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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LUCIANE ROCHA FERREIRA A ECONOMIA SOLIDÁRIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA: O “OLHAR” FENOMENOLÓGICO QUE O GRUPO MUDAR LANÇA SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO Cuiabá - MT Dez/2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LUCIANE ROCHA FERREIRA

A ECONOMIA SOLIDÁRIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE

EMANCIPAÇÃO POLÍTICA:

O “OLHAR” FENOMENOLÓGICO QUE O GRUPO MUDAR LANÇA

SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO

Cuiabá - MT

Dez/2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LUCIANE ROCHA FERREIRA

A ECONOMIA SOLIDÁRIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE

EMANCIPAÇÃO POLÍTICA:

O “OLHAR” FENOMENOLÓGICO QUE O GRUPO MUDAR LANÇA

SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade, na Linha de Pesquisa Trabalho e Educação.

Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano

Cuiabá - MT

Dez/2011

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

F383e Ferreira, Luciane Rocha.

A economia solidária enquanto estratégia de emancipação política :

o “olhar” fenomenológico que o Grupo MUDAR lança sobre seu

processo de formação / Luciane Rocha Ferreira. -- 2011.

186 f. ; 30 cm.

Orientador: Edson Caetano.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,

Cuiabá, 2011.

Inclui bibliografia.

1. Economia solidária – Educação. 2. Política – Educação. 3.

Fenomenologia. 4. Grupo MUDAR. 5. Emancipação política. I. Título.

CDU 37.035:316.423.6

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099

Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte

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LUCIANE ROCHA FERREIRA

LUCIANE ROCHA FERREIRA

_______________________________________________ Examinador Externo: Prof. Dr. Danilo Romeu Streck Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

________________________________________________ Examinador Interno: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

_______________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Aprovada em: 19 de dezembro de 2011.

DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT

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Agradeço

e dedico este trabalho

a Deus, primeiramente,

e, com especial “olhar”,

à dedicação e exemplo de minha mãe, Francisca Ferreira dos Santos,

à paciência e compreensão de minha filha Luany Ferreira de Carvalho

e do meu filho Wendell Ferreira da Cruz,

à incondicional presença e apoio do meu companheiro Márcio Pielke,

ao meu orientador, Prof. Dr. Edson Caetano,

e ao Prof. Dr. Luiz Augusto Passos,

que foram fundamentais nesta caminhada!

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A educação tem sentido porque o mundo

não é necessariamente isto ou aquilo,

porque os seres humanos são tão

projetos quanto podem ter projetos para o

mundo. “A educação tem sentido porque

mulheres e homens aprenderam que é

aprendendo que se fazem e refazem,

porque mulheres e homens se puderam

assumir como seres capazes de saber, de

saber que sabem, de saber que não

sabem”.

(FREIRE, 2000, p. 63)

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RESUMO Esta pesquisa de Mestrado em Educação trata de algumas experiências de enfrentamento a determinadas “situações-limite” que estão sendo construídas de forma coletiva e autogestionária por atrizes e atores da dita “Baixada Cuiabana”. A centralidade é compreender como algumas pessoas que participam do Movimento Social da Economia Solidária percebem seu próprio processo de formação política e de produção do conhecimento construídas em mediação no e pelo trabalho. Trabalhamos com a idéia de que a Economia Solidária se configura enquanto uma estratégia política e pedagógica, que acolhe em si diversos significados, tanto objetivos e materiais quanto subjetivos e imateriais, visando possibilidades de melhoria na qualidade de vida das/os envolvidas/os. A postura diante desta realidade é dialético-fenomenológica, segundo Maurice Merleau-Ponty em diálogo com a Educação Popular de Paulo Freire. A participação em vários momentos de Formação, seja nas Oficinas, Seminários e Conferências, Encontros e Feiras Regionais, Estadual e Nacional de Economia Solidária, seja em reuniões do Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES), no Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) ou da Rede Matogrossense de Educação e Sócioeconomia Solidária (REMSOL), nos possibilitaram uma determinada inserção à realidade pesquisada, que pode ser considerada suficiente para uma pesquisa qualitativa fenomenológica participante. Assim sendo, consideramos a Etnografia e a Descrição Densa, conforme Geertz, as ferramentas mais adequadas para termos condições teórico-metodológicas de conduzir as interpretações. A visão da pesquisadora faz parte significativa na compreensão histórica, política, cultural e social sobre o fenômeno em questão. É ela também uma destas pessoas que busca, através de uma comunhão necessária ao processo de “pari” uma nova forma de se estabelecer relação na sociedade, um outro mundo possível.

Palavras chave: Economia Solidária; Emancipação Política; Educação & Trabalho;

Fenomenologia.

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ABSTRACT This research of Masters in Education deals with some experiences of confrontation labeled as “limit-situation” that are being constructed in a collective and self-managing way by actresses and actors at the so called "Baixada Cuiabana" area. It's central to understand how some people who participate of the Social Movement of the Solidary Economy perceive their own politic formation process and their production of knowledge built by and for the work itself. We work with the idea that the Solidary Economy is set as a political and pedagogical strategy, which has diverse meanings built in itself, both objective and material as much as subjective and incorporeal, aiming at possibilities of improvement in the quality of life of the people involved. The posture assumed towards this reality is one dialectic-phenomenological, according to Maurice Merleau-Ponty in dialogue with the Popular Education by Paulo Freire. Taking part in several moments of the schooling process, either in the Regional Workshops, Seminars and Conferences, Meetings and Fairs, in the State and Country's Solidary Economy, either in meetings of the State Forum of Solidary Economy (FEES), in the Brazilian Forum for Solidary Economy (FBES) or of the Mato Grosso's Network for Socio-economy & Education (REMSOL), made possible for a definitive insertion into the studied reality, that can be considered sufficient for a qualitative phenomenological research. Thus, we consider the Ethnography and the Dense Description, according to Geertz, the best tools for having theoretical-methodological conditions to lead the interpretations. The vision of the researcher is a significant part in the political and historical, cultural and social understanding of the phenomenon. She is one of those people who search, through a necessary communion to the process of “giving birth”, a new form of establishing relationships in society, a different and possible world.

Key words: Solidary Economy; Political Emancipation; Education & Work;

Phenomenology.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABONG Associação Brasileira das Organizações não Governamentais

AF Agricultura Familiar

AMAMT Associação de Mulheres em Ação do Mato Grosso

AMAR Associação Mato Grossense de Artesãos

ANTEAG Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão

ATER Assistência Técnica e Extensão Rural

CCU Carta de Concessão de Uso

CEES Conselho Estadual de Economia Solidária

CFES Centro de Formação em Economia Solidária

CONAES Conferência Nacional de Economia Solidária

CONSEA Conselho de Segurança Alimentar

CPR/FEES Comissão Provisória de Reestruturação do Fórum Estadual de Economia Solidária

CUFA Central Única de Favelas

CUT Central Única dos Trabalhadores

DAP Declaração de Aptidão ao PRONAF

ECOSOL/ES Centro Público de Economia Solidária do Espírito Santo

EES Empreendimentos Econômicos Solidários

EJA Educação de Jovens e Adultos

EMESOL Encontro Matogrossense de Educação e Socioeconomia Solidária

FBES Fórum Brasileiro de Economia Solidária

FEES Fórum Estadual de Economia Solidária

IMS Instituto Maristas de Solidariedade

IOV Instituto Ouro Verde

LAU Licença Ambiental Única

MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

MGLBT Movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transsexuais

MMC Movimento das Mulheres Camponesas

MS Movimento Social

MST Movimento dos Sem Terra

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

MUDAR Mulheres Unidas Determinadas na Ação pelo Reconhecimento

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NUEPOM Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Organização das Mulheres

PAA Programa de Aquisição de Alimentos

PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar

PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

RECID Rede Cidadã/Talher: estrutura do Programa FOME ZERO

REMSOL Rede Matogrossense de Educação e Socioeconomia Solidária

SECITEC Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia

SEDRAF Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar

SEDUC Secretaria de Estado de Educação

SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária

SPG Sistema Participativo de Garantia

SIES Sistema Nacional de Informação em Economia Solidária

TICs Tecnologias de Informação e Comunicação

UNISOL Brasil Central Nacional de Cooperativas e Empreendimentos da Economia Solidária

UNITRABALHO Incubadora de EES

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

1 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO ............................................... 23

1.1 ORIENTAÇÃO SULEADORA DA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA

DO OBJETO ..................................................................................................... 23

1.2 MEMÓRIAS DE UMA VIDA: DE ONDE FALA A PESQUISADORA ................ 27

2 A PESQUISA ....................................................................................................... 40

2.1 PERCURSOS INICIAIS DA PESQUISA ........................................................... 40

2.2 GRUPO MUDAR: PASSEIO PELA HISTÓRIA DO GRUPO E DAS

MULHERES QUE O FAZEM ............................................................................ 42

2.3 UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO SOBRE GÊNERO: PELO DIREITO

DE SER MULHER ............................................................................................. 51

2.4 ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DA MULHER NESTA CONSTRUÇÃO:

EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” NA PERSPECTIVA DE

GÊNERO ........................................................................................................... 53

3 A ECONOMIA SOLIDÁRIA ................................................................................. 58

3.1 O PROBLEMA EM QUESTÃO ......................................................................... 58

3.2 ECONOMIA SOLIDÁRIA: EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” ........... 62

3.3 A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO MATO

GROSSO HOJE ................................................................................................ 69

4 COMERCIALIZAÇÃO E FORMAÇÃO: ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO

POLÍTICA ............................................................................................................. 75

4.1 PARTICIPAÇÃO NAS FEIRAS PANTANEIRAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA,

AGROECOLOGIA E AGROEXTRATIVISMO ..................................................... 75

4.1.1 Idéias Destacadas .......................................................................................... 76

4.1.2 Algumas Discussões ...................................................................................... 78

4.2 O SEMINÁRIO ESTADUAL DE COMERCIALIZAÇÃO SOLIDÁRIA:

DISCUTINDO A COMERCIALIZAÇÃO COM OS EES DO CAMPO E

DA CIDADE ....................................................................................................... 90

4.2.1 Comercialização como Estratégia de Construção Coletiva ............................ 93

4.2.2 Espaço de Comercialização ........................................................................... 96

4.2.3 Relações de Confiança ..................................................................................100

4.2.4 Intercâmbios de Tecnologias ..........................................................................103

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4.2.5 Pistas de Estratégias Possíveis .................................................................... 107

4.3 SEMINÁRIO REGIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA PERSPECTIVA

POSSÍVEL DA COMERCIALIZAÇÃO DOS EES NA REGIÃO CENTRO-

OESTE ............................................................................................................. 109

4.3.1 Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS) .......................... 115

4.3.2 Apresentação da Experiência da Associação dos Produtores Orgânicos

do Mato Grosso do Sul (APOMS) .................................................................. 118

4.3.3 Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA-PNAE):

Territórios da Cidadania ................................................................................. 121

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENTES PERSPECTIVAS E

HORIZONTES SEMELHANTES EM DIÁLOGOS E CONVERGÊNCIAS ......... 124

5.1 A AUTONOMIA E AUTO ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES ......................... 127

5.1.1 Depoimentos ................................................................................................. 127

5.1.2 Debates ......................................................................................................... 130

5.1.3 Discussões na Plenária ................................................................................. 131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 140

ANEXOS ................................................................................................................ 144

Formação e Comercialização: A Autogestão em Empreendimentos Econômicos

Solidários em Discussão durante a I Feira de Economia Solidária em Colíder/MT.145

Marketing em Empreendimentos Econômicos Solidários........................................151 Estratégias na Composição de Custos em Empreendimentos Econômicos Solidários:

Uma Experiência de Pedagogia da Alternância-Escola Do Campo em Diálogo com a

AAFERG................................................................................................................154

Reflexões sobre a X Reunião da Coordernação Nacional do Fórum Brasileiro de

Economia Solidária – FBES: Uma Perspectiva Regional.........................................165

Diálogos e Convergências: Carta de Salvador.........................................................177

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de Mestrado é fruto de uma história de luta e resistência. Ela

pretende observar e compreender como se dão algumas experiências e vivências de

determinados Grupos que estão se organizando de forma coletiva e que buscam,

orientados por princípios da solidariedade defendida pelo Movimento Social (MS) da

Economia Solidária (ES), enfrentar algumas “situações-limites”1 que estão presentes

no cotidiano destas pessoas.

Nesta oportunidade, o processo de formação pelo qual estas pessoas

participam é o fenômeno privilegiado como foco central de nosso “olhar”

compreensível. Em determinados momentos estarão presentes outras dimensões

que dialogam com a perspectiva central, como por exemplo, a questão de gênero.

Porém, sem nenhuma pretensão de aqui serem aprofundadas, cabendo sim uma

pesquisa própria para tais dimensões, dadas suas amplitudes e relevâncias neste

contexto.

Segundo o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (SIES),

a Economia Solidária é compreendida como o conjunto de atividades econômicas –

de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas e realizadas

solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva e

autogestionária (BRASIL, 2007).

Durante a IV Plenária de Economia Solidária, alguns grupos de produção, ou

Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), militantes, Assessorias e Gestores

Públicos reunidos para um trabalho de grupo chegaram ao consenso de que ela

também pode ser compreendida ”enquanto um MS que é constituído por diversos

Fóruns, Conselhos, Redes e Cadeias, como estratégia para o desenvolvimento

sustentável de um novo tecido social por meio da Educação em todos os seus

níveis” (GT na IV Plenária da ES, 2008).

Nesta oportunidade será feito um esforço teórico-metodológico na tentativa de

se compreender fenomenologicamente como algumas pessoas que compõem um

EES veem, na prática do seu cotidiano, o seu próprio processo de formação, o qual

se dá em vários momentos fomentados pela dinâmica organizacional da ES. Ela é

1 “Situações-limites” são constituídas por contradições que envolvem os indivíduos, produzindo-lhes

uma aderência aos fatos e, ao mesmo tempo, levando-os a perceberem como fatalismo aquilo que lhes está acontecendo (OSOWSKI, 2008, p. 384 – Dicionário Paulo Freire).

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composta fundamentalmente por três segmentos: EES, Assessorias (Universidades,

ONGs, Igrejas...) e Gestores Públicos.

Acompanham de perto também militantes que são pessoas de outros MS ou

não, mas que não fazem parte de nenhum destes segmentos. Cada uma possui

características distintas, isto não quer dizer que uma necessariamente anule a outra,

ou seja, é possível que uma pessoa integrante de um EES também pode, em

momentos diversos, ser uma multiplicadora frente à formação (assessorar outros

grupos). Durante as plenárias ela está pela sua representatividade maior.

A Educação Popular, nesta perspectiva, é a metodologia privilegiada dentro

dos processos políticos e pedagógicos da formação dentro da ES; assim sendo, esta

prática de formação continuada intergrupos é comum e muito estimulada entre os

grupos que participam deste MS enquanto estratégia de empoderamento político e

socialização de saberes.

Durante nosso diálogo, por vezes, será retomado sobre as competências e

características destes segmentos formados pelas atrizes e atores que ora fazem e

refazem esta história. Em muitos momentos eminentemente formativos destes

coletivos foram abordadas questões específicas da organização dos mesmos.

Assim, formação e organização caminham de mãos dadas durante os processos

instituintes da ES.

Durante este processo a identidade coletiva dos grupos muitas vezes é

estimulada/provocada a estabelecer diálogo, ao mesmo tempo, com as

subjetividades individuais de cada membro, e também com diversas outras

identidades coletivas e individuais dos outros grupos de EES, Assessorias e

Gestores Públicos, o que faz com que muitas “situações-limites” se apresentem

enquanto desafios a serem enfrentados e, na medida do possível, superados.

Neste percurso, acreditamos que o primeiro movimento a se considerar é o

intersubjetivo, enquanto base das relações. O diálogo intersubjetivo intrínseco ao

processo de “fazimento” de identidades e pertencimentos, das gentes e de suas

capacidades de reinvenção do próprio cotidiano, é o ponto mais melindroso, pode-se

dizer, de todo este empreendimento coletivo, uma vez que o movimento que se dá a

nível da construção perceptual entre o “eu” e o “outro” exige determinado esforço

intra e interpessoal, pois:

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Quando me volto para minha percepção e passo da percepção direta ao pensamento dessa percepção, eu a re-efetuo, reencontro um pensamento mais velho do que eu trabalhando em meus órgãos de percepção e do qual eles são rastro. É da mesma maneira que compreendo outrem. Aqui, novamente, só tenho o rastro de uma consciência que me escapa em sua atualidade e, quando meu olhar cruza com um outro olhar, eu re-efetuo a existência alheia em uma espécie de reflexão. Aqui não há nada como um ”raciocínio por analogia”. Scheler o disse muito bem, o raciocínio por analogia pressupõe aquilo que ele devia explicar. A outra consciência só pode ser deduzida se as expressões emocionais de outrem e as minhas são comparadas e identificadas, e se são reconhecidas correlações precisas entre minha mímica e meus “fatos psíquicos”. (...) Entre minha consciência e meu corpo tal como eu vivo, entre este corpo fenomenal e aquele de outrem tal como eu o vejo do exterior, existe uma relação interna que faz outrem aparecer como acabamento do sistema. A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo, e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 471-472).

É interessante, ainda, destacar que em meio a todo este movimento, intra e

interpessoal, que está acontecendo entre as pessoas e o mundo que as cercam,

existe toda uma problemática a se considerar a respeito das construções coletivas

dos sentidos e significados, identidades e pertencimentos, onde o movimento é

muito complexo.

Como veremos no decorrer da leitura que se seguirá, os processos aqui

propostos e pretensamente construídos de forma coletiva se deparam com muitas

condições, situações e variantes sociais que precisam ser consideradas em uma

perspectiva aberta e de “estar sendo”, caso contrário não seria possível dar conta de

uma aproximação que pudesse expressar minimamente a realidade vivida nesta

experiência.

Este é um processo que possui muitas possibilidades, uma vez que, ao

fazermos o ensaio desta arquitetura social, a incompletude e a ambiguidade são

algumas das certezas que nos acompanham. Portanto, para pensar no mundo vivido

e tê-lo como fenômeno a se contemplar, é preciso antes de tudo um esforço pessoal

de se despir dos conceitos do pronto e acabado, de certo e de errado, de verdade e

mentira, enfim, é preciso que se perceba a impossibilidade de marcar o mundo

objetivo do subjetivo de forma fragmentada, uma vez que são co-relacionados.

Este movimento complexo, não linear, por vezes contraditório pela própria

dinâmica que lhe é a característica social, perpassa por dimensões de ordem ora

pessoal (individual) e ora interpessoal (coletiva), mundo objetivo e subjetivo em um

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movimento dinâmico que também recebe muitas energias (desejos) da relação

intrapessoal, consciente e inconsciente. Tudo isso onde o mundo material e imaterial

coexistem em um movimento dialético e não presumido.

Estas conexões e interconexões ocorrem simultaneamente, não há a

possibilidade de se perceber este emaranhado de “coisas” acontecendo uma por

vez, como em câmara lenta dos filmes de época. E sobre esta aparente contradição,

Berger e Luckmann citam e refletem sobre esta similitude, reportando-se à teoria

Sociológica defendida por Durkheim e Weber:

Durkheim diz-nos: “A primeira regra e a mais fundamental é: Considerar os fatos como coisas”. E Weber observa: “Tanto para a sociologia no sentido atual quanto para a história o objeto do conhecimento é o complexo de significados subjetivo da ação”. Estes dois enunciados não são contraditórios. A sociedade possui na verdade facticidade objetiva. E a sociedade de fato é construída pela atividade que expressa um significado subjetivo. [...] É precisamente o duplo caráter da sociedade em termos de facticidade objetiva e significado subjetivo que torna sua realidade sui generis [...] como é possível que significados subjetivos se tornem facticidades objetivas? Ou, em palavras apropriadas às proposições acima mencionadas: Como é possível que a atividade humana (Handeln) produza um mundo de coisas (choses)? (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 33-34).

É complicado dizer, diante desta situação contraditória e ao mesmo tempo

intrinsecamente co-relacionada, como são o mundo objetivo e o subjetivo, que o

esforço empreendido no processo de construção por uma nova forma de se

estabelecer relação no seio da sociedade capitalista realizada por estas pessoas,

por exemplo, é algo simples, natural ou que seja possível afirmar este um processo

sem rupturas, linear e predeterminado.

Entendendo o quanto estas questões são complexas, nos cabe considerá-las

enquanto mais um desafio ao “olhar” compreensivo, tomando o cuidado para não

nos perdermos no relativismo, e ainda assumir uma postura aberta para as

possibilidades que se abrem diante de tal constatação: a realidade se faz neste

processo contínuo e, portanto, inacabado.

Outra questão apresentada e que precisa ser levada em consideração é o

fato de o Grupo MUDAR (Mulheres Unidas Determinadas em Ação pelo

Reconhecimento) ter toda a sua constituição formada por mulheres. Assim, se

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colocam estas duas dimensões tão distintas e complexas, além de serem muito

amplas, o Gênero e a Formação.

São questões emergentes do MS da ES, que estão ao mesmo tempo inter-

relacionadas e em diálogo constante, o que configura em mais desafios a serem

enfrentados. É importante lembrar aos leitores que nesta experiência o fenômeno

principal a ser compreendido é o processo de Formação através do “olhar”

fenomenológico de um EES.

Será considerada a dimensão de gênero mais como uma proposta da

necessária retomada mais minuciosa sobre esta questão. Seria por demais ousadia

dizermos que aqui esta questão seja transversal para o diálogo que ora trazemos,

devido à amplitude e importância destas reflexões e discussões. Temos consciência

de sua importância que com certeza nos é cara, porém impossível de darmos conta

neste momento.

Por outro lado, pelo fato de o Grupo MUDAR, em muitos momentos, ter

deixada explícita a necessidade de problematizar a situação do trabalho e das

responsabilidades femininas nesta sociedade e, em contra partida, sua participação

na construção desta contra-proposta por outra sociedade possível, acreditamos ser

imprescindível um trabalho minucioso sobre estes processos de ressignificação do

que está posto.

A discussão de gênero, nesta perspectiva, estará presente em nosso diálogo

mais como elemento de base, por entendermos que as relações estabelecidas em

meio às discussões durante as reuniões do Fórum Estadual de Economia Solidária

(FEES/MT) e, em encontros diversos, durante a produção e comercialização,

formam um conjunto significativo de conhecimento que colabora para a

problematização da situação das mulheres e dos homens, situações estas que

foram delineadas historicamente, de forma a minimizar a imagem de um em

detrimento do outro.

É importante destacar que esta situação apresentada reflete a urgência da

necessidade de ações integralizadoras entre as Políticas Públicas (PP), para que

haja fomento visando a promoção e estímulo às iniciativas que, porventura, partam

dos coletivos de EES organizados ou dos grupos de Assessorias que os

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acompanham, para que se contribua significativamente com o empoderamento2 das

pessoas envolvidas nestas experiências sócio econômicas.

Sabemos que há uma infinidade de pluralidades sócio-culturais presentes na

sociedade como um todo, identidades e culturas singulares de pessoas que estão

dentro deste processo que ora está sendo construído e que precisam ser

consideradas, valorizadas e colocadas no centro de reflexões mais amplas, como

estratégia de se buscar superar toda uma cultura heteroconstruída, vislumbrando

nos momentos de formação e organização, e no próprio cotidiano, espaços

potencialmente férteis para tal problematização.

Buscar-se-á, enquanto estratégia/postura metodológica e epistemológica para

reflexão e discussão, um diálogo estreito com Freire e Merleau-Ponty, a partir de

uma pesquisa qualitativa com viés dialético-fenomenológico, por acreditar que tais

leituras só alcançarão determinada legitimidade pela possibilidade de irem além das

evidências, em uma relação com o objeto de estudo, em questão de forma aberta,

“antidualista e antireducionista”.

Neste sentido, esta proposta tem o processo de formação em seus aspectos

teórico-prático e metodológico, ou seja, no âmbito da formação política, técnica e

ética como tema principal, tendo de forma privilegiada algumas experiências do

Grupo MUDAR, enquanto base para reflexões e compreensão dos aspectos

intrínsecos aos processos instituintes da ES, organização que se apresenta com

projeto político-pedagógico diferenciado de visão de mundo e de sociedade.

Desta forma, acredita-se que tal processo possa contribuir significativamente

para com a melhoria da qualidade de vida das pessoas envolvidas direta e/ou

indiretamente nesta caminhada, e abre possibilidades de construção e legitimação

de um mundo melhor.

Entre as várias possibilidades de ação, algumas que colaboraram para o

alcance de determinado acúmulo de informações, para posterior análise

compreensiva, foram fazer um levantamento parcial da formação oferecida nos

espaços da Economia Solidária na experiência de Cuiabá-MT, principalmente nos

2 Parafraseando Leila Kaas, Empowerment, embora seja um termo utilizado pela língua inglesa

significando “dar poder” a alguém para realizar uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas, é uma ação que denota doação/benevolência; o conceito de Empoderamento em Paulo Freire segue uma lógica diferente. Para o educador, a pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer; pressupõem transformação (...). Implica conquista, avanço e superação por parte daqueles e daquelas que se empoderam (sujeito ativo do processo).

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que integrante(s) do Grupo MUDAR tenham participado, e sistematizar algumas

contribuições significativas ocorridas em meio à coletividade durante os momentos

das reuniões do FEES/MT, do FBES, Encontros, formações e comercialização nas

Feiras de ES e durante a produção deste EES.

Para tanto, acompanhar o Grupo para compreender as mudanças, caso

houvessem, que a formação proposta e vivida tivesse, porventura, promovido, foi

fundamental para com o desejo de poder colaborar com a construção da história do

movimento em Cuiabá-MT com base em uma experiência concreta.

Percurso da Organização dos Capítulos

O caminho a ser trilhado por esta Dissertação está organizado em quatro

Capítulos que, apesar de distintos, se correlacionam, dialogam e se complementam,

tanto que por vezes algumas repetições sobre determinadas dimensões ou

categorias podem ocorrer.

Eles tecerão algumas considerações a respeito dos condicionantes históricos,

culturais e sociais, com argumentações nos campos teóricos e empíricos, com base

na dimensão do “olhar” do Grupo MUDAR sobre o processo de Formação que

participa dentro da dinâmica organizacional privilegiada pela ES no MT, concebendo

este como parte significativa neste processo de compreender a realidade.

Tomando todas estas considerações como ponto de partida, na primeira parte

estarão conceitos chave que ancoram nossa perspectiva de mundo, de homem, de

cultura, de sociedade e de conhecimento. Percebendo a indubitável relação

dialógica e antidualista na produção e reprodução das vidas, sem, no entanto,

buscar verdades, mas possibilidades do “estar sendo”.

Assim sendo, no primeiro Capítulo estarão algumas das contribuições de

Merleau-Ponty (1994), principalmente frente à compreensão da Fenomenologia,

enquanto Ciência e Metodologia de aproximação e compreensão da realidade

vivida; na compreensão de dimensões fundamentais como a visão - o “olhar” - de

mundo e do mundo, a partir da percepção na perspectiva de horizonte: “ver é

sempre ver de algum lugar”; a intersubjetividade e suas implicações nesta

experiência: o poder estesiológico; na postura antidualista: nem Empirismo nem

Intelectualismo e na impossibilidade de apreensão total da realidade: “o mundo é um

mundo de perspectivas”.

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Nosso trabalho traz Paulo Freire para o diálogo, entre suas contribuições as

mais expressivas estarão nos dando a base necessária à compreensão da

importância da formação dialógica e dialética para a emancipação e o

empoderamento; do poder e da importância da inserção lúcida das pessoas em seu

processo de formação política e humana; na valorização da “palavra” enquanto

estratégia de retomada da consciência: antes, consciência para Freire; na utilização

das categorias que suleam3 a construção continuada e “inacabada” do ser e do

conhecimento: “inédito viável”, “situações-limites”, “empoderamento”, “ser mais” e a

importância da “imersão” e “emersão” enquanto processos contínuos que são, ou

não, desdobramento da praxes, da capacidade de engajamento político.

Utilizaremos como instrumento privilegiado as Histórias de Vida e a

Etnografia, na configuração da descrição densa de Clifford Geertz (1989). Esta foi

nossa ferramenta metodológica durante todo o percurso desta experiência. Também

nos deu suporte teórico crítico sobre o conceito de cultura, sua co-participação neste

empreendimento, juntamente com Merleau-Ponty e Freire, foi preciosa pela postura

aberta diante de determinados condicionantes.

Outros estudiosos, como Gutiérrez (1993) e Berger e Luckmann (1985),

também foram convidados a colaborar com o percurso de compreensão da realidade

pesquisada, como também pesquisadores que discutem a temática da Economia

Solidária no cenário brasileiro, como Zart (2004), Singer (2000) e Adams (2007).

E se tratando do tema que nos desafia sobre a questão de gênero que,

apesar de não aprofundarmos, será impossível não discutir, convidamos

pesquisadoras que têm orientação teórica crítica, que discutem a questão de

gênero, entre elas Louro (1997) e Del Priore (1997), além de outros materiais

organizados pelo Movimento dos Sem Terra (MST).

Alguns materiais produzidos pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária

(FBES), em conjunto com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e

a Lei Estadual de Economia Solidária nº 8.936, de 17 de Julho de 2008, nos deram

suportes estatísticos e legais a respeito de algumas dimensões deste MS.

3 O termo “sulear” tem sido utilizado, de modo explícito, por Freire no livro Pedagogia da Esperança

(1994, p. 218-219). [...] Como contraponto ao “nortear”, cujo significado é a dependência do Sul em relação ao Norte, “sulear” significa o processo de autonomização desde o Sul, pelo protagonismo dos colonizados, na luta pela emancipação (STRECK et al., 2008, p. 396 - Dicionário Paulo Freire).

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É importante que se compreenda o sentido fenomenologicamente pensado e

vivido desta pesquisa. Assim, a raiz metodológica ou o referencial metodológico, que

permeiam toda a nossa proposta, estarão também aqui a partir de elementos

essenciais que ajudarão na compreensão das condições sócio-culturais que levaram

a militante e pesquisadora, ou vice-versa, a privilegiar como dimensão social o MS

da ES em lugar de qualquer outra Organização Social.

Seguindo este raciocínio, o porquê de se verificar as experiências de um

Grupo de Mulheres em lugar de um Grupo Misto, ou ainda um formado somente por

homens; o Grupo MUDAR em um município como Cuiabá, que possui, segundo o

último mapeamento da ES, 66 EES (Brasil, 2006), só na zona urbana; enfim, afinal,

de onde a pesquisadora está falando.

Dizer das mulheres que compõem o Grupo é fundamental, inclusive pensando

em dar vida à “fala” delas foi que assumimos o viés fenomenológico, e é esta lente

que acompanha toda esta pesquisa. Assim propomos, enquanto desdobramento

deste segundo momento, de onde fala a pesquisadora, percorrer uma breve viagem

através das Histórias de Vida através da descrição densa, conforme Clifford Geertz

(1989), verificando o contexto social destas mulheres, onde moram e o que

produzem.

Buscando perceber como elas vêem o processo de formação do qual elas

participaram e como se organizam dentro da dinâmica do cotidiano do Movimento da

ES em Mato Grosso, nossa proposta é justamente tecer um diálogo a partir de

momentos ímpares vivenciados por integrantes do Grupo, tentando apreender o

“olhar” delas sobre este que estamos chamando de processo de formação política.

Em destaque serão tomadas, enquanto ponto de partida, as falas

significativas das e dos protagonistas desta experiência. No momento em que

falarmos da ES na experiência do Mato Grosso, a partir das vivências de integrantes

do Grupo MUDAR particularmente, mas não exclusivamente, o faremos a partir de

sistematizações construídas durante o percurso da militância e da pesquisa (2003-

2006).

Também será considerado o material produzido durante o período de 2007 a

2010, resultado de um trabalho realizado por nós, iniciado ainda durante a

Graduação, enquanto Bolsista PIBIC do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais

e Educação (GPMSE).

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Para além de todo este material, serão utilizados alguns depoimentos do

Grupo MUDAR, registrados durante os momentos já mencionados, momentos estes

onde a formação se confunde, por vezes, com a organização destas mulheres.

Nesta perspectiva, também é importante compartilhar o que entendemos por

ES a partir de leituras realizadas em alguns espaços de organização política deste

MS, com isso verificando quais são seus princípios suleadores, e breve panorama

em termos de Brasil, de Região Centro-Oeste, no Mato Grosso e mais precisamente

no município de Cuiabá que, por vezes, se confunde com a história da “Baixada

Cuiabana” e do próprio estado, pela sua trajetória de ação.

No segundo capítulo a discussão traz consigo um momento que

consideramos como o percurso inicial da pesquisa. Aqui será compartilhada parte da

trajetória de criação do Grupo MUDAR que, no primeiro capítulo, nos processos

metodológicos, já foi iniciada. O passeio pela história do Grupo e das mulheres que

o fazem será aqui destacado.

Nesta oportunidade também estarão algumas discussões breves, mas

provocativas, a respeito de Gênero. A intenção é fazer uma espécie de

problematização desta questão dentro da experiência da “Baixada Cuiabana”, com

base nas “leituras” e discussões que o Grupo vivenciou dentro do processo de

formação circulado dentro da ES.

A participação política e pedagógica dos EES, com seus limites e

possibilidades, se fez em situações como estas, bem como em outros vários

momentos significativos, momentos estes decisivos, que contribuíram com

discussões sobre vários aspectos tratados pelos coletivos da ES em âmbito

estadual, regional e nacional, e que foram registrados nesta oportunidade.

Assim sendo, estas discussões estarão organizadas no terceiro e quarto

capítulos, onde daremos espaço para algumas discussões e reflexões sobre

algumas sistematizações feitas durante reuniões, eventos diversos, como

Seminários e Conferências, além das Feiras de ES e da Agricultura Familiar (AF).

Estes são alguns dos espaços onde o Grupo MUDAR se fez presente.

No terceiro capítulo o problema estará em questão a partir de algumas

leituras e discussões sobre a história do movimento em nossa experiência (estadual)

e a situação desta PP em nível local e estadual. A experiência da “Baixada

Cuiabana” será compartilhada através da colaboração de um conjunto de pessoas

(EES, Assessorias e Gestores Públicos) que fazem parte da Comissão Provisória de

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Reestruturação do Fórum Estadual de Economia Solidária do nosso estado

(CPR/FEES-MT).

No quarto capítulo serão compartilhadas as vivências e discussões realizadas

entre os processos de comercialização e formação. Estão presentes alguns

elementos que apontam este processo enquanto uma estratégia de organização dos

EES e, consequentemente, da ES em nossa região.

Nesta oportunidade, as idéias tecidas sobre alguns elementos destacados a

partir da compreensão de que são fundamentais para o Grupo MUDAR, fruto dos

momentos de comercialização e formação durante as Feiras Pantaneiras, estarão

aqui de forma descentralizada, ou seja, não necessariamente respeitando-se a

ordem cronológica de realização das Feiras em questão.

Também será feita a socialização de algumas discussões e reflexões sobre o

processo de organização da comercialização dos EES do estado e da Região

Centro-Oeste a partir da participação nos Seminários de Comercialização Solidária.

Neste ponto também teremos elementos que indicam que a organização e a

formação se “plasmam” como uma estratégia de fortalecimento destes coletivos, e o

Grupo MUDAR está muito próximo de todas estas complexas construções.

Estas reflexões estão no conjunto deste empreendimento, de forma mais ou

menos organizada, segundo este pretenso roteiro, ou seja, há alguns

questionamentos e percepções acerca de vários temas que compõem as bandeiras

de luta da ES em vários momentos, no decorrer dos quatro capítulos e nas nossas

considerações finais. Por isso, a percepção de idas e vindas no texto e contextos

pode acompanhar o leitor através de sua leitura.

As nossas considerações finais serão compartilhadas em uma perspectiva de

reflexão e continuidade. As dimensões do diálogo e de uma perspectiva aberta

diante das estruturas sociais darão o tom ao fechamento deste trabalho

pretensamente coletivo.

Estarão presentes elementos de discussões que, em certa medida, fazem um

balanço a respeito das vivências, angústias, desejos, sonhos/utopias e esperança

das pessoas envolvidas em torno da tentativa de se construir um outro mundo

possível. Nestes “diálogos e convergências”, entre desafios e oportunidades,

encerramos este trabalho, ao mesmo tempo em que um encontro nacional dos MS

acontece. O que nos brinda para um fechamento com uma perspectiva ou

provocação para a continuidade das lutas diárias.

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Em anexo estarão alguns materiais que trazem um pouco das discussões

travadas no espaço do I Encontro Nacional de Diálogos e Convergências, como

também materiais outros que fazem parte de um conjunto importante da

sistematização da história da ES no Estado de Mato Grosso e na Região Centro-

Oeste.

São momentos de diálogos, de parcerias, de denúncia e anúncio, e de

organização e formação, que aconteceram com a participação direta ou indireta de

integrantes do Grupo MUDAR, por isso mesmo é também um material interessante

para ser visitado.

Espera-se que a leitura deste material possa abrir leques de possibilidades

acerca do tema tratado. A intenção deste trabalho foi de buscar, na medida do

possível, colaborar abrindo espaço para as vozes de pessoas que historicamente

foram silenciadas na sociedade do Capitalismo.

Abrem-se, nesta perspectiva, muitas possibilidades além das já mencionadas,

entre elas a de ouvir a “palavra” das pessoas que tentam tomar para si a história de

suas próprias vidas.

A legitimação destas práticas e lutas perpassa pelo crivo da Academia e,

apesar disso, acreditamos que o simples fato da ação em si ter nascido da fala e

interesse das/os protagonistas de sua própria história, por si só já é uma vitória, já é

legítima.

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1 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

1.1 ORIENTAÇÃO SULEADORA DA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA DO

OBJETO

Como o fenômeno social em questão privilegia as experiências sócio-

históricas e culturais construídas coletivamente dentro do Movimento da ES, MS,

que possui por base e princípios as dimensões da Solidariedade, da Autogestão,

Cooperação e Sustentabilidade Econômica, reafirmamos que a postura

epistemológica diante destes dois aspectos, cogito e cogitatum, conteúdos e atos,

conhecimentos teóricos e experiência sensível, se darão a partir de um olhar

qualitativo fenomenológico.

O campo da vida social que ousamos aqui compartilhar acontece em uma

dinâmica complexa e contraditória, onde as objetivações das consciências e das

intencionalidades se dão na concretude da vida, e é na arena da vida onde me

percebo e sou percebido, em um movimento não linear, confuso por vezes e repleto

de contradições. Conforme Merleau-Ponty (1994, p. 26):

Construímos a percepção com o percebido. E, como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro. Estamos presos no mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo.

Nesta perspectiva, “não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente

um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos”

(op. cit., p. 13-14). Assim, compreendendo que a Fenomenologia é a Ciência das

essências dos fenômenos, e que considera não as “coisas” em si, mas o processo

como elas se dão e o “olhar” subjetivo dos sujeitos em correlação ao referido

processo, foi o que nos convenceu ser esta a postura mais adequada a ser

assumida nesta compreensão de como algumas pessoas que participam da ES

estão tecendo sua relação com o mundo, com o outro e consigo mesmas, dentro

dos processos de legitimação deste “inédito viável4”.

4 O inédito viável não é uma simples junção de letras ou uma expressão idiomática sem sentido. É

uma palavra na acepção freireana mais rigorosa. Uma palavra-ação, portanto práxis, pois não há

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O “olhar” que se lança aos processos como se dão, não somente no momento

presente, mas considerando-se toda uma trajetória de vida das/os envolvidas/os em

conjunto com o da construção dos mecanismos de superação das “situações-limites”

que se apresentam para estes grupos, é fundamental para esta percepção. Não nos

interessa explicar tal fenômeno e sim, perceber suas possibilidades e limites

enquanto um processo histórico.

É justamente esta dimensão que delineia toda nossa visão de processo

contínuo e infinito, pois “o inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo

não são o signo de um fracasso, eles eram inevitáveis porque a fenomenologia tem

como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão” (MERLEAU-PONTY,

ibid., p. 20).

Neste processo não descartamos as contribuições das investigações

qualitativas de cunho sócio-histórico, que conforme Bogdan e Bliken (1994, p. 11)

afirmam que:

... um campo que era anteriormente dominado pelas questões da mensuração, definições operacionais, variáveis, testes de hipóteses e estatísticas alargou-se para contemplar uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais. Designamos esta abordagem por Investigação Qualitativa.

Mesmo por que suas implicações estão nas teias dos fenômenos sociais mais

amplos, que são para os amantes da fenomenologia sua escola da vida no seio da

sociedade. Interessa-nos, como também interessa aos pesquisadores de cunho

sócio-histórico, as dimensões da história e da cultura, que considera a conduta

humana não apenas como produto da evolução biológica, graças à qual se formou o

tipo humano com todas as suas funções psicofisiológicas a ele inerentes, mas

também o produto do desenvolvimento histórico e cultural (VYGOTSKY, 1996).

Porém, a esta perspectiva epistemológica interessa avançar os limites da

descrição e compreensão dos processos, chegando à explicação dos fenômenos

observados, pois acreditamos que esta atitude também é uma das metas da

pesquisa, o que na fenomenologia não se persegue; a questão central, como já foi

dito, é como estes processos se dão.

palavra verdadeira que não seja práxis, daí, quer dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo (FREIRE, 1975, p. 91; 2008, p. 231).

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Para tanto, a descrição densa, conforme Geertz (1989, p. 07) é uma das

ferramentas fundamentais para a compreensão empírica dos fatos:

A etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, tratar as linhas de propriedade, fazer o senso doméstico... escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de...”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado.

O percurso trilhado para a construção deste empreendimento precisou

exercitar este “olhar” durante todo o seu processo de constituição. Nem por isso foi

simples. Muito pelo contrário, mas foi tomada enquanto procedimento metodológico

a descrição densa pelas possibilidades de aproximação à compreensão do

fenômeno em questão. Apostando em “construir uma leitura” da visão dos sujeitos

sobre seu processo de formação dentro do MS da ES.

Inclusive pensando que esta abordagem perpassa uma condição

instrumental-metodológica, “porque essa não é uma questão de métodos”, pois,

considerando o grande esforço de emersão e imersão à realidade pesquisada, bem

como junto aos seus fazedores, são estabelecidas relações e são estas que podem

fazer a diferença ao ato de desvelar a realidade.

Em nosso trabalho é importante dizer qual a definição de cultura e,

consequentemente, qual o papel que desempenha na vida dos homens, conceito

que nos acompanha; sendo assim, reportamo-nos mais uma vez a Geertz, quando

em sua obra lança duas idéias fundamentais, nas quais nos suleamos:

A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da

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pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento (GEERTZ, p. 32, 1989).

Ao buscar compreender como as integrantes do Grupo MUDAR veem seu

processo de formação dentro da dinâmica organizada pela ES e por elas mesmas é,

nesta perspectiva, impossível de se verificar de forma pré-determinada as diversas

falas, ações e projetos que as mesmas formulem a este respeito ou qualquer outro.

Sentimos a necessidade de ir um pouco mais além neste campo conceitual,

pelo fato de que a cultura está em nós como nós estamos nela. Ouve-se muito, em

meio às práticas sociais, que a cultura introjetada é uma força maior até que as

ideias, mas as ideologias estão nesta tanto quanto se é possível imaginar; é preciso,

por outro lado, que se perceba as armadilhas do discurso neoliberal, que incutem

ideias diversas sobre a “resistência” do povo, lembrando que:

Não haveria cultura nem história sem inovação, sem imaginação, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Posso não saber agora que riscos corro, mas sei que, como presença no mundo, corro risco. É que o risco é um ingrediente necessário à mobilidade sem a qual na há cultura nem história. Daí a importância de uma educação que, em lugar de negar o risco, estimule mulheres e homens a assumi-lo. É assumindo o risco, sua inevitabilidade, que me preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora e a que devo responder (FREIRE, 2000, p. 16).

Esta é uma construção coletiva de sentidos e significados culturais, é um

campo onde o que temos de subjetivo necessariamente dialoga com o objetivo e é

partindo deste processo dialógico e dialético que podemos construir ideias novas,

reelaborando as que já são ou estão legitimadas, desafiando-nos continuadamente a

ir além do que está posto.

Buscando verificar, neste movimento, possibilidades de abertura para os

diferentes sentidos e significados, uma possível superação da resistência frente aos

conjuntos polissêmicos dos processos sociais e culturais existentes. Assim sendo, a

abertura ao novo, ao diferente, ao diverso e criativo, à “inteligência coletiva”5, enfim,

aos infinitos modos de fazer-se no mundo e com o mundo podem ser respeitados.

5 Dimensão discutida por Paul Singer durante uma palestra feita no lançamento do Ponto de Cultura

assumido pela CUFA em MT.

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Outra dimensão privilegiada pela postura fenomenológica versa sobre a

possibilidade de dar a devida valorização à voz, a “palavra” e ao “olhar” dos sujeitos

e de onde os mesmos estão falando. Merleau-Ponty (1994) diz que “ver é sempre

ver de algum lugar”, o ponto de partida é o “lugar” onde estamos (perspectiva), e a

visão (horizonte) é sempre parcial.

Isso nos remete à questão de que não apreendemos a totalidade da

realidade, a não ser em correspondência com os outros, em diálogo e correlação

apoiados pelos “olhares” dos demais que fazem parte do contexto: o “olhar do outro”

complementa o nosso e, consequentemente, nossa visão de mundo.

Por isso a impossibilidade de apreensão do real, inclusive é essa

impossibilidade que dá ao “olhar” um lugar de destaque, de único e singular. De

possibilidades de legitimação de uma vivência. Pode-se dizer, assim sendo, que

esta pesquisa, ora socializada, é uma das muitas visões possíveis acerca do

processo de Formação dentro da ES na experiência de Mato Grosso, a partir de

algumas experiências/vivências construídas na trajetória do Grupo MUDAR.

Neste sentido, considera o “olhar” de uma pesquisadora que também faz

parte de um EES urbano, como parte significativa na compreensão do fenômeno em

questão, apoiando-se e sendo apoio em um movimento simultâneo de empatia que

pôde contribuir sobremaneira com este processo de desvelar a realidade conforme a

contribuição da percepção de um Grupo de EES da capital do Mato Grosso.

É importante dizer que a fenomenologia é uma ciência que nos dá a

possibilidade do transcender as aparências das coisas mesmas, podendo assim

chegar à compreensão mais próxima da realidade. Quando baseamos toda nossa

percepção diante do fenômeno aqui apresentado a partir da postura dialética

fenomenológica, foi pela possibilidade de transcender as evidências, o que está

posto de forma pronta e acabada.

1.2 MEMÓRIAS DE UMA VIDA: DE ONDE FALA A PESQUISADORA

Considerando-se todas as construções conceituais acima colocadas e dando

continuidade à trajetória científica deste empreendimento, será possível

compreender, a partir das leituras a seguir, por quais caminhos a metodologia,

privilegiada em diálogo com a postura epistemológica, colaborou com o percurso

durante a pesquisa.

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Traremos a trajetória militante da pesquisadora através de uma espécie de

memorial que pode oferecer subsídios para a compreensão dos percursos

metodológicos e de que maneira se apresenta a possibilidade de se ter uma leitura

significativa da realidade pesquisada.

Quando se pensa em trajetória de vida, a primeira coisa que se precisa definir

é por onde começar, e isso não é um processo simples. As experiências são muitas

e vividas em épocas distintas, as idas e vindas das lembranças se embaralham, não

permitindo uma reflexão que contemple de fato o vivido. É importante também que

se considere que este não é um processo que acontece isolado, ele é forjado em

meio à coletividade:

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 02).

Ao organizar as ideias é possível este repensar as memórias, contribuindo

com o processo de fortalecimento e valorização de quem somos, fazendo com que

as identidades pessoal e profissional sejam melhor delineadas, e com isso a

possibilidade de se tornar pessoas mais seguras diante da realidade vivida.

Esta organização pode ser considerada já um ato de formação, de construção

de conhecimento, uma vez que perpassa pela reflexão, pois “estar em formação

implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os

projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma

identidade profissional” (NÓVOA, 1995, p. 25).

Nesta perspectiva, o refazer os caminhos da trajetória de vida através das

memórias nos leva por caminhos onde a experiência que foi vivida, mesmo pelo

movimento dinâmico que acontece nos períodos subsequentes entre os atos do

“imediatamente passado e o futuro imediato”, confunde-se com os que se estão

vivendo:

Cada presente funda definitivamente um ponto do tempo que solicita o reconhecimento de todos os outros, o objeto é visto portanto a partir de todos os tempos, assim como é visto de todas as partes e pelo mesmo meio, que é a estrutura de horizonte. O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado imediato que o

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precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado e apreendido no presente. O mesmo acontece com o futuro iminente que terá, ele também, seu horizonte de iminência. Mas com meu passado imediato tenho também o horizonte de futuro que o envolvia, tenho portanto o meu presente efetivo visto como futuro deste passado. Com o futuro iminente, tenho o horizonte de passado que o envolverá, tenho portanto o meu presente efetivo como passado deste futuro. Assim, graças ao duplo horizonte de retenção e de protensão, meu presente pode deixar de ser um presente de fato, logo arrastado e destruído pelo escoamento da duração, e tornar-se um ponto fixo e identificável em um tempo objetivo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 106).

A complexidade deste movimento do tempo, conforme Merleau-Ponty, por

vezes impede uma reconstrução tal qual foi vivida. A correlação existente entre as

vivências e experiências significativas, considerando os fatores espaciais e

temporais, impede a retenção do vivido em sua plenitude.

Pensando nesta impossibilidade, pode-se compreender que a visão é sempre

parcial, não se apreende a totalidade de uma realidade, ela é sempre uma

correspondência interrelacionada com outros olhares, como que em um diálogo de

horizontes sempre aberto, indefinido e inconcluso.

Esta é uma dimensão forte que também influencia os processos da

constituição identitária, forjada no e pelo indivíduo e grupo social, e como tal precisa

ser considerada neste processo de construção pessoal e profissional, onde os

processos formativos possuem papel fundamental:

A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência (NÓVOA, 1995, p.25).

Partindo deste pressuposto, que propõe o recorte das memórias, do “lugar de

onde fala”, ou de “onde vem” a pesquisadora e militante, ou vice-versa. Sendo

assim, acredita-se que é a partir do momento em que se interessa pela vida em seus

processos de produção, ou seja, pela vida comunitária e os processos de formação

como instrumento de emancipação e ressignificação de identidades, que começa

toda esta história de pertença:

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um

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espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. (...) A construção de identidades passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional (DIAMOND, 1991). É um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças (NÓVOA, 1995, p. 16).

Esta também é uma estratégia de buscar, nas memórias de uma vida,

elementos materiais e imateriais suficientes para subsidiar determinada

emersão/imersão à realidade vivida, em diálogo com a teoria, e desta forma poder

colaborar efetivamente para com o desvelar do que está posto.

Nesta perspectiva, inicia-se em 2003 nossa caminhada, onde já formada, com

o 2º Grau em Magistério, no 2º casamento e com 02 filhos, na época um com 13 e a

outra de 03 anos, buscando dar sentido mais propositivo, criativo e prático no

sentido de práxis para a vida de dona de casa, aceito o convite da Presidente da

Associação de Mulheres do Bairro onde resido para lecionar aulas a duas turmas

com 20 alunos, na Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), como voluntária no

bairro onde morava, em uma comunidade localizada na periferia de Cuiabá, no

Bairro Nova Esperança I.

Há de se dizer um pouco também sobre esta comunidade, pois dela há muito

em cada pessoa que trabalha, estuda, enfim, que lá convive. Inclusive pelo fato de

considerarmos “o lugar” como ponto de partida para se fazer toda uma leitura de

mundo. Este lugar diz respeito também ao contexto, por isso a relevância de

descrever a Comunidade onde a pesquisadora estava inserida. Guardaremos para

tanto uma parte deste empreendimento, para a devida descrição.

O cenário político no momento era de efervescência para os MS, pois pela

primeira vez um representante legítimo do povo, um operário, havia sido eleito para

governar o país. Este foi o primeiro ano do mandato do Presidente Lula e, entre as

muitas medidas e programas lançados, o FOME ZERO foi um que se destacou por

ter em suas metas sociais o slogan de “ensinar as pessoas a pescarem e não

somente dar o peixe”.

Vislumbra-se nesta proposta uma alternativa viável de enfrentamento das

dificuldades de vida das pessoas que sobrevivem com quase nada, uma

possibilidade de renda e de acesso aos bens culturais - materiais e imateriais - e

sociais, enfim, da possibilidade de melhoria da qualidade de vida das pessoas.

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Este, com certeza, foi um marco, considerado um divisor de águas, pois de

uma vida antes sem perspectivas, sem muitos sonhos ou possibilidades, nasce o

desejo de buscar algo a mais, o “olhar” já era outro sobre os processos de

construção da própria vida e realidade. O ponto de partida foi o da situação como ela

se apresentava, uma vida sem estímulos, oportunidades, meios ou caminhos que

pudessem de fato conduzir a fatos significativos, momentos de realizações

emancipatórias.

Por realizações emancipatórias compreendemos estar em um movimento

constante de construção em conjunto com outras pessoas que anseiam por uma

liberdade negada, um coletivo que comunga de um intenso desejo de se ver e ver os

outros bem, com uma vida digna, com respeito à biodiversidade, às mulheres, às

questões de gênero, às comunidades campesinas, enfim, aos “diferentes” dentro

das diversidades, com perspectivas de melhoria da qualidade de vida, de maneira

propositiva e participativa:

Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade (FREIRE, 1993, p. 100).

Este “olhar” diferenciado, crítico, possibilitou a percepção de como as coisas

no mundo são todas engendradas por teias de significações. Assim, a vida que mais

parecia um todo sem significados, um amontoado de acontecimentos desconexos e

sem sentido, depois da inserção lúcida na realidade vivida, através da participação

ativa junto com outras pessoas que também não se sabiam, não se conheciam, foi

transformada.

Em meio a estes processos de construção pessoal/individual e

coletiva/comunitária percebemos o quanto estas dimensões estão inexoravelmente

correlacionadas ao exercício pleno da liberdade, sendo esta condição sine qua non

para este processo de “fazimento”, na verdade, este só pode se dar se houver

aquela:

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É por isso que a nossa liberdade não deve ser procurada nas discussões insinceras em que se afrontam um estilo de vida que não queremos pôr em questão e circunstâncias que nos sugerem um outro estilo de vida: a escolha verdadeira é a escolha de nosso caráter inteiro e de nossa maneira de ser no mundo. Mas ou esta escolha total nunca se pronuncia, ela é o surgimento silencioso de nosso ser no mundo, e então não se vê em que sentido ela poderia ser dita nossa, essa liberdade desliza sobre si mesma e é o equivalente de um destino – ou então a escolha que fazemos de nós mesmos é verdadeiramente uma escolha, uma conversão de nossa existência, mas então ela supõe uma aquisição prévia que ela se aplica a modificar e funda uma nova tradição, de forma que precisamos perguntar-nos se o arrancamento perpétuo pelo qual no início nós definimos a liberdade não é simplesmente o aspecto negativo de nosso engajamento universal em um mundo, se nossa indiferença em relação a cada coisa determinada não exprime simplesmente nosso investimento em todas, se a liberdade inteiramente pronta da qual partimos não se reduz a um poder de iniciativa que não poderia transformar-se em fazer sem retomar alguma proposição do mundo, e se enfim a liberdade concreta e efetiva não está nesta troca (...). Portanto, precisamos retomar a análise da Sinn-Gebung e mostrar como ela pode ser ao mesmo tempo centrífuga e centrípeta, já que está estabelecido que não existe liberdade sem campo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 587-588).

Não era possível esta percepção da liberdade naquela situação. Nossas

escolhas eram circunscritas ao mundo dos cuidados de casa, dos filhos e do marido,

sem muito relacionamento com a sociedade como um todo. Por isso a “disposição

para” não aconteceu assim rápido, de uma só vez.

O movimento “centrífugo e centrípeto”, as relações entre o “eu“ e o “mundo”,

de dentro para fora e de fora para dentro acontecia como em convulsões

descontroladas. Havia sim todo um movimento que despertava sentimentos e

sensações incompreensíveis, mas que foram fundamentais para começar a

perceber as “coisas” de forma diferenciada.

Ainda assim, o ato de aceitar o desafio foi mais percebido como uma

possibilidade de sair de um estado de apatia ou da “mesmice”, que um passo de

liberdade. Mesmo porque tal atitude me trouxe muitos outros desafios: teve este um

espaço considerável do meu tempo, que precisaria conviver com os demais

cuidados domésticos costumeiros e isso, consequentemente, abalou as estruturas

de poder frente ao trabalho dentro de casa, colocando em xeque-mate a relação

homem versus mulher.

Diante desta situação, e considerando todo o movimento “centrífugo e

centrípeto” entre o meu “eu” e este “mundo”, amplia-se ainda mais nosso interesse

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pelas construções coletivas, o que nos convenceu da necessidade de “olhar” mais

detidamente sobre questões pertinentes para a vida das mulheres, de forma mais

ampla às relações de gênero dentro destes emaranhados sociais, culturais e

políticos.

O processo desencadeado a partir das oportunidades enquanto professora

voluntária, de unir-me às/aos outras/os tantas/os que se interessaram pela idéia de

“ensinar a pescar”, foi aos poucos exigindo mais e mais a participação e, por

conseguinte, o engajamento político, até mesmo porque havia muitas outras

questões se abrindo, como a questão da formação e a questão das mulheres.

Este processo foi o início de todo um movimento que posteriormente culminou

com a efetiva constatação da situação de exploração e violência doméstica à qual

vinha sendo submetida já por algum tempo. E é interessante hoje poder refletir sobre

como o movimento de emersão/imersão da situação concreta de vida que funcionou,

e funciona, na prática, como dinamizador para o enfrentamento necessário através

do efetivo engajamento:

Se a mudança faz parte necessária da experiência cultural, fora da qual não somos, o que se impõe a nós é tentar entendê-la na ou nas suas razões de ser. Para aceitá-la ou negá-la devemos compreendê-la, sabendo que, se não somos puro objeto seu, ela não é tampouco o resultado de decisões voluntaristas de pessoas ou de grupos. Isto significa, sem dúvida, que, em face das mudanças de compreensão, de comportamento, de gosto, de negação de valores ontem respeitados, nem podemos simples-mente nos acomodar, nem também nos insurgir de maneira puramente emocional. É neste sentido que uma educação crítica, radical, não pode jamais prescindir da percepção lúcida da mudança que inclusive revela a presença interveniente do ser humano no mundo (FREIRE, 2000, p. 17).

Com esta reflexão pode-se dizer que o ato de emergir e imergir da realidade

vivida é um exercício que continuadamente precisa ser feito. Não houve nesta

trajetória momentos totais de uma e de outra, estes “estados” de “consciência” e

“conscientização” se deram mais ou menos de forma contínua. Tanto que, por

vezes, me via em situação de insegurança doméstica e ficava sem reação

momentânea, em momentos outros tomava posse da vida novamente, e assim foi

continuadamente.

Ao caminhar nas memórias desta experiência/vivência, outra idéia que se

associava com a de “ensinar a pescar” era a “Fome de Beleza”. Sim, era importante

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que as pessoas, as famílias soubessem “pescar” para saciar a fome que sentiam, ou

seja, garantir sua sobrevivência, mas a proposta era (é) bem maior do que viver para

dar conta das necessidades básicas que o capital nos permitia(e).

A fome de Beleza significava, e ainda significa no imaginário da maioria das

pessoas co-partícipes desta história, que neste movimento a questão colocada era

mais do que saciar tais necessidades. Esse conceito era o diferencial do Programa,

é a busca pelo que Paulo Freire chama de condição ontológica do homem de “ser

mais”, esse era um chamamento às pessoas para virem tomar ciência de que

poderiam ser mais do que lhes disseram a vida toda que podiam ser:

É por estarmos sendo assim que vimos nos vocacionando para a humanização e que temos, na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação. Jamais, porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra (...) são destinos certos, dado dado, sina ou fato. Por isso mesmo é que uma é vocação e outra, distorção da vocação (FREIRE, 1994, p. 99).

É essa vocação que o tempo todo ecoou dentro da pesquisadora e militante,

como um chamamento latente, e que acredita ser necessário inundar o ser, a mente

e o corpo das pessoas que buscam a felicidade neste mundo.

A partir desta postura diante das complexas teias de ressignificação da vida

como um todo intensificou-se o desenhar de um “olhar” diferenciado por sobre sua

realidade. Complementamos esta reflexão dizendo do sentido antropológico que

precisamos assumir diante do fenômeno da vida humana onde:

A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero (FREIRE, 1993, p. 30).

A transformação só pode acontecer se cada uma e cada um tomar para si

esta responsabilidade, que só é possível a partir da participação efetiva em espaços

de discussão e reflexão, de estudo e pesquisa. Através de uma centena, ou mais, de

experiências problematizadas pelos coletivos, pela comunidade de forma contínua.

Dentro desta perspectiva, a “inteligência coletiva” foi uma dimensão presente

que se colocou em diversos momentos como diferenciadora no processo político

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pedagógico que se deu, de forma intencional, através da mobilização orientada pelo

desejo e interesse de produzir uma relação de vida diferente da que está dada em

determinados contextos.

No caso do Mato Grosso, estes espaços comumente eram e são organizados

por algumas Instituições como a UNEMAT, a UFMT, o SEBRAE, outros MS do

Campo e da Cidade (Associações, Cooperativas, Redes), o CONSEA e CONSADs,

a Rede Cidadã (RECID), as Associações de Mulheres, Sindicatos, a Igreja (CEBIS),

juntamente com outras/os parceiras/os e por alguns EES.

A maioria dos encontros eram mais que momentos de trocas, eram espaços

onde havia conhecimentos sendo construídos por intercâmbios de vivências

significativas. Durante estes momentos, um hábito, fortalecido pela influência da

formação inicial em docência, foi o de sistematizar os Encontros e reuniões diversas,

tanto organizadas pelo FEES quanto pela REMSOL.

Através do registro dos conhecimentos que por entre as discussões

circulavam, as falas significativas, as construções subjetivas e intersubjetivas do

coletivo iam dialogando com a nossa, e disso ia sendo tecida toda uma história de

luta e resistência que perpassava a vida de cada uma e cada um, e “é precisamente

este “conhecimento” que constitui o tecido de significados sem o qual nenhuma

sociedade poderia existir” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 30).

Desta forma foi sendo construída toda uma intensa relação de pertença, de

empatia, onde, para além da apropriação das falas (discursos), havia tentativas reais

de aproximação do bem viver de forma justa e solidária no seio de uma sociedade

que é manipulada por valores tão antagônicos a estes.

Neste ponto, a emersão da militante, com postura de pesquisadora, era uma

só, que se “plasmara” na praxe do cotidiano de um fazer reflexivo e repleto de

contradições. O percebido durante todo este processo gestacional é que o interesse

do coletivo estava delineando, efetivamente, o interesse em se construir uma nova

forma de se estabelecer relação com o outro e com a natureza:

Perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível. Recordar-se não é trazer ao olhar da consciência um quadro do passado subsistente em si, é enveredar no horizonte do passado e pouco a pouco desenvolver suas perspectivas encaixadas, até que as experiências que ele

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resume sejam como que vividas novamente em seu lugar temporal. Perceber não é recordar-se (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 47-48).

As percepções foram sendo tecidas em meio às discussões e reflexões junto

aos coletivos e a cada encontro de formação a inserção da militante pesquisadora

nos MS era mais forte. Em 2004 foi possível começar a devolver para o grupo ao

qual pertencia tudo o que estava sendo discutido nestes espaços de formação, pois

acreditava ser importante, era e é seu compromisso social esta devolutiva.

Neste momento estamos falando das turmas de EJA que eram

acompanhadas por nós, de início como voluntária e, logo após, pelo Projeto do

Letração (SEDUC). Em seguida, dando continuidade ao processo de organização

deste coletivo, foi possível articular um Curso de Formação em Cidadania, Auto

Estima e Gênero com o Grupo do NUEPOM/UFMT para as mulheres desse Grupo

de alunas/os.

Ao final do Curso algumas mulheres se reuniram e, animadas, decidiram dar

continuidade à organização, ali iniciada, pelo processo de formação política e, então,

nasceu o Grupo MUDAR – Mulheres Unidas Determinadas na Ação pelo

Reconhecimento.

Esta experiência na EJA precisa ser aqui destacada, pois foi fundamental

para toda esta caminhada. O aprendizado compartilhado de vidas, sofrimento, fome,

medo, mas também de conquistas, de resistência e superação, de alegria, de

vontade de viver, foram e ainda são determinantes.

É emocionante pensar sobre as contribuições daquelas pessoas para a

construção identitária do coletivo e de cada uma em particular, de forma significativa,

e é essa a possibilidade que pode se apresentar enquanto potencialmente

transformadora:

Tem de ser regulação no campo da ação cotidiana, do reconhecimento da “outreidade”, isto é, do “outro” como portador de direitos advindos do seu status como membro da espécie humana, seres com identidade e destino comum, intra-históricos, que definem interdependentemente um estatuto que não está dado pela natureza ou por uma “lei natural” (PASSOS, 1994, p. 105).

Neste processo de engajamento político e social, ver-se enquanto

protagonistas não foi um processo estanque da consciência das dificuldades que a

realidade traduzia na imensa distância existente entre o querer e o fazer. Para

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aquele coletivo que nascia de um desejo, ou de um sonho de “ser mais”, lutar contra

tal realidade, que se apresentava como pronta e acabada, era quase impossível.

Porém, com tudo isso efervescendo em suas mentes e corações, em 2004

começa a participação na ES. Dentro desta havia a articulação das Feiras para

comercialização dos produtos; então, o Grupo MUDAR, que é composto por 08 (oito)

Mulheres, na sua maioria mães chefes de família, sempre que possível expunha e

comercializava seus produtos.

O Grupo produz diversos trabalhos artesanais além da produção de bolos e

biscoitos. Nesta pesquisa será dada a palavra a estas mulheres, em um momento

particular, mesmo porque elas são as protagonistas desta história.

Em 2006 uma conquista pessoal e profissional foi a aprovação no vestibular

da UFMT no Curso de Pedagogia. Logo após o primeiro semestre, já como Bolsista

Trabalho do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE), a

primeira atividade foi junto à equipe do SEMIEDU 2006, coordenada pelo Professor

Luiz Augusto Passos.

Nesta oportunidade, já com a participação ativa dentro dos processos

dialógicos de articulação e mobilização dentro do MS da ES, foi possível realizar a I

Feira Estadual de Economia Solidária em parceria com o GPMSE/UFMT durante o

Seminário de Educação - SEMIEDU/2006.

Assim, se considera esta participação na academia uma oportunidade de

poder valorizar toda uma história de luta, partindo do Grupo MUDAR e indo além,

podendo socializar toda uma discussão: conquistas, avanços e retrocessos de um

coletivo maior.

Perceber também alguns desafios que podem ser considerados fundamentais

para a compreensão de determinados processos sociais e culturais destas

experiências, bem como de legitimação das ações que vêm sendo forjadas por estas

pessoas em MT.

É nesta perspectiva que se considera esta uma contribuição de nível

Estadual, pois a participação militante e pesquisadora em vários espaços e

momentos desta construção, seja em âmbito local, estadual, regional, nacional ou

internacional, formou uma grande teia de sentidos e significados que, por ter sido

construída junto com um grande coletivo, de forma representativa, acredita-se que

possa refletir, ao menos em certa medida, uma realidade parcial deste MS no

Estado de Mato Grosso frente às discussões referentes à ES.

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Lembrando que não há aqui a pretensão de apresentar uma discussão morta,

fechada e determinada sobre esta história na experiência do Mato Grosso. Mesmo

porque nossa postura privilegia a polissemia dos variados sentidos que esta

experiência pode provocar.

A ideia é compartilhar um dos possíveis olhares sobre este processo, mesmo

porque sua legitimação necessita da ação e das contribuições de todas e todos.

Esta é tão somente uma das muitas leituras que podem ser compartilhadas.

Retomando nossa intenção primeira, ensaia-se precisar o fenômeno em

questão entre os momentos que a pesquisadora militante, sendo integrante de um

EES, do Grupo MUDAR, pôde participar direta e indiretamente das ações formativas

em variados momentos, bem como de processos de articulação e mobilização para

construção de PP.

Assim sendo, o material que será compartilhado com olhar dialético-

fenomenológico são algumas vivências que ocorreram dentro da experiência da ES

em determinados momentos onde, ora a nível local e estadual, e ora a nível regional

e nacional, o Grupo MUDAR pôde se fazer presente através de suas integrantes.

No repertório de momentos significativos será feito um esforço de trazer

elementos para reflexão desde a sua criação, na participação de alguns Encontros,

Feiras, Reuniões, Seminários e Conferências em que o Mato Grosso se fez presente

a partir da representação deste Grupo, que foram sistematizados e que serviram de

aportes suleadores para o trabalho de Educação Popular que foi feito em

momentos específicos:

O exercício de pensar o tempo todo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem, são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 46).

Nesta perspectiva desafiadora, a metodologia assumida busca privilegiar

vivências e construções objetivas e subjetivas em um constante buscar exercitar o

distanciamento que é necessário neste processo. A inserção militante da

pesquisadora, com este cuidado diante do fenômeno, foi uma das condições que, de

forma privilegiada, colaborou com a aproximação adequada para as leituras

realizadas.

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Este não foi um processo simples, ora com avanços ora com retrocessos, na

medida do possível, pôde colaborar para com a necessária aproximação do objeto

de pesquisa, oferecendo suporte para uma compreensão o mais legítima possível de

alguns aspectos da complexa teia de sentidos, significados e pertencimentos, ou

não, que as vivências das pessoas envolvidas neste processo produziram,

produzem e reproduzem.

Por este motivo este também foi o seu maior desafio, pois falar de algo assim

tão próximo, o cuidado para não interferir significativamente nas interpretações, de

maneira a alterar algumas dimensões, mesmo que redobrado, foi quase impossível.

Em contrapartida, a postura aberta diante das complexas nuances que permeiam as

relações interpessoais nesta construção pretensamente coletiva foi fundamental.

Enfim, é partindo desta dinâmica plural e polissêmica que se tenciona “olhar”

desde o lugar social que pertence à pesquisadora, do chão de onde fala, da

identidade que a inscreve e que é inscrita continuadamente, compreendendo

fenomenologicamente como este processo político pedagógico contribuiu, ou não,

com a formação política, técnica e ética deste segmento na experiência de Cuiabá-

MT, o que se configura em uma possibilidade de legitimar o fazer empírico de mãos

dadas com a teoria em meio à produção de VIDAS.

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2 A PESQUISA

2.1 PERCURSOS INICIAIS DA PESQUISA

É importante destacar que o MS da ES é considerado um espaço de

convergência de vários outros MS, que buscam incessantemente pela efetivação

dos Direitos Humanos dos povos, das mulheres e dos homens que, historicamente,

foram negados e silenciados pelo Sistema Capitalista.

Nesta perspectiva, ao longo do tempo ela foi se encorpando e, na medida do

possível, se delineando enquanto mais um espaço político pedagógico de

resistência de grupos diversos, onde a denúncia, o planejamento, a organização, a

construção e reconstrução, a afirmação e a reafirmação, com proposição

diferenciada de relações e de sociedade frente ao que está posto.

Podemos apontar alguns dos MS que, por vezes, somam sua luta junto à ES

sem, no entanto, perderem suas identidades próprias: o Movimento dos Sem Terra

(MST), o Movimento pela Agroecologia, Movimento dos Atingidos por Barragens

(MAB), Movimento das Mulheres Campesinas (MMC), Associações de Mulheres, o

Movimento Negro, o Movimento Indígena, o Movimento de Gays, Lésbicas,

Bissexuais e Transexuais (GLBT), a luta pela Educação do e no Campo, a Educação

de Jovens e Adultos (EJA), entre outros.

Todos estes espaços políticos possuem suas bandeiras de luta definidas que

se integraram às da ES pelo fato de que, de uma forma ou de outra, os princípios

suleadores desta organização vão ao encontro de cada uma delas.

Cada um destes MS possui sua identidade própria, mas uma dimensão é

comum entre todos: a luta pelo direito a uma vida digna, com a devida valorização

das diferenças nas diversidades, preservação do meio ambiente e o respeito às

especificidades de cada povo, região e cultura. Por isso é que a ES vem se tornando

gradativamente um espaço de interlocução dos diferentes atores que pensam e

lutam por um mundo diferente.

O Grupo MUDAR pode-se dizer que é fruto destas conexões, lembrando o

contexto e lugar de onde vem o Grupo que nasceu de uma articulação por um

espaço de educação, da EJA e de discussões de um grupo de mulheres que

resolveram se juntar para enfrentar situações semelhantes de vulnerabilidade

econômica e social.

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Para dar conta destas realidades, a metodologia de enfrentamento e

resistência aos processos de exclusão e expropriação da dinâmica mercadológica,

assumida nesta proposta, se organiza através da Educação Popular, com a

constante e árdua busca pela re-significação do mundo e de mundo, partindo do

lugar onde estamos, a começar pela pessoa, ou seja, por mim e minha família.

Acreditamos que o Sistema Capitalista promoveu e promove constantemente

um movimento de abdução de identidades. Ele, através de seus aparelhos

ideológicos, construiu e legitima toda uma identidade e cultura que lhe serve e

alimenta como que automaticamente. A estratégia é o individualizar as relações,

supervalorizar o global em detrimento do local e estimular a competição.

Partindo deste pressuposto, entendemos que para o enfrentamento de tais

condições “(...) um certo saber (é) absolutamente indispensável inclusive a quem

reacionariamente pretende imobilizar a História. Refiro-me à constatação de que

mudar é difícil mas é possível” (FREIRE, 2000, p. 42). Em outras palavras, os MS,

com toda afirmação identitária e cultural, precisam repensar sua atuação e talvez

percebam que sozinhos não darão conta da complexidade existente nestes espaços.

As várias dimensões defendidas pela ES expressam, de forma dialogada

entre si e com a co-participação dos sujeitos que a estão inscrevendo durante o

processo de sua produção, justamente algumas dimensões que podem contribuir

para com o enfrentamento político pedagógico necessário.

O resultado de toda esta construção/proposta se desdobra em dez princípios

que tentam, minimamente, se aproximar do que as necessidades da vida apontam

enquanto direitos inalienáveis do bem viver em sociedade.

Estes princípios são a autogestão, a democracia, a cooperação, a

centralidade do ser humano, a valorização da diversidade, a emancipação, a

valorização do saber local, a valorização da aprendizagem e da formação

permanente, a justiça social na produção e o cuidado com o meio ambiente. Destas

dimensões as principais características são a autogestão, a solidariedade, a

cooperação e a viabilidade econômica (BRASIL, 2007).

Este conjunto de dimensões amplas convive em cenários caóticos e

contraditórios. As mesmas formam as bandeiras de lutas da ES; sua amplitude e

densidade contemplam, em certa medida, as lutas e anseios de muitos outros MS

que, integrando forças entre si, pensam e repensam, definem e redefinem,

constantemente, conceitos e práticas em busca da construção e efetivação de PP

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que correspondam às reivindicações dos coletivos que estão tentando fazer uma

sociedade diferente da que está posta, com mais justiça social e solidária.

Talvez esta seja uma utopia demasiado distante da realidade de muitos

grupos do campo e da cidade que investem seu tempo e esperança nesta idéia, mas

ao mesmo tempo, como o próprio Grupo MUDAR, que resistem em mentes e

corações, trabalham e acompanham este movimento, cada um da forma como pode,

ou como a situação concreta de vida lhes permite este acompanhar:

É difícil esta situação de não ter muitos meios de estar presente nas reuniões, nas oficinas, nas feiras e até no Centro de Comercialização, mas o que mais nos deixa triste é por causa disso mesmo às vezes sermos apontadas como mulheres ou um grupo que não querem participar... a gente tem filhos pequenos que não temos com quem deixar, nossa produção não é suficiente para manter a gente e nossa família, daí tirar dinheiro para pagar ônibus, comprar às vezes água ou um lanche prás crianças... fica impossível. Mesmo assim somos o grupo MUDAR, e quem pode participar, participa e traz as notícias do que tá acontecendo e assim a gente fica informado, mesmo não podendo fazer muito, mas estamos ouvindo, vendo e esperamos uma hora poder fazer mais para alcançarmos nossas metas de viver melhor produzindo do jeito que a gente escolheu produzir... que é juntas (CN, Grupo MUDAR).

Pensar nesta mobilização encarnada no desejo de estar “juntas” é o que

percebemos enquanto possibilidade de força propulsora que pode mover a

engrenagem motriz deste MS, e isso nos mostra, ao menos parcialmente, que os

limites são muitos diante desta realidade “sem escolhas” que o capitalismo impõe a

estas pessoas que desejam fazer diferente sua relação com este mundo.

Ao passo que, paralelamente, também demonstra certa reação no

enfrentamento, onde caminha outra força, a da intenção encarnada no poder do

desejo que nasceu, ou que já existia, nestas mulheres, de quererem uma outra

realidade para si, que não esta, que há muito tempo já não lhes serve mais.

2.2 GRUPO MUDAR: PASSEIO PELA HISTÓRIA DO GRUPO E DAS MULHERES

QUE O FAZEM

O Grupo MUDAR nasceu no início de 2004, ao final de uma capacitação

oferecida pela UFMT através do Grupo do NUEPOM – Núcleo de Estudos e

Pesquisas para a Organização das Mulheres, no Bairro Nova Esperança I, Cuiabá-

MT.

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Esta capacitação foi feita por um grupo de estudantes do Curso de Serviço

Social, que ministrou várias oficinas e palestras com algumas mulheres desta

comunidade, sendo que, ao final, a maioria delas se reuniu e decidiram criar o Grupo

MUDAR. A partir de então o trabalho de Formação e Organização do Grupo não

parou mais.

Após este momento inicial de formação política houve uma mobilização

comunitária para a alfabetização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) de 20

(vinte) pessoas, entre mulheres e homens, adolescentes, adultos e idosos. O público

maior era feminino, havia 16 (dezesseis) mulheres.

Hoje a maior parte das integrantes do Grupo MUDAR (05 mulheres) ainda

vive no Bairro Nova Esperança I, comunidade situada na região Sul e a outra parte

(03 mulheres) reside na região do grande CPA (ambas são periferias de Cuiabá-

MT). São dois extremos que dificultam, mas não inviabilizam sua mobilização,

comunicação, produção e formação.

Antes de formarem o Grupo viviam da renda dos maridos e as mães chefe de

família trabalhavam como empregadas domésticas, babás, ou mexiam com vendas

de produtos diversos (perfumes, roupa íntima). Algumas faziam tudo isso ao mesmo

tempo e ainda lavavam e passavam roupa “para fora”.

O Bairro Nova Esperança I é o resultado do desmembramento de uma grande

fazenda que existia nesta localidade há mais ou menos 40 anos. Os lotes foram

comercializados e assim, aos poucos, o lugar foi ganhando vida. Por não ter sido

uma iniciativa pública, possui todos os problemas estruturais que uma ocupação não

projetada pode ter.

A maior deficiência está na infraestrutura sanitária, pois não possui rede de

tratamento de esgoto. Outros desafios comunitários estão na ausência de espaços

de lazer para os jovens e há somente uma Escola Pública, que atende as séries

iniciais, e EJA para atender a população do próprio bairro e de outras cinco

comunidades no entorno.

Não há organizações comuns em diversas comunidades da capital, como

Clube de Mães, de Idosos, entre outros. O atendimento ambulatório é precário. A

Igreja ainda é o local mais visitado, o único meio de lazer e de estar em contato

comunitário entre os moradores. Este quadro foi o que mais estimulou as mulheres a

se unirem em prol de algo melhor.

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Na única escola pública da comunidade, a modalidade de EJA foi fruto da

mobilização e articulação de muitas integrantes do grupo, que se organizaram em

torno da necessidade dos adultos de voltarem a estudar. A partir de então

perceberam que realmente a união poderia fazer a diferença.

O Grupo começou a participar, desde então, com estas mulheres em espaços

de formação e organização fomentados pela ES. A participação nas reuniões do

FEES foi significativa a partir da presença de uma representante, tanto que se

desdobrou na inserção do Grupo MUDAR em espaços de articulação, como a Rede

REMSOL, onde hoje estão representantes dos EES da “Baixada Cuiabana” no seu

Colegiado.

Hoje o Grupo MUDAR está à frente de muitos espaços de acompanhamento

e controle popular, representado por uma de suas integrantes, que faz parte da

Coordenação do FEES/MT, que hoje está em fase de reestruturação.

Ainda como desdobramento da atuação delas no Estado, foram indicadas

enquanto representantes estaduais dos EES da zona urbana no FBES em 2009,

integrando, em setembro de 2011, a equipe da Secretaria Executiva na Suplência

deste espaço político.

Além disso, há algumas integrantes que atuam frente à formação de outros

EES, especialmente na organização de oficinas práticas e teóricas do processo de

tratamento e confecção de peças de biojoias (colares e brincos de sementes), papel

reciclado, salgados e bolos, cuidados com a preparação de alimentos, questão de

gênero e ES, Economia Solidária, Educação do Campo e Juventude, entre outros

temas.

O Grupo, neste percurso de tempo, realizou algumas atividades produtivas,

entre elas o artesanato a partir do reaproveitamento, primeiramente das garrafas

Pet, na produção de artigos de decoração, e hoje estão iniciando uma tentativa de

trabalhar com caixas Tetra Pak (caixinhas de leite/suco), transformando-as em

embalagens para presente, porta canetas, entre outros.

A produção de papel reciclado na confecção de cartões e agendas; o

reaproveitamento de vidros de conservas, na confecção de artesanatos com

apliques em biscuit; reaproveitamento de retalhos de tecidos na confecção de

tapetes de amarradinho; confecção de biojoias (colares e brincos de sementes) e,

por fim, bolos e biscoitos diversos, são algumas das atividades feitas pelo Grupo. A

comercialização se dá por encomendas e é um dos grandes desafios deste EES.

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Durante toda a história do Grupo MUDAR, em sua participação frente à

produção, comercialização e formação, as dificuldades foram e são as mais

diversas. A própria dinâmica da vida das integrantes, que são donas de casa,

algumas mães chefe de família em situação de vulnerabilidade social, associado ao

fato de alguns maridos, que não entendiam o processo e não apoiavam ou

compreendiam as atividades desenvolvidas pelas mulheres, enfim, fizeram com que

do grupo inicial de 16 (dezesseis) mulheres resistissem apenas 8 (oito).

Desde então o Grupo vem atuando preferencialmente de forma coletiva,

porém, mesmo com a comercialização a partir de algumas encomendas locais e a

participação em Feiras, entre outros eventos organizados pela ES e outros órgãos

de apoio, esta atividade produtiva ainda não oferece segurança econômica.

Uma dimensão, que elas indicam como sendo limitadora nesta perspectiva,

diz respeito à própria estrutura do Grupo, que é informal, e devido a isso não possui

condições legais para participar dos editais lançados pelo Governo Federal e/ou

Instituições outras que apóiam grupos da ES. Acreditam que este acesso poderia

colaborar com a obtenção de capital de giro necessário para garantir uma produção

em escala.

Outro desafio, segundo elas, é a própria qualidade do design das peças, no

que se refere à arte de agregar valor às peças produzidas, inserindo elementos

regionalizados, a identidade e a marca dos produtos MUDAR. Estes elementos são

apontados em destaque quando necessário, mas não se sentem com preparo

técnico, situação financeira e nem outro tipo de apoio (assessoria) para isso.

O interesse em fortalecer a dimensão da produção e comercialização para o

melhoramento da renda familiar é o grande desafio econômico destas mulheres;

mesmo para que as outras integrantes, que por motivos diversos tiveram que se

ausentar, possam retornar ao Grupo, para “juntas” conseguirem uma “vida melhor”:

Estar no grupo é acreditar na participação popular, com crescimento para todos, pois podemos interagir com pessoas com interesses parecidos com os nossos, que nesse caso são mulheres que buscam crescimento sem perder o contato familiar, fazendo e gerando renda para a casa, ensinando valores para seus filhos, buscando condições de vida digna e feliz (Integrante JGC).

Esta fala demonstra que a intenção deste coletivo é que mais famílias possam

ser contempladas pelo trabalho ora articulado, com vistas a um desenvolvimento

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comunitário. Em todas as falas, durante os momentos de produção e formação

política, esteve presente o desejo de que mais pessoas pudessem se unir para o

trabalho coletivo e, assim, poderem melhorar de vida.

Dentre os diversos desafios do Grupo, o fato de não possuir uma sede não foi

dimensão limitadora para a realização das atividades desenvolvidas pelo MUDAR,

pois, quando é necessário, se encontram: por vezes na casa da coordenadora, em

outros momentos nas varandas de uma ou de outra integrante do Grupo, para

realizar a produção, as reuniões, informes, formações e as confraternizações.

A produção de papel reciclado é realizada na residência da coordenadora do

Grupo, devido à estrutura que é necessária para esta atividade (área espaçosa,

tanques relativamente grandes, ...). As produções do biscuit, do amarradinho, da

biojoia e dos biscoitos acontecem mediante algumas pequenas encomendas e são

feitas em conjunto, por vezes na casa de algumas delas.

Esta organização informal é escolha do grupo, que não possui estrutura

suficiente para pagar os custos de sua formalização, ou seja, os encargos de uma

micro e pequena empresa. A insegurança econômica ainda se sobrepõe ao desejo

de oficializar o empreendimento:

Como fazer um compromisso financeiro, se não temos certa a saída de nossos trabalhos? Toda encomenda vem sem uma contrapartida das clientes, daí é preciso fazer um investimento que não temos. Tirar do bolso foi o que fazíamos de início, ou muitos materiais vinham de doações, só que agora não há mais estas possibilidades... Renda mesmo ainda não tivemos, mesmo porque nossa estrutura é pouca (Integrante EB).

Diante desta realidade, a comercialização, que inicialmente fora feita nas

feiras e eventos, sempre com a participação de duas ou mais integrantes, tornou-se

mais frequente por encomendas isoladas. Nesta perspectiva e pela própria dinâmica

da vida das participantes, a maioria se identifica mais com a produção, enquanto

que uma minoria se coloca para realizar a comercialização.

Apesar da participação em formação política ser uma dimensão fomentada e

estimulada a partir das parcerias que o Grupo construiu em sua caminhada,

principalmente com a AMAMT (Associação de Mulheres em Ação de Mato Grosso),

a REMSOL, o Projeto Brasil Local, a RECID e a UNEMAT/INCUBESS, esta

dimensão é apontada por algumas participantes do Grupo como constantemente

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necessária, através de um processo continuado, considerando-se a produção e

comercialização.

Isso nos coloca a intensa necessidade pelo conhecimento de forma ampla e

integral que estas mulheres possuem, uma característica forte que, de alguma

forma, as aproximou dos processos de formação da ES, que considera alguns

princípios que perpassam as dimensões técnicas e práticas, econômicas,

adentrando no mundo da família, da escola, da política do bem viver e da política do

“fazer”.

O processo de produção de conhecimento é percebido enquanto uma

possibilidade de se vislumbrar na ação e atuação de resistência destas mulheres

diante de situações tão adversas quanto as que se apresentam em sua trajetória de

vida, antes e depois do Grupo MUDAR, um fazer diferenciado, criativo e de

renovação de muitos preconceitos:

Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra (FREIRE, 1996, p. 69-70).

Pensando nesta intencionalidade da educação, da produção do aprender, dos

conhecimentos objetivos e subjetivos, enfim, é preciso uma breve reflexão sobre a

história da educação de nossa sociedade. Para tanto, apesar de neste momento não

ser nossa pretensão adentrarmos com propriedade nesta discussão, é necessário

este relembrar das intenções desta sociedade de consumo, do Mercado.

A escola, neste cenário, foi e é o lócus de reprodução do que está posto.

Neste sentido, refletir sobre a função social das instituições escolares públicas no

Brasil, que deveriam problematizar a realidade e colaborar com aprendizagens

significativas, articulando as dimensões éticas e estéticas: conhecimentos

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conceituais, procedimentais e atitudinais, conforme Paulo Freire afirma, enquanto

necessário à prática educativa, é preciso, pois o que se vê é que:

(...) negando à prática educativa qualquer intenção desveladora, reduzem-na à pura transferência de conteúdos „suficientes‟ para a vida feliz das gentes. Consideram feliz a vida que se vive na adaptação ao mundo sem raivas, sem protestos, sem sonhos de transformação (FREIRE, 1995, p. 27).

Esta educação bancária, que ainda hoje testemunhamos nas escolas, tanto

públicas como privadas, nos campos, nas florestas e nas cidades, somadas a toda

uma complexa situação sociocultural, multiplica inimaginavelmente o distanciamento

da população de poder colocar em prática todo seu potencial criador e, além disso,

também de ter acesso às dimensões emancipatórias, propositivas, prazerosas e

transformadoras que a produção de conhecimento em si pode representar.

Este ato de negação a uma aprendizagem significativa em muitas realidades

continua a ser perpetuado pela legislação, muitas vezes engessada, que não

instrumentaliza com PPs de impacto revitalizador, por exemplo, no investimento à

Educação Pública: a Educação Infantil, a Educação Especial, a Educação no

Campo, a EJA, a Educação Prisional, o plano de cargos e carreiras dos profissionais

da educação, entre outras dimensões.

Diante de realidades como esta, a construção do empoderamento de grupos

que por toda a história foram relegados à margem da sociedade, oprimidos pela

condição sócio-cultural-econômica-política, precisa ser um movimento constante e

continuado. É necessário, no entanto, que parta das pessoas este desejo, esta

necessidade, não como um ato de transferência ou transmissão, mas pelo

reconhecimento embasado em suas vivências.

Disso depende a apropriação/conhecimento destas pessoas do cenário

político mais amplo, da importância de sua participação na construção de PPs que

efetivamente contemplem as diferenças dos diferentes dentro das diversidades.

Contudo, veja quão desafiadora é a tarefa de pessoas que, em sua simplicidade,

buscam seu lugar nesta “areia quente” que é o capitalismo!

Neste sentido, ao dar prosseguimento ao nosso diálogo aberto durante

momentos de reunião e/ou de produção junto ao MUDAR, ao serem questionadas

como elas vêem o processo de formação do qual elas participaram, muitas foram as

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colocações, porém foi consenso a opção por selecionarem algumas participações de

integrantes do Grupo que consideraram significativas:

Acreditamos que a participação num movimento social fez com que se abrisse uma visão real do país em que vivemos e o qual queremos construir; fez com que víssemos que podemos mudar, com luta, debate, participação. Por isso, ao falar de coisas que foram construídas junto com outras pessoas fica mais ampla a idéia do que pretendemos enquanto grupo e movimento social (JGC).

Segundo elas, tais momentos destacados são considerados os mais

significativos, pelo fato de terem sido construídos junto com outros Grupos e

retomados posteriormente, em momentos específicos de formação/conversação

interna do Grupo:

Como é difícil estar indo em todos os encontros de formação, ou feiras e reuniões, eu acho que estes seminários, onde foi possível uma ou duas irem e depois trazerem prá nós o que foi discutido, mostram um pouco melhor onde nós estamos neste movimento da ES, porque, de uma forma ou de outra a gente está participando, do jeito nosso, do jeito que dá (JFN, Grupo MUDAR).

Essa fala explicita a situação do “lugar” de onde estão falando, mesmo por

que somente algumas participaram destes momentos, mesmo porque não era

possível a participação de todas ao mesmo tempo, devido às condições concretas

da vida (filhos pequenos, maridos intolerantes, serviços domésticos,

escola/faculdade, entre outros fatores), isso sem contar a falta de recurso para a

logística necessária ao deslocamento.

Entre os Encontros, Formações, Feiras, Reuniões e Eventos em geral elas

destacaram os seguintes:

Uma Experiência de Formação sobre Discussão de Gênero: neste ponto a

reflexão se deu em forma de uma roda de conversa a partir de uma experiência

durante o IV EMESOL;

A participação nas Feiras Pantaneiras de Economia Solidária, Agroecologia e

Agroextrativismo. No histórico destas Feiras, sabemos que foram realizadas

quatro edições, em nossa pesquisa serão socializadas algumas reflexões de três

destas, a saber: da 1ª, 3ª e 4ª Feira;

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O Seminário Estadual e Regional de Comercialização Solidária: devido à grande

fragilidade econômica percebida pelo Grupo frente aos intercâmbios realizados,

que voltaram como um espelho da necessidade deste coletivo também;

X Encontro da Coordenação do FBES: Organização e Formação;

Encontro Nacional de Diálogos e Convergências (Fechamento).

Partes destas experiências serão compartilhadas ainda neste capítulo e as

demais serão discutidas no capítulo que se segue. Algumas estarão disponíveis nos

anexos, por entendermos que são importantes para a compreensão da trajetória do

Grupo e entendimento de alguns processos da ES no Mato Grosso, mas que não

estão ligadas diretamente ao tema central do nosso “olhar”, que versa sobre a

questão da formação política destas mulheres.

Será feito um esforço de trazer elementos que possam dar conta de

compartilhar algumas percepções; sabemos que muito mais foi fermento para a

produção de conhecimentos destas mulheres dentro e fora do MS da ES, mas neste

empreendimento serão estes os momentos privilegiados por elas, e buscaremos

através do diálogo trazer a voz de suas protagonistas:

É verdade que não conseguimos participar como gostaríamos de todas as reuniões do FEES, da REMSOL, das Feiras ou do Centro de Comercialização de Economia Solidária, por exemplo. Nem mesmo frente a algumas reuniões importantes, como a da composição do Comitê de Organização do Conselho Estadual de Economia Solidária, ou de efetivamente contribuirmos para o levantamento das assinaturas para a proposição da Lei popular que cria a Lei Nacional de Economia Solidária, mas também é verdade que o trabalho é feito de forma a multiplicar os saberes, onde uma das participantes repassa às outras os conhecimentos, as capacitações: discussões e resultados são importantíssimos e fazem o Grupo MUDAR se fortalecer e não desistir de uma certa mobilização. Daquilo tudo que é repassado muitas coisas são multiplicadas, tipo assim: são feitas outras reinterpretações e reflexões, o que acreditamos ser muito significativo para todas nós, isso é o que eu penso (JN, Grupo MUDAR).

Este é um retrato breve do Grupo MUDAR que, com certeza, possui muito

mais ingredientes, e estes estarão de forma explícita e implícita nas entrelinhas do

percurso das reflexões tecidas no decorrer deste processo. Elas são algumas

mulheres da periferia de Cuiabá que um dia se reuniram em torno de um sonho de

viver melhor, com dignidade, com o cuidado com o meio ambiente e muito amor pelo

próximo e, principalmente, por si mesmas.

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2.3 UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO SOBRE GÊNERO: PELO DIREITO DE

SER MULHER

Esta discussão trazida pelo MUDAR faz parte de um dos desdobramentos de

uma atividade formativa, a qual algumas delas propuseram, enquanto processo de

discussão durante o IV EMESOL. Durante esta edição o Encontro Matogrossense de

Educação e Socioeconomia Solidária aconteceu em setembro de 2009, no município

de Tangará da Serra.

Nesta oportunidade 2 (duas) integrantes participaram do encontro. Uma das

“coisas” que fizeram com que elas discutissem este tema durante este encontro foi o

conhecimento do resultado do último mapeamento nacional da ES, realizado pela

SENAES6.

O mesmo observava que o número de mulheres que fazem a ES em Mato

Grosso é expressivamente maior se comparado à média nacional, uma vez que “no

conjunto dos participantes associados aos EES, a participação relativa dos homens

é superior à das mulheres (63% e 37%, respectivamente) (...), na Região Centro-

Oeste, a participação das mulheres é superior à média nacional (42%)” (BRASIL,

2009, p. 38).

Em relação à composição de EES constituídos exclusivamente por mulheres

e homens, “há cerca de 3.900 empreendimentos constituídos exclusivamente por

mulheres (18%), cerca de 2.100 empreendimentos cujos sócios são exclusivamente

homens (9%) e os demais (73%) são empreendimentos formados por homens e

mulheres” (op. cit., p. 39).

Estes são números do mapeamento realizado entre 2005 e 2007. Há

informações e indícios de que, pela própria participação em espaços próprios

organizados pelo movimento de acompanhamento, intercâmbios e assessorias

evidenciam que estes números não correspondem à realidade de participação do

número de mulheres em muitas realidades.

Mesmo nos EES considerados mistos (mulheres e homens), a presença

feminina, na base, é expressivamente maior. Tais indícios fomentaram discussões e

debates sobre essa realidade, provocaram e contestaram essa estatística, de tal

forma que no terceiro mapeamento (2010 - 2011 em curso) dos EES, Assessorias e

6 Secretaria Nacional de Economia Solidária.

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Políticas Públicas no país, foi construído um instrumento específico para mapear os

EES constituídos exclusivamente por mulheres.

Tomando esse contexto por base, associado às experiências possíveis

durante esta pesquisa junto a alguns grupos de EES no estado, inclusive

considerando o interesse em particular do Grupo MUDAR, se acredita na pertinência

de se verificar, neste processo histórico, qual é o papel da mulher nesta construção

coletiva.

Compreendemos a urgência de se colocar estas discussões no centro do

debate, a partir do momento que se desenha uma proposta de projeto de

desenvolvimento diferenciada para nosso país. Para tanto, perceber se as

formações oferecidas nestes espaços da ES de fato privilegiam uma discussão

significativa das questões mais amplas de gênero, que possa colaborar para com a

desconstrução do que está posto e emergente.

As realidades das mulheres do Grupo MUDAR trazem em sua bagagem um

pouco da urgência em se pautar o tema da violência doméstica, a invisibilidade do

trabalho feminino, a discriminação nas relações do mundo do trabalho e as diversas

formas de exploração às quais as mulheres em situação de prostituição são

submetidas diariamente em todo o Brasil.

Discutir gênero necessariamente passa pelo reconhecimento de que temas

como estes ainda não estão resolvidos. A naturalização destas questões é um

mecanismo da negação do problema que é fato, que existe. Algumas mulheres

ainda hoje precisam se expor aos desmandos de homens e mulheres que lhes

privam a liberdade do ir e vir, de viver com dignidade.

Apesar de considerarmos esta pertinência, é preciso novamente dizer que

esta problematização não tem a pretensão de ser aprofundada, mas sim, colocada

enquanto fator que necessita de muita leitura “de mundo e do mundo”, onde se faz e

refaz estes enfrentamentos. Merece, por isso mesmo, um trabalho amiúde nesta

direção.

Aqui, no entanto, contribuir para com discussões e reflexões mais amplas

nesta realidade pode permitir um pensar crítico sobre a realidade vivida por estas

mulheres, possibilitando, desta forma, ações práticas e metodológicas que

colaborem, ou não, para com a desconstrução de estigmas e estereótipos que

inferiorizam, invisibilizam a imagem da mulher.

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A intenção maior precisa ser de poder vislumbrar, nos momentos de produção

de conhecimento, a partir da formação política e no próprio cotidiano destes grupos,

independente de sua constituição (mistos, de homens e de mulheres), espaços

potencialmente férteis para tal construção/desconstrução a partir da

problematização.

Este exercício pôde colaborar com algumas integrantes do MUDAR, que

trouxeram seu testemunho de enfrentamento e superação de situações de

constrangimento, de humilhação e violência física que sofreram pelos maridos. Ao

passo que iam vendo que esta era parte da realidade de outras mulheres, e elas

puderam trocar experiências, muitas barreiras foram rompidas:

O medo e a vergonha eram sentimentos que me acompanhavam. A culpa também, porque eu acreditava que a culpa era minha. Até que a gente começou a participar dos encontros de formação na ES, e foi quando ouvi tantos casos até piores que os meus. E elas diziam que tinham conseguido superar quando descobriram que não estavam sozinhas - o grupo delas deu suporte emocional e até financeiro... Nosso Grupo também foi importante para dar esta força e esperança contra aquela situação que eu vivia (Integrante LRF).

A constante busca por reconhecimento e valorização sócio-cultural pela

mulher nos espaços sociais é uma das inquietações que foram encontradas no

decorrer desta pesquisa. As falas das mulheres vão nesta direção. Tal

problematização pode representar tão somente uma gota diante de um oceano de

desafios, porém é uma que se junta com outras muitas ações, que estão juntas em

uma corrente de esperança e fé pelo que chamamos do direito de ser Mulher!

2.4 ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DA MULHER NESTA CONSTRUÇÃO:

EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA” NA PERSPECTIVA DE GÊNERO

A estatística da segunda fase do mapeamento da ES, como foi visto

anteriormente, revela, apesar de muitas controvérsias, um número expressivo da

participação das mulheres organizadas em grupos de empreendimentos que

comumente estão presentes, mais efetivamente nos setores de produção e

comercialização, e também nos momentos de formação.

Como se tem bem definido que um dos processos privilegiados da ES é a

dimensão educacional, ou seja, a formação política a partir da Educação Popular

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freireana, há todo um trabalho sendo desenvolvido, que tem como objetivo o

estímulo à inserção das mulheres na discussão política a partir de suas realidades,

enquanto trabalhadoras, mães chefes de família que buscam sua cidadania, que a

lei de fato não garante.

A educação é, nesta perspectiva, um poderoso instrumento que pode

interferir, positivamente ou não, efetivamente nesta transformação ideológica que a

ES busca promover, pois se acredita que:

A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir com seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação (FREIRE, 2000, p. 63).

Perceber essa dimensão fundante dos saberes, da educação e do constante

devenir, conforme FREIRE, que é fundamental se verificar por que a questão de

gênero se apresentou como um desafio nesta pesquisa, e precisa ser retomada em

outro momento, de forma mais ampla,

Isso porque as informações oficiais insistem em demonstrar que essa

dimensão não apresenta tanta expressividade como estudiosos e a própria prática

registram. Tal circunstância aponta para a invisibilidade feminina nesta perspectiva.

Toda a nossa cultura foi embasada em pressupostos heteroconstruídos,

assim, é fundamental refletir sobre a história dos conceitos em uma perspectiva do

que fazer diante deste horizonte já instituído, positivista e patriarcal, pois não há nele

neutralidade.

Conceituação se dá com apropriação, assim sendo, fica a questão: as

mulheres se apropriaram destes conceitos ou é necessária a reinvenção dos

saberes e da tradição? A cultura é dinâmica, não é um processo fechado ou pronto e

acabado. Tomamos como ponto de partida para a discussão o seguinte conceito de

gênero:

O termo gênero é usado para indicar a construção social do ser homem e do ser mulher. É uma categoria social, ou seja, um instrumento de análise capaz de explicar uma determinada face das

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relações sociais, assim como classe/etnia (...) indica os traços típicos, os papéis que culturalmente foram atribuídos a homens e mulheres, estabelecendo um determinado padrão de relações sociais (MST, 2003, p. 28).

É preciso problematizar mais ainda este conceito e, consequentemente, a

consciência crítica: revendo conceitos, agregando as discussões sobre a

sexualidade e a homofobia; pensar criticamente sobre a vitimização da mulher,

cruzando-a com a história política da sociedade, verificando até onde as políticas

indenizatórias e/ou compensatórias de fato assumem sua função social de formação

para a cidadania.

O conceito de gênero, pelo prisma político, transforma o sentido do

conhecimento e da própria ação política em relação com o mundo ocidental, onde se

percebe um mundo bissexuado, em contraponto ao universalismo europeu. Neste

processo tem-se afirmado tanto a igualdade como a diferença. Negar e afirmar, em

um mesmo movimento, é paradoxalmente contraditório:

É do reconhecimento da igualdade essencial de todos os indivíduos da espécie humana que se nutriram as teses dos direitos universais da pessoa humana e, por decorrência, as teorias da cidadania, da democracia e da postulação de uma autoridade internacional. E desse reconhecimento substancial e universal se pode ter como horizonte as relações nacionais, internacionais, entre grupos sociais e pessoas, todas sempre marcadas por diferenças individuais, culturais, grupais, sociais e nacionais (CURY, 2005, p. 59).

Tomando esta discussão sob uma ótica onde não se pode admitir uma

estrutura cultural fechada, estática, sem a possibilidade de questionar e transformar

para melhor contemplar as diferenças, lembrando que estas não são sinônimas de

diversidades, afinal a cultura não é algo dado a priori. A diversidade pressupõe

recortes extraídos dos fluxos culturais, é uma espécie de seleção de “conteúdos”

previamente estabelecidos e estratificados.

Neste sentido, e como está sendo exigido do próprio movimento contraditório

da sociedade e demandas sociais, é preciso que se busque rever posturas e os

conceitos-chave para a construção de uma nova cultura, que respeite de fato as

diferenças, as quais inclusive a própria ES precisa acompanhar de perto, e

acreditamos que o faz, uma vez que tais discussões também integram o repertório

de bandeiras e lutas deste movimento.

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Em cada etapa da trajetória de discussão e construção do Movimento da ES

no Estado, até sua implementação em política pública estadual, pôde-se perceber e

vivenciar toda uma complexa relação entre os atores envolvidos imersos nestes

processos. Lembrando que esta nossa percepção se dá à luz de discussões e

reflexões feitas por um grande coletivo, mas que, através do “olhar” que o Grupo

MUDAR trouxe para nós, como compreensão deste todo.

Dentro da organização e composição desta proposta, mais que contra-

hegemônica, os critérios de coletividade, autogestão, democratização dos fazeres,

dos proventos e acessos, a solidariedade e equidade, o cuidado com o outro e com

a natureza (a sustentabilidade do planeta), as relações comerciais, financeiras e

administrativas justas e solidárias, a formação e educação para a vida e com a vida,

tecnologias sociais e políticas públicas formaram um conjunto constante de reflexão

e discussão.

O diálogo travado com o poder público foi estabelecido, mas ainda é

incipiente diante das grandes demandas. Apesar disso o coletivo persiste. Acredita

que, como o próprio homem, este processo é um eterno “vir a ser”. O inacabamento

do ser e do fazer é o que alimenta as forças destes heróis da resistência. Acredita-

se nesta inconclusão enquanto possibilidade, uma vez que:

Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. Histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele (FREIRE, 2000, p. 23).

É na busca pela tomada de consciência, onde cada um vivencia estes

processos, que todo o trabalho de educação e formação em ES centra esforços. Na

produção contínua dos diversos saberes. É na e pela inserção lúcida deste sujeito

histórico nos engajamentos que dizem respeito ao bem comum, em forma de luta

pela transformação, que se pode pensar na possibilidade de um novo mundo:

A diferença em participar de qualquer grupo é o crescimento que temos como pessoa, mas participar do grupo MUDAR fez com que experiências boas e ruins fossem compartilhadas e o crescimento fosse maior. Assim, como sofri violência doméstica e algumas

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mulheres sofreram discriminação, partilhamos isso e tivemos a chance de construir maneiras de lidar com situações semelhantes, nos defendendo, assim como tivemos experiências boas que foram partilhadas por todas, trazendo para o grupo um número de contatos profissionais e pessoais que nos ajudaram para além do nosso grupo (Integrante JGC).

E necessariamente passa por este sentir, refletir, interpretar/reinterpretar e

compreender, e mostrar que o papel da mulher nesta construção vai muito além do

que as estatísticas apontam. É preciso que esta contribuição seja compreendida

enquanto elemento de provocação.

Uma provocação que nesta oportunidade se materializa na possibilidade que

há de elas falarem de suas próprias experiências, ou seja, não se trata de outros

falando por elas ou delas, mas elas mesmas falando de dentro de toda essa

complexidade.

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3 A ECONOMIA SOLIDÁRIA

3.1 O PROBLEMA EM QUESTÃO

Neste capítulo trazemos uma problematização sobre a construção da ES em

âmbito nacional e regional, posteriormente sobre sua história na experiência do Mato

Grosso, com dados do mapeamento da ES disponibilizados pelo SIES, a partir de

nossa pesquisa in loco, considerando-se os relatos das vivências de algumas

integrantes do Grupo MUDAR que fazem parte do FEES/MT e da REMSOL.

Neste contexto, a crise econômica, política e ética que se estabeleceu no

mundo do capital é fato; assim, por vezes, estratégias de superação e de resgate da

porção humana se destacam em determinadas experiências e em espaços

específicos. A exclusão em massa das trabalhadoras e trabalhadores do acesso aos

bens de consumo, seja ele cultural, social, político ou econômico, associado ao fato

destas pessoas, em sua trajetória de vida, terem sido silenciadas durante toda a

história da humanidade, é algo que não tem mais condição de ser aceito ou

esquecido, é preciso ser enfrentado para, na medida do possível, ser superado.

A participação destas pessoas no processo de construção e produção da vida

em sociedade precisa ser estimulado/ensinado/provocado. Esta é uma das

condições fundamentais para qualquer proposta de transformação social, pois esta

dimensão, enquanto elemento de destaque pode muito mais que envolver estas

pessoas, transformando-as em protagonistas deste processo de construção:

A necessidade humana de participação, ou de ser protagonista de sua própria história é, neste sentido, uma das necessidades não-materiais reconhecidas como condição e resultante de um processo de transformação dirigido ao aumento de qualidade de vida de uma população. A participação real da população nas decisões que afetam a vida cotidiana supõe o reconhecimento de outras necessidades associadas que são, por sua vez, condição e resultante de um processo participativo: autovalorização de si e da cultura do grupo a que pertence, capacidade reflexiva sobre os efeitos da vida cotidiana, capacidade de criar e recriar não somente objetos materiais, mas também e fundamentalmente criar e recriar formas novas de vida e de convivência social (GAJARDO e WERTHEIM, 1981; apud BRANDÃO, 1990, p. 107-108).

Essa participação não é um dado a priori do ser humano, somente na vivência

é que se pode cultivá-la. É em meio ao cotidiano que os grupos sociais criam e

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recriam significados e conhecimentos, “é precisamente este “conhecimento” que

constitui o tecido de significados, sem o qual nenhuma sociedade poderia existir”

(BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 30).

Os espaços instituídos dentro da sociedade do capital pouco ou nada fizeram

ou fazem para o estímulo deste exercício, mesmo porque sua ideologia é alienante e

apolitizada, pois suas funções são dar continuidade ao que está posto.

Nesta perspectiva, se faz necessário que em espaços distintos de

organização comunitária e social esta prática precise ser estimulada para, somente

então, no ato do exercício ser vivenciada. A ES se apresenta enquanto um destes

espaços organizados pelo povo, que possui em sua dinâmica estrutural e

estruturante ações que visam mobilizar, fomentar, articular, estimular e provocar

todo um envolvimento, de forma integradora, das chamadas “minorias”, que sempre

estiveram à margem das políticas públicas essenciais.

Estamos aqui ousando fazer uma leitura compreensiva, através de um olhar

fenomenológico, de algumas experiências que estão acontecendo no estado,

principalmente em alguns municípios da chamada “Baixada Cuiabana”, organizadas

a partir da orientação político pedagógica da ES.

Diante da realidade como ela se apresenta, lembrando que é no cotidiano que

ela é forjada nas e pelas relações sociais, o pesquisador muitas vezes coloca

questões que podem provocam rupturas no processo vivido, daí a necessidade de

se estabelecer um recorte da realidade; desta forma o pesquisador pode se voltar às

demandas do próprio fenômeno pesquisado, a partir da vida vivida no cotidiano,

A análise fenomenológica da vida cotidiana, ou melhor, da experiência subjetiva da vida cotidiana, abstém-se de qualquer hipótese causal ou genética, assim como de afirmações relativas ao status ontológico dos fenômenos analisados. É importante lembrar este ponto. O senso comum contém inumeráveis interpretações pré científicas e quase científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas ((BERGER e LUCKMANN, op. cit., p. 37).

São tomadas estas colocações de Berger e Luckmann para dar base ao

nosso entendimento de que a realidade vivida não é estática e que, portanto, está

em constante movimento; que, mesmo se destacando determinado recorte, ao

voltar-se ao fenômeno pesquisado com postura fenomenológica é preciso a

compreensão de que sua abordagem é tão somente uma possibilidade diante do

todo desta ou daquela experiência.

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Assim posto, desafia-nos compreender qual a percepção, ou o “olhar” que o

Grupo MUDAR lança sobre o processo de formação pelo qual participa dentro de um

MS que herda bandeiras de luta de muitos outros MS, devido sua amplitude política,

que converge com os muitos interesses destes. Este é o centro de nossas

discussões e reflexões com vistas à compreensão desse fenômeno social.

Para tanto, se partiu de alguns questionamentos suleadores, como: quais os

temas tratados; qual dimensão é mais trabalhada (formação política,

comercialização, produção, crédito, finanças, PP); quais são as maiores

preocupações dos grupos que participam deste MS; como acontece a participação

dos grupos e segmentos no processo de construção das oficinas, seminários e

conferências específicas da ES em seus diversos âmbitos?

Enfim, quais dimensões a formação oferecida neste espaço pode delinear: “a

que tipo de projeto de classe serve o trabalho de educação, ou seja, ele reforça a

hegemonia do poder estabelecido ou, dentro dos seus limites, contribui para a

formação de uma nova hegemonia popular?” (BRANDÃO, 1990, p. 117). Lembrando

que:

A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem (FREIRE, 1983, p. 34).

A compreensão dessas questões poderá possibilitar um maior entendimento

dos desdobramentos que esta proposta mais que contra-hegemônica pode produzir.

Tem-se o entendimento de que se vive em uma sociedade capitalista e como tal a

ideologia que lhe favorece está fortemente enraizada nos costumes e modo de vida.

Nesta perspectiva é interessante verificar o que Geertz entende por esta ideologia

vigente:

Como a política que apóia, ela é dualista, opondo o puro nós ao perverso eles e proclamando que aquele que não está comigo está contra mim. Ela é alienante pelo fato de desconfiar, atacar e trabalhar para destruir instituições políticas estabelecidas. É doutrinária pelo fato de reclamar a posse completa e exclusiva da verdade política e abominar o diálogo. É totalista em seu objetivo de ordenar toda a vida social e cultural à imagem dos seus ideais, futurista pelo fato de

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trabalhar por um fim utópico da história, no qual se realizará tal ordenação (GEERTZ, 1989, p. 168).

Muitos são os espaços de iniciativa popular que promovem a participação

política das pessoas que participam deste movimento, com o intuito de se construir

um projeto de sociedade que vem de encontro a esta postura. Assim, Feiras de

Economia Solidária, Agroecologia, Agroextrativismo, Agricultura Familiar;

Conferências; Seminários; Assembléias Populares, Audiências Públicas; Fóruns e

Conselhos, Redes e Cadeias são organizados por este coletivo, na tentativa de

enfrentamento e superação desta ideologia que impede a cidadania plena do povo.

A I Conferência Estadual de Mato Grosso (2006), por exemplo, fomentou

muitas discussões sobre estas questões e colocava, enquanto proposta para

superação das situações diversas às quais os Grupos de EES estavam expostos, a

formação política dos envolvidos neste processo, uma vez que a “ES colabora com o

desenvolvimento, pois promove o processo educativo – sensibilização, consciência e

prática solidária; promove mudança de consciência; promove interação e

cooperação; promove união; promove comércio justo” (I CONAES, 2007).

Assim sendo, é preciso todos os esforços para a construção/organização de

esquemas e políticas que oportunizem uma nova postura ideológica, social, política,

econômica e cultural, mesmo por que:

(...) a perspectiva de que a ação social é fundamentalmente uma luta interminável pelo poder leva a uma visão indevidamente maquiavélica da ideologia como forma de uma grande astúcia e, consequentemente, a negligenciar suas funções sociais mais amplas e menos dramáticas (GEERTZ, 1989, p. 173).

Discutir e refletir sobre os condicionantes sócio-históricos que legitimam a

ideologia dominante são estratégias que podem colaborar com este desafio. Em

meio ao caos do capitalismo, com sua decadência e incompetência diante das

contradições que ele mesmo alimentou por décadas e ainda nutre ferozmente,

ressurge o antigo costume da solidariedade. Diz-se antigo, por ser um costume que

vem de muitas décadas atrás, em um tempo anterior ao auge do capitalismo.

Essa é a solidariedade proclamada e defendida por Paulo Freire e seus

discípulos, percebendo, na constante batalha entre opressores e oprimidos, uma

realidade que só pode ser transformada a partir da práxis, com o protagonismo dos

sujeitos em cada etapa do processo de exorcisação. Para tanto:

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É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e ação. Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la (FREIRE, 1987, p. 54).

Pensar nesta dimensão é um dos fatores que move o interesse por esta

pesquisa. Compreender se a inserção lúcida à realidade dos envolvidos neste

processo existe, se realmente parte do interesse das pessoas que participam da ES

e se é fomentada, verificando, na medida do possível, como nesta experiência se

apresentam as possibilidades e os limites desta construção.

É poder ver, mesmo em meio ao cenário caótico da mercantilização da vida,

com esperança, confiança, fé e amor, possibilidades no “inédito viável” que a ES traz

em seu bojo, em um movimento que alimenta continuadamente nosso ânimo em

acreditar no ser humano como agente transformador.

3.2 ECONOMIA SOLIDÁRIA: EXPERIÊNCIA DA “BAIXADA CUIABANA”

Tudo aqui discutido faz parte das vivências dos grupos de EES e das

Assessorias e Gestores Públicos, organismos/instituições parceiras/os que apóiam a

organização das atrizes e atores da ES. Neste momento, estavam presentes 3 (três)

integrantes do Grupo MUDAR.

Verifica-se o quanto a luta destas/es trabalhadoras/es é árdua, pois nadar

contra a correnteza do capitalismo que promove o individualismo, incentiva o

competitivismo e estimula o consumismo desenfreado, é, no mínimo, uma

empreitada desafiadora.

Apoiadas pelos relatos de vidas percebemos que cada realidade possui seus

limites e possibilidades, de região para região, e de localidade para localidade,

porém, apesar das especificidades locais, os desafios muitas vezes são

semelhantes.

Na experiência de Cuiabá-MT, que é o espaço delimitado desta pesquisa,

alguns fatores são desafios locais e outros são regionais e nacional - estes em sua

maioria se referem à produção, comercialização, consumo, crédito, assistência

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técnica e a formação para a autogestão com equidade de gênero e com respeito à

natureza.

O trabalho compartilhado, participativo e democrático é uma postura que se

estimula na prática, porém, como o homem pode ser considerado um “subproduto”

gerado pela cultura do capitalismo, estas prerrogativas não são naturais, uma vez

que não estão nas relações sociais estabelecidas na e pela sociedade.

Esta história de luta em Mato Grosso se materializou com a efetivação do

Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES), que se deu em 26.08.2004, tendo

como marco o I Encontro Nacional de Empreendimentos de ES em Brasília, que

reuniu cerca de 2.000 empreendimentos.

Algumas datas e eventos fazem parte, direta e indiretamente, da construção

deste espaço político e de todas as atividades que ele realiza, bem como das ações

desenvolvidas pelas pessoas envolvidas no processo (EES, Assessorias, Gestores

Públicos e militantes). É importante destacar, ao menos sinteticamente, alguns

passos dados, afinal foram decisivos para a história da ES em MT e, mais

especificamente, em Cuiabá.

Desta forma, a seguir será feito um relato pontual das principais atividades

que marcaram esta caminhada histórica existente há mais de sessenta e cinco anos:

1979 – Pastoral da Terra inicia seus trabalho em Mato Grosso.

1981 – Gleba Prata - grupos de produção solidária com o Padre José Ten Cat

em toda a região de Diamantino, Rosário Oeste, Paranatinga, Nobres e

Arenápolis, que resultou nos mais antigos projetos de produção coletiva,

pensadas em molde socialistas, com o Senhor Armandinho (em Rosário Oeste).

1982 – Criação da Pastoral da Juventude na Comunidade de São Benedito, em

Poconé; realização do Curso de Cooperativismo em Cáceres/UNEMAT.

1983 – Organização do Grupo de Mulheres Farinheiras pela Irmã Dalila/CEBI;

organização de associações no Araguaia.

1984 – Inicia-se a caminhada do MST no Brasil.

1986 – Acontece o I Seminário de formação do Grupo da Pastoral da Juventude

em Poconé e Nossa Senhora do Livramento; discussão sobre Educação no

Campo.

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1988 – Centro de Desenvolvimento do Menor (CIDEN), experiência em Campo

Grande-MS, coordenada em conjunto com as Irmãs da Igreja Nossa Senhora

Auxiliadora.

1993 – CEBIs: Comitê Contra Miséria pela Vida; trabalho concentrado pela

geração de renda com Padre José Ten Cat.

1994 – Geração de renda e Economia Popular/UNEMAT; inaugurada a

CONTRAPUC com a ajuda da Paróquia do Rosário.

1995 – Início de uma experiência produtiva: MIGUE CONFECÇÕES; formação

de Associações, Cooperativas: COMPRUP, com apoio do Padre Joaquim.

1996 – UFMT: Pensando Alternativas/Coorimbatá, com Prof. Nicolau.

1997-2000 – Curso de cooperativismo com companheiros da Nicarágua;

1999 – ONG Moradia e Cidadania; organização de grupos de produção/

cooperativas.

2000 – Reuniões de discussão à luz da teoria de Paulo Freire (grupo de estudo);

2002 – Lula eleito; GTBEs (Grupos de Trabalho Brasileiro em ECOSOL).

2003 – 1ª Plenária Nacional de Economia Solidária; criação da SENAES; 2ª

Plenária Brasileira de ECOSOL em conjunto com vários Movimentos Sociais e

Empreendimentos (Fórum Brasileiro de ECOSOL); Comitê Natal sem Fome;

Seminário REMSOL: I EMESOL; Comunidades Indígenas iniciam a experiência

em seus grupos de produção; é criado o TALHER (Rede Cidadã), Programa

FOME ZERO; Curso de Cidadania e Gênero/UFMT/NUEPOM – Grupo MUDAR

começa a ser pensado.

2004 – É criado o Grupo MUDAR; começa a formulação e efetivação do Fórum

Estadual de Economia Solidária em 26/08/2004; o Marco do I Encontro Nacional

de Empreendimentos de ECOSOL em Brasília reuniu cerca de 2.000

empreendimentos; II EMESOL.

2005 – Movimento para construção de projeto da ECOSOL na Secretaria

Nacional de Economia Solidária; aprovada em dezembro a Lei Municipal no

2.460, que regulariza a ECOSOL em Tangará da Serra; o Centro Público

funciona pela primeira vez por ocasião do Natal; DRT e Universidades realizam o

Mapeamento; III EMESOL.

2006 – I Conferência Estadual de Economia Solidária; I Conferência Nacional de

Economia Solidária; projeto do Centro Público ganha força; é criado o Conselho

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Nacional de ECOSOL; I Encontro Municipal de Economia Solidária; I Feira

Estadual de Economia Solidária.

2007 – Inauguração do Centro de Comercialização; São realizadas muitas

Audiências Públicas de apoio; I Encontro de Formação de Formadores de

Economia Solidária; Encontro Regional de Reestruturação do Fórum Brasileiro

de Economia Solidária da Região Centro-Oeste; Participação expressiva dos

EES da ES na I Feira Panamazônica de Economia Solidária; II Feira Estadual de

Economia Solidária.

2008 – IV Plenária de Economia Solidária (encontros e desencontros); Lei

Municipal de Cuiabá tramita na Câmara; Lei Estadual é aprovada; I e II Feira

Pantaneira de Agroecologia, Agroextrativismo e Economia Solidária; IV

EMESOL.

2009 – Fórum Social Mundial, primeiro com participação representativa dos EES

do Mato Grosso; inauguração do CFES (Centro de Formação em Economia

Solidária) da Região Centro-Oeste; III Feira Pantaneira de Agroecologia,

Agroextrativismo e Economia Solidária; V EMESOL; primeiro ano de

funcionamento do Centro de Formação em Economia Solidária do Centro-Oeste

(CFES-CO); renovação de alguns membros do Conselho Nacional de Economia

Solidária. Um dos integrantes é representante do FEES/MT no Fórum Brasileiro

de Economia Solidária (FBES); início da Formação Política das Comunidades da

Morraria, que compreendem dois municípios de MT, Nossa Senhora do

Livramento e Poconé – realizada pela UNEMAT/INCUBESS; início da construção

da indústria de beneficiamento da banana, de uma rádio comunitária e do Centro

de Informática que atenderá a região da Morraria – localizada na Comunidade

Quilombola de Capão Verde/Poconé; chegada da UNISOL Brasil junto aos EES

do MT.

2010 – Fórum Social Mundial/Fórum Mundial de Economia Solidária Santa

Maria/Porto Alegre/Canoas-RS; I Seminário Estadual de Comercialização

Solidária de MT, Cuiabá-MT; I Seminário Regional/CO de Comercialização

Solidária, Bonito-MS; Encontro Regional do FBES. Campo Grande-MS; Lei

Estadual de Economia Solidária é regulamentada com veto na criação do

Conselho Estadual; início do 3º Mapeamento da ECOSOL realizado pela

ANTEAG; I Feira Regional de Agricultura Familiar e Economia Solidária do Norte

do Estado – Colíder.

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2011 – Eleição da primeira Mulher na Presidência do Brasil; Lei Municipal de

Economia Solidária de Colíder nº 2.436/2011 é aprovada; XI Fórum Social

Mundial; I Seminário Estadual de Comércio Justo e Solidário; IV EMESOL;

Decreto do Conselho Estadual de ECOSOL/MT; Marcha das Margaridas; X

Reunião da Coordenação Nacional do FBES; I Encontro Nacional de Diálogos e

Convergências; Avaliação dos CFES e início da construção de um novo edital

para reformulação deste Centro de Formação.

São mais de 65 anos de história construídos pelas atrizes e atores da ES em

Cuiabá com a participação de alguns representantes de EES dos outros municípios

da “baixada cuiabana”. Esta reconstrução foi feita em um encontro de formação

articulado entre a RECID e o FEES, que objetivava reunir o maior número de

integrantes: EES, Assessorias, Gestores e militantes, em torno da retomada e

fortalecimento da articulação do Movimento no Estado.

O exercício possibilitou a partir das trocas um ato reflexivo entre o coletivo,

que se desdobrou em um momento de elucidação das conquistas e do quanto ainda

se é preciso articular para desvelar, uma vez que “o diálogo crítico é libertador, por

isto mesmo que supõe a ação, tem que ser feito com os oprimidos, qualquer que

seja o grau em que esteja a luta por sua libertação” (FREIRE, 1989, p. 58).

Tem-se o entendimento da importância e força de todas estas ações que

promoveram e fortaleceram o movimento em Cuiabá, percebendo em cada etapa

desta caminhada atitudes fortalecidas pela participação de cada sujeito, de cada

protagonista e escritoras/es de sua própria história revelam traços de autonomia em

suas bases. Uma autonomia ainda tímida, com avanços e retrocessos, mas esse é o

movimento da própria vida, uma construção social onde:

É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar (FREIRE, 1996, p. 76-77).

No momento em que se tem tranquilidade sobre esta dimensão do estar

sendo, de que, ao sujeito se inscrever, é inscrito em um movimento dialético entre

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tais categorias, abre-se um leque de possibilidades que, correlacionadas à

autonomia aqui mencionada, dimensão que é buscada como elemento fundante em

cada evento, reunião, articulação, formação e reconstruções, potencializam o fazer

enquanto estratégia de superação destes protagonistas.

Em conjunto à autonomia, a fé, a alegria, a confiança, a esperança e o amor

pelo que é humano. Como também a resistência, a inconformação, a indignação

contra a negação do homem como objeto caminha no mesmo compasso. No interior

deste processo, a identidade formativa que o mesmo assume, é co-responsável por

esta conquista, mesmo porque:

A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que na perspectiva democrática é um possível momento de falar com, nem é ensaiado. A desconsideração total pela formação integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção de falar com (FREIRE, op. cit., p.115-116).

Essa é uma característica que os atores da EES estão aprendendo, em cada

encontro, feira, seminário, conferência, trocas, enfim, em cada trabalho proposto e

construído por este coletivo, há esse cuidado, sensibilidade e interesse a partir dos

pressupostos da Educação Popular em falar com os parceiros, as companheiras e

companheiros. É um espaço de contradições e conflitos, mas que, nem por isso, ou

exatamente por isso, se estimula o exercício da cidadania.

Uma das conquistas do Movimento frente às demandas de Formação foi a

criação, em 05 de março de 2009, do Centro de Formação em Economia Solidária

(CFES), cuja coordenação pedagógica e administrativa funciona em Goiânia-GO. A

Escola da CUT (ECOCUT) participou do edital nacional e foi a selecionada para

gerenciar as atividades do Centro, onde três pessoas são responsáveis pela

consecução das atividades pedagógicas, administrativas e financeiras em conjunto

com um Conselho Gestor composto por 6 (seis) pessoas: 4 (quatro) representantes

de cada Estado e 2 (dois) representantes da CUT.

Neste sentido, há o entendimento entre os coletivos de que o

acompanhamento e a avaliação das atividades desenvolvidas pelo CFES precisam

ser feitos de forma compartilhada, integrada, respeitando as diferenças culturais de

cada região. Acreditam que isso só será possível com a participação efetiva dos

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FEES em articulação com os Fóruns Municipais, através das reuniões e formações

necessárias para um trabalho que venha ao encontro das necessidades de cada

Estado, Município e Comunidade, pois é a base que precisa ser fortalecida e

empoderada através das atividades deste CFES.

Como vem sendo discutido que um dos processos privilegiados da ES é a

dimensão educacional, ou seja, a formação política a partir da educação popular

freireana, há todo um trabalho que tem como objetivo o estímulo à inserção das/os

militantes na discussão política a partir de suas realidades, enquanto

trabalhadoras/es, mães e pais chefes de família que buscam por melhores

condições de vida através do resgate de sua cidadania, que a lei de fato não

consegue garantir.

Sendo assim, os militantes da ES, ao refazerem suas memórias através deste

exercício aparentemente simples, que foi o Túnel do Tempo, perceberam o quanto

caminharam, tantas foram as conquistas que precisam ser nomeadas, mas que, com

certeza, não estão todas aqui registradas. Entendem que, para efetivá-las, é preciso

o acompanhamento e a avaliação constante destes espaços e Políticas Públicas

pelos seus propositores.

A apropriação se dá com a vivência, mediada pelo diálogo. E estes não são

processos autônomos, ou seja, são dimensões dialéticas que precisam estar

constantemente sendo experimentadas. É preciso muito mais articulação de ações

que continuadamente exerçam o papel de animação, uma vez que a cultura

assistencialista ainda inunda nosso cotidiano: eis um constante desafio.

E é exatamente neste ponto que a cultura da autogestão nos desafia,

inclusive sua definição, que em meio às práticas é compreendida de diferentes

formas. Mas a autogestão entendida no âmbito de que “os trabalhadores não são

mais subordinados a um patrão e tomam suas próprias decisões de forma coletiva e

participativa” (BRASIL, 2007) que, ao serem verificadas nas práticas

problematizadas, percebe-se que ultrapassam estes termos.

Toda essa dinâmica envolve uma construção de dimensões que são

indispensáveis ao sujeito e à comunidade na qual está inserida. Insisto que a

dimensão da autonomia é tão importante quanto o conjunto de outras tantas, como a

liberdade, a participação e a democracia, o empoderamento pela ação-reflexão-

ação, as subjetividades e intersubjetividades, o trabalho e a educação, entre outras.

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É importante que se perceba que essas dimensões são interligadas como em

rede e que a ausência de uma pode inviabilizar o exercício da outra:

Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam ser criadas por nós, em nossa prática (...). É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica (FREIRE, ibid., p. 120).

Trazer essa constatação para as relações que ora estão se estabelecendo

nesta experiência da “Baixada Cuiabana” demonstra o quanto cada participante

(mulher, homem, jovem, idoso) precisa se envolver e abstrair de si mesmo

preconceitos, despir-se das idéias impregnadas pela ideologia vigente que os impele

ao imobilismo, e a dificuldade de ver algo novo e diferente como uma possibilidade

para as transformações necessárias.

A autonomia, neste contexto, é algo a ser praticado em cada etapa deste

processo, e em todos os momentos da vida. Não é uma empreitada fácil, não é

natural. É vivência, sendo assim, levando-se em conta que não é estimulada em

nenhum espaço específico, inclusive nem mesmo discutida pelos aparelhos

ideológicos disponíveis, é de se ter em mente que dependerá do interesse e esforço,

tanto individual quanto coletivo.

A proposta político-pedagógica da ES é justamente respaldada na Educação

Popular, pelo fato de que não há nenhuma proposta pronta e acabada, se faz no

processo, fazendo juntos. É esse o objetivo, afinal: construirmos juntas/os uma nova

proposta de sociedade e de vida. Esse é um testemunho de busca e construção da

autonomia, de uma possibilidade possível diante de realidades tão adversas que

constantemente insistem em nos colocar que não há saída.

3.3 A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO MATO GROSSO

HOJE

Hoje a organização deste espaço de representação política no Mato Grosso,

como em alguns estados, está fragilizada. O FEES/MT está mais uma vez em

processo de reestruturação, devido a várias atenuantes, algumas delas referindo-se

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a sua expressiva expansão territorial e a inexistência de apoio ou projeto logístico

para sua articulação e mobilização, mesmo assim há o desejo de que esta

reorganização aconteça:

Minha participação no Grupo Mudar teve início quando eu já estava perdendo a esperança na consolidação de um Fórum de Economia Solidária que viesse atender as necessidades e os sonhos de cada um e cada uma, em um mundo melhor. Eram tantos os relatos que esse mundo melhor seria possível, que nos enchia de esperança e não tinha outra alternativa senão se apaixonar pelo movimento (Integrante MN).

Há que se considerar neste processo algumas questões de ordem política. O

distanciamento do acompanhamento de algumas Assessorias de apoio também é

uma das dimensões que pesaram para este quadro atual, outro fator é a questão de

que os próprios EES não estão conseguindo se articular em prol desta organização,

apesar do interesse.

A falta de comunicação e de elementos estruturantes (condições materiais e

imateriais) são elementos destacados durante o último encontro do coletivo que vem

tentando a reorganização deste espaço político em Tangará da Serra-MT.

Em virtude desta realidade, desde meados do ano de 2010 as reuniões deste

coletivo estão, via de regra, acontecendo, na maioria das vezes movidas por pautas

de nível regional ou nacional; como por exemplo, em nível estadual, o Seminário

Estadual de Comercialização; em nível regional, sobre a Comercialização Solidária e

o Encontro Regional do FBES/CO; e nacional, oriundas da construção do Projeto da

Lei Geral de Iniciativa Popular da ES (PL 856).

Esta é a situação hoje do FEES/MT, que apesar de desestruturado pode ser

rearticulado a partir de suas bases, devido às mobilizações, articulações e diálogo

realizado através do coletivo da REMSOL e da RECID no interior do estado. Temos

no estado a Lei nº 8.936, de 17 de Julho de 2008, que institui a Política Estadual de

Fomento à Economia Popular Solidária no Estado de Mato Grosso. Neste primeiro

momento o governador em exercício, Blairo Maggi, vetou a constituição do Conselho

Estadual de ES.

Hoje a política estadual de ES foi tramitada da SETECS para a SEDRAF –

Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar. Nesta última

foram criadas duas Comissões para discutir e construir este Conselho de forma

tripartite (EES, Assessorias e Gestores Públicos). O Conselho Estadual de ES foi

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regulamentado, após toda uma construção representativa - participativa, através do

Decreto de nº 598/11, sancionado no dia 15 de agosto de 2011.

No estado a ES está organizada em 09 (nove) regionais e existem hoje 05

(cinco) Fóruns Municipais ativos, sendo que 03 (três) atuam em âmbito Regional:

Cuiabá e Rondonópolis (regional), Tangará da Serra (regional), Cáceres e Colíder

(regional), sendo que, destes, 03 (três) já possuem Leis de Incentivo e Fomento da

Economia Solidária.

Outros municípios possuem a Lei (São José dos Quatro Marcos e Apiacás),

porém não há notícia de Fóruns, mas há um coletivo organizado pela REMSOL; os

demais já realizaram discussões e propostas de leis municipais onde algumas foram

vetadas e outras ainda estão em discussão pelo coletivo:

1) Lei Municipal nº 2.460/2005 que regulariza a ECOSOL em Tangará da Serra. O

Fórum é de nível Regional;

2) Lei Municipal nº 1.210/2009, institui em fevereiro de 2009 a Política Municipal de

Fomento à Economia Popular Solidária em São José dos Quatro Marcos;

3) Lei Municipal nº 615/2009, institui a Política de Fomento à Economia Popular

Solidária no Município de Apiacás;

4) Lei Municipal de Economia Solidária de Colíder, nº 2.436/2011;

5) Lei Municipal de Economia Solidária na Região de Cáceres em projeto;

6) Poconé: a política pública está sendo tramitada pela Câmara dos Vereadores, foi

amplamente discutida e nasceu de uma articulação nascida no meio campesino

da Região da Morraria (municípios de Nossa Senhora do Livramento e Poconé).

É importante destacar que a maioria destas conquistas nasceu a partir de um

movimento de formação política articulada e mobilizada pela REMSOL e está

fazendo a diferença no trabalho de muitos EES do interior do estado, principalmente

junto à AF. Por outro lado, a RECID também colaborou estabelecendo diálogo com

etnias indígenas, quilombolas e ribeirinhos por todo o estado e, de forma mais

presente, na “Baixada Cuiabana”, com EES da cidade e do campo.

O CFES é um dos Projetos do Governo Federal que, em parceria com

algumas instituições (ONGs, Universidades), foi criado como resposta a uma

demanda por formação política, técnica e ética dos segmentos que compõem a ES

no Brasil. Foram ao todo 05 (cinco) CFES (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e

Nordeste).

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Uma de suas responsabilidades era fortalecer os coletivos a partir da parceria

com os FEES dos estados, para que a formação desenvolvida pudesse política e

tecnicamente instrumentalizar os EES, Assessorias e Gestores Públicos. Porém, em

nossa experiência este foi um sonho que se transformou em uma prática

desarticulada com o Movimento, o diálogo entre este e o FEES foi inexistente, suas

ações de formação não tiveram retorno objetivo de fortalecimento político ou técnico

do movimento da ES no MT.

Com certeza as ações de formação através do CFES-CO estão acontecendo,

mas através de algumas experiências isoladas, em parceria com determinadas

instituições governamentais e não governamentais, mas que o coletivo de EES,

Assessorias e Gestores Públicos, que atualmente estão comprometidos com a

Reestruturação do FEES/MT (CPR/FEES-MT), desconhecem.

O Grupo MUDAR, através de uma de suas integrantes, participa de perto

destes processos, mesmo porque são representantes do estado frente a esta

política dentro do FBES. O fato do Grupo em sua totalidade não ter participação in

loco em alguns espaços articulados pela ES no estado gera algumas situações de

conflitos e contradições diante deste cenário político:

A produção e a comercialização insipiente, a dificuldade de estarmos presentes no Centro Público de Comercialização da ES, as muitas situações que invibializam a presença da maioria das mulheres e a quase inexistência de retorno financeiro do nosso empreendimento são alvo de discussões e rusgas entre nossa organização e alguns EES e Assessorias que insistem em nos apontar como um não grupo de ES. Este é um fator que escancara uma realidade cruel entre nós, pessoas que, contra muita dificuldade, tentam fazer uma relação diferente nesta sociedade, mas a realidade da perversa subversão do indivíduo a um modelo fechado para outras possibilidades nos impede. Nós estamos mobilizadas em torno de uma idéia: uma forma de produzir juntas sem que seja preciso deixar a família de lado, muito pelo contrário, trazendo a família para trabalhar junto com a gente. É neste ponto que eu acho que as Assessorias precisavam trabalhar, no apoio às idéias ou iniciativas, como esta nossa, mas o que percebemos neste caminho é que não importa o quanto conhecemos, ou o quanto queremos conhecer para poder dar conta de nossas limitações, buscando sempre melhorar nossa produção e, mesmo enquanto pessoas, mas se você não corresponde à expectativa dos “outros”, você pode ser muito questionado e exposto a uma série de situações muitas vezes constrangedoras (JFN, Coordenadora Grupo MUDAR).

Esta fala da coordenadora do Grupo MUDAR nos chama muito a atenção

sobre este processo de atuação dos três segmentos das pessoas e instituições que

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compõem a ES. Percebe-se aí uma indiscutível tensão/contradição entre o fazer e o

dizer, com outras palavras, entre o discurso e as práticas dentro do processo de

organização/formação da ES nesta experiência.

No momento em que foi trazida a discussão sobre a situação política do MS

da ES hoje na experiência do Mato Grosso, a partir das experiências de participação

do Grupo, visto a ativa circulação deste nos processos políticos local, regional e

nacional, surgiu esta questão como algo que empresta ao Grupo uma posição de

incerteza diante da permanência/resistência do mesmo nestes espaços.

Muito embora as mulheres percebam uma melhoria na sua qualidade de vida

no concernente aos acessos a determinados conhecimentos, à motivação de dar

continuidade aos estudos, onde metade das integrantes, após a criação/participação

no Grupo, voltou a estudar e já tem concluído o Ensino Superior; diante destas

forças desmobilizadoras sentem-se enfraquecidas:

Pode até parecer bobagem, e muito provavelmente é, mas nós estamos nos sentindo como o FEES/MT, em constante processo de rearticulação, sem acompanhamento técnico adequado, minadas pelo descrédito e a desvalorização de muitas pessoas que em nome ou não do movimento insistem em não reconhecer que existimos e que precisamos do apoio de todas e todos para permanecermos ativas neste processo (JFN, Coordenadora, Grupo MUDAR).

Quando trouxemos a experiência deste Grupo para dar “carne” ao processo

de formação que circula dentro da proposta da ES, o fizemos pela possibilidade

traduzida na expressão que o desejo destas mulheres trazem para dentro desta

construção. Tanto que no decorrer desta dissertação estão discussões e reflexões

tecidas com base na esperança delas (e de outros) por um “outro mundo possível”.

Estes testemunhos estão traduzidos/presentes em cada ponto de fala, de

forma mais ou menos coletiva, em articulação com outros “olhares”. O desejo fez

com que acreditassem em algo que elas nunca haviam sido estimuladas a perceber

ou crer: que elas podem fazer a diferença!

A desarticulação do Grupo hoje de fato é algo que incomoda muito estas

mulheres, que não desistem da idéia e do sonho de serem donas de seu próprio

“negócio”. Do sonho de, ao conquistar o poder, se aventurar em uma forma diferente

de produzir e de viver bem, também podem sonhar com a real possibilidade de

colaborar para com a construção de uma sociedade melhor para as futuras

gerações, enfim, onde sonhos possam se tornar realidades:

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Minha participação no Grupo MUDAR juntamente com algumas companheiras que estiveram presentes nos momentos de trocas e formação, tentamos sugerir uma mudança de vida por meio da idéia e do movimento de Economia Solidária, na tentativa de fazer com que o nosso grupo venha a sentir a maravilha que é sonhar e ver que é possível um mundo melhor através de nossas ações (Integrante MN).

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4 COMERCIALIZAÇÃO E FORMAÇÃO: ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO

POLÍTICA

4.1 PARTICIPAÇÃO NAS FEIRAS PANTANEIRAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA,

AGROECOLOGIA E AGROEXTRATIVISMO

Esta conversa coloca em discussão algumas reflexões que são resultados

dos trabalhos de Formação que aconteceram em meio à Comercialização, Produção

e Consumo durante as Feiras Pantaneiras de Economia Solidária, Agroecologia e

Agroextrativismo. A I, II e III Edições aconteceram no município de Cáceres-MT, a IV

Feira aconteceu no município de Tangará da Serra-MT.

A primeira delas aconteceu entre os dias 22 e 24de junho de 2007 e a quarta

e última entre os dias 05 e 09 de setembro de 2009, durante a EXPOSERRA - Feira

Agropecuária de Tangará da Serra, sendo que o tema compartilhado com o V

EMESOL, nesta oportunidade, foi o I Seminário Estadual de Redes e Cadeias de

Colaboração Solidária.

Os encontros geralmente eram organizados por alguns coletivos articulados

em torno da discussão e fortalecimento da ES no Estado. Entre eles o do FEES/MT,

da REMSOL, da AMAMT, do SINTEP/CUT, do MST, Comissão Permanente da

Mulher, ABONG (Associação Brasileira das Ongs), Pré-Fórum da Juventude/

Cáceres, Sindicato dos Trabalhadores Rurais/Cáceres, alguns EES de vários

municípios de Mato Grosso, em conjunto com a UNITRABALHO/INCUBESS/

UNEMAT.

Estes encontros foram destacados pelo Grupo como uma das oportunidades

de comercialização e formação que oportunizou muitos intercâmbios e trocas de

conhecimentos. Nas quatro edições das Feiras Pantaneiras o Grupo MUDAR pôde

estar presente.

Neste sentido, serão trazidas algumas discussões e reflexões tecidas pelos

coletivos durante a formação trabalhada nestes espaços de Feira. A intenção é fazer

uma releitura de algumas idéias que foram tratadas, de forma mais ou menos

descentralizada, ou seja, sem uma ordem cronológica determinada.

Buscar nas memórias do Grupo as dimensões que mais se destacaram para

elas neste processo educativo pode ser uma maneira de novamente poder

problematizá-las, verificando o quanto elas têm relação com o cotidiano.

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A metodologia utilizada nestes espaços tentou fazer uma ponte direta entre a

formação (produção de saberes) e a comercialização, com o objetivo de estimular o

fazer intelectual e o fazer prático, em um ato de ação-reflexão, pois “o enfrentamento

dialético ação-reflexão é o que dá origem à mudança, tanto do nível de consciência,

como da estrutura social” (GUTIÉRREZ, 1993, p. 28).

4.1.1 Idéias Destacadas

Cuidado com o meio ambiente: consumo versus lixo, agrotóxico versus alimentos

saudáveis, cuidado versus exploração, gente versus politicagem, vida versus

morte;

Políticas Públicas para os setores da EE, Agroecologia e Agroextrativismo:

construir com a participação da base - é extremamente urgente e necessário

conhecer as que já existam, para reivindicar como base;

Diferença entre PP e Programas e Projetos: Leis, Conselhos, CFES, Sistema

Nacional de Comércio Justo e Solidário, PAA, PNAE;

Processo do Mapeamento: construção e apropriação do SIES; no Mato Grosso

foram confirmados aproximadamente 747 e visitados em todo o Brasil cerca de

22.000 empreendimentos. O mesmo aponta a predominância de 75% no meio

rural e de 70% formados pela população feminina, os quais resistem sem

nenhum apoio;

Agroecologia e Agroextrativismo: valorização dos saberes populares, a luta

contra o monopólio da monocultura como estratégia de desenvolvimento,

transgenia e os agrotóxicos, valorização dos bancos de sementes crioulas, luta

pela liberdade do uso da biodiversidade;

Articulação entre os diversos MS em prol de integração de agendas para

fortalecimento destes setores produtivos: organização é a palavra chave aqui;

Educação problematizadora como instrumento de emancipação política:

processo de consciência e conscientização contínuos e necessários; valorização

da escola pública: do campo e da cidade, a política de inclusão, de cargos e

carreira, salarial e a destinação de recursos públicos para a educação;

Organização Territorial com o cuidado às Territorialidades: é preciso mais

conhecimento sobre estes temas até para apropriação dos MS;

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Cuidado com as gerações, neste caso a juventude é uma preocupação frente à

continuidade do fortalecimento de espaços como o meio campesino;

Economia Solidária e Agricultura Familiar juntas pela construção de uma outra

sociedade possível: o intercâmbio precisar continuar se fortalecendo,

principalmente para consolidar o diálogo entre as pessoas do campo e da cidade:

“o desenvolvimento da agricultura familiar considera o meio ambiente como fator

fundamental da sustentabilidade da propriedade produtiva” (DERKOSKI, 2004, p.

314);

Parcerias entre os EES podem fortalecer os processos de produção de saberes e

comercialização solidárias;

O diálogo entre os EES, as Assessorias e os Gestores Públicos se dá em um

processo de disputa, enfrentamentos e contradições;

Inclusão digital e acesso às Tecnologias da Comunicação e Informação:

Tecnologia Social como meio de acesso a uma produção social diferenciada;

É necessário ter o conhecimento da conjuntura política no Brasil e na América

Latina: leitura de mundo e do mundo que é muito difícil de fazer;

Exploração do “mundo do trabalho”: trabalho escravo, exploração sexual

comercial infanto-juvenil, trabalho infantil, desigualdade de gênero,

competitivismo e o individualismo;

É preciso que se problematize a naturalização das violações e dos preconceitos,

pois esta situação ajuda a promover a banalização dos direitos humanos, sendo

assim, contra o ser humano como um todo;

Aproximação das Universidades como estratégia política e pedagógica para

“qualificar” as discussões dos militantes e dos universitários: necessidade de

construir conceitos a cerca de temas relevantes como estes, para abrir mais as

possibilidades dentro dos limites conceituais de cada espaço de produção de

conhecimentos; continuidade na escolarização;

Valorização das identidades culturais e saberes populares: quilombolas,

ribeirinhos, caiçaras, assentados, quebradeiras de coco, agricultores familiares,

indígenas, pessoas que tentam fazer de forma diferenciada a vida;

Percepção do movimento dialético da vida: “eu” e o “outro” no mundo, e com o

mundo, podendo agir juntos para transformá-lo;

Participação como instrumento de poder: acompanhamento através do controle

social relativo;

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Comércio Justo e Solidário: revisão do consumo, do acúmulo, das relações

comerciais, dos contratos sociais estabelecidos, necessidade de uma profunda

transformação na base de uma sociedade tão capitalista;

Feira de Trocas: Moeda Social, trocas de produtos materiais e imateriais;

Redes e Cadeias Produtivas: leitura de processos diferenciados, mas que se

comunicam, ou precisariam se comunicar;

Muitas construções significativas dentro dos processos do Grupo MUDAR, da

REMSOL, da AMAMT, dos EMESOL, do FEES, do Brasil Local e do FBES.

4.1.2 Algumas Discussões

Os coletivos reunidos em torno destas reflexões demonstram que têm a

compreensão de que essa é apenas uma das discussões onde é preciso que os

grupos envolvidos na organização destes espaços políticos estejam preparados para

discutir as realidades e proporem estratégias, dar sugestões, trocar ideias e assim

colaborar com a dinamização da Economia Solidária, da Agroecologia e do

Agroextrativismo.

Nestes momentos é preciso que se ressalte aqui a participação dos atores

sociais em cada etapa deste processo dialógico, o Grupo MUDAR sempre retorna a

este ponto da participação, sendo percebido por elas, na medida do possível, como

o diferencial vivenciado nestas Feiras de ES.

Para o Grupo MUDAR estas discussões fazem parte de uma preocupação

frente à produção das biojoias e do papel reciclado. Como, ou em que medida a

produção delas estaria de acordo com a forma adequada do trato com as sementes

e com a produção dos papéis? Partiram destas dúvidas para a compreensão mais

ampla de algumas aproximações sobre estas questões.

A ES tem, na perspectiva dos EES aqui representados, no trabalho e no

investimento em espaços de formação política para a construção de uma nova

realidade cultural e política - uma importante colaboração, pois o individualismo que

impera nesta cultura capitalista impede todo o avanço e concretização deste “inédito

viável”:

Os olhos das pessoas brilhavam e conseguíamos sonhar de forma coletiva, isso era impressionante. Mas para mantermos esse brilho, tínhamos que caminharmos juntas/os, em busca dessa consolidação,

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que nem sempre era possível. Na maioria das vezes a ganância e o próprio egoísmo nos distanciavam, não pelo Grupo, mas por “aqueles” que, de alguma forma, tentavam se autoafirmar donos do movimento e dos espaços que havíamos conquistado juntos. A falta de união entre os empreendimentos e grupos faziam com que fossemos perdendo a esperança nesse tão sonhado mundo melhor (Integrante MN).

Nesta perspectiva, entender como uma história de resistência pode se dar em

meio a tantos conflitos e, ainda assim, haver superação, fazendo com que o Grupo

permaneça unido em torno desta possibilidade, onde somente com base em

relações solidárias pode-se vislumbrar a construção de uma vida digna:

Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que esta luta exige deles, a partir do momento em que aceitam, a sua responsabilidade total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdade para comer, mas “liberdade para criar e reconstruir, para admirar e aventurar-se”. Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem uma peça bem alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autônomos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte. Os oprimidos que se “formam” no amor à morte, que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta, o caminho do amor à vida, que não está apenas no comer mais, se bem que implique também e dele não possa prescindir (FREIRE, 1987, p. 55).

Enquanto um processo de “formação” política, é preciso todo um cuidado

frente aos discursos e práticas que apóiam sua fundamentação. Esta leitura das

entrelinhas das intenções políticas por trás de cada “ideia” é uma espécie de

filtragem complexa, difícil de decifrar por pessoas comuns.

É por isso que se retoma continuadamente a necessidade da educação

problematizadora como estratégia para a construção de PPs que possam quebrar

esta cultura historicamente paternalista/assistencialista.

Talvez assim, acreditam, a voz das milhares de pessoas que ora fazem e

refazem suas vidas, confiando na possibilidade da construção de uma nova forma

de estabelecer relação entre si e com a natureza, alcançaria determinado patamar

de organização e então conseguiria a visibilidade necessária e a conquista dos

direitos civis negados.

O diferencial dos processos de formação e comercialização das Feiras

Pantaneiras estava na correlação que existia entre os temas abordados e a história

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de vida de cada uma e cada um. Percebia-se nos semblantes e nas intervenções

feitas em muitos momentos, durante os processos de estudo e comercialização, que

este foi o ponto chave para as trocas significativas, além de terem sido

determinantes para os encaminhamentos.

É muito interessante o movimento interno e externo, que acontece entre as

pessoas quando se pára para ouvir o “outro”, muito acontece conosco e com cada

um(a), pois as diferenças encontradas nos preenchem com algo que

desconhecemos de nós mesmos, mesmo que muitas vezes isso seja negado:

A diferença nos incomoda, nos descentra, porque afeta nossas certezas, nossa segurança. Nós procuramos resolver o incômodo atribuindo-a ao outro, localizando-a no outro, responsabilizando o outro pela “desordem”, pelo “desequilíbrio” que ela traz à nossa visão de mundo, aos nossos valores, aos nossos conceitos (BANDEIRA, 1995, p. 21).

Assim fica o percebido que sem o “outro” o “eu” pode ficar incompleto, pois

somos como em uma ciranda onde um, por vezes, está no outro e esta constatação

pode fazer a diferença em nossa busca pela humanidade perdida.

Esta relação dialética de busca pela alteridade permeia a ideia da vida como

uma arte, a arte de se viver bem e é esta ideia que ajuda a dar base à ES que, por

sua vez, privilegia fundamentalmente o trabalho coletivo, como uma chance em mil

dos homens se fazerem na luta pela produção e manutenção da vida:

Todo aprendizado resulta de uma abertura para o outro. Existe uma mestiçagem no processo educativo. Só é realmente instruído aquele que consegue adquirir uma outra cultura que não a sua. Como diz Michel Serres: “todo aprendizado exige essa viagem com o outro em direção à alteridade (1993:60)” (GADOTI, 1993, p. 21).

A questão da educação para todas as etapas da vida foi considerada

primordial, tanto para o campo quanto para a cidade. Sabe-se que a realidade do

povo quanto média de escolaridade formal é baixíssima, e quando se considera a

classe, cor/raça, gênero o quadro é ainda pior.

A discussão de muitos MS por uma Escola Pública de qualidade é grande,

uma vez que seu acesso é restrito, inclusive e principalmente quando se fala do

Nível Superior. Quando se fala de educação para todas/os, é importante que seja

pensado em quais princípios se pauta, pois:

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Certamente a primeira exigência é de ser uma educação inclusiva, com orientação, portanto, para o desenvolvimento de processos de inclusão. Esta deverá ser desenvolvida em duas perspectivas: pela inclusão daqueles e daquelas que já estão sendo atendidos e atendidas. Parece uma contradição afirmar a necessidade de incluir aqueles que, de uma certa forma, já foram incluídos. Mas não se caracteriza como contradição quando se avalia que o sistema educacional não leva em conta características e aspectos da vida dos sujeitos que vivem em condições bem diferenciadas, que são, portanto, características próprias de determinados grupos sociais, como os grupos sociais do campo, por exemplo (BOFF, 2004, p.125).

Boff em sua fala destaca a necessidade “da necessidade” de se construir uma

educação de qualidade, inclusiva e apropriada às diversidades das diferenças

culturais e sociais. Na tentativa da leitura e releitura das memórias do Grupo

MUDAR, nossa proposta foi de buscar o que mais significou para a vida delas neste

caminhar.

A dimensão da educação foi realmente um ponto marcante, dadas as

experiências que ambas tiveram em suas trajetórias de vida, ao acesso ou não que

tiveram oportunidade no decorrer da vida. Além disso, a oportunidade que tiveram a

partir da participação no Grupo e na ES:

Já tínhamos conquistado tantos espaços, tantas formas de agregar ideias através dos encontros de formação ou até mesmo nas visitas que fazíamos nas comunidades, que por sua vez já viviam de suas ações coletivas, uma cultura invejável, tínhamos certeza que a idéia da construção desse novo modelo de viver seria possível, principalmente através dos relatos de cada empreendimento (Integrante MN).

A “participação ativa” através dos intercâmbios e nos processos de formação

política colaboraram para fortalecer a idéia da produção coletiva e do fazer diferente

dentro dos processos de produção, comercialização e consumo neste modelo

capitalista.

Outra forma de participação destacada foram os diversos Fóruns e

Conselhos. Estes são espaços onde o povo pode buscar determinado “controle

social”. É bem limitado, sabe-se, considerando-se que poderia vir a ser o povo

exercendo a “democracia”, porém é uma conquista que precisa ser continuadamente

pautada, inclusive como marca de resistência contra mecanismos que tentam

imobilizar a ação popular:

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Por essa razão, é preciso que demos um passo adiante no sentido de deixarmos de falar por eles e passarmos a dialogar com eles, incluindo-os nos processos de elaboração e formulação das propostas e políticas públicas de educação, ou de qualquer proposição de ações educativas e na construção de seus currículos (BOFF, 2004, p. 125).

Assim sendo, se coloca a importância dos processos educativos formais e

não formais. A articulação necessária entre os saberes empíricos e científicos. Esta

discussão abre muito mais incertezas do que certezas em uma estrada que, de mão

dupla, pouco se vê.

É complicado dizer que a ES, neste cenário, seria a salvadora da situação.

Ela, em suas Redes, cresce com o fortalecimento do terceiro setor enquanto uma

economia social fundada no ideário de respeito, na solidariedade, no exercício da

autogestão, na prática da autonomia, na busca pela democracia.

Com afirmação e reafirmação da sua identidade política cultural, que

aparentemente está bem definida, onde se busca reconhecer e valorizar os saberes

locais e regionais, tudo isso com um profundo respeito às diferenças e diversidades.

Em se tratando desta dimensão, é importante salientarmos que esta proposta

exige todo um esforço entre seus participantes e da sociedade como um todo, para

que o respeito com as diferenças seja percebido enquanto um processo pedagógico,

para que de fato um dia aconteça, pois é imprescindível esta condição para que se

concretize o “inédito viável” de uma sociedade mais justa e de possibilidades diante

dos imensos desafios que é viver nestas realidades:

Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade (FREIRE, 1996, p. 134).

Assim, fica a compreensão de que a construção coletiva exige determinada

abertura ao “outro”, o respeito diante dos fenômenos sociais, pois não há a

possibilidade de se ter uma só percepção sobre o vivido. Na verdade, quanto mais

ouvimos e refletimos partindo sim de nossa realidade, mas transcendendo para além

do nosso “eu”, adentrando nos limites invisíveis do mundo do “outro”, mais corremos

o risco de nos aproximarmos da realidade como ela pode vir a ser ao se desvelá-la:

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O cogito de outrem destitui meu próprio cogito de qualquer valor e me faz perder a segurança que eu tinha, na solidão, de ter acesso ao único ser para mim concebível, ao ser tal como ele é visitado e constituído por mim. Mas na percepção de individual nós aprendemos a não realizar nossas visões perspectivas à parte umas das outras; nós sabemos que elas escorregam umas nas outras e são recolhidas na coisa. Da mesma maneira, precisamos aprender a reconhecer a comunicação das consciências em um mesmo mundo. Na realidade, outrem não está cercado em minha perspectiva sobre o mundo porque esta mesma perspectiva não tem limites definidos, porque ela escorrega espontaneamente na perspectiva de outrem e porque elas são ambas recolhidas em um só mundo do qual participamos todos enquanto sujeitos anônimos da percepção (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 473).

Esta situação pode nos remeter a alguns questionamentos. Por exemplo,

como tantas bandeiras de luta se integram às da ES? E como a luta da ES se funde

com muitas outras? Esta realidade de convergência demonstra tão somente que

todos querem algo em comum: uma vida com dignidade.

Na essência das “coisas”, esta é uma dimensão básica pela qual o MS da ES

propõe toda uma mobilização popular que possa denunciar e anunciar ao mesmo

tempo, enfrentar e superar através da busca de estratégias contra as situações de

expropriação dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos.

Acreditamos que uma das estratégias que pode colaborar para com a

desmistificação da realidade como ela se apresenta, seja através de um processo de

educação problematizadora, por exemplo, da Educação Popular, seja no interior das

escolas, seja na roça ou no chão das fábricas. É uma possibilidade que não possui a

chave das respostas mais procuradas, mas pode ser um caminho a ser trilhado em

busca da construção de uma nova forma de ver o mundo e de fazer-se nele:

Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos (FREIRE, 1996, p. 132).

Entendemos, em contrapartida, que este processo não poderia se dar sem

um intenso trabalho de reflexão, de doação e desejo. A conscientização destes

processos necessita de ações que sejam capazes de motivar a necessária

confluência entre a percepção e a problematização da realidade, pois a ideologia

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tem o poder de fazer parecer que “o mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira

agora; o amanhã já está feito. Tudo muito rápido” (FREIRE, op. cit., p. 139).

São muitas as discussões que precisam ser levadas em consideração. Muito

foi feito, porém muitas coisas ainda precisam ser feitas, mas mais do que nunca os

MS estão construindo o entendimento de que este é um processo histórico, no qual

a participação e o protagonismo são os elementos que podem fazer a diferença,

pois:

Todavia, a reinvenção e o avanço da economia solidária não dependem apenas dos próprios desempregados e não prescinde do apoio do Estado e do fundo público, como também de várias agências de fomento. Cumpre afirmar que, para uma ampla faixa da população, construir uma economia solidária depende primordialmente dela mesma, de sua disposição de aprender e experimentar, de sua adesão aos princípios da solidariedade, da igualdade e da democracia e de sua disposição para seguir estes princípios na vida cotidiana (SINGER apud NASCIMENTO, 2004).

Nesta perspectiva, tal construção precisa se dar com base no desejo e

esforço pessoal de cada um. Se considerarmos as realidades e suas implicações

diretas nas pessoas e no coletivo, é preciso que se construa todo um aparato que dê

subsídios concretos às pessoas que tentam fazer parte deste grande e ousado

movimento.

Sabendo que, nesta experiência, o desafio constante de trazer os diversos

segmentos que compõem a ES para este novo caminhar, novo “olhar”, o processo

não está dado, está sendo forjado, na medida do possível, exigindo de cada um o

comprometimento necessário para o enfrentamento das estruturas sociais

tradicionais.

Neste contexto, as Universidades, ao se aproximarem, estão sendo cada vez

mais exigidas a darem sua parcela de responsabilidade no compromisso para com

sua função social, que é a de colaborar para a transformação da realidade posta,

através da formação inicial e continuada de seus acadêmicos:

A permanente interpretação e reinterpretação da sociedade, justamente porque ela não é estática, possibilitando uma reflexão sobre o que está acontecendo no processo social global, é tarefa vital de docentes e alunos. Mesmo partindo de pontos de vista, de visões de mundo distintas (até porque a Universidade deve abarcar esta diversidade), essa constante interpretação e reinterpretação é valiosa para a formação da consciência crítica e para a consolidação

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de uma sociedade democrática que convive respeitosamente, mesmo que firmemente com o dissenso (BIZ, 2004, p. 20).

Aqui fica um apelo pela revisão das grades curriculares de vários cursos,

inclusive cabe aqui destacar que os Currículos das Instituições Públicas precisam

ser todos revistos, problematizados, inclusive com a presença dos MS para que

possa se ter determinada aproximação da vida para uma possível desconstrução, ou

não, dos moldes capitalistas que colaboram para a manutenção das desigualdades

sociais.

Esta afirmação coloca em evidência o quanto as Universidades Públicas

devem ter o compromisso para com a comunidade e a sociedade em geral e, em

relação a isso, esta experiência demonstra que algumas destas instituições

superiores estão se articulando nesta direção, apesar de todos os entraves de uma

instituição que sofre as influências das elites academicistas:

O envolvimento das universidades tem sido importante na construção e no apoio às iniciativas da economia solidária, em vista da sua capacidade de pesquisa e extensão, e, portanto, na elaboração teórica e de atividades práticas executadas por meio de ações desenvolvidas nas Incubadoras Universitárias, com envolvimento de professores, pesquisadores, técnicos e acadêmicos. As incubadoras são espaços de aprendizado e também de observação e reflexão sobre essa nova economia solidária que ressurge (CULTI, 2009, p. 49).

A Universidade envolvida, ou melhor, aberta ao necessário intercâmbio entre

os diversos saberes, como estratégia do processo de formação acadêmica e política

para o empoderamento das comunidades e do fazer acadêmico, pode ser o início de

uma articulação significativa, onde as ideias de uma educação que implica o

comprometimento social e político entre os diversos atores, fundado no diálogo, de

fato se concretize.

A PP, neste sentido, é fundamental para efetivação das propostas vindas da

base, para tanto as lideranças precisam atuar como multiplicadores em suas

comunidades, bem como através das articulações entre as esferas públicas, estas

ações são condição sine qua non para a superação do que está posto.

No que diz respeito à formação e (re)construção dos conhecimentos, temos

na figura deste articulador uma peça fundamental em um processo que é de suma

importância; para tanto é preciso se ter a clareza da relação existente entre

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opressores e oprimidos e do papel fundamental neste recorte educacional que a

”liderança revolucionária” (articulador) possui.

Entende-se que, para toda transformação acontecer, não se pode, a partir da

transmissão das experiências/vivências, transferir conhecimento, por isso

acreditamos que:

A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (...) esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo “blábláblá”, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo (FREIRE, 1987, p. 20-21).

Seria interessante que esta dimensão pudesse permear toda a prática de

formação defendida pela ES, uma vez que a autonomia é uma construção tanto

individual quanto coletiva. O movimento de emersão/imersão de uma situação

cotidiana de exploração pode ser estimulado durante os momentos de discussão

sobre as vivências, em um processo dialógico e dialético, partindo da vida mesma e

do seu modo de produção.

Assim sendo, entendemos que no processo de formação para a autogestão

com princípios permeados pela solidariedade, estes podem ser pontos chave nesta

proposta diferenciada de organização da sociedade. Em cada encontro salienta-se

“a importância do aprender sempre” (ADAMS, 2007):

A economia solidária começa a existir quando grupos organizados se unem em torno de alguma necessidade, problema e desejo comum, em busca de soluções para seus problemas comuns. A união do grupo exige o cultivo e a integração das três dimensões: atividades do corpo (trabalho físico), da razão (trabalho da mente que inclui a reflexão, o pensar sobre o trabalho, sobre a vida) e do coração (atividade espiritual que inclui as emoções, os sentimentos, valores, as crenças, relações de amizade e de bondade, etc.). Se algum destes aspectos for esquecido, a gente fica capenga. Portanto, para sermos homens e mulheres realizados/as é fundamental aprender através da sensibilidade, do pensamento e do espírito. Este cultivo da mística de lutar por uma vida boa acontece pela dedicação individual, mas também pelo esforço coletivo (ADAMS, op. cit., p. 06).

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Este é um processo um tanto complexo uma vez que as relações

estabelecidas têm muito do individualismo, interesses que se contrapõem no coletivo

em que, através desta articulação entre formação técnica e política e o diálogo entre

a base e o poder público, pode-se vislumbrar a possibilidade de chegar à construção

de um interesse comunitário, uma vez que ao cuidar do “outro” se estará cuidando

do “eu”:

O coração da economia do trabalho, da solidariedade e da sustentabilidade da vida é o ser-relação que nós somos, o ser multidimensional, capaz de atos de liberdade, de generosidade, de partilha e de mutualidade. Estas são as relações que viabilizam a passagem do homo consumens ao homo convergens (ARRUDA, 2005, p. 58); da economia popular para a economia solidária; (...) Este desafio se destina não apenas aos trabalhadores da economia popular, mas também a nós educadores (ARRUDA, 2006, p. 6).

A sistematização da caminhada da ES é um ponto importante, que é preciso

ser destacado. Referir-se sobre conceitos, sobretudo a partir de uma linguagem que

precisa ser apreendida, ser apropriada pelos protagonistas desta história, é parte

constituinte deste processo.

Esta idéia precisa ser colocada em discussão e evidência com o intuito de

promover esta construção coletiva sob bases/princípios éticos e solidários de fato.

Diferentemente da globalização, a ECOSOL não possui em seu arcabouço

instrumental equipamentos ideológicos poderosos, como a mídia, a escola, a igreja,

etc. É por este motivo, entre outros, que o processo de instituição desta nova forma

de pensar as relações é lento.

Cada região possui seu ritmo próprio, é natural que nas diversas realidades

este processo aconteça de forma diferenciada. Entre os EES também existem suas

especificidades, como, por exemplo, quanto a sua natureza, uns são formais e

outros informais, e esta por si só já gera grandes diferenças frente ao processo de

produção, comercialização e gestão do EES.

O ritmo de organização de cada um é muito complexo. A não linearidade

configura este emaranhado de situações, relações, experiências e vivências tão

distintas e únicas, não tendo condições de alguma espécie de rotulagem:

Nós somos um grupo formado por mulheres mães, com afazeres domésticos e com muitas cobranças em nosso redor, e manter a idéia de cooperação não é fácil, principalmente pelos companheiros das nossas mulheres, que nem sempre estão dispostos a viver do

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movimento, ou de acordo com ele. A Economia Solidária é bastante presente no nosso grupo e fez muita diferença em minha vida pessoal e profissional (Integrante MN).

É nesta perspectiva que insistimos em dizer que os momentos de trocas são

espaços fundamentalmente políticos e de formação (política/ética e técnica/

profissional), dimensões que dão sentido aos participantes e base ao movimento e a

toda sua lógica, é a partir destas experiências que se legitimam as práticas e se

coloca em evidência a proposta de sociedade que se acredita e ora se propõe.

É importante ter atenção à relação simbólica e cultural que está representada

através do processo de produção, pois envolve toda uma interação do sujeito com

seu meio e suas vivências (valores). Levar em conta que todas as relações

legitimadas na sociedade onde o “mercado de trabalho” possui bases heterônomas

e que, portanto, precisam ser repensadas neste processo, é importante.

Uma dimensão que precisa ser reavivada/reanimada nesta caminhada é o

comprometimento político do movimento, ou seja, retomar o trabalho de luta dos MS

é fundamental, refazer as forças para os enfrentamentos que estão sendo exigidos

atualmente. As pessoas que fazem estes precisam se sentir animadas/confiantes

para este renovar.

São as interações e trocas que envolvem os participantes durante os

processos constitutivos dos encontros que, de fato, funcionam como espaço

potencial de formação. O EMESOL é um destes espaços privilegiados de discussão,

debates, trocas de idéias, que possibilitam a articulação e a potencialização da

construção de um movimento que possui interesse por uma nova proposta de

sociedade, com políticas de e para inclusão das minorias:

Minha vida pessoal ganhou mais vida e a minha vida profissional se afirmou melhor, me fazendo sentir e deixando que as pessoas ao meu redor percebessem que nem sempre vale a pena ir em busca de recursos materiais, se o seu sonho na verdade é viver bem, bem de forma coletiva, com cooperação. Sendo que a união entre as pessoas e o amor regido pelas forças dessa união é que faz a diferença em nossas vidas (Integrante MN).

A mudança na vida destas mulheres é percebida por elas frente a variados

setores de suas vidas. Todas deram testemunhos de mudança, como o feito pela

“MN”, que destacou ganhos em sua vida profissional e pessoal. Algumas

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destacaram a perda do medo de colocar suas opiniões frente a determinados

assuntos em determinados espaços:

Antes eu tinha medo de tudo. Nas reuniões na escola dos meus filhos eu nunca questionava nada. Às vezes não concordava com algumas atitudes das professoras, ou atividades que mandavam de tarefa, mas não dizia nada, porque achava que eu era muito burra e estava errada, afinal não tenho nem estudo. Depois de começar a participar com o Grupo e ir nos cursos e nas visitas a outros EES fui aprendendo a perder o medo, porque tinha muitas atividades que a gente precisava falar das nossas experiências em público, tinha muita vergonha, mas foi bom porque daí que percebi que não era tão burra, e que precisava por isso prá fora. Depois disso, já estive à frente de muitas comissões da comunidade escolar que reivindicava direitos, como mais salas de aula, a inclusão da EJA na escola, a retirada de professoras com condutas violentas contra as crianças... Na igreja também comecei a ser mais atuante (Integrante EBS).

Como podemos ver, é fato que estes exercícios estimulam o coletivo a se

organizar em prol da conquista de espaços concretos de mediação com o poder

público e com espaços comunitários, com vistas à viabilização de ações que

venham ao encontro das demandas locais, com o cuidado da dimensão de

propostas que sejam endógenas neste processo.

Estas dimensões são fundamentais, uma vez que, apesar de acreditamos ser

um dever do Estado o compromisso com o social, o econômico e o político, na oferta

dos serviços elementares ao povo, é muito importante haver atitudes engajadas da

sociedade civil organizada em busca da efetivação de seus direitos.

Nesta perspectiva, vale lembrar que ter leis não é garantia de direitos, o

descomprometimento das instituições estatais é algo historicamente vivido pelo

povo:

É por essas razões que a importância da lei não é identificada e reconhecida como um instrumento linear ou mecânico de realização de direitos sociais. Ela acompanha o desenvolvimento contextualizado das relações sociais em todos os países. A sua importância nasce do caráter contraditório que a acompanha: nela sempre reside uma dimensão de luta. Luta por inscrições mais democráticas, luta por efetivações mais realistas, luta contra situações mutiladoras dos seres humanos, luta por sonhos de justiça (CURY, 2005, p. 3).

É fato que nesta experiência o trabalho articulado se fortaleceu pela

aproximação da Universidade (UNEMAT) com os MS e a comunidade, e isso, de

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alguma forma, coloca em evidência a importância das parcerias entre os diversos

atores sociais em torno da luta pelo direito à vida com dignidade.

As Assessorias fazem parte de um dos segmentos que compõem a ES.

Vimos sua importância para o fortalecimento dos EES e para a construção

qualificada de PP para a ES, tanto da cidade como do campo, mas também vimos

que a relação entre algumas destas Assessorias (Universidades, ONGs) e os

Grupos de EES é permeada por contradições entre o discurso e as práticas.

Foi percebido, pelos depoimentos do Grupo MUDAR, que há uma certa

tensão em relação estes dois segmentos. Uma hipótese pode ser o fato da

inexistência de experiência destas Instituições frente ao trabalho que é exigido com

um público tão diferenciado como são as pessoas que compõem um EES.

O fato é que, levando-se em consideração as falas aqui registradas e

algumas outras situações, como por exemplo, a desarticulação do CFES com o

FEES, e outros grupos organizados em torno do MS da ES, as Assessorias estão

precisando de muita “formação”, no sentido da que Freire defende, para poderem de

fato contribuir com estes processos.

Em relação à ausência do Estado em muitos destes encontros, para não dizer

na maioria, denuncia mais uma vez o descaso do aparelho estatal para com a

organização das camadas populares, com a trabalhadora e o trabalhador. Percebe-

se neste lutar a busca constante da reinvenção desta realidade, onde sonhos

possam se tornar realidades.

4.2 O SEMINÁRIO ESTADUAL DE COMERCIALIZAÇÃO SOLIDÁRIA:

DISCUTINDO A COMERCIALIZAÇÃO COM OS EES DO CAMPO E DA CIDADE

Enquanto estratégia de fortalecimento das ações empreendidas pelas atrizes

e atores da ES em Mato Grosso, como em todo o Brasil, foi proposto pelo Programa

Nacional de Comercialização Solidária (PNCS), organização articulada pelo Instituto

Marista de Solidariedade (IMS), em conjunto com o FBES e a Secretaria Nacional de

Economia Solidária (SENAES), que se fizesse em todos os Estados uma discussão

ampla e sistematizada a respeito da Comercialização, dimensão que se configura

enquanto um dos maiores gargalos encontrados nesta caminhada do processo

produtivo enfrentado pelos EES, onde as dificuldades são das mais distintas

proporções e dimensões.

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Este encontro aconteceu em Cuiabá, na Escola Estadual de 1º e 2º Graus

Cesário Neto, em 27 e 28 de março de 2010. Estavam presentes representantes do

estado, da Região Sul: Dom Aquino, Rondonópolis, São José do Povo e Barra do

Garças; Centro-Oeste: Tangará da Serra; Baixada Cuiabana: Cuiabá e Várzea

Grande; e do Médio Norte: Vera. Entre os participantes, todos os segmentos que

constituem o movimento estavam contemplados, e assim as discussões entre EES,

Assessorias e Gestores Públicos foram contempladas.

Nesta oportunidade, duas integrantes do Grupo MUDAR participaram da

atividade. Em nossa trajetória de acompanhamento das discussões do Grupo foi

possível compreender que o mesmo assumiu a dimensão da participação em

determinados espaços mais como uma forma de estar conectado ao coletivo da ES

no Estado.

Em virtude de sua situação de limitação na participação ativa em muitos

momentos, tanto que por vezes foram questionadas sobre sua legitimidade frente às

ausências em determinados espaços, como por exemplo, no Centro Público de

Comercialização, elas decidiram se fazer presentes, mediante a representatividade,

onde quem pudesse estar participando iria e, depois, tinham o compromisso de

devolver ao Grupo as discussões feitas.

Esta, sobre a Comercialização Solidária, foi uma das atividades

desenvolvidas pela ES em que elas, além de considerarem relevante, dado ao

contexto e situação do Grupo frente a esta temática, tiveram na ocasião a

disponibilidade de duas integrantes em se fazerem presentes durante o evento.

A percepção foi de que uma das intenções desta atividade foi fomentar uma

discussão que partisse da base, primeiramente nos estados, para que em um

momento posterior se estendesse em âmbito regional, se desdobrando em um

encontro maior, nacional, com o intuito de que se tivesse uma noção de quais são os

desafios e possibilidades de cada estado e, consequentemente, das regiões, sobre a

questão da Comercialização.

Discutir e refletir demandas e possibilidades diante do que está posto, a partir

do coletivo, para que se busque nas experiências de cada realidade estratégias e

assim encontrar propostas viáveis de enfrentamento e superação, pelo percebido, foi

um dos maiores objetivos desta ação.

Com isso esperava-se construir uma integração da Comercialização Solidária

no estado de Mato Grosso, além da possibilidade de poder contribuir na articulação

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dos atores envolvidos direta e indiretamente e, ainda, favorecer horizontes comuns

de integração da comercialização já existente, para que, enquanto desdobramento,

se afirme a identidade da Comercialização Solidária no Estado de Mato Grosso.

É importante que se discuta a partir da realidade de cada EES, onde a

possibilidade do sentimento de pertença pudesse agir, enquanto fomento, para o

engajamento de cada um com o processo de construção de ações que venham a

colaborar com a identidade que os mesmos almejam consolidar nesta nova forma de

viver a economia.

Uma economia onde a visibilidade buscada por este coletivo poderá se

solidificar através de políticas públicas efetivas, que venham ao encontro dos

interesses dos EES.

O Grupo MUDAR percebe estes momentos de discussão como fundamentais

para um processo de construção onde as pessoas envolvidas sejam protagonistas

desta história e realmente participem desta articulação e proposição. O que torna

este mais que um espaço de discussão e organização, mas, fundamentalmente, de

formação política e do exercício da cidadania.

Toda essa dinâmica que envolve estes atores da ES no estado são

momentos fundamentais de formação e organização, onde nem sempre um leva ao

outro, mesmo porque as pessoas não são controláveis, o movimento não linear dos

processos constitutivos do homem em sociedade impede tal ordenamento.

Não dá para pensar neste processo de forma engessada, onde isso é isso e

aquilo é aquilo. Neste momento, o Grupo MUDAR traz para o centro das discussões

a questão da dificuldade que enfrentam em relação a sua situação de não serem

parecidos com a maioria dos grupos, que estão conseguindo minimamente dar conta

de sua produção e organização de forma autogestionária.

Percebe-se, então, este momento como um processo de construção e

desconstrução, até mesmo de transição para muitos Grupos onde as subjetividades

individuais se comunicam com a coletiva e, na arena deste campo intersubjetivo,

descobre-se que a mesma é permeada por muitos conflitos, contradições e desejos

desencontrados.

Contudo, acredita-se que estas são dimensões que mais podem colaborar

para com toda esta proposta de se fazer parte do processo, do que ser uma barreira.

A legitimidade está em elas e eles, por não serem tão somente expectadores, mas

protagonistas, escritores de sua própria história de vida.

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Exatamente por entender este um processo de busca e construção da

autonomia destas pessoas, que todo o trabalho foi pensado com o cuidado de

colocar nos participantes a importância desta etapa de discussão, onde as trocas de

experiências são fundamentais.

A partir do entendimento de que não é possível haver dissociação entre o

pensar e o agir, ou seja, o dualismo entre a teoria e a prática, onde a primeira são os

conceitos elaborados e reelaborados histórica e culturalmente pela Humanidade, e a

segunda são as vivências/experiências de determinado grupo social, é que se afirma

a importância e necessidade de se pautar esta proposta a partir do diálogo

fenomenológico, assumindo estas duas dimensões de forma irremediavelmente

intrínseca.

De forma prática o coletivo pode discutir temas que carecem destes espaços

de trocas, ora oportunizados, como por exemplo: sobre quais são os pontos fixos de

comercialização e as marcas que porventura existam no estado; a apresentação das

dificuldades na comercialização, sendo estabelecido um debate sobre Comércio

Justo e Solidário e a socialização das experiências dos EESS que trabalham com

produtos orgânicos.

Estas foram, de princípio, as questões que deram os rumos para uma reflexão

do todo possível, uma vez que o “ver” é um grande desafio. O movimento que é

preciso ser feito para “ver a comercialização” precisa transcender as evidências.

Este foi e é um dos maiores desafios do Grupo MUDAR e das pessoas e coletivos

da EES.

4.2.1 Comercialização como Estratégia de Construção Coletiva

A intenção foi construir conjuntamente como a comercialização pode ser

organizada, uma vez que foram discutidos alguns dos seus problemas crônicos;

entre eles estão as descontinuidades de ações positivas de apoio e fomento deste

setor produtivo. Foi neste sentido que este Seminário foi pensado, para provocar as

questões que fragilizam os EES no que se refere a esta temática, o que faz deste

espaço um momento importante aos processos instituintes da ES no estado e no

Brasil.

Afinal, a Comercialização de que se fala dentro do Movimento tem uma

dinâmica que vem de encontro à ordem estabelecida nos processos capitalistas.

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Dizer desta nova forma de se organizar perpassa por um processo profundo de

educação na praxe do dia-a-dia, é uma ideologia que faz parte significativa de noção

de mundo e de verdade. Rompê-la exigirá um processo dialógico e compreensivo,

“num ato total de amor, confiança e fé na humanidade” (FREIRE, 1996).

Acredita-se que abordando as experiências e vivências estabelecidas nas

Feiras, Encontros, Seminários, Conselhos e Fóruns, a partir das discussões e

reflexões tecidas no e pelo coletivo, se possa chegar ao final com um desenho, uma

proposta de estratégia que parta da base e que possa ser socializada entre os

estados, em uma tentativa de construção conjunta, que se inicia nos estados,

passando para as regiões e, finalmente, contribuindo para com estratégias de

âmbito nacional.

Um exemplo de construção coletiva e em resposta, enquanto instrumento

instituído na e pela luta, foi criado o Sistema Nacional de Econômica Solidária

(SIES), que está sendo debatido no governo, a partir dos EES, no âmbito do FBES,

para que os mesmos sejam protagonistas de fato, objetivando, entre outras coisas,

dar apoio à comercialização. Essa é uma ação entre tantas, que vem sendo

construída nestes processos de consolidação e legitimação da ES, mas muito mais

está sendo necessário.

Isto é posto devido ao fato de que muitas ações desta amplitude, por vezes,

não são percebidas no interior de muitos dos EES. Muitos Grupos que não

participam destas discussões e mesmo os que, como o Grupo MUDAR, participam

ao menos representantivamente, não sentem em suas organizações mudanças

expressivas em relação a tais conquistas.

Neste espaço eminentemente formativo é necessário que as discussões

sobre cadeia produtiva, produção, comercialização solidária, dificuldade de logística,

vigilância sanitária, consumo solidário, finanças solidárias, formação, dentre outros

aspectos, sejam amplamente discutidos.

Mas não é só discutir, é preciso que este coletivo se questione sobre o que

será feito daqui por diante. Este é o âmbito das intencionalidades, onde as

diversidades de “olhares”, perspectivas e horizontes se colocam, buscando a

legitimidade necessária para a construção do sentimento de pertencimento.

Este pertencimento se observa no momento em que eu me vejo também

contemplado por tantas conquistas. Esta é uma dimensão muito delicada, pois a

dinâmica do Mercado impede de várias formas a apropriação de muitas destas

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conquistas pelos seus fazedores, muitas nem chegam ao conhecimento da base.

Mais uma vez surge a palavra “conhecimento”, a produção de conhecimento que se

espera de um processo de formação como este, por exemplo.

É nesta perspectiva que é importante mais que o exercício de levantar os

problemas, que já não é uma tarefa simples, nesta dinâmica complexa e

contraditória das relações, porém é preciso a objetivação das consciências do que

coletivamente comungam e das intencionalidades subjetivas que se dão em meio à

concretude das experiências vividas.

O mundo da vida é onde me percebo e sou percebido, neste emaranhado é

preciso dar vida, através da intersubjetividade, aos anseios e necessidades, que

nesta oportunidade se materializam ao identificar as possíveis causas dos

problemas crônicos da comercialização nesta experiência.

Identificar o problema, ou problemas, é algo em que se precisa de muito

cuidado nas generalizações ou naturalizações, ir além das aparências, e o fator

tempo também precisa ser considerado, para que se possa tentar fazer a

identificação da causa deles. Afinal, como podem ser resolvidos, desconhecendo

sua origem?

É preciso identificá-los como problemas, buscar compreender o conjunto de

situações que os geram e, depois, buscar formular estratégias de soluções. Esta não

é uma tarefa que podemos classificar como simples, mesmo por que há infinitas

formas de se “ver” o mesmo problema.

A tentativa, considerando as possibilidades e os limites deste exercício diante

de algo tão complexo, foi se arriscar, após sistemática discussão entre as e os

participantes, a partir da orientação em torno de tentar se evidenciar os principais

problemas, em busca das causas e possíveis soluções.

Após discussão expressiva entre os participantes foram evidenciados

inicialmente os seguintes desafios:

Escala de produção; produção sustentável; produção orgânica; logística; fiscalização; cadeias produtivas; comercialização direta; organização da comercialização; preço justo; comércio justo e solidário; consumo solidário; relações de confiança; qualificação dos gestores; pouca escolaridade dos EES; formação política e contínua dos EES; políticas públicas incipientes; falta de integração das políticas públicas já existentes; inexistência de tecnologias sociais e/ou poucas disponíveis aos EES; organização do FEES/MT; compra conjunta ainda incipiente; desvalorização dos saberes populares, da tradição local; descaso do poder público no apoio direto aos EESS;

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incipiente envolvimento dos centros universitários e técnicos no apoio aos EESS; marco legal e falta do Conselho Estadual de ECOSOL (GT Seminário de Comercialização Solidária).

Um segundo momento foi destacar da lista de desafios três prioridades, a

serem aprofundadas através de um exercício em busca das prováveis causas, com

vistas às possíveis soluções, ou seja, de vislumbrar “inéditos viáveis” diante das

“situações-limites” que estarão postas.

O Grupo MUDAR neste momento fez parte das discussões de forma ativa, e

se viu contemplado, ao final da socialização, dos principais problemas da

comercialização no estado, onde as principais prioridades selecionadas tinham tudo

a ver com a realidade de base do seu coletivo: espaço da comercialização; relações

de confiança; intercâmbio de tecnologias.

Dentro destas questões, com certeza, ao serem debatidas, uma

necessariamente fará conexão com a outra, e ambas, pela sua complementaridade,

podem dizer onde pode estar a maior fragilidade da experiência da ES para os

diversos segmentos que a compõem.

4.2.2 Espaços da Comercialização

É importante que se entenda que, até chegar à comercialização, um longo

processo anterior existiu, assim, pensar em comercialização pressupõe considerar a

forma como se organizou a produção, a logística e as condições reais de vida de

cada EES em suas especificidades.

É da “porteira prá dentro” que a vida é vivida por estes EES. Quando o Grupo

MUDAR alertou que as políticas públicas conquistadas pelo coletivo da ES muitas

vezes são desconhecidas pelo público que deveria ser atendido por elas, é

justamente esta a questão.

Muitos dos desafios aqui destacados persistem por “n” motivos, entre eles

está o poder que este coletivo tem, ou não, diante de processos sociais mais

amplos, que sobrevivem em uma “queda de braços” com o sistema vigente. Com

isso, mais uma vez, nos remete à causa dos porquês dos problemas que, por vezes,

se apresentam enquanto as chamadas “situações-limites”, pois, conforme FREIRE:

Os temas se encontram encobertos pelas “situações-limite” que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas,

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esmagadoras, em face as quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens [e as mulheres] não chegam a transcender as “situações-limites” e a descobrir ou a divisar, mais além delas em relação com elas, o “inédito viável” (FREIRE, 1975, p. 110).

Nesta perspectiva, se os EES, as Assessorias e os Gestores Públicos, aqui

representados, afirmam que a “comercialização” é um problema, um dos gargalos do

processo produtivo em sua fase final, e a idéia é buscar, para além dos problemas

evidentes, a sua origem, é fundamental que se lance esse olhar fenomenológico

para todo o processo produtivo, chegando à realidade de vida dos envolvidos nos

diversos Grupos, os vendo não só enquanto grupo, mas enquanto as subjetividades

ali reunidas, considerando todos os condicionantes culturais, sociais, econômicos e

políticos.

Neste momento foi sendo percebido que o processo de construção coletivo

reúne diversas possibilidades, mesmo pelo processo constitutivo das consciências,

consciências em vários níveis de entendimento da realidade que, articuladas pelas

experiências subjetivas de cada pessoa, possibilitam uma infinidade de alternativas

de leituras e superação diante das dificuldades encontradas em determinado tempo

e espaço, e que se dão de forma descontínua por natureza:

A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele me adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna, portanto, históricos (FREIRE, 2000, p. 63).

Em alguns processos fomentados pela ES foi percebido que a dimensão

política formativa, que privilegia a autocrítica e as possibilidades coletivas de

reinvenção de conceitos e de paradigmas prontos e acabados, se faz presente pela

constante provocação reflexiva sobre as realidades de vida de cada pessoa que

esteja envolvida no processo.

Esta foi uma grande oportunidade para as integrantes do Grupo MUDAR

trazerem suas percepções que, articuladas ao rico processo de intercâmbio que as

mesmas tiveram a oportunidade de realizar durante o percurso dentro do MS da ES,

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em várias comunidades rurais e em outros centros urbanos, possibilitaram a

intervenção das integrantes com propriedade de causa frente a muitas dimensões

deste processo, inclusive neste momento em que a comercialização solidária na

experiência do Mato Grosso estava em pauta.

Nesta dinâmica de dar a “palavra” aos protagonistas da sua história, de sua

vida, é que as possibilidades de se encontrar possíveis soluções para as situações

concretas de vida surgem, enquanto “inéditos viáveis”.

O grande coletivo reunido chegou a um denominador comum quanto ao fato

de que, se restringirem as discussões em torno do problema evidenciado em si, não

seria possível avançar. É o que está acontecendo: a ES, em algumas experiências,

está “patinando sobre o molhado”, ou seja, não consegue vislumbrar ações efetivas

de enfrentamento e possíveis superações do problema da comercialização, que está

posto enquanto desafio nacional.

Sobre o problema em si muitas são as colocações e sugestões:

1) Criação de um empreendimento para integração da comercialização da AF e dos

EES da cidade aqui na capital - proposta da REMSOL para potencializar a

comercialização, de forma ativa e efetiva. Nesta proposta, a intenção é

estabelecer o diálogo entre os Produtores e Consumidores (Prossumidores), com

o intuito de fortalecer o processo produtivo em cada etapa, de forma dialógica e

participativa entre todos os atores envolvidos no processo de produção,

comercialização e consumo solidários.

2) Central de comercialização de Cuiabá e Rondonópolis - o ponto é bom, porém

falta reforma da estrutura e apresentação no local. Precisa de grupos que

gerenciem a central. Verificar perfil das pessoas para essa atividade específica.

Embora seja uma sugestão mais viável, uma vez que fica difícil de produzir e

comercializar. Neste sentido é preciso organizar e integrar ações que confirmem

e se integrem com os princípios da ES.

3) Feira de comercialização - precisa do envolvimento das pessoas com interesse

de desenvolver esta atividade; mais fomento: editais menos burocráticos.

4) Alimentação escolar - procurar entidades que entendam da logística para a

alimentação escolar, uma vez que a lei dos 30% não é garantia de direito

efetivado. Foi uma conquista do movimento e sua apropriação é outra conquista.

É preciso todo um processo de formação, tanto para os EES do campo quanto

para as Escolas do Campo, para a efetiva execução desta Lei.

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5) Redes de supermercados - existem espaços nos mercados, o que falta é buscar

e mostrar os produtos dos artesanatos nesses locais. Com o cuidado de se

pensar até em que medida os EES estão organizados para estabelecer esta

articulação com um mercado que é capitalista ao extremo e que ainda não

reconhece essa nova forma de conduzir o processo produtivo e todos os

princípios de comércio justo e solidário.

A idéia foi estimular o coletivo a pensar porquê a comercialização é um

problema e até que ponto está se fazendo algo para solucionar esse problema,

partindo do real com vistas à compreensão do processo como um todo. Nesta

perspectiva, alguns questionamentos formaram um fio condutor para a busca das

causas dos problemas:

O Centro Público de Comercialização de Cuiabá tem um regimento interno, todos

o conhecem?

Todos os EES do estado podem participar desse Centro de comercialização?

Existem controles, nesses espaços de comercialização, de entrada e saída dos

produtos, se é coletivo ou individual do EES?

Há materiais de divulgação da comercialização, tais como folder, panfletos?

É realizada a venda dos produtos da AF para a Merenda Escolar? Como é feita

essa distribuição dos produtos? Houve formação para os envolvidos, para a

compreensão deste instrumento/política pública?

Há outros municípios que possuem Central de comercialização como em

Cuiabá?

O coletivo já se reuniu para trabalhar o espaço que comercializam, ainda que

seja para ir às Feiras? As feiras são vistas como espaços de trocas?

Há, nos produtos, identificação dos mesmos como EES (Identidade Cultural de

quem faz e do processo produtivo)?

Enfim, todos estes questionamentos foram, na medida do possível,

respondidos, foram momentos importantíssimos para que os próprios EES se vissem

enquanto organizadores de sua dinâmica operacional, podendo diante das questões

levantadas pensarem e se perceberem, verificando os limites e as possibilidades, as

fraquezas e as fortalezas de cada dimensão ali discutida.

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Tais questionamentos foram considerados enquanto pontos suleadores ao

trabalho que precisa ser empreendido. Neste momento o coletivo se deu conta de

que muito ainda é preciso ser feito, principalmente em relação à cultura

individualista, tecnicista e competitivista que está presente em cada uma e cada um,

como uma droga que é injetada em nossas veias pelo Capitalismo desenfreado.

4.2.3 Relações de Confiança

Como todo processo coletivo de reflexão e discussão, o movimento de

construção de conhecimento, de trocas de experiência é fortalecido a partir das

contribuições significativas de cada participante. Mais uma vez, então, foram

colocados alguns exemplos sobre as situações concretas de relação com “o outro”

estabelecidas pelos participantes.

Confiança construída passo a passo, que foi decisiva para que suscitasse e

fomentasse as trocas entre os EES, Assessorias e Gestores ali envolvidos. Uma

dimensão que não existe sem outras: sem a liberdade, autonomia, esperança e

amor pelo próximo.

Isso demonstra o quanto pode ser viável essa nova forma de se organizar o

processo produtivo conforme os princípios da ES. Onde a lógica é a da participação

e espaço para o maior número de pessoas, é o não limitar, mas o possibilitar. É

preciso o cuidado de perceber este como um movimento inacabado, inconcluso e

em constante transformação:

A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão (FREIRE, 1996, p. 110).

É pensando nesta possibilidade, mesmo diante dos desafios, que a ES em

sua atuação busca privilegiar a formação, o processo educativo por excelência, que

perpassa a noção de ensino escolar e entra na vida da comunidade, na vida da

família, problematizando desde a concepção de mundo que as pessoas possuem, a

partir de sua individualidade, em busca de uma comunhão necessária ao processo

coletivo.

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Partindo das experiências do MUDAR, há grande esperança de que um dia

estes laços de confiança realmente possam ser fortes o suficiente para dar conta de

uma proposta tão ousada quanto esta, de viver de forma diferenciada da que está

posta.

A vivência deste Grupo traz para a roda que a liberdade, que é uma das

condições para que haja esta empatia do confiar, só pode se dar se a autonomia

também se fizer presente na vida destas pessoas, ou seja, são muitos elementos

que precisam ser amplamente vivenciados em espaços que não foram preparados

para tal exercício.

Parece que é como se tivéssemos que forjar estes espaços para que, então,

pudéssemos atuar sobre eles de forma diferenciada. O agir diferenciado sobre o que

está posto precisa de um esforço sobre-humano para dar conta de se colocar. Assim

sendo, a confiança é uma destas dimensões que só podem atuar de forma integrada

com outras tão importantes quanto.

Com tudo isso pensado, foi possível, após a apresentação de algumas

situações, que foram consideradas ainda frágeis na experiência de comercialização

e relações de confiança deste coletivo, perceber também o desejo de construírem

juntos estratégias de superação e de melhoria da qualidade de vida de todas e

todos.

Este é um exemplo das contradições, que em meio aos conflitos/dificuldades,

nasce ou existe (resiste) um desejo que move as pessoas a continuarem nesta

construção, este é o espaço da possibilidade que alimenta a esperança na confiança

mútua.

Após todas as colocações realizadas, que foram pertinentes e que

evidenciaram que algumas estratégias pela busca da confiança mútua, bem como

para a organização da produção e comercialização, está minimamente sendo

buscada entre alguns EES, houve um momento ímpar entre os participantes.

Momento este, onde todas e todos ali presentes perceberam que a limitação

da organização, que é um dos fatores que, com certeza, é o desafio nesta

experiência de Cuiabá e de alguns municípios do Mato Grosso, dentro dos

processos instituíntes da ES, está estreitamente ligada à incapacidade de perceber

ou “ver” o outro como aliado. E esta limitação está na própria pessoa e desta que

perpassa para o coletivo.

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O distanciamento estimulado pelas artimanhas do capital é, pelo percebido,

um dos aspectos mais relevantes, que desafia todas e todos que lutam por uma

nova forma de se estabelecer relação, seja no trabalho, seja na família, seja nos

vários espaços da sociedade.

Sabe-se que este é um grande desafio, mas que se movimenta para uma

possível construção significativa de enfrentamento, pois todos estes processos

coletivos de construção são espaços fundamentalmente provocativos e de tomada

de consciência, onde se é possível pensar/repensar, perceber-se e perceber o

“outro” como sujeito de interação fundamental para nossa vida.

Cada consciência é nascida no mundo e com o mundo e cada percepção é

uma possibilidade de um novo nascimento de consciência, aqui reside a experiência,

por isso as trocas de experiências ajudam a desmistificar preconceitos, abrindo para

novas perspectivas. Mas há que se ponderar sobre esta construção, que não tem

forma, perceber nestes momentos provocativos um estopim para a reflexão genuína,

pois conforme FREIRE:

O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos explorados é o saber fundado na ética de que nada legitima a exploração dos homens e das mulheres pelos homens mesmos ou pelas mulheres. Mas, este saber não basta. Em primeiro lugar, é preciso que ele seja permanentemente tocado e empurrado por uma calorosa paixão que o faz quase um saber arrebatado. É preciso também que a ele se somem saberes outros da realidade concreta, da força da ideologia; saberes técnicos, em diferentes áreas, como a da comunicação. Como desocultar verdades escondidas, como desmistificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos (?) (FREIRE, 1996, p. 138-139).

A inserção lúcida se dá em meio aos processos reflexivos autênticos que esta

prática pode estimular; é pertinente aqui ressaltar que a necessidade de se ter

qualidade de vida é o que mais mantém essa força, esse desejo de continuar

persistindo na construção de uma outra forma de se estabelecer relação, seja dentro

do mercado, seja na família, na comunidade ou na natureza.

Entre os trabalhos em grupo, entre os momentos livres e de confraternizações

intergrupos e entre as pessoas presentes, foi isso o que mais fluiu dentro deste

espaço de formação, em cada contribuição, desabafo, denúncia e esperança de um

viver melhor, mesmo porque “O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta

para fazê-lo” (FREIRE, 2000, p. 27).

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4.2.4 Intercâmbios de Tecnologia

Muitas são as dimensões de fragilidade dentro deste processo instituinte, que

verificamos à luz do “olhar” do Grupo MUDAR nesta oportunidade, onde são vários

os desafios, materiais e imateriais, mas em contrapartida há algumas possibilidades

também.

Dentre as dimensões desafiadoras neste processo, que foram destacadas por

este grupo de pessoas, a última a ser pensada neste momento é a chamada

Tecnologias Sociais. Que também são instrumentos, possibilidades, que podem

contribuir significativamente para a operacionalização de muitos destes processos

produtivos, principalmente na dimensão técnica de produção coletiva.

A dinâmica da sociedade capitalista, com todas as suas complexas nuances e

com a incidência sobre o povo das instituições, disseminando uma ideologia que

valoriza e massifica o individualismo e o competitivismo, impede/dificulta que as

pessoas consigam naturalmente se relacionarem cooperativamente pelo bem

comum.

Este modo de se estabelecer relação, então, precisa ser ensinado,

estimulado, aprendido na e pela práxis; e as Tecnologias Sociais, que têm uma

ramificação conhecida como Tecnologias da Informação e Comunicação Social

(TICs), podem ser um dos instrumentos para dar suporte a esta construção; outro

meio é a educação formal, que gera outras discussões dentro do movimento, que

não serão aqui aprofundadas, podendo e devendo ser retomada em outro momento.

As discussões levantaram algumas questões que, pelo percebido, acontecem

na concretude do fazer o cotidiano de cada grupo que busca viver a ES, com mais

ou menos complexidade, em um processo que envolve tentativas de erro e acerto e

que, por vezes, se configuram enquanto condicionantes que impossibilitam o

fortalecimento do processo social, produtivo e econômico no qual os mesmos estão

inseridos.

Sobre este aspecto, o Grupo MUDAR trouxe sua experiência frente às

imensas dificuldades que possuem na produção do papel reciclado, por exemplo.

Elas fazem a produção no fundo da casa da coordenadora, em uma área

relativamente espaçosa. Os únicos “equipamentos” que possuem são: um

liquidificador industrial que foi emprestado a elas, cinco fôrmas de madeira para o

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papel, uma bacia de alumínio, que era de uso doméstico, os tanques de lavar roupa

da casa e uma “mesinha”, doação de uma escola.

Muitos equipamentos ainda são necessários, como: um picotador de papel,

uma prensa, uma guilhotina manual, bacias apropriadas, entre outros mais

sofisticados, como uma estufa para dias frios e uma sala adequada ao

armazenamento dos papéis. A falta de parceria para o apoio à produção adequada é

um dos fatores que inviabilizam a produção artesanal do Grupo e, com isso, a

sustentabilidade econômica, que seria o resultado da comercialização dos produtos.

A Tecnologia Social e as TICs desenvolvidas pelas Universidades e outros,

de uma forma geral, poderiam estar mais presentes na busca de alternativas mais

econômicas de equipamentos e gerenciamento dos EES. Dentro destes aspectos

mais práticos/técnicos também há outros mais de divulgação e organização desta

produção e, frente aos processos autogestionários, que são vistos pelos Grupos

como fundamentais também.

Nos desdobramentos destas discussões foram verificados, entre outros

casos, os desafios de não se saber, em nível de estado, o que se vende, onde,

quando e como, apesar do mapeamento realizado pela SENAES. Para tanto,

acredita-se que seria interessante ter um cadastro mais simplificado dos EES, criado

pelo próprio coletivo, inclusive utilizando-se dos resultados do mapeamento, porém

indo além.

Desta forma, este seria um exercício de apropriação da ferramenta do SIES e

também poderia ser um processo pedagógico que colaboraria para saber onde

achar os EES mais próximos e os que estão espalhados pelo estado e, assim, quem

sabe, poder colaborar com o marketing, a divulgação e a articulação de parcerias

com hotéis e agências de turismo, por exemplo.

Para tanto haveria também a necessidade da capacitação, para acessar os

espaços da internet, que é a única forma de se acessar as informações do SIES e

também onde muitas são as possibilidades de acompanhar o lançamento de editais,

para fins de financiamento do processo produtivo e sócio-cultural; estas são algumas

possibilidades que podem funcionar como fomento dessa nova forma de

organização da comercialização proposta pelos princípios da ES.

Em contrapartida, é importante um processo de sensibilização do consumidor

sobre o produto, problematizando sua origem: quem fez, como foi feita, a sua

história, sua identidade cultural, como forma de poder valorizar o trabalho do

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empreendedor solidário. Para, além disso, sensibilizar os gestores municipais sobre

a importância da ES enquanto política pública de acesso aos direitos básicos

defendidos pela Constituição Federal.

A parceria estabelecida entre este MS e o poder público através de políticas

públicas, que apõem ações com perspectivas para o processo produtivo de forma

coletiva e autogestionária, poderia fortalecer, também, a forma de produção

artesanal e o Turismo Rural, por exemplo, que pode e inclusive já vem sendo feito

nas comunidades rurais, através de grupos informais, das Cooperativas e/ou

Associações.

A incipiente relação que hoje se percebe na experiência dos EES de Cuiabá e

do Mato Grosso, frente ao diálogo com o poder público, salvo alguns municípios em

que seus gestores abraçaram esta causa, está estampada, de uma forma ou de

outra, na fragilidade política do FEES/MT e, mais duramente, na realidade

sócioeconômica dos grupos que são envolvidos.

Lembrando que estes gestores mudam constantemente, de acordo com as

épocas eleitorais, é preciso que haja uma profunda reforma política, não só a nível

de Ministérios, mas fundamentalmente nas possibilidades das pessoas que vivem

em uma sociedade onde os critérios de escolhas dos seus representantes, por

vezes, não lhes permitem agir com o grau de criticidade necessário frente estes

desafios.

A reforma política deve acontecer dentro de cada pessoa, através da

capacidade de inserção lúcida na realidade vivida, e este é um processo onde a

Educação Popular pode agir como um instrumento privilegiado, uma vez que

problematiza o viver. A dinâmica da vida das pessoas que estão situadas nesta

margem da sociedade está, muitas vezes, diante de diversas “situações-limites” que

lhes impedem de agir com a consciência necessária para a transformação deste

cenário político, frente ao fortalecimento da ES no estado do Mato Grosso, o qual,

frente a esta realidade, poderá continuar fragilizado.

Há outras “n” situações necessárias pensadas por este coletivo, entre elas a

articulação com a Vigilância Sanitária, em nível municipal e estadual, para a devida

adequação e venda dos produtos alimentícios e de origem animal. Para isso seria o

coletivo organizado que deveria buscar apoio direto das prefeituras e gestores da

saúde nos municípios e no estado.

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O apoio pela lei de fomento da ES junto à Secretaria de Educação

Profissional e Tecnológica (SETECS) pelo recém-nascido Conselho Estadual de ES

(CEEC), que é amparado pela Lei Estadual de ES e que está lotado na Secretaria

de Estado de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (SEDRAF), na Secretaria

de Estado de Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (SECITEC), na

Superintendência Regional do Trabalho (SRT) e de algumas prefeituras aliadas, que

precisam ser pautadas.

Buscar a relação de intercâmbio com estas políticas que já existem para o

fortalecimento dos EES e, consequentemente, do FEES/MT é um direito

conquistado por este coletivo frente à construção do Marco Legal de suas práticas. A

questão é que nem todos os grupos têm conhecimento deste aparato legal, e

mesmo os que conhecem não conseguem ter acesso a eles.

Pensando em tudo isso é que estes EES acreditam ser imprescindível

estabelecer a articulação política da ES, convocando seus representantes de bases

para discutir projetos e propostas para Mato Grosso. E é frente a estes necessários

embates políticos que o Grupo MUDAR apostou ser tão importante estar presente

no processo de formação política, pois elas acreditam que é preciso ter apropriação

de certos discursos e cenários políticos para qualificar a sua atuação como EES

frente a esta construção política e pedagógica.

Acreditam que a participação qualificada e significativa dos EES do campo e

da cidade nas Conferências, Seminários, Fóruns e Conselhos é fundamental. Esse

processo precisa ser tomado por cada uma e cada um de seus “fazedores” como

algo que seja seu, que tenha o pertencimento e reconhecimento da e na luta

coletiva, mas que cada indivíduo possa fazer sua parte, respeitando-se neste

momento as limitações de cada um, mesmo por que:

Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas, de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado (FREIRE, 2000, p. 38).

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Em cada etapa do viver se é desafiado, e pensando em toda esta

complexidade da vida em sociedade, onde se está propondo uma nova forma de

estabelecer relação partindo do e no trabalho, é que se podem vislumbrar

dimensões palpáveis de resistência, enfrentamento e superação. É também no

trabalho, na produção da vida, que o homem se sustenta.

É onde ele pode se ver e vê os outros, possibilitando deste contato possíveis

conexões que dão muitos sentidos ao que produzem e reproduzem, e é este

movimento que muitas vezes motiva o sujeito a continuar insistindo em busca de seu

sonho, de sua humanidade, de seu objetivo que, apesar de ser uma construção

individual, é no seio da coletividade que ela pode se concretizar:

A educação precisa tomar no/do trabalho as raízes de fabricação da humanidade que somos. Nada de novo. A mutação, contudo, no coração dos modos de produção introduz sempre rostos novos nesta mesma humanidade; rostos particulares e idiossincráticos nesta mesma essência humana universal que vivenciada, nos fazemos (PASSOS, 2006, p. 146).

Na perspectiva de Passos é possível se encontrar no trabalho solidário os

saberes e os fazeres, uma constante produção de conhecimentos que, partindo do

indivíduo, da identidade e não do individualismo, é possível chegar-se à coletividade,

às identidades reunidas de forma solidária, à “inteligência coletiva”, onde a essência

do humano pode se fundar em um nós, não tão somente mais no eu.

4.2.5 Pistas de Estratégias Possíveis

Todas as reflexões e discussões que partiram das experiências e vivências de

cada ator, neste espaço de construção, foram fundamentais para que o processo

tivesse a legitimidade da realidade vivida por estes EES no Estado. Ficou

evidenciado que o processo de Comercialização nesta experiência da ES perpassa

as situações práticas do processo produtivo. As causas do problema, o gargalo

identificado como sendo a comercialização, pelo percebido, é tão somente um

desdobramento do problema real.

Para tanto, para o desvelamento e (re)conhecimento das causas dos

problemas elencados por este coletivo, é preciso, segundo eles, se ter capacitação

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continuada, não apenas palestras ou cursos isolados, pontuais. Faltam intercâmbios

de trocas de conhecimento entre os EES da cidade e do campo.

Projetos para capacitação, especialmente em produtos perecíveis, foram

mencionados, mas tudo associado ao Trabalho/Formação política com base nos

princípios da ES. Esta dimensão é percebida pelo Grupo MUDAR como

fundamental, mas não acreditam que seja um processo de curto prazo, muito pelo

contrário, e que a necessidade de Grupos como o delas é urgente e, talvez por não

conseguirem ver o resultado desta construção na base, muitos desanimam e

desistem.

As discussões aqui iniciadas foram o fermento inicial para toda uma

discussão que se ampliou no Seminário Regional e, com certeza, também servirão

de pano de fundo para as discussões na Conferência Nacional de Comercialização

em ES que ainda não tem previsão para acontecer.

Ficam muitas perguntas, mas o que é prioritário nesta experiência toda?

Muitas são as frentes a serem trabalhadas, desafios e possibilidades que cada um

dos segmentos que compõem a ES precisam estar articulando, cada vez mais

qualificados, para terem condições políticas e técnicas para o enfrentamento.

A formação humanística é vista por estes coletivos como a mais necessária

frente à construção de uma sociedade mais solidária, só então poderão estar

preparadas/os para contribuírem em espaços de participação popular e, assim,

construírem estratégias amparadas legalmente e que venham ao encontro da

construção de um Comércio Justo e Solidário.

Entendo, como FREIRE, que:

Coerente com a minha posição democrática estou convencido de que a discussão em torno do sonho ou do projeto de sociedade por que lutamos não é privilégio das elites dominantes nem tampouco das lideranças dos partidos progressistas. Pelo contrário, participar dos debates em torno do projeto diferente de mundo é um direito das classes populares que não podem ser puramente “guiadas” ou empurradas até o sonho por suas lideranças (FREIRE, 2000, p. 21).

É cada vez mais na participação autônoma e legítima que se pode vislumbrar

uma possível construção coletiva de um viver digno, sem medo de falar sua

“palavra”. A palavra de uma mulher e de um homem não pode ser menos importante

do que de um representante, uma Assessoria. Afinal elas/es estão lá porque

mulheres e homens as/os colocaram lá, lhes “confiaram” esta tarefa.

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A/o líder e igualmente as Assessorias são importantes na medida em que

conseguem, através de seu testemunho, colocar aos seus pares e aos grupos que

acompanham, que seu comprometimento, o comprometimento de cada uma e cada

um com o processo, é verdadeiro.

Mais uma vez surge a confiança como elemento fundante do compromisso

ético que realmente poderá fazer a diferença nestes processos e, quem sabe,

provocar através das ações conjuntas: Sociedade Organizada através dos MS em

diálogo com o Poder Público - uma possível transformação ao que está posto.

4.3 SEMINÁRIO REGIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA PERSPECTIVA

POSSÍVEL DA COMERCIALIZAÇÃO DOS EES NA REGIÃO CENTRO-OESTE

Todo o movimento feito pelas/os militantes da ES em respeito à dinamização

da comercialização dos EES acontece de maneira mais ou menos articulada entre

os diversos MS, em conjunto com alguns parceiros e setores Públicos. E essas

relações se dão, muitas vezes, em uma arena que coloca estas pessoas em

situação de enfrentamento permanente.

Como se sabe e neste trabalho se problematiza, a participação dos EES

nesta construção é fundamental para todo este complexo movimento, inclusive,

nesta mesma discussão, alguns elementos que são trazidos pelos grupos

demonstram que tal dimensão é um desafio constante e inconcluso devido às

diversas situações concretas de cada experiência e, se considerando os aspectos

históricos, culturais, políticas e sociais da sociedade como um todo, fica ainda mais

complexo este caminhar.

A discussão que trazemos neste momento versa sobre o desdobramento do I

Seminário Estadual de Comercialização Solidária. Atividade esta já problematizada

no item anterior, através da lente das experiências e vivências do Grupo MUDAR em

diálogo com outros Grupos, militantes, Assessorias e Gestores Públicos.

Nesta oportunidade serão compartilhadas algumas discussões construídas

durante o I Encontro Regional da Comercialização Solidária. Este Encontro

aconteceu no município de Bonito, em Mato Grosso do Sul, entre os dias 23 e 25 de

junho de 2010.

Como no Encontro Estadual, nesta edição estiveram presentes:

representantes de EES, do campo e da cidade; Assessorias, Militantes e Gestores

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Públicos de todos os estados que compõem a Região Centro-Oeste, mais o Distrito

Federal. Nesta oportunidade foi possível a participação de uma das integrantes do

Grupo MUDAR.

As pautas do encontro tratavam, em sua essência, da construção de uma

possível Comercialização Solidária como uma estratégia em Rede. Para tanto,

algumas ações que estão acontecendo precisavam ser pontuadas e socializadas

enquanto proposta pedagógica neste processo.

Assim sendo, foi feita a apresentação do Projeto Nacional de Comercialização

Solidária (PNCS) pelo IMS, através das Articuladoras da Comercialização; do

mapeamento na Região CO: os dados socializados foram do Mato Grosso do Sul,

mas a discussão sobre o processo se abriu para a contribuição dos demais estados;

foi trabalhado o conceito e princípios do Comércio Justo e Solidário pela instituição

FACES do Brasil; e discutida a comercialização em mercado institucional com a

Delegacia do MDA/MS.

Entre as questões suleadoras para cada etapa de trabalho estavam: avançar

nos desafios da comercialização; fazer juntos uma comercialização diferente, em um

processo de transição, onde a exploração deixasse de ser base para a relação de

trabalho; pensar, neste percurso, o como fazer isso, verificando quais estratégias

imediatas e outras mais a longo prazo que podem contribuir ao enfrentamento das

mazelas do capitalismo, construindo uma proposta possível de desenvolvimento

dialógico e endógeno rumo a um Comércio Justo e Solidário.

Neste sentido, foi realizado um exercício coletivo, onde todas e todos tiveram

espaço para dizer a partir de suas realidades o que na perspectiva destas questões

eram possibilidades e limites para a ES. Assim, surgiram várias colocações, como:

Pensar um espaço coletivo de comercialização; o fortalecimento e organização do movimento de base em ES; rever os modos de produção, comercialização e consumo com base em Formação Política e com construção de Políticas Públicas efetivas para essas dimensões; construir uma proposta de um novo modelo de economia diferenciado do Capitalismo; enfrentamento e superação do tipo assistencialista de cultura enraizada nas vivências das pessoas; aproximação das Universidades e a Rede de formadores como estratégia para esse processo (GT 1o Seminário Comercialização Regional, 2010). .

Foram muitas contribuições no sentido propositivo, foi percebido pelo coletivo

que o eixo articulador destas propostas estava em pensar com que critérios se

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estabelecerá essa nova proposta de comercialização. Lembrando que é necessário

que se considere todo o histórico da luta das pessoas, as diversidades das

identidades culturais, verificando os limites e as possibilidades para mobilizar e

articular este que acontecerá, em um cenário de erros e acertos, em um movimento

não-linear, inconstante e dinâmico.

As Feiras, neste contexto, foram lembradas enquanto espaços de trocas

significativas, de fortalecimento e articulação: termômetro de como o Movimento está

em determinadas localidades. Durante elas também foi possível o aproveitamento

dos acúmulos significativos de ideias, uma construção coletiva que subsidiou a

estruturação do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS).

Entende-se que ao sistematizar as experiências foi possível subsidiar a

construção desta PP, que foi sancionada pelo ex-Presidente da República Luiz

Inácio Lula da Silva, ao final de seu mandato, em dezembro de 2010. Paralelo a isso

temos a execução da 3ª etapa do mapeamento, elemento que foi destacado nas

discussões do grupo em Bonito-MS.

A experiência do Mapeamento em sua 3ª etapa foi uma das ações que

ocorreu em âmbito nacional, que o coletivo considerou estratégica, na medida em

que se apresenta como uma conquista em torno da visibilidade necessária aos EES

em todo o território nacional. Nesta oportunidade, o processo no CO foi gestado pela

Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Auto Gestão (ANTEAG).

As dimensões trazidas pelas experiências tiveram expressão enquanto uma

possibilidade de se “olhar” como esta ação está acontecendo nas diversas

realidades da região CO, buscando neste exercício identificar os limites e as

possibilidades desta para a organização, visibilidade e legitimação do Movimento.

Foi lembrado pela integrante do Grupo MUDAR que:

Muitas destas conquistas regionais precisam mesmo ter um olhar diferenciado sobre cada realidade, porque se precisa considerar que a depender do Estado há muita distância entre tais dimensões. Inclusive dentro dos Estados muitas/os mapeadoras/es viveram situações diferenciadas. Uns tiveram todo o apoio de Sindicatos e Prefeituras, outros nem conseguiram concluir o trabalho pelo fato que não teve a colaboração de nenhum destes órgãos e o recurso destinado para a logística era muito pouco (Integrante LRF).

Foram recorrentes depoimentos que confirmavam esta fala, reafirmando que

houve poucas parcerias com o poder público; o difícil acesso, seja pelas barreiras

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naturais, seja pela dificuldade de informações existentes sobre os EES (esta última

muitos atribuem ao fato do total desconhecimento da sociedade como um todo sobre

a existência da ES) e, consequentemente, dos Grupos da ES, foram alguns dos

motivos pelos quais muitos deixaram de ser encontrados.

Também houve muitos casos de EES que deixaram de existir ou de atender

aos princípios/critérios da ES; muitos dos EES visitados e a maioria dos mapeadores

questionaram a complexidade do questionário aplicado, acreditam que o mesmo não

seja adequado à realidade dos EES, pela sua extensão e difícil interpretação.

O retrato das experiências do mapeamento também trouxe aspectos

positivos, estes são as oportunidades de levar aos quatro cantos do Brasil a notícia

de uma história de luta que acontece nos meios populares, que resiste mesmo neste

aparente anonimato.

Foi amplamente discutida, na nossa experiência estadual, a dimensão do

“conhecer” a ES e os Grupos que nela estão inseridos como fator importante para a

organização da comercialização dos EES de MT. Neste ponto, a memória foi trazida

pela representante do grupo MUDAR, onde reafirmou a importância do mapeamento

para a visibilidade do fazer a ES, mas que outras coisas deveriam estar atreladas

para o devido acesso às informações desta pesquisa.

A apropriação destas informações pelos grupos poderá se dar a partir, não só

da necessidade, mas através de um processo de formação; além disso, vale lembrar

que a inclusão digital é outra questão que também ainda não foi amplamente

disponibilizada, muitos EES não têm acesso a esta mídia e os que têm não possuem

a técnica necessária para seu uso de forma eficaz.

Contudo, o exercício constante de projetar um sonho com base em princípios

e critérios estabelecidos de forma solidária, acordada na medida do possível pelo

coletivo, sem perder as especificidades de cada realidade, como um diálogo, não um

monólogo, não pode ser perdida de vista.

As Políticas Públicas e os diversos Programas que foram criados com base

em nossas demandas, para apoiar a construção de um Comércio Justo e Solidário,

nem sempre acontecem de acordo como foram pensadas, e estes depoimentos

colocam a contradição diante das diferentes realidades que confirmam esta questão.

O Comércio Justo e Solidário é projetar um amanhã construído hoje, para

além do Mapeamento, do Centro de Formação em ES (CFES), entre outras PPs e

Programas, é necessário se estabelecer uma espécie de Rede comunicacional,

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produtiva e formativa que fomente verdadeiras Cadeias Produtivas, que venham

fortalecer as/os produtoras/es e trabalhadoras/es, que podem promover assim a

qualidade de vida dos sujeitos esquecidos durante a história sócio-cultural das

sociedades. Este anonimato não é por acaso, é politicamente estratégico, afinal, a

quem interessa saber ou validar práticas que não sejam subordinadas ao capital?

É neste sentido que a ES traz a necessidade de construção de um projeto de

uma outra forma possível de se estabelecer relação no mundo, uma possibilidade

que seja contrária à ordem estabelecida. Que privilegie a vida em suas diversas

manifestações, com respeito às relações entre os seres vivos e com alteridade, onde

as questões diversas das especificidades humanas sejam minimamente

consideradas, buscando-se dentro deste processo o reconhecimento da condição

humana enquanto inacabada e em um constante “devenir”:

Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História (FREIRE, 1996, p. 136).

Em outras palavras, é preciso pensar na valorização do que é da pessoa, com

o cuidado das diversidades e diferenças que se destacam no coletivo, somando e

não subtraindo pelo que é diverso. As diferenças fortalecem, as potencialidades

próprias de cada uma se complementam, não linearmente, mas dentro de uma

dinâmica tão interessante como a própria vida: com desafios e repleta de

possibilidades criativas, que podem dar espaço para a promoção da humanidade,

que o capitalismo subtrai em sua lógica desumana:

Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como se cumprisse mera obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário, uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o outro, de uma classe

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ou de uma cultura sobre a outra, é uma transgressão da vocação humana do ser mais7 (FREIRE, op. cit., p. 121).

Dentro deste processo político e pedagógico a dimensão da autogestão, da

cooperação e da atenção especial, ou mesmo central, ao meio ambiente com vistas

à sustentabilidade são dimensões que suleiam o entendimento da ES enquanto

uma proposta de desenvolvimento por uma nova sociedade com base na vida.

E no interior desta construção buscar compreender os processos de

exploração da produção pelas grandes multinacionais; a mudança na postura e

lógica do produtor, do comerciante, do consumidor - prossumidor: transformar a

lógica de um mercado fundamentalmente explorador, onde as relações entre

mulheres e homens se fundam na mesma direção.

Neste sentido é importante rever, reconstruir, reelaborar práticas. Através de

um exercício continuado, coletivo e participativo, que pode colaborar para com a

formação constante para esse treino do “olhar”, um olhar diferenciado para um

mundo que se quer diferente.

É este “olhar” que foi possível perceber ao acompanhar o Grupo MUDAR em

sua trajetória dentro deste processo da ES. Um olhar de possibilidades, de seus

limites individuais e coletivos. Onde cada uma em particular faz, ou tenta fazer de

acordo com suas condições, sua parte para que o Grupo um dia consiga ter sua

produção estabelecida de acordo com os princípios defendidos pela ES. Em muitas

das falas das mulheres é registrada esta busca e interesse:

Nós fazemos de acordo com o perfil de cada uma: umas se identificam mais com a produção, outras com a venda, outras fazem tudo isso e outras têm tempo de participar dos cursos, oficinas e seminários de formação. Eu não posso participar da maioria das formações que acontecem em Cuiabá, não posso viajar para participar de feiras ou outros encontros, mas com certeza busco outras formas de me capacitar, de buscar informações e capacitação que ajudam nossa produção. A outra parte a gente acaba vendo dentro do próprio Grupo, porque há as mulheres que participam de muitos eventos e nos repassam a formação específica sobre a ES que aprenderam. É assim que a gente tenta manter nossa união, umas fazem de um lado o que podem, como podem, por outro lado as outras também fazem o que dá e juntando tudo nos mantemos unidas em prol de um sonho (Integrante EBS).

7 Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, op. Cit.

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Com isso acontecendo de maneira bem particular, não perdem de vista que

este se dá em um processo complexo, contraditório e em um cenário de conflitos

permanentes devido a todas as dificuldades da vida. Sendo assim, é importante que

seja percebido com o cuidado de algo que não está dado, ou que se tenha uma

receita de como “conduzir” a produção de vidas. Ela está sendo forjada a partir desta

caminhada, e não é possível fazer diferente, caso contrário simplesmente

estaríamos reproduzindo o que está posto.

4.3.1 Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS)

Este momento aconteceu como uma “Roda de Conversa”, onde foi possível

trazer para o diálogo informações e conhecimento a respeito de um possível

conceito do que venha a ser o SNCJS e de como está sua situação atual. Também

trouxe alguns elementos a respeito do Sistema Participativo de Garantia (SPG) dos

produtos orgânicos da ES a partir da experiência da Associação dos Produtores

Orgânicos - MS (APOMS).

São, então, duas dimensões intrinsecamente correlacionadas, a do SNCJS e

propriamente o CJS, que foram trabalhadas para compreensão destas que se

configuram em possibilidades neste processo, podendo ser consideradas

instrumentos políticos e econômicos importantes:

O SNCJS é um conjunto de parâmetros: conceitos, princípios, critérios, atores, instâncias de controle e gestão, organizados em uma estratégia única de afirmação e promoção do Comércio Justo e Solidário em nosso país (...). Ele é um projeto tanto político quanto econômico. Político, pois oficializa o reconhecimento pelo Estado Brasileiro do Comércio Justo e Solidário como política social de enfrentamento das desigualdades sociais e da precariedade das relações de trabalho. E, econômico, por proporcionar uma identidade aos produtos e serviços da Economia Solidária, agregando valor e conceito aos mesmos, e, assim, ampliando suas oportunidades de venda (FACES DO BRASIL, p. 03).

Esta definição foi construída a partir de todo um trabalho empreendido por

alguns grupos articulados em prol da construção de estratégias políticas e

pedagógicas, buscando subsidiar uma prática já existente entre alguns EES e visado

por todos. Outro conceito trabalhado foi do CJS:

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É o fluxo comercial diferenciado, baseado no cumprimento de critérios de justiça e solidariedade nas relações comerciais, que resulte no protagonismo dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) por meio da participação ativa e do reconhecimento da sua autonomia (op. cit., p. 04).

É importante buscar nas memórias os vários momentos de formação, de luta

e construção da ES sobre a postura frente às conceituações e ou definições sobre

os processos ora elaborados e reelaborados. Estas definições foram apresentadas

da forma como aqueles coletivos, naquele momento específico, pensavam estes

processos.

A saber, que pelo movimento complexo da sociedade e seus processos, se

considerando a incrível capacidade do capitalismo em se apropriar de tudo que

possa lhe assemelhar a uma ameaça contra a sua manutenção, os conceitos e as

práticas, com certeza, precisam ser continuadamente revistos, como estratégia de

afirmação e reafirmação identitária de um coletivo que se pretende, com proposta

diferenciada da que está posta.

Com isso algumas questões desafiadoras foram pontuadas:

O CJS ainda não saiu do mundo das idéias, sua concretude está atrelada ao

poder de apropriação dos atores da ES;

Apesar da assinatura do Decreto nº 7.358, de 17 de novembro de 2010, que

institui o Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS) como projeto

político social, não temos ainda definida sua regulamentação, ou seja, não se

tem fomento para sua execução;

Construir mercados solidários ou estabelecer diálogo com o convencional? A

estratégia é construir uma identidade cultural, não estabelecendo concorrência

aparentada com o que está posto?

Essa Identidade é História, é vida... Valoriza todo um processo, qualifica

socialmente o produto: a origem do trabalho é um diferencial importante;

Quais espaços de comercialização se buscam? Dentro e/ou fora do Brasil?

Em um CJS a teia produtiva pode ofertar produtos de qualidade que dão

descontinuidade à lógica do Mercado, pois o que está sendo proposto é

qualidade de vida e isso implica, por exemplo, ir de encontro ao consumismo: o

Capital produz com menos qualidade e garante a teia do consumo desenfreado;

O SNCJS organizará selo organizacional e de produto: O Selo Organizacional é

mais utilizado em instrumentos de Comunicação (Folder, Pôster...); o Selo de

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Produto será agregado pelos ESS que se percebem enquanto protagonistas de

um CJS. Todo esse processo precisará do esforço do coletivo envolvido em

construir critérios específicos para cada tipo de produção... É algo que ainda está

sendo pensado;

Não basta o ESS estar dentro dos critérios estabelecidos, é preciso ter em todo o

processo relacional um caráter de Comércio Justo, para tanto, a história deste

produto precisa ser contada para o consumidor final.

A Identidade sócio-cultural precisa estar relacionada no ato da Comercialização,

além disso, o preço Justo também é outro critério a ser considerado... É

complexo o movimento, por isso mesmo ainda está em nível do mundo das

idéias;

A gestão junto aos fornecedores: como se está pensando esse processo?

Pensar toda a cadeia produtiva com vistas a cuidar destes processos defendidos

pelo SCJS, esses desafios estão aí para serem pensados, discutidos,

enfrentados e superados pelo coletivo da ES;

O Sistema, como instrumento de adesão, considera um tempo para os ESS se

adequarem a estes critérios? Pensando que isso depende deste coletivo, pois

sua base é a participação: a ideia é poder incluir o maior número de

experiências, a transição nesta perspectiva precisa ser considerada;

Algumas questões são suleadoras para identificar se o ESS está se organizando

com vistas a se adequar, e essa é a ideia, que ele se perceba, se organize. E por

isso não se pensa em critérios de eliminação, mas de construção conjunta.

Princípios da legalidade... Tributos que dificultam a comercialização;

O comprometimento dos atores é fator sine qua non para o enfrentamento ao

que está posto, com vistas à superação dos desafios aqui levantados e outros

que surgirem;

O processo de preenchimento para a participação dos EES ao projeto piloto do

CJS é formativo, a intenção é que, enquanto o grupo o responda, a autoreflexão

e todo o conjunto colaborem para a formação;

Estas questões foram amplamente discutidas em um exercício de reflexão e

busca de alternativas de embate para situações que são maiores, mais amplas e

que somente uma profunda transformação da lógica vigente poderia dar conta. Mais

uma vez se fez presente a importância do trabalho de mãos dadas com a educação,

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de forma integrada entre os diversos MS pautando incansavelmente o poder público

com as demandas necessárias para esta grande retomada, que diz respeito à

qualidade de vida.

A realidade do grupo MUDAR está um pouco distante de dar conta destas

discussões. O CJS é o sonho de consumo da maioria dos EES, inclusive do grupo

MUDAR. O que dificulta é a própria estrutura produtiva destas mulheres. Para além

desta questão econômica, elas se vêem mais preocupadas com a busca de

competências técnicas, uma vez que a produtiva depende de todo um investimento

que está aquém de suas possibilidades.

Isso posto nos remete à realidade de muitos EES que da “porteira prá dentro”

estão fragilizados, e pensar um CJS tendo a maioria dos grupos da ES em situação

de vulnerabilidade é um tanto quanto tais práticas “estarem no mundo das idéias”. É

fato que uns poucos grupos estejam preparados para esta prática, porém isso não

reflete a realidade brasileira, quiçá matogrossense. É preciso um CJS que subsidie

estes grupos para sua habilitação qualificada.

4.3.2 Apresentação da Experiência da Associação dos Produtores Orgânicos

do Mato Grosso do Sul (APOMS)

Este grupo é composto por 200 famílias que atuam no Assentamento

Itamarati, Ponta Porã-MS, desenvolvendo a produção de algodão colorido 100%

orgânico. Outros produtos se destacam, como o café e outros cereais. O Sistema

Participativo de Garantia (SPG), iniciado pela Associação, ainda está em processo

de implantação, mas já possuem um grupo de famílias da AF que trabalham com a

produção de alguns produtos orgânicos, alguns já totalmente e outros em fase de

transição.

Ressaltou que conhecer a história do Grupo, o produto e o Movimento para o

processo de comercialização é realmente fundamental. Nesta perspectiva, a

certificação participativa se dá fundamentalmente pelo reconhecimento desta história

e sua vivência pelas famílias.

Esta forma de certificação ainda é pouco usual, mesmo porque a produção

agroecológica está em fase de transição no Brasil. A aproximação do MS da ES de

outros com bandeiras de luta e resistência, que convergem com seus princípios e

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propostas de desenvolvimento, neste caso com a Agroecologia, enriquece muito as

possibilidades de fortalecimento e ampliação destas práticas.

A Assistência Técnica é uma realidade de despreparo, ou seja, é insipiente e

a existente não atende às especificidades das famílias. A ATER para o campo como

um todo vem sendo priorizada em várias discussões dentro de Fóruns e Conselhos

específicos, seja local, estadual, regional ou nacionalmente falando, em diálogo com

o poder público, devido a esta realidade de inexistência ou falência do

acompanhamento adequado.

Em se tratando de orgânicos, a situação é mais delicada ainda. Isso faz parte

dos desafios dos diversos MS que lutam pela democratização da terra, do livre uso

das sementes crioulas, da luta contra os agrotóxicos, enfim, do respeito à produção

de alimentos saudáveis e do direito a uma vida digna no campo.

Apesar das dificuldades encontradas e das que ainda precisam viver

diariamente, que vão desde a convivência com fazendeiros que pulverizam veneno

em suas plantações, até Multinacionais que tentam dividir as famílias com super-

ofertas para a aquisição dos produtos in natura, alguns seguem mais ou menos

firmes.

Lembrando que a estratégia do capital em se apropriar do lucro final da

produção dos grupos é o que mais se enfrenta nesta experiência. A dinâmica do

Mercado seduz os envolvidos nos processos da ES, agindo na desarticulação e no

afastamento dos grupos, das famílias e/ou pessoas.

O processo de formação, as perguntas e as respostas que ocorrem em meio

a esta produção de conhecimento, a partir das experiências individuais e coletivas,

mexe com as certezas pré-estabelecidas e ajuda a promover um momento de

partilha, de autoconhecimento do grupo, o que possibilita um enxergar para além

das evidências:

Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. (...). A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana (FREIRE, 1996, p. 129).

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Assim, as famílias envolvidas estão conseguindo se manter nesta nova forma

de produzir, trabalhando e aprendendo a cada dia com um novo sentido. Um sentido

ético diante destas relações, e isso de desdobra na solidariedade do trato com o

outro, o cuidado com a terra e a produção de produtos livres de agrotóxicos, o que

cada vez mais aproxima as pessoas.

Porém, por vezes, algumas atitudes estimuladas pelo mercado impedem um

trabalho mais integrado entre as mesmas, é este complexo movimento que

constantemente se apresenta enquanto parte significativa do desafio de fazer a ES.

O exercício diário de consumir da Rede de Produção da ES criada por este coletivo,

por exemplo, é algo sistematicamente estimulado em contraponto ao consumismo.

Mesmo sendo este um assunto mais próximo da AF, diz respeito direto aos

grupos da cidade, a alimentação diz respeito à saúde e à vida. Não é um assunto

unilateral, ou central dos grupos do campo e da floresta. Grupos como o MUDAR,

que trabalham com alimentação e reaproveitamento do papel, precisam estar

preocupados com esta discussão.

É por isso que trouxemos esta discussão de orgânicos, de SPG, da

importância da história do grupo e dos meios de produção que privilegiam. A

discussão sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos e do monopólio das sementes

pelas grandes Multinacionais: a possível extinção das sementes crioulas. Estes são

temas que recaem sobre a cidade tanto quanto no campo.

Esta experiência nos chama a atenção sobre questões que rotineiramente

não refletimos, e que são urgentes. O interesse para o MUDAR está na reflexão de

como estas questões podem fazer a diferença no ato de consumir, em ver a origem

do produto, em repensar o consumo.

A cultura do acumulo, do imediatismo, do individualismo e do desencanto por

uma vida melhor, por vezes, acompanham de perto o movimento sobrehumano que

é ser humano dentro desta lógica. São mulheres e homens se fazendo

continuadamente, muitas vezes sem certeza de que serão capazes de continuar,

mas o desejo por uma vida digna ainda é um combustível que o mercado não

privatizou:

Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos

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como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado (FREIRE, op. cit., p. 128).

É pensando, neste enfrentamento, que é primordial trazer discussões como

estas para o centro dos MS. A difícil tarefa de se fazer comércio, produção e

consumo de forma diferenciada da que está na lógica dominante e ainda se

reinventar continuadamente é, ou deveria ser, base para discussões mais amplas

como a que foi iniciada nesta proposta de mestrado.

Fazer estas relações de um jeito diferente não é algo que está dado, o

intercâmbio entre as diversas realidades traz estas oportunidades de poder “olhar”

como outras pessoas estão enfrentando estas forças dominantes. A visão, assim

sendo, pode “mudar”, pode ampliar e não se limitar - pode transformar!

4.3.3 Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar

(PAA-PNAE): Territórios da Cidadania

Entre nossas conquistas estão algumas PPs que são importantes

instrumentos para a comercialização do pequeno agricultor, para o processo de

consolidação da Agricultura Familiar do campo e peri-urbana, enquanto dimensão

política diferenciada frente ao Capitalismo de hoje. Entre estas estão o Programa de

Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar

(PNAE).

Entre as suas possibilidades, mas, ao mesmo tempo, desafios para o

fortalecimento destes segmentos econômicos, está o de estimular e organizar o

potencial produtor de cada região e construir uma Rede de produção,

comercialização e consumo de acordo com os interesses dos coletivos envolvidos a

partir dos Territórios.

A AF é muito mais forte que o agronegócio se considerarmos a realidade do

abastecimento de alimentos dentro do nosso país. É fato, quem coloca a comida na

mesa dos mais de 100.000.000 brasileiros é a AF. Estudos e pesquisas diversas

comprovam esta afirmação, que não trazemos neste momento para

aprofundamento.

O que é preciso fazer, urgentemente, é organizar as famílias produtoras para

assumir essa condição que é viável, mas hoje ainda é um sonho.

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Em muitos estados pouquíssimas/os produtoras/es rurais já conseguiram ser

beneficiadas/os por estas PPs, inclusive os que já conseguiram realizar esta venda

foi fundamentalmente acessando o PAA, através da CONAB, e com algumas

parcerias com as Instituições de base (Associações de Produtores Rurais, STR). No

caso do Mato Grosso, por exemplo, as informações que temos demonstram que os

casos onde se estão encontrando maiores obstáculos são para a venda direta às

escolas através do PNAE.

Segundo relatos de várias entidades de representação das/os agricultoras/es,

e dos próprios, são muitas as exigências e a realidade dos campesinos, sejam

Quilombolas, Ribeirinhos, Assentados, Tradicionais ou Meeiros, não conseguem

juridicamente corresponder às mesmas. A Nota Fiscal que precisa ser emitida no ato

da comercialização é uma destas exigências, que a maioria não tem condições de

cumprir.

Pelo fato de a maioria dos Assentamentos, por exemplo, não ter cumprido

alguns processos complexos, que envolvem desde o Georreferenciamento da área

ao Licenciamento Ambiental (LAU), mesmo as famílias possuindo a Carta de

Concessão de Uso (CCU) e a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) elas não

conseguem ter este acesso facilitado.

A discussão, nesta perspectiva, é bem mais ampla e complexa, em um

encontro desta natureza, considerando-se o tempo e o foco, o que impossibilita uma

maior reflexão acerca destes processos de luta para o acesso às políticas que foram

criadas para viabilizar uma demanda vinda da base. A luta por estes instrumentos foi

muito grande e, pela realidade maior, serão as lutas da AF para seu efetivo acesso.

A idéia foi inserir esta questão para uma provocação, pois é necessária a

problematização desta realidade. São desafios que os militantes de cada estado

possuem, enquanto encaminhamentos a serem dados de forma articulada a partir

das bases, integrando agendas com diversos MS que possuem interesses em

comum neste sentido.

Para fazer um link com o assunto tratado anteriormente, trazer estas

discussões pode ampliar a visão de mundo de diversas pessoas que não convivem

diariamente com estas questões, mas que, porém, são afetadas com o resultado

delas, uma vez que a dinâmica destas ações se reflete em todos os espaços sociais,

pois possui toda uma correlação entre a cidade e o campo.

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A luta pela vida não se resume, ou não deveria se resumir, aos processos

travados pelos grupos de determinados espaços (cidade – campo – floresta). Há

uma interrelação intrínseca entre estes territórios e vale reforçar a necessidade de

trazê-la para uma problematização. Chamando assim a responsabilidade de cada

um nestes cenários de luta.

Voltando para a discussão das PPs é preciso prosseguir e ir além do já

colocado, abrindo o leque para as questões do crédito, da ATER adequada ao

campo da Agroecologia, da política de seguros, da ausência do estado frente a

processos que são de sua competência dentro destas dimensões burocráticas

(Regularização Fundiária), que acabam por excluir ao acesso das PPs, que são

resultado de muito suor e lágrimas justamente dos seus maiores beneficiários.

São temas que não se esgotam, foram trazidos para uma certa

problematização, uma provocação do necessário diálogo entre os grupos que fazem,

ou buscam fazer a ES em várias realidades urbanas e campesinas. A visão mais

ampliada sobre as dimensões trazidas foi um dos objetivos pensados pelo coletivo

que propôs a atividade.

Segundo o Grupo MUDAR, as discussões foram importantes na medida em

que puderam colaborar para com a construção de alguns conceitos e conhecimento

diferenciado a respeito das temáticas problematizadas:

Não é comum pensarmos nestas questões, às vezes parecem ser tão distantes, algo que não nos diz respeito. Nós que mexemos com a produção de alimentos deveríamos conhecer isso profundamente, porque todo tempo queremos oferecer o melhor, o menos industrializado possível, o caseiro e livre de condimentos que possam fazer mal aos consumidores. Como consumidoras, também, as escolhas que fazemos sem pensar acabam nos colocando reféns de produtos modificados e sabendo de tudo isso aqui discutido podemos rever o “supermercado” e o que trazemos para nossa família consumir (Integrante JGC).

É na medida do possível que este coletivo vê e revê sua inserção no MS da

ES. O grupo MUDAR tem consciência de que ainda precisam se organizar mais para

dar conta de um processo de CJS, inclusive acreditam que este pode ser um grande

estímulo para que a PP do SNCJS funcione de fato, com ações significativas nas

bases. Com uma atuação de inclusão, de diálogo, de outro jeito de fazer-se nesta

sociedade.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENTES PERSPECTIVAS E HORIZONTES

SEMELHANTES EM DIÁLOGOS E CONVERGÊNCIAS

Durante todo o percurso de nossa caminhada em busca da compreensão de

como se dava e era percebido o processo de formação que ocorre dentro do MS da

ES através do Grupo MUDAR, verificando nas práticas, nos conteúdos e proposta

metodológica elementos que pudessem contribuir, ou não, para com o desafio de

empoderar as massas populares para sua emancipação, com vistas a uma pretensa

transformação social via educação; o sentimento que nos acompanhou foi de que

todas as experiências dos diversos MS que dialogam entre si, de uma forma ou de

outra, estavam uma legitimando a outra.

As diversas frentes e Bandeiras de luta, com seu lugar ou perspectiva

distintos e bem singulares, possuem, por vezes, horizontes muito conhecidos. Seu

ponto de partida é o que lhes tem de mais caro, apesar disso a vida é a energia que

alimenta todas estas manifestações de resistência. Mas, repito, é a vida em uma

perspectiva que possui toda uma singularidade, porém com horizontes sempre

comuns: uma sociedade mais justa com possibilidade de vida digna para todas e

todos.

Nesta parte, em que temos o desafio de dar um fechamento à altura desta

história de luta e resistência, todo este sentimento se vê materializado no I Encontro

Nacional de Diálogos e Convergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental,

Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo.

Este evento foi sediado na cidade de Salvador-BA entre os dias 26 e 29 de

setembro de 2011. Esta grande mobilização social foi co-organizada por 9 (nove)

MS, que representam milhares de trabalhadoras e trabalhadores, dos campos, das

florestas e das cidades.

Considerando-se todas as percepções de que a partir das experiências

vividas por integrantes do Grupo MUDAR foi que construímos nossas discussões,

neste desfecho todas elas se vêem contempladas no diálogo mais amplo que

aconteceu neste encontro nacional. Por isso, esta visão mais ampla, em um

movimento centrípeto e centrífugo, de dentro para fora e vice-versa possibilitado

pelo processo de formação interna do grupo, retorna agora como a essência de

nossas problematizações.

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O conjunto desta obra contou com a colaboração de muitos sujeitos, o “olhar”

privilegiado se deu a partir da perspectiva do Grupo MUDAR, mas as construções e

produção do conhecimento foram extremamente coletivas. As falas significativas,

que enriqueceram sobremaneira nossas argumentações sobre o tema específico em

pauta, vieram de uns cem pares de percepções, desejos, sonhos e projetos de vida.

Não há aqui a intenção de trazer novas considerações que poderiam nascer

de um material inédito, como seria sobre este evento nacional, mas acreditamos que

seja pertinente deixar registrado este momento importante, onde convergiram tantos

“olhares” sobre a possibilidade da construção de uma nova sociedade que tenha o

ser humano como centro.

Na verdade, trazer estes “diálogos e convergências” para nos ajudar a

finalizar nosso trabalho, tem muito a ver com toda nossa visão de articulação,

integração e da impossibilidade de perceber o mundo como projeto único, e esta

constatação está estampada nesta prática, pois foi o culminar de uma longa

caminhada de diálogos entre os diversos MS que se relacionam intimamente com a

ES.

Esta grande articulação vem tomando corpo a partir da aproximação entre

estes diversos MS, fenômeno este que simboliza uma forma diferenciada de

resistência, que surge como uma resposta entre muitas contra a lógica de

exploração produzida pelo atual modelo econômico, que vem sistematicamente

sendo provocado durante os diversos encontros e lutas, por todo um tempo que não

se sabe precisar, isso devido às similitudes de interesses e agendas entre estes

segmentos.

A Comissão Organizadora teve a presença da Associação Nacional de

Agroecologia (ANA), da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), do Fórum

Brasileiro de Economia Solidária (FBES), da Rede Brasileira de Justiça Ambiental

(RBJA), do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), da

ABRASCO, da Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV), da Marcha Mundial de

Mulheres (MMM) e da Associação de Mulheres do Brasil (AMB). Houve articulação

destes com poderes públicos locais e nacionais (MDA, MTE, CONAB), entre outras

Instituições Sociais de apoio aos MS.

Para sulear as discussões de forma articulada, estes coletivos pensaram em

temas a serem discutidos a partir da apresentação de algumas experiências vivas

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relacionadas diretamente com os macro temas presentes neste momento. Estas

foram organizadas em sessões simultâneas:

Reforma Agrária, Direitos Territoriais e Justiça Ambiental;

Mudanças Climáticas: impactos, mecanismos de mercado e a Agroecologia

como alternativa;

Agroenergia: impactos da expansão dos monocultivos para agrocombustíveis

e padrões alternativos de produção e uso de energia no mundo rural;

Defesa da Saúde Ambiental e Alimentação Saudável e o Combate aos

Agrotóxicos e Transgênicos;

Direito dos/as Agricultores/as, Povos e Comunidades Tradicionais ao Livre

uso da Biodiversidade;

Soberania Alimentar e Economia Solidária: produção, mercados, consumo e

abastecimento alimentar (Termo de Referência, 2011).

Estas temáticas formaram um conjunto de temas que foram debatidos por

cerca de mais de 300 (trezentas) pessoas, representantes de EES ligados, direta ou

indiretamente, com algum destes MS mencionados, durante três dias, é bom lembrar

que a estes MS muitos outros se somam e participaram destas discussões também.

Neste contexto, o MT se fez presente pela participação do Grupo MUDAR,

enquanto representante deste segmento através do FBES, além de mais 5 (cinco)

pessoas ligadas aos MS da ES e da Agroecologia (Fase, Associação PA Califórnia,

Associação de Mulheres do CPA IV, UFMT/ISC).

Traremos, para “olhar” reflexivamente, apenas um momento de forma mais

específica, que se trata de uma discussão organizada pelo Movimento de

Organização das Mulheres, que aconteceu antes das Sessões Temáticas, com o

tema “A Autonomia e a Auto Organização Políticas das Mulheres”.

Enquanto proposta de finalização de um longo percurso de construção, há

nestas discussões e reflexões que ora compartilhamos, alguns elementos que

colocam de forma integrada muitas dimensões amplamente discutidas durante todo

este percurso, como já bem colocado de início. Não há muito de novo nos elementos

trazidos, mas, de repente, um novo jeito de se “olhar” o mundo e nós mesmos dentro

deste complexo todo.

Esta grande articulação pode ser considerada já enquanto uma conquista

histórica dos muitos MS na história do Brasil, isso devido ao fato de que estes

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coletivos participaram de forma significativa enquanto co-autores durante toda sua

elaboração e execução.

Da mesma forma, compreendemos sua relevante contribuição para com a

trajetória de nossa pesquisa, fundamentalmente nos momentos de formação, de

confraternização, de denúncia e resistência; em meio a estes a mística que nos

envolveu foi uma só: a VIDA DIGNA!

5.1 A AUTONOMIA E A AUTO ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES

Pensou-se para esta atividade três momentos específicos: a Socialização de

experiências de grupos populares a respeito da auto organização das mulheres;

abrir um debate específico sobre as questões levantadas pelos depoimentos

compartilhados; e, depois, uma plenária sobre o todo apresentado e discutido nos

momentos anteriores.

5.1.1 Depoimentos

1) Rede Xique-Xique: As redes têm um importante papel ou função social, espaço

que provoca, nos que se envolvem no processo de formação humana e política,

certa autonomia e empoderamento suficientemente libertador. Nesta perspectiva,

a sua atuação frente à auto organização é fundamental, pois dá oportunidade da

fala e da valorização das trajetórias de vida, de enfrentamento e superação das

situações de violência doméstica, simbólica e histórico-cultural. Estas iniciativas

de superação incomodam muito o sistema legitimado, mas o desejo por “ser

mais” das pessoas é maior. A ES é uma oportunidade para consolidar este sonho

viável, o diálogo e a convergência só depende de cada uma e cada um. A

colaboração mútua é o diferencial da proposta, sem fins tão somente

econômicos.

2) Fórum Sindical da Borborema-PB: Trabalho mais focado na AF, com ênfase na

Agroecologia. A leitura compartilhada da situação local e da região é um dos

princípios que visam o protagonismo dos sujeitos. O trabalho parte de uma

realidade que são as desigualdades de relação dentro da família e da sociedade

como um todo. Como estratégia política pedagógica parte-se de toda uma

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formação que vem dos conhecimentos produzidos pelas mulheres, saberes

populares que são desconsiderados, relegando à invisibilidade toda a

contribuição destas mulheres para com o cuidado com a família, com a terra e na

própria geração de renda. As experiências criativas em meio às “situações-

limites” são o ponto de partida nesta rede.

O estímulo às práticas de intercâmbios foi um ponto significativo, pelas

partilhas e trocas de saberes e sabores de vida, de outras oportunidades de

“inéditos viáveis”. Nesta perspectiva, muitas dimensões são trabalhadas: fundos

rotativos; pólos produtivos alternativos de manejo agroecológico; problematização e

enfrentamento da situação de gênero contra o caráter de banalização ou

naturalização das desigualdades de todas as dimensões, que fortalece a

invisibilidade dos frutos produzidos por elas.

Uma estratégia é a sistematização das experiências, o que colabora com o

processo de resgate e valorização identitária das mulheres do campo e das

florestas. A identidade coletiva neste movimento também é definida, assumida e

cada vez mais ratificada por estas mulheres, com vistas à sensibilização da

sociedade como um todo.

Acredita-se que a democratização do conhecimento é o ponto central da

agroecologia e da auto organização das mulheres, e isso já está fazendo a diferença

frente ao protagonismo das mulheres nesta comunidade, assumindo espaços

políticos junto aos sindicatos, conselhos, fóruns, entre outros, que eram palcos tão

somente dos homens. A formação é central para a construção de uma nova

realidade.

3) Grupo de Produção Agroecológica – PIQUIRI/RS –ANA/MMC: O que temos de

distinto é a forma de se organizar, mas as intencionalidades são as mesmas. E

são estas as convergências. Este movimento todo é um contraponto ao que está

posto, isso é básico. Desde 2000 se iniciou a luta pela auto organização das

Mulheres nesta experiência.

Aqui, não diferente, a luta é pela valorização da contribuição das mulheres

para toda uma construção diferenciada da legitimada pelo capital. Em 2004 esta

identidade foi afirmada, enquanto Movimento Feminista Camponesa. A construção

deste feminismo foi uma afronta à cultura paternalista e patriarcal, heteroconstruída

e alheia ao que é próprio do feminino.

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A construção da consciência crítica está hoje em baixa, esta é uma leitura de

conjuntura feita a partir do que está sendo percebido pelo coletivo do MMC, mas

isso só reflete ao poderoso esforço das grandes indústrias e empresas, do

agronegócio e de interesses internacionais em bombardear os MS de resistência,

enfrentamento e alternativas ao que está posto.

No âmbito cultural e social um grande desafio é a reconstrução de valores

perdidos pela cobiça do capitalismo. Um mundo cada vez mais individualizado

impera, há violência de todas as formas. Estas relações são cada vez mais

massificadas pelos aparelhos ideológicos, reforçando a invisibilidade e naturalização

das desigualdades e injustiças sociais.

A natureza dentro deste cenário é refém, e junto com ela o feminismo, e

assim é preciso serem repensados, problematizados em todos os níveis, apesar de

uma evolução em termos de espaços de discussão como este e outros tantos, que

porém ainda são pontuais ou insuficientes para a reafirmação do lugar da mulher

nesta sociedade. Empoderar as mulheres é também colaborar para com o

enfrentamento e superação da violência contra as mulheres, é melhorar a economia

local e regional.

Recuperar o “ser mulher” nesta perspectiva é fundamental, isso no individual

e no coletivo. A auto estima perpassa questões superficiais, vai além, alcançando o

senso crítico das envolvidas. É preciso discutir a sexualidade, afetos, gostos,

identificação e recuperar a autonomia sobre o próprio corpo: É O ESTAR

EFETIVAMENTE NAS SITUAÇÕES DE DEFINIÇÃO.

4) Grupo de Quebradeiras de Cocos-Nordeste: Lutar contra os latifundiários a

partir de 1992, inicialmente a partir dos Sindicatos, onde saíssem do espaço

destinado aos “informes”. É muito complicado assumir esta luta, não ter apoio

político é um grande desafio. Sem condições ainda estão lutando, muitas vezes

para a sociedade ainda é insignificativa a inserção desta ação produtiva

enquanto organização econômica e política, mas para quem é quebradeira de

coco no Maranhão muita diferença ela percebe, só de poder participar de um

momento de discussão política com os que os diversos MS articulam já é um

grande avanço.

A mudança de vida é um processo cultural que não se aquebranta de um ano

para o outro, de um momento a outro. A visão das mulheres envolvidas nesta

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experiência ainda não consegue alcançar determinada imersão da realidade pela

própria condição que até então lhes foi imposta.

O envolvimento da juventude para a continuidade desta herança cultural é

uma questão que preocupa este coletivo, a renda não é atrativa, o mercado não

absolve a produção, a comercialização tem estes entraves: uma cultura que corre

riscos de se perder devido ao desinteresse das futuras gerações, que não se

interessam pela arte devido às diversas situações sociais, além das condições reais

de vida no campo e nas florestas.

Apesar disso, há mudança entre as que estão neste processo, falando

primeiro e depois nas formações, na organização da comercialização, articulando na

medida do possível estas duas dimensões de forma pedagógica. Já há uma

valorização na identidade e na produção de conhecimento e vida. Babaçu livre: esta

é a luta destas mulheres, uma política pública que pode lhes garantir a renda.

O latifúndio ainda é um enfrentamento. E a liberdade conquistada neste

contexto é motivo de cobrança e discriminação da sociedade como um todo, muitas

vezes da própria família, o envolvimento de uma mulher camponesa nestas

condições é um desafio! O saber do trabalho e da vida precisa estar aliado ao saber

da escola, esta tem que viabilizar aquela, como isso não acontece continuam as

contradições e dificuldades. A autonomia é uma busca e luta diária.

5.1.2 Debates

ANA: A caminhada trilhada pela organização das mulheres, mesmo que de

maneiras distintas, a partir destas experiências de resistência, de luta/enfrentamento

e de “inéditos viáveis”, se fez com um investimento pessoal e coletivo que não é

barato. Por isso mesmo que muitas companheiras ficaram pelo caminho, mas nem

mesmo por isso o coletivo pelo feminismo desiste.

É um processo repleto de dificuldades que precisam ser registradas. As

sistematizações trazem estas realidades em muitas experiências, endossando os

depoimentos compartilhados. A expropriação do fruto da sua força de trabalho é

uma prática que insiste e persiste entre as relações societais, e é o que junto com

toda a ação de desvalorização da atuação das mulheres frente à participação

política desestimula e traz consigo toda uma violência simbólica real.

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GTM/ANA: A sistematização surge neste diálogo como uma estratégia de

formação política e pedagógica. A perpetuação das desigualdades de poder frente à

participação política feminina ainda é uma constante. A invisibilidade do trabalho das

mulheres também se repete nas variadas experiências: divisão do trabalho em foco.

A luta pela autonomia perpassa o econômico, precisa ser política e de

mudança de postura na sociedade. Que autonomia é essa que desejamos produzir:

agronegócio, autogestão - é a mercantilização da vida. É através da ressignificação

do que está se fazendo que se pode perceber se de fato é emancipador ou colabora

com o que está posto. A luta coletiva também é muito forte nas discussões, sem

perder de vista o indivíduo singular.

Problematizar e ampliar o conceito de trabalho e economia: como garantia de

criação e recriação de vidas. O modelo de família define um pouco o custo da

liberdade de participação e de autonomia, isso porque os moldes predominantes

ainda são tradicionais entre o patriarcal e o machista. Em uma perspectiva global, o

cenário na América Latina não é diferente, considerando as falas e as experiências

de vida de militantes de várias partes desta porção da sociedade.

As mudanças que pretendemos para a vida em sociedade vão para além de

situações de paridades políticas, adentram a sexualidade, o corpo e o ser. É preciso

pensar no que fazemos. O que temos posto jamais dará conta de tudo isso, é

preciso de estratégias bem mais amplas, pois o cerceamento está em todos os

espaços e níveis da sociedade.

5.1.3 Discussões na Plenária

Muitas vivências compartilhadas são tão presentes no dia-a-dia de muitas

mulheres que ainda hoje se vê uma relação de desvantagem de um sobre o outro. A

comercialização tem na DAP um poderoso subterfúgio estatal de negação à vida

digna. A questão da identidade precisa ser retomada, nas formações, como

estratégia de construção e reconstrução de que somos sem que outros nos digam,

mas que tenhamos propriedade desta certeza.

A dimensão do trabalho e sua divisão dentro da dinâmica familiar ainda é de

subordinação e de redobrada acumulação de responsabilidades. Ser militante e

protagonista da própria história não está sendo colocado em discussão, nem mesmo

nas próprias conferências de políticas públicas para as mulheres. Assim sendo, aqui

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pode ser minimamente pautada esta reflexão para dentro das realidades, tanto do

campo quanto da cidade, considerando-se ainda outras dimensões étnicas, raciais,

sociais e de orientação sexual ou religiosa.

E a juventude? Nesta dinâmica do campo, o campo está se tornando idoso e

sem perspectiva de futuro. Em contrapartida, a família precisa ser repensada, até

mesmo pela situação de marginalização das mulheres, mães e filhas, dentro de suas

próprias casas: a educação familiar, na perspectiva deste contexto, precisa ser

pensada. A teoria na realidade é outra, sendo assim ficam os desafios.

A mudança pode estar em envolver as mulheres e os jovens, por exemplo,

em propor ações práticas, construídas com a participação destes. Temas que

mobilizam estes segmentos... Buscar estes interesses é fundamental. Não se pode

crer que as formas de organizar o jovens serão idênticas às que tomamos por

certas, este segmento é diferenciado e certamente só eles é quem podem dizer o

que e como podem ser.

A atitude de autoridade de pais, neste contexto, precisa ser constantemente

revista. Outro lado da discussão traz a educação que tivemos e a que pensamos

perpetuar na educação dos filhos... A relação desigual frente à jornada de trabalho e

o usufruto desta produção precisam ser problematizados, trazendo os homens para

esta discussão.

Os trabalhadores rurais principalmente. Diante dos vários e variados desafios

muito se fez. As cisternas no semi-árido são um exemplo de avanço nesta atuação

da mulher no cenário social e econômico. Estas reflexões são para todas as

mulheres, não podem ser percebidas somente como uma questão campesina. Nesta

perspectiva, em se tratando dos diversos MS, como efetivamente podem cruzar suas

agendas de enfrentamento e resistência diante do que está posto?

Ao trazer estas reflexões para o interior do Grupo MUDAR o sentimento de

reconhecimento diante das experiências é significativo. Algumas socializaram

situações de exposição à violência doméstica, das quais foram vítimas, e de como

participar do MS da ES, a partir das oportunidades que o Grupo teve nos momentos

de formação, que fez a diferença na vida delas:

Fui vítima de violência doméstica por um tempo na minha vida e participar das discussões feitas durante os cursos e seminários feitos pela ES me ajudou a ver que eu podia sair daquela condição sufocante de medo e dor. Lá também pude conhecer outras mulheres que, como eu, sofriam algum tipo de violência, e daí juntas

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trocamos muitas experiências; como estas mulheres que contaram aqui sua história, nós também contamos e isso me ajudou a ter coragem para mudar o rumo da minha vida profissional e pessoal. Hoje o que eu mais quero é poder, com minha experiência de vida, ajudar outras mulheres que vivem na mesma situação que eu vivi um dia, a liberdade de ir e vir nos dá ânimo para enfrentar outros desafios que a vida traz, então pelo menos a vida de dentro de casa precisa ser de amparo e acolhida, não de murro e pontapés (Integrante JGC).

O que esta mulher traz é um testemunho muito forte da realidade de muitas

mulheres que precisam enfrentar “murros e pontapés” dentro de casa e ainda dar

conta de ajudar nas despesas de casa, muitas vezes jornadas triplas para dar conta

do cuidados dos filhos e da família. Nossa afirmação perpassa pela possibilidade

que é o processo de formação política realizado pela ES, como um instrumento que

problematize a realidade, realidades como estas aqui compartilhadas.

Tanto as quebradeiras de coco do Maranhão, as mulheres que participam do

MMC ou em Borborema, ou em Mato Grosso e no Grupo MUDAR, são testemunhos

de que é importante estar mobilizada em torno de um sonho, e que para lutar por

este sonho precisa estar preparada, organizada para este enfrentamento.

As experiências sistematizadas e socializadas aqui não foram dadas, mas

construídas e, portanto, são possibilidades, sem nada pronto e acabado, mas em

continuidade/transição. É a força que conquistamos dentro do MS, da militância, de

enfrentamento e resistência é o que pode fazer a diferença em muitas realidades.

Problematizar a autonomia relativa conquistada nesta caminhada deve ser

considerado enquanto material pedagógico de reflexão sobre a realidade: o que nos

serve pensando e repensando o vivido, pois nada é doado, tudo é luta e conquista.

O fazer-se diário das mulheres no Grupo MUDAR nos ensina justamente isso,

que a doação está na imensa esperança que elas depositam nesta proposta de

construção de uma nova realidade possível. Onde se problematiza o que está posto

e se verifica muitas e muitos somando esforços, tempo e desejo para quebrar o fio

elástico e resistente do Capitalismo que nos engessou das cabeças aos pés. Diante

disso há alternativas:

Participar do grupo MUDAR é como um combustível, algo que me impulsionou a me movimentar perante as minhas possibilidade, me mostrou que as coisas acontecem se realmente queremos, corremos atrás e temos o apoio daqueles que têm condições de realizá-las. Me possibilitou conhecer pessoalmente e articular sem nenhuma dificuldade com as pessoas importantes no âmbito político, social e

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de diferente colocação social da minha. Mas que dividem conosco os mesmos ideais de vida - mudar a minha realidade e a dos que vivem à minha volta (Integrante HGN).

Este “combustível” é o que pode ser o diferencial na proposta “libertadora”

dos diversos MS que articulam o povo; a ES, neste contexto, é um destes que

alimentam e retroalimentam esta força propulsora adormecida dentro de cada

pessoa através de sua proposta e princípios. Como Freire diz, é a nossa condição

de seres históricos e intra-históricos, de seres “inacabados” e em um constante “por

vir”; em uma constante busca por “ser mais”. Esta é uma possibilidade que possui

em suas entrelinhas muitos desafios.

Todas as questões foram debatidas como forma de sintonizar ainda mais as

aproximações entre os diversos coletivos que compuseram este espaço de

construção e legitimação de bandeiras e lutas, de trabalho, de sangue, suor e

lágrima. Neste momento, muitos dos anseios foram trazidos enquanto estratégia de

pautar significativamente o Poder Público e a sociedade mais ampla, com vistas ao

reconhecimento dos direitos civis mais elementares.

As diversas conexões e redes, que em meio às discussões foram tecidas,

mostraram que é possível encontrar respostas exequíveis e que de fato podem fazer

acontecer ações concretas (ex.: Lei de Iniciativa Popular compactuada pelos

diversos MS).

O que legitima efetivamente nossa construção, enquanto proposta de cunho

coletivo e participativo é a oportunidade de ter ouvido e vivido tantos momentos

significativos juntamente com o Grupo MUDAR e com outros Grupos, Assessorias,

Gestores Públicos e militantes da cidade, dos campos e das florestas, mediados

pelo diálogo.

É sabido que tais diálogos e convergências estão para a maioria dos Grupos

como uma idéia, uma boa idéia, mas que na prática ainda não há muitas ações

significativas. Os Programas e PPs precisam ser repensados para que consigam

agir como apoiadores de experiências como as que conhecemos nestas

oportunidades e tantas outras que estão pelo Brasil a fora.

Esta é a contradição e o conflito comum às diversas organizações que

acompanham e fomentam a organização das trabalhadoras e trabalhadores, das

mulheres e dos homens. É um fazer movido por uma paixão incondicional pela vida,

pelo ser humano. Assumindo o papel do Estado em muitos momentos e correndo-se

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riscos de não chegar a lugar nenhum, devido às diversas manifestações de

corrupção existentes no mundo do “mercado”.

Para além destes aspectos maiores, que dificultam os processos de

humanização das relações em sociedade, há os que nesta pesquisa ficaram

evidenciados. Aspectos que podemos classificar como mais circunscritos, mais

particulares e locais.

Dentro da esfera do mais próximo ao cotidiano dos EES, percebemos o

desafio que o Grupo MUDAR enfrenta no processo de se afirmar no espaço político

do MS da ES, enquanto um Grupo coletivo e solidário, um EES da ES tanto quanto

qualquer outro, quer seja informal ou formal, quer tenha um fluxo financeiro estável e

estabelecido, ou não.

É possível perceber nas entrelinhas das relações entre os segmentos que

compõem a ESS, nesta experiência, uma cisão delimitada muitas vezes por

interesses políticos e culturais. A linguagem privilegiada entre estes atores durante

os diversos momentos formativos, portanto, durante os processos de formação

política e pedagógica, é um dos elementos a que podemos aqui dar destaque.

As Instituições que representam o segmento de Assessoria por vezes

sinalizam certa confusão em relação aos conceitos e práticas da ES. Esta, por sua

vez, com o passar do tempo se amplia e estes conceitos precisam ser revistos com

muita frequência.

É tudo muito rápido, e sabemos que dentro de um processo de produção de

conhecimentos é necessário um tempo diferenciado, a depender dos

condicionantes, das realidades e dos próprios campos de estudo. Tudo isso

colabora com o cenário de atritos entre a linguagem (discurso) e práticas da

academia (Instituições de Ensino) e a utilizada pelas/os trabalhadoras/es.

Esta nos parece ser uma questão que necessita de um “olhar” amiúde,

cuidadoso e cauteloso. A identidade de uma pessoa, de um grupo ou qualquer

instituição é algo muito singular. Pelo percebido, o que acontece, por vezes, é que

esta dimensão, que deveria ser inviolável, é questionada e, pior, desvalorizada

através da linguagem e postura de algumas pessoas que estão à frente de

Instituições de ensino, ou enquanto Gestoras/es Públicas/os.

De maneira simbólica ou não, isso está evidenciado em diversas falas das

integrantes do Grupo MUDAR. Acredito que esta discussão mereça um debruçar

mais sistemático, com um tempo mais apropriado para a compreensão das

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dimensões políticas existentes entre estes atores, buscando aí uma compreensão

de tal fenômeno.

Pois bem, em se tratando de finalização encontramos um dilema, é o dilema

da impossibilidade da percepção fechada, pronta e acabada. Enquanto se percebe

todo este processo em um eterno “vir a ser”, inacabado, inconcluso e ainda aberto,

vivo e repleto de possibilidades, fica ainda mais o sentimento de impossibilidade de

se inserir o ponto final.

Diante de tão profundas reflexões, de perspectivas e horizontes tão

entrelaçados, ao ponto de tomarem proporções inimagináveis na vida pessoal e

profissional de muitas pessoas que participam destes MS, fica a surpreendente

sensação de que nada pode ser mais importante do que quem somos (identidade

pessoal e coletiva) e o que articulamos em comunhão, para fazer a diferença em um

mundo tão adverso.

Apesar da grande satisfação de se ter feito parte significativa desta história de

luta e resistência, e considerando-se todas as questões de conflitos e contradições,

limites e possibilidades, sentimo-nos por vezes impotentes diante desta realidade.

Estas relações estabelecidas precisam ser continuadamente alimentadas e

realimentadas dos desejos mais elementares da amorosidade à humanidade, que é

preciso ter dentro de nós.

Não temos a ingenuidade de acreditar que ainda assim nossas lutas e

bandeiras ultrapassem a linha transcendental necessária à humanização de nós

mesmos e dos “outros”. Porém, temos sim, a fé que de outra forma dificilmente se

pode fazer a diferença necessária a este processo.

O Grupo MUDAR nos ensina, ao mesmo tempo em que aprende, que a coisa

mais importante que levam de tudo isso é o reconhecimento do potencial que

possuem suas individualidades, e que a situação concreta de suas vidas diante

desta constatação se tornou posse de suas próprias decisões:

Significou muito cada momento que tive a oportunidade de conhecer, tanto na teoria quanto na pratica, sobre o que é economia solidária. Fez diferença na minha forma de encarar o mundo, hoje sei que posso mudar minha realidade se tomar conhecimento do que está à minha volta, e se nesse percurso estiver acompanhada de muitos, que com o mesmo intuito mudaremos a comunidade, gerando possibilidades a todos (Integrante HGN).

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Esta percepção, registrada nas falas, nos semblantes e na superação de

muitas situações conflitantes, deixam em evidência também a necessidade de

estarem constantemente em alerta, através de um processo continuado de

participação ativa em prol de sua organização, mesmo que com muitos desafios

devido às duplas e triplas jornadas de trabalho.

Sabem que sabem, mas também sabem que não sabem tudo e que não

precisam saber tudo, mas que é importante perceber as possibilidades diante dos

desafios que estes conhecimentos possam representar na vida cotidiana:

Pelo pouco que pude conhecer a ES é muito importante, embora seja um pouco demorada, mas nunca deixou de me despertar interesse, vontade de participar, mais e mais. Participar do grupo foi de muita ajuda para a auto-estima, a vontade de crescer, de dividir, aprender, mostrar o que sabia, troca de conhecimento, ou seja, mudar minha vida social. Aprendi a interagir mais com as outras pessoas e isso, consequentemente, melhorou o meu profissional. Muito obrigada pela oportunidade (Integrante SM).

Os conhecimentos construídos fortalecem a pessoa como agente ativa dentro

deste processo todo. O que a SM diz é, em sua simplicidade, isso. A auto-estima é

fundamental no processo de valorização pessoal, tão necessário ao reconhecimento

de si como pessoa importante e fundamental para todo e qualquer projeto pessoal

ou coletivo de mudança.

Neste percurso, nossa dupla, tripla e até quádrupla atuação frente aos

processos sociais do MS da ES e em pesquisas na UFMT, durante este percurso, foi

fundamental. O distanciamento se deu na medida em que precisamos estar ativas

dentro de diversos outros MS ao mesmo tempo.

As identidades de cada um exigiam determinada concentração e poder de

abstração para o necessário movimento de voltar-se ao fenômeno em questão, ou

seja, era preciso direcionar e redirecionar esforços para o foco, para a “perspectiva”

de base destes espaços específicos e, no caso do Grupo MUDAR, para o que havia

de particular a elas em diálogo com o MS da ES na perspectiva do MT.

Este foi um exercício complexo, porém extremamente pedagógico. Sendo

mulher, filha, neta, mãe, irmã, tia, esposa, avó de coração, dona-de-casa, artesã,

EES, estudante, militante e profissional/pedagoga por vezes precisei imbuir esforços

em uma, duas ou mais destas dimensões para dar conta das inúmeras

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responsabilidades, com determinada destreza de nenhuma influenciar

negativamente a outra.

Percebemos que este movimento alucinado também era realizado por muitas

mulheres que fazem o MUDAR, esta é uma característica que se somou às rotinas

de quase todas. Após início da participação em um coletivo como o Grupo e a ES o

grande ganho, segundo elas, é a retomada aos estudos. A escolarização foi

estimulada durante os processos formativos e a maioria das mulheres voltou a

estudar.

A matemática é a seguinte: das 08 (oito) mulheres que compõem o Grupo, a

metade já cursou um curso superior, duas voltaram a estudar para concluir o Ensino

Médio e o Fundamental, três estão cursando uma pós-graduação e três fazendo

cursos de aperfeiçoamento em alguma área produtiva com vistas a melhorar a

produção do Grupo.

Neste caminhar é fato a impossibilidade do total desprendimento do vivido,

das impressões e dos juízos e prejuízos que o mundo por si só já nos coloca;

segundo Merleau-Ponty, crer nesta possibilidade seria uma negação ao movimento

inconcluso, intrínseco ao transcendental movimento existente entre os homens no

mundo, com o mundo e com os outros.

Esta permeabilidade subjetiva e intersubjetiva que se dá entre o mundo

objetivo e subjetivo, o material e o imaterial, possui um poder estesiológico capaz de

colocar cada ser em conexão entre si, em um ato total de correspondência, o que

inviabiliza o desprendimento total de juízos e valores, conceitos e preconceitos.

É exatamente nesta fronteira que estamos ao final deste empreendimento

coletivo. Em uma posição de abertura, de reconhecimento e aceitação de que não

podemos e nem poderemos dar conta de tamanhos desafios. A única certeza é do

constante “por vir”, em um mundo onde os diversos saberes podem e devem

dialogar e convergir.

E que somente este “inédito-viável” é capaz de mexer com as estruturas da

vida como ela está, colocando a vida como ela parece ser, em xeque-mate,

buscando nestas entranhas esperançosas nossa busca infindável pela felicidade

planetária.

Enfim, esta é a utopia das/os militantes, que ora mais, ora menos, estão em

um constante lutar; como afirma uma das mulheres do Grupo MUDAR: “através do

grupo existem pessoas, essas as quais depositam nas letras que denominam o

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nome do grupo MUDAR: ESPERANÇA, SONHOS e POSSIBILIDADES REAIS”

(Integrante HGN).

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ANEXOS

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Formação e Comercialização:

A Autogestão em Empreendimentos Econômicos Solidários em Discussão

durante I Feira de Economia Solidária em Colíder – MT

Esta atividade traz para dentro da academia todo um trabalho articulado

dentro dos MS do campo, da floresta e da cidade frente ao processo de organização

de grupos de diversos setores produtivos. O trabalho empreendido nesta

oportunidade se fez em articulação entre nossa pesquisa de Mestrado em Educação

com alguns educadores populares, colaboradores neste processo de formação.

A tentativa nesta perspectiva foi buscar dar um tom maior de integração tanto

no trabalho de articular saberes popular e científicos como o de colocar em prática,

na organização das diversas atividades que foram pensadas para este momento, a

participação coletiva. Dentro desta lógica, nosso empreendimento foi conduzido de

forma dialogada entre os participantes da oficina em questão, colaboradores e nossa

pesquisa sobre os processos de formação que ocorrem dentro do MS da ES.

Aqui compartilharemos algumas vivências de produção de conhecimentos

que aconteceram durante a I Feira Cultural da Agricultura Familiar e Economia

Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território da Cidadania Portal da

Amazônia-MT, nos dias 17 e 18/12/2010, na cidade de Colíder/MT.

Os temas centrais nesta formação trazem as dimensões da Comercialização

e Formação como estratégia para a construção de vivências da autogestão. Esta é

uma das muitas contribuições possíveis que podem ser compartilhadas sobre este

processo, fazendo parte significativa de toda uma história de luta e resistência de

pessoas que tentam, de forma coletiva, encontrar estratégias de enfrentamento e

superação ao que está posto na sociedade.

Autogestão um dos Princípios da Economia Solidária

Autogestão, um conceito que faz parte dos princípios suleadores da

Economia Solidária é parte integrante da linguagem da Agricultura Familiar (AF) e

dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) do campo, da floresta e da

cidade na perspectiva de incentivar, reforçar e fomentar todo um trabalho em prol de

objetivos comuns e solidários.

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Este trabalho faz parte do resultado de um workshop sobre Autogestão em

EES realizado por ocasião da I Feira Cultural da Agricultura Familiar e Economia

Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território da Cidadania Portal da

Amazônia-MT, nos dias 17 e 18/12/2010.

O referido evento sediado em Colíder-MT, reuniu diversas Associações e

Cooperativas de vários municípios com o objetivo de socializar a produção, trocar

experiências, mas, principalmente, para criar uma teia de relações entre os

produtores de modo que um contribua com o desenvolvimento do outro por meio da

ajuda mútua.

O sucesso do evento só foi possível mediante as parcerias que se

estabeleceram entre empreendedores, gestores públicos e MS, articulação que

nesta região já se tornou uma realidade. Se fizeram presentes muitas Associações,

Cooperativas e Grupos informais de toda a região Norte e algumas da região da

Baixada Cuiabana.

As relações tecidas durante as oficinas evidenciaram que já existe uma

estreita combinação entre os membros dos EES e Assessorias (sindicatos e

pastorais) em virtude dos encontros anteriores e das oportunidades de vivências que

foram viabilizadas por pessoas, MS e órgãos interessados em promover a produção,

distribuição e comercialização de produtos de boa qualidade por preços justos, cujo

retorno é creditado diretamente para o produtor.

E para, além disso, há toda uma valorização da identidade cultural destes

agricultores/as familiares, campesinos, quilombolas ou indígenas. As pessoas

envolvidas neste evento acreditam que é possível uma nova economia, que a

produção organizada pelos princípios da Economia Solidária pode propiciar mais

qualidade tanto nos produtos quanto nas relações e na vida das pessoas para a

preservação ambiental e para a melhoria da qualidade de vida.

A postura assumida para compreensão dos sentidos e significados tem a

fenomenologia como lente para as leituras desta realidade, pois a percepção dos

fenômenos se dão tão somente sob uma visão parcial do todo:

Construímos a percepção com o percebido. E, como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro. Estamos presos no mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo (MERLEAU-PONTY, 1994 p. 26).

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Para dar início aos trabalhos propostos, cada participante apresentou-se

orientados pela dinâmica dos “SONHOS”, falando seu nome, sua comunidade,

município, EES de origem, sua posição na organização do Grupo e, finalmente,

falava do seu sonho. A maioria falou que seu sonho era contribuir para que a sua

comunidade se desenvolvesse e que conquistasse tudo que fosse possível para

melhorar a sua vida no local, bem como dos seus familiares e demais moradores.

Cada um expôs o seu ponto de vista de acordo com o seu modo de se

expressar, porém, a essência do seu posicionamento tinha a conotação de que

todos pensam na permanência e bem estar dos membros de suas respectivas

comunidades. Algo de fundamental importância é que a maioria das pessoas mais

idosas não nasceu na terra onde estão.

Alguns vieram do Sul, outros do Nordeste ou de alguns municípios do próprio

Estado de Mato Grosso, entretanto, todos pensam em ter melhores condições de

estudo e trabalho para os mais jovens para que fiquem na comunidade e não

precisem sair de lá para estudar e trabalhar fora, e os jovens reforçaram esta

necessidade.

As pessoas presentes já haviam participado de algum evento relacionado ao

MS da Economia Solidária e todos são produtores em busca de alternativas para

uma vida diferente da que tiveram antes ou até agora. Os presidentes das

Associações que ali estavam representando seu grupo já estiveram em algum

momento participando de reuniões para tratar dos interesses da comunidade, estão

envolvidos há muito tempo, já falam das conquistas e das lutas que tiveram para

alcançar objetivos comuns.

De alguma forma este coletivo foi despertado pela necessidade de

envolvimento em ações mais efetivas para o desencadeamento de compromisso dos

agricultores em seu desempenho político na comunidade: “quanto mais as massas

populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem

incidir sua ação transformadora, tanto mais se “inserem” nela criticamente” (FREIRE,

1987, p. 22).

No diálogo que foi sendo construído durante a dinâmica de apresentação, ao

mesmo tempo em que foi possível ouvi-los falando de seus anseios e necessidades,

além das experiências de participação em espaços diversos, foram sendo feitas

observações e relações entre as suas falas e a temática que estava sendo exposta

no centro da proposta de trabalho, a autogestão.

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Assim sendo, em seguida foi lida e interpretada a proposta de trabalho para

este momento, enfatizando-se o tema geral: “Autogestão em Economia Solidária”,

cujos objetivos são: Compreender o conceito de autogestão bem como a sua

importância para o desenvolvimento da cultura de reciprocidade, cooperação,

contradição, e desafios para superação dos obstáculos em coletividade; Situar-se no

contexto da sua comunidade delineando os próximos passos a seguir frente aos

seus próprios desafios.

A organização deste evento por si só já demonstra determinada organização

para os processos autogestionários, os quais pressupõem gestão coletiva e

participativa em várias etapas dos processos de construção. Nesta perspectiva, a

Prefeitura Municipal de Colíder-MT em parceria com diversas Instituições

Governamentais e não Governamentais como a UNEMAT, CUFA, Instituto Marista

de Solidariedade - IMS, Rede Matogrossense de Educação e Sócio Economia

Solidária - REMSOL, UNISOL Brasil, Instituto Ouro Verde – IOV e com os produtores

rurais organizados; parcerias em ação que colocou de forma bem positiva a

integração nesta ação entre o Poder Público local, Instituições e os MS.

No segundo momento da atividade foi feito um histórico sobre o

desenvolvimento do capitalismo, no concernente à produção em série e as relações

trabalhistas que se estabelecem neste sistema político e econômico, a expropriação

da possibilidade do homem de usufruir os resultados do seu próprio trabalho, a

perda da identidade e subjetividade que caracteriza a sua produção e a

incorporação de uma atitude de individualismo e objetividade que pode prejudicar a

vivência em comunidade e a posição de parceiro e cooperador na busca de

resultados comuns e solidários.

Esta retomada fez com que todos percebessem que realmente, de uma forma

ou de outra estão envolvidos com esta condição de estar na sociedade, que o

trabalho que desenvolvem apesar de todas as dificuldades, além de suprir às suas

necessidades lhes dão prazer de viver.

É possível perceber-se que aqueles que já fazem parte dos MS falam uma

linguagem que se identifica com a proposta da Economia Solidária, isto de certa

forma influencia os demais, de modo que pode ocorrer uma empatia no trato com a

questão. A participação ativa neste sentido contribui com a consciência crítica:

O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos. Mas, como não há homens sem mundo, sem realidade, o

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movimento parte das relações homem-mundo. Dai que este ponto de partida esteja sempre nos homens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que se encontram ora imersos, ora emersos, ora insertados. Somente a partir desta situação, que lhes deter-mina a própria percepção que dela estão tendo, é que podem mover-se (FREIRE, 1987, p. 42).

Este “mover-se” é o que muitos grupos que participam dos diversos MS estão,

na medida do possível, tentando fazer. É importante sempre se ter muito cuidado ao

se “olhar” todo este processo de construção e reconstrução que se dá em alguns

processos de formação dentro da ES ou em outros espaços de organização popular.

É um movimento que não é bem acolhido nesta sociedade, fazer mercado de

forma diferenciada da lógica vigente se é um processo que ainda estamos

desbravando, assim sendo é preciso a sensibilidade perante algumas resistências,

não as acolhendo como limitadoras mas enquanto desafios.

Nesta perspectiva, foi abordada a importância da necessidade de

transformação na cultura das relações sociais e de trabalho das pessoas que se

propõe a transformar o seu modo de ver e de viver numa comunidade cujas ações

sejam pautadas na participação, cooperação e solidariedade.

Tendo em vista que esta mudança precisa ser tanto individual quanto coletiva

ela precisa ser percebida enquanto processo, podendo ser a princípio de tolerância

pelas limitações do outro e gradativamente, através de muita problematização, o

reconhecimento dessa realidade, tendo em vista que todos têm suas fragilidades e

seus potencias a serem considerado.

Os dois temas a serem evidenciados nesta formação como uma das

condições necessárias para a mudança de concepção sobre si mesmo, o outro e o

trabalho, foram contradição e conflito, os quais foram apresentados de maneira geral

e encaminhados para discussão em dois grupos. Cada grupo deveria conceituar

contradição ou conflito e estabelecer uma relação com as contradições e conflitos

existentes nas suas comunidades e instituições.

Durante essas reflexões percebeu-se a necessidade de estabelecimento de

atitudes a serem tomadas frente a estas situações para que juntos possam superar

os obstáculos que às vezes se interpõem a realização das ações, e principalmente,

aos relacionamentos amistosos e solidários que devem ser praticados entre os

membros das associações.

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Os membros de cada grupo chegaram ao consenso de que ambos os termos

tem características comuns e específicas e que, a contradição pode levar ao conflito

se não houver um diálogo, mas que ela vai estar sempre presente nas relações

tendo em vista que, mesmo que um grupo tenha objetivos em comum cada membro

pensa de uma forma diferente. Assim sendo, há necessidade de se chegar ao

comum acordo por meio do conhecimento e análise das condições que possam

levar à superação da dificuldade.

As discussões levaram os presentes a observar que neste âmbito eles

reconheceram que jamais estarão isentos de vivenciar situações contraditórias e

conflituosas tendo em vista o diferente que é justamente o que nos impulsiona a

crescer frente às diversidades da sociedade.

Toda essa organização foi feita sem perder de vista as limitações e as

possibilidades que existem em função das conquistas que já foram feitas, mas,

principalmente, os conflitos que existem também, que por sua vez foram objeto de

discussões e retrocessos nas caminhadas no concernente a produção e

comercialização, bem como na formação continuada dos artesãos e produtores

rurais.

A comercialização dos produtos tem sido prejudicada por uma série de

questões, porém, nesse encontro, dada a seriedade e amplitude do mesmo, foi

possível estabelecer alguns parâmetros a serem considerados pelos sócios

produtores, que estarão avaliando continuamente suas ações e os seus resultados.

Finalmente, o evento foi avaliado nos seus aspectos mais amplos no sentido

de dar bases para um re-planejamento das ações, um repensar individual e coletivo,

percebendo os desafios e as possibilidades. Foram vários os aspectos indicados

como prioritários para uma vida e produção solidária na comunidade. Por exemplo, o

fato de ter pouca participação dos associados às reuniões, houve ainda o

reconhecimento do seu potencial produtivo.

Foram evidenciados os aspectos concernentes à possibilidade de o grupo

aprender mais para compartilhar com a sua comunidade, conviver mais com o

conhecimento de outras pessoas e poder contar com a contribuição que cada um

pode dar ao movimento e renovar as forças para continuar na luta pela melhoria da

produção e das relações entre os produtores.

Vale ressaltar que as histórias de vida de cada um dos EES da feira, no

momento de comercialização e troca de produtos e saberes que fez parte do evento

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– FEIRA DE TROCAS, trás as marcas de suas lutas em busca determinada para

transformação de alguma situação insustentável. A libertação dos labirintos criados

pela sociedade para impedir o avanço pessoal e coletivo de cada trabalhador/a

constitui-se em um novo caminho ou talvez como disse Tiago de Melo, não um

caminho novo, mas, um jeito novo de caminhar.

Marketing em Empreendimentos Econômicos Solidários

Um dos grandes temas para debates atualmente nos micro e macros

empreendimentos tem sido a questão da divulgação dos produtos e serviços que

estão sendo prestados em qualquer área do trabalho humano, ao ponto de serem

empreendidos amplos estudos e pesquisas sobre esta temática. Neste trabalho será

tratado justamente sobre este assunto ligado aos EES da ES.

Esta atividade foi desenvolvida durante a I Feira Cultural da Agricultura

Familiar e Economia Solidária da Região Extremo Norte de Mato Grosso Território

da Cidadania Portal da Amazônia, no município de Colíder/MT, no mesmo período

foram desenvolvidas várias oficinas e exposição de produtos da Agricultura Familiar.

Um dos temas abordados e que compartilharemos neste momento trata-se

justamente do Marketing em EES.

É importante destacar que esta atividade, como a anterior, foi pensada de

forma coletiva entre os atores da formação. A articulação desta vez foi com algumas

educadoras do campo que participam da ES de forma articulada com outros MS e a

nossa Pesquisa. O diálogo estreito entre a ES e a AF foram decisivas para esta

aproximação. Isso reflete a ampla dimensão destes MS que extrapolam possíveis

horizontes de atuação.

Marketing em Economia Solidária e Agricultura Familiar

A oficina teve início com o acolhimento e uma dinâmica para despertar os

participantes para a temática que seria desenvolvida a seguir. Uma apresentação

entre os membros do grupo que deveria apresentar-se em duplas ouvindo apenas

as dicas que seriam comandadas pela facilitadora. Nas costas cada um teria uma

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tarja com o nome de um determinado personagem, o qual seria identificado pelas

características particulares da pessoa.

Assim se fez com bastante entusiasmo das duplas quando cada um tentava

cumprir a sua tarefa da melhor forma possível. Em seguida todos ficaram à vontade

para retomar aos seus lugares na sala.

Inicialmente foi contada uma história que tem sido veiculada pela Internet a

qual é uma paráfrase de escritos de Leonardo Boff, sobre a águia e a galinha,

contudo a intenção era fazer o contrário, desmistificando esta lenda e resgatando a

“dignidade da galinha”.

Segundo o autor uma simples comparação entre a galinha e a pata faz com

que seja possível que alguns empreendimentos não tenham um bom resultado ou

não perdure por muito tempo no “mercado”.

A pata põe ovos como a galinha, no entanto comemos mais ovos de galinha

do que de pata, apesar de os ovos desta serem maiores e bem mais nutritivos. Essa

analogia mostra que, o fato da galinha anunciar o seu produto faria com que ele

tivesse mais procura e maior consumo. Enfim, esta pequena “estória” serviu para

introduzir de maneira lúdica e simples a dimensão da propaganda para os

Empreendimentos.

A instituição que anuncia sua produção, a forma como o faz, a insistência,

persistência e regularidade no “mercado” é um dos indicadores primordiais para a

sobrevivência de qualquer empreendimento que pretenda abranger um público e

fazer a diferença em qualquer espaço.

Ao serem questionados sobre a forma de abordagem todos os presentes

fizeram uma intervenção, cada um ao seu modo quis dizer que realmente fazia

sentido e ninguém ali gostaria de fazer parte de um empreendimento com as

características da “pata”.

Pelo visto realmente quem atendeu ao chamamento para este e outros

eventos dessa natureza é porque está disposto a divulgar os seus produtos, e

apesar de todas as dificuldades não perdem a oportunidade de mostrar o que são

capazes de fazer.

Os AF e os Grupos de EES da cidade ali presentes são de várias origens, de

Municípios e Estados diferentes, porém, todos têm objetivos comuns, buscar uma

nova forma de viver em sociedade, outra economia, cujos parceiros tomem por base

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os princípios da ES de autogestão, democracia, cooperação e emancipação dentre

outros e assim se construir uma nova lógica de “mercado”.

O Mercado Social e o Trabalho Solidário

O mercado social é essencialmente diferente dos outros dois. “Nesse caso, a

relação de troca é obtida por meio de custos e benefícios sociais” (FONTES, 2008,

p. 24). Isso significa dizer que representa a adoção de comportamentos, atitudes e

valores que beneficiam tanto o indivíduo, quanto a sociedade.

O lucro e o produto são socializados, mas não são fáceis de ser obtidos, já

que representam ganhos e custos de valor intangível. “Os benefícios relacionados

ao prazer e às necessidades básicas, no caso dos mercados comercial e

assistencialista, são mais tangíveis em curto prazo do que os relacionados à

melhoria de qualidade de vida” (FONTES, 2008, p. 31).

Assim se fez a oficina com base no marketing que considera a aprendizagem

das novas formas de se divulgar preservando o meio ambiente e cuidando da

qualidade do produto, sem perder de vista que tudo deve estar centrado voltado

para o ser humano e a sua qualidade de vida.

Nesta perspectiva, pôde-se refletir sobre a dinâmica desta dimensão onde o

Mercado Social certamente representa o principal contexto de atuação da ES, visto

que o seu principal produto é social: o trabalho solidário. Isto é, o trabalho solidário

representa um comportamento, de cuja prática dependem as relações humanas

como um todo, é inerentes às relações de trabalho e ao processo produtivo, intra e

inter empreendimentos, organizações sociais e outros agentes econômicos, políticos

e sociais, entre estes as três esferas de Governo.

Neste ínterim, a solidariedade representa a cidadania como processo ativo e

emancipatório, abrangendo “as dimensões político- participativa e econômica-

produtiva” da sociedade. Foi possível verificar na prática as reflexões e

conhecimentos construídos pelo grupo em sala, durante a Feira de Trocas

organizada pela equipe do Evento. Durante este momento as trocas de produtos e

experiências enriqueceram todo trabalho desenvolvido na teoria.

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Mesmo o foco do trabalho sendo algo específico como o Marketing nos EES

do campo e da cidade, as trocas de experiências durante a Feira de Trocas no

espaço onde eles iriam comercializar os produtos, foram significativas para além

desta dimensão. Este é o exemplo de uma iniciativa criativa, o “inédito viável” em

ação.

Estratégias na Composição de Custos em Empreendimentos Econômicos

Solidários: Uma Experiência de Pedagogia da Alternância -

Escola Do Campo em Diálogo com a AAFERG

Esta experiência traz para nossas discussões uma possibilidade real de

integração entre os saberes da terra e os saberes da academia. De um lado a

sabedoria popular que é comum em meio aos modos de produção de vida e cultura

da AF, de outro a aproximação dos Centros Acadêmicos que detêm o conhecimento

histórico formal.

Nesta perspectiva, foi pensado em desenvolver algumas ações estratégicas

de aproximação entre a Escola Municipal do Campo São José e a Associação dos

Agricultores Familiares e Extrativistas da Ribeirão Grande (AAFERG). A primeira

está localizada na Comunidade de São Manuel, há 40 km da sede do município de

Nova Mutum-MT, distante cerca de 80 km do Acampamento dos Projetos de

Assentamento da Gleba Ribeirão Grande, região onde funciona a segunda, sendo

que sua sede está localizada na Comunidade Rural de Maria de Oliveira.

Tendo em vista ampliar e fortalecer as possibilidades de construção coletivas

e participativas, esta atividade dentro dos processos de formação em ES que se dão

em vários momentos, seja durante as Feiras de Economia Solidária e Agricultura

Familiar ou em eventos e espaços diversos, também foi pensada de forma articulada

entre nossa pesquisa de Mestrado e a Comunidade envolvida. Estamos falando de

algumas colaboradoras que são pessoas ligadas direta ou indiretamente com grupos

que participam de alguns MS do campo ou da cidade, e que estão inseridas nestes

contextos.

Estas pessoas de uma forma geral são trabalhadoras e trabalhadores do

campo ou da cidade que se interessam de forma diferenciada pelo processo de

produção de conhecimentos na medida em que percebem que esta dimensão pode

colaborar para com o fortalecimento de seu grupo social. Assim sendo, esta é uma

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experiência que traz para o diálogo sobre os processos de organização da produção

e comercialização da AF a Escola do Campo e a Comunidade local organizada

através da Associação dos Agricultores Familiares e Extrativistas da Gleba Ribeirão

Grande (AAFERG).

A aproximação entre estes dois espaços políticos se dá a partir do interesse

de alguns membros destes coletivos que, de uma forma ou de outra, acreditam

nesta enquanto uma possibilidade de fortalecimento destes segmentos em seus

espaços de ação haja vistas que cada uma em sua função social específica co-

existem em um mesmo espaço de forma não articulada.

Entendemos a relevante importância das Escolas do Campo, símbolo de

resistência do campo e um considerável instrumento político pedagógico desta

resistência e enfrentamento das mazelas que o atual Sistema maximizou através do

empobrecimento de vidas e continuadamente o promovem em todos os espaços da

sociedade. Nos campos e nas florestas esta situação se assevera ainda mais em

nome de um desenvolvimento que se apropria de cada pedacinho de esperança por

uma vida melhor das pessoas que fazem estes espaços.

Entendemos também que o fortalecimento desta Instituição só poderá se dar

a partir do momento em que a vida do campo definitivamente adentrar suas paredes.

Uma possibilidade que esta experiência entre outras apontam, é o de estreitar o

diálogo através de um trabalho integrado e articulado entre o trabalho desenvolvido

nestas Escolas e as ações que as Associações de Produtores Rurais locais já

realizam através da sua atuação junto aos MS e Instituições diversas que

normalmente atuam nestas realidades com vistas a fortalecer e fomentar o que o

campo tem de melhor.

Assim vimos grande oportunidade de se viabilizar concretamente este sonho

“viável” a partir da disposição que algumas educadoras do campo, filhas da AF desta

localidade, que estão cursando o Curso de Graduação na LEdoC - Licenciatura em

Educação do Campo - ofertado em regime da Pedagogia da Alternância pela

Universidade de Brasília – UnB, no Campus de Planaltina. Antes deste momento

privilegiado já se vinha sendo buscado viabilizar esta interação/diálogo, porém sem

sucesso.

Faltava algo a mais para tanto, e este diferencial era o desejo deles próprios

em se apropriarem desta construção dialógica, esta era a oportunidade que faltava.

Não é surpresa o fato da necessária articulação entre a Educação e o Trabalho, foi a

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partir desta possibilidade que tanto a Escola quanto a AAFERG começaram a “olhar”

suas relações, ações e funções de forma diferenciada:

A partir de então começaram a serem pensadas algumas estratégias de como

colocar em prática determinadas discussões e teorias que embasam a importância

de um trabalho articulado entre Escola do Campo e a referida Associação.

A escolha por esta Unidade Escolar do campo se dá pelo fato de que a

maioria dos alunos atendidos nesta escola serem filhas e filhos de agricultores

familiares que vivem no Projeto de Assentamento da Comunidade Maria de Oliveira

além do fato de que as colaboradoras nesta atividade serem funcionárias da mesma.

A AAFERG é uma das únicas Associações da Agricultura Familiar legalmente

constituída e em atividade na região mencionada. Estas Instituições sociais co-

existem neste espaço, porém até agora de forma desarticulada entre si.

Assim sendo, este trabalho teve o objetivo de potencializar toda uma

experiência trabalhada de forma articulada entre o Tempo Comunidade (TC -

trabalhos e pesquisas realizadas na comunidade de origem dos educandos e nas

escolas de inserção/estágio) e Tempo Escola (TE - campus universitário) de duas

educadoras em formação inicial em conjunto com nossa pesquisa.

A pretensão foi promover ações significativas que contribuíssem para com a

aproximação e diálogo da Escola do Campo e da AAFERG, com o intuito da

melhoria da qualidade de ensino articulada à produção de vida dos atores

envolvidos direta e indiretamente nesta realidade.

Nesta perspectiva, foram pensadas atividades que de forma inicial

problematizam questões que atualmente estão na pauta de discussões mais amplas

na sociedade. Questões estas que também estão presentes em alguns Eixos

Estratégicos do curso do LEdoC, tais como a Transformação das Estruturas Sociais

de Produção; Soberania Alimentar e Reforma Agrária Popular; Consciência de

Classe; Igualdade de Gênero e Etnia; Juventude Camponesa e sua Identidade, e

ainda podemos incluir a Educação Popular e o Poder Popular, por ser a metodologia

privilegiada para o diálogo nesta construção.

Acredita-se que ao problematizar a realidade vivida há chances reais de

colaborar com o processo de conscientização das pessoas e de desmistificação da

realidade, neste caso dos alunos da Comunidade Escolar São José e dos demais

envolvidos nesta experiência a respeito destas e outras questões que permeiam

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nossos dias, nos campos e nas florestas, nas cidades interioranas e nas grandes

Metrópoles:

A problematização é uma epistemologia que tem como propósito a leitura das contradições, e a partir destas realizar a interpretação não somente dos contextos existentes, mas fundamentalmente projetar contextos futuros, representativos das possibilidades, portanto, da criatividade, da iventabilidade, da imaginação humana. Esta filosofia é conscientizadora e para tal terá que apreender a totalidade da realidade, portanto, a superação do pensamento reducionista, separador e isolador é um imperativo para a efetivação do pensamento relacional (ZART, 2011, p. 36).

Este pensar e repensar algumas dimensões foi proposto com base, por

exemplo, sobre os benefícios de se trabalhar a Agroecologia e a Economia Solidária

e Popular, pensando este como um primeiro passo para a sensibilização das/os

educandas/os e, conseqüentemente, dos seus familiares; das equipes de trabalho e

dos educadores da unidade escolar.

Durante o percurso desta construção coletiva houveram várias conversas

entre os atores desta história: as educadoras, suas gestoras e colegas de trabalho;

com a equipe gestora da Associação e alguns associados e a nossa colaboração.

A idéia foi articular algumas ações em andamento, neste sentido foi proposto

o aproveitamento ao máximo do TE e TC do Curso de Alternância na UNB enquanto

estratégia de valorização da força de trabalho intelectual e prático de nossas

colaboradoras.

Assim foram planejadas algumas intervenções para o TC do terceiro semestre

levando-se em consideração alguns temas já abordados pelos professores em sala

de aula, estes mencionados anteriormente. Neste caso, focou-se na produção e

comercialização dos produtos da AF a qual também foram demandas levantadas

junto à AAFERG, o que já demonstra certa semelhança com os eixos trabalhados

durante o processo de formação tanto na UNB quanto em sala de aula, o diferencial

está no diálogo com a realidade deles.

É importante destacar que foi fundamental a aproximação mais ampla com a

comunidade local organizada a partir da AAFERG e das educadoras que foram as

principais agentes do nosso elo entre estas duas Instituições, como já bem

mencionado anteriormente. É importante também colocar o cenário político em que

esta Associação se encontra.

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A AAFERG é um EES do campo e é atuante frente as articulações políticas

da ES em nível Regional e Nacional, participa da REMSOL e da UNISOL Brasil.

Estas informações fazem parte da identidade política desta organização, não

poderíamos deixar de registrar até por uma questão de valorização e respeito.

Não é nossa intenção aprofundar neste momento as estruturas destes

espaços políticos e pedagógicos de representação dos EES do campo e da cidade

do MS da ES, mas é importante socializar que ambas, com mais ou menos

competências, possuem entre suas responsabilidades a representação política, a

discussão e reflexão dos processos sociais com vistas ao seu enfrentamento e

possível transformação/superação; além da prestação ou acompanhamento de

Assessoria Técnica aos seus diversos participantes, uma de âmbito Estadual e outra

por todo o território nacional.

Nesta oportunidade, as parcerias estabelecidas para a aproximação de

ambas as realidades foi uma das estratégias tomadas a partir do diálogo enquanto

pesquisadora, educandas e educadoras do campo:

O uso da palavra parceria, hoje, é moda. Governos, empresas, organizações da sociedade civil, cada um a seu modo, todos defendem a importância das parcerias. Mais que isso, para ser (ou, pelo menos, parecer ser) moderno, no sentido de atualizado, é comum o entendimento de que, de algum modo, toda e qualquer organização tem que trabalhar em parceria. Parece até que é passado o tempo de competição, de concorrência. Agora, a voga parece ser a (re)descoberta da ação solidária. (Construções Coletivas p.31).

As parcerias realmente formaram uma rede que deram suporte significativo

para a execução desta atividade. Hoje dentro dos processos de organização de

grupos autogestionários, sejam do campo ou da cidade, a articulação entre diversas

forças é fundamental. É o que dentro da ES chamamos de parceiros, as Assessorias

(Universidades, Ong‟s, Igrejas, Instituições diversas).

Muitas experiências de formação entre os EES já acontecem com

determinada autonomia, alguns grupos se articulam, se reúnem para discutir

questões que dizem respeito às suas necessidades básicas. Entre estas discussões

já há todo um cuidado na sistematização, dimensão que em todos os momentos

formativos dentro dos processos da ES é amplamente colocado enquanto

fundamental, pois possibilita a produção de conhecimento da prática destes grupos.

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Esta já é uma conquistas da maioria destes coletivos, e nesta experiência

acreditamos que também será algo que fortalecerá as práticas destes grupos.

Problematizando as Estratégias na Composição de Custos na

Agricultura Familiar

No intuito de somarmos forças e de atuarmos enquanto mediadoras frente a

produção de conhecimentos, entre os dias 10 e 11/12/2010, realizamos um

Workshop sobre Estratégias na Composição de Custos em EES, na Escola do

Campo São José. Apesar do foco central desta atividade ser as estratégias que

envolvem a questão da produção e comercialização dos produtos da AF, a

transversalidade se fez presente nas relações e discussões estabelecidas ao longo

do processo.

Na oportunidade participaram algumas pessoas, entre elas muitas estão

envolvidas com as atividades desenvolvidas pela AAFERG desde sua criação em

2007; alguns professores e alunos que residem na Comunidade São Manuel, no

Acampamento da Gleba Ribeirão Grande e de fazendas vizinhas. Apesar de a

Escola estar localizada na Comunidade de São Manuel, relativamente distante da

Gleba Ribeirão Grande, cerca de 60 % dos alunos atendidos são filhas e filhos dos

Agricultores Familiares assentados desta comunidade:

Citado por Habermas (1997), Frobel postula que para o alcance da autodeterminação dos cidadãos numa sociedade marcada por uma multiplicidade de opiniões são necessárias a formação do povo, um alto nível de educação para todos e liberdade para manifestações teóricas da opinião e para propaganda (Juventudes - p.86).

A oficina foi organizada de modo a propiciar à todos conhecimentos relativos

aos conceitos e metodologias de gestão de custos, dentro da organização e utilizá-

los para auxiliar nas ações gerenciais do projeto de manufatura de seus produtos.

Teve-se a preocupação com a linguagem adequada para o entendimento destes.

A tônica assumida para esta proposta deu o tom de integralidade aos

conteúdos que aqui foram discutidos, isso pelo fato da mesma ter sido organizada

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tendo a Escola Rural, a AAFERG e o apoio de uma Assessoria, neste caso a

UNISOL Brasil/MT, nessa construção coletiva.

Pela perspectiva do fortalecimento da Agricultura Familiar nessa região que

se pensou em realizar esse Workshop envolvendo as filhas e os filhos dos

Agricultores, e a Comunidade escolar como um todo. A permanência do jovem no

campo com oportunidades e o fortalecimento das Instituições envolvidas, de forma

articulada. Sem dúvida nenhuma esses aspectos foram o diferencial que enriqueceu

sobre maneira as atividades propostas.

O início se deu com a apresentação de todos os participantes para que

houvesse uma sincronia e para conseqüentemente fluir o trabalho a ser realizado.

Logo em seguida, foi dado início a contextualização do que vem a ser a gestão

estratégica e qual sua finalidade, haja vista muitas das discussões e produção

científica que se tem hoje sobre gestão estratégica estão voltadas para contextos do

capitalismo. Ainda assim é possível apropriar-se das mesmas para a produção da

AF dentro do contexto da ES.

Parafraseando o posicionamento de Porter (1980), vê-se que o mesmo

descreveu a estratégia competitiva como ações ofensivas e defensivas de uma

empresa para criar uma posição sustentável dentro do empreendimento, ações que

são uma resposta às forças competitivas que o autor considera como determinantes

ao grau de competição que cerca cada empreendimento.

Este mesmo autor identificou três estratégias genéricas que podem ser

usadas individualmente ou em conjunto para criar uma posição sustentável em longo

prazo dentro de um empreendimento, as quais são: custo, diferenciação e foco,

cada uma delas tem suas próprias características e influências que podem ou não

viabilizar a produção.

Mas antes de entrar nestas dimensões teóricas realizamos algumas

atividades práticas, para que se veja nas vivências dos participantes a base de todo

o nosso trabalho. Assim o primeiro dia foi reservado para esse processo coletivo de

construção, da seguinte forma:

A escola do campo busca no campo os conteúdos a serem trabalhados em

sala de aula, através de uma atividade prática fizemos com que os alunos e

professores descrevessem no papel todos os bens que existem em sua

propriedade/casa, que muitas vezes, achavam não ter “valor”, desde os animais,

implementos a ferramentas e colocassem o preço que poderia, ou pensavam custar.

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Tínhamos como objetivo, que percebessem que tudo tem um valor e deve ser

dada a devida importância, para que ao final da produção o crédito seja positivo.

Alertamos de que tudo que é comprado para a propriedade, independente do fim,

tem que ser anotado, como também tudo que é vendido, saber utilizar de forma

correta para não haver gastos desnecessários.

Saber utilizar tudo que tem na propriedade, reconhecer que tudo que se

produz tem seu valor e teve um custo mesmo sendo “somente” a mão-de-obra e

nada deve ser retirado da propriedade sem ser agregado um valor. Para não haver

desfalque na produção, anotar todas as entradas e saídas da propriedade, no final

do mês comparar, percebendo se houve falhas ou mais gastos do que ganhos.

Fizemos um ensaio para perceberem o que gastam e o que tem como bem,

chegaram a conclusão de que não percebiam que os bens existentes na

propriedade tinham tanto valor quando colocados no papel.A mão-de-obra também

tem de ser contada como recurso, porém no fim terá um lucro maior pelo fato de na

propriedade ser utilizada a mão-de-obra da família, não havendo necessidade de

pagar alguém para realizar os serviços.

Os gastos com água e insumos, que muitas vezes também são da

propriedade, como, por exemplo, esterco de animais, água de rios e córregos

também precisam ser colocados no papel. A partir de todas essas trocas ficou

evidente para o grupo o quanto de possibilidades as suas propriedades poderiam

lhes render, como também como poderiam estar atuando em conjunto com os pais,

e os professores como colaborar com este processo dentro das aulas de forma

interdisciplinar.

Assim sendo, retomamos a dimensão teórica, e foi feita a projeção em cima

do resultado do exercício do grupo sobre as estratégias competitivas, e como isso

poderia ou não colaborar com a realidade desta comunidade. Lembrando o tempo

todo que a dimensão competitiva nesta perspectiva se dá ao nível do compromisso

com a qualidade dos produtos e tratamento dado aos consumidores, enquanto

estratégia diferenciada do mercado estabelecido no capitalismo.

A primeira é a estratégia competitiva de custo, na qual o EES centra seus

esforços na busca de eficiência produtiva, na ampliação do volume de produção e

na minimização de gastos com propaganda, assistência técnica, distribuição,

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pesquisa e desenvolvimento, e tem no preço um dos principais atrativos para o

consumidor.

A opção pela estratégia competitiva de diferenciação faz com que os EES

invistam mais pesado em imagem, tecnologia, assistência técnica, distribuição,

pesquisa e desenvolvimento, recursos humanos, pesquisa de mercado e qualidade,

com a finalidade de criar diferenciais para o consumidor.

A estratégia competitiva de foco significa escolher um alvo restrito, no qual,

por meio da diferenciação ou do custo, a empresa se especializará atendendo a

segmentos ou nichos específicos.

A adoção de qualquer estratégia competitiva tem seus riscos e suas

armadilhas. Na estratégia de custos, as principais são: a excessiva importância que

se dá à fabricação; a possibilidade de acabar com qualquer chance de

diferenciação; a dificuldade de se estabelecer um critério de controle de custos; e

que apareça um novo concorrente com nova tecnologia, novo processo e abocanhe

parcela significativa de mercado ou o mercado passe a valorizar o produto por

critérios diferentes.

Na estratégia de diferenciação, as principais armadilhas são representadas

pela diferenciação excessiva, pelo preço muito elevado, por um enfoque exagerado

no produto e pela possibilidade de ignorar os critérios de sinalização. Na estratégia

de foco o risco é do segmento escolhido não propiciar massa crítica que permita ao

empreendimento operar.

Uma ferramenta útil para sustentar a competitividade é a gestão estratégica

de custos. Segundo Hansen; Mowen (2001, p. 423) a gestão estratégica de custos

"é o uso de custos para desenvolver e identificar estratégias superiores que

produzirão uma vantagem competitiva". Sendo assim a gestão estratégica de custos

surge como uma alternativa de entender às demandas do sistema econômico com

relação as variáveis vividas nos mercados buscando a melhoria continua da

competitividade.

O conteúdo programático acima foi trabalhado com o grupo presente ao

encontro levando em consideração tudo o exposto na primeira parte do trabalho, ou

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seja, a articulação entre os saberes da prática do dia-a-dia e a teoria consultada. Em

seguida foi levantada a questão que estamos vivendo em um ambiente de constante

mudança, e é fato que todos nós atualmente precisamos estar atentos a estas

mudanças.

Portanto, tomar a decisão certa no momento certo passa a ser algo primordial

para a permanência e não ficar à margem do mercado. Em outras palavras, as

situações decisórias no âmbito profissional, podem afetar toda a comunidade

positiva ou negativamente. Neste sentido tomar a decisão correta no coletivo passa

a ser a base do sucesso, com vistas ao necessário estabelecimento de novos

olhares aos processos de produção:

Estes pressupostos apresentam algumas razões pelas quais é necessário compreender e efetivar a práxis da agroecologia, enquanto projeto estratégico da agricultura familiar, que consiste na solidariedade, na autonomia, na ética, no respeito à diversidade cultural e no protagonismo camponês. Desta forma contempla também os princípios da sócio-economia solidária, que busca uma sociedade mais justa, ética e responsável, no exercício da análise crítica da dimensão sócio-econômica do campo. A Agroecologia possui interfaces com a Educação do Campo, na medida em que a escola passa a refletir-agir sobre as crises energética, climática, ecológica, econômica, informacional e seus efeitos no campesinato. (Orientações Curriculares para a Educação do Campo no Estado de mato Grosso, 2010: p.24).

Com base nesse contexto e dando continuidade aos trabalhos foi feita pelos

participantes a apresentação de como eles acreditam que podem participar em suas

propriedades de forma que a coletividade possa fortalecer essa dimensão do

processo produtivo. Levando em consideração o trabalho realizado na AAFERG,

onde o processo produtivo é realizado coletivamente, orientado pelos princípios da

ES, entendemos que este momento foi o ponto alto da oficina.

O trabalho coletivo não é um processo simples, as experiências trocadas a

respeito de uma dimensão técnica e prática como é a questão das estratégias na

composição de custos colocou em evidência que para se chegar à um resultado

comum é preciso estar em constante formação, pois as idéias, os costumes e

interesses que extrapolam o controle do Grupo em si são muitos e é preciso estar

preparado para tal enfrentamento e correlação de forças

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Apesar de que ao final da oficina, ao fazer um protocolo verbal, em que a

maioria percebeu que muitas vezes não tem noção de quanto gastam e quanto

lucram na propriedade justamente pelo fato de não anotarem as entradas e saídas,

o que faz com que o produtor ache que está obtendo lucro e pode estar tendo

prejuízo, ou vice versa; foi possível tirar alguns encaminhamentos entre as/os

filhas/os dos/as Agricultores/as, entre as/os professoras/es e Associados da

AAFERG presentes, pensando o fortalecimento comunitário, da Associação e do PA

como um todo.

A participação destas pessoas e a oportunidade de se por em prática alguns

conceitos construídos dentro da academia, de forma coletiva e integrada com as

experiências de vida dos mesmos, pode ser considerada enquanto uma estratégia

de enfrentamento com vistas à uma possível superação do que está posto às

mulheres e aos homens dos campos e das florestas:

A socioeconomia solidária requer o desenvolvimento do humanismo social, que se assenta em uma eticidade que possui como centralidade a vida, a mutualidade, a cooperação, a sustentabilidade. O humanismo social expõe a idéia fundamental o respeito aos seres humanos e a relação destes com todas as formas de vida. Há uma valoração ética que combate a corrupção, o medo, a mediocridade e busca na ousadia a participação (ZART, 2011, p.33).

É essa ousadia que este trabalho pensado de forma coletiva tem de mais

significativo, sabendo de todos os seus limites devido às resistências diante desta

dimensão que definitivamente não fora motivada durante a maioria de nossas

experiências escolares e familiares.

Enquanto estratégia de se articular meios concretos para a participação

destes coletivos, Escola e Associação, foi sugerido se desenvolver a atividade do TE

das colaboradoras para dar conta de uma das etapas de formação no curso do

LedoC, com o “olhar” em uma proposta metodológica onde o critério da participação

enquanto um processo político e pedagógico, dialógico e dialético estivesse

minimamente contemplado.

Estas duas dimensões que fazem parte do ato educativo, a vida e os

conceitos, são por excelência inexoravelmente co-relacionadas, e por isso mesmo

foram pensadas enquanto um dos desafios da proposta colaborar com esta

articulação dos saberes do campo e da escola com o intuito de quebrar barreiras,

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transpor preconceitos e recriar novas possibilidades de se “olhar” estas duas

produções de conhecimentos não mais de forma dualista, fragmentada ou

dicotômica, mas complementares.

Esta experiência abriu muitas possibilidades dentro desta realidade

campesina. É certo que as relações de poder dentro destes espaços sociais estão

se desdobrando em mais desafios que precisam ser enfrentados com vistas à sua

problematização, na práxis da ação-reflexão diários.

A superação, nesta perspectiva, será um processo que com certeza já está

sendo questionada enquanto dimensão de desconstrução de preconceitos e

paradigmas que não dão conta de sustentar tais situações de conflitos. A intenção é

provocar a participação destes atores para pensar de forma coletiva, acreditando

que por meio da educação e do trabalho pode-se repensar o vivido com vistas à sua

transformação.

Reflexões sobre a X Reunião da Coordernação Nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES: Uma Perspectiva Regional

Nesta oportunidade será colocado para discussão e reflexão uma perspectiva

sobre uma das reuniões do coletivo da ES em âmbito nacional, espaço onde o grupo

MUDAR pôde participar representado o Estado do MT, momento importante que fala

de um dos momentos de organização e formação destas/es protagonistas.

Atualmente muitas das discussões e reflexões dos Movimentos Sociais (MS)

dos campos, das florestas e das cidades estão se materializando através de

espaços políticos criados por estes coletivos, espaços estes que provocam a

participação, mesmo que representativa e/ou tímida, das atrizes e dos atores que

fazem e refazem estratégias de luta e resistência diante de “situações-limites”

diversas.

Neste sentido, Conselhos, Fóruns, Redes e Associações foram forjadas a

partir de uma orientação político - pedagógica que busca, entre outras coisas,

possibilitar a construção de Políticas Públicas, através de um pensar e repensar a

situação concreta de vida de cada uma e cada um. A participação popular, nesta

perspectiva, está sendo sistematicamente estimulada e orientada de forma coletiva e

participativa, com todas as contradições e conflitos que estão presentes em uma

sociedade em colapso ético, econômico, político e sócio-cultural.

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A ES neste contexto é um destes MS que desde os anos 2000 no Brasil e a

partir de 2003 no MT vem provocando toda uma ação-reflexão-ação que colaborou

com o cenário atual de busca de alternativas “viáveis” de enfrentamento e superação

ao que está posto.

As leituras foram tecidas na perspectiva do “olhar” de um Empreendimento

Econômico Solidário (EES), através de uma pesquisa qualitativa com viés dialético

fenomenológico. Convidamos para diálogo Merleau-Ponty e Paulo Freire. A

metodologia privilegiada é a descrição densa de Geertz.

O fenômeno em questão neste momento são as discussões e reflexões

construídas durante a X Reunião da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de

Economia Solidária (FBES), que aconteceu entre os dias 18,19 e 20 de agosto de

2011, em Brasília/DF. Apesar da expressão nacional, iremos privilegiar mais

centralmente as contribuições da região Centro-Oeste.

Este é um Fórum de âmbito nacional, é um espaço que se pretende legítimo

através das contribuições das e dos representantes de EES, Assessorias e Gestores

Públicos, que pode instrumentalizar e qualificar a luta por melhoria da qualidade de

vida das pessoas que historicamente estiveram à margem da sociedade.

Retrospectivas: Desafios e Possibilidades

Os trabalhos iniciaram-se com uma MISTICA - Linha do Tempo, onde os

pontos mais significativos da História do Movimento da Economia Solidária em nível

nacional, regional e estadual foram pontuados. Momento de construção de uma

memória coletiva que foi interessante, pois já estavam introduzindo o tema em

questão nesta reunião: uma retrospectiva do triênio de 2009 à 2011.

Na décima reunião dos representantes dos três segmentos da ES de todos os

Estados o objetivo maior era fazer um balanço dos projetos, políticas e programas

que foram construídos enquanto propostas de minimização dos entraves, gargalos e

fragilidades dos vários setores produtivos os quais os EES tanto dos campos, das

florestas e das cidades estão submetidos.

As linhas de reflexão então foram divididas em três aspectos, que tratam da

realidade dos EES, do Fórum Estadual de Economia Solidária (FEES) e da

Sustentabilidade; observando como estão organizados hoje considerando o triênio;

verificando as Políticas Públicas e seus resultados e das dimensões: disseminação e

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divulgação; relação com outros MS e as Relações Internacionais. Para tanto foi

proposto uma breve análise de conjuntura, feita pelo coletivo de forma participativa a

partir das regiões: um panorama nacional.

Análise de Conjuntura 2009/2011

Neste momento foram distribuídos em grupos por região, assim foi possível

se ter um panorama mais ou menos delineado de algumas dimensões que mesmo

sendo pontuadas por estados e regiões, refletem o Movimento como um todo,

devido as semelhanças das “situações-limites” apontadas por cada região do Brasil.

Assim a orientação foi levantar os acontecimentos; cenários; atores; as

relações de forças e o corte conjuntural o qual tais dimensões estão interligadas. É

sabido que uma dimensão dialoga com a outra e que, por vezes, de tão co-

relacionadas acabam por confundir seu “lugar” neste processo. Por isso mesmo que

este se configura enquanto uma ação política pedagógica, pela possibilidade da

produção de conhecimento e inserção lúcida à realidade.

Esta construção coletiva participativa é uma oportunidade ímpar de cada

pessoa colocar suas vivências e as de seus pares, uma vez que no dia-a-dia estas

pessoas estão vivenciando uma mesma história de luta e resistência, pois “de fato,

não posso existir na vida cotidiana sem estar continuadamente em interação e

comunicação com os outros” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 40). Vejamos as

colocações gerais de cada dimensão que surgiram desta discussão e reflexão

coletiva:

Acontecimentos: PL 865 (por opção política não pressão política):

Processos das Audiências Públicas nos Municípios e Estados; Seminário de 8 Anos

da SENAES; Mudança do Código Florestal: Embates e Discussões; Surgimento de

Editais que têm como orientação uma construção de forma dialogada com o

Movimento: Nacional, Estaduais e Municipais; Conferências de ES: Nacional,

Regionais e Estaduais; Seminário Inter-Conselhos; ECOSOL inserida no PPA:

Desenvolvimento Sustentável, Local, Regional e Economia Solidária; Re-lançamento

da Frente Parlamentar Nacional/2011; Criação de alguns Fóruns Regionais; Grito da

Terra/2011; Marcha das Margaridas/2011; Diálogos e Convergência da ES com

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outros MS; Projetos e Metodologias: CFES-CO, Mapeamento, Brasil Local, Bases de

Serviços e Comercialização Solidária, Bancos Comunitários e as Ações pelo

Programa Nacional de Comércio Justo e Solidário: Feiras e Seminários; Movimentos

revolucionários na América Latina como um todo.

Cenários: FEES/C0: possibilidades e desafios; AF; Agronegócio; Governos

Municipais e Estadual; Conselhos: CONSEA, CONESOL; Micro e Pequenas

Empresas; Fragilidade no diálogo com Crédito: Burocratização e a inexistência de

linhas específicas; Resistência de aproximação de Gestores Públicos: Oligarquia,

Personalismo e Verticalização nas relações; Crescimento do Emprego Formal: com

precarização nos salários e condições de trabalho; Continuidade da

Descapitalização dos EES da cidade, campos e florestas; Discussões e

Negociações em nível Internacional: Banco Mundial, Mercosul, Grandes

Multinacionais.

Atores: Gestores Públicos, EES, Redes e Cadeias; Assessorias, MS do

Campo e da Cidade; Agronegócio; Micro e pequenas/os empresárias/os;

Consumidores – Prossumidores – “Mercado”.

Relação de Forças: Leis Estaduais e Municipais de ECOSOL, Forças

Oligárquicas, Relações Personalistas e Horizontalizadas: PL 856; Economia

Solidária enquanto Transversalidade: Está em tudo e em nada ao mesmo tempo;

Escola do Campo: a Agricultura Familiar em diálogo; Cooperação e Solidariedade;

Enfrentamentos e Confrontos; Interesses Individuais x Interesses Coletivos;

Construção do diálogo entre EES, sociedade e o Poder Público; Mística: como

metodologia para o resgate da miséria da Auto Estima dos EES; Instabilidade do

“lugar Institucional” da ECOSOL: SENAES em qual Ministério? FBES desbravando e

estabelecendo diálogo com a Presidência da República reafirmando nossa

Identidade Social e o Lugar Institucional que pensamos mais adequado; Retirada da

ECOSOL do PL 865; Interesses Internacionais.

Corte Conjuntural: Avanços e Desafios: Projetos implementados de forma

não dialogada com o Movimento. Economia Popular e Empreendimentos Familiares

serão incorporados ao Movimento pela política Nacional de ECOSOL?

Comercialização, Produção, Consumo e Créditos Solidários: sem política de

fomentos definidas. Formação Política Continuada e a Cultura Capitalista Enrraigada

nas pessoas: possibilidades e desafios.

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Elementos de Conjunta Externa: PL 865; II CONAES: Estados, Regiões e a

Nacional; Eleição da Dilma; Grito da Terra; Marcha das Margaridas, Diálogo e

Convergências; Fórum Social Mundial; Frente Parlamentar: Diálogo com as

Secretarias Nacionais, Conselhos e Ministérios (SDT, SENAES, MDA, MDS,

SNPPM, CONSEA, CNE, MAPA); Leis de ES Aprovadas.

Elementos de Conjunta Interna: Mobilização para Audiências Públicas:

Posicionamento do FBES em relação a PL 865, à Presidência da República;

Interlocução com outros MS; Criação do Cirandas; Protagonismo do FBES nas

Relações Internacionais.

Estas são algumas das pontuações mais significativas que trazemos para

compartilhar. As trajetórias de cada participante trouxeram uma gama de

informações e conhecimentos que possibilitou determinado nivelamento sobre

alguns conceitos e também de algumas conquistas das companheiras e

companheiros de vários estados. Para, além disso, houve todo um movimento

intersubjetivo de legitimação e pertencimentos:

A realidade da vida cotidiana além disso apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com os outros homens. Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras realidades das quais tenho consciência (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 40).

Este reconhecimento se dá com a apropriação dos envolvidos nesta mesma

realidade. É um fenômeno não linear, o desafio está na reafirmação constante das

identidades e dos compromissos coletivos definidos na e pela situação de

reconstrução de uma nova forma de se estabelecer relação com o outro e com a

natureza. E é na vida cotidiana que estas construções se materializam, na família e

no trabalho; nas escolas e na vida comunitária como um todo:

Entre minha consciência e meu corpo tal como eu o vivo, entre este corpo fenomenal e aquele de outrem tal como eu o vejo do exterior, existe uma relação interna que faz o outrem aparecer como o acabamento do sistema. A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo, e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 472).

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Entre outras tantas nuances existentes nas complexas teias de sentidos e

significados produzidos pela humanidade, há toda esta densa relação intra e

interpessoal. Pessoas que vivem em um mundo cercado de simbolismos que nem

sempre cooperam com a vivência em grupos, muito pelo contrário, exacerbam o

individualismo e o competitivismo.

Foi importante esta atividade na medida em que colaborou não só com o

levantamento de elementos práticos para o balanço do triênio 2009/2011 do MS da

ES no Brasil, mas sobre tudo pela possibilidade de contato entre as/os diversas/os

atrizes e atores que puderam sentir-se no que o outro falava, mesmo estando à

quilômetros de distância geograficamente daquela realidade.

O passo seguinte foi concentrar os “olhares” para cada região: para tanto

foram pensadas algumas questões âncoras para subsidiar as discussões regionais.

É importante colocar antes de prosseguirmos que as discussões e reflexões

compartilhadas neste momento são expressões de âmbito nacional, embora a

metodologia por região tenha sido utilizada. A tentativa daqui para frente será

colocar as percepções do MS da ES em âmbito regional, ou seja, da Região Centro-

Oeste e seus respectivos Estados.

Contribuições da Região CO: Avanços e Desafios

Como na maioria dos processos de formação oferecidos pela ES, este

momento foi conduzido didaticamente para que o trabalho coletivo fluísse e todas e

todos pudessem contribuir. Assim, algumas questões suleadoras8 fizeram a função

de organizar as idéias e as informações sobre a realidade da Região e de cada

Estado referentes à assuntos que dizem dos EES direta ou indiretamente. Estas

questões estavam divididas em três grupos distintos, porém interligados:

A. Fortalecimento dos EES como atores econômicos nos territórios, buscando sua

organização em redes e cadeias nos campos da produção, comercialização,

8 O termo “sulear” tem sido utilizado, de modo explícito, por Freire no livro Pedagogia da Esperança (1994, p.

218-219). [...] Como contraponto ao “nortear”, cujo significado é a dependência do Sul em relação ao Norte,

“sulear” significa o processo de autonomização desde o Sul, pelo protagonismo dos colonizados, na luta pela

emancipação (Dicionário Paulo Freire, 2008, p. 396).

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logística, consumo e finanças solidárias como estratégia para um outro modelo de

desenvolvimento;

B. Fortalecimento político e organizacional dos Fóruns Estaduais,

consolidação/constituição de Fóruns microrregionais e municipais para maior

integração e interiorização do FBES, e articulação macrorregional entre Fóruns

Estaduais;

C. Estratégias para a sustentabilidade e autonomia financeira dos FEES e EES nas

dimensões: auto-financiamento; captação de recursos públicos; e cooperação

internacional.

Cada uma destas questões tiveram seus desdobramentos, perguntas mais

restritas que colocavam de forma mais direta as questões que precisam ser

pensadas. Neste sentido optamos por compartilhar algumas colocações que podem

contribuir com a compreensão do panorama organizacional da ES no CO como um

todo, lembrando que em muitos pontos há diferenças significativas entre um Estado

e outro, por isso, na medida do possível, iremos registrar uma ou outra visão por

Estado.

Um jeito novo de caminhar...

Foi pensado pelo coletivo dos estados da região Centro-Oeste um novo jeito

de encaminhar esta etapa das discussões. A idéia daquele coletivo era mesmo ir

além das questões práticas necessárias para o balanço do triênio. Era importante ali,

enquanto Região, criar um novo jeito de caminhar dentro dos processos

organizacionais da ES.

Onde um Estado apoiaria o outro, considerando-se as fragilidades que um

possa ter mais que os outros. E dentro destas perceber como as Políticas Públicas

estão fortalecendo os EES e os FEES? Como os coletivos percebem este processo

dentro do MS e como vêem sua participação nestes processos? Há mais acesso a

crédito e formação hoje do que em 2009? E o fator Comercialização? Estas e outras

poderiam indicar os pontos fortes e fracos em cada realidade, e dai por diante

pensar coletivamente alternativas viáveis de superação.

Questões é o que mais brotam em meio às reflexões sobre a ES e seus

desdobramentos. Cada um/a falou sobre suas realidades, mas a resposta precisava

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ser global, ou seja, regional. Sobre as Políticas Públicas chegaram ao consenso que

ainda são poucas e pontuais, de forma lenta através do PAA e PNAE frente à

Comercialização da AF por um lado, e por outro o Programa de Bases de

Comercialização Solidária que vem com o foco mais na organização da produção

pensando na Comercialização.

Algumas Leis e Conselhos Municipais colaboram com os EES de algumas

localidades, por isso o interior está mais fortalecido. Não é possível generalizar, mas

os Programas como o Centro de Formação em Economia Solidária (CFES), Brasil

Local e o Sistema Nacional de Comercialização Solidária colaboraram, em certa

medida, com o fortalecimento de muitos EES.

Quanto a formação, consideram que ampliou-se os trabalhos, porém a

autogestão ainda é um grande desafio. Levando-se em consideração que todo este

processo necessita ser vivenciado e aprendido simultaneamente, a formação foi

uma meta fortemente buscada pelas/os atrizes e atores em conjunto com os

diversos parceiros.

Com isso as ações formativas se deram em diversos espaços como nas

Feiras de ES e da AF, e outras oficinas através dos Programas e Projetos, além de

novos parceiros locais, com isso foi possível multiplicar as discussões, reflexões e

produção de conhecimento:

É importante lembrar este ponto. O senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas. Se quisermos descrever a realidade do senso comum temos que nos referir a estas interpretações, assim como temos de levar em conta seu caráter de suposição indubitável, mas fazemos isso colocando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 37).

As experiências compartilhadas em meio a produção do trabalho e da

formação política, sem dicotomias, promovem a busca de estratégias diante das

dificuldades, pois “não é no silêncio que as pessoas se fazem, mas na palavra, no

trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 1996).

Estas pistas de como fazer diferente do que está posto produz novos

conhecimentos, novas práticas e um novo olhar sobre conceitos que já não dão

conta da realidade. E são estes conhecimentos da vida como ela é que estão

fazendo a diferença nestas experiências por uma outra sociedade possível.

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Avançando um pouco mais a respeito da situação dos EES da região CO, em

relação ao crédito a incidência ainda se mostra incipiente. O desafio ainda é muito

grande levando-se em consideração que os EES ainda não estão preparados

tecnicamente para buscarem crédito via projetos e editais diversos.

O Crédito em sua concepção pode ser encarado de uma forma diferenciada,

inclusive como uma estratégia de organização da produção e formação. Mas para

isso é preciso pensar um processo pedagógico que se discuta e estimule esta idéia.

Toda a luta para construir Políticas Públicas legítimas advindas das porteiras

à dentro dos EES faz com que todos os segmentos que compõem a ES se

mobilizem e articulem-se para tanto, porém os EES não conseguem perceber nas

bases estas contribuindo efetivamente em seu fortalecimento, isso reflete a falta de

diálogo com o Poder Público.

Via Movimento a visão é mais nítida em muitos estados, mas é preciso que se

tenha um debate mais ampliado sobre os Avanços e as Conquistas da ES em todos

os âmbitos. Estas leituras não são simples de serem feitas, precisam ser

consideradas enquanto um processo pedagógico.

Acredita-se que a partir da compreensão da proposta do projeto de uma nova

sociedade, através das vivências nos diversos espaços e setores do processo

econômico e político, além do comprometimento individual e coletivo das pessoas

que participam deste movimento é como os mesmos poderão colaborar

efetivamente com esta construção. Essa apropriação estimula outra dimensão

fundamental ao processo de emancipação, a autonomia:

Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado ninguém amadurece de repente aos, 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia ou não, a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é uma processo, é uma vir a ser (FREIRE, 1996, p. 12).

Autonomia não é um dado a priori, é uma construção que precisa ser

experimentada, vivida em um constante processo de formação. Pensando nesta

perspectiva, pelas vivências pode-se dizer que hoje as/os militantes estão com maior

compreensão do processo a partir das formações, de sua participação em vários

momentos, mas ainda é um desafio se ter parâmetros ou indicadores para avaliar as

mudanças nos EES. Esta é uma dimensão que precisa ser intensamente

problematizada.

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Uma estratégia que pode colaborar para superar estes desnivelamentos de

compreensão e qualificar a participação política é a organização dos EES em redes

e cadeias. Nesta perspectiva, em alguns estados já estão acontecendo de forma

organizada algumas Redes, em relação às Cadeias Produtivas são poucas as

iniciativas. Esta articulação já acontece, embora timidamente, devido ao próprio

amadurecimento e crescimento do movimento.

Pensando ainda nesta organização dos EES, seja em Redes ou Cadeias, seja

em Associações ou Cooperativas, percebe-se o aumento significativo de alguns

setores produtivos, resultado já desta articulação enquanto estratégia de superação

do estrangulamento de algumas atividades como a do artesanato que foi um setor

bem forte em 2009, hoje o que vem se destacando é a AF e o Agroextrativismo.

Uma demanda grande por produtos da AF, do Agroextrativismo e da

Agroecologia estão chamando outros desafios. Neste segmento produtivo a

Certificação é uma discussão que está sendo pensada e proposta no Projeto de

Comercialização Solidária, mas em nível de FEES ainda não foi iniciado em alguns

Estados. Em outros isso ainda está à nível de formação e discussão.

Como se pode perceber nos desdobramentos das discussões do coletivo de

representantes que pensaram a região CO frente as ações que se referem direta ou

indiretamente aos EES, FEES e ao FBES, houve determinado crescimento de ações

que deram certa visibilidade ao Movimento de ES, principalmente no interior. A

avaliação neste sentido é que ela está conseguindo, na medida do possível,

estabelecer diálogos importantes com outros MS e a Comunidade Local, já com o

Poder Público de forma mais tímida devida relações hierarquizadas e personalistas.

Em relação ao FBES em nível nacional foram construídos vários mecanismos

e instrumentos para democratizar as informações, mas ainda é um desafio a

comunicação entre os Segmentos em cada realidade, entre os Fóruns em si e

destes com o FBES.

Sobre os FEES em algumas realidades ainda é um desafio a participação dos

EES, inclusive pela organização geográfica. A participação acontece a partir dos

interesses e possibilidades frente a comercialização, seja nas discussões em

seminários e envolvimento com outros MS e própria militância que é fortalecida a

cada formação. Há ainda muita rotatividade entre as/os participantes em algumas

realidades. A participação é um desafio ao processo político pedagógico proposto

pela ES, e essa é uma premissa para a conscientização, pois conforme FREIRE:

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Nos anos 60, preocupado já com esses obstáculos, apelei para a conscientização não como panacéia, mas como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, de suas razões de ser. Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da “prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996, p. 23).

Para enfrentamento e superação de tantos desafios o coletivo nesta

oportunidade acredita que se deva pensar em uma ação integrada em conjunto com

o FBES para acompanhamento e fortalecimento dos EES e dos FEES. Algumas

sugestões foram pensadas: se organizar Encontros Regionais e Estaduais com

estrutura adequada e com mais freqüência, por exemplo.

A criação de uma lista específica Regional e um animador para o fim de

estimular esta rede; repensar metas em relação as possibilidades reais de cada

realidade. Promover oficinas temáticas que disponibilize formação técnica há alguns

multiplicadores para que se domine os conhecimentos técnicos necessários para

saber utilizar os instrumentos já existentes que servem à este fim da Comunicação:

CIRANDAS, MAMULENGO.

Outros pontos foram destacados em relação as fragilidades que ainda

persistem entre os EES e os FEES, como a questão da sustentabilidade. A partir de

experiências isoladas como a do MS que destina 5% das vendas do Centro de

Comercialização para o seu FEES, um exemplo que está dando certo. No mais

acontece de forma pontual para subsídio dos Centros de Comercialização, mas que

não há esta organização de repasse aos FEES.

Esse é um processo pedagógico e precisa ser trabalhado em todos os

momentos de formação, feiras, seminários e reuniões, inclusive com os intercâmbios

com outros MS, em todas as dimensões é preciso esse diálogo e convergência.

Nossa caminhada está ou deveria estar em uma perspectiva holística, porém a

convergência é um grande desafio. Na construção dos projetos já deveria ter

garantido recurso destinado para fortalecimento dos FEES, seja através das

metodologias, pelos conteúdos significativos à nossa luta e realidades públicas.

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Prioridades para o próximo triênio – 2012 X 2014

Muitas considerações foram tiradas destas discussões e reflexões, por hora

acreditamos ser pertinente colocar o ponto de partida não de chegada do esforço

empreendido por cada pessoa que mesmo não podendo se fazer presente nesta

oportunidade colaborou para este resultado. Este é um processo, assim sendo a

continuidade das ações precisam ser destacadas.

Vejamos os desafios e as possibilidades para os militantes desta nova forma

de “olhar” as relações:

1. Criar mecanismos para atingir a sociedade em geral sobre os valores da ES,

utilizando todos os meios de comunicação existentes disponíveis, buscando

orçamentos específicos para essa finalidade;

2. Participação mais efetiva rumo à Conferência Nacional do Trabalho Decente;

3. Problematizar e Trabalhar Relações Interpessoais dentro da ES enquanto estratégia

pedagógica.

4. Criar um modelo de Projeto de Lei, Municipal e Estadual para facilitar a proposição

de encaminhamentos, fundos, Conselhos;

5. Mobilização pela Lei Nacional; Mudança da Lei de Cooperativismo; Projeto Político

de Comercialização; Interlocução com a SENAES; Participação ativa na Reforma

Política do Brasil.

6. Construção de Estruturas Regionais;

7. Fomentar Intercâmbios entre experiências;

8. Fortalecimentos dos FEES, sua Sustentabilidade e a dos EES.

9. Formação Continuada em ES; Pautar a ES no Currículo Escolar: Agregar e

Fortalecer a Escola do Campo como estratégia de enfrentamento ao atual modelo

econômico; Agroecologia e Agroextrativismo.

10. Integração com demais MS, Conselhos, Fóruns, Territórios.

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11. Cuidado de Gênero pensando as diversidades e as diferenças: Temáticas e

Transversalidades afins.

Algumas destas Bandeiras estão em pauta no MS da ES desde sua criação, o

diálogo e convergências com demais MS dos campos, das florestas e das cidades

ampliaram o leque de desafios, mas também de possibilidades. E é neste

movimento por dignidade humana que os militantes estão a cada conquista ou

desafio unidos, ou buscando esta comunhão que é necessária para o enfrentamento

e a superação das “situações-limites”.

Diálogos e Convergências

Carta de Salvador

Somos 300 cidadãos e cidadãs brasileiras integrados à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), à Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), à Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), à Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), à Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV), à Marcha Mundial de Mulheres e à Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), em reunião na cidade de Salvador-BA, entre os dias 26 a 29 de setembro de 2011, durante o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências entre Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo.

Nosso encontro resulta de um longo e fecundo processo de preparação motivado pela identificação e sistematização de casos emblemáticos que expressam as variadas formas de resistência das camadas populares em suas diferentes expressões socioculturais e sua capacidade de gerar propostas alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemônico em nosso país. Vindos de todas as regiões do país, esses casos iluminaram nossos debates durante esses três dias e fundamentam a manifestação política que apresentamos nesta carta.

Ao alimentar esse padrão de desenvolvimento, o governo Dilma inviabiliza a justa prioridade que atribuiu ao combate à miséria em nosso país. Tendo como eixo estruturante o crescimento econômico pela via da exportação de commodities, esse padrão gera efeitos perversos que se alastram em cadeia sobre a nossa sociedade. No mundo rural, a expressão mais visível da implantação dessa lógica econômica é a expropriação das populações de seus meios e modos de vida, acentuando os níveis de degradação ambiental, da pobreza e da dependência desse importante segmento da sociedade a políticas sociais compensatórias. Esse modelo que se faz presente desde o início de nossa formação histórica ganhou forte impulso nas últimas décadas com o alinhamento dos seguidos governos aos projetos expansivos do capital internacional. Materialmente, ele se ancora na expansão do agronegócio e em grandes projetos de infraestrutura implantados para favorecer a extração e o escoamento de riquezas naturais para os mercados globais.

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Os casos emblemáticos que subsidiaram nossos diálogos demonstram a

essência violenta desse modelo que viola o “direito de ficar”, desterritorializando as populações, o que significa subtrair delas a terra de trabalho, o livre acesso aos recursos naturais, suas formas de organização econômica e suas identidades socioculturais. Os movimentos massivos de migração compulsória daí decorrentes estão na raiz de um padrão de distribuição demográfica insustentável e que cada vez mais converte as cidades em polos de concentração da pobreza, ao passo que o mundo rural vai se desenhando como um cenário de ocupação do capital e de seu projeto de uma agricultura sem agricultoras e agricultores.

A progressiva deterioração da saúde coletiva é o indicador mais significativo das contradições de um modelo que alça o Brasil a uma das principais economias mundiais ao mesmo tempo em que depende da manutenção e seguida expansão de políticas de combate à fome e à desnutrição. Constatamos também que esse modelo se estrutura e acentua as desigualdades de gênero, de geração, de raça e etnia.

Nossas análises convergiram para a constatação de que os maiores beneficiários e principais indutores desse modelo são corporações transnacionais do grande capital agroindustrial e financeiro. Apesar de seus crescentes investimentos em marqueting social e verde, essas corporações já não conseguem ocultar suas responsabilidades na produção de uma crise de sustentabilidade planetária que atinge inclusive os países mais desenvolvidos e que se manifesta em desequilíbrios sistêmicos expressos no crescimento do desemprego estrutural, na acentuação da pobreza e da fome, nas mudanças climáticas, na crise energética e na degradação acelerada dos recursos do ambiente.

As experiências mobilizadas pelas redes aqui em diálogo denunciam as raízes perversas desse modelo ao mesmo tempo em que contestam radicalmente as falsas soluções à crise planetária que vêm sendo apregoadas pelos seus agentes promotores e principais beneficiários. Ao se constituírem como expressões locais de resistência, essas experiências apontam também caminhos para a construção de uma sociedade justa, democrática e sustentável.

A multiplicação dessas iniciativas de defesa de territórios, promoção da justiça ambiental e de denúncia dos conflitos socioambientais estão na raiz do recrudescimento da violência no campo que assistimos nos últimos anos. O assassinato de nossos companheiros e companheiras nessas frentes de luta é o mais cruel e doloroso tributo que o agronegócio e outras expressões do capital impõem aos militantes do povo e ao conjunto da sociedade com suas práticas criminosas.

Nossos diálogos procuraram construir convergências em torno de temas que mobilizam as práticas de resistência e de afirmação de alternativas para a

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sociedade.

Os diálogos sobre reforma agrária, direitos territoriais e justiça ambiental responsabilizaram o Estado face ao quadro de violência com assassinatos, expulsão e deslocamentos compulsórios de populações pela ação dos grandes projetos como as hidrelétricas, expansão das monoculturas e o crescimento da mineração; a incorporação de áreas de produção de agrocombustíveis, reduzindo a produção de alimentos; a pressão sobre as populações que ocupam tradicionalmente áreas de florestas, ribeirinhas e litorâneas, como os mangues, os territórios da pesca artesanal, com a desestruturação de seus meios de vida e ameaça ao acesso à água e à soberania alimentar.

As convergências se voltaram para a reafirmação da centralidade da luta pela terra, pela reforma agrária e pela garantia dos direitos territoriais das populações. O direito à terra está indissociado da valorização das diferentes formas de viver e produzir nos territórios, reconhecendo a contribuição que povos e populações tradicionais oferecem à conservação dos ecossistemas; do reconhecimento dos recursos ambientais como bens coletivos para o presente e o futuro; e os direitos das populações do campo e da cidade a uma proteção ambiental equânime. Convergimos ainda na afirmação de que o direito à terra e os direitos à água, à soberania alimentar e à saúde estão fortemente associados.

Reconhecemos a importância da mobilização em apoio ao Movimento Xingu para sempre - em defesa da vida e do Rio Xingu, considerado como um exemplo emblemático de luta de resistência ao atual modelo de desenvolvimento. Defendemos o fortalecimento da articulação dos atingidos pela empresa Vale e as propostas que combinem a gestão ambiental com a produção agroecológica, a exemplos de experiências inovadoras dos movimentos sociais em assentamentos da Reforma Agrária.

No debate sobre mudanças climáticas, seus impactos, mecanismos de mercado e a agroecologia como alternativa, recusamos que a proposta agroecológica seja apropriada como mecanismo de compensação, seja ele no invisível e inseguro mercado de carbono, seja em REDD, REDD+, REDD++ (redução das emissões por desmatamento e degradação) ou ainda dentro do pagamento de serviços ambientais. A Rio +20 engendra e consolida a chamada “economia verde”, que pode significar uma apropriação, pelo capitalismo, das alternativas construídas pela agricultura familiar e camponesa e pela economia solidária, reduzindo a crise socioambiental a um problema de mercado.

A Agroecologia não é uma simples prestadora de serviços, contratualizada com setor privado. Ela reúne nossas convergências no campo e na cidade, trabalhando com gente como fundamento. É possível financiar a Agroecologia a partir da contaminação, escravidão, racismo e acumulação cada vez maior do

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capital? É possível fazer um enfrentamento a partir do pagamento de serviços ambientais por contratos privados, parcerias público-privadas?

Ao debater os impactos da expansão dos monocultivos para agrocombustíveis e padrões alternativos de produção e uso de energia no mundo rural, os diálogos apontaram que a energia é estratégica como elemento de poder e autonomia dos povos, mas está diretamente ligada ao modelo (hegemônico e falido) de consumo, produção e distribuição. A produção de agrocombustiveis, baseada na monocultura, na destruição do ambiente, na violação dos direitos e injustiças sociais e ambientais, associa-se ao agronegócio e ameaça a soberania alimentar.

As políticas públicas sistematicamente desvirtuam as propostas calcadas nas experiências populares, colocando as cooperativas e iniciativas da agricultura familiar na lógica da competição de mercado e em patamar desigual em relação às corporações, tal qual ocorre nas áreas de geração de energia elétrica, segurança alimentar, ciência e tecnologia ou mesmo da economia solidaria.

Nas políticas para os agrocombustiveis, a agricultura familiar é inserida como mera fornecedora de matérias primas e o modelo de integração é dominante, mascarando o arrendamento e assalariamento do campesinato e embutindo o pacote tecnológico da revolução verde através das políticas de crédito, assistência técnica e extensão rural. O diálogo do governo com os movimentos sociais se precariza pela setorização e atomização das relações, enquanto a mistura de interesses e operações entre MDA e Petrobrás acaba por legitimar o canal de negociação empresarial no marco de uma política pública.

As experiências de produção descentralizada de energia e alimentos apontam como soluções reais aquelas articuladas por organizações e movimentos sociais que integram as perspectivas da agroecologia, da soberania alimentar e energética, da economia solidária, do feminismo e da justiça social e ambiental, e são baseadas na forte identidade territorial e prévia organização das comunidades.

Estas iniciativas têm em comum a diversificação da produção e dos mercados e a prioridade no uso dos recursos, dos saberes e dos espaços de comercialização locais. Estão sob o controle dos agricultores e têm autonomia frente às empresas e ao Estado. Articulam-se a programas e políticas públicas diversas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), não apenas ao Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Os processos de transformação estão sob o domínio das organizações em toda a cadeia produtiva, e há diversificação da produção de alimentos e de matriz energética e co-produtos, para além e como conseqüência da produção de combustível. As formas de produção estão em rede e têm capacidade de se

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contrapor aos sistemas convencionais como premissa de sua permanência no território.

Com base nestes princípios e lições, as políticas públicas para a promoção da produção de energia e alimentos devem ter: um marco legal diferenciado para a agricultura familiar; promover a produção e uso diversificado de óleos, seus co-produtos e outras culturas, adequadas à diversidade cultural e biológica regional; atender à demanda de adequação e desenvolvimento de tecnologia e equipamentos apropriados, acompanhada de processos de formação e de redes de inovação nas universidades; além de proporcionar autonomia na distribuição e consumo local de óleos vegetais, biodiesel e álcool.

Os diálogos sobre os agrotóxicos e transgênicos, articulando as visões da justiça ambiental, saúde ambiental e promoção da agroecologia, responsabilizaram o Estado pelas políticas de ocultamento de seus impactos expressas nas dificuldades de acesso aos dados oficiais de consumo de agrotóxicos e de laudos técnicos sobre casos de contaminação; na liberação de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) sem debate democrático com a sociedade e sem atender ao princípio da precaução; na frágil vigilância e fiscalização trabalhista, ambiental e sanitária; na dificuldade do acesso aos laboratórios públicos para análise de amostras de contaminação por transgênicos e por agrotóxicos no ar, água, alimentos e sangue; terminando por promover um modelo de desenvolvimento para o campo que concentra terra, riqueza e renda, com impactos diretos nas populações mais vulneráveis em termos socioambientais.

Há um chamamento para que o Estado se comprometa com a apuração das denúncias e investigação dos crimes, a exemplo do assassinato do líder comunitário José Maria da Chapada do Apodi, no Ceará; com a defesa de pesquisadores criminalizados por visibilizar os impactos dos agrotóxicos e por produzir conhecimentos compartilhados com os movimentos sociais; com políticas públicas que potencializem a transição agroecológica – facilitando o acesso ao crédito, à assistência técnica adequada e que reconheça os conhecimentos e práticas agroecológicas das comunidades camponesas.

Não há possibilidade de convivência entre o modelo do agronegócio e o modelo da agroecologia no mesmo território, porque o desmatamento e as pulverizações de agrotóxicos geram desequilíbrios nos ecossistemas afetando diretamente as unidades agroecológicas. As políticas públicas devem estar atentas aos impactos dos agrotóxicos sobre as mulheres (abortos, leite materno, etc.) pois estas estão expostas de diferentes formas, que vão desde o trabalho nas lavouras até o momento da lavagem da roupa dos que utilizam os agrotóxicos. O uso seguro dos agrotóxicos e transgênicos é um mito e um paradigma que precisa ser desconstruído.

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É fundamental a convergência de nossas ações com a Campanha Nacional Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, ampliando os diálogos e convergências com os movimentos sociais do campo e da cidade, agregando novas redes que não estiveram presentes nesse Encontro de Diálogos e Convergências. Temos que denunciar esse modelo do agronegócio para o mundo e buscar superá-lo por meio de políticas públicas que possam inibir o uso de agrotóxicos e transgênicos, a exemplo da proibição da pulverização aérea, ou ainda direcionando os recursos oriundos dos impostos dos agrotóxicos, cuja produção e comercialização é vergonhosamente subsidiada pelo Estado. O fim dos subsídios contribuiria para financiar o SUS e a agroecologia.

Com relação aos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais ao livre uso da biodiversidade, constatamos que está em curso, nos territórios, um processo de privatização da terra e da biodiversidade manejada pela produção familiar e camponesa, povos e comunidades tradicionais. Tal privatização é aprofundada pela flexibilização do Código Florestal, que é uma grande ameaça e abre caminhos para um processo brutal de destruição ambiental e apropriação de terra e territórios pelo agronegócio.

A privatização das sementes e mudas, dos conhecimentos tradicionais e dos diversos componentes da biodiversidade vem se dando de forma acelerada, com o Estado cumprindo um papel decisivo na mediação (regulamentação e políticas públicas) dos contratos estabelecidos entre empresas e comunidades, representando sérios riscos aos direitos ao livre uso da biodiversidade.

Causa grande preocupação que as questões nacionais sobre conservação e uso da biodiversidade estejam sendo discutidas e encaminhadas sem a participação efetiva das populações diretamente atingidas, estando sujeitas a agendas internacionais como a Rio +20. Consideramos uma violação a atual forma de “consulta” sobre importantes instrumentos legais e de política concentrada em poucos atores e de questionável representatividade.

Experiências presentes neste encontro demonstram avanços e se fortalecem a partir da legitimidade de suas práticas e aproveitando as brechas existentes na legislação. Este é o caso, por exemplo, dos bancos comunitários de sementes no semiárido; da produção de sementes agroecológicas a partir de variedades de domínio público; da auto-regulação dos conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais do Cerrado; da constituição de um fundo público das quebradeiras de coco babaçu através da repartição de benefícios que reconhece o conhecimento tradicional associado.

É necessário aprofundar a organização das agricultoras e dos agricultores, extrativistas, povos e comunidades tradicionais em seus territórios, de forma a fortalecer os princípios e ações de cooperativismo e suas interlocuções com as redes regionais, estaduais e nacionais como estratégia de resistência e construção

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de alternativas. A geração de alternativas econômicas é crucial neste contexto. A apropriação do debate em torno dos direitos pode facilitar e fortalecer o diálogo de nossas redes e movimentos com a sociedade civil de modo geral, de modo a visibilizar a importância dos modos de vida destas comunidades para a garantia de direitos humanos, como o direito à alimentação adequada e saudável.

Nos diálogos sobre Soberania Alimentar e Nutricional, Economia Solidária e Agroecologia, as experiências apontaram o grande acúmulo na construção de alternativas ao atual modelo agroalimentar, que garantam, de forma articulada, a soberania alimentar e nutricional, a emancipação econômica dos trabalhadores e trabalhadoras nos territórios, em especial as mulheres, a promoção da saúde pública e a preservação ambiental. Constatou-se que estas iniciativas contribuem com a construção concreta e material de propostas diferenciadas de desenvolvimento, calcadas nas realidades, cultura e autonomia dos sujeitos dos territórios e orientadas para a justiça socioambiental, a democracia econômica e o direito à alimentação adequada.

Estes acúmulos se expressam através da existência e resistência de dezenas de milhares de empreendimentos e iniciativas de Economia Solidária e Agroecologia, especialmente quando articuladas e organizadas em redes e circuitos de produção, comercialização e consumo, que aproximam produtores e consumidores e fortalecem a economia e cultura locais, num enfrentamento à desterritorialização e desigualdades de gênero, raça e etnia inerentes ao atual padrão hegemônico de produção e distribuição agroalimentar.

Constatou-se que os programas de alimentação escolar (PNAE) e de aquisição de alimentos (PAA), assim como o reconhecimento constitucional do direito à alimentação e a implantação do Sistema e Política de Segurança Alimentar e Nutricional, são conquistas importantes para a agricultura familiar e camponesa. Por outro lado, de forma paradoxal, o Estado tem apoiado fortemente o agronegócio, através da subordinação de sua ação a interesses do capital, e da falta de um horizonte e estratégia definidos de expansão do orçamento do PAA e do PNAE.

As vivências e experiências denunciam também a grande quantidade de barreiras ao acesso das iniciativas e empreendimentos de Economia Solidária e Agroecologia a políticas públicas e ao mercado. Tais barreiras se expressam em uma legislação e inspeção sanitárias e tributárias incompatíveis às realidades das/dos produtoras/es e trabalhadoras/es associadas/os, em especial no processamento e agroindustrialização de polpas, doces e alimentos de origem animal. Estas barreiras, somadas à burocratização na aquisição da Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP) e a uma ofensiva de setores empresariais que têm denunciado à ANVISA empreendimentos produtivos assim que estes começam a se fortalecer, têm impedido o escoamento da produção dentro e fora do município e o acesso ao PAA e ao PNAE. O direito à organização do trabalho e da produção de forma associada só existirá com a conquista de garantias e condições legislativas,

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tributárias e de financiamento que sejam justas.

Os diálogos apontaram também a luta pelo consumo responsável, solidário e consciente como um campo importante de convergência entre as redes e movimentos e como um desdobramento concreto deste Encontro, através da construção conjunta de um diálogo pedagógico com a sociedade, tanto denunciando os impactos e danos dos alimentos vindos do agronegócio e contaminados com agrotóxicos, o que exige a regulação da publicidade de alimentos, quanto anunciando as alternativas disponíveis na Agroecologia e na Economia Solidária.

Em busca de novos caminhos

Os exercícios de diálogos que estamos realizando há dois anos e os excelentes resultados a que chegamos em nosso encontro reiteram a necessidade de fortalecermos nossas alianças estratégicas e renovarmos nossos métodos de ação convergente. As experiências que ancoraram nossas reflexões deixam claro que os temas que identificam as bandeiras de nossas redes e movimentos integram-se nas lutas do cotidiano que se desenvolvem nos campos e nas cidades contra os mecanismos de expropriação impostos pelo capital e em defesa dos territórios. Evidenciam, assim, a necessidade de intensificarmos e multiplicarmos as práticas de diálogos e convergências desde o âmbito local, onde as disputas territoriais materializam-se na forma de conflitos socioambientais, com impacto na saúde das populações, até níveis regionais, nacionais e internacionais, fundamentais para que as causas estruturais do atual modelo hegemônico sejam transformadas.

A natureza local e diversificada de nossas lutas vem até hoje facilitando as estratégias de sua invisibilização pelos setores hegemônicos e beneficiários do modelo. Esse fato nos indica a necessidade de atuarmos de forma articulada, incorporando formas criativas de denúncia, promovendo a visibilidade dos conflitos e das proposições que emergem das experiências populares.

Uma das linhas estratégicas para a promoção dos diálogos e convergências é a produção e disseminação de conhecimento sobre as trajetórias históricas de disputas territoriais e suas atuais manifestações. Nesse sentido, as alianças com o mundo acadêmico devem ser reforçadas também como parte de uma estratégia de reorientação das instituições do Estado, no sentido destas reforçarem as lutas pela justiça social e ambiental. Estimulamos a elaboração e uso de mapas que expressem as diferentes dimensões das lutas territoriais pelos seus protagonistas como uma estratégia de visibilização e articulação entre nossas redes e movimentos. O Intermapas já é uma expressão material das convergências.

Outra linha estratégica fundamenta-se em nossa afirmação de que a comunicação é um direito das pessoas e dos povos. Reafirmamos a importância, a

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necessidade e a obrigação de nos comunicarmos para tornar visíveis nossas realidades, nossas pautas e nosso projeto de desenvolvimento para o país. A mudança do marco regulatório da mídia é condição para a democratização dos meios de comunicação. Repudiamos as posturas de criminalização e as formas de representação que a mídia hegemônica adota ao abordar os territórios, modos de vida e lutas. Contestamos a produção da invisibilidade nesses meios de comunicação. O Estado deve se comprometer a financiar nossas mídias, inclusive para que possamos ampliar projetos de formação de comunicadores e de estruturação dos nossos próprios veículos de comunicação. As mídias públicas devem ser veículos para comunicar aprendizados de nossas experiências, proposições e campanhas. Por uma comunicação livre, democrática, comunitária, igualitária, plural e que defenda a vida acima do lucro.

Nossos diálogos convergem também para a necessidade do reconhecimento das mulheres como sujeito político, a importância de sua auto-organização e a centralidade do questionamento da divisão sexual do trabalho que desvaloriza e separa trabalho das mulheres em relação ao dos homens, assim negando a contribuição econômica da atividade doméstica de cuidados e a produção para o autoconsumo. Convergimos na compreensão do sentido crítico do pensamento e ação feministas para ressignificar e ampliar o sentido do trabalho e sua centralidade para a produção do viver.

A apropriação do feminismo como ferramenta política contribuirá para recuperar e visibilizar as experiências, os conhecimentos e as práticas das mulheres na construção da agroecologia, da economia solidária, da justiça ambiental e para garantir sua autonomia econômica.

Mas a história também mostra que o permanente exercício da violência dos homens contra as mulheres é um poderoso instrumento de dominação e controle patriarcal que fere a dignidade das mulheres e impede a conquista de sua autonomia, e as exclui dos espaços de poder e decisão. A violência contra as mulheres não é agroecológica, não é solidaria, não é sustentável, não é justa. Por isso é fundamental que as redes que estão organizando o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências assumam a erradicação da violência contra as mulheres como parte de um novo modelo de produção e consumo, que deve ter como um eixo fundamental a construção de novas relações humanas baseadas na igualdade.

O papel do Estado democrático é o de construir um país de cidadãos e cidadãs, promover e defender a organização da sociedade civil e de estabelecer com ela relações que permitam à sociedade reconhecer nas instituições a expressão do compromisso com o público e com a sustentabilidade. Esse princípio é contraditório com qualquer prática de criminalização dos movimentos e organizações que lutam por direitos civis de acesso soberano aos territórios e seus recursos.

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As redes e movimentos promotores deste Encontro saem fortalecidos e têm ampliadas suas capacidades de expressão pública e ação política. Estamos apenas no início de um processo que se desdobrará em ambientes de diálogos e convergências que se organizarão a partir dos territórios, o lugar onde nossas lutas se integram na prática.

Salvador, 29 de setembro de 2011 Para concluir este trabalho sugiro a seguinte reflexão:

“Para mim, ao repensar os dados concretos da realidade, sendo vivida, o pensamento

profético, que é também utópico, implica a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio

de como poderíamos viver. É um pensamento esperançoso, por isso mesmo. É neste

sentido que, como o entendo, o pensamento profético na apenas fala do que pode vir, mas,

falando de como está sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor. Para

mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia o que virá

necessariamente, mas o que pode vir, ou não. O seu não é um anúncio fatalista ou

determinista. Na real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático. Há diferentes

possibilidades de futuro. Reinsisto em não ser possível anúncio sem denúncia e ambos sem

o ensaio de uma certa posição em face do que está ou vem sendo o ser humano. O

importante, penso, é que este ensaio seja em torno de uma ontologia social e histórica.

Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária e inevitável,

não a entende como um a priori da História. A natureza humana se constitui social e

historicamente” (FREIRE, 2000, p. 54).