanação. Assim,

Um texto pode ser compreendido de diferentes maneiras, uma vez que

diferentes combinações das propriedades dos texto e do posicionamento

social, conhecimento, experiências e crenças do(a) leitor(a) resultam

em diferentes compreensões. Parte da análise é, portanto, análise de

compreensões, que envolvem descrições e interpretações. A outra parte

da análise é a da explanação, que se situa na interface entre conceitos e

material empírico. Trata-se de um processo no qual propriedades de

textos particulares são “redescritas” com base em um arcabouço

particular (RAMALHO e RESENDE, 2011:108), com a finalidade de

“mostrar como o momento discursivo trabalha na prática social, do

ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e relações de

dominação” (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999 apud

RAMALHO e RESENDE, 2011:108).

Em 2009, Alan Schvarsberg defendeu, no Centro Universitário de Brasília,

monografia de conclusão de curso de graduação em Comunicação Social intitulada A

construção do bairro Setor Noroeste feita pelo Correio Braziliense (SCHVARSBERG,

2009). Nesse trabalho, o autor analisou 38 reportagens publicadas no caderno Cidades do

Correio Braziliense entre março de 2008 e março de 2009, investigando a influência da

publicidade na construção do discurso jornalístico e discutindo a representação da questão

indígena realizada pelo diário. Aqui, inspirados pela proposta seminal de Schvarsberg,

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expandimos cronologicamente a análise das reportagens do jornal, considerando as

demandas investigativas específicas de nosso trabalho.

2.2.2 – O Correio Braziliense e seus leitores

O jornal Correio Braziliense foi fundado em abril de 1960, em Brasília, por

Assis Chateubriand, proprietário do então maior conglomerado de mídia do Brasil, os

Diários Associados. Trata-se do jornal de maior circulação na região Centro-Oeste do

país, com tiragem diária média de 57 mil exemplares, o que representa 48% do mercado

do Distrito Federal e possibilita atingir, em média, 605 mil leitores, segundo dados do

próprio jornal. Além disso, o website do Correio Braziliense conta com uma média

mensal de 9 milhões de visualizações. Considerando-se nossos interesses de pesquisa, é

interessante notar que, em seu website, o grupo Diários Associados dá destaque para o

seguinte aspecto de seus leitores: “Os leitores do Correio Braziliense têm uma renda

familiar mensal de R$ 5.344,21, um considerável potencial de consumo” (grifo nosso)15.

Segundo Schvarsberg, no período analisado em sua monografia, o jornal divulgou 94

anúncios publicitários vinculados ao Setor Noroeste. De acordo com estimativas do autor,

a publicidade gerou um lucro de aproximadamente 2 milhões de reais ao Correio

Braziliense (SCHVARSBERG, 2009).

A leitura das reportagens nos permite, logo de início, observar que a

construção do bairro, apesar do conflito socioambiental dela decorrente, é tratada pelo

jornal como “fato consumado”. O conflito entre manifestantes e construtoras é abordado

de forma superficial e técnica; está geralmente circunscrito ao litígio pela posse da área

onde se localiza o Santuário dos Pajés. Dá-se destaque, inclusive nos títulos das

reportagens, para decisões judiciais favoráveis à desocupação da área: “Juiz autoriza uso

da força para garantir continuidade das obras no Noroeste” (MAIA, 2011) e para a atuação

do aparelho repressor estatal: “Mais de 300 policiais militares reforçam segurança no

Setor Noroeste” (TEMÓTEO, 2011). Em 28 de novembro de 2008, por exemplo, a capa

do jornal dava destaque à decisão do Tributal de Justiça do Distrito Federal que autorizou

a Terracap a dar início às vendas dos lotes às construtoras, e destacava o parecer da juíza

15 Dados disponíveis em: <http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=25>.

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Gildete Balieiro, da Vara de Registros Públicos. A magistrada concluía que a presença

dos indígenas na região constituía “simples invasão de terras públicas” (cf. figura 8, em

anexo).

Os apoiadores da permanência do Santuário dos Pajés são denominados, de

forma genérica, como “manifestantes” ou “estudantes”; não há, na maioria dos textos

analisados, qualquer referência à existência de um movimento social organizado contra a

construção do bairro. Da mesma maneira, não se percebe qualquer esforço nas

reportagens e textos de opinião em se discutir o caráter tradicional da presença indígena

na região; os índios do Santuário, em geral, são retratados como meros “ocupantes”, ou

mesmo “invasores” (cf. figura 9, em anexo), da área destinada à construção do Setor

Noroeste.

A questão ambiental, por sua vez, é delimitada como um conjunto de

transtornos de ordem técnica a serem contornados pela atuação dos responsáveis pela

obra (poder público e iniciativa privada). A reportagem intitulada “Obras estão livres do

embargo. Por enquanto”, publicada no dia 1º de maio de 2010, é ilustrativa. O texto se

inicia com frases tranquilizadoras: “As obras de construção do Setor Noroeste seguirão

a todo vapor. A ameaça de paralisação da instalação do canteiro de obras terminou na

quinta-feira” (grifo nosso) e, em tom festivo, anuncia:

A Terracap estava pronta para se pronunciar e, se necessário, recorrer

ao Tribunal de Justiça do DF caso a decisão fosse favorável à

paralisação. Nader Franco, chefe da assessoria jurídica da estatal,

comemorou a sentença. “O juiz foi muito sensível. A Terracap tem

cumprido todos os pré-requisitos, tanto urbanísticos quanto ambientais.

Até assinamos um termo de ajustamento de conduta com o Ministério

Público”, disse (grifo nosso) (SAKKIS e MADER, 2010).

É interessante notar que várias reportagens, em geral aquelas que tratam dos

conflitos entre manifestantes e construtoras ou que relatam os possíveis atrasos na

construção do bairro, são acompanhadas de notas de rodapé escritas em tom conciliador,

sustentado por uma linguagem muito próxima à adotada em anúncios publicitários. A

seguir, um exemplo de uma destas notas, publicada em reportagem do dia 22 de junho de

2012, na qual se anunciava a aprovação, pelo Conselho de Planejamento Territorial e

Urbano do Distrito Federal (Conplan), da segunda etapa das obras do Setor Noroeste:

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O Noroeste localiza-se no final da Asa Norte, e será construído em duas

etapas. A primeira delas começou em 2009 e a segunda que começará

este ano. Ao todo, o setor terá 15 mil unidades habitacionais, espalhadas

por 220 prédios, com capacidade para abrigar cerca de 40 mil pessoas.

O Noroeste é considerado o primeiro bairro verde de Brasília e foi

idealizado em 1987 pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa (grifo

nosso) (CORREIO BRAZILIENSE, 2012).

Em reportagem do dia 25 de setembro de 2009, o jornal anunciou o resultado

inicial de vendas do Setor Noroeste. Em tom de comemoração, a notícia se intitula

“Primeiro lançamento imobiliário do Noroeste vende 92% dos apartamentos em apenas

três dias”. Logo no primeiro parágrafo, informa-se que “[...] até o fechamento desta

edição, os seis imóveis restantes estavam reservados e faltava apenas a conclusão do

negócio” e, em seguida, que “[...] os corretores entraram em contato com os interessados

que haviam se cadastrado e, logo depois, foi registrada uma corrida aos pontos de venda”.

Na mesma reportagem, o jornal entrevista “o primeiro comprador do Setor Noroeste”, um

economista de 50 anos de idade. O “feliz proprietário” justifica sua compra com o

seguinte argumento: “Esse conceito ecológico do Noroeste vai ser o grande diferencial.

Eu já estava no cadastro de reserva e, assim que me ligaram, decidi fechar o negócio”.

Mais um depoimento, desta vez de um administrador de empresas de 39 anos, atesta a

efetividade da campanha publicitária promovida pelos investidores: “Meu grande sonho

de consumo é comprar uma cobertura no Noroeste. Como ainda não tenho capital para

isso, decidi começar com um apartamento de três quartos”. Ao finalizar a reportagem, o

Correio Braziliense procura reforçar o caráter “ecológico” do bairro com as seguintes

ponderações: “Para ganhar alvará, a empresa tem que desenvolver um projeto de acordo

com o conceito ecológico do novo bairro. Os edifícios têm sistemas modernos de captação

de luz solar e recolhimento de lixo a vácuo” (MADER, 2009).

A reportagem publicada no dia 21 de setembro de 2012, com o título

“Primeiro prédio do Noroeste será inaugurado em 15 dias”, é especialmente elucidativa

da confluência discursiva entre os textos jornalístico e publicitário. O lead, texto curto

introdutório à notícia, anunciava em linguagem tipicamente publicitária, em

complemento ao título: “Outros nove serão entregues até o fim do ano. Obras de

infraestrutura ainda estão em andamento, mas o bairro já mudou a cara da região norte

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do Plano Piloto.” (grifo nosso). Na mesma reportagem, o jornal entrevista um gerente de

projetos da Terracap e destaca o bom andamento das obras de infraestrutura:

“Queremos terminar as obras básicas de infraestrutura antes do período

de chuvas. Em dezembro, só o sistema de drenagem não estará

concluído”, afirma Albatênio Granja, gerente de projetos do Noroeste

da Terracap. Os novos apartamentos já possuem luz elétrica e água

encanada, e a iluminação pública começou a ser instalada esta semana

pela Companhia Energética de Brasília (CEB) (FURQUIM, 2012).

No website do Correio Braziliense há, ao final de cada reportagem, um espaço

para comentários dos leitores. A análise desses textos nos parece interessante, uma vez

que revelam em que medida as opiniões dos leitores a respeito de certos temas refletem o

posicionamento do jornal. É possível perceber, em alguns casos, que o texto jornalístico

tende a orientar ou reforçar o posicionamento da opinião pública, como sugerem os textos

a seguir.

No dia 8 de novembro de 2012, o jornal informa que “O juiz plantonista do

Tribunal Regional Federal da 1ª Região José Márcio da Silveira e Silva autorizou a Polícia

Militar a usar da força e prender qualquer pessoa que impeça o andamento das obras no

Setor Noroeste” (MAIA, 2011). No “espaço do leitor”, comenta-se:

Esse movimento está tão desprovido de razão que ninguém da

população apoiou. Aliás, muito pelo contrário: 95% da população de

Brasília está contra esses índios oportunistas e essa meia-dúzia de

manifestantes ignorantes (MAIA, 2011).

Em resposta à reportagem do dia 10 de novembro de 2011, que também

destaca a atuação da Polícia Militar do DF (segundo o Correio Braziliense, para “garantir

a segurança na continuidade das obras no Setor Noroeste”), uma leitora do jornal

comentou:

A PM-DF está de parabéns! Até que enfim planejou e está executando

uma operação exemplar para garantir a paz e a ordem no DF. As obras

no Noroeste garantem empregos, renda e trabalho para milhares de

pessoas, beneficiando toda a coletividade. Parabéns, PM-DF! (grifo

nosso) (TEMÓTEO, 2011).

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No dia 2 de fevereiro de 2012, o jornal publicou reportagem anunciando o

acordo realizado entre duas das etnias que habitavam o Santuário dos Pajés e a Terracap

(MACHADO e TOLENTINO, 2012). Segundo o acordo, as famílias das etnias Kariri-

xocó e Tuxá concordavam em se transferir a um terreno de 12 hectares, que seria doado

pelo governo do Distrito Federal à União. Revoltado com a situação, um dos leitores

comentou: “É impressionante o que ocorre em Brasília. Um bando de meliantes, invasores

de terra pública, botam a população ordeira da cidade de joelhos” (grifo nosso)

(MACHADO e TOLENTINO, 2012). Outro leitor, aparentemente indignado com a

permissividade do Estado em relação aos indígenas, escreveu o seguinte:

Os índios da Asa Norte bagunçaram, serviram de divertimento para

"estudantes" em férias e agora fica claro que a reinvindicação era

estapafúrdia, mas acabaram levando uma "terrinha". Aqui é assim, cria

uma confusão, o GDF, "bonzinho", doa parte do território para os

desordeiros (grifo nosso) (MACHADO e TOLENTINO, 2012).

Publicou-se, no dia 21 de setembro de 2012, notícia em que o jornal anunciava

a inauguração iminente do primeiro edifício do Setor Noroeste (FURQUIM, 2012). Um

leitor, que se dizia proprietário de apartamento no bairro, comentou a respeito:

Noroeste vai ser o melhor bairro do Brasil e um dos melhores do

mundo. Comprei uma cobertura lá e recomendo que quem tenha

condições compre também, pois terá a melhor qualidade de vida de

Brasília. Noroeste, rumo ao futuro (grifo nosso) (FURQUIM, 2012).

A leitura dos comentários às notícias nos revela que os indígenas são vistos

por grande parte dos leitores do Correio Braziliense como entraves passíveis de remoção;

como obstáculos ao “progresso”. Este, em oposição à ideia de atraso associada à

comunidade indígena, está vinculado à perspectiva do futuro; à imagem das edificações

urbanas de “alto padrão” a serem erguidas sobre o território do Santuário.

2.2.3 – A publicidade

Nesse momento, passamos à análise dos anúncios publicitários relacionados

ao Setor Noroeste, a fim de perceber em que medida, segundo nossa hipótese, o discurso

ambientalista é, nesse caso, utilizado como instrumento ideológico capaz de agregar valor

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de mercado ao empreendimento imobiliário e, ao mesmo tempo, revesti-lo de um caráter

eticamente determinado, em nome da “sustentabilidade”.

Desde seu lançamento, o bairro, oficialmente denominado Setor de

Habitações Coletivas Noroeste (SHCNW), vem sendo chamado por seus anunciantes de

“Noroeste Ecovila”. O termo ecovila designa um modelo de assentamento humano

“alternativo”, baseado nos pressupostos do desenvolvimento sustentável e da economia

verde. Jonathan Dawson, ex-presidente da Global Ecovillage Network (GEN),

organização que orienta a prática dessa modalidade de assentamento humano, as ecovilas

devem possuir as seguintes características: projetos independentes de financiamentos

governamentais; valores comunitários sólidos; produção e processamento local de

alimentos orgânicos; utilização da permacultura, de construções ecológicas e de sistemas

de transporte de baixo impacto ambiental; promover a cultura pacifista e a educação

“holística” do indivíduo; aprender a partir do diálogo com comunidades tradicionais

(DAWSON, 2006).

Na prática, as ecovilas se restringem, em sua maioria, a pequenas

“comunidades alternativas” localizadas em regiões bucólicas de países ricos ou em áreas

abastadas de países em desenvolvimento. Limitações de ordem técnica e alto custo de

implantação tornam bastante improvável sua aplicabilidade a áreas urbanas de grande

concentração populacional, como é o caso de Brasília. O fato é que os impactos

socioambientais e culturais relacionados à construção do Setor Noroeste parecem não

colaborar para sua adequação aos critérios de “sustentabilidade” pregados pelos

idealizadores das ecovilas. A figura 10, em anexo, ilustra essa contradição: o novo bairro

(que, em sua condição de “ecovila”, deveria produzir seus próprios alimentos orgânicos,

fazer uso de meios de transporte de baixo impacto ambiental, dialogar com comunidades

tradicionais, etc.), utiliza como chamariz publicitário o fato de estar localizado próximo

a shopping centers, supermercados e postos de gasolina.

O discurso em torno da “sustentabilidade” na publicidade do Setor Noroeste

(Noroeste Ecovila, como querem os anunciantes), parece pretender ressaltar a ideia de

que o eventual morador do bairro não estaria simplesmente usufruindo da natureza ou

gozando do bem-estar proporcionado pelo privilégio de se viver num “bairro verde”; o

proprietário estaria, ao mesmo tempo, cumprindo uma espécie de dever ético. Não se

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trataria somente de uma moradia (ou de uma fonte de especulação); adquirir um imóvel

naquele bairro seria, antes, um ato de responsabilidade ambiental e de consciência social.

Aqui, o discurso ambientalista parece atuar, em alinhamento ao que sugerem as análises

de Slavoj Žižek e Christy Pato, como instrumento de redenção para a ação egóica do

indivíduo: o futuro proprietário será capaz de sublimar, de imediato, qualquer eventual –

ainda que improvável – questionamento de ordem ética a respeito, por exemplo, da

devastação do cerrado ou da expulsão de famílias indígenas ocasionados pela construção

do Setor Noroeste; ao mesmo tempo em que se garante numa posição de gozo proveniente

do cumprimento de um suposto imperativo moral. Em Economia política do

desenvolvimento sustentável, Christy Pato elucida o processo:

O conteúdo ideacional presente no sentimento oceânico, que dá o tom

também da ascese religiosa, apresenta-se na figura da ecologia como a

mesma pulsão de unidade com o universo. O sistema mundial produtor

de mercadorias, claro está, só pode manter-se pela reificação da mão

invisível, pela assunção, portanto, de um sujeito em cuja ação movida

por interesses individuais repousam consequências benéficas para

todos. A consciência ecológica elevada à condição de imperativo

categórico nos remete, portanto, à posição de gozo de uma recuperação

de nosso vínculo íntimo com o mundo. Internalizado, assim, um sentido

e um conteúdo moral da ação meramente egóica, o padeiro smithiano

emerge, renovado (PATO, 2012).

Slavoj Žižek observa fenômeno análogo na vertente da caridade corporativa

que se ocupa da disseminação do chamado consumo responsável: o consumidor não

somente compra uma mercadoria – uma xícara de café orgânico da rede multinacional

Starbucks, por exemplo –, mas realiza, simultaneamente, uma boa ação. Afinal, parte do

lucro proveniente da venda do produto será revertido a causas humanitárias em países

pobres. Tal instrumento, como sarcasticamente sugere Žižek, torna mais “simples” a vida

do consumidor, pois o ato altruísta do indivíduo já está, por assim dizer, “incluído” no

preço do produto (ŽIŽEK, 2011). Por essa via ideológica, o consumo, além de não ser

questionado, é anunciado como solução ética para os “efeitos colaterais” do capitalismo.

A caridade corporativa reproduz, portanto, a mesma lógica observada na apropriação do

discurso ambientalista em nosso estudo de caso. Nesse sentido, o filósofo francês Alain

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Badiou se posicionou, em entrevista recente, da seguinte maneira a respeito do emprego

do ecologismo como instrumento de “humanização” do capitalismo:

Trata-se de um velho debate (“um capitalismo regulado, normatizado,

humanizado, não seria possível?”) que acaba por negar o próprio

fundamento do capitalismo. Se o capitalismo é feroz e cruel, não o é

porque seja “malvado”. Essa é a sua natureza. Não é possível imaginar

que algo que funcione sob a norma absoluta da maximização dos lucros

esteja preocupado com o bem-estar da humanidade. Se ser verde

significar pintar-se de verde, não há dúvida: o capitalismo se pintará de

verde (tradução nossa) (BADIOU, 2012).

No anúncio reproduzido na figura 11, em anexo, pode-se notar, mais uma

vez, a atuação ideológica do discurso ambientalista como mecanismo de valorização

financeira do empreendimento imobiliário. Apesar da devastação do cerrado nativo e dos

riscos ambientais decorrentes da construção do bairro, o discurso publicitário é construído

a fim de sugerir que a natureza (ainda que suprimida pela atuação das empreiteiras), atue

como chamariz e seja apresentada, como diriam os publicitários em seu ignóbil jargão,

na condição de “diferencial” do empreendimento. É o que podemos percebemos a partir

da leitura do slogan do anúncio em questão: “Noroeste: diferente por natureza”.

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Capítulo 3 – A luta

3.1 – Urbanização e conflitos socioambientais

3.1.1 – Delimitação teórica

Estudiosos da questão ambiental têm recorrido ao termo ambientalização seja

para se referir ao processo de adoção de um discurso ambientalista por determinado grupo

social, seja para designar o fenômeno de incorporação de justificativas ambientais como

forma de legitimação de práticas institucionais, políticas, científicas, etc. (ACSELRAD,

2010). Segundo Acselrad, é essencial discutir tais mecanismos de apropriação do discurso

ambientalista pelos grupos sociais, pois

É por meio desses processos que novos fenômenos vão sendo

construídos e expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos

são renomeados como “ambientais”, e um esforço de unificação

engloba-os sob a chancela da “proteção ao meio ambiente”. [...] Nessas

disputas em que diferentes atores sociais ambientalizam seus discursos,

ações coletivas são esboçadas na constituição de conflitos sociais

incidentes sobre esses novos objetos, seja questionando os padrões

técnicos de apropriação do território e seus recursos, seja contestando a

distribuição de poder sobre eles (ACSELRAD, 2010).

Nesse sentido, a noção de desigualdade ambiental reflete a percepção de que

os riscos ambientais impactam em graus distintos os diferentes grupos sociais; os quais,

por sua vez, atuam de acordo com repertórios específicos em relação à apropriação e uso

dos recursos naturais e das bases materiais da sociedade. Essa preocupação com os

fundamentos estruturais dos conflitos socioambientais é justamente o que move a

perspectiva analítica da Ecologia Política, sobre a qual nos apoiamos neste trabalho para

a discussão do conflito relacionado à construção do Setor Noroeste.

Ainda seguindo tal perspectiva, chegamos ao conceito de racismo ambiental.

Essa ideia tem sua origem nos Estados Unidos, na década de 1970, mais especificamente

a partir da percepção de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos do Condado de

Warren, na Carolina do Norte, localizavam-se em bairros habitados majoritariamente por

negros (PACHECO, 2007). O conceito reflete, portanto, o fato de que os riscos ambientais

recaem com maior intensidade sobre determinados grupos étnicos, como é o caso, por

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exemplo, dos negros da Carolina do Norte ou, em nosso estudo, dos índios do Santuário

dos Pajés.

Em diálogo com a Ecologia Política, o economista catalão Joan Martínez-

Alier propõe o conceito de ecologismo dos pobres para dar nome à confluência de lutas

de movimentos socioambientais que não se alinham às vertentes ecologistas

hegemônicas, as quais ignoram justamente a existência dos fenômenos de desigualdade e

de racismo ambiental; ou seja, desconsideram a estrutura de distribuição dos recursos

naturais e riscos ambientais.

A primeira corrente questionada por Martínez-Alier é a do culto à vida

silvestre, que consiste, em linhas gerais, na “defesa da natureza intocada, no amor aos

bosques primários e aos cursos d’água” (MARTÍNEZ-ALIER, 2007:22). Esse tipo de

ecologismo essencialmente preservacionista, cuja base científica se estabeleceu com o

desenvolvimento da biologia da conservação, nos anos 1960, tem origem no século XIX,

nos Estados Unidos, com os trabalhos dos naturalistas John Muir e Aldo Leopold e com

a fundação da organização preservacionista Sierra Club. Essa doutrina ambientalista,

segundo Martínez-Alier, ainda hoje é bastante atuante e serve, em maior ou menor

medida, como sustentação teórica para importantes organizações internacionais, como a

International Union for the Conservation of Nature (IUCN), o Worldwide Fund for

Nature (WWF) e a Nature Conservancy.

A segunda corrente ecologista questionada por Martínez-Alier é a chamada

de evangelho da ecoeficiência. Em aparente oposição ao “culto ao silvestre”, a vertente

da ecoeficiência se mostra preocupada com os efeitos ambientais do crescimento

econômico: “sua atenção está direcionada para os impactos ambientais ou riscos à saúde

decorrentes das atividades industriais, da urbanização e também da agricultura moderna”

(MARTÍNEZ-ALIER, 2007:26). A ecoeficiência, apesar de defender a necessidade de

crescimento econômico, sustenta-se em conceitos como desenvolvimento sustentável,

modernização ecológica e utilização racional dos recursos naturais; assim, fala-se mais

no manejo adequado e uso eficiente dos “recursos naturais” (ou do “capital natural”) do

que propriamente na “preservação da natureza”. Segundo Martínez-Alier, o credo no

evangelho da ecoeficiência domina os debates ambientais, tanto sociais quanto políticos,

na Europa e nos Estados Unidos. Essa vertente de pensamento ambientalista fornece a

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sustentação teórica, por exemplo, para os mecanismos econômicos (ecoimpostos,

mercado de carbono, etc.) da chamada economia verde. Nesse sentido, o evangelho da

ecoeficiência atua como um vínculo entre as corporações e o “desenvolvimento

sustentável”, e converte a ecologia numa “ciência gerencial para limpar ou remediar a

degradação causada pela industrialização” (VISVANATHAN, 1997 apud MARTÍNEZ-

ALIER, 2007:28).

Martínez-Alier argumenta que as duas vertentes ecologistas discutidas (o

“culto ao silvestre” e o “evangelho da ecoeficiência”) são, ainda hoje, hegemônicas e,

Seja qual for a corrente que detém a primazia, as duas vertentes do

ambientalismo convivem atualmente em simultaneidade,

entrecruzando-se às vezes. Nesse sentido, observamos que se a procura

utilitarista da eficiência no manejo florestal poderia confrontar-se com

os direitos dos animais, num sentido oposto os mercados reais ou

fictícios de recursos genéricos ou de paisagens naturais, poderiam ser

entendidos como instrumentos eficientes visando à sua preservação.

[...] Às vezes, aqueles cujo interesse pelo meio ambiente associa-se

exclusivamente à esfera da preservação da vida selvagem exageram

sobre a suposta facilidade com que se poderia desmaterializar a

economia, terminando em se converterem em apóstolos oportunistas do

evangelho da ecoeficiência. Por quê? Porque ao afirmar que as

mudanças tecnológicas tornarão compatível a produção de vens com a

sustentabilidade ecológica, enfatizam a preservação daquela parte da

natureza que, ainda, se mantivera fora da economia. Nessa perspectiva,

o “culto ao silvestre” e o “credo da ecoeficiência” dormem juntos

(MARTÍNEZ-ALIER, 2007:32-33).

Nesse contexto, Henri Acselrad nos alerta para a consolidação, no Brasil, de

um ambientalismo consensualista legitimado por acadêmicos e especialistas que se

esforçam para forjar uma interpretação da causa ambiental baseada num “pragmatismo

tecnicista e paliativo” de caráter “universalista e supraclassista”, em substituição ao

ambientalismo contestatário. Os representantes do ambientalismo consensualista,

tecnicamente denominado multissetorial, argumentam que o movimento ambientalista

não comportaria distinções ou embates de caráter classista e seria, antes, o resultado de

um “consenso de múltiplos segmentos da sociedade” em torno de uma visão de mundo

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ambientalista, ou seja, “consciente” e “preocupada” com a degradação do meio ambiente

(ACSELRAD, 2012). Segundo Samyra Crespo, “especialista” citada por Acselrad,

Os agentes do ambientalismo seriam, potencialmente, todos os cidadãos

do planeta, todos aqueles que se sensibilizam e que de alguma forma

adquirem uma ‘consciência’ em relação à crise ambiental e à

necessidade de reverter o processo de devastação da biosfera. [...] O

nosso conflito principal está se dando entre o homem e a natureza e

não entre os homens (grifo nosso) (CRESPO, 1995 apud ACSELRAD,

2012b).

O ambientalismo é visto, portanto, como resultado de um consenso em torno

de “preocupações” comuns relativas aos problemas ambientais, os quais seriam passíveis

de resolução por meio de um tratamento tecnicamente adequado; não há espaço para a

discussão dos conflitos sociais e das contradições materiais inerentes à questão ambiental.

Para Acselrad, “o que se está a recusar aqui é que se questione a legitimidade da ação

política em nome do imperativo da cooperação consensualista” (ACSELRAD, 2012b).

Em oposição à convivência harmoniosa e acrítica das correntes hegemônicas

do pensamento ambientalista, fundamentadas no ecologismo de resultados, Martínez-

Alier nos apresenta a vertente do ecologismo dos pobres (também chamado, por alguns

autores, de ecologismo popular, ecologismo de combate ou de movimento pela justiça

ambiental). O ecologismo dos pobres dá nome, portanto, ao conjunto de repertórios

discursivos e práticos dos movimentos socioambientais empenhados nas lutas contra a

injustiça ambiental fomentada por fenômenos como a desigualdade e o racismo

ambientais. Na atualidade, essa perspectiva se fortalece, inevitavelmente, em decorrência

da multiplicação e do acirramento dos conflitos ecológicos distributivos em todo o

mundo. O movimento social “O Santuário não se move!”, analisado em nosso trabalho,

insere-se nesse contexto de lutas pela afirmação da justiça ambiental.

3.1.2 – Conflitos socioambientais e meio urbano

Em O ecologismo dos pobres, Martínez-Alier argumenta que o aumento da

população urbana mundial no último século tende a fazer com que as economias

dependam, cada vez mais, de maiores quantidades de energia e de materiais per capita.

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O incremento da produtividade agrícola e a expulsão da população ativa do campo para

as cidades têm como consequência direta a intensificação dos processos de urbanização.

Estes, por sua vez, tendem a multiplicar e a deslocar os problemas ambientais para uma

escala espacial cada vez mais extensa, pois os territórios das cidades abrigam, em geral,

populações demasiado grandes para se auto-sustentar (MARTÍNEZ-ALIER, 2007:211-

212). A multiplicação dos conflitos socioambientais torna-se, nesse contexto, inevitável.

No caso brasileiro, Andréa Zhouri nos lembra que a histórica concentração

de terras no meio rural e a imposição do agronegócio baseado na monocultura e na

mecanização são responsáveis por acentuar os movimentos migratórios compulsórios do

campo para a cidade, além de provocar a destruição de ecossistemas como o cerrado e a

floresta amazônica. As famílias expulsas do campo se veem obrigadas a instalar-se em

regiões marginalizadas das cidades, o que acentua o fenômeno da desigualdade ambiental

nos meios urbanos. Zhouri destaca algumas consequências desse tipo de ocupação do

território, que tende a se replicar nas metrópoles brasileiras na medida em que se

intensificam os processos de urbanização:

Tendo como referencial o acesso aos recursos e ao território (este último

enquanto locus privilegiado da memória e da identidade) e o

direcionamento dos riscos urbanos, por exemplo, as investigações

empíricas não deixam dúvidas sobre quem são as vítimas do

desenvolvimento ou da modernização conservadora. A poluição incide

muito mais sobre as camadas de baixa renda, que não têm tratamento

sanitário apropriado em sua maioria, não têm acesso aos bens e serviços

urbanos e em geral ocupam áreas de risco, áreas contaminadas, etc. São

os pobres que moram em áreas industriais e recebem a poluição direta,

a contaminação por metais pesados e outros. São os pobres os que mais

sofrem com as enchentes, pois habitam áreas de risco pela segregação

socioespacial urbana (ZHOURI, 2007).

À luz do ecologismo dos pobres, a autora argumenta que são aqueles mesmos

sujeitos, as vítimas da modernização conservadora e da segregação sócio-espacial, os

responsáveis por promover a politização da questão ambiental nas cidades, na medida em

que lutam pelo acesso aos serviços urbanos e pela igualdade na distribuição dos recursos

naturais (ZHOURI, 2007). Nesse sentido, Henri Acselrad afirma que

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Muitos movimentos sociais construíram, a seu modo, [...] aquilo que

constitui a dimensão ambiental específica às suas lutas, convergindo na

denúncia da desigualdade ambiental própria a um modelo de

desenvolvimento que baseia-se na expropriação das condições de

existência de trabalhadores urbanos, grupos camponeses, povos e

comunidades tradicionais (grifo nosso) (ACSELRAD, 2012b).

Os movimentos socioambientais emergem, portanto, da percepção de uma

situação de desigualdade ambiental e se constituem na medida em que um grupo de

pessoas se organiza na luta contra as injustiças ambientais. Em contextos urbanos, tais

movimentos sociais adquirem características próprias, pois se mobilizam não só pela

justiça ambiental, mas também pelo direito à cidade; ou seja, pelo direito “à vida urbana,

à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos

do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais” (LEFEBVRE,

2008:139). Como argumenta David Harvey, reivindicar o direito à cidade significa, em

linhas gerais, lutar pelo controle dos processos que determinam a produção e a expansão

das cidades (HARVEY, 2008). Sustentamos que tal luta deve ser necessariamente

orientada pelo questionamento dos mecanismos próprios da urbanização capitalista. A

formulação de modelos alternativos de urbanização depende desse enfrentamento.

3.2 – Notas sobre a conjuntura e a resistência

3.2.1 – A exceção

Como procuramos demonstrar nos dois primeiros capítulos deste trabalho, a

porosidade do governo em relação aos interesses privados, a inação de órgãos

governamentais, a maleabilidade da Justiça e a utilização ideológica de conceitos

ambientalistas são fatores que autorizaram ao Estado e aos empresários do setor

imobiliário de Brasília a utilização da intimidação, da corrupção e da violência como

mecanismos de espoliação da população indígena e do meio ambiente, configurando-se

assim o dispositivo que denominamos urbanização por expropriação.

A transição da administração distrital do governo Arruda (DEM) ao governo

Agnelo (PT) não significou uma mudança de abordagem da administração pública em

relação às questões socioambientais implicadas na construção do Setor Noroeste. O

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governo petista, cuja campanha eleitoral foi, em parte, financiada16 por empresas ligadas

à construção civil e ao projeto Noroeste, continuou a oferecer suporte logístico para a

atuação das empreiteiras, inclusive em ações conjuntas com seguranças privados,

desrespeitando-se o embargo temporário das obras determinado pela Justiça.

No entanto, o posicionamento do governo distrital do petista Agnelo Queiroz

em relação à questão indígena do Santuário dos Pajés, bem como a precarização

generalizada dos direitos indígenas durante os governos Lula da Silva (PT) e Dilma

Rousseff (PT), devem ser entendidos considerando-se não só o jogo político-eleitoral

regional, mas também a conjuntura política que se estabeleceu a partir da execução dos

grandes projetos de infraestrutura conduzidos pelo governo federal em todo o país. Além

de causarem impactos ambientais expressivos, alguns dos projetos relacionados ao

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e às obras para os grandes eventos

esportivos de 2014 e 2016 afetam terras tradicionalmente habitadas por populações

indígenas. As reações à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, ou o

caso recente da aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, são expressões do conflito de

interesses existente entre o governo federal (cujos recursos são, via de regra, aplicados

segundo a orientação de lobbies de agentes privados) e as comunidades indígenas afetadas

pelas obras.

Um informe publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em

janeiro de 2013, evidencia que a inação da FUNAI em relação à demarcação da terra

indígena pertencente ao Santuário dos Pajés não é um caso isolado. Atualmente, no Brasil,

339 comunidades indígenas esperam pelo reconhecimento oficial de suas terras; em 2012,

apenas 7 terras indígenas foram homologadas pelo governo federal. Segundo o mesmo

informe, a taxa de execução do orçamento indigenista foi de apenas 71,37%, sendo que

somente 37,66% da verba destinada especificamente à “delimitação, demarcação e

regularização das terras indígenas” foram utilizados (CIMI, 2013).

16 A Emplavi, uma das empreiteiras detentoras dos direitos de construção na área do Santuário, está entre

as maiores doadoras da campanha de Agnelo Queiroz (PT) ao governo do DF. A empresa doou, no dia

27/10/10, R$150.880,00 aos cofres do Partido dos Trabalhadores (conferir prestação de contas do

candidato, disponível em: <http://spce2010.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2010>.

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Ainda no âmbito de atuação do governo federal, cabe destacar a publicação,

pela Advocacia-Geral da União (AGU), em 16 de julho de 2012, da Portaria nº 303, que

estende a todas as comunidades indígenas do país as condicionantes impostas por decisão

do Supremo Tribunal Federal (STF) à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do

Sol, em Roraima. Segundo posicionamento do CIMI, a efetivação da portaria traria

grandes prejuízos para a afirmação dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Entre

outras consequências, o documento permite que terras indígenas sejam ocupadas por

unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos

hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades

indígenas; além de limitar e relativizar o direito dos povos indígenas sobre o usufruto das

riquezas naturais existentes em suas terras (CIMI, 2012).

Para a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a portaria tem como

objetivo homogeneizar, de forma arbitrária, decisões relacionadas a questões complexas,

que deveriam ser tratadas segundo suas singularidades, com atenção às múltiplas

interpretações antropológicas e jurídicas delas derivadas (ABA, 2012). Como destaca a

nota publicada pelo CIMI, a portaria tem teor inconstitucional, uma vez que o Advogado

Geral da União não tem poderes para promulgar leis que afetem os povos indígenas, o

que, segundo a Constituição Federal, compete ao Congresso Nacional. Além disso, o

documento impõe condicionantes para o usufruto exclusivo pelos povos indígenas das

riquezas naturais existentes em suas terras, em visível desrespeito ao artigo 231 da

Constituição Federal (CIMI, 2012).

Percebe-se, tanto no caso do Santuário dos Pajés, quanto no âmbito dos

grandes projetos do governo federal, a utilização indiscriminada de instrumentos jurídicos

ad hoc, com o objetivo de flexibilizar a aplicação dos direitos indígenas e, ao mesmo

tempo, retirar qualquer entrave jurídico à continuidade das obras. Assim, cria-se uma

espécie de exceção em relação às normas constitucionais que deveriam garantir os direitos

dos povos indígenas. No dia 18 de julho de 2012, em nota de repúdio à Portaria nº 303 e

às políticas indigenistas do governo federal, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

(APIB), declarou:

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil manifesta publicamente o

seu total repúdio a esta outra medida autoritária do Governo Dilma, que,

como o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, considera os povos e

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territórios indígenas ameaças e empecilhos a seu programa

neodesenvolvimentista, principalmente à implantação do PAC e do

PAC 2 [...]. Este tratamento dado aos povos indígenas não tem

cabimento num Estado democrático de direito, a não ser num estado de

exceção ou num regime ditatorial, cujas políticas e práticas a atual

presidente da República e seus mais próximos assessores conhecem

bem (grifo nosso) (APIB, 2012).

Considerando o teor do depoimento da APIB, nos parece pertinente, nesse

momento, a discussão de Giorgio Agamben acerca da curiosa ocorrência, nos Estados

contemporâneos ditos democráticos, de práticas de governo totalitárias:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a

instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal

que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas

também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão,

pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação

voluntária de um estado de emergência [exceção] permanente (ainda

que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma

das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos

chamados democráticos (grifo nosso) (AGAMBEN, 2004:13).

No que diz respeito às comunidades indígenas brasileiras, podemos afirmar

que a explícita suspensão de garantias constitucionais (tecnicamente, nos termos do artigo

138 da Constituição Federal de 1988, o decreto do estado de sítio17) seria, atualmente,

desnecessária. O já discutido posicionamento da FUNAI de que os preceitos do artigo

231 da Constituição Federal não se aplicariam a terras urbanas é um exemplo prático de

formulação de instrumento jurídico ad hoc. Percebe-se, quando tratamos da situação dos

povos indígenas no Brasil, que o estado de exceção se configura como técnica de

dominação e de eliminação física permanente dessas populações.

17 Transcrevemos, a seguir, o artigo 138 da “Constituição cidadã”: “O decreto do estado de sítio indicará

sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e,

depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas

abrangidas”

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Aqui, cabe o posicionamento, em entrevista a nós concedida, do professor

Jorge Eremites de Oliveira a respeito da atuação da FUNAI no reconhecimento e proteção

de terras tradicionais indígenas no Brasil:

Minha avaliação acerca desse assunto parte, sobretudo, das

experiências acumuladas em Mato Grosso do Sul, onde trabalho como

professor universitário desde 1996, embora tenha conhecido a realidade

de comunidades indígenas em outros estados da Federação. Neste

sentido, tenho a dizer que a FUNAI é um órgão do Estado Brasileiro e,

como tal, não consegue cumprir o seu papel no que se refere à proteção

de terras indígenas já homologadas. Tampouco o consegue fazer no

que diz respeito à identificação, delimitação e demarcação de terras

indígenas ainda não homologadas no âmbito do Judiciário. Exemplo

disso seria a dificuldade em proteger dezenas de terras indígenas contra

a ação de garimpeiros, madeireiros e extrativistas na Amazônia Legal.

Outro exemplo seria a demora em mais de meio século na regularização

de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades Guarani, Kaiowá

e Terena em Mato Grosso do Sul. Mas esta discussão é bastante

complexa, haja vista a ação da bancada ruralista nos poderes

constituídos na República, como ocorre no Congresso Nacional,

apenas para citar um exemplo. Soma-se a isso o fato de o atual governo

federal ter feito muito pouco, ou praticamente nada, para reverter o

quadro. Enquanto o assunto não for tratado como prioridade de

Estado, muito pouco terá sido feito. E o pouco feito somente existirá

graças à pressão dos movimentos indígenas. Digo isso porque a FUNAI

e os governos em geral são como feijão – como me disseram em 2012

alguns Xokleng de Santa Catarina –, ou seja, só amolecem na pressão

(grifo nosso) (OLIVEIRA, 2013).

A recente revisão do Código Florestal tem, na questão ambiental, implicações

análogas àquelas da Portaria nº 303 em relação à questão indígena. Criam-se, com o novo

documento, normas ad hoc que flexibilizam a legislação, desfazendo-se, um a um, como

demonstra Henri Acselrad, os poucos dispositivos que até então impunham limites à

devastação do meio ambiente:

A proposta de alteração do Código Florestal do chamado “Relatório

Aldo Rebelo” pretende anistiar os desmatamentos ilegais realizados em

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Áreas de Proteção Permanente até 2008; diminuir a proteção aos rios e

topos de morro; reduzir a área destinada a ser mantida em reserva legal

em todo o país; permitir a compensação da área de reserva legal em

lugares remotos sem a necessidade de se observar nenhum critério

ambiental e possibilitar que municípios autorizem desmatamento [...]

Leis e normas ambientais que pressupõem, tal como na Constituição de

1988, “o meio ambiente como bem de uso comum do povo”, são, via

de regra, apresentadas como entraves burocráticos ao

desenvolvimento (grifo nosso) (ACSELRAD, 2011).

Mais uma vez, como na questão indígena, os direitos sociais são interpretados

como entraves ao “progresso” (leia-se: obstáculos a interesses econômicos de

empresários da construção civil e de latifundiários do agronegócio) e, seja por meio de

dispositivos jurídicos ad hoc, seja pelo uso direto da violência, são suprimidos. As velhas

formas de expropriação são asseguradas e novas oportunidades (“sustentáveis”, como já

vimos) são geradas, estabelecendo-se, assim, condições excepcionais para a reprodução

do capital. A construção do Setor Noroeste, em Brasília, inscreve-se nessa conjuntura.

3.2.2 – “O Santuário não se move!”

O movimento social “O Santuário não se move!” surgiu, como grupo

organizado, no primeiro semestre de 2008, momento em que o governo do Distrito

Federal afirmou sua pretensão de iniciar, por meio da empresa pública Terracap, a venda

de lotes às empreiteiras interessadas na construção de edifícios residenciais e comerciais

no Setor Noroeste. O movimento apartidário é constituído por atores diversos da

sociedade civil: indígenas, estudantes secundaristas e universitários, professores,

ambientalistas, defensores dos direitos humanos, entre outros. Os militantes,

autodenominados “apoiadores do Santuário”, têm como principais reivindicações a

manutenção dos indígenas no território do Santuário dos Pajés, a paralização das obras

do Setor Noroeste e a consequente preservação do cerrado nativo em torno da terra

indígena. Essa luta, no entanto, tem implicações mais amplas, como destaca o depoimento

da militante Magdalena18, por nós entrevistada:

18 Utilizaremos nomes fictícios a fim de preservar a identidade e a privacidade dos sujeitos entrevistados.

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A luta do Santuário não é uma luta apenas indigenista ou ambiental, é

uma luta por moradia para as classes baixas, uma luta contra a

especulação, contra a corrupção. Então a questão está na pauta dos

outros movimentos sociais. O movimento "O Santuário não se move"

era apartidário, mas integrava militantes autonomistas, membros de

partidos, movimentos sociais de Brasília na luta por uma pauta que é

bem ampla, na verdade (grifo nosso) (MAGDALENA, 2013).

O posicionamento da militante é reforçado por depoimento do indígena

Awamirim Tupinambá, habitante do Santuário dos Pajés. Em entrevista à jornalista

Adriana Kortlandt, Awamirim destaca a relevância histórica da luta do Santuário dos

Pajés e suas implicações para a população do Distrito Federal:

A presença indígena no DF, principalmente no Setor Noroeste, não é

apenas um imperativo ecológico, ambiental, de cidadania, de

reconhecimento da diversidade cultural do Brasil. Antes de tudo, é uma

justiça histórica. [...] Brasília tem a oportunidade de revolucionar sua

continuísta história de colonial de segregação social, econômica e

espacial. As cidades satélites são a repetição colonial dessa tendência

e agora o respeito e reconhecimento do Santuário dos Pajés são uma

mudança de consciência e de inflexão de um padrão recorrente de

segregação social, racismo e destruição ambiental. O Santuário tem a

missão de conscientizar pelo respeito à presença indígena na região,

difundindo os valores da tolerância, do pluralismo e da convivência

pacífica. Ganham todos: nós, a cidade, a civilidade e as futuras gerações

(grifo nosso) (KORTLANDT, 2011).

O militante Marcos, em depoimento reproduzido a seguir, delineia, a partir

de sua experiência pessoal, um rico histórico da conjuntura política, dos acontecimentos

e dos encontros que levaram à aglutinação de militantes sociais do Distrito Federal em

torno da causa do Santuário dos Pajés:

Antes de conhecer a comunidade indígena participei de outros

movimentos. Em 2004 foi organizada a primeira Convergência de

Grupos Autônomos na Candangolândia, reunindo pessoas que

cultivavam alguma afinidade com a discussão autônoma, seja lá o que

isso quer dizer, para refletir formas de organização horizontais e

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apartidárias. Me sentia próximo das concepções anarquistas, creio que

a maioria das pessoas, naquele momento também. Me lembro que um

movimento que serviu de inspiração foi o zapatismo mexicano, embora

não fossem anarquistas, pois discutiam a partir da cosmovisão indígena

uma forma de organização outra que não a estamental. Outro marco foi

a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, que

originou o Indy Media, ou Centro de Mídia Independente (CMI), que

foi um importante veículo de contra informação para as lutas que

realizamos no DF. A meu ver, esses não foram os únicos referenciais

de organização de movimentos, houve também a partir de 2001 na

Argentina, uma violenta crise econômica (e quando não há crise

econômica no mundo?), e uma forte organização popular, retomada de

fábricas pelos trabalhadores, organizações barriais, entre outros. Sendo

assim, vegetarianos, anarco-punks, anarquistas, feministas, e outras

pessoas sem um norte político partidário se reuniram no Praia Verde,

um centro cultural afro, organizado por Chico Piauí e Jacira, dois

militantes históricos do movimento negro no DF. A partir desse

encontro, o que saiu de mais concreto foi a organização do Movimento

Passe Livre (MPL), que lutava por um transporte público e gratuito para

toda a população. Tal movimento contava com núcleos em outras

cidades do país, Florianópolis, Salvador e outras cidades que foram

palco de grandes manifestações. A princípio o movimento estava

organizado de acordo com as diretrizes do apartidarismo, da autonomia

e da horizontalidade. Em Brasília houve grandes atos e forte repressão

policial. Aglutinaram-se em algumas delas outros setores que não se

enquadravam no perfil estudantil, por exemplo, o Movimento dos

Trabalhadores sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores

Desempregados (MTD), sindicatos e mesmo partidos políticos

apareciam nas manifestações. Estive mais presente desse período de

2004 ao final de 2007, quando a partir de um amigo que trabalhava na

FUNAI, que foi da Federação Anarquista do Rio de Janeiro, entrei em

contato com a comunidade indígena do Bananal (MARCOS, 2013).

A entrevista do militante Marcos nos revela um importante aspecto da

comunidade indígena: o diálogo entre o Santuário dos Pajés e a exterioridade. Desde a

década de 1990, os indígenas organizam encontros com segmentos diversos da sociedade

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do Distrito Federal, a fim de promover a conscientização da população em relação à

preservação do cerrado e de estimular o estabelecimento de contatos interétnicos e

interculturais (cf. figura 14, em anexo). Desde 2008, com o acirramento dos conflitos

entre os indígenas e os defensores do Setor Noroeste, multiplicaram-se os encontros e

estabeleceram-se vínculos com movimentos sociais e simpatizantes da causa. O diálogo

com a exterioridade é visto pelo Santuário dos Pajés como instrumento de sensibilização

da sociedade e de fortalecimento da posição indígena na luta pela demarcação e pelo

reconhecimento de seu território. Conforme nota publicada pela Associação Cultural

Povos Indígenas,

As atividades de intercâmbio cultural promovidas pela comunidade

indígena Tapuya/Fulni-Ô têm o objetivo de oferecer contatos e

encontros interculturais com a comunidade indígena do Santuário

Tapuya dos Pajés, promovendo a educação intercultural entre

sociedades de saberes diversos, propiciando o respeito às diferenças

étnicas e uma maior compreensão da organização social indígena, das

nossas tradições, das nossas formas políticas tradicionais Tapuya

(Macro Jê), da cosmologia do Santuário Tapuya, da história indígena

do Santuário dos Pajés em Brasília, e, sobretudo, da importância de

reconhecer que a preservação da mata do cerrado é consequência da

cosmovisão indígena Tapuya, resultado de um modo de ser e viver

culturalmente diferenciado. Nesse sentido, a comunidade indígena

Tapuya/Fulni-Ô, desde o início da década de 1990, promove o Projeto

de educação intercultural “Nas Rotas dos Pajés: Os Andarilhos da Luz”

onde estudantes, escolas, faculdades, crianças, pesquisadores, do

Distrito Federal, do Entorno e de várias partes do Brasil visitam a Terra

Indígena Santuário dos Pajés interessados em conhecer a tradição

cultural Tapuya/Fulni-Ô e os saberes ancestrais guardados nas tradições

do Santuário dos Pajés. Entretanto, as atividades de cunho intercultural

também se somam no esforço de ampliar socialmente a sensibilização

sobre a luta da comunidade indígena Tapuya/Fulni-Ô pela demarcação

da Terra Indígena Santuário dos Pajés em Brasília e a oportunidade de

convivência e intercâmbio intercultural com diferentes atores e grupos

sociais do Distrito Federal e do Brasil, como ocorre com o “Encontro

Interespiritual” e a “Jornada de Arqueologia e História Indígena do

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Santuário dos Pajés”, promovidos pela comunidade indígena Tapuya e

sua organização, a Associação Cultural Povos Indígenas (ACPI)

(SANTUÁRIO, 2013).

Na nota anterior, os indígenas fazem uso do termo cosmovisão. Esse conceito

se refere à percepção de mundo própria de um indivíduo ou grupo social; ou seja, à

maneira segundo a qual se interpreta os dados da realidade. Ao reivindicar sua

cosmovisão, o povo Tapuya/Fulni-ô procura afirmar pressupostos próprios para a

interpretação do mundo ao seu redor, o que resulta num “modo de ser e viver

culturalmente diferenciado” (SANTUÁRIO, 2013). Dessa maneira, o povo indígena do

Santuário dos Pajés é capaz de afirmar suas perspectivas políticas e culturais, bem como

seu modo particular de lidar com a natureza. A defesa de sua cosmovisão se dá seja por

meio da celebração de rituais tradicionais como o toré (cf. figura 15, em anexo) e de seus

ritos religiosos cotidianos; seja pela própria preservação do cerrado nativo, considerado

pelos indígenas sagrado (em oposição à percepção dos interessados na construção do

Setor Noroeste). A afirmação da cosmovisão indígena pelos habitantes do Santuário dos

Pajés configura-se, portanto, como um ato de preservação e celebração de sua própria

cultura e de resistência política contra aqueles que se esforçam por suprimi-la. Por ocasião

da II Jornada Tribal de Arqueologia e História Indígena, realizada em agosto de 2011 no

Santuário dos Pajés, os indígenas afirmaram, em nota de divulgação para o evento:

Nós da comunidade indígena do Santuário dos Pajés, os outros

diferentes, preservamos, renovamos e transformamos nessas andanças

distantes e próximas no tempo e no espaço a consciência de nossa

identidade indígena, nossos usos, costumes e tradições, reivindicando

uma história e uma memória próprias, nosso direito à identidade e à

consciência indígenas plenas, pois temos no dever de memória um

dever ético-espiritual com nosso passado, nossos antepassados, nossas

famílias e os filhos e filhas da terra, silenciados, denegados e

marginalizados pela sociedade brasileira em sua colonialista “História

Nacional do Brasil” (SANTUÁRIO, 2011b).

Em tese de doutorado intitulada O Regime Imagético Pankararu (Tradução

Intercultural na Cidade de São Paulo), defendida em 2011 na Universidade Federal de

Santa Catarina, o antropólogo Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque dedicou-se ao

estudo da comunidade de indígenas da etnia Pankararu, originária de Pernambuco, que

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vem se instalando na cidade de São Paulo desde a década de 1960. Albuquerque

demonstra como os indígenas daquela etnia utilizam-se de danças e rituais tradicionais

como forma de afirmação cultural contra-hegemônica, com o objetivo de combater a

violência simbólica que os impede de afirmar-se como uma comunidade etnicamente

diferenciada em seu novo local de residência (ALBUQUERQUE, 2011). Em entrevista

ao antropólogo, o ex-presidente da Associação da Comunidade Indígena Pankararu,

entidade que representa os indígenas residentes na cidade São Paulo, afirmou:

Nós começamos a dançar o toré, os praiá, e se identificar, depois da

associação. Lutamos por ela porque a FUNAI não queria nos atender

como índio, porque eles acham que índio só é índio na aldeia, como a

FUNAI queria tirar o corpo dela fora pra não assumir nós com nada, ela

botou essa dificuldade, só nos apoiou depois que viu a nossa cultura

(ALBUQUERQUE, 2010).

O depoimento do líder Pankararu evidencia a situação de “invisibilidade”

enfrentada pelos indígenas migrantes no Brasil, destacadamente aqueles residentes em

áreas urbanas. Segundo Albuquerque, tal situação é sustentada por meio de um discurso

“preconceituoso, estigmatizante e ideológico” em relação aos povos indígenas. Essa

representação, hegemônica em setores diversos da sociedade e do Estado, baseia-se num

modelo de “museu”, e “evoca a ‘primitividade’, a ‘pobreza’, a atemporalidade e o

anonimato, como condição de autenticidade das culturas nativas” (ALBUQUERQUE,

2011). O mesmo modelo hegemônico de representação pode ser verificado no

posicionamento dos órgãos estatais e de parte da sociedade civil em relação à situação

dos indígenas do Santuário dos Pajés. É possível perceber, tanto no caso de Brasília

quanto no de São Paulo, que os esforços de afirmação cultural das comunidades se

configuram como atos de resistência contra-hegemônica, na medida em que se opõem à

violência das representações estigmatizantes e possibilitam a inserção dos indígenas em

novas arenas de luta política. Nesse sentido, em oposição ao discurso antropológico que

privilegia o “exotismo” em detrimento de uma compreensão mais apurada das identidades

indígenas, o antropólogo francês Michel Agier argumenta que

A complexidade crescente das realidades locais torna mais necessária

do que nunca a abordagem situacional das culturas e das identidades

como um instrumento de compreensão das lógicas observadas

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diretamente, e também como um princípio de vigilância antiexótica da

antropologia. A atenção principal do observador deve se colocar antes

sobre as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam,

do que nas representações formuladas a priori das culturas, tradições

ou figuras ancestrais em nome das quais se supõe que eles agem

(AGIER, 2001).

Em entrevista realizada em 2007, o líder indígena Santxiê criticou a atuação

do Memorial dos Povos Indígenas, construído em 1987 pelo Governo do Distrito Federal.

Em oposição ao discurso hegemônico que sustenta a ideia de “museu do índio”, o líder

do Santuário dos Pajés afirmou:

Nós queremos o Índio com um pé na aldeia e um pé na cidade, para

que ele conheça as diversidades do mundo moderno, nós não queremos

um Índio para zoológico não. O índio não é isso, o Índio é ciência, ele

tem seu acervo ancestral que fala alto pra ele, e pro espírito dele que

nunca acaba, nunca morre. [...] O Memorial não está bem enquadrado

na causa científica dos Povos Indígenas para pesquisa de arqueologia,

pesquisa de origem, de linguística, troncos, bilinguismos,

multiculturalismo. [...] Você sabe que não existe lei pra tirar uma

cidade de dentro das terras dos Índios, mas os brancos criaram leis pra

tirar os Índios de dentro da casa deles! [...] Você vê que existem vários

ministérios, existe até ministério pra peixe. Mas pra Índio não existe!

Então se entende que o Índio não existe, ou é um animal irracional? O

Índio está fora do contexto nacional? Será que os Índios não existem

mais aqui no Brasil? [...] Quando se fala Memorial a questão a ser

tratada é a de um cemitério. O espaço existe mas não existe verba, o

Memorial é um grande faz de conta... Fazem de conta que se

preocupam com os Índios... É um faz de conta! (grifo nosso)

(HOLANDA, 2007).

Voltamo-nos, nesse momento, às práticas de resistência do movimento “O

Santuário não se move!”. O movimento é caracterizado pela multiplicidade e

originalidade de suas ações, que incluem manifestações, ações diretas, promoção de

debates, eventos culturais e oficinas de conscientização junto à população, produção de

material audiovisual de divulgação da causa indígena e realização de mutirões de apoio

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ao Santuário. A internet é amplamente utilizada pelo movimento como plataforma de

divulgação e mobilização. Os militantes mantêm um website próprio e páginas em redes

sociais como Facebook e Twitter, onde são divulgados informes, notícias e chamados

para reuniões, eventos culturais e manifestações (cf. figura 16, em anexo). Os apoiadores

fazem uso igualmente intenso de recursos audiovisuais: as manifestações e os atos do

movimento, bem como entrevistas com os apoiadores e indígenas, são documentados em

vídeo para posterior divulgação na internet, em websites como o YouTube, por exemplo.

O movimento produziu dois documentários sobre a causa do Santuário dos

Pajés: o longa-metragem Sagrada Terra Especulada e o curta-metragem A Ditadura da

Especulação. O primeiro deles, lançado em janeiro de 2011, retrata o processo histórico-

político que levou à construção do Setor Noroeste e apresenta as reivindicações dos

indígenas e apoiadores do Santuário. O segundo filme, lançado em maio de 2012, retrata

os conflitos que ocorreram na área do Santuário dos Pajés nos meses de outubro e

novembro de 2011 e documenta as ações de resistência dos militantes diante do uso da

violência pela Polícia Militar do DF e por seguranças privados contratados pelas

empreiteiras. Os filmes, ambos premiados em festivais de cinema de Brasília, foram

divulgados por meio da internet e exibidos em sessões públicas seguidas de debates sobre

a causa indígena do Santuário.

Nos meses de outubro e novembro de 2011, ocorreu, na área destinada à

construção do Setor Noroeste, um intenso confronto que opôs, de um lado, os indígenas

e apoiadores do Santuário dos Pajés e, de outro, representantes da construtora Emplavi,

seguranças privados e a Polícia Militar do DF. O conflito se originou com o

descumprimento, pela construtora, de decisão da Justiça Federal que determinava a

paralização das obras até a resolução do litígio. Na primeira semana de outubro, a

Emplavi iniciou um processo de invasão e demarcação da área em disputa, por meio da

implantação de cercas. Como reação à ação da construtora, apoiadores do Santuário

retiraram as cercas (cf. figura 17 e figura 18, ambas em anexo), o que resultou no uso de

violência física contra os militantes pela segurança privada da Emplavi. Nos dias 3 e 10

de novembro, a Polícia Militar do DF realizou operações com até 800 policiais na área, a

fim de garantir a continuidade das obras (CÈO, 2011); segundo nota do movimento, 15

apoiadores do Santuário foram detidos (SANTUÁRIO, 2011c).

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A ação da PM e a distribuição de liminares pelo Tribunal de Justiça do

Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) permitiram que as empreiteiras dessem

continuidade à tática de sufocamento físico e psicológico da comunidade indígena, por

meio da devastação do cerrado ao redor do Santuário, numa clara aposta no estatuto

jurídico do “fato consumado”19. Segundo liminar expedida no dia 6 de novembro por juiz

do TJDFT, os manifestantes estavam proibidos de “invadir, destruir, ocupar, embaraçar

o uso de outras propriedades” e a Polícia Militar estava autorizada a “remover pessoas,

obstáculos, impedir toda e qualquer atividade que viole o direito de uso e gozo das

propriedades." (G1 DF, 2011). Aqui, nos parecem ilustrativos os comentários do filósofo

marxista Marshall Berman acerca de uma passagem do Fausto de Goethe:

Fausto comete de maneira consciente seu primeiro ato mau. Convoca

Mefisto e seus “homens fortes” e ordena-lhes que tirem o casal de

velhos do caminho. Ele não deseja vê-lo, nem quer saber dos detalhes

da coisa. Só o que lhe interessa é o resultado final: quer que o terreno

esteja livre na manhã seguinte, para que o novo projeto seja iniciado.

Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto,

impessoal, mediado por complexas organizações e funções

institucionais (grifo nosso) (BERMAN, 1986:64).

No dia 14 de dezembro de 2011, o TJDFT aceitou ação indenizatória movida

pela construtora Emplavi contra os apoiadores do Santuário dos Pajés. No processo, a

empresa, apesar de haver descumprido ordem judicial, solicitava uma indenização no

valor de 244 mil reais de nove dos militantes, alegando prejuízos decorrentes da remoção

de cercas pelos manifestantes e dos custos da contratação de seguranças privados.

Percebe-se, pela ação movida pela construtora, a tentativa de promover a deslegitimação

do movimento social por meio de sua criminalização judicial. Segundo nota divulgada

pelos apoiadores do Santuário,

19 José Renato Nalini, desembargador da Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma o seguinte a propósito da aposta no fato consumado: “Embora o correto esteja numa direção, decide-se em sentido inverso. A pretexto de que o fato consumado não permite qualquer outra solução. Em nome disso, quanto prejuízo a comunidade não suporta. Na área ambiental a constatação é de uma evidência solar. Os exemplos são muitos. Alguém começa a construir em área de preservação permanente. Mesmo após embargo da obra, por confiar na lentidão com que o juízo convencional costuma funcionar, o infrator continua a edificar. Quando, finalmente, a Justiça vai se manifestar, está diante de uma realidade diversa daquela que ensejou o embargo: a obra está terminada, famílias moram nela. Alega-se o fato consumado e tudo fica sem consequência” (NALINI, 2009).

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Estamos diante de um violento ataque à Constituição Federal, que no

seu artigo 231 diz que apenas a União pode demarcar terra indígena.

Aqui na capital do Brasil, Arruda e Paulo Octávio com a Terracap

demarcaram terra indígena ao venderem em 2009 lotes em toda a área

ocupada pelos Tapuya/Fulni-ô. E o governo Agnelo, ao invés de

construir um novo caminho, apoia até o momento o velho caminho e

colabora, prendendo e reprimindo com violência os apoiadores. O

movimento de apoiadores do Santuário dos Pajés já começou a se

mobilizar contra a criminalização de alguns poucos como forma de

oprimir o processo de resistência (SANTUÁRIO, 2011d).

No início de 2013, apesar da inação dos órgãos estatais e da permanente

coação das empreiteiras e do poder público, os indígenas do Santuário dos Pajés

permanecem em seu território. Sustentados pelo laudo antropológico que comprova o

caráter tradicional de sua ocupação, bem como pela afirmação da territorialidade20

etnoreligiosa Tapuya/Fulni-Ô estabelecida naquela área (SANTUÁRIO, 2013),

reivindicam ao Estado brasileiro a demarcação e a regularização definitivas de suas terras.

Afinal, como afirmam em comunicado de março de 2013, “foi o Noroeste que foi para

Terra Indígena, e não a Terra Indígena que foi para o Noroeste” (SANTUÁRIO, 2013).

20 O antropólogo Paul E. Little define “territorialidade” nos seguintes termos: “Esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” [...]. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos.” (LITTLE, 2002).

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Considerações finais

No primeiro capítulo, discutimos, com o apoio de autores como Rosa

Luxemburgo, David Harvey e Francisco de Oliveira, a tendência de continuidade, no

capitalismo avançado, dos mecanismos de expropriação típicos da acumulação primitiva

de capital descrita por Marx. Vimos que o modo de produção capitalista jamais deixou de

fazer uso de meios violentos a fim de promover a supressão dos bens comuns e o

consequente aumento de mão de obra barata e vulnerável. Para se referir ao caráter

permanente desse tipo de expropriação no sistema capitalista, Harvey propõe o conceito

de acumulação por despossessão (HARVEY, 2009a). Tratando do caso brasileiro,

observamos que a monopolização do solo urbano por meio da expropriação do território

estabelece um elo entre as formas “primitivas” de acumulação e o capital portador de

juros gerado pela renda da terra (BRANDÃO, 2010).

Inspirados pela proposta de Harvey, procuramos averiguar em que medida os

mecanismos de expropriação podem ser observados num caso contemporâneo específico:

a construção do Setor Noroeste, em Brasília. Para tanto, tratamos dos processos sociais

e políticos que levaram à transformação de uma área de cerrado nativo habitada por uma

comunidade indígena, o Santuário dos Pajés, em terreno destinado à construção de um

bairro de “alto padrão”. Vimos como, por um lado, a atuação diligente da Justiça e dos

órgãos repressores estatais e, por outro, a inação de agências governamentais, como a

FUNAI e o IBAMA, significaram a afirmação dos interesses privados em detrimento dos

bens públicos e dos direitos indígenas. Para dar nome à confluência desses mecanismos

de expropriação no meio urbano, apresentamos como chave analítica o conceito de

urbanização por expropriação.

No segundo capítulo, tendo em vista o discurso publicitário que apresenta o

Setor Noroeste como “ecovila” ou primeiro bairro “verde” do Brasil, procuramos realizar

uma abordagem crítica de conceitos ambientalistas como desenvolvimento sustentável e

economia verde. A partir de uma análise histórica de tais conceitos e da percepção de sua

apropriação por “especialistas”, percebemos que o discurso ambientalista tende a atuar

como um discurso de caráter ideológico análogo ao religioso, impondo-se como

autoridade inquestionável (ŽIŽEK, 2007) e como estrutura de sublimação para ações

auto-interessadas dos indivíduos (PATO, 2012). Assim, configura-se o que se denomina

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ambientalismo de espetáculo (ACSELRAD, 2012a e FURTADO, 2012), ideia ilusória

que obscurece a percepção das relações sociais e materiais inerentes à questão ambiental.

A partir dessa percepção analisamos duas vertentes do discurso dos

defensores da construção do Setor Noroeste: de um lado, a mídia, que procura, em suas

reportagens, ignorar o conflito socioambiental relacionado ao projeto imobiliário,

apresentando a questão indígena como entrave a ser suprimido em nome do progresso; e,

de outro lado, a publicidade, que tenciona apresentar o Setor Noroeste como solução

“sustentável” para a cidade de Brasília, a fim de obscurecer os impactos ambientais e

sociais provenientes da construção do bairro e, ao mesmo tempo, agregar valor de

mercado aos edifícios em construção. O ambientalismo de espetáculo e suas implicações

configuram-se como componentes ideológicos do dispositivo que, no primeiro capítulo,

denominamos urbanização por expropriação.

Em oposição ao ambientalismo de espetáculo, apresentamos, no terceiro

capítulo, a perspectiva da Ecologia Política. Esta, a partir da discussão de conceitos como

desigualdade e racismo ambiental, propõe a afirmação do ecologismo popular, ou

ecologismo dos pobres (MARTÍNEZ-ALIER, 2007), termo que dá nome à confluência

de movimentos socioambientais que lutam pela justiça ambiental, ou seja, pela

distribuição igualitária dos recursos naturais e pela possibilidade de uso comum dos bens

oferecidos pela natureza. Vimos que a intensificação dos processos de urbanização tem

significado a multiplicação dos conflitos socioambientais em meios urbanos, pois o

crescimento das cidades tende a reproduzir os mecanismos da injustiça ambiental, o que

se evidencia pelo fato de que as populações urbanas marginalizadas tendem a estar em

situação mais vulnerável em relação aos riscos ambientais. Essas vítimas da segregação

espacial são justamente aquelas pessoas que dão vida aos movimentos socioambientais

que, nas cidades, lutam pela justiça ambiental e pelo acesso igualitário aos serviços

urbanos (ZHOURI, 2007).

Observamos que, no caso do Santuário dos Pajés, além dos mecanismos que

sustentam a urbanização por expropriação, devemos estar atentos à situação de exceção

que se nos apresenta quando tratamos da questão indígena no Brasil. A inação da FUNAI

em relação à demarcação e regularização de terras tradicionais indígenas, somada à

criação de dispositivos jurídicos ad hoc, como a Portaria nº 303, estabelecem situações

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excepcionais para a expropriação dos povos indígenas e para a acumulação de capital.

Nesse contexto insere-se o movimento socioambiental surgido a partir do anúncio da

construção do Setor Noroeste. O movimento “O Santuário não se move!” opõe-se aos

defensores do novo bairro por meio de um amplo repertório de práticas de resistência que

afirmam a cosmovisão indígena e o caráter tradicional das terras ocupadas pelo território

do Santuário dos Pajés.

Em seu livro das Passagens, Walter Benjamin nos ensina que a crítica

marxista, em oposição ao positivismo e ao evolucionismo vulgar, deve estar atenta à

necessidade de aniquilar, em si mesma, a ideia de progresso (BENJAMIN, 2006:502).

Como observa Michael Löwy, “Benjamin não concebe a revolução como o resultado

“natural” ou “inevitável” do progresso [...], mas como a interrupção de uma evolução

histórica que conduz à catástrofe” (LÖWY, 2002). A revolução atuaria, portanto, como

uma espécie de “freio de emergência” contra o avanço da modernidade capitalista: “A

sociedade sem classes não é o objetivo final do progresso na história, e sim sua

interrupção muitas vezes fracassada e finalmente alcançada” (BENJAMIN, 2006:30). A

resistência do movimento “O Santuário não se move!”, em Brasília, posiciona-se

justamente contra o progresso capitalista, este que se sustenta por meio do massacre de

povos tradicionais, da mercantilização da natureza e da destruição dos ecossistemas. Ao

propor uma temporalidade alternativa ao progresso (e à catástrofe) do capital, a luta do

Santuário dos Pajés contribui para a interrupção necessária.

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Anexos

Ilustrações

Figura 1 – Novas áreas residenciais propostas no documento Brasília Revisitada

Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Distrito Federal

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Figura 2 – Imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do

Setor Noroeste

Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal

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Figura 3 – Variação do preço médio do m² em apartamentos no Setor Noroeste, de

agosto de 2010 a janeiro de 2013

Fonte: Índice FipeZap de jan. de 2013

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Figura 4 – Devastação do cerrado próximo a um dos canteiros de obras da

incorporadora Brasal

Fonte: Arquivo pessoal

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Figura 5 – Imagem de satélite com a delimitação dos 50,91 hectares reivindicados

pelo Santuário dos Pajés

Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011

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Figura 6 – Herbário de plantas nativas fitoterápicas do Santuário dos Pajés

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 7 – Ação da Polícia Militar do DF no território do Santuário dos Pajés

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 8 – Reprodução de capa em que o jornal Correio Braziliense anuncia a liberação das

vendas das projeções do Setor Noroeste

Fonte: SCHVARSBERG, 2009

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Figura 9 – Reprodução de reportagem em que o jornal Correio Braziliense se refere aos

indígenas como “invasores” da área destinada ao “futuro bairro”

Fonte: SCHVARSBERG, 2009

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Figura 10 – Anúncio publicitário ilustrando a localização do Setor Noroeste

Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal

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Figura 11 – Anúncio publicitário com slogan promocional do Setor Noroeste

Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal

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Figura 12 – Faixa de protesto contra os governos Arruda (DEM) e Agnelo (PT), no Palácio

do Buriti (sede do governo do Distrito Federal)

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 13 – Reprodução de gravura e palavra de ordem utilizadas pelo movimento “O Santuário não se move!”

Fonte: Movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 14 – Registro fotográfico de encontro inter-religioso realizado no Santuário dos Pajés

em setembro de 2010

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 15 – Registro fotográfico do toré, cerimônia tradicional celebrada pelo líder

Tapuya/Fulni-ô Santxiê

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 16 – Reprodução de cartazes de divulgação do movimento “O Santuário não se move!”

Fonte: Movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 17 – Registro fotográfico de ação direta de remoção de cercas implantadas

ilegalmente pela empreiteira Emplavi

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Figura 18 – Registro fotográfico de ação direta contra a invasão do território do Santuário

dos Pajés por máquinas da empreiteira Emplavi

Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”

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Tabelas

Quadro 1 – Preço médio do m² de apartamentos em bairros nobres de 17 municípios

brasileiros, com destaque para o Setor Noroeste

BAIRRO CIDADE PREÇO

Leblon Rio de Janeiro R$ 20.451

Vila Nova Conceição São Paulo R$ 12.100

Setor Noroeste Brasília R$ 10.581

Charitas Niterói R$ 7.722

Savassi Belo Horizonte R$ 7.568

Jurerê Internacional Florianópolis R$ 7.479

Cais do Porto Fortaleza R$ 6.986

Três Figueiras Porto Alegre R$ 6.834

Campina do Siqueira Curitiba R$ 6.556

Pina Recife R$ 5.628

Vila Alpina Santo André R$ 5.483

Campo Grande Salvador R$ 5.311

Jardim São Caetano São Caetano do Sul R$ 5.216

Mata da Praia Vitória R$ 4.758

Centro São Bernardo do Campo R$ 4.206

Praia da Costa Vila Velha R$ 3.700

Setor Bueno Goiânia R$ 2.838

Fonte: Índice FipeZap de jan. 2013

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Quadro 2 – População do Santuário dos Pajés no início do 2º semestre de 2010

NOME ETNIA OBSERVAÇÃO Santxiê Fulni-ô Liderança do Santuário dos Pajés, 55

anos, filho de Phuwá ou Pedro Veríssimo e Many ou Maria Veríssimo, primeiros ocupantes da área. Possui renda fixa mensal por ser funcionário público federal.

Fetxawewe Fulni-ô Filho de Santxiê e Marta de Souza Silva, da etnia Guajajara, 12 anos. Nas férias vem ficar com seu pai, pois dali saiu por conta do ambiente tenso configurado a partir dos conflitos pela posse da terra decorrentes do Projeto Imobiliário Setor Noroeste.

Santxiê Júnior Fulni-ô Filho de Santxiê e Marta de Souza Silva, da etnia Guajajara, 10 anos. Está na mesma situação que seu irmão mais velho, Fetxawewe.

Ademilta Fulni-ô Irmã de Santxiê, 53 anos, filha de Phuwá ou Pedro Veríssimo e Many ou Maria Veríssimo, primeiros ocupantes da área. Apóia seu irmão na reivindicação da área.

Kafhitxó Fulni-ô Também conhecido como Américo Torres da Hora, cunhado de Santxiê, casado com Ademilta, com idade de uns 54 anos. Trata-se de um importante aliado político de Santxiê na reivindicação da área.

Xoá Fulni-ô Filho Kafhitxó e Ademilta, 20 anos, e sobrinho de Santxiê.

Juscimara Fulni-ô Filha de Kafhitxó e Ademilta, sobrinha de Santxiê, 10 anos.

Rosanilda Fulni-ô Filha de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê.

Tailane Fulni-ô Filha de Arlete, neta de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê, 4 anos.

Sauane Fulni-ô Filha de Rosanilda, neta de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê, 4 anos.

Txá Fulni-ô Filho de Kafhitxó e Ademilta, 22 anos, e sobrinho de Santxiê.

Cláudio Gomes Inácio da Silva Fulni-ô Natural de Águas Belas, 40 anos, mora em Brasília há 27 anos. Possui vínculo empregatício com uma empresa que presta serviços à FUNAI, onde trabalha com serviços de manutenção. É neto de Euclídio Frederico da Silva, Fulni-ô, seu avô paterno, falecido há cerca de 4 anos, em Águas Belas, quem era compadre do pai de Santxiê.

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Maria Cícera Salustiano Caeteno Xukuru Esposa de Cláudio Gomes Ferreira da Silva, cerca de 35 anos, natural de Vila de Simbre, em Pesqueiras-PE.

Felipe Salustiano da Silva Xukuru Estudante do último ano do ensino médio, 18 anos, natural de Pesqueiras-PE.

Raíza Salustiano da Silva Xukuru De 4 anos, nascida em Pesqueiras, sofreu trauma psicológico por conta do ambiente tenso e conflituoso instalado na área desde o início do Projeto Imobiliário Setor Noroeste.

Awamirim Tupinambá Klayton Mário Oliveira Ramos, mais conhecido como Awamirim Tupinambá, nascido em Brasília na data de 14/01/1976. É graduado em Filosofia pela Universidade de Brasília e casado com Llenia Barra Vidal, não-índia nascida em Santiago do Chile, na data de 13/12/1980, com quem tem uma filha chamada Laykyhá, nascida em 2010 em Brasília. É um dos principais apoiadores de Santxiê na reivindicação de direitos territoriais. Identifica-se como Tupinambá por entender que descende de indígenas de um aldeamento extinto no estado da Bahia.

Korubo Kashalpunya Korubo Apresenta-se como natural da etnia Korubo, da fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Teria sido apenado em Manaus sob a acusação de tráfico de drogas e outros delitos, mas diz ser inocente. Sua presença no Santuário dos Pajés é esporádica e por vez com intervalos de meses. À época das pesquisas era aliado político, na condição de “apoiador” de Santxiê, mas não possui vínculo de pertencimento à área.

Alcilânia Alves de Souza Fulni-ô Artesã, nascida em Águas Belas, 27 anos, veio para Brasília pela primeira vez para jogar futebol, quando tinha 16 anos e ficou no Santuário dos Pajés, onde tinha parentes. É sobrinha de Santxiê e Towê. É filha de Alcides Alves dos Santos, Fulni-ô, 55 anos, e Maria Auxiliadora de Souza, Fulni-ô, 52 anos, ambos residentes em Águas Belas. Sua avó parterna, Josefa Inácia Severo, conhecida como Zefina, falecida há cerca de 16 anos, é prima da mãe de Santxiê.

Edgar Pires Tononé Kariri Xocó Artesão, natural de Alagoas, 30 anos, marido de Alcilânia Alves de Souza, com quem tem três filhos. Chegou a Brasília pela primeira vez em 1985, acompanhando sua mãe, Ivanice Pires Tononé em tratamento médico. A conjugalidade entre Edgar e Alcilânia também representa uma aliança

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interétnica entre família Fulni-ô e Kariri Xocó.

Awayoá Tononé Kariri Xocó Nascido em Brasília, 7 anos, filho de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.

Ytawanawi Tononé Kariri Xocó Nascida em Brasília, 8 anos, filha de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.

Hewanay Tononé Kariri Xocó Nascida em Brasília no ano de 2010, filha de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.

Ivanice Pires Tononé Kariri Xocó Natural de Alagoas, 55 anos, xamã, veio para Brasília pela primeira vez por volta de 1985, onde ficou na Casa do Ceará e tomou conhecimento da existência do Santuário dos Pajés. Por volta de 1997 veio morar na área da antiga Fazenda Bananal. Primeiro vinha nos finais de semana e ficava na casa de Santxiê. Depois, a partir de 2002, fixou moradia no Santuário dos Pajés. Em 2008 teve desentendimentos com Santxiê, por quem afirma ter grande consideração. No caso dos Kariri Xocó, a estratégia política voltada para a reivindicação de direitos se dá, sobretudo, para dentro da família extensão de Ivanice, sua principal liderança na área.

Alexsandro Pires Tononé Kariri Xocó Nascido em Alagoas, 31 anos, no ano de 1978, veio para Brasília pela primeira acompanhando sua mãe, Ivanice Pires Tononé.

Irene Pires de Lima Kariri Xocó Irmã de Ivanice Pires Tononé, 44 anos.

Iago Gomes de Lima Kariri Xocó Filho de Irene Pires de Lima e sobrinho de Ivanice Pires Tononé, com 13 anos.

Artur Gomes da Silva Kariri Xocó Filho de Irene Pires de Lima e sobrinho de Ivanice Pires Tononé, com 18 anos.

Iasmim Gomes da Silva Kariri Xocó Filha de Irene Pires de Lima e sobrinha de Ivanice Pires Tononé, com 14 anos.

Gilvaldo Pires Kariri Xocó Trabalha na construção civil e com artesanato, irmão de Ivanice Pires Tononé.

Murá Maria do

Carmo Reis

Kariri Xocó Mãe de Ivanice Pires Tononé, 79 anos, descendente de Pankararu, mas criada com os Kariri Xocó, motivo pelo qual se identifica como membro desta etnia.

Chiquinho Kariri Xocó Primo de Ivanice Pires Tononé e ex-marido de Edilene. Seu pai, falecido em 1993, era irmão de Ivanice Pires Tononé.

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Edilene Conceição Cavalcante Tuxá Irmã de Ednalva Conceição Cavalcante, cerca de 38 anos.

Kauã Kariri Xocó Filho de Alexsandro Pires Tononé com uma não-índia, com quem não vive mais.

Manoel Correia Pereira (Marivaldo) Fulni-ô Nascido em Águas Belas, na data de 04/09/1979, teria vindo para Brasília em 1999 em busca de emprego. Um ano depois, em 2000, teria se estabelecido pela primeira vez com sua família na área do Santuário dos Pajés, a qual teria conhecido por intermédio de Towê, irmão de Santxiê. Inicialmente seu estabelecimento no lugar se deu sem a devida autorização de Santxiê. Trabalha na construção civil e algumas de suas ações na área têm acirrado conflitos internos entre membros da comunidade. Busca para si uma posição de liderança da comunidade para a exterioridade, sobretudo no que se refere a negociações com a Terracap. Neste caso em específico, trata-se de uma pessoa que sugere não possuir vínculos tradicionais com a área, haja vista o pouco tempo em que ali reside e a maneira como adentrou no lugar.

Dalissandra Moreira

Costa

Não-índia Funcionária de uma empresa que presta serviços à FUNAI, possui uns 35 anos.

Kannaway Costa Correia Fulni-ô Filho de Manoel Correia Pereira (Marivaldo) e Dalissandra Moreira Costa, 5 anos, nascido em Brasília.

Ednalva Conceição Cavalcante Tuxá Filha de Maria Filha da Conceição Vieira, 38 anos, natural de Cocos-BA, onde nasceu por conta de processo de esbulho sofrido por seus parentes. Manteve conjugalidade com Pedro Francisco Ribeiro, Fulni-ô, quem conheceu no Santuário dos Pajés. Este é outro caso de casamento interétnico existente na área, desta vez entre um Fulni-ô e uma Tuxá.

Francisco Cleidemar Lima Não-índio Atual marido de Ednalva Conceição Cavalcante e genro de Maria Filha da Conceição Vieira.

Tainã Cavalcante Ribeiro Fulni-ô Filho de Ednalva Conceição Cavalcante, Tuxá, e Pedro Francisco Ribeiro, Fulni-ô, com 20 anos.

Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011

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Quadro 3 – Espécies botânicas de uso tradicional no Santuário dos Pajés

NOME COMUM

PROCEDÊNCIA FAMÍL IA NOME CIENTÍFI CO

CATEGORIA DE USOS

PARTES USADAS

USO MEDICINAL

goiabeira

cultivada

Myrtaceae

Psidium guajava

alimentar

fruto

jaca

cultivada

Moraceae Artocarpus integrifolia

alimentar

fruto

graviola

cultivada

Annonaceae

Annona crassiflora

alimentar

fruto

banana

cultivada

Musaceae

Musa sp.

alimentar

fruto e folha taperibá introduzida alimentar e

medicinal folha

limão

cultivada

Rutaceae

Citrus sp.

alimentar

fruto

laranja

cultivada

Rutaceae

Citrus auratium

alimentar

fruto

banana roxa

cultivada

alimentar

fruto cambará amarelo

introduzida

medicinal

folha

cansaço, fraqueza e banho

ritualístico cambará branco

introduzida

cambará laranja

introduzida

favaca

nativa

medicinal

folha e raíz

banho

pinhão roxo

introduzida

Euphorbiaceae

Jatropha sp.

medicinal

raíz e leite

cicatrizante

aroeira introduzida Anacardiaceae Myracrodruon urundeuva

medicinal folha e caule corrimento, secreção e ritual

jamelão

introduzida

medicinal

folha

diabetes

mulungu

introduzida

Fabaceae

Erythrina velutina

medicinal

folha e caule insônia,

circulação

araticum

nativa

Annonaceae

Annona crassiflora

medicinal

folha

piolho

umburana de cheiro

introduzida

Fabaceae

Amburana cearensis

medicinal

caule e semente

dor de barriga, ingestão e dor de

cabeça

guando

introduzida

medicinal

semente

abortivo

poalha

nativa

medicinal

raíz

dor de garganta, febre e cólica

fedegoso

introduzida

medicinal

raíz e semente

dor de cabeça, anemia e abortivo

picão amarelo

nativa

medicinal

folha

hepatite

mamona

introduzida

Euphorbiaceae

Ricinus communis

medicinal

semente

prisão de ventre

ipê roxo

nativa

Bignoniaceae

Tabebuia sp.

medicinal

casca

câncer

ipê rosa

introduzida

casca

câncer

ipê amarelo

nativa

Bignoniaceae

Tabebuia caraiba

ipê felpudo

nativa

Zeyhera tuberculosa

ipê branco

introduzida

Bignoniaceae

Tabebuia alba

ipê verde

cerrado

Bignoniaceae Cybistax

antisyphilit ica

craibeira

introduzida

medicinal

casca

câncer

caju vermelho

cultivada

Anacardiaceae Anacardium occidentale

alimentar e medicinal

caule

corrimento

mamão

cultivada

Caricaceae

Carica papaya

alimentar

cajuí

nativa

alimentar

mandioca cultivada Euphorbiaceae Manihot esculenta alimentar "amansada"

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milho

cultivada

Poaceae

Zea mayz

alimentar "amansada"

angicuo

introduzida

Mimosaseae

Anadenanthera sp.

medicinal e recuperação ambiental

casca

tosse e tuberculose

feijão de porco

introduzida

alimentação

semente

barbatimão nativa recuperação ambiental

semente

maracujá nativo

nativa

Passifloraceae

Passiflora sp.

alimentar

erva do cipó

introduzida

medicinal

tontura e disritmia

erva cidreira

introduzida

medicinal

folha

calmante olho de boi introduzida Papilionaceae Dioclea violaceae medicinal e

artesanato semente disritmia

manga

cultivada

Anacardiaceae

Mangifera indica

alimentar velandinho branco introduzida medicinal folha diabético

croá introduzida Bromeliaceae Neoglaziovia variegata

artesanato folha

mandacaru

introduzida

Cactaceae

Cereus jamacaru

medicinal

caule

doenças do coração

tabaco

introduzida

ritual e repelente mama cadela nativa Moraceae Brosimum

gaudichaudii medicinal caule viti ligo

cabaça

introduzida

Cucurbitaceae

Lagenaria vulgaris

artesanato

fruto

abóbora introduzida Cucurbitaceae Cucurbita pepo alimentar "amansada"

chapéu de coro

nativa

Vochisiaceae

Salvertia convallariaeodora

medicinal

folha

pedras renais

palma

introduzida

Cactaceae

Opuntia ficus-indica

medicinal e alimentar

folha e fruto

queimadura

lobeira

nativa

Solanaceae

Solanum lycocarpum

medicinal

caule

úlcera

baraúna

introduzida

Anacardiaceae Schinopsis brasiliensis

medicinal

casca

artrite, artrose e ferida

papo de peru

introduzida

Aristolochiaceae

Aristolochia esperanzae

medicinal e recuperação ambiental

raíz

artrite e artrose

catinga de porco

introduzida

Caesalpiniaceae

Caesalpinia sp.

medicinal

casca

próstata

tamburiu

introduzida

medicinal

casca

elefantíase

corona

introduzida

medicinal

semente

epileptico

juá

introduzida

Rhamnaceae

Ziziphus joazeiro

medicinal

folha e casca antiséptico, leucemia

embauba

introduzida

medicinal

broto

hernia

ouricuri

introduzida

Arecaceae

Syagrus coronata medicinal, alimentar e artesanato

folha e fruto

jurubeba

introduzida

Solanaceae

Solanum sp.

medicinal

raíz e folha

fígado

caraguatá

introduzida

medicinal

raíz reumatismo e

coluna

ipê vermelho

introduzida

medicinal

resina

pâncreas

genipapo

introduzida

Rubiaceae

Genipa americana

pintura corporal

barriguda

introduzida

Bombacaceae

medicinal

raíz

coluna

sisal

introduzida

artesanato

folha

Page 113: Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências ... · David Harvey a respeito da acumulação por despossessão. Inspirados por esses atores, propomos como chave analítica

98

pequi

nativa

alimentar

fruto

lingua de pirarucu

nativa

medicinal

folha

ferida e luxação

copaiba

introduzida

Leguminoseae

Copaifera langsdorffii

medicinal

óleo

asma, bronquite, ferida

aroeira vermelha

introduzida

medicinal

casca e folha

ferida, ovário, gastrite, úlcera e corrimento

arnica

introduzida

Asteraceae

medicinal

folha

ferida e reumatismo

alecrim

introduzida

Lamiaceae

Rosmarinum officiales

medicinal

folha

adstringente, rinite e sinusite

alfavaca nativa Lamiaceae Ocimimum gratissimum

medicinal folha chá e banho

urucum

introduzida

Bixaceae

Bixa orellana

pintura corporal

semente

beijóim

introduzida

medicinal

folha

banho

alfazena

nativa

medicinal

folha

banho comigo ninguém

pode

introduzida

medicinal

folha

banho

junça

introduzida

ritual

raíz

jatobá

nativa

Leguminoseae

Hymenaea stigonocarpa

medicinal e alimentar

casca, resina,

semente e folha

crescimento,

próstata e pulmão

ipê azul

introduzida

medicinal

casca

câncer

mucunã

introduzida

Fabaceae

Dioclea grandiflora

medicinal e alimentar

semente

disritmia

pata de vaca

introduzida

Caesalpiniaceae

Bauhinia macrostachya

medicinal

folha

diabetes

gravatá

introduzida

Bromeliaceae

Bromelia sp.

medicinal

raíz

coluna

cipó timbó

introduzida

Sapindaceae

Paullinia elegans

tóxica

folha

veneno para flechas

araçá bravo

introduzida

alimentar e medicinal

fruto e folha

banho

gervão roxo

introduzida

medicinal

raíz

câncer

cambiú

introduzida

medicinal

folha

dor de dente

bálsamo

introduzida

Fabaceae Myroxilum peruiferum

medicinal reumatismo,

artrite e artrose

sucupira

nativa

Fabaceae

Pterodon emarginatus

medicinal e religiosa

casca e semente

garganta, tosse e gripe

mamona vermelha

introduzida medicinal óleo prisão de ventre

cebola

introduzida

tóxica

raíz

veneno para flechas

babosa

introduzida

Liliaaceae

Aloe vera

medicinal

folha

câncer

hibisco branco

introduzida

medicinal

folha

queda de cabelo

caruru

introduzida

alimentar

folha

fonte de ferro

cava-cava

introduzida

medicinal

folha dor de cabeça,

insônia e doença nervosa

meiru

introduzida

artesanato

semente feijão branco introduzida Fabaceae Phaseolus sp. medicinal

"amansado"

batata de teiú

introduzida

medicinal

raiz

cura animal

abacate

introduzida

Lauraceae

Persea americana

alimentar

acerola

introduzida

Malpighiaceae

Malpighia sp.

alimentar

fruto

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99

melissa

introduzida

medicinal

folha

calmante

jibóia

introduzida

medicinal

raíz tirar estrias e

banho

picão roxo

introduzida

Asteraceae

Bidens pilosa

medicinal

folha

doença de fígado

mastruz

introduzida

Chenopodiaceae

Chenopodium ambrosioides

vermífugo

folha

eucalipto

introduzida

Myrtaceae

Eucalyptus sp.

medicinal

folha e resina

inalação e banho

feijão guandu

cultivada

Fabaceae

Cajanus cajan

alimentação

semente

anemia e abortivo

ingá de metro

introduzida

Inga sp.

alimentação castanha do maranhão

introduzida

Pseudobombax sp.

alimentação

faveiro

nativa

Pterogynes sp.

medicinal

semente

câncer

sapucaia

introduzida

Lecythis lanceolata

medicinal

fruta

asséptico

sibipiruna

introduzida Caesalpinea

peltophoroides

reposição do solo

semente

romã

introduzida

Punicaceae

Punica granatum

medicinal

fruto

garganta

quina

introduzida Strychnos

pseudoquina

medicinal

casaca

febre jacaranda do

cerrado

nativa

Leguminoseae

Machaerium sp.

medicinal resina e

entrecasca estômago e conjuntivite

insulina

introduzida

medicinal

folha

diabete

macela

introduzida

Compositae Achyrocline satureoides

medicinal

flor

insônia e relaxante

quitôco

introduzida

medicinal

semente

asma e bronquite

transagem

introduzida

medicinal

folha

garganta

sete dores

introduzida

Lamiaceae

Plectranthus barbatus

medicinal

folha

macaxeira

cultivada

Euphorbiaceae

Manihot uti lissima

alimentar

raiz

pau brasil

introduzida

Caesalpiniaceae

Caesalpinia echinata

pintura corporal

semente

fava

cultivada

Fabaceae

Phaseolus lunatus

alimentar

semente

mutamba

introduzida

medicinal

semente

asséptico

macaúba

introduzida artesanato e

medicin al

fruto e raíz

doenças venéreas

arruda

cultivada

Rutaceae

Ruta graveolens

jambo

alimentar

Myrtaceae

Eugenia sp.

curaça

introduzida

ciriguela

introduzida

Anacardiaceae

Spondias purpurea

alimentar

carqueija

introduzida

Asteraceae

Baccharis trimera

medicinal

folha distúrbios do

estômago

capim santo

introduzida

Poaceae Cymbopogon densiflorus

medicinal

folha

calmante e diurético

pau ferro

introduzida

Leguminoseae

Caesalpinea ferrea

medicinal

diabetes

tipi

introduzida

cana

introduzida

Poaceae Saccharum officinarum

alimentar

café

introduzida

Rubiaceae

Coffea arabica

alimentar

fruto

lambedor

introduzida

medicinal

folha

gripe

Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011